gt parentesco, família e relacionalidade

Transcrição

gt parentesco, família e relacionalidade
III
SEMINÁRIO
DE ANTROPOLOGIA
DA UFSCar
24 a 27 de Novembro de 2014
Universidade Federal de São Carlos
Logo: Guilherme Ubeda
Diagramação: Caroline Mendes dos Santos
COMISSÃO ORGANIZADORA
Allan Wine Santos Barbosa
Caroline Mendes dos Santos
Clarissa de Paula Martins Lima
Estêvão Barros Chaves
Karina Stéfani de Sá Teles Fernandes
Lucas de Carvalho Ferreira
Thais Regina Mantovanelli
Catarina Morawska Vianna
Felipe Ferreira Vander Velden
Luiz Felipe Oliveira
Ana Elisa Santiago
Lígia Rodrigues de Almeida
Amanda Danaga
Gislene de Oliveira Rodrigues
COLABORAÇÃO
Guilherme Ubeda
Ion Fernandes de las Heras Lopes de Guereñu
COMISSÃO CIENTIFICA
Liliana Lopes Sanjurjo
Ana Paula Galdeano
Wagner Xavier de Camargo
Gabriel Pugliese Cardoso
Clarice Cohn
Edmundo Peggion
Felipe Ferreira Vander Velden
Piero de Camargo Leirner
Igor José Macho Renó
Bruna Potechi
Catarina Morawska Vianna
Karina Biondi
Jorge Mattar Villela
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Sumário
RESUMOS............................................................................................................................ 11
GT
TEORIA
ANTROPOLÓGICA
E
ESCRITA
ETNOGRÁFICA:
DESAFIOS
TEÓRICO-
METODOLÓGICOS NA ELABORAÇÃO DE ETNOGRAFIAS ........................................................12
GT PARENTESCO, FAMÍLIA E RELACIONALIDADE ...................................................................27
GT SÍMBOLOS E SUJEITOS: DIÁLOGOS ANTROPOLÓGICOS SOBRE AS INTERAÇÕES
ENTRE HUMANOS E ANIMAIS ....................................................................................................37
GT ESTUDOS ETNOLÓGICOS ....................................................................................................50
GT ANTROPOLOGIA E ESTUDOS DE GÊNERO: BUSCANDO INTER-RELAÇÕES ....................57
GT POLÍTICA E RELIGIÃO ...........................................................................................................68
TRABALHOS COMPLETOS ............................................................................................... 80
GT
TEORIA
ANTROPOLÓGICA
E
ESCRITA
ETNOGRÁFICA:
DESAFIOS
TEÓRICO-
METODOLÓGICOS NA ELABORAÇÃO DE ETNOGRAFIAS ...................................................... 81
COMO ETNOGRAFAR UM MUNDO EM QUE TUDO GIRA, GERA E MEXE? APONTAMENTOS
SOBRE OS MOVIMENTOS DOS “HABITANTES” DE PINHEIRO .................................................82
HORIZONTES HERMENÊUTICOS- PERCURSOS METODOLÓGICOS NO TRAJETO:
DE
ENFERMEIRA À ANTROPÓLOGA ...............................................................................................95
AS MENIRE PARTICIPAM? REFLEXÕES INICIAIS SOBRE UM PROJETO DE MITIGAÇÃO
DIRECIONADO ÀS MULHERES XIKRIN ....................................................................................108
DEUS SABE POR QUE A GENTE CONSEGUE FALAR PRA UNS; E PRA OUTROS, NÃO”:
TRABALHO DE CAMPO E PRECAUÇÃO EM UMA COMUNIDADE CATÓLICA .........................121
DO PONTO DE VISTA DO “CRIME”: NOTAS SOBRE “GUERRA”, “DIREITOS HUMANOS”,
“PROGRESSO” E ETNOGRAFIA................................................................................................137
PROCEDER NA ETNOGRAFIA: REFLEXÕES SOBRE UMA ETNOGRAFIA NA QUEBRADA ....151
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
INTERTEXTUALIDADE
ETNOGRÁFICA:
DESAFIOS
NA
ESCRITA
ETNOGRÁFICA
NA
AUTORREPRESENTAÇÃO INDÍGENA ......................................................................................160
LIMITES E EXPERIMENTAÇÕES EM UMA ETNOGRAFIA COM HOMENS ...............................171
O QUE “AFRICANA” QUER DIZER? INTERLOCUÇÃO E RETÓRICA ........................................196
POR UMA ETNOGRAFIA DA TÉCNICA: DESAFIOS, ESTRATÉGIAS E PERSPECTIVAS NO
TRABALHO SOBRE A PRÁTICA DAS ARTES MARCIAIS NOS EXÉRCITOS MODERNOS .......206
ECONOMIA DO DESEJO E DESEJO DE ECONOMIA: RETROALIMENTAÇÃO E TROCA EM
COLETIVOS DA REDE FORA DO EIXO NO INTERIOR DE SÃO PAULO ..................................220
LEADER TRAINING: ETNOGRAFANDO UM SEMINÁRIO MOTIVACIONAL...............................232
ENTRE OS DOCUMENTOS E AS RETOMADAS: IMAGENS DA LUTA PELO TERRITÓRIO EM
BREJO DOS CRIOULOS (MG) ...................................................................................................244
GT PARENTESCO, FAMÍLIA E RELACIONALIDADE ........................................................... 258
AS DÁDIVAS NÃO CONCEDIDAS ..............................................................................................259
NOTAS SOBRE A IMPORTÂNCIA DO COMPARTILHAMENTO DE ALIMENTOS E DE
TRABALHO EM UM PUEBLO DOS ANDES PERUANOS ...........................................................270
“TEM UM ESPÍRITO QUE VIVE DENTRO DESSA PELE”: FEITIÇARIA E DESENVOLVIMENTO
EM TETE, MOÇAMBIQUE ..........................................................................................................283
FAMÍLIA 2.0: VIVÊNCIAS LABORAIS MILITANTES AFETIVAS E REDES DE PERTENCIMENTO
...................................................................................................................................................296
É O CORPO QUE SOFRE: OS CAMINHOS DA DOR NA PRODUÇÃO DE PARENTESCO EM
UMA COLÔNIA ALEMÃ DA ENCOSTA DA SERRA, RS .............................................................303
UMA ETNOGRAFIA DO SISTEMA DE TROCAS MATERIAIS E MORAIS NO PROCESSO DE
FORMAÇÃO SACERDOTAL EM SANTA CATARINA .................................................................316
PARENTESCO DE CONSIDERAÇÃO, UMA FORMULAÇÃO DO PARENTESCO MURA ...........328
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
“DEIXA EU COMEÇAR DO COMEÇO”: REFLEXÕES SOBRE RELAÇÕES FAMILIARES E A
CONSTRUÇÃO DA CATEGORIA “INCAPACIDADE PARA OS ATOS DA VIDA CIVIL” NO
PROCESSO DE “INTERDIÇÃO JUDICIAL”.................................................................................340
GT SÍMBOLOS E SUJEITOS: DIÁLOGOS ANTROPOLÓGICOS SOBRE AS INTERAÇÕES ENTRE
HUMANOS E ANIMAIS................................................................................................................... 352
ENTRE FAZENDAS, PIPETAS, ESTUFAS E ACORDOS MILIONÁRIOS: CLONAGEM E
PEDIGREE NO MERCADO DE GADO DE ELITE BRASILEIRO .................................................353
REFLEXÕES ETNOGRÁFICAS SOBRE O BEM-ESTAR ANIMAL EM FAZENDAS DE CRIAÇÃO
DE GADO DE CORTE ................................................................................................................365
SINAIS, VEREDAS E PONTOS DE REFERÊNCIA, UMA REFLEXÃO SEMIÓTICA DAS
RELAÇÕES ENTRE CRIAÇÃO, CAATINGA E CRIADORES NO SERTÃO DE PERNAMBUCO .378
FORMANDO SUJEITO, TORNANDO OBJETO: AS RELAÇÕES COM O CÃO NA AMAZÔNIA
INDÍGENA ..................................................................................................................................392
“O CAVALO É IGUAL AO HOMEM”: UMA ETNOGRAFIA DA RELAÇÃO ENTRE HUMANOS E
CAVALOS NA INVENÇÃO DA LIDA E DO MUNDO CAMPEIRO ................................................408
BÍPEDES E QUADRÚPEDES: AS RELAÇÕES DE METÁFORA E DE ALEGORIA ENTRE
CAVALOS E HOMENS – NÃO NECESSARIAMENTE NESTA ORDEM ......................................419
O RASTRO DO PASTOR. CRIAÇÃO DE ANIMAIS E TÉCNICAS PARA FAZER CARNE EM
JUJUY (ANDES MERIDIONAIS, ARGENTINA) ...........................................................................430
CRIAÇÃO E CONSUMO DE PORCOS NA REGIÃO DE Chapecó - SC: ENTRE CASA À
AGROINDÚSTRIA ......................................................................................................................444
CHAMAR E REUNIR OS ANIMAIS: NOTAS INICIAIS SOBRE OS CANTOS CINEGÉTICOS DO
HAI IKA KAXINAWÁ....................................................................................................................456
ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO EM DOMICÍLIO DE DESCENDENTES DE JAPONESES EM MARINGÁ
(PR) ............................................................................................................................................467
CÃES, BIOPOLÍTICAS E ALGUNS ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS .......................................481
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
QUANDO AINDA NÃO É CARNE: SOBRE ABATE, HUMANOS E ANIMAIS EM UM FRIGORÍFICO
DO INTERIOR PAULISTA ...........................................................................................................492
EJIWAJEGI: A ARTE DOS CAVALEIROS KADIWÉU..................................................................501
GT ESTUDOS ETNOLÓGICO ............................................................................................. 516
ÍNDIOS NA UNIVERSIDADE: UM ESPAÇO DE FRONTEIRA DE CONHECIMENTOS ...............517
IDÍGENAS, CIDADES E INSTITUIÇÕES: QUESTÕES METODOLÓGICAS ................................528
O QUE É MEU E O QUE É NOSSO: RELATO ETNOGRÁFICO SOBRE A COPA DO MUNDO DE
FUTEBOL NA ALDEIA AIHA, KALAPALO ...................................................................................544
AÇÕES RITUAIS EM TORNO DO PANEMA ...............................................................................554
HISTORICIDADES NA ETNOGRAFIA OU OS AWÁ-GUAJÁ DE VOLTA PARA O FUTURO .......567
PARENTES DE SANGUE: DIFERENÇA E RELAÇÃO ENTRE OS PATAXÓ HÃHÃHÃI ..............580
GT ANTROPOLOGIA E ESTUDOS DE GÊNERO: BUSCANDO INTER-RELAÇÕES............ 593
NO MUNDO DO PRAZER: UMA EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA NO CINE REGINA .................594
SOBRE A CATEGORIA DE POLICIAL FEMININA: EXPLORANDO A CONSTRUÇÃO NATIVA ..607
“AMOR É ASSUNTO DE MULHER”: RELAÇÃO DE GÊNERO E EMOÇÕES EM LETRAS DE RAP”
...................................................................................................................................................615
MULHERES, RUA E PRISÃO: UMA ANÁLISE DO PERFIL DE MULHERES COM TRAJETÓRIAS
DE RUA CUSTODIADAS NA PENITENCIÁRIA FEMININA DO DISTRITO FEDERAL .................625
CAIPIRA, MULATA, SIMPATIA E GAY: REFLEXÕES SOBRE GÊNERO, RAÇA E SEXUALIDADE
NOS CONCURSOS DE MISS DAS FESTAS JUNINAS EM BELÉM – PARÁ...............................636
SEXUALIDADE, FAMÍLIA E GÉNERO NA EXPERIÊNCIA URBANA DE MULHERES INDÍGENAS
...................................................................................................................................................644
ENTRE AS CONEXÕES DAS MARCAS SOCIAIS DA DIFERENÇA: MULHER, NEGRA E LÉSBICA
...................................................................................................................................................656
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
GT POLÍTICA E RELIGIÃO ................................................................................................... 668
ENTRE CUIDADOS” UMA ETNOGRAFIA DE GESTÃO DE “ADOLESCENTES EM CONFLITO
COM A LEI” PROVENIENTES DA INTERSECÇÃO ENTRE DISCURSO RELIGIOSO E FORMAS
ESTATAIS ..................................................................................................................................669
CONSTRUINDO “ENCONTROS”: MOVIMENTOS SOCIAIS, RITUAIS E POLÍTICA....................678
ANÁLISE SOCIOLÓGICA DA EVOLUÇÃO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL ........................691
ENTRE OVELHAS E LOBOS: UMA PERSPECTIVA ETNOGRÁFICA ENTRE RELIGIÃO E
POLÍTICA NA ASSEMBLEIA DE DEUS ......................................................................................703
NA COVA DOS LEÕES: CONFLITOS E CONTRADIÇÕES ENTRE ADVENTISMO E POLÍTICA 714
A RELIGIÃO EM UM MANDATO PARLAMENTAR......................................................................726
O PROCESSO DE UNIVERSALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ .......................................................733
IRMANDADES NEGRAS, ZONAS DE NEGOCIAÇÕES E DEMANDAS POLÍTICO-RELIGIOSAS
...................................................................................................................................................743
“O FÓRUM DAS COMUNIDADES DE TERREIRO DO RIO GRANDE DO SUL”: OLHARES
ETNOGRÁFICOS SOBRE A PRESENÇA DAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA NA ESFERA
PÚBLICA ....................................................................................................................................754
A PRESENÇA DO DINHEIRO EM AMBIENTE RELIGIOSO, E SUA UTILIZAÇÃO: A
PROFANAÇÃO DO SAGRADO ..................................................................................................767
NA CIDADE DE SOBRAL: A POLÍTICA NO BECCO DO COTOVELO.........................................777
A FEIRA DE APARECIDA: AMBIVALÊNCIAS ENTRE RELIGIÃO, ECONOMIA E POLÍTICA ......788
APOIO E REALIZAÇÃO ........................................................................................................ 800
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
10
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
RESUMOS
11
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
GT TEORIA ANTROPOLÓGICA E
ESCRITA ETNOGRÁFICA:
DESAFIOS TEÓRICOMETODOLÓGICOS NA
ELABORAÇÃO DE ETNOGRAFIAS
12
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
COMO ETNOGRAFAR UM MUNDO EM QUE TUDO GIRA, GERA E
MEXE? APONTAMENTOS SOBRE OS MOVIMENTOS DOS
“HABITANTES” DE PINHEIRO
Yara Alves
[email protected]
CNPq
PPGAS-USP
Mestranda
Pinheiro é uma localidade rural, autodenominada quilombola, situada em Minas Novas,
município do Vale do Jequitinhonha-MG. Os seus “habitantes” (no sentido utilizado por
Ingold, 2011) demostram fascínio por todas formas de movimento. Sejam movimentos nos
terrenos da comunidade - de humanos, animais, notícias, telefonemas, objetos etc - ou em
outros lugares, como as variadas andanças para realização de atividades de trabalho em
diversas partes do país, ou as andanças da associação, nos eventos do movimento quilombola.
Para eles, o mundo gira, o mundo gera, está tudo mexendo. Tudo e todos se movimentam, nos
giros da vida. Interessada em compreender as dinâmicas das configurações familiares destes
atores e com a intenção de acompanhar parte do movimento envolto nas saídas para trabalhar,
realizo trabalho de campo em dois lugares: Barrinha - município do interior de São Paulo, que
se apresenta como uma tendência diferenciada, por incluir o deslocamento de mulheres e
crianças; e Pinheiro, onde delimitei minhas estadias no período em que os “habitantes”
retornam, nos finais de ano. Durante a pesquisa, observei que as tentativas de não esquecer o
lugar da gente e compreender que é nas andanças que se ganha sabedoria, me apontaram para
novas visões sobre movimento, em suas diferenciadas escalas e formas de relações. Apesar de
passarem cerca de 10 meses do ano em outras cidades, dizem que moram em Pinheiro, apenas
saem para trabalhar. O alto nível de provisoriedade com que encaram seus deslocamentos faz
com retornos (para Pinheiro) e saídas (para Barrinha ou qualquer outro lugar que tenham
parentes e conhecidos) sejam uma possibilidade latente. A partir disso, surgem muitos
desafios teórico-metodológicos, dado que é preciso repensar partes e todos (Strathern, 2014),
extrapolar limites e delimitações geográficas (Hage, 2005), entender extensões de
“mapeamentos” (Comerford, 2003), reconstruir olhares sobre “lugar” e seus “nós” de relações
(Ingold, 2011).
Palavras-chave: Movimento, Lugar, Modos de habitar, Circulações.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
HORIZONTES HERMENÊUTICOS- PERCURSOS METODOLÓGICOS
NO TRAJETO: DE ENFERMEIRA A ANTROPÓLOGA
Telma Eliane Garcia
[email protected]
UFPA
Doutoranda
Na área das pesquisas em Ciências Sociais os dilemas e desafios nos aspectos metodológicos
tentem a um debate entre o empirismo e o racionalismo. Sendo uma realidade na qual o
homem intervém, os fenômenos se caracterizam em duas ordens: as ações individuais e as
realizações que se tornam fatos sociais, dando origem a duas escolas de produções: as
macroteorizações que caracterizam a Teoria Sistêmica e as microteorizações utilizadas pela
Teoria Hermenêutica. A partir deste debate, o texto busca por meio de um relato de
experiência, descrever os percalços e desafios metodológicos enfrentados em pesquisa sobre o
consumo de álcool entre os Tembé Tenetehara de Santa Maria do Pará. Em virtude da
formação biológica da pesquisadora (enfermeira), surge aparente descompasso entre as
premissas positivistas e as opções metodológicas interpretativas disponibilizadas no
doutoramento em Antropologia Social (PPGA/UFPA). A harmonização de conceitos foi
construída pela busca constante de interdisciplinaridade e pela escolha dialógica com os
autores Hans-Georg Gadamer e Jünger Habermas, teóricos do Paradigma HermenêuticoDialético. No relato, descreve- se o percurso de inserção na comunidade; os cuidados ao se
dialogar sobre um tema estigmatizado; as técnicas que interseccionam teorias da comunicação
e da dialética; a construção do circulo hermenêutico para a compreensão do significado do
beber entre os Tembé Tenetehara, bem como os métodos de análise para a interpretação dos
dados coletados.
Palavras-chave: Metodologia, Antropologia, Alcoolização, Povos Indígenas.
AS MENIRE PARTICIPAM? REFLEXÕES INICIAIS SOBRE UM
PROJETO DE MITIGAÇÃO DIRECIONADO ÀS MULHERES XIKRIN
Joaquim Pereira de Almeida Neto
[email protected]
FAPESP
UFSCar
Graduando
Neste trabalho pretende-se apresentar as reflexões iniciais acerca de uma pesquisa de
Iniciação Científica atualmente em curso intitulada "As Menire e o conceito de participação:
etnografia de um projeto com as mulheres Xikrin da Terra Indígena Trincheira Bacajá". Nesta
pesquisa o objetivo central é discutir criticamente a mobilização e a aplicação dos conceitos
de participação e de desenvolvimento participativo a partir da elaboração e da implementação
de um projeto de mitigação relacionado à construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e
direcionado especificamente às mulheres Xikrin da Terra Indígena Trincheira Bacajá. Com
base na análise dos primeiros relatórios produzidos pela equipe responsável pelo projeto de
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
mitigação, e atentando-se para quais serão os possíveis limites que a participação das
mulheres Xikrin, bem como o uso de seus conhecimentos tradicionais, poderão impor à esses
conceitos (principalmente o de participação) tão caros à antropologia do desenvolvimento,
pretende-se procurar estratégias para se trabalhar com os dado e com os problemas até aqui
colocados; como, por exemplo: os desafios de se ter que "ensinar" às mulheres Xikrin o que é
um projeto antes de colocá-las, participando, dentro de um; o "aparente" surgimento de
lideranças indígenas femininas em oposição à particularidade da organização social Xikrin
que, segundo a bibliografia especializada, não concebe a ideia de lideranças femininas e, por
fim, a renomeação do projeto de mitigação, fato que, por ter ocorrido devido à uma
demanda das próprias mulheres Xikrin, pode, ao menos inicialmente, ser tratado como uma
primeira participação genuína das Menire dentro do projeto de mitigação. Junto a esses
primeiros dados, pretende-se, também, tentar fazer experimentações com materiais
bibliográficas relacionados, por exemplo, às questões do etnodesenvolvimento e/ou da
formação de lideranças indígenas femininas para que, assim, se encontrem possíveis artifícios
para a elaboração da etnografia.
Palavras-chave: antropologia do desenvolvimento; participação; etnografia; mulheres.
“DEUS SABE POR QUE A GENTE CONSEGUE FALAR PRA UNS; E
PRA OUTROS, NÃO”: TRABALHO DE CAMPO E PRECAUÇÃO EM
UMA COMUNIDADE CATÓLICA
Ypuan Garcia
[email protected]
FAPESP
PPGAS-USP
Doutorando
O objeto desta apresentação é a problematização de uma advertência que recebi ao término de
um diálogo particular e inesperado, na Zona Central da Cidade de São Paulo/SP, com uma
noviça da comunidade católica franciscana onde pesquiso a libertação de demônios. Antes de
adentrar a vida religiosa, Leila “revelou” que ficou internada pelo período de um mês em um
hospital psiquiátrico. A moça, reconhecidamente, não é dada a conversas. Por esse motivo,
não escondi o meu entusiasmo com sua vontade repentina de falar de si. Sem demora, vi-me
neutralizado pela seguinte repreensão/precaução: “Mas que isso não te leve ao orgulho,
porque senão o orgulho vai te derrubar na sua pesquisa (...) O demônio ele é muito astuto (...)
Pode levar você a um orgulho tipo: ‘Nossa, eu consigo!’. Entendeu? Mais ou menos assim...
Aí acaba te derrubando depois. Muitas pessoas caem pelo orgulho, pela vanglória (...) Deus
sabe por que a gente consegue falar pra uns; e pra outros, não (...) Então Deus sabe o que cada
um precisa ouvir (...) por que precisa ouvir”. A especificidade do lembrete provocou a
elaboração de uma prática de pesquisa que me tornasse sensível aos modos de prestar atenção
para os ataques do demônio, abrangendo três implicações teórico-metodológicas para uma
etnografia em andamento: a primeira diz respeito ao contraste entre o meu
entusiasmo/excitabilidade e a importância atribuída à discrição/comedimento; a segunda, uma
extensão da primeira, opera um deslocamento na observação, pois as ciladas do mal ocorrem
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
de maneira sutil e cotidiana, prescindindo, na maioria das vezes, de manifestações aparentes
ou ritualizáveis; a terceira põe em relevo que a potência da palavra reside antes no conceito
nativo de “revelação” (“algo que só Deus sabe”) do que na “abstração” (“algo que vem da
cabeça”), o que conduz a uma crítica da noção de representação.
Palavras-chave: Libertação, Precação, Ritual, Revelação, Representação
DO PONTO DE VISTA DO “CRIME”: NOTAS SOBRE “GUERRA”,
“DIREITOS HUMANOS”, “PROGRESSO” E ETNOGRAFIA
Adalton Marques
[email protected]
CAPES
PPGAS-UFSCar
Doutorando
Neste artigo trato de possibilidades e de problemas implicados em minha pesquisa com
“ladrões”, iniciada em 2004. Esta relação tem sido marcada por permanentes negociações de
parte a parte. Do meu lado, a relevância está ligada à descrição de uma analítica dos
“ladrões”, enquanto do deles, liga-se à descrição da “guerra” em que estão envolvidos, cujos
“inimigos” são o “Estado” e os “comandos” rivais, cada um carregando seus potenciais
perigos (investigações, delações, prisões, acertos de conta). As aberturas nesta relação têm se
dado toda vez que sou entendido como alguém dos “direitos humanos”, ou seja, em oposição
às “opressões carcerárias”. Entretanto, tal noção também pode ser usada, conforme apresento
em dois casos etnográficos, para refletir não a alteridade, mas os próprios esforços dos
“comandos” a que se está relacionado.
Palavras-chave: Etnografia; reversibilidade; direitos humanos; Primeiro Comando da Capital;
Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade.
PROCEDER NA ETNOGRAFIA: REFLEXÕES SOBRE UMA
ETNOGRAFIA NA QUEBRADA
Marcos Vinícius Guidotti Silva.
viní[email protected]
FAPESP
UFSCar
Graduando
Parte do meu relatório de iniciação cientifica dedicou reflexões iniciais às implicações
políticas, metodológicas e de escrita sobre o “fazer pesquisa” nas quebradas de São Paulo, em
grande parte por minha experiência de vinte dois em uma. Entre alguns moradores das favelas
e periferias de São Paulo há algo que se dá o nome de proceder, um movimento de regras e
instruções de condutas, nunca confinados à estabilidade, e que orientam partes significativas
de experiências e acontecimentos cotidianos. Durante o campo percebi que meu proceder foi
se tornando um recurso metodológico/político necessário para a pesquisa; ideias anteriores e
outras produzidas em campo acerca do que é ter proceder, somaram-se a questões
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
etnográficas – tais como o que deve ser exposto enquanto dado de campo, como trabalhar
com os dados e quais suas implicações sobre a escrita e a reflexão proposta -, viabilizando um
caminho alternativo de pesquisa. No relatório também me voltei às questões subjacentes a
minha posição em campo no ato da pesquisa, a saber, a de alguém que, de alguma forma,
partilhou experiências anteriores significativas do cotidiano da favela, e que agora se propõe a
refletir as quebradas partindo de questões epistemológicas de outra ordem. Visando dar
continuidade a essas reflexões – tanto na minha monografia quanto no mestrado –, proponho
com este trabalho apresentar esses problemas de cunho teórico e etnográfico que surgiram
durante minha iniciação científica, assim como as estratégias metodológicas e de escrita que
tenho construído para realizar o trabalho.
Palavras chave: favelas, quebradas, proceder e etnografia.
EXPERIENCIAS DE UN TRABAJO DE CAMPO EN BARRIOS DE LA
CIUDAD DE CÓRDOBA (ARGENTINA): OBSTÁCULOS Y
POSIBILIDADES
Vanesa Garbero
[email protected]
CONICET - CAPES
Centro de Estudios Avanzados (Universidad Nacional de Córdoba) y Universidad de
Buenos Aires
En este trabajo me propongo (de)construir el acceso y consecución del trabajo de campo y
desmarañar aspectos que hacen a mi subjetividad, como sujeto cognoscente, en el proceso de
realización de la investigación que realicé para obtener el título de magister en sociología. En
este sentido, no analizaré los resultados que responden a mis objetivos de investigación sino
que me focalizaré en desmenuzar las estrategias que idee para ingresar a un terreno que si
bien está cercano al centro de la ciudad, simbólicamente existe un abismo y del que
desconocía las dinámicas y códigos barriales; los obstáculos que encontré; los miedos y las
dudas con los que lidié; la tarea de los porteros que me permitieron ingresar y circular por los
barrios de interés; los juegos de poder; mis posiciones y contradicciones ante algunos relatos
de los entrevistados; entre otras cuestiones que dieron fruto a un trabajo que se hizo al andar.
Palavras-chave: investigación cualitativa; trabajo de campo; subjetividad del sujeto
cognoscente.
INTERTEXTUALIDADE ETNOGRÁFICA: DESAFIOS NA ESCRITA
ETNOGRÁFICA NA AUTOREPRESENTAÇÃO INDÍGENA
Josué Carvalho
[email protected] Pesquisador Indígena (CNPQ)
PPGE-UFMG
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Doutorando
A participação indígena em diferentes contextos vem de uma crescente, principalmente nas
últimas décadas, o índio também toma para si técnicas consagradas e as reformula a seus
moldes e, isso trás novas perspectivas, novas formas de fazer, exigindo que conceitos teóricometológicos sejam revistos. Porém, no processo de autorepresentação, os desafios na escrita
etnográfica têm desencadeado inúmeras discussões no campo teórico-metodológico, mas
também nas formas de fazer etnografia pelo índio. Como índio, arrisco dizer que as teorias
que até então dispomos do universo acadêmico, pouco nos tem subsidiado na forma de como
representarmos a nós mesmos, ou seja, a cultura a que também somos parte. No rol de
discussões, sobre etnografias, chamo a atenção para questões que também precisam ser
debatidas, como: no processo autoetnografico indígena, que tipo de “intertextualidade” a
etnografia proporcionaria para os sujeitos envolvidos em sua realização? Meu estudo parte do
universo da criança Kaingang do norte do Rio Grande do Sul e, a proposição do artigo, visa
excitar o inicio de uma reflexão acerca de uma etnografia da antropologia, que seja capaz de
apreender os processos etnográficos através dos quais enquanto “índio”, seja possível nos
apropriarmos e re-apropriarmos da discursividade antropológica para apresentar a nós
mesmos e nossa culturalidade para outros, inclusive a nós mesmos. Trata-se de refletir sobre a
intertextualidade do encontro etnográfico como uma espécie de interculturalidade.
Palavras-chave: Criança Kaingang, autoetnografia, intertextualidade.
LIMITES E EXPERIMENTAÇÕES EM UMA ETNOGRAFIA COM
HOMENS
Isabela Venturoza de Oliveira
[email protected]
CAPES
PPGAS-USP
Mestranda
Neste trabalho, proponho-me a refletir sobre as implicações das interpretações do corpo e da
performance de gênero para a pesquisa etnográfica. Trata-se de um exercício conduzido no
interior de minha pesquisa de mestrado, na qual gênero não constitui apenas uma questão
teórica e analítica concernente aos sujeitos estudados, mas, sobretudo, um problema prático
no fazer antropológico, na medida em que se torna claro que a/o antropóloga/o são também
percebidos em função do gênero (entre outros marcadores sociais da diferença em operação).
Minha pesquisa se realiza no contexto de um grupo reflexivo com homens denunciados por
crimes previstos na Lei Maria da Penha, coordenado também por homens da ONG Coletivo
Feminista Sexualidade e Saúde, na cidade de São Paulo. Neste cenário, ser percebida como
mulher, pesquisando homens, produz grandes efeitos sobre o desenho da pesquisa de campo.
O grupo reflexivo é feito por homens e para homens, sendo assim, minha observação
participante (ou participação observante) é vetada, na medida em que não compartilho dos
atributos necessários para participar da dinâmica sem afetar de maneira indesejada os rumos
do grupo. Desta maneira, minha presença poluidora impõe uma forma específica – e não
18
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
comum – ao trabalho etnográfico. As reuniões do grupo reflexivo são gravadas por um
gravador posicionado no centro da sala, que passa a constituir em certo sentido uma extensão
de mim, mas que não me permite ver nem interagir, somente escutar. Neste contexto, permitome pensar sobre a especificidade de uma etnografia baseada não no olhar etnográfico, mas
em grande medida no ouvido etnográfico, buscando visualizar os limites deste instrumental
também como possibilidade de experimentação.
Palavras-chave: Pesquisa etnográfica. Gênero. Masculinidades. Grupos reflexivos. Relações
violentas.
O QUE “AFRICANA” QUER DIZER? EMOÇÕES E JOGOS DE
LINGUAGEM
Lucas Barbosa Carvalho
[email protected]
CNPq
PPGAS-USP
Mestrando
Os comentários de Wittgenstein sobre O Ramo de Ouro (James Frazer) são um legado
importante para o conhecimento antropológico e o fazer etnográfico: eles demonstram que o
encontro com outras formas de linguagem revela algo a respeito da maneira pela qual
experienciamos o mundo. Mencionando pesquisa em andamento (As formas expressivas no
coco e terreiros de Candomblé da Grande Recife), sugiro que permitir-se à observação
vulnerável (Ruth Behar) contribui com a compreensão dos jogos de linguagem estranhos às
nossas próprias crenças epistemológicas. Rememorar as emoções tem esclarecido o meu
entendimento, ao passo que a exposição dos jogos de linguagem permitiu-me o
reconhecimento das minhas próprias motivações e expressões. O incômodo diante do
inusitado e a incompreensão dos termos empregados pelos interlocutores suscitaram uma
redefinição das premissas investigativas. A título de exemplo, exploro a adjetivação
“africana” atribuída às roupas utilizadas durante o rito religioso (Candomblé), bem como nos
encontros realizados para a prática do coco. O estranhamento em face das cores dos tecidos,
os acessórios, os comportamentos, a dança e os jogos de linguagem — presentes nos
contextos em que tal roupa é vestida — provocaram-me a uma revisão dos conceitos que
pretendia encontrar em campo inicialmente. Será que “técnica corporal” e “construção do
corpo” se adequam ao que “africana” quer dizer?
Palavras-chave: jogos de linguagem, emoções, vestuário, etnografia.
CAINDO NA RODA, UMA ETNOGRAFIA ENTRE RASTEIRAS E
CABEÇADAS
Carlos Alberto Corrêa Moro
[email protected]
Capes
PPGAS-USP
Mestrando
19
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Sem perder de vista a crítica de James Clifford sobre a construção retórica de uma autoridade
etnográfica calcada na ênfase ao caráter experiencial da pesquisa de campo ou as ressalvas de
Clifford Geertz à empatia como pressuposto da pesquisa de campo, o presente trabalho
pretende refletir sobre as potencialidades e limitações de perspectivas de pesquisa etnográfica
que trazem a experiência do etnógrafo em campo novamente ao centro do debate. Em que
medida ouvir os tambores dos mortos (Goldman, 2003), “ser afetado” (Favret Saada, 2005),
“conversão moral e sensual ao cosmos” considerado (Wacquant, 2002) são elementos ou
procedimentos metodológicos que contribuem para a compreensão e escrita dos fenômenos
estudados? Para a realização de sua pesquisa de mestrado, na qual busca entender a
possibildade e ocorrência do improviso no convencionalizado universo da Capoeira Angola, o
autor faz uma aposta metodológica na participação ativa na prática estudada como meio de
aproximar-se da noção nativa de improviso e no tipo de corpo produzido que possibilitaria seu
florescimento. Na prática isso significa que, além de observar treinos e rodas de capoeira, o
pesquisador insere-se no campo como praticante, participando dos treinos e jogos de capoeira.
Com base no trabalho de campo realizado até o momento (cerca de dois anos de prática
contínua de capoeira), acreditamos que este tipo de engajamento físico revela-se produtivo
quando o foco de atenção está em processos corporais. Não nutrimos a ilusão do “tornar-se
nativo” ou do acesso à perspectiva do outro via empatia, porém percebemos que esta postura
metodológica desperta a atenção do etnógrafo para elementos que, de outra forma, poderiam
passar despercebidos. Este trabalho bucará articular algumas discussões teóricas com questões
experimentadas e refletidas da pesquisa de campo em andamento.
Palavras-chave: etnografia, técnicas corporais, capoeira, performance.
POR UMA ETNOGRAFIA DA TÉCNICA: DESAFIOS, ESTRATÉGIAS
E PERSPECTIVAS NO TRABALHO SOBRE A PRÁTICA DAS ARTES
MARCIAIS NOS EXÉRCITOS MODERNOS
Lucas Alexandre Pires
[email protected]
UFSCar
Graduação
No presente artigo, elenco alguns desafios dos quais os antropólogos que trabalham com
militares enfrentam em campo, a partir de uma série de relatos etnográficos presentes na
bibliografia, evidenciando algumas das estratégias utilizadas pelos autores em contraponto
com minhas próprias estratégias e técnicas de pesquisa, na busca por novas metodologias que
procurem explorar temas e conceitos como a “fabricação do corpo”, a “domesticação da
pessoa”, a disciplina e a hierarquia dentro das instituições militares, a fim de problematizar o
adestramento do corpo e a forja do espírito na prática das artes marciais e do combate corpo a
corpo pelos militares, visando à operacionalização destes enquanto armas a serviço da nação,
na constante preparação do Exército Brasileiro para a guerra. Nessa perspectiva, o corpo
humano é tratado enquanto instrumento técnico no qual a instituição militar se inscreve e do
qual faz uso. Assim, as artes marciais se apresentam como atos tradicionais eficazes que
20
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
disciplinam e formatam corpos e mentes para a guerra, sendo que, como proposta dessa
pesquisa, faz-se necessário a busca pela incorporação de técnicas prístinas de luta pelos
exércitos ao longo da história, desde o antigo Vajramushti indiano, sua disseminação para a
China e Japão através do budismo, até o desenvolvimento dos budôs que serviram de base
para a elaboração do Manual de Lutas C 20-50 do Exército Brasileiro. Dessa forma, proponho
explorar um fazer etnográfico através das técnicas marciais, buscando recapitular suas
transmissões e atualizações, catalogando e comparando tais técnicas junto a mestres de artes
marciais, documentos históricos e militares na reserva que ministram treinos em associações
marciais civis, empregando também o meu próprio corpo como instrumento do fazer
etnográfico, na possibilidade futura de realizar campo junto à militares deferidos na disciplina
de Lutas dentro da Escola de Educação Física do Exército – EsEFEx.
Palavras-chave: militares; artes marciais; corpo; disciplina; etnografia
ENTRE GUERREIROS E DEMÔNIOS: RELAÇÕES ATRAVÉS DA
DÁDIVA E DO COMPROMETIMENTO NA CENA BLACK METAL
PAULISTA
Lucas Lopes de Moraes
[email protected]
FAPESP
PPGAS-USP
Mestrando
Entre os adeptos do Black Metal paulista a cena é uma categoria nativa que expressa uma
noção de comunhão coletiva, estabelecida através do comprometimento com um estilo
musical, uma vertente extrema do gênero Heavy Metal. Eventos são organizados na capital e
em pequenas cidades do interior, pouco significativas para os grandes fluxos de capital e
pessoas, mas que na ótica desses atores sociais são vistas como grandes pólos da resistência,
lugares onde “os guerreiros do Black Metal” se reúnem, trocam experiências e bens, e
fortalecem sentidos de pertença a um modo de vida específico e a determinadas filiações
religiosas (o Satanismo e a “Quimbanda”). Ao estabelecer os parâmetros dessa pesquisa e
iniciar os trabalhos de campo, voltados à compreensão das lógicas de ocupação dos espaços
urbanos por esse arranjo coletivo, surgiram os primeiros impasses gerados pela resistência dos
integrantes dessa cena. O Black Metal era dito ser “para poucos”, algo que não poderia ser
“banalizado”. As supostas autoridades intelectuais e morais foram invertidas, dado que
respeito e comprometimento, critérios essenciais para a entrada na cena, não permitiam a
consequente “entrada no antropólogo no campo”. Dessa forma, o exercício gradual de
compreender as lógicas internas desse arranjo coletivo, permitiu que estratégias
metodológicas fossem elaboradas, e que uma espécie de “círculo da dádiva Black Metal”
fosse desvelado, uma rede de trocas de favores que constituem essa cena e que estabelecem as
alianças entre esses “guerreiros”. Assim, o pesquisador ofereceu suas dádivas, trocou favores,
e ainda sem fazer parte da cena conseguiu adentrá-la.
Palavras-chave: black metal; dádiva; metodologia; cenas musicais
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
ECONOMIA DO DESEJO E DESEJO DE ECONOMIA:
RETROALIMENTAÇÃO E TROCA EM COLETIVOS DA REDE FORA
DO EIXO NO INTERIOR DE SÃO PAULO
Fernando Lopes Mazzer
[email protected]
PPGAS-UFSCar
Mestrando
Este trabalho visa apresentar alguns dados obtidos em um pré-campo referente a uma pesquisa
ainda em desenvolvimento. A pesquisa tem como objetivos descrever etnograficamente as
relações econômicas entre coletivos culturais da Rede Fora do Eixo localizados em
municípios do interior de São Paulo, analisar as prestações de serviço entre eles que são
quantificadas em uma moeda social denominada card e demonstrar o modo com que as
dimensões qualitativas dessas trocas são significadas pelos integrantes dos coletivos. Além
dos coletivos em si, há uma presença grande de demais agentes colaboradores que oferecem
serviços e recursos técnicos para a realização de eventos promovidos pelos coletivos, estes
que contabilizarão esses serviços em card e oferecerão em troca recursos e serviços para
quitar esse valor. Foi feito um trabalho de campo onde acompanhei um festival realizado pelo
coletivo Usiarte da cidade de Sertãozinho, sendo que pude observar essas prestações de
serviço de diversos colaboradores e também de coletivos de cidades vizinhas. Acabei
observando a maneira com que o coletivo em questão lida com os aspectos financeiros
referentes à produção do festival e também o modo com o qual eles usam os valores em card
como forma de negociar com o poder público questões referentes a uma economia
colaborativa. Com isso, não procurarei definir essas prestações como pertencentes a uma
economia da dádiva ou a uma economia de mercado, mas sim como práticas econômicas
inseridas em um contexto que transite entre ambos, já que, ao mesmo tempo em que os
coletivos da Rede Fora do Eixo propõem uma nova forma de se pensar e fazer economia, eles
dependem de concepções mercadológicas de economia para se manterem ativos.
Palavras-chave: Antropologia Econômica, economia, troca, dádiva, moeda.
EXPANDINDO AS FRONTEIRAS ANTROPOLÓGICAS: UM ESTUDO
DE CASO DO USO DA NETNOGRAFIA PARA ANÁLISES DAS AÇÕES
EVANGELIZAÇÃO CATÓLICA NO TWITTER
Vanessa Aparecida da Silva
[email protected]
PPGCSo-UFJF
Mestranda
Ana Carolina Estorani Polessa da Silva
[email protected]
PPGCSo -UFJF
Mestranda
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
As realidades possíveis no ciberespaço possibilitaram grande fluidez nas relações que
compõem a vida social e alterou parte de seus significados. O advento do uso das redes
sociais como prática cotidiana de parcela significativa da população brasileira impôs a
religião repensar suas ações no meio on-line, mesmo quando se refere às práticas mais
tradicionais. Neste cenário, a Igreja Católica também aderiu às possibilidades de expansão do
alcance de sua mensagem aproveitando-se da popularização da internet: é a combinação de
modernidade com práticas tradicionais e missionárias na evangelização pela rede mundial de
computadores, com destaque para as ações estabelecidas via Twitter - rede social cujo
Pontífice (primeiro Bento XVI e, atualmente, o Papa Francisco) possui conta pessoal desde
2012. Deste modo, a internet, sobretudo após o estabelecimento destas redes como importante
campo em que relações sociais são travadas, também nos obriga a repensar a construção do
saber antropológico. Questionamos, neste cenário, como o pesquisador se insere em um
campo marcado pela fluidez e efemeridade de suas fronteiras físicas, geográficas e temporais?
Neste artigo, utilizamos o debate dos já controversos campos da religião e do ciberespaço para
levantar a discussão sobre o uso da netnografia como metodologia, pensando em seus limites
e possiblidades de contribuição para a Antropologia.
Palavras-chave: Netnografia; Igreja Católica; evangelização; redes sociais.
LEADER TRAINING: ETNOGRAFANDO UM SEMINÁRIO
MOTIVACIONAL
Jorge Gonçalves de Oliveira Júnior
[email protected]
CAPES
PPGAS-USP
Mestrando
O trabalho em questão busca refletir sobre as estratégias de escrita etnográfica que emanam
da negociação no campo e da prática etnográfica de uma atividade moderna, vinculada ao
ambiente empresarial, mas que também possui características semelhantes a certos rituais,
como o segredo, a humilhação, a catarse e o transe. Trata-se de um seminário motivacional,
realizado em fins de semana, em hotéis de cidades vizinhas à capital paulista, como Atibaia e
Mairiporã, conhecido por muitos pelo termo nativo de Leader Training. Os praticantes desses
seminários submetem-se a uma espécie de tratamento de choque, que envolve, entre outras
coisas, sessões de humilhação pública, andar sobre brasas e privação de sono, tudo com a
promessa de que conseguirão purgar medos, traumas e dúvidas existenciais e assim se
tornarem pessoas melhores nas esferas pessoal e profissional. Entretanto, por mais que seja
tentador realizar a desconstrução dessas práticas motivacionais como típicas de um
charlatanismo raso, que busca resolver os problemas na esfera individual, obliterando as
causas sociais das aflições; a perspectiva antropológica carrega em si o desafio de “levar os
nativos a sério”, como insiste Viveiros de Castro (O Nativo Relativo, 2002). Para isso, é
necessário um passo atrás antes de rejeitar completamente essas práticas ou será impossível
compreendê-las. Torna-se premente evitar o que Isabelle Stengers designa como “alternativas
infernais” (Capitalist Sorcery, 2011), neste caso, entre a aceitação ingênua gerada pela
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
eficácia dessas práticas ou a crítica irônica e rascante de suas contradições. Trata-se de um
desafio metodológico, teórico e estilístico, que envolve a relação tensa entre etnógrafo e
etnografado, e que foi tratado de maneiras diferentes por textos como os de Taussig
(Shamanism, Colonialism, and the Wild Man, 1987) e Crapanzano (Waiting: the Whites of
South Africa, 1985) e a que esta pesquisa, ainda em desenvolvimento, procura responder.
Palavras-chave: antropologia da modernidade, atividades motivacionais, etnografias do
capitalismo, alternativas infernais.
RELAÇÕES POLÍTICAS EM UMA ELEIÇÃO PARA O LEGISLATIVO
EM UMA CIDADE DO INTERIOR DE MINAS
João Francisco Ghelere Biasin Lima Dias
[email protected]
CNPQ (Bolsa Pibic)
UFSCar
Graduação
Este trabalho tentará promover uma reflexão acerca dos dados de campo de uma pesquisa
ainda em curso, que está sendo realizada em uma pequena cidade do interior do estado de
Minas Gerais. Busca realizar uma Antropologia da Política a partir da observação etnográfica
de estratégias das quais intervenientes políticos locais lançam mão para manter relações com
os candidatos a deputado federal e estadual que lá vão buscar votos no que é chamado “tempo
da política” ou “a política”, ou seja, o período anterior às eleições para o Legislativo nacional
e estadual. Tendo em vista que, para poder exigir o “trabalho” dos políticos que estão na
capital nacional ou estadual durante seu mandato, os intervenientes locais devem lhes
conseguir votos na eleição, estes se comunicam com os candidatos alguns meses antes da
eleição para “acertar a campanha”. Será buscada a breve exposição das formas pelas quais
esse contato inicial é feito (ou refeito de uma eleição para outra) e de como as pessoas da
cidade “que mexem com política” se valem de uma série de relações circunscritas à vida
social da cidade (parentesco, reputação política, amizade, etc.) e de ações de campanha
utilizando o material que o candidato envia (santinhos, panfletos, dinheiro e contratos para
cabos eleitorais, etc.) para manter uma relação que transborda as fronteiras municipais e ao
mesmo tempo está intimamente ligada com a dinâmica política das eleições para prefeito e
vereador. Teoricamente, será privilegiada a comparação com outras etnografias feitas em
condições semelhantes e que também tratem do encontro de constrangimentos institucionais
com relações pessoais.
Palavras-chave: etnografia, política, eleição, pessoa
ENTRE OS DOCUMENTOS E AS RETOMADAS: IMAGENS DA LUTA
PELO TERRITÓRIO EM BREJO DOS CRIOULOS (MG)
Pedro Henrique Mourthé de Araújo Costa
[email protected]
PPGAS-UFSCar
Mestrando
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Desde a abertura dos procedimentos para a regularização fundiária do território quilombola
de Brejo dos Crioulos até os dias atuais já se passaram quatorze anos de lutas e
enfrentamentos. O cenário de disputas é tecido pelo entrelaçamento de diversas forças
políticas, dentro e fora do quilombo. Reconhecida como remanescente de quilombo em
2004 pela Fundação Cultural Palmares (FCP), a comunidade localiza- se no sertão do Norte
de Minas Gerais, na divisa de três municípios - São João da Ponte, Verdelândia e Varzelândia.
Frente à morosidade do Estado na desapropriação das fazendas, os quilombolas de Brejo dos
Crioulos têm recorrido a duas estratégias nos seus enfrentamentos: as retomadas e a
mobilização de uma rede de parceiros e documentos – processos jurídicos, relatórios, laudo
antropológico, decretos, correspondências, notas, projetos, boletins de ocorrência etc – em
diferentes instituições e nas várias instâncias judiciais, caracterizando um universo
burocrático que é acionado a todo instante. Desse modo, o objetivo deste trabalho é realizar
uma descrição etnográfica das estratégias mobilizadas pelos quilombolas e outros atores.
O presente texto foi escrito com o intuito de apresentar algumas reflexões sobre a pesquisa em
andamento, assim como, os possíveis caminhos que pretendo seguir durante a elaboração do
texto final da dissertação de mestrado.
Palavras Chave: Quilombos, Direitos, Conflito, Violência, Documentos
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
GT PARENTESCO, FAMÍLIA E
RELACIONALIDADE
AS DÁDIVAS NÃO CONCEDIDAS
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Eduardo Oliveira de Almeida
[email protected]
UEM
Graduando
O Ensaio sobre a dádiva – forma e razão nas sociedades arcaicas, de Marcel Mauss,
exemplifica os processos que envolvem as pessoas em trocas mútuas. Publicado pela primeira
vez em 1925, na França, o texto em questão, a partir de exemplos etnográficos, trata das
obrigações que movem os sujeitos a “dar, receber e retribuir”. Marcel Mauss identifica nesses
tipos de ações uma regra tácita, que, apesar de rigorosamente obedecida, não encontra
reconhecimento como tal nas consciências individuais. Se há, pois, regras que obrigam a
efetivação de laços, é possível encontrar, a partir das reflexões do autor, justificações sociais
para aqueles momentos nos quais dádivas não são concedidas ou preferencialmente
concedidas? Ainda, o outro com quem, eventualmente, não se troca ou não é preferido
aparece de que maneira? Ele está acomodado em alguma instância da relação? O objetivo
deste trabalho está inscrito nos limites dessas questões, na medida em que busca fornecer
algumas problematizações, seja pela elaboração de respostas ou de outros questionamentos.
Para tanto, as reflexões serão norteadas pelas categorias de prestígio presentes no
estabelecimento da sociabilidade, para considerar a presença dos excluídos enquanto
constituintes, ou não, desses momentos. A fim de pensar, portanto, os possíveis limites a
partir dos quais tais interações são condicionadas, a consideração do “outro” na organização
da sociabilidade é retomada e construída enquanto objeto de análise, com foco nas trajetórias
de efetivação das trocas estudadas por Marcel Mauss e na sua concepção de regra.
Palavras-chave: Marcel Mauss; dádivas; limites da sociabilidade.
NOTAS SOBRE A IMPORTÂNCIA DO COMPARTILHAMENTO DE
ALIMENTOS E DE TRABALHO EM UM PUEBLO DOS ANDES
PERUANOS
Indira Viana Caballero
[email protected]
Doutora em Antropologia
Em Andamarca, uma comunidade campesina no departamento de Ayacucho nos Andes
peruanos, a comensalidade e a produção de alimentos, desde a plantação à confecção de
pratos, tanto como dar e receber alimentos, são atos criadores de sociabilidade e reciprocidade
entre diversos seres, humanos e não humanos. Recusar comida e bebida é algo que no se
puede, sendo uma reação interpretada pelos andamarquinos como um ato de desprecio, uma
recusa à interação, ou, à possibilidade de criação de relação. Todos devem aceitar o oferecido
e os alimentos devem ser oferecidos para todos, sem exceção, da mesma forma que as bebidas
distribuídas nas festas, momentos agregadores que reúnem convidados, amigos e parentes.
Para os andamarquinos, o trabalho possui um valor central, sendo o trabalho coletivo
empregado em diferentes momentos de grande importância (como a construção de casas,
limpeza de canais de irrigação, e práticas agrícolas). Nota-se que este tipo de trabalho
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
imprime um movimento para formação de um coletivo, propiciando a manutenção e criação
de laços na medida em que todos estão determinados a cumprir um objetivo comum. Recusar
ou evitar o trabalho coletivo, seja como ayuda ou apoyo a algum amigo ou parente, seja como
faena, prestação de trabalho gratuita considerada como dever de cada comunero, são atitudes
vistas como negativas pela maioria. Nesta comunicação consideraremos o trabalhar junto e o
comer junto como duas formas de familiarização, ou, de inclusão do outro – que estão
relacionadas à própria noção de comunidade - cujo princípio primordial em ambos os casos é,
de um lado, não desconsiderar ninguém, e, de outro, que não haja recusa em participar.
Palavras-chave: alimentos, trabalho, compartilhar, recusar, relação.
“TEM UM ESPÍRITO QUE VIVE DENTRO DESSA PELE”:
FEITIÇARIA E DESENVOLVIMENTO EM TETE, MOÇAMBIQUE
Inácio Dias de Andrade
[email protected]
FAPESP
PPGCSo-UNICAMP
Doutorando
Em Moçambique, a exploração de carvão em Tete atraiu bilhões de reais brasileiros em
investimentos. A grande concessão obtida pela Vale resultou do acordo de cooperação
internacional Brasil-Moçambique e traz consigo um grande aporte de investimentos e uma
série de ações sociais e Ongs satélites. Essa estrutura dialoga com a imensa rede internacional
de cooperação e apoio para o desenvolvimento montada com o fim da guerra civil e o início
da liberalização da economia moçambicana em 1992. Todos projetos de desenvolvimento
atuam em cima de uma metodologia similar e uma parte essencial consiste na organização das
populações beneficiadas em associações locais. Para a comunidade internacional, essa
abordagem incentiva o trabalho coletivo e solidário, além de fornecer bases práticas para a
maturação política de uma jovem democracia como a moçambicana. No entanto, para os
beneficiários, a aliança em África é um movimento perigoso e as relações construídas pelas
Ongs são fontes de receio e acusações de feitiçaria. Nesse caso, o associativismo lida com as
alianças e os perigos das relações sociais em um continente “amaldiçoado por Deus”, como
colocou um dos meus interlocutores. Aqui o diálogo democrático e a partilha dos bens da
comunidade internacional são apenas uma pequena parte da negociação. Tomando a feitiçaria
como o “lado negro do parentesco”, tal qual proposto por Peter Geschiere, o texto parte de
uma etnografia das acusações e contra-acusações de feitiçaria, que, em meio à profusão de
investimentos e de metodologia estrangeiras, pode nos oferecer meios de perseguir o que se
entende por desenvolvimento a nível local e revelar-nos as brechas da agência possível por
meio das quais as populações atuam e resignificam práticas exógenas nas margens do
desenvolvimentismo. Apresentação é fundamentada por dados colhidos em Tete, tomados
durante os dez meses de minha pesquisa campo.
Palvaras-Chave: Feitiçaria, desenvolvimento, cooperação internacional, parentesco
FAMÍLIA 2.0: VIVÊNCIAS LABORAIS MILITANTES AFETIVAS E
REDES DE PERTENCIMENTO
André Peralta Grillo
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
[email protected]
UFJF
Mestre
O artigo explora as novas possibilidades de pertencimento coletivo como contraponto à
instabilidade profissional e existencial contemporânea. As mudanças no mundo do trabalho
(no capitalismo como um todo) observadas globalmente nas últimas décadas (valorização da
mobilidade, da flexibilidade, do pleno envolvimento do ser, por um lado, e aumento da
instabilidade, da insegurança e da precariedade, por outro) propiciam o surgimento de novas
formas de coletividade baseadas em redes laborais e militantes de solidariedade, de trabalho e
de vida (e da indistinção de ambas). Redes e coletivos, ao fortalecer os elos afetivos, a
reciprocidade e a dádiva, podem sedimentar a identidade e o pertencimento, e mesmo a autocompreensão como uma família, que fortalece a inserção no mundo e propicia segurança
existencial, emotiva e profissional, ante um mundo fluído, em frenético movimento,
funcionando como uma rede de proteção e estímulo. Após caracterizar as mudanças
(tendenciais) no mundo do trabalho, apresento, a partir da teoria da dádiva de Mauss, algumas
potencialidades das novas redes afetivas e laborais, para além do mero fortalecimento do
capital social e estruturando relações fortes de pertencimento, tendo por base estudo sobre a
rede de militância laboral “Circuito Fora do Eixo”, a partir de vivência etnográfica e
netnográfica.
Palavras-Chave: Redes afetivo-laborais; teoria da dádiva; Circuito Fora do Eixo
É O CORPO QUE SOFRE: OS CAMINHOS DA DOR NA PRODUÇÃO
DE PARENTESCO EM UMA COLÔNIA ALEMÃ DA ENCOSTA DA
SERRA, RS
Everton de Oliveira
[email protected]
CNPq
PPGCSo/Unicamp
Doutorando
Neste trabalho busco analisar o modo pelo qual a construção do sofrimento se caracteriza
como o eixo principal de produção e problematização do parentesco em uma colônia alemã.
Para tanto, parto de meu trabalho de campo realizado entre 2011 e 2013 em um município que
aqui chamo de São Martinho, de pouco mais de 6.000 habitantes, situado na região da Encosta
da Serra, Rio Grande do Sul. São Martinho foi fruto da colonização alemã de meados do
século XIX, e ainda hoje aqueles que a habitam se reconhecem por alemães. Entre estes, uma
atividade em especial era fruto de problematização moral – o trabalho –, concomitante a um
sentimento que lhe era associado – o sofrimento. Em uma expressão corriqueira: “o trabalho
judia”. Entretanto, judiar não implicava um signo negativo. Ao contrário, implicava o
sofrimento indispensável entre aqueles que buscavam uma boa conduta moral, a fim de
manter uma família, uma casa, uma roça e, no limite, toda a comunidade. A aposta deste
artigo é que o sofrimento implicado no par trabalhar/judiar, mais do que um estado a ser
superado, formava e informava sobre grupos aparentados, em dois sentidos: em primeiro
30
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
lugar, permitia a circulação de apreciações morais, nas quais preguiçosos, preguiçosas,
sozinhos e os de fora se formavam enquanto margens não desejadas na apreciação de si e; em
segundo lugar, permitia a formação correlata de alemães, alemoas, suas casas, suas roças e de
sua família na dor corporificada pela qual se construíam as narrativas constitutivas de um
passado singular, que moldava e se moldava ao cotidiano. Sobre a produção de parentesco em
São Martinho, a análise não se dirige a um grupo, muito menos à relação entre pessoa e
grupo: dirige-se à dor e ao sofrimento, à sua potência constitutiva e significativa.
Palavras-chave: encosta da serra – parentesco – sofrimento
UMA ETNOGRAFIA DO SISTEMA DE TROCAS MATERIAIS E
MORAIS NO PROCESSO DE FORMAÇÃO SACERDOTAL EM
SANTA CATARINA
Marcos Alfonso Spiess
[email protected]
CAPES
PPGAS-UFPA
Doutorando
Este trabalho busca refletir sobre o processo formativo de jovens que decidem ingressar em
seminários católicos. A partir de uma etnografia realizada em 2010/2011, envolvendo
seminaristas no estado de Santa Catarina, busca-se problematizar como a saída de um filho
homem do seu núcleo familiar pode gerar tensões à reprodução social e econômica das
famílias envolvidas, tornando-se inaplicável a lógica adotada no século XX - de quando os
herdeiros eram numerosos para pequenos proprietários e então a saída de um filho
representava a solução para a partilha da herança. Tendo por referência a análise de três
trajetórias distintas, tem-se que com o pequeno número de filhos por casal, atualmente a saída
de um herdeiro, especialmente se for o único filho homem, pode significar o
comprometimento da reprodução social da família. Enfatizando a dimensão econômica, o
processo formativo dos seminaristas pode ser compreendido como um complexo sistema de
trocas materiais. Num primeiro momento, problematiza-se como que o ingresso no seminário,
além da perda de mão-de-obra, pode significar aumento de despesa às famílias desses jovens,
uma vez que são elas que acabam sustentando-os no período de formação religiosa. Além
disso, analisando etapas mais avançadas do processo, outros sujeitos (padres, madrinhas etc.)
se envolvem neste sistema de trocas e, juntamente com as famílias, acabam auxiliando nas
necessidades financeiras dos seminaristas. Com esses diferentes sujeitos envolvidos na
formação religiosa, este sistema de trocas, que a princípio se funda em relações materiais,
converte-se para os seminaristas em obrigações morais que passam a fazer parte de uma
dimensão significativa quando da decisão de se tornar padre ou sair do seminário. O objetivo
é demonstrar como que a formação religiosa de padres católicos se dá num complexo sistema
de obrigações materiais e morais que envolvem filhos homens e suas famílias.
Palavras-chave: Seminaristas; Família; Formação Sacerdotal; Igreja Católica.
31
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
PARENTESCO DE CONSIDERAÇÃO, UMA TRADUÇÃO DO
PARENTESCO E CORPORALIDADE MURA
Fernando Augusto Fileno
[email protected]
CAPES
PPGAS-USP
Mestrando
Partimos de uma análise multilocal de inspiração albertiana para alcançar a descrição e estudo
das forças que governam a construção da comunidade Mura e suas relações com outros
grupos locais, processo que se desenrola sob o fundo das dinâmicas de construção do
parentesco. A centralidade do parentesco no processo de socialidade o conjuga como produto
histórico-político que tem como razão a administração da tensão entre a atração e a repulsa
pelos Outros. Os Muras, grupo indígena de língua mura, hoje falantes do português, são
habitantes do complexo hídrico dos rios Amazonas, Madeira e Purus, bem como residem em
diversos municípios da região. O peso simbólico da alteridade que se assenta sobre as relações
sociais no contexto amazônico ganha igual relevo na dinâmica matrimonial, política e
cerimonial da rede de relações intercomunitárias que compõe o modo de habitação mura do
espaço dos rios e igarapés pelos quais circulam. Nossa pesquisa focaliza a construção do
parentesco através do processo de construção do corpo ameríndio, enfatizando o papel da
conviviabilidade e consubstanciação (“sangue”) para pensar os Mura como exemplo dos
coletivos que se vêem na chave de populações misturadas, ou como eles próprios se definem,
raciados. O parentesco mura, então é traduzido pela gramática do parentesco de consideração,
o processo pelo qual a criação da pessoa é resultado de uma encruzilhada de narrativas e
trocas entre pessoas distintas, forjando ao fim, o que poderíamos tratar em termos
strathernianos como dividual. É através da chave do parentesco de consideração que tratamos
o tema da alteridade e do perigo iminente que sua presença apresenta para o “trabalho” de
fundação da aldeia, o tuxáua mura, surge não apenas como artífice deste processo, mas
igualmente como dono da agência responsável pela conjugação das forças centrípetas e
centrífugas que respondem a formação e disrupção das unidades cognáticas locais.
Palavras chave: Mura, Parentesco, Corporalidade, Parentesco de consideração, chefia.
ENTRE A REGRA E A PRÁTICA: AS DINÂMICAS DE PARENTESCO
DOS ASHANINKA DA TERRA INDÍGENA KAMPA DO RIO AMÔNIA
Izabel Ibiapina
[email protected]
CNPq
PPGAS- UNB
32
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Doutoranda
Dados etnográficos apontam que, após o estabelecimento de relações mais frequentes com o
mundo dos brancos, alguns homens Ashaninka da Terra Indígena Kampa do rio Amônia –
AC passaram a ser casar com mulheres brancas. Observam-se, portanto, mudanças no padrão
tradicional de casamento, definido como a união preferencial entre primos cruzados. Este
trabalho tem como objetivo principal compreender as dinâmicas tradicionais e recentes de
parentesco dos Ashaninka da TI Kampa do rio Amônia. A hipótese central do trabalho é que
os novos casamentos interétnicos não afetaram de maneira significativa a especificidade
cultural do grupo. Ao contrário, tais casamentos contribuíram estrategicamente para a
manutenção das tradições locais. No decorrer do trabalho, veremos que os filhos nascidos
de alianças matrimoniais do tipo homem Ashaninka + mulher branca são capazes de transitar
com desenvoltura nos dois universos – indígena e branco –, tornando-se agentes ativos na luta
em defesa dos direitos indígenas. A fim de se alcançar o objetivo proposto, o trabalho
recorre às reflexões teóricas de Lévi-Strauss e Bourdieu. O primeiro nos ajuda a entender o
princípio de reciprocidade que subjaz a prática de casamento preferencial entre primos
cruzados. Já o segundo, ao desenvolver o conceito de “estratégia matrimonial” e dar
agencialidade aos indivíduos, nos auxilia a compreender os novos casamentos interétnicos
praticados pelos Ashaninka. Por fim, o trabalho evidencia que tanto os argumentos de LéviStrauss quanto os de Bourdieu apresentam limitações para a compreensão da complexidade
das relações de parentesco Ashaninka.
Palavras-chave: Ashaninka, Parentesco, Estratégias Matrimoniais, Agencialidade Indígena.
“FILHO PARTICULAR” E “FILHO ROUBADO”: TERMOS
COMPONENTES DO PARENTESCO NOS QUILOMBOS DO NORTE
DE MINAS GERAIS
Renato Aquino Neri
[email protected]
PPGAS-UFBA
Mestrando
As novas configurações da família moderna não mais se enquadram precisamente nos moldes
da família nuclear clássica das teorias do parentesco. A estrutura familiar composta pelo pai,
mãe e filhos tem sido constantemente resignificada. Os filhos de criação, adotivos e
“bastardos”, socialmente reconhecidos como consangüíneos do pai ou da mãe, modificaram
o entendimento da descendência e a aplicabilidade dessas designações passou a ser uma
condição de inclusão ou exclusão social dos grupos. No quilombo do Agreste, no norte de
Minas Gerais, tais designações se somam a outras duas: “filho particular” e “filho roubado”
e refletem distintas estratégias de organização social das famílias negras rurais na região.
Os significados conferidos a essas designações demonstram como a percepção jurídica da
propriedade e dos direitos e deveres destes grupos estão intimamente ligados à manutenção do
território negro e a constituição da estrutura familiar.
Palavras-Chave: Quilombo, parentesco, família
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
A TRANSFORMAÇÃO DO PARADIGMA TRADICIONAL FAMILIAR:
O PAPEL DA MULHER COMO MÃE E PAI
Leicimar da Consolação Morais
[email protected]
UFJF
Graduanda
O objetivo desse artigo é desenvolver uma análise sobre o fato que ocorreu no final do século
XX na Grã-Bretanha, a famosa Síndrome do Nascimento Virgem. (Strathern, 1991) Esse fato
traz uma longa e interessante discussão do papel da mulher na sociedade envolvendo a
escolha da reprodução assistida, ou seja, a procriação sem sexo e sem a figura paterna. A
metodologia a ser usada nesse artigo é através de uma análise bibliográfica da obra de
Marilyn Strathern “Necessidades de Pais, Necessidades de Mães”, fazendo um paralelo de
alguns fatores ocorridos no século XX com situações semelhantes atuais no século XXI. A
antropóloga desenvolve comparações entre sociedades euros-americanos, com a relação de
parentesco das Ilhas Trobriand, abordando o papel da mulher em sociedades distintas. É
interessante abordar essa discussão, pois a relação da família tradicional ainda é muito
presente e, contudo opiniões que vai contra o tradicionalismo é considerado excêntrico.
Palavras-chave: Parentesco, sociedade, mulher, reprodução assistida.
“DEIXA EU COMEÇAR DO COMEÇO”: REFLEXÕES SOBRE
RELAÇÕES FAMILIARES E A CONSTRUÇÃO DA CATEGORIA
“INCAPACIDADE PARA OS ATOS DA VIDA CIVIL” NO PROCESSO
DE INTERDIÇÃO JUDICIAL
Helena Moura Fietz
[email protected]
CAPES
PPGAS-UFRGS
Mestranda
A interdição é um instituto do Direito Civil Brasileiro, no âmbito do direito de família, que
consiste em uma ação judicial cujo objetivo é a declaração de “incapacidade para os atos da
vida civil”. Com a declaração de “incapacidade” é nomeado um curador, que será responsável
pelos bens e pela pessoa do interdito. Na presente comunicação, proponho uma abordagem a
partir das famílias envolvidas a fim de problematizar a construção desta “incapacidade” no
processo de interdição judicial. Objetivo compreender de que formas as famílias experenciam
e significam a possível “incapacidade” de um de seus membros. Por meio da descrição da
narrativa de um familiar e da análise de discursos e saberes envolvidos em uma ação judicial
em particular, pretendo refletir sobre este processo enquanto um espaço no qual relações
familiares são colocadas a prova e trazidas à tona. Ademais, indago se a decisão das famílias
de ingressarem o processo de interdição judicial vai além da “incapacidade” do sujeito a ser
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
interditado e envolve outras questões familiares que podem não aparecer nos autos do
processo judicial. Questões estas que estão muitas vezes relacionadas à economia familiar
e/ou ao cuidado para com o interdito. Da mesma forma, busco refletir sobre os efeitos desta
disputa que vão para além da questão da “capacidade” do sujeito, tais como o “direito” de
poder contar a história familiar e ser reconhecido como o “filho cuidador”.
Palavras-Chave: Interdição Civil - Antropologia Legal - Relações familiares Subjetividade
AS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA E O ANONIMATO NO
PARENTESCO: COMO RESOLVER UMA CERTA DESORDEM NO
PENSAMENTO OCIDENTAL?
Thiago Novaes
[email protected]
CNPq
PPGAS-UNB
Doutorando
A presente pesquisa em andamento se interessa pelo tema da constituição do parentesco da
pessoa, e põe ênfase no potencial transgressor técnico que a Inseminação Artificial e demais
Técnicas de Reprodução Assistida – TRA oferecem para solucionar os problemas para
aqueles que querem ter filhos. Ao promover o nascimento de crianças com parcial
reconhecimento sobre sua autoria genética, como é o caso das experiências com óvulos e
sêmen anônimos, esse avanço tecnocientífico situa um conflito partilhado em vários países,
em que o valor social atribuído ao desejo de ser mãe e pai, viabilizado na maioria das vezes
pela condição econômica de realizá-lo, opõe-se ao direito da pessoa em saber sua origem
genética. Ou seja, à luz de uma crise no modelo mental que organiza a transmissão natural de
propriedade, buscaremos compreender os papéis envolvidos na fabricação de filhos, onde a
técnica permite alterar do modo de conceber a autoria “natural” sobre o humano, destacando a
mediação da racionalidade médica que promove a seleção na busca de soluções para os
anseios de mulheres, homens e casais homo e hetorossexuais que querem reprocriar. A
pesquisa não se debruça, então, sobre a principal justificativa médica para o uso das TRA, a
saber, o combate à infertilidade. Ao contrário, considerando a forma como vêm sendo
conceitualizadas as mudanças no campo da reprodução humana e as novas escolhas que as
TRA autorizam, voltamo-nos à descrição de possíveis conexões que a participação do
anonimato pode aportar na produção de um pensamento sobre o parentesco, onde se enfrenta
a desfunção da matriz da natureza para prover não apenas os conceitos, mas a forma mesma
do dispositivo classificatório que prevê a consanguinidade como laço biológico, irrefutável,
natural.
Palavras-chave: técnicas de reprodução assistida, natureza, parentesco, anonimato.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
GT SÍMBOLOS E SUJEITOS:
DIÁLOGOS ANTROPOLÓGICOS
SOBRE AS INTERAÇÕES ENTRE
HUMANOS E ANIMAIS
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
ABOIO: UMA CONSTRUÇÃO CONJUNTA ENTRE SERES HUMANOS
E BOVINOS
Raoni dos Santos Costa
[email protected]
FAPESB
PPGA-UFBA
Mestrando
O aboio é um exemplo brasileiro de canto de trabalho dentre os inúmeros casos que se
espalham pelo mundo. Esses cantos são utilizados pelos vaqueiros para conduzir alguns
animais ou rebanhos inteiros de um lugar para o outro, é uma forma de comunicação efetiva
resultado de milênios de contato entre o ser humano e o boi. Resultado de uma outra forma de
organização no campo que não a do agronegócio, essa expressão cultural ainda é encontrada
em algumas zonas rurais da Bahia e de Minas Gerais. Inspirado no perspectivismo ameríndio
de Viveiros de Castro (em específico no conceito de pronomes relativos), a ideia é tomar os
animais como sujeito e não só como objetos de uma construção de via de mão única. Os
cantos de trabalho não podem ser dissociados do contexto ao qual eles provêm, não só pelos
assuntos tratados, mas também pela constituição sonora em ritmos e melodias específicas de
cada fazer. Existem diferenças musicais nítidas entre chamar o boi ou o “toar” para frente,
existem ainda cantos que são utilizados no momento da ordenha e que são completamente
diferentes. A música é vista aqui então como uma linguagem comunicacional não só literária,
mas principalmente usando articulações sonoras para imprimir significados compartilhados. O
intuito desse artigo é explicitar, por meio da análise do discurso dos aboiadores e da música
cantada em alguns registros audiovisuais, a efetiva comunicação existente na ralação entre
espécies e a influência sonora dos bovinos na construção desses cantos de trabalho.
Palavras-chave: aboio, pronomes relativos, comunicação entre espécies
A “NAÇÃO DE GADO”: PECUÁRIA EXTENSIVA E PRODUÇÃO DO
ESPAÇO EM DOIS MUNICÍPIOS MINEIROS
Luzimar Paulo Pereira
[email protected]
Doutor -UFRJ
Carmen Silvia Andriolli
[email protected]
Doutora - UFRRJ
A circulação do gado por sítios, fazendas, estradas, cerrados, veredas, várzeas e rios é um
importante tópico da vida cotidiana dos moradores das áreas rurais dos municípios de Urucuia
e Chapada Gaúcha, localizados nos limites das regiões norte e noroeste de Minas Gerais.
Tema de conversações e foco de algumas das principais preocupações dos seus habitantes, os
deslocamentos – que podem ser resultado de desígnios humanos ou frutos das intenções dos
próprios bichos - dão contornos específicos às noções de “criação” e “mexer com criação”,
entendidas como modos de se definir o meio ambiente envolvente, os seres da natureza que
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
vivem sob os cuidados dos homens e as formas de se lidar com eles. A partir de material
etnográfico recolhido ao longo de viagens de campo realizadas entre os anos de 2007 e 2014,
pretendemos descrever e analisar as maneiras pelas quais o movimento dos animais é
percebido e entendido pelos seus donos e demais moradores. Em especial, destacamos
compreender o papel que a circulação do gado desempenha nas atividades de produção,
manutenção e eventual destruição dos espaços de vida e trabalho, além de avaliar sua relação
com diversas formas de sociabilidade inter-humana. O eixo descritivo desta apresentação será
construído através do inventário dos saberes e práticas associados à atividade do criatório,
expressos no trabalho dos criadores e nos relacionamentos cotidianos estabelecidos entre
homens e animais. A este material serão somadas narrativas recolhidas junto a informantes
selecionados.
Palavras-chave: campesinato; pecuária; espaço.
REFLEXÕES ETNOGRÁFICAS SOBRE BEM-ESTAR ANIMAL EM
FAZENDAS DE CRIAÇÃO DE GADO DE CORTE
Graciela Froehlich
[email protected]
CNPq
PPGAS-UNB
Doutoranda
Pesquisas científicas – vide os estudos de primatologia da Universidade de Princeton que
demonstraram as características sociais de grupos de babuínos, colocando em evidência suas
hierarquias e divisões de gênero, e as pesquisas que originaram a Declaração de Cambridge
sobre a consciência de animais não humanos - têm demonstrado que para além da
senciência, os animais são seres sociais, dotados de consciência e de vida simbólica.
Paralelamente às descobertas científicas, crescem em número e expressividade os movimentos
sociais dedicados a proteger os animais da exploração humana, questionando não somente a
forma com que nos relacionamos com eles, mas os princípios morais que legitimam
determinadas formas de relação. Manifestações acontecem nas ruas, em frente a grandes redes
de fastfood, nas proximidades de abatedouros, e também no universo da internet, através de
blogs, e nas redes sociais, onde proliferam as páginas dedicadas à problematização e
conscientização a respeito dos direitos dos animais. O Estado brasileiro, através de
regulamentações legais e políticas públicas, vem dando atenção cada vez maior a tais
demandas, ainda que não agradem a todas as reivindicações sociais. Tais políticas têm
privilegiado a implementação de práticas de bem-estar animal em frigoríficos, granjas e
fazendas de criação de bois, porcos e galinhas. Através de cursos e capacitações, vaqueiros e
demais trabalhadores são treinados a manejar racional e humanitariamente os animais com os
quais se relacionam cotidianamente. Busco desenvolver neste artigo alguns desdobramentos
de meu trabalho de campo em fazendas de criação de gado de corte que invocam o bem-estar
animal como um sinal distintivo do trabalho e dos animais nelas criados. Interessada nas
conexões e engajamentos entre humanos e animais a partir da ideia de bem-estar animal, trago
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
à reflexão algumas experiências para se pensar o trabalho de humanos e animais neste
contexto específico.
Palavras-chave: bem-estar animal; bovinocultura; relações humanos-animais.
A IMPORTÂNCIA SOCIAL DO GADO EM TOURÉM, UMA ALDEIA
RURAL FRONTEIRIÇA ENTRE A GALÍCIA (ES) E PORTUGAL
Diego Amoedo Martínez
[email protected]
CNPq
PPGAS-UNICAMP
Doutorando
Em Tourém, aldeia rural fronteiriça do norte de Portugal onde vimos realizando pesquisa
desde o ano 2011, os agricultores da aldeia mantêm desde tempos ancestrais uma relação
próxima com o gado. Como agricultores ou lavradores são entendidos na aldeia todas as
pessoas que têm uma relação com a terra e a criação de gado bovino para o mercado de carne.
Fruto dessa convivência vimos como animais e humanos mantêm uma relação simbólica por
um lado e como sujeitos por outro. Miguel Torga (escritor português que teve nas terras do
norte parte de seus elementos inspiradores) lhe outorga ao boi do povo, figura central da vida
social aldeã até a década de 1980 em que foi vendido o último boi criado pelos vizinhos de
Tourém, acategoria de “o deus vivo de ricos e pobres, de alfabetos e analfabetos”. As vacas
são a principal fonte econômica da aldeia e como tal, entre animais e humanos existe um
diálogo. Os agricultores precisam entender os seus códigos, o que elas dizem, oque elas
querem, como diz Bordalo Lema “[os agricultores precisam], compreender os caprichos e
queixumes (…) gaba-lhes as qualidades (…) lembra suas doenças, como se se tratasse de um
membro da família”. Pretendemos com esta comunicação trazer elementos de nosso campo de
estudo para um discussão mais ampla, em que a relação animal-humano é o foco principal,
seja em sua vertente mais simbólica ou como par de uma interrelação em que a comunicação
entre humanos e animal é um elemento mais do cotidiano da vida social aldeã, objeto de
conversas, disputas e trocas.
Palavras-chave: Rural. Portugal. Relação humano-animal.
SINAIS, VEREDAS E PONTOS DE REFERÊNCIA, UMA REFLEXÃO
SEMIÓTICA DAS RELAÇÕES ENTRE CRIAÇÃO, CAATINGA E
CRIADORES NO SERTÃO DE PERNAMBUCO
Ariane Vasques Zambrini
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
[email protected]
CNPq
PPGAS-UFSCar
Mestranda
Considerando a proposta sugerida pelo grupo de trabalho de problematizar a amplitude das
interações entre humanos e animais, de interrogar as múltiplas formas de engajamento prático,
simbólico e intelectual existentes entre animais e humanos em um determinado contexto,
este trabalho pretende expor uma reflexão a respeito da criação de cabras e bodes como é
percebida e praticada na zona rural de um município no sertão de Pernambuco. Proponho
pensar a criação (como são chamados cabras e bodes) como produtora de signos (entre eles,
rastros e veredas) e, ao mesmo tempo, repositório de outros signos, por sua vez, produzidos
por humanos – os sinais, que são recortes nas orelhas da criação que indicam sua pertença a
um dono particular e a uma família residente em uma região específica. Além destes, outros
signos são reconhecidos e fazem parte desta interação como, por exemplo, as fases da lua que
determinam o momento oportuno para determinadas atividades, indícios no corpo dos animais
que assinalam o momento de parição ou a época de reprodução, a folia, reconhecida pelo
bodejar dos pais de chiqueiro; e a indicação de algumas doenças, como os piolhos ou a febre
que deixam o pêlo do animal arrepiado. Por outras palavras, pretendo descrever a relação
entre cabras, bodes, sertanejos e caatinga considerando a lida diária dos criadores com os
animais, interação que permite a apreensão desses signos. Dessa maneira, esta reflexão
implica necessariamente que animais, humanos, ambiente e signos sejam considerados uns em
relação aos outros de modo equivalente, sem obliterar, sobretudo, outros âmbitos de relações
que estão intimamente vinculados a eles, como o parentesco e o território.
Palavras-chave – Semiótica, caprinos, sertão de Pernambuco.
FORMANDO SUJEITO, TORNANDO OBJETO: AS RELAÇÕES COM
O CÃO NA AMAZÔNIA INDÍGENA
Paulo Büll
[email protected]
CNPq
PPGAS -UFRJ
Desde os tempos da Conquista nota-se a presença de cachorros, animais de origem exógena,
entre as sociedades indígenas da América do Sul. Relatos de cronistas e viajantes, bem como
pesquisas em arqueologia e genética, atestam tal presença. Além dessa constatação, muitos
viajantes e cronistas afirmam não só o vínculo afetivo pelo qual os indígenas se
relacionavam com os cães, mas também, e sobretudo, a finalidade prática do animal: sua
atuação na caça, enquanto ajudante do caçador, e seu uso no comércio entre brancos e índios,
enquanto objeto de troca. Dando maior atenção à primeira finalidade, exploro neste trabalho
os processos de cuidado, de comunicação não verbal e de treinamento, mediante os quais
os cachorros se tornam aptos a participarem da caça. ‘Tornar-se caçador’, processo no qual
41
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
todos os cachorros são inseridos, e diretamente associado à domesticação desse animal, é
interpretado aqui como um resultado do uso de técnicas específicas, as quais visam tanto
negar o estatuto incestuoso e coprofágico quanto afirmar o estatuto cinegético do cão. Para
dar conta desse processo, baseio-me em dados empíricos provindos de referências cronistas e
bibliográficas, e em diversas respostas a um questionário sobre o tema enviado a
pesquisadores americanistas.
Palavras-chave: animais, domesticação, cachorro, técnica.
“O CAVALO É IGUAL AO HOMEM”: UMA ETNOGRAFIA DA
RELAÇÃO ENTRE HUMANOS E CAVALOS NA INVENÇÃO DA LIDA
E DO MUNDO CAMPEIRO.
Daniel Vaz Lima
[email protected]
PPGAnt- UFPel
Mestrando
Flavia Maria Silva Rieth
[email protected]
PPGAnt- UFPel
Docente
Este texto propõe uma reflexão etnográfica sobre a relação entre o domador e o cavalo na
domesticação destes últimos no pampa sul-rio-grandense, relação que trata de inventar a
própria técnica presente na lida, no trabalho da doma e, o mundo campeiro. (Sennett, 2013) .
O domador é entendido como aquele que possui a habilidade (Ingold, 2010) da técnica de
domesticação do cavalo (doma) para atividades relacionadas aos trabalhos que envolvem a
pecuária extensiva. É um saber/fazer constituído de diferentes momentos nos quais se
acionam a utilização de determinados artefatos, tendo como objetivo fazer com que o cavalo
aprenda formas de comunicação com o humano. Percebeu-se que esse conjunto de técnicas se
classificam de acordo com a graduação da violência utilizada para a domesticação do cavalo,
no entanto, de acordo com os interlocutores, cada domador tem suas técnicas e preferências
ao mesmo tempo em que a relação estabelecida com o cavalo vai condicionar a utilização de
um determinado saber/fazer. Percebem que o “cavalo é igual ao homem, tem temperamento”,
em que uns são “velhacos”, ou seja, rebeldes, outros são “baldosos”, caracterizados como
animais traiçoeiros, e outros, ainda, são tidos como mansos. No processo da doma, alguns
assimilam mais facilmente os ensinamentos que outros. Além disso, a doma éum processo
continuo em que precisa estar sempre praticando o cavalo, pois se parar este “perde a doma”,
ou seja, esquece o que aprendeu. Nadomase estabelece uma relação entre humanos e não
humanos em que o domador ensina o cavalo, e este, por sua vez, o ensina na habilidade
técnica, fazendo-o experienciar maneiras de praticar tal saber/fazer. A aprendizagem é um
processo de incorporação de habilidades constituídas na experiência e na vivencia do habitar o
mundo da vida de ambos, dos domadores e dos cavalos. (Ingold, 2010; 2012).
Palavras – chave: Humano/cavalo, domesticação, intersubjetividade.
42
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
BÍPEDES E QUADRÚPEDES: AS RELAÇÕES DE METÁFORA E DE
ALEGORIAENTRECAVALOS E HOMENS – NÃO
NECESSARIAMENTE NESTA ORDEM
Rafael Velasquez
[email protected]
CAPES
UFF
Mestrando
O presente trabalho pretende demonstrar as relações de metáfora e de alegoria nas quais se
misturam homens e cavalos, no âmbito das apostas hípicas. O Puro Sangue Inglês, raça de
cavalos destinados às corridas competitivas de alta velocidade, é resultado da mais
criteriosa criação equestre. Mais do que o fascínio estético, estes animais são como
semideuses ou heróis para o público aficionado pelo turfe: detentores de histórias. E como se
trata de uma atividade lúdica, na qual o dinheiro está atrelado, há sempre suspeitas. No
entanto, estas suspeitas recaem apenas sobre a moral dos homens, jamais sobre os cavalos. Os
cavalos, diferentemente dos homens, são incorruptíveis, pois é impossível – creio eu –
suborná-los, nem mesmo com alfafa ou cenoura. Estes animais pairam acima dos homens,
enquanto fator animal. Este fator, aliás, é o que difere de outros jogos e atividade conferindo
certa imponderabilidade às provas. No campo simbólico, tais criaturas representam a condição
de superioridade de seus proprietários. E, para o público espectador e apostador, estes animais
são sua projeção bestial na pista, sua força e virilidade. Talvez por isso a grande maioria do
público seja do sexo masculino.
Palavras-chaves: Corrida de cavalo; Relação homem e animal; Simbolismo.
O RASTRO DO PASTOR. CRIAÇÃO DE ANIMAIS E TECNICAS PARA
“FAZER CARNE”EM JUJUY (ANDES MERIDIONAIS, ARGENTINA)
Francisco Pazzarelli
[email protected]
Instituto de Antropología de Córdoba, CONICET Universidad Nacional de Córdoba,
Argentina
Pesquisador do CONICET
A criação de cabras e ovelhas em Huachichocana, uma “comunidade aborígene” nos montes
de Jujuy (Andes meridionais, Argentina), é uma das principais tarefas dos moradores. Todos
os “huacheños” são pastores e cuidam diariamente de seus animais, como se fossem seus
filhos, pois “as cabras são família”. Isso é assim porque no processo de se tornar pastores, eles
vão virando “família” dos animais, num desenvolvimento que acaba por deixar dentro do
corpo dos animais parte das energias vitais das pessoas: a “sorte”. Isso se torna evidente no
momento de matá-los para comer. Neste trabalho, meu interesse é focar nas técnicas que
permitem “fazer carne” de um animal que, enquanto está vivo, é considerado parente. O
percurso etnográfico sobre as formas nas quais são manipulados os ossos, a carne, a pele e
43
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
órgãos dos animais, permite desenvolver uma análise sobre as formas de manipulação das
energias vitais dos animais familiares que são mortos para comer. Meu interesse final é
discutir como, no momento de “fazer carne”, os pastores devem tirar dos animais aquelas
forças vitais próprias (a “sorte” ou “suerte”) que, por causa do processo de criação e de se
tornar parentes, ficaram dentro das cabras e ovelhas. Em outras palavras, a “sorte” é o rastro
do pastor que tem que ser retirado do animal para que o corpo se torne, finalmente, carne para
comer.
Palavras chave: Andes meridionais – pastores – carne – técnicas – cabras
CRIAÇÃO E CONSUMO DE PORCOS NA REGIÃO DE Chapecó - SC:
ENTRE CASA À AGROINDÚSTRIA
Débora Vallilo Siqueira
[email protected]
CAPES
PPGAS-UFSCar
Mestranda
O presente trabalho busca tratar sobre criação, abate e consumo de carne e outros subprodutos
do porco na região da cidade de Chapecó – SC, no Oeste do Estado. Esta região é a maior
produtora de carne suína do Brasil, com vendas no mercado interno e externo. É polo de
centros de estudos e feiras de inovações tecnológicas e sede de duas grandes empresas do
setor (BRF e Aurora Alimentos). Os brasileiros/caboclos que residiam na área antes da
colonização por imigrantes no começo do século XX já criavam porcos, fazendo desta
atividade constituinte de sua história, cultura e economia. A base da formação social e
econômica da região é a agricultura familiar e as articulações entre os pequenos produtores e
as grandes empresas agroindustriais são típicas e se dão através dos chamados sistemas de
integração/parceria. Uma das mudanças chave na modernização da suinocultura foi a
substituição dos porcos que produziam muita banha por outros que produziam mais carne, que
passou a ser o principal produto das agroindústrias, a partir da década de 1960. Entretanto, na
pesquisa de campo pude conhecer pessoas que ainda criam e consomem o chamado porco
crioulo/de banha/comum/preto. Na etnografia foram feitas entrevistas com diversos atores da
região: de professores universitários a pequenos proprietários, moradores da cidade e do
campo; visitas em propriedades rurais familiares, centros de memórias, museus, ONG,
cooperativa e observação de abate de animais. O episódio da Peste Suína Africana, ocorrido
em 1978, também é tratado aqui devido às ressonâncias que ainda repercutem sobre a
construção de algumas categorias e práticas que envolvem a criação e o consumo dos
subprodutos desses animais.
Palavras-chave: Oeste Catarinense, porco crioulo, agroindústria, consumo.
CHAMAR E REUNIR OS ANIMAIS: NOTAS INICIAIS SOBRE OS
CANTOS CINEGÉTICOS DO HAIKAKAXINAWÁ
Rafael Rocha Pansica
[email protected]
44
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
FAPESP
PPGAS-USP
Doutorando
Trata-se, aqui, de oferecer as reflexões iniciais do conjunto dos cantos cinegéticos, masculinos
e femininos, que pude registrar recentemente entre os Kaxinawá de San Martin, alto Purus.
Estes cantos foram entoados nas caçadas coletivas rituais (as festas haika) com o intuito de
“chamar e reunir os animais”. Descreveremos a festa haika, apresentaremos seus cantos
cinegéticos e analisaremos esta forma de comunicação entre humanos (caçadores) e animais
(presas) com a ajuda do aporte perspectivista (Viveiros de Castro 1996; Lima 1996) –
comparando, em especial, a comunicação cinegética desta caçada kaxinawá com a
interações subjetivas da bem conhecida caçada de porcos yudjá (sobre a qual Lima [1996]
fundamentou sua análise e sua proposta do perspectivismo yudjá).
Palavras-chave: Caça, Cantos, Ritual, Kaxinawá, Haika.
ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO EM DOMICÍLIO DE DESCENDENTES DE
JAPONESES EM MARINGÁ (PR)
Elaine Teixeira Yamashita
[email protected]
UEL
Graduação
PIBIC-CNPq
Elisa Massae Sasaki
Doutora - UNICAMP
Martha Ramírez-Gálvez
Doutora-UNICAMP
Esta pesquisa de Iniciação Científica vem contribuir para a compreensão da relação homemanimal de estimação no Brasil contemporâneo e urbano. Seu ponto de partida se deu mediante
a análise de um formulário complementar sobre posse de animais de estimação entre 282
domicílios de descendentes japoneses em Maringá (PR), incluído na pesquisa quantitativa “As
redes sociais nas migrações internacionais: os migrantes brasileiros para os EUA e Japão”,
realizada no ano de 2001, e por não fazer parte dos objetivos da pesquisa em que foi incluído,
estes dados permaneceram sem análise; o objetivo foi tabular e analisar esses dados. Por ser
uma pesquisa exploratória pode-se analisar a quantidade de lares que possuíam animais de
estimação, quais as espécies adotadas e quais as formas que foram adquiridos. Buscou-se
neste estudo compreender o universo simbólico que permeia o processo de nomeação de
animais de estimação, uma vez que o ato de nomear é um passo central na constituição social
da pessoa, analogamente pode-se afirmar que ao individualizar o animal com um nome
próprio, se constrói sua identidade e esta informa muitas referencialidades não conscientes
daquele que nomeia, portanto o processo de nomeação pode indicar o lugar social dos animais
na sociedade contemporânea. Estas informações reiteram o que a literatura atual vem
afirmando: na sociedade contemporânea os animais de estimação deixaram de ter um aspecto
45
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
meramente utilitário e passaram a apresentar uma dimensão intimista pautada na afetividade.
Em muitos casos, os animais de estimação passaram a ser considerados um membro a mais da
família, formando o que podemos chamar de família multiespécie. Esta relação humanoanimal de estimação contrasta com a concepção que o ocidente criou sobre os animais,
levando a repensar o valor atribuído aos animais na sociedade contemporânea.
Palavras-chave: espécies companheiras; nomes; relações inter-espécies.
CÃES, BIOPOLÍTICAS E ALGUNS ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS
Guilherme Antunes
[email protected]
CAPES
UNICAMP
Doutorando
A reivindicação de uma cidadania “alargada” às espécies não-humanas tem figurado não
somente nos debates sobre a defesa dos direitos animais, mas também recebe menção na
implementação de políticas públicas voltadas à gestão da vida dos animais domésticos. Tais
medidas trazem em si oscilações entre um viés sanitarista e ambientalista, invariavelmente
associando as noções de defesa e proteção com as de controle e vigilância. Esse é um
importante indício de como o poder público tende a enfrentar o problema. Existe um
fenômeno discursivo que denota o conflito entre as sensibilidades humanas e os contratos
jurídicos, onde se alternam cientificismo, religião, moralidades e afetividades. Mas há
também um problema prático, o da ambivalência nas leis ambientais e nas políticas públicas:
a questão animal seria de ordem ambiental ou de saúde pública?Ainda que maltratar um
animal (ou mesmo matá- lo) muitas vezes não seja entendido como crime ambiental (no
limite, uma contravenção penal), é fato que um ato assim fere as sensibilidades da grande
maioria das pessoas.Partindo de um estudo de caso e de debates que têm ganhado espaço no
noticiário (vide as recentes reformulações da legislação ambiental, por vezes impulsionada
por ações de grupos pró-animal, como, por exemplo, o resgate de cães beagle, no Instituto
Royal, em São Roque-SP), a proposta visa uma discussão acerca de conflitos relacionais entre
os domínios do humano e do não-humano num contexto urbano-industrial, privilegiando as
políticas públicas voltadas à questão animal, objetivando assim uma reflexão de ordem
teórico-metodológica de uma das mais consagradas fronteiras da disciplina antropológica: a
oposição entre natureza e cultura.
Palavras-chave: animais domésticos; biopolíticas; direitos e proteção animal; domesticação.
RITUAL E PERFORMANCE ENTRE OS ÍNDIOS POTIGUARA DA
PARAÍBA: CONHECENDO A BRIGA DE GALOS
Rafael Leal Matos
[email protected]
CAPES
UFRN-PPGAS
46
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Mestrando
Este escrito versa sobre uma proposta de investigação etnográfica sobre as interações
interétnicas dos atores sociais que participam de “brigas de galos” no território dos índios
Potiguara, situado no litoral norte do estado da Paraíba. Estas rinhas se constituem enquanto
uma prática ritual difundida dentro da área indígena e nos seus arredores, com participação de
índios e não índios, se constituindo enquanto uma prática ritual importante do universo
masculino local. Sem querer julgar estes eventos ou dar subsídios para isto, esta proposta
pode ser tida como um exercício antropológico de compreensão de uma situação limite,
inserida na clandestinidade. Ao tomar a abordagem da antropologia da performance como
filtro epistêmico e metodológico, me debruço sobre estas rinhas com o intuito de
compreender esse cenário, que, à primeira vista, consiste num jogo de apostas onde animais
não humanos são personagens centrais. Neste sentido, fica a questão: como, então, se
configura a interação entre índios e não índios num evento ritual que é marcado pelo
enfrentamento simbólico e que tem nos galos o principal meio de interação? Para responder
essa questão, procurarei demonstrar a relação existente entre performatividade humana e
animal, bem como o reflexo desta na interação dos personagens envolvidos. O intuito é,
portanto, de demostrar um quadro de categorias, símbolos, marcas e signos verbais e nãoverbais que suscitam um padrão dinâmico de ações pertencentes a este universo – que tem seu
valor heurístico expresso no fato de ser um evento ritual que atua enquanto transmissor de
saberes e experiências, além de desencadear emoções e valores vivenciados coletivamente.
Palavras-chave: Interação Interétnica, Animais, Antropologia da Performance,
Clandestinidade.
A AMBIVALÊNCIA DO ANIMAL EM UMA CATEGORIA
SERTANEJA: "BICHO BRUTO"
Jorge Luan Teixeira
[email protected]
PPGAS-MN/UFRJ
CAPES
Doutorando
"Inconformado conformista". A expressão usada por João Cabral de Melo Neto em um dos
seus poemas para descrever as cabras diz muito sobre o estatuto ambivalente dos animais no
sertão nordestino: fontes de renda e capital vivo, mas também difíceis de se "lutar" e, muitas
vezes, com vontade própria, não se submetendo aos desígnios do homem. Agentes de
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
fundamental importância social e econômica na ocupação dessa grande porção interior do
território brasileiro, bovinos, caprinos e ovinos são ainda hoje fundamentais no cotidiano de
moradores, pequenos proprietários e fazendeiros da região. Em torno desses animais e dos
seus pastores circula(va)m outros: domésticos, como os equinos e os cachorros, ou nativos,
como as onças pardas, os veados e os tatus. Reunidos sob uma mesma categoria, "bicho
bruto", os animais são definidos pela sua falta de "entendimento" e pelo fato de não serem
batizados, de serem pagãos. A minha intenção neste artigo é pensar sobre o significado de tal
categoria dedicando especial atenção (1) ao fato de que ao definir o animal, ela também
caracteriza o humano (por contraste ou não) e (2) aos significados e às implicações morais e
sociais da noção de "entendimento", propriedade que também falta às crianças, mas que nelas
se desenvolve por meio da "criação". O artigo tem por base pesquisa de campo que venho
realizando desde o primeiro semestre de 2013 no Sertão dos Inhamuns (CE) entre moradores
e vaqueiros de fazendas da região.
Palavras-chave: animais; sertão; pastoreio; moralidade.
QUANDO AINDA NÃO É CARNE: SOBRE ABATE, HUMANOS E
ANIMAIS
Míriam Rebeca Rodeguero Stefanuto
[email protected]
FAPESP
PPGAS-UFSCar
Mestranda
Neste trabalho serão abordadas as relações que se estabelecem entre animais e humanos no
contexto de um frigorífico de pequeno porte do interior paulista no qual são abatidos
diariamente suínos e bovinos. A cidade possui cerca de 35.000 habitantes e tem ainda outro
frigorífico próximo ao pesquisado, mas que abate somente aves. A análise do espaço físico do
frigorífico é de grande importância, pois está intimamente relacionada à distribuição espacial
das partes dos animais a serem manuseadas e ao tipo de trabalho que se realiza em cada setor.
A partir disso, é possível associar as perspectivas dos trabalhadores acerca dos animais e do
próprio trabalho que realizam de acordo com as posições que ocupam na linha produtiva; mas
surgiram também questões sobre o consumo de carne e sobre alimentação. O contexto do
frigorífico é ainda bastante marcado por aspectos que não lhe são exclusivos, como a baixa
escolaridade dos trabalhadores e as questões de gênero que orientam as atividades. Assim,
pretende- se aprofundar a compreensão sobre o processo simultaneamente material (no caso,
mecanismos industriais) e simbólico de transformação do animal em carne, o papel
desempenhado pelos trabalhadores do frigorífico e as implicações que isso traz para suas
perspectivas sobre o trabalho, os animais e a carne.
Palavras chave: relações humano-animal, frigorífico, trabalho
EJIWAJEGI: A ARTE DOS CAVALEIROS KADIWÉU
48
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Messias Basques
[email protected]
CNPq
PPGAS-UFRJ
Doutorando
Este trabalho pretende apresentar um esboço da história e dos modos pelos quais se
desenvolveu a relação dos Kadiwéu com os cavalos, a partir de dois aspectos: 1) A introdução
de animais exógenos na região do Chaco (paraguaio e argentino) por intermédio de espanhois
e missionários jesuítas, com destaque para a incorporação de cavalos pelos guerreiros MbayáGuaikuru; 2) A criação de cavalos e as marcas de propriedade inscritas no couro desses
animais pelos Kadiwéu, as quais seriam uma variante de seu grafismo, expresso tanto em seus
corpos quanto na ornamentação de sua cerâmica. As obras de cronistas e viajantes que
produziram as primeiras descrições acerca dos povos indígenas na região do Chaco (SanchezLabrador 1910; Jolís 1972; entre outros) e, sobretudo, o livro Os Caduveo (1894) do pintor e
etnólogo italiano Guido Boggiani servirão como fontes para a análise sugerida. Isto porque,
desde então, uma intrigante lacuna caracteriza as etnografias dedicadas aos Kadiwéu:
nenhuma delas se ocupou dos temas responsáveis pela sua notoriedade, o grafismo e a
destreza de seus cavaleiros. Este esboço tem o objetivo de revisitar esses temas em diálogo
com as intuições etnográficas de Claude Lévi-Strauss (1955, 1967, 1979) e apoiando-se na
pesquisa pioneira de Peter Mitchell (no prelo) a respeito da introdução de cavalos em
sociedades indígenas.
Palavras-chave: arte kadiwéu; cavalos; grafismo
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
GT ESTUDOS ETNOLÓGICOS
ÍNDIOS NA UNIVERSIDADE: UM ESPAÇO DE FRONTEIRA DE
CONHECIMENTOS
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Ana Caroline Amorim Oliveira
E-mail: [email protected]
Universidade de São Paulo-USP. Doutoranda em Antropologia Social
Docente da Universidade Federal do Maranhão-UFMA
O presente trabalho decorre de inquietações acerca da presença no ensino superior de
estudantes indígenas, em especial, através das ações afirmativas, e propõe contribuir com as
discussões no campo/área da educação escolar indígena. O objeto de reflexão são os
estudantes indígenas que ingressam no ensino superior e sua relação com a universidade
entendida como um espaço de fronteira (TASSINARI, 2001) das diferenças interétnicas, isto
é, “espaços de trânsito, de articulação e troca de conhecimentos, assim como espaço de
incompreensões e redefinições identitárias nesse processo, índios e não índios”. Carneiro da
Cunha(2009) afirma a possibilidade de construção de pontes entre os saberes tradicionais e os
saberes científicos. Mas também atenta para diferenças entre os dois saberes ressaltando a
possibilidade das comparações já que são ambas formas de entender e agir sobre o mundo,
abertas e inacabadas se fazendo constantemente. Baniwa (2011) compartilha com Carneiro da
Cunha sobre a possibilidade de diálogo entre ambos os saberes dentro do espaço escolar ao
propor uma complementariedade epistemológica e ontológica entre os saberes tradicionais e
os científicos no intuito de uma “construção de uma nova racionalidade que recoloque a
riqueza da pluralidade de saberes e fazeres sob novos termos, como força propulsora da
história”. Dessa forma, enquanto hipótese do trabalho pensa-se que a entrada no ensino
superior nas universidades públicas e/ou privadas dos estudantes indígenas possibilitaria os
mesmos a se tornarem intelectuais indígenas articulando os saberes indígenas e os saberes
ocidentais. Os indígenas enquanto estudantes assumindo um novo protagonismo no cenário
político atual. Toma-se como objeto de análise o Encontro Nacional de Estudantes
Indígenas(ENEI)-ocorridos em 2013 e 2014- em especial, os debates travados acerca do papel
indígena na universidade e sua relação com a comunidade, em que foi observado uma
demanda, tanto da comunidade como dos estudantes, por um retorno social, acadêmico e
fortalecimento identitário.
Palavras-chave: ensino superior, estudante indígena, saberes tradicionais, saberes científicos,
espaço de fronteira.
NOÇÕES DE INFÂNCIA E APRENDIZADO ENTRE OS BANIWA DE
VISTA ALEGRE
Amanda Rodrigues Marqui
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
[email protected]
CAPES/OEEI
Doutorado/PPGAS/UFSCar
Esta comunicação pretende abordar questões a respeito dos processos próprios de ensino e
aprendizagem das crianças baniwa a partir da pesquisa etnográfica na comunidade de Vista
Alegre, no rio Cuiarí, no noroeste amazônico. Os Baniwa são um povo falante de uma
variante da língua arawak da região do Alto Rio Negro, ocupando a bacia do rio Içana e
demais afluentes, como o Ayari e o Cuiarí.
O foco etnográfico nas crianças permite problematizar temas tão caros a antropologia, tais
como; a construção da pessoa, técnicas corporais, religião e sociabilidade. Além do mais,
fazer antropologia da infância proporciona alguns desafios metodológicos: Quais seriam as
técnicas de campo mais apropriadas com estes interlocutores? A intenção é problematizar os
modos de coleta e de pesquisa de campo, em outras palavras, como é estar entre e com
crianças tendo em vista a experiência etnográfica?
O exercício desta análise será tratar das noções que remetem aos processos de ensino e
aprendizagem realizada entre adultos e crianças, em especial, os conselhos e aconselhamentos
na esfera familiar. Os conselhos/aconselhamentos são realizados cotidianamente, nas tarefas
diárias, como por exemplo; a ida à roça das mulheres, a produção de farinha, o tratamento da
caça para alimentação, o acompanhamento à pescaria e/ou caçaria pelos meninos e/ou jovens,
entre outros.
Com isto, procuro expor as concepções a respeito da infância no ponto de vista dos adultos
e/ou velhos e dos jovens e/ou crianças, por meio de temas como cuidado, respeito,
solidariedade baseados nos conselhos/aconselhamentos e nas vivências da comunidade de
Vista Alegre.
Palavras-chave: Baniwa - crianças - processos de ensino e aprendizagem
INDÍGENAS, CIDADES E INSTITUIÇÕES: QUESTÕES
METODOLÓGICAS
Samuel Douglas Farias Costa
UFSCar
Mestrando
O presente trabalho propõe apontar e problematizar algumas questões metodológicas ligadas a
um empreendimento etnográfico atento às experiências dos Guarani que vivem na cidade de
Maringá, no Paraná, e que estão vinculados à duas instituições – uma organização indigenista
não governamental e uma universidade pública. A antropologia comporta diversas áreas de
pesquisa específicas e algumas delas, mais do que outras, dialogam diretamente com os
interesses deste empreendimento etnográfico, me refiro, sobretudo, à etnologia indígena, à
antropologia urbana e aos estudos que voltam sua atenção para organizações, seguimentos do
Estado, burocracia, etc. – que aparecem na bibliografia antropológica sob diversos nomes
como antropologia da administração, antropologia da governança, antropologia das
organizações, antropologia das instituições, entre outros. Qual o caminho mais profícuo a
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
trilhar? É preciso estabelecer-se em uma dessas áreas de pesquisa? É preciso fazê-las
dialogar? Qual o papel da etnografia neste processo de pesquisa? Não busco apresentar
respostas conclusivas para tais questões, mas sim dinamizar e fomentar reflexões
metodológicas suscitadas pela aspiração em pensar a situação de indígenas que vivem em
cidades e estão vinculados a instituições permeadas por saberes burocrático-estatais.
Palavras-Chave: Indígenas, Guarani, Cidade, Instituições, Método.
ARTE CONTEMPORÂNEA MADE BY... AMERÍNDIOS
Luísa Peixoto
[email protected]
CNPQ
PPGAS-UFSC
Mestranda
Este estudo examina as noções de arte indígena contemporânea segundo análises de
antropólogos, artistas indígenas e curadores que têm lançado um novo olhar sobre as
produções artísticas atuais dos povos ameríndios. Para isto, destaco como estas novas idéias
sustentaram uma exposição chamada ¡ Mira! – Artes Visuais Contemporâneas dos Povos
Indígenas. Esta exposição foi desenvolvida como um projeto de itinerância em museus do
Brasil, com perspectiva de chegar até alguns países latino-americanos, como Peru e
Colômbia. O objetivo não foi o de apresentar, entre mais de uma centena de obras, os objetos
e signos tradicionais, mas pinturas figurativas, esculturas e instalações inovadoras. Estas artes
também respondem a uma demanda de mudanças no mercado, ganhando, assim, valor
comercial pela sua especificidade de produção. Isso não significa, sem dúvida, que se trata de
formas de operar aculturadas. Dessa forma, se formulam algumas questões: Como refletir
hoje acerca do estigma de “artistas indígenas”? Quais são os debates acadêmicos que estão
trabalhando com um olhar valorativo e de densidade correspondente a estas novas expressões
da arte indígena? Como a Antropologia da Arte e a Etnologia vêm assumindo estas questões a
partir de um enfoque conceitual e metodológico original? Esta Antropologia seria capaz de
acompanhar as análises dos objetos segundo novas classificações de arte no mundo
ameríndio? Nesse sentido, espera-se que as relações entre os artistas, antropólogos e
curadoria, nos auxiliem a pensar mais o paradoxo entre o conhecimento tradicional e ancestral
e seu encontro com o mundo contemporâneo e urbano.
Palavras-Chave: Arte indígena, arte contemporânea, Antropologia da Arte, Etnologia.
O QUE É MEU E O QUE É NOSSO: RELATO ETNOGRÁFICO SOBRE
A COPA DO MUNDO DE FUTEBOL NA ALDEIA AIHA, KALAPALO
Marina Pereira Novo
[email protected]
53
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
FAPESP
PPGAS/UFSCar
Doutoranda
Acompanhei na aldeia Aiha (etnia Kalapalo, localizada no Parque Indígena do Xingu, Mato
Grosso, Brasil), entre junho e julho de 2014, a Copa do Mundo de futebol. O interesse dos
kalapalo no evento mobilizou toda a aldeia de muitas formas, desde a reorganização das
atividades cotidianas para não coincidirem com os horários dos jogos, ou a organização de
uma “vaquinha” para compra de combustível utilizado na alimentação do gerador durante os
jogos, ou mesmo a criação de um “mercado da copa”, com a venda de produtos como bexigas
e pipoca durante os jogos. A relação dos povos indígenas com esse esporte não é uma
novidade, e nem uma informação recente, e não é diferente entre os Kalapalo, que participam
de campeonatos e torcem para os seus times favoritos. Mas meu foco nessa apresentação será
discutir menos o papel do futebol na vida dos Kalapalo e mais a forma como o evento Copa
do Mundo foi mobilizado pelos Kalapalo para criar e alimentar circuitos de circulação de
dádivas. Pretendo, efetivamente, tratar de temas relacionados à circulação de objetos e
riquezas entre os Kalapalo e a forma como as categorias comunidade e particular são
mobilizadas por eles em diferentes situações e com diferentes objetivos, tendo o evento Copa
do Mundo como pano de fundo. A intenção é apresentar alguns apontamentos etnográficos
sobre as possibilidades de trânsito entre uma espécie de “propriedade coletiva” (as coisas da
comunidade) e a “propriedade particular” (o meu patikula), apontando para possíveis debates
com temas caros à etnologia sul-americana, como chefia, parentesco e relações de posse e
propriedade.
Palavras-chave: Alto Xingu, Kalapalo, dádivas, economias indígenas
AÇÕES RITUAIS EM TORNO DO PANEMA
Leonardo Viana Braga
[email protected]
Mestrando do PPGAS/USP
Bolsista do CNPq
Esta apresentação está pautada na importância da ideia de panema para Etnologia ameríndia,
importância cuja dimensão é inversamente proporcional à atenção dada ao tema. Parte-se de
material de campo produzido junto aos Zo’e, tupi-guarani do Noroeste do Pará, para enfatizar
a correlação entre o panema e os modos de relação entre humanos e animais. A intensificação
da produção de pesquisas pautadas nos aspectos sensíveis da corporalidade, e na noção de
pessoa como matriz conceitual das socialidades ameríndias traz para o estudo ainda incipiente
junto aos Zo’é uma pauta de questões fundamentais para a comparação Etnológica Tupi, mas
também ameríndia em geral. Podemos enumerar: os aspectos específicos de categorização e
vivência da alteridade, e a relação entre a oposição Natureza e Cultura e os aspectos da ação
(cosmo)política. Nesse sentido, o panema aparece como importante operador de relações tanto
entre humanos, quanto entre humanos e não humanos. Pois está diretamente imbricado na
caçada como acontecimento sociocósmico, não restrito a uma atividade de subsistência e/ou
54
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
somente a encontros com animais, uma vez que se articula com uma complexa dinâmica de
comunicação com outros não-humanos, como veremos. Tal dinâmica implica uma série de
ações rituais, isto é, ações também cotidianas que buscam a efetivação desta comunicação.
Toma-se como pano de fundo as explanações teóricas recentes, como o animismo e o
perspectivismo, nas quais a caçada é vista em correlação com a guerra, necessariamente
fazendo alusões (produtivas) ao plano de vivência mítico, no qual a comunicação generalizada
entre os seres impunha um fundamento de hostilidade como base da relação. Procura-se,
portanto, pensar o lugar do panema enquanto um dentre vários operadores ontológicos, que
residualmente geram entraves para as compreensões modernas a respeito de regimes de
autoridade e causalidades complexas.
Palavras-chave: Zo’é, caçada, cosmopolítica e panema
HISTORICIDADES NA ETNOGRAFIA OU OS AWÁ-GUAJÁ DE
VOLTA PARA O FUTURO
Guilherme Ramos Cardoso
[email protected]
CAPES
PPGAS-UNICAMP
Doutorando
A partir de um processo de expansão das atividades econômicas de exploração da região onde
estão seus territórios, atividade estimulada pelo Estado brasileiro iniciada na metade do século
XX e intensificada na década de 1980, a liberdade de movimento dos Awá-Guajá nos seus
territórios tradicionais foi drasticamente reduzida e o contato se tornou uma questão de
sobrevivência. Hoje, uma das imagens mais recorrentes dos Awá-Guajá utilizada por ONG’s,
antropólogos e ativistas que defendem seu direitos é de que são um dos últimos grupos de
caçadores e coletores da América do Sul. Na literatura antropológica, uma provável passagem
da prática horticultora para a caça e coleta condicionada pela violência colonial é apresentada
como o lugar privilegiado para se discutir sua história, cuja noção se pretende discutir nesse
trabalho. Esse trabalho pretende, portanto, apresentar a partir da literatura etnográfica e de
fontes primárias sobre a história do leste amazônico como se construiu essa imagem dos AwáGuajá como caçadores e coletores, como ela está relacionada às políticas indigenistas
direcionadas a esses grupos e como ela condiciona os termos em que a discussão política e
etnográfica sobre seu presente e suas possibilidades de futuro se dão.
Palavras-chave: etnologia indígena; história indígena; Amazônia; caçadores-coletores; AwáGuajá
PARENTES DE SANGUE: DIFERENÇA E RELAÇÃO ENTRE OS
PATAXÓ HÃHÃHÃI
Hugo Prudente da Silva Pedreira
E-mail: [email protected]
bolsista CAPES
PPGAS/USP Mestrando
55
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Os índios estabelecidos na Terra Indígena Caramuru-Paraguassu (sul da Bahia) identificam-se
de maneira abrangente como Pataxó Hãhãhãi, sendo assim identificados em suas relações
externas pelo menos desde 1982, início de uma longa sequência de retomadas pela
reconquista do seu território. Internamente, persiste uma identificação heterogênea composta
por diferentes famílias referidas a distintas origens étnicas indígenas (Kariri-Sapuyá,
Tupinambá, Kamakã, Baenã e Hãhãhãi), grupos estabelecidos na antiga reserva, em diferentes
momentos, que organizam as suas diferenças reconhecendo-se, em conjunto, como "parentes
de sangue" (Carvalho e Souza, 2000). Apresento aqui um exercício preliminar na discussão
das noções de corpo, substância e relação operantes neste contexto etnográfico. É interessante
notar como, ambiguamente, a filiação a origens étnicas específicas e distintas carrega um
valor positivo por seu caráter ancestral, mas, conota, simultaneamente, desacordo e divisão
política. Persiste o suposto de que no passado os grupos eram absolutamente distintos, pois
“no mato” não havia mistura. É muito comum que as diferenças étnicas internas ao grupo,
expressas em termos de “diferenças de família” ou “de sangue”, sejam o mote narrativo da
polêmica e da controvérsia. A centralidade do tema no cotidiano Pataxó Hãhãhãi parece
apontar para um universo em que o coletivo é apreendido como corporalidade. Dado o
postulado, entre os Pataxó Hãhãhãi, de que no casamento “o sangue mistura”, alterando e
aproximando os corpos dos cônjuges, o tema assume maior densidade. Se as noções nativas
de sangue e de mistura podem ter um bom rendimento para tratar da organização social
(relações entre famílias como unidades em interação), ela oferece ainda a possibilidade de
delinear um continuum entre este tópico e o corpo, informando sobre o modo nativo de
entender o processo do parentesco (em termos mais abrangentes, a Relação), em diferentes
níveis, desde a família conjugal até o coletivo pluriétnico, passando pela própria constituição
da pessoa.
Palavras-chave: Pataxó Hãhãhãi, Sangue, Parentesco
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
GT ANTROPOLOGIA E ESTUDOS
DE GÊNERO: BUSCANDO INTERRELAÇÕES
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
ENTRE CORPOS REBELDES – DIÁLOGOS ENTRE A TEORIA QUEER
E OS DISABILITY STUDIES
Marco Antonio Gavério
[email protected]
Graduando em Ciências Sociais (UFSCar)
CNPQ
O intuito deste trabalho é explorar rapidamente certos indícios teóricos encontrados na minha
recente pesquisa de iniciação científica objetivando explorar brevemente, a partir de algumas
considerações teóricas sobre o ‘corpo deficiente’, perspectivas que buscam interseccionar
gênero, sexualidade e deficiência, como as encontradas em autorxs como Rosemarie GarlandThomson, Shelley Tremain e Robert Mcruer, dentro do marco teórico conhecido como
disability studies (estudos sócio antropológicos que buscam alocar social e culturalmente a
questão da deficiência). Se por um lado há a concepção em que o sexo é um dado orgânico em
que serve de receptáculo às simbologias culturais do gênero, as análises que tentam construir
a deficiência analogamente a esse sistema sexo\gênero tendem a pensar o corpo como um
dado estanque em seus atributos ‘deficitários\disformes\disfuncionais’ - em analogia à
materialidade do sexo (genitália) - e a deficiência como a atribuição simbólica às lesões (dado
orgânico corporal). Por outro lado, aquelxs que não polarizam gênero e sexo em suas análises,
tendem a problematizar a materialidade corporal deficiente (aquela considerada
‘deficitária\disfuncional\disforme’ em alguma dimensão - principalmente dentro de discursos
institucionais e culturais) como correlata e indissociável das relações de poder e discursos
autorizados sobre como o corpo deve ser. Desse modo, tentarei rapidamente pontuar como
certa teoria queer, principalmente àquela articulada pelo teórico Robert Mcruer, que se
encontra com o marco teórico dos disability studies, ambos os campos perpassando por
determinadas bases de pensamento feministas, têm sido profícuas para problematizar
historicamente o estatuto natural e fixo do ‘sujeito deficiente’.
Palavras-Chave: teoria queer; disability studies; corpo; relações de gênero; sexualidade
GENERIFICAÇÃO DOS CORPOS DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO
INFANTIL E TEORIA QUEER: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO
João Rodrigo Vedovato Martins
[email protected]
CAPES/DS
Universidade Federal de Santa Catarina
Mestrando em Antropologia Social
A presente pesquisa tem por objetivo analisar a generificação dos corpos das crianças na
educação infantil de acordo com as categorias binárias de gênero masculino-feminino e de
sexo macho-fêmea que fundamentam e estabelecem a reprodução da matriz heterossexual no
modelo de educação vigente. Para compreender tais questões o aporte teórico utilizado advém
dos/as autores/as pós-estruturalistas, principalmente Michel Foucault e Judith Butler, e de
outros/as que trabalham com conceitos transversais. Trata-se, portanto, de usar pontualmente
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
os escritos de Foucault sobre biopoder na intersecção com as problematizações sobre gênero,
sexo e sexualidade de Butler. Essa perspectiva teórica intenta ajudar na compreensão das
relações estabelecidas entre educadores/as e crianças no âmbito da educação pública infantil,
evidenciando os dispositivos e estruturas que regulam, normatizam, constituem e constroem a
identidade de gênero e sexuais. Assim, destaca-se a indagação de Berenice Bento ao estudar
individualidades que perfomam gênero de forma não hegemônica, fugindo das normas de
gênero. Desenvolve-se inicialmente uma apresentação dos debates acerca do conceito de
socialização infantil, seus usos, limites e potencialidades, e sua intersecção com questões de
sexo, gênero, sexualidade e desejo. Em seguida, anuncia-se a orientação teóricoepistemológica da pesquisa – a Teoria Queer – em particular as contribuições de Judith Butler
com o conceito de performatividade e de Michel Foucault de biopoder, acarretando a
reconfiguração uma série de práticas políticas e produções acadêmicas sobre gênero sob um
viés pós-estruturalista. Por fim, elucida-se as problemáticas da educação infantil a luz dessa
perspectiva, problematizando as relações entre crianças e professoras/es, as quais estão
pautadas num modelo de sexualidade hegemônica, naturalizada e pressuposta como universal
– a heterossexualidade.
Palavras-chave: Infância; Gênero; Teoria Queer.
QUESTÕES DE GÊNERO E ‘CAPACITISMO’ NO ESPORTE:
UMA COMPREENSÃO CRÍTICA DAS PRÁTICAS ESPORTIVAS
Wagner Xavier de Camargo
[email protected]
Bolsista FAPESP
Pós-doutorando junto à Antropologia Social,
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
O universo esportivo é, via de regra, edificado sobre a heteronormatividade (regime em que
toma a heterossexualidade como norma) e sobre a corponormatividade (pressupõe-se corpos
hábeis ou não deficientes como legítimos para as práticas esportivas). Partindo-se da leitura
crítica destes critérios eletivos, o presente trabalho problematiza algumas práticas esportivas
específicas, convencionais e não-convencionais, buscando dissonância e dissidência de corpos
atléticos nos quesitos sexualidades e performance corporal frente às mesmas. Pretendeu-se: a)
problematizar as questões de gênero presentes em manifestações corporais e esportivas de
determinados grupos, identificando como que os discursos formadores da
heteronormatividade atuam como legitimadores do ethos das mesmas; b) desvelar
problemáticas sobre o corpo normativo em vigor nas mesmas práticas, debatendo discursos e
posturas que valorizam corpos normativos em detrimento de corpos outros, presentes também
nos esportes.
Palavras-chave: Heteronormatividade; Questões de gênero; ‘Capacitismo’; Esportes
O CREPÚSCULO DAS DEUSAS
Rodolfo Moraes Reis
59
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
[email protected]
Universidade de Brasília – mestre em Antropologia Social
Neste trabalho pretendo discutir as construções de gênero que incidem sobre as narrativas
midiáticas a respeito das trajetórias públicas de envelhecimento de algumas personalidades
femininas brasileiras: Suzana Vieira, Betty Faria e Marieta Severo. Farei isso a partir da
análise de um conjunto de textos publicados em revistas e sites de notícia nacionais ao longo
da última década. Procurarei explorar como as categorias de geração, idade e status sociais
são articuladas com a noção de feminilidade, produzindo especificidades próprias da
intersecção destes diferentes marcadores sociais. Destaco os seguintes pontos de discussão: a
valorização da dimensão estética e corporal na composição do envelhecimento feminino; a
ideia de declínio e interdição da sexualidade feminina após a menopausa e maturidade; e o
posicionamento destas mulheres e suas relações afetivo-sexuais dentro de uma matriz de
sentido em que a família se impõe como um valor social hegemônico. No campo dos estudos
sobre o envelhecimento nas Ciências Sociais tem sido analisada frequentemente a ascensão da
ideia de ageless, ressaltando-se o que seria uma tendência processual de diluição ou
embaralhamento das fronteiras etárias em termos identitários e comportamentais. Nesse
sentido, em um alinhamento com um repertório ideológico individualista, haveria cada vez
mais espaço para que os indivíduos vivenciassem experiências e trajetórias de vida que não
mais seriam sumariamente submetidas a um enquadramento etário definido e inflexível.
Pretendo problematizar esse modelo de aparente liberalidade, que surge ora como recurso
analítico ora como um discurso “nativo”, confrontando-o com as narrativas acerca da
maturidade de algumas figuras midiáticas femininas de amplo reconhecimento público no
contexto brasileiro, em que códigos morais tradicionais sobre a sexualidade se sobrepõem ou
se confrontam, explicitamente ou nas entrelinhas da composição textual, com um registro de
maior individualismo em relação ao envelhecimento.
Palavras-chave: gênero; envelhecimento; corporalidade; sexualidade; mídia.
NO MUNDO DO PRAZER: UMA EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA NO
CINE-REGINA
Ulisses Gonçalves de Oliveira
[email protected]
PROGRAD/UFMG
Universidade Federal de Minas Gerais
graduando em Antropologia
O presente trabalho trata-se de reflexões acerca de uma experiência etnográfica em um
cinema pornô da cidade Belo Horizonte - o Cine Regina. Este espaço foi usado para exibição
de filmes convencionais em meados do século XX e agora tem sido reapropriado para a
promoção do lazer sexual. Esse processo é similar ao que ocorreu em diversos cinemas de rua
da cidade. Diante disso, busco analisar as relações estabelecidas entre os frequentadores,
majoritariamente do sexo masculino, que recorrem a este espaço em busca de práticas sexuais
com pessoas do mesmo sexo por intermédio do estímulo audiovisual. Na descrição
60
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
etnográfica busco identificar códigos e símbolos que, articulados, compõem e mantêm o
circuito da pegação. Tendo em vista que tais espaços possibilitam a subversão anônima da
normatividade dos papéis de gênero, procuro entender como a discricionariedade mediada
pelo mercado privado é vivenciada pelos frequentadores. Em suma, uma problematização
sobre a regulação social das práticas sexuais e o crescimento e diversificação do mercado do
sexo, buscando aferir se tal fenômeno reforça ou de fato questiona tal regulação.
Palavras chave: cinema pornô, mercado do sexo, Heteronormatividade
SOBRE A CATEGORIA DE POLICIAL FEMININA: EXPLORANDO A
CONSTRUÇÃO NATIVA
Talita Cristina Costa
E-mail: [email protected]
Graduação - Ciências Sociais (UFSCar)
Neste trabalho, tenho como objetivo tecer análise sobre como um grupo de mulheres policiais
se enquadra e reafirma na categoria nativa de policial feminina, a partir de uma entrevista
realizada com um grupo de mulheres pertencentes ao Décimo Terceiro Batalhão da Polícia
Militar do Interior na cidade de Araraquara. A categoria de policial feminina foi criada a
partir da inserção de mulheres na Polícia Militar, no estado de São Paulo em 1970. No
contexto, policial feminina era escrita em suas fardas sob a sigla de Pfem, sendo que
recentemente a distinção entre feminino e masculino não é mais usada na farda, mas a
categoria prevalece. Diferentemente de grande parte da bibliografia que fixa essa categoria,
ela emerge a partir de contextos específicos construídos historicamente pelas mulheres dentro
da instituição. Segundo elas, em público é necessário agir “como homem” para se impor e
serem respeitadas sem, no entanto, deixarem de ser, em sua maioria, mães de família
responsáveis pelos maridos e filhos. Segundo a fala nativa “a partir do momento que você
veste o uniforme você se torna policial, independentemente se é homem ou mulher”.
Palavras-chave: Policial feminina; Polícia Militar; Relações de gênero
“SÓ A FIEL VAI ATÉ O FIM”: NEGOCIAÇÕES E INVESTIMENTOS
DAS CUNHADAS
Jacqueline Ferraz de Lima
Mestre em Antropologia Social – PPGAS/UFSCar
[email protected]
Diante das negociações e das variações de condutas evidenciadas entre as cunhadas (mulheres
que visitam seus maridos presos em cadeias de domínio atribuído ao Primeiro Comando da
Capital - PCC), a proposta desta apresentação é abordar os investimentos mobilizados por
estas mulheres que privilegiam suas vontades, seus desejos e seus anseios, face aos de seus
maridos. Investimentos que, como se verá, não concretizam embates, desgastes ou riscos
aparentes aos seus relacionamentos e projetos conjugais/familiares. Assim, por meio da ideia
de “meter o louco” enunciado pelas cunhadas com frequência, sugiro a configuração de um
efeito-resistência. Sugestão que, de modo interino, contesta a possibilidade de coexistência
61
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
com mulheres consideradas “submissas”, cuja existência é recorrentemente lembrada entre as
visitas. Explorar esta aparente contradição promovida pelo foco da análise no estado
intencional indissociável às práticas das cunhadas tem, portanto, a intenção de refletir sobre a
noção de submissão, a partir dessa experiência específica de pesquisa entre as mulheres que
assiduamente visitam seus maridos presos em estabelecimentos prisionais do PCC.
“AMOR É ASSUNTO DE MULHER”: RELAÇÃO DE GÊNERO E
EMOÇÕES EM LETRAS DE RAP
Sandra Mara Pereira dos Santos
[email protected]
UNESP- campus de Marília
Doutoranda em Ciências Sociais
Durante meus estudos sobre rap (estilo musical do movimento Hip-Hop) no Brasil, lancei
meu olhar sobre os veículos de comunicação que vinculam o rap, bem como sobre os eventos
para a expressão desse estilo musical. Tal olhar revelou que a quantidade de cantores do sexo
masculino é bem maior que o número de mulheres cantando rap no Brasil. Além disso,
observei a frequente associação realizada pelos jovens que ouvem rap entre amor conjugal e
mulher. Para refletir sobre os motivos dessa menor quantidade e ligação feita por esses jovens
entre mulher e amor conjugal, escolhi analisar a relação de gênero e a representação de amor
heterossexual nesse estilo musical. Penso que estudar o modo como esse tipo de amor é
pensado no rap revela alguns dos motivos da desigualdade na quantidade e nas práticas
sociais desses compositores no rap brasileiro. Ainda, analiso que existe no rap a ideia na qual
o amor amoroso é associado ao feminino e também a dimensão biológica e irracional do amor
e, por isso, ambos possuem menor valor cultural para a transformação de valores e atitudes
de jovens das periferias do Brasil. Vejo o modo como no rap o amor pode estar em mais de
uma esfera da vida, assim há momentos que ele é pensado pelos cantores(as) no campo do
biológico, do cósmico e do mundo profano, sendo as duas primeiras dimensões do feminino e
a última do masculino. Nesta pesquisa interpreto letras de rap sobre esse tema e realizo
diálogos informais sobre amor conjugal via facebook com cantores e cantoras de rap do
Brasil; e ainda desenvolvo pessoalmente entrevistas com somente cantores(as) de rap do
Estado de São Paulo.
Palavras-Chaves: Relação de Gênero, Amor Conjugal, Emoção, Rap.
MULHERES, RUA E PRISÃO: UMA ANÁLISE DO PERFIL DE
MULHERES COM TRAJETÓRIAS DE RUA CUSTODIADAS NA
PENITENCIÁRIA FEMININA DO DISTRITO FEDERAL
Helena Patini Lancellotti
62
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
[email protected]
UFRGS
PPGAS
Mestrando
O presente trabalho, vinculado a pesquisa “Crime de Mulheres no Distrito Federal: um estudo
longitudinal no Presídio Feminino”, realizado pela Anis - Instituto de Bioética, Direitos
Humanos e Gênero, tem como objetivo traçar um perfil das mulheres com vivências de rua
que estavam custodiadas na Penitenciária Feminina do Distrito Federal (PFDF), no ano de
2013 e realizar uma análise acerca de suas trajetórias. Para contemplar tal análise serão
utilizados os dados quantitativos do projeto em questão, a partir dos indicadores de uso de
escolaridade, raça/cor e renda mensal anterior ao cárcere. A metodologia utilizada foi a
aplicação de um questionário estruturado para as mulheres sentenciadas. Através do recorte de
mulheres com vivências de rua – 45 mulheres dentro da amostra de 277 questionários válidos
da pesquisa – foram selecionados indicadores para se pensar como a intersecionalidade de
gênero, raça e classe podem auxiliar no entendimento de como os mecanismos de poder
atuam no reconhecimento de uma existência. Com base na pesquisa foi possível identificar
um perfil de mulheres presas que já tiveram vivências de rua: mulheres vítimas de violência
doméstica, negras, com baixa escolaridade, constante uso de drogas e reincidência no regime
prisional. O objetivo do artigo é o de demonstrar como tais categorias nos ajudam a pensar
sobre quem são essas mulheres que estão atrás das grades no Brasil e o quanto a soma dessas
marcas em um mesmo ser contribuem para a precariedade da sua existência.
Palavras- chave: Presídio feminino; Mulheres com trajetórias de rua; Mulheres presas
A IGREJA PRIMITIVA E O TEMPLO MODERNO: LIDERANÇA
FEMININA E O CARISMA PROFÉTICO NA ADESÃO
NEOPENTECOSTAL BRASILEIRA
Ana Cândida Pena Vieira Pinto
[email protected]
Mestre em Antropologia Social
Universidade de Brasília
O artigo tem como objetivo observar a ampla diversidade neopentecostal brasileira em função
do crescimento progressivo de lideranças femininas, assim como as transformações pelas
quais o movimento passou nas últimas décadas e o constante processo de ruptura e
reagrupamento de novas igrejas. A partir da observação de outros espaços religiosos, que não
o templo institucionalizado, busca-se entender as diferentes formas de adesão religiosa
atualmente, em um contexto de pouca disciplinarização doutrinária, assim como o surgimento
de lideranças carismáticas e seus diferentes níveis de burocratização e emocionalidade. A
etnografia busca relacionar os espaços dos “montes de oração” como privilegiados para o
contato dos fiéis com o mundo natural e sagrado, assim como legitimadores da negação de
alguns religiosos ao instituído. Por parte das lideranças há uma apropriação complexa do
protestantismo contemporâneo, permitindo interiorizar a experiência religiosa e experimentá63
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
la localmente na interpretação dos sinais do Espírito Santo. Neste contexto, os “dons do
espírito” são moeda de legitimação espiritual e terrena, especialmente para mulheres que
buscam nestes espaços uma proeminência dificilmente encontrada nas grandes congregações
cristãs e outros espaços sociais seculares. A perspectiva de repensar a religião permite às
mulheres pensar um “feminismo com Deus”, que ao invés de apontar contradições lógicas ou
históricas, foi justamente o ponto de encontro pragmático entre crenças tradicionais e
modernas. A escolha por pequenos grupos religiosos, localizados em contextos periféricos e
que tinham mulheres como lideranças, neste trabalho se pretende um recorte político, e que
assim combatesse análises genéricas sobre o fenômeno evangélico e a questão da
desigualdade de gênero.
Palavras-chave: neopentecostalismo, empoderamento feminino, desinstitucionalização,
montes de oração.
CAIPIRA, MULATA, SIMPATIA E GAY: REFLEXÕES SOBRE
GÊNERO, RAÇA E SEXUALIDADE NOS CONCURSOS DE MISS DAS
FESTAS JUNINAS EM BELÉM – PARÁ
Rafael da Silva Noleto
[email protected]
Doutorando em Antropologia Social (PPGAS/USP)
CAPES
Anualmente, a cidade de Belém (PA) se torna palco para as apresentações de inúmeros grupos
de quadrilhas juninas, que compõem a programação das festas de São João realizadas na
cidade. Estas festas são marcadas por diversos concursos de dança (financiados pelos poderes
públicos ou promovidos por lideranças e/ou associações culturais das periferias de Belém)
que visam escolher as melhores apresentações coreográficas de quadrilhas durante o período
das festas juninas. Paralelamente aos concursos de quadrilhas, ocorrem também os concursos
de miss, que estão subdivididas nas categorias Miss Caipira, Miss Mulata (ou Miss Morena
Cheirosa), Miss Simpatia e Miss Gay (ou Miss Mix). As “misses”, como são popularmente
conhecidas, são dançarinas que possuem status diferenciado dentro de uma quadrilha junina,
pois são as principais representantes destes grupos coreográficos e, por este motivo, disputam
títulos de reconhecimento que estão diretamente relacionados à avaliação de sua beleza, seu
figurino e suas habilidades em dança. Antes de cada quadrilha se apresentar para um júri
especializado, as “misses” que a representam dançam e investem na conquista de um título
correspondente à sua categoria. Entretanto, a Miss Gay é a única que não dança caracterizada
como tal junto com sua respectiva quadrilha, mas possui um concurso específico para sua
categoria realizado em data diferenciada. Este trabalho visa problematizar questões relativas a
gênero, raça e sexualidade que estão imbricadas nesses concursos de miss, atentando para
como a articulação de marcadores sociais da diferença está diretamente relacionada com a
lógica de produção desses concursos.
Palavras-Chave: Festas Juninas. Gênero. Raça. Sexualidade. Concursos de beleza.
SEXUALIDADE, PATRÕES FAMILIARES E DE GÉNERO NA
64
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
CONSTITUIÇÃO DE SUBJETIVIDADES INDÍGENAS URBANAS
Waldor Federico Arias Botero
[email protected]
CNPq / Programa Estudante Convenio – Pós-Graduação
Estudante de Maestria – PPGAS/USP
A palestra que se apresentara trata sobre as transformações e permanências que se observam e
se reconhecem nos relatos de mulheres indígenas Nasa e Misak que migram à cidade de Cali,
sudoeste da Colômbia. O objeto principal é analisar como nos relatos da experiência da sua
sexualidade e o aprendizado de patrões de feminilidade, maternidade e familiais mudam como
eles são percebidos, tanto pelas mulheres nas cidades (de idades mais jovens) como pelos
homens e mulheres das comunidades de origem. São analisados nestas percepções os
marcadores da diferença social onde se entrecruzam dimensões de gênero, etnia-raça, geração
y classe social. Essas mulheres aparecem como em lugares de fronteira entre o “adentro” e o
“afuera”, dado que vivem experiências de exclusão tanto na cidade, na medida em que elas
são postas nos discursos dos homens como “indias” e “mujeres faciles”; como nas
comunidades de origem, na medida em são vistas como tem “perdido la identidad”. Essas
formas de exclusão ocultam as interessantes dinâmicas de transformação da paisagem urbano
das cidades colombianas pelas migrações indígenas rurais-urbanas, como um importante
elemento das configurações urbanas da ordem étnico-racial. Por outra parte nos retornos
dessas mulheres às comunidades (sejam por períodos ou de forma permanente), essas
mulheres começam fazer parte das inovadoras estratégias do movimento indígena
participando de forma ativa nas dinâmicas sociais, politicas e do consumo.
Palavras-chave: Sexualidade, família, subjetividades, indígenas Nasa y Misak Colombia y
migracion rural-urbana
CORPOS MARCADOS POR GÊNERO E RAÇA”: EXPERIÊNCIAS DE
MULHERES NEGRAS MILITANTES EM SÃO LUÍS – MA.
Ana Nery Correia Lima
[email protected]
FAPEMA
PPGCSo- UFMA
Mestranda
“O corpo feminino tem um “valor” e um molde, e este molde não é o do corpo da mulher
negra”. As marcações de gênero e raça na produção das identidades, que são múltiplas e
diversas constroem representações em torno de eu e do/a outro/a. Nessa relação, entre a
produção da representação de si e do/a outro/a, as intersecções de gênero e raça, entre outras,
demarcam esses corpos, construindo um mosaico de experiências em cada sujeito/a. Este
trabalho tem como objetivo fazer uma análise da (re)produção das identidades marcadas pelo
gênero e pela raça partir dos relatos de mulheres negras militantes do Grupo de Mulheres
Negras Mãe Andresa em São Luís do Maranhão, demarcando suas experiências
históricas/pessoais no contexto das suas movimentações em torno do embate ao racismo e
65
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
machismo. Utilizo como base para esse texto os pensamentos Avtar Brah que apresenta
argumentos para compreender a racialização do gênero e os contornos que ainda fazem da
“raça” um marcador inerradicável de diferença social, Franz Fanon e Neusa Santos Souza que
ajudam a compreender o “ser e tornar-se negro/a” entre outros/as. É possível observar que o
universo pesquisado denota a existência explícita de uma vivência marcada pela
discriminação racial e de gênero, que são submetidas às mulheres negras. Essas
consequências são visíveis nas experiências vivenciadas por essas sujeitas e atravessam suas
trajetórias de vida marcando as representações que constroem de si mesmas a partir dessas
vivências. É através dessa marcação identitária, que essas mulheres constroem estratégias de
buscas por seus direitos e por reconhecimento. Por vias múltiplas reconstroem e resignificam
o preconceito ou recusam os lugares menos favorecidos a que são submetidas na maioria das
vezes. Travando disputas e construindo outros caminhos essas sujeitas se utilizam das
mesmas marcas identitárias que as discriminam para recompor e positivar essas
representações.
Palavras-chave: Mulheres Negras. Mãe Andresa. Marcações identitárias.
ENTRE AS CONEXÕES DAS MARCAS SOCIAIS DA DIFERENÇA: MULHER,
NEGRA E LÉSBICA
Fernanda Kalianny Martins Sousa
[email protected]
FAPESP
PPGAS-USP
Mestranda
A presente pesquisa de mestrado centra-se na trajetória de Leci Brandão. Mulher, negra,
lésbica, compositora e deputada estadual de São Paulo, com aproximadamente 39 anos de
carreira, 21 álbuns e 2 DVDs gravados, Brandão destaca-se por sua trajetória ser
contextualmente marcada pela chegada a alguns postos que não comumente eram/são
ocupados por mulheres e por momentos em que se colocou de forma peculiar. Dentre eles,
podemos destacar: o fato de ter sido a primeira mulher a ingressar na ala de compositores da
Mangueira; uma das primeiras artistas da Música Popular Brasileira a declarar-se lésbica; ter
rompido o contrato com uma gravadora multinacional por discordarem do conteúdo político
de suas canções; e, por fim, ser deputada estadual de São Paulo, desde 2010. Partindo do
entendimento que as marcas sociais da diferença – raça, gênero, sexualidade, classe, idade,
entre outros – podem ser pensadas como indicadores da forma que as distribuições de poder
serão diferencialmente estabelecidas em sociedade (PISCITELLI, 1996), mas também como
categorias classificatórias que devem ser compreendidas como construções locais, históricas e
culturais, que são articuladas em sistemas classificatórios, regulados por normas e convenções
(STARLING & SCHWARCZ, 2006), buscamos pensar de que forma tais marcas aparecem
imbrincadas nas narrativas de Brandão sobre suas experiências. Para tanto, temos realizado
entrevistas profundas e justaposto às entrevistas o estudo das letras de suas canções. Nesse
momento da pesquisa, temos refletido mais precisamente sobre as relações entre gênero,
sexualidade e raça, questionando-nos de que modo mulheres negras e lésbicas, como nosso
66
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
sujeito de estudo, podem se pensar e/ou ser pensadas, dentro de uma perspectiva em que,
segundo Collins (2005), tende-se a enxergar, dentro dos movimentos sociais e políticos,
pessoas negras como heterossexuais e todas as pessoas LGBT como brancas.
Palavras-chaves: gênero, raça, sexualidade.
DE HOMOSSEXUAL À HOMOAFETIVO SOBRE PROXIMAÇÕES AO
FAMILISMO E À ACEITABILIDADE MORAL
Ricardo Andrade Coitinho Filho
E-mail: [email protected]
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Mestre em Ciências Sociais
Esta proposta de trabalho surge como discussão, a partir da problematização da categoria
“homoafetivo”. Durante minha trajetória no mestrado, ao trabalhar com a dimensão jurídica
da prática adotiva movida por gays e lésbicas, percebi que o “homoafetivo” conceituava o
indivíduo, identificável ou autoidentificado, como gay ou lésbica, quando requeria o pleito à
adoção. No entanto, percebi que esta categoria tinha sido aderida para além do cenário
jurídico. Em outros contextos da pesquisa, ao realizar etnografia em espaços não jurídicos,
notei que muitos gays e lésbicas – que já haviam feito a adoção ou estava em vias de iniciá-la
– se auto definiam como “homoafetivos”. Assim, nessa comunicação, para compreender a
dimensão do emprego da categoria “homoafetivo”, problematizaremos as implicações do uso
e adequação à este conceito. Inicialmente, iremos apontar a questão do reconhecimento das
famílias constituídas por gays e lésbicas e as críticas feministas estabelecidas em torno destas.
Depois recobraremos a discussão sobre família e homossexualidade no Brasil, em sua
dimensão jurídico-legal, a partir de um recorte histórico-sociológico, introduzido através do
projeto de lei 1.151 de 1995 sobre a Parceria Civil Registrada até a decisão do Supremo
Tribunal Federal em 2011. Por fim, nos dedicaremos a compreender o processo de construção
do sujeito “homoafetivo” no cenário contemporâneo e sua relação às representações entre
homossexualidade, desvio e norma.
Palavras-chave: Homoafetivo. Sexualidade. Gênero. Práticas jurídicas. Teoria crítica.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
GT POLÍTICA E RELIGIÃO
68
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
PLANTAS SAGRADAS E SUAS TENSÕES SOCIAIS
Francisco Savoi de Araújo
E-mail: [email protected]
Universidade Federal de Minas Gerais, Graduação
O objetivo desta pesquisa é realizar uma análise dos processos formativos da construção
social de certas concepções que gravitam em torno do uso de determinados tipos de
psicoativos. Faz uma retomada histórico-antropológica, começando pela colonização de nosso
país com seu etnocídio - em que ocorreu todo um processo de tentativas e práticas de
dominação cultural europeia, incluindo aí a perseguição às crenças e ritos entre os ameríndios,
bem como a seus sacramentos. Na continuidade, chega ao panorama mais recente de
emergência da indústria farmacêutica nos séculos XIX e XX e a constituição da classe
médico-científica, com sua intenção de monopólio sobre as assim denominadas “drogas”,
contando aí com toda a carga pejorativa que este termo permeado de ambiguidades carrega.
Vê-se como, analisando os fatos, este monopólio se justifica, conferindo inclusive privilégios
lucrativos aos seus detentores. Tal feito (o monopólio) se fundamenta, dentre outros fatores,
na condenação atribuída pelos cientistas biomédicos e, consequentemente, por grande parcela
da sociedade como um todo, ao consumo - em determinados grupos - de algumas qualidades
especiais de substâncias, como certos tipos de plantas psicoativas, associando-o com quadros
psicopatológicos do usuário. Em contrapartida, mostra-se como o “consumo socialmente
integrado” destas substâncias, com todo seu simbolismo, pode não ser um problema social,
trazendo diversos benefícios pessoais e sociais aos indivíduos, como bem se observa na
religião do Santo Daime, foco deste trabalho. Constata-se como o “problema da droga” assim definido pela bibliografia especializada – é socialmente construído, sendo necessária
uma perspectiva que considere a totalidade do contexto no qual dada substância está inserida.
Palavras-chave: drogas; religião; ritual; categorias culturais.
ENTRE CUIDADOS: UMA ETNOGRAFIA DA GESTÃO DE
ADOLESCENTES NA INTERSECÇÃO ENTRE DISCURSO
RELIGIOSO E FORMAS ESTATAIS
Evandro Cruz Silva
[email protected]
UFSCar
Graduando
Esta apresentação pretende inserir-se no debate bibliográfico sobre a gestão dos sujeitos
juridicamente classificados como “adolescentes em conflito com a lei”. O objetivo deste
trabalho será analisar a confluência entre discurso religioso e formas estatais de gestão a partir
da observação cotidiana das técnicas pedagógicas empreendidas em um programa de medidas
socioeducativas. Empiricamente, a unidade de observação serão as práticas cotidianas de
atendimento a jovens conflito com a lei presentes no Programa de Medidas Socioeducativas e
Prestação de Serviço à Comunidade da Obra Salesianos de São Carlos/SP.A hipótese aqui é a
da existência de uma afinidade de objetivos entre a conversão religiosa e as medidas
69
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
socioeducativas no que se refere ao processo de conversão do sujeito em relação ao seu status
anterior e a execução de uma séria de técnicas para se manter o status presente criando no
corpo do sujeito uma trajetória de ascensão moral. Estas afinidades seriam o eixo que orienta
a aliança entre formas estatais de gestão e discurso religioso na produção de técnicas
pedagógicas e dispositivos de gestão de “adolescentes em conflito com a lei”.
Palavras Chave: Assistência Religiosa, Gestão da Violência, Medidas Socioeducativas,
Adolescentes em Conflito com a Lei, Estado.
DEUS E O DIABO NA TERRA DO CRACK: NOTAS
ETNOGRÁFICAS DA COSMOPOLÍTICA BATISTA
Deborah Fromm
[email protected]
CAPES
Mestranda em Antropologia Social
(PPGas/ IFCH – Unicamp)
Em torno do aumento do consumo de crack e da proliferação das chamadas “cracolândias”
por todo o país, se estabeleceu um campo de disputa entre uma série de sujeitos, instituições e
saberes, de modo que diversas tecnologias e práticas de repressão, vigilância e cuidado tem
sido acionadas, assim como diferentes esferas da vida social (saúde, assistência, repressão,
família etc.) vem sendo mobilizadas. Com a criação pelo governo federal da Política Nacional
de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, cujo mote é “Crack, é possível vencer”, além de
constantes operações estaduais em cenários de uso, o crack tem assumido uma posição central
no que diz respeito ao controle e gestão de populações e espaços urbanos. No entanto, pouco
tem sido sistematicamente estudado acerca do crescente papel da Igreja, mais especificamente
de igrejas evangélicas, na assistência, evangelização e conversão dos chamados “noias”.
Nesse sentido, através de dois anos de pesquisa de campo na Missão Cristolândia, o presente
trabalho trata das políticas missionárias batistas no contexto específico da estigmatizada
“cracolândia”, situada na região da Luz, em São Paulo. Esse estudo pretende abordar o
modelo de atendimento e de tratamento oferecido pelo projeto aos usuários de drogas, de
modo a considerar as tecnologias e saberes envolvidos na evangelização e conversão do
público-alvo, além da forte presença de componentes territoriais no foco desta ação
missionária. Tendo em vista que para meus interlocutores evangélicos pensar a “guerra contra
o crack” não se restringe a uma política terrena entre homens, mas implica considerar um
contexto de batalha espiritual, assim como a agência de entidades em disputa pela gestão e
controle de corpos, almas e territórios, proponho pensar uma “cosmopolítica” batista de
combate ao crack.
Palavras-chave: crack; “cracolândia”; São Paulo; Igreja Batista; “cosmopolítica”.
AS REIVINDICAÇÕES DO MOVIMENTO PARQUE AUGUSTA: UM
COLETIVO DE ARTE ATIVISTA NA METRÓPOLE PAULISTANA
Agel Teles Pimenta
70
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
[email protected]
PGEHA.-USP
Mestranda
Prof. Dr. Arthur Hunold Lara
[email protected]
Neste artigo será descrita uma experiência etnográfica sobre o coletivo Parque Augusta. A
pesquisa de campo ocorreu no primeiro semestre de 2013, investigando esse coletivo de arte
ativista que luta pela não construção de prédios em uma área que detêm o último resquício de
mata atlântica no centro da metrópole paulistana. O objetivo é entender a luta do coletivo e a
relação com a ressignificação dos espaços públicos. Como se desenvolve o favorecimento de
interesses privados no panorama contemporâneo das cidades e contextualizar as ideologias do
coletivo, que criticam as normas do atual modelo operante. Serão utilizadas as reflexões de
David Harvey sobre as forças econômicas e os entraves políticos dentro do modo de produção
capitalista e as consequências no espaço urbano devido a uma lógica de livre fluxo de
mercadorias e serviço.
Palavras-Chave: arte contemporânea, arte ativista, Coletivo Parque Augusta, ressignificação
do espaço público, modo de produção capitalista.
CONSTRUINDO “ENCONTROS”: MOVIMENTOS SOCIAIS, RITUAIS
E POLÍTICA
Marcela Rabello de Castro Centelhas
[email protected]
CAPES
PPGAS/MN/UFRJ
Mestranda
A partir da década de 1980, alguns autores sinalizam para um processo de pluralização dos
movimentos sociais no campo brasileiro. Há uma alteração considerável nos padrões de ação
das organizações rurais, bem como nas suas “categorias de mobilização”. Esse mesmo
processo de pluralização é acompanhado, no entanto, pela intensificação de uma modalidade
de organização política destes mesmos movimentos rurais que são os “encontros”. Estes se
caracterizam, em linhas gerais, por eventos no qual se reúnem representantes de diferentes
movimentos sociais e que de alguma forma se relacionam com a ideia de construção de uma
“unidade de lutas”. Geralmente quando analisada enquanto problema sociológico e/ou
político, a “unidade” ou “unificação” das lutas sociais é associada ao mecanismo formal de
produção de consensos em espaços deliberativos dos quais esses coletivos participam. Nessa
perspectiva, acaba por perder-se algo fundamental, que é como essa “unidade” ou
“articulação” são criadas, recriadas e alteradas nos contextos vivenciados, isto é, a dimensão
da prática. Para entender como a “unidade das lutas” ou a “união” são agenciadas e
produzidas, tomaremos estes “encontros” enquanto rituais políticos, isto é, como momentos
que se destacam do cotidiano por gerar intensificação da vida social e nos quais ação social e
cosmologia estão intimamente relacionadas. Desta forma, buscaremos compreender não
71
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
somente o que deles surge como produto final, mas todo o fazer destes espaços. A questão
não é tomá-lo de antemão como um lugar da “política”, da “luta” ou da “união” – usando
palavras muito comuns destes eventos – mas entender como estas dimensões são produzidas,
praticadas, percebidas e sentidas nos espaços em questão. Para tanto, procuraremos situar
esses “encontros” dentro do processo histórico de “pluralização” – “unificação” das
organizações rurais, bem como discutiremos alguns dados etnográficos a luz da abordagem
dos rituais, mostrando em que ela pode contribuir para compreensão da construção dessa
“unidade”.
Palavras-chave: movimentos sociais; “unidade”; rituais; política.
ANÁLISE SOCIOLÓGICA DA EVOLUÇÃO DA IGREJA CATÓLICA
NO BRASIL
José Carlos Pereira
[email protected]
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/Doutor
Nos últimos dez anos despontou-se no Brasil uma nova configuração nos quadros da Igreja
Católica. Por um lado temos os resultados das pesquisas censitárias (IBGE) mostrando a
diminuição no número de católicos. Por outro, os dados das pesquisas do CERIS mostrando
um avanço e um crescimento no número de paróquias, bem como a expansão do catolicismo e
áreas onde antes a Igreja Católica não tinha muita representatividade. Diante desses dois
quadros, aparentemente antagônicos, desenvolvo aqui uma reflexão, com base em pesquisas
de campo, mostrando que esses dois resultados não são totalmente conflitantes e que ambos
os Institutos de pesquisas revelam, a sua maneira, dados que contribuem para o entendimento
do atual mapa da Igreja Católica no Brasil e a sua evolução, que passa mais pelo aspecto
qualitativo do que quantitativo.
Palavras chaves: comunidade, sociedade, catolicismo, mudanças, desigualdade.
ENTRE OVELHAS E LOBOS: UMA PERSPECTIVA ETNOGRÁFICA
ENTRE RELIGIÃO E POLÍTICA NA ASSEMBLEIA DE DEUS
Estêvão Barros Chaves
[email protected]
Graduando em Ciências Sociais/UFSCar
FAPESP
Esta pesquisa tem por objetivo examinar, a partir de um ponto de vista antropológico, os
aspectos político-eleitorais presentes entre os fieis de uma Igreja Evangélica Assembleia de
Deus no interior do estado de São Paulo. Através de pesquisa de campo feita nos últimos três
meses, a análise é pensada a partir das construções argumentativas elaboradas por líderes,
pastores e fieis que justificam, explicam ou condenam a presença e o apoio de evangélicos na
política. Os dados etnográficos serão analisados a partir da bibliografia da antropologia de
religião e da antropologia da política, principalmente dos estudos do Núcleo de Antropologia
da Política (NuAP). As observações apontam para o papel central do conflito na concepção
72
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
cosmológica dos fieis, sendo que principalmente a separação entre igreja e mundo secular é
mobilizada a todo o momento, produzindo uma divisão radical entre “as coisas do mundo” e
as coisas de Deus”. Nesse contexto etnográfico surge, ao se falar em política, uma aporia, já
que a igreja deve lidar simultaneamente com sua própria cosmologia (que separa a igreja e o
mundo) e com a política (mundana). A pesquisa, portanto, busca analisar quais são os
processos para que no interior de uma ontologia (no sentido religioso) cristã a política seja
aceitável e, no limite, necessária à própria Igreja.
Palavras-chave: Antropologia da política; Antropologia da religião; Assembleia de Deus;
Eleições.
NEOPENTECOSTALISMO E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: A
DICOTOMIA ELEITORAL EMOTIVIDADE-RACIONALIDADE ENTRE
FIEIS JUIZ-FORANOS
Daniel de Oliveira Medeiros Ribeiro
[email protected]
UFJF – graduando em Humanidades
O presente trabalho teve por finalidade compreender o comportamento eleitoral de
determinado grupo neopentecostal na cidade de Juiz de Fora. Para tanto, foram realizadas
entrevistas semiestruturadas com fieis de uma filial da Igreja Universal do Reino de Deus,
num bairro central de classe-média, sobre a participação dos evangélicos na política. O ponto
chave do trabalho foi classificar exaustivamente os termos coletados em campo em categorias
dicotômicas, observando os que tenderiam mais à "racionalidade" e aqueles que, por outro
lado, poderiam ser relacionados à "emotividade". Desse modo, minha análise, naturalmente,
não teve como fim verificar se os entrevistados, de fato, agem de maneira "emocional", mas,
antes, que tipo de argumentos acionavam para justificar as candidaturas escolhidas.
Considerei, para isso, o crescente distanciamento entre partidos e eleitores, nos dias atuais, em
que as estratégias eleitorais repousam sobre a “personalidade dos líderes” (Manin, 1995). Na
mesma linha, observei o conceito de Hanna Pitkin (1969) de “representação simbólica”,
centrada em líderes que possam gerar “reações irracionais e afetivas nas pessoas”. A partir
dessas ideias, analisei os dados de campo com base, principalmente, nas ideias weberianas de
“emotividade das massas” e “liderança carismática”. Ao término, verifiquei que, em sua
maioria, os fieis daquela igreja tendem a justificar seus votos com base em termos
classificados como "racionais", ao contrário do que se poderia esperar, dada a base teórica
utilizada. Não obstante as limitações de uma classificação dicotômica do amplo espectro de
respostas coletadas em campo, este trabalho possibilita, pela simplificação, a clara
visualização e o entendimento eficaz de como o pequeno universo pesquisado percebe a
política eleitoral e como justifica seu voto, nos termos da dicotomia "emotividaderacionalidade". Este trabalho pode ser lido em contraste com outros: pesquisas se multiplicam
acerca deste ainda recente objeto, de importância fundamental para esclarecimento do atual
cenário político brasileiro.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Palavras-chave: comportamento eleitoral; participação política; liderança carismática;
racionalidade; neopentecostalismo.
NA COVA DOS LEÕES: FRONTEIRAS E CONTRADIÇÕES ENTRE
ADVENTISMO E POLÍTICA
Allan Wine Santos Barbosa
[email protected]
FAPESP
Graduando em ciências sociais – UFSCar
O debate antropológico sobre as interações e articulações entre política e religião vem
ganhando cada vez mais força na disciplina. No Brasil, especialmente por conta da crescente
inserção de candidatos que se definem por posturas vinculadas a diferentes denominações no
cenário político. Através de uma perspectiva inversa da que geralmente permeia a discussão,
este trabalho enfoca as razões e valores que levam a uma igreja recusar-se a se inserir na
política. Fazendo uso de uma literatura que toma como eixo analítico as inúmeras interações
entre o mundo e o domínio transcendente na cosmologia dos fiéis, busca-se trabalhar aqui os
discursos, práticas e doutrinas da Igreja Adventista do Sétimo Dia para permanecer como uma
instituição apartidária, ao mesmo tempo em que busca a disseminação de uma vasta gama de
valores e ideais para toda a sociedade na qual se insere. Outro ponto de interesse deste
trabalho é o constante processo de negociação entre uma dimensão formalista que pauta o
posicionamento da igreja e os dilemas e conflitos que turvam as fronteiras entre o público e o
privado, transcendência e mundanidade, crença e experiência, na vida do fiel. Por fim, tais
reflexões são inseridas no contexto cosmológico maior do adventismo, a saber, a forte ênfase
na proximidade do apocalipse e da volta de Cristo, além, claro, da fundamental questão do
processo de salvação da pessoa, que suscita interessantes discussões sobre o quanto o fiel
pode ou deve se envolver numa dimensão que oferece constantes riscos ao indivíduo cristão
por se encontrar no limiar entre fé e pecado, como é o caso da política.
Palavras-chave: cristianismo, política, transcendência, mundanidade, fronteiras.
NA CIDADE DE SOBRAL: A POLÍTICA NO BECCO DO COTOVELO
Antonia Laureano CARNEIRO
[email protected]
FUNCAP
UECE
Mestranda
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
O objeto de estudo aqui proposto parte da motivação em compreender os sentidos e
direcionamentos do voto ao então governador do Estado do Ceará, Cid Ferreira Gomes.
A política aqui evidenciada é tomada a partir de uma perspectiva ampla não sendo
caracterizada pela análise de instituições sociais, mas a partir das manifestações de interesses
e escolha do voto dos sujeitos. Ao falarmos em política, procuraremos neste trabalho
identificar o perfil dos eleitores do Governo Cid Ferreira Gomes buscando compreender a
perspectiva ‘nativa’ do que é política e como essa definição resulta nas escolhas individuais.
Para tanto, buscaremos compreender: Qual o perfil dos eleitores de Cid Ferreira Gomes? Há
alguma relação entre o voto em Cid Ferreira Gomes e o fato dele ser sobralense?
Palavras-chave: voto, Cid Ferreira Gomes, motivação, sobralense.
OS USOS POLÍTICOS DA FESTA: RELIGIÃO E POLÍTICA
FESTEJAM O SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
Francisco Jomário Pereira
E-mail: [email protected]
Universidade Federal de Campina Grande- Mestre
Nossa política é rica de significados, símbolos e rituais, assim, nosso trabalho visa apresentar
resultados obtidos durante nossa pesquisa desenvolvida no Mestrado em Ciências Sociais.
Nossa pesquisa foi realizada durante os anos de 2012 e 2013, tendo como campo de estudos a
cidade de Santa Cruz, localizada no sertão paraibano, o objeto estudado foi a festa dedicada
ao Sagrado Coração de Jesus e as relações políticas que existem antes, durante e depois da
mesma. Observamos a posição adotada pelos políticos na festa, mostramos como os mesmos
se movimentam durante o leilão, e quais estratégias podem e devem ser usadas na tentativa de
construir seu capital político e social. Tentamos construir e analisar ainda o perfil do então
pároco da cidade, Djacy Brasileiro, buscando compreender como as mudanças realizadas por
ele na festa proporcionaram novas estratégias de circulação dos políticos durante a mesma.
Com as mudanças realizadas pelo padre, pudemos analisar como é de extrema importância a
realização dos leilões para a distribuição de bens simbólicos, chegando a compreensão de que
o leilão é o coração da festa de padroeiro, assim, durante nossa incursão a campo, focamos
nas mudanças na festa do Sagrado Coração de Jesus, e como as mesmas podem afetar a
política local. Por fim, ainda conseguimos observar como a prática política é feita durante a
festa do Sagrado Coração de Jesus.
Palavras-chave: Festa. Religião. Política. Sagrado Coração de Jesus.
A RELIGIÃO EM UM MANDATO PARLAMENTAR
Caroline Mendes dos Santos
E-mail: [email protected]
FAPESP
UFSCar
Graduação
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Está proposta de trabalho é um esforço de análise sobre as imbricações da religião dentro da
politica. Todos os dados decorrem de campo realizado há quase dois anos e o modo de análise
é baseado sob a ótica da antropologia da política. O foco de minha pesquisa é a atividade
parlamentar de Renato (nome fictício), um vereador que se elegeu com a bandeira política da
educação, isto é, sem vinculações com religiões ou igrejas. Porém, são nítidas em seu
cotidiano referências religiosas, como por exemplo, o crucifixo em seu gabinete. Outro
exemplo dessa imbricação (religião e política) são as exigências de padres e de pastores que
fazem pedidos de emendas parlamentares para realização de festas religiosas. Há uma
diferença desse mandato em relação a outros que se elegem como representantes de Deus na
política, porque a população que vai ao gabinete de Renato é mais diversificada daqueles que
são representantes exclusivamente de igreja ou religião. O vereador por estar em um partido
que ele considera de esquerda busca realizar projetos e defender causas progressistas. No
entanto, apesar de todo um discurso progressista, o vereador não deixa de ser influenciado
pelas questões religiosas, pois “ter fé” parece ser um requisito importante no discurso político
independentemente da bandeira política que o parlamentar levanta em campanha e durante o
mandato.
Palavras-Chave: política, religião, mandato parlamentar.
O PROCESSO DE UNIVERSALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ
Gracila Graciema de Medeiros
[email protected]
Universidade Federal da Paraíba - Mestranda
Na África, em seu período colonial, a organização das sociedades dava-se por tribos e clãs,
formando assim os grupos étnicos, sendo que cada qual possuía o seu deus tribal. A diáspora
separou esses grupos, dispersando-os pelo Novo Mundo, e que a escravidão como força
plasmadora, reuniu-os sobre um mesmo território. Nas senzalas brasileiras, o processo
diaspórico efetuou-se como “tradução” de elementos culturais diferentes, levando ao
surgimento do candomblé. Uma religião que nasce subalterna, marginalizada e “impura”.
Contudo, atualmente, assistimos a um processo que, lenta e gradativamente, vem
universalizando-o. Nesse percurso várias mudanças no campo religioso brasileiro ocorreram
para que o candomblé, aos poucos fosse deixando de ser uma religião de minorias e se
universalizasse, agregando nos seus quadros não apenas pessoas das camadas populares, mas
também significativo contingente das camadas médias e altas, universitários,
afrodescendentes ou não. Mas o processo de universalização que o envolve, pressupõe
mudanças internas, ou seja, no seu quadro mítico e simbólico. Não é mais simplesmente uma
religião de negros, ou afro-descentes, extrapola os limites “étnicos”, de “raça” ou “nação”.
Mas ao mesmo tempo que se universaliza, vem à tona, via os movimentos organizados dos
adeptos, anseios de reafricanização da religião. Afirmando-se no campo religioso como uma
religião africana, demarcando posicionamentos políticos e indenitários, tomando para si
novamente a ideia de uma religião de negros, porém agora em um outro contexto com uma
nova roupagem para esse negro, que não significa ser negro apenas na cor da pele. A proposta
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
deste trabalho é acompanhar esse processo de universalização, e como a “desetnização” e
“reetnização” acontecem passando pela discussão de racismo no Brasil, percebendo como o
discurso político está relacionado ao candomblé.
IRMANDADE NEGRA E AS ZONAS DE NEGOCIAÇÕES
MEDIAÇÕES E DEMANDAS POLÍTICO-RELIOSAS:
Renata Nogueira da Silva
[email protected]
UnB, Doutoranda
Esse trabalho aborda certos processos de tradução das práticas congadeiras de Ituiutaba –
MG, tal como manifestos em 2010 e 2011, tendo em vista o caráter político-religioso
assumido
historicamente pelas irmandades negras. Pretendo, entre outras coisas,
compreender os modos pelos quais a Irmandade de São Benedito de Ituiutaba, instituição que
reúne e organiza os ternos e suas práticas, tem recuperado e atualizado o papel de provedora
de direitos sociais, semelhante ao que ocorria no período colonial. Sustento que ao retomar e
atualizar essas atribuições, outras funções são construídas de acordo com o contexto no qual
a irmandade se edifica na cidade. Analiso os modos pelos quais. as práticas congadeiras
têm sido transpostas e traduzidas para tempos e espaços distintos do ritual à luz das
experiências de dois projetos culturais: Petizada na Congada e Congo Filhos da Luz. As
transposições e traduções das práticas congadeiras estão associadas entre outras coisas, a sua
secularização em alguns espaços e sua conexão a outras cosmologias religiosas. Esse
trabalho é baseado na dissertação de mestrado “O poder da memória e a negociação da
memória do patrimônio: Traduções das práticas congadeiras em tempos de vivificação da
ideia de cultura” defendida em 2012/UnB.
“O FÓRUM DAS COMUNIDADES DE TERREIRO DO RIO GRANDE
DO SUL”: OLHARES ETNOGRÁFICOS SOBRE A PRESENÇA DAS
RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA NA ESFERA PÚBLICA
Rodrigo Marques Leistner
UNISINOS
Doutor em Ciências Sociais
O trabalho examina os processos de circulação dos bens simbólicos relacionados às religiões
de matriz africana na sociedade brasileira, bem como as iniciativas de negociação social e
ocupação de espaços na arena pública empreendidas pelos membros das “comunidades de
terreiro”. Por um lado, recupera-se o histórico de desenvolvimento destas religiões no país,
permeado por tensões sociais, cujos significados têm sido constantemente articulados através
de discursos que tanto propõem uma visão cristalizada dos significados da categoria
“religião” (a partir de noções que conferem diferentes níveis de legitimidade às denominações
que compõem o campo religioso do país), quanto fomentam as principais lógicas de repressão
àquelas práticas. Noutra via, busca-se analisar as atuais contrapartidas a estes discursos,
77
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
empregadas pelos adeptos das religiosidades afro-brasileiras, organizadas com base em
determinadas estratégias de legitimação social. Neste caso, a reflexão recorre a dados de
campo etnográfico oriundos da observação das atividades do Fórum das Comunidades de
Terreiro do Rio Grande do Sul, grupo de discussão e ação política composto por sacerdotes
ligados aos terreiros gaúchos, cujas iniciativas têm servido como uma espécie de “modelo”
para os propósitos de ação reivindicativa empreendidos pelos atores sociais ligados ao campo
afro-religioso em todo o país. As observações realizadas nas atividades do grupo visaram
compreender os principais formatos institucionais através dos quais suas ações políticoreivindicativas têm sido desenvolvidas, bem como os discursos identitários que balizam suas
iniciativas de inserção no espaço público brasileiro.
Palavras-chave: religiões afro-brasileiras; negociações da realidade; ações coletivas;
estratégias de legitimação.
A PRESENÇA DO DINHEIRO EM AMBIENTE RELIGIOSO, E SUA
UTILIZAÇÃO: A PROFANAÇÃO DO SAGRADO
Anderson Moreno
[email protected]
PPGCSo-UNESP
Mestrando
O presente artigo tem como finalidade apresentar uma discussão acerca da presença dos
romeiros na cidade de Aparecida-SP, visando demonstrar a concentração maciça do dinheiro
em muitos aspectos: seja na possibilidade de consumo nas diversas lojas presentes na cidade –
legalizadas, ou não –, seja na possibilidade de passeios programados existentes nas
dependências do Santuário, seja na utilização dos donativos oferecidos por fieis na
manutenção das obras e atividades promovidas administração do templo, ou ainda na
possibilidade de investimentos em grupos de telecomunicações e mídias também sob a
administração dos padres redentoristas. A corrente circulação do dinheiro se dá de maneira
notória em todos esses aspectos, e a intenção desse trabalho é reforçar a ideia da utilização
desses recursos para promover o Santuário, aumentar o número de fieis/visitantes, e de cada
vez mais aumentar os recursos obtidos. O “espírito do capitalismo” de Max Weber, e a forte
presença do “dinheiro na cultura moderna” de George Simmel farão parte dessa análise.
Também a relação sagrado e profano de Émile Durkheim ajudará na reflexão.
Palavras-chave: Santuário, dinheiro, sagrado, profano.
A FEIRA DE APARECIDA: AMBIVALÊNCIAS ENTRE RELIGIÃO,
ECONOMIA E POLÍTICA
Adriano Santos Godoy
[email protected]
FAPESP
PPGAS- UNICAMP
Mestrando
78
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
O município de Aparecida/SP é conhecido principalmente por ser sede do Santuário Nacional
de Nossa Senhora da Conceição Aparecida – o qual ostenta o título de maior santuário
católico do mundo, tanto em área construída como em fluxo de pessoas. Chamada de “capital
da fé”, essa cidade-santuário é a grande referência do catolicismo brasileiro. Acontecendo
tradicionalmente aos finais de semana e feriados, isto é, há mais de cinquenta anos, a Feira
tem as suas mais de duas mil bancas montadas no entorno dos muros do santuário, visando
justamente os romeiros que por lá transitam. Em 2013, devido a uma denúncia, feita pela
administração do Santuário Nacional ao Ministério Público, a Feira teve que ser
completamente regularizada e reformulada. Durante a minha pesquisa de campo, em que
residi na cidade por seis meses, pude acompanhar o embate político entre os feirantes, o clero
e a prefeitura na reorganização desse espaço. Indo a manifestações, assembleias e reuniões
entre os envolvidos, pude perceber que a categoria religião era usada em tom acusatório,
visando delimitar as ações de ambas as partes. Esse caso está inserido na minha pesquisa de
mestrado, em andamento, que tem como eixo principal de abordagem a problematização da
relação estabelecida entre religião, economia e política na cidade de Aparecida/SP. O que se
pretende, nessa apresentação, é uma abordagem etnográfica em que esses termos sejam
ambivalentes, em prol de uma análise antropológica capaz de contemplar Aparecida em sua
composição específica.
Palavras-chave: Catolicismo – Devoção – Santuários – Consumo
PUREZA E POLUIÇÃO: CULTO AOS ANTEPASSADOS
OKINAWANOS
Samara Konno
[email protected]
Instituição: Universidade de São Paulo – Mestranda em Estudos Culturais (EACH)
O culto aos ancestrais (Sosen Suuhai) é um elemento importante na produção da identidade
okinawana no Brasil. As práticas originais do culto têm sido retomadas desde a década de
1960, em que o desenvolvimento da globalização, junto às especificidades da comunidade
levaram a retomada da sua cultura, culminando na ressignificação e fortalecimento identitário
desse grupo no Brasil. Tal identidade está relacionada à simbologia de sangue e sêmen pelo
fato desses elementos embasarem diferenças de funções entre homens e mulheres no culto e
na própria sociedade. Assim, tem-se o culto Sosen Suuhai como uma reprodução da estrutura
social okinawana em que a patrilinearidade, expressa na simbologia de sêmen/pureza, está
relacionada com a responsabilidade do homem pelo status político/econômico da família. Por
outro lado, a simbologia do sangue/poluição acaba por engendrar elementos xamanicos que
colocam a mulher como esteio da memória familiar e da espiritualidade. Dentro desse
contexto tanto a pureza da patrilinearidade, quanto a poluição do xamanismo são elementos
que fortalecem o conceito de icharibachoode (quando nos encontramos somos todos irmãos),
importante na construção identitária/étnica dos okinawanos no Brasil.
Palavras-chaves: ancestrais; culto; gênero; identidade; Okinawa.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
TRABALHOS
COMPLETOS
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
GT TEORIA ANTROPOLÓGICA
E ESCRITA ETNOGRÁFICA:
DESAFIOS TEÓRICOMETODOLÓGICOS NA
ELABORAÇÃO DE
ETNOGRAFIAS
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
COMO ETNOGRAFAR UM MUNDO EM QUE TUDO GIRA, GERA E
MEXE? APONTAMENTOS SOBRE OS MOVIMENTOS DOS
“HABITANTES” DE PINHEIRO
Yara Alves
[email protected]
CNPq
PPGAS/USP
Mestranda
Este texto tem como objetivo mostrar os desafios antropológicos em etnografar um mundo em
que tudo está mexendo, como classificam os moradores de Pinheiro, localidade rural, autodenominada quilombola, situada no Vale do Jequitinhonha- MG. Compreender que o
movimento tem um lugar central nas diversas formas e escalas da socialidade nos coloca a
instabilidade como motor da pesquisa e da etnografia realizada. Assim, as nuanças da
circulação nos permite ir além das saídas para trabalhar, observar os vários e multifacetados
sentidos deste mundo que gira, gera e mexe, em que pessoas se inserem em idas e vindas
cotidianas, em que Pinheiro se faz como o lugar da gente. Desta forma, mais do que criar uma
totalidade abstrata, o texto tenta indicar as incompletudes de uma etnografia que se move, que
nunca está atualizada ou circunscrita.
Palavras-chave: Movimento, Lugar, Circulações, Etnografia.
INTRODUÇÃO
Apresentado de uma maneira genérica e englobante, Pinheiro pode ser compreendido
como uma localidade quilombola, situada na zona rural de Minas Novas, Vale do
Jequitinhonha- MG. Pode-se acrescentar ainda que está inserido num contexto regional,
marcado por saídas para trabalhar1, que envolvem tanto aqueles que ficam no Vale do
Jequitinhonha, quanto os que saem, envolvidos em múltiplos deslocamentos pelo país. Há
uma gama de lugares para os quais os moradores de Pinheiro se deslocam, ocupando variados
cargos e atividades, que se relacionam com cortes etários e de gênero. Estas tendências se
intensificaram na região a partir dos anos 1960, e são fluidas, mas são historicamente
realizadas por homens, em idade ativa.
1
O uso do itálico é destinado aqui para expressões e categorias nativas, suas formas de nomear e teorizar sobre
os processos vividos e aqui tematizados.
82
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Este panorama abstrato e generalizante não demonstra muito do que se passa para
além de um imaginário construído sobre a região, conhecida como “Vale da Miséria”2 ou
“Vale da Pobreza”, o qual foi politicamente apresentado como região mais “atrasada” do
estado de Minas Gerais, responsável por diminuir os indicadores estaduais de
desenvolvimento, e extremamente afetada por desequilíbrios naturais, como a seca, o que a
colocaria em um quadro crônico, insuperável por qualquer tipo de intervenção estatal. Visto
assim, o Vale do Jequitinhonha se constrói como polo expulsor de mão de obra, entendida
como “desqualificada” e a “migração” ali instaurada era a única solução possível para a
sobrevivência daquelas famílias.3
Quando conheci Pinheiro, em 2009, outro universo se colocou diante de mim 4. O
quadro de intensas saídas para trabalhar existia, mas a região era estimada por seus
habitantes, que valorizavam uma série de aspectos positivos do que eles chamavam de lugar
da gente. Apesar de tomar grande parte das conversas, a “migração” ganhava contornos
distintos dos que eram apresentados por sociólogos, demógrafos e historiadores. Assim, a
crítica levantada por Palmeira e Almeida (1977), referente ao esvaziamento de conteúdo
analítico no campo dos estudos sobre “migração”, marcado por um migrante genérico,
descontextualizado de suas relações sociais, se fazia atual e significativa.
2
O uso das aspas indica expressões e palavras que não são utilizadas por meus interlocutores e que se referem a
posicionamentos, sejam políticos (como as expressões “Vale da Miséria, que eles conhecem mas negam a
utilização) ou teóricos, que possuem uso dentro da antropologia e que não poderia citá-los sem indicar que são
conceitos que não foram criados por mim.
3
Autores como Moura (1988), Amaral (1988) e Silva (1999) apresentam críticas muito pertinentes sobre a
apropriação política que embasa a construção dos estereótipos sobre o Vale do Jequitinhonha. Vale ressaltar que
no período militar, a região teve parte de seu território classificado como “terras devolutas”, as quais foram
doadas para empresas monocultoras, em grande parte. Resultante disto é o fato de atualmente a região ser uma
das mais expressivas plantações contínuas de eucalipto da América Latina.
4
Conheci Pinheiro em 2009, por meio do Projeto de Extensão Lições da Terra, do qual participei nos anos de
2009, 2010 e 2011, sempre em Pinheiro. Desta interação surgiu a ideia da pesquisa de Iniciação Científica
intitulada “A construção da realidade social na comunidade quilombola Pinheiro: Um estudo sobre as viúvas de
maridos vivos”, financiada pelo PROBIC/PUC-MG. Nessa pesquisa, analisei o processo de construção social das
“viúvas de maridos vivos”, expressão pela qual as mulheres de Pinheiro se identificam e são reconhecidas. Para
tanto, realizei trabalho de campo em 2011 e 2012. Um dos principais apontamentos da pesquisa foi a
centralidade das interações entre mulheres de uma mesma família, que permitem a saída masculina, por meio da
organização e gestão dos terrenos familiares. Esta relevância da família baseou as delimitações e abordagens
sugeridas no projeto de pesquisa para o mestrado.
83
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Motivada por um olhar menos geral e mais íntimo, o objetivo central da pesquisa de
mestrado que desenvolvo - iniciada em 2013 - é compreender como as configurações e
relações familiares se desenham em um contexto de intenso movimento dos habitantes de
Pinheiro, motivados por saídas para trabalhar, mas vivenciado no interior e entre suas casas,
no cotidiano de suas trajetórias de vida, para além de números ou prospecções sociológicas.
Inicialmente, propus uma “etnografia multisituada”, com desenvolvimento de trabalho de
campo em dois lugares: Pinheiro, principalmente no período de retorno dos moradores, aos
finais de ano; e Barrinha, município do interior de São Paulo que se constitui como uma
tendência recente de deslocamento dos moradores, que além de homens- principais
envolvidos nas saídas para trabalhar- tem atraído mulheres e suas crianças.
Ao longo da pesquisa, tenho observado que o movimento é algo central na vida destas
pessoas, que mais do que saírem para trabalhar, concebem que o mundo está sempre
mexendo, que a vida nunca está do mesmo jeito, que do amanhã nunca se sabe. Mais do que
um recurso retórico, esta imprevisibilidade é levada a sério e nada impede que alguém que
esteja em Pinheiro se desloque para qualquer outra cidade que tenha um parente, ou que
alguém que esteja em outro estado, ou em outra região do país resolva ir de muda para
Pinheiro, o que pode ser resolvido de uma noite para o dia. Observo também que o ir de
muda não significa voltar definitivamente e o movimento contrário, a saída, mesmo que
acompanhada das mulheres e crianças, não é um rompimento com Pinheiro e nem um
estabelecimento completo no outro lugar. São vidas que são vividas sempre com a
possibilidade da incerteza, de movimentos múltiplos - encarados de maneiras diversas e
altamente valorizados - um motor existencial, muito mais do que um recurso econômico.
Além disso, apesar de passarem cerca de dez meses fora de Pinheiro, estes sujeitos continuam
afirmando ser moradores de Pinheiro, e apenas trabalhando fora, neste determinado período.
A forma como lidam com esta ausência, de uma maneira tanto quanto presente, requer o uso
de uma teoria que não nos limite a uma porção circunscrita de um território, mas que valorize
este movimento, o que foi ao encontro das afirmações de Ingold (2011). Para o autor, a noção
de “habitante” permite tratar de pessoas que não estão circunscritas a apenas um lugar, assim
como suas experiências de vida. Assim, as distinções entre “ocupar” e “habitar”, propostas
84
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
pelo autor, são significativas e relevantes para compreendermos como Pinheiro continua
sendo uma referência de pertencimento diante de tantos movimentos.
Apesar de mostrar como este movimento se dá, o principal objetivo deste texto é
mostrar os desafios trazidos por uma etnografia realizada com pessoas que sempre estão em
movimento. Como etnografar contextos que nunca estão delimitados? Como lidar com a
sensação de que minha escrita etnográfica está sempre ultrapassada, dado as constantes
modificações na vida destas pessoas? Como manejar a literatura antropológica diante de
dados que me colocam em impasse com tradições consolidas na disciplina (como os estudos
sobre identidade e território)? Como compreender e realmente “levar a sério” o que os nativos
concebiam como motor existencial? O que eu posso fazer para minimamente trazer o
movimento para minha etnografia? Estas questões me colocaram desafios teóricos,
metodológicos e impasses que ainda se desenham e redesenham no caminhar da pesquisa.
GANHANDO SABEDORIA SOBRE UM MUNDO QUE ESTÁ SEMPRE MEXENDO:
AS ANDANÇAS DA (E NA) PESQUISA
O mundo gira, o mundo gera está tudo mexendo. Esta frase foi pronunciada pelo Sr.
Noé, em uma tarde de janeiro de 2014, em uma das casas de Pinheiro. Ele analisava a vida,
que para ele é um troço engraçado. A vida nunca está do mesmo jeito, pois, o mundo gira, o
mundo gera, está tudo mexendo. Sr. Noé falava da vida e do mundo ao analisar que tinha
passado mais de 30 anos sem ir àquela casa, em que agora vivia seu sobrinho, que se casou
com a filha mais nova da família. Ali, naquela casa, já viveram muitas pessoas, era uma casa
cheia, lembrava ele. Lembrava do tempo em que namorou a filha mais velha da família, e que
por mod’malandragem a moça rompeu o relacionamento. Desde então, ele nunca tinha
voltado ali e nem imaginava que voltaria. Com o casamento do sobrinho, ele percebeu que
muitas coisas tinham mexido, muitos giros a vida tinha dado e o mundo tinha gerado outras
circunstâncias, o que permitia que ele retornasse. Sr. Noé foi muito bem recebido e, durante a
longa prosa que presenciei, ele estava empenhado em falar do movimento da vida, que separa
e une, faz morrer e nascer, faz a colheita crescer e ser colhida, faz as pessoas irem e virem.
Ele olhava para a casa e repetia, inúmeras vezes, que tudo estava mexendo. Aquela casa
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
mexia, dizia ele. Não era a mesma casa que ele foi há 30 anos. Já não tinha a dona da casa,
que tinha falecido, já não tinha um amontoado de vozes dos filhos que se mudaram para Nova
Serrana, onde trabalham5. Mas, agora tinha seu sobrinho, a esposa dele e a bebê, prova de que
o mundo mexe, gira e gera.
A fala do Sr. Noé foi mais uma dentre as várias que ouvia sobre as formas como os
moradores de Pinheiro concebem a vida. Já tinha observado que eles possuem um verdadeiro
fascínio por todas as formas de movimento: gostam de andar, ir na cidade, falar como foram,
com quem e quando foram, quanto tempo gastaram. Gostam de falar das viagens que fizeram
ou que seus parentes realizaram, do veículo que foram transportados, das paradas, do tempo
de deslocamento, das condições das estradas, do medo que sentiram, dos sonhos que
precedem as viagens, dentre outros. Além disso, gostam de falar das idas e vindas suas e dos
outros dentro de Pinheiro, das visitas que recebem e que realizam cotidianamente, dos rastros
que ficam marcados nas estradas, muitos deles reconhecíveis pelo jeito de caminhar.
Contudo, essa atenção conferida ao movimento se expressa em vários contextos e extrapolava
um único sentido.
O próprio Sr. Noé analisava que sua vida mudou muito nestes últimos 30 anos. Ele
tinha feito muitas andanças, pelo Brasil inteiro. Citou uma dezena de cidades onde andou por
ali tudo. Rapidamente, seu sobrinho repetiu algo que eu ouvia sempre: Andar é bom. A gente
ganha sabedoria. A relação entre sabedoria e andanças me parece direta, porém
multifacetada. Não apenas as andanças nas saídas para trabalhar fazem ganhar sabedoria.
Andanças variadas, como dentro da comunidade, também são importantes para que se tenha
sabedoria sobre o lugar. È andando que se apreende onde os antepassados moravam, pelos
restos de casa que ainda existem nos terrenos, até onde vão as terras de cada família, onde
são os pontos de referência. Vale ressaltar que em Pinheiro observo algo próximo do que
Marcelin (1996) denominou de “configuração de casas”, no Recôncavo Baiano, uma vez que
uma casa não pode ser interpretada como unidade fechada e separada das demais casas do
terreno familiar, marcado por uma circulação constante entre casas, que se interconectam.
5
O sogro do seu sobrinho também residia ali, era idoso e como ficou viúvo, era por obrigação que a filha mais
nova não se mudasse para o terreno do marido, como geralmente fazem as demais mulheres.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Assim, as casas não se constituem de forma totalmente independente e autônoma e andar
cotidiana e rotineiramente dentre elas é uma convenção fundamental para produzir
familiaridade.
Andar é importante também na cidade, a zona urbana do município de Minas Novas.
É preciso andar na cidade, para ganhar sabedoria sobre os comércios, as casas de amigos e
parentes, os locais onde os habitantes de Pinheiro circulam e onde é possível encontrar carona
e um conhecido, dentre outros. É preciso conhecer os pontos de referência na cidade, assim
como em Pinheiro, que são provas cabais de que se tem sabedoria do lugar. Portanto, saber
onde fica a mangueira de Joana (mangueira que fica de frente os restos de casa de Joana, que
faleceu há décadas) é fundamental para mostrar sabedoria sobre Pinheiro, porém, não é
menos importante saber localizar a sapucaia, quando se fala ou se caminha na cidade, o que é
importante para se provar que se tem sabedoria da área urbana de Minas Novas e, logo, que já
se andou por ali.
No âmbito político mais amplo, a inserção no movimento quilombola, desde 2005,
coloca os habitantes de Pinheiro diante de outras possibilidades de projetos sociais e de acesso
a possíveis melhorias de vida, mas destaca-se a sabedoria que as andanças pela associação
conferem àqueles que se engajam no movimento. As diversas viagens para eventos variados,
como encontros quilombolas, lançamentos de projetos, palestras, cursos, geram muitos
comentários e aumentam o escopo de lugares visitados e conhecidos. Tal como analisado por
Mello (2008), que percebeu o quanto seus interlocutores de Cambará valorizavam a
possibilidade de conhecer muitas pessoas, através do movimento quilombola, em Pinheiro
eles admiram a possibilidade de conhecer outros lugares, não apenas fisicamente, mas outras
realidades, que são sempre trazidas nos eventos de comunidades tradicionais, em que o
histórico e os problemas desses outros lugares são expostos e problematizados. Saber sobre a
vida dos companheiros (que envolve não apenas quilombolas, mas também índios, assentados
do MST, caiçaras, raizeiros, geraizeiros, dentre outros) alarga o escopo de comparação e
visitar outras cidades e até outros países (como a visita que fizeram a Itália), valoriza ainda
mais a necessidade de andar para conhecer, para ganhar sabedoria.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Aos poucos eles vão sendo reconhecidos por este movimento e a Aprompig6
(associação local) se consolida, uma vez que o movimento quilombola passa a ser visto como
um caminho para sua maior visibilidade, que no processo de engajamento nas discussões
sobre a temática tornou-se a ser referência local sobre o tema e vem ampliando sua estrutura
política. Digo isto porque somente depois de inserida no movimento quilombola a Aprompig
conseguiu uma sede, teve aprovados projetos significativos e conquistou mais membros.
Assim, não como manejo instrumentalizado, mas como consequência do movimento
quilombola, a associação local começou a ser vista, a contabilizar no cálculo e no jogo
político, seja no âmbito das quatro comunidades ou no âmbito municipal. Vale ressaltar que
atualmente a Aprompig conta com aproximadamente 250 membros, sendo uma das maiores
associações do município de Minas Novas. Porém, mais que o número de membros, o que
mais motiva as lideranças são suas andanças, o movimento que a Aprompig cria em suas
vidas, a possibilidade de conhecer outros lugares e ter sabedoria sobre eles.
Friza-se ainda que até o momento Pinheiro não reivindicou a titulação de suas terras
junto ao INCRA, uma vez que afirmam não desejar abrir mão da gestão familiar que ali
vigora historicamente (denominado terra no bolo7) em detrimento do modelo estatal de
demarcação. É neste sentido que digo que a perspectiva de movimento colocada pelos
interlocutores não pode ser subjulgada a favor de uma crescente tradição que envolve os
estudos antropológicos sobre comunidades quilombolas, muito mais próxima dos aspectos
territoriais e identitários. Mais do que pensar em uma totalidade fechada e circunscrita,
6
Macuco, Pinheiro, Mata Dois e Gravatá são quatro localidades que formam uma associação local, a Associação
dos Moradores e Produtores Rurais das Comunidades de Macuco, Mata Dois, Pinheiro e Gravatá (Aprompig),
desde 1996. A Aprompig surge da iniciativa dos moradores de se entenderem enquanto coletividade, estimulados
pelas CEB’s, que marcaram presença na região. Segundo as lideranças da Aprompig, eles fundaram a associação
porque observaram que era necessário fazer reunião, que só assim podiam melhorar um pouco a vida na roça,
em um momento político que os programas sociais do governo federal eram bem menos efetivos. Quando
tomaram conhecimento do movimento quilombola, essas lideranças da Aprompig promoveram uma série de
discussões sobre o tema e levaram aproximadamente dois anos (de 2003 a 2005) para resolver acrescentar ao
nome da associação o termo “quilombola”, embora sem alterar a sigla anterior. Essa mudança ocorreu em uma
assembleia extraordinária e foi registrada em cartório, possibilitando assim a requisição do reconhecimento da
Fundação Cultural Palmares. Segundo aquelas lideranças, a inserção no movimento quilombola era vista como
uma possibilidade de acesso a políticas públicas específicas, principalmente as ligadas à geração de renda e
educação.
7
O sistema de terra no bolo é baseado na herança familiar de um terreno e não em uma divisão individualizada
das porções de terra. Assim, cabe aos membros familiares, principalmente os ascendetes mais velhos,
gerenciarem o território que possuem, sem uma lógica formal/jurídica que os defina.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
pensada a partir de categorias de reconhecimento, pretendo considerar as diversas maneiras e
planos de interação que formam o lugar da gente, levando em conta o movimento que os
perpassa, num mundo em que tudo está mexendo. A etnografia de Santos (2014) é um
exemplo recente e instigante dentro da temática quilombola, em que as formas locais de
concepção dos caminhos e das diversas formas de caminhar entre os habitantes de Pedro
Cubas (SP) possibilitam uma profundidade de interconexões, seja entre vivos e almas, entre
estes e o território.
Ao longo da pesquisa, fui percebendo que andar é importante para meus interlocutores
e também para mim. Notadamente, eu só consegui entender isso por me envolver nas
andanças, sozinha e com os moradores. Ir na cidade, nas localidades vizinhas e em outras
casas de Pinheiro com meus interlocutores me conferiu sabedoria de algumas formas de
andanças, o que se apresenta como principal caminho metodológico seguido na pesquisa. Ao
longo do tempo foi ficando claro para mim que andar era algo que me incluía, pois eu sabia
andar por ali tudo, primeiro e mais profundo ponto de aproximação estabelecido comigo.
Fora a sabedoria que eu ia ganhando nas minhas andanças ordinárias, andar com eles, era
algo privilegiado, como as festas em que eu os acompanhava, as reuniões na associação local
as quais eu frequentava, as reuniões com o prefeito, as visitas nas casas de parentes que eu me
inseria, as caças de pequi em que me juntava às crianças e velhos. Além de andar com eles no
âmbito local, os encontrava em eventos estaduais e nacionais, que envolviam a pauta
quilombola e que eu fazia andanças para chegar até lá, assim como eles. Assim, os encontrei
em Belo Horizonte, por inúmeras vezes, em Itabira e Araçuaí, interior de Minas, e em São
Paulo.
A decisão de encontrar e conviver com parte dos moradores em Barrinha foi uma
iniciativa que ia ao encontro desta metodologia, e que neste sentido, foi eficaz. O que eu não
posso considerar como eficaz foi a tentativa de realizar uma “etnografia multisituada”, o que
eu não considero ter realizado, por me incomodar com alguns pressupostos que lhe são
subjacentes. Diante dos rumos que a pesquisa ganhava, sentia que Barrinha era mais um posto
de observação sobre um mesmo lugar. E Pinheiro me parecia cada vez mais ter múltiplos
significados, um lugar não apenas do espaço, mas entrecortado por outros lugares, para o que
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
até então eu não tinha dado a devida atenção, ou simplesmente não tinha percebido. A estadia
em Barrinha clareava a minha visão sobre Pinheiro, em diversos aspectos, mas me colocava
uma série de questões: Estaria eu fazendo uma “etnografia multisituada”? Será que Barrinha
era um outro campo, ou, uma extensão de um campo de que eu já era íntima e sobre o qual já
tinha adquirido maior autoridade etnográfica? Como conseguir profundidade na análise de um
lugar em que os interlocutores não se envolvem com profundidade? Será que eu não estava
lidando corretamente com a metodologia que propus ou deveria entender que ela não me
auxiliava? Afinal, os lugares já não são multisituados por eles mesmos? Se o são, a etnografia,
mesmo realizada em apenas um local, também não deveria ser multisituada, por natureza?
Meu incômodo se dava, em grande parte, pela adoção apressada de um termo e de uma
metodologia sobre a qual não tinha previsto as devidas consequências. Tal como apontado por
Hage (2005), a etnografia multisituada é muitas vezes apreendida como algo imediato, sem
grandes problematizações, o que vem trazendo apontamentos críticos interessantes para este
conceito. Apesar da validade deste tipo de abordagem, dado o momento de grande
interconectividade das pessoas, lugares e conteúdos, seu uso não deixa de trazer novas
questões para a antropologia. Hage (2005), que estudou famílias libanesas envolvidas em
trânsitos transnacionais, aponta a problematização sobre o que é um lugar como o principal
incômodo gerado pela tentativa de uma etnografia multisituada, incialmente empreendida por
ele. O autor percebeu que não fazia uma etnografia multisituada quando delimitou seu objeto
de análise, correspondente ao lugar ocupado pela família transnacional – um lugar
geograficamente descontínuo e globalmente propagado, mas que não deixava de ser um lugar.
Ao observar as relações sociais que acontecem com os grupos de pessoas situados em alguns
países de destino, Hage observou que mais do que não seguirem uma rota, seus interlocutores
se baseavam em suas raízes, diferenciando-se da condição diaspórica, caracterizada por ser
mais rizomática.
Nesse sentido, penso que os dados apresentados aqui não têm um estatuto de uma
pesquisa multisituada, tal como pensado no projeto inical. Primeiramente, não estou
etnografando dois lugares físicos, mas as configurações familiares de pessoas que se deslocam
e transitam entre Pinheiro e Barrinha, mas também entre muitos outros lugares. Cabe aqui a
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
crítica levantada por Ingold (2011) sobre o uso abstrato da categoria “espaço”, que não
propicia uma visão aberta das tramas tecidas pelos seres humanos. Segundo o autor, a noção
de lugar é mais concreta e pode elucidar uma análise menos circunscritiva que a noção de
espaço, uma vez que a partir de um lugar sempre se pode olhar para fora, para outros lugares e
outras extensões. Assim, um lugar pode ir além dos limites espaciais que o envolvem e as
vidas são vividas e experimentadas não dentro dos lugares, mas na relação entre lugares, em
torno e por meio deles. A teoria de Ingold ilumina o caso dos moradores de Pinheiro por
trazer o movimento como o motor da existência humana, que não deve ser tomada por uma
perspectiva estritamente espacial, mas sim levar em conta as trilhas dos caminhos percorridos
por eles. Para Ingold, nestas trilhas as vidas se entrelaçam, formando nós. Estes nós possuem
densidades diferentes, sendo mais densos quanto mais entrelaçadas são estas trilhas.
Para mim, a importância conferida a Pinheiro se deve ao alto nível de interligação
destas trilhas. Há uma densidade considerável nas relações estabelecidas não apenas com as
pessoas ali existentes, mas com os lugares que Pinheiro contém e principalmente com as casas
construídas ali. Em Barrinha, passei a entender Pinheiro como um lugar físico, mas também
composto de elementos que transitam. Um lugar que não deixa de existir no exato ponto
geográfico que se funda, mas que desenvolve suas tramas em outros pontos, outros lugares.
Assim, há um conjunto de forças que recaem sobre Pinheiro, de certo modo correspondente a
uma força centrípeta, ponto de imantação que atrai informações e circulações, as quais não se
contrapõem ao retorno e a importância conferida à comunidade. Por mais que Pinheiro
também possa ser pensado como um ponto de força centrífuga, que desenha vários vetores de
saída que se espalham por cidades variadas do país, como Barrinha, Nova Serrana (MG), São
Manoel (SP), Piuí (MG), entre outros destinos mais frequentes das saídas, ele é reconhecido
como o lugar da gente.
Assim, Barrinha me parece se constituir como um ponto em que se configuram e
reconfiguram relações que não necessariamente se circunscrevem apenas presencialmente. Os
familiares que se instalam ali se vêem, conversam, trocam coisas, brigam, reatam, convivem.
Mas, não posso desconsiderar as maneiras variadas que a família é ativada, incluindo
membros situados à 1100 Km de distância, em Pinheiro. As demoradas ligações telefônicas,
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
as notícias e fotos que chegam pelas redes sociais, os envios de encomendas, as visitas e
outras práticas, se revelaram como um material fundamental para a compreensão destas
famílias que se dispersam fisicamente, mas perseveram no tempo e nos diferentes lugares,
mantêm-se informadas e atualizadas de detalhes triviais dos cotidianos daqueles que dela
fazem parte. Barrinha é um ponto de observação desses movimentos, um ponto da malha de
lugares habitados pelos moradores de Pinheiro, com o diferencial de envolver as mulheres e
suas crianças.
Em Barrinha, o lugar da gente é a referência para comparações e lembranças,
dificilmente nomeado como Pinheiro. Ali é mobilizada uma categoria mais genérica de
identificação, Minas. Referem-se à Pinheiro como Minas em muitas ocasiões e dizem que não
querem se esquecer de que são da roça, mineiros de pé rachados e, caso se esqueçam, são
fortemente lembrados disso pelos demais familiares, sob o perigo de serem ultrajados,
criticados e até rejeitados. Apesar dessa aparente homogeneização, em torno da categoria
mineiros as diferenciações mais sutis de Pinheiro, as reputações das famílias e de seus
terrenos não deixam de existir em Barrinha, como pretendo abordar na dissertação.
Neste redemoinho de idas e vindas, minha etnografia se desenha como uma
incompletude, sem um fechamento exato, tendo como determinação mais formatada apenas o
período de tempo, já que não se realiza em somente uma porção do espaço. Minhas idas aos
campos e minha escrita etnográfica são marcados por contextos que podem (e vão) se alterar
significativamente, em uma velocidade significativa.
CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
Em Pinheiro ou em Barrinha eu observei que as pessoas e suas relações nunca estão
totalmente determinadas ou circunscritas em apenas um lugar. O que eu escrevo, quando
chego do trabalho de campo, também não é algo que seja uma reflexão fechada, mas apenas a
organização de fatos que acontecem em um tempo especifico e que me indicam pistas de
componentes importantes da socialidade de meus interlocutores. A sensação de que minha
etnografia nunca está atualizada foi aos poucos se tornando menos problemática, pois,
comecei a encará-la como condição para um trabalho de pesquisa que realmente traz o
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
movimento destes sujeitos como existencial e que não deve (e esta é a tentativa) tentar
estabilizá-lo.
Paralelo a isto, eu fui desenvolvendo técnicas fundamentais para ganhar sabedoria
sobre Pinheiro e seus moradores. Andar e andar com eles é o mais importante, mas aliado a
isto, adotei as ligações telefônicas como forma de me inserir no movimento cotidiano de
circulação de notícias, o que me possibilitou acompanhar mais de perto as idas e vindas, os
motivos formulados para tal, a elasticidade das relações familiares.
Vale ressaltar que estas reflexões são ainda muito parciais e não sei até que ponto
deixarão de ter este caráter, apesar de estar atenta às coerências e recorrências dos
movimentos. Mais do que uma busca por uma totalidade, considero como os movimentos
podem compor e recompor partes e todos (Strathern, 2014), que para além do sistema de
parentesco ou da noção de sociedade, analisados pela autora, podem nos auxiliar a pensar a
perspectiva antropológica acerca das relações, das incompletudes e instabilidades dos mundos
sociais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Dissertação de mestrado. FAFICH, 1988.
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Museu Nacional/UFRJ. Tese de Doutorado, 1996.
MELLO, Marcelo Moura. Caminhos criativos da história: Territórios da memória em uma
comunidade negra rural. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas.
Campinas, 2008.
MOURA, Margarida Maria. Os deserdados da terra: a lógica costumeira e judicial dos
processo de expulsão e invasão da terra camponesa no sertão de Minas Gerais. Rio de Janeiro:
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PALMEIRA, Moacir. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. A invenção da migração.
Projeto Emprego e Mudança Socioeconômica no Nordeste. Rio de Janeiro: Museu Nacional,
1977.
SANTOS, Alessandra Regina. Nesse solo que vós estais, lembrai-vos que é de morrer. Uma
etnografia das práticas de caminhar, conhecer e mapear entre os habitantes de Pedro Cubas,
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
um Remanescente de Quilombo do Vale do Ribeira. Dissertação de Mestrado. Universidade
Federal de São Carlos. São Carlos, 2014.
SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do Fim do Século. São Paulo: Fundação
Editora da UNESP, 1999.
STRATHERN, Marilyn. Partes e todos: Refigurando relações. In: O efeito etnográfico e
outros ensaios. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2014.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
HORIZONTES HERMENÊUTICOS- PERCURSOS METODOLÓGICOS
NO TRAJETO: DE ENFERMEIRA À ANTROPÓLOGA
Telma Eliane Garcia
[email protected]
AÇÃO TRANSVERSAL / Chamada Pública MCT/CNPq/MEC/CAPES8
PPGAS- UFPA
Doutoranda
Este texto busca, por meio de um relato de experiência, descrever os percalços e desafios
metodológicos enfrentados na investigação sobre o consumo de álcool entre os indígenas
Tembé Tenetehara, de Santa Maria do Pará. A partir de uma interação interdisciplinar entre os
conceitos teóricos do Paradigma Hermenêutico e os procedimentos metodológicos da Teoria
da Comunicação, superou-se um aparente descompasso entre as análises sistêmicas e as
teorias compreensivas. Descreve-se o percurso de inserção na comunidade; os cuidados ao se
dialogar sobre um tema estigmatizado; as técnicas que interseccionam teorias da comunicação
e da dialética; a construção do círculo hermenêutico para a compreensão do significado do
consumo de bebidas alcoólicas entre os Tembé Tenetehara.
Palavras-chave: Metodologia, Antropologia, Alcoolização, Povos Indígenas.
INTRODUÇÃO
Na área das pesquisas em Ciências Sociais os dilemas e desafios, no que se refere aos
aspectos metodológicos, tentem para um debate entre o empirismo e o racionalismo. Em se
tratando de uma realidade na qual o homem intervém, os fenômenos sociais se caracterizam
em duas ordens: as ações individuais e as realizações, que se tornam fatos sociais, dando
origem a duas escolas de produções: as macroteorizações, que caracterizam a Teoria
Sistêmica e as microteorizações utilizadas pela Teoria Compreensiva.
Recentemente, a Teoria Social enfatiza a complementariedade dessas duas ordens de
fenômenos, argumentando que as ciências humanas são basicamente hermenêuticas, não
buscando uma interpretação final, mas o permanente diálogo do círculo hermenêutico. Na
investigação epidemiológica a busca seria para encontrar uma cadeia de intermediações ligada
ao processo saúde – doença; e, em uma pesquisa antropológica tentaria captar o modo como
8
Beltrão, Jane Felipe; Schaan, Denise P.; & Souza Lima, Antonio Carlos. 2011. Patrimônio, Diversidade
Sociocultural, Direitos Humanos e Políticas Públicas na Amazônia Contemporânea – Chamada CT - AÇÃO
TRANSVERSAL / Chamada Pública MCT/CNPq/MEC/CAPES - Ação Transversal nº 06/2011 Casadinho/Procad, processo No. 552279/2011-0. (Inédito)
95
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
determinados sujeitos vivenciam e compreendem este processo. (Alves, 1995; Camargo Jr.,
2013).
Considerando esta discussão, este texto busca, por meio de um relato de experiência,
descrever os percalços e desafios metodológicos enfrentados em pesquisa sobre o consumo
de álcool entre os Tembé Tenetehara de Santa Maria do Pará. Em virtude da formação
acadêmica da pesquisadora (enfermeira), surgiu aparente descompasso entre as premissas
positivistas e as opções metodológicas interpretativas disponibilizadas no doutoramento em
Antropologia Social. A harmonização de conceitos foi construída pela busca constante de
interdisciplinaridade e pela escolha dialógica com os autores Hans-Georg Gadamer e Jünger
Habermas, teóricos do Paradigma Hermenêutico- Dialético, resultando na construção do
círculo hermenêutico e na compreensão do significado do beber entre os indígenas Tembé
Tenetehara.
PERCALÇOS E PERCURSOS METODOLÓGICOS
No primeiro contato que estabeleci com um grupo de indígenas Tembé Tenetehara fui
introduzida na comunidade pelo Cacique que, interessado em meu tema de pesquisa sobre o
consumo de álcool, disponibilizou-me estadia em suas aldeias, localizadas nas proximidades
de Capitão Poço (Pará). Saí em visitas com a enfermeira da localidade, conhecendo as
famílias e fazendo perguntas sobre o uso de bebidas alcoólicas, concluindo com as respostas
recebidas, que não havia consumidores de álcool. Entretanto, ao final das visitas a enfermeira
explicou que as pessoas não haviam respondido o que realmente ocorria, porque o Cacique
proibia o uso de álcool e os que usavam, não revelariam seus hábitos.
O projeto de pesquisa que elaborei para a seleção do doutorado, a partir de uma
abordagem intervencionista, refletia os anos de treinamento em uma concepção biomédica
que não dá espaço para a subjetividade dos interlocutores. Não havia ainda tomado
consciência dos descuidos que cometi e que poderiam comprometer uma futura etnografia 9: o
9
James Clifford conceitua a etnografia como sendo a prática de apresentação intercultural, ou seja, uma
descrição cultural sintética baseada na técnica de observação participante, onde se busca descrever e traduzir os
costumes, as relações e normas sociais, as instituições, o contexto histórico de cada comunidade, com o objetivo
de construir um mundo comum de significados ( Clifford, 2002).
96
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fato de haver chegado à localidade em companhia do Cacique me colocou numa posição de
inserção diferenciada oportunizando informações condicionadas sobre o uso de álcool.
Perguntar sobre o uso de bebidas, não foi uma boa estratégia, porque os que realmente têm
dificuldades com o abuso, não estavam prontos, ao menos naquele momento, para revelar ou
admitir facilmente seus hábitos de consumo do álcool.
A noção desses descuidos foi se estabelecendo durante as leituras das disciplinas da
pós-graduação. A primeira percepção despertada foi a questão do estigma que envolve esta
temática. Mary Douglas (1976) traduz a idéia de sociedade como uma imagem de poder que
controla ou estimula a ação das pessoas e aqueles que não se enquadram dentro dos critérios
tradicionais de classificação social, terminam ocupando lugares fronteiriços, dando origem
aos grupos ‘marginais’.
Introduzir-se em um campo de pesquisa com características de marginalidade requer
prudência e cuidados que evitem os preconceitos que todos carregamos, decorrentes de nossa
formação social. Buscando encontrar uma teoria que outorgasse sustentabilidade para manter
flexibilidade na compreensão da realidade de uma comunidade e de seus elementos marginais,
encontrei nas Teorias Compreensivas espaço adequado para me apoiar.
O eixo fundamental no processo comunicativo, que prevê uma interação simultânea
entre o individual e o coletivo, alivia o peso da pressão social que a abordagem sistêmica
confere a sociedade, entendendo que não se pode considerar os indivíduos apenas
desempenhando papéis sociais como ‘marionetes’ que reproduzam inconscientemente a
ordem social (Habermas, 2003).
Compreender os preconceitos, segundo Gadamer (1997), é o ponto de partida do
problema hermenêutico. Ele considera que os preconceitos de um sujeito são muito mais do
que seus juízos, perfazem a realidade histórica de seu ser sob a idéia de uma ‘autoconstrução
absoluta da razão’ e enfatiza ser fundamental compreendê-los e diferenciá-los para defender o
razoável de qualquer imposição.
Em face destas considerações, entendi que deveria romper com preconceitos, numa
atitude racional de tomar consciência de meus próprios limites epistemológicos, atribuindo
aos indígenas Tembé Tenetehara à autoridade de conhecimento consagrado pela tradição e
97
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pela herança histórica que eles possuem. Nesta perspectiva, precisei abandonar a postura
docente de sapiência, a visão distorcida de sofrimento do outro e a necessidade como
enfermeira de prover resolutividade a partir de “meus”10 métodos de cuidado. Esta, segundo
Gadamer, é a condição hermenêutica suprema: “suspender por completo os próprios
preconceitos” (1997; p. 447).
Estes desafios metodológicos precisavam ser enfrentados em meu trabalho entre os
Tembé Tenetehara de Santa Maria do Pará, comunidade onde desenvolvo a pesquisa. Assim
que, a primeira decisão tomada em acordo com a orientadora foi de não revelar meu objetivo
real de pesquisa, para contornar as demarcações de estigma e preconceito que envolve este
assunto. A estratégia proposta foi oferecer meus serviços como enfermeira e professora, para
realizar um mapeamento da saúde que lhes forneceriam dados para embasar suas demandas
políticas na conquista por assistência em saúde diferenciada.
As primeiras visitas foram realizadas na companhia de um indígena, liderança na
comunidade, que já havia trabalhado como Agente de Saúde no município sendo reconhecido
por suas habilidades em prestar cuidados de enfermagem. Minha apresentação em cada casa,
em nenhum momento foi feita por mim mesma, sempre era introduzida com a explanação de
meu objetivo em levantar dados gerais de saúde. Quando não pude mais contar com a
companhia do líder indígena, busquei autorização junto à Secretaria de Saúde do Município
de Santa Maria do Pará, para acompanhar os Agentes de Saúde11 que visitavam os indígenas
pelo Programa de Saúde da Família.
Nesse primeiro contato, as questões eram sobre os hábitos gerais de cada membro da
família relacionando com aspectos da saúde, e as perguntas sobre o uso de bebidas era
introduzidas sem ênfase, apenas como um dado a mais. Facilitou minha comunicação inicial
10
Entendam-se estes “meus” como o conhecimento teórico-prático que fazem parte de meu instrumental de ação
como enfermeira, muitas vezes impondo propostas de soluções como sendo as mais acertadas e próprias para
conduzir a resultados efetivos aos impasses em relação à saúde das pessoas a quem presto cuidados.
11
As visitas com os Agentes de Saúde foram feitas nos dias em que eles estavam disponíveis e nos horários que
eles sabiam ser o melhor para encontrar as pessoas em suas casas.
98
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estar em posse do censo 12
que havia sido realizado anteriormente por um colega 13 de
pesquisa.
A comunicação que se estabeleceu nestes contatos foi baseada nas concepções
hermenêuticas de Habermas (2003) e em sua teoria do Agir Comunicativo e refere-se ao
entendimento entre sujeitos capazes de falar, de agir, aceitar ou contestar as enunciações. A
linguagem é valorizada, não mais como algo no mundo objetivo, mas relativizada em
enunciações que podem ser contestadas em sua validade por outros atores. Admitem-se as
pretensões de validade dos outros participantes do diálogo, reconhecidos enquanto
participantes do processo de entendimento (Reese-Scäfer, 2012).
Os primeiros dados coletados no mapeamento serviram para uma compreensão melhor
da comunidade, suas condições de vida, habitação e agravos de saúde a que estão mais
expostos. No entanto, esses dados não me davam base para compreender a alcoolização,14
pois se tratavam apenas da opinião de uma parcela da população feminina, não dando
condições de responder as principais questões em uma abordagem de pesquisa
antropológica15: Como bebem? Quando bebem? E quando o beber passa ser um problema
social?
Fenômenos sociais são complexos, por isso o antropólogo não pode depender de
informações quantitativas baseadas em uma amostra da população. Pelo contrário, deve
“basear-se em um conhecimento profundo adquirido por intermédio de uma convivência
prolongada”. Entretanto, a vantagem de se coletar material de forma quantitativa é que os
12
O levantamento demográfico (censo) constitui uma informação básica para os antropólogos, pois é necessário
constatar o número de pessoas que compõe a comunidade a ser estudada. Esta atividade deve ser transformada
em uma das atividades rotineiras do antropólogo, e atualmente equipes de pesquisadores têm sido utilizadas
nesses procedimentos. Sobre o assunto consultar: J. Clyde Mitchell (2010).
13
O Censo havia sido realizado por Edimar Antonio Fernandes, indígena Kaingang, com apoio do indígena
Tembé Tenetehara Almir Vital da Silva em pesquisa anterior sobre a Associação Indígena Tembé de Santa
Maria do Pará (AITESAMPA).
14
Menéndez conceitua alcoolização como sendo: “[o] conjunto de funções e consequências positivas e negativas
que cumpre a ingesta de álcool para conjuntos sociais estratificados e não apenas o estudo dos alcoólicos
dependentes, nem os excessivos, nem os moderados, nem os abstêmios, mas sim o processo que inclui a todos e
que evita considerar o problema em termos de saúde e/ou enfermidade mental” (1982; p. 63).
15
Para ampliar o conhecimento de abordagens antropológicas nas pesquisas sobre o consumo de bebidas
alcoólicas entre os povos indígenas no Brasil, consultar: Langdon, 2001; 2005; Souza & Garnelo, 2006; 2007;
Ferreira (2004), Caux (2011), Souza(2013).
99
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
dados estatísticos permitem desemaranhar o efeito de fatores subjacentes aos fenômenos
observados sendo instrumentos auxiliares para a descrição. (Mitchell, 2010; p. 90).
Gadamer harmoniza estes métodos quando esclarece que o movimento da
compreensão vai constantemente do todo para a parte e da parte para o todo relembrando a
regra hermenêutica de que: “tem que se compreender o todo a partir do individual e o
individual a partir do todo” (1997; p. 436).
Mediante esses conceitos comecei a visitar rotineiramente alguns domicílios onde
havia indivíduos que faziam uso regular de bebidas alcoólicas para criar oportunidades de
melhor compreensão das questões individuais, e ao mesmo tempo, mantinha o mapeamento
acompanhando os Agentes de Saúde. Estes momentos de conversa proporcionaram “atos de
fala” que serviam não apenas para a representação ou narrativas de estados ou acontecimento
dos falantes, mas para uma auto representação, quando os falantes se referiam a algo de seu
mundo subjetivo. No entanto, Habermas (2003) argumenta que para se compreender o que é
dito, é necessário a participação, e não apenas a mera observação.
Outro ponto levantado por Habermas em relação à participação do pesquisador
“consiste no fato de que juízos de valor se insinuam no discurso que constata fatos ” e conclui
que estas dificuldades podem ser superadas se a análise empírica do comportamento cotidiano
estiver vinculada ao quadro de referências teóricas das interpretações dos próprios falantes
(2003; p. 44).
Para realizar este difícil exercício hermenêutico de participação, observação e uma
interpretação a partir da visão dos próprios indígenas sobre as questões que envolvem o
consumo do álcool, utilizei procedimentos metodológicos da Teoria da Comunicação
consagrados nos estudos nas áreas de Enfermagem em Saúde Mental e Psiquiatria16
(Stefanelli, 1985; 1993), Psiquiatria interpessoal (Sullivan, 1953) e da Comunicação
(Watzlawick, Beavin & Jackson, 2000).
O primeiro grupo de técnicas é indicado nos contatos iniciais e servem para
estabelecer o conhecimento mútuo. Chamar a pessoa de forma personalizada, pelo seu nome,
16
Vale ressaltar que esta abertura a uma interdisciplinaridade de métodos dialógicos se tornou possível em
virtude de um treinamento anterior nas técnicas de comunicação que minha formação como enfermeira e docente
em Saúde Mental e Psiquiatria me proporcionara.
100
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
manifesta interesse e atenção (Majello, 1970). Ouvir reflexivamente é um processo que
requer concentração de atenção para se identificar a expressão verbal e a não verbal, buscando
compreender o que o interlocutor diz e o que ele pode estar querendo transmitir, pensando
reflexivamente no conteúdo expresso (Stefanelli, Arantes & Fukuda, 2008). O processo de
ouvir exige períodos de silêncio que precisam ser compreendidos por sua utilidade em
conceder tempo para o interlocutor organizar suas idéias e expressa-las. O silêncio requer
paciência, mas transmite a idéia de estar pronto a ouvir, oferecendo aceitação, respeito e
confiança para o interlocutor comunicar suas idéias (Stefanelli, 1993).
As perguntas são excelentes para dar continuidade ao dialogo se forem bem
elaboradas. Devem ser evitadas perguntas que predispõe às respostas simples, como um ‘sim’
ou ‘não’. Iniciar perguntas com ‘por que’ ou ‘como’ podem intimidar ou pressionar a
explicações que nem sempre a pessoa esteja preparada para compartilhar (Stefanelli, 1993).
Ha determinados questionamentos que induzem a uma resposta esperada, por exemplo: “Você
não gosta que ele beba, não é?” O entrevistado acaba ficando involuntariamente constrangido
ao dar a resposta esperada pelo entrevistador, pois não lhe foi dada a oportunidade de revelar
sua própria opinião. Neste caso seria mais adequado perguntar: “Você se incomoda quando
ele bebe?”
O segundo grupo de técnicas de comunicação auxiliam na clarificação das mensagens
compartilhadas. Deve-se solicitar esclarecimento sobre termos incomuns e evitar a utilização
de termos técnicos. Se for necessário utiliza-los, o pesquisador deve esclarecer o significado
da palavra utilizada e validar a compreensão da mesma, pois o interlocutor pode não pedir
esclarecimentos do que foi dito, o que gera incompreensões inadequadas (Stefanelli, Fukuda
& Arantes, 2008). O pesquisador também deve verbalizar suas duvidas, expressando o que
não compreendeu.
O terceiro grupo de técnicas dialógicas deve fazer parte de todo o processo da
comunicação, buscando a verificação da compreensão das informações por meio de
validação. Solicitar que o outro repita a informação oportuniza-o de corrigir informações e
ampliar o conteúdo. Pode-se repetir resumidamente o que foi falado e questionar se está
101
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
correta a repetição, evitando fazer isto com muita frequência para não criar estereótipos na
comunicação (Stefanelli, Arantes & Fukuda, 2008).
As técnicas acima descritas serviram de guia para a busca de comunicação e interação
com as famílias que conviviam de forma mais presente com o uso e abuso de álcool, não
significando que em algumas situações eu não tenha cometido equívocos, por exemplo, a
decodificação das mensagens nem sempre ocorreu da melhor forma. Foi um processo de
crescimento e aprendizado contínuo, em que o diário de campo auxiliou deveras
reflexões, a leitura de teóricos e a orientação acadêmica consolidaram a
nas
tomada de
consciência dos erros e a busca por acertos.
A partir do entendimento que o objeto de conhecimento na perspectiva hermenêutica
refere-se de forma representativa aos objetos de pensamento que são construídos pelos
agentes sociais em suas situações da vida cotidiana, e que segundo Habermas ”[u]ma
situação representa um segmento do mundo da vida17 recortado em vista de um tema”, decidi
buscar situações onde ocorressem processos de comunicação entre os indígenas Tembé
Tenetehara (Habermas, 2003; p. 166).
A principal atividade econômica nesta comunidade é o cultivo de mandioca e a
produção de farinha. O processo que compõe o cultivo, em maioria dos casos é feito de forma
solitária, ou em pequenos grupos, onde há predominância da presença masculina. Na
produção de farinha, as mulheres são a mão de obra principal no preparo da raiz para o
processamento nos ‘retiros de farinha’. Passei a frequentar os ‘retiros’ nos momentos que
sabia haver atividades coletivas, para perseguir a busca de compreensão da comunicação na
vida cotidiana dos Tembé Tenetehara. Tomei o cuidado de não transformar a comunidade em
um “objeto de estudo”, mas em sujeitos de relações dialógicas, interpretando o dialogismo
como o elemento que instaura a constitutiva natureza discursiva da linguagem (Braid, 1997).
Habermas enfatiza que quem participa de um processo comunicativo ao dizer algo e
ao compreender o que lhe é dito, acaba por assumir uma ‘atitude performativa’. Ele explica
que esta atitude é uma orientação mútua por pretensões de validade “que o falante ergue na
17
O Conceito de “mundo da vida” para Habermas se constitui em “[u]m tal horizonte de suposições de fundo
intersubjetivamente partilhadas, no qual o processo de comunicação está previamente inserido”(Reese-Schäfer,
2012; p. 54).
102
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
expectativa de uma tomada de posição por sim/não da parte do ouvinte” (Habermas, 2003; p.
42). Ao se envolverem mutuamente em atitudes performativas, os participantes estão
envolvidos nas funções que as ações comunicativas realizam para a reprodução do mundo da
vida comum.
A atitude performativa do pesquisador, segundo Habermas (2003), é a atitude daqueles
que procuram compreender o que lhes é dito, a luz de uma posição de investigação que
implica em três importantes procedimentos hermenêuticos. Os intérpretes devem renunciar
sua posição privilegiada de observador e envolverem-se nas negociações dialógicas sobre os
sentidos e a validez dos proferimentos; confrontar-se com a questão de como superar a
dependência de interpretação relativa ao contexto e finalmente têm que alcançar um saber que
se apóia em pretensões de validez adicionais. A atitude performativa deve ser subordinada a
uma atitude objetivante, desafio maior para uma antropóloga iniciante.
Para apoiar meu conhecimento e interpretação em ‘pretensões de validez adicionais’
precisava frequentar os lugares onde o tema da pesquisa surgisse em conexão com os
interesses e objetivos da ação dos participantes da comunicação, e decidi que deveria começar
a frequentar os bares no período noturno e os balneários nos finais de semana.
Nestes momentos podia me aproximar dos indígenas que frequentavam estes locais,
principalmente por serem as únicas pessoas que eu conhecia, e sempre marcava uma visita
com alguém para o dia seguinte. Minha primeira intensão era observar sintomas de ressaca, e
poder fazer perguntas mais específicas aos consumidores de álcool. O entendimento
simbólico do prazer que álcool proporciona era marcante nos diálogos do dia seguinte. A
relação circular hermenêutica
se estabelecia: o movimento da compreensão que vai
constantemente do todo à parte e da parte para o todo na tarefa de ampliar o entendimento
dos sentidos e os significados que o beber representa para os Tembé Tenetehara.
O verão estava iniciando e com ele a agenda de forrós e bailes tradicionais se
intensificava. Manifestei o desejo de ir a um forró na companhia das indígenas que
frequentavam os eventos e prontamente fui convidada. As similaridades entre as festas e os
encontros nos balneários eram várias, praticamente só se diferenciavam nos horários e no
glamour típico dos eventos noturnos, mas a diferença na maneira como comecei a ser tratada
103
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
pelos indígenas que frequentavam esses encontros, e também pelos que não frequentavam, foi
notória. Eu estava perdendo o status de professora e passava a ser ‘uma pessoa’, que galgava
o entendimento de que a compreensão significa: entenderem-se uns aos outros (Gadamer,
1997).
As premissas metodológicas de J. Van Velsen trouxeram a lembrança que o
antropólogo social está interessado em “estudar pessoas que vivem e atuam dentro de certa
ordem social, cujas ações devem ter, portanto, alguma referencia às normas de conduta já
aceitas e estabelecidas” (2010; p. 452). Algumas destas regras eu já visualizará pela
observação e nos diálogos, mas sobre a “ordem social” que deveria ser o pano de fundo das
relações entre os Tembé Tenetehara ainda não estava perceptível a meu entendimento.
Na perspectiva da Antropologia Estruturalista o sistema de parentesco define o status
de cada indivíduo no grupo, bem como seus direitos e deveres em relação a seus parentes.
Segundo Velsen (2010) o quadro de referência estrutural ainda é um pré-requisito para a
análise antropológica, entretanto, deve ser utilizado de maneira mais estética do que
normativa, pois os indivíduos podem fazer opções que sejam variantes dos comportamentos e
normas, selecionando os que servirão melhor a seus objetivos em cada situação. Utilizando a
construção de quadros genealógicos de cada família poderia obter uma analise sincrônica de
princípios estruturais que estariam intimamente ligados a uma analise diacrônica da operação
desses princípios pelos atores específicos, em situações específicas.
Pedi ajuda dos que estavam sendo visitados com mais frequência, que eram
exatamente os que bebiam mais aos domingos, e na segunda feira ficavam de folga esperando
se recuperar dos abusos do final de semana, para construirmos quadros genealógicos de cada
família. Nossas visitas eram direcionadas para as pessoas mais idosas, que conheciam a
maioria dos parentes e nesses encontros os familiares que moravam na vizinhança eram
chamados para ajudar. Esta atividade proporcionava conversas animadas e interessantes, onde
introduzia o tema sobre a bebida alcoólica para criar momentos de debates e ouvir as várias
opiniões que se estabeleciam a partir do senso comum.
Nas ‘situações de fala’ podia visualizar a interação preconizada por Habermas (2003),
onde os agentes assumem alternadamente os papeis comunicacionais de falantes, destinatários
104
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
e pessoas presentes, e este sistema de perspectivas dos falantes estava entrelaçado com o seu
sistema de perspectivas do mundo. Para Habermas (2003) em sua teoria do Agir comunicativo
o mundo social das pessoas constitui-se exatamente nas normas que estabelecem nas
interações interpessoais legítimas, e para os atores que valem esses conjuntos de normas,
pertencem todos eles, ao mesmo “mundo social”.
À medida que visualizava a rede de relações familiares, ou seja: quem era primo de
quem, quem pertencia a uma ou outra família, comecei a compreender os papéis sociais de
cada falante e conseguia relacionar a posição de cada interlocutor dentro do grupo, bem como
seu envolvimento com o tema em questão. Na análise compreensiva amparada na
hermenêutica e dialética a busca deve ser apreender a prática social dos sujeitos em sociedade,
em seu movimento contraditório, ou seja, nos processos sociais não existem pontos de vista
“certos” ou “errados”, apenas diferentes representações dos diferentes grupos de interesse. A
perspectiva dialética introduz na realidade o princípio do conflito e da contradição de maneira
permanente e que se explica nas mudanças e transformações da dinâmica social. É
fundamental neste processo realizar a crítica das idéias expostas, buscando a especificidade
histórica, as diferenciações internas, a cumplicidade com seu tempo e momento e suas
contribuições ao conhecimento e às transformações (Velsen, 2010; Minaýo, 2010).
Minha atitude objetivante como pesquisador se consolidava nas reflexões posteriores
aos diálogos, quando buscava integrar as categorias de informações que foram referidas, com
os comportamentos observados. Nas palavras de Habermas (2003) as falas conquistam uma
‘estabilização’ graças às perspectivas do observador e são encaixadas no sistema de
perspectiva do mundo dos observados. Assim como explicita Gadamer (1997), a compreensão
acaba acontecendo a cada passo, confirmando que compreender significa prioritariamente,
sentir-se entendido e entender a opinião do outro como tal, e que o “milagre da compreensão”
não é uma comunhão misteriosa de almas, mas uma participação num sentido comum.
CONCLUSÃO
A elaboração hermenêutica e dialética de compreensão em relação ao envolvimento e
concepções que os Tembé Tenetehara de Santa Maria do Pará têm sobre o consumo de
105
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
bebidas alcoólicas tornou-se, em meu entendimento, um diálogo. Neste processo de encontro,
ampliei minha visão de enfermeira sobre quem é o ser humano em seu mundo social, e ganhei
um novo horizonte. Este, o horizonte da antropóloga que significa, nas palavras de Gadamer,
“aprender a ver mais além do próximo e do muito próximo, não para apartá-lo da vista,
senão precisamente para vê-lo melhor, integrando-o em um todo maior e em padrões mais
concretos” (1997; p. 456).
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107
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
AS MENIRE PARTICIPAM? REFLEXÕES INICIAIS SOBRE UM
PROJETO DE MITIGAÇÃO DIRECIONADO ÀS MULHERES XIKRIN
Joaquim Pereira de Almeida Neto
[email protected]
FAPESP
UFSCar
Graduando
Neste trabalho, apresenta-se algumas das reflexões iniciais a respeito da elaboração e início da
implementação de um projeto de mitigação relacionado à construção da Usina Hidrelétrica de
Belo Monte e especificamente direcionado às mulheres indígenas da Terra Indígena
Trincheira-Bacajá. O foco principal é a análise do conceito de participação, conceito
proveniente tanto da indústria do desenvolvimento, quanto da antropologia do
desenvolvimento, na forma como é mobilizado na formulação desse projeto de mitigação.
Pretende-se, além disso, refletir sobre algumas das consequências, e também limitações, no
que se refere à tentativa de colocar tal conceito em uma aplicação prática.
Palavras-chave: antropologia do desenvolvimento; participação; etnografia; mulheres Xikrin
***
As reflexões aqui apresentadas são fruto do início da realização de uma pesquisa de
iniciação científica atualmente em curso que se intitulada "As Menire e o conceito de
participação: etnografia de um projeto com as mulheres Xikrin da Terra Indígena Trincheira
Bacajá"18. Nesta pesquisa o objetivo central é discutir criticamente a mobilização e a
aplicação dos conceitos de participação e de desenvolvimento participativo a partir do
acompanhamento da elaboração e da implementação de um projeto de mitigação, aqui tratado
como Projeto das Menire19, relacionado à construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e
direcionado especificamente às mulheres Xikrin da Terra Indígena Trincheira Bacajá (Pará).
A maior parte dos dados aqui trabalhados advém da análise de dois dos documentos já
produzidos pela equipe de implementação do Projeto das Menire, o projeto propriamente dito,
18
Projeto financiado pela FAPESP (processo: 2014/12748-2) e iniciado em setembro de 2014.
Projeto das Menire éa forma como trato o projeto aprovado no edital do CGDEX (Comitê Gestor do PDRS
Xingu) de 2013 que é intitulado "Fortalecimento da organização social e política das Menire - Mulheres Xikrin
da TI Trincheira Bacajá". Proposto pela FUNAI - CR Centro-Leste do Pará em uma parceria com a
Universidade Federal de São Carlos, esse projeto se enquadra na Câmara Técnica Povos Indígenas e
Comunidades Tradicionais e tem como diretriz estratégica "apoiar a capacitação de conselhos e outras formas de
organização das populações tradicionais e a formação de lideranças" (CGDEX, 2013, p.04). O público
beneficiário são os indígenas da etnia Xikrin, particularmente as mulheres Xikrin, das oito aldeias da TI
Trincheira Bacajá, uma das dez Terras Indígenas afetadas pela construção da UHE Belo Monte e que estão
atualmente sendo alvo de medidas mitigatórias em decorrência dos impactos provocados por tal obra.
19
108
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
que foi produzido em 2013, e um cronograma produzido em julho de 2014 no qual o projeto
foi reordenado. Como o trabalho de campo propriamente dito ainda não foi realizado, muitas
das discussões não são devidamente desenvolvidas. Dessa forma, o que se apresenta de forma
alguma constitui um trabalho finalizado, que porta em si uma coerência interna. Pelo
contrário, ele nem sequer possui uma linha argumentativa verificável ou mesmo uma
sequência lógica e o que se apresenta, de fato, são dúvidas e questionamentos a respeito de
algumas questões pontuais que apareceram no início dessa pesquisa. O objetivo aqui é,
portanto, discutir e tentar selecionar algumas das questões mais relevantes, e interessantes,
para a elaboração futura de uma etnografia, bem como procurar estratégias para que ela possa
ser construída.
Apresenta-se, primeiramente uma breve introdução a respeito do conceito de
participação e de sua paulatina incorporação aos projetos de desenvolvimento, incorporação
que, conforme se verificou, ocorreu mais em um nível discursivo do que prático. Em uma
segunda parte, parte mais descritiva, apresenta-se o projeto de mitigação, o Projeto das
Menire, da forma como foi concebido inicialmente; isso é feito com o objetivo de se
demonstrar os efeitos da adoção e da tentativa de incorporação do conceito de participação
dentro de um projeto de desenvolvimento propriamente dito, bem como alguns dos
desdobramentos que isso provoca. Posteriormente, tem-se uma parte destinada ao início da
problematização da efetiva participação das mulheres Xikrin dentro desse projeto de
mitigação. Por fim, apresenta-se, mesmo que de forma ainda pouco desenvolvida, alguns
questionamentos referentes às consequências do uso do conceito de participação.
INCORPORAÇÃO DO CONCEITO DE PARTICIPAÇÃO NOS PROJETOS DE
DESENVOLVIMENTO
De acordo com Ghazala Mansuri e Vijayendra Rao (2012), o atual interesse pela ideia
de participação iniciou-se como uma reação crítica às estratégias de desenvolvimento
altamente centralizadas do tipo "top-down" típicas das décadas de 1970 e 1980. A partir
dessas críticas, passou-se a haver um maior interesse na aproximação entre a ajuda de
desenvolvimento e as populações beneficiárias e, principalmente a partir da ultima década, o
109
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
conceito de participação "adquiriu uma vida própria e é agora proposto como um meio para
alcançar uma variedade de objetivos - melhor direcionamento da pobreza, a melhor prestação
de serviços públicos, […] maiores vocalização e coesão social e aumento da
responsabilização do governo" (MANSURI; RAO, 2012, p.2, tradução minha). Em suma, é a
partir desse momento que a participação se transforma em um conceito amplamente
mobilizado por organismos multilaterais, governos e ONGs
A ideia de planejamento participativo parte da premissa de que, em projetos de
desenvolvimento, existe uma grande diversidade de atores envolvidos e, por isso, as pessoas
afetadas por tais intervenções devem ser incluídas no processo de tomada de decisão.
Participação, portanto, é "um processo através do qual as partes interessadas influenciam e
compartilham o controle sobre as iniciativas de desenvolvimento e sobre as decisões e
recursos que os afetam" (THE WORLD BANK, 1996, p. xi, tradução minha). A inclusão das
pessoas afetadas, que passou a ser mobilizada em grandes projetos de organismos
multilaterais, é, de acordo com o Banco Mundial, não apenas uma forma de tornar os projetos
de desenvolvimento mais eficazes e sustentáveis, mas também um caminho para contribuir
com a efetividade desses projetos na medida em que pode promover um sentimento de crença
em relação à relevância desses projetos entre aqueles que são diretamente afetados por eles. A
idéia de participação, portanto, na medida em que procura levar em consideração aspectos até
então negligenciados (como as dinâmicas locais e os conhecimentos tradicionais, por
exemplo), cuja observação é necessária para a efetividade e para uma maior qualidade das
intervenções, pode ser vista como um dos conceitos mais difundidos e incorporados nas
medidas de desenvolvimento.
Tal importância dada ao conceito de participação, bem como a rápida difusão das
práticas e técnicas participativas20, fizeram dele "um elemento fundamental na maioria dos
atuais discursos, técnicas e metodologias de desenvolvimento" (SALVIANI, 2002, p. 02) ao
ponto de, como sugere Maia Green (2000; 2009), o paradigma participatório poder ser tratado
20
As práticas e técnicas participativas estão relacionadas à aplicabilidade dos conhecimentos antropológicos em
situações de mudança social induzida (antropologia aplicada ou antropologia pratica). Duas das metodologias
participativas mais difundidas são: a "Social Engineering" de Michael Cernea (1983, 1991) e o "Participatory
Rural Appraisal - PRA" de Robert Chambers (1994, 1997).
110
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
atualmente como uma "nova ortodoxia" do desenvolvimento. A participação, portanto,
aparece em praticamente todo programa de desenvolvimento como um "meio para reduzir o
fosso entre situações locais e intervenções externas" (LAVIGNE DELVILLE, 2012, p. 34,
tradução minha) e assim aumentar a eficiência dos planos de desenvolvimento. Aparece, em
suma, como uma forma de intermediar a relação entre "desenvolvedores" (développeurs) e
"desenvolvidos" (développés) (Ibidem).
Porém, é importante perceber que essa grande incorporação do conceito de
participação se deu mais em nível formal do que prático, ou seja, quando se fala da
implementação de projetos participativos, a situação é bem diferente: a participação acaba
sendo reduzida a um mecanismo discursivo formal que não tem aplicação pratica21. Como
aponta Andrea Cornwall (2005), por mais que se fale da participação dentro das políticas de
desenvolvimento, muito pouco é feito em nome de sua efetivação.
O PROJETO DAS MENIRE: EXEMPLO DE PROJETO PARTICIPATIVO?
O Projeto das Menire parte de uma demanda das próprias mulheres Xikrin22 que, em
meio à aplicação de medidas mitigatórias relacionadas à construção de Belo Monte,
trouxeram novamente à discussão uma antiga ideia de desenvolverem, elas mesmas, projetos
que pudessem propiciar a geração de renda por meio da gestão de recursos naturais. As
mulheres Xikrin, então, passaram a conversar entre elas a respeito da possibilidade de se
organizarem segundo modelos tradicionais que valorizassem seus próprios conhecimentos e
práticas. Foi a partir dessa movimentação que antropólogas ligadas à UFSCar23 começaram a
pensar um projeto que pudesse auxiliar, e principalmente dialogar com, essas mulheres a
21
Conforme já argumentava Jean-Pierre Chauveau, o discurso da participação consiste em uma pratica que é
indissociável das ditas praticas "reais" (CHAUVEAU, 1994).
22
Conforme argumenta Valéria Paye Pereira, representante do povo Kaxuyanae Tiriyó do Parque do
Tumucumaque, "principalmente em relação à Amazônia brasileira, as mulheres indígenas elas próprias têm
sentido a necessidade de poder participar mais dentro das discussões da implementação dos projetos em suas
TIs" (SOUSA, 2010, p. 227).
23
Antropólogas vinculadas ao "Observatório da Educação Escolar Indígena" do Programa de Pós Graduação em
Antropologia Social da UFSCar que estavam fazendo trabalho de campo em Altamira naquela época.
111
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
respeito de suas demandas e que pudesse, também, contar, para a sua execução, com recursos
distribuídos pelo PDRS Xingu24.
Os principais objetivos do Projeto das Menire são elaborados a partir de uma dupla
articulação. De um lado há o esforço antropológico de levar as populações tradicionais a
sério, procurando promover o diálogo e a valorização do saber nativo ao invés de apenas
aplicar modelos prontos de associativismo típicos da sociedade ocidental a povos que se
organizam de uma forma distinta desta. De outro, procura se adequar a um modelo de projeto
de mitigação que exige a apresentação de resultados rápidos e positivos para aqueles que são
beneficiados pelas medidas mitigatórias, processo que envolve a mobilização de saberes
técnico-burocráticos que, em muitos casos, acabam por obliterar as demandas dessas
populações25. Entre esses objetivos, destacam-se os seguintes: o fortalecimento e a
capacitação das mulheres por meio do apoio as suas próprias formas de organização social e
política; o fomento do artesanato com respeito à identidade Mebengokre e o incentivo às
atividades produtivas tradicionais que abrangem as roças familiares como práticas
ambientalmente sustentáveis e o empoderamento das Menire por meio da promoção de sua
autonomia.
Desses objetivos, são elaboradas as metas que compõe o projeto. As metas, que
seguem a mesma dupla articulação presente nos objetivos do projeto, envolvem o "apoio à
criação de uma associação de mulheres Xikrin, caso estas optem por essa forma de
associativismo"26; " incentivar a transmissão dos conhecimentos entre as mulheres Xikrin das
24
Parte do esforço desenvolvimentista do Governo brasileiro para a Região Norte, o PDRS Xingu tem como
objetivo geral promover o desenvolvimento sustentável com enfoque na melhoria da qualidade de vida dos
diversos setores sociais e na preservação do equilíbrio ambiental. De acordo com o próprio documento PDRS
Xingu: (…)"com a implantação de grandes projetos de infra-estrutura na região, tornou-se prioridade absoluta a
elaboração de um planejamento para a região visando a maximização dos benefícios gerados pelos
empreendimentos e a mitigação de possíveis impactos negativos, especialmente os de natureza social e
ambiental" (BRASIL, (s.n.t.), p. 04).
25
Argumento desenvolvido em projeto de pesquisa, atualmente em curso, intitulado "Seguindo a trilha de papéis
das Usinas Hidrelétricas: tecnologias de cálculo e a lógica do mercado financeiro no Programa de Aceleração do
Crescimento" apresentado à chamada MACTI/CNPq/MEC/CAPES No. 43/2013 e sob a coordenação da Profa.
Dra. Anna Catarina Morawska Vianna.
26
É interessante perceber que, como aponta Kelly Oliveira (2013, p. 21), o gênero tem sido um dos critérios de
participação nas organizações indígenas. Exemplos disso são: a Associação das Mulheres Indígenas de Taracuá,
Rios Uaupés e Tiquié (Amitrut), a Associação das Mulheres Indígenas do Distrito de Iuauretê (Amidi) e a
Associação das Mulheres Indígenas Sateré-Mawé (Amism).
112
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
diversas aldeias da TI Trincheira Bacajá […], respeitando o modo tradicional de transmissão
dos conhecimentos" e a "revitalização das roças e dos quintais tradicionais cultivados pelas
mulheres, valorizando as práticas próprias dos Xikrin" (FUNAI, 2013, p.02). Todas essas
medidas podem ser feitas com base em um modelo de desenvolvimento sustentável; podem,
quando implementadas, contribuir para a melhoria da qualidade de vida do povo Xikrin;
podem também, na lógica desenvolvimentista, funcionar como práticas mitigatórias e, por
isso, podem constituir (e de fato, constituem) as metas de um projeto aprovado pelo Comitê
Gestor do PDRS Xingu. Entretanto, todas essas metas apresentam além de seus conteúdos
objetivos, ressalvas feitas, todas elas, com uma mesma intenção: tentar garantir a participação
daqueles que serão beneficiários do projeto, bem como o uso de seus próprios conhecimentos,
não só na execução, mas também na elaboração das estratégias do projeto.
O "caso estas optem por essa forma de associativismo", o "respeitando o modo
tradicional de transmissão dos conhecimentos", e o "valorizando as práticas próprias dos
Xikrin" são ressalvas que representam um esforço por parte dos proponentes do projeto em
levar em consideração a singularidade da população Xikrin e em recusar os modelos
"prontos" que têm em vista apenas a execução de projeto de mitigação enquanto uma simples
obrigação legal. Essas ressalvas são também o que traz para esse projeto a questão da
participação e, até mesmo, o protagonismo daquelas às quais o projeto se destina, a
aproximação entre aqueles que propõem o projeto e aquelas que serão beneficiadas e a
valorização dos saberes locais, ou seja, a ideia, já presente nas diretrizes do PDRS Xingu, de
desenvolvimento participativo.
A recusa à aplicação de modelos participativos prontos está de acordo com a
colocação de que:
estruturas e métodos participativos não podem ser 'blueprinted' para todos os programas, porque eles
variam de acordo com a natureza da tarefa em mãos e de acordo com as características dos grupos
sociais[…]. Portanto, a geração de tais metodologias deve tornar-se uma parte integrante da
organização do próprio processo participativo (CERNEA, 1992, p. 04, tradução minha).
É justamente esse ponto, ou seja, a construção simultânea da metodologia e do projeto por
meio da participação das mulheres Xikrin, que constitui a base da qual saem os objetivos e
113
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
metas do Projeto das Menire. Isso faz com que, para a execução do projeto, seja necessária
uma metodologia bem diferente da que geralmente compõe projetos desse tipo.
Diferentemente da exigência de apenas uma equipe técnica, a implementação do Projeto das
Menire depende não só da contratação de uma equipe de consultoria "que deverá possuir nível
superior completo e experiência com povos indígenas, especialmente na formação de
lideranças e/ou trabalho com mulheres indígenas" (FUNAI, 2013, p.03) e da participação de
dois servidores do CR Centro-Leste do Pará, mas também da intensa participação daqueles
que serão beneficiados por meio da formação de um grupo de colaboradoras indígenas
responsáveis pela articulação e multiplicação do projeto "composto por dez mulheres Xikrin
indicadas pelos próprios indígenas" (FUNAI, 2013, p. 03).
Além de demandar uma grande equipe para a sua implementação, fato que por si só já
dificulta sua tramitação, o projeto ainda prevê, para fomentar a articulação política das
mulheres Xikrin e a transmissão dos conhecimentos, o contato delas com outras organizações
e associações indígenas e com outras lideranças indígenas mulheres. Para isso, são previstos,
além da promoção de encontros, ao menos dois intercâmbios entre as próprias Menire. Outra
característica peculiar do projeto é o fato de que nele, embora sejam previstos resultados
práticos para a comunidade (como, por exemplo, a revigoração das roças tradicionais, o
fomento ao artesanato e à apicultura), o objetivo final não constitui um resultado final
palpável e objetivo, pelo menos quando se considera os padrões de referência aplicados pelo
PDRS. Afinal, a maior meta a ser alcançada não é diretamente a criação e implementação de
uma associação para as mulheres Xikrin, mas sim a discussão, com as próprias Menire, acerca
desse modelo de organização e de sua viabilidade de aplicação quando se leva em
consideração a especificidade dos modos tradicionais de organização dos Xikrin.
A forma como foi construído e apresentado faz com que o Projeto das Menire possa
ser tratado como um projeto tipicamente participativo e, ainda que inicialmente, como um
projeto que colocará a participação realmente em prática. Porém esse projeto, na fala de seus
proponentes, tem uma ambição ainda maior: a de ser um "projeto não para as Menire, mas um
projeto das menire". Essa ambição, que em muitos sentidos parece um verdadeiro paradoxo,
114
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
afinal, mesmo se dizendo delas o projeto continua sendo gerido é controlado por técnicos não
indígenas, é o que guia todo o esforço feito para a elaboração desse projeto.
APRENDENDO A FAZER PROJETO: AS MENIRE PARTICIPANDO NO PROJETO
DAS MENIRE?
Os trâmites para a execução do Projeto das Menire ocorrem desde a sua aprovação em
2013. Nesse período muito se conversou com as mulheres Xickin para que suas necessidades
e demandas fossem incorporadas ao projeto. Entretanto, foi apenas em julho de 2014 que o
projeto foi oficialmente apresentado às mulheres Xickin. Essa apresentação ocorreu em uma
das aldeias da Terra Indígena Trincheira-Bacajá e contou com a participação de mulheres de
todas as outras aldeias Xickin da terra indígena. Nesse encontro, foi reforçada a vontade dos
Xickin em participar efetivamente de projetos que sejam deles e também, ainda que com
insegurança é preocupação por parte das Menire, o desejo de algumas das mulheres indígenas
de possuírem projetos voltados diretamente para elas, projetos que, conforme a fala de uma
das Menire "valorizem o que as mulheres sabem fazer".
Ainda durante esse encontro, houve, por parte das Menire, uma sugestão para que o
projeto fosse renomeado. O que era chamado de "Fortalecimento da organização social e
política das Menire - Mulheres Xikrin da TI Trincheira Bacajá" e representava a visão dos
proponentes a respeito do que era relevante para as mulheres Xickin, com a sugestão das
Menire, passou a ser chamado de "Projeto Menire: Prynẽ Moxja Mari Mexj: aprender a fazer
projeto", algo que parece sinaliza um dos anseios mais recentes do povo Xikrin. Nesse ponto
uma questão acaba sendo colocada: será que a renomeação do projeto pode ser visto como um
inicio da efetiva participação das mulheres Xikrin nesse projeto que, embora tenha sido
concebido como um projeto delas mesmas, até o presente momento tinha tramitado em esfera
nas quais elas não estavam diretamente inseridas? Aparentemente a resposta seria sim, afinal
deve-se leva em consideração que a mudança do nome pode implicar em alterações nos
objetivo é no esquema de execução do projeto27. E de fato parece que é isso mesmo que irá
27
Mudanças no projeto não parecem ser um problema. Ao contrário, elas são uma consequência da opção de se
tentar dar às Menire o controle do projeto após já ter sido aprovado pelo CGDEX.
115
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
ocorrer. Na versão do projeto apresentada ao CGDEX, o maior foco estava no associativismo,
mais especificamente na discussão em torno da possibilidade da criação de uma associação
para as mulheres Xikrin. Porém, já nas conversas informais com as Menire, conversas que
vem ocorrendo dede 2013, e agora mais especificamente nas conversas com elas durante esse
encontro, o que mais sobressaiu foi o desejo delas de participarem de intercâmbios junto a
outros povos indígenas com a finalidade de aprenderem mais a respeito da execução de
projetos feitos por eles mesmos. Essa demanda foi incorporada pelos proponentes oficiais do
projeto e agora, já aparece em maior destaque no último cronograma de atividades por eles
apresentado. Ou seja, o foco do projeto parece ter se deslocado um pouco e agora parece estar
mais em consonância com os anseios das Menire.
Entretanto, como a distância entre o que é apresentado nos projetos e cronogramas e
aquilo que de fato é realizado não é algo desconsiderável, a resposta à questão acima colocada
não pode ser totalmente otimista. A efetiva participação das Menire não é algo simples de ser
alcançado; não se pode deixar de levar em consideração que se está trabalhando entre lógicas
distintas, que de um lado se tem o PDRS Xingu, com sua lógica desenvolvimentista e seu
verdadeiro mercado de projeto e, do outro, uma população indígena que, mesmo com todas as
suas especificidades organizacionais, no contexto em que se encontra se vê diante de uma
questão básica: a necessidade, que aparece agora, de aprender a lidar com as questões ligadas
ao discurso do desenvolvimento28 e inclusive a aprender fazer projetos.
Aprender a fazer projetos, que aparece na fala de muitos Xikrin, não apenas na das
Menire, significa, para eles, significa não apenas propor projetos, mas também executá-los,
fazendo eles mesmos a gestão de recursos e de pessoal. Esse desejo de autonomia em relação
aos não indígenas reflete não só a desconfiança dos Xikrin em relação ao que édito é feito
pelos Kuben (pessoas não indígenas), afinal, estes frequentemente, segundo a palavra de uma
28
Essas questões são aquilo que se relaciona não apenas com as grandes obras do PAC que estão sendo feitas na
região e todas as ações que elas desdobram: reuniões com os representantes pelas obras, estudos de impacto
ambiental, implementação de medidas mitigatórias, acerto de indenizações, mas também com aquilo que se
relaciona com muitas das categorias da indústria do desenvolvimento que permeiam essas ações (e também os
recorrentes Planos de Desenvolvimento promovidos pelo governo e por ONGs) como, por exemplo, a ideia de
capacitação, os conceitos de planejamento, organização e otimização, a noção de fortalecimento da organização
social, etc.
116
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Menire, "mudam de palavra e não fazem aquilo que tinham combinado", mas também a
vontade de terem eles mesmos "projetos fortes e verdadeiros" (fala de uma Menire, grifo
meu). E aqui, se chega a um ponto que poderia ser pensado tanto como a máxima participação
quanto como uma espécie de esgotamento da própria ideia de participação: se os projetos são
propostos e executados pelos próprios Xixrin, em suma, se os projetos são realmente deles,
passa-se a ter duas opções: ou eles estão realmente inseridos no mercado de projeto do
desenvolvimento é por isso participam efetivamente ou, pelo contrário, sendo autônomos,
fazendo eles mesmos os projetos, deixa de fazer sentido falar em participação dos Xikrin.
(Afinal essa categoria, da forma como é usada pela indústria do desenvolvimento, só parece
fazer sentido em casos de intermediação entre aqueles que propiciam o desenvolvimento é
aqueles que são levados a se desenvolver).
PROBLEMATIZAÇÕES FINAIS DA IDEIA DE PARTICIPAÇÃO
Não se pode deixar de levar em consideração que o Projeto das Menire opera entre
duas lógicas: de um lado o que se pode chamar de mundo Xikrin com todas as suas
particularidades e, do outro, o que é tido como indústria do desenvolvimento típica da
"sociedade ocidental". E aqui cabe apontar que, conforme argumenta Sahlins (2004), "os
povos indígenas lutam por integrar sua experiência do sistema mundial em algo que émais
lógico e ontologicamente inclusivo: seu próprio sistema de mundo" (SAHLINS, 2004, pp.
245-246) e que nesse sentido, a apropriação cultural que essas pessoas fazem de condições
externas, não criadas por elas, mas das quais elas dificilmente conseguem escapar (os projetos
de mitigação relacionados à UHE Belo Monte, por exemplo), pode dar origem a verdadeiras
reinterpretações dessas condições e das ideias a elas relacionadas (nesse caso, a noção de
participação). Por essa abordagem, além de se reconhecer que as pessoas envolvidas, seja em
projetos ou em intervenções, continuam a ser atores de sua própria história e que eles podem,
por isso, moldar as circunstâncias que lhes são apresentadas e interferir no rumo das decisões
e acontecimentos, abre-se possibilidades para análises críticas a respeito do próprio conceito
de participação e inclusive a possibilidade de que os Xikrin, quando usarem esse conceito ou
117
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
qualquer outro mobilizado pelo projeto, estejam fazendo uso de algo que é completamente
estranho ao que o mundo do desenvolvimento entende como participação.
Outro ponto relevante é o fato de que a incorporação da participação, mas também de
conceitos como empoderamento e fortalecimento social, acaba trazendo consigo todo um
projeto normativo associado ao desenvolvimento que é típico do que se convencionalizou
chamar de "sociedade ocidental". Nesse sentido, por mais que o Projeto das Menire tente,
mesmo por meio do desenvolvimento de metodologias próprias, ele não consegue se livrar
desse caráter normativo associado ao desenvolvimento. As ideias de aprimoramento,
capacitação e fortalecimento tão presentes nele são, sem dúvida, exemplo disso. Porém, ao
mesmo tempo, os próprios Xikrin clamam para si o direito de se desenvolverem também. Isso
fica evidente não só pela fala de muitos deles, mas também pelo empenho de algumas das
Menire na proposição é execução do projeto. Aqui a dúvida é em qual lógica operar, a de que
o desenvolvimento é uma característica exclusivamente "ocidental"? Ou na de que o
desenvolvimento é também, ou está sendo, uma categoria dos próprios Xikrin? Ou ainda, em
uma outra lógica que não é tão facilmente apreendida quanto as outras duas? E o esforço, no
meio dessas questões, deve ser o de sempre ter o cuidado para não naturalizar nem exotizar e,
muito menos, universalizar nenhuma dessas lógicas.
Além do mais, mesmo sendo um projeto que se esforça para se dizer "das mulheres
Xikrin", o fato de ter sido elaborado por antropólogas e funcionários da FUNAI não pode
deixar de ser levado em consideração. Até que ponto as Menire realmente têm o controle
sobre esse projeto? Até que ponto esse projeto estaria ocorrendo sem a participação de todos
esses técnicos? Todas essas são questões têm que ser intensamente problematizadas.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
DEUS SABE POR QUE A GENTE CONSEGUE FALAR PRA UNS; E
PRA OUTROS, NÃO”: TRABALHO DE CAMPO E PRECAUÇÃO EM
UMA COMUNIDADE CATÓLICA29
Ypuan Garcia
[email protected]
FAPESP
PPGAS-USP
Doutorando
Esta apresentação é um excerto de algumas questões que me deparei em minha pesquisa de
campo, atualmente ainda em desenvolvimento. Para a boa economia do texto, os problemas
que serão expostos concentram-se na descrição da prosa inesperada com uma noviça da
comunidade católica franciscana, fixada na cidade de São Paulo/SP, onde estudo a “libertação
de demônios”. Seu objetivo é descrever, de modo sucinto, como uma advertência contra o
entusiasmo, oriundo de um momento que considerei crucial para a pesquisa, trouxe à baila
alguns problemas específicos: o primeiro foi a ampliação das maneiras de se precaver contra
as “ciladas do mal”; o segundo criou uma contraposição incipiente entre “revelação” e
representação, o que acarretou em uma outra visada no conceito de ritual.
Palavras-chave: Libertação, Precaução, Ritual, Revelação, Representação
INTRODUÇÃO
Pretendo debater algumas alterações conceituais30 relevantes à etnografia que realizo
acerca da “libertação de demônios”31 (doravante “libertação”), através das enunciações de
29
Esta comunicação é o prolongamento de duas versões apresentadas nos seguintes eventos: a primeira no
Congresso de Antropologia Universidade Autônoma de Barcelona (UAB) – Universidade de São Paulo (USP),
“Olhares cruzados diante dos novos desafios antropológicos”, em abril de 2014, sob o título “A libertação como
cotidianidade: esboço de um estudo etnográfico”; a segunda na 29a Reunião Brasileira de Antropologia, em
agosto de 2014, sob o título “Caminhando com a Verdade”: a “libertação de demônios” como terapia”. Embora
repita com pouca frequência as passagens adiantadas nos eventos anteriores, a reflexão já vinha se
desenvolvendo desde aquelas exposições orais. Com o intuito de não confundir o leitor, existem duas marcações
gráficas que indicam, em primeiro lugar, termos citados dos autores aqui elencados, “ ”. Em segundo lugar, os
caracteres entre aspas duplas, com ênfase em itálico, realçam as expressões nativas.
30
Retomo, de modo provocativo, a noção de conceito com a intenção de colocá-la em outro patamar. Os
conceitos seriam “descrições de processos de conhecimento”, não possuindo mais realidade que isso, sendo
rótulos para posições adotadas pelos cientistas (antropólogos) (Bateson, 2006; pp. 305-306) e pelos nativos
(Kuper, 1978; p. 94). Gregory Bateson faz referência a Alfred North Whitehead e ressalva que a torção do
conceito produziria uma falácia, a “concretude deslocada”, a saber, constituir algo fictício em substância, um
hipostasiar. O antropólogo inglês postulava que o conceito é uma palavra encorporada à linguagem que “(...)
descreve a maneira como os cientistas dispõem os dados, essas palavras não podem ser usadas para “explicar”
fenômenos”(...)” (Bateson, 2006; p. 306). A linguagem do conceito é, sobretudo, a da reunião “das peças do
quebra-cabeça” (Bateson, 2006; p. 306). A “natureza da explicação”, em Bateson (2006; p. 306), é a forma como
os dados podem ser ajustados uns aos outros, constituindo dispositivos que cobrem o quanto for possível a
121
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
uma “comunidade” de vida e de aliança 32. Enquanto “católicos não-cessacionistas”, defendem
a ininterrupção da proliferação dos dons do Espírito Santo (“cura”, “discernimentos de
espíritos”, “profecia”, “oração em línguas”, “palavra de ciência” etc.) no período pósapostólico (Bonfim, 2012; p. 54)33. Estive, durante os anos de 2013 e de 2014, com o seguinte
“coletivo”34: a Missão Eucarística Círculo do Pão.
Tomo como ponto de partida uma situação que ocorreu no último dia de maio de 2013.
Escolho deliberadamente essa data porque marcou o final da minha primeira convivência
prolongada com os missionários. Ela se iniciou no mês de fevereiro de 2013. O momento,
retirado da etnografia, guiará a discussão abaixo, posto que se conforma ao que foi antecipado
no resumo. As abreviações serão inevitáveis.
“DEUS SABE POR QUE A GENTE CONSEGUE FALAR PRA UNS; E PRA OUTROS,
NÃO”
Caminhava, na Zona Central da Cidade de São Paulo/SP, com vários missionários em
grupos dispersos. Leila me contava que, certa vez, sua mãe abruptamente irrompeu a casa da
penumbra de um tema. “Estrutura social”, “economia”, “ethos” são modalidades de reunir as peças do “quebracabeça” (2006; p. 306).
31
A “libertação” seria uma necessidade motivada pelas aflições e tormentos em que os humanos estão imersos
por causa da rivalidade dois seres agentivos não-humanos, Deus e o Diabo. Seu propósito é escatológico, pois
culmina na “salvação”. A definição mais abrangente que relatei até o momento, no trabalho de campo, sobre o
delivramento foi a que segue: “A libertação é o ato da pessoa ser livre. É só o nome que dá para o que
acontece”.
32
A “comunidade de vida” se diferencia da “de aliança”. Na primeira, reparte-se o lar, os trabalhos domésticos e
a distribuição dos recursos com aqueles que coabitam a mesma moradia. Homens e mulheres residem em casas
diferentes, sendo celibatários. Os membros da segunda dão o suporte material e servem voluntariamente nas
casas para os que fizeram os “votos de pobreza, obediência e castidade”, ou seja, os “de vida” (Mariz, 2006). O
cume da carreira espiritual é a “consagração”, isto é, a investidura dos títulos de frei e de freira. A Missão
Eucarística Círculo do Pão possui quatro anos e tem aproximadamente 400 missionários. Dezessete destes são
celibatários. Estes são, em sua maioria, jovens com aproximadamente 25 anos. Os membros “da aliança”
mantêm seus empregos, são casados, solteiros e advêm de universos profissionais distintos: pequenos
empresários, diaristas, advogados, contadores, pintores, educadores, músicos etc..
33
Tendo em perspectiva que algumas das pessoas com quem convivo me pediram para não serem identificadas,
utilizarei nomes fictícios para humanos, lugares e coletivos com o propósito de preservar aquilo que me foi
solicitado.
34
O conceito de “coletivo” é um empréstimo de Bruno Latour (2001) e tem como desígnio sublinhar, para além
da noção de sociedade, um cosmo habitado por meio das associações entre humanos e não-humanos. Os
missionários lançam mão do termo “comunidade”, mas não uma comunidade estritamente humana, mas de
vínculos constituídos entre seres com naturezas distintas: os santos, os anjos, Deus, o Espírito Santo, Jesus
Cristo, a Virgem Maria etc..
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
avó, onde se refugiu. O marido, o pai da noviça, foi ao encalço dela com um facão em punho.
O homem golpeou violentamente as “tábuas do barraco” até que conseguiu invadi-lo. A
perseguição terminou com uma pancada desferida no braço da esposa. O talho foi inevitável,
assim como a reação da sogra, que, ao ver o sangue no braço da filha, não titubeou: “Minha
avó pegou [um pau]. Não sei de onde ela tirou esse pau! Ela tirou um pau e ela bateu na
cabeça dele. Aí nisso machucou ele inteiro, né? Aí ele foi embora”. O pai de Leila morreu
quando ela tinha aproximadamente cinco anos. A mãe faleceu quando completou onze anos.
O timbre da voz de Leila, que tem 25 anos, permanecia pausado e tranquilo. Naquele
dia, participáramos da procissão de Corpus Christi. A “partilha”35 aconteceu sete anos depois
da sua internação, ao longo de um mês, em um “hospital psiquiátrico”.
A vida religiosa não foi uma opção: “Eu diria que Deus decidiu por mim (...) Não sei te
explicar”. Em seguida, menciona a avó: “A gente brigava muito (...) Quando minha mãe
morreu, eu já tava entrando na adolescência. Aí a adolescência aquela rebeldia, sabe? Fugi
de casa. Arrumava as malas e saia (...) Tive uma vida rebelde como todo mundo”.
A “rebeldia” de Leila acirrou inúmeros desentendimentos com os irmãos mais velhos.
Ela era a ultimogênita da família:
“Aí juntou a minha avó e os meus irmãos, todo mundo brigando comigo. Dos onze até
os dezesseis, vivendo assim. Aí um dia eles brigaram comigo. Minha avó falou que eu não
prestava pra nada, que não sabia por que eu não tinha morrido. Aí ela falou isso. Eu fui lá,
peguei 40 comprimidos e tomei. Aí eu fui parar no hospital”.
35
Alguns dos principais gêneros estilísticos missionários de efetuar uma descrição são os que seguem: o
“testemunho”, a “partilha” e a “pregação”. Francisco, um “missionário celibatário”, ao ser indagado por mim,
em uma conversa, os destrinchou: “Testemunhar, você testemunha com a vida. Você não precisa usar as
palavras. Partilhar é o que a gente está fazendo aqui, agora. Eu estou partilhando uma experiência de vida,
aquilo que eu aprendi”. Em síntese, o “testemunho” pode ser estofado com palavras. A “pregação” é distinta
porque ela introduz uma segmentação temática. Um “testemunho”, para uma assembleia, distingui-se do
“testemunho silencioso”, ou “de vida”, que é aquele abarca o dia a dia. São duas composições diferentes, mas
propõem finalidades semelhantes. Na teoria missionária, o “testemunho silencioso” é o que conduz ou reconduz
as pessoas à Igreja. Sua potencialidade é demasiada, pois a troca prescinde de qualquer enunciação em que caiba
a “transmissão da informação”, mas a “transformação” sem sectarismo, aspecto muito caro aos Circulo do Pão
(Latour, 2004).
123
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Leila ingeriu Gardenal (fenobarbital), um composto sintético com propriedades
sedativas do sistema nervoso. Tentou pôr fim intencionalmente à própria vida. Ela já usava o
barbitúrico, com prescrição médica, para inibir as “crises convulsivas”, que denominava de
“começo de epilepsia (...) Entrei em coma. Fui parar no hospital (...) Aí todo mundo se
desespera, né?”. Leila assume o lugar do terceiro ausente, os familiares: “O que aconteceu
para ela fazer isso?” e depois retorna: “Não havia motivo”, segundo os familiares, na sua
tentativa de suicídio.
Permaneceu de três a quatro dias internada, sendo levada, em seguida, para um
“hospital psiquiátrico”, onde ficou pelo período de um mês:
“No meio de um monte de gente com mais variados problemas psíquicos. Aí, eu falava
com os médicos. Os médicos conversavam comigo: ‘você não tem nada, você tem uma
depressão’, porque eu conversava normal. Não via, não tinha nenhuma doença (...) Eles
falavam que meu problema era depressão, porque não tinha com quem conversar”.
A primeira etapa da pesquisa estava sendo finalizada. Leila se aproximava da
“consagração” como “celibatária”. Notou, sem demora, minha fadiga. “Está dando para
perceber que eu estou cansado?” – pergunto. “Está! Está meio baqueadinho. Agora, você tem
que frear um pouco. Seu organismo não está mais acompanhando o seu ritmo. Tem que dar
um pouco de descanso pra ele” – ela responde.
A exaustão derivaria para alguns dos missionários daquilo que decidira estudar: a
“libertação de demônios”. É comum que alguém, ao “cutucar a onça [o demônio]”, passe por
algum tipo de “atribulação”. Sentia-me gratificado, uma vez que não é raro que se diga que
Deus não deixa todos se envolverem no “combate”. Tornar-se enredado em tal empreitada foi
uma das maneiras de dar prosseguimento ao que maioria dessas pessoas evita enfrentar. A
ocorrência disso passa por uma modalidade específica de troca na prática de pesquisa. O
problema imediato é o da “abertura a Deus”, ao Espírito Santo. Esta fenda se alonga por meio
do aprendizado das saudações, das formas de tratamento, dos movimentos corporais na
genuflexão e nas formas de se livrar das “armadilhas do demônio”. O aprendizado da
“libertação” tem a ver com estar atento àquilo que importa para os nativos: “Deixar Deus
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
trabalhar” em mim. Isso é dito de uma maneira geral para aqueles que não são de
“caminhada”, os inconversos.
Estamos na Rua Boa Vista. Leila prossegue:
“Tinha um professor que dizia... Deus nos deu dois ouvidos e uma boca para se ouvir
mais e falar menos. Acho que eu levei a sério o que ele falou. Ele deu como um trabalho de
escola: se olha no espelho, veja tudo o que você tem no seu rosto”.
A moça, reconhecidamente, não é dada a conversas. Por esse motivo, não escondi o meu
entusiasmo com sua vontade repentina de falar de si. Sem demora, vi-me neutralizado pela
seguinte repreensão/precaução36: “Mas que isso não te leve ao orgulho, porque senão o
orgulho vai te derrubar na sua pesquisa”. Eu, então, indago: “De que orgulho você está
falando?”. A resposta é imediata: “O orgulho de falar: ‘Não, isso aí eu consigo...’”. Só posso
replicar: “Não, não!”. Leila diz: “Eu sei. É só para você lembrar. Não que você seja assim”.
Leila chega ao aspecto que permanecera implícito, inicialmente, para mim, na sua
advertência:
“O demônio ele é muito astuto. Às vezes, ele usa dessas coisas pra derrubar a gente (...)
Pode levar você a um orgulho tipo: ‘Nossa, eu consigo!’. Entendeu? Mais ou menos assim. Aí
acaba te derrubando depois. Muitas pessoas caem pelo orgulho, pela vanglória”.
A “vocação de humildade” refreia o “saber como fonte de orgulho e de dominação” (Le
Goff, 2005; p. 216). Jacques Le Goff aborda uma renúncia de São Francisco de Assis. A lição
de Leila, a meu ver, me conduziu a ficar mais sensibilizado com os “modos de prestar
atenção” aos ataques do demônio. A “libertação” não pode ser deslocada das considerações
36
O conceito de “precaução” não trai as maneiras de “estar atento”, “estar acordado”, no mundo da Missão. É
uma reminiscência ao Evangelho de Marcos: “Vigiai, pois, visto que não sabeis quando o senhor da casa
voltará, se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã, para que, vindo de repente, não vos
encontre dormindo” (Marcos, 13, 35-36). Após algumas “partilhas”, durante a pesquisa de campo, sobre a
“precaução”, decidi incorporá-la a um dos aspectos gerais da “libertação”. A tradução indica, neste caso, uma
traição mínima às ideações nativas. Essa pequena torção foi importante, pois desinflou, no seio da própria
etnografia, a importância do conceito de ritual, sendo uma contribuição minha e dos missionários com quem
tenho mais intimidade.
125
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
sobre os estilos narrativos da Missão Eucarística Circulo do Pão, uma comunidade” que se
intitula “franciscana”.
Já nos preparávamos para retornar para casa. Leila voltou a admitir sua timidez, mas
não deixou que me esquivasse de uma questão de outra ordem: “(...) Deus sabe por que a
gente consegue falar pra uns; e pra outros, não (...) Então Deus sabe o que cada um precisa
ouvir (...) por que precisa ouvir”. Leila me exortara a me conservar “humilde”.
Aquilo que ouvira não se resumia a um mero relato sobre a vida de uma pessoa, mas
constituía uma dádiva em que a mensagem doada intensificava os cuidados que deveria ter ao
longo do trabalho, porque estudar a “libertação é perigoso”. A imodéstia seria um lócus
primário e taciturno da ação demoníaca. Isso me reeducou porque falar de si não revela a
pessoa em sua individualidade, mas sim uma matriz de relações que conjugam o humano e a
divindade.
Digo, com sinceridade, que pessoalmente não consigo mensurar ainda os efeitos das
palavras/“revelações” de Leila em mim. Resta-me, contudo, reconsiderar o alcance das
exortações à modéstia e ao comedimento dizem respeito a um deslocamento na observação,
pois o Diabo se “manifesta” e se “esconde”, também, na cotidianidade (Veyne, 1996).
Prescinde, na maioria das vezes, de presença visível e ritualizada.
Esse problema intrínseco ao campo amplia o conceito nativo de “libertação”, uma vez
que me detive, no início da pesquisa, no “sensacionalismo” que a acompanha. Não foi raro
que me instruíssem de que não a confundisse com o que se passa nas denominações
pentecostais. Em suma, com a “gritaria” que ocorre na expulsão de um demônio.
Ao longo do trabalho de campo, me vi forçado a reconsiderar o que designara por
‘ritualização’, uma visível e convencional da vida nativa. O efeito conceitual da “libertação”
não é redutível a pressuposições representacionais e construtivistas, retidas no conceito de
ritual (Asad, 1993)37. Não seguirei essas hipóteses, mas resvalarei, abaixo, em uma discussão
que tenta expor uma concepção de pessoa da qual a “libertação” parece se desviar.
37
Adiante, enfrentarei a questão concernente ao conceito de ritual.
126
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
UMA
DIGRESSÃO
ACERCA
DA
CESURA
ANALÍTICA
ENTRE
REPRESENTAÇÃO E REALIDADE, POIS “DEUS SABE”
Antes de tudo, é preciso sublinhar que abrirei mão de certa “metalinguagem”
(Crawford, 1993) ativada desde um ponto de vista exterior para lidar com universos cristãos.
A persistência dela é associada com a própria premissa de que as ciências sociais são um
reduto privilegiado da “tese da secularização”, uma narrativa sobre o fim da religião (Asad,
2003; Velho, 2007).
João de Pina-Cabral (2001) esboça que a impossibilidade de estudar a religião através
da metáfora de “sistema de símbolos ordenamente estruturados” cedeu lugar, às expensas da
reflexão, a outras, a saber: “experiência performativa dos atos simbólicos”, “embodiment” e
“subjetividade” (Pina-Cabral, 2001; p. 330). Isso não bastaria à medida que faz oscilar o
pêndulo entre imanência/individualidade e transcendência/sistema. Se mantivermos a atenção
ao enunciado “Deus sabe” (“Deus mostra”), não precisaremos ter de escolher entre duas
imagens muito fortes: da subjetividade e da objetividade.
Em geral, o distanciamento com relação à experiência é um método de pesquisa
resultante da ausência de lugar para uma visada nos conceitos nativos como “descrições de
processos de conhecimento” (Bateson, 2006; p. 306). Provém daí, também, a insuficiência de
uma teoria que delineia de modo “informativo”, em vez de “presentificado” (Latour, 2004), as
descrições/ideações nativas. Trata-se, pelo contrário, de “(...) verdadeiramente dar crédito
àquilo que nossos informantes nos dizem ser fato” (Toren, 2006; p. 449), em vez de
representações e interpretações.
A questão pode ser posta nos termos que seguem: como o enunciado nativo de que
“Deus sabe” não é redutível à representação e se distancia, muitas vezes, do que a literatura
da disciplina alcunha de ritual? A atenção conferida à “partilha” com Leila ressoou em um
ensaio de Talal Asad que li algum tempo depois. Quando finaliza o escrito “Towards to a
genealogy of the concept of the ritual”, o antropólogo árabe-saudita arrisca-se
propositalmente com a seguinte pergunta:
127
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
“É possível que a transformação dos ritos de disciplina em símbolos, de praticar
virtudes distintivas em representar por meio de práticas, tem sido uma das pré-condições para
ampla transformação da cultura em um texto que se pode ler?” (Asad, 1993; p. 87)38.
Ao longo do referido escrito, Asad parece vislumbrar que a resposta já estivera sendo
dada a cada passagem, não vinda sem aviso prévio. Ele atribui à “economia moral da elite”
renascentista, ao contrário do “programa monástico medieval”, o divisor entre “formas
públicas de “comportamento” e “sentimentos e pensamentos privados” (Asad, 1993; p. 87).
Naquele “programa”, as “habilidades” e “virtudes”, a serviço de Deus, não propiciavam “(...)
uma ruptura radical entre ‘comportamento externo’ e ‘motivos internos’, entre ‘rituais sociais’
e ‘sentimentos individuais’, entre atividades que são ‘expressivas’ e aquelas que são
‘técnicas’” (Asad, 1993; p. 80). A exemplaridade de uma vida que conduzisse à santidade era
algo persistente e que alcançava o “(...) caráter teológico de aprender a ser capaz” (Asad,
1993; p. 80, n.15).
Esse modo de pensar não se reduziria a diferenças incomensuráveis e artificiais, mas
conectaria o “‘comportamento externo a um ‘self essencial’” (Asad, 1993; p. 81). O que
garantiria o acoplamento é o conceito de “programa disciplinar”. Ao se voltar à Alta Idade
Média e à importância da vida monástica, Asad acentua que, de modo preferencial, as
“(...) emoções, que são frequentemente olhadas por antropólogos como ‘internas’,
‘eventos contingentes’, podiam ser progressivamente organizadas de modo crescente pela
performance apta para o comportamento convencional” (Asad, 1993; p. 81).
Essa primeiras impressões lançam luz sobre outra, que é oposta: a tensão entre o “eu
interior” e a “pessoa exterior”, ao contrário, redundou na “(...) transformação do
comportamento adequado em representações e da habilidade de manipular tais
representações” (Asad, 1993; p. 83), posto que o “(...) comportamento convencional é visto
38
O argumento se liga a outro ensaio do mesmo autor: “A construção da religião como uma categoria
Antropológica” (Asad, 2010).
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
como sendo essencialmente representacional e essencialmente independente do self” (Asad,
1993; pp. 83-84). A projeção dessa divisão entre qualidade metafórica e a qualidade de
aprendizagem sugere, na primeira, o intervalo entre dentro e fora, ao passo que, na segunda,
suscita uma indiscernibilidade. A tese fundamental da separação entre público e privado tem
como resultado a pretensão de que algumas condutas convencionalizadas são congeláveis por
serem socialmente institucionalizados e independerem de qualquer individuação: a “(...)
ênfase sobre o ‘ritual’ como comportamento simbólico é inteiramente moderna” (Asad, 1993;
p. 75).
O comportamento representacional do ritual torna-se um a priori, um “fenômeno
universal” (Asad, 1993; p. 77). Ele considera que a afirmação de que “(...) símbolos precisam
ser decodificados” tem a ver com “(...) a preocupação de estabelecer autoritativamente o
significado das representações, onde as explicações oferecidas pelos discursos indígenas são
consideradas etnograficamente inadequadas ou incompletas” (Asad, 1993; p. 77).
A incompletude das conceptualizações nativas criaria um impasse epistemológico,
posto que as coisas têm de, primeiramente, ser “construídas como simbólicas” para,
secundariamente tornarem-se interpretáveis e, ademais, é o etnógrafo quem “identifica” e
“classifica os símbolos” (Asad, 1993; p. 78). Tudo se complica, entretanto, quando há pouca
coisa para construir, isto é, quando a representação tem uma aparição restringida em face do
enunciado “Deus sabe”, uma imagem/palavra revelatória, que excede tanto o significado de
um símbolo (Asad, 1993) quanto a tensão entre “eu interior” e “pessoa exterior”.
A necessidade da “libertação” é um fato, e não algo ‘simbolizável’. Mesmo o
sacrifício empreendido na missa, uma modalidade usual de ritual39, resiste à simbolização. A
metaforização da transubstanciação “do pão no corpo e do vinho no sangue” seria uma
afronta para os modos de pensar dos missionários. Esse tipo de crítica nativa neutraliza a
39
Alcunhar a missa de ritual é um acento artificial, porque entre os missionários a celebração recebe a
denominação de “rito”, criando um contraste interespecífico com o “ritual”, que seria realizado no Ocultismo,
no Candomblé, na Umbanda, no Esoterismo. Não é exagero afirmar que o “ritual” é um atributo do outro, sendo
uma imputação acusatória.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
multiplicação de interpretações. A hóstia consagrada “é” a divindade, e não uma
representação, da mesma maneira que o “mal é real”40.
O que Asad parece dizer é que o conceito de ritual permitiu que a cultura se
transformasse em um texto que poderia ser lido inúmeras vezes, desde que congelável
(Geertz, 1989). O problema da interpretação seria substituir o fato pela interpretação, a
realidade pela representação.
A instigante análise de Asad não esmiúça, entretanto, a divisão entre interioridade e
exterioridade para além do conceito de “programa disciplinar”. É preciso realçar isso porque
os dois termos da cesura parecem ser deslocados pela presença de um terceiro: Um Deus que
“tudo sabe e tudo vê”. A pessoa, por ser essencialmente “fraca”, sem o Altíssimo “não é
nada”. A “obediência”, a submissão, à divindade empodera os missionários, que recebem, por
meio da doação divina, os “dons carismáticos”: “palavra de ciência”, “palavra de
sabedoria”, “cura”, “discernimentos de espíritos”, “profecia”, “oração em línguas” etc.. Um
contraste fundamental, no conceito missionário de pessoa, encontra-se, portanto, na oposição
entre “revelação”/“visão”41 (“aquilo que só Deus sabe”) e “abstração”/“representação”
(“algo que vem da cabeça”): uma realidade “revelada” é “necessária”, ao passo que uma
realidade representada é “contingente” (Holbraad, 2003). Em outras palavras, a assimetria
entre os humanos e a divindade torna a palavra revelatória um fato em contraposição ao
engano das abstrações de um sujeito autônomo, “distante, não desejoso, de Deus”.
A “PRECAUÇÃO”
O enunciado de que “Deus sabe”, na crítica da representação, é um modo de
conhecimento que tem uma profunda relação com a “precaução” e com a “abertura”42. A
demora em enfrentar as palavras de Leila foi desfeita quando revisava algumas notas de
campo e me vi, outra vez mais, em uma situação inusitada. As incontáveis situações propícias
40
O caso do “demônio” é típico. Não tratar da sua existência como um fato, deixa-o livre para agir. O ceticismo
é uma “cilada do Inimigo”, um estratagema “astucioso” de um observador contumaz das “fraquezas” humanas.
41
A utilização dois substantivos separados por uma barra é um pouco imprudente, pois nem sempre se fala de
“revelação” quando se tem uma “visão”. Ainda assim, mantive-as juntas porque ambas derivam de uma imagem
ou de uma palavra revelatória (Csordas, 1997; Bonfim, 2012) que vêm de outro ser, a própria divindade.
42
Agradeço a Ana Claudia Duarte Rocha Marques por esse comentário perspicaz durante meu exame de
qualificação.
130
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
para efetuar a “libertação” alcançam os momentos mais corriqueiros da vida nativa.
No
início do mês de maio de 2013, não me esqueço do constrangimento que passei no Ginásio do
Ibirapuera, em evento religioso, com uma missionária. Ela me ofereceu um biscoito, que
aceitei. Ao devolver o pacote, ela traçou o sinal da cruz em si própria. Aquilo me perturbou.
Nesse mesmo dia, vi outra pessoa fazer o mesmo, tão logo lhe ofereceram um bombom. Não
me contive e perguntei do que se tratava. A resposta foi imediata: “para descontaminar”, o
mesmo que se esquiva de uma “cilada do mal”, visto que as guloseimas podiam estar
“consagradas”43. A pequena “precaução” adere-se a inúmeras que são feitas para impedir o
começo de um “ataque do Inimigo [do demônio]”. Tornar-se “precaucionado” é um elemento
recorrente e habitual (Veyne 1996) da “libertação”, alcançando, inclusive, minha pesquisa e a
mim.
A “libertação” acontece continuamente, pois reanima a intimidade com a divindade
cristã. Manter-se livre não procede, na maioria das vezes, de uma ocasião especial, do que se
chama na literatura antropológica, classicamente, da ‘performance’ de um ritual (Turner,
1974), mas do desenvolvimento de “habilidades” (Ingold, 2000) “precaucionais” aprendidas
por meio daquela “abertura” para que a divindade possa “trabalhar”.
CONCLUSÃO
A objeção de Leila coloca-me, sem mais, na posição de alguém que, forçadamente,
torna-se um aprendiz atento de um universo dotado de particularidades comunicativas. Exige
algum zelo com o modo agir, pois a busca incessante pela “santidade”, na vida terrena, não é
dada a jactâncias, a tornar visível os prodígios de Deus na própria vida do fiel. A exortação
tem a ver com aquilo que os missionários denominam de “abertura” e com que chamei aqui
de “precaução”. Este conceito não se desenvolve sem aquele porque é uma decorrência de um
modo de conhecimento que privilegia o cultivo da intimidade com a divindade, o que alarga a
palavra, tornado-a revelatória e portadora de uma potência não humana.
43
O adjetivo “consagrado” é uma estenografia nativa para inúmeros artefatos e pessoas que são dotados
alguma agência maléfica ou benéfica. “Consagra-se” uma pessoa ao demônio. “Consagra-se” uma pessoa a
Deus. “Consagra-se” o pão e vinho na Eucaristia, assim como se “consagra” um “brigadeiro” para enfeitiçar
alguém.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
136
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
DO PONTO DE VISTA DO “CRIME”: NOTAS SOBRE “GUERRA”,
“DIREITOS HUMANOS”, “PROGRESSO” E ETNOGRAFIA44
Adalton Marques
[email protected]
CAPES
PPGAS-UFSCar
Doutorando
Neste paper, desdobramento de minha pesquisa etnográfica com “ladrões”, em curso desde
2004, trato do que eles dizem a respeito de “direitos humanos”, genericamente definido como
“luta contra a opressão carcerária”. Delineio alguns contrastes entre a noção universalista de
direitos humanos e a noção êmica “direitos humanos”, por meio da qual meus interlocutores
refletem sobre uma alteridade que pode abranger, por exemplo, tanto os esforços da Pastoral
Carcerária quanto os de pesquisadores. Seu aspecto provocativo – suponho que apenas para
nós – consiste no fato de que ela também pode ser usada, conforme apresento em dois casos
etnográficos, para refletir não a alteridade, mas os próprios esforços dos “comandos” (facções
prisionais) a que se está relacionado.
Palavras-chave: Etnografia; reversibilidade; direitos humanos; Primeiro Comando da Capital;
Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade.
***
Neste paper, desdobramento de minha pesquisa etnográfica com “ladrões”, em curso
desde 2004, trato do que eles dizem a respeito de “direitos humanos”, genericamente definido
como “luta contra a opressão carcerária”. Delineio alguns contrastes entre a noção
universalista de direitos humanos e a noção êmica “direitos humanos”, por meio da qual meus
interlocutores refletem sobre uma alteridade que pode abranger, por exemplo, tanto os
esforços da Pastoral Carcerária quanto os de pesquisadores. Seu aspecto provocativo –
suponho que apenas para nós – consiste no fato de que ela também pode ser usada, conforme
apresento em dois casos etnográficos, para refletir não a alteridade, mas os próprios esforços
dos “comandos” (facções prisionais) a que se está relacionado.
Positivamente definido, segundo as observações de meus interlocutores, “direitos
humanos” são o conjunto de esforços contra a “opressão carcerária”, mas também contra a
“opressão” e “injustiças” a que foram e são submetidos os “pobres”, os “pretos” e o “povo da
44 Faço uso das aspas tanto para marcar os termos e formulações de meus interlocutores, quanto para indicar a
citação de autores (neste caso, seguido da referência bibliográfica). O uso do itálico fica reservado para ênfases
textuais e conceituais.
137
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
periferia”. Esta “opressão” está relacionada ao “preconceito”, à “violência policial”, ao
“desemprego”, à “falta de oportunidades” – questões bastante concretas para qualquer um que
conhece a periferia de São Paulo –, aquela, ao desrespeito sistemático do “Estado” no que
tange o cumprimento da LEP, Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984) –
questionamento bastante concreto para qualquer um que conhece as prisões de São Paulo. Tal
definição, por um lado, carrega um enorme ceticismo quanto à possibilidade dessas mudanças
partirem do “sistema” – noção que poderia ser traduzida como a convergência majoritária de
interesses que atravessam o governo, as polícias, as elites, a classe média, e mesmo as classes
baixas (afinal de contas, como dizem meus interlocutores, “nas quebrada tá cheio de zépovinho”). Por outro, passa ao largo de qualquer intenção universalista, já que o termo
“humanos” aponta para os “oprimidos” das prisões e periferias urbanas enquanto o termo
“direitos” encontra consistência na LEP, no Código Penal (1984), na Constituição Federal
(1988).
Com efeito, o signo deste ceticismo não está fundado numa suposta consciência
esclarecida a respeito da dissimulação dos interesses do “sistema” por meio da letra da lei (o
real escondido sob o formal, sob as aparências), mas no entendimento segundo o qual o
“sistema” conta com a prerrogativa de cumprir ou não as próprias leis que funda, de acordo
com seus interesses conjunturais. Não são as leis, portanto, o alvo da incredulidade, mas o
“sistema” que a opera à revelia. Neste sentido, não são ironias, gozações e acusações de
ingenuidade que devem recair sobre aqueles que acreditam na lei, mas é a acusação de
“inimigo” que deve ser dirigida àqueles que acreditam na “justiça” do “sistema”. A lei não é o
reflexo falsificante de uma operação encoberta, mas um instrumento operado por “inimigos”.
A questão política não é pensada fora da lei, mas contra o “sistema”. Em uma palavra, meus
interlocutores são legalistas45.
Por sua vez, o não-universalismo da noção de “direitos humanos” mobilizada por
meus interlocutores encontra ressonância mais produtiva na resoluta “boutade de Burke,
45 Não deixa de ser interessante notar a estranheza que expressam quando indagados sobre uma possível
abolição das prisões. Indagando dois de meus interlocutores sobre a pertinência de colocar esta questão no
horizonte político dos presos, ouvi a seguinte resposta: “Cê é louco! E o que que vai fazer com esses lixo de
estuprador, de assassino [referia-se aos homicidas não relacionados a roubos ou disputas “no crime”]... esses lixo
tudo?”. Ao que o outro concordou, mas intensificou a repulsa: “Pode crer. Esses maluco tinha que morrer tudo”.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
segundo a qual aos direitos inalienáveis do homem ele preferia de longe os seus 'direitos de
inglês'” (Agamben, 2002: p. 133-134), do que nos impasses políticos em torno de universais –
o homem – e particulares – o cidadão – disparados desde a Déclaration des droits de l'homme
et du citoyen (1789). Pois essa categoria nativa de “humanos”, para não reduzi-la
definitivamente, está tão distante da tolerância indiscriminada de um direito cosmopolita46
quanto está próxima da noção de cidadão brasileiro. É claro que ativistas dos direitos
humanos, militando contra a intolerância, a xenofobia, o racismo e outras formas de ódio –
para não dizer, contra os etnocentrismos –, desde que também preocupados com a “opressão
carcerária”, são vistos como “direitos humanos” pelos meus interlocutores. Mas a diferença
chave entre as duas conceituações homônimas é que a primeira, seguindo o projeto
universalista de direitos, também se engaja na luta contra a “opressão carcerária”, enquanto a
segunda luta contra a “opressão carcerária” sem que a validade universal do “homem” lhe seja
uma questão. É preciso não perder de vista que eles estão em “guerra”, portanto pouco
inclinados a atender incentivos de escuta de seus “inimigos”, a construir ferramentas de
simetrização entre as argumentações contrárias, a buscar meios de dialogar com tal alteridade.
Ora, mas então qual é a consistência política de uma noção de “direitos humanos” que
indica “luta contra a opressão carcerária”, ao mesmo tempo cética às iniciativas do “sistema”
e inaderente à tolerância indiscriminada que parece indicada em seus termos?
Dois exemplos etnográficos, um bastante recente, referente ao encontro com um
grande amigo que acabara de “sair” de uma “cadeia do PCC” (Primeiro Comando da
Capital)47, o outro recuado no tempo, reativado de meu caderno de campo por conta deste
encontro, referente a uma conversa com um interlocutor que se encontrava em uma “cadeia do
CRBC” (Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade) nos idos de 2005, ajudam a
traçar os contornos políticos desta abstração contrastiva que opero entre direitos humanos e
“direitos humanos”.
Comecemos pelo exemplo que partiu de uma “cadeia do CRBC”, primeiro em ordem
cronológica, último na ordem de suscitações desta reflexão. Ele me apareceu, sem que eu
46 Lévi-Strauss (1986) e Geertz (1999) oferecem duas críticas ao cosmopolitismo da UNESCO. Embora internas
à Antropologia, são bastante diferentes em suas formulações e consequências.
47 Para um tratamento acurado e imprescindível sobre a “política” do PCC nas prisões, cf. Biondi (2010).
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
desse muita importância, quando um preso disse-me que quem garantia os “direitos humanos”
dos presos daquela unidade prisional era o próprio CRBC. Esta forte afirmação foi proferida
quando conversávamos sobre as chantagens que agentes estatais mobilizavam para coibir não
só as reivindicações contra “opressões carcerárias”, mas também as ameaças de rebelião.
Estas chantagens consistiam em ameaças de transferir os presos reclamantes para “cadeias do
PCC”, onde muito provavelmente seriam mortos, e se sustentavam no “pouco ar” – expressão
que indica o número reduzido de unidades prisionais que a Secretaria da Administração
Penitenciária reserva a este coletivo – com que contavam os presos de “cadeias do CRBC”.
Sua afirmação foi dirigida a mim justamente no instante em que expressei a necessidade de
levar esta denúncia à Defensoria Pública e a entidades de defesa dos direitos humanos, como
reação imediata de quem reconhece a ineficácia dessas medidas.
Passemos ao próximo exemplo. Em fevereiro deste ano (2014), numa manhã de
sábado, quando saía com meu filho de um supermercado do bairro, reencontrei um grande
amigo, o qual eu não via há pelo menos cinco anos, tempo em que ele estivera preso. A
alegria foi imensa, ele estava forte e corado, bastante diferente da figura cadavérica que tinha
se instalado em minha memória desde a última vez que eu o vira desgraçadamente alucinado
de “crack” – nas “cadeias do PCC” é proibida a venda e o uso desta substância. Enquanto
ainda nos cumprimentávamos, de modo rápido e codificado, em respeito ao meu filho, ele me
falou sobre o “veneno” vivido e a alegria de “ganhar a liberdade”. Entendendo seu sinal com
os olhos, em direção de meu filho, deixei a conversa ganhar outro rumo, então ele
imediatamente perguntou ao garoto se ele também era “tricolor” (torcedor do São Paulo
Futebol Clube), como eu e ele próprio. À resposta positiva seguiu sua aprovação fanática e
lembranças de quando nós, ainda com dez, onze, doze anos, íamos sozinhos para os jogos do
nosso time. A conversa permaneceu voltada ao nosso passado comum, alternando lembranças
saudosas e risadas de nossas “zoeiras” escolares. Quando já dávamos sinais de que tínhamos
que ir embora, ele dirigiu sua preocupação para o futuro, dizendo que estava pensando em
comprar uma moto para trabalhar com entregas. Seu irmão, único parente próximo vivo, iria
ajudá-lo neste “reinício”, até que ele próprio tivesse em condições de “tocar a vida”. Aprovei
sua intenção e fiz votos pelo seu sucesso. Agradecido, ele me perguntou sobre o meu trabalho,
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
indicando que os “caras” (indeterminado) tinham lhe falado que eu era “professor” – “quem
diria”, disse ele, ironizando minha indisciplina escolar – e que “escrevia umas paradas”.
Fiquei um pouco constrangido com a imprecisão, afinal de contas, minha atividade
profissional está diretamente relacionada ao estudo de (ex)presidiários. Seis ou sete anos antes
eu o havia procurado para dizer que tinha passado no mestrado em Antropologia da
Universidade de São Paulo – ingressei no PPGAS-USP em 2007 – e que pretendia estudar o
“crime” a partir de seus critérios de relevância. Porém, envolvido em “correrias”, ele foi um
de meus interlocutores que, constrangido entre a amizade devida a mim e os perigos nos quais
estava implicado, me “deu um desbaratino”48 e não voltou mais a tocar neste assunto. Agora
uma nova abertura era produzida, uma nova possibilidade de tentar estabelecer uma
convergência entre as suas e as minhas preocupações. Sem lhe responder com precisão, disselhe para passar em minha casa mais tarde, a fim de continuarmos a conversa.
Conforme o combinado, meu amigo me visitou mais tarde. Entre o tempo de
preparação do café e, em seguida, de seu desfrute, tentei explicar-lhe a natureza exata da
minha atividade profissional, lendo, inclusive, alguns trechos de meus artigos em que
descrevo as críticas dirigidas ao “Estado” pelos presos, com isso evidenciando a minha
disposição antropológica em não desconsiderar – ou considerar apontando distorções – os
sentidos da “justiça” e da “injustiça” elaborados pela analítica do “crime”. Indagado sobre
como isso poderia ajudar os presos, disse-lhe que os meus escritos, assim como os de outros
pesquisadores49, segundo o meu entendimento, se tratam de esforços para enfatizar o caráter
analítico das considerações implicadas no “crime”, diferente do que fazem aqueles que tomam
parte na discussão sobre a segurança pública, seja de forma mais conservadora (na qual o
ponto de vista do criminoso não é uma questão), seja em sua forma mais progressista (na qual
a questão central é a construção de canais cidadãos e democráticos para a fala do
48 Em uma de suas acepções, “dar um desbaratino” é se esquivar de um pedido ou de uma exigência.
49 Eu pensava, principalmente, nos trabalhos de Antônio Rafael Barbosa – quem primeiro, no Brasil, suscitou no
horizonte das ciências sociais a indignidade de falar em nome dos “traficantes”: “[f]oi a entrada no campo que
permitiu encerrar minha adesão ao oportuno e iniciar-me no inoportuno” (1998: p. 12) –, Karina Biondi (2010),
Daniel Hirata (2010; especialmente o Capítulo 3 [Parte II] e a Conclusão), Paulo Malvasi (2012), Carolina Grillo
(2013) e Jacqueline Ferraz de Lima (2013).
141
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
criminoso)50. À minha resposta, ele reagiu com surpresa, pois não sabia que havia
“professores da USP, das universidade” que se interessavam pelas “ideias” e reivindicações
do “Partido” (PCC). Pensando sobre essa possibilidade até então desconhecida, ele a
justificou – no sentido de lhe conferir plausibilidade – afirmando que, na verdade, eu pensava
assim por ser um morador da “quebrada”, pois “na quebrada as pessoas sabe que o Partido é
pelo certo”. Tentei problematizar este exclusivismo, dizendo que na própria “quebrada” há
muitas pessoas que não compartilham essa disposição política51 – e, inclusive, que eu às levo
a sério também – ao passo que outras tantas que não são de “quebradas” são sensíveis às
críticas do PCC ao “sistema”. Ele pensou um pouco, então, embora parecesse querer validar a
minha problematização, mobilizou sua experiência tornando-a instável. Disse que a única
“parada” que ele conheceu durante o tempo preso, próxima ao que eu estava propondo, era
“os caras da Pastoral” (Pastoral Carcerária). Contudo, frisou, “eles tava contra a opressão do
sistema, nessas parada de direitos humanos, mas eles não apoiava o Comando”. Disse,
inclusive, que a “entrada” deles era “tensa”, porque “os irmão [os “batizados”, componentes
do PCC] sabia que eles não era aliado nosso”. Esta fricção política não me era estranha, então
lhe disse que conhecia pessoas ligadas à Pastoral que falavam sobre essas dificuldades. De
todo modo, lhe disse também que o papel dessa entidade era importantíssimo, já que além da
defesa dos direitos dos presos se tratava de uma das poucas iniciativas voluntárias e dispostas
a pisar no chão dos cárceres. Do meu ponto de vista, sublinhei, é a mais atuante defensora dos
50 Contra esta última acomodação, é particularmente interessante a análise de Candotti (2012) sobre o “abismo”
que se constituiu no seio da comunidade negra estadunidense desde que sua parcela mais bem “estruturada”
declinou – pelo menos assim foi percebida pela parcela mais “vulnerável” dos jovens negros – de suas
exigências radicais, o fulcro das lutas ao longo dos anos 1960 e 1970, em nome da ascensão econômica-cultural
via cidadania (é bastante relevante o fato de que já não falavam a partir dos guetos, mas de bairros de classe
média). Constituído sobre essa fenda política, com um pé no saber dos movimentos sociais e com o outro no
saber das ruas e da prisão, o rapper Tupac Amaru Shakur ora é compreendido pelos “velhos” negros como
alguém que também fortificava a via da cidadania, já que seu discurso era percebido como reivindicação dos
direitos da juventude (e esses sujeitos percebidos como vítimas passivas), ora essa compreensão balbucia, pois o
rapper atualiza a própria fala da juventude e justifica o saber das ruas e da prisão contra a via cidadã – quase
sempre fechada aos negros pobres ou, quando não, inapta para prepará-los para a vida. Pois é justamente esta
contestação que está na base do ceticismo de meus interlocutores: o que ainda a presunção de igualdade da
democracia, dos liberais, tem a ensinar aos jovens pobres (quase todos pretos, ou quase brancos de tão pobres)
que têm diante de si o desafio de ganhar dinheiro (eis a exigência incontornável) em circunstâncias estruturais de
desemprego/ subemprego, déficit de habitação, saúde e educação, e, talvez a mais grave dificuldade a ser
enfrentada, diante da certeza de que não se pode confiar nos policiais e na Lei? Cf., também, Barbosa (2006).
51 Cf. Marques (2012).
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
direitos humanos nos cárceres. Concordando comigo, ele estabeleceu uma comparação que
me causou um certo desconforto, embora seja bastante instrutiva: “pelo que você tá falando,
vocês acredita no Partido mas não faz um córre pra ajudar os presos; [enquanto] os cara da
Pastoral faz um córre pros preso mas não acredita no Partido”. Antes que eu pudesse reagir a
esta comparação, ele riu, e com um pouco de ironia acrescentou: “engraçado, só o Partido
ajuda os preso ao mesmo tempo que sabe que tá pelo certo”. Um pouco envergonhado,
suponho que por conta dos próprios demônios que coloquei em mim mesmo, não consegui
reagir à sua provocação. Percebendo meu acanhamento, meu amigo me deu um abraço
dizendo: “você é um cara sangue bom; pensa nessa fita que eu falei, mas você é sangue bom”.
Desta conversa até o fatídico dia em que soube que meu amigo fora preso após um
grave acidente de trânsito, ocorrido quando fugia em uma motocicleta, junto a um parceiro, de
policiais que os haviam surpreendido assaltando um posto de combustível, eu o encontrei uma
porção de vezes, embora em apenas duas ocasiões tivesse conversado mais demoradamente.
Este intervalo não ultrapassou a marca de dois meses, talvez três. Uma dessas conversas se
deu quando o encontrei na subida da rua em que minha mãe morava, eu a pé e ele em uma
velha moto de cento e vinte e cinco cilindradas, que havia sido comprada com o dinheiro do
irmão, conforme ele planejava desde a primeira vez que nos reencontramos. Bastante
desolado, me contou que acabara de ser dispensado de um emprego no qual nem mesmo havia
iniciado. Fora previamente aprovado para trabalhar em uma empresa de manutenção e reparo
de motores de veículos (retífica de motores), mas um telefonema acabara de informá-lo sobre
a desistência da empresa. “Os caras puxaram minha ficha, certeza”, lamentou, referindo-se ao
serviço de fornecimento de atestado de antecedentes criminais da Secretaria de Segurança
Pública. Com o espírito religioso, lhe disse que se fechava esta porta, mas que seriam abertas
muitas outras. Ao que ele opôs suas próprias constatações materialistas: “tá foda de arrumar
entrega de pizza até de sexta, sábado e domingo”, referindo-se aos dias em que a demanda das
pizzarias por motoqueiros aumenta no bairros. “Já tem os caras fixos”, reclamou. É
importante notar que este disputado ramo de serviço é constituído, predominantemente, sem
as garantias estabelecidas pelas leis trabalhistas, na informalidade, com (sub)remunerações
em torno de cinquenta reais por noite (tomando a região do Sacomã, zona sul de São Paulo,
143
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
como base para esta média) 52. “Mano, eu já tô atrasando o lado do meu irmão”, disse ele se
referindo à chateação que sua estadia causava ao parente, cuja situação econômica também
não era das melhores. Eu mesmo, alguns meses antes, tivera dificuldades de encontrar um
“quarto e cozinha” no bairro por menos de seiscentos reais – inclusive na favela, onde os
acordos não são mediados por imobiliárias, sendo um atrativo àqueles que não podem
adiantar três mensalidades, pagar um seguro ou se valer de um fiador. Fazendo cálculos
rápidos, no silêncio do meu pensamento, e chegando à conclusão de que, na melhor das
hipóteses, ele arrumaria uns oitocentos reais por mês fazendo seus “bicos” em pizzarias, fui
tomado pela mesma constatação materialista que o desolava53. Me calei. Este breve buraco
de silêncio foi quebrado quando ele, ligando sua motocicleta velha, suponho que tomado por
demônios que colocou dentro de si, disse-me: “é irmão, direitos humanos de ladrão é o
Partido, ninguém dá oportunidade”. Consternado, ainda extraí a última gota de humanismo, a
última fagulha de apelo à liberdade – para não dizer, reduzindo assim o seu sentido liberal,
cálculo utilitário –, dizendo-lhe: “mas, irmão, esse caminho é trágico, é cadeia ou cemitério”.
Já acelerando sua moto, concluiu: “Daltinho, o PCC é progresso”.
A noção de “progresso” é uma das mais importantes para os relacionados54 ao PCC,
talvez em proporção inversa à negligência que nós, pesquisadores do tema, temos dedicado a
ela. Seja mobilizada para indicar os sucessos da coletividade ou de seus relacionados em suas
“caminhadas” particulares, ou ainda, com bastante frequência, como voto comemorativo à
52 Uma das pizzarias referidas pelo meu amigo paga R$ 40,00 por noite, enquanto a outra paga R$ 25,00 (R$
30,00 nos finais de semana) mais R$ 2,00 por entrega, como forma de estimular a agilidade dos “motoboys”. Em
noites comuns, nesta última pizzaria, ganha-se aproximadamente R$ 50,00 e quando “o movimento é bom”
consegue-se por volta de R$ 60,00.
53 É imprescindível apontar que o Governo do Estado de São Paulo está gastando com a sua detenção
aproximadamente o mesmo que ele precisava para “tocar sua vida” – os R$ 1.500,00 que receberia na retífica de
motores. Mas este cálculo aproximativo tornar-se-ia mais cruel se pudéssemos somar os gastos per capta
envolvidos no policiamento da cidade, no judiciário, na saúde (por exemplo, em seu acidente), na segurança
particular (vigilância, seguros, blindagens, sistemas eletrônicos) e, fato consumado, nas próximas construções
penais concebidas para reduzir o déficit de milhares de vagas, ao qual meu amigo foi somado. Uma razoável
quantia envolvida para conter o seu corpo, que poderia – uma possibilidade – estar montado em uma velha moto
entregando peças reparadas.
54 Opto falar de relacionados por que a questão da pertença a “comandos”, prestando-se à definição dos
imputáveis e inimputáveis pelas políticas desses coletivos, simplifica demasiadamente as relações que
constituem tais políticas. Biondi mobiliza seus dados etnográficos com magnífica clareza para demonstrar de que
forma o “PCC” se efetua independentemente da presença de “batizados” (2010; especialmente p. 52; p. 181 e
ss.).
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“liberdade” que, segundo se diz, “mais dia, menos dia, vai cantar”, esta é a noção êmica que
menos se presta ao problema epistemológico o que é o PCC? encaminhado por nós,
especialistas55, justamente por que diz respeito menos a contornos morfológicos do que à
estimação de potência. Tampouco se reduz à razão instrumental dos planos (metas, objetivos),
embora, de maneira nenhuma, se possa negar que seus conteúdos estejam presentes nos
empregos de “progresso”. Positivamente definido, “progresso” é a noção elegida pelos
relacionados ao PCC para indicar o aumento ou favorecimento de suas próprias potências de
agir, de suas forças de existir56. Acompanhada pela constatação inversa, acerca da necessidade
do “Estado” – ou, de todo modo, do “sistema” – de afetá-los de uma maneira triste, inibindo
ou impedindo suas potências de agir. Nenhum segredo nisso. Em recente diligência
(10/04/08) realizada por deputados federais no Centro de Detenção Provisória I de Pinheiros,
na capital paulista, uma das unidades pela qual passou meu amigo durante sua primeira
detenção, além da constatação de “mais de 100% de superlotação”, da convivência de “presos
com tuberculose (...) com outros com aparente saúde”, de “reclamações de penas vencidas”,
de que “Juiz, Promotor e Defensor Público são servidores públicos desconhecidos no local” e
de que “a prisão é mal conservada e suja”, estes componentes da Comissão Parlamentar de
Inquérito do Sistema Carcerário se depararam com “diversos presos [que] se declaram filiados
ao PCC e elogiaram a sua política de assistência. Alguns afirmaram que 'o PCC é a sua
família'. Indagado dos motivos desta paixão57 os presos responderam que o PCC é melhor do
que o Estado” (Câmara dos Deputados, 2009: p. 106-107).
55 As duas pesquisadoras que têm polarizado esta discussão são Karina Biondi (2010) e Camila Caldeira Nunes
Dias (2011). Minha posição é bastante afinada, embora não completamente convergente, aos propósitos da
primeira, a quem eu reputo a melhor etnografia sobre o PCC, justamente pela capacidade de descrever processos
de conjuração que a noção de “igualdade” garantiu contra o permanente aparecimento de hierarquizações.
Quanto à análise da segunda pesquisadora, há sérios problemas concernentes ao controle dos dados (de onde
falam seus interlocutores?), que julgo se dever ao seu objetivo previamente definido de explicar a estrutura
organizacional do PCC (o que mais se pode encontrar, senão árvores, quando o que se tem na cabeça é uma
árvore como imagem de pensamento?).
56 A evocação nítida é à noção de afeto (affectus) exposta na Ética de Spinoza: “Por afeto compreendo as
afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao
mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (Spinoza, 2009; Terceira Parte, definição 3). A edição da Ética contida
na coleção Os Pensadores comete equívoco ao não diferenciar affectus de affectio (Espinosa, 1973: p. 184;
Definição III). Sou profundamente marcado pela leitura de Deleuze (2002).
57 É interessante notar que o termo paixão, em uma de suas acepções, significa parcialidade, ou seja, ausência
de isenção, de objetividade. Na filosofia spinozista ela é provocada por ideias inadequadas, representações sobre
145
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Neste mapa etológico dos afetos do PCC, de seus relacionados e – permitindo-me
suspender, estrategicamente, tão só por um instante, uma parte importante de suas “guerras” –
dos relacionados aos demais “comandos”, reside o nexo que permite compreender porque o
uso da noção “direitos humanos” pode ser dirigido tanto à Pastoral Carcerária (embora não
“acredite” no PCC – e demais “comandos”) e aos pesquisadores (embora não façam “um
córre” para ajudar os presos), quanto às políticas dos próprios “comandos”, na medida
variável em que aumentam ou favorecem suas forças de existir. Variável porque embora a
Pastoral realize um trabalho assistencial e espiritual58 bastante precioso aos presos e critique
seriamente o desrespeito sistemático pela lei e as diretrizes punitivistas dos governos (tanto
federal quando estaduais), ela não parece inclinada a conferir legitimidade epistemológica, ou
seja, política, às críticas dos “comandos” ao “sistema”; embora pesquisadores confiram essa
legitimidade ao pensamento dos “comandos”, a eles não se associam na forma da “guerra” e
nem prestam a assistência material (principalmente jurídica) de que tanto necessitam; já os
“comandos”, na aspereza de suas “guerras”, muitas vezes são levados a constatar: “é só nós
por nós mesmo”.
Como antropólogo – para falar de outro mapa de afetos –, meditando sobre aquilo que
convém ou não ao meu pensamento, gostaria, enfim, de suscitar a evocação de Otávio Velho,
tratando do “desconforto experimentado pelos antropólogos em geral diante do poder de
conversão do pentecostalismo” (2010: p. 20), à “observação de Henrietta Moore59, feita em
um caso extremo, de que não é suficiente 'acrescentar-a-mulher-e-mexer', aplicando a teoria
existente para resolver o problema de integrar a perspectiva feminina à antropologia” (2010:
o efeito de um outro corpo sobre o meu separadas das causas desse encontro (primeiro gênero de conhecimento).
A tradição antropológica que, ao invés de admitir complacentemente que somos todos nativos, tem levado às
últimas consequências “a aposta oposta – que somos todos antropólogos” (Viveiros de Castro, 2002: p. 115),
investe suas forças para conferir ao pensamento de seus interlocutores o estatuto de noção, um gênero de
conhecimento (o segundo na filosofia spinozista) por meio do qual se é capaz de compreender a causa de um
encontro e, portanto, de estimar sua conveniência ou inconveniência. Mas para isso, tem sido necessário apostar
em perspectivismos. Assim, mesmo quando diante dessas parcialidades terríveis, as facções, esta tradição
antropológica não tem apelado ao rebaixamento epistemológico de seus interlocutores (cf., por exemplo, Villela,
2004).
58 Não deixa de ser notável que a maior parte de meus interlocutores se refiram ao trabalho da Pastoral como um
esforço ligado aos “direitos humanos” e não à salvação espiritual, como são compreendidos os esforços de
igrejas evangélicas presentes em suas unidades prisionais.
59 Cf. Moore (1988).
146
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
p. 22). Com essa evocação, pergunto: serão os criminosos para nós, cientistas sociais, apenas
alvos de técnicas disciplinares? Apenas alvos da mão direita – o punho de ferro – do EstadoCentauro neoliberal? Apenas o refugo de uma virada global na qual o objetivo alegado para as
prisões já não passa pela questão da reforma para o trabalho, mas se explicita como estratégia
de contenção do excesso ao qual não se destina a sorte do trabalho? A referência ao uso que
fazemos, nós especialistas, de Foucault (2004), Wacquant (2012) e Bauman (1999: p. 119120), são apenas exemplos de muitos outros reducionismos que temos praticado nos estudos
sobre prisão – e não sobre os prisioneiros, sintomaticamente. Se não formos capazes de
encarar os problemas (político-epistemológicos) colocados por eles, mantendo-nos
resolutamente nesta faixa delgada que só diz respeito aos nossos problemas (políticoepistemológicos), então permaneceremos ligados a este procedimento de acrescentar-o(a)criminoso(a)-e-mexer, técnica de pesquisa a que se tem chamado, frequente e infamemente,
de etnografia. Mas mais que isso, embora conscienciosos sobre os efeitos nefastos da
espoliação econômica e da opressão carcerária que atinge diretamente, porém de modos
diferenciados, nós e eles, essa incapacidade, de início, nos impossibilita ousar uma
especulação (o que não garante salvação) acerca de nossa proximidade (o que não quer dizer
similaridade) em face da “guerra” – esta “guerra”, em tese deles, pela qual estamos todos
sujeitos à violência, à morte. Se, ao contrário, formos capazes de considerar os problemas
colocados por eles, não estaremos próximos de soluções. Mas no início de novos problemas.
Justamente por não se tratar de um dever, de um imperativo, depende da possibilidade de que
cada parte – nós e eles – mantenha-se capaz de explicitar suas divergências, aquilo que lhes é
relevante, e, portanto, capaz de concorrer em suas próprias transformações – não tenho a
menor esperança de que isso possa se processar através dos canais democráticos de qualquer
governo, pois não é uma questão de governo. Como imagino, essa comensurabilidade só pode
ser resultado de uma invenção precária, localizada, não-neutra, e sempre relativa a uma meta
(Stengers, 2011). Se uma tal possibilidade for objeto de um acordo (que nada tem a ver com
consenso), então talvez se produza aquilo que Isabelle Stengers (2011) vem chamando de
147
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
rapport – não seria o rapport uma das formas que pode assumir aquilo que Spinoza chamou
de noção comum?60 Talvez aí estejamos diante de um dos sentidos fortes de etnografia.
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60 “Será adequada na mente (…) a ideia daquilo que o corpo humano e certos corpos exteriores pelos quais o
corpo humano costuma ser afetado têm de comum e próprio, e que existe em cada parte assim como no todo de
cada um desses corpos exteriores” (Spinoza, 2009: Parte II, Proposição 39). Deleuze nos diz que “noção comum
é a representação de uma composição entre dois ou vários corpos, e de uma unidade dessa composição. O seu
sentido é mais biológico que matemático; ela exprime as relações de conveniência ou de composição dos corpos
existentes” (2002: p. 99).
148
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
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DOCUMENTOS
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
CÂMARA DOS DEPUTADOS. 2009. CPI Sistema Carcerário. Brasília: Edições Câmara
(Centro de Documentação e Informação).
150
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
PROCEDER NA ETNOGRAFIA: REFLEXÕES SOBRE UMA
ETNOGRAFIA NA QUEBRADA
Marcos Vinícius Guidotti Silva.
viní[email protected]
FAPESP
UFSCar
Graduando
Como estudante de Ciências Sociais que morou vinte e dois anos em uma periferia na zona
sul de São Paulo, pretendo com este paper apresentar os desafios políticos e teóricometodológicos encontrados durante o desenvolvimento de um trabalho junto a uma turma de
baloeiros – agrupamento de pessoas que se organizam em torno do interesse comum de fazer,
soltar e resgatar balões – dessa mesma região. Destaco minha trajetória de morador a
pesquisador; a maneira que construí um proceder de pesquisa como recurso metodológico,
utilizado tanto no desenvolvimento do trabalho de campo quanto na escrita do texto; por fim,
como o conceito de caminha também foi central para desenvolver o trabalho. Ressalto que o
dialeto das quebradas está inserido no texto e assim como as falas de meus interlocutores está
referenciado pelo itálico.
Palavras chave: favelas, quebradas, proceder e etnografia.
INTRODUÇÃO: DA FAVELA PRA FACULDADE
Este texto é fruto da minha correria61, e começo destacando dois interesses
fundamentais nela. O primeiro surge quando ingressei pelas cotas raciais no Curso de
Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no ano de 2011. Já no
primeiro ano de faculdade me interessei pelos trabalhos que tinham por resultado textos
etnográficos. Esse interesse foi aumentando com o passar do tempo, conforme tomei contato
com os professores do departamento de Antropologia.
O outro interesse já é mais antigo, decorre do fato de eu ter morado vinte e dois anos
em uma quebrada62 de São Paulo. Desde mulequinho me interessei pelos acontecimentos da
61
Correria nas periferias de São Paulo é um jeito de se referir à ação (é o fazer algo). Por exemplo, na profissão
de um motoboy a sua correria é fazer entregas pela cidade adentrando os corredores de carros no trânsito da
capital paulista. A correria também é um compromisso, uma ação que você se compromete a realizar. A minha
correria destacada aqui se refere ao meu curso e a pesquisa que desenvolvi com os baloeiros durante os anos de
graduação
62
Quebrada é um dialeto dos moradores dos bairros periféricos e favelas de São Paulo. Nesse paper ele
especificamente se refere a certas localidades especificas da cidade. Aquelas que se chamam também por
periferias, principalmente pelos não moradores. No entanto vale ressaltar que, em campo, quebrada não é
151
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
favela que me rodeava, por exemplo, as histórias da época dos bailes black nos anos de 1980,
contadas pelos meus tios. Época do extravaso, eles insistiam em dizer: “Era só extravaso,
muita malandragem, os caras usavam muita droga, era muita mina, tinha alegria, mas só que
era muita morte.” Outra lembrança que tenho na minha caminhada é do ano de 1998, quando
na escola, um amigo que descia do morro trouxe, em seu Discman, uma cópia pirata do
Sobrevivendo no Inferno, cd do grupo de rap Racionais MC’S. Esse disco contém músicas
que foram marcantes para mim, como Diário de Um Detento, Formula Mágica da Paz e
Capitulo 4 Versículo 3.
Foi inevitável estabelecer conexões entre as letras cantadas pelos Racionais, as
histórias dos meus tios e o que acontecia na quebrada no final da década 1990. Tenho o
Sobrevivendo no Inferno como a primeira obra artística vinda da favela que me possibilitou
refletir o que é morar em uma periferia e quais as implicações disso. Portanto, ao entrar na
faculdade as favelas e a vida de seus moradores já eram temas de interesse, mas não os via,
nem os formulava, como um assunto de pesquisa. Isso só foi acontecer na IX Semana de
Ciências Sociais da UFSCar, durante o minicurso de Antropologia das Relações de Poder,
ministrado pelo professor Jorge Villela.
Devido a compromissos do professor, as duas primeiras aulas do minicurso ficaram
por conta do doutorando Adalton Marques. No decorrer das discussões, para pensarmos as
estratégias de produção da “verdade”, Adalton deu exemplos presentes na sua dissertação de
mestrado sobre os debates - sucintamente entendidos aqui como disputas entre sujeitos, em
que se cobram posições claras acerca da “verdade” (Marques, 2010: 73) - envolvendo ladrões.
Ao final de sua exposição, não me contive e fiz um comentário sobre um debate acontecido
na minha quebrada - uma batida de carros que desencadeou uma disputa entre os envolvidos,
visando definir quem tinha a razão. Quando descrevi a ambientação, Adalton se surpreendeu,
simplesmente um sinônimo de favela, ou periferia. Ser de quebrada atende a outros sentidos, diferentes das
determinações de CEP ou dos pontos cardeais da cidade, como mostra Marques (2012: 5). Para o autor: isso tem
mais a ver com algo que se aproxima daquilo que podemos chamar de sentimento; ”um sentimento de
pertencimento alguns diriam”. Mas para nos esquivarmos de um completo equivoco, entendamos tal sentimento
enquanto algo que deriva de um agenciamento coletivo.
152
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
pois eu falava da mesma região do bairro que ele morava em São Paulo. Logo percebemos
que conhecíamos pessoas em comum e que nossas casas ficavam em ruas próximas.
Vendo as aulas do Adalton naquele curso, conhecendo mais seu trabalho e de outros
pesquisadores – como: Biondi (2010), Barbosa (1998) e Hirata (2010) –, percebi que poderia
falar de favelas através de um trabalho etnográfico. Posteriormente, lendo outros textos sobre
periferia (Feltran, 2011; Malvasi, 2012, Adorno e Salla, 2007), percebi que a “violência” e a
“criminalidade” se faziam centrais no debate bibliográfico atual. Guardada a total relevância
desses temas para compreender as periferias, meu interesse, entretanto, fugia de tais
temáticas. Pois, vivendo vinte e dois anos em uma quebrada, percebi que se as favelas são
muitas vezes pensadas como o “lugar da criminalidade” ou da “violência”, elas também
podem ser vistas, e principalmente vivenciadas, de tantas outras maneiras. Como me disse,
algum tempo depois, uma interlocutora: O crime existe, mas olha em volta, olha esse tanto de
criança e de gente que vive aqui! Existem coisas aqui que vão muito além do crime.
Com esse foco, procurei o professor Gabriel Feltran e marcamos algumas reuniões.
Nos encontros basicamente falávamos sobre possíveis temas de pesquisa para uma iniciação
científica. O que mais chamou atenção do professor foi um grupo especifico de moradores
que eu conhecia da favela, e formavam uma turma de baloeiros. Ao procurá-los para obter
informações prévias à pesquisa, os baloeiros me disseram que fazer balões e soltá-los não era
crime ambiental, como prevê o Artigo 42 da Lei Federal 9.605 de 1998, mas sim uma arte.
Ao levar a sério esse discurso, percebi que pensar essa arte seria um caminho rentável para
produzir uma reflexão das periferias sem necessariamente passar pelos temas da “violência” e
“criminalidade”.
DESENVOLVIMENTO: DA FACULDADE PRA FAVELA
Tomando como objeto essa turma de baloeiros, fiz um trabalho de campo no segundo
ano do curso. Nessa experiência algumas questões se colocaram. A primeira era definir como
abordar a periferia. No campo, vi a quebrada manifestar-se através de uma multiplicidade de
relações. Desde aquelas entre moradores e instituições – a favela como investida de ações de
ONGs e de programas governamentais – até as dos moradores com outras partes da cidade,
153
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
com o crime, a repressão policial e a quebrada como local de intensa produção artística. Um
rapper da região me dizia “que tudo é de quebrada, tudo é relação de quebrada, anota aí,
anota aí”. Ao tomar nota dessa afirmação, a questão colocada era falar das relações de
quebradas sem homogeneizar o que se faz múltiplo, e, sem cair na relativização do tema.
Fui encontrando soluções para essa problemática no próprio campo e dialogando com a
literatura antropológica de etnografia. Pois, como sugere Peirano:
“A obra de um antropólogo não se desenvolve, portanto, linearmente; ela revela nuanças
etnográfico-teóricas que resultam não apenas do tipo de escrita que sempre foi energizada
pela experiência de campo [...], mas também do momento específico da carreira do
pesquisador, em determinado contexto histórico e a partir de peculiaridades biográficas”.
(Peirano, 1999: 39)
Levando em conta essas questões, minha reflexão se voltou para as relações de quebradas à
medida que os baloeiros se relacionam com outros moradores da favela, com outros espaços e
sujeitos da cidade. Para não homogeneizar tais relações, nem relativiza-las, adotei um
movimento metodológico e analítico inspirado naquilo Marques e Villela (2005) expõem. Ao
trabalharem com famílias sertanejas em Pernambuco, os autores exprimem um aspecto pouco
ortodoxo em suas reflexões, que é que é um não compromisso com uma “verdade única”, nem
a composição de um “todo coerente” (Marques, 2002; Villela, 2008), Trata-se de uma espécie
de ênfase na ideia de perspectiva; eles destacam que só puderam ver aquilo que seus
interlocutores lhes permitiram conhecer. Sabendo não ser exequível pensar a quebrada como
um “todo coerente” nem buscar sua “verdade única”, viabilizei a etnografia pelo ponto de
vista dos baloeiros.
Dessa forma, utilizo o termo nativo de caminhada como conceito para descrever esse
movimento reflexivo. A caminhada de um sujeito na quebrada está ligada à sua trajetória – a
maneira como a pessoa se envolve nas relações63. Nesse sentido minha caminhada envolve
todos os aspectos do meu trabalho de campo, e posteriormente o texto que dele resultou.
63
Ferraz de Lima, ao etnografar as mulheres de membros do Primeiro Comando da Capital, percebe outros
sentidos atribuídos ao termo, como: extensão ou difusão de alguma narrativa; dimensão temporal; solo “ético” e
“moral” para a produção do proceder da “mulher fiel” (2013: 38).
154
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Biondi (2010: 33) enfatiza que, entre seus interlocutores, dizer que está na mesma caminhada
corresponde ao compartilhamento de um mesmo rumo, mas que cada sujeito faz a sua própria
caminhada. Minha caminhada de pesquisar a quebrada corria junto com baloeiros, pois
mesmo tendo uma motivação diferente da deles ao acompanhar a arte do balão, foi correndo
junto com eles que eu tive acesso às suas relações com turmas baloeiros de outras quebradas
- nos resgastes ou em solturas de balões -, com outros moradores da favela no dia a dia, com
as leis ambientais e a polícia.
Na condição de alguém que partilhou dos preceitos da quebrada como morador,
construí uma ética própria para minha pesquisa. O fato é que na favela não pode ser zé
povinho, ou seja, não pode falar demais da vida alheia, ao considerar isso precisei saber
chegar e saber sair. Adotando essa posição, tornou-se uma questão política falar de favelas no
ambiente acadêmico e manter as relações pessoais no lugar onde cresci. Ademais, partes
significantes do cotidiano dos moradores são orientadas por aquilo que definem como
proceder, esse conceito pode ser sucintamente compreendido como o comportamento
adequado de um sujeito, sobre o qual recaem avaliações de seus iguais 64.
Construí, em campo, um proceder de pesquisa, deixando claros meus objetivos para os
interlocutores. Expus que meu empreendimento não era uma pesquisa biográfica de vidas, que
provavelmente seus nomes e o da turma talvez nem fossem mencionados, e que o objetivo da
imersão em seus cotidianos era fazer uma reflexão etnográfica. Optei por algumas atitudes
que a meu ver preservaram meus interlocutores de possíveis problemas futuros, como a recusa
de oportunidades em acompanhar algumas operações policiais do Batalhão Ambiental da PM
- setor da Polícia Militar que atende ocorrências envolvendo solturas e quedas de balões. Não
obstante, mantive o proceder como recurso metodológico para a escrita etnográfica; omiti
informações demasiadas para os objetivos da pesquisa, por exemplo, as localidades de onde
os balões foram soltos, os contatos e processos necessários para encontrar um lugar de soltura,
e, por fim, nem onde fica a bancada – local que os baloeiros fazem os balões e os guardam
junto a outros objetos, geralmente é na casa ou galpão de um membro das turmas.
64
O trabalho de Adalton Marques (2010) apresenta um estudo profundo acerca do proceder do universo prisional
e das relações entre os ladrões. Mesmo que o contexto estudado pelo autor seja diferente do proposto pela minha
pesquisa, seu trabalho é essencial para entendermos as dinâmicas que envolvem as ideias em torno do proceder.
155
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Em dado momento em campo, quando me sentava para escrever os diários de campo, os
desafios metodológicos descritos acima me levaram questionar o quão produtivo, ou não, era
a minha condição de morador para fazer uma pesquisa com outros moradores. A questão era
se o saber que estava produzindo no fim das contas não seria apenas a versão do saber
“nativo” com uma roupagem acadêmica. Busquei na teoria etnográfica um ponto de apoio
para pensar isso. Strathern no texto The Limits of Auto-Anthropology (1987), ao refletir as
implicações teórico-metodológicas de fazer uma pesquisa “em casa” – quando os
pesquisadores partilham das mesmas dinâmicas sociais e culturais de seus interlocutores -,
verifica dificuldades em estabelecer as distâncias que marcam o contínuo cultural/social entre
pesquisador e seus interlocutores. A autora define o conceito de “casa” da seguinte maneira:
“Considero um modo de recuperar o conceito de “casa” de medições impossíveis de graus de
familiaridade. O contínuo obscurece uma ruptura conceitual. O que deve-se saber é se o
pesquisador ou pesquisado estão igualmente à vontade com as premissas sobre a vida social
que informam a pesquisa antropológica” ( Strathern, 1987: pag. 16. tradução minha).
Utilizando-me dessa ferramenta stratherniana, busquei uma fenda para produzir a “ruptura
conceitual” no “contínuo” entre eu e meus interlocutores, e a encontrei em nossas próprias
caminhadas. Como disse anteriormente, mesmo correndo junto com os baloeiros nossos
focos na arte do balão eram diferentes, eles diziam ser movidos pela paixão e amor à arte,
enquanto eu buscava refletir a periferia partindo de seus pontos de vista. O resultado que
busquei construir combinando nossas caminhadas foi o processamento etnográfico daquilo
que meus interlocutores informavam, e uma consequente produção de um conhecimento
diferente daqueles que eu e eles tínhamos da favela e da arte do balão.
CONCLUSÃO: COLANDO A BANDEIRA
Alinhando-se à proposta do grupo de trabalho que este paper será apresentando, ele
não é um texto pronto, mas sim reflexões em desenvolvimento. Então para dar um tom de
conclusão à exposição das ferramentas metodológicas que utilizei no meu campo e que
pretendo continuar desenvolver na monografia e durante o mestrado que viso fazer na
UFSCar, descrevo a maneira que trabalhei os dados de campo da minha iniciação científica.
156
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
(Figura1. Balão Bagdá 25m, Jesus. Turma Gênios)
Nessa imagem vê-se um balão levando uma bandeira que tem como tema o rosto de
Jesus Cristo. A bandeira é feita de pequenos pedaços quadriculados de folhas de seda
coloridas. Quando acompanhei sua confecção não conseguia identificar desenho nenhum, via
apenas recortes de seda colados uns aos outros. Somente quando o balão subiu, e a bandeira
se estendeu, pude vislumbrar um lindo desenho se formando na minha frente. Pensei os
pequenos recortes de papel como se fossem pixels, que, vistos isolados só mostravam uma
cor, mas, em conjunto - e com a bandeira esticada - tomavam a forma do tema escolhido pela
turma.
Posso dizer que sem dúvida, meus dados de campo se parecem e muito com esses
pequenos recortes de seda. Cada dado solto era só um dado, mas quando eu sentei para refletir
tudo o que percebi em campo, o campo foi se (re)constituindo e a reflexão tomando forma;
meu trabalho era colar pedaço por pedaço. E a minha vivência como morador fazia sentido
nesse processo, pois muitos dos dados só tinham sentido conectados, ou colados, a outras
experiências vividas que eu controlava pelo processamento etnográfico referenciado acima.
157
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Com isso contrastava a experiência de morador com a de pesquisador sobre minha bancada –
em referencia ao lugar onde os baloeiros fazem a bandeira e os balões-, produzindo um
conhecimento da favela pelo viés etnográfico. Arrisco-me dizer, que o trabalho desenvolvido
na minha iniciação científica é a minha bandeira, e da mesma maneira que um balão solto traz
consigo o inicio do projeto de um novo balão (escolha do tema, confecção e soltura), as ideias
e ferramentas teórico-metodológicas, iniciadas na minha graduação, abrem o caminho para
novos desafios e desenvolvimento de um mestrado que “soltará” outras ideias.
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existir um maior cuidado entre as palavras ditas e respeito entre moradores das quebradas. 36º
Encontro Anual da Anpocs, 36. Águas de Lindóia – SP. Anais.
158
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
______________. 2010. Crime, proceder, convívio-seguro: um experimento antropológico a
partir das relações entre os ladrões. Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo.
MARQUES, Ana Claudia. 2002. Intrigas e Questões: vingança de família e tramas sociais no
sertão de Pernambuco. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: UFRJ, Núcleo de Antropologia da
Política.
______________________; VILLELA, Jorge. 2005. O Que Se Diz O Que Se Escreve.
Etnografia e trabalho de campo no sertão de Pernambuco. Revista de Antropologia, V.48, p.
37 -74.
PEIRANO, Mariza. 1995. A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
STRATHERN, Marilyn. 1987. The Limits of Auto-Anthropology. In: Anthony Jackson,
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VILLELA, Jorge. 2008. Política e Eleições no Sertão de Pernambuco: O povo em armas.
Fortaleza: Universidade Federal do Ceara/Fucap/CNPq- Pronex; Campinas: Pontes Editores.
159
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
INTERTEXTUALIDADE ETNOGRÁFICA: DESAFIOS NA ESCRITA
ETNOGRÁFICA NA AUTORREPRESENTAÇÃO INDÍGENA
Josué Carvalho
[email protected]
CNPq
PP-UFMG
Doutorando
Resumo: A relação entre as formas de pesquisas de cunho científico apreendidas em
disciplinas como metodologias da pesquisa, especificamente no campo antropológico, no que
se refere a técnicas científicas de pesquisa para autorrepresentação indígena, tem sido
marcada por momentos de aproximação, distanciamento, rupturas, reaproximação e, mais
recentemente, de novas perspectivas de diálogos. Neste ensaio, no rol de discussões sobre
diferentes métodos e formas de fazer etnografias, chamo a atenção para questões como: no
processo autoetnografico indígena, que tipo de “intertextualidade” a etnografia antropológica
proporcionaria ou tem proporcionado para os sujeitos envolvidos em sua realização?
Palavras-chave: Criança indígena, autoetnografia, intertextualidade.
INTRODUÇÃO
Quem diz, diz de si, mas pode não ser sobre si. Quem experiencia, experiencia-se. Mas quem escreve, escreve
sobre si, sobre os outros e sobre o mundo. No universo da palavra grafada todos somos um só, com maior ou
menor sentido.
LUDWIG, R. J. (online)
Esse ensaio faz jus aos caminhos percorridos no campo desde 2010 quando iniciei meus
registros para o Mestrado em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro – UNIRIO. Para o mestrado os sujeitos foram anciãos e anciãos, pertencentes ao Povo
Indígena Kaingang do Sul e Sudeste do Brasil, o intuito era detectar os etnosaberes nas
narrativas destes e analisar em que medida a memória oral esta ameaçada ou se fortalece com
as novas formas de registro, não só o escrito, mas o registro na internet, no vídeo, nas
imagens.
Em 2012, já no processo de doutoramento em Educação pela Universidade Feral de
Minas Gerais – UFMG, meus olhares se voltam para o universo da criança, onde desde então,
busco identificar as práticas de aprendizagem da língua e da cultura tradicional a partir da
160
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
vida cotidiana da criança indígena Kaingang da Terra Indígena Nonoai – nordeste do Rio
Grande do Sul.
Quando comecei meus estudos sobre meus ancestrais, o primeiro passo foi mapear
todas as informações e discussões possíveis referentes ao tema. Uma revisão bibliográfica foi
essencial. Com isso busquei em conjunto com meus orientadores (professores: José Ribamar
Bessa Freire – UNIRIO, Marília Xavier Cury – USP, Ana Lúcia Vulf – UFSC e Ana Maria
Rabelo Gomes – UFMG) obras sobre imigração, colonização, história, antropologia,
educação, geografia, multiculturalismo, entre outros tantos escritos que nos dariam base para
contextualizar a cultura Kaingang na voz de seus velhos, assim como o ato de narrar, e mais
tarde sobre as práticas de aprendizagem e ensino tradicional no universo da criança Kaingang.
Buscamos bibliografias históricas e atuais, sobre os grupos distribuídos no sul e
sudeste do Brasil contemporâneo. Por questões de formação acadêmica priorizamos a
historicidade como base de análise dos suportes, por entender que ela é quem dá significados
e contextos aos suportes aproximando os indivíduos, criando a noção de etnicidade e
construindo a identidade. Com esta linha teórica buscamos leituras que nos apoiassem e
pudessem dialogar juntas. Para isso precisamos recorrer a obras sobre memória, história,
etnia, educação e temas transversais que aproximam estas categorias.
Na função de pesquisador indígena nunca foi meu objetivo fazer uma reconstrução ou
reconstituição sintética do passado cultural do povo Kaingang, o intuito desde o inicio foi
registrar as práticas culturais Kaingang no presente (tendo em vista a dinâmica multicultural
dele), suas memórias, suas formas de pensar e fazer no hoje. Fazer referência ao passado se dá
pelo objetivo de situá-lo no tempo e no espaço para localizá-lo e entendê-lo no contexto
histórico e geográfico em que vive nos dias atuais. Para um estudo maior sobre o espaço
geográfico, podemos destacar os estudos de Ítala Irene Becker (1975), Leonel Piovezan
(2007), Veiga (2002), entre outros.
Podemos definir como primeiro momento desse estudo o que pode ser entendido como
pesquisa participativa e através de percepção ambiental, seguido pela etnografia, porém a
questão ainda hoje está no entender-se como pesquisador da própria cultura. Como dizer
161
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
academicamente à luz de tantas teorias de como pesquisar e de como escrever sobre si e
outros.
Porém minha “participação” como pesquisador logo se encerrava, porque na maioria
das vezes bastava dizer (no caso do primeiro campo com os anciãos): Eu me lembro que
quando era criança minha avó contava que não era como hoje [...], logo o ancião (ã),
principalmente os Kujás, como se em transe, roubavam do tempo suas lembranças, e através
da memória podemos dizer que o narrar os fatos era tão real, como se estivessem ainda
vivendo naquele exato momento em que se viveu no passado. Porém, outros anciãos nada me
disseram, optaram por mostrar suas memórias “fazendo”, como no caso da anciã Kaxin
(“rato” na língua Kaingang): quando nos lembramos da culinária tradicional, a anciã nos
convidou para irmos até a mata mais próxima, no carreiro entre a mata ela nada nos disse,
apenas colhia folhas que na aldeia conhecemos como “folhas de mandioqueira ou mandioca
brava”, as folhas se assemelham às folhas do “aipim, da macaxera”, após a anciã apanhar um
boa quantidade em seu cesto feito de taquara, voltamos para sua casa.
No rancho, após lavar as folhas, a anciã se pôs a esmagar, “socar” em seu pilão as
folhas; logo depois de esmagadas, pôs a cozinhar na velha panela de ferro sobre o fogo de
chão e em seguida foi preparar outra comida tradicional, o “émin”, um pão, hoje preparado
com a farinha de trigo, sal, fermento e água. Quando a massa ficou pronta, anciã a envolveu
em folhas de caeté, que também havia colhido ao ir apanhar as folhas da mandioqueira, logo
após, afastou as brasas do fogo de chão e pôs o pão para assar, cobrindo todo o embrulho com
cinzas e depois brasas. O bolo ficou sob as brasas por mais ou menos uma hora; quando foi
retirado, as folhas estavam quase todas queimadas, mas o pão estava assado, como se
tivéssemos posto no forno.
O alimento que Kaxin preparou é conhecido na aldeia como “cumim”, depois, cerca
de três horas fervendo, o cumim foi retirado do fogo e nos foi servido junto com o pão e a
carne de porco, também assado nas brasas da fogueira, e a anciã simplesmente disse: Era
assim que a gente comia no passado, mas o émin era feito de outra forma e a carne a gente
assava os pedaços no fogo, mas era preciso ter tempo para preparar.
162
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
É claro que durante o tempo de busca do alimento na mata, conversamos sobre algo,
porém as palavras da anciã eram poucas e ela se limitava a falar do que estava fazendo, falava
apenas de assuntos que rodeavam a aldeia no presente. Após termos passado o dia com a
anciã, percebemos através de suas palavras que contar sobre o passado era um pouco
doloroso, e mesmo que tentássemos, se ficássemos apenas em sua casa nada saberíamos,
porque, para a anciã, o processo de transmitir conhecimento é vivendo e, segundo ela, sempre
foi assim: a anciã lembra que sempre viu seus pais fazerem e reproduzia o que estava vendo.
Nos aconselhamentos dos velhos e ao observar e participar do cotidiano da criança
Kaingang, fui levado inevitavelmente a entender cada contexto narrado, vivido como histórias
de vida, pequenas biografias e trajetórias individuais e coletivas. Percebemos em cada
contexto o índio Kaingang como um sujeito de múltiplas ações sociais desde os primeiros
anos de vida até envelhecer. Nesse sentido é possível entender que os indivíduos, na sua
singularidade, se tornaram matéria da antropologia, à medida que são sujeitos de uma ação
social constituída a partir de redes de significados. O individuo desde os primeiros anos de
vida é também intérprete de mapas e códigos socioculturais, dando lugar a uma visão
dinâmica de si e da sociedade e procurando estabelecer pontes na relação com o outro, através
da fusão natureza, homem e espíritos.
No trabalho de campo, o diálogo entre pesquisador e sujeitos se deu com bastante
plenitude – embora como pesquisador fosse muito próximo em nível de parentesco de alguns
dos sujeitos, isso não era regra. O fato de pertencer ao grupo gerou certa confiança, que posso
dizer que pode ter levado a mais próximo do processo cultural Kaingang que estava guardado
apenas na memória dos velhos, assim como participar ativamente nas brincadeiras, vida da
criança. Porém muito do que nos foi permitido saber, jamais teve a intenção por parte dos
velhos de ser revelado ao mundo exterior dos Kaingang, assim como as crianças estavam
apenas preocupadas em interagir, brincar e ir para lugares na companhia de um adulto (eu), já
que sozinhas não poderiam ir, e isso talvez tenha sido um dos grandes desafios ao transcrever
as práticas e aconselhamentos, mas que, no entanto, nos deu todo o subsídio para entender a
percepção do “outro” que se encontra dentro do próprio grupo e exterior ao grupo. Um
movimento de alteridade bifocal, uma vez que os mesmos indivíduos estavam sob a
163
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
significação de uma lente dual, que (1) os via como próximos, dada a genealogia que se
apresentava com o pesquisador, e (2) distantes, para um processo de estudo em si, vendo-os
com olhar contemporâneo.
Após as vivências, as amostras do campo teriam que ser transcritas, chamo de
amostras porque embora em alguns momentos haja transcrição das práticas e
aconselhamentos tal como ocorrem, não é de meu interesse transcrever a etnografia da vida
diária, mas de momentos, contextos e de fatos: acontecimentos que se interligavam para
justificar o que me propus a desenvolver tanto para o mestrado quanto para o doutorado. Ao
transcrever pude perceber que seria possível transcrever as interligações, as amostras de como
chegar à memória e como foram contadas oralmente, ou onde nasce o processo de
aprendizagem e ensino. Porém, as gesticulações, os olhares que também eram reprodutores ou
silenciados, os elementos próprios da linguagem oral, vista e vivida no campo não poderiam
ser transcritos, a escrita não poderia e nunca poderá transcrever o que é de fato vivido no
campo. Nesse sentido percebo a escrita como uma transposição daquilo que é vivenciado em
campo e não uma transcrição, pois que o momento de transpor é uma tentativa de passar as
experiências que só quem viveu sabe genuinamente o que significam.
QUE
TIPO
DE
INTERTEXTUALIDADE
A
ESCRITA
ETNOGRÁFICA
ANTROPOLÓGICA PROPORCIONARIA OU TEM PROPORCIONADO PARA OS
SUJEITOS ENVOLVIDOS EM SUA REALIZAÇÃO?
Complexo de Gabriela: eu nasci assim, cresci assim, sou mesmo assim e vou ser sempre
assim.
O que tenho percebido nas metodologias acadêmicas para escritas etnográficas é um
movimento tendencioso de fazer etnográfico calcificado, calcado em moldes entendidos em
pesquisa cientifica oriundas de países ocidentais que não o Brasil, anacrônicos para os estudos
indígenas, ou seja, que não condizem com as necessidades percebidas em campo (não
racionalizadas), na forma de construir metodologicamente um cronograma de estudo que
confere confluências no que concerne ao campo indígena como objeto de significação. O que
percebo nas escritas é um escrever estilo complexo de Gabriela de Jorge Amado! Não há um
movimento para perceber o índio em transição, contemporâneo a seu tempo; há uma linha de
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
escrever o campo, as práticas voltadas para o exótico e não para as problemáticas sociais
também vividas pelo índio e isso é enxergá-lo superficialmente, uma prática assim executada
há muito tempo tem induzido o pesquisador indígena também a ir por essa vertente sem
modificá-la. Falo de um desconforto espaço-temporal que circunda os “modelos-Gabriela” de
fazer pesquisa, em que a intenção maior é consagrar quem diz o estudo, e não se importa com
se de fato tal estudo tem relevância para uma transformação do arcabouço teórico do tema
estudado, tampouco da humanizada relevância que aquele estudo deveria ter para o campo de
onde se originou a face substancial do processo de articulação do estudo. Trocam-se as
Gabrielas, mas mantêm-se os fazeres arcaicos?
Não estou dizendo de maneira generalizante, mas as formas de escrita têm tendenciado
para uma explicação do índio e sobre o índio para um entendimento no universo acadêmico,
com interesse de saber puramente acadêmico, que não condizem com o que tenho ouvido em
campo, com o que os velhos e lideranças de fato estão preocupados.
[...] é interessante que os rituais sejam registrados, a forma como a gente dá
os nomes, e até a maneira que a mulher ganha o filho, porque hoje o livro
sabe até a lua que a mulher engravida e as ervas que toma banho, é muito
bom que seja registrado mas tem coisa que é só nossa, é particular daquela
mulher e isso tem que ser respeitado. Os estudantes indígenas não podem
escrever da mesma forma, nossa preocupação é como os costumes dos índios
serão preservados não apenas no livro porque nossa vida não acontece no
livro, ela acontece aqui na aldeia. (Cacique da T.I. Nonoai, José Oreste do
Nascimento, agosto de 2014).
A fala do cacique deixa clara a necessidade de uma reformulação na maneira como o
campo indígena tem sido observado no âmbito de estudos e também o que dele se tem feito,
uma vez que o cacique expõe sobre a importância do estudo como registro, mas,
intrinsecamente, grita nas entrelinhas pela carência de significado e transformação para a
realidade do próprio indígena; alerta para que se volte para o imaginário indígena, porque o
modus vivendi da aldeia garante sua própria manutenção.
Não estou preocupado como pesquisador indígena na mera observação, meu olhar
para o campo não é apenas como espaço de estudos em que é possível fazer downloads e
uploads do viver alheio, mas como espaços vivos, vividos por sujeitos dinâmicos e
multiculturais, não como meros objetos de estudos. Intertextualmente pensando, há a
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
possibilidade de fazer um gancho com teorias bakhtinianas (sociocognitivismo e
interacionismo), o que permite a ideia do texto sendo como “[...] lugar de constituição e
interação de sujeitos sociais, um evento em que convergem várias ações humanas [...]”
(Bakhtin, xxxx, p.), um estructo histórico e social, extremamente complexo e multifacetado,
dando assim a possibilidade de uma escrita textual etnográfica do índio não estático, mas em
movimento, contemporâneo a ele mesmo.
Mas se a intertextualidade é à base da produção na escrita acadêmica para torná-la
legítima, isso significa dizer que a falta desse exercício ao transformar uma cultura oral em
escritas textuais a torna ilegítima?
Ao transformar etnografias em textos, a escrita não pode ter a cultura indígena apenas
como uma base, mas como uma fonte, afinal, é assim que o índio trata a sua cultura, ela
precisa ser compreendida na sua forma vivida, e não verificada, tampouco comparada. O texto
etnográfico ao descrever a cultura indígena precisa caminhar por esse viés, no qual o
movimento é colocar na escrita o que se apreende da realidade não ao contrário. Logo, não é
necessário o intertexto cultural para tornar uma cultura legítima, o intuito precisa ser a
compreensão e não a comparação. Cada cultura, ademais, deve ser tida singularmente, sem
um processo de comparação com demais culturas, pois cada qual se origina
independentemente da existência de outra, que quando levada em consideração serve a um
processo de eliminação e não de construção de subjetividades. Aqui, ao contrário do que
afirmava Paulo Freire, de que “A leitura de mundo precede a leitura da palavra”, o intento é
processar para o signo grafado as leituras que se faz do mundo (indígena), porque o
movimento em questão visa pautar bibliograficamente o que se sobressai no campo de estudo,
e não ir do livro à realidade.
Qualquer sistema de linguagem na apresentação e representação do outro ou de si
constitui-se da linguagem, do autor e do leitor. As teorias que gravitam em torno desse tripé
têm por objetivo a fruição, a interpretação ou a produção das representações.
Seja a
autorrepresentação ou representação indígena pelo viés da estética da recepção que surge com
o desejo explícito de conceder ao leitor o seu devido lugar. Ela subverte o exclusivismo da
teoria da estética tradicional, uma vez que entende a leitura de algo como processo de
166
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
produção, recepção e comunicação, ou seja, uma relação dinâmica entre autor, imagem, leitor
e o sentido daí resultante.
A escrita etnográfica é também literatura, seguindo pela lógica da estética da recepção,
que no processo de leitura sobre o outro ou de si é de duplo sentido: uma produção de
sentidos implicado pela obra e o horizonte projetado pelo leitor de determinada sociedade.
Ziberman (1989) defende que as abordagens da estética da recepção levam em conta as
condições sócio-históricas das diversas interpretações textuais pelo universo de leitores
possíveis. O discurso se constitui, através de seu processo receptivo, como pluralidade de
estruturas de sentido historicamente mediadas.
Sem destoar do passado histórico, o presente é marcado por tempos de grandes
conflitos entre índios e não índios, como o caso da usina hidrelétrica de Belo Monte no Rio
Xingu, Pará, a luta indígena pela preservação do antigo Museu do Índio aos arredores do
Estádio do Maracanã, Rio de Janeiro, e os 27 índios Guarany-kayoa mortos no Mato Grosso
do Sul em 2012, advindos de confrontos com colonos e fazendeiros na luta pela preservação
de seus espaços territoriais. Sujeitos de suas culturas, as crianças e anciãos (ãs) estão à mercê
desses confrontos e são alvo, junto com os seus, de todo tipo de preconceito afetando sua
integridade emocional e física.
As teorias metodológicas são campos de conhecimentos, são organismos e não podem
ser tratadas como instituições universais, embora haja vista sua tamanha abrangência e
relevância. Precisamos ter claro que as culturas são também recicláveis, não são estáticas
mesmo que guardem vestígios de um tempo que no presente pode não existir mais. Arriscome dizer que, para fazer uma escrita etnográfica, de fato, sobre o índio, as estadas no campo e
a escrita delas precisam capturar mais que traços estéticos identitários sobre o índio, pois,
como diz Viveiros de Castro, “[...] índio não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e
flecha, algo de aparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma questão de
‘estado de espírito’, um modo de ser e não um modo de aparecer.”
As escritas textuais precisam se desvincular da tendência do estereótipo, do selvagem,
do exótico, porque nesse sentido produz-se preconceito num universo que não está preparado
para lidar com ele, e é criminoso. Em entrevista à revista Veja em 03/05/2010, o antropólogo
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Eduardo Viveiros de Castro chama a atenção para a problemática das ideias distorcidas sobre
o índio:
A questão de quem é ou não é índio reaparece agora, mas por outras razões.
Algumas pessoas ligadas à questão indígena têm por vezes a impressão (ou pelo
menos eu tenho a impressão de que elas têm a impressão) de que nós, índios e
antropólogos, fomos um pouco vítimas de nosso próprio sucesso. Antigamente,
muitos coletivos indígenas sentiam vergonha de sê-lo, e o governo tinha todo
interesse em aproveitar essa vergonha inculcada sistemicamente, tirando as
conseqüências jurídicopolíticas, digamos assim, do eclipsamento histórico da face
indígena de várias comunidades ‘camponesas’ do país. Agora, ao contrário, ‘todo
mundo quer ser índio’ –dizemos, entre intrigados e orgulhosos. Talvez mais
intrigados que orgulhosos.
Isso não quer dizer que todo mundo possa ser índio, porque só é índio quem o é em
sua essência, distante de parecenças estéticas. Representar textualmente o índio pela veia de
estudos vigente na academia de hoje requer um fazer em medidas transcendentais, logo que
perpassem as fronteiras do fazer anacrônico, para que metodologias sejam revistas. É preciso
sinalizar para uma reflexão que o índio transcendeu-se da visão dos 500 anos de
descobrimento, ele também é sujeito do presente, e se é contemporâneo para si, precisa ser
contemporâneo para com quem se depara com ele.
O estudo de forma transversal talvez confira certa instabilidade por não transitar de
forma direta com o meio de fazer pesquisa idolatrado até então, todavia comtempla a noção
de contiguidade, daí a possibilidade de os estudos paralelos e não distantes do índio de hoje.
Percebo na escrita etnográfica certo parâmetro de configuração e ou verificação no que
concerne à questão ser ou não indígena, um processo de afirmação ou de autoafirmação ou
simples olhar para o exótico. Visto que é necessário, ademais, perceber o índio e sua cultura
nas escritas como agente cultural, senhor da sua cultura, mas também universal, com
manuseio livre dos estereótipos, pois o que não é percebido não existe.
A etnografia antropológica, mediada pelas tecnologias visuais, como a fotografia e o
vídeo, possibilita ao pesquisador registros de campo que apenas sua memória e anotações
escritas ou áudio não conseguiriam capturar, os detalhes do universo estudado. Nesse sentido
a escrita etnográfica precisa contribuir substancialmente com a disciplina antropológica, mas
não se trata de uma antropologia da imagem, mas sim de uma antropologia em imagens.
No âmbito da “antropologia em imagens” o olhar para a cultura do outro também
precisa caminhar, não se trata de uma imagem estereotipada do índio, trata-se de uma imagem
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
da vida do índio guardião de uma legado cultural único, porém, em movimento natural com o
tempo e as complicações deste.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ensaio aqui proposto faz referência aos desafios e caminhos percorridos como
pesquisador indígena, na busca de interlocuções entre o campo de pesquisa e as teorias
metodológicas de pesquisa científica apreendidas no universo acadêmico. A proposição do
ensaio visa excitar uma reflexão acerca de uma etnografia da antropologia, que seja capaz de
apreender os processos etnográficos através dos quais, para o pesquisador indígena, seja
possível uma apropriação e reapropriação da discursividade antropológica para apresentar e
representar a “si” e a “outros” a sua culturalidade. Trata-se também da possibilidade de uma
reflexão sobre a intertextualidade do encontro etnográfico como uma espécie de
interculturalidade.
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Paranaense de Letras, Curitiba, n. 12 , 1946.
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169
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VEIGA, Juracilda. Revisão Bibliográfica Crítica sob re Organização Social Kaingang.
Cadernos do CEOM: Unoesc, Chapecó, n. 8, 1992.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é.
Entrevista à equipe de edição dos Povos Indígenas no Brasil 2001/2005. Editores gerais Beto
Ricardo e Fany Ricardo. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006. p. 41-47.
WIESEMANN, Ursula. Semantic categories of “good” and “bad” in relation to Kaingang
personal names. Separata da Revista do Museu Paulista, nova Série, São Paulo, v. 12, 1964.
ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989.
170
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
LIMITES E EXPERIMENTAÇÕES EM UMA ETNOGRAFIA COM
HOMENS
Isabela Venturoza de Oliveira
[email protected]
CAPES
PPGAS/USP
Mestranda
Este trabalho propõe uma reflexão sobre as implicações do corpo e da performance de gênero
para a pesquisa etnográfica, examinando a maneira como o gênero – articulado a outros
marcadores sociais da diferença – incide não apenas sobre os sujeitos com que estudamos,
mas sobre as/os próprias/os pesquisadoras/es enquanto sujeitos generificados. Conduzo tal
reflexão a partir de minha pesquisa de mestrado, desenvolvida no contexto de um grupo
reflexivo com homens denunciados por crimes previstos na Lei Maria da Penha, coordenado
também por homens da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, em São Paulo/SP.
Neste cenário, permito-me pensar sobre a especificidade que a pesquisa de campo assumiu,
salientando os limites de minha circulação e o caráter experimental do trabalho etnográfico.
Palavras-chave: Pesquisa etnográfica. Gênero. Masculinidades. Grupos reflexivos. Relações
violentas.
***
Despite the twenty-odd years since the start of the second wave of feminist
anthropology, and despite the fact that ‘gender’, as a consequence, has definitively
been brought into much of anthropological understanding and analysis,
anthropology has yet to come to terms with the fact that anthropologists are
themselves gendered (Moreno, 1995, p. 245, grifo meu). 65
Neste trabalho, proponho-me a refletir sobre as implicações das interpretações do
corpo e da performance de gênero para a pesquisa etnográfica. Trata-se de um exercício
conduzido no interior de minha pesquisa de mestrado, na qual gênero não constitui apenas
uma questão teórica e analítica concernente aos sujeitos com que estudamos, mas, sobretudo,
um problema prático no fazer antropológico, na medida em que se torna claro que a/o
antropóloga/o são também percebidos em função do gênero (entre outros marcadores sociais
da diferença em operação). Minha pesquisa se realiza no contexto de um grupo reflexivo com
homens denunciados por crimes previstos na Lei Maria da Penha, coordenado também por
65
Em tradução livre: “Apesar dos vinte anos desde o início da segunda onda da antropologia feminista, e apesar
do fato de que 'gênero', como consequência, foi definitivamente adotado em muito do entendimento e da análise
antropológica, a antropologia ainda precisa enfrentar o fato de que antropólogos são eles mesmos generificados”.
171
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
homens da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, na cidade de São Paulo. Neste
cenário, ser percebida como mulher, pesquisando homens, produz grandes efeitos sobre o
desenho da pesquisa de campo. O grupo reflexivo é feito por homens e para homens, sendo
assim, minha observação participante (ou participação observante) é vetada, na medida em
que não compartilho dos atributos necessários para participar da dinâmica sem afetar de
maneira indesejada os rumos do grupo. Desta maneira, minha presença poluidora impõe uma
forma específica – e não comum – ao trabalho etnográfico. As reuniões do grupo reflexivo
são gravadas por um gravador posicionado no centro da sala, que passa a constituir em certo
sentido uma extensão de mim, mas que não me permite ver nem interagir, somente escutar.66
Neste contexto, permito-me pensar sobre a especificidade de uma etnografia baseada não no
olhar etnográfico, mas em grande medida no ouvido etnográfico, buscando visualizar os
limites deste instrumental também como possibilidade de experimentação. Nas próximas
seções, buscarei esmiuçar as dimensões apontadas, mas não sem antes apresentar brevemente
o campo no qual me lanço.
O CAMPO
A sede do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde está localizada em uma rua
estreita, de mão única, no bairro de Pinheiros, nas proximidades do metrô Faria Lima, em São
Paulo (SP). Em uma das salas do antigo sobrado, nas noites de segunda-feira, são realizadas
semanalmente as reuniões do Programa de Responsabilização para Homens Autores de
Violência contra a Mulher. Assim, se a circulação na casa no período diurno costuma ser
predominantemente feminina, por conta de atendimentos em saúde da mulher, pré-natal e
saúde mental, as noites de segunda-feira são marcadas por uma alteração no trânsito de
pessoas. Minutos antes das reuniões que se iniciam às 18h, a campainha começa a tocar e no
pequeno visor acoplado ao interfone vemos homens solicitando entrada. São os participantes
do grupo reflexivo que o Coletivo desenvolve desde 2009, coordenado por dois psicólogos e
66
Agradeço à Laura Lowenkron, cujos comentários realizados no II ENUMAS (encontro anual do Núcleo de
Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença da USP), em 2013, me ajudaram a nomear com maior precisão
algumas situações enfrentadas no trabalho de campo.
172
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
um filósofo, mas cuja equipe técnica é composta também por uma psicóloga que não participa
das reuniões.
Os participantes do grupo reflexivo são homens denunciados por violência doméstica
e familiar contra a mulher, como previsto na Lei Maria da Penha (11.340/2006) e que são
encaminhados pelo 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de São
Paulo. Mensalmente, homens são convocados para uma audiência de encaminhamento no
Fórum Criminal da Barra Funda. Aos denunciados, é indicada a possibilidade de frequentar o
Programa de Reeducação Familiar da Academia de Polícia do Estado de São Paulo
(ACADEPOL) ou o Programa de Responsabilização para Homens Autores de Violência
contra a Mulher do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. A participação é facultativa, mas
recomendada na medida em que, como salientado pela juíza responsável, pode resultar em
uma “reversão da pena” no momento do julgamento. Em todo caso, ao fim da audiência, é
possível notar que uma parcela dos homens denunciados opta por não participar de nenhum
dos trabalhos e apenas aguardar os desdobramentos do processo.
Ao longo de mais de um ano visitei semanalmente a sede do Coletivo nos dias em que
costumam ser realizados os grupos reflexivos para acompanhar as atividades na casa e estar
em contato constante com a equipe que realiza o trabalho.67 Não raramente, estava presente
quando os homens começavam a chegar e também quando iam embora. Nessas ocasiões,
interagia brevemente com aqueles que se mostravam mais acessíveis e, mesmo quando não
havia interação direta, podia ao menos observar o trânsito e a dinâmica entre os próprios
participantes e coordenadores nos momentos que antecedem e sucedem as reuniões. Tais
momentos eram marcados por uma descontração que tive a oportunidade de presenciar por
um período mais extenso e quase “de perto e de dentro” (Magnani, 2002) na ocasião de um
churrasco de confraternização de fim de ano, realizado rusticamente na garagem da ONG.
Digo “quase”, pois a proximidade é relativa e o “de dentro” quase uma utopia, na medida em
que em nenhum momento deixei de ser (percebida como) mulher e, como se não bastasse,
67
Em 27 de outubro de 2014, após 14 meses, encerrei esta parte do trabalho de campo para me dedicar à
sistematização dos dados coletados e à audição de gravações das reuniões.
173
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
alguém que não bebe bebidas alcoólicas e não come carne. Sendo assim, alguém que não
compartilha de certos atributos de uma sociabilidade masculina específica.
Além das visitas semanais ao Coletivo, procurei também acompanhar atividades
realizadas fora da ONG, mas das quais ela participa, tal como reuniões nos Juizados,
audiências de encaminhamento dos homens mensalmente realizadas no Fórum Criminal da
Barra Funda, eventos acadêmicos e de divulgação de pesquisas.
Em linhas gerais, parte significativa do trabalho de campo que realizei poderia ser
resumida em circular em torno das atividades que estão relacionadas ao grupo reflexivo, mas
nunca dentro dele. O grupo reflexivo é coordenado e frequentado apenas por homens e uma
das limitações que logo me foi apresentada quando propus esta pesquisa ao Coletivo
Feminista Sexualidade e Saúde fora que, em um primeiro momento, eu não poderia participar
e acompanhar o grupo presencialmente. 68 Haveria que dar conta de meu objeto de pesquisa de
outras formas. Assim, a maneira que encontrei e que me foi autorizada para viabilizar uma
descrição densa (Geertz, 1989) do contexto pesquisado veio através de duas fontes: a
primeira, documental, era constituída por questionários preenchidos com informações sobre o
perfil dos homens participantes do grupo reflexivo, na qual constavam dados sobre cor, idade,
renda, formação educacional, ocupação, estado civil, violências sofridas e exercidas etc.; a
segunda, em certa medida também documental, visto que constituía um registro das reuniões
mantido pelos coordenadores com a autorização dos participantes, tratava-se de uma série de
gravações dos encontros registrados por um gravador de voz digital mantido no centro da sala
durante as reuniões. Por meio dessas duas fontes, pude me aproximar mais dos indivíduos e
das histórias narradas nas reuniões. Foi, então, através de relatos nem sempre completos,
registrados em caligrafias às vezes pouco compreensíveis, e também através de falas
entrecortadas por uma multiplicidade de vozes nem sempre identificáveis, que esta pesquisa
começou a se materializar. Mais tarde, nos últimos três meses de campo na sede da ONG, eu
passaria a aplicar também os questionários, conversando a cada noite por cerca de duas horas
68
Porém, no Brasil, os formatos de experiências com grupos de homens variam. Em Belo Horizonte, há, por
exemplo, um projeto no qual as reuniões são coordenadas por um homem e uma mulher, compartilhando a
posição de autoridade. Trata-se do Programa “Andros”, do Instituto Albam. É provável que os efeitos não sejam
os mesmos, mas há que se perguntar também se os efeitos devem ser os mesmos.
174
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
com ao menos um dos homens participantes. Tal experiência teve certamente um impacto
significativo sobre esta pesquisa.
O OUVIDO ETNOGRÁFICO
Exposto o campo, permito-me agora tratar diretamente de certas questões que
motivaram a escrita e reescrita deste texto, a começar pelo inicial (e relativo) distanciamento
entre pesquisadora e interlocutores. Minha primeira questão girava em torno de como
proceder se minha condição adjetivada como “feminina” não me permitia o pleno uso do
chamado “olhar etnográfico” na compreensão do fenômeno observado. E, em outro sentido,
como evitar pensar em que forma tomaria esta pesquisa caso o(a) pesquisador(a) fosse
percebido de outra forma? Que diferenças qualitativas estariam implicadas no resultado
encontrado se eu compartilhasse com esses homens um lugar relativamente comum?
Por algum tempo, enxerguei-me como uma antropóloga privada de seus instrumentos
de trabalho, e, assim, apegada às especificidades desta pesquisa não como possibilidades de
criação, mas como limitações que colocariam em jogo o rendimento de meu trabalho. Mais
tarde, em diálogo com uma bibliografia que examina os limites e incertezas do trabalho de
campo – afinal, campo algum é fácil – pude perceber que meu descontentamento era em parte
descabido, já que as próprias limitações e singularidades da pesquisa suscitavam grandes
questões no que diz respeito não somente a uma reflexão metodológica, mas ao encontro entre
a metodologia e a teoria quando confrontadas com as percepções de gênero (da pesquisadora
e de seus interlocutores).
Como afirmou Vale de Almeida (1996), “tanto o corpo sexuado como o indivíduo com
gênero são resultados de processos de construção histórica e cultural”. E o antropólogo não se
esquiva desta regra, como também deixou claro Eva Moreno (1995). Assim, das
interpretações do corpo sexuado no qual resido e das marcas de gênero por ele
performatizadas, encontrei-me em uma situação na qual precisaria pensar para além do que
caracterizara até então o trabalho antropológico a partir do “estar lá” no sentido geertziano.
Minha presença em campo se deu e se dá de maneira muito particular, não permitindo
frequentemente o uso da metáfora do “olhar etnográfico”, pois, a maior parte do tempo, não
175
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
faço outra coisa senão uma etnografia no escuro, em grande sentido baseada na escuta, no
“ouvido etnográfico” que frequentemente não tem como apoio um olhar que decifra gestos e
linguagens corporais. Por longos períodos, me concentro na análise de documentos
preenchidos por terceiros e nem sempre por meus principais interlocutores, mas sobre eles.
Além disso, e principalmente, coleto narrativas e presencio a interação entre estes sujeitos
apenas através de gravações das reuniões do grupo reflexivo, e que não raramente são
registros realizados há semanas ou mesmo meses do momento em que as tenho em mãos.
Meu campo, assim, tem várias temporalidades que me escapam. A observação participante
não é uma opção. Em seu lugar, me encontro conectando fragmentos dispersos em várias
esferas.
Muitas vezes, ouço alguns minutos da reunião, leio questionários com os dados dos
participantes e vejo alguém chegando para o grupo reflexivo no fim da tarde de segunda-feira
e sou capaz de estabelecer conexões. “Milton é dono dessa história e dessa voz”.
Frequentemente as inferências estão corretas, mas nem sempre. Certa vez, passei algumas
semanas ligando um rosto a uma história que era totalmente distinta. Como nem um nem
outro eram participantes muito falantes nas reuniões e sempre que os via apenas nos
cumprimentávamos, tornava-se difícil perceber o equívoco. Somente em conversa com um
dos coordenadores – que poderia muito bem não ter ocorrido, pois se deu em uma carona
imprevista – me dei conta de que não estávamos falando da mesma pessoa.
Através da forma como apresento e costuro meus dados de campo, é possível notar
que o que marca fortemente esta pesquisa seria seu caráter demasiadamente fragmentado.69
Trata-se de uma instabilidade que provem da condição específica na qual a pesquisa se
constrói, mas que por outro lado parece acrescentar outras e novas possibilidades de interação
com o objeto. Em todo caso, estou certa de que o elemento da fragmentação não perpassa
apenas minha pesquisa, mas também a de outros colegas que adotam a etnografia e outros
métodos da antropologia, nos quais o objeto/sujeito de pesquisa não se apresenta
integralmente logo de início e de uma única vez. A pesquisa constitui um processo lento e
69
O caráter fragmentado se deve à multiplicidade de fontes (gravações de áudio, documentos impressos,
narrativas dos coordenadores e dos participantes) e ao fato de que as informações apresentadas pelos mesmos
não se revelam instantânea e linearmente.
176
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tortuoso. E, somado a isso, a escrita, a sistematização e a interpretação do material empírico
são das tarefas mais árduas a serem enfrentadas pelo pesquisador. No esforço de organizar a
experiência através da escrita, perdemo-nos um pouco, pois a escrita enquanto linguagem é
também limitada, assim como nossas percepções. Aqui necessariamente me refiro ao fato de
que minha percepção é limitada muitas vezes à faculdade da audição e necessariamente
definida pela percepção de terceiros em relação ao meu lugar social enquanto mulher. Meu
mundo, assim, tem um limite e este limite certamente não é o mesmo que se apresentaria a um
pesquisador homem ou a um indivíduo marcado por outras diferenças socialmente forjadas. E
talvez esta compreensão seja, a seu modo, uma versão do que Wittgenstein (apud Das, 2007)
propõe ao afirmar que a experiência de ser um sujeito é também a experiência do limite. Das
(2007) afirma que, na interpretação de Wittgenstein, alguns teóricos vão sugerir que a relação
do sujeito com o mundo é como a do olho com o campo visual. O olho não está ele mesmo no
campo visual. No presente estudo, eu, como sujeito conhecedor, radicalizo a noção de
exterioridade e o faço não a partir do olho que permanece fora do campo visual, mas do
ouvido (etnográfico) que mais do que fora, ouve no presente aquilo que foi dito no passado.
Isto é, grande parte de meu contato com a realidade “observada” se dá através da audição e de
registros realizados com semanas ou meses de antecedência do momento em que as acesso.
Aqui posso ensaiar uma aproximação com a antropologia do ciborgue de Donna Haraway
(2009), pensando o gravador como uma prótese que ultrapassa os limites da questão
identitária, por não ser mulher ou homem e tampouco propriamente feminino ou masculino.
Por outro lado, o gravador também é um sujeito-objeto com limites, na medida em que não
apresenta a possibilidade de interação em relação aos sujeitos que passivamente interroga.
Porém, não seria certo tratar essa exterioridade ou distância do contexto observado
senão como condição contingente. A distância existe e foi por logo tempo predominante, mas
não é completa e, ao longo da pesquisa, passa a dividir espaço com situações de interação face
a face que buscarei descrever a seguir.
177
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
“MOÇA”, “FILHA/FIA”, “GATA”, “MEU ANJO”, “QUERIDA”: A FIGURA DA
ANTROPÓLOGA
Enquanto o trabalho de campo avançava, fui também apresentada a certas leituras70
que me fizeram pensar com maior atenção sobre algumas questões. Primeiramente, tornaram
mais evidente que enquanto antropólogas somos também parte de uma ordem específica
conforme a época e a sociedade em que vivemos e trabalhamos no que tange ao gênero. Isto é,
não flutuamos sobre os lugares sociais que as concepções de gênero impõem a homens e
mulheres apenas pelo fato de ocuparmos um espaço (importante ou não) como produtores em
um campo de conhecimento. Um “supposedly ‘gender-free’ world of academia”
simplesmente não existe, como sugere Moreno (1995). Mas a ficção é criada e mantida, pois,
no contexto acadêmico, não se apresentam muitos espaços para a discussão dessas questões.
Através principalmente de Moreno (1995), tomo contato com a discussão espinhosa e
aparentemente evitada da/o antropóloga/o como existência também generificada. Mais do que
isso, como Moreno (1995), trago para o nível da análise as investidas eróticas e o perigo da
violência sexual que afeta com certa frequência a experiência de mulheres, incluso aí as
antropólogas. A questão que emerge a partir disso é: por que esses dados não se apresentam
como relevantes em nossas análises? Por que são apenas mencionados em conversas de
corredor, entre indivíduos próximos, ou a portas fechadas, ou mesmo como anedotas (in off
ou off topic) em eventos acadêmicos mais intimistas? Como Willson (1995) sugere também,
não se fala em assédio ou agressão sexual nos manuais de etnografia nem se discute a
temática em cursos de formação de antropólogos. Se a subjetividade erótica (existente) na
pesquisa de campo antropológica constitui um tabu, a violência sexual no campo se apresenta
como um tema ainda mais silenciado.
Nesse sentido,
For female anthropologists, one of the consequences of the fictiously ‘gender-free’
life we lead at university is that, if we bring up issues that are specific to us as
women in the academic context, we run the risk of doing damage to our identities as
anthropologists. This is, of course, because the archetypal anthropologist is a man.
Part of the hidden agenda for female anthropologists is, therefore, to avoid drawing
attention to ourselves as women when we establish our professional identities. After
70
Ver: “Taboo: sex, identity and erotic subjectivity in anthropological fieldwork”, de1995, coletânea editada por
Don Kulick e Margaret Willson.
178
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
all, who wants to be a female anthropologist when it seems possible to be a ‘real’
anthropologist? As far as the danger of sexual violence is concerned, it may be part
of a woman’s daily life, but it is not seen to be relevant to the professional part of
ourselves – the ‘anthropologist’ part. ‘Anthropologists’ don’t get harassed or raped.
Women do (Moreno, 1995, p. 246).71
Em minha pesquisa, em um campo que é muitas vezes percebido como mais difícil
que outros (nem sempre com razão), permito-me refletir sobre dimensões que não costumam
compor a análise em monografias que seguem o modelo clássico. Como jovem e mulher 72,
buscando empreender uma etnografia (em um primeiro momento à distância) em minha
sociedade de origem, próxima a questões e problemas com os quais tenho relativa
familiaridade, enfrento desafios que derivam direta ou indiretamente do conjunto de sentidos
fixados em torno do corpo “feminino” que habito.
As preocupações de Moreno e Willson são também minhas preocupações e,
certamente, embora não verbalizadas, estão presentes nos trabalhos de muitos colegas. Como
já mencionado, minha pesquisa se constrói principalmente em torno de um grupo reflexivo
para homens denunciados por crimes previstos na Lei Maria da Penha, que é coordenado
também por homens, e cuja equipe apresenta apenas uma mulher, que não participa das
reuniões do grupo por motivos que se assemelham àqueles que também me privam de uma
imersão mais direta. Ocupamos lugares sociais específicos que delimitam diretamente os
espaços pelos quais devemos circular, tanto ela quanto eu. Refletindo agora, percebo que
parte significativa de meu trabalho de campo foi realizada na cozinha do Coletivo Feminista,
conversando com membros de sua administração e com os coordenadores do grupo, ou
aguardando que o grupo começasse ou acabasse, na sala de estar da antiga casa que abriga os
trabalhos da ONG, a alguns passos daquele cômodo. No restante do tempo, estive encerrada
em meu quarto apenas com os questionários dos participantes e os registros de áudio das
71
Em tradução livre: “Para antropólogas mulheres, uma das consequências da fictícia vida 'sem distinção de
gênero' que levamos na universidade é que, se levantamos questões específicas a nós enquanto mulheres no
contexto acadêmico, corremos o risco de danificar nossas identidades como antropólogas. Isto ocorre,
certamente, porque o antropólogo arquetípico é um homem. Parte da agenda oculta da antropóloga é, portanto,
evitar chamar atenção a nós mesmas enquanto mulheres quando estabelecemos nossas identidades profissionais.
Afinal, quem deseja ser uma antropóloga mulher quando se pode ser um antropólogo 'de verdade'? No que diz
respeito ao perigo da violência sexual, pode ser parte do cotidiano da mulher, mas não é visto como relevante
para a parte profissional em nós – a parte 'antropóloga'. Antropólogos não são assediados ou estuprados,
mulheres são”.
72
E parda, embora ainda sem clareza do que isto possa querer dizer, no sentido de não conseguir precisar em que
medida e de que forma a cor marca minhas experiências.
179
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
reuniões. Por mais forte que seja meu desejo como pesquisadora de “ultrapassar os limites de
gênero” (Almeida, 2001), as condições específicas de meu campo não permitem que esse
espaço “masculino” seja acessado com facilidade. Assim como existem interdições para a
entrada de homens em grupos de apoio, reflexão e acolhimento de mulheres vítimas de
violência, o mesmo acontece no grupo reflexivo para homens do Coletivo Feminista. Os
coordenadores acreditam que a entrada de mulheres afeta o primeiro momento de acolhida
dos homens, desestabilizando-os e prejudicando o processo no qual eles compartilham suas
experiências e dão início à reflexão que levará à responsabilização pela violência praticada e à
conscientização sobre as construções sociais do masculino que colocam a agressividade, entre
outros atributos, como constituinte de sua natureza.
Recentemente, ao começar a aplicar os chamados questionários com os homens
participantes do grupo reflexivo, tendo um contato mais denso e duradouro com estes que até
então eu só cumprimentava e trocava algumas palavras, tive a prematura impressão de que
poderia ter ultrapassado por alguns momentos os limites do gênero. Não demorou muito para
que eu percebesse que, por vezes, o contrário ocorria. Em momento algum, o gênero com o
qual era percebida parecia ser esquecido. Isto era evidenciado, por exemplo, na demora com
que um homem dizia ter sido traído73 ou mesmo pelos vocativos com que me tratavam, entre
eles: “moça”, “filha/fia”, “gata”, “meu anjo”, “querida” etc., cujo uso demonstrava graus
diversos de aproximação e formalidade. Vez ou outra, nossas interações me traziam uma
sensação de certa “ambiguidade”, através de sorrisos, brincadeiras, comentários e mesmo
flertes inegáveis, os quais eu buscava driblar sem ser ríspida. Contudo, uma situação-limite
não permitiu que eu simplesmente me esquivasse e optasse por um posicionamento menos
conflituoso.
Há alguns meses conversei com um homem que viu meu interesse por sua história
como uma “abertura”, segundo ele. Não conseguindo encerrar essa conversa em apenas uma
73
Encarei tal demora como a “vergonha” de relatar uma traição, sentimento ligado à noção de uma
“masculinidade maculada”. Certamente, dizer a outro homem ter sido traído não seria menos difícil, mas no
interior das reuniões do grupo reflexivo isto ocorre com maior facilidade, aparentemente, pois a partir da fala de
um homem os outros homens costumam se abrir e compartilhar experiências a partir de suas similaridades.
Ainda nesse terreno, é colocada também a diferença entre um homem traído e uma mulher traída, esta última
visivelmente naturalizada, a primeira inconcebível.
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noite, nas dependências da ONG, sugeri que terminássemos a conversa em um equipamento
de lazer de frequentação pública. Assim o fizemos, porém, para o homem aquilo não era
apenas uma conversa para a realização de uma pesquisa. Ele queria me “conhecer”, ser meu
“amigo” e pediu meu número de telefone. Na mesma noite, ele me ligou duas vezes, porque
havia lembrado de coisas que eu deveria incluir em meu “relatório”. Nos dias subsequentes
enviou diversas mensagens de texto. Parei de responder. Ele encarou isso como uma afronta e
pediu que eu o retirasse da pesquisa e devolvesse seu “questionário”. Toda a situação me
provocou muito nervosismo e um sentimento de impotência, pois eu sabia que aquilo estava
ocorrendo não de maneira descolada da minha realidade enquanto “mulher”, interpretada não
raramente como “disponível”. Ser pesquisadora não me reservava qualquer tipo de privilégio
enquanto indivíduo não marcado pelo gênero. Claramente, este episódio tem mais nuances e
detalhes do que eu me propus a relatar aqui. Por se apresentar como uma vivência muito
delicada para mim, prefiro não me demorar muito em sua descrição. Porém, utilizo-o como
um episódio exemplar para demonstrar como nós, antropólogas, muitas vezes atravessamos o
campo, nos valendo de certas estratégias, como “namorados/noivos fictícios”, dentre outras,
para evitar esse tipo de experiência. Após o ocorrido, senti medo e apreensão para voltar ao
campo, estando tais sensações diretamente ligadas ao “ser mulher” – entre muitas aspas – e a
todos os efeitos normativos que essa descrição encerra nos contextos em que vivemos,
incluindo, por exemplo, uma forma menos livre de transitar por uma variedade de espaços.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Primeiramente, minhas considerações finais são ainda bastante parciais. Esta não é
uma reflexão fechada e tampouco finalizada. Considero-a uma tentativa de tradução dos
limites, imprevistos e possibilidades de experimentação que qualquer campo pode encerrar.
Nesse sentido, longe de querer sugerir, com o fato de trabalhar com homens autuados por
crimes previstos na Lei 11.340/2006, que eu esteja exposta a mais riscos do que estaria se
estivesse empreendendo uma etnografia com, por exemplo, os Asuriní do Xingu ou
camponeses da região do Vale do Jequitinhonha. Pois não estou. A linha que diferencia os
homens participantes do grupo reflexivo do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde e aqueles
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que estão do lado de fora é muito tênue. Diria que para além de terem sido enquadrados pela
lei como agressores, não guardam, na verdade, muitas diferenças para com aqueles que não o
foram. O fato de não terem sido denunciados não torna os homens do lado de fora menos
passíveis de terem se envolvido em situações de violência ao longo de suas vidas. Isto tudo
para dizer que os homens com quem lido nesta pesquisa não apresentam atributos que não
sejam de fácil localização entre outros homens.
Além disso, devo finalizar pontuando que o gênero não é apenas uma questão para
mulheres em campo, mas também para homens. Como afirma Moreno (1995, p. 246-247), no
campo, a identidade sem distinção de gênero do antropólogo colapsa completamente. Não é
possível ser um antropólogo “unmarked”. E isto se apresenta tanto para antropólogos quanto
para antropólogas. Na relação com nossos interlocutores, somos continuamente enquadrados
em suas próprias definições, informadas por padrões mais abrangentes, às quais também
estamos submetidos.
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Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às
mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
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University of California Press.
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VALE DE ALMEIDA, Miguel. 1996. Género, Masculinidade e poder: revendo um caso do
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Identity, and Erotic Subjectivity in Anthropological Fieldwork. London: Routledge.
183
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
CAINDO NA RODA, UMA ETNOGRAFIA ENTRE RASTEIRAS E
CABEÇADAS
Carlos Alberto Corrêa Moro
[email protected]
Agência de fomento: Capes
PPGAS– USP: Mestrando
Neste artigo pretendo refletir sobre as potencialidades e desafios de um tipo específico de
engajamento metodológico: como fazer uma etnografia entre rasteiras e cabeçadas, que tipo
de conhecimento é possível quando se está imerso na prática que se estuda e qual o status do
conhecimetno corporal em uma etnografia. A partir dos conceitos de afeto (Favret-Saada,
2005) e conhecimento encorporado (Taylor, 2003), me proponho pensar o método de
pesquisa como algo que emerge do próprio campo e, nestes termos, repensar o fazer
etnográfico a partir de questões colocadas pelos treinos e rodas de capuêra.
Palavras-chave: etnografia, corpo, performance, capuêra.
INTRODUÇÃO
“Enquanto estivermos nesta vida não nos aproximaremos da verdade a não ser
afastando-nos do corpo e tendo relação com ele apenas o estritamente necessário,
sem deixar que nos atinja com sua corrupção natural e conservando-nos puros de
todas as suas imundícies até que o deus venha nos liberar.”(Platão, 2004, 128)
“De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio
sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que o sangue é espírito.”(Nietzsche,
1986, 56)
“Uma experiência diferente, sim – disse ela –, mas uma coisa nova, não. É uma
coisa velha.” (João Ubaldo Ribeiro, 1984, 597)
Neste texto pretendo refletir sobre alguns aspectos do trabalho de campo que venho
realizando junto ao grupo de capuêra angola “Associação Cultural de Capuêra Angola
Paraguassu - A.C.C.A.P.”74. Fundado por Jaime Lima, ou Mestre Jaime de Mar Grande, no
município de Vera Cruz - Ilha de Itaraparica/BA, o principal núcleo do grupo se encontra hoje
no bairro de Santa Cecília, região central da cidade de São Paulo, local onde realizo boa parte
de minha pesquisa de campo.
Busco compreender em minha pesquisa como a improvisação, entendida como
expressão da criatividade individual construída sobre uma linguagem compartilhada, floresce
e é valorizada dentro de um contexto marcado por uma grande ênfase no coletivo e em
74
Ao longo do texto me referirei ao grupo da forma como seus membros a ele se referem informalmente:
Paraguassu.
184
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elementos rituais como uma roda de capuêra75. O que chama minha atenção é a possibilidade
cotidianamente reafirmada por Mestre Jaime de Mar Grande, pelo professor Paulo Castor,
pelo treinel Sobral, e perseguida pelos demais praticantes, de se construir algo como uma
“expressão própria e espontânea” a partir do treino exaustivo e da encorporação
(embodiment) de gestos e golpes específicos e, aliás, altamente codificados, ou de um
repertório (Taylor, 2003).
Inspirado inicialmente por Tim Ingold (2001) e sua concepção da antropologia como
forma de investigação que se constrói em completa imersão no mundo, em co-habitação e
colaboração com seu campo de investigação, optei por pensar minha metodologia de pesquisa
a partir de elementos operantes no próprio campo. Assim, em uma inversão, elementos que
constituiriam aspectos de meu “objeto” de estudo são convertidos no próprio método da
pesquisa. Os treinos e as rodas, elementos centrais no universo da capuêra angola, são
simultaneamente o foco e o meio pelo qual a pesquisa é realizada. Um primeiro ponto
consiste, portanto, na idéia de se pensar em algo como uma metodologia imanente, um
método que não se imponha e determine o curso da pesquisa de antemão, mas que surja das
próprias interações do antropólogo com seus interlocutores em campo.
Uma segunda questão se impõe dada a particularidade das práticas que constituem
uma boa parcela de minha pesquisa. Visto que me propus a estudar o improviso na capuêra
angola, prática na qual quase tudo se passa em função de processos e dinâmicas corporais,
abriu-se a possibilidade de uma forma peculiar de engajamento metodológico: a participação
corporal nos treinos e rodas cotidianos. Se em geral, cmo diz Favret-Saada (2005), os
antropólogos tenderam a enfatizar sobretudo o primeiro elemento do par “observação
participante” engendrando uma certa distância segura, eu fiz uma escolha deliberada pela
participação intensa. Apesar de não nutrir a esperança de que tal escolha incorreria em um
aumento da objetividade de minha pesquisa via empatia (algo como “sentir o que eles
sentem”) acredito, e é o que procurarei argumetar neste texto, que ela possibilite a produção
de uma qualidade específica de conhecimento.
75
Esta é a grafia utilizada pelo grupo para se referir tanto à prática quanto aos praticantes. Diferente da grande
maioria dos grupos que adotam a grafia capoeira, Mestre Jaime opta por escrever capuêra.
185
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Dada a forma como me propus a pensar o método da pesquisa, é inevitável que sua
discussão se desobre e avance sobre outros temas. Assim, pensar um método de pesquisa
através da participação corporal incorre, em primeiro lugar, em refletir sobre o próprio corpo ou sua produção - do antropólogo e dos capueristas. O corpo, por sua vez, surge como base
para compreendermos certos conceitos nativos, como a noção de improviso e a sua
possibilidade de ocorrência dentro de um jogo de capuêra.
Assim, parto de elementos de minha experiência de campo para pensar questões
metodológicas que, por sua vez, me redirecionam aos temas mais abrangentes da pesquisa.
ENTRE RASTEIRAS E CABEÇADAS: DE COMO ADQUIRI UM CORPO
“Não havia um caminho certo, não era como um colégio em que se aprendem lições,
era alguma coisa que dependeria muito dele – que dificuldade para explicar, meu
Deus! Era como se ele só pudesse aprender se soubesse e só soubesse se pudesse
aprender. Era um desarme, ele precisava entrar em uma espécie de desarme, de
esquecimento, entendia?”
(João Ubaldo Ribeiro, 1984, 597)
Minha pesquisa começa de um jeito peculiar, pois de certa forma meu interesse
antropológico pela capuêra é posterior à minha iniciação na prática. Durante cerca de 9 meses
(de setembro de 2012 à maio de 2013), pratiquei capuêra com um interesse que não passava
por questões necessariamente antropológicas, por mais que houvesse ali um antropólogo
latente. Posso dizer que minha pesquisa começa “formalmente” em maio de 2013 quando,
motivado pela forma como essa experiência recente ressoava nas leituras de Victor Turner e
Richard Schechner, peço autorização a Mestre Jaime de Mar Grande para realizar uma
pesquisa etnográfica a partir de minha vivência no grupo. Esta peculiaridade na forma como
se deu minha inserção em campo não me deixa em vantagem com relação a outras
possibilidades, porém acrescenta um dado específico e um desafio à minha trajetória de
pesquisa: uma experiência corporal que antecede qualquer projeto intelectual de pesquisa e o
desafio de transformar esta experiência em instrumento de conhecimento.
Deste período, em que fui mais neófito do que antropólogo, surge a percepção da
possibilidade de (ou talvez mais uma vontade de experimentar) uma observação participante
186
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
que fosse mais participativa do que observante. A questão que me coloquei, e a qual só
começo a encarar sistematicamente agora, é: como fazer de minha inserção no grupo como
aprendiz de capuêra um instrumento metodológico. Ou, em outras palavras, qual a
particularidade de uma etnografia feita enquanto se treina e se joga capuêra, entre rasteiras e
cabeçadas.
Num plano teórico a questão pode ser formulada da seguinte maneira: se aceito de
bom grado que a capuêra, mais que mera técnica corporal, consiste em um modo de vida e um
modo específico de conhecer, como afirma Mestre Jaime de Mar Grande, ou em um sistema
de conhecimento encorporado (embodied knowledge), nos termos de DianaTaylor (2003) e
Richard Schechner (2013), por que não dar um passo a mais no sentido de cortar assimetrias e
assumir que mestres da performance são na verdade parceiros de pesquisa, como propõe
Schechner. Ou que a performance pode ser, mais que objeto de estudo, uma epistemologia,
um modo de conhecer, como postula Taylor? “Part of what performance and performance
studies allows us to do, then, is take seriously the repertoire of embodied practices as an
important system of knowing and transmitting knowledge.” (Taylor, 2003, 2).
Por mais que a atividade última do antropólogo seja a escrita, ou produção de arquivos
(Taylor, 2003, p.19), por que não aumentar os índices de corporalidade (que de qualquer
forma estarão presentes) tanto no processo de pesquisa quanto na própria escrita?
Nos termos de Diana Taylor, arquivos são materiais supostamente duradouros (textos,
documentos, construções, ossos) e repertórios por sua vez estão ligados à suportes efêmeros
de conhecimento, práticas corporificadas (língua falada, dança, esportes e rituais). Se o
primeiro tem por característica operar uma separação entre origem do conhecimento e o
sujeito que conhece, o segundo é uma forma de conhecimento totalmente dependente da
presença (Taylor, 2003, 19-20).
Em artigo recente, no qual analisa o ensaio de Clifford Geertz sobre a briga de galos
balinesa, John Dawsey afirma que talvez a melhor forma de se fazer antropologia seja
“adquirindo um corpo e pensando em estado de risco” (Dawsey, 2013, 316). A afirmação,
neste caso, diz respeito aos processos desencadeados após a antológica cena na qual Geertz e
sua esposa Hildred fogem da polícia javanesa, que reprimira uma briga de galos, ao lado dos
187
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
balineses. O desenlace da situação na leitura de Dawsey é que, mais do que gerar um
argumento de autoridade mobilizado na escrita etnográfica como argumenta James Clifford
(Clifford, 2002), a fuga do casal lhes dá um corpo: o casal passa da situação de fantasmas,
invisíveis aos olhos dos balineses, à condição de pessoas com um corpo e com as quais os
balineses passaram a se relacionar.
No caso da minha pesquisa, espero não ser exagerado ao dizer que mais do que um
frutífero acidente de percurso que possibilita um início de relação com interlocutores, o corpo
impõe-se de forma apriorística, ou, pelo menos, opto por encará-lo desta forma. Para contar
sobre como ganhei um corpo e ao mesmo tempo um indício de método passo a algumas
situações de campo.
Se a pesquisa de campo é vista muitas vezes como um rito de passagem do
antropólogo, o meu rito foi um rito escatológico. Na capuêra boa parte dos movimentos,
sejam golpes ou esquivas, envolvem giros e inversões de perspectiva constantes. Assim, são
comuns movimentos nos quais o praticante fica de ponta cabeça, olhando o mundo de baixo
para cima (como na bananeira ou na meia lua de compasso) ou movimentos nos quais se
operam rápidas inversões no plano horizontal ou vertical (como o rolô, rabo de arraia,
martelo, au, etc). Meu primeiro dia de treino foi suficiente para me mostrar que meu corpo,
demasiado acostumado a uma certa forma de estar no mundo, sobretudo na posição ereta (em
pé ou sentado), teria de se adaptar em função desta nova técnica. No primeiro treino o
desconforto causado pelos movimentos foi tamanho que cheguei a vomitar. Ao longo do
tempo pude verificar que isso não ocorria apenas comigo, grande parte dos iniciantes tinham
sensações semelhantes quando faziam os mesmos movimentos: tontura, enjoo e náusea. O
diagnóstico de Mestre Jaime e do professor Castor era o mesmo e invariável: “isso é assim
mesmo, com o tempo passa” ou “você tem que tentar controlar isso”. O que Loïc Wacquant
diz do aprendizado do boxe (Wacquant, 2002, 79), “um processo de educação do corpo” ou
“uma socialização particular da fisiologia”, pode dizer respeito, em alguma medida, ao
aprendizado da capuêra.
Em primeiro lugar uma educação do estômago e do labirinto que ensine o corpo a não
enjoar, perder o equilírio ou ficar tonto. A imagem gástrica não é apenas uma metáfora. Em
188
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
artigo recente Richard Schechner discorre, amparado por neurocientistas, sobre que ele chama
de “cérebro na barriga”, ou Sistema Nervoso Entérico. O SNE é composto por cerca 400
milhões de neurônios – número equivalente ao da medula espinhal – que revestem todo o
sitema digestório e se ligam ao cérebro pelo nervo vago. O “SNE é uma rede neurônica
complexa capaz de agir de forma independente, aprender, recordar e produzir, como diz o
ditado, até mesmo a sensação de frio na barriga.” (Schechner, 2013,57-58)76.
Em segundo, ensinar a cada músculo do corpo, inclusive ao cérebro se o tomarmos
desta maneira, que eles devem estar relaxados mesmo em situações tensas, um trecho de
registros de campo pode ser ilustrativo:
“Mestre Jaime dizia que a espontaneidade só ocorre com muito treino e que, além do
treino, depende de outros elementos ligados ao jogo, à situação de roda e ao
encontro com o outro dentro da roda.
A espontaneidade, “esse êxtase” como diz Mestre Jaime, depende da articulação de
treinamento e um estado de relaxamento que o capuêra deve buscar na situação de
jogo. Uma das formas de se alcançar tal relaxamento é por meio do cansaço físico.
Mestre Jaime - “Quando você começa a se sentir cansado é que deve insistir mais
um pouco no jogo. Essa exaustão é que te ajuda a relaxar.”
A exaustão colocaria o capuêra em um estado de relaxamento e entrega de si.
Mestre Jaime - “É nessas situações que as etiquetas caem e você pode ser você
mesmo.”” (Caderno de campo, São Paulo, 08/07/2014)
Durante os treinos é comum que o pedido para que os alunos realizem os movimentos
de forma relaxada surja em um momento ou outro, como nesta outra fala de Mestre Jaime:
“Gente vocês tem que tentar fazer os movimentos leves, macios, suaves. Tem que
colocar os pés no chão sem fazer barulho. Pra isso tem que estar relaxado. A gente
treina é pra conseguir essa leveza. E isso não é só pra cá não (aponta para o espaço
da academia). Isso é pra vida. O capuêra pisa macio.”(Caderno de campo, São
Paulo, 02/09/14)
A fala foi feita durante um treino rotineiro, entre uma sequência de movimentos e
outra. Neste mesmo dia Mestre Jaime dirige a seguinte observação à mim logo que me integro
ao treino e começo a realizar a movimentação junto aos demais alunos: “Carlos, relaxa, se
solta. Você tá duro, relaxa essa cabeça.” 77. A prática cotidiana deve produzir um corpo “mole
76
Em nota a tradutora Jamile Pinheiro afirma que a espressão original para frio na barriga é “gut feeling” que,
literalmente, significa “sentimento de intestino” mas pode ser entendida como “intuição”.
77
O movimento que realizávamos era o au, movimento no qual apoia-se uma das mãos no solo e se lançam as
pernas e o tronco para cima transferindo o peso do corpo de um braço para o outro e ficando temporariamente
com de cabeça para baixo.
189
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
como manteiga”, capaz de se adaptar as mais diversas situações do jogo de capuêra e, como o
trecho acima aponta, para situações da vida para além da capuêra.
Em terceiro lugar, surge uma educação emocional através da qual este relaxamento
corporal corresponda a uma tranquilidade e ausência de ansiedade ou, em um registro
maussiano, uma educação “du sang froid”. Apesar de fugir um pouco do tema em discussão,
uma passagem de Mauss vale a pena pela força da imagem que evoca: “La principale utilité
que je vois à mon alpinisme d’autrefois fut cette éducation de mon sang-froid qui me permit
de dormir debout sur le moindre replat au bord de l’abîme.” (Mauss, 1968, 385).
Em meados de abril de 2014, durante uma das rodas que ocorrem todas as quartasfeiras no espaço da Paraguassu, o antropólogo capuerista é chamado para a boca da roda78,
aos pés do berimbau, por um capuerista mais velho e mais experiente do grupo Nzinga/SP. O
jogo se iniciou e transcorreu por um certo tempo. Aparentemente tudo normal. Em uma das
chamadas, quando interrompemos o jogo e nos dirigimos aos pés do berimbau para reiniciálo, Mestre Jaime, que estava sentado ao lado, veio até mim e disse ao meu ouvido “Carlos,
você está muito afobado, tenta relaxar!”.
Nestas três situações um corpo (que no momento é o do antropólogo) em tranformação
é interpretado em função de um sistema de conhecimento específico. Desarranjo estomacal e
a labirintite: um corpo sendo transformado por uma técnica até então desconhecida; “é assim
mesmo, com o tempo passa!”. Uma cabeça que reluta em pender rumo ao solo quando se
planta bananeira, ou um queda pesada demais: indício de um corpo tenso. Um corpo que se
movimenta mais do que o necessário, que tenta antever e responder a questões sequer
colocadas79: indícios de um corpo ansioso e afobado. Esta interpretação dirige-se em dois
sentidos: diz algo sobre como este corpo está (sucetível à enjoos, tenso, afobado), ao mesmo
tempo que projeta um vir a ser específico sobre ele (uma percepção adaptada a um dinamismo
maior, um tipo de flexibilidade ligada ao relaxamento muscular, um controle da ansiedade em
situações de pressão).
78
Lugar onde as duplas de capueristas cumprem um pequeno ritual antes de iniciarem o jogo: se agaixam um de
frente para o outro, se cumprimentam, cumprimentam os tocadores de berimbaus e demais músicos e, por fim,
dão início ao jogo.
79
A capuêra é frequentemente descrita como um jogo de perguntas e respostas, assim os golpes e esquivas
devem estar articulados como em uma conversa.
190
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
É nesta divisão que, acredito, minha experiência pessoal pode virar método: é neste
segundo momento, na forma como meu corpo é capturado e sobre ele são projetadas certas
características, no modo como uma forma outra de vir a ser incide sobre ele, pode se abrir
uma via de compreensão para este sistema de conhecimento encorporado que é a capuêra. Ser
pego pelas categorias nativas, ser situado e aceitar ocupar este lugar significa, nos termos de
Favret-Saada,
“ser bombardeado por intensidades específicas (chamemo-las de afetos), que
geralmente não são significáveis. Esse lugar e as intensidades que lhe são ligadas
têm então que ser experimentados:
é a única maneira de aproximá-los.” (2005, 59)
Como diz o baiano, também nascido na Ilha de Itaparica, João Ubaldo Ribeiro, há
coisas que não se ensinam com “o diabo da desgrama das palavras” (1984, 597). Para essas
coisas talvez a proposta de Favret-Saada seja uma via possível: ser afetado, expor-se a uma
forma de comunicação involuntária, que pode ser verbal ou não verbal, mas que deve ser não
intencional e pode dar-se muitas vezes de forma “insuportável” ou “incompreensível” 80.
CAINDO NA RODA: ETNOGRAFIA E LIMINARIDADE
A roda de capuêra, para pensarmos nos termos em que Turner analisa os rituais, pode
ser considerada uma situação liminar (Turner, 1974). Se nos treinos a preocupação maior é
apropriar-se de golpes e esquivas, como tiras de comportamento (Schechner, 1985, 35) que
podem ser repetidas e experimentadas diversas vezes, a roda é o momento no qual estas tiras
serão montadas na prática, em uma conversa corporal81 entre dois capueristas. Como diz o
Professor Paulo Castor “o treino é a teoria e a roda é a prática.”. Apesar de aparecer de forma
um tanto dicotômica nesta frase, teoria e prática, na prática cotidiana, aparecem de forma
muito mais imbricada e articulada. Muitas vezes os momentos de maior descontração, um
almoço de domingo ou uma conversa no bar, tornam-se situações privilegiadas de transmissão
80
Há, no meio dos capueristas, uma expressão muito comum “Angola é longe!”. A expressão remete a
peculiaridade da forma de aprendizagem da capuêra: lenta, descontínua e cheia de elipses. Apesar dos momentos
de dificuldade do aprendizado, do alto nível de exigência corporal dos treinos, e de certos apertos pelos quais já
passei dentro de alguns jogos, minha experiência como capuerista nem de longe é insuportável, os momentos de
prazerosa convivência tendem ser preponderantes.
81
É comum a afirmação de que a capuêra é jogo de pergunta e resposta.
191
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
de conhecimento, da mesma forma que a roda, a situação de jogo, é encarada como momento
privilegiado de aprendizagem de valores como malícia e esperteza, e de uma fluência de
movimentação.
Se fôssemos pensar em um script da roda de capuêra, nos termos de uma linguagem
teatral, veríamos que por um lado temos aspectos bastante estáveis como: o círculo formado
pelos participantes, o conjunto de instrumentos que compõe a bateria82, as etapas rituais83 que
conformam a roda (formação da bateria, ladainha, louvação, corridos e abertura dos jogos,
terminado com o “Adeus, Adeus”), repertório de músicas e o repertório de movimentos
corporais. Porém no cerne desta estrutura ritual carregada de símbolos preserva-se um espaço
de inderteminação, um espaço arredio às classificações demasiado estáveis, arredio a
coreografias e gestos calculados. O centro da roda guarda a possibilidade do improviso que,
na capuêra, consiste em uma recombinação de movimentos (au, meia lua de compasso,
martelo, rabo de arraia, tesoura, rolô, entre outros) que adquirem as peculiaridades de quem os
realiza e ganham fluência e sentido na relação que se estabelece entre os dois jogadores,
atravessada pelo ritmo sustentado pela bateria e pelo coro que fecha a roda. O improviso
parece se dar nesta imbricação de uma estrutura tradicional (no sentido de algo que perdura e
é transmitido através do tempo) composta de formas rituais e linguagem corporal com este
espaço de indeterminação onde se dão encontros particulares, efêmeros e idiossincráticos.
A roda de capuêra é o espaço no qual, para que algo ocorra, os que ali adentram
devem estar minimamente dispostos a deixar que suas “linguagens” (no caso corporais)
arduamente aprendidas, estudadas, encorporadas no cotidiano de treinamento sejam expostas
ao perigo das provocações de um parceiro que só será revelado nos segundos que antecedem a
entrada na roda. Como diz Mestre Jaime, a exaustão física pode ser um dos elementos que
levam a um desarme, uma entrega de si. Eis alguns paradoxos da roda de capuêra que
reforçam seu caráter liminar: trazer o inesperado e o imprevisível para o cerne de um ritual;
produzir, através de uma disciplina rigorosa, um corpo tão flexível e ágil que seja capaz de
articular um meticuloso controle de si à uma situação de abertura para relação com um
82
A bateria da Paraguassu é composta por: três berimbaus (gunga, médio e viola), dois pandeiros, agogo, recoreco e atabaque.
83
Ritual entra aqui tanto como uma categoria nativa quanto como categoria analítica.
192
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
parceiro de jogo, ou à uma situação de relaxamento e entrega de si que pode surgir de um jogo
longo e exaustivo.
A hipótese que vem surgindo de minha pesquisa de campo, a qual exponho aqui de
forma reduzida e desencarnada de exemplos do campo por falta de espaço, é que: 1) a
possibilidade do improviso está intimamente vinculada a um tipo particular de inteligência
corporal cujos atributos, ao menos alguns deles, esbocei na primeira parte do artigo como uma
percepção adaptada a contextos dinâmicos e um relaxamento e flexibilidade corporal que se
desdobram numa tranquilidade emocional; 2) esta ascese corporal é algo que se desdobra e
gera uma forma de estar no mundo, “o capuêra pisa macio”, como Mestre Jaime afirma, “os
aprendizados saem da roda para a vida e vem da vida para a roda”. Assim minha pergunta é se
a flexibilidade e agilidade do corpo se converteriam em valores operantes não apenas na roda
de capuêra mas em toda a vida dos capueristas.
CONCLUSÕES IMPROVISADAS
Gostaria de voltar ao princípio da discussão deste texto, à reflexão sobre a etnografia,
sob o viés de uma roda de capuêra. Me parece que para que a capuêra ocorra deve-se estar
disposto a correr o risco de que uma linguagem de gestos e movimentos arduamente
encorporada ao longo do treino cotidiano se dissolva, desorganize e recomponha ao sabor e
calor do encontro com outro capuerista dentro da roda. Sem esta abertura não há espaço para
o diálogo de corpos, no máximo para monólogos exibicionistas84. Trago uma última citação
de Favret-Saada que versa sobre sua proposta para etnografia mas que poderia muito bem
descrever um jogo de capuêra.
“Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de
conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento é onipresente, não
acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se
perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possivel.” (2005, 160)
84
Há no campo uma divisão clara, ao menos para meus amigos capueristas, entre algo que seria improvisado e
espontâneo e algo que não passa de exibição de um virtuosismo fechado ao diálogo corporal.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Talvez o risco, ou perigo, da experiência85 etnográfica que tento desenvolver, além do
risco bem físico e sempre latente de ser acertado por um golpe enquanto faço etnografia,
esteja nesta fricção deliberada entre duas formas de se produzir conhecimento, entre
repertório e arquivo, se pensarmos nos termos de Diana Taylor. Toda etnografia e, no limite,
todo tipo de conhecimento, parte inevitavelmente de uma experiência corporal, ou de um
conhecimento encorporado. A grande questão talvez seja a medida em que se opta por
purificar este conhecimento, que é sempre híbrido, de seus índices de corporalidade, ou se
opta por reconhecer o valor epistêmico desta experiência corporal.
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85
Interessante lembrar que a palavra experiência tem em suas raízes etmológicas a palavra perigo (Turner,
1982).
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Janeiro: Relume Dumará.
195
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
O QUE “AFRICANA” QUER DIZER? INTERLOCUÇÃO E RETÓRICA
Lucas Barbosa Carvalho
[email protected]/[email protected]
CAPES/CNPq
PPGAS-USP
Mestrando
O artigo parte da rejeição da objetivação sociológica das adjetivações registradas durante uma
interlocução etnográfica. Sugere como alternativa um argumento etnográfico que exponha a
racionalidade retórica dos interlocutores. Indagando e ouvindo Jessica Silva – nativa da
cidade do Recife (Brasil) – o autor constata que a sua própria maneira de realizar as perguntas
baseia-se em parâmetros epistemológicos de realidade bastante específicos. O exercício de
interpretação dialógica oferece um desvio analítico que reorienta o percurso da investigação.
Palavras-chave: adjetivação, etnografia, retórica.
INTRODUÇÃO
Inicio este artigo com uma citação de Manuela Carneiro da Cunha. Trata-se de uma
destacada passagem da sua comunicação Etnicidade: da cultura residual mas irredutível.
Após 31 anos da sua primeira publicação, em um acréscimo ao texto de 1978 em forma de
excerto deslocado, escreve a antropóloga:
Parece-me que ficou claro que a etnicidade, como qualquer forma de reivindicação de cunho cultural, é uma
forma importante de protestos eminentemente políticos. Reconhecer o que ela diz, o protesto, a reivindicação, há
quem o faça. Mas o que ela diz, di-lo de certa maneira. Não há por que pensar que essa maneira seja um
balbuciar (Carneiro da Cunha, 2009, p.244, grifos da autora).
Ignora-se com frequencia “certa maneira” de dizer em prol da objetivação sociológica
da adjetivação atribuída a determinado jogo de linguagem, ainda que o “dizer” – isto é, o jogo
de linguagem – expresse ideias alheias à adjetivação unilateral ancorada em uma
racionalidade “científica” presumidamente universal (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Aqui,
expõe-se o curso de uma interlocução em que se procurou não objetivar os adjetivos, mas
explicitar as adjetivações através da retórica de uma interlocutora nativa da Grande Recife
(Brasil).
ARGUMENTO ETNOGRÁFICO
Em agosto 2013 iniciei uma investigação sobre as desigualdades e as interações
“raciais” no Centro Histórico do Recife (Brasil). Daria prosseguimento à reflexão apresentada
196
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
por Leite (2007), retornando ao mesmo campo de estudo para estabelecer outro percurso
etnográfico. No projeto que justifica a nova empresa 86, considero que a etnografia de Leite –
malgrado atenta à multiplicidade das diferentes reivindicações políticas presentes no Centro
Histórico – carece de uma interlocução que permita observar para além do mapeamento
turístico previamente dado da Cidade do Recife. Porque fundamentado na conclusão objetiva
do observador descritivo de um lugar central da cidade, julgo que se ausenta no argumento do
cientista social uma epistemologia dos observados que se distinga dos limites cartográficos
convencionados pelo Estado.
É assim que Proença caracteriza a diferença como um “contra-uso” do “espaço
público”, passando ao largo de uma revisão crítica do dualismo greco-romano (entre o
“público” e o “privado”) que lhe serve de lente etnográfica e razão explicativa. Esta implícita
filosofia política manobrada em seu argumento é explicitada, com efeito, quando o tom
missionário em favor da “vida pública” borra a diferença entre o próprio pesquisador e o
“homem público” idealizado como agente discursivo:
Talvez por isso se possa dizer que a lição de Arendt continua válida e atual: o homem público, mesmo
entrincheirado em seus lugares, “se dá a conhecer”. É na vida pública que as pessoas reafirmam suas diferenças e
legitimam suas visões de mundo: o espaço público não se ergue na harmonia das falas, mas na comunicabilidade
política do “desentendimento” (...) da qual emergem diferentes inteligibilidades sobre fatos iguais, e torna
factível a possibilidade democrática. Somente no âmbito da vida pública, e nunca na esfera privada, as pessoas
compartilham ou disputam realidades, de onde aflora a condição humana da pluralidade, base da difícil
convivência social e das relações de poder (Leite, 2002, p.131, grifos meus).
O androcentrismo analógico do “homem público” – passagem do oikos (doméstico/
privado) a polis (cidade/público) como emancipação política do Homem (com “h” maiúscula)
– pressupõe uma concepção humanista de democracia e pluralismo político bastante
particular87. Essa particularidade é, contudo, ignorada. O Centro Histórico metaforiza uma
86
Projeto para acesso ao Mestrado em Ciências Sociais (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo
(USP).
87
Refiro-me ao androcentrismo característico das organizações sociais mediterrâneas (Bourdieu, Pierre. 2009. O
senso prático.Vozes: Petrópolis, RJ), cuja recepção no âmbito da tradição filosófica ocidental se deu pela resignificação histórica da ontologia política ateniense (cf. Hegel, George W. Friedrich. 2008. Filosofia da
História. UNB: Brasília). Na segunda metade do século XX, graças à interpretação conceitual de Hannah Arendt
(1987. A condição humana. Forense Universitária: Rio de Janeiro), essa mesma ontologia política serviu à
análise das lutas democráticas por direitos civis nos Estados Unidos.
197
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
como Ágora grega: praça universal onde as diferenças emergem na “vida pública” – em
oposição à “vida privada – através do compartilhamento e desacordo de ideias. Proença aceita
acriticamente uma presunçosa simetria da ação comunicativa como a única alternativa para a
resolução dos conflitos políticos citados em seu trabalho – notadamente, a violência policial e
a especulação imobiliária no Centro Histórico. A contradição latente é que, assim, não se
diferencia a distribuição desigual do poder de comunicar a história do “espaço público”,
reproduzindo na prática etnográfica os efeitos sociológicos da hierarquia classista constatada
durante a observação: por um lado, as meninas e meninos de rua abordados pela polícia são
descritos a distância, por outro, o monopólio da palavra discursiva sobre a história dos
“contra-usos” do Bairro é concedido a um “homem público”88 em entrevistas face a face
(LEITE, 2002).
A oportunidade de confrontar essa objetividade “humanista” do “homem público” –
com outra história da cidade do Recife – é-me permitida quando, em março de 2014,
estabeleço uma longa conversa com Jessica Silva (mulher negra, 25 anos) em entrevista com
gravador realizada no Centro Histórico. Na ocasião, Jessica ensaiava com o seu grupo de
Coco89 para uma exibição durante período carnavalesco que se aproximava. Dado o seu
interesse pelo estudo, o encontro suscitou a manutenção recíproca da interlocução no decorrer
do primeiro e segundo semestre de 2014 (em Recife ou por meio das redes sociais online),
permitindo uma série de relações interpessoais com os moradores dos bairros fora da região
central e um deslocamento fluído pela metrópole. Na ocasião, o argumento etnográfico foi,
então, reformulado em favor de uma observação não restrita ao bairro estudado por Proença:
88
O “homem público” em questão é Roger de Reno. Segundo Leite (idem.), influente promotor “cultural” da
Cidade do Recife e um dos mais importantes entusiastas do movimento musical Mangue Beat no final da década
de 1990.
89
O Coco (em Pernambuco) ou o Samba de Coco (em Alagoas e Sergipe) é uma dança de roda brasileira. O
ritmo sincopado dos instrumentos percussivos (chocalho, pandeiro, ganzá, cajón e zabumba) é marcado pela
oralidade e as palmas que narram casos da vida cotidiana, dilemas amorosos e reivindicações políticas. A dança
é um tipo de “desafio”, aonde os corpos dos dançarinos se escapam e se atritam levemente. Enquanto os demais
formam uma grande roda, há um revezamento constante das duplas (independentemente do gênero feminino ou
masculino) que são formatadas a cada vez e na ocasião do encontro. As coreografias realizadas por cada par
duram, em média, entre 20 a 30 segundos no centro da roda.
198
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
fazia-se mister acompanhar o trabalho de Jessica como música e as suas participações na
militância feminista dentro e fora da Universidade Federal de Pernambuco.
Gostaria de apresentar um problema de interpretação dialógica suscitado em nossa
interlocução. As ações na militância feminista e as exibições do grupo de Coco são as
atividades para as quais Jessica sempre me convida etnografar. Em um primeiro momento,
dessa regularidade concluí como admissível que a música e a política seriam mediadas por
uma semântica comum, um ethos socialmente compartilhado. A suspeita pareceu-me coerente
na medida em que há uma recorrência da adjetivação “africana” para definir as roupas de
Jessica utiliza nas exibições de Coco e no engajamento militante (dentro e fora da
Universidade Federal de Pernambuco). Ao expor a minha interpretação, a interlocutora
considerou a correlação entre as atividades e a adjetivação engenhosa, mas ofereceu outro
problema como resposta quando cruzei arbitrariamente uso da roupa “africana”, a música e a
militância política: “Até faz sentido, só que isso não diz nada”.
“ANTES” E “DEPOIS” DA UNIVERSIDADE
Durante a interlocução, Jessica cita-me alguns dos acontecimentos que ocorreram
“depois” que ela entrou na Universidade para cursar o bacharelado em Serviço Social (2009):
o uso de roupas “diferentes” das que costumava “antes”, o fim do alisamento capilar seguido
de dreadlocks, uma tatuagem, o abandono da religião protestante (Igreja Batista), um interesse
maior pelas religiões de matriz africana. “O ingresso na universidade” – explica-me Jessica –
“favoreceu estas escolhas, porém, acredito que elas ocorreriam também fora da universidade”.
O depoimento é elucidativo. Se registrarmos tais seleções como correlatos discursivos
das modificações corporais objetivas, muito provavelmente concluiremos que Jessica muda ao
marcar o corpo. Tratar-se-ia, neste caso, de uma inscrição física capaz de significar um ethos,
uma grafia corporal que dá sentido à pertença e igualdade no seio do grupo (CLASTRES,
1978). Contudo, devido à minha insistência em definir as diferenças corporais como um dado
físico – correlacionado a condições biológicas culturalmente adaptadas ou mudanças físicas
socialmente significadas através do comportamento cultural –, Jessica questiona
constantemente os princípios de realidade aplicados na pesquisa. Utilizando as adjetivações
199
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
“ônus” e “bônus” para definir o que significa ser “negro”, a interlocutora rechaça a maneira
como as perguntas são formuladas.
A querela merece atenção. Se eu explico que sou um indivíduo negro por minha avó
ser negra, Jessica argumenta que isso não é ser negro. Contesto apresentando os meus traços
fenotípicos e ela explica-me que isso não faz o menor sentido, que escapo ao problema.
Pergunto-lhe, então, se ser negro está relacionado a um tipo específico de comportamento, ao
passo que ela responde-me – sinalizando aspas com as mãos – que ser negro não é um
“comportamento”, mas uma realidade. Se a explico que sou “mulato”, Jessica responde que
estou equivocado: não há mulatos, há apenas os que sofrem o preconceito em algum
momento, mesmo que não vivam essa realidade todos os dias da suas vidas:
Você é negro, mas não sofre preconceito. Porém, os que não possuem a pele preta –
e se intitulam negros – passam despercebidos nesta sociedade racista. Podem
desfrutar do bônus de ser negro, mas não padecem do ônus (depoimento de Jessica,
grifos meus).
Em outro momento questiono Jessica sobre as “transformações” corporais que realizou
nos últimos anos. Desviando a atenção de uma reposta voltada ao corpo, ela menciona em
reforço argumentativo o acesso à Universidade através dos marcadores temporais “antes” e
“depois”. Essa diferenciação permite contestar-me retoricamente, mas também possibilita
pensar o corpo consoante um escopo compreensivo outro que não os cultural e naturalmente
objetivos. Quando Jessica relata o abandono do alisamento capilar “depois” da entrada na
Universidade, por exemplo, indago sobre a mudança de percepção “racial” após esta escolha.
Ela responde-me que não faz sentido pensar em termos de mudança “racial”, já que sempre
foi negra e o que muda através do cabelo não é a sua própria percepção como negra, senão os
modos como a nomeiam “antes” e “depois” do dreadlocks. Recorda-se, assim, que era
chamada frequentemente de “morena” ao usar os cabelos alisados. Pergunto, então, se o uso
dos dreadlocks inviabiliza essa forma de nomeação:
Sim. Mas os efeitos não são tão diretos como pensa. Eu era uma negra de cabelo alisado. Morena eu era apenas
quando diziam: “você é tão bonita, não diga que é negra”. Isso de dizer para não ser negra acontece ainda hoje,
inclusive usando os dreads (depoimento de Jessica).
200
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Quer dizer, não faz sentido pensar em uma passagem de “morena” para “negra” – e a
interlocutora é enfática descartando o termo “mudança” como o mais adequado para definir o
abandono do alisamento capilar. Jessica sempre foi negra e sempre poderá ser denominada
por “morena” no que toca ao “ônus” e o “bônus” que acarretam esses adjetivos. Os cabelos
não se vinculam a uma transformação “racial”, uma conversão religiosa ou de classe:
O cabelo não é a recusa direta do protestantismo. Eu estaria inventando se dissesse isso. Os cabelos são o
resultado de um processo de aceitação permeado por todos estes fatores: religião, bairro, família e militância.
Este processo acentuou-se com o ingresso na universidade e a busca pelos conhecimentos adquiridos. Este
processo já tinha se iniciado antes da entrada na universidade, sem data certa. O cabelo é a recusa de um padrão
que reconheço entre as mulheres evangélicas, mas também nas estudantes e professoras de nível superior
(depoimento de Jessica, grifos meus).
Contrasta-se, desse modo, uma realidade a revés do tempo social bourdiesiano
(BOURDIEU, 2007), isto é, a revés de um marcador temporal “objetivo” que defini a
constância das adaptações cinéticas (comportamento cultural) em direção à progressiva
regulação pedagógica da individualidade biológica (MAUSS, 2003). Em nossas conversas,
Jessica argumenta em favor de uma decomposição retórica da lógica comportamental imposta
pelo tempo do relógio. Os horários previsíveis dos cultos da Igreja são como os momentos
“corretos” para falar determinados assuntos fora ou dentro da sala aula; são “limitações” do
“pensamento”, do “gesto” e da “palavra”. Poderia ser “diferente”, pois as imposições
disciplinares – do protestantismo e da própria conduta adequada ao mundo acadêmico – são
comparadas e confrontadas, assim, a sua própria concepção de “realidade” em face da vida
universitária.
Pensando ser plausível inferir do argumento de Jéssica que existem “negros”
potenciais, mas que estes só realizam (se agenciam) ou são realizados negros (sofrem a
agência) em determinadas circunstâncias “reais” – uma abordagem policial e uma
reivindicação política– escrevo-te através de uma rede-social a minha última hipótese
formulada. Recebo como resposta a seguinte ressalva:
Lucas, nós somos negrxs. Simplesmente, nestas horas que você citou, temos o ônus de ser mais um negro e uma
negra nesta sociedade racista. Mas isso de forma alguma se configura a integridade de ser negrx, entendeu? O
bônus é mais significativo. Deveria ser ressaltado. Não gostei do exemplo da abordagem policial. Ele deve ser
201
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
caracterizado como “se realizar, ou se agenciar”? Essas palavras são muito obscuras (mensagem escrita por
Jessica; grifos meus).
O contradita é clara: “O bônus é mais significativo”. Atentando-se ao “x” na palavra
“negrx” apresentada através da reivindicação retórica da interlocutora, gostaria de descartar a
interpretação da entrada na Universidade como um rito de passagem homogêneo
(CLASTRES, 1978) favorável a transformações pessoais e corporais objetivas – no sentido de
uma datada e contínua construção do corpo durante o curso superior. Estou sugerindo com
Jessica que os acontecimentos “depois” da Universidade (como a tatuagem, o dreadlock e o
abandono da religião evangélica) não precisam ser caracterizado, necessariamente, como uma
objetiva conversão, tampouco uma mudança corporal individual. O “antes” e o “depois” da
Universidade definem uma marcação temporal, ainda que a roupa, os cabelos e a religião não
se destinem a sofrer uma marcação corporal que restrinja as adjetivações a uma identidade ou
uma solidariedade política estratégica (SPIVAK, 2008). Isso pelo fato de que o bônus é mais
significativo que o ônus. O que ocorre “antes” e “depois” da entrada na Universidade não tem
uma “data certa” a ser capitalizada como um constructo discursivo calculista. Parece-me que é
a multiplicidade derivada do “x” após o “nós” o mais importante na resposta escrita por
Jessica. Em outras palavras, é a forma da reivindicação contra o ônus que constitui o bônus
do passado como discurso contraditório em sua racionalidade própria, não o ônus passado
que constitui o discurso racional da reivindicação coerente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: DESCONSTRUÇÃO RETÓRICA E “COSMOVISÃO”
Em uma tradução algo forçosa, poder-se-ia afirmar que Jessica marca um
acontecimento através do “antes” e “depois” decompondo reflexivamente, por um lado, o
tempo linear do disciplinamento progressivo de classe na consolidação do capitalismo
“moderno” brasileiro (FERNANDES, 2008, 2008a) e, por outro, o tempo subjetivo da
conversão cromático/racial de classe dos “mulatos” durante e após a escravidão brasileira
(FREYRE, 2003; FREYRE, 1996). Através da desconstrução retórica dos pressupostos de
uma homogeneização “morena” escapa-se, por conseguinte, do dualismo epistemológico entre
“natureza” e “cultura” que justifica a padronização “racial” do “mestiço” através da
202
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
universalidade relativa dos seguintes binarismos: “natural”/“cultural” (FREYRE, 2003),
“biogenético”/“geográfico”
(ALVES-SILVA
et
al.,
2003;
OLIVEIRA
VIANA,
1987),“biogenético”/“histórico” (CARVALHO et al., 2008; NINA RODRIGUES, 2008). Tais
binarismos baseiam-se em um realismo epistemológico particular, oscilando entre a
representação da “miscigenação biológica” dos corpos e a representação da conduta “cultural”
como uma disposição sexual à miscigenação “brasileira”. Não é desta realidade
representativa que nos fala Jessica.
Nos exemplos apresentados no artigo, o acesso ao curso superior é marcado sem
definir datas “reais” que sinalizem o início de cada um dos acontecimentos que ocorreram
após entrar na Universidade. Não creio que seja correto afirmar que Jessica “inventa” um
tempo individual no decorrer da interlocução: simulando uma biografia, selecionando os seus
aspectos relevantes. Tal suposição é reducionista, pois o pressuposto de uma criação calculista
do passado nega a própria capacidade retórica da interlocutora. Com efeito, ela não define as
características corporais como mudanças marcadas de maneira discreta. Sugiro a tradução de
um contínuo transformável, um processo que independe da Universidade, embora o seu
acesso seja um marcador temporal relevante e, de fato, “acentue” as escolhas da interlocutora.
Com efeito, se as mudanças não podem ser concebidas como fatos biológicos,
tampouco são elementos de conversão “cultural”. Prevalece no discurso a rejeição de uma
“cosmovisão”, não a adesão a uma cosmologia:
Embora fosse evangélica, eu já não concordava com a cosmovisão imposta pela religião em seus distintos
aspectos: comportamento do homem, da mulher, capitalismo, superioridade do homem sobre a natureza, pecado,
entre outros fatores (depoimento de Jessica).
Aqui, uma questão queda-se em aberto. Se considerarmos o Protestantismo a
derivação cosmológica de um espaço-tempo (um mundo possível) particular capaz de
produzir biograficamente outros tempos e espaços, poderíamos afirmar que o tempo do ethos
protestante – o tempo das badaladas regulares do sino da Igreja (THOMPSON, 1998) e da
parcimônia (WEBER, 2004) – é um tempo “real” específico universalizado através da
conduta laboral (WEBER, idem) e da secular ritualização nos tribunais do Estado
(GREENHOUSE, 1996)? Tal caracterização “secular” necessita comparação. É neste sentido
que compreender outro espaço-tempo (outro mundo) não significa defini-lo através da
203
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
objetividade escrita. Antes, faz-se necessário pensar e escrever com Jessica outros tempos
“reais” que – como parecem sugerir Gell (2014) e Sahlins (2004) – tangenciam (cosmológica
e biograficamente) a secularização cristã pretensamente “universal” de uma progressiva
linearidade dinâmica entre o passado, o presente e o futuro.90
BIBLIOGRAFIA
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Pp. 115-134.
90
Ao aprovar a publicação desse artigo, Jessica escreveu-me uma mensagem através de uma rede-social: “Vou
fazer uma pesquisa em que você seja o objeto, o interlocutor”. Não há motivo para pensar que esta reivindicação
seja um mero balbuciar.
204
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
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WEBER, Max. 2004. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia
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205
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
POR UMA ETNOGRAFIA DA TÉCNICA: DESAFIOS, ESTRATÉGIAS
E PERSPECTIVAS NO TRABALHO SOBRE A PRÁTICA DAS ARTES
MARCIAIS NOS EXÉRCITOS MODERNOS
Lucas Alexandre Pires
[email protected]
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar
Buscando retomar alguns conceitos sobre a temática do corpo e suas técnicas, o presente
artigo visa contribuir com o debate sobre a antropologia dos militares, tomando o corpo
humano como instrumento técnico do qual os exércitos modernos fazem uso, na
transformação do mesmo enquanto arma de combate através do disciplinamento e prática de
técnicas de combate transmitidas pelas artes marciais dentro de academias militares, sendo
tais práticas pensadas enquanto mecanismo de fabricação e domesticação de corpos e mentes
voltados para a guerra. Assim busca-se contribuir para o debate metodológico na utilização do
próprio corpo do antropólogo como instrumento etnográfico, para além das descrições do
caderno de campo, na vivência e prática de artes marciais e instruções militares, circulando
entre os mundos civil e da caserna, elencando novos desafios e possibilidades etnográficas a
partir das relações entre militares e paisanos.
Palavras-chave: militares; artes marciais; técnicas do corpo; etnografia
OS MILITARES, O CORPO E SUAS TÉCNICAS.
Explorando a bibliografia sobre militares91, é notório o papel fundamental que o corpo
exerce como instrumento técnico92 do qual os Exércitos fazem uso, na medida em que estes se
preocupam regularmente em testar, avaliar e julgar seus elementos em relação à aptidão física
e intuitiva, para então remanejá-los em suas devidas posições previamente prescritas, junto a
manutenção da pessoa dentro de uma linguagem específica, codificada pelas relações
hierárquicas, dentro do mundo militar. Porém, pouco se foi trabalhado em relação à prática
de artes marciais dentro dos exércitos modernos e às diversas técnicas corporais transmitidas
de geração para geração, de nação para nação, para a formatação de corpos e mentes voltados
para o combate e a guerra.
91
Leirner (1997; 2001; 2006; 2007; 2009; 2012); Castro (1990; 2002); Lutz (2002); Ben-Ari (1998); Badaró
(2009).
92
Mauss (2003); Simondon (1989); Hertz (2013).
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Mauss talvez teria sido o primeiro a evidenciar os efeitos das técnicas corporais
voltadas para o treinamento militar. Em seu artigo intitulado “Noção de técnica do corpo”, ele
irá tratar o corpo como “o primeiro e mais natural instrumento técnico do homem”, onde a
técnica é tratada como um “ato tradicional eficaz”, transmitido através de exemplo e ordem,
vindos de fora, com as relações desempenhadas no meio social. Mas o que nos interessa
pensar mais detidamente aqui é sua noção de educação do sangue frio, no adaptar o corpo a
seu uso, na inibição e retardamento de movimentos desordenados para objetivar uma resposta
precisa de movimentos coordenados, resistindo a todo tipo de perturbação invasora vinda de
fora, com a intervenção da consciência desenvolvida através das relações sociais, educação e
manutenção da tradição e adaptação à realidade, como ele mesmo coloca a partir de sua
experiência durante a Primeira Grande Guerra, dormindo em pé a beira do abismo. Tal noção
parece ser a chave para pensar o como os exércitos modernos podem usufruir das artes
marciais como meio de disciplinar, fabricar e domesticar corpos e mentes para a guerra. Mas
como isso ocorre?
Assim como atenta Shahar (2011), as artes marciais podem ser “boas para pensar” na
medida em que operam como mecanismos de linguagem que imbricam pessoa, corpo e
armamento para então serem mobilizados de acordo com as instituições que sobre eles se
inscrevem e deles fazem uso. Dessa mesma forma, é possível identificar os mesmos
mecanismos com os quais os Exércitos operam dentro do universo da prática marcial, tais
como a hierarquia e disciplina, constantes exames de libação e estoicismos extremos
(Clastres, 2004) dos quais os militares são frequentemente postos à prova a partir de seu
ingresso nas academias como evidenciou Castro (1990) e nas artes marciais servem para
ascensão de graduação, mobilização e preparação constante para o combate (que segundo
Clauzewitz é a atividade essencial da guerra). E, mais do que isso, ambos os mundos militar e
marcial partilham de um sistema do qual Leirner buscou evidenciar em sua tese de doutorado
(Leirner, 2001), ao pensar a guerra como um processo de troca entre inimigos recíprocos,
onde, no caso deste estudo em particular, os Exércitos buscam constantemente incorporar e
atualizar meios e métodos cada vez mais eficazes para o sucesso em combate, o que aqui
perpassa pela introdução de meios específicos de disciplinar militares através de técnicas
207
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
milenares de combate corpo a corpo desenvolvidas em diversas localidades do mundo. Tal
argumento, apesar de pretensioso, ganha força quando observamos a introdução e
englobamento de técnicas marciais indianas, chinesas e japonesas, bem como outras
ocidentais derivadas destas primeiras, na formulação de manuais de treino em Lutas dos
exércitos modernos93, como buscaremos demonstrar a seguir.
AS ARTES MARCIAIS E OS EXÉRCITOS: BREVES APONTAMENTOS
Segundo a literatura que investiga as artes marciais, sempre houve uma estreita relação
entre as artes marciais e os exércitos. Data-se de 5000 a.C. os primeiros resquícios
arqueológicos encontrados na Índia, com a pratica do Vajramushti, que na tradução seria
“Punho Real” ou “Caminho do Rei”, pelos antigos Dshastra, casta de guerreiros que
possuíam o conhecimento marcial e eram responsáveis por guiar os exércitos no campo de
batalha. No Vajramushti, o objetivo não era só subjugar o oponente pela força, mas também
desenvolver a plenitude das capacidades físicas e mentais através da meditação e exercícios
de equilíbrio94.
Como atentam Bull (2000) e Shahar (2011), Bodhidharma, o Buda, foi praticante
assíduo de Vajramushti e pregava o constante treinamento do mesmo junto às práticas
religiosas. Em sua visita a China, datando entre o século V e IV a.C., Bodhidharma teria
permanecido por anos no monte Song, mais especificamente no monastério de Shaolin onde
ensinara as técnicas do Vajramushti aos seus discípulos como ginástica para melhoria do
fluxo de chi95. Tais técnicas foram praticadas e refinadas ao longo dos séculos dentro do
monastério, resguardando ainda sua origem marcial. Durante o seculo VI d.C., os monges de
Shaolin foram responsáveis por uma rebelião armada onde se assegurou a supremacia do
imperador Li Shimim aos distritos próximos a Henan, no Noroeste da China. Mas como seria
93
Para este artigo, nos deteremos especificamente nos manuais em Lutas da Marinha Norte- Americana e do
Brasil. Porem, vários outros países com Japão, China, Coreia do Norte, Rússia, França, Israel, dentre vários
outros, possuem os referidos manuais para o treino de seus combatentes, bem como a formação de agentes
específicos para o ministro destes treinos nas academias militares.
94
Posteriormente, vemos a pratica da yoga sendo desenvolvida junto com os ensinamentos e praticas do
Vajramushti.
95
Chi na china é entendido como espírito ou energia vital que está sempre em fluxo pelo corpo e ao redor dele,
culminando na total integração do corpo ao espaço.
208
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
possível então que monges seguidores do budismo, que prega a não violência, se rebelassem
contra os exércitos invasores? Uma hipótese para tal questão trabalhada por Shahar (2011)
corresponde a uma resposta mitoprática (Sahalins, 1990) do ensino das técnicas marciais.
Segundo o autor, a partir da análise das histórias e mitos escritos nas estélas de Shaolin96, há
uma aproximação de deuses guerreiros aos monges, bem como uma interação entre ambos,
que resultaria no uso das técnicas marciais em campos de guerra com a legitimação de tal
ação ou quebra de tabu pelos monges. Vajrapãni, deus da guerra indiano também
ressignificado para o contexto chines, aparece como uma entidade musculosa, dotada de
extraordinárias aptidões físicas, teria se encarnado múltiplas vezes para estar entre os monges.
Em uma delas, teria oferecido uma sopa de tendões97 aos monges, que passaram a
desenvolver as mesmas habilidades físicas de resistência e força que o deus, sendo necessária
a sua manutenção através do treino físico e espiritual. Tal divindade também teria encarnado
na figura de um monge, possuidor de um bastão magico capaz de aumentar ou diminuir de
tamanho conforme a vontade de seu dono98. Tais contatos com a entidade sagrada teriam
favorecido então que os monges quebrassem seus votos para fazer a guerra, e foi justamente a
partir destes episódios que nasceu, segundo Shahar (2011), as bases do que conhecemos hoje
como Kung Fu99, mais especificamente do estilo Wushu ou “Arte da Guerra”.
Encantado com o ocorrido em Shaolin, o General Qi Jiguang vai ao monastério para
ver uma apresentação dos monges que lutaram durante a rebelião. É então que há a primeira
incorporação as artes marciais de mãos nuas aos exércitos, com a seleção de técnicas efetivas
de combate corpo a corpo e sua incorporação em manuais militares como o Novo Tratado
Sobre Eficiência Militar e a obra Fundamentos do Clássico do Combate de Mãos, ambos
também datados do seculo VI, escritos pelo próprio general. A partir de então, as técnicas de
combate de mãos nuas passaram a ingressar o cotidiano militar como um meio de se atingir a
96
As estélas são monumentos em pedra contendo escrituras sagradas sobre o monastério de Shaolin e suas
origens.
97
Lembrando que também e interdito aos monges budistas o consumo de carne, constituindo mais uma quebra
de paradigma com o aval sagrado.
98
A partir de então, os monges deixaram de utilizar o bastão de três argolas que servia como instrumento de
meditação para então fabricar o bô, bastão utilizado como arma em combate.
99
O Kung Fu, em sua tradução literal, significa “fazer com perfeição”.
209
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
plenitude física e mental dos combatentes, através de uma rígida disciplina adquirida no treino
marcial.
Saindo um pouco da China e adentrando ao Japão, também com a disseminação do
budismo e sua incorporação aos valores xintoístas e taoistas, as artes marciais passaram a
incorporar os exércitos, como salienta Bull (2000), em três períodos distintos. O primeiro
deles foi o “período do Bujitsu”, que parte do Japão primitivo até o desenvolvimento da
civilização de Nara, com a adoção da cultura chinesa como referência para o desenvolvimento
do Japão no século VIII. Neste período haveriam técnicas prístinas de luta que eram utilizadas
constantemente nas guerras com o uso de arcos, espadas e lanças, sem efetivamente
partilharem de técnicas de combate de mãos nuas, sendo o combatente treinado
especificamente para cada arma e posição que desempenhar. Com o tempo as artes marciais
passaram a ser incorporadas efetivamente ao exército a serviço do império, como meio
complementar ao treino com armas para também desenvolver o espírito de combate e preparar
o contingente militar para as situações de guerra. O segundo seria o “período do Bugei”
ondem há a emergência e o estabelecimento do xogunato, que perdurou de 794 a 1868
d.C..Neste período, emerge a figura dos samurais (no sentido literal, “aqueles que servem”)
como uma casta de guerreiros que lutavam a partir dos códigos de honra do bushido (“O
Caminho do Guerreiro”), subordinados aos xoguns (senhores feudais). Os samurais eram
hábeis nas técnicas do arco (kyujutsu) e da espada (kenjutsu), sendo eles os únicos neste
período a poder portar duas espadas, katana e wakizashi100. Os preceitos do bushido se
balizavam nas condutas de justiça, bravura heróica, cortesia, benevolência, sinceridade, honra,
dever e lealdade, sendo os samurais capazes de honrar com a própria morte os compromissos
com seus senhores. Por fim, vemos o “período do Budô101” onde Bull (2000) enquadrará os
tempos da Restauração Meiji e o fim do xogunato até os dias atuais. Vemos nele a
transformação do ensino das artes marciais onde estas passam a não ser mais praticadas
100
Nessa relação entre os samurais/espadas, corpo e pessoa/arma, percebemos que ambos passam a representar a
si enquanto unos dentro de uma hierarquia determinada.
101
Budô, no caso, significa “o caminho da guerra”, com o qual as artes marciais orientais passam a ser
interpretadas enquanto verdadeiros caminhos pelos quais os homens poderiam buscar refinar corpo e mente
através das práticas e técnicas desenvolvidas ao longo da história.
210
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
somente nos exércitos, mas sim dentro dos ryus102 onde pessoas de todas as classes poderiam
aprender a marcialidade e o desenvolvimento do ki103 através da prática do combate dentro
dos dojos104. Assim, as artes marciais passam por um movimento de popularização
desvinculando-se da aristocracia e florescendo em vários tipos e estilos de luta baseados nas
antigas técnicas de combate praticadas no período feudal japonês105. Mas afinal, quais as
relações entre a prática de artes marciais e os exércitos modernos?
Drea (2009) aponta em sua obra para o então surgimento do novo exército japonês
baseado nas praticas de guerra do Ocidente, já influenciado pela relação entre Japão e
Inglaterra no século XIX. Tal processo se deu primeiramente a partir da ação dos kiheitai, um
grupo de homens provenientes de todas as classes japonesas como fazendeiros, mercadores,
artesãos e até mesmo samurais que se voluntariaram para formar um exército miliciano,
utilizando técnicas de guerra ocidentais, armas e uniformes aos moldes europeus. Eles se
destacaram durante o período da Guerra Civil Japonesa, conservando os valores do bushido
alheios às novas formas de guerrear. Serviram também como maior influência para o
desenvolvimento e do Exército Imperial Japonês, aos moldes dos novos exércitos modernos.
A partir da criação do Exército Imperial Japonês e o fim da era dos samurais, vemos
seus preceitos serem aplicados então nas artes marciais modernas, criadas no final do século
XIX. Os budôs modernos se desenvolveram a partir das técnicas de mãos nuas que
sobreviveram à Restauração Meiji nos ryus sob o nome de ju-jutsu, herança de toda a
construção marcial indiana e também chinesa. A partir do estudo detalhado dessas técnicas
surge o judô (“O Caminho da Suavidade”) em 1882 com Jigoro Kano, o karatê-dô106 por
Gichin Funakoshi a partir de 1921, o aiki-dô (“O Caminho da Sabedoria”) em 1920 com
Morihei Uyeshiba e vários outros estilos que valorizam o caminho marcial como elevação
102
Escolas de artes marciais.
Ki aparece como a mesma referência antes feita para caracterizar o chi chinês, só que aos moldes da tradução
para a língua japonesa.
104
Locais fechados de treino e prática marcial.
105
Dentre essas práticas, podem se destacar o Kenpo, o Ninjutsu e Ju-jutsu. Essas técnicas permaneciam
obscuras, relegadas a clã que as praticavam sigilosamente em um período onde somente os samurais poderiam se
dedicar á prática militar.
106
O Karatê tem origem em Okinawa, mas foi difundido para todo o Japão por Funakoshi inclusive para o
próprio exército japonês através de demonstrações dos katas.
103
211
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
física e espiritual, sempre levando em conta o bushido (“O Caminho do Guerreiro”) como
código moral que deve ser vivido e experienciado constantemente na vida do praticante, bem
como a constante preparação para o combate. Jigoro Kano ainda se destacaria no Japão,
favorecendo a implantação do karatê e do judô nas disciplinas de Educação Física nas escolas
públicas como meio de fortalecer não só a disciplina dos cidadãos, mas também cultivar os
valores do bushido em prol da nação. Kano também seria o responsável por divulgar as artes
marciais para todo o ocidente, tornando-se inclusive, o primeiro embaixador japonês dos
Jogos Olímpicos.
Ainda sob domínio da Restauração Meiji e as guerras por território, o espírito do
bushido ganhou grande destaque no cenário mundial. Durante as guerras, a infantaria e a
artilharia japonesa se tornaram uma das maiores forças do Exército Imperial, junto também ao
grande desenvolvimento das forças navais. A conquista de território foi o grande foco, no qual
a perícia desenvolvida no combate direto em solo daria ao exército japonês o reconhecimento
como potência diante dos exércitos ocidentais. Para Drea (2009), o ethos mítico do guerreiro
samurai havia permanecido nos valores dos exércitos, onde segundo ele, “japanese soldiers
were models of good behavior, operating under draconian discipline designed to impress the
western allies whith the nation’s enlightened and civilized military forces” (Drea, 2009: 259).
Já em meio a Segunda Grande Guerra, foi-se possível que todas as nações observassem as
demonstrações de honra e bravura dos soldados e oficiais japoneses, junto aos velhos códigos
do bushido como a prática do suicídio para a manutenção da honra e a total lealdade ao
imperador, alheios às técnicas de combate armado e outros métodos e táticas de guerra
moderna, aprendidos junto aos ocidentais.
Após a Segunda Grande Guerra, houve grande disseminação das artes marciais pelo
mundo, na constante migração de japoneses para outro países e, inclusive, com o grande
interesse dos exércitos ocidentais em cultivar os mesmos e eficazes preceitos de bravura e
disciplina com os quais os soldados japoneses demonstraram em batalha. Exemplo maior
disso foi o desenvolvimento do Krav Magá israelense por Imi Lichtenfeld que buscou
aprimorar as técnicas de combate já existentes para criar um dos melhores sistemas de defesa
pessoal desde 1940 até a atualidade, em táticas de milícia adaptadas à realidade local com a
212
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
qual o exército desde então faz uso, e que conservam movimentos e técnicas inclusive
identificados do antigo Vajramushti. Mas este não é o único exemplo. Com o tempo, a prática
dos budos modernos adentrou ao cotidiano da sociedade civil a nível mundial, favorecendo
inclusive o treinamento de policiais militares em técnicas que os ajudariam no desempenho da
profissão, sendo criados inclusive dojos e centros de treinamento nas academias militares.
Em 1991, o Comandante Geral James L. Jones, buscando revigorar a filosofia militar
norte-americana, implanta o “MCMAP – Marine Corps Martial Arts Program” no intuito de
capacitar seus fuzileiros para situações de combate armado ou não através da prática de artes
marciais dentro das academias militares, visando inclusive cultivar a auto disciplina do
combatente na elaboração de um manual específico a ser seguido para a orientação dos
movimentos mais eficazes possíveis em combate. Segundo o referido programa, haveria
também a incorporação de uma graduação por faixa, onde através de constantes exames e
missões, o combatente ascenderia na hierarquia marcial, bem como ascenderia também na
hierarquia militar, podendo permanecer em cargos administrativos se não houvesse sucesso
com a pericia marcial. Já no Brasil, o Ministério da Defesa publica em 2002 a segunda edição
do Manual de Campanha C 20-50 – Treinamento Físico Militar - Lutas (Brasil, 2002) no qual
se utiliza de várias técnicas orientais do Judô, Karatê e Aikidô, incorporando também técnicas
do Boxe ocidental, no treino e preparo dos combatentes para situações de combate armado ou
não, tendo como finalidade ampliar as habilidades naturais dos militares, bem como o
aumento da rapidez de seus reflexos no combate efetivo107. Neste manual são representadas
várias formas e técnicas marciais108, buscando educar e preparar o corpo do militar para
situações de ataque ou defesa, no qual o treino constante levaria à confiança nas técnicas para
que sejam de fato eficazes em combate corpo a corpo caso fosse necessário o seu emprego.
Mas então qual o sentido da prática de artes marciais dentro dos exércitos de hoje?
Para que manter centros de treinamento marcial dentro das academias militares? Como os
107
Esta noção também está presente na obra de Funakoshi (2011) onde a postura de kamae (postura de
prontidão), com o tempo e a constante disciplina do praticante deve-se tornar shizentai (postura natural) na qual
os movimentos marciais passam a ser reflexo do corpo relaxado enquanto a mente está permanentemente de
prontidão.
108
Inclusive, nas fotos apresentadas no referido manual, é possível identificar posturas presentes desde o
Vajramushti indiano até posições e golpes dos budos modernos.
213
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
militares disciplinam seus corpos e mente para permanecer resistentes à pertubação invasora
do campo de batalha e cumprir suas missões?
Cremos, a partir desta breve análise e também de prévios trabalhos de campo
realizados em associações civis de artes marciais que mantêm vínculo com instituições
militares, que os exércitos modernos se utilizam da prática marcial para fabricar corpos
(Viveiros de Castro, 1979) e domesticar pessoas (Leirner, 2012) militares, na medida em que
buscam meios eficazes de transformar o próprio combatente em armamento a serviço da
nação. Segundo Mauss (2008), seria “graças à sociedade que há segurança e presteza nos
movimentos, domínio do consciente sobre a emoção e o inconsciente”. Tal noção, conectada a
outras, respectivas às técnicas do corpo e sua interferência no controle consciente das ações,
pode ser uma chave para entender, por exemplo, como a noção de violência é construída
dentro das academias militares, sendo justamente os militares tidos como possuidores do uso
legitimo da força em prol dos interesses do Estado, agenciados por ele na repressão, armada
ou não, a movimentos sociais, como o uso das ditas “tropas ninjas” 109 para conter
manifestações a nível nacional, ou também em incursões em favelas e missões milicianas110
nos morros cariocas sob a premissa da “pacificação”. Outra menção importante a ser feita
seria em referência ao termo utilizado e pensado de longa data sobre a desmilitarização da
PM, reduzindo a um mínimo possível o uso e a posse de armas, na capacitação dos policiais
em técnicas de combate para a imobilização ou uso de munição não letal no combate contra
possíveis suspeitos. Creio que nestes casos o uso das técnicas marciais seriam de fato
operacionalizadas para transformar o próprio corpo do combatente militar em arma, para
subjugar seus “inimigos”.
Assim, o treino marcial levaria o militar a, de fato, executar ações
para as quais foi treinado, formatado, fabricado, domesticado à fazer. Onde também, segundo
uma fala nativa: “não se é treinado só para morrer pela nação, mas também matar por ela, e
com as própria mãos”.
109
As “tropas ninjas” são formadas por policiais versados no aikido e no karatê, que receberam o treinamento
dentro das academiar militares, junto a capacitação no uso da tonfa para a imobilização e contenção de suspeitos.
110
Cabe ressaltar que as tropas de elite cariocas recebem treinamento de várias artes marciais para a defesa
pessoal em deslocamento urbano, inclusive importando instrutores de diversas nacionalidades para o ministro de
cursos e treinos.
214
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
DESAFIOS E POSSIBILIDADES EM CAMPO: POR UMA ETNOGRAFIA DA
TÉCNICA
Como vimos, através da elaboração de uma genealogia das técnicas marciais111, foi-se
possível encontrar técnicas que perduraram por cerca de sete mil anos ao longo da história e
que hoje estão presentes nos manuais em lutas de diversas nações, bem como sendo
disseminadas através de redes de troca e intercambio de experiencias entre diversas nações e
seus exércitos. Hoje em dia, inclusive no Brasil, há uma serie de financiamentos possíveis
para que militares possam estudar artes marciais em outros países e trazer os seus
conhecimentos para dentro da caserna, estabelecendo convênios entre nações, associações
civis de artes marciais e os exércitos.
Tal metodologia trabalhada aqui partiu da iniciativa de levar a sério as indicações do
Mauss (2008), reiteradas por Lévi-Strauss (2008), de produzir estudos voltados para a
catalogação, aprofundamento e observação de como as relações entre indivíduo e grupo
perpassam pelo uso rigoroso do corpo, bem como tais usos são transmitidos através de uma
educação específica, variante de sociedade para sociedade, geradora de conscientes. Não
temos a pretensão de elaborar um inventário completo do qual as artes marciais foram
transmitidas e significadas, bem como utilizadas ao longo do tempo, mas sim de demonstrar
a força desta proposta para trabalhar questões ainda não exploradas no universo de pesquisa
sobre militares e que estão presente nos debates acadêmicos e políticos a nível nacional.
Nosso intuito com esta breve apresentação é demonstrar o quanto elaborar métodos
que levem em consideração a observação mais detalhada das técnicas do corpo dentro da
subárea do conhecimento intitulada “antropologia dos militares”, pode sugerir um arcabouço
histórico/pratico de como estes se constituem, se pensam e significam em meio às suas
relações, desempenhadas através da disciplina, da hierarquia e da constante fabricação e
domesticação de corpos e mentes voltados para enfrentar à realidade de combates efetivos em
tempos de guerra. Assim, não bastaria para nós somente observar tais relação, seria preciso
também senti-las, e esse é o desafio pelo qual essa pesquisa se pauta.
111
Aqui foram tratadas somente as artes marciais orientais das quais se constitui a base dos manuais em em um
estudo posterior.lutas brasileiro e norte-americano, cabendo um estudo mais aprofundado de outras técnicas
marciais desenvolvidas em diversas outras culturas
215
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Como desafio metodológico, propomos a utilização do próprio corpo do antropólogo
enquanto instrumento do fazer etnográfico “dotado de ossos, músculos e nervos”, a exemplo
de Wacquant (2002), dos quais se é possível fazer uso para além do caderno de campo.
Viver, praticar e treinar artes marciais dentro associações civis junto a militares da reserva,
bem como participar de encontros e seminários ministrados por elas, tem sido grande parte do
campo por hora desenvolvido e pelo qual este antropólogo pôde experienciar na carne
relações presentes no mundo civil e militar como a disciplina, o respeito à hierarquia, ritos de
passagem e atualização ideológica constituintes do grupo, bem como aprender as próprias
técnicas de combate. Pude também sentir as transformações de meu próprio corpo na
constante prática marcial e alterações no comportamento cotidiano, vinculados aos valores
passados durante o treino. Tais questões me fizeram inclusive viver o uso do corpo enquanto
arma, na medida em que fui submetido a provas de “competência” na obrigação de “dar um
soco em um companheiro enquanto parte do treino”, o que me fez inclusive derramar lágrimas
na repulsa em fazê-lo, levando os outros a dar rizadas e um “sujeito” 112 a dizer: “Porque em
campo a realidade é outra. Quando precisar matar alguém, na primeira vez você ainda pensa
bastante, fica sem dormir. Mas depois é normal, mais uma missão cumprida”. Tal
estranhamento e, com certeza, distanciamento dessa realidade, me fez retomar à ideia de
domesticação tratada pro Leirner (2012) dentro das academias militares. Tal noção perpassa
por tornar doméstico, incorporar a pessoa do aspirante à lógica da caserna, no próprio
conceito nativo, “adestrar”, para que ele possa então, depois de formatado aos moldes
militares, atuar e agir em nome da instituição e do Estado, de corpo e espírito113.
A guiza de conclusão, enxergamos uma possibilidade viável de campo na intersecção
entre paisanos e militares através do estudo das técnicas e práticas marciais dentro de
associações civis em parceria com academias militares, uma forma de acesso do antropólogo
ao universo militar muitas vezes dificultado por fatores burocráticos e de força maior como
relata frequentemente a bibliografia sobre o tema (Leirner & Castro, 2009). Assim,
buscaremos futuramente realizar um estudo etnográfico junto aos cursos ministrados pelo
112
Preferimos adotar a palavra “sujeito” ao invés de “nativo”.
Espírito aqui é pensando enquanto o espírito da Arma com a qual o combatente será enquadrado em sua
formação, como bem tratou Castro (1990).
113
216
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Exército brasileiro na formação de seus instrutores de Educação Física em Lutas e também os
instrutores responsáveis pela difusão das técnicas de combate corpo a corpo descriminadas no
Manual C 20 50, com a participação do antropólogo juntos às disciplinas ministradas dentro
do ambiente da caserna, podendo então contrapor e associar ambas às realidades marcial e
militar. Quais os desafios e possibilidades metodológicas do uso do corpo como instrumento
etnográfico dentro dos estudos com militares e suas relações com a sociedade civil? Como a
relação corpo, pessoa e arma é vivida nos exércitos? Estas, dentre já outras mencionadas, são
algumas das questões que esta pesquisa, em faze de desenvolvimento, visa explorar.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
ECONOMIA DO DESEJO E DESEJO DE ECONOMIA:
RETROALIMENTAÇÃO E TROCA EM COLETIVOS DA REDE FORA
DO EIXO NO INTERIOR DE SÃO PAULO
Fernando Lopes Mazzer
[email protected]
FAPESP
PPGAS-UFSCar
Mestrando
A pesquisa tem como objetivos descrever etnograficamente as relações econômicas entre
coletivos culturais da Rede Fora do Eixo localizados em municípios do interior de São Paulo.
Além dos coletivos em si, há uma presença grande de demais agentes colaboradores que
oferecem serviços e recursos técnicos para a realização de eventos promovidos pelos
coletivos, estes que contabilizarão esses serviços em uma moeda social chamada card e
oferecerão em troca recursos e serviços para quitar esse valor. Foi feito um trabalho de campo
onde acompanhei um festival realizado por um desses coletivos e pude observar essas
prestações. Pretendo definir essas práticas não como dádiva ou como mercadoria, mas como
parte de um contexto pelo qual transitem entre ambas as categorias.
Palavras-chave: Antropologia Econômica, economia, troca, dádiva, moeda.
INTRODUÇÃO
Este trabalho busca apresentar as propostas e dados de uma pesquisa de mestrado que
ainda se encontra em andamento, cujo objetivo é proporcionar uma descrição etnográfica das
relações de troca entre alguns coletivos culturais pertencentes à Rede Fora do Eixo no interior
de São Paulo. Como ainda não tive um período longo de imersão no trabalho de campo,
pretendo expor aqui alguns dados de experiências etnográficas que tive oportunidade de
vivenciar e buscar relacioná-los às questões iniciais estipuladas no projeto de pesquisa.
Pretendo por meio deste apresentar reflexões e temas que possam ser mais bem explorados e
observados durante os próximos trabalhos de campo.
A rede Fora do Eixo nasceu a partir da experiência de quatro produtores culturais das
cidades de Cuiabá (MT), Belo Horizonte (MG), Londrina (PR) e Rio Branco (AC) que
lidavam com políticas públicas referentes à cultura, em especial a produção e divulgação de
bandas e criação de festivais de música independente nas respectivas regiões. A proposta era
estimular e desenvolver um cenário musical que estivesse fora do “tradicional” eixo Rio-São
Paulo de produção que, segundo ele, colocava restrições para a divulgação de seu trabalho, na
verba disponível para gravação de discos e no desenvolvimento da produção musical
220
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
independente. Em 2002, considerando necessário desenvolver meios para atingir esses
objetivos, os quatro produtores se juntaram a formaram o Espaço Cubo, que mais tarde seria
chamado de Fora do Eixo, alastrando-se por todos os estados brasileiros ao longo de diversos
“pontos Fora do Eixo”, que são coletivos culturais que visam atuar no cenário de suas
respectivas cidades e regiões.
Meu recorte etnográfico é o interior do estado de São Paulo, onde os coletivos mais
atuantes e que exercem mais influência sobre outros coletivos são o Coletivo Fuligem
(Ribeirão Preto) e Casa Sanca (São Carlos). Partindo desses dois coletivos como ponto de
referência, há também na região o Coletivo Usiarte (Sertãozinho), Grupo CECAC (Serrana),
Coletivo Garrafa Verde (Pradópolis), Coletivo Columbina (Taquaritinga) e Casa Colméia
(Araraquara), os quais, frequentemente, ao se relacionarem, produzem eventos ou pensam
estratégias de otimização do funcionamento dos coletivos entre si. Os coletivos Fuligem e
Casa Sanca são mais influentes por serem mais antigos, terem mais contato com outros
coletivos importantes e terem melhores equipamentos e saberes técnicos que possam prestar
serviços para auxiliar os coletivos menores. É importante mencionar que meu enfoque será
nos coletivos Fuligem, Casa Sanca e Usiarte, já que a interação entre eles é grande114. Mas,
eventualmente, integrantes de outros coletivos aparecerão para prestar serviços.
A maneira dos coletivos ligados à rede Fora do Eixo se estabelecerem
economicamente é dada de forma colaborativa. Geralmente são casas alugadas onde os
integrantes residem e se organizam de forma que todos contribuem para o andamento da casa.
Todos os moradores dividem as tarefas e colaboram com o funcionamento do espaço. Para
pensar o modo de organização econômica de um coletivo é fundamental mencionar o caixa
coletivo, que é um caixa físico ou uma conta bancária ao qual todos têm acesso e colocam ou
retiram dinheiro sempre que precisarem. A quantidade de dinheiro que os integrantes podem
inserir ou retirar é estipulada por cada coletivo, sendo que eles sempre registram as entradas e
saídas constantemente em um livro-caixa.
114
É importante mencionar a metodologia de meu trabalho de campo. Como meu enfoque é mais de um coletivo,
eu irei, portanto, transitar entre eles. Porém, como meu objetivo é analisar as relações entre eles, a partir de um
ponto eu consigo observá-las.
221
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Antes de mostrar meus objetivos, é preciso observar as relações fundamentadas entre
esses coletivos. Um ponto Fora do Eixo não existe sozinho. Ele precisa não somente se
relacionar com demais coletivos como também precisa de relações de parceria com os
colaboradores115, que são agentes que não fazem parte dos coletivos em si, porém contribuem
com os eventos produzidos por eles. Geralmente as colaborações de coletivos e agentes de
fora são com prestação de serviços, disponibilização de equipamentos e produtos que irão
auxiliar na produção dos eventos. Como forma de pagamento, o coletivo irá utilizar uma
moeda social116 denominada card, cuja contabilização será feita com base em uma estimativa
das horas de serviço prestadas pela pessoa que colaborou. Dessa forma, o coletivo irá prestar
ao colaborador a mesma hora de trabalho que ele investiu no evento como forma de
pagamento. Se o colaborador investiu 2 horas de trabalho, o coletivo irá prestar 2 horas
serviços como forma de quitar a dívida. Nesse caso, o valor em card envolvido na prestação
seria de 2 cards.
Dessa forma, os coletivos da rede Fora do Eixo se autodenominam “administradores
de dívida”, já que o card, que é um dos principais recursos de lidar com as prestações de
serviços que alimentam os diversos eventos que eles implementam, acaba sendo usado para
organizar e controlar as relações com os colaboradores. Inclusive, os integrantes dos coletivos
utilizam a TEC, que é uma planilha de Excel usada para organizar e calcular todas as horas de
trabalho investidas por cada colaborador que ajudou na realização de determinado festival.
Essa planilha é compartilhada entre todos os integrantes do coletivo e pode ser preenchida por
qualquer um, sendo que cada um pode alterar e adaptar a planilha de acordo com sua
necessidade ou realidade de produção.
É importante mencionar que os festivais implementados pelos coletivos do Fora do
Eixo são construídos de forma colaborativa. Na maioria das vezes eles não têm financiamento
direto por parte do poder público ou da iniciativa provada, mas dependem não só dos esforços
do coletivo que o implementa, como também de coletivos vizinhos e de demais agentes
colaboradores. Deste modo, além de contabilizar as horas de trabalho, o card também serve
115
Todos os termos escritos em itálico ao longo do texto são referentes a termos nativos.
Segundo França Filho e Silva Junior (2009), o termo “moeda social” diz respeito a moedas a serviço de
comunidades que as criam e manuseiam no intuito de resolver problemas econômicos e estimular trocas internas.
116
222
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
como forma de negociar com o poder público um valor a ser investido por parte deste em
futuros festivais. No caso, o valor de cada card equivale às horas de trabalho investida por
todas as pessoas que colaboraram com o evento. Para fazer o cálculo total de cards, o coletivo
utiliza o Excel para somar todas as horas de trabalho investidas no evento e multiplica por 50,
como se cada hora de trabalho tivesse um valor de 50 cards. No final, os integrantes do
coletivo utilizam esse valor final de cards como forma de mostrar ao poder público quanto o
festival valeria se não fosse construído de forma colaborativa, ocasionando uma situação em
que cada colaborador custaria 50 reais por hora de trabalho.
Com base nessa pequena introdução às práticas dos coletivos Fora do Eixo, o que
observei durante minhas experiências de campo e irei aprofundar ao longo da imersão
etnográfica são justamente práticas econômicas que permeiam as relações tanto entre os
coletivos como também com os colaboradores. Pretendo analisar a dimensão que meus
interlocutores tomam como sendo econômica e aprofundar na maneira com que eles lidam
com o sentido da troca em si, por meio das práticas envolvendo as relações de troca
colaborativa. Com base nessas descrições, espero que o trabalho de campo me mostre a
maneira com que eles lidam com o sentido da economia em si, fato que é mostrado pelo uso
que eles fazem dessa economia colaborativa não em oposição à economia capitalista, mas sim
posicionando uma em relação à outra. Além disso, é importante ressaltar que a utilização do
card não será olhada unicamente como uma prática econômica, e sim como parte de um
conjunto de ações que é tida por econômica, mas também claramente política 117. Isso deixa
claro que o valor em card sai do alcance dos coletivos e colaboradores envolvidos na
produção dos eventos e é usado como forma de negociação com o poder público.
ESCLARECIMENTOS ETNOGRÁFICOS
Até o presente momento, acompanhei o V Congresso Fora do Eixo que ocorreu em
Brasília no ano de 2013 - evento que acontece anualmente cujo objetivo é reunir todos os
117
Bateson (1972) atenta para a necessidade de não examinar traços de uma cultura como sendo simplesmente
uma subdivisão em aspectos políticos, econômicos ou religiosos, mas sim como parte de todas as qualidades de
acordo com o ponto de vista da análise. No caso, as categorias que os integrantes dos coletivos enunciam como
sendo econômicas podem ter uma dimensão política quando em relação com outros coletivos e com agentes de
fora, principalmente quando se relacionam com o poder público.
223
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
coletivos do país com a proposta de refletir sobre a rede em si, bem como de organizar metas
e estipular práticas para o próximo ano. Além disso, participei de uma vivência118 durante a
realização do festival SEDA (Semana de Audiovisual) promovida pelo Coletivo Usiarte e
participei de algumas reuniões envolvendo os coletivos Usiarte, Fuligem e Casa Sanca. Com
base nos dados colhidos nessas experiências, buscarei sugerir uma reflexão que transite pelas
feições econômicas estipuladas pelos meus interlocutores e que faça avaliações sobre os
aspectos dessas práticas. No final do texto irei sugerir um diálogo desses dados com a teoria
antropológica que, quando for o momento do trabalho de campo mais intenso, poderá ser
continuado ou reconfigurado.
De início, podemos colocar as dimensões econômicas dos coletivos Fora do Eixo de
duas maneiras: uma local e outra de caráter mais abrangente, visto que pensa a organização
dos grupos como uma rede onde os coletivos se conectam. Nesta última, os integrantes
mapeiam todos os coletivos da região e elaboram estratégias de construir um fundo
econômico comum a todos eles, por meio do qual todos os coletivos do estado estejam
conectados. Esse fundo ainda se encontra em construção, mas o objetivo é buscar garantir um
chão de sustentabilidade caso haja alguma eventual crise financeira. Neste momento minha
preocupação é com as práticas econômicas em âmbito local, procurando observar as relações
entre os coletivos propostos. Porém, acho importante observar como esses respectivos
coletivos enxergam e lidam com o modo Fora do Eixo de se organizar em rede. Além dos
congressos anuais, que é o ápice desse modo de se pensar em rede, menciono também o Conta
Comum, que é um projeto regional de unificar os caixas dos coletivos. Estive presente em
uma reunião em São Carlos (SP) com integrantes de coletivos da região cuja ideia era iniciar
estratégias de mapear as necessidades e interesses dos coletivos do estado de São Paulo para
futuramente implementar o Conta Comum. Todavia, minha meta no momento é me preocupar
com a organização e relações entre coletivos propostos no âmbito restrito ao interior de São
Paulo no eixo Ribeirão-São Carlos.
118
Vivência é uma prática muito comum implementada pelos coletivos que ocorre geralmente nas vésperas de
algum festival promovido pelo grupo. Trata-se de uma experiência em que uma pessoa é selecionada para
acompanhar a produção do festival e aprender determinadas técnicas que irão compor o festival. Neste caso, fui
selecionado para ser vivente de Banco, onde acompanhei as transações financeiras no festival e a movimentação
de card entre os envolvidos.
224
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
De início, eu iniciarei com uma explicação sobre o que é o caixa coletivo, como ele
funciona e quais os tipos de relações que são articuladas pro meio dele. Como mencionado
acima, toda movimentação financeira dentro de um coletivo é gerenciada por todos os
integrantes. Todos eles têm acesso ao caixa e podem inserir ou retirar dinheiro dele, sendo que
precisam registrar a entrada e saída de dinheiro no livro-caixa ou planilha de gastos presente
em todos os coletivos. Essa prática não é somente uma maneira de gerenciar o caixa, mas sim
uma experiência de aprendizado por parte dos moradores da casa. Quando o assunto é a
prática do caixa coletivo, é muito comum ouvir que existe um comprometimento a mais
quando a lógica de manusear a economia da casa é compartilhada entre todos. Como o caixa é
aberto e compartilhado, existe uma lógica de ganho em que todos ganham. Quando uma
pessoa coloca o seu na roda, automaticamente ela está tendo um retorno que não teria se sua
renda fosse gerada de forma individual, já que se um está botando e o outro também está, os
dois estão garantidos. Há uma ideia de ganho compartilhado quando a experiência do caixa
coletivo é implementada, quando uma pessoa coloca 1, em uma lógica compartilhada esse 1
vira 10. Esse é o discurso que, de certa forma, legitima a prática do caixa coletivo.
Claro que essa lógica compartilhada é uma ideia que dinamiza as ações dentro e fora
do coletivo. Quando há reunião ou festivais e integrantes de outros coletivos de cidades de
fora vêm para prestar serviços, os gastos da viagem são compartilhados. Em uma reunião que
acompanhei na Casa Sanca, em São Carlos, cujo objetivo era pensar formas de implementar
um fundo econômico comum para os coletivos da região, os presentes estavam combinando
de nos próximos encontros chamarem integrantes de coletivos do litoral e do ABC paulista,
porém os custos de transporte seriam rateados para todos pagarem a mesma quantia,
independente da localidade e da distância. Não faz sentido um pagar 50 e o outro 200. Além
disso, equipamentos como computadores, câmeras, microfones e itens de consumo como
alimentos e até mesmo vestuário são compartilhados entre os integrantes. Quando cheguei
aqui no Fuligem eu vim com 3 malas enormes e era super apegada com as minhas coisas,
agora hoje eu nem sei mais quais são minhas roupas. Portanto, o funcionamento dentro de
uma casa coletiva é dado de forma literalmente coletiva, sendo que todos têm acesso e
225
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
liberdade de gerir a economia do espaço e deixam de forma transparente tudo o que entra e o
que sai da casa.
Como disse acima, a lógica de compartilhar e propor alternativas econômicas são
práticas que articulam as ações dentro e fora do coletivo. Além da relação com coletivos de
fora, a presença dos colaboradores que prestam serviço para a realização de eventos fomenta
ainda mais essa lógica de economia colaborativa. Nesse caso, há a necessidade de elevar a
transparência, já que são pessoas que possuem algum interesse particular em disponibilizar
seu trabalho e contribuir com os eventos. Nesse sentido, o card é importante pois contabiliza
as prestações de serviço. Como foi mencionado anteriormente, a moeda social card quantifica
as horas de serviço prestadas pelos colaboradores e deixa transparente o tanto de trabalho que
devem ser pagas pelos integrantes do coletivo como forma de quitar a dívida. É importante
mencionar que a troca de horas de serviço contadas em card não ocorre de maneira rígida
entre coletivos. Segundo André, integrante do Coletivo Usiarte e um de meus principais
interlocutores, a preocupação com a contabilização de cards é dada de forma mais assídua na
relação com os colaboradores. Segundo ele, é necessária essa preocupação com quem é de
fora justamente para deixar as relações transparentes.
Dentro da Rede, a colaboratividade não é mais calculada. Ela visa mais o potencial
da ação mesmo. Lá no Fuligem, por exemplo, não é porque alguém de lá nos
empresta algum equipamento ou faz algum trampo que a gente tem que esquentar a
cabeça em calcular card, calcular tempo de serviço etc. A gente já transbordou isso.
O que acontece é da gente saber que ele fez um serviço e a gente vai colaborar com
eles algum dia. Tanto nós como eles sabem que isso vai acontecer porque a gente tá
sempre colaborando com eles e eles com a gente. Agora, se é relação com
colaborador, a gente se preocupa com card porque aí já tem que ter transparência,
né? O colaborador precisa se sentir representado no rolê. O card acaba servindo
pra minimizar uma possível angústia do colaborador de ele não se sentir
representado e achar que a gente tá abusando do trampo dele.
Pude observar de perto essas prestações de serviço, bem como a contagem em card e
a negociação com colaboradores quando participei como vivente da produção do festival
SEDA. Trata-se de uma semana na qual são ministradas diversas oficinas não somente de
audiovisual como de fotografia, design, elaboração de projetos, narrativas, construção de
226
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
fanzines, pós-TV119 e plataforma TNB120. Para cada oficina, uma ou mais pessoas eram
encarregadas de ministrar, e para cada oficineiro, o coletivo prestaria serviços como forma de
pagamento. A maioria das oficinas demandou 6 horas de trabalho, e para os colaboradores de
fora, foi sugerido que integrantes do coletivo fornecessem 6 horas de aulas de músicas ou
prestasse serviços de mídia para futuros trabalhos de quem colaborou com o SEDA. Um dos
oficineiros faz parte do próprio Usiarte, um deles faz parte do coletivo Grupo CECAC e
outros dois são do Fuligem. Os próprios membros do Fuligem fizeram a cobertura de mídia
do festival com serviços de fotografia e vídeo. Para estes em específico, houve uma contagem
dos cards na planilha, porém não uma preocupação de prestar serviços para quitar o valor.
Como o Usiarte sempre auxilia nos eventos que esses outros coletivos promovem, não houve
uma necessidade emergente de se preocupar em trocar serviços prestados especificamente
nesse festival.
Além dos oficineiros e de todos de fora do coletivo que investiram horas de trabalho
na realização do festival, também teve apresentação de bandas e artistas como por exemplo
dançarinos de break, rappers, pintores e fotógrafos, que aproveitaram o festival para expor
seus trabalhos. Para esses artistas houve uma contabilização de cards, porém não a prestação
de serviços por parte do coletivo. A ideia, quando alguma banda ou artista se apresenta nos
festivais dos coletivos Fora do Eixo, é que o festival em si seja uma plataforma de divulgação
do trabalho do artista, portanto o ganho do artista em investir seu trabalho no evento é
justamente a oportunidade de apresentar sua arte para um público diferente, usar o evento
como forma de divulgar o trabalho e adquirir reconhecimento, assim como uma maior
visibilidade. Porém, mesmo que não haja troca direta de serviços como pagamento pelo
trabalho dos artistas, há uma contabilização de card. Inclusive é levado em consideração o
número de integrantes de cada banda para quantificar os cards. Por exemplo, se uma banda
tem cinco integrantes e o show foi de uma hora, cada um dos cinco integrantes investiu uma
hora de trabalho. Portanto, o total de cards que a banda disponibilizou é de 5 cards, já que
119
Pós-TV é uma prática de mídia na qual os coletivos divulgam seu material de vídeo de forma independente,
geralmente por canal do Youtube, ou por TV por meio de contrato com emissoras ou transmissão de eventos aovivo pela Internet.
120
Sigla para Toque no Brasil. Trata-se uma plataforma online onde bandas do Brasil inteiro podem se inscrever
para tocar em festivais oferecidos por coletivos.
227
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
cinco integrantes tiveram uma hora de trabalho cada. Sendo assim, na contagem final, com o
trabalho de cada membro da banda valendo 50 cards (segundo a conta final, multiplica as
horas de trabalho de cada um por cinquenta), o total de todos os cinco integrantes é de 250
cards121.
De maneira resumida, essa multiplicação por 50 não passa de uma estimativa de um
suposto valor de 50 reais por hora de trabalho. Trata-se de uma estratégia de dialogar na
mesma língua com o poder público e negociar com ele um futuro investimento para o festival.
O festival SEDA, em particular, foi conduzido de maneira colaborativa, ou seja, não houve
investimento maciço por parte do poder público 122. Dessa forma, a estimativa de horas de
trabalho investidas na produção do evento por parte dos integrantes dos coletivos, artistas
envolvidos e demais colaboradores foi de 557. Diferentemente da maioria dos coletivos Fora
do Eixo que multiplicam os cards por 50, o Coletivo Usiarte optou por multiplicar por 30.
Portanto, pensando nas 557 horas de trabalho, o total de cards do festival SEDA foi de 16710.
Segundo o que me disseram os integrantes, suas ideias foram as de mostrar para o poder
público que eles podem potencializar, com base na economia colaborativa, os valores em real
que entram para financiar os eventos. Então, no caso do SEDA, se a proposta fosse fazer a de
um pagamento de 30 reais a hora de trabalho, o festival custaria 16710 reais.
O Card é uma sistematização do potencial humano. Ele mostra como seriam as
coisas na lógica do capitalismo, pensando em uma lógica material, em custo, mas
que a economia colaborativa pode fazer por menos e pode também, inclusive
mostrar que o poder público rasga dinheiro. Que a gente pode fazer com 30 o que
eles fazem com 500.
Podemos, por ora, sugerir hipóteses que auxiliem na abordagem no futuro campo
bem como na análise dos dados já obtidos. Não pretendo definir essas práticas descritas aqui
como meramente econômicas. Podemos ver claramente que o uso do card tem uma conotação
121
Vale mencionar que a ideia do card dentro dessa lógica de economia colaborativa, segundo o discurso
difundido no Fora do Eixo, mostra uma igualdade no valor do trabalho. Segundo os integrantes da rede, o
trabalho de um músico não vale mais que o de um fotógrafo, que não vale mais que o de um ator etc. A ideia é
colocar um valor igual para todos os envolvidos.
122
Houve uma verba de 1340 reais disponibilizadas pela Casa da Juventude de Sertãozinho para as oficinas de
Audiovisual e de Fanzines, mas mão-de-obra, infraestrutura de palco e som para o evento, serviços de bar e
mídia foram feitos de forma totalmente colaborativa seja dos próprios integrantes do coletivo ou de
colaboradores.
228
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
política, com o intuito de o coletivo negociar com o poder público e se colocar em uma
posição que, com base nessa economia colaborativa, se contraponha a determinadas maneiras
deste ao lidar com financiamento de eventos culturais.
CONCLUSÃO
Com base nos dados apresentados, pretendo posicionar-me, ao analisar tais
práticas, de forma a não relacioná-las diretamente à economia da dádiva, muito menos a uma
concepção mercadológica de economia. A dimensão qualitativa compõe o modo como os
coletivos Fora do Eixo se organizam economicamente, pois sempre há uma expectativa, não
somente por parte do colaborador que presta determinado tipo de serviço, mas também por
parte de um coletivo específico que se relaciona com todo o resto ou com o conjunto de
coletivos que compõe a rede. Um dos autores mais célebres que se remete a tal ponto é
Mauss, para quem as trocas não são somente materiais. A circulação de prestações pode
implicar diferentes formas qualitativas, bem como diferentes graus de alienabilidade do que é
trocado. Aquilo que é dado contém algo do doador e coloca as pessoas numa relação de
obrigação no sentido em que elas são obrigadas a retribuir a dádiva.
Este aspecto qualitativo é também explorado por Hugh Jones e Humpfrey (1992) ao
discorrerem as relações pessoais implicadas na permuta, da qual se lança mão quando há uma
insuficiência de dinheiro ou rejeição a seu uso. Nas situações de permuta, os objetos trocados
têm um valor de uso ou de consumo de maneira direta para os envolvidos diferentemente da
troca monetária, em que o valor financeiro de um objeto é uma reivindicação de outros
valores e depende de um reconhecimento pela comunidade econômica. Para os autores, a
permuta implica conhecimento e informação dos agentes envolvidos e também exige relações
pessoais e de confiança. Zelizer (2005) vê essas relações pessoais ocorrendo igualmente em
transações monetárias. Segundo a autora, o dinheiro não reduz a sociabilidade entre as
pessoas, pelo contrário, ele acaba fornecendo situações onde é possível observar diversas
relações entre elas, estabelecendo compreensões mais profundas sobre os laços criados como,
por exemplo, solidariedade, conflito etc.
229
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Ao mencionar esses autores, proponho um debate para analisar as reflexões dos
aspectos qualitativos por trás dessa economia colaborativa e, consequentemente, nos valores
em card. Porém, não pretendo definir essas práticas econômicas unicamente como dádiva. Os
coletivos dependem de dinheiro em real entrando no caixa, e para isso os coletivos vendem
seus serviços para terceiros. Esses serviços são relativizados em comparação ao valor
mercadológico, no sentido marxista. O pagamento de um integrante que vende serviços de
fotografia para o SESC, o de outro que faz parte de algum grupo de teatro ou de outro que
toca em alguma banda e se apresenta em algum bar em troca de cachê, quando entra no caixa
coletivo, é igualado em relação aos moradores da casa coletiva. “O caixa coletivo iguala”.
Portanto não podemos colocar o Fora do Eixo como uma organização oposta ao sistema
capitalista. Eles se julgam como alternativos à economia vigente na sociedade, convivendo
tanto com práticas mercadológicas como com práticas próximas de uma economia da dádiva.
Espero com as próximas etapas de meu trabalho de campo conduzir uma reflexão mais eficaz
sobre as relações dos coletivos entre si e deles com agentes colaboradores de fora com
aspectos teóricos referentes à dádiva e à mercadoria. Ademais, pretendo aprofundar e
descrever melhor as dimensões econômicas através das quais os integrantes dos coletivos
lidam com a moeda, seja real ou card, bem como a expectativa dos colaboradores ao se
relacionarem com os coletivos Fora do Eixo. Com isso, almejo apresentar dados que
contribuam para o debate na área da Antropologia Econômica, trazendo o Fora do Eixo como
um objeto que ilumina diversas formas de lidar, pensar e fazer economia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
BATESON, Gregory. 2000 [1972]. Steps to an Ecology of Mind. Chicago: The University of
Chicago Press.
FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho de; SILVA JR, Jeová Torres. Bancos Comunitários de
Desenvolvimento (BCD). In CATTANI, Antônio David et al. Dicionário Internacional do
Outra Economia: Edições Almedina, 2009, p.31-37.
HUGH JONES, Stephen & HUMPHEY, Caroline (eds). Introdução: Barter, Exchange and
Value: na anthropological approach. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.
MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1975.
230
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva: forma e razão da troca nas sociedades ameríndias.
In: MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, [1950] 2003. p. 185314.
ZELIZER, Viviana. The Social Meaning of Money. New York: Basic Books. 1994.
231
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
LEADER TRAINING: ETNOGRAFANDO UM SEMINÁRIO
MOTIVACIONAL
Jorge Gonçalves de Oliveira Júnior
[email protected]
CAPES
PPGAS-USP
Mestrando
Este trabalho busca refletir sobre as estratégias de escrita etnográfica que emanam da
negociação no campo e da prática etnográfica de uma atividade moderna, vinculada ao
ambiente empresarial, mas que também possui características semelhantes a certos rituais,
como o segredo, a humilhação, a catarse e o transe. Trata-se de um seminário motivacional
conhecido como Leader Training. O problema é que, por mais que seja possível realizar a
desconstrução das práticas motivacionais como “charlatanismo” ou como mascaradoras das
tensões sociais; a perspectiva antropológica carrega em si o desafio de “levar os nativos a
sério”, como insiste Viveiros de Castro (O Nativo Relativo, 2002). Mas, para isso, é
necessário um passo atrás antes de rejeitar completamente essas práticas a fim de
compreendê-las, evitando o que Isabelle Stengers e Philippe Pignarre designam como
“alternativas infernais” (Capitalist Sorcery, 2011).
Palavras-chave: antropologia da modernidade, atividades motivacionais, etnografias do
capitalismo, alternativas infernais.
INTRODUÇÃO
Quem circula pelo ambiente corporativo certamente já ouviu falar de alguns
treinamentos de fim de semana, em hotéis no interior de São Paulo, em que as pessoas ficam
sem dormir, levam água na cabeça, choram, vomitam, andam sobre brasas e depois voltam
mais emotivas, mais calmas, mais focadas em seus objetivos e insistindo para que seus
parentes e amigos também façam o treinamento, embora dificilmente falem sobre o que,
exatamente, se passou com elas. Nos sítios virtuais das empresas que os oferecem, não há
informação detalhada sobre o que se aprende ou se ensina durante esses cursos, basicamente
informam que são “vivenciais”, capazes de promover “transformações libertadoras”, mas sem
envolver religião. As informações vagas a respeito desse treinamento e o silêncio daqueles
que já participaram ajudam a envolver a prática em certo clima de mistério.
Há muitos nomes sob os quais esse treinamento é conhecido, curso de “Liderança e
Transformação”, “Poder do Propósito”, etc. A sociedade psicanalista dos Estados Unidos
forjou um termo para designar esse tipo de curso: Large Group Awareness Training (LGAT),
mas como a designação mais frequente, no Brasil, pelo que pude verificar até o momento, é
232
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
“Leader Training” – doravante LT –, optou-se por utilizar esse termo como conceito de
origem nativa, pois meus interlocutores não reconhecem a classificação norte-americana.
Apesar de alguma variação entre uma empresa e outra, um LT possui certas
características gerais: a duração de um fim de semana, de sexta à noite até domingo de manhã,
totalizando cerca de 30 horas; o isolamento de seus praticantes durante a realização do curso;
a presença de regras rígidas de conduta, com horários fixos para se alimentar, dormir e fazer
pausas, e a utilização de dinâmicas que visam a expressão e liberação de sentimentos.
Sua origem é um pouco nebulosa, mas é possível identificar, nas referências
conceituais que baseiam suas práticas, a predominância de formas de conhecimento oriundas
do Movimento do Potencial Humano, uma das formas do movimento New Age dos anos 60 e
70. Seus praticantes utilizam técnicas como o Firewalking, a hiperventilação, a terapia da
raiva, e métodos e discursos de conhecimentos como a Análise Transacional, a Psicologia
Transpessoal e a Programação Neurolinguística. O coração do Movimento do Potencial
Humano foi o Esalen Institute, na Califórnia, nos anos 60 (Boekhoven, 2011), onde se
desenvolveram ideias e práticas que buscavam a expansão da consciência por meio da fusão
de conhecimentos científicos e filosofias orientais, como a Física Quântica e o Budismo, e
que se disseminaram em uma variedade de cursos de autoconhecimento. Entretanto, por
motivos e meios que não cabem detalhar aqui, todo o aparato de técnicas e conceitos que
visavam a libertar os indivíduos de uma visão materialista da existência passaram a ser
utilizados em workshops de empresas de marketing multinível123, com a finalidade de
expandir a autoconfiança de seus vendedores e, após algum tempo, esses cursos passaram a
ser vendidos para quaisquer pessoas que quisessem passar por experiências de
autoconhecimento e libertação de medos, traumas e frustrações pessoais e profissionais.
(Haaken e Adams, 1983)
123
Empresas de Marketing Multinível, Marketing de Rede ou Venda Direta funcionam por meio da venda de
produtos e serviços diretamente ao consumidor por vendedores independentes (sem vínculo empregatício), que
podem auferir lucros tanto por meio de suas vendas como da venda realizada por novos vendedores por eles
recrutados. Diferencia-se do esquema conhecido como “pirâmide” pela existência de um produto mediando a
relação. Tais empresas costumam realizar eventos periódicos para a premiação de vendedores bem sucedidos
como forma de motivar seus associados.
233
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Minha experiência com o LT começou quando participei do treinamento em um
trabalho de campo em julho de 2013. Entretanto a “observação participante” não foi
exatamente uma opção, pois toda empresa de LT com que entrava em contato insistia em que
eu deveria vivenciar o treinamento para que pudesse compreendê-lo de fato, observadores não
comprometidos não eram bem-vindos, e aproveitavam para me oferecer seu produto. Havia
sempre a insistência de que, por mais que meu interesse fosse acadêmico, o treinamento seria
“bom para mim”. Assim, foi necessário pagar para participar do meu primeiro LT (pelo que
pude observar até agora, os preços podem variar de R$800,00 a R$2500,00), entretanto, após
essa primeira experiência, eu poderia voltar ao treinamento na condição de “treinando
experiente”, sem precisar pagar mais nada, participando de algumas das dinâmicas e entrando
em contato com outros “treinandos experientes”.
Mas, ao voltar para os meus pares, alguns questionamentos começaram a me afligir,
pois a reação de alguns colegas acadêmicos frente ao meu objeto de estudo, que abrange, além
do LT, outras atividades motivacionais, foi a certeza de que minha pesquisa seria útil para
“desmascarar charlatões” e, nesse caso, se tentasse explicar a delicadeza da relação com o
objeto, ou mesmo defender meus “nativos”, eu era prontamente colocado em uma situação
comparável à de outros antropólogos como Viveiros de Castro (2002) quando questionado
sobre seu compromisso com a cosmologia Ese Eja: “você acredita que os pecaris são
humanos, como dizem os índios?”, ou Márcio Goldman (2006) quando interrogado sobre a
factibilidade de certo evento que ele vivenciou pesquisando o Candomblé em Ilhéus: “você
ouviu mesmo os tambores dos mortos?”. Ou seja, fui colocado também em uma espécie de
double bind, ou duplo vínculo, conforme sugeriu Goldman citando Gregory Bateson
(Goldman, 2006; Bateson, 1972): caso aceite a eficácia das atividades motivacionais, poderei
ser acusado de conivente com essas “práticas de opressão ideológica” e nada poderei dizer a
respeito delas que elas já não digam; mas, caso rejeite-as totalmente e assuma a postura do
“desmascarador de charlatões”, estarei impingindo essa pecha aos meus informantes,
erguendo uma barreira definitiva entre mim e eles. Ora, esse tipo de situação de impasse entre
a resignação e o denuncismo, sem que se permita ou se visualize outra via de ação ou
interpretação, enquadra-se no que Pignarre e Stengers (2011) denominaram como
234
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
“Alternativas Infernais”: mecanismo típico do capitalismo, capaz de levar o pensamento
político a verdadeiros becos sem saída frente às imposições da lógica de mercado, que assim
se torna inexorável.
Logo o primeiro desafio ao se realizar a uma etnografia de uma atividade moderna e
constituída dentro da lógica capitalista de mercado, como o LT, deve ser a neutralização dos
termos da alternativa infernal: adesão ingênua ou crítica vazia. Para isso, uma boa forma de
começar é analisando as críticas construídas, dentro do nosso próprio sistema cultural, às
atividades motivacionais.
CRÍTICA MÉDICA
As práticas presentes no LT têm o potencial de escavar a história de vida dos
indivíduos, seus fracassos adultos e traumas juvenis, e de os reelaborar como a estrutura de
um drama social (Turner, 2008), permitindo aos participantes reinterpretarem seu próprio
papel no mundo. Assim, ao permitir um afastamento momentâneo da estrutura da empresa ou
da família, ao permitir o riso, a lágrima, o transe, a brincadeira, e a catarse das tensões
subjetivas sufocadas, pode levar ao alívio dessas tensões, como um rito reparador. Porém o
principal opositor dos seminários motivacionais, nos Estados Unidos, é a comunidade
psicanalítica.
Após um trabalho de campo em um famoso LGAT, o Lifespring, Janice Haaken,
psicóloga, e Richard Adams, sociólogo, chegaram às seguintes conclusões:
We have argued that while many participants experienced a sense of enhanced wellbeing as a consequence of the training, these experiences were essentially
pathological. First, ego functions were systematically undermined and regression
was promoted by environmental structuring, infantilizing of participants and
repeated emphasis on submission and surrender. Second, the ideational or
interpretive framework provided in the training was also based upon regressive
modes of reasoning--the use of all-or-nothing categories, absolutist logic and
magical thinking, all of which are consistent with the egocentric thinking of young
children. Third, the content of the training stimulated early narcissistic conflicts and
defenses, which accounts for the elation and sense of heightened well-being
achieved by many participants. The devaluation of objective constraints upon a
person's action promoted grandiose fantasies of unlimited power. (Haaken e Adams,
1983, p. 280)
235
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Apesar de bastante incisivo, principalmente pela linguagem científica utilizada, esse
diagnóstico não deve ser transferido tão rapidamente para o LT brasileiro – e infelizmente
desconheço qualquer trabalho realizado, com essa profundidade, por algum psicólogo daqui.
Há também alguns fatores a serem considerados: nos EUA, existe uma tendência de algumas
empresas de LGAT a mobilizarem voluntários, os quais muitas vezes desenvolvem certo
fanatismo que os afasta do convívio familiar. Assim, muitos dos críticos dos LGAT os
classificam como “cultos” em uma acepção claramente negativa (Singer, 2003). Dessa forma,
não posso deixar de apontar certo exagero na conclusão de Haaken e Adams sobre o “efeito
patológico”, pelo menos no que se refere aos LTs brasileiros, pois essas “fantasias grandiosas
de poder ilimitado” proporcionadas pela atividade motivacional não costumam ter efeito
duradouro, pelo que pude constatar em entrevistas com seus participantes, realizadas algum
tempo após o treinamento. Se se trata de uma questão de saúde pública, está além das
capacidades deste pesquisador afirmar; porém essa crítica médica contém os mesmos
ingredientes da velha controvérsia sobre a segurança que envolve práticas científicas versus
charlatanismo, ou seja, a crítica epistemológica que será tratada adiante.
O que minha experiência diz é que, pela carga de subjetividade mobilizada em um LT,
não se deve recomendar a participação de pessoas em situação psicológica mais delicada. De
fato, preenche-se um questionário detalhado sobre as condições físicas e mentais, antes de se
participar do treinamento – procedimento semelhante ao que ocorre nos ritos que utilizam a
ayahuasca. Não tenho como afirmar se seria um procedimento suficiente.
CRÍTICA SOCIOLÓGICA
Em geral, pesquisadores das ciências sociais costumam criticar as práticas e discursos
motivacionais como mascaradores e amenizadores do processo de exploração. Robert Castel
(1987), por exemplo, estudou a disseminação dos tratamentos de base psicológica para além
dos casos patológicos e a criação de inúmeras terapias novas para “tratamento de indivíduos
normais”; ele utiliza, como horizonte interpretativo, a noção de capilarização do poder em
uma sociedade pós-disciplinar, elaborada por Foucault (Foucault, 2011), e examina a maneira
236
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
como as novas terapias voltaram-se para o mundo da família e do trabalho como mercado
potencial para a ressignificação de tensões existenciais provenientes de desarranjos
socialmente determinados:
Como de fato enfrentar as mudanças tecnológicas e os imperativos da concorrência, se não fazendo do
trabalhador um ser sem asperezas e sem crispação, cujas capacidades são mobilizáveis a qualquer instante? Mas
como conseguir isso, se não for perseguindo seus bloqueios e suas resistências cultivando uma espontaneidade
reencontrada, capaz de responder às injúrias do presente? (CASTEL, 1987, p.150)
As reflexões de Castel, a meu ver, são as mais bem construídas para uma crítica
sociológica das atividades motivacionais. Entretanto, abordagens como a Teoria do Ator-Rede
(ANT) e a Antropologia das Sociedades Complexas trazem ao debate o questionamento sobre
a existência de um “social” subjacente, segundo o qual todas as manifestações de “fatos
sociais” seriam meros reflexos ou efeitos. Segundo Goldman (1999), tratar-se-ia de uma
herança durkheimiana difícil de se livrar e especialmente problemática quando o foco são
sociedades como a nossa: “…já que o fato é que as diferentes esferas da vida social compõem
a totalidade social – e não simplesmente refletem ou exprimem um todo social concebido, ao
menos implicitamente, como anterior a suas manifestações específicas (Goldman, 1999, pág.
81)
A ANT sugere que façamos uma leitura do social como um fazer e refazer cotidiano
de relações; mas essa não é uma tarefa simples, pois em seu desenrolar cotidiano, as forças
que participam da composição da sociedade, ou melhor, dos coletivos, não se revelam
facilmente. É preciso que surja uma controvérsia para que certas relações venham à tona, e
agentes se manifestem (Latour, 2012).
Nesse sentido, as próprias atividades motivacionais podem ser entendidas como
produtos de controvérsias e tentativas de resolvê-las. Não haveria um mercado de produtos
motivacionais caso as relações entre os modernos entre si não provocassem conflitos ou não
fossem controversas. Com relação às empresas, faz sentido pensar nesses momentos, em que
a produção de capital é interrompida para o aperfeiçoamento dos recursos humanos, como um
evento específico no cotidiano empresarial, capaz de permitir a eclosão de estruturas
geralmente não evidentes e o desenrolar de dramas sociais. A controvérsia é um momento em
que os agentes invisíveis no cotidiano aparecem para revelar as estruturas das relações, o
237
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
“social” praticado, ou seja, as associações efetivamente realizadas pelos componentes de um
coletivo. Daí se tornam importantes as análises “microscópicas” como as permitidas pela
observação participante.
CRÍTICA EPISTEMOLÓGICA
Em um artigo chamado “Neurociências, neurocultura e autoajuda cerebral” o Professor
de Filosofia e especialista em história da neurociência, Francisco Ortega, desenvolve um
argumento que exemplifica o que chamei aqui de “crítica epistemológica”:
Esses autores recorrem, com frequência, a simplificações “chulas” da mecânica
quântica para afirmar que a realidade é uma ilusão criada por nosso cérebro e que o
“universo é a mente e a mente é o universo (…) Os exercícios garantem promover
estados alterados da consciência capazes de conectar o cérebro com as forças do
universo e com uma inteligência superior, a Mente cósmica ou Divina. O que resulta
surpreendente desses últimos best-sellers é que reproduzem todos os tópicos da
literatura de autoajuda tradicional usando um vocabulário cientificista e coisificador.
(Ortega, 2009, p. 253)
Trata-se de uma controvérsia sobre a legitimidade científica de alguns dos postulados
utilizados nas atividades motivacionais, ou seja, a acusação de “charlatanismo”. Esse termo só
recebeu o contorno que lhe damos atualmente conforme uma noção de verdade científica se
estabeleceu no mundo moderno. Tal conceito, da maneira como o compreendemos hoje,
consagrou-se durante a consolidação da medicina moderna, especialmente para diferenciar o
“médico científico” do “médico impostor”. Segundo Stengers (2002):
Não é tal ou qual inovação da ciência, mas a maneira pela qual diagnosticou o poder
do charlatão e explicou as razões para desqualificar esse poder. A “medicina
científica” começaria, segundo essa hipótese, no momento em que os médicos
“descobrem” que nem todas as curas são equivalentes. O restabelecimento como tal
nada prova; um simples pó de pirlimpimpim ou uns tantos fluidos magnéticos
podem ter um efeito embora possam ser considerados causa. O charlatão é definido
desde então como aquele que considera esse efeito como prova. (Stengers, 2002, p.
33-34 – grifo meu)
Essa definição amplia a noção sobre o que seria um ato de charlatanismo , pois em
vez de um mero “impostor” que se arroga um conhecimento sobre o qual não está
conscientemente habilitado, a autora mostra como, em um processo de purificação, todas as
práticas sobre as quais não se conseguiu explicar as causas, entenda-se também, controlar os
238
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
mecanismos124, foram lançadas no limbo dessa classificação de “charlatanismo”, irmã de
outras como “medicina popular”, “superstição”, “misticismo”, “magia”, etc.
De acordo com o ponto de vista purificador das ciências, há curas por “más razões” e
por “boas razões”, e mecanismos de controle sobre as boas explicações, ou seja, “científicas”,
confirmadas e construídas pela comunidade dos cientistas – em um ciclo de credibilidade e
reconhecimento em espaços especializados e internos (Latour e Woolgar, 1997) – , e sua
separação das más explicações, que deixam explícitas a “criatividade” dos elaboradores e cujo
controle é muito menos rígido, por isso, consideradas “pseudo-ciências”.
Porém, enquanto esse embate entre as “boas razões” as “más razões” anima as
controvérsias entre os divulgadores da ciência e toda gama de pensadores holísticos e
proponentes de terapias alternativas, a relação entre os gurus motivacionais e o mundo
empresarial é muito menos tensa. Creio não ser ofensivo afirmar que o pensamento prático
empresarial não veja tantos problemas em aceitar o “efeito” como “causa”, mesmo que ela
seja atribuída a um “pó de pirlimpimpim”. Em uma matéria da revista Exame, publicação
voltada para o público empresarial, o jornalista David Cohen (2001) investigou o currículo de
um famoso palestrante motivacional e autor de livros de autoajuda, sugerindo que a maioria
de suas atribuições acadêmicas não passava de “histórias de pescador”, pois eram exageradas
ou inexistentes. Entretanto, ao questionar os clientes desse mesmo guru, alguns não se
importaram com a insinuação de charlatanismo, pois estavam satisfeitos com seus serviços:
Marcos Aurélio Reitano, diretor de RH do BankBoston (...) diz que o currículo de Marins não foi o fator
preponderante quando o banco decidiu contratá-lo para uma palestra. Mas, se soubesse que seu currículo tinha
sido enfeitado, provavelmente não o teria chamado. "Queremos uma relação de veracidade."
Essa não é uma opinião generalizada. Vinicius Coube, vice-presidente da Tilibra, diz
que os exageros no currículo de Marins não fazem diferença: "O que interessa é o
talento que ele tem para conscientizar o empresário, a sua capacidade de produção.
Em 1993, ele implantou em nossa empresa um dos nossos mantras, não se
economize, no sentido de dar tudo de si. Desde então, nós o mantemos como um dos
nossos gurus". Opinião semelhante tem Mauricio Luchetti, diretor de gente e
qualidade da AmBev: "Marins trabalha com a companhia há anos. Nunca fomos
124
Embora não se tenha conseguido purificar absolutamente tudo, como é o caso do efeito placebo. Sobre essa
questão, ver Pignarre (1999) e Marras (2002).
239
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
checar seu currículo. O que nós sabíamos é que ele tem muitos contatos. E
avaliamos o que ele entrega. Se o consultor não tem algo a dizer, dança. Se perdura,
é porque algo de bom tem". (Cohen, 2001)
Assim, tanto a reportagem quanto o cliente que viu problemas nos exageros
curriculares do guru ressaltam que é a falta de honestidade que pode colocar a competência
em cheque, não uma deficiência acadêmica. O que nos leva a concluir que, embora a crítica
científica sobre essas práticas tenha suas razões, ela não parece ser um empecilho para a
existência delas, pois a acusação de charlatanismo recai sobre os meios/métodos, enquanto o
pragmatismo de quem as contrata e oferece está mais interessado em resultados e eficácia.
CONCLUSÃO
É ainda Goldman (2006) que ensina a forma de se sair de um duplo vínculo: não
aceitar os termos em que a falsa alternativa é colocada, substituindo assim, as regras do jogo.
E, para o autor, uma dessas regras que precisam ser substituídas é, justamente, a noção de
crença. Em vez de julgar o universo de relações dos nativos como crenças deles, observá-las
como suas experiências e, então, colocar essa experiência como desafio para a própria
maneira como nós experimentamos também o mundo:
Parte da nossa tarefa [antropólogos] consiste em descobrir por que aquilo que as pessoas que estudamos fazem e
dizem parece-lhes, eu não diria evidente, mas coerente, conveniente, razoável. Mas outra parte consiste em estar
sempre se interrogando sobre até onde somos capazes de seguir o que elas dizem e fazem, até onde somos
capazes de suportar a palavra nativa, as práticas e os saberes daqueles com quem escolhemos viver por um
tempo. (Goldman. 2006. p.167)
Assim, a tarefa da antropologia se amplia para além da interpretação do mundo alheio,
com base no nosso pensamento científico-filosófico, para o estabelecimento de uma relação
entre ontologias, o que garante um rendimento maior de consequências além da simples
objetificação do outro. A questão de saber se os palestrantes motivacionais são ou não
charlatões se perde na necessidade de se compreender que relações de sentido são acionadas
pelas atividades que eles promovem.
Entretanto, devemos admitir que há uma diferença sensível entre a ontologia Ese Eja e
a dos modernos; entre as visões de mundo do “povo de academia” e do povo de santo, e essa
240
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
discrepância com a modernidade faz com que a pesquisa antropológica sobre esses “outros”
seja promissora para a tarefa de diversificar nossa visão de mundo e indicar alternativas para
outras possibilidades de existência. Mas e quanto à antropologia de uma atividade
motivacional ou outras atividades dos modernos? Seria contraditório afirmar que a análise das
instituições centrais da nossa cultura pudesse ter o mesmo efeito. Viveiros de Castro e
Goldman referiram-se a situações em que o antropólogo tinha que prestar contas, para os seus
pares, de visões de mundo que desafiam nossos paradigmas. No caso da pesquisa sobre o LT,
quando me perguntam sobre os “charlatões”, o que é colocado em jogo não é a suposta
“ingenuidade”, “primitivismo” ou mesmo “exotismo” dos meus “nativos”, mas sua boa-fé.
Logo o que se coloca em questão é a construção da verdade em nossa própria cultura.
No caso do objeto em questão e no que diz respeito ao etnocentrismo podemos ainda
questionar se haveria algo mais oposto à etnografia do que o discurso da autoajuda. A
primeira busca compreender e traduzir o mundo do outro, enquanto o segundo procura
justamente apresentar um conjunto de comportamentos e pensamentos padronizados de nós
mesmos. A primeira nos desafia a encarar outras formas de ser do humano e o segundo nos
apresenta uma receita de ser-humano ideal segundo os padrões dominantes de nossa própria
cultura.
Entretanto sabendo que estas atividades são consideradas, por seus praticantes, como
ferramentas úteis ou até redentoras para a ressignificação do sentido do trabalho e da própria
vida de quem os desenvolve, a tarefa a que este tipo de estudo deve se propor é a de suspender
os juízos a fim de seguir as práticas e discursos motivacionais para compreender como eles
inventam o seu próprio mundo. Entendendo-se essa “invenção do mundo” de acordo com o
que Roy Wagner (2010) estabeleceu: a relação entre os dois modos de simbolização possíveis,
o “convencional” e o “diferenciante”. Castel e outros analistas sociais, incluindo os da área da
administração, partem de uma análise envolvendo conceitos convencionais, objetificadores,
sobre “vocação”, “trabalho”, “motivação” e “psique”, por exemplo; enquanto os atores das
atividades motivacionais operam de modo especificativo, ressignificando esses conceitos
como novas metáforas, fundindo significante e significado durante o ato motivacional. Por
exemplo, quando o palestrante motivacional afirma que “o segredo do sucesso é a força de
241
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
vontade”, o crítico, posicionado fora, questiona a validade desse axioma e o sentido dos
termos implicados; porém os ouvintes da palestra estariam de olhos fechados, ouvindo uma
música triunfal, após terem sido levados a rever sua trajetória de vida e elaborado um plano
para o futuro; ou mesmo fascinados, talvez em lágrimas, assistindo a um vídeo de Tony
Meléndez – o violonista sem braços. Assim, “sucesso” e “força de vontade” não caem sobre
eles como conceitos abstratos ou clichês, mas como sensações inseridas em seu corpo e alma.
É ingênuo pensar que uma crítica sociológica, por mais sagaz que seja, possa abalar a
potência dessas técnicas.
Dessa forma, a descrição cuidadosa e uma análise despida de ironia pode ser capaz de,
pelo menos, revelar alguma lógica do funcionamento das atividades motivacionais, a fim de
lançar luz sobre os motivos de seu atual sucesso. Mas como proceder a essa descrição? Desde
Geertz (2008) encara-se a etnografia como um esforço de ficção, pois o antropólogo deve ter
ciência de que ela envolve questões complexas de autoria e elaboração textual. Nesse sentido,
são inspiradoras as abordagens como as de Crapanzano (1985), ao etnografar os brancos na
África do Sul do apartheid, e de Taussig (1993), que relacionou o terror colonial e o
xamanismo na Colômbia. Eles registraram, na própria forma do texto, a tessitura complexa
das relações desiguais e de opressão que vivenciaram em campo. Ao mesmo tempo, não se
deve esquecer os problemas relacionados à leitura nativa sobre o quais alertam Marques e
Villela (2005), pois a possibilidade de os interlocutores lerem o resultado da pesquisa e a
própria forma como o campo lida com os textos escritos também devem ser levados em conta
durante a elaboração do texto; e isso não deve ser encarado como um empecilho, mas como
uma oportunidade que a disciplina antropológica nos proporciona de “ampliar o discurso
humano” em uma vias múltiplos sentidos, com todos os riscos implicados.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
ENTRE OS DOCUMENTOS E AS RETOMADAS: IMAGENS DA LUTA
PELO TERRITÓRIO EM BREJO DOS CRIOULOS (MG)
Pedro Henrique Mourthé de Araújo Costa
E-mail: [email protected]
Mestrando em Antropologia Social, PPGAS-UFSCAR
Desde a abertura dos procedimentos para a regularização fundiária do território quilombola de
Brejo dos Crioulos até os dias atuais já se passaram quatorze anos de lutas e enfrentamentos.
O cenário de disputas é tecido pelo entrelaçamento de diversas forças políticas, dentro e fora
do quilombo. O presente texto foi escrito com o intuito de apresentar algumas reflexões sobre
a pesquisa em andamento, assim como, os possíveis caminhos que pretendo seguir durante a
elaboração do texto final da dissertação de mestrado. O trabalho de pesquisa vendo sendo
realizado na comunidade e também juntamente a instituições e outros atores envolvidos no
conflito territorial.
Palavras Chave: Quilombos, Direitos, Conflito, Violência, Documentos
INTRODUÇÃO
Em 29 de Setembro de 2011, a seguinte notícia circulava em diversos sites e redes
sociais:
Três quilombolas de Brejo dos Crioulos estão, neste momento, acorrentados em frente
do Palácio do Planalto. Junto a eles, permanecem acampados cem quilombolas, que
exigem da presidente Dilma Roussef, a assinatura do decreto de desapropriação do
seu território. Há mais de 12 anos, os quilombolas esperam a titulação de suas
terras e têm enfrentado uma série de agressões durante esse tempo 125.
Um dia após o ato, os quilombolas foram recebidos pela presidenta Dilma
Rousseff e pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho.
Na ocasião, Dilma assinou o decreto que reconhece o território como remanescente de
quilombo e que permite, para fins de interesse social, desapropriações de imóveis rurais
abrangidos pelo território do quilombo. A ida dos quilombolas até Brasília é apenas uma das
muitas caminhadas realizadas durante a luta pela titulação do seu território, somando quatorze
anos de mobilizações.
125
A descrição é da manifestação realizada por quilombolas de Brejo dos Crioulos em 29 de Setembro de
2011, em Brasília. No ato, três moradores do quilombo se acorrentaram em frente o Palácio do Planato.
“Queremos a assinatura do decreto, mas também queremos a garantia de que será preparado um orçamento para
fazer a desintrusão do nosso território”, reivindicou o presidente da Associação Quilombola de Brejo dos
Crioulos
e
uma
das
lideranças
presentes
na
manifestação.
Retirado
de
http://racismoambiental.net.br/2011/09/quilombolas-de-brejo-dos-crioulos-se-acorrentam-no-palacio-doplanalto/
244
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Vítimas de um violento processo de expropriação territorial desde meados de 1930, os
moradores de Brejo dos Crioulos seguem na luta. O conflito territorial é marcado pelas
ameaças e violência cotidiana sofrida pelos quilombolas, que, viviam cercados e encurralados
pelos fazendeiros, sendo alvo dos seus jagunços e pistoleiros armados e também das
“patrulhas rurais” 126.
A partir do ano de 1999 os quilombolas começam a realizar suas mobilizações na luta
pela retomada do seu território, dando início ao processo de regularização fundiária e aos
enfrentamentos dentro e fora do quilombo127. Reconhecida como remanescente de quilombo
em 2004 pela Fundação Cultural Palmares (FCP), a comunidade localiza-se no sertão do
Norte de Minas Gerais, na divisa de três municípios - São João da Ponte, Verdelândia e
Varzelândia128. Frente à morosidade do Estado na desapropriação das fazendas, os
quilombolas de Brejo dos Crioulos têm recorrido a duas estratégias nos seus enfrentamentos:
as retomadas e a mobilização de uma rede de parceiros e documentos – processos jurídicos,
relatórios, laudo antropológico, decretos, correspondências, notas, projetos, boletins de
ocorrência etc – em diferentes instituições e nas várias instâncias judiciais, caracterizando um
universo burocrático que é acionado a todo instante129.
126
De acordo com a Carta Topográfica elaborada pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRAMG) a área total do quilombo corresponde a 17.302,6057 ha. Sendo que 13.920 hectares, o equivalente a 77% do
total da área, estava concentrado nas mãos de fazendeiros.
127
As palavras em itálicos são termos nativos. Os nomes originais dos interlocutores que contribuíram com esta
pesquisa foram preservados.
128
Com a expulsão de suas terras no período de 1960, nove núcleos de moradia foram constituídos onde
atualmente vivem aproximadamente 3000 pessoas, cercadas pelas fazendas. São eles: Araruba, Orion, Conrados,
Caxambu I, Caxambu II, Furado Seco, Furado Modesto, Serra D’água e Tanquinho.
129
É importante mencionar que o processo de regularização fundiária do território quilombola é composto por
sete fases que vão desde a Abertura de processo no INCRA para o reconhecimento de Territórios Quilombolas,
até a Emissão de título de propriedade coletiva para a comunidade. Em cada etapa são mobilizados documentos
e são acionadas várias instituições e atores, como por exemplo, o Ministério Público Federal, o antropólogo que
elabora o estudo da área para a confecção do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), as
portarias e os processos que serão julgados. Atualmente o processo de Brejo dos Crioulos está na penúltima fase,
a desintrusão do território, onde estão sendo desapropriados inicialmente os fazendeiros e posteriormente os
demais ocupantes não quilombolas. Após este procedimento, o próximo passo é a titulação definitiva do
território quilombola.
245
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
O PERCURSO: O PROJETO DE PESQUISA, O TRABALHO DE CAMPO E OS
DESLOCAMENTOS
Da escrita do projeto de pesquisa até a realização do trabalho de campo, várias
questões foram surgindo. Desde inquietações metodológicas – geradas pelos cursos, leituras,
eventos acadêmicos e discussões extra-aula, realizados no âmbito do Programa de PósGraduação em Antropologia – PPGAS/UFSCAR – até problemas e dúvidas que emergiram
do “fazer etnográfico”. Explorá-las é um dos desafios da formação antropológica, o que
também contribui para ressaltar as próprias mudanças na minha trajetória acadêmica. Já no
projeto de pesquisa, escrito no primeiro semestre de 2013, propus alguns dos objetivos do
meu trabalho. A idéia era realizar uma etnografia capaz de compreender as relações e as
ações que os quilombolas de Brejo dos Crioulos constituem como mecanismos de resolução
do conflito fundiário vigente. Com isso, eu pretendia descrever os caminhos, alianças,
estratégias, tecidos por estes, a partir da mobilização de agentes e instituições.
Para isso, seriam levados em conta, tanto os “caminhos institucionais”130 que Brejo
dos Crioulos – inscrito nos documentos – percorre, à medida que os quilombolas acionam
mecanismos judiciais e administrativos, quanto a estratégia dos quilombolas da retomada de
seu território por meio das ocupações das fazendas.
Antes de ir a campo, realizei uma revisão bibliográfica sobre o conflito de Brejo dos
Crioulos. Debrucei-me na análise de alguns trabalhos acadêmicos e documentos –, relatórios,
notas taquigráficas de audiências públicas, boletins de ocorrência, inquéritos policiais, cartas,
projetos e processos jurídicos (administrativos e criminais) – que foram confeccionados tanto
pelos parceiros dos quilombolas, quanto por instituições ligadas aos órgãos do governo
federal, estadual e ao judiciário. Lidar com tantos documentos me ajudou a perceber que o
próprio processo de regularização fundiária inscreve Brejo dos Crioulos em um universo de
práticas jurídicas e burocráticas.
Nesse sentido, algumas questões foram emergindo: Como os quilombolas lidam com
esse universo permeado pelos documentos? Quais são os efeitos do processo de regularização
130
O termo “caminhos institucionais” foi utilizado durante a escrita do projeto para designar os caminhos
percorridos entre as instituições mobilizadas no conflito. Seja aquelas administrativas, como por exemplo o
INCRA-MG, como outros órgãos dos governos estadual e federal, como também as instâncias judiciais.
246
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
fundiária na comunidade? Eu deveria priorizar uma estadia prolongada em Brejo dos Crioulos
ou “fazer campo” também nas instituições e entidades envolvidas?
Procurando refletir sobre minhas próprias angústias, sobretudo em relação ao trabalho
de campo, duas questões me levaram a optar por realizar a pesquisa em múltiplos locais. A
primeira foi à possibilidade de realizar uma “etnografia multissituada” Marcus (1995).131
Esta me possibilitaria fazer conjunções e justaposição de situações e estabelecer uma conexão
ou associação com materiais de diferentes tipos: os documentos, as entrevistas com as
lideranças quilombolas e outros atores, os dados coletados através da observação participante
na comunidade e nos momentos de mobilizações dos quilombolas. A segunda questão era de
que os locais escolhidos para o trabalho de pesquisa tinham conexões, seja com as
reivindicações dos quilombolas, ou com as instituições e instâncias judiciais acionadas por
estes juntamente com seus parceiros.
Perpassando todas estas questões, estava o seguinte problema de pesquisa: mesmo
com a constituição de marcos legais definidores do “direito quilombola”, os procedimentos
jurídicos e administrativos para sua efetivação ainda esbarram em várias questões, tanto
administrativas quanto políticas, o que faz com que, mesmo com um Decreto de
desapropriação assinado pela presidenta Dilma Roussef em 2011, o Estado não consegue
operacionalizar a desapropriação dos fazendeiros e titular o território quilombola132.
O “ENCONTRO” COM OS DOCUMENTOS
131
Na “etnografia multissituada” ou “etnografia multilocal”, proposta por Marcus (1995), o pesquisador pode
trabalhar em dois ou mais locais, explorando as interconexões e intercruzamentos de processos através do seu
deslocamento para os diferentes espaços acionados pelos próprios atores.
132
O intenso período de discussões sobre as mudanças no ordenamento jurídico, realizado com a mobilização de
movimentos socais, incluindo o movimento quilombola, entidades, instituições, antropólogos e juristas, é
complexo. Por um lado, reuniu entidades favoráveis aos quilombolas e interessados nas discussões relacionadas
a legislação e os processos de regularização fundiária, resultando na “ressemantização” ou “ressignificação” da
categoria histórica quilombo e de importantes avanços no ordenamento jurídico. Posso citar os trabalhos de
Arruti (1997, 2001, 2003, 2008); Almeida (1989,1997, 2002, 2003, 2005); Duprat (2007); O’Dwyer (2002,
2010); Leite (2000, 2004, 2008, 2007) e mais recentemente Brustolin (2009) e Figueiredo (2011). De outro,
estavam os atores contrários como os parlamentares da bancada ruralista, que entraram com uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADIN nº 3.239-9/600-DF), por meio do antigo Partido da Frente Liberal – PFL contra o
decreto 4887/2003. A ação tramita até os dias atuais. Cabe ressaltar que o texto constitucional disserta por meio
do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da constituição de 1988: “Aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade a
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”.
247
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Como desde o início da pesquisa eu estava interessado nos documentos, uma das
questões que me intrigava era se este meu interesse poderia se tornar um fetichismo
metodológico. E caso isso ocorresse, quais seriam os seus efeitos no trabalho de campo?
As repostas vieram ao longo da pesquisa. Em vários momentos deste percurso, os
documentos apareceram no meu caminho. Os quilombolas guardavam vários documentos,
desde receitas médicas até cartões e recibos de pagamento do sindicato e os documentos da
luta - jornais, boletins e notas - em sua maioria assinados pela Associação Quilombola e pelos
parceiros. Estes eram cuidadosamente guardados principalmente em malas, bolsas e em
sacolas plásticas.
Durante minha estadia na comunidade, fui convidado pelo presidente da Associação
Quilombola para ver os documentos que ele guardava em sua casa. Com muito entusiasmo ele
falava destes e do cuidado necessário para guardá-los e organizá-los, como também contava
as histórias relacionadas a cada um. Na mesma ocasião ele me disse “Sem papel não dá para
fazer nada. Eu sempre peço um papel, sempre peço cópia de todo documento em toda reunião
que eu vou. Eles só dão porque eu peço” (depoimento pessoal, Araruba,2014).
Em outra ocasião, me encontrei com outra liderança para conversar sobre os
momentos da luta, ele me recebeu em sua casa e retirou uma pasta preta onde um adesivo
colado sobre a mesma tinha os seguintes dizeres “BREJO DOS CRIOULOS (ARQUIVO)”
(ver anexo I). Ao mostrá-la ele disse, “aqui estão todos os princípios”. Conversamos a manhã
inteira. A história da luta era contada seguindo os documentos, sendo que, cada um tinha uma
importância e um significado, estando relacionado a algum um evento. Também foi
mencionado que as entidades enviavam vários documentos para os quilombolas, que
utilizavam estes nas suas mobilizações dentro do território.
Por outra perspectiva, no trabalho de campo junto às instituições, eu também pude
experienciar a burocracia. Na minha ida à Superintendência do INCRA em Belo Horizonte,
para que eu tivesse acesso ao processo administrativo da comunidade, foi necessário que eu
fizesse um requerimento que foi enviado para o setor jurídico da instituição a fim de autorizar
o “pedido de vistas ao processo”. Após a autorização pude freqüentar a instituição por dois
dias, para consultar o processo, tirar fotos e fazer anotações. Porém, quando pedi para tirar
248
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
cópias deste documento, foi necessário que eu fizesse outro requerimento, onde tive que
detalhar todas as páginas que seriam copiadas. Este deveria ser antes autorizado pelo
superintendente da instituição para que fosse encaminhado diretamente pelos funcionários
para uma copiadora autorizada.
De maneira semelhante, durante uma das visitas a ONG Centro de Agricultura
Alternativa do Norte de Minas (CAA/NM), depois de passar a tarde olhando e separando
alguns materiais que foram disponibilizados para consulta, quando perguntei sobre a
possibilidade de tirar cópias, foi necessário que eu assinasse um protocolo com meus dados e
fazer a descrição dos materiais que seriam fotocopiados.
Estas experiências também foram compartilhadas por outros etnógrafos que lidam com
os documentos nos seus trabalhos. Tal análise pode ser ilustrada através do trabalho de campo
de Barrera (2011). Em sua pesquisa na Suprema Corte da Argentina, esta autora conta das
suas dificuldades para garantir sua entrada em campo, já que o acesso “formal” só foi possível
através da confecção de um documento que seria analisado de acordo com as normas e
procedimentos da instituição. Foi através do preenchimento de um formulário – confecção de
um documento – posteriormente analisado pelos operadores do direito, que foi permitida a
realização da sua pesquisa. Neste sentido, Barrera (2011) afirma que “rastrear os papéis” é a
forma como as instituições se analisam,
os investigadores avaliam o funcionamento dos tribunais através do conteúdo das
sentenças, os advogados, por sua parte, interpretam esses documentos para fazer
avançar os interesses dos seus clientes, e sobre um recente governo de transparência,
os registros documentais e documentos autodescritivos, convertem-se na forma que
se avalia o bom comportamento da instituição” (tradução minha, BARRERA, 2011,
p.2).
Outra antropóloga que experienciou a burocracia foi Annelise Riles (2001). Em seu
trabalho de campo esta autora ajudava no planejamento de reuniões, na confecção de
documentos, na preparação do layout de informativos, transcrevendo e coletando materiais
através de survey e contribuindo na reorganização das bibliotecas das instituições. Foi através
das conexões e ressonâncias das práticas de conhecimento identificadas pela autora e dos seus
próprios problemas analíticos que sua pesquisa etnográfica foi realizada. Ao longo do seu
trabalho de campo, ela participou diariamente do trabalho de seis redes e instituições
249
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
preparando a quarta Conferência Mundial de Mulheres (Beijing Conference). Seu trabalho de
pesquisa ocorreu tanto em Suva (Fiji), quanto na sede da ONU em Nova York. Através dos
seus “encontros” com os documentos em campo, a autora tomou conhecimento, quando
retornou, de outros etnógrafos que tiveram uma experiência similar com este artefato, o que
resultou na realização do projeto “Documents: Artifacts of Modern Knownledge”. Neste
volume, Riles (2006) oferece aos leitores experiências e exemplos etnográficos onde os
documentos tem um lugar importante na análise, possibilitando repensar questões
fundamentais relacionadas à teoria e a prática etnográfica.
Desse modo, para Riles (2006) a decisão de olhar para os documentos, dentre tantas
outras coisas observáveis em campo, reside no fato de que eles nos abrem uma porta de
entrada importante para a compreensão de problemas e pontos de vista contemporâneos. Em
suas palavras, “documentos são artefatos paradigmáticos das modernas práticas de
conhecimento” (tradução minha, RILES, 2006, p.2).
Descrever a política através dos documentos e da sua circulação através de “canais
institucionais” é possível quando estes são pensados como artefatos que têm como
característica sua ubiqüidade, ou seja, estão presentes em vários lugares ao mesmo tempo.
Nesta perspectiva, Riles (2006) retoma a noção de artefato de Strathern (1988, 1990), em que
este é tido como algo encontrado no mundo, e como um efeito do trabalho etnográfico
provoca uma preocupação teórica não por uma análise dedutiva, mas lateralmente, através da
apreensão de, ou empatia para, outras preocupações analíticas.
Desse modo, para tomar as práticas de conhecimentos de outros povos como um tema
etnográfico, é também necessário pensar lateralmente sobre o engajamento epistemológico e
estético do nosso próprio conhecimento. Seguindo este raciocínio, no caso da análise das
práticas burocráticas, de acordo com esta autora, estas são o próprio tema da etnografia e
também os próprios etnógrafos133.
133
Riles (2006) utiliza o trabalho de Strathern e Brennis para mostrar o deslocamento entre mundos operado
pelos autores, já que no contexto etnográfico daquele estudo, em diferentes momentos, ambos são pensados
enquanto membros do comitê de pesquisa e em outros, são pensados como etnógrafos. A autora argumenta que
estes negociam a confluência de sujeito e objeto ao se deslocarem por estes mundos, ao passo que, estes acabam
incorporando a participação burocrática no momento da observação etnográfica.
250
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Rastrear os papéis é mostrar que vários eventos relacionados ao processo de titulação
são desencadeados por estes ou culminam na produção de um papel. Através dos documentos
é possível realizar uma descrição política capaz de mostrar as relações de poder que estão por
trás da mobilização destes e quais as técnicas e saberes são mobilizados, bem como acessar
eventos e discursos importantes.
O que também permite pensar com Foucault (2009, p.26), “os saberes, técnicas e
discursos ‘científicos”, que formam a complexidade do judiciário. É por meio do discurso
científico da antropologia, mobilizado pelo antropólogo-perito, que o território de Brejo dos
Crioulos emerge em um documento que será analisado pelos operadores do direito,
responsáveis pelo caso.
Desse modo, a política na comunidade estava sendo feita tanto nas reuniões e
articulações dos quilombolas com os seus parceiros e em suas caminhadas, quanto na
mobilização de diversos documentos. No entanto, mesmo com tantos papéis e tantas
instituições envolvidas, o processo de regularização fundiária não avançava da mesma
velocidade que as manifestações dos quilombolas e de sua rede
AS RETOMADAS E OS DOCUMENTOS: A LUTA PELA TERRA E A CIRCULAÇÃO
DE PAPÉIS
Os papéis só andam com briga, com retomada. Se nós parou, parou o
processo lá. Se nós mexeu, mexeu lá. A forma é essa. Ta tudo na escadinha
assim, até chegar lá em Brasília. Primeiro começou aqui e foi andando
(depoimento pessoal, Araruba, 2014).
Em Abril de 2004, foi realizada a primeira retomada, organizada na fazenda São
Miguel, propriedade de Miguel Véio Filho. Este evento é tomado como um marco na
invenção de uma nova estratégia política de luta pelos direitos territoriais. A quantidade de
pessoas mobilizadas pelos quilombolas e seus parceiros chegou a aproximadamente
quinhentas famílias, que se mantiveram acampadas por dezesseis dias.
Ai em 2004 a gente sentou com o pessoal tudo aqui nosso e com os parceiros
e fizemos uma reunião aqui na igreja, daqui da igreja nós fizemos outra no
Orion, do Orion nos fizemos outra no Caxambu, e começamos o embate para
pegar a terra que era nossa (depoimento pessoal, Araruba, 2013).
251
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Ai nós chamou outros parceiros que já tinham conhecimento de luta pela
terra né? Principalmente a CPT e o MST. A primeira fazenda que a gente
ocupou foi Miguel. Lá conseguimos entrar e foi uma das maiores no inicio,
nós éramos umas 500 famílias. Lá, veio Helicóptero, veio as policia por terra
e eles filmaram nós lá de cima, eles até desceu, mas não chegou a pousar o
avião né? Mas nada disso nós não assustemo não viu? Nós continuamos com
a luta! (depoimento pessoal, Furado Seco, 2014).
No décimo sexto dia, um destacamento da Polícia Militar foi até o local, fez um
boletim de ocorrência, notificou os quilombolas, e foi emitido por um juiz de São João da
Ponte, um mandado de reintegração de posse, a liminar, como dizem meus interlocutores. A
notificação dos quilombolas feita pela Polícia Militar e o boletim de ocorrência, ampliam o
número de atores que mobilizam documentos, tanto em favor e também contra os quilombolas
- policiais, fazendeiros e seus funcionários, advogados, operadores do direito e parceiros - e
que circulam no universo burocrático convergente as instituições: a própria Polícia Militar da
cidade sobre a qual o território retomado é pertencente e está registrado, o judiciário local, o
cartório local, a Polícia Civil que irá investigar os boletins de ocorrência fabricados e os
outros “caminhos institucionais” acionados.
Sugere-se também que cada instituição possui seu universo burocrático próprio, onde
são mobilizados suas tecnologias e saberes que são agenciados pelos seus técnicos. Este é o
caso da Delegada de Polícia da cidade de Januária, na fabricação do Inquérito Policial PCNET
2011-624-000800-001-000989463-27. Uma parte do documento foi transcrita para análise134:
Meritíssimo Juiz,
O presente inquérito policial restou instaurado para apurar os fatos ocorridos na Comunidade
Quilombola Brejo dos Crioulos. Os elementos informativos colhidos demonstram a existência de uma
quadrilha armada liderada pelos fazendeiros da região, de acordo com o extenso relatório parcial
colacionado às fls. 151 a 156. Após a confecção do relatório supra, juntou-se aos autos ofício
oriundo da Policia Federal, informando a existência de procedimento naquela unidade relacionado
aos fatos em apuração (fls. 160 – 164). Ainda, anexou-se cópia das notas taquigráficas da 60º
Reunião Extraordinária da Comissão de Direitos Humanos, realizada no dia 17 de novembro de
2011, a qual teve por objetivo discutir os conflitos agrários, especificamente, na comunidade
quilombola de Brejo dos Crioulos (fls. 166 e ss).Cópia do presente procedimento restou
encaminhada ao Departamento da Policia Federal de Montes Claros para apuração dos fatos,
devido a atribuição (fls. 157 e 158), já que lá também corre investigação acerca dos fatos em apreço.
134
Como a cidade de Varzelândia não dispõe de uma delegacia com plantão policial e pela falta de estrutura,
alguns casos são repassados para a Delegacia da cidade de Januária, localizada a 68,9 km desta cidade, como é o
caso do inquérito mencionado acima.
252
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Isto posto, encaminho o presente procedimento para apreciação de Vossa Excelência e do Ilustre
Representante do Ministério Público, para as providências que entender cabíveis. Januária, 12 de
janeiro de 2012 (ênfase minha).
Na análise do trecho do documento policial é possível observar a sua circulação em
diferentes instituições, a forma como são fabricados e anexados outros documentos, bem
como o saber jurídico que é mobilizado. É através de um procedimento de rotina, da
notificação feita pelo policial, através da mobilização de um saber jurídico e produção do
documento de acordo com os termos da instituição, que Brejo dos Crioulos - inscrito nos
documentos - percorre caminhos para além do seu território, o que reforça a perspectiva de
Riles (2001), para quem os documentos fornecem formas concretas às quais coletividades –
neste caso os quilombolas – são levados para outros ambientes, conjuntamente com suas
pautas e reivindicações.
Outra questão apontada pela autora se refere à estética dos documentos. Como no
trecho transcrito, é possível ver que eles ditam a forma de outros documentos, assim sendo, na
sua confecção são acrescidos outros papéis que também conectam novos atores e instituições.
O trabalho de campo me possibilitou compreender melhor a relação entre as retomadas e os
documentos. Nesta perspectiva, de acordo com uma liderança, “Nós tava com os papel tudo
amontoado e nunca que andava né? não saia das gavetas e entrava para outra gaveta, só ficava
engavetado e nós resolvemos partir para a luta” ele continua,
para os papel andar, ter andamento, nós tinha que, nós fala assim, a caixa preta para andar tinha que
bater, tinha que empurrar. Para os papel andar a gente teve que partir para os conflitos, para garantir as
coisas, o direito nosso e para desengavetar os papel, para sair de uma entidade e ir para outra lá em
cima né? Por exemplo, tava em São João da Ponte e de lá ia para Montes Claros. De Montes Claros
para Belo Horizonte, de Belo Horizonte para Brasília. Ai nós teve que entrar e partir para a luta
(depoimento pessoal, Furado Seco, 2014).
A narrativa acima permite compreender que para os quilombolas, são através das
retomadas que os papéis e os documentos circulam através das instituições. Sendo que,
quanto mais eles vão avançando na retomada do seu território, os processos (administrativos,
criminais, agrários) saem da instância municipal e seguem para as instâncias e instituições
estaduais e federais, aumentando as conexões dos quilombolas e o alcance de suas
253
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
reivindicações. As lideranças também cortejam da minha análise, percebendo a circulação e
visualizando o trajeto dos papéis para além do seu território.
Os documentos ficam em vários lugares, fica um no INCRA , outro na Fundação Palmares, mas eles
só saem de um lugar para o outro quando tem as retomadas. Quem tava na hora do embate da polícia,
dos pistoleiros e fazendeiros, era eu que tava acompanhando. Então eu fiquei seguindo o papel,
acompanhando o papel (depoimento pessoal, grifos meus, Araruba, 2014).
Os discursos das lideranças evidenciam que estes percebem as conexões e o alcance
das instituições que são mobilizadas assim como os “caminhos institucionais” percorridos. Os
quilombolas fizeram várias outras retomadas desde o início do processo de regularização
fundiária, sendo que, um mesmo evento mobiliza duas estratégias em locais diferentes.
Enquanto os quilombolas retomam as terras, os seus advogados também mobilizam
documentos – processos jurídicos – na tentativa de derrubar a liminar. Como contou umas das
lideranças nesta conversa, “Ele tava acompanhando de lá. Nós na fazenda e o advogado em
Montes Claros. Eu ia ligando por celular, ligando e tal, era tudo resolvido por telefone”. A
ligação telefônica descrita no depoimento acima foi apenas uma de várias outras, realizadas
durante as retomadas, reuniões, caminhadas e enfrentamentos. Seja conectando os vários
atores, definindo estratégias ou fazendo denúncias, que acabavam circulando pela rede por
meio dos telefonemas. O depoimento de outra liderança quilombola abaixo ilustra esta
prática:
Eu já tenho o contato do cara que vai jogar na rede rapidinho. Aqui usou muito a CPT nisso. Ai joga
na rede. O telefone é muito importante. As vezes não pega lá, ai já vai num pé de manga, num
barranco ou em cima da cerca, no lugar onde pega (depoimento pessoal, Araruba, 2014).
É pensando as estratégias inventadas e mobilizadas pelos quilombolas que o desenho
da rede vai tomando formato, assim como sua dinâmica e as suas conexões.
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Crioulos (INCRA-MG).
ANEXOS
Anexo I - Pasta de documentos guardada pelos quilombolas
257
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
GT PARENTESCO, FAMÍLIA E
RELACIONALIDADE
258
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
AS DÁDIVAS NÃO CONCEDIDAS
Eduardo Oliveira de Almeida
[email protected]
UEM
Graduando
O Ensaio sobre a dádiva – forma e razão da troca nas sociedades arcaicas, de Marcel Mauss,
evidencia a obrigatoriedade das trocas de presentes e gentilezas de algumas tribos, localizadas
na Oceania e no noroeste americano. Se há um laço social que implica nessa obrigatoriedade,
é razoável problematizar condicionalidades dentro de um marco no qual a força social se
constitui na formatação das condutas. Trata-se de pensar se (e como) esses laços que
conectam através da e obrigam a troca estão presentes, também, nos momentos em que essas
últimas são, senão negadas, ao menos estabelecidas expressando a existência de parceiros de
trocas preferidos. Dessa forma, pretende-se reconhecer possíveis limites desse momento de
sociabilidade.
Palavras-chave: Limites da sociabilidade; Marcel Mauss; Trocas.
INTRODUÇÃO
Escrito por Marcel Mauss, o Ensaio sobre a dádiva – forma e razão da troca nas
sociedades arcaicas (2003) foi publicado na França, pela primeira vez, em 1925 e se tornou
um grande clássico da teoria antropológica ao tratar das trocas de presentes e gentilezas de
algumas tribos, localizadas na Oceania e no noroeste americano. O que não é, geralmente,
esquecido, quando estão na agenda de discussões tais considerações do autor, são as
teorizações que envolvem a obrigação em dar, receber e retribuir aquelas dádivas. Neste
trabalho, contudo, a abordagem da questão será feita a partir de prováveis razões sociais para
aqueles momentos em que é possível deduzir, senão o impedimento do estabelecimento da
relação de troca, alguns condicionantes e empecilhos.
Por isso, a ideia de dádivas não concedidas: pois, se há um laço social que implica
naquela obrigatoriedade, é razoável problematizar condicionalidades dentro de um marco no
qual a força social se constitui na formatação das condutas. Trata-se de pensar se esses laços
que conectam através da e obrigam a troca estão presentes, também, nos momentos discutidos
nesse trabalho. A partir disso, é possível pensar, então, na integralização e na relacionalidade
dos excluídos – se é que é possível assim chamá-los. Para tanto, o objetivo é identificar o
lugar em que aquele(s) com quem, eventualmente, não se troca ou que não é (são) preferido(s)
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está(ão) acomodado(s) na relação, para reconhecer possíveis limites desse momento de
sociabilidade.
As reflexões sobre esse tema serão, principalmente, fundamentadas no texto de Marcel
Mauss citado acima. Por pertencerem a uma linhagem teórica parecida, conexões explicativas
com algumas considerações de Émile Durkheim também serão priorizadas. O intuito é
problematizar algumas questões que, apesar de não aparecerem claramente na obra de Mauss,
podem ser ponderadas na retomada do estudo da dádiva pela via dos possíveis impedimentos
em um momento de instituição da sociabilidade.
SOBRE AQUELES QUE TROCAM
Segundo Marcel Mauss (2003), em muitas civilizações, as trocas em formas de
presente são, apesar de aparentemente voluntárias, obrigatoriamente dadas e retribuídas.
Trata-se de presentes, regalos, gentilezas e convites oferecidos generosamente que, sendo suas
ofertas passíveis de serem analisadas como uma não escolha, são, ao mesmo tempo, desejadas
pelas pessoas. Para melhor entender o que significa estar obrigado numa relação de troca,
cabe aqui o exemplo das sociedades Maori e Tsimshian:
[...] o indivíduo e o grupo, ou melhor, o subgrupo, sempre sentiram o direito
soberano de recusar o contrato: é o que confere um aspecto de generosidade a essa
circulação dos bens; mas, por outro lado, eles não tinham normalmente, nem direito
a essa recusa, nem interesse por ela. (Mauss, 2003; p.304)
A obrigação, nesse caso, não se diferencia do desejo e da vontade. A dimensão social da
existência diz respeito à conformação do interesse, isto é, se trata se reconhecer regras sociais
não apenas nas restrições e proibições, mas também nas permissões e no curso harmônico dos
acontecimentos. Isso muito se parece com a concepção de coerção cunhada por Émile
Durkheim (2002), e, como são autores que operacionalizam suas análises dentro de marcos
teóricos muito parecidos, constituindo, inclusive, uma mesma tradição de pesquisa social, é
possível traçar um paralelo, no intuito de melhor entender o que o “interesse”, citado acima,
expressa em termos sociais. Em Durkheim, há uma nítida preocupação com uma esfera de
causalidade que se distinga daquelas ocasionadas por fatores orgânicos ou psíquicos – uma esfera
propriamente social. Ela consiste na interiorização de determinadas máximas que expressam a
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conformação de gostos, valores, sentimentos, enfim, daquilo que o sociólogo francês chama de “forças
interiores”. A concepção de indivíduo que se expressa em Durkheim (e, ao que parece, em Marcel
Mauss também) diz respeito ao condicionamento social de maneiras de agir, pensar e sentir – e é no
limite dessas concepções que a inexistência de interesse pela recusa das dádivas é aqui compreendida.
Mas, se não há interesse pela não-troca, não seria pertinente se perguntar sobre os parceiros
com os quais essas interações são formalizadas? Ou não, ela se dá independente da pessoa135? Os
lugares ocupados por aqueles que trocam são preenchidos ao acaso e construídos no nada?
“Assim, na Austrália, o genro, que deve todos os produtos de sua caça ao sogro e a sogra,
nada pode consumir diante deles, sob pena de que pela simples respiração eles envenenem o
que ele come” (Mauss, 2003; p. 202). Em uma tentativa de problematizar um pouco mais essa
questão, a sugestão é a de que, conforme o trecho, a caça não é concedida a qualquer pessoa,
há pessoas bem reconhecidas, pelo menos nesse exemplo, com as quais se deve trocar. É
importante, então, não naturalizar as figuras do genro, do sogro e da sogra, reconhecendo a
existência de pessoas habilitadas ou não para determinadas relações, já que é nítida, através da
relação de “dever”, tanto a obrigatoriedade quanto a existência de parceiros pré-estabelecidos
socialmente.
Outros exemplos, em que Mauss cita Radcliffe-Brown, que também podem ser
retomados para ajudar na discussão, são aqueles em que pessoas (por exemplo, pais da noiva),
provocadas por determinadas situações rituais (outro exemplo, jovens dos dois sexos que
passaram juntos pelas cerimonias de comer porco e tartaruga) são obrigadas a relação de
trocas recíprocas. Em seu livro Sobre o Sacrifício (2013), Marcel Mauss e Henri Hubert
abordem a potencialidade das classificações sociais para, através de determinado ritual, o
sacrifício, habilitar as pessoas a determinadas relações – presentes no livro citado, segundo as
concepções de sagrado e profano. O exercício reflexivo pode ser retomado para pensar,
justamente, a potencialidade das representações para capacitar os sujeitos. Nos exemplos aqui
citados, é pertinente evidenciar tal caráter da dimensão social da realidade no intuito de
135
Vale a pena retomar a concepção de pessoa presente em Uma categoria do espírito humano: a noção de
pessoa, a de “Eu”, de Marcel Mauss (2003), em que a pessoa está diretamente ligada a posição que ocupa no
clã.
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sublinhar a possível existência de uma capacitação da mesma ordem ligada à parte das
pessoas que estabelecem relações de troca.
Há ainda uma hierarquia que deve ser considerada nos atos de dar, receber e retribuir:
entre os kwakiutl, por exemplo, os mais prestigiados ou grandes vencedores de potlatchs
antigos pode se recusar a receber um presente, sem, contudo, entrar em guerra – o que seria
uma consequência em decorrência do fato de recusar. Uma organização social, então, permite
impor limites, tolerados e aceitos, às tentativas de entrar em contato e misturar as almas 136. Se
por um lado, uma hierarquia limita as dádivas, por outro, essas últimas constroem, em parte,
uma hierarquia:
Entre chefes e vassalos, entre vassalos e servidores, é a hierarquia que se estabelece
por essas dádivas. Dar é manifestar superioridade, é ser mais, mais elevado,
magister; aceitar sem retribuir, ou sem retribuir mais, é subordinar-se, tornar-se
cliente e servidor, ser pequeno, ficar mais abaixo. (Mauss, 2003; p.305)
Contemporaneamente, em outros contextos, a hierarquia também pode ser retomada
para analisar as trocas. Rezende e Coelho (2010), por exemplo, citando um trabalho dessa
última, se propõem, a partir da pesquisa de camadas médias urbanas – especificamente, a
Zona Sul carioca – a traduzir no plano dos sentimentos a hierarquia presente nas trocas entre
patroas e empregadas. Segundo as autoras, a gratidão (compreendida como a retribuição
ideal) das empregadas é fundamental para a satisfação das patroas quando essas últimas
presenteiam as primeiras. Tal situação harmônica expressa à conformidade aos lugares
ocupados na hierarquia social – a ingratidão é, dessa forma, mal vista pelas patroas. Essa
característica é usada pelas autoras para refutar a explicação de Mauss sobre a dádiva, já que,
segundo elas, a necessidade de retribuição material não se verifica. O intuito aqui não é
criticar o trabalho tendo por referência algo que não foi sequer proposto pelas autoras, até
porque às perguntas que se propõem, estabelecendo uma conexão com Simmel, respondem de
maneira satisfatória. Contudo, é possível sinalizar a potencialidade de Marcel Mauss para
compreender momentos como esses – obviamente, a partir de outra perspectiva, que não
objetive pensar, nos termos afetivos, as negociações entre os sujeitos. As trocas são
satisfatoriamente engendradas graças à posição ocupada pelas pessoas; não retribuir
136
As trocas implicariam no intercâmbio das almas das pessoas. O espírito do donatário acompanha o regalo e é
isso que, segundo Mauss, obriga a retribuição.
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materialmente e ser apenas “grata” expressa, menos a impossibilidade de usar a categoria
explicativa da dádiva presentes em Mauss137, que o reconhecimento de classificações sociais
que possibilitam em conexão, também, com uma estrutura a obrigatoriedade das trocas.
Se há, portanto, a obrigação, muito bem delineada, dos fluxos de troca, é porque
existe, na mesma medida, o reconhecimento de pessoas obrigadas nesse empenho. A ideia é a
de que, em alguma medida, algumas pessoas têm o direito a determinados regalos, outras não:
a delimitação de alguns indivíduos enquanto detentores daquela dádiva já, por si só, excluí
uma série de sujeitos.
AS PREFERÊNCIAS NAS TROCAS
Se por um lado, a instituição de posições pré-estabelecidas conferem às trocas,
representadas pela circulação de objetos e gentilezas, sua existência; por outro, é possível
encontrar, nos exemplos etnográficos retomados por Marcel Mauss, situações nas quais as
posições não estão delineadas, mas, apesar disso, identificar algumas preferências que dizem
respeito a categorias socialmente estabelecidas é uma tarefa realizável. Diante da
impossibilidade de retomar um exemplo em que uma recusa é empreendida ou aquelas
preferências conduzem ao não estabelecimento de uma relação, o caminho aqui a ser
percorrido é o de, através das trocas estabelecidas, tentar desvendar essas categorias. Ou
melhor, identificar momentos em que apareçam certas escolhas, mas pela ótica do “sucesso”
das trocas.
Um desses momentos, aliás, um dos primeiros momentos – já que, segundo Mauss,
com um dos primeiros grupos – é o do estabelecimento de um contrato com espíritos de
mortos e de deuses: “com eles é que era mais necessário intercambiar e mais perigoso não
intercambiar. Mas, inversamente, com eles é que era mais fácil e seguro intercambiar”
(Mauss, 2003; p. 206). Preferências são reconhecidas: mais fácil, mais seguro, menos
perigoso. Todas essas adjetivações são categorias que exemplificam a produção de esquemas
de diferenciação entre os possíveis parceiros nas trocas. E, mesmo que seja abstraído o
137
É importante ressaltar que, nos termos aqui usados, a ideia defendia nesse tópico não foi claramente
formulado por Mauss. Mas, a partir da interpretação de questões suscitadas por ele, é possível empreender um
exercício reflexivo a partir do qual questões apontadas no Ensaio sobre a dádiva possam ser desenvolvidas.
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exemplo da troca com não humanos, talvez seja possível, então, pensar a existência de
preferências como organizadoras dos lugares daqueles que possuem menos atributos desse
reconhecimento. Ou seja, a partir desse reconhecimento se perguntar sobre aqueles que foram
rejeitados ou não preferidos.
Outro exemplo a ser problematizado é quando o autor retoma o kula138, estudado por
Bronislaw Malinowski, para analisar as relações de reciprocidade. Um dos questionamentos
que faz é sobre a sanção que obriga a reciprocidade: “o indivíduo ‘duro no kula’ é apenas
desprezado e eventualmente enfeitiçado? Será que o parceiro infiel não perde outra coisa:
sua condição nobre ou, pelo menos, seu lugar entre os chefes?” (Mauss, 2013; p. 223). Ser
“duro no kula” diz respeito a ser desprestigiado e não preferido nas trocas, disso é possível
deduzir, mais uma vez, a existência de esquemas de diferenciação que acomoda alguns em
posições mais (ou menos) prestigiadas.
Evidencia, ainda, um trabalho de escolha na constituição de relações, de trocas a
serem feitas, no momento de primeiro contato, isto é, do oferecimento de cortesias, que
significam solicitórios do primeiro presente, o vaga.
Enquanto há certeza de que o vaygu’a recíproco, o yotile, fechará o ferrolho, não há
certeza de que o vaga será dado e as solicitações aceitas (...). A importância e a
natureza dessas dádivas provêm da extraordinária competição que se dá entre os
parceiros possíveis da expedição que chega. Eles procuram o melhor parceiro
possível da tribo oposta. A questão é grave: pois a associação que se tenta criar
estabelece uma espécie de clã entre os parceiros. Para escolher, portanto, é preciso
seduzir, deslumbrar. Levando em conta as hierarquias, é preciso atingir o objetivo
antes que os outros, ou melhor que os outros, provocar assim trocas mais
abundantes das coisas mais ricas, que são naturalmente propriedade das pessoas
mais ricas. Concorrência, rivalidade, ostentação e busca de grandeza e interesse,
tais são os motivos diversos que subjazem a todos esses atos. (Mauss, 203; p. 224225)
Se, como adianta o autor, um dos princípios que rege as trocas é o da rivalidade, cuja
produção sintetiza uma espécie de plateia para a os movimentos de “dar, receber e retribuir”,
este princípio condiciona e, sobretudo, evidencia as escolhas feitas nesses momentos. Fica
claro, então, que essas relações são constituídas pelos dois envolvidos diretamente nas trocas
(representando cada um sua respectiva tribo) e aqueles que a observam, para quem, em parte,
138
Grosso modo, Kula é o sistema de das trocas intertribais de colares e braceletes nas Ilhas Trobriand, cujo
estudo feito por Bronislaw Malinowski resultou, entre outros, na publicação livro Argonautas do Pacífico
Ocidental.
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essas trocas são realizadas. Desse exercício reflexivo, portanto, um sujeito fica implícito:
aquele, justamente, com quem não foi estabelecida a parceria, já que conforme a citação, as
pessoas em questão fazem escolhas. Vale destacar, também, o caráter duplo que representa o
prestígio social: ele influencia o estabelecimento das relações (conseguir, então, boas trocas é
sinal de distinção) e é construído por boas trocas.
Uma das distinções que acarretaria maior prestígio é a generosidade. Sendo a alma o
que se mistura nas trocas e, também, levando em consideração o exemplo das tribos do
noroeste americano, “perder o prestígio é de fato perder a alma” (Mauss, 2003; p. 244), não
ser generoso implicaria em um limite para o estabelecimento da troca. Assim, as pessoas
generosas são as preferidas e, por isso, essa posição é objeto de desejo. A rivalidade que se
estabelece e que fora tematizada acima contribui para melhor compreender a disputa em torno
daquela posição: quem retribui quer ser grande senhor, ou seja, devolver algo mais valioso,
em maior quantidade.
Não há um instante um pouco além do comum, mesmo fora das solenidades e
reuniões de inverno, em que não haja obrigação de convidar os amigos, de partilhar
com eles os ganhos de caça e de colheita que vem dos deuses e dos totens; em que
não haja obrigação de redistribuir tudo o que vem de um potlatch de que se foi o
beneficiário; em que não haja obrigação de reconhecer mediante dádivas qualquer
serviço, os dos chefes, dos vassalos, dos parentes; sob pena, ao menos para os
nobres, de violar a etiqueta e perder sua posição social. (Mauss, 2003; p. 245)
Duas questões tratadas são retomadas por esse trecho: a discussão sobre pessoas reconhecidas
nas trocas, expressas pela condição de amigos, chefes e vassalos e o duplo entendimento do
estabelecimento das trocas, enquanto fruto do bom prestígio social e construtora de uma boa
posição social. Ambas revelam condicionalidades no estabelecimento das trocas e
possibilitam entendimento sobre aqueles que não ocupam boas posições e com os quais não se
deseja trocar.
Identificando categorias de prestígio que possibilitam pensar hierarquias de
preferência no estabelecimento de relações, é intrigante perguntar-se sobre aquilo que é
desvalorizado para problematizar a presença dos excluídos enquanto sujeitos constituintes
desses momentos. Sendo assim, outra questão a ser abordado é o lugar (se é que existe)
ocupado por aqueles que não estabelecem relações de troca.
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NINGUÉM SE RECUSA A TROCAR
Quando no cerne da discussão está presente o estabelecimento de relações,
representado pelas prestações de troca, é conveniente destacar o caráter coletivo, que apesar
de encarnados, esses processos assumem, por exemplo, nas tribos Maori: o presente e a
retribuição não são da pessoa, mas do clã, da tribo, da família, enfim, as pessoas envolvidas
são pessoas morais. O objeto (ou sentimento, honra, festas) trocado traz em si um valor
acumulado, relativo ao grupo de que provém. É esse valor, em forma de espírito (hau) que
obriga aqueles objetos a serem devolvidos e aceitos: há neles, para além, uma força que os
obriga a retornar ao seu donatário – está aí a razão para esses fluxos de gentilezas e
obrigações, segundo a caracterização de Marcel Mauss.
Recusar dar, negligenciar convidar, assim como recusar receber, equivale a declarar
guerra, é recusar a aliança e a comunhão. A seguir, dá-se porque se é forçado a isso,
porque o donatário tem uma espécie de direito de propriedade sobre tudo o que
pertence ao doador. Essa propriedade se exprime e se concebe como um vínculo
espiritual. (Mauss, 2003; p.202)
Mauss reserva um espaço significativo, em suas considerações, para vislumbrar sobre as
possibilidades da recusa. Cabe perguntar se essa obrigação é tão imperativa a ponto de não ser
estabelecido nenhum limite ou condicionante às pessoas – pelos próprios exemplos citados
acima, parece que não. É importante entender a referência à obrigatoriedade dentro das
próprias concepções teóricas na qual se inscrevem as reflexões do autor: a não troca é
retomada para evidenciar a coerção e a consequente obrigatoriedade, reforçando determinada
dimensão da existência – a social.
Para os objetivos desse trabalho, tão importante quanto reconhecer a não
voluntariedade em dar é se perguntar sobre os envolvidos nas trocas e, consequentemente, os
lugares por eles ocupados. Especificamente, que lugar o ocupa (e se ocupa) aquelas pessoas
com as quais os laços não são estabelecidos? É pertinente pensar sobre elas, enquanto
constituintes de um outro modo de relação, ocupando outros lugares?
Mauss fala, em alguns momentos, que os presentes quase nunca são recusados e, logo,
quase sempre retribuídos; ele, também, não exemplifica momentos em que, de fato, a
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interação é negada (somente naquele, aqui já citado, em que é socialmente permitido). Essas
características poderiam ser entendidas como razões para inviabilizar o estudo proposto nesse
trabalho. Ou seria o caso de radicalizar a hipótese formulada no primeiro tópico, que diz
respeito a um sistema de classificação social que aloja as pessoas em determinadas posições e
a obrigam, a partir desse lugar ocupado, a uma relação de troca e pressupor que as trocas
nunca são recusadas porque é proposta, justamente, a parceiros pré-estabelecidos e já
anteriormente reconhecidos para essa relação? Confirmar essa hipótese parece difícil se o
amparo for somente os exemplos etnográficos fornecidos por Marcel Mauss no Ensaio sobre
a dádiva. Os caminhos metodológicos, que diz respeito a produzir reflexões teóricos sobre
determinado autor, a partir de suas próprias premissas, conduzem ao abandono, por enquanto,
dessa última hipótese e a formulação de outra.
Se o foco for as possibilidades, vislumbradas pelo referido autor, de guerra nas
recusas, ainda que sirvam como argumento para que fundamente a noção defendida de
obrigatoriedade dessas prestações de troca, é possível, talvez, perceber a existência de um
lugar que incita vontades de não pertencer. E se, de fato, essas guerras não cheguem a
acontecer e as alianças não cheguem a serem recusadas, é bastante difícil duvidar da
existência de uma posição que implicaria em uma não concessão de dádivas, já que norteia as
pessoas em determinadas condutas. As pessoas trocam, em certa medida, pois não desejam
ocupar um lugar onde as alianças não são firmadas. Ainda que seja apenas em uma instância
de idealização, problematizar tais questões é justificável, pois, em último caso, a capacidade
de idealizar é, também, uma capacidade social, permeada de sentidos coletivos passíveis de
serem explicados.
Mais uma vez, Émile Durkheim pode ser, convenientemente, retomado para pensar
essa questão. Para Durkheim, além da capacidade criadora de comunicação, a sociedade
também é a fonte da capacidade de idealização:
Na escola da vida coletiva que o indivíduo aprendeu a idealizar. [...] Foi a sociedade
que, encadeando-o em sua esfera de ação, fez com que ele adquirisse a necessidade
de levantar-se acima do mundo da experiência e ao mesmo tempo forneceu-lhe os
meios de conceber outro. [...] Ele não seria um ser social, isto é, não seria um
homem, se não tivesse adquirido. [...] Mas, para compreender esta aptidão, tão
singular na aparência, de viver fora do real, é suficiente relacioná-la as condições
sociais das quais ela depende. (Durkheim, 1978; p. 226-227)
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Ainda que essas considerações sejam explicativas do fenômeno religioso, é possível aprender
delas um exercício bastante singular para a primeira metade do século XX: o de conexão de
efeitos a uma esfera de causalidade social. Só se é possível pensar em um mundo ideal,
porque determinadas condições foram internalizadas enquanto mais ou menos propícias.
Essas capacidades cognitivas, fundadas na incorporação de determinadas padrões, são
criações também da sociedade, enquanto um sistema de conceitos e categorias que
disciplinam as consciências individuais.
Voltando a possibilidade da recusa:
Agir assim [recusar uma dádiva] é manifestar que se teme ter de retribuir, é temer ter
de “ficar calado” enquanto não se retribui. De fato, é já “ficar calado”. É perder o
“peso” de seu nome; é confessar-se vencido de antemão, ou, ao contrário, em certos
casos, proclamar-se vencedor e invencível. (Mauss, 2003; p. 247-248)
Mais uma vez, a capacidade de idealização fornecida por uma esfera social está presente:
temer é, aqui, um sentimento que tem na sua base as consequências da perda do prestígio. Isso
devido ao fato de que não ter preferência nas trocas é uma marca dessa perda e, ao mesmo
tempo, a impossibilidade de reconstruir essa posição, uma vez que se consolida uma boa
posição nas trocas ao ser generoso.
Sendo assim, por mais que não se encontre na obra de Mauss aqui priorizada um
momento de avareza, esse tipo de idealização – aquela ligada ao que não se quer ser ou o
lugar onde não se quer estar, é revelador da existência de uma posição que limita o
estabelecimento da sociabilidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Hierarquia, rivalidade, prestígio e idealizações, portanto, podem ser encaradas
enquanto formas de reconhecer condicionalidades nas relações estudadas por Marcel Mauss.
Dessa forma, o estabelecimento das trocas é identificado a partir dos possíveis limites que
operam nas prestações das dádivas e ajudam a revelar os lugares ocupados por aqueles a quem
não seria (ou não foram) concedida nenhuma dádiva.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DURKHEIM, Émile. 1978. “As Formas Elementares da Vida Religiosa”. In: Os Pensadores.
São Paulo: Abril Cultural.
______________. 2002. As regras do método sociológico. 17ª ed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional.
MAUSS. Marcel. 2003. “Ensaio sobre a dádiva”; “Uma categoria do espírito humano: a
noção de pessoa, a de ‘Eu’”. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: CosacNaify.
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. 2013. Sobre o sacrifício. São Paulo: CosacNaify.
REZENDE, Claudia B.; COELHO, Maria C. 2010. Antropologia das Emoções. Rio de
Janeiro: Editora FGV.
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NOTAS SOBRE A IMPORTÂNCIA DO COMPARTILHAMENTO DE
ALIMENTOS E DE TRABALHO EM UM PUEBLO DOS ANDES
PERUANOS
Indira Viana Caballero
[email protected]
Pesquisadora Colégio Brasileiro de Altos Estudos/UFRJ
Doutora em Antropologia
Em Andamarca, comunidade campesina nos Andes peruanos, a comensalidade e a produção
de alimentos, são atos criadores de socialidade e reciprocidade. Recusar comida e bebida é
visto como um ato de desprecio, uma recusa à interação, ou, à possibilidade de criação de
relação. O trabalho coletivo, empregado em diferentes momentos (construção de casas,
limpeza de canais de irrigação, tarefas agrícolas), imprime um movimento para formação de
coletivos, propiciando a manutenção e criação de laços. Recusar ou evitar o trabalho coletivo
(ayuda, apoyo ou obrigação) são atitudes vistas como negativas pela maioria. Neste trabalho,
consideramos o ‘trabalhar junto’ e ‘o comer junto’ como duas formas de familiarização, ou,
de inclusão do outro em diferentes coletivos. Em ambos os casos, a premissa é não
desconsiderar ninguém, de um lado, e não recusar-se a participar, de outro.
Palavras-chave: alimentos, trabalho, compartilhar, recusar, relação.
INTRODUÇÂO
Em Andamarca, os habitantes definem-se como campesinos já que praticamente todos
têm animais e chácras, também chamadas de andenes, plataformas agrícolas escalonadas que
datam do período pré-hispânico. A complexa arquitetura e o sofisticado sistema de irrigação é
o que torna possível o cultivo de alguns tubérculos e cereais nas encostas das montanhas,
superando a inclinação de terrenos a aproximadamente 3.500 metros de altitude e o clima seco
durante boa parte do ano. A atividade agrícola é destinada, sobretudo, para consumo próprio
dos andamarquinos que vendem ou trocam pequenas partes de seus cultivos. Os queijos
artesanais são o principal produto destinado para o comércio.
Andamarca, nome da sede do distrito Carmen del Salcedo – a menor unidade políticoadministrativa do país –, está situada na província de Lucanas, departamento de Ayacucho
(Peru), e possui uma população de aproximadamente 2.500 habitantes falantes de espanhol e
quéchua em sua maioria. O território de Andamarca está dividido em quatro bairros: Pata
(oriente) e Tuna (ocidente), Ccarmencca (sul) e Antara (norte). Cabe ressaltar que pata e tuna
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são as partes de um andén139: pata é a borda, a parte da frente; e tuna é a parte posterior.
Além da sede, o distrito possui três anexos ou pequenas vilas: Chiricre, Huaccaracca e
Huayllahuarmi. A divisão em metades também se dá no âmbito do território do distrito: o rio
Negromayo corta o vale dividindo-o em uma margem oriental, alimentada pelo rio Vizca; e
uma margem ocidental, alimentada pelo próprio rio Negromayo.
O vale, região onde estão os andenes ou chácras de propriedade privada, propício para
a prática da agricultura e criação de vacas leiteiras está divido em dezoito setores para fins de
irrigação e distribuição de água. A puna ou altiplano, onde estão situados os pastos coletivos
(de propriedade da comunidade) destinados ao pastoreio estão igualmente divididos em
dezoito setores. Todos os comuneros, assim como são chamados os membros da comunidade,
têm o direito de usufruir desses terrenos e, para ter acesso a tal direito, bastam consultar o
presidente do setor que lhe interessa. A disponibilidade de pastos, o número de animais e a
anuência de outros usuários são requisitos importantes para definir se o comunero poderá ou
não ser usuário de um setor.
Todas essas unidades, os setores da puna ou do vale, assim como os bairros, possuem
um presidente, o qual é sempre acompanhado por um comitê (vice-presidente, secretário,
tesoureiro, suplente), encarregado de cuidar de questões administrativas. A importância da
divisão em partes está relacionada à capacidade de organização dos andamarquinos para
diferentes fins. Em caso de faena por bairros, ou seja, um dia de prestação de trabalho
coletivo e não remunerado para a comunidade, similar a um mutirão – como veremos a seguir
–, os presidentes dos bairros são os responsáveis por recrutar os comuneros, organizar e
fiscalizar o trabalho. Cada unidade é como uma equipe e as tarefas a serem executadas são
distribuídas entre as equipes.
Conforme veremos a seguir, o trabalho coletivo possui grande ênfase na vida
comunitária dos andamarquinos, emergindo como um ‘movimento’ agregador, criador de
laços e mantenedor daqueles já existentes. Outro ‘movimento’ de grande importância nesse
139
O princípio da origem quadripartite dos ayllus e dos pueblos está presente desde o mito que narra a origem de
Andamarca (Ossio, 1992), o qual é intitulado “Os quatro irmãos Mayo”. Nessa narrativa, a origem de cada lugar
que coincide com os anexos atuais é relacionada a um dos irmãos. Também é destacada a importância da água na
origem de Andamarca, já que mayo significa rio.
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sentido, são as festas, cujos participantes comem, bebem, dançam e cantam juntos. Entretanto,
tal compartilhamento de substâncias não acontece somente nas festas. Durante o trabalho, nas
chácras ou nas faenas, mascar coca, beber, fumar e comer junto são atos considerados
fundamentais, sem os quais as atividades não podem acontecer. Dessa forma, compartilhar
esforços, no caso do trabalho, e compartilhar substâncias, em diferentes ocasiões, é o que
funda os vínculos da pessoa andamarquina, ou mesmo do forasteiro, com outros, com um
coletivo, ou seja, é o que possibilita familiarizar. No sentido inverso, a recusa sistemática do
compartilhamento, seja de esforço, seja de substâncias, é encarada pelos andamarquinos como
uma recusa ao aprofundamento dos vínculos, das relações.
DAR, COMPARTILHAR, RECEBER
As festas da comunidade que envolvem todos os comuneros em geral estão
estruturadas segundo a rotação de cargos. O sistema de cargos consiste num rodízio de
cargontes, o que poderia ser traduzido por anfitriões que assumem o compromisso de dar a
festa para toda comunidade, oferecendo comida, bebida e música a todos uma vez na vida.
Existem cargos voluntários, no caso das festas religiosas, e cargos obrigatórios, como os da
Festa da Água, a maior e a principal festa em Andamarca. A obrigação deriva da noção de que
todo comunero assim como tem o direito de usar a água para dar vida a seus cultivos, tem
também o dever de retribuir à comunidade. A água é vista pelos andamarquinos como um
recurso de todos, logo, assumir um cargo nessa festa é uma forma de retribuir a todos já que
as celebrações nessa ocasião giram em torno da manutenção do poder fertilizador da água
através de oferendas e danças.
Cada festa é composta por um conjunto de cargos, o qual possui uma hierarquia.
Jovens recém-casados, por exemplo, nunca serão responsáveis pelo cargo máximo, mas por
um cargo proporcional à posição em que se encontram no momento. Há uma gradação de
cargos por meio da qual se percebe uma lógica que leva em conta diferentes momentos da
vida dos andamarquinos: desde os solteiros e recém-casados, a quem corresponde os cargos
menores, até os casais que já alcançaram suficientes condições (idade madura, bens, filhos
272
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
adultos, já passaram cargos menores), os aspirantes a assumir o cargo máximo140. Na Festa da
Água, o cargo que ocupa o topo da hierarquia é o mayor de danzantes, anfitrião responsável
pela atração principal da festa: os danzantes de tijeras141. Essa é uma obrigação exigida
àqueles que usam maior volume de água para regar e, de acordo com um princípio de
proporcionalidade, devem retribuir na mesma medida, responsabilizando-se pelo cargo mais
importante e mais caro. A distribuição da água para irrigação prevê uma quantidade que deve
ser repartida entre todos, para que não falte a ninguém. Ainda assim, fala-se muito de roubo
de água, sendo corriqueira a noção de que por água as pessoas brigam, discutem,
desentendem-se. Aquele que rouba está querendo mais do que a parte que lhe cabe, sendo
uma falta sancionada com multa em dinheiro ou até a proibição de regar142.
Aquele que reúne todas as condições e ainda não assumiu um cargo correspondente
tem chance de ser apontado diante de todos nas assembleias, espaços em que se definem
assuntos referentes à vida coletiva. Para recusar, a pessoa indicada precisa de uma boa
justificativa: doença grave na família, morte recente da esposa/filho/pais, devendo também
realizar uma previsão do cumprimento do seu compromisso. Idealmente, trata-se de um
constante concentrar e distribuir ao longo da vida; quando se alcança mais um nível da
hierarquia social, considera-se que já é momento de assumir outra obrigação, até alcançar o
topo dos cargos. Mesmo que o candidato não tenha recursos materiais para passar o cargo,
apesar de ter idade, pode ter uma rede de familiares que o ajudarão a cumprir tal
140
Trata-se de um “estímulo acumulativo” ao longo da vida dos andamarquinos ao qual Ossio se refere em sua
tese (1992) e. O autor discorre sobre o “grau de madurez social” dos indivíduos, noção vinculada à ideia de
“ciclo de desenvolvimento dos comuneros”. Seguindo esse movimento os indivíduos engrenam numa
competição saudável, positiva, a qual é a base da vida social no mundo andino, “um estímulo poderoso para que
esses mostrem suas habilidades acumulativas e persuasivas e, consequentemente, seu grau de madurez social”
(1992b:263).
141
A danza de tijeras é originária dos departamentos de Ayacucho, Huancavelica, Apurímac e norte de
Arequipa, na serra sul dos Andes Centrais do Peru. O danzante ou danzaq, em quéchua, desempenha sua
performance sozinho ao som de violino e harpa, manuseando com apenas uma das mãos uma tesoura,
considerada um instrumento musical. Essa dança é recusada um ritual propiciatório para o bom desenvolvimento
do ano agrícola (Arce Sotelo, 2006).
142
Cada comunero deve observar algumas regras para exercer seu direito de uso sobre a água, como participar das
faenas, pagar uma taxa etc.
273
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
responsabilidade: compadres, padrinhos, pais, irmãos, primos, tios. Assim, os parentes lhe
darão em ayni – palavra quéchua que significa retribuição, usada por muitos autores como
sinônimo de reciprocidade (Barlett, 1988; Allen, 2008; Isbell, 2005) – ou seja, os parentes
ajudarão esperando uma retribuição no futuro, quando cada um deles tiver uma obrigação
semelhante. Também se fala em ajudar ou apoiar (além do verbo dar) com um dos requisitos
importantes para a festa, invariavelmente música, comida e bebida.
Conforme os andamarquinos, o lado negativo do sistema de cargos é que ele no te
deja progresar; tudo que foi economizado durante anos terá de ser gasto com a festa. Por
outro lado, quando alguém passa cargo, além de cumprir com a obrigação, questão de honra e
reputação, também pode ganhar muito prestígio entre os comuneros. Tudo depende se será
considerado bom anfitrião, e para que isso aconteça é necessário que haja bons músicos e
dançarinos, fartura de comida e bebida. Tudo isso indicará se tal pessoa é tacaña (mesquinha)
ou se passou bem seu cargo. O bom anfitrião é conhecido como allintampito, palavra quéchua
que designa aquele que recebe bem, que oferece com fartura, sem medir comida e bebida (sem
controlar no sentido de mesquinhar). O pior anfitrião é aquele que tendo não quer dar, a
pessoa que mesmo possuindo recursos, não aceita passar cargo, ou mesmo que passe se
empenha para gastar o mínimo possível. Dar e compartilhar são atitudes sempre vistas como
positivas, sendo o ayni em seu sentido mais amplo um princípio central nas sociedades
andinas. Portanto, exercer o movimento contrário, não dar, reter, acumular, guardar para si,
ser avaro, é algo muito mal visto, assim como ser ambicioso.
DA IMPORTÂNCIA DE COMER JUNTO, DE COMPARTILHAR SUBSTÂNCIAS
Agosto é o mês em que a terra é preparada para a semeadura cujo início é setembro.
Dia 1° de agosto a terra está aberta, não sendo recomendável tocá-la, por isso dificilmente se
encontrará alguém trabalhando nas chácras esse dia. A Festa da Água marca o início do
calendário agrícola e sua realização se dá ao longo de vários dias (entre 14 e 26 de agosto).
Andamarquinos residentes em outras partes do Peru e do mundo fazem o possível para
comparecer na maior festa de seu pueblo, a mais animada de todas, em que mais se desfruta e
se goza, deixando o pequeno povoado cheio de vida por poucos dias.
274
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
As oferendas ou pagos (despachos ou pagapas) para a água e para a Pachamama (mãe
terra) são feitos logo no início, geralmente de 14 a 18 de agosto, pelos setores de irrigação que
utilizam mais água. Considera-se necessário pagar a terra para que se tenha uma boa
colheita com vinho, aguardente, chicha (bebida fermentada de milho), água corrente e
incensos para defumação (sahumada). No local de cada pago são depositados na terra, num
buraco bem fundo, pequeninos jarros de cerâmica feitos especialmente para a ocasião, os
quais contêm todos os líquidos. Se os pequenos jarros caem em pé significa boa sorte para a
colheita; se algum deles virar derramando o líquido é sinal de má sorte, o que se expressará
através de um ano agrícola ruim. A Pachamama, assim como outros seres não-humanos
come, bebe e gosta de ser lembrada. Por isso é preciso ofertar, dar a Pachamama para que ela
não se zangue e não te faça mal (hacer daño).
Antes da semeadura acontece a irrigação, uma atividade muito organizada, com dia e
hora para começar, além de uma ordem específica, sendo realizada sempre de baixo para
cima. Os andenes mais abaixo são os primeiros a serem regados, e os de cima são os últimos,
evitando-se assim desmoronamentos. A água passa por todas as chácaras, completando um
circuito previamente planejado. O dono do andén recebe a água e após utilizar o que tem
direito deve passar para o próximo, e assim sucessivamente.
Enquanto a irrigação pode ser feita por uma ou duas pessoas, a semeadura envolve
sempre mais de um participante. As tarefas de separar sementes, abrir sulcos com arado de
touros e depositar sementes possui um tom festivo, sobretudo se o produto plantado for milho,
ocasião em que se faz Pito, denominação para a comemoração familiar que acontece nas
chácras. Pito é o nome da bebida de consistência pastosa que se prepara especialmente para
essa celebração sendo muito apreciada pelos andamarquinos. É o resultado da mescla de
chicha de qora com machka, uma farinha fina de cereais variados, açúcar e canela.
Apesar de ser uma festa considerada familiar todos estão virtualmente convidados para
o Pito: alguém que porventura esteja passando por perto, um vizinho de chácara ou de casa,
um parente distante, um conhecido, um visitante. Enfim, qualquer pessoa será recebida da
mesma forma, com comida e bebida - procedimento adotado pelos anfitriões em todas as
festas em Andamarca. Segundo a etiqueta local, cabe ao visitante levar uma garrafa de vinho
275
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
ou de outra bebida alcoólica, e um par de flores grandes de cores vibrantes para oferecer ao
casal dono da chácara, que deve usá-las no chapéu sinalizando a ocasião festiva. Caso a
pessoa seja surpreendida por um convite e não disponha de nenhum dos dois artigos para
oferecer no momento, será recebida da mesma forma, devendo aceitar tudo que lhe
oferecerem, deixando para retribuir no futuro.
Pouco antes de iniciar o trabalho, o dono da chácara costuma oferecer chicha a todos
e antes de cada um beber deve aspergir em cima de cada tipo de semente para que elas
cresçam. São feitas libações com vinho para a Pachamama, apus (os cerros protetores) e
antepassados, para que tudo corra bem (te vaya bien) durante as atividades e para que os
cultivos cresçam devidamente. Iniciada a semeadura, as mulheres estão encarregadas de
depositarem as sementes – ainda que vez por outra isso possa variar –, e os homens,
geralmente uma dupla, assumem o papel de aradores, um deles guiando os touros e o outro
empurrando o arado. Se o terreno for grande são necessárias várias mulheres para se
responsabilizar por trechos dos sulcos que vão sendo abertos. A cada passo, colocam-se duas
ou três sementes, dependendo do tamanho. Quando o estoque de sementes termina é preciso
reabastecer as mantas rapidamente, de preferência uma de cada vez, de modo que o trabalho
não seja totalmente interrompido. Para que a atividade seja executada com sucesso, pois
possui um ritmo bem marcado, demandando sincronia e agilidade da equipe, é fundamental
que o apoio entre os participantes seja recíproco. Caso contrário, o trabalho não avança, o que
de forma alguma é desejável, havendo sempre uma porção de preparativos e cálculos para a
execução dessas tarefas.
Aqueles que ajudam ou apoiam familiares, parentes ou amigos, podem receber como
retribuição uma pequena parte da colheita pelo seu esforço. Dispor de consideráveis
quantidades de batatas e de milho significa ter comida garantida por determinado período,
poder celebrar festas, fazer trocas com parentes e amigos, e até ganhar dinheiro com a venda
de parte do estoque. Costuma-se dizer que antigamente, quando as famílias eram maiores e
tinham vários andenes, essa era uma prática muito comum entre parentes próximos,
276
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
principalmente filhos, noras e filhos de juramento143. Quando se dá parte do que foi plantado à
outra pessoa, essa deve retribuir com um refrigerante, frutas ou outro artigo do tipo, ou uma
pequena quantia em dinheiro para ajudar na manutenção das chácras até a colheita. Além
disso, aquele que trabalha sempre é convidado para comer, mesmo que seja um trabalhador
contratado, pago por jornada (peão). A comida dos trabalhadores sempre é contabilizada à
parte de qualquer pagamento. E o momento de ‘comer junto’ durante uma jornada de trabalho
é tão importante quanto à execução das atividades.
No campo, durante a plantação de batatas, costuma-se oferecer já no almoço parte do
que foi colhido, algo que os andamarquinos de fato adoram: batatas frescas. Mas se for
durante o Pito, leva-se um prato especial pronto de casa. Se a festividade é realizada em casa,
há mais opções de cardápio, porém, o que nunca costuma variar é o fato de que nessas
ocasiões, as refeições servidas aos convidados são sempre completas (sopa e prato principal).
Em Andamarca, a comensalidade aparece como um momento criador de sociabilidade
e intercâmbio, tanto no compartilhamento repetido e recíproco do cotidiano como durante as
festas, momentos extraordinários de grande importância no que se refere à construção de
laços e aprofundamento de vínculos (ver Belaunde, 2001; Coconier, 2012; Overing, 1999). À
diferença da comensalidade diária, os momentos festivos são mais formais. Deve-se aceitar o
oferecido de qualquer forma; caso não seja do desejo do convidado consumir imediatamente,
pode solicitar bolsita plástica, uma novidade que o permite levar sua porção para casa. O
convidado pode ainda levar seu recipiente, sinalizando aos anfitriões que não têm a intenção
de recusar o que é oferecido, apenas não pode consumi-lo naquele momento. Nesse caso, a
pessoa deve ter alguma razão (doença ou mal-estar físico, ou haver recebido o convite
imediatamente após uma refeição) que justifique sua exclusão do momento em que todos
estarão comendo juntos. Não se pode simplesmente recusar o oferecido, sendo de grande
importância receber o que é dado (hay que recibir). Os andamarquinos jamais recusam
comida entre eles, e os forasteiros tampouco devem fazê-lo. Nas festas maiores, como a Festa
143
O parentesco por juramento é um tipo de parentesco cerimonial que ocorre entre pessoas muito próximas que
se congenian, que se compreendem, que desenvolvem uma afinidade no sentido de proximidade, que se llevan
muy bien, as quais não ligadas por laços de sangue ou afinidade, e decidem fazer um juramento de parentesco, e,
assim, passam a ser parentes, o que gera obrigações para ambas as partes
277
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
da Água, momentos em que se formam enormes rodas ou redondelas, com dezenas de
participantes que dançam intensamente variações de sapateados andinos, a bebida deve passar
por todos, devendo fazer a volta (dar la vuelta) e não saltar (no saltar) ninguém, ou, não
deixar ninguém de fora. Da mesma forma que um anfitrião pode zangar-se com alguém que
recusa sua comida, também pode incomodar-se com os convidados que não dançam e não
bebem, dizendo que está gastando em vão (por gusto) com músicos e bebidas.
Na compreensão dos andamarquinos, a recusa de comida e bebida é claramente um
sinônimo de desprecio, uma recusa à interação, à possibilidade de retribuição, ou, à
possibilidade de criação de relação. Em oposição, o ato de oferecer é visto como um gesto de
carinho. Se no se puede recusar, tampouco se pode deixar de oferecer, ou convidar. Toda
pessoa presente deve ser convidada para comer e para beber, é um costume que os
andamarquinos dizem ainda preservar diferentemente de outros pueblos da região onde
pessoas desconhecidas são excluídas. Nota-se uma ênfase numa perspectiva inclusiva,
segundo a qual todos estão incluídos sempre; sendo assim, recusar ou não receber significa
excluir-se, um movimento contrário ao movimento predominantemente desejado. Isso nos
remete à perspectiva que se tem do outro nos Andes, pois uma mesma pessoa ou grupo pode
ser vista ora como “nós”, ora como “outro(s)”. Esse pertencimento circunstancial e relativo da
pessoa, expressa a necessidade e a complementaridade do outro (ver Ortiz, 1993).
A penalidade máxima da comunidade é um bom exemplo do potencial transformador
em ‘de dentro’ e ‘de fora: aquele que cometer uma falta considerada gravíssima receberá uma
sanção proporcional: deixa de ser comunero, perdendo todos os seus direitos. Para ser um
comunero é preciso cadastrar-se na Directiva Comunal, e para que se tenha acesso a esse
direito é preciso ter vivido por dois anos na comunidade, ou seja, convivendo com outros
sobre o mesmo território, sob o mesmo céu, compartilhando a mesma água, alimentando-se
daquilo que essa terra dá. Primeiro, tornar-se parte da comunidade de fato, depois de direito,
status que formaliza os deveres para com a comunidade. Esse movimento de familiarização –
que possui seu inverso, à semelhança do que Overing (2006) observa sobre a prática cotidiana
de “fazer familiar” entre os Piaroa na Amazônia – possibilita que quase todos, segundo tais
condições, possam (des)tornar-se comunero.
278
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
A
IMPORTÂNCIA
DE
TRABALHAR
JUNTO
OU
DE
COMPARTILHAR
ESFORÇOS
Em Andamarca o trabalho emerge como forte valor, sendo o preguiçoso uma figura
muito negativa, ao contrário daquele que trabalha com sacrifício: Quem se sacrifica tem para
comer, tem suas terras, tem seus animais. Aquele que não tem é porque é preguiçoso. Cabe
destacar que o trabalho por excelência para os andamarquinos é a agricultura, cujas tarefas
exigem considerável esforço ou sacrifício, algo que segundo eles caracteriza e define o
“trabalho”. Assim, o pastoreio, que não requer tanto trabalho no sentido de dispêndio de
energia, não é considerado pelos andamarquinos um trabalho como plantar e colher.
As faenas são atividades coletivas de grande importância na organização da
comunidade. Através delas os comuneros realizam grandes empreendimentos em benefício de
um coletivo, seja da comunidade, de um bairro ou de um setor (agrícola ou de pastoreio).
Fazer faena é uma obrigação dos comuneros para com a comunidade e uma forma de obter
seus direitos: El que trabaja tiene derecho. Já aqueles que não cumprirem com suas
obrigações recebem sanções estipuladas coletivamente. A obrigação é por família, ou casal e
filhos, a menor unidade social. Um dos membros deve comparecer à faena em nome da
família, ou a família deve enviar alguém em seu lugar, geralmente um peão pago para isso. A
contrapartida das autoridades é proporcionar chicha, coca, bebida e cigarro àqueles que estão
trabalhando.
No início de uma faena cada pessoa recebe um punhado de folhas de coca e um
pouquinho de bebida e cigarro, elementos para pagar a Pachamama, apus e ancestrais.
Depois disso todos estão aptos a começar o trabalho, via de regra pesado, atividades que
demandam resistência, força e fôlego – como carregar areia de um local até outro para a
construção de um canal. As tarefas consideradas mais pesadas são destinadas aos homens, e
as menos pesadas para as mulheres. Nos intervalos uma senhora serve uma pequena porção
de uma bebida alcoólica a todos. É o momento da miskipa, de miskipar, verbo que significa
consumir coisas gostosas (coca, cigarro, trago-bebida alcóolica) que também dão força e
vigor para seguir trabalhando. Beber durante as faenas é algo esperado, sobretudo porque a
bebida é considerada como ânimo, substância que anima, estimula o trabalho, sendo
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
indispensável no trabalho coletivo. No entanto, embriagar-se até cair, impossibilitando o
trabalho, não é algo bem visto. Se esses momentos se transformarem em tomadera, o trabalho
não avança, sendo as festas os momentos propícios para as bebedeiras coletivas. Da mesma
forma, brincadeiras do tipo bromas rojas, literalmente brincadeiras vermelhas, ou melhor,
safadas, picantes, estão sempre presentes. Ao brincar o trabalho deixa de ser pesado, e não se
sente tanto o cansaço. Daí a importância do riso, da alegria durante o trabalho coletivo,
momento oportuno também para fastidiar alguém, para incomodar no sentido de zombar,
brincar. Por isso é importante uma faena repleta de participantes, para que o trabalho não se
torne pesado e logo termine, encarnando uma mistura de diversão e trabalho.
No dia a dia percebe-se que a divisão em partes é o que torna possível uma competição
positiva, semelhante àquela presente na dinâmica dos jogos esportivos, capaz de engendrar o
animo, como dizem os andamarquinos, para que certos coletivos possam realizar tarefas e
atividades pesadas. Sem esse princípio dinamizador, estimulante ou ‘animador’ seria difícil
realizar diversas atividades como abrir caminhos e estradas, construir e limpar canais de
irrigação. Como mostra o mito que Juan Ossio (2007) extrai do estudo de Salvador Palomino
(1984) sobre a comunidade de Sarhua, revelando o que o autor caracteriza como um traço das
cosmologias andinas. Quando todos eram iguais e não existiam ayllus, não havia “ânimo”
para trabalhar. Até que os homens pensaram em se opor uns aos outros, e a autoridade os
dividiu. Com a divisão foi introduzido um “estímulo para o trabalho, pois permitiu a
competição, que uns rivalizassem com os outros e que se acelerasse o trabalho” (Ossio, 2007;
p.47). As oposições desencadeiam uma dinâmica que estimula o ânimo entre os homens para
que as tarefas sejam efetuadas com prazer.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compartilhar substâncias, no caso comer junto, e compartilhar esforços, trabalhar
junto, é o que possibilita a criação de laços e manutenção das relações entre os
andamarquinos. O caráter quase festivo do trabalho coletivo, e os esforços compartilhados
envolvidos também na preparação das festas, sendo ambas as situações momentos em que há
dispêndio de esforços e sacrifícios que visam a melhoria/bem comum de todos, poderia nos
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
levar a dizer, inclusive, que esses são momentos em que a comunidade se (re)faz,
constituindo-se propriamente enquanto coletivo. O conjunto de equipes deve trabalhar de
forma sincronizada já que o resultado final depende de todos, assim como as danças possuem
sua sincronia. O momento de beber e de comer, assim como de trabalhar e de dançar, também
é um momento em que se engendra a construção do corpo do trabalhador, do campesino; em
que todos estão compondo seus corpos das mesmas substâncias, as quais são despendidas
coletivamente, seja dançando, seja trabalhando.
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282
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
“TEM UM ESPÍRITO QUE VIVE DENTRO DESSA PELE”:
FEITIÇARIA E DESENVOLVIMENTO EM TETE, MOÇAMBIQUE
Inácio Dias de Andrade
[email protected]
FAPESP
IFCH-Unicamp
Doutorando
Em Tete, província de região central de Moçambique, bilhões de dólares de multinacionais
brasileiras e estrangeiras foram investidos para a construção de um complexo de mineração. A
indústria mineira, os projetos montados pelas empresas, assim como os reparos às populações
desalojadas pelo empreendimento dialogam com o aparato para o desenvolvimento montado
pela cooperação internacional e com o ideal de replicar uma democracia ocidental em aldeias
rurais. Os novos modos de associação em Tete embatem-se com regras locais sobre
comensalidade e feitiçaria, instaurando uma cadeia de desentendimentos sobre o
desenvolvimento, sua origem e consequências.
Palvaras-Chave: Feitiçaria, desenvolvimento, cooperação internacional, comensalidade
CONTEXTUALIZAÇÃO
Em 2007, a Vale, empresa brasileira, assinou um acordo com o governo moçambicano
para a exploração de carvão em Moatize, cidade localizada a 30 km da cidade de Tete, capital
homônima da província, que possui reservas comprovadas de 6 bilhões de toneladas do
minério. Nos próximos dez anos, a Vale já se comprometeu a direcionar mais de 9 bilhões de
dólares a região em investimentos, como também vai construir uma nova linha férrea para o
escoamento das 28 milhões de toneladas de carvão que pretende extrair anualmente. A Vale é
a maior mineradora da região, mas outras empresas também possuem grandes investimentos
em Tete. Os projetos mineiros são os grandes responsáveis pelo boom da economia da
província, que desde liberalização econômica recebe milhares de dólares em programas de
desenvolvimento bancados pela cooperação internacional.
Tete é uma província localizada na região central de Moçambique, a cerca de 1 570
km de Maputo, a capital do país. A região ainda abriga a companhia carbonífera australiana
Rio Tinto e outras empresas extrativas, que abrem outras minas, prospectam outros territórios
e disputam os meios de escoamento do produto. Os planos das empresas incluem o
deslocamento e o reassentamento de diversas populações em novas casas e projetos de
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
desenvolvimento sócio-econômico para os reassentados. Duas populações já foram realojadas
e suas áreas estão sendo exploradas, todavia a exploração mal começou e milhares de outras
pessoas podem ser afetadas.
No entanto, a Vale não é a primeira grande tentativa de reconfiguração do território e
gerenciamento populacional na região. A empresa chega em meio a uma estrutura associativa
montada pela agenda política internacional, por esforços estatais e práticas e estratégias da
população local em meio a esse turbilhão. O projeto brasileiro dialoga com história centenária
de mineração na região, com o colonialismo português, findo em 1975, com 7 anos de guerra
de libertação, seguida por 16 anos de guerra civil, inserindo-se e reestruturando o sistema
internacional de desenvolvimento montado pela política econômica liberalizante que aportou
no país no pós-guerra.
No campo semântico, as concepções históricas acerca do desenvolvimento e as
discussões sobre os métodos necessários para atingi-lo estruturam um campo de disputas que
legitima essas intervenções. Com a chegada das agências internacionais na década de 80, a
ideia do desenvolvimento ganhou uma nova dinâmica local. Impulsionado pelo dinheiro
enviado e inúmeros projetos financiados, o desenvolvimento foi operacionalizado como uma
ideia estruturante na cena política local. Tanto os cooperantes estrangeiros, como os
beneficiários locais se viram envoltos numa rede tecnocrática regida pelo proselitismo da
modernização ocidental. Como campo simbólico privilegiado para interlocução, o
desenvolvimento tornou-se, não só, o eixo central na formação de novos agrupamentos
políticos, como um discurso em torno do qual seu público-alvo é obrigado a conformar suas
práticas. Entretanto, as concepções e categorias que correm na arena do desenvolvimento, da
sua origem à divisão de suas benesses, não são as mesmas e o campo de diálogo construído ao
seu redor é composto de desentendimentos e incongruências, que, ao invés de impossibilitar
sua implementação, transformaram-se em condição necessária para expansão de sua estrutura
e para o suposto sucesso de sua empreitada.
***
284
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Estava a caminho de N'kondezi, localidade a cerca de 130 km da Cidade de Tete,
capital da
província mais a leste de Moçambique. Iria conhecer uma das comunidade
atendidas pelo Programa Integrado de Combate à Pobreza através do Desenvolvimento Rural
(PICP), ONG local instalada dentro da Missão Salesiana de Moatize, com financiamento da
Jurgen Eine Welt, organização salesiana austríaca, que, por sua vez, recebe dinheiro da
agência de desenvolvimento de seu país.
Eu havia tomado a xapa, transporte público local, e tentava explicar o que estava
fazendo ali para uma plateia que queria saber “como era a vida num país desenvolvido”.
Depois de um tempo, um dos meus ouvintes disse-me que o tipo de desenvolvimento que eu
havia descrito, não seria possível ali na África. Eu havia tomado cuidado para deixar
devidamente ressaltado que também existia pobreza no Brasil e que a vida por lá não era tão
luxuosa como eles haviam visto nas novelas, mas por mais que tentasse, as insistentes
afirmações sobre a qualidade de vida dos brasileiros continuavam.
Por fim, um dos meus ouvintes, com um olhar baixo, contou o porque. Tempos atrás,
ele estava fazendo muito dinheiro com o seu negócio de revenda de chips de celular.
Comprava cada um por 10 meticais e revendia por 20 – uma margem de lucro de 70 centavos
de real – , mas já tinha as empresas estrangeiras como clientes e sua vida estava começando a
melhorar. No entanto, durante à noite, dois homens entraram na sua casa, e quando ele
acordou e flagrou os assaltantes, um deles deu-lhe com uma barra de ferro no meio do rosto,
nocauteando-o. “Estragou todos os meus dentes”, mostrou-me a boca vazia. “Levaram tudo o
que eu tinha. Aqui ninguém pode ver o outro melhorar de vida”, disse. “Os negros são desse
jeito, invejosos”. Com o semblante cansado, recostou na janela e pensou durante poucos
segundos: “Tem um espírito que vive aqui dentro” concluiu, melancolicamente, mostrando o
braço e sua cor.
Zé Nova, camponês de Mameme, outra localidade atendida pelo projeto, tentava
explicar um pouco mais, enquanto olhava para a cruz da igreja: “Não é Jesus branco? Os
negros e os brancos são iguais, o sangue dentro de nós é o mesmo” falava enquanto apontava
para o meu braço “mas a pele e o cérebro são diferentes. Deus nos fez diferente, fez o branco
inteligente.”
285
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Felipe, camponês que, como outros, busca um emprego nas muitas empresas que
aportaram recentemente no local, resumiu-me uma narrativa comum na região, usada
constantemente para explicar a natureza invejosa dos negros: “Quando Deus criou o mundo”,
conta, “ele chamou as três raças para conversar e saber o que elas queriam. O branco disse
que queria ter muitas ideias e Deus deu a inteligência para ele. Os indianos disseram que
queriam fazer comércio, e por isso tem muitas lojas. Mas o negro, quando Deus o chamou,
ficava apenas rindo e brincando, Deus, bravo com as brincadeiras, o mandou para a África e o
amaldiçoou.”
Os negros são associados a tradição e a inveja, assim como ao azar. O negro
amaldiçoado por Deus está fadado ao trabalho pesado da machamba e aos poderes ocultos da
feitiçaria, alimentados pela inveja. “Viver à maneira”, o estilo de vida destinado ao negro, está
oposto ao mundo do branco, do trabalho no escritório, longe do sol e da machamba, rodeado
por tecnologia e conforto, só ao alcance dos negros que ousam cruzar a linha oculta que
separa o mundo visível do invisível. Nesta visão, o desenvolvimento diferentemente do que
entende a metodologia internacional, não é produto de um caminho trilhado em conjunto pelo
cooperante e o beneficiário, ou de algo capaz de ser gerado de dentro das comunidades rurais.
Antes de tudo, sua ausência é um fardo a ser carregado por pessoas que estão silenciosamente
travando batalhas contra inveja e feitiçaria.
Para que entendamos a situação atual sobre o desenvolvimento no Baixo Zambeze,
província de Tete, sugiro situar as configurações atuais sobre a prática desenvolvimentista em
torno da experiência histórica dessas populações com os “vindouros”, zobuera em língua
local.
A “inveja” e a “feitiçaria” surgem na ruptura de regras de comensalidade local e, mais
do que isso, fornecem narrativas sobre a situação atual da região, bem como definem
estratégias para contorná-la. Proponho que a compreensão das transformações da “economia
moral” (Thompson, 1998 e Scott, 1976) constituída entre brancos e negros é essencial para
entendermos o papel que a “inveja” exerce nas estratégias que camponeses desenvolvem para
a manutenção do fluxo de bens ocidentais na região. As relações estabelecidas entre brancos e
negros e as obrigatoriedades atribuídas a cada grupo é linha mestra através da qual o
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
desenvolvimento é entendido, sendo que as dinâmicas atuais das práticas desenvolvimentista
só podem ser entendidas através de um balanço histórico da ocupação colonial do Baixo
Zambeze e das relações que foram constituídas entre colonizadores e colonizados.
A difícil ocupação do interior de Moçambique, em especial o Vale do Zambeze,
deveu-se aos diferentes acordos que os portugueses fizeram com as populações autóctones. Se
de um lado, tais acordos permitiram aos portugueses a conquista da terra, de outro,
fortaleceram determinadas linhagens locais. Para Isaacman (1972), o contato permitiu às
populações a “africanização” de estruturas portuguesas, ao trazer o colonialista para dentro
das obrigatoriedades das trocas locais, simbolizado de maneira mais clara, no casamento entre
os vindouros e uma ou mais mulheres da região. Assim, o português ganhou para si um papel
central na dinâmica das dádivas, além de transformar-se em mediador de certos conflitos
locais.
Essa dupla relação entre a inveja inerente ao negro, de um lado, e a tentativa de
incorporar o branco nas estruturas de trocas locais, de outro, são, para os habitantes do Baixo
Zambeze, as principais preocupações através das quais são organizadas as associações de
camponeses, essa estrutura exógena tão cara aos cooperantes estrangeiros. As associações são
fundamentais para a implementação de projetos de desenvolvimento, recebem os bens e
verbas da comunidade internacional e são a base de trabalho para os técnicos do
desenvolvimento. Constituem-se, assim, em comunidades políticas regradas pela ordem
jurídica weberiana.144
A população de Tete observa com curiosidade a obsessão incomum com a qual os
cooperantes organizam associações de camponeses para receber os projetos internacionais.
Todo o processo leva vários meses e diferentes pessoas vêm e vão com frequência para
garantir que tudo está funcionando bem. É, de fato, um enorme gasto de energia. Para a
144 “(...) para o exercício e a ameaça desta coação, existe, na comunidade política plenamente desenvolvida, um
sistema de ordem casuística, as quais se costuma atribuir aquela legitimidade específica: a 'ordem jurídica', da
qual a única normal é considerada hoje a comunidade política, porque de fato tem usurpado, em regra, o
monopólio de impor, mediante coação física, a observação daquela ordem. Esta preeminência da 'ordem jurídica'
é o resultado hoje de um processo de desenvolvimento muito lento, durante o qual as outra comunidades,
portadoras de poderes coativos próprios, sob pressão das mudanças econômicas e organizatórias, perderam seu
poder sobre o indivíduo e se dissolveram ou, então, subjugadas pela ação da comunidade política, viram seu
poder coativo por ela limitado ou atribuído.” (Weber, 2004, 157)
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
comunidade internacional, esta abordagem incentiva o trabalho coletivo e solidário e fornece
bases práticas para o desenvolvimento político de uma democracia jovem como a
moçambicana.
O fenômeno associativo é parte de um projeto de crescente racionalização da esfera
pública, concebido como um dos mecanismos de controle democráticos propalados pelos
policymakers da cooperação internacional. Por de trás desse discurso se esconde a clássica
dicotomia modernidade/tradição relida por meio da ideia de transparência. A questão da
transparência, no âmbito da cooperação, é um dos eixos principais pelo qual os modernos
definem e discutem a sociedade em que vivem em oposição ao mundo da “ignorância” e
“tradição” (West e Sanders, 2003). Nessa visão, um mundo no qual as ações humanas e
decisões políticas são transparentes é um mundo submisso aos ditames da razão, no qual todas
as decisões são validadas pela discussão pública e controlada pelos interesses comuns de seus
membros.145
Para os cooperantes, o desenvolvimento da agricultura deveria ser estimulada pelo
“empoderamento” da sociedade civil em seu nível local, através da livre associação, do
empreendedorismo e da produção individualizada. Assim, a área rural do país foi tomada por
cursos de capacitação sobre associativismo. Inúmeros grupos foram formados, cada um com
seu presidente, vice-presidente e secretários, que deveriam convocar assembleias gerais e
eleger democraticamente seus representantes. O financiamento internacional em forma de
equipamentos, insumos, cursos e transportes eram (e ainda são) entregues exclusivamente a
associações nacionais devidamente legalizadas nos parâmetros das novas leis do país,
formuladas especificamente para receber os recursos externos.
Paradoxalmente, apesar desses investimentos pesados, o mercado livre, após trinta
anos de ajuda internacional, não foi capaz de aumentar substancialmente a produção agrícola,
muito menos a renda dos camponeses, no entanto o número de associações não parou de
145 O ideal da transparência surge através da releitura do mundo moderno sobre si próprio, como colocaria
Bourdieu, o accountability é uma expressão de um ideal advindo de um campo de expectativas objetivas, de
previsibilidade e calculabilidade, que pressupõe a existência de um sujeito racional construído através de
conhecimentos e práticas transmitidas por meio de um ethos específico (Bourdieu, 1979).
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
crescer e a cada ano novos grupos são criados, transformando-os em atores políticos
indispensáveis à cena local. Estaríamos diante de uma descentralização democrática que,
mesmo com a falência do modelo econômico, pôde sobreviver após anos sendo sufocada por
guerras e décadas de regime socialista? Ou o suposto reavivamento democrático deita raízes
no emaranhado de lógicas e estruturas locais mais profundas construídas nos sucessivos
encontros históricos com estruturas e discursos estrangeiros sobre suas condições?
As associações (e, de modo mais geral, o fenômeno do associativismo) possuem três
níveis ideais de entendimento e significação. 1) De uma forma mais geral, para as estruturas
internacionais, e em alguma medida para o governo moçambicano, as associações são
ferramentas para a disseminação da democracia, da cidadania e da livre iniciativa; ainda mais,
dentro do paradigma da transparência, são garantias burocráticas para o bom uso do
financiamento e para as prestação de contas. Também devido a isso, os grandes projetos,
conseguem identificar um interlocutor político claro, embora não único, com quem podem
negociar e, sobretudo, que pode ser indenizado e deslocado. 2) Em um segundo patamar, para
as ONGs nacionais, movimentos sociais e técnicos moçambicanos, ou seja para os
mediadores entre as estruturas estrangeiras e as associações locais formadas em cada vilarejo,
a chamada “sociedade civil organizada”, os membros associados são essenciais para o
fortalecimento dos camponeses como movimento, além de garantirem pagamentos de
mensalidades, segurança institucional e caminhos pelos quais o dinheiro internacional possa
fluir. Por questão de espaço não tratarei dessa questão aqui. 3) O terceiro nível é,
fundamentalmente, local. Nesse caso, o associativismo lida com as alianças e os perigos das
relações sociais. Aqui o diálogo democrático e a partilha dos bens da comunidade
internacional são apenas uma pequena parte da negociação e relações envolvidas na
concepção do que seria essa outra forma de pertencimento. É nesse nível que pretendo me
deter agora.
***
Ao contrário do que apregoa a cooperação internacional, a ideia de transparência causa
certo temor em Tete. Como me disse Zé Nova, presidente do comitê de gestão animal da
Associação de Mameme, organização coordenada pelo PICP, uma pessoa precavida não deve
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
expor seus bens ao escrutínio público. Existe muita “inveja por aí”, disse-me. Contava que
não quis construir sua casa perto dos seus irmãos. “Morar junto da família desperta a inveja”,
ponderou. “As pessoas sempre ficam a olhar o que você está comendo”. Perguntei se ocorria o
mesmo na associação, ele consentiu em silêncio. Mais tarde, como se tivesse ainda pensando
sobre o assunto, afirmou: “Nós somos assim mesmo”. Deduzi que fazia referência a sua cor e
segui calado, esperando sua conclusão. “Os brancos se ajudam, mas os negros são invejosos.”
A dinâmica dentro de uma associação segue um jogo perigoso em que os membros
ponderam entre aquilo que devem mostrar e a necessidade de esconder o que pode ser objeto
de inveja e, consequentemente, motivo para alguma feitiçaria. A cooperação internacional
entende parte desse jogo de poder, mas relê esses eventos como uma versão tribal de
nepotismo e corrupção. Muitas associações já acabaram com acusações de feitiçaria e
enriquecimento ilícito e alguns técnicos internacionais com os quais conversei explicam que a
saída é envolver mais de uma família na criação de associações e fazer com que elas se
tornem espécies de fiscais, dividindo as benesses entre si e evitando que alguém receba mais
que o resto.
A tentativa de replicar órgãos ocidentais em África e a obsessão por prestação de
contas das burocracias modernas, tornaram as associações de camponeses interlocutores quase
que naturais das empresas estrangeiras. E em nome da transparência, algumas delas
assumiram um papel central quando as companhias mineiras, entre elas a Vale e a Rio Tinto,
buscaram indenizar os camponeses desalojados pelos empreendimentos.
Tanto a Vale como a Rio Tinto deslocaram um enorme contingente populacional que
gira em torno de 2 mil famílias até o momento. Os dois reassentamentos construídos a cerca
de 40km das residências originais tiveram diferenças significativas, tanto naquilo que tange a
construção das casas e do espaço físico, como no que diz respeito ao processo de negociação
com as associações e moradores da localidade.
A Rio Tinto concluiu a construção das casas de Capanga, bairro de Moatize, no ano
passado. No total, 450 famílias foram deslocadas para o bairro de Maladzi, a 3km do
reassentamento da Vale. A Rio Tinto concordou em indenizar as famílias em 119 mil
290
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
meticais146 pelas machambas familiares e construiu casas melhoradas, a partir da experiência
anterior da empresa brasileira. A mineradora australiana negou-se a passar o valor das
indenizações ao governo, suspeito de ter desviado parte do dinheiro das indenizações entregue
pela Vale e repassou o montante a população por meio da associação de camponeses locais,
negando-se a pagar indenizações individuais. Estaria deste modo resguardando seus interesses
ao negociar com uma instituição juridicamente reconhecida pelo estado moçambicano, além
de, em seu entendimento, conferir transparência ao processo. Além do mais, a associação
estava acima de qualquer suspeita, tendo trabalhado com diferentes projetos de
desenvolvimento sem qualquer problema.
Embora as indenizações da área tenham sido repassadas integralmente para a
associação, os 24 membros, por estarem juridicamente instituídos e formarem um grupo
articulado, conseguiram que os valores de suas machambas fossem pagos separadamente dos
demais e depositados num fundo comum. Além disso, por também disporem de uma
administração e uma machamba coletiva equipada com bombas d'água receberam o valor
correspondente a esses itens, que deveria ser dividido entre seus membros.
A Rio Tinto tentou por meio dessas manobras resguarda-se e evitar manifestações, no
entanto não sobraram acusações de fraude e corrupção e o clima entre população e empresa
não é dos melhores. Segundo o presidente da associação, o governo e a empresa não
definiram os limites das machambas indenizadas, o que impossibilitaria a divisão correta do
dinheiro dos moradores não-membros. Já o dinheiro da associação depositado separadamente
teria sido divido, desse modo os membros possuem, além das casas, o dinheiro que lhes
pertence em mãos, ficando o valor reservado ao restante da população guardado no banco à
espera de sua justa divisão. No entanto, não foi assim que restante das pessoas leram o
acontecimento.
Os rumores dão conta que após o pagamento das indenizações, o presidente, o vice e o
tesoureiro da associação compraram carros e casas, sendo que eu mesmo vi dois de seus
carros a circular pela cidade. Alguns técnicos moçambicanos viram os associados dividindo
dinheiro das indenizações em sua sede e acusam-nos de “comerem sozinho” tudo que foi
146 Cerca de 8,200 reais.
291
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
pago, a população de Maladzi, persegue o presidente, que já não pode dormir na sua casa.
Toda essa história é pública e bem conhecida. De um lado os associados defendem-se
afirmando que ainda possuem 11 milhões de meticais em conta bancária, esperando apenas as
diretrizes da empresa ou do governo, enquanto a população afirma categoricamente que eles
roubaram o dinheiro.
Mas o enriquecimento rápido não tem explicações apenas materiais, há algo obscuro
nas relações associativas que diz respeito aos perigos da aliança em África. Embora existam
claros indícios de desvio de dinheiro, o enriquecimento é um sinal de feitiçaria, a ascensão
social indica uma perigosa quebra das relações comensais e é sinal inegável do perigoso
conhecimento do mundo invisível que o feiticeiro possui. Após flagrar associados dividindo
dinheiro, um dos técnicos ainda afirmou: “Mas essas pessoas de Capanga estão a comprar
carros, não sei se estão a se enfeitiçar”. Como colocaria Evans-Pritchard (2005), acerca dos
Azande, seus telhados e infortúnios, os moçambicanos sabem que as pessoas compraram
carros porque supostamente desviaram o dinheiro, mas ainda existe a necessidade de explicar
porque aqueles feiticeiros conseguiram acesso ao dinheiro daquela forma. A questão debatida
nos estudos africanistas atualmente é como após anos e anos de discursos modernizantes em
África, após milhões de dólares e incontáveis horas gastas em cursos de capacitação sobre o
associativismo e democracia, o discursos da feitiçaria ressurge numa espécie de “retradicionalização da modernidade” (Geschiere, 2000).
CONCLUSÃO
Ao contrário do que os cooperantes imaginam, em Tete, as associações não podem
cumprir seu propósito de desenvolver paulatinamente a região através da crescente
racionalização do espaço público por meio de uma razão comunicativa (Habermas, 1984). A
meu ver, isso se dá essencialmente por dois fatores.
Em primeiro lugar, as associações assumiram um papel específico na economia moral
da região, a mesma que destina ao negro uma vida de sofrimento na machamba. As
associações, nessa visão, cumprem o papel antes reservado ao casamento entre colonizador e
colonizadas: o de conectar o mundo branco desenvolvido à realidade local. Nessa confusão de
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
termos origina-se um grande problema para a cooperação internacional. Uma das maiores
reclamações entre os cooperantes é dificuldade de tornar os beneficiários em “agentes do
próprio desenvolvimento”, por assim dizer. A quase totalidade dos estrangeiros tem que lidar
com incessantes pedidos dos camponeses. Apesar de todas horas gastas em curso de
empreendedorismo e livre inciativa para que o lucro conseguido pelo trabalho dos associados
sejam revertidos em favor da prosperidade local, a ideia de que o desenvolvimento só pode
ser alcançado através da benevolência do branco e sua dádiva ou por meio dos conhecimento
oculto da feitiçaria é dificilmente contornada.
Assim, apesar de cada projeto ter uma duração três anos, com o passar do tempo, os
associados desenvolveram estratégias para manter o fluxo de bens ocidentais inalterado. A
maioria das associações já fez parte de inúmeros projetos de desenvolvimento rural. Todos
com metodologias praticamente iguais. Muitas associações fazem parte de mais de um projeto
ao mesmo tempo e quase todos membros já sabem cultivar de acordo com as mais modernas
técnicas ensinadas pela cooperação internacional. Muito embora, essas técnicas sejam
dificilmente replicáveis por uma unidade familiar, devido ao tamanho da área plantada e mão
de obra disponível, os camponeses não só desenvolveram meios para convencer os técnicos
de projetos em andamento que as medidas implementadas estão funcionando, como também
conseguem persuadir novos projetos que sua execução é imprescindível. Todo essa
prestidigitação tem como objetivo assegurar o fluxo de sementes, insumos, animais e uma
série de bens trazido pelos zobueras.
Em segundo lugar, as associações não podem cumprir seu papel de trazer à luz todos
as relações e bens da comunidade, sob pena de implodir sua própria estrutura, como
aconteceu no caso da Rio Tinto. Grande parte das negociações e diálogos das aldeias se baseia
num jogo entre aquilo que pode ser mostrado e dito e no que deve ficar oculto, de modo a
evitar olhares invejosos e feiticeiros invisíveis. Assim, se existe uma tendência aglutinadora
que fortalece os laços da associação, na medida em que ela é a porta de entrada para o
desenvolvimento dos brancos, existe uma força contrária que tendem a desfazer o grupo assim
que os projetos minguam. Sem novos projetos, as regras de comensalidade voltam ao
293
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
universo do parentesco e o jogo entre mostrar, dividir e esconder o que se come entre os
membros da parentela retornam.
Em Moatize, a Fos-Bélgica, ONG de desenvolvimento rural, após três de anos de
implementação de um projeto cultivo com tração animal galgou resultados positivos. No
início do projeto, a Fos montou associações e distribuiu gado aos membros, assegurando que,
num sistema de rotatividade, todos fossem contemplados com a cria dos animais e pudessem
aproveitar das facilidades de plantar com um arado. Todos os membros assistiram cursos de
capacitação sobre empreendedorismo, livre inciativa e fortalecimento institucional. Durante
esses três anos, aprenderam como localizar seus problemas e pontos fracos e planificar
estratégias para resolvê-los de acordo com os resultados que pretendiam atingir. Receberam
seus animais e acompanharam atentamente as explicações técnicas em machambas-modelos.
No fim do período financiado, os técnicos partiram atrás de novos projetos. Menos de um ano
depois a associação foi desfeita e os animais distribuídos em torno da linhagem paterna de
uma das famílias. Tudo isso em meio a acusações de feitiçaria e enriquecimento
Ao que tudo indica, ao fim do financiamento, as associações montadas para aproveitar
a chegada dos animais em Tete, desfizeram-se e os fluxos do parentesco local seguiram sua
lógica acusatória, fortalecida pela inserção de novos bens no sistema de reciprocidade. A
estrutura burocrática fiscalizadora e os curso oferecidos de pouco ou de nada adiantaram.
No entanto, a ideia do desenvolvimento, ao colocar em contato duas estruturas
diferentes e contribuir para a falta de entendimento entre aquilo que constitui os benefícios e
perigos do pertencimento, abre um espaço de reestruturação simbólica e prática para
populações vivendo a margem do desenvolvimentismo. A incapacidade de entendimento e
tradução entre duas estruturas colocadas em contato pelo campo simbólico do
desenvolvimento oferece uma margem de manobra para camponeses que buscam fugir
momentaneamente de um destino inescapável.
A obsessão ocidental por transparência e accountability e a tentativa dos habitantes do
Baixo Zambeze em incorporar o branco no sistema de trocas local construído no encontro
colonial foram unidas no campo discursivo do desenvolvimento e fizeram com que as áreas
rurais de Moçambique fosse inundadas com associações, juntando brancos e negros numa
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
empreitada comum com objetivos diverso ocultos. Nesse sentido, a proliferação de
associações e Ongs, antes de ser fruto do sucesso da implementação da democracia em
Moçambique como propalado pela comunidade internacional, nasce da incapacidade de
comunicação entre as estruturas estrangeiras e a realidade local.
BIBLIOGRAFIA
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295
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
FAMÍLIA 2.0: VIVÊNCIAS LABORAIS MILITANTES AFETIVAS E
REDES DE PERTENCIMENTO
André Peralta Grillo
[email protected]
UFJF
Mestre
Este trabalho tem por objeto as novas vivências de reciprocidade e identidade em redes
militante afetivo laborais, tomando como caso a rede “Circuito Fora do Eixo”. Para tanto,
parto da análise das implicações e potencialidades (levando em conta as problemáticas e
prejuízos) das mutações contemporâneas (tendenciais) no mundo do trabalho, e a
reapropriação hermenêutica da “teoria da dádiva” como paradigma para o estudo do tecer
destas redes.
Palavras-Chave: Redes militante afetivo laborais; teoria da dádiva; Circuito Fora do Eixo
***
O artigo explora as novas possibilidades de pertencimento coletivo como contraponto
à instabilidade profissional e existencial contemporânea. As mudanças no mundo do trabalho
(no capitalismo como um todo) observadas globalmente nas últimas décadas (valorização da
mobilidade, da flexibilidade, do pleno envolvimento do ser, por um lado, e aumento da
instabilidade, da insegurança e da precariedade, por outro) propiciam o surgimento de novas
formas de coletividade baseadas em redes laborais e militantes de solidariedade, de trabalho e
de vida (e da indistinção de ambas). Redes e coletivos, ao fortalecer os elos afetivos, a
reciprocidade e a dádiva, podem sedimentar a identidade e o pertencimento, e mesmo a autocompreensão como uma família, que fortalece a inserção no mundo e propicia segurança
existencial, emotiva e profissional, ante um mundo fluído, em frenético movimento,
funcionando como uma rede de proteção e estímulo. Após caracterizar as mudanças
(tendenciais) no mundo do trabalho, apresento, a partir da teoria da dádiva de Mauss, algumas
potencialidades das novas redes afetivas e laborais, para além do mero fortalecimento do
capital social e estruturando relações fortes de pertencimento, tendo por base estudo sobre a
rede de militância laboral “Circuito Fora do Eixo”, a partir de vivência etnográfica e
netnográfica.
I
296
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Atualmente é difícil negar que há uma mudança substantiva na vida, na sociabilidade e
no trabalho contemporâneo. Novas tecnologias de informação e comunicação, ciberespaço,
cibercultura, tecnologias em rede, organizações sócio-políticas e empresariais em rede,
avanço na automação, ampliação do setor de serviços, diminuição proporcional da fatia do
trabalhador industrial, flexibilização de hierarquias e de leis trabalhistas, luta por
reconhecimento de minorias e/ou grupos marginalizados, desvelamento de novos modelos e
dinâmicas de família e parentesco, todos estes são elementos da mesma trama e do mesmo
processo.
Em outros artigos recentes (GRILLO 2014a, 2014b) me debrucei sobre estas
mudanças, com ênfase nas mutações no mundo do trabalho, nas implicações sociais e
culturais das novas tecnologias, na relação destas com os novos movimentos sociais, e de
todas estas esferas com a produção cultural contemporânea. A partir do mesmo pano de fundo
teórico, exploro aqui algo ao qual ainda não me detive, os novos modelos de família
imbricados à nova sociabilidade no trabalho, dando ênfase em uma teoria à qual trabalhei
apenas de passagem, a teoria da dádiva.
As mudanças mencionadas acima são muito claras. Silvio Camargo (2011) faz uma
ampla revisão bibliográfica sobre autores e correntes que tematizam essas transformações.
Seja com exaltação e otimismo, vendo um mundo de novas possibilidades e um novo estágio
do desenvolvimento humano (como em Manuel Castells (1999) e, acrescentaria eu, Pierre
Lévy (1999), além da corrente do chamado “capitalismo cognitivo” que se desenvolve a partir
da obra de Antonio Negri (NEGRI e HARDT, 2001), passando por Maurizo Lazzarato (2006)
e chegando, no Brasil, a Giuseppe Cocco (NEGRI e COCCO, 2005)), seja com certa
preocupação e pessimismo, vendo um recrudescimento e aperfeiçoamento do modo capitalista
de exploração e exercício de poder, como na corrente do chamado “capitalismo tardio”, na
qual se inserem o primeiro Habermas e o próprio Camargo. Existem nuances entre os
extremos, como na obra de Richard Sennet (2008, 2012). Comum a quase todos esses autores
e correntes, segundo Camargo, seria sua gravitação em torno do conceito de “Trabalho
Imaterial”.
297
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
A talvez principal e mais conhecida referência a este conceito está na obra homônima
de André Gorz (2005). Esta obra tardia apresenta, segundo Camargo (2011) uma revisão de
algumas de suas posições, podendo ser chamada, segundo ele, de uma terceira fase de seu
pensamento. Em meu entender, há uma evolução clara no pensamento de Gorz (1987, 2005,
2007), uma complementaridade e sim, talvez, certa radicalização de alguns pontos. Após
algumas décadas se dedicando ao estudo do sindicalismo e trabalhismo, um momento
dedicado à ecologia política, Gorz adentra em uma discussão polêmica ao afirmar um “adeus
ao proletatiado” (1987) como classe perigosa e potencialmente revolucionária, desde aquele
momento apresentando um olhar arguto sobre as transformações em curso. Para não me
estender aqui, irei destacar, a partir de Gorz (2005), três dimensões implicadas na ascensão do
trabalho imaterial.
A primeira se refere a impossibilidade, sob a lógica do trabalho imaterial, de se
mensurar o tempo de trabalho dispendido na produção de uma mercadoria qualquer (mesmo
em termos de valor social médio, ou trabalho social), já que o que há de simbólico, imaterial,
se torna o elemento determinante do valor (como em uma marca de calçados, por ex.), ai
incluídos a preponderância do marketing, do branding, da propaganda, do design, etc.
A segunda se refere a organização do processo produtivo, com a flexibilização de
hierarquias, horários, leis trabalhistas, maior autonomia e incentivo à participação e
criatividade dos trabalhadores, controle por metas, etc.
A terceira, e é esta que me interessa mais diretamente aqui, trata do novo perfil do
trabalhador exigido e valorizado pelo “novo” mundo do trabalho. Passa a se valorizar mais o
saber, advindo da experiência, do cotidiano, da bagagem cultural, das atividades sociais e
lúdicas que estimulam as habilidades de comunicação e cooperação, ante o conhecimento,
objetivo, formal, transferível e atestado por diplomas.
No intuito de me aprofundar no entendimento destas mudanças, tenho apresentado
(GRILLO 2014a, 2014b) dois elementos como os mais relevantes (dentro do meu enfoque)
para a compreensão deste novo mundo do trabalho e da vida, cada um implicando outro nível
de si que se desdobra. São eles: as novas (ou contemporâneas) tecnologias de informação e
comunicação (TIC’s) e o desdobramento destas na formação do ciberespaço e da cibercultura,
298
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
com suas implicações culturais, sociais e políticas; e a influência do movimento de
Contracultura dos anos 60, momento de auge da crítica do capitalismo, como determinante
para a reconfiguração da sociedade civil que se cristaliza na ascensão do que alguns autores
chamam de “Novos Movimentos Sociais” (NMS). NTIC’s e NMS’s, Cibercultura e
Contracultura.
II
Uma série de estudos recentes tem retomado a “teoria da dádiva” de Marcel Mauss
(2003) para explicar fenômenos e dinâmicas do mundo contemporâneo147. Há, inclusive,
desde o começo dos anos 80, uma corrente que defende um novo paradigma para as ciências
sociais baseado na teoria da dádiva e na obra de Mauss, o “movimento anti-utilitarista nas
ciências sociais” (M.A.U.S.S.148).
Mauss analisa em seu ensaio uma série de etnografias de povos ditos primitivos, assim
como o direito de algumas civilizações e economias antigas. O conceito central aqui é o de
reciprocidade. As trocas, seja de presentes, objetos, talismãs, mulheres, crianças, banquetes,
se baseiam nessa lógica. A dádiva é formada pelo dar, receber e retribuir, um ciclo que, após
iniciado, assume caráter de obrigatoriedade, sob risco de guerra. Através da dádiva, se
formam laços, alianças, obrigações e deveres mútuos (no caso das relações de parentesco por
ex.). Pode ser também uma forma de afirmação de poder, do lugar do clã (representado pelo
chefe) nas hierarquias tribais, como no ritual do potlach, em que sacrifícios de bens e oferta
de presentes “exorbitantes” servem para reafirmar as relações de poder e obrigações mútuas.
Godbout (1999) se propõe a retomar a exposição da dádiva como categoria explicativa
exatamente onde Mauss teria parado, nos limiares da modernidade. Segundo Godbout, Mauss
se mostra tímido em suas eventuais sugestões de aplicabilidade da categoria ao mundo
moderno, não explorando seu pleno potencial. De fato, dentro do movimento M.A.U.S.S., o
propósito é construir um terceiro paradigma de análise do social, superando a unilateralidade
147
Sobre uma série de contribuições nesta linha, ver o dossiê da revista “Sociologias” sobre sociologia da dádiva.
Renata Apgaua (2004) segue a mesma linha ao analisar o desenvolvimento do sistema Linux.
148
Movimento centrado no periódico “Jornal do M.A.U.S.S.”, com versões francesa e ibero-latino americana.
Ver também Alain Caillé (2002) e Jaques Goudbout (1999).
299
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
tanto do paradigma que foca na lógica do mercado a explicação do social (com seu correlato
do homem sempre calculista em suas escolhas), quanto do paradigma que foca no Estado e na
política (com seu correlato do homem que age sempre sob a lógica do dever e do acúmulo de
poder). Segundo a corrente do M.A.U.S.S., a idéia é demonstrar que antes da subjetividade
vem a inter-subjetividade149, e não o contrário, ou seja, a formação da personalidade única
(pilar da nossa auto-compreensão moderna), mesmo em sua expressão calculista e/ou ciosa de
poder, se dá a partir da rede intersubjetiva em que o indivíduo está inserido. O vínculo e as
relações primárias continuam fundamentais e determinantes, e é a partir deles que o indivíduo
se insere e se relaciona no ambiente de relações secundárias (mercado e Estado).
Godbout demonstra que a dificuldade de se pensar na dádiva como categoria
explicativa também do mundo moderno se dá pelos mal-entendidos que a noção tem no senso
comum. A natureza contraditória da dáviva (como uma gratuidade obrigatória) é estranha as
nossas categorias dicotomias e excludentes comuns de pensamento. Assim, ou a ação é vista
como totalmente interesseira e calculista, ou totalmente altruísta e gratuita, e esta última é que
costumamos identificar como sendo típica da dádiva. Daí a dificuldade de crer na sua
realidade, já que é difícil conceber uma ação totalmente altruísta e desinteressada.
Mas a dádiva não é nem só interesse, nem só altruísmo. É ambos. O importante na
dádiva é o vínculo150, mais do que o que é trocado151. A troca e os rituais de troca, seja nas
sociedades ditas “primitivas”, seja nas modernas, são uma oportunidade de estabelecer e
fortalecer laços, vínculos, alianças, assim como parcerias e redes: “[...] basta pensar que, na
dádiva, o bem circula a serviço dos vínculos. Qualifiquemos de dádiva qualquer prestação de
bem ou de serviço, sem garantia de retorno, com vistas a criar, alimentar ou recriar os
vínculos sociais entre as pessoas.” (p.29)
III
149
Essa linha se aproxima do pensamento de Norbert Elias (1994), em sua desconstrução da falsa oposição
entre sociedade e indivíduo.
150
Godbout chega a falar em “valor de vínculo”, para além do valor de uso ou de troca.
151
O que já era teorizado por Lévi-Strauss em seu resgate da teoria da dádiva e da noção de reciprocidade de
Mauss para explicar o que chama de “sistemas de torça generalizada”, e os sistemas de parentesco dentro destes
(Lévi-Strauss, 2009).
300
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
A rede “Circuito Fora do Eixo” é ao mesmo tempo um circuito cultural e um novo tipo de
movimento social. Pauta-se no amplo uso das NTIC, em um engajamento militante, na
construção de redes de reciprocidade, na defesa de um estilo de vida alternativo e de idéias
inovadoras e progressistas. Cibercultura, engajamento, reciprocidade, afetividade, se mesclam
em uma rede de proteção ontológica ante a fluidez e a incerteza de sua atividade e de uma
inserção precária no mundo do trabalho.
Em outros artigos esbocei um histórico sucinto do Fora do Eixo (GRILLO, 2014a) e
defini a rede como uma rede de militância laboral (GRILLO, 2014b), na qual trabalho e
militância
são
instâncias
indistintas,
tendo
como
horizonte
os
desdobramentos
contemporâneos que erodem as fronteiras entre tempo de trabalho e tempo de lazer (sob a
lógica do trabalho imaterial). Neste artigo, desenvolvo a compreensão de um outro aspecto da
rede, entendo-a também como uma rede afetivo-laboral, pautada no que chamam de
“sistematização da brodagem”, ou seja, na construção e fortalecimento de laços e redes de
reciprocidade, nas quais se trocam experiências, conselhos, esporros, serviços, hospedagem,
produções e afetos. Os encontros e vivências “offline” reafirmam e fortalecem os laços,
mantidos pela constante articulação e contato “online”, no qual o apoio (emocional e laboral),
a identidade, a organização das atividades e o “valor de vínculo” têm um suporte constante
Concluo com a confluência destes dois pretensiosos esforços de construção conceitual,
propondo a compreensão da rede Fora do Eixo como um grande laboratório no qual
desembocam uma série de processos e tendências contemporâneas, formando uma rede de
“militância afetivo-laboral”, que, em sua vivência cotidiana e na indistinção entre trabalho e
lazer, se afirma como uma família, um novo tipo de família, uma família 2.0.
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Alegre, ano 10, n° 21.
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301
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Janeiro: Record.
302
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
É O CORPO QUE SOFRE: OS CAMINHOS DA DOR NA PRODUÇÃO
DE PARENTESCO EM UMA COLÔNIA ALEMÃ DA ENCOSTA DA
SERRA, RS
Everton de Oliveira
[email protected]
CNPq
PPGCSo-UNICAMP
Doutorando
Neste trabalho busco analisar o modo pelo qual a construção do sofrimento se caracteriza
como o eixo principal de produção e problematização do parentesco em uma colônia alemã.
Para tanto, parto de meu trabalho de campo realizado entre 2011 e 2013 em um município que
aqui chamo de São Martinho, de pouco mais de 6.000 habitantes, situado na região da Encosta
da Serra, RS. A aposta deste artigo é que o sofrimento, relacionado especialmente ao ato de
trabalhar, mais do que um estado a ser superado, formava e informava sobre grupos
aparentados, em dois sentidos: em primeiro lugar, permitia a circulação de apreciações
morais, fundamentais nas distinções e avaliações de si; em segundo lugar, permitia a
formação correlata de pessoas, estórias e lugares na dor corporificada pela qual se construíam
as narrativas constitutivas de um passado singular, que moldava e se moldava ao cotidiano.
Palavras-chave: Encosta da Serra – Parentesco – Sofrimento
APRESENTAÇÃO
Neste trabalho busco analisar o modo pelo qual a construção do sofrimento se
caracteriza como o eixo principal de produção e problematização do parentesco em uma
colônia alemã da Encosta da Serra – São Martinho152, município com pouco mais de 6.000
habitantes, vizinho de Germana, maior município da região, com cerca de 27.000 habitantes
(IBGE, 2010). Pelo escopo do artigo e por suas dimensões, privilegiarei um caso que
acompanhei durante todas as minhas visitas a São Martinho, que não tomarei enquanto objeto
de estudo, mas enquanto objeto heurístico para a problematização analítica – o caso de
Rubens, de sua história e de sua extensão, medida pelas marcas do trabalho na roça153 de sua
152
Todos os nomes – e sobrenomes – de pessoas, lugares, cidades ou instituições, assim como as datas oficiais,
diretamente relacionadas à pesquisa, foram alterados. A alteração procura evitar qualquer tom denunciativo ou
jornalístico a este texto, assim como busca preservar a identidade de meus colaboradores de pesquisa, sem os
quais este trabalho não poderia ser escrito.
153
As palavras em itálico são, em sua totalidade, categorias sociais próprias a São Martinho. Grande parte destas
categorias estrutura a análise etnográfica e, por isso, serão desenvolvidas e problematizadas no próprio corpo do
texto.
303
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
família. Do mesmo modo, centrarei a análise o tanto quanto possível na problematização do
parentesco e dos agrupamentos que se formam a partir do par trabalho/sofrimento, não sem
referências, quando necessário, aos problemas correlatos – já notando que correlação é uma
categoria fundamental em uma etnografia da Encosta da Serra. Do caso de Rubens, abrirei a
etnografia para a singularidade da ideia de comum em São Martinho, a partir do modo como o
sofrimento direcionado informava e formava estrategicamente a comunidade de alemães – ela
própria composta de famílias, casas e parentes. Encerrarei trazendo para a discussão o modo
pelos quais as fronteiras e os limites da comunidade de São Martinho efetuavam-se
cotidianamente, o que não podia ser apreendido se não no modo diferenciado de produção de
cada alemão e de cada alemoa. Minha aposta é que comunidade abriga privilegiadamente os
caminhos pelos quais o cotidiano se realiza, principalmente a partir das narrativas que
oferecem suas fronteiras, seus limites e sua trama relacional. A substância, aquilo que
perpassa e oferece estes caminhos, é a dor e o sofrimento, comumente associados à principal
atividade para os alemães, o trabalho. Aquele que trabalha se judia, e aquele que já é judiado
pela vida, é porque não deixou de trabalhar. Por fim, o que se forma por estes caminhos são
coisas muito diversas: um passado mais ou menos organizado – tempo das famílias pioneiras
–; lugares de referência – a comunidade, as casas, e as roças –; agrupamentos privilegiados –
família e parentes –; singularidades – o alemão, a alemoa, os guris e os xwarts –; e uma
moral estratégica – o comedimento, a disposição e a religião. Para a sua definição, todas essas
categorias oferecem aberturas para as demais.
OS CALOS DA MÃO, AS DORES DA MÃE
Em meados de 2011 conheci Rubens. Como toda a sua família, ele era um alemão de
São Martinho, morador da Vila Jung, bairro distante do Centro. Após este primeiro encontro
tornei a visitá-lo em novos períodos de campo, assim como passei a conviver com outros
moradores do Centro, onde eu morava, e criar para mim uma rotina própria em São Martinho.
Entretanto, as visitas eram especialmente empolgantes, pois Rubens tinha a capacidade de
transformar em estórias aquilo que era difuso no cotidiano, o que me foi fundamental para
guiar-me pelas falas, conversas, fofocas e notícias com que me deparava no dia-a-dia do
Centro. Em uma dessas visitas, ele falava-me sobre uma matéria que passava na televisão,
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
sobre qualidade de vida, que assistia com sua mãe, dona Joanna, de 88 anos. Tratava-se de
uma reportagem sobre uma mulher de 90 anos de idade, que se exercitava nas ruas do Rio de
Janeiro, e não tinha qualquer problema de saúde.
Aí perguntaram pra ela o que ela havia feito da vida: tinha sido dona de casa e cuidava do
serviço da empregada. Bah! Eles tinham que entrevistar alguém que realmente trabalhou a
vida inteira. Minha mãe ficou viúva quando tava grávida de mim. Tinha oito filhos pra criar,
contando com o que estava na barriga. E viúva! Criou todos, cuidou da roça, nenhum causou
problema e ela ainda está aí, com 88 anos! (Rubens, 13/01/2013).
Rubens era um daqueles martinenses que podia identificar-se enquanto um alemão não
apenas pelo sobrenome, filiação, parentesco ou afinidade religiosa, mas também porque era
um alemão descendente de uma das famílias pioneiras, além de poder se incluir em um dos
grandes ramos de parentesco de São Martinho, os Gross – eram parentes, o que neste caso
significa que estabeleciam parentesco apenas se seguíssemos a linha materna até a 3ª geração
ascendente. Sua história, assim como a de sua mãe, estava intimamente ligada a de seus avós,
não apenas pela filiação, mas também pela coresidência, a casa Schubert-Keller, construída
por seu bisavô de linha materna – um Schubert –, em 1896. Seus ancestrais imigraram para a
Encosta da Serra por volta de 1860, e iniciaram a obra da casa que seu bisavô terminou. Sobre
a construção, Rubens dizia-me que tudo fora feito por sua família, das telhas do telhado ao
enxaimel de sustentação. Para projetar-me a imagem da qualidade da construção, dizia-me
que mesmo sob forte temporal a casa mantinha-se segura, e sequer uma gota caía para dentro
da casa. A estrutura era tão sólida, enfatizava Rubens, que na época da pesquisa ele ainda
mantinha por lá a sua roça, onde plantava batatas para cosumo e para a venda, assim como
outros gêneros de consumo154.
Mas sobre o que está feito, permanece a dor daqueles que fizeram. “Olha, essa gente
se judiou quando eles começaram” (Rubens, 28/07/2012). Essa gente envolvia seus ancestrais
e as demais famílias pioneiras, aos quais dificilmente um alemão ou uma alemoa não dizia:
“eles fizeram tudo quando chegaram aqui”. As estradas de Porto Alegre até a Encosta da
154
Os mais comuns, em São Martinho, além da batata, eram o milho, as hortaliças, a acácia para produção de
lenha, além da criação de vacas de leite, aves para ovos e consumo, e porcos que, além dos cortes tradicionais,
permitia a produção da linguiça colonial, altamente apreciada entre alemães e alemoas.
305
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Serra, as igrejas, as escolas, as casas, os locais de atendimento médico, as roças: tudo era
creditado ao trabalho dos imigrantes, única e exclusivamente. A casa de 1896 não era
diferente. Tudo se iniciou pelo paiol, pois a única renda provinha da roça e era por lá que seus
antepassados se acomodavam, enquanto o restante da casa não estava pronta. Depois de
terminada a construção, toda a família permaneceu por lá, até Rubens decidir construir uma
nova casa para ele e sua mãe, há cerca de 10 anos atrás. Seu irmão permaneceu na antiga
casa, onde mantinha com Rubens uma roça conjunta. Antes disso, porém, ambos e os demais
irmãos foram criados nesta mesma roça. Sobre a rotina de sua infância, Rubens dizia-me:
“Olha Everton, no meu tempo de guri, eu e meus irmãos acordávamos às 5h e já ia pra roça,
na casa da minha mãe. Depois ia pra escola, voltava, almoçava e já ia pra roça de novo. Não
tinha esse negócio de ficar na rua” (Rubens, 17/07/2012).
A respeito de sua própria casa, Rubens também se judiou para construí-la. Mas esta
dor, este tipo de sofrimento que tem no corpo sua principal fonte histórica, não é motivo de
lamentação ou reticências: Rubens estava era contando vantagens sobre os novos guris de São
Martinho que tinham tempo livre após a escola, fato diretamente relacionado, para ele, aos
pequenos furtos que passavam a ocorrer na cidade. No entanto, isto não era um espanto para
ele, e nem para os demais colonos alemães. Estes, que enquanto colonos dedicavam-se
majoritariamente à sua roça, especialmente aqueles que buscavam vender parte de sua
produção, sabiam que os guris e gurias de São Martinho estavam interessados pelas fábricas,
as tantas indústrias calçadistas que haviam absorvido mais de 21% de sua população (MTE,
2012) para a linha de produção. Isto não era um processo tão novo na cidade, posto em
marcha de uns 15 anos para cá. Mesmo empregados nas fábricas, muitos alemães e alemoas
procuravam manter uma pequena roça em seu terreno, enquanto muitos já não mantinham.
Conta-se ainda a grande parte da geração que estava terminando seus estudos no ensino
médio, que sequer se interessavam pelo trabalho na roça, o que deixava os colonos
preocupados com o futuro de sua produção – a continuidade. O trabalho ainda era o mote
para grande parte de guris e gurias, mas isto agora era vinculado à indústria calçadista que,
como diziam, estava sempre contratando. Rubens não compreendia muito bem todo este
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
processo, justamente ele, para quem o passado de sua família, de toda a comunidade, mas
especialmente de sua mãe, estava em cada calo de suas mãos.
A DIREÇÃO DO SOFRIMENTO, A GÊNESE DO COMUM
Nesta equação dois termos permaneciam inalterados, fosse entre os colonos, fosse
entre os trabalhadores das fábricas: a relação ente trabalho e sofrimento. A superioridade
moral implícita nesta relação também não havia se alterado. Pois, a despeito de toda a
reorganização do trabalho que as indústrias calçadistas representaram em São Martinho, uma
referência ainda transitava pelas falas de seus moradores, a comunidade. Mas, se não eram os
calos daqueles que viveram para e pela roça que expressava privilegiadamente a história de
sofrimento de toda a comunidade, o que seria? A própria dor, o próprio sofrer. No início de
2013, uma figura polêmica de São Martinho discorreu sobre o assunto. Júlio havia sido
secretário de saúde por 4 anos, e estava deixando a Secretaria para assumir outra, a de
Planejamento e Assistência Social. Nasceu e viveu em São Martinho, e participou da história
política do município desde a década de 80. Reuniu-se então com seus ex-funcionários e me
permitiu participar da reunião, na época em que eu já o conhecia havia dois anos. Uma de
suas pautas, como historiador que era, tratava de onde todo aquele aparato administrativo
municipal havia saído.
Segundo Júlio, tudo se iniciara com o trabalho e o sofrimento das famílias pioneiras.
Naquele tempo havia companheirismo, senso de comunidade. Cada família construía sua
própria casa e, depois, ajudava a construir a casa das outras famílias. Como não tinham
professor, escolheram a pessoa de melhor índole moral para ensinar língua e religião para as
crianças. Como também ainda não tinham padre, escolheram uma pessoa de tão boa índole
moral para cuidar da religião. O primeiro local ocupado pelos imigrantes na região que viria a
formar São Martinho – e que formava as “terras do fundo” de Cruz do Bonfim, município
atualmente pertencente à região metropolitana de Porto Alegre – foi o Morro da Mata,
próximo ao vale central do município. O primeiro edifício de uso comum construído pelos
moradores do Morro da Mata foi uma capela, em torno do qual a primeira missa foi realizada
em 1858. A Linha de São Martinho, localizada no vale formado pelas montanhas da Encosta
307
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
da Serra – onde atualmente se encontra o Centro da cidade – foi ocupada posteriormente ao
Morro da Mata, em 1853. Boa parte da preparação do terreno para moradia ficava a cargo dos
próprios colonos, inclusive a construção da estrada que ligaria São Martinho a Germana,
região colonizada anteriormente, em 1830.
“Ou era trabalhar ou morrer de fome” dizia-me Rubens em outra ocasião a respeito das
famílias pioneiras. O trabalho, para os alemães assumia deste modo dois níveis de realidade:
o primeiro deles era um nível ético, de constituição; o segundo, um nível moral, de
julgamento. Quanto ao primeiro nível, o trabalho era acompanhado do sentimento que lhe foi
associado até agora, o de judiar-se. O que se formava na efetuação cotidiana deste eixo éticomoral era justamente um modo de socialidade que formava e informava sobre corpos,
pessoas, casas, famílias, roças, parentes, governo e, claro, o passado e suas narrativas. Este
modo era justamente a comunidade. Quanto ao primeiro nível etnográfico da relação
trabalho/sofrimento – de constituição – é necessário precisar alguns pontos.
A comunidade era justamente aquilo que Júlio definiu: um senso. Se fosse preciso
definir seus limites, os moradores de São Martinho o fariam sem problemas, e faziam. No
entanto, isto variava de uma para outra descrição, o que certamente não se tratava de
inconsistência, mas de um signo menor (Deleuze e Guattari, 2007, p. 13-20; 92-106), que
buscava informar sobre uma realidade que era dependente das formações que lhe eram
decorrentes e que lhe estabeleciam territórios, limites e proximidades variáveis: justamente
um tipo particular de socialidade. Sua especificidade estava em abrigar privilegiadamente os
caminhos pelos quais se enredavam histórias, lugares e pessoas, que não estabeleciam apenas
conexões entre si, mas formavam um novelo (Ingold, 2011, p. 141-175), isto é, definiam-se
em seus entrecruzamentos, produzindo narrativas, ambientes e pessoas correlatas. A
comunidade era então como a especificidade deste movimento, acionado e percorrido pelas
histórias de um passado que redesenhava suas fronteiras, e pelo qual grande parte deste
passado se enredava pelo trabalho e sofrimento de alemães e alemoas. Seu acesso era sempre
um processo singular, que causava aquilo que Marques (2002, p. 34-37) chamou de “efeito de
perspectiva”: sua consistência, extensão ou mesmo efetividade estava sempre vinculada a um
processo demarcação de fronteiras, de produção de um lado de dentro e de subjetivação,
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
desde que se entenda, por este termo, a produção corelata de pessoa e corpo (Foucault, 1995,
p. 231-239; 1988; p. 26-31; Deleuze e Guattari, 2007, p. 61-107; Deleuze, 2008, p. 101-130).
E do mesmo modo que o trabalho era o problema ético por excelência entre alemães e
alemoas, era também o trabalho enquanto categoria, que modulava mais do que qualquer
outra categoria toda uma circulação de apreciações morais em operação em São Martinho.
Através dela julgavam-se alemães e alemoas, guris e gurias, encostados e preguiçosos. Nesta
série de recortes havia ainda a língua: todo este jogo moral não se dava em brasileiro, mas
primordialmente em deutsch, ou hunsrik. O hunsrik era a língua que regia a categorização de
todo este processo, o modo de expressão singular pelo qual era possível problematizar as
condutas e operar as apreciações que as julgavam. O hunsrik fazia com que a própria fala de
um alemão ou uma alemoa os distinguisse em sua heterogeneidade.
Enquanto preceito ético, então, o ato de trabalhar estava intimamente relacionado à
circulação de julgamentos morais, o que implica que mostrar-se adequado e disposto ao
trabalho era tão importante quanto o ato de realizá-lo, e era justamente o peso desta moral que
recairia sobre os ombros daqueles que pudessem ser tomados enquanto preguiçosos ou
encostados, ou ainda pior, enquanto um xwarts, termo em hunsrik para aqueles que se
supunha ser de fora, aos quais a preguiça não seria uma projeção, mas uma condição.
Inevitavelmente, esta moral não era constante, e dependia das situações em que era ativada,
como um jogo, no qual se tratava sempre de guardar para si – seja uma pessoa ou um grupo –
aquilo que era moralmente aceito e reservar para o outro aquilo que deveria ser desdenhado, o
que Herzfeld (1987, p. 140) chamou de “shifter moral”, enquanto uma operação estratégica de
avaliação moral, que acionava o nós e o eles, aquilo que era atributo pessoal e aquilo que era a
falta deste atributo; enfim, uma avaliação daquilo que era admirável e daquilo que era
desdenhado. Tudo isto dependia da situação em que o trabalho era utilizado enquanto
categoria.
No entanto, em relação ao acesso privilegiado à comunidade, o trabalho se realizava
vinculado ao sentimento que lhe era resultante, o sofrimento. E de onde partir para este
acesso? Daquilo que era resultante deste par, o alemão, a alemoa, a casa, a família, os
parentes e a roça.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
ATOS CORRELATOS: A COMUNIDADE VISÍVEL
Para um etnógrafo, o sofrimento dos alemães não é algo que lhe é oferecido em sua
chegada a São Martinho. Após o estranhamento mútuo inicial causado pela novidade do lugar
– para mim – e pela presença de um de fora – para os moradores –, o que permaneceu foi uma
rotina de pesquisa, mas também da cidade. Pois uma característica fundamental do preceito de
não deixar de trabalhar era estabelecer uma divisão temporal rígida, principalmente entre a
hora do trabalho e a hora de descanso, ambas igualmente importantes. Nesta rotina, a boa
conduta com relação ao trabalho se expressava na boa divisão do tempo, o que implicava
maturidade para não faltar ao trabalho, mas também não faltar aos amigos, à família, aos
parentes e aos cuidados da casa. E nesta rotina, era justamente a materialidades destas
formações que se me mostravam acessíveis.
Rubens se formava nesta rotina, assim como Júlio. Ambos poderiam ser chamados de
alemães. Pois, apesar de implicados em uma socialidade específica que era a comunidade,
São Martinho oferecia processos de individuação bem definidos, o que, aliás, está
intimamente relacionado com a série de julgamentos morais que circulava pela cidade. No
entanto, estes processos de individuação não eram fechados, eram operativos e operados por
uma série de situações que os relacionavam às demais formações da comunidade. Estes
processos não eram simplesmente ético-constitutivos, e muito menos moral-apreciativos: eles
envolviam estes dois níveis, ocorriam em uma perspectiva transversal, isto é, eram
estratégicos e, por isso mesmo, funcionavam enquanto atos155 de individuação, sempre
dependentes da relação entre trabalhar/sofrer e julgar/ser julgado.
De que modo então Rubens era um alemão? Seu caso, em particular, era raro em São
Martinho, especialmente no que se tratava de sua casa e de sua família. Em especial, havia o
fato de Rubens ainda ser solteiro – sozinho156. Isto é, sua nova casa não compunha
155
Atos enquanto transformações que não se tornam constantes ou permanentes, não ganham o estatuto de
“identidade”. Ver, sobre isto, Bakhtin (1997, p. 153-200) e Butler (1990, p. 128-141).
156
Sozinho não é uma categoria nova em etnografias. Volto-me para uma das primeiras etnografias de Bourdieu
(2006, p. 91), realizada no Béarn, sudoeste francês, onde encontrou a mesma categoria sendo utilizada para
significar a situação em que um homem não possuía uma relação estável com uma mulher, um quase sinônimo
para solteiro.
310
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
fundamentalmente uma casa, no modo como esta categoria era operada entre os alemães, fato
observável sempre que Rubens referia-se à sua unidade doméstica em relação à casa de 1896,
de seu bisavô. Pois, apesar do sinônimo ao conceito lévi-strussiano157, a casa, em São
Martinho, indica um movimento dinâmico de familiarização (Comerford, 2003, p. 209-228),
marcado principalmente pela solidariedade no trabalho em comum da família que busca
mantê-la, que estabelece a contrapartida de definir os limites desta mesma família. Trata-se,
então, daquilo que Marques (2002, p. 129-130) observou também entre as vinganças de
famílias no sertão de Pernambuco, de um cognatismo, isto é, de alianças e solidariedades que
influem na proximidade e nas distâncias entre famílias e parentes que, quando acionados,
podem formar grupos ou heterogeneidades, conforme o caso. O parentesco é resultante e
influente, mas não o princípio ativo.
As expectativas em relação à constituição de uma casa em São Martinho envolvia,
também, a maturidade que separa um alemão ou alemoa de um guri e de uma guria.
Fundamentalmente, esta maturidade envolvia a capacidade de manter uma unidade doméstica,
mas também de constituir sua própria família, que envolve casar-se e ter os próprios filhos.
Era esperado que tanto um guri quanto uma guria iniciasse a vida de trabalho logo que
terminado o ensino fundamental – efeito direto das fábricas, já que, entre aqueles que
dependiam exclusivamente da roça, o trabalho iniciava-se ainda mais cedo –, para que, ao
casar-se, não permanecesse na casa dos pais. Em outro sentido, Rubens construiu sua nova
casa mesmo permanecendo sozinho, e levou dona Joanna, sua mãe, como ele, deixando a casa
de sua família para seu irmão e sua nova família – o que também criava uma situação
incomum em São Martinho, já que a roça de Rubens permanecia por lá. Ainda assim, para dar
conta de sua especificidade nesta grande rede de parentesco que envolve São Martinho e de
sua heterogeneidade nesta condição que envolvia a comunidade, era para casa de 1896 que
Rubens recorria.
157
A categoria casa implica um certo conforto para a análise, pois encontra similitude no conceito formulado por
Lévi-Strauss (1979, p. 143-167). Entretanto, não pode ser isenta de problematização. Para o autor, a casa,
enquanto uma “pessoa moral”, atua na definição de quem é “natural” e quem é “de fora”. Compõe em si forças
de orientações contrárias, como filiação e residência, descendência matrilinear e patrilinear, exogamia e
endogamia etc (p. 160-164). Entretanto, as compõem em uma rede de direitos e obrigações, que tem na
organização de parentesco seu meio de funcionamento, mas o dobra, e não oferece qualquer solução definitiva
de organização social.
311
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Evidentemente, lá era sua casa. Foi lá que Rubens judiou-se grande parte de sua vida
no trabalho pesado da roça de sua mãe, e era por lá que ele permanecia trabalhando. Foi lá
que Rubens sentiu a disposição necessária para não deixar de trabalhar, que pôde sentir-se
enquanto um alemão, e ter seu corpo formado pela mesma força atribuída àqueles que eram
chamados de pioneiros e que formaram a comunidade. A mesma casa, então, que permitia
que Rubens sentisse-se ligado com a comunidade por partilhar uma dor e um sofrer comum,
ainda que permitisse, pela categorização da mesma dor e do mesmo sofrer, a emergência de
um território singular de parentesco. Pois, a despeito de filiação, alianças, sobrenomes,
geração e descendência, era o trabalho e seu fazer sofrer que indicava privilegiadamente as
proximidades e as distâncias em São Martinho, que fazia expressar-se na própria corporeidade
do alemão e da alemoa a dor que provinha e que era constitutiva de sua roça – ou de seu
emprego em alguma das fábricas –, de sua casa e de sua família. Não por menos, era a esta
mesma dor que se recorria na definição de cada uma destas formações e de si mesmo, assim
como era por sua partilha cada vez menor que se estabelecia as proximidades de certos
parentes, até o limite da condição que une a todos, a comunidade.
Pois, “se você for até o fim, todos acabam sendo da mesma família”, como me dizia
Beatriz Beyer, historiadora e genealogista de São Martinho, e alemoa. Para Beatriz, todo o
trabalho de catalogação das famílias de São Martinho já havia sido feito, especialmente em
dois livros que ela ajudara a organizar. O que lhe permitia dizer: “se for até o fim, se estender
a genealogia até os colonizadores, todos são da mesma família” (idem). De fato, todos os
sobrenomes com os quais eu tive contato – Hoff; Jung; Beyer; Gross; Keller; Schubert; Berg;
Bauer; Haus; Denner etc – aparecem na planta topográfica e na catalogação dos lotes de Cruz
do Bonfim de 1870. Alguns deles se repetem mais vezes que os demais, ou então ganham
proporções e visibilidade maiores – como Jung; Gross; Haus e Bauer. No fim, todo um plano
de parentesco era traçado pela repetição dos sobrenomes trazidos pelos colonizadores – e que
se repetem no uso cotidiano –, assim como pelos nomes, em menor grau, no qual, se fosse o
caso, seria simples para Beatriz saber quem é de fora e quem é alemão.
No mapeamento das famílias colonizadoras, o que se oferecia era a concretude de um
nascimento comum, a evidência que a mesma comunidade que se formou no século XIX
312
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
ainda agitava seus descendentes, dos quais não escapava sequer uma família de São Martinho.
No entanto, esta condição comum se expressava estrategicamente, operava enquanto uma
possibilidade de distinção, especialmente na tarefa de deixar os de fora efetivamente para fora
da comunidade. E, como observado até agora, a categorização deste lado de dentro que era a
comunidade era imensamente dependente da constituição de um lado de dentro ético-moral –
os alemães e as alemoas –, processo vinculado aos julgamentos morais que se fazia a respeito
de um xwarts ou, menos frequentemente, a respeito de um preguiçoso ou encostado. De modo
que, em relação àquilo que movia os alemães, era o extremo oposto que se encontrava em um
xwarts. Pois, se o sofrimento possuía a capacidade de produzir um corpo na dor
compartilhada de seu trabalho, de sua família, de sua casa, de seus parentes e, no limite, de
sua comunidade, a preguiça de um xwarts era o que lhe retirava completamente deste eixo
ético-moral, desta condição social. Assim, a comunidade, enquanto um modo específico de
socialidade em São Martinho, tornava-se acessível sobretudo nestes atos de individuação, nos
quais seu principal efeito – constituição e categorização de um alemão e de uma alemoa –
implicava a formação correlata de grupos específicos, dependentes de um eixo ético-moral
estratégico, que era o trabalho e o sofrimento.
A COMUNIDADE: ADMINISTRAÇÃO DA DOR E FRONTEIRAS EFETIVAS
Para finalizar, vale notar que a dor e o sofrimento relacionado à entrega ao trabalho
não produzia uma individuação indistinta, mas vinculava-se à atribuição processual da
diferença, isto é, resultava em individuações singulares. Pois, o sentimento que fazia com que
pessoas e grupos se formassem pela e partilhassem a mesma dor e, no limite, se
identificassem pela mesma corporeidade resultante era, justamente, apreciada de modos
distintos por cada morador e moradora de São Martinho, fazia com que, alemães e alemoas
não apenas se diferenciassem e fossem diferenciados por um jogo de expectativas de conduta,
mas inseria estas mesmas expectativas em uma relação singular com o sofrimento – como
para Rubens, que não bastava dizer-se um homem alemão, mas o alemão específico fruto da
dor de uma casa, de seus antepassados, de sua família, de seus parentes.
313
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Nisto estava o modo como a comunidade de São Martinho, assim como seu passado
fundador das famílias pioneiras, tornava-se atual. Este não era um processo indistinto: seus
limites, as fronteiras da própria comunidade eram talhadas nos limites da dor de cada corpo,
de cada pessoa, de cada família, de cada grupo de parentes e de cada casa, ou, de outra forma,
nos contornos de um alemão ou de uma alemoa. A comunidade era uma cartografia em
processo, um novelo de caminhos sobre o qual sofrer traçava seus acessos e suas vias
principais, de acordo com a capacidade constitutiva deste sentimento em formar cada
corporeidade, assim com a sua administração moral, que singularizava cada conjunto corporal
em sua vinculação específica com a socialidade martinense. Prezar pela conduta em relação
ao trabalho, assim como sofrer seus efeitos judiando-se em sua realização, constituía assim
um lado de dentro não apenas em cada alemão e alemoa, traçando-lhes uma realidade ética
em cada ato de individuação, mas também oferecia um mapa sobre o que estava para dentro e
o que estava para fora da comunidade. Sobre as tramas relacionais da comunidade de
alemães, a análise não se dirige a um grupo, muito menos à relação entre pessoa e grupo:
dirige-se à dor e ao sofrimento, sua potência constitutiva e significativa, capaz de delinear o
que é visível e crível na Encosta da Serra.
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315
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
UMA ETNOGRAFIA DO SISTEMA DE TROCAS MATERIAIS E
MORAIS NO PROCESSO DE FORMAÇÃO SACERDOTAL EM SANTA
CATARINA
Marcos Alfonso Spiess
E-mail: [email protected]
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES
Universidade Federal do Paraná – Doutorando em Antropologia Social – DEAN/UFPR
Este trabalho busca refletir sobre o processo formativo de jovens que decidem ingressar em
seminários católicos e problematizar como a saída de um filho homem do seu núcleo familiar
pode gerar tensões à reprodução social e econômica das famílias envolvidas. Tendo por
referência a análise de três trajetórias distintas, analisam-se os aspectos econômicos que
perpassam o processo formativo dos seminaristas. Esta formação pode ser compreendida
como um complexo sistema de trocas que envolve diferentes sujeitos e que a princípio se
funda em relações materiais mas aos poucos se converte em obrigações morais. O objetivo é
demonstrar como que a formação religiosa de padres católicos desenvolve um sistema de
obrigações materiais e morais envolvendo filhos homens e suas famílias.
Palavras-chave: Seminaristas; Família; Formação Sacerdotal; Igreja Católica; Santa Catarina.
INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende expor e problematizar alguns aspectos econômicos envolvidos
no processo formativo de seminaristas católicos diocesanos158. A partir de uma pesquisa
etnográfica realizada em 2010 e 2011 no Seminário Filosófico de Santa Catarina (Sefisc),
localizado na cidade de Brusque, constatou-se que inúmeras questões perpassam a saída de
um filho homem do núcleo familiar, o seu ingresso e permanência no seminário, sendo que a
dimensão financeira é uma das mais controversas159.
158
Neste trabalho busco sintetizar algumas discussões formuladas no segundo capítulo da minha dissertação de
mestrado intitulada Futuros Sacerdotes do Senhor: a decisão vocacional entre seminaristas em Santa Catarina,
defendida em setembro de 2012 no Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná.
159
O Seminário Filosófico de Santa Catarina (Sefisc), fundado em 1981 na cidade de Brusque, é um seminário
interdiocesano, abrigando atualmente seminaristas de oito dioceses catarinenses para a etapa da Filosofia. Como
a pesquisa se desenvolveu eminentemente com seminaristas e padres diocesanos, é importante ressaltar que não
se pretende abarcar uma análise das vocações religiosas. Frisa-se que as vocações religiosas, que envolvem tanto
as mulheres quanto os homens de vida consagrada mAUSfreiras/freis, irmãs/irmãos, monjas/monges etc.) estão
vinculadas institucionalmente às congregações ou ordens religiosas (por exemplo: Franciscanos, Jesuítas,
Beneditinos etc.). Diferentemente, os padres diocesanos, também denominados de seculares, estão vinculados
institucionalmente às dioceses onde foram ordenados. Assim, enquanto que o padre religioso mantem vínculo
com sua congregação, os padres seculares se vinculam diretamente ao bispo da diocese na qual estão
incardinados.
316
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Além da ascensão social possível através dos estudos seminarísticos, tem-se que no
caso dos padres diocesanos a adesão pela vocação sacerdotal implica também numa opção
profissional, possibilitando a independência financeira do sujeito que se submete a este
processo formativo. Contudo, esta independência financeira somente é conseguida após a
ordenação, sendo que durante o processo formativo uma das principais dificuldades apontadas
pelos sujeitos pesquisados era a dependência financeira que se criava em relação à família,
aos benfeitores, aos padres e às paróquias.
A questão está justamente no lapso temporal entre o ingresso no seminário e a
ordenação. O fato de estarem impedidos pela instituição de assumirem uma profissão ou
algum trabalho que auxilie no próprio sustento durante o tempo de estudos, isto faz com que
muitos seminaristas se sintam incomodados por ter que dependerem financeiramente de outras
pessoas.
No intuito de melhor compreender e analisar as trocas que subsistem às decisões
vocacionais, passa-se à descrição da trajetória de três seminaristas: Rafael, André e Pedro, que
pertenciam, respectivamente, às dioceses de Blumenau, Caçador e Tubarão. Estes
seminaristas ressaltavam sobremaneira como as questões econômicas, muitas vezes apontadas
como dificuldades financeiras, influenciavam no caminho vocacional.
A VOCAÇÃO SACERDOTAL A PARTIR DE TRÊS TRAJETÓRIAS
No primeiro semestre de 2011, os seminaristas Rafael, André e Pedro estavam
cursando filosofia no Sefisc, pois já haviam concluído a primeira fase de formação no
seminário menor, onde cursaram o ensino médio, bem como, já tinham realizado o
propedêutico, período de um ano que antecede a filosofia e está voltado à formação humana e
religiosa.
Rafael tinha 18 anos e era um dos seminaristas da Diocese de Blumenau. Natural de
Timbó, cidade com pouco mais de 30 mil habitantes, colonizada por alemães e italianos, na
qual a economia é baseada na indústria e comércio. Seu pai, natural do oeste catarinense,
migrou para Timbó aproximadamente há 25 anos, época em que a industrialização e o êxodo
rural ainda tinham impulso no Brasil. Ao migrar para Timbó, o pai de Rafael conseguiu um
317
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
trabalho como pedreiro e desenvolvia trabalhos de eletricista. Esta última função ele exerce
até hoje na cidade. Foi lá também que conheceu e se casou com a mãe do seminarista, que,
vindo do interior do Paraná, passou a trabalhar numa escola como auxiliar de serviços gerais.
Desta família de migrantes nasceram quatro filhos, duas mulheres e dois homens,
sendo que Rafael era o mais novo de todos. Quando tinha pouco mais de sete anos, todos os
seus irmãos já tinham casados e saído de casa, sendo que somente ele ficou morando com
seus pais. Na época sua mãe era ministra da eucaristia, e incentivado por ela, ele participava
das atividades da Igreja. Também foi por incentivo dela que aos poucos passou a assumir as
funções de coroinha na paróquia. Quando já estava com treze anos, Rafael foi convidado por
alguns seminaristas para frequentar os estágios vocacionais no Seminário Menor de
Blumenau. Após conhecer o seminário, decidiu por ingressar no mesmo assim que começou
os estudos do ensino médio.
Durante os primeiros anos de estudos de Rafael quem se responsabilizou com as
mensalidades pagas ao seminário foram seus pais. Somente no terceiro ano de seminário é que
Rafael passou a contar com a ajuda mensal da sua capela de origem. Em 2011, após quatro
anos de seminário e já estando na Filosofia, além de ganhar um ofertório160 da sua
comunidade de origem, ele também recebia contribuições da comunidade em que fazia
pastoral161, e de alguns benfeitores que contribuíam com ele. Na Filosofia, seus pais não
precisavam mais auxiliá-lo mensalmente, pois o dinheiro que arrecadava com as comunidades
geralmente supria a mensalidade e acaba sobrando para a aquisição de bens pessoais (material
de higiene, livros, computador etc.).
O seminarista André, na época com 20 anos, pertencia à Diocese de Caçador. Nascido
160
O ofertório é dos principais momentos durante a celebração da Missa, pois vincula a liturgia da palavra
(leituras bíblicas) com a liturgia eucarística (consagração do pão e do vinho). Durante o ofertório se canta um
hino enquanto o padre prepara o altar para dar continuidade na cerimônia. O povo, por sua vez, além de cantar
também é convidado a contribuir com a Igreja. Geralmente esse momento é marcado pela coleta de dinheiro
através de vasilhas ou bandejas que circulam pela igreja. O montante de dinheiro arrecadado também é
denominado de ofertório ou coleta.
161
Fazer pastoral é a expressão utilizada pelos seminaristas para se referir a toda e qualquer atividade que
venham a desenvolver em comunidades católicas. Durante os finais de semana os seminaristas saem do
seminário e ficam hospedados em casas de famílias católicas, com isso, eles participam das atividades da Igreja
local junto com a família que os acolhe. No início de casa ano os padres formadores designam onde cada
seminaristas irá fazer pastoral, e é onde eles acabam auxiliando na catequese, nas celebrações, organizando
festes etc.
318
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
numa comunidade rural com aproximadamente 40 famílias. Até antes de entrar no seminário,
seu pai mantinha uma agricultura de subsistência produzindo basicamente milho e feijão para
o consumo próprio, sendo que a produção excedente era destinada a venda entre os vizinhos.
O milho, por sua vez, era produzido em maior quantidade para servir como alimentos
para as vacas. Estas, por sua vez, produziam o leite para consumo da família, para a produção
de queijos caseiros que sua mãe destinava a venda ou troca de alimentos com outras vizinhas
e, o restante do leite era posto a venda para um laticínio localizado no centro da cidade.
Enquanto que André acompanhava seu pai na roça, sua mãe era auxiliada por duas irmãs.
Quanto estava com 15 anos, André ingressou no ensino médio, e como os seus estudos
passaram a serem feito à noite, ele tinha mais tempo para auxiliar o pai na agricultura durante
o dia. Neste período ele passou a frequentar a escola no centro da cidade, foi quando veio a
conhecer o pároco da Igreja Católica. O padre da paróquia convidou André a conhecer o
seminário, sendo que durante o ensino médio, no mínimo três vezes ao ano, ele acabava
visitando e ficando alguns dias no seminário. Estas experiências se repetiram até terminar o
ensino médio no final de 2008, quando André decidiu ingressar no seminário.
Em 2009, ele ingressou no ano propedêutico na cidade de Caçador e durante este
período seus pais foram os responsáveis para pagar a mensalidade, que na época era de 200
reais. Além disto, eram seus pais que arcavam com os gastos pessoais. Em 2010, quando
ingressou na Filosofia em Brusque, a mensalidade aumentou para 250 reais. Porém, agora
quem contribuía para cobrir estes gastos era a sua paróquia de origem e uma madrinha que o
ajudava mensalmente com as despesas pessoais.
O seminarista Pedro, natural da cidade de Tubarão, na época com 22 anos, já estava no
sétimo ano de seminário. Seu pai trabalhava numa empresa de transportes coletivos como
motorista de ônibus há aproximadamente 20 anos. Já sua mãe, primeiro era diarista e,
paralelamente, trabalhava como costureira na própria casa para conseguir aumentar a renda da
família. Mas já fazia três anos que ela tinha ido trabalhar na mesma empresa que seu pai.
Sendo o filho mais velho, Pedro possuía uma irmã dois anos mais nova que ele e que ainda
mora com seus pais.
319
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Pedro ressaltava que o engajamento de sua família com a Igreja foi decisivo para ele
ingressar no seminário. E, pelo fato do seminário menor estar localizado na mesma cidade
onde moravam seus pais, o deixou mais tranquilo no início, principalmente porque pode
continuar estudando no mesmo colégio que sua irmã. Além de ver a irmã praticamente todos
os dias, seus pais o visitavam toda segunda-feira no seminário, quando tinha missa aberta à
comunidade.
Nos três primeiros anos, enquanto cursava o ensino médio, quem pagava as
mensalidades do seminário eram seus pais. Como a renda familiar era baixa para arcar com
todas as despesas, eles articulavam durante o ano uma rifa para contribuir com o seminário.
Esta rifa era feita pelo próprio seminário e cada seminarista que tivesse interesse se
comprometia em vender uma quantidade “x” de bilhetes até completar o valor correspondente
às mensalidades, que na época era 200 reais. Quem preferisse podia pagar a mensalidade
antecipadamente, sem precisar se comprometer em vendar as rifas. Obviamente, como
explicou o seminarista, isto dificilmente acontecia, primeiro porque a cada bilhete vendido era
um valor a menos que os pais precisavam desembolsar; segundo, porque os bilhetes que não
conseguiam vender, eles mesmos acabavam comprando, pois ficavam com a possibilidade de
ganhar algum dos prêmios.
Assim que entrou no propedêutico, ainda na cidade de Tubarão, seu pároco e a
paróquia passaram a pagar parte da mensalidade, sendo que a outra parte continuava sendo
subsidiada pelos pais. Com o ingresso na Filosofia, sua paróquia e alguns benfeitores se
comprometeram em pagar integralmente as mensalidades dos seminaristas. Além disso, ele
conheceu algumas madrinhas que auxiliam diretamente o seminarista com seus gastos
pessoais, com presentes (roupas, computador, celular, etc) e passagens para visitar a família.
A SAÍDA DE CASA E O INGRESSO NO SEMINÁRIO
De modo geral, os seminaristas que encontrei no Sefisc em 2011 provinham de uma
camada populacional com poucas condições financeiras. Geralmente eram filhos de operários,
agricultores, autônomos, vendedores, ou profissões similares que possibilitam reunir recursos
320
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
financeiros apenas para a subsistência familiar. Dessa forma, a dimensão financeira para as
famílias era sempre uma realidade delicada e, às vezes, causa de problemas.
Se até duas décadas atrás era comum alguns filhos saírem para que aqueles que
ficassem pudessem herdar e continuar a reprodução da família (Moura, 1978; Grossi, 1990)
atualmente o problema é outro. Nos três casos relatados e que revelam a maioria das
trajetórias vocacionais, os seminaristas pertencem a famílias com uma prole reduzida (de dois
a quatro filhos), não obstante, geralmente são os únicos filhos homens, como era o caso de
André e Pedro, ou então são os filhos mais novos e os únicos a estarem morando com os pais,
como relata Rafael. O fato de eles figurarem como membro masculino da prole fazia com que
recaísse sobre eles a responsabilidade de continuarem a reproduzir (através do sobrenome, do
trabalho, da propriedade, de novos membros) a herança familiar (Stropasolas, 2004).
Na trajetória de André, por exemplo, sendo o único filho homem, caberia a ele suceder
o pai nos serviços para a manutenção da família camponesa. A necessidade que continuar
ajudando o pai na lavoura é evidenciada quando, meses antes de ingressar no seminário, o pai
de André promete a ele uma moto de presente caso ele “desistisse da ideia de ser padre”. Sua
decisão de entrar no seminário implicou não somente a perda de um membro na produção
econômica familiar, e que seu pai queria garantir através do presente, mas também na despesa
da mensalidade do seminário com a qual seus pais passaram a pagar.
Já no caso de Pedro, ele não podia ajudar seu pai na empresa de ônibus e nem sua mãe
que na época era diarista. No entanto, sair de casa implicava, assim como no caso de André e
Rafael, em ser o único (ou último) filho homem que estava deixando o núcleo familiar. De
acordo com os relatos de Pedro, no início foi muito difícil para seus pais, sendo que o que
facilitou era o fato do seminário ser na mesma cidade onde moravam, em Tubarão.
Destas trajetórias, é possível perceber que há duas problemáticas que se entrecruzam: a
reprodução social da família e a manutenção financeira. No campo, por exemplo, a saída do
filho implicava na perda de um membro que já auxiliava na produção agrícola dos pais. Dessa
forma, economicamente falando, além de ficar com um membro a menos, a família passava a
ter que sustenta-lo numa instituição que o impossibilitava de trabalhar. De outro viés, na
321
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
cidade, a saída de um filho homem implica na perda de um futuro membro economicamente
ativo, além gastos a mais para mantê-lo no seminário.
O PADRE, A COMUNIDADE, A MADRINHA E AS TROCAS
Após enfrentar as problemáticas causadas pela saída de casa, os jovens que querem
entrar no seminário se deparam com um novo desafio: quem irá pagar a mensalidade? Esta
quantia varia conforme cada Diocese e conforme a etapa da formação em que está o
seminarista. O menor valor que encontrei era de R$150 no seminário menor e o maior era de
R$ 400 quando já estavam na etapa da Teologia.
O discurso reproduzido pelos padres formadores é de que esse é um valor simbólico e
que tem por objetivo o comprometimento tanto do seminarista quanto da sua família com o
processo formativo ao qual ele se submete. Conforme afirmou o padre reitor do Seminário
Menor de Rio do Sul: “O valor que pagam aqui é, antes de tudo, uma forma que a família
tem para participar na formação do filho. Porque o que pagam, mal cobrem a despesa com
os estudos”.
Por outro lado, este valor simbólico é cobrado indistintamente a todos os seminaristas.
Como apontou Grossi (1990; 1995), este valor se torna uma exigência ritual fundamental para
o ingresso no seminário, ou seja, é uma forma de participação aparentemente livre e
espontânea, mas que acaba sendo imposta pela instituição. Inicialmente, quem assume essas
despesas é a própria família do jovem; somente com o passar dos anos, e conforme a
ordenação vai se tornando mais próxima, é que mais pessoas se envolvem através de
pagamentos e doações.
Nos casos em que as famílias não têm condições para pagar toda a mensalidade,
desenvolvem-se alguns mecanismos para arrecadar dinheiro e auxiliar os seminaristas. Este
foi o caso de Pedro, sabendo que o ingresso no seminário implicava em despesas para os pais
que não tinham condições de pagar, ele participou de uma rifa com intuito de arrecadar
dinheiro.
A rifa foi um meio encontrado por Pedro para se manter financeiramente dentro do
seminário. Foi a própria instituição que organizou os prêmios para rifar e confeccionou os
322
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
blocos/bilhetes para vender. Com isto, a contribuição espontânea das famílias se convertia em
um ato obrigatório, pois, se não possuíam dinheiro para o pagamento da mensalidade, não
podiam, por sua vez, se eximirem do compromisso (no mínimo moral) de venderem as rifas
do seminário.
O tempo, por sua vez, se torna um fator fundamental para decidir quem entra no
sistema de dádivas, e quem passa a contribuir com o seminarista. Se por um lado Marcel
Mauss (2003) possibilita pensar um sistema de troca simbólica generalizada em que destaca
leis de reciprocidade – “dar, receber e retribuir” - que são próprios não só dos trobriandeses,
mas de muitas culturas; por outro lado, conforme destaca Bourdieu (1996), a questão temporal
é fundamental para a existência do sistema de trocas. O tempo gera incerteza quanto a
retribuição do dom, mas também, ao gerar a reciprocidade ele possibilita ressaltar o
desinteresse nas contribuições.
Em relação ao aspecto temporal, este pode ser entendido a partir de duas perspectivas.
A primeira, a medida que o tempo de seminário vai aumentando, percebemos que o sistema
de troca vai se ampliando para que outras pessoas também possam entrar nas trocas. Nos
primeiros anos de seminário, quem contribui efetivamente para pagar as mensalidades são os
membros da própria família. Por mais que existam outros mecanismos (rifas, festas) para
arrecadar bens materiais para a manutenção dos seminaristas, é sobre a família que recai a
responsabilidade de manter o filho fora de casa.
No entanto, quando ocorre o ingresso no propedêutico, na filosofia ou teologia, ou
seja, a cada ano que se passa e a ordenação se torna mais próxima, o número de pessoas que
contribui passa a aumentar assim como aumenta os dons recebidos. Geralmente motivados
pelo pároco do seminarista, aparece a figura da capela ou paróquia que, enquanto instituição,
ajuda no pagamento das mensalidades. Outras vezes ainda era mencionada a figura da
comunidade, a Igreja não enquanto instituição e sim como povo. Por fim, surge ainda uma
figura que passa a ter uma relação pessoal com o formando, a madrinha. De modo geral, além
da família, existem três pessoas ou agentes que aparecem na articulação para arrecadação de
dinheiro ou mantimentos para manutenção financeira do seminarista, são elas: o padre, a
comunidade e as madrinhas.
323
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
O padre é geralmente o pároco da paróquia da qual o seminarista pertence. O padre, em
alguns casos, é o responsável pelo ingresso do seminarista na instituição. Em relação à
manutenção das despesas com a firmação seminarística, em alguns casos o próprio padre
presenteia o seminarista com dinheiro, mas na maioria das vezes ele passa a função de
articulador de benfeitores162 para o jovem. É o padre quem articula a paróquia ou a
comunidade para que contribua com o seminarista nas suas despesas.
Outro sujeito é a comunidade, ou o povo, que se refere aos fiéis que participam da
Igreja. Se por um lado capela e paróquia se referem mais a parte administrativa da Igreja, por
outro lado, os termos comunidade e povo se referem estritamente às pessoas envolvidas nas
atividades religiosas. Esta distinção terminológica é importante para percebermos como o
valor econômico do dom vai se transformando em um valor simbólico, ou melhor, sem perder
o valor econômico, passa a ser observado a partir de um valor simbólico.
Por exemplo, em uma das vezes que pude acompanhar Rafael durante a celebração da
missa, o padre explicou que a coleta, o ofertório daquela missa seria destinado ao seminarista.
Assim, enquanto se dava prosseguimento com a missa através do canto de ofertório as pessoas
da comunidade se levantavam de seus bancos para depositarem alimentos, roupas, mas
principalmente dinheiro num ambiente preparado previamente na frente da mesa do altar.
Assim, ao passar do dom dado pela capela para o dom dado pela comunidade durante a
celebração da missa no momento do ofertório, percebemos aí uma passagem do dom
estritamente econômico para o dom como capital simbólico, mesmo não perdendo o seu
aspecto econômico.
Por fim, a terceira figura recorrentemente citada quanto às questões econômicas é a
madrinha, sendo a figura feminina para esta função mais comum do que a masculina. O
padrinho geralmente aparece associado à figura da madrinha, sendo que dificilmente ocorre o
contrário. No entanto, para efeitos de análise, desconsiderando os aspectos de gênero aqui
implicados, percebemos que a figura da madrinha, se caracteriza através da reciprocidade, da
hierarquia e do patrocínio (Lanna, 2007)
162
Importante ressaltar que os benfeitos nem sempre figuram como padrinhos ou madrinhas. Enquanto que estes
conhecem e acabam tendo uma relação mais íntima com o formando, os benfeitores contribuem com “o
seminário” ou “os seminaristas” de forma geral, sem criar vínculos pessoais.
324
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Para Lanna e “de acordo com Mauss, um presente é tudo o que é dado e
recebido e cria uma obrigação de reciprocidade. Pode ser uma prestação material ou imaterial,
incluindo visitas, hospitalidade, convites, festas e até mesmo homenagens” (2000, p. 125126). No caso dos seminaristas em relação às madrinhas, as retribuições são feitas aos poucos
através de pequenas dádivas, como visitas durante as férias, para as madrinhas que moram
longe, geralmente na paróquia de origem; ou visitas nos finais de semana, para aquelas
madrinhas que residem próximas ao seminário ou nas comunidades em que os seminaristas
fazem pastoral. Há ainda aqueles que enviam cartas, cartões de festas para natal ou páscoa ou
cartas com mensagens religiosas mensalmente.
Vale destacar aqui que o que circula não são somente coisas, mas é o próprio
seminarista que, através das visitas, circula como forma de possibilitar o contradom. De outra
forma, “o afilhado é ao mesmo tempo um sujeito que dá e um objeto que circula e, com uma
importância muito semelhante aos das mulheres descritas por Lévi-Strauss [...], é uma valor
simbólico e um transportador de valor (Lanna, 2007., p. 129).
Como os presentes que a madrinha dá ao seminarista sempre são maiores do que
aqueles que ele retribui, impossibilitando o reembolso integral do dom, o seminarista sempre
fica numa posição hierárquica inferior quanto as madrinhas. Analisando as expressões “de
nada”, “de graça” e “obrigado” é que percebemos os aspectos políticos dessas relações de
troca. Ser grato ao dizer “obrigado” significa que se está formalmente no dever de retribuir
um favor: “Eu sou obrigado”. A pessoa que fez o favor, portanto, assume uma posição de
superioridade, pois quando ela responde “De nada” ela liberta da “obrigação”. Assim, as
trocas “De graça” possuem se caracterizam pela reciprocidade e assimetria (Lanna. 2007, p.
129).
Não obstante, ocorre que em algumas vezes, os sistemas de trocas são rompidos,
estando geralmente associados às desistências dos seminaristas do processo de formação.
Dessa forma, questionamos: como ocorre a quebra do sistema e no que isto pode implicar?
Quais os meios utilizados por parte dos seminaristas para que interromper o sistema de trocas
que foi estabelecido no decorrer dos anos de seminário? Sair do seminário implicaria
necessariamente na quebra do sistema?
325
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
CONCLUSÕES
Ao se submeter ao processo de formação sacerdotal, cria-se implicações econômicas que
devem ser enfrentadas pelos seminaristas. Neste sentido, pode-se verificar que a família é a
primeira figura social que, junto com o jovem, está implicada nas questões financeiras para o
ingresso no Seminário. Quando um jovem decide sair de casa ele coloca em desequilíbrio a
reprodução social da família e, simultaneamente, deixa de ser um membro ativo
economicamente. Não obstante, ele passa a gerar despesas não previstas no orçamento
daqueles que ficam, pois, por mais que existam alguns mecanismos que auxiliam o sustento
financeiro do seminarista, é sobre a família que recai a responsabilidade de manter
financeiramente o filho durante os primeiros anos no processo formativo.
Paulatinamente, no decorrer dos anos de formação, mais pessoas vão se envolvendo no
auxílio financeiro desses jovens, ou são envolvidas geralmente por sugestão do próprio padre.
Estas pessoas, geralmente denominadas de madrinhas, além de auxiliar os seminaristas com
dinheiro, os presenteiam com roupas, computadores, aparelhos eletrônicos, material de
higiene, e, em contrapartida, os seminaristas retribuem com visitas, cartões, orações.
Além disto, surgem neste processo a paróquia e a comunidade do próprio jovem
formando. Geralmente articulada por sugestão do pároco, a paróquia, enquanto órgão
administrativo, contribui com o seminarista pagando as mensalidade. Outras vezes, quem
assume este compromisso é a própria comunidade ou o povo, enquanto conjunto de fiéis que
enfatizam o aspecto religioso e simbólico das doações.
O problema surge justamente pela ampliação do sistema de trocas na quais cada vez
mais sujeitos se envolvem, promovendo uma inflação na quantidade de presentes que são
dados aos seminaristas (não são poucos os que afirmam que ganham o suficiente e que às
vezes até sobra). Por outro lado, ocorre um comprometimento cada vez mais crescente de
retribuir aquilo que lhe é dado, ou seja, são obrigados a retribuírem de alguma forma aquilo
que ganham, sendo que a ordenação é um dos presentes esperados pela maioria daqueles que
se acham envolvidos no sistema. No entanto, ela mesma não coloca fim no sistema.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Por um lado, mesmo após ordenado, os recém-formados padres mantinham um
comprometimento de continuar visitando suas madrinhas e suas comunidades. Por outro lado,
aqueles que cogitavam sair do seminário ou que acabavam efetivamente saindo, eles
apontavam a volta para a casa dos pais, e para a comunidade, como um meio de ajudar mais,
de contribuir mais com aqueles que o tinham ajudado até então.
Na realidade, a assimetria gerada pelas trocas coloca um dos pares em situação
de desvantagem e de obrigação para com o outro, possibilitando manter o sistema. No caso da
formação dos seminaristas, as trocas estão sempre em relação - dando, recebendo e
retribuindo – sendo que as coisas, as pessoas e os valores que circulam influenciam
fortemente a decisão vocacional para se ordenar padre ou então para sair do seminário.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. 1966. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São
Paulo: Edusp.
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Sociologia e Política, n. 14, p. 173-194.
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Estudos Feministas, Florianópolis, 12(1): 253-267.
327
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
PARENTESCO DE CONSIDERAÇÃO, UMA FORMULAÇÃO DO
PARENTESCO MURA
Fernando Augusto Fileno,
[email protected]
CAPES
PPGAS-USP
Mestrando
A construção da comunidade Mura e suas relações com outros grupos locais, desenrolam-se
como processo sob o fundo das dinâmicas de construção do parentesco. A centralidade do
parentesco no processo de socialidade o conjuga como produto histórico-político que tem
como razão a administração da tensão entre a atração e a repulsa pelos Outros. O parentesco
de consideração surge como uma formulação do parentesco mura, é através da chave desta
gramática que tratamos o tema da alteridade e do perigo iminente que sua presença apresenta
para o “trabalho” de fundação da aldeia, o tuxáua mura, surge não apenas como artífice deste
processo, mas igualmente como dono da agência responsável pela conjugação das forças
centrípetas e centrífugas que respondem a formação e disrupção das unidades cognáticas
locais.
Palavras-Chaves: Parentesco, Parentesco de Consideração, Mura, multilocal, alteridade
***
“Pode vê, eu sei que é meu pai que ta chegando daqui [da Beira],
reconheço só pela remada.”
(Entrevista no Aldeia do Piranha em 2014)
Imagine uma população que soma hoje mais de 12 mil indivíduos, dispersos por mais
de 41 Terras Indígenas (TI) descontinuamente localizadas no estado do Amazonas (AM) junto
ao complexo hídrico dos rios Amazonas, Madeira e Purus, bem como residente em diversos
municípios da região,163 que em seu passado, desde as primeiras crônicas coloniais produzidas
sobre a Amazônia alcançavam cifras muito mais elásticas. Povo de língua mura, hoje falante
do português, permanece ainda como uma das populações indígenas menos estudadas pela
etnologia americanista atual apesar de sua expressão demográfica e presença ativa no cenário
163
Os dados foram coligidos do último censo (IBGE, 2010) e da Enciclopédia virtual sobre os Povos Indígenas
do Brasil do Instituto Socioambiental (ISA)
328
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
político e social da região. Temas caros a este campo de pesquisa como a organização social,
os sistemas de parentesco e a noção de pessoa ganham um espaço privilegiado para discussão
em nosso objeto observacional, o coletivo Mura. Entretanto, sublinhamos, tomamos o cuidado
para que a elaboração destes problemas em nossa pesquisa não tendam a uma objetificação
destes como coisas, mas antes abram a possibilidade para uma perspectiva dialética para o que
entendemos como socialidade.
Nosso trabalho, ainda em fase preliminar, baseia-se na pesquisa de campo
desenvolvida na T.I. Cunha-Sapucaia da etnia Mura localizada no município de Borba (AM).
O território que hoje conta com 460.000 hectares de área contínua, grande reserva de floresta
primária, tem suas aldeias instaladas às margens dos 110 quilômetros do rio Preto do IgapóAçu. A abordagem da qual lançamos mão desvincula-se daquela corrente que toma o presente
Mura como indissociável dos estudos do contato. A esse respeito, o coletivo Mura tendia a ser
focalizado a partir de chaves de leitura históricas e identitárias. As análises que discorreram
sob uma perspectiva diacrônica abordavam questões relacionadas à territorialidade (Athila,
1998), Moreira Santos (2009), a construção da diferença (Dias da Costa, 2008) e eventos de
contato (Castro Pereira, 2009). Trocamos não apenas as paredes para uma nova casa, mas
também os esteios aos quais elas se fixavam. Para a definição e descrição da organização
social Mura, cujo caráter clássico do tema cria as balizas necessárias para um pesquisador
iniciante, seria necessário percorrer os mesmo caminho, as redes que constituem o espaço das
aldeias, porém com novas questões sobre a articulação dos papéis rituais, das alianças
matrimoniais e das trocas comerciais que as compõe. A possibilidade de enxergar a dimensão
da expressão e funcionamento de um modelo de relações multicomunitárias guiará nossa
próxima visita a campo e a condução de nossos trabalhos.
Atestamos a origem de nossa inspiração na análise do conjunto multicomunitário
político e cerimonial yanomami (Albert, 1985) no qual é descrito o papel estrutural das redes
de aliança matrimonial que, por meio de seus personagens, engendram os circuitos pelos quais
produtos de outra natureza irão circular. Partindo de um contexto etnográfico distinto para
pensar, antes dos bens de circulação, os personagens destes circuitos, marcamos a
centralidade das alianças matrimoniais, a clef de voûte da estrutura social, no presente vivido
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Mura. Tal processo é parte da construção do parentesco, o qual é o tema central da nossa
apresentação traduzido através da categoria do “parente de consideração”. Desejamos elucidar
a posição deste componente como peça de articulação, uma espécie de dobradiça entre o
interior e o exterior, responsável pela dinâmica do sistema.
As aldeias mura são espaços políticos e cosmopolíticos (Amoroso, 2013), onde as
redes de relações e trocas, traçadas desde o seu interior, estendem seu contato para o exterior,
canais de comunicação que mobilizam tanto entidades humanas como não-humanas. A
atividade de mediação entre alteridades tão distintas exige um conhecimento especializado do
qual apenas algumas figuras mantém plena habilidade para sua execução, apesar da rede
enredar a todos em nível e com potenciais variáveis. De um lado estão os pajés, artífices de
um sistema xamânico que estabelece contato com entidades de outros mundos e peças
imprescindíveis no tratamento de doenças e proteção dos corpos; de outro, os tuxáuas (pearas)
os quais encarnam os processos de fundação e manutenção das aldeias. Ambos portadores de
funções importantes para o cotidiano da aldeia; aqui, iluminam e sublinham sob perspectivas
diferentes a posição dos “parentes de consideração” tantos os seus como os dos outros. Antes
de adentrarmos nosso tema, necessitamos realizar uma caracterização da figura dos pajés e
dos tuxáuas, principiemos do último.
Sobre o cotidiano da aldeia operam processos centrípetos e centrífugos, movimentos
nos quais a gênese e a disrupção destes adensamentos populacionais resultam da agência dos
tuxáuas mura, ou peara como se auto-definem, e sua capacidade de resguardar sob sua égide
os ideais de uma comunidade cognática. A figura do chefe, essencial em a nossa análise, já há
muito recebeu uma extensa atenção pela literatura etnológica americanista. As descrições do
chefe Nambiquara realizadas por Claude Levi-Straus em Tristes Trópicos (1957 [1955]), bem
como a elaboração do discurso filosófico que envolve a posição e os encargos dúbios do chefe
indígena por Pierre Clastres em A Sociedade contra o Estado (2003 [1974]), influenciariam os
trabalhos que décadas mais tarde se voltariam aos chefes amazônicos, xinguanos e tupis.
Quando perguntado sobre o significado da palavra peara, a resposta costumeira
contempla a alegoria de uma vara de porcos do mato, para nos explicar que “peara é aquele
que vai na frente, o mais bravo que lidera o grupo todo, como por exemplo, numa vara de
330
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
porcos.” Do mesmo modo, o Tuxáua mura seria aquele que está adiante de todos, seu
posicionamento à frente coloca a liderança como denominador comum do coletivo, sua
postura parece denotar um ideal de dono, como transparece a associação ao bando de bichos,
como se aquele que vai à frente fosse dono daquele agregado. Verificamos com
contentamento uma mesma constância na filosofia política ameríndia que Levi Strauss
encontrou na resposta de um chefe Nambiquara, este repetia aquela narrada por Montaigne
em 1560 de um indígena que era chefe e dizia que seu privilégio “constituía em marchar na
frente em caso de guerra” (Levi-Strauss, 1957 [1955]: 329). Da mesma maneira, não mais no
caso limite da guerra, o peara parece ser a haste central de fundação da aldeia; reunir em
torno de si as habilidades políticas necessárias para manter os filhos e as filhas casados em
torno de sua órbita residencial, evitar a dispersão de parentes e gerir a possibilidade de novos
casamentos fazem parte da ordem prática da construção dos grupos. O evento de nascimento
da aldeia Mura, então parece “expressar o dinamismo político dos velhos tuxauas”, como
afirma Marta Amoroso (2013: 103).
“...se você quer casar você vai casar, mas você vai puxar sua família
pra cá porque aqui é nossa aldeia, aqui é nossa cidade. Você não vai
pra lá, você vai morar aqui perto da gente. Quer dizer, aí as coisas vão
crescendo muito mais. Agora, o lado de pai e mãe já não é meu lado.
[...] Eles são de uma comunidade, elas são de outro, aí fica difícil, né?
Elas querem puxar ele pra lá pra comunidade deles e eles também têm
de fazer força pra puxar prá cá aí fica difícil dividir, aí escolhem qual
for o lado melhor.” (E., aldeia do Forno, 2014)
O cabo de guerra desenhado entre duas famílias também está presente entre duas
aldeias, “fazer força” também é atribuição do chefe de cada uma delas. A condição da qual se
encarga o tuxáua mura assemelha-se às obrigações de tantas outras chefias na América
indígena, comentemos o caso entre os Yudjá, povo tupi do médio Xingu, ali a chefia está
diretamente relacionada ao conceito de iwa. Glosado como “dono” pelos Yudjá é, como
331
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
explica Tânia Stolze Lima, “bem uma ideia de relação, e ela é importante por consistir em
meio de criação das unidades sociais, por fundar um dos modos da socialidade e articular os
processos da vida social a uma função-Eu, razão de existência das unidades e dos processos
da vida social” (2005: 94). O termo yudjá para chefe, o iju’a, glosado como “dono da aldeia”,
diz respeito àquele que, para além da iniciativa de fundação da aldeia, é dono de seus
seguidores, dono das palavras, dono da casa do cauim, onde se realiza a atividade pela qual os
Yudjá se definem, o consumo de bebida fermentada. Assim, como o bicho, cabeça do bando
animal ou mesmo o tuxáua mura, o iju’a é definido pelo conjunto daqueles que estão ao seu
redor, estando à frente do grupo reunido por ele, torna-se dono de seu destino.
À vista dos tuxáuas não estão apenas os homens, sua influência política entretanto,
cessa quando se tem não-humanos como interlocutores. A figura do pajé a quem agora damos
atenção define-se no trabalho da tradução, aquele que “liga mundos cortados entre si”
(Carneiro da Cunha, 2009: 112). Os Mura vivem embrenhados em ambiente de alteridades, o
espaço físico das aldeias também é o limite da segurança, seja em direção à floresta, ao centro
ou à margem dos rios e igarapés, a beira, tem-se a diante os lugares onde habitam as entidades
não-humanas, os caboclos do fundo e do centro. Estes seres, conhecidos como encantados,
concentram em si faculdades que ultrapassam as fronteiras entre mundos, mobilizados pelo
pajés-sacaca, servem como espíritos auxiliadores tanto na cura de enfermidades como
representam oponentes à tarefa de resgate das sombras de vítimas destas entidades164.
A competência do pajé lhe permite o convívio com os encantes, “eles vêm no corpo”,
são eles que os conduzem através de suas cidades ou jardins, “como a cidade onde nós vive,
eles vivem lá nas mesmas condições, a natureza, tudo igual, tem uma cidade lá embaixo”,
quem a visita não pode comer nada do que lhe oferecem “porque tudo que tem aqui, tem no
fundo”, completam para nós. Ter sua sombra sequestrada é o mesmo que ter sua perspectiva
aliciada, assim diz esse material que, para além de subtender a teoria basilar do
perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 1996), também é uma referência para
discutirmos a construção do parentesco mura e do tema de nossa apresentação, o “parente de
consideração.”
164
Ver mais em Amoroso, 2013.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Nosso interesse pela produção do parentesco nos aproxima da etnografia piro (Gow,
1991). Nela, há uma valorização das relações internas ao grupo local – sublinhando o caráter
íntimo da economia nativa – entende a construção dos laços sociais a partir do
compartilhamento de substâncias e memórias. As relações de parentesco e, portanto, a
comunidade piro, só podem se concretizar através dos circuitos de troca de alimento e
cuidado. No cotidiano da aldeia mura é a dinâmica do parentesco que orienta os contratos
tácitos entre os membros da comunidade “sabe por quê?”, nos perguntam-respondendo:
“Porque nem todas as vezes a gente tem almoço e janta em casa, se caso eu não ter, se caso a
Débora tem, ela manda pra mim. Aí caso ela não ter eu mando pra ela, é o almoço ou a janta
dela. Esse é o modo, um ajudando o outro.” O circuito das trocas obedece as linhas
genealógicas que estão sobrepostas às linhas vicinais, dentro do grupo de sibblings circulam
os alimentos trocados formando uma rede que contempla toda a aldeia. Os convites para
comer, ou melhor, “merendar” são recíprocos, esperando sempre a melhor ocasião para ser
correspondido, eles amparam a comunidade local cujo processo de socialidade diz respeito à
centralidade do parentesco.
Nada é mais comum do que, quando o sol esta a pino, observar uma ou outra criança
carregar uma panela consigo de uma casa para outra, são estes os personagens que
diariamente realizam a intermediação entre bens e mensagens que viajam pelo terreiro da
aldeia. A casa não se encerra na família nuclear, ao contrário, ela traz em seu interior todo o
grupo cognático, se não existe casa comunal, existem múltiplos caminhos desenhados pelos
pés dos membros do grupo que ligam uma casa à outra. Como diz Vieira a respeito da casa
principal entre os Potiguaras, seguindo sugestão de Viveiros de Castro, considera-a “como
sendo “focal”. Por um lado, ela é principal por superpor vários atributos: posição espacial,
frequência de comensalidade e cooperação econômica entre as casas conjugais, bem como a
concentração da posse da terra e a referência parental, tal como observamos em relação aos
“troncos velhos”” (Vieira, 2001:60). Apesar da relevância da casa principal no presente Mura,
sua centralidade não pode ignorar o papel análogo que as outras residências igualmente
multiplicam.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
O domínio social aqui e alhures, deixa-se acossar-se a todo momento por forças
descentralizadoras, o limite da coesão é flexionado por um movimento rizomático que
flexiona o destino do grupo local em seu plural. Assim é quando me diz o tuxáua, “agora, o
lado de pai e mãe já não é meu lado”, pois as vezes, a agência dos tuxáuas, ou sua “funçãoEu”, para usar uma expressão cara à Stolze Lima, não impõe-se plenamente contra as forças
faccionalistas que emergem no interior da aldeia. A construção do parentesco tende entre a
atração e a ameaça postos pelo contato com a alteridade, a quietude das tarefas diárias
perturba-se somente pela agitação provocada pela chegada de algum conhecido ou
desconhecido à aldeia. “Quem será que vem vindo?” dispara sempre como questão quando o
ruído de motor de barco soa aos ouvidos e todas as atenções se voltam ao rio, vem de lá
sempre, sejam amigos, parentes, estrangeiros ou não-humanos. A alteridade norteia a
produção de relações, enquanto valor simbólico, ele é “operador sociocosmológico central”
(Viveiros de Castro, 2002: 336).
O “parentesco de consideração”, categoria nativa a qual nos dedicamos, representa
uma posição ativa como modulador das dinâmicas entre o interior e o exterior. Como posição,
ele traduz o que Viveiros de Castro convencionou chamar de “terceiros incluídos” (1986:
434), logo, o “parente de consideração” é uma manifestação clara do operador que media
posições irreconciliáveis, tais como o interior e o exterior, o cognato e o inimigo, o individual
e o coletivo, os vivos e os mortos. O “terceiro incluído” é antes de tudo, o afim potencial; a
polissemia em torno da categoria do afim na Amazônia denota a multiplicidade de
destinatários aos quais ele se direciona (Viveiros de Castro, 1993: 163). Assim também o é o
caso Mura, como eles afirmam: “tem muitos [parentes] que é de consideração, quando fica
com uma parente da gente, a gente considera ele como um tio como um avô, ou, então
mesmo, quando os filhos dos meus, por exemplo, se eu considerar..” O que está em curso
aqui, comum a todo o cenário amazônico, é um processo de apagamento da afinidade, ou, o
englobamento dos contrários como chama Viveiros de Castro a partir de Dumont (1993:174),
a posição ambígua do “parente de consideração” decorre de sua origem externa, apesar de
consanguinizado terminológica e atitudialmente, ele jamais deixa de ser portador de
incertezas.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Pede-se benção, expressão proferida oralmente a cada encontro entre parentes de
gerações distintas, para o tio de consideração como se pede ao tio “de sangue”, tal atitude
marca o respeito para com os mais velhos e sustenta os laços de filiação, sejam eles
classificatórios ou efetivos. A consideração aqui é também um valor englobante, como
categoria ela já foi analisada através do modo de vida dos habitantes do manguezal costeiro
localizado no sul do estado da Bahia por João de Pina-Cabral e Vanda Aparecida da Silva. O
parentesco de consideração, naquele contexto, é produto de um investimento, quem acena a
consideração para outro dá sinal de que a pessoa é “parte constituinte da sua edificação afetiva
e identitária” (Pina-Cabral&Silva, 2013: 25-26). Lá, diferente daqui, o foco reside na
participação como exigência para a consideração, a interrelação conjuga-se como parte do
processo de criação de um ser vivo e de uma pessoa, portanto, ela diz respeito ao conceito de
relação. Já no caso em que estudamos, o vínculo sublinhado é, antes de tudo, o da aliança
matrimonial como é afirmado na sentença: “minhas sobrinhas chama ele de tio porque ele tá
com a minha irmã.” O afim no interior do grupo cognato é uma “sub-espécie de
consanguíneo” (Viveiros de Castro, 1993:166), porém sua qualidade de afim jamais tenderá a
zero, assim se passa nas relações cotidianas, nas opiniões que uns guardam dos outros, nas
divisões que se acentuam nos momentos de crise.
Chegamos aqui ao cerne de nosso argumento, a inclusão destes terceiros são uma das
razões de dinamização do sistema, a razão da sua criatividade, mas também o prenuncio da
fissão. O “parente de consideração” está na condição de afim, seja ele humano ou nãohumano, pois o boto, uma das entidades do fundo, também é conhecido como um sedutor
pérfido, atraente amante que persuade as mulheres da aldeia a deitar-se com ele, assim como
dizem as diversas narrativas que pululam sobre sua figura. Apesar de jamais termos ter
escutado em campo alguém referir-se a um boto como seu parente, os efeitos das suas ações
potenciais associam-se àquelas de um afim potencial. Então, do mesmo modo que o tuxáua
deve “fazer força” para que as famílias permaneçam em torno do núcleo da aldeia, os pajés
são igualmente responsáveis pelo resguardo do corpo dos membros do grupo (Amoroso,
2013: 108).
335
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Por outro lado, os “parentes de consideração”, em sua posição diferencial e limiar,
retiram a existência social de sua inércia, a diferença entra aqui como “princípio metafísico
ordenador da organização social” (Overing, 2002 [1984]: 117-118), sua ausência definida pela
identidade plena está associada ao mundo dos mortos e da imutabilidade. Sua presença,
enquanto sinônimo de diferença, é também desdobramento das relações intercomunitárias,
vias pelas quais irão circular pacientes de pajés ou benzedores, parceiros comerciais e
parentes de outras residências. As festas de Santo, tradicionais cerimônias católicas de muitos
municípios do interior do estado do Amazonas, nas aldeias do rio Preto do Igapó Açu nascem
do cumprimento de promessas atendidas, cada aldeia tem sua Festa de Santo dedicada a um
padroeiro distinto, sua ocasião também representa um momento de criação e extensão de
novos laços, como os vínculos de compadrio. Estes últimos, laços de amizade formal que
depreendem obrigações de respeito recíproco.
A afinidade subsiste sob o ajuste cognático, por mais que a “ficção endogâmica”
(Rivière 2001 [1984]: 67) seja um valor a ser prezado, a alta mobilidade dos assentamentos
individuais ainda funciona como contraregra “porque o índio é o seguinte, ele mora mora
mora junto, aí ele se agonia e vai embora”, assim nos diziam. O movimento de força
centrífuga irrompe como o imponderável histórico e político da vida social, a cadeia de
alianças matrimoniais espraiam o conjunto da comunidade para além das fronteiras da aldeia e
mesmo do território indígenas. Para usar como referência novamente o exemplo de Stolze
Lima, “aldeia yudjá não é em absoluto a sociedade” (2005: 102), assim também
consideraríamos o caso Mura. Ainda mais em um momento da disciplina antropológica em
que o conceito de sociedade tem sua validade questionada (Wagner, [1974] 2010, Strathern,
[1989] 2014; Viveiros de Castro, 2002). A aldeia é apenas um centro gravitacional formado
pela família extensa, na sua exterioridade prevalece a afinidade como um espaço prenhe de
possibilidades, mesmo englobada no interior do grupo local, no exterior ela tende a ser
diferenciada, sobre um individuo de outra aldeia explicitaram: “é nosso parente porque ele é
Mura também, né? Mas de sangue de sangue não. Porque é Mura é parente também, né?” O
sangue está em correlação com a genealogia, do mesmo modo como o ser Mura é dependente
da geografia, pois deslocar além das fronteiras conhecidas do território e da relação pressupõe
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
assumir o risco de olvido. Visto que, não nos era raro escutar histórias de parentes que já não
moravam mais ali e nada mais se sabia deles, aos laços destes com outros seria pressuposto o
juízo da dúvida como se destaca em um caso relatado a nós: “Ai eu vou lhe dizer, vou ser bem
sincero contigo, “eu não te conheço, não sei se tu é meu parente, mas bebida eu não te dou
não”. Ai ficou por lá... Ele julga que é meu parente e eu não conheço ele.” A indiferença, o
perigo e o não-parentesco progridem proporcionalmente à distância geográfica percorrida ou a
inexistência de comunicação entre as partes.
Como sublinhado no início desta fala, nossa pesquisa ainda se encontra em sua fase
preliminar, o primeiro conjunto de dados levantados nos chamaram a atenção para a presença
e relevância dos parentes de consideração. Quando requerida a confirmação de que se tal
pessoa era um parente, confirmava-se acrescendo o complemento nominal “de consideração.”
O “parente de consideração” repousa em uma posição dúbia, seja na condição de estrangeiro,
sogro, genro, tio, avô ou em mais de um termo sobreposto, ele conquista um recanto na aldeia
e constrói sua casa passando a viver sob a égide da conjugalidade entre afins, ou dito de outro
modo, a aldeia serve-se da conjugalidade para estar entre consanguíneos. Apesar dos dados
terminológicos levantados em campo não terem demonstrado produtividade para a definição
de um sistema de parentesco formal, nos concederam hipóteses de trabalho que nos conduzem
para fora e além do grupo cognático local.
Desenhamos em linhas gerais um quadro que desejamos ultrapassar, os parentes de
consideração não são apenas pontes que conduzem para fora do espaço social da aldeia, eles
são a própria aldeia, assim como a aldeia não se resume ao espaço do assentamento. “A
sociologia da Amazônia não pode limitar-se a uma sociologia do parentesco (ou sua mera
“sublimação cosmológica”) porque o parentesco é limitado e limitante ali” (Viveiros de
Castro, 1993: 158). Corroboramos com essa asserção através da projeção que uma análise
multilocal proporcionará ao futuro da nossa pesquisa. Entretanto nossa mirada ainda se finca
no local como referência primeira, pois como ‘trabalham’ nossos informantes, igualmente
iremos ‘trabalhar’, como se diz, o Mura é como um tucunaré, pois “o índio ele volta, demora,
mas volta, é difícil um índio morrer pra lá pra cidade, ele volta pra aldeia dele”.
337
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
“DEIXA EU COMEÇAR DO COMEÇO”: REFLEXÕES SOBRE
RELAÇÕES FAMILIARES E A CONSTRUÇÃO DA CATEGORIA
“INCAPACIDADE PARA OS ATOS DA VIDA CIVIL” NO PROCESSO
DE “INTERDIÇÃO JUDICIAL”
Helena Moura Fietz
[email protected]
Capes
PPGAS-UFRGS
Mestranda
Este artigo aborda a categoria jurídica “incapacidade para os atos da vida civil” enquanto uma
construção sócio-histórica que está conectada a dimensões morais, valores e afetividades. O
que se almeja é levantar questões sobre a forma como esta categoria é negociada entre os
sujeitos na experiência de um processo de interdição civil. Acompanhar as narrativas de um
processo judicial de interdição é acessar histórias familiares muito mais amplas, que incluem
questões afetivas, econômicas e morais. Partindo de uma entrevista realizada com uma
familiar envolvida e da análise do processo do qual fez parte, busco observar que outras
categorias são mobilizadas nestas negociações. Essa perspectiva traz à tona diversas relações
familiares que muitas vezes sequer aparecem no processo judicial.
Palavras-Chave: Interdição Civil – Economia moral - Relações familiares - IncapacidadeCuidado
INTRODUÇÃO
Este trabalho foi desenvolvido a partir de minha pesquisa de mestrado em
Antropologia Social pela UFRGS que se encontra em fase inicial de desenvolvimento. Desta
forma, apresento alguns pontos iniciais de discussão a fim de pensar como certas famílias
vivem a experiência da possível interdição civil de um de seus membros. Parto da hipótese de
que a decisão das famílias de ingressarem ou não com o processo de interdição judicial vai
além da “incapacidade” do sujeito a ser interditado e envolve outras questões familiares que
podem não aparecer nos autos do processo judicial. Questões que estão muitas vezes
relacionadas à economia moral da família e/ou ao cuidado para com o chamado interdito.
Não estou tomando aqui a categoria “incapacidade”
165
como auto evidente. Ao
contrário, entendo-a enquanto uma construção sócio-histórica tal como faz a antropóloga
estadunidense Emily Martin em sua obra Bipolar Expeditions: Mania and Depression in
165
Para os fins deste artigo, sempre que mencionar “incapacidade”, estarei trabalhando com a categoria
“incapacidade para os atos da vida civil”.
340
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
American Culture (2007) ao falar sobre a psicose maníaco-depressiva. A autora destaca que
tanto a mania quanto a depressão são categorias sociais e culturais e não somente categorias
médicas. Isso porque a dicotomia “racionalidade”/“irracionalidade” – a qual é desconstruída
pela autora durante sua obra-, está diretamente ligada com o conceito que cada sociedade tem
de “condição de pessoa” (personhood). Assim, os sujeitos que em determinado contexto
histórico e cultural são considerados “irracionais”, são vistos como menos pessoas ante a
perda da racionalidade, da autonomia e da volição. A linha entre “racionalidade” e
“irracionalidade” é tênue e constantemente atravessada pelos sujeitos, e é entre estas duas que
ocorre a maioria das práticas sociais (MARTIN, 2007).
Também me baseio no trabalho da antropóloga brasileira Cintia A. Sarti para pensar a
“incapacidade” enquanto uma categoria construída. Ao trabalhar com a violência e políticas
de saúde pública no Brasil, a autora problematiza a construção social e histórica da categoria
“vítima”, destacando que se trata de uma
“Categoria histórica, seu significado define-se contextualmente, na dinâmica dos
deslocamentos de lugares que marca as relações intersubjetivas, situadas em
estruturas sociais de poder no interior das quais os conflitos são negociados. Trata-se
de compreender os mecanismos sociais e políticos de reconhecimento e nomeação
da violência pelos quais a pessoa, na acepção de Mauss (1974b), é construída como
vítima, a gramática moral que lhe dá a sustentação e, no plano do sujeito, a
percepção subjetiva de si mesmo como tal.” (SARTI, 2011:54)
Também Didier Fassin e Michel Agier ao explorarem a noção de governo
humanitário, fazem uma profunda e densa análise de como a categoria “vítima” vem sendo
construída através dos diferentes discursos, práticas e saberes presentes no contexto do
humanitarismo. Segundo Fassin, assim como o trauma constrói o traumatizado, o
humanitarismo seria o responsável por construir a vítima (FASSIN, 2012). O período que
estamos vivendo tem sido associado por muitos autores como a “era das vítimas”. Conforme
coloca Sarti, autores como Eliacheff e Larivière (2007) e Koltai (2002), trabalhando com
questões de direito e saúde, problematizam esta excessiva vitimização a partir da noção de
Transtorno Pós-traumático. Frente as mudanças causadas por diversos fatores históricos e
sociais, teríamos hoje a “vítima” como uma “representação de subjetividade”, uma vez que
ser reconhecido como tal garantiria a reparação (SARTI,2011).
341
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Pensando a partir do conceito de economia moral trazido por Didier Fassin,
questiono-me se a época em que estamos vivendo provoca alguma mudança de sentido na
categoria “incapacidade”. A economia moral conecta valores e normas e deixa claro que estes
não são separados das emoções. Da mesma forma, destaca a importância de uma análise
histórica e social, uma vez que é fundamental observar as configurações morais de cada
sociedade – ou de segmentos da sociedade- em momentos históricos específicos. O autor,
através de uma série de exemplos faz a conexão entre o aspecto sócio-histórico e o aspecto da
emoção, da vivência e dos valores individuais, salientando que “a antropologia da economia
moral enfatiza questões e conflitos morais, sua inscrição histórica e sua dimensão política”.
(FASSIN 2009: 29 tradução nossa).
Evidente que neste curto artigo não poderei explorar todas as dimensões de tão amplo
tema, mas buscarei levantar algumas pistas sobre as possibilidades de se problematizar a
construção da categoria “incapacidade” a partir das negociações envolvidas na interdição
civil. Mesmo ciente da importância da dimensão sócio-histórica, irei reservar este aspecto
para pesquisas futuras. Neste momento busco pensar como esta categoria jurídica é negociada
pelos sujeitos em um processo judicial de interdição. Focarei minha análise, portanto, na
experiência dos atores.
Veremos como os conflitos morais que emergem têm muito a ver
com questões de família, gênero e as expectativas em torno da noção de cuidado. Se como
afirma o antropólogo britânico Tom Shakespeare ao referir-se aos estudos feministas “o
pessoal é político”, tal análise não deixará de contemplar – ainda que indiretamente- a
dimensão política da construção da categoria, que poderá ser observada também a partir da
dimensão pessoal da experiência daqueles envolvidos em um processo de interdição civil
(SHAKESPEARE, 1999:54).
Para ilustrar estas negociações, trago para discussão uma disputa judicial entre um
irmão e uma irmã pela declaração de “incapacidade” de sua mãe. Durante está negociação,
entraram em cena outros atores, tais como os operadores do direito e a própria legislação
vigente. O caso foi contado a mim por Luiza166, que me recebeu em sua casa em março de
166
Por questão de anonimato, ainda que não tenha sido solicitado por minha entrevistada, optei por modificar os
nomes de todos os envolvidos.
342
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
2014 para falarmos sobre o processo de interdição de sua mãe, hoje já falecida. Trata-se,
portanto, de uma rememoração de um episódio que ocorreu entre os anos 2006 e 2007, mas
cujos efeitos são até hoje sentidos. A narrativa escolhida se mostra representativa de questões
com as quais tenho me deparado em meu ainda incipiente campo de pesquisa - realizado
episodicamente durante os meses de março a outubro em Porto Alegre - principalmente no
que tange ao cuidado167 para com aquele a ser interditado. A análise será feita com base em
uma entrevista semi-estruturada, a qual não foi gravada por pedido da entrevistada.
Com isto, busco problematizar as negociações envolvidas na produção desta
“incapacidade”, pensando-a enquanto um processo que tem início em negociações anteriores
ao “mundo jurídico”. Acompanhar as narrativas de um processo judicial de interdição é
acessar histórias familiares muito mais amplas, que incluem questões afetivas, econômicas e
morais. Essa perspectiva traz à tona diversas relações familiares que muitas vezes não
aparecem no processo judicial, principalmente no que tange a dimensão do cuidado para com
o interditando. Este artigo não se pretende conclusivo, mas um exercício para que sejam
levantadas questões acerca das negociações envolvidas na construção da categoria
“incapacidade”.
“DEIXA EU COMEÇAR DO COMEÇO”: RELAÇÕES FAMILIARES E CUIDADO EM
UMA NARRATIVA DO PROCESSO DE INTERDIÇÃO.
Luiza tem 60 anos, é professora estadual aposentada e mora em um bairro de classe
média de Porto Alegre. Baixinha, de cabelos pretos e curtos, fala bastante rápido e
gesticulando com as mãos. Desde o começo de nossa conversa, deixou claro o orgulho de sua
descendência calabresa e de sua relação com a Itália através do uso de expressões naquele
idioma. Seu marido é médico e seus dois filhos são formados em Direito, um deles juiz e o
outro estuda para concursos públicos.
Ela sabe que vim a sua casa para pesquisar sobre o processo de interdição judicial
interposto por seu irmão Paulo –representante comercial com dois (de quatro) filhos também
167
A questão do cuidado – em especial o cuidado de idosos - tem sido amplamente discutida por pesquisadores
como Guita Debert, Monalisa Dias de Siqueira, Helena Hirata, Nadya Araujo Guimarães, Florence Werber, entre
outros.
343
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
formados em Direito- que pretendia que sua mãe, Dona Alberta, fosse interditada. Conforme
análise da petição inicial – único momento em que pude “ouvir” o argumento de Paulo- o
irmão afirmou que a mãe, a época com 96 anos, não tinha condições de exprimir sua vontade
em razão de seu precário estado de saúde. Além disso, afirmou que Luiza administrava todos
os bens de sua mãe em razão de uma procuração a ela outorgada e que ela não prestava contas
aos outros irmãos, tendo inclusive sido vendido um imóvel em Viamão no ano de 1991 sem
que ninguém soubesse “para onde teria ido o dinheiro”. Outro ponto relevante de sua “fala”
no processo foi a dimensão do cuidado, uma vez que afirmava que a irmã não estaria
cuidando bem de sua mãe.
Luiza, é claro, está ansiosa para me dar sua versão dessa história. Sentamo-nos à mesa
da sala e ela, com a cópia do processo em mãos, disse que para eu entender era preciso
“começar do começo”. Ao contrário do que imaginei, o “começo” não era o início do
processo judicial, mas sim, segunda a própria entrevistada, a vinda de seu pai da Itália para
Brasil, quando ela e seu irmão Paulo sequer haviam nascido. Durante mais de uma hora,
Luiza narrou em fala rápida e quase ininterrupta a trajetória de seu pai, sua mãe e seus três
irmãos: Luigi, Paulo e Antônia. Contou de forma detalhada como sempre fora responsável por
cuidar de seus pais e que sempre se deu muito bem com seu irmão Paulo, mas que há cerca de
20 anos acabaram se estranhando porque ele “se metia muito” em sua vida e que depois disso
ficaram um pouco brigados.
Descreveu detalhadamente todos os momentos em que cuidou de seu pai e de sua mãe
- cuja pensão mensal era de apenas um salário mínimo- e que vivia em uma casa próxima a
sua. Emocionou-se durante muitos momentos ao explicar como sempre foi responsável pelo
bem estar de seus pais quando estes ficaram doentes e que seus irmãos pouco ajudaram,
inclusive financeiramente. Seu pai, que durante toda a vida trabalhou como vendedor de
bilhetes de loteria e achava que “não valia a pena pagar para o INSS”, falecera antes de sua
mãe. Luiza frisou que arcava com quase todas as despesas, já que o salário mínimo da mãe
mal dava para as medicações, mas isso nunca a incomodou: “o importante era o bem estar da
mãe”.
344
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
A essa altura Luiza aponta para o processo e começa a me falar dos trâmites judiciais.
Não tinha certeza por que seu irmão teria pedido a interdição de sua mãe, mas acreditava que
foi porque, depois de anos cuidando sozinha de Dona Alberta, ela teria pedido que os irmãos
passassem a cooperar tanto no cuidado, quanto no pagamento de custos. Segundo Luiza, teria
sido neste momento que seu irmão teria tido a “ideia do processo de interdição”. A defesa de
sua mãe foi apresentada por Luiza através de um advogado contratado.
No meio de nossa conversa, enquanto eu examinava o processo, Luiza se levantou e
disse que queria me mostrar uma coisa que sempre carregava com ela. Foi até o quarto e
pegou um saquinho plástico com alguns papéis dentro e tirou um conjunto de folhas
grampeadas que havia sido dobrado em quatro partes. O papel já estava amarelado e bastante
gasto, mas ela me pediu que lesse parte em voz alta. Era a sentença proferida pela juíza,
Alguns trechos estavam sublinhados com uma caneta azul, principalmente aqueles em que a
juíza destaca o cuidado de Luiza para com sua mãe.
Contou-me que nunca explicou para Dona Alberta exatamente o que estava
acontecendo “para que ela não se decepcionasse”. Segundo Luíza, ela continuou cuidando de
sua mãe com o mesmo empenho até a sua morte, que aconteceu 2 anos após o fim do processo
e por causas naturais. Durante estes dois anos, segundo ela, o irmão, que morava com sua
família em uma casa atrás da casa de seus pais, deixou de cuidar da mãe e “sequer se dava o
trabalho de ir até a casa dela para abrir as janelas”. Após a morte de Dona Alberta, Luíza e
Paulo seguem brigando judicialmente em razão do valor de um dos terrenos deixados por sua
mãe.
Durante toda a fala de Luiza, pude perceber que sua maior preocupação não foi em
comprovar que a mãe era capaz, mas sim em demonstrar o quanto havia se empenhado no
cuidado de seus pais. Durante vários trechos ficou claro que para ela o cuidar envolvia estar
presente na vida da mãe, pois salientou mais de uma vez que ia visita-la todos os dias e que
era ela quem servia suas refeições, fazia sua comida e a acompanhava nas consultas médicas.
Além disso, era ela quem organizava as finanças de Dona Alberta, quem arcava com os custos
financeiros para que ela tivesse tratamento médico adequado, para que pudesse pintar as
unhas todas as semanas e para que vivesse com conforto. Salientou também o cuidado que
345
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
seus filhos tinham com a avó, destacando que seu filho mais velho, quando ainda trabalhava e
estudava para concursos, fazia questão de passar na casa de sua avó todos os dias no final da
tarde só para lhe dar um beijo.
O cuidado, tão caro para Luiza e para os demais atores envolvidos neste processo de
interdição, tem sido tema de diversas pesquisas recentes na área da Sociologia e Antropologia.
Ainda que não se pretenda neste momento aprofundar esta questão, é fundamental destacar
que, segundo as autoras Hirata e Guimarães (2012), o cuidado é tanto uma prática quanto uma
disposição moral sendo que “cuidar do outro, preocupar-se, estar atento às suas necessidades,
todos esses diferentes significados, relacionados tanto à atitude quanto à ação, estão presente
na definição do care.” (HIROTA e GUIMARÃES, 2012:1). A utilização do termo em inglês
(care), se justifica por ser de difícil tradução uma vez que reflete realidades sociais distintas
em diferentes sociedades.
No caso aqui analisado, o cuidado – parte integrante de determinada economia moral,
envolvendo valores e normas, emoções e expectativas -- passou a ser um tema central em um
processo onde, a primeira vista, o que parecia estar em jogo para os atores envolvidos era
somente a capacidade de Dona Alberta. O termo apareceu reiteradamente na fala de Luiza, na
petição inicial de Alberto e na sentença da juíza. A recorrência do termo e o seu uso pelos
diferentes atores – os quais no caso de Luiza e Paulo inclusive buscavam um desfecho
antagônico-, me faz pensa-la como uma categoria crucial para se entender as negociações
presentes durante este processo.
Segundo Kleinman, para se trabalhar com a experiência - que para o autor é aquilo que
media e transforma a relação entre contexto e pessoa - é importante prestar atenção no que
está em jogo (what is in stake) para os atores em um mundo local particular (KLEINMAN,
1995:175). Afirma ainda que ao se analisar o que está em jogo, iremos nos deparar com uma
categoria crucial para que se possa trabalhar a dimensão da experiência. Ao passo que ao
trabalharmos com essas categorias, iremos acessar o mundo moral dos sujeitos. A partir destas
observações e da recorrência com que o cuidado apareceu na fala de todos os envolvidos,
proponho que ela está se apresentado como crucial para minha análise, o que me parece
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
fundamental para que se possa compreender a experiência das famílias envolvida no processo
judicial de interdição (idem:279).
A LEI ENQUANTO ATOR: UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO LEGAL DO
PROCESSO DE INTERDIÇÃO JUDICIAL
A lei é mais um dos atores que faz parte desta negociação e cuja voz pode ser ouvida
dentro do processo judicial. Tecnicamente, para o Direito brasileiro todas as pessoas são
capazes de direitos e deveres na ordem civil. Esta “capacidade de direito” é atribuída a todos
os sujeitos desde o nascimento. No entanto, em alguns casos excepcionais e especificados
pela lei, não há “capacidade de fato”, de tal modo que aquele sujeito - ainda que detentor de
direitos- dependerá de representação para que possa exercer “os atos de sua vida civil”.
Segundo a lei, são considerados absolutamente “incapazes para os atos da vida civil” aqueles
elencados no artigo 3.º do código civil brasileiro e relativamente incapazes aqueles do artigo
4.º do mesmo diploma legal. 168
Frente a uma destas hipóteses, deverá ser nomeada a figura de um curador,
considerado representante ou assistente ao chamado incapaz, ou seja, alguém que representará
ou assistirá aquele declarado “incapaz para os atos da vida civil”, responsabilizando-se pela
administração de seus bens e pessoa (ou em alguns casos especiais somente por seus bens) e
respondendo por ele no mundo jurídico. Esta nomeação se dá através do processo de
interdição judicial, regulado pelo código de processo civil brasileiro nos seus artigos 1.177 a
1.186.
É o Código Civil, portanto, que traz o modelo do “incapaz”. De acordo com a “letra
fria da lei”, ao fim dos trâmites judicias deverá ser decidido pelo juiz se aquele sujeito cuja
168
“Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de
dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a
prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Art. 4o São
incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de
dezoito anos; II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o
discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos.
Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.”
347
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
“capacidade” está sendo discutida será interditado ou não. Todavia é na prática dos atores
envolvidos que a “incapacidade” ganha significado e é através das negociações que envolvem
sua produção que ela ganha vida dentro e fora do processo judicial.
A VOZ DA JUÍZA: SABERES ESPECIALISTAS E A VERDADE PRODUZIDA NO
CONFLITO
Durante todo o processo judicial os irmãos buscaram construir cada um a sua maneira
um discurso convincente e capaz de reproduzir o passado recente de sua família. A justiça é
acionada como uma forma de “legitimar” esse passado contado, de demonstrar que a minha
versão deve ser considerada a verdadeira. Durante o trâmite judicial, Luiza e seu irmão
disputaram não só a “incapacidade” de sua mãe, mas também a produção da verdade familiar.
Mas há outros atores envolvidos nesta “produção de verdade” que faz parte desta
negociação. A “ausência” de Dona Alberta é um fator que salta aos olhos. Sua única
participação em todo o processo é resumida à entrevista realizada em sua casa no dia 12 de
julho de 2006. Sua “fala” esta condensada em uma única folha dentro do processo e as frases
que nem sempre se conectam trazem as respostas da requerida já “traduzidas” pela oficial
escrevente:
“Sempre tem companhia para ir ao banco. A filha Luiza a acompanha. (...) Não faz
comida, Luiza é quem faz, ela não mora longe. Os filhos visitam com frequência.
(...) Já foi em Viamão, mas não lembra se tinha terras lá, questionando a filha Luiza
a respeito disto e de outras perguntas que não sabia responder. Pela Juíza foi dito
que consigna-se que na parede da sala da casa da requerida estavam escritos em
letras destacadas os nomes de Luiza e Paulo seus telefones para contato. Nada
mais.”
Já a participação dos especialistas, principalmente dos profissionais do direito
(advogados, promotora e juíza), é fundamental para o desfecho da disputa. Neste trabalho
estou interessada nas negociações dos atores em torno desta “incapacidade”. Partindo-se da
premissa de que neste processo não se estava decidindo somente sobre a “capacidade” de
Dona Alberta, mas também sobre a legitimidade de uma história familiar, o papel decisório da
juíza é fundamental também para essa questão. Parto da análise da sentença para observar as
dimensões morais que fundamentaram sua decisão, a fim de pensar que esta “produção da
verdade” também envolve valores e moralidades, uma vez que as concepções da juíza acerca
348
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
de idade, gênero e tradições familiares estavam presentes em sua peça decisória. A seguir,
proponho uma breve análise de trechos da sentença.
A juíza começa sua fundamentação afastando a necessidade de realização de pericia
médica e deixando claro não ser caso para interdição, por entender que essa é uma medida
drástica “não sendo a velhice e suas consequências (...) causas para a incapacidade, até pode
ser cômodo para a família, mas não é justo para uma mulher que tem condições de administrar
sua vida, ainda que com a ajuda da filha169, ser declarada incapaz, quando, ainda está lúcida
e consciente.” Segue sua argumentação destacando um número de idosos que foram
relevantes para o país. Neste primeiro momento há, por parte da juíza, um investimento na
dissociação discursivo da velhice e a “incapacidade”.
Logo depois ela parte para certas características femininas, trazendo a vaidade de
Dona Alberta como um fator relevante para demonstrar que ela ainda era capaz: “(...) mas os
sinais de senilidade não tiraram a capacidade da requerida, que como bem lembrado pela
promotora de justiça, vaidosa, bem cuidada, e que mantém a mania da maioria das mulheres
de não gostar de dizer a idade (...)”. O gênero fica ainda mais evidente quando a juíza trata da
“tradição” da família Italiana:
“Do que se verifica do relato do processo, salta aos olhos que na família Arconato
vivencia uma tradição de algumas famílias, especialmente italianas, cujo encargo
com o cuidado da saúde dos pais é da filha mulher, e o trato com os negócios e
valores é atribuição dos homens e, pelo visto, enquanto a filha cuidou da mãe
praticamente sozinha sem reclamar, os irmãos não se preocupavam da forma como
era adquiridos os remédios etc., foi ela pedir ajuda a eles, que veio a reclamação
quanto aos gastos, uso de procuração, etc.”
A questão de gênero relacionada ao cuidado é amplamente discutida por autores que
trabalham com o tema. Segundo Hirata e Guimarães, no Brasil – e segundo a juíza também na
Itália- questões referentes ao cuidar têm sido ligadas ao feminino e à submissão (HIRATA E
GUIMARÃES, 2012:83), principalmente quando estamos falando do cuidado familiar, o qual
não é profissionalizado e independe de remuneração. Trazem também o modo com a
profissionalização do cuidado tem servido para questionar essa suposta aptidão natural das
mulheres para o cuidado. (idem:3) Neste caso, onde uma juíza mulher decidiu em favor de
169
As partes grifadas são aquelas que foram sublinhadas por Luiza na cópia do processo.
349
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
uma cuidadora mulher acerca da capacidade de uma idosa também mulher, a questão do
gênero apareceu explicitamente como fundamento para decisão judicial, ainda que sob um
tom de crítica a esta suposta “tradição” das famílias.
Neste caso, a decisão judicial – eivada de questões morais- pôs fim à negociação em
torno da “incapacidade” de Dona Alberta e também legitimou a “verdade” de Luiza, pelo
menos sob sua perspectiva. Para ela, a “vitória” no processo não havia sido a não declaração
de “incapacidade” de sua mãe, mas sim o reconhecimento por parte do poder judiciário de que
havia sempre cuidado de Dona Alberta e que aquilo que havia narrado era “verdade”. Com a
decisão judicial favorável, não se produziu somente a “capaz”, mas também, no mundo
público do Direito, a filha “cuidadora”.
CONCLUSÃO
O presente trabalho não se pretende conclusivo, mas sim capaz de levantar hipóteses
que considero relevantes para pensar como as famílias vivem a experiência de um processo de
interdição civil. Trabalhei aqui a categoria “incapacidade” enquanto uma construção sóciohistórica, problematizando as diferentes formas como a mesma é negociada pelos atores
envolvidos em um processo de interdição civil. Em toda sua narrativa, Luiza demonstrou que
durante o processo judicial estava se “produzindo verdade” sobre sua memória familiar, seu
papel enquanto cuidadora e, por fim, a “capacidade” de sua mãe.
Envolvendo os discursos de sua família e de operadores de direito, foi se desenhando
passo a passo uma rememoração de toda sua trajetória familiar nos autos processuais, tendo
saído ela vitoriosa. A maior vitória para ela teria sido a “justiça” de ser reconhecida como
uma zelosa cuidadora de sua mãe e, de certa forma, de ter a sua “versão da verdade”
reconhecida como “legítima” através do Direito.
É possível pensar, assim, que a disputa em questão produziu efeitos que foram além da
declaração de “capacidade” de Dona Alberta. Esta outra dimensão associada ao conflito, que
inclusive se iniciou antes da interposição da ação judicial, parece ser fundamental para que o
processo seja entendido como um espaço em que também estava em jogo o cuidado para com
a mãe e a legitimidade da história familiar contada.
350
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Pretendi com esse trabalho entender a categoria jurídica de “incapaz para os atos da
vida civil” enquanto uma construção. Atentando-me para a dimensão das emoções e
vivências, busquei problematizar como os atores vivem a experiência do processo judicial do
qual fazem parte, bem como explorar as diferentes relações familiares e disputas nele
envolvidas. Com isso levantei questões iniciais acerca da construção desta categoria e das
negociações que a permeiam.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
GT SÍMBOLOS E SUJEITOS:
DIÁLOGOS ANTROPOLÓGICOS
SOBRE AS INTERAÇÕES
ENTRE HUMANOS E ANIMAIS
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
ENTRE FAZENDAS, PIPETAS, ESTUFAS E ACORDOS
MILIONÁRIOS: CLONAGEM E PEDIGREE NO MERCADO DE GADO
DE ELITE BRASILEIRO
Natacha Simei Leal
PPGAS/USP
Doutora
O Brasil comercializa os bovinos de “elite” - modelos raciais, estéticos e reprodutivos, com
pedigree - mais caros do planeta, além disso, através de “parcerias” entre fazendeiros e
laboratórios, está à frente no uso e pesquisa de biotecnologias (inseminação artificial,
fertilizações in vitro, clonagens) para produzir esses animais. Este trabalho, através da
descrição das controvérsias envolvendo os primeiros procedimentos de transferência nuclear e
comércio de bovinos clonados pretende iluminar a produção e realização do mercado de gado
de elite brasileiro. Quer pensar sobre a os efeitos do uso de tecnologias reprodutivas na
pecuária bovina brasileira, a coalizão de interesses (Palmeira: 1999) entre empresariado rural
e Estado no Brasil, além de refletir sobre o estatuto e valor de bovinos considerados de
“elite”.
Palavras-chave: Clonagem, elite, pecuária, pedigree.
***
O Professor Ian Wilmut, do Instituto Roslin, na Escócia, publicou um artigo na Revista
Nature, Viable offspring derived from fetal and adult mammalian cells (1997), que trouxe à
tona resultados de pesquisas que vinha realizando desde o início da década de 90. O texto era
a comunicação oficial do nascimento em 1996 da ovelha Dolly.
Resumidamente, através da biotecnologia de transferência nuclear, Wilmut inseriu
células congeladas de uma ovelha da raça Finn Dorset em um óvulo (vazio) de uma outra
fêmea - da raça Schottisch Blackface. Estas células – de um animal adulto - que ao serem
fundidas nesse óvulo vazio através de correntes elétricas se dividiram tal como células
germinativas, se transformaram em um embrião, que fora gestado no corpo de uma terceira
ovelha (uma barriga de aluguel), também da raça Finn Dorset. A experiência de Wilmut, que
faz Dolly - e, logo, todas as controvérsias e efeitos que clonagem veio a gerar - produziu um
indivíduo semelhante no genoma e no fenótipo com a ovelha doadora das células que deram
origem a ela.
A antropóloga Sarah Franklin (2007), ao pensar a trajetória de Dolly, defende que a
ovelha colocou em cheque conceitos e premissas da ciência, da política, das técnicas, do
353
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
parentesco, da economia. Tanto por ela ser um clone - uma réplica de outra ovelha -, mas
também por tudo aquilo que a clonagem representa: a possibilidade de uma mutação no
tempo, nas gramáticas da reprodução e da descendência, nas certezas da domesticação e do
controle biológico. Segundo Franklin, Dolly produziu efeitos em muitas searas, articulou
interesses da agricultura, do comércio, da medicina, da indústria.
Antes de Dolly, os estudos sobre genes – entendidos como uma unidade fundamental
capaz de expressar informações - ocupavam posição privilegiada na biologia . Com o
nascimento da ovelha, ocorre uma abertura a novas pesquisas com células (é com elas que se
realizam as técnicas de transferência nuclear). A possibilidade de produzir animais a partir de
tecidos (de células de glândulas mamárias ou da orelha) tornou a reprodução mais flexível e
eficiente. Além disso, prossegue Franklin, Dolly, a prole da “ciência pura”, é efeito de
cruzamentos híbridos, em mais de um sentido. Fez emergir a necessidade de articulação de
saberes da genômica, da informática e da biologia molecular, foi feita através de uma parceria
“público-privado” e só foi possível, de outro ponto de vista, por conhecimentos acumulados
da antiga tradição britânica - capitaneada por figuras como Robert Bakewell, inventor do
inbreeding,170 e mesmo de Charles Darwin - de experimentações, seleções dirigidas e
publicação de pedigrees de animais domésticos.
Não foi sem razão, por exemplo, que Wilmut, um escocês, teria clonado uma ovelha,
segundo Sarah Franklin. Na Grã-Bretanha, há uma longa tradição na criação, comércio,
“raceamento” e melhoramento desses animais para a indústria (da carne e do leite) e mesmo
para a ocupação das colônias. Quando realizou os primeiros procedimentos que acabaram por
dar origem à Dolly, o Professor Wilmut estava interessado em produzir animais leiteiros
transgênicos. Para isso, escolheu ovelhas de raças britânicas. Através da lactação, queria
170
Na virada do século XVII para o XIX, a Grã-Bretanha investiu no aprimoramento de sua produção
agropecuária. Além do uso de cercas, pastagens e rações, britânicos desenvolveram um método de “raceamento”
dos rebanhos: o inbreeding. Através do uso do sangue de um mesmo raçador em acasalamentos consecutivos
com suas descendentes diretas ( filhas, netas e bisnetas), formava-se uma linhagem, um conjunto de indivíduos
de mesma família com características raciais semelhantes. Foram os irmãos Colling, ao seguir os ensinamentos
de Robert Bakewell, o inventor do inbreeding, quem produziram o primeiro bovino de elite do mundo, o touro
Comet, da raça Shorthorn. O animal trouxe novos conceitos à produção agropecuária britânica e mesmo
mundial. Estes espécimes, “de elite”, passaram a funcionar como modelos para um tipo racial inteiro, além disso,
ajudaram a viabilizar a dinâmica de um novo mercado: a indústria de estoque de sangue e pedigree.
354
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
produzir um sistema capaz de extrair proteínas do leite utilizáveis pela indústria farmacêutica
no estudo de doenças e disfunções metabólicas congênitas.
Há um consenso entre cientistas, a partir do êxito da experiência que gerou Dolly, que
a clonagem de mamíferos pode contribuir tanto na ciência básica – nos estudos de
desenvolvimento embrionário, de reprogramação molecular e células tronco – na conservação
animal – através de bancos de sêmen e embriões de espécimes em via de extinção – e na
produção animal – multiplicação de espécimes de elevado mérito genético, como são os
bovinos “de elite”.
É muito em virtude dessa última razão que o Brasil, desde o início dos anos 2000, está
à frente de pesquisas com a técnica. Vale lembrar que Iam Wilmut, em uma passagem do livro
Dolly, a segunda criação e a era do controle (2000), ao narrar a história de seu grande feito,
conta que com a clonagem da ovelha alguns cientistas ficaram especialmente entusiasmados
com a possibilidade de replicar animais “de elite”. E isso também entusiasma veterinários,
zootecnistas e pecuaristas brasileiros. O país não é apenas um dos maiores produtores de
carne bovina do mundo, mas produz os bovinos - “de elite” - mais caros do mundo. E a
clonagem pode, segundo criadores e cientistas, alavancar essa indústria.
A CLONAGEM DE BOVINOS BRASILEIROS
A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) foi a responsável pelo
nascimento do primeiro clone bovino brasileiro: em março de 2001, nasce na fazenda
Sucupira, em Brasília – DF, a vaca Vitória, da raça Simental. Experimentos com a técnica de
transferência nuclear também vinham sendo realizados por outros centros de pesquisa. Em
abril de 2002, através de estudos realizados pela Unesp de Jaboticabal e a Faculdade de
Zootecnia e Engenharia de Alimentos da USP, nascem o bezerro Marcolino da USP e, em
junho daquele mesmo ano, a fêmea Penta. Em 2003, foi a vez de Bela da USP e de Lenda. No
ano de 2005, três outros clones de bovinos foram apresentados.
Criadores de gado de elite, especialmente de origem zebu, que desenvolvem
espécimes “raçadores” utilizados como modelos reprodutivos, estéticos e genealógicos, que
aprimoram, especialmente, a qualidade racial do gado de corte, passaram a investir na técnica.
355
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Em “parceria” com laboratórios privados e públicos começaram a realizar clonagens de suas
reses para fins comerciais.
F.P, um jovem criador de gado Nelore de elite, filho de um parlamentar carioca, entre
outras razões, se destaca no mercado pecuário por ter realizado clonagens em seus bovinos.
Durante uma entrevista, narrou o porquê de clonar seus animais:
“ Entendendo que a tecnologia de ponta é importantíssima pra seleção, resolvi pegar
uma de nossas principais doadoras, a Bilara VII, e cloná-la. Na época esse processo
era quase experimental, não se tinha certeza do que ia acontecer. Aí você pode
perguntar: “Mas o clone é a cópia fiel do material genético? Não tem melhoramento
com o clone?”. Mas a gente queria pegar uma vaca que fosse doadora de embrião e
que acasalasse com touros contemporâneos [...] Porque ela já vinha decaindo a sua
produção por conta da idade pra acasalar com futuros touros. Com touros que talvez
nem tivessem nascido, touros que nem tivessem disputando as pistas, touros que
nem foram campeões. Então hoje a gente tem essa possibilidade, de não só acasalar
com os reprodutores atuais. A ideia foi essa, foi uma vaca que entre seus
contemporâneos foi um destaque, a ideia era que ela pudesse ser acasalada com
animais do futuro”. ( F.P)
Mas aqui vale uma ressalva, que F.P destaca em sua fala. A clonagem, diferentemente
de outras tecnologias reprodutivas utilizadas por criadores de gado de elite, não produz
“melhoramento” ou “ganho genético” dos rebanhos.
Quando um criador de elite promove o acasalamento entre dois espécimes, tenta gerar
uma progênie – na raça, no genótipo e mesmo no fenótipo - superior aos seus pais. As
fertilizações in vitro e a inseminação artificial contribuíram decisivamente para isso e,
inclusive, são fundamentais para o mercado de gado de elite se realizar.
Espécimes de elite são considerados como tal por ter uma “conformação racial”
exemplar, são belos, simétricos. Devem ter pedigree, por essas, entre outras razões, são
expostos e julgados em feiras de pecuária e vendidos por cifras milionárias em leilões.
Raramente são abatidos, seus criadores, ao investirem em “manejo adequado”, registros
genealógicos, na participação em eventos agropecuários e na compra destes espécimes em
leilões, prospectam produzir animais - “doadoras” ou “raçadores” - cujas células reprodutivas
serão utilizadas para “melhorar” a qualidade dos rebanhos comerciais.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
São centrais de inseminação artificial e laboratórios que mobilizam boa parte dos
lucros do mercado de gado de elite brasileiro. Essas empresas são responsáveis pelo comércio
de sêmen e “prenhezes”. Com uma única ejaculação de um touro, é possível gerar cerca 300
doses de sêmen, utilizáveis através de inseminações artificiais. E para as realizações de
fertilizações in vitro, são recolhidos ovócitos - óvulos não maturados - que ao serem
misturados com sêmen e mantidos em estufas, transformam-se em embriões e posteriormente
em “prenhezes”, gestadas nos corpos de vacas “receptoras”
(barrigas de aluguel) e
comercializadas em leilões.
O uso de tais tecnologias reprodutivas, segundo criadores e veterinários, foi capaz de
alterar substancialmente a pecuária brasileira, qualitativa e quantitativamente. Tanto porque
pecuaristas de gado de comum, que é abatido, através de compra de sêmen e embriões,
passaram a ter acesso à “genética superior” de espécimes de elite, que outrora esteve
concentrada nas mãos de poucos criadores, como porque com essas tecnologias é possível
produzir vários espécimes filhos de mesma mãe e do mesmo pai ao mesmo tempo. Em uma
monta natural, um touro é capaz de ter no máximo 50 filhos ao ano e uma vaca, apenas uma
cria. O uso dessas biotecnologias alterou substancialmente esses números.
Neste sentido, a inseminação artificial e a fertilização in vitro geraram efeitos tanto na
pecuária de elite, quanto na de corte. Parte dos bovinos que compõem os rebanhos comerciais
brasileiros, que são abatidos, pode ser descendente dos espécimes de elite.
Animais
encaminhados aos frigoríficos, eventualmente, podem ser filhos, netos ou bisnetos de
“raçadores” ou “doadoras” de elite.
Além disso, o uso destas biotecnologias é capaz de implodir as fronteiras de tempo e
espaço nos traçados genealógicos. Com o uso de células congeladas, é possível produzir
acasalamentos entre animais não contemporâneos. Há possibilidade de acasalar reses nascidas
recentemente, campeãs atuais dos julgamentos de feiras de pecuária, com espécimes que já
faleceram há anos atrás.
A produção de animais clonados, apesar de também poder implodir as fronteiras do
tempo e do espaço - como defende F.P ao afirmar que a genética de Bilara VII, com seus
clones, poderia ser utilizada para a realização de acasalamentos com “animais do futuro” -,
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
ainda acontece de outra maneira, por várias razões. Primeiramente, porque a média de êxito
das clonagens ainda é pequena se comparada com a das fertilizações in vitro, por exemplo.
Cerca de 30% desses procedimentos geram “embriões viáveis”, e das reses nascidas, apenas
50% conseguem sobreviver. Há estudos que indicam que clones têm dificuldades no parto e
têm a performance como reprodutores reduzida. Além disso, o custo de uma clonagem é
relativamente alto e somente os criadores de gado de elite, na ânsia de replicar seus grandes
feitos, investem na biotecnologia.
Clones são cópias. Devem ser idênticos, no genoma, àqueles que doaram as células
que deram origem a ele. A antropóloga Carrie Friese (2009) avalia que a clonagem provocou
uma alteração substancial na seleção animal. Se antes, através do inbreeding e da publicação
regular de pedigrees, o objetivo era gerar animais que exibiam certos traços fenotípicos
comuns, com a clonagem é possível gerar espécimes com configurações genômicas comuns.
Para ela, tal biotecnologia torna o genoma mais central na reprodução animal do que o
fenótipo.
No caso do mercado de gado de elite brasileiro, o fenótipo parece tão elementar
quanto o genoma. Como há um conjunto de critérios estéticos, que em parceria com o registro
genealógico, determinam a “pureza racial” (a forma das gibas e da cabeça, a altura das pernas,
o arqueamento das costelas, a cor da pele e dos pelos) e, logo, os preços que esses animais
podem ser adquiridos em leilões e os lugares que podem ocupar nos julgamentos de feiras de
pecuária, criadores de gado de elite não só querem, como F.P, “preservar a genética”, como
replicar o fenótipo de seus “raçadores” através de processos de clonagem.
Foi F.P, quem primeiro comercializou em um leilão um clone bovino. No ano de
2007, em Uberaba – MG, uma cota de 50%171 da vaca Ópera, um dos clones de Bilara VII, da
raça Nelore, foi vendida por um milhão e quarenta reais. Mas apesar da vaca
indubitavelmente poder ser considerada de “elite”, já que era a réplica fiel – no genoma e no
fenótipo - de uma famosa “doadora”, não recebeu pedigree.
171
Animais de elite podem ser comercializados em leilões em cotas de 25%, 50% e 70%. Criadores se associam
para adquirir esses animais, para assim, dividir os lucros da venda de sêmen ou de embriões de “raçadores” ou
“doadoras” através das centrais e laboratórios.
358
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Na época, a Associação Brasileira dos Criadores de Zebu172 (instituição que controla
os padrões raciais e concede certificados de registro genealógico aos espécimes nelores no
Brasil), não tinha instrumental para lidar com as controvérsias que Ópera mobilizava.
Indubitavelmente ela corporificava padrões de excelência de sua raça, mas como os critérios
que fundamentavam a publicação de pedigrees – algo central na definição da “pureza do
sangue” de um espécime de elite - estavam baseados na influência e registro de dois genitores,
pai e mãe, e consequentemente avôs e bisavôs, a clonagem de bovinos gerou um “vácuo
regulatório”. Quem eram, de fato, os pais de Ópera? Porque de certo ponto de vista, Bilara
VII pode ser pensada como a “irmã” de Ópera, de outro, como a “mãe”. Mas quem seria seu
pai?
A ovelha Dolly e a vaca Ópera têm uma trajetória genealógica comum. Como enfatiza
Franklin (2007), Dolly provocou um abalo nas ideias naturalizadas de gênero, sexo e mesmo
raça ou espécie. A união de gametas de indivíduos de diferentes sexos, que outrora foi
considerada elementar para a concepção e geração da progênie é colocada a prova em
processos de clonagem. Dolly e Ópera são efeitos de uma reprodução capaz de incluir
somente fêmeas: a doadora do ovócito, a fêmea que foi clonada e a barriga de aluguel que a
gerou.
Vale pensar, que Ópera e Bilara são geneticamente idênticas. E que a Associação
Brasileira de Criadores de Gado Zebu fundamenta muitas de suas políticas na ideia de
genética. Mas o “vácuo regulatório” na definição dos pedigrees dos clones de bovinos zebus
brasileiros ajuda a pensar, como bem lembra Strathern em After Nature (1992), que o
parentesco não se esgota nas substâncias biogenéticas.
A REGULAMENTAÇÃO DA CLONAGEM
Não parece ser coincidência que no mesmo ano em que F.P comercializou Ópera por
172
A ABCZ, Associação Brasileira de Criadores de Zebu, é uma instituição que controla os padrões raciais e
elabora políticas para a criação de bovinos de raças de origem indiana, zebus, no Brasil. É quem concede o
pedigree de bovinos dos tipos Nelore, Gir, Brahman, Guzerá e Indubrasil. Sua sede é em Uberaba-MG. Da
virada do século XIX até a metade do XX, criadores do Triângulo Mineiro, patrocinaram uma série de
expedições a Índia com o objetivo de importar zebus ao Brasil. Desde então, Uberaba, não só sedia associações
de criadores que trabalham com essas raças, mas também fazendas laboratórios, feiras agropecuárias e leilões
que lidam, especialmente, com zebus “raçadores”, de “elite”.
359
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
cifras milionárias, a senadora Kátia Abreu publicou um projeto de lei para regulamentar as
atividades de pesquisa e comércio de clones de mamíferos. A lei 73/2007, já foi tramitada em
comissões de ética da Câmara e no Senado, mas ainda não está em vigor.
Na justificação da lei, inclusive, há um trecho que ressalta que a clonagem de bovinos de
elevado mérito genético já acontecia mesmo sem regulamentação no Brasil. A senadora
escreveu que “pioneiros” – pecuaristas como F.P – não só estariam clonando seus animais,
como criando empresas especializadas na técnica. E essa era uma das principais razões para a
normatização da clonagem no país.
Foi somente três anos após a venda de Ópera, em 2011, que a Associação Brasileira
dos Criadores de Zebu, concedeu o primeiro registro genealógico a um clone zebuíno. O
animal, uma cópia da doadora “Divisa Mata Velha”, inclusive, era de propriedade de um
criador, vice-presidente da associação, que no período montava seu laboratório de clonagem
na cidade de Uberaba. Em “parceria” com os pesquisadores da Embrapa que fizeram Vitória,
contratados pelo criador, e com financiamento do BNDES e contribuição de bolsistas da
Capes e do CNPq, o laboratório já vinha se destacando no mercado da clonagem.
Para a concessão do registro genealógico dos clones, a ABCZ estabeleceu um
protocolo. O pedigree só seria concedido aos 18 meses de idade, momento em que bovinos de
origem indiana são considerados adultos. Nesta idade costumam apresentar os caracteres que
definem os padrões fenotípicos e zootécnicos de sua raça, além disso, é quando suas
habilidades como reprodutores podem ser atestadas. Os clones passaram a ter a mesmíssima
genealogia do indivíduo que deu origem a ele, mas à sigla alfa numérica que identifica seu
registro genealógico na ABCZ, é acrescida das letras TN, que indicam que ele foi produzido a
partir da biotecnologia de transferência nuclear.
Além disso, tanto a “doadora” do ovócito que dará origem ao clone, quanto à
“receptora” que o gestará devem ser da mesma raça. E todos os três animais ( a doadora, o
clone e a barriga de aluguel) devem ser submetidos a exames de DNA.
Interessante pensar que depois dos procedimentos bem-sucedidos de transferência nuclear
com células de Bilara VII, de Divisa Mata Velha e de concessão de registros genealógicos
pela ABCZ, outros clones, além de Ópera, já foram comercializados em leilões de elite no
360
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Brasil, mas eles nunca alcançaram o preço de suas doadoras. Talvez, porque a clonagem, de
certo ponto de vista, ainda é experimental no Brasil (não há certeza absoluta sobre o futuro
desses animais), de outro, porque clones são mesmo “cópias”. A raridade ou univocidade- da
genealogia, da conformação racial, da beleza- cara ao mercado de gado de elite e que,
inclusive, ajuda a justificar os preços dos animais “raçadores” nos leilões, está nas doadoras
de células, e não nos clones.
Carlos Martins (2011), um pesquisador da Embrapa, ao defender a regulamentação dos
processos de clonagem no Brasil, descreve que estudos desenvolvidos pela EFSA (European
Food Safety Autority), uma instituição que controla a segurança alimentar na Europa,
apontaram que não há diferença na qualidade da carne e do leite produzido pelos clones.
Segundo Martins, estes estudos demonstraram que produtos de clones são passíveis de serem
consumidos por humanos.
Vale destacar que a mesma EFSA deliberou que clones e os produtos derivados deles
não poderiam ser comercializados na Europa. Se aqui no Brasil clones de bovinos já são
vendidos em leilões e suas células reprodutivas, sêmen e embriões, poderão ser utilizadas para
gerar reses de corte, cuja carne será consumida pela população, na Europa são produzidos
exclusivamente para fins experimentais.
Na Nova Zelândia, que também é referência na produção de clones, ocorre situação
parecida. Recentemente, através de pesquisas com clonagem e transgenia, foi feita a vaca
Daisy, o primeiro bovino do mundo a produzir um tipo de leite cuja composição não contém a
proteína que afeta humanos alérgicos a lactose. Apesar dos benefícios que este leite pode
supostamente trazer, o comércio de produtos oriundos de clones também é proibido naquele
país e os investimentos neste tipo de pesquisa foram cessados.
Criadores de gado de elite, cientistas, mas também políticos brasileiros, como a
senadora Kátia Abreu, têm visto esse cenário internacional de cessão de pesquisas com clones
com muito bons olhos. Prospectam a possibilidade de tornar o Brasil, que já é um dos maiores
produtores de carne bovina e vende os animais de elite mais caros do mundo, a principal
referência na clonagem destas reses.
O veterinário responsável pela tecnologia de transferência nuclear de bovinos de um
361
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
laboratório de Uberaba, durante uma entrevista, avaliou este cenário de produção de bovinos
clonados no mundo:
“Pra você ter ideia, no início do ano passado eu fui na Nova Zelândia, tem um
pesquisador lá que foi o segundo no mundo, o primeiro foi o Wilmut lá na Escócia,
até fez doutorado com ele. Ele fez o segundo animal do mundo a ser clonado. Ele
trabalha desde 96 com clonagem, a gente entrou em contato e eu passei uns dias com
ele lá. Ele trabalha num centro de pesquisa igual a Embrapa, só que na Nova
Zelândia eles tão parando com a clonagem. Então, se ele produzir um clone, não vai
conseguir congelar sêmen e vender porque não pode comercializar nada dele. Como
ele trabalha pro Estado e a população não quer, ele vai mudar a área de trabalho. O
que tá acontecendo no Brasil hoje é muito diferente. É uma tecnologia nova que a
população em geral não conhece, acha que é coisa de outro mundo, associa muito
com transgênicos, que hoje ainda não tem nada a ver, você pode até usar a clonagem
pra fazer transgenia, mas você pode fazer transgenia de outras formas
completamente diferentes. Clonagem no começo era aquele negócio: “Você tá
brincando de Deus”. Gente, é uma técnica reprodutiva como qualquer outra técnica
de reprodução assistida. Hoje em humano também se usa isso. Olha o tanto de bebê
de proveta que tá nascendo assim. A clonagem é a mesma ideia, só que você usa
células diferentes”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por ora, a tecnologia de transferência nuclear parece ser a última fronteira alcançada pelo
mercado de gado de elite brasileiro. Se a clonagem de bovinos, do ponto de vista
biotecnológico, é inovadora, já que permite a replicação de espécimes de elevado “mérito
genético”, como são os espécimes de elite, de outra perspectiva ajuda a elucidar velhas
relações entre Estado e empresariado rural no Brasil.
Moacir Palmeira (1999) lembra que junto com a modernização rural, que através da
tecnificação e mecanização da produção colocou o Brasil em circuitos de comercialização de
matérias-primas e alimentos para exportação, surge a fábula do “empresário rural moderno”: o
homem do campo que acessa tecnologias ou mesmo o empresário de outros ramos que passa a
investir na agropecuária.
O que essa fábula não explica, segundo o antropólogo, é de que maneira o Estado atua para a
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
permanência desses empresários nesse setor. Ressalta que os documentos governamentais e
mesmo os acadêmicos costumam tratar Estado e empresariado rural como entidades estranhas
e quando essa relação é pensada é vista, é pensada em termos de representação e influência.
Segundo Palmeira, essas análises não notam que entre Estado e empresariado há uma
“coalização de interesses”. Para o antropólogo, não são exatamente legisladores ou relações
de clientelismo que pautam a demanda do setor, mas lobistas, órgãos públicos. O Estado,
nesse sentido, mais que o regulador do mercado agropecuário, é a condição que garante a
existência do empresariado rural.
Os processos de clonagem de bovinos de elite brasileiros são exemplares para pensar com
Palmeira. Não foi preciso que uma lei regulamentasse os procedimentos de transferência
nuclear de bovinos para que eles acontecessem, apesar das controvérsias que geraram. Mais
que normatizar o uso de tais biotecnologias, o projeto de lei de Kátia Abreu, leva para
discussão no Senado e na Câmara uma demanda, de um grupo bastante restrito,
indubitavelmente, como seus bois, “de elite”, que já está pronta.
Os laboratórios e criadores de gado de elite que produzem e comercializam clones,
estabeleceram seus próprios protocolos. O Estado, nesse sentido, mais que normatizar, é quem
viabiliza, através de “parcerias” com universidades públicas, empresas de pesquisa
agropecuária, ministérios, bancos de desenvolvimento, os processos de clonagem no Brasil.
Resta saber quais efeitos a clonagem de bovinos pode vir a produzir. Mas isso é tema de
outras conversas.
BIBLIOGRAFIA
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FRIESE, C. Models of cloning, models for the zoo: Rethinking the sociological significance
of cloned animals. BioSocieties, 4 (4), p. 367-399, 2009.
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Embrapa
Cerrado,
2011.
Disponível
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n.7, p. 87-108, 1989.
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before 1930. Journal of Historical Geography, v. 4, outubro de 1999, p. 441-462.
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Controle. São Paulo, Editora Objetiva: 2000.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
REFLEXÕES ETNOGRÁFICAS SOBRE O BEM-ESTAR ANIMAL EM
FAZENDAS DE CRIAÇÃO DE GADO DE CORTE
Graciela Froehlich
[email protected]
CNPq
PPGAS-UNB
Doutoranda
A industrialização da pecuária – que intensifica a pressão produtiva sobre humanos e animais
(Porcher, 2004) – motivou, nos últimos anos, exigências em prol de práticas de bem-estar animal em
frigoríficos, granjas e fazendas de criação de bois, porcos e galinhas. Através de cursos e capacitações,
vaqueiros e demais trabalhadores da cadeia produtiva da carne são treinados para manejar racional e
humanitariamente os animais com os quais se relacionam cotidianamente. Busco desenvolver neste
artigo alguns desdobramentos de meu trabalho de campo em fazendas de criação de gado de corte que
evocam o bem-estar animal como um sinal distintivo do trabalho e dos animais nelas criados.
Interessada nas conexões e engajamentos entre humanos e animais a partir da ideia de bem-estar
animal, trago à reflexão algumas experiências para se pensar o trabalho de humanos e animais neste
contexto.
Palavras-chave: bem-estar animal; bovinocultura; relações humanos-animais.
***
Uma placa exposta no curral de manejo 173 comunica aos visitantes uma especificidade
do trabalho desenvolvido na fazenda: “aqui se aplica o manejo: ‘bem estar animal’”. A placa
sugere que nos limites da fazenda se maneja, trabalha, lida, mexe com o gado de corte de um
jeito diferente, um jeito que, conceitualmente, visa proporcionar melhores condições de vida
aos animais humanos e aos não-humanos que ali vivem e trabalham. Trabalhar é o que se faz
na fazenda e falar sobre trabalho é muito do que se faz também nas horas vagas. Acerca dessa
experiência – trabalho em fazendas com bem-estar animal – busco refletir nos parágrafos que
se seguem.
Bem-estar animal174 diz respeito as boas práticas, racionais e humanitárias no
trabalho com os animais. Tais práticas visam garantir a promoção e preservação das “Cinco
173
O curral é o espaço no qual o gado é trabalhado, onde são feitas as vacinas, colocados os brincos e feitas as
marcações com ferro quente. É um espaço importante da fazenda e entrarei em maiores detalhes sobre ele mais
adiante.
174
O debate atual na esfera dos direitos animais tem se polarizado entre aqueles que defendem o fim de todo e
qualquer uso humano dos animais e aqueles que propõem melhorias nas suas condições de vida e de morte, sem
contanto, eliminar seu uso: libertacionistas/abolicionistas e bem-estaristas, respectivamente. Defensores do bemestar animal não se contrapõem nem ao uso, nem à morte dos animais, desde que seja respeitado o princípio de
minorar o sofrimento e melhorar as condições de vida e de morte dos mesmos. Por seu turno, os defensores do
abolicionismo protestam pelo fim da exploração humana dos animais, seja em termos de alimentação, vestuário,
365
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Liberdades” aos animais – tais como criadas pelo Comitê Brambell em 1965 – as quais devem
ser respeitadas e proporcionadas para que estes vivam em condições de bem-estar: os animais
devem estar livres de fome e de sede; de desconforto; livres de dor, de maus-tratos e de
doenças; livres para expressar seu comportamento natural e livres de medo e tristeza. Em uma
de suas definições científicas mais difundidas, “bem estar animal” diz respeito às condições
de adaptação dos animais ao ambiente em que vivem (Broom, 2005). Além disso, tomado em
sentido amplo, bem-estar diz respeito também ao bem-estar dos humanos que trabalham com
esses animais: objetiva-se um bem-estar comum.
Iniciativas de bem-estar animal acompanham a crescente industrialização das
atividades pecuárias, em que, “entre criação de animais e “produção animal”, o trabalho da
pecuária foi quase reduzido exclusivamente a sua racionalidade econômica” (Porcher, 2004).
No caso dos confinamentos de gado essa racionalidade econômica da produção de carne
commodity – que perpassa, obviamente, pela relação com bois e vacas – parece ficar ainda
mais patente. Pensar em liberdades, dentro desse contexto, também se torna um desafio.
Proponho assim, refletir sobre a inserção de elementos de bem estar animal nas práticas de
trabalho cotidianas a partir de meu trabalho de campo realizado em um destes confinamentos
de gado localizado no estado do Mato Grosso, estado com o maior efetivo de gado bovino,
mais de 28 milhões de cabeças (IBGE, 2012) e segundo maior exportador de carne bovina do
Brasil (IBGE, 2014).
O CONFINAMENTO
O ambiente da fazenda pouco remete à imagem bucólica de bois pastando na relva
verde. Nesta “cidade de bois” – ou Concentrated Animal Feeding Operation (CAFOs), como
os confinamentos são caracterizados por Michael Pollan em “O Dilema do Onívoro” (2007) –,
não se pode perder tempo. A moderna pecuária industrial abreviou a vida média dos animais
para cerca de 18 meses, enquanto na pecuária extensiva, na qual os bois alimentam-se de
capim e passam sua vida no pasto, esse tempo é de quatro anos ou mais. A combinação de
experimentação científica, entretenimento, enfim, quaisquer atividades que possam provocar sofrimento,
constrangimento e morte aos animais.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
melhoramento genético e manejo alimentar, focado na suplementação através de minerais e na
administração de alimentos calóricos como o milho e a soja, permitem ao produtor abater seus
animais em um tempo drasticamente reduzido. O confinamento insere-se na necessidade de
aceleração do trabalho de humanos e redução do tempo de vida dos animais.
O imperativo de agilidade e eficiência lembra o trabalho em uma linha de produção:
“hoje precisamos trabalhar 300 animais”, disseram-me um dia. Nos finais de semana e
feriados o trabalho continua, ainda que com equipes reduzidas e que se revezam. Por estarem
presos em um ambiente sem fonte de água e comida os bois e as vacas em confinamento
tornam-se totalmente dependentes dos humanos para comer e beber. Em uma conversa que
tive com Paulo175, gerente da unidade, sobre a minha percepção de que na fazenda trabalhavase sem parar, ele afirmou que eram os bois que ditavam esse ritmo acelerado e ininterrupto: os
bois não podem parar de comer e beber água, ou ficar desassistidos em caso de alguma
emergência de saúde. Não é possível esquecer assim, o fato de que se está trabalhando com
seres vivos que também impõem seu ritmo, não só ao trabalho, como também ao descanso
dos humanos.
Na unidade onde estive, cerca de 10 mil bois das raças Nelore, Angus, Aberdeen e
Hereford176 (e cruzamentos) vivem por cerca de 100 dias antes de irem para o frigorífico. Este
espaço é projetado para os animais ganharem peso rápido: a estimativa é que um animal possa
ganhar até 1,8kg por dia de confinamento. Neste espaço permanecem os animais em fase de
terminação177, sobretudo nos períodos de seca.
175
Utilizo nomes fictícios para todos os meus interlocutores.
O gado da raça Nelore é vasta maioria, embora haja um discurso entre os zootecnistas e veterinários na
fazenda de que animais de raças europeias como Angus e Aberdeen ganhem peso mais rápido, que é o objetivo
do confinamento. Além disso, a carne originada de animais da raça Angus tem um valor de mercado mais
elevado.
177
A pecuária de corte brasileira organiza-se em três diferentes fases: cria, recria e engorda. A fase de cria
corresponde ao período de reprodução, crescimento e desmama do bezerro; a fase de recria compreende o
período que vai da desmama à reprodução - para o caso das fêmeas, e da desmama ao início da engorda no caso
dos machos. A engorda é o período em que os animais são “terminados”, “acabados”, quando eles são
alimentados de forma intensiva nos confinamentos, ou ainda, extensivamente nas pastagens.
176
367
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
O ritmo das atividades é acelerado. Caminhões carregados de soja, milho ou bagaço de
cana178 entram diariamente na fazenda e abastecem a fábrica de ração. Nos caminhões
também chegam os bois e algumas vacas179, menos numerosas em função de não serem
“ideais” para o confinamento – sua taxa de conversão, ou seja, a quantidade de ração ingerida
para ser transformada em carne é maior que a dos machos, ou seja, as vacas precisam comer
mais para ganhar o mesmo peso que um boi em um período de tempo determinado. Os
caminhões são rigorosamente pesados na entrada e na saída e os motoristas têm seus dados
cadastrados em um sistema computadorizado.
Na fazenda trabalham seis vaqueiros, responsáveis pelo manejo das 10 mil cabeças de
gado que lá estavam à época. Esse número aumenta para cerca de 15 mil quando o
confinamento atinge sua capacidade máxima. Proporcionalmente, são cerca de 1700 bois para
cada vaqueiro. As atividades na fazenda são setorizadas e há equipes diferentes responsáveis
pelas diversas atividades: a equipe de infra-estrutura, os tratadores, os lavadores dos
bebedouros, os trabalhadores da fábrica de ração, os tratoristas, os porteiros. Cada uma das
equipes possui um encarregado, que dispõe de um aparelho de rádio portátil para se
comunicar com os demais colegas. Esse aparelho é fundamental para a transmissão de recados
e avisos entre os diversos setores, especialmente quando algum animal é avistado com algum
ferimento ou problema de saúde.
Todos os bois e vacas que entram na fazenda precisam passar pelos procedimentos de
cadastramento, marcação e vacinação. O cadastramento consiste na colocação de brincos de
rastreabilidade180, que apresentam um número e um código de barras. Os dados de cada
animal, como idade, peso, vacinas administradas e as datas desses procedimentos ficam
178
São os principais ingredientes da dieta animal, além do suplemento mineral fornecido por uma empresa de
nutrição animal. Uma combinação de cálcio, fósforo, sódio, zinco, magnésio, iodo, cobalto, manganês, cobre,
enxofre, entre outros minerais, formam a base desse suplemento.
179
Um documento chamado GTA – Guia de Trânsito Animal – é utilizado como controle da movimentação de
animais, tanto entre as fazendas, quanto das fazendas para o frigorífico. O motorista boiadeiro, como é
peculiarmente chamado o motorista de caminhão que transporta bois em seu veículo, deve permanecer com este
documento em todos os seus roteiros.
180
Trata-se do Serviço de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos (SISBOV), do Ministério
da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Esse sistema visa o acompanhamento e controle individual
dos animais, desde o nascimento até o abate, apresentando informações sobre movimentação geográfica,
tratamentos de saúde, idade e peso. Não é obrigatório para a criação de animais no Brasil, mas é obrigatório para
aqueles pecuaristas que desejam exportar carne para mercados como a União Europeia e o Chile.
368
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
armazenados num software chamado Data Collection, um programa especialmente
desenvolvido para o controle do rebanho. Há ainda o “brinco de piquete” ou “brinco de
manejo”, colocado em todos os animais que formam um lote e compartilham o mesmo cocho.
Esse procedimento de colocar os brincos nos animais é chamado de “brincar”. O gado é
também marcado com ferro quente, e as marcas são diversas. Há uma marca com o símbolo
da fazenda; outra que combina o ano (sinalizado por uma letra) e o mês do nascimento
(representado por seu próprio número); outra marca indicando a origem dos animais: se foram
comprados em outra fazenda, se são originários de uma parceria com outro criador, ou ainda,
se são “criolos”181, ou seja, nascidos na própria fazenda182. Essas marcas são feitas na parte
superior das pernas ou “traseiro”, no cupim183 e na parte interna das orelhas dos animais.
Esses são os principais dispositivos de identificação dos animais e constituem parcela
importante do que na fazenda é chamado de “trabalhar os animais”. Somam-se à identificação
os cuidados sanitários, que consistem na aplicação de vacinas contra doenças como o
carbúnculo e o botulismo, bem como a administração do complexo vitamínico “ADE”, que
contribui para a preparação do organismo dos animais à nova dieta que irão receber ao longo
dos próximos meses.
Todos esses processos acontecem, por vezes, simultaneamente no espaço do curral.
Todos os animais passam por ali, onde é o seu local de entrada e de saída da fazenda. É no
curral que os caminhões e carretas encostam para desembarcar o gado que chega, e embarcar
os bois que vão para o frigorífico. Foi ali que passei grande parte do tempo conversando e
trabalhando184 com os vaqueiros e com o gado.
181
Esta é a grafia utilizada nos cadastros da fazenda.
A unidade de cria, onde nascem esses filhotes está localizada em outro município, distante cerca de 750km
dali. Assim que os bezerros são desmamados (com cerca de 8 meses), eles são trazidos para a unidade de recria,
que corresponde à fazenda vizinha, de propriedade do mesmo Grupo para, finalmente, chegar à unidade de
engorda, com cerca de 18 meses.
183
O cupim é uma protuberância localizada atrás da cabeça dos bois (nas vacas ele é menor) e é uma
característica da raça Nelore.
184
Já na primeira semana de campo foi-me emprestada uma bandeira de manejo, com a qual eu ensaiava o
trabalho de afinar os animais, conduzindo-os pelos corredores do curral. Esta acabou sendo uma atividade quase
cotidiana e, com o passar do tempo, havia já uma bandeirinha separada para mim.
182
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
TRABALHAR OS ANIMAIS, TRABALHAR COM OS ANIMAIS
Em minha primeira visita à fazenda, o gerente geral levou-me para conhecer o
confinamento, explicando-me como os animais eram alimentados, os projetos de expansão, as
diferenças entre as raças etc. Em certo momento, ele parou abruptamente a caminhonete em
que andávamos e apontou para um boi, dizendo: “olha lá Graciela, aquele boi está morto!”.
Coloquei a mão na maçaneta e já ia dizendo para chamarmos algum veterinário para ver o que
acontecia quando seus risos me interromperam. Descemos da caminhonete e o boi se moveu,
levantou-se e ficou nos olhando. Renato então me explicou que aquele era um comportamento
típico de animais em condições de bem-estar: ele apenas dormia profundamente,
provavelmente após ter se alimentado e ruminado bastante bem. Isso era consequência, seguia
ele, do manejo racional e dos cuidados que lá se tem com os animais. Meu olhar não treinado
e pouco habituado ao universo das fazendas e dos confinamentos de gado de corte, foi aqui
motivo de piadas.
Nos piquetes de confinamento185, os bois passam horas comendo ração, bebendo água,
ruminando e dormindo. Tal é o comportamento esperado para animais considerados em
condições de bem-estar. Por seu turno, brigas, animais agitados e sodomia186 são
comportamentos que alertam os técnicos e vaqueiros para bois e vacas cujo bem-estar corre
perigo. Um dos focos dos treinamentos sobre bem-estar animal é justamente a educação do
olhar, que deve reconhecer as situações desfavoráveis aos animais, ou seja, aquelas que lhes
causam sofrimento e dor: “é necessária a modificação na forma de perceber os animais,
pelos colaboradores, não apenas como um produto de valor comercial, mas sim como seres
185
Os piquetes de confinamento são áreas cercadas nas quais permanecem os animais durante o período de
engorda. A capacidade de lotação de cada um é determinada pelo tamanho dos cochos e bebedouros, além do
tamanho e qualidade do terreno, estação do ano (especialmente seca e chuvas) e disponibilidade de sombra. Os
piquetes adjacentes formam as linhas de confinamento.
186
A sodomia é percebida como um dos grandes problemas do confinamento de gado de corte, a ser remediado
por medidas de bem-estar animal e pela administração de substâncias homeopáticas que visam reduzir a
virilidade desses bois. A sodomia acontece quando um grupo de bois monta em um ou mais animais do lote,
manifestando o que é considerado um comportamento agressivo e potencialmente causador de lesões nas
carcaças. Aconselha-se que animais de origem diferente não sejam misturados num mesmo lote, pois a entrada
de um “estranho” no grupo pode desencadear comportamentos de sodomia. Carcaça é o corpo do animal abatido,
sem o couro, a cabeça e as vísceras. A carne é fruto do processamento posterior, quando a carcaça é cortada em
pedaços menores destinados à alimentação.
370
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
sencientes, ou seja, com capacidade de sofrer, sentir dor, prazer, satisfação” (Ludtke et all,
2012, p.17 grifos dos autores).
Saber olhar é uma habilidade fundamental para os trabalhadores da fazenda. “No
olho” determina-se o peso de um boi, percebem-se possíveis brabezas, falhas na estrutura que
prejudicam e atrasam o trabalho, avalia-se se a ração está sendo bem ou mal recebida pelos
animais, detectam-se doenças etc. E é preciso o olhar de todos ali para engordar o gado: todos
os funcionários da fazenda devem estar atentos a qualquer movimentação incomum entre o
gado e alertas para o seu bem-estar.
Estar atento aos sinais que o gado dá é parte importante do trabalho dos vaqueiros,
tanto nos afazeres do curral quanto nos afazeres de campo, de “tocar boiada” e “dar rodeio”,
isto é, movimentar os animais em lotes através da fazenda e vistoriar as condições de saúde do
gado que está no pasto e nos piquetes do confinamento. Descobri imediatamente que falar
com os animais não é apenas uma necessidade do trabalho, mas uma exigência. Para Cássio,
qualquer pessoa que se aproxima do gado deve falar com ele, deve avisar o gado de que não é
um predador187, “quem chega silencioso é a onça”, disse-me. E o tom deve ser grave, jamais
agudo. Com ambas as entonações o gado se movimenta, mas a última assusta, enquanto a
primeira é familiar e não agressiva. Essa orientação, oriunda dos cursos de bem estar animal,
foi especialmente importante para aprender a andar pelas linhas do confinamento. Os bois se
assustam com pedestres188 e uma forma de minimizar o possível estresse desse encontro é
falar com eles. “Êêêê, oba, oba; vem, vem” são algumas das expressões que me acostumei a
dirigir ao gado quando me aproximava deles. Fala-se muito em habituação e costume: o gado
estaria acostumado apenas com tratores, que levam a sua comida, com humanos montados em
cavalos, humanos nas motocicletas, mas não humanos andando a pé à sua volta.
187
Percebe-se que o animal humano, apesar de efetivamente matar os animais, não é considerado predador.
Tratores, motocicletas, caminhonetes e, especialmente, humanos a cavalo não assustam os bois como
humanos pedestres o fazem. Ainda na primeira semana de trabalho de campo, logo cedo pela manhã, fui ao
encontro dos vaqueiros que traziam uma boiada do campo para ser trabalhada no curral. Inadvertidamente
posicionei-me ao lado de uma porteira e fiquei olhando a aproximação da comitiva. Em certo momento, quando
estavam mais próximos, a boiada estancou e ficou me olhando atentamente. João então veio ao meu encontro e
pediu que eu saísse dali, pois, caso contrário, os bois não andariam. Eles haviam se assustado com a minha
presença, ainda que razoavelmente camuflada pela grossa porteira e pela cerca que nos separava.
188
371
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
As instalações da fazenda também passam por transformações através de tecnologias
pensadas partindo-se da ideia de bem-estar animal. É o caso do tronco de contenção e da
seringa, por exemplo. O tronco de contenção, como o próprio nome já diz, é uma máquina
que objetiva conter bois e vacas para que não se mexam enquanto são vacinados, brincados,
marcados, quando são, enfim, trabalhados. É composto de uma pescoceira, que se agarra,
como o nome sugere, ao pescoço do boi imobilizando sua cabeça, e do trapézio, que se ajusta
às pernas traseiras do boi impedindo-o de desferir possíveis coices. Diversas portinholas
permitem o acesso localizado às partes do corpo dos animais, conforme a necessidade dos
procedimentos189. O tronco de contenção por eles utilizado está entre os mais modernos, pois
faz pouco barulho – o barulho é considerado um fator estressante – e necessita de apenas um
vaqueiro para operá-lo, através de alavancas. O fabricante desta máquina ostenta o seguinte
slogan: “Manejo Racional e Produtivo”, denunciando a vocação comum – aumentar a
produtividade através de métodos não agressivos. Na ocasião em que estive em campo,
presenciei um período de teste de uma seringa circular, também hidráulica e manejada por
alavancas. Esta seringa viria a substituir a antiga, que consiste basicamente no estreito
corredor pelo qual os animais passam até chegar ao tronco de contenção. Com esta seringa,
afirmavam os gerentes, o trabalho seria otimizado e dispensaria os serviços de um ou dois
vaqueiros que normalmente ficavam na função de, no antigo corredor, afinar os animais.
Trata-se de uma seringa desenvolvida com “tecnologia em bem-estar animal”, ou seja,
pensada de modo a reduzir o estresse do gado que passa pelo corredor, agilizar a passagem
dos bois e diminuir a carga de trabalho dos manejadores humanos. Medidas mais simples
também são tomadas tendo-se em mente o comportamento dos animais. As porteiras, por
exemplo, ficam localizadas nas extremidades dos piquetes, jamais no centro. Isto porque a
tendência do gado é agrupar-se nos cantos: havendo uma abertura ali e estando ela aberta, eles
podem utilizá-la para seguir o seu caminho.
Nas atividades com o gado, a norma bem-estarista é: “não se deve forçar o animal a
fazer algo contra a sua natureza, mas induzi-lo a fazer o que queremos, tornando o manejo
189
Dentro do tronco alguns bois berram e se debatem, por vezes, violentamente. Outros parecem aceitar
resignados a condição que lhes é ali imposta.
372
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
mais seguro e eficiente” (Climeni et all, 2008). “O gado sabe e quer fazer o que queremos”,
afirma Steve Cote em “Stockmanship: A Powerful Tool for Grazing Lands Management”
(apud Grandin e Johnson, 2010). Se o gado “quer” fazer o que os humanos desejam, a
violência física contra os animais não é necessária e a brutalidade tida como típica do trabalho
com os animais de fazenda deve ser substituída por práticas mais calmas e não agressivas
(Paranhos da Costa et al, 2008).
Trabalhar os animais exige, assim, que se trabalhe com eles. Sigo aqui a intuição de
Jocelyne Porcher, para quem, o mundo comum de humanos e vacas - e no caso aqui analisado
mais bois do que vacas - é o mundo do trabalho: “it is thanks to work that some aspects of the
cow are known to us, and part of ourselves, as human beings, is known to the cow” (Porcher,
2014, p. 2). O bem-estar animal se insere nessas práticas de conhecimento mútuo, em uma
tentativa de transformar as relações tradicionais, tidas como agressivas e brutais, em relações
humanitárias, características de uma pecuária moderna e sustentável (Ludtke et all, 2012).
Seguindo esse raciocínio, o choque ou aguilhão, instrumento utilizado para causar um
choque nos animais e fazê-los andar, não é utilizado pelos trabalhadores da fazenda.
Entretanto, pode-se encontrá-lo nas caçambas de todos os caminhões que transportam os
animais. Na pecuária tradicional, o choque é parceiro comum dos trabalhadores da fazenda
para fazer os animais se movimentarem dentro do curral. O bem-estar animal substituiu essa
ferramenta pelas bandeiras de manejo. Tais bandeirinhas são utilizadas para guiar o gado pelo
caminho que deve seguir, bem como para fazê-lo parar. A bandeira deve ser carregada atrás
da cabeça dos animais para fazê-los irem pra frente; para fazê-los parar coloca-se a bandeira
exatamente na frente de sua cabeça. A bandeira é um dos instrumentos utilizados para fazer
bois e vacas agirem de acordo com o que os manejadores desejam. Os vaqueiros são treinados
para entender o que seria esse comportamento natural e no transcorrer de suas atividades,
adaptam-no às necessidades do momento. A situação que transcrevo a seguir servirá para
pensar essa questão.
Em um dia apurado – estavam entrando muitos bois na fazenda, era época de “encher
o confinamento”, nos meses de maio e junho, período que corresponde ao início da seca no
centro-oeste – o trabalho estava indo devagar demais, todos reclamavam. Os bois empacavam
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
na seringa, alguns davam meia volta e faziam todos os demais retornarem, outros estavam
muito agitados e não chegavam sequer à entrada do corredor de acesso ao tronco. Cássio
analisava atentamente aquela situação do alto do mezanino enquanto os demais também
discutiam os motivos para a lentidão do trabalho. A mansidão dos animais foi a primeira
explicação: “eita gado pirracento!”, “como são preguiçosos!”. Mas isso não explicava tudo e,
sobretudo, não solucionava o problema. Levantou-se também a questão da raça: tratava-se de
bois de raça europeia, segundo eles, dóceis e calmos demais. Foi então que Cássio sugeriu que
o corredor estava largo demais e propôs que fossem colocados pneus nas laterais para
diminuir sua largura e evitar que os bois virassem ali dentro. Mas, além disso, percebeu algo
que, conforme me contou, havia aprendido com o bem estar animal e a palestra de Temple
Grandin190, que havia assistido há pouco tempo. Havia um pequeno desnível no piso de terra
batida do corredor, que formava praticamente um degrau. Com a sombra que também se
projetava ali, ele disse que os animais percebiam aquilo como um grande fosso e que
recuavam por não saberem onde estariam pisando. Uma pá carregadeira trouxe terra que
cobriu o buraco e nivelou o terreno. Os pneus foram amarrados com cordas nas laterais do
corredor e, feitas essas melhorias improvisadas, a dinâmica do trabalho mudou. Os bois
caminhavam mais “tranquilamente” no corredor estreitado e poucos, em raros momentos,
empacavam ou se mostravam agitados191.
Explicando-me a respeito do comportamento dos bois enquanto trabalhávamos no
curral, Cássio disse-me que “é que nem gente: tu vai ver uns mais estressados, uns melhor de
lidar, uns mais difíceis”. Os bois amuados, aqueles que deitam, empacam e não querem andar,
190
Temple Grandin é professora e pesquisadora na Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, principal
referência na área de bem-estar animal e abate humanitário. É autora de vários livros e artigos, entre os quais “O
bem-estar dos animais”, juntamente com Catherine Johnson e “A língua dos Bichos”, ambos traduzidos para o
português, bem como de novas tecnologias para abatedouros. O filme “Temple Grandin”, produzido pela HBO
Films e lançado no ano de 2010, colaborou para aumentar a popularidade da pesquisadora, apresentada também
como exemplo de vida e de superação. Sua condição de autista é apresentada como a razão de uma capacidade
peculiar em se colocar no lugar dos animais, sentindo os medos e sofrimentos a que ficam expostos,
especialmente, nos caminhos dos abatedouros.
191
Um corredor estreitado é considerado mais positivo aos animais do que um corredor largo. Suas paredes não
devem ser vazadas, a fim de que os animais não sejam estimulados por elementos e acontecimentos externos.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
são comparados a crianças, que se chateiam e fazem birra. O temperamento mais exaltado de
alguns permite que sejam reconhecidos em meio a um grande lote: “esse aí (apontam para o
boi) é aquele doidão”.
Aparecem aí os brabezas, como são chamados os bois (ou vacas) que se negam a
andar pelos corredores do curral e ameaçam atacar os vaqueiros que tentam conduzi-los.
Alguns chegam a pular os muros da seringa, que tem aproximadamente dois metros de altura,
estouram as porteiras, arrebentando suas grossas tábuas. Esses são os bichos “difíceis”, que
“atrasam o serviço” e “cansam o peão”. A primeira providência é separar os brabezas de seus
companheiros de lote. O curral é equipado com duas entradas de animais e, uma delas,
costumeiramente, fica vazia. O brabeza é então apartado para esta área e espera-se que ele se
acalme ali. Os demais animais seguem seu caminho pela seringa e pelo tronco. Ao término do
cadastramento (ou pesagem ou vacinação etc) de um lote, tenta-se passar o brabeza pelo
tronco com os costumeiros chamados de “vem vem”, “eira eira”, “boi boi” e com o auxílio da
bandeira. Quando estes métodos não funcionam, usa-se um saco de ração vazio, que é furado
na altura do focinho do animal, e colocado sobre sua cabeça para que este não consiga
enxergar. Com alguns gritos e tapas em seu traseiro ele anda para a frente e segue o caminho
rumo ao tronco. Esse procedimento não é realizado quando os animais vão para o frigorífico.
Se há algum brabeza no lote com destino ao matadouro ele “fica pra próxima”, pois é
indesejável que sua carcaça seja machucada em vista da perda de valor monetário que isso
representaria192.
Esse cenário de trabalho intenso e de dedicação exclusiva, de bois brabezas e de bois
amuados, que irrompem em fúria ou se detém imobilizados, compõe parte do cotidiano da
lida com os animais em um confinamento. Na pecuária industrial, eficiência e lucratividade
são as palavras-chave e é somente dentro desse contexto que o bem-estar animal pode ser
entendido. A ideia de que “um trabalhador [humano] saudável e feliz é um trabalhador
produtivo” (Fraser, 2012: 96-7) parece ser transposta agora aos animais:
192
O frigorífico paga o pecuarista pela carcaça “limpa” dos animais. Hematomas e ferimentos são rejeitados por
não serem transformados em carne e assim, um dos objetivos das práticas de bem-estar animal consiste em
diminuir as perdas ocasionadas pelas chamadas “lesões na carcaça”.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
“visto sob as lentes do Industrialismo, os animais são atores em um papel
praticamente análogo àquele dos trabalhadores dos sistemas eficientes de produção.
Dar atenção ao bem-estar dos animais em tais sistemas é a coisa certa a fazer por
razões práticas, como também por razões éticas. De fato, um animal saudável cujas
necessidades são bem atendidas será um animal produtivo. E a maneira de fazer os
animais mais saudáveis e produtivos não é obtida pelo retorno às vicissitudes e
ineficiências da natureza, mas sim por meio da aplicação racional da ciência e da
tecnologia” (Fraser, 2012: 96-7 grifo meu).
Pode-se argumentar assim, que para se “trabalhar o gado” – cadastrá-los, vaciná-los,
brincá-los etc – é preciso que os vaqueiros trabalhem com o gado, prestando atenção nos seus
movimentos, nos seus sinais, enfim, na sua linguagem. Ao entender os animais é possível
fazê-los cooperarem, ou ainda é possível “enganá-los” sem a necessidade do uso da força
física (ou, pelo menos, atenuando-se a agressividade). As premissas do bem-estar animal,
advindas dos cursos de capacitação, influenciam nessa forma de comunicação interespecífica,
sempre balizada pelas exigências de rapidez e eficiência, típicas do trabalho industrial.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
SINAIS, VEREDAS E PONTOS DE REFERÊNCIA, UMA REFLEXÃO
SEMIÓTICA DAS RELAÇÕES ENTRE CRIAÇÃO, CAATINGA E
CRIADORES NO SERTÃO DE PERNAMBUCO
Ariane Vasques Zambrini
[email protected]
CNPq
PPGAS- UFSCar
Mestranda
Um modo específico de criação de cabras e bodes, como é entendido e praticado na zona rural
de um município do sertão pernambucano, permite compreender as relações entre humanos,
animais e caatinga de modo simbiótico. A criação na solta, o laboro e a constituição de uma
experiência construída diariamente na lida com os animais tornam visíveis alguns aspectos
que proponho analisar a partir de uma perspectiva semiótica: considero a criação (como são
chamados cabras e bodes) como produtora de signos (entre eles, rastros e veredas) e, ao
mesmo tempo, superfície de inscrição de outros signos que, por sua vez, são produzidos por
humanos – os sinais, recortes nas orelhas da criação que indicam sua pertença a um dono
particular e a uma família residente em uma região específica. Além disso, a caatinga como
espaço constituinte dessas relações também é significada e apreendida por meio de outros
signos, os pontos de referência.
Palavras-chave – signos, semiótica, caprinos, sertão de Pernambuco.
O CAMPO DE PESQUISA
Proponho neste trabalho uma reflexão semiótica a respeito da criação de cabras e
bodes como é percebida e praticada por famílias na zona rural do município de Floresta193,
sertão pernambucano. A intenção deste exercício é articular certas concepções semióticas com
parcela dos dados de campo referentes à pesquisa que realizei entre fevereiro e maio de 2014,
considerando-o como uma das possibilidades de interpretação desses dados. Para isso,
193
O município de Floresta está localizado a 432 km de Recife, na mesorregião do São Francisco Pernambucano
e microrregião do Sertão de Itaparica. Insere-se nos domínios geográficos da macro bacia do rio São Francisco e
na bacia hidrográfica do Rio Pajeú. Há em Floresta cerca de 31.454 habitantes em uma base territorial de
3.644km². Floresta é constituída, desde 2005, por uma sede e dois distritos: Floresta, Airi e Nazaré do Pico,
respectivamente. (Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais. As
estimativas da população residente têm como data de referência 1º de julho de 2014 publicada no Diário
Oficial da União em 28/08/2014. Página visitada em setembro de 2014: http://cod.ibge.gov.br/XTI).
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
primeiro descrevo os procedimentos e técnicas empregados na atividade do laboro194 que
envolve animais, criadores e caatinga de modo simbiótico. Sugiro que é por meio da
construção dessa relação que é possível compreender os signos produzidos por humanos e
inscritos nos corpos dos animais, mas também os signos que são emitidos por estes últimos.
Em seguida, exponho, a partir de um recorte bibliográfico, a acepção do conceito de signo que
servirá de esteio para a reflexão proposta. Finalmente, descrevo de quais maneiras os signos
possibilitam uma intervenção semiótica em relação aos dados dessa pesquisa.
PROCEDIMENTOS DE CRIAÇÃO DE CABRAS E BODES
A criação de cabras e bodes é atividade recorrente na região onde realizei minha
pesquisa de campo195. Praticada na solta, ela envolve uma série de procedimentos e técnicas,
de um conhecimento profundo dos animais e da caatinga para que se realize plenamente.
Dentre os elementos envolvidos no cuidado com a criação – gado caprino196 - , no laboro,
destaco neste trabalho alguns pontos relevantes para a análise: os sinais nas orelhas da
criação, as veredas e rastros produzidos pelos animais e os pontos de referência, que
denominam lugares no campo, na caatinga.
O modo de criação na solta, como o nome indica, é um procedimento de criação no
qual os animais deslocam-se livremente no espaço e podem ou não serem recolhidos à noite.
Alguns criadores que lidam com animais “mais ariscos” deixam cabras e bodes soltos no
mato, e estes voltam para os terreiros em períodos variados, de acordo com sua vontade.
Outros criadores preferem guardar os animais nos chiqueiros diariamente, pois afirmam ser
194
Os termos em itálico são termos nativos; as aspas duplas são utilizadas para reprodução de falas ou
expressões, assim como citações de outros autores, que são acompanhadas por referência.
195
Floresta, também conhecida como Terra do bode, tem o maior rebanho de caprinos do estado de
Pernambuco. Segundo meus interlocutores, todas as 5mil fazendas da região (o número é aproximado) são
criadoras de cabras e bodes. De acordo com a última pesquisa realizada, o rebanho caprino do município é de
268.900 cabeças. Sublinho, apenas por comparação, que o segundo maior rebanho do estado é o do município
de Petrolina com 135.800 cabeças. (Fonte: IBGE, Produção da Pecuária Municipal 2012. página visitada em
setembro de 2014: http://cod.ibge.gov.br/CT3K).
196
Assim como o gado caprino é chamado de criação, o gado bovino é gado; o equino e o muar é animal.
Historiadores regionais já assinalavam essa linguagem (cf. Barroso, 1962; Albuquerque, 1989; Andrade, 1964;
Menezes, 1937).
379
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
mais seguro, considerando que durante a noite há um maior número de predadores que
habitam a caatinga.
Percebe-se que neste modo de criação os animais são responsáveis por sua própria
alimentação. Cabras e bodes permanecem o dia todo na caatinga em busca dos pastos de sua
preferência. Contudo, em épocas de seca, alguma vegetação anteriormente ensilada, vagens de
algaroba que foram reservadas ou cactáceas suculentas sapecadas ao fogo são oferecidas a
eles197. No tempo das chuvas, quando a vegetação é abundante, é comum que a criação fique
“mais solta” pelo campo e os cuidados despendidos com ela, por consequência, relativamente
menores.
Enchiqueirar198, “botar pra manga199”, buscar ramas na caatinga para alimentar a
criação em épocas de seca são algumas das atividades envolvidas no laboro, que são as
práticas, técnicas e procedimentos envolvidos na criação de cabras e bodes na solta. O manejo
diário com a criação permite ao criador estabelecer laços com os animais, reconhecê-los por
sua qualidade, que são suas cores, suas formas, características físicas que o diferenciam de
todos os outros, como o desenho de suas manchas no pelo, o formato de sua ponta200 e,
extrapolando as características fenotípicas, suas manias e o jeito de cada cabra ou bode. Nessa
relação também é apreendida a natureza da cabra, se ela é desamorosa ou amorosa, mansa ou
braba, ou, ainda, se é costume ela “dar marrada”
201
, por exemplo. A qualidade são todas as
características que individualizam o animal. É dessa maneira que a criação é reconhecida,
uma a uma.
197
Dentre estas cactáceas, as mais comuns são o xeléu (ou xique-xique) e o mandacaru. Há também a
macambira, bromélia que, durante a seca, também tem suas folhas queimadas ou cortadas para que se
aproveite uma massa central na base da planta, a “batata da macambira”. Para sapecar os espinhos do xeléu é
preciso colocá-los na fornalha, que são galhos de madeira dispostos em cima e entre os pedaços de xeléus; o
mandacaru se sapeca fincado a um espeto, não é deixado na fornalha como o outro.
198
Enchiqueirar é apartar a criação nas duas ou mais partes de um chiqueiro com alguma finalidade (diferente
de “botar pro chiqueiro”, quando a criação apenas é confinada). Por exemplo, a separação das cabras que
amamentam e ficam com os cabritos pequenos, das cabras de cabritos grandes, que já começam a se alimentar da
vegetação. Estas últimas ficam separadas dos cabritos durante a noite para que de manhã se possa tirar o leite:
“aqui ficam as miudezas e ali as de leite”.
199
Manga são os espaços cercados na caatinga que pertencem a uma propriedade residencial.
200
A ponta é o chifre da cabra ou do bode. Alguns criadores podem identificar a mistura das raças de um animal
analisando o do formato de suas pontas, assim como podem determinar sua idade pelas rugas que ela apresentar.
201
“Dar marradas” é a ação proposital de cabras e bodes que consiste em, com as pontas, acertar uma pessoa ou
outro animal.
380
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Suponho que a qualidade pode ser pensada como um sinal, ou seja, uma marca, uma
sinalização que informa algo, mas que não pode ser entendida como um signo, porque o “sinal
comporta certo tipo de reação, mas não comporta qualquer relação de significação” (Ducrot e
Todorov, 2001: 104)
202
. De modo semelhante, entendo como “sinais” o momento que
antecede à hora exata de uma cabra parir; a época da folia, que é a época de reprodução em
que os pais de chiqueiro e marrãos mudam de comportamento: os machos bodejam as
fêmeas. O bodejar é o som peculiar emitido pelos machos, diferente do balir habitual, que
sempre está relacionado ao tempo de reprodução e é acompanhado da exposição dos dentes
do animal, aspecto também muito característico. O tilintar dos chocalhos são reconhecidos
pelos criadores, que identificam cada animal pelo som emitido por seu chocalho, toque
também compreendidos pelos animais que andam sempre juntos em um grupo:
A criação que é acostumada com o rebanho, quando ela sai, ela já sai junto. Ela pode
se apartar daquele rebanho dela e ir pra outro rebanho, mas quando ela ouve o chocalho
daquela criação que é do rebanho dela, ela conhece, aí ela volta. Muita criação volta por o
chocalho. Você já viu, Teodomiro, cabra berrando quando escuta o chocalho das camaradas
dela? Aí, a criação, ela diferencia o pasto. Você pode ver que cada chiqueiro aqui tem seu
rebanho, cada rebanho tem o seu lugar dele ir pro mato, pro campo. Ela não vai numa vereda
só, pra bebida ela pode vir numa vereda só, mas quando ela vem pra casa dela, pro chiqueiro,
ela já tem o ponto dela vir. Todas elas têm.
Assim, é possível classificar momentaneamente estes “sinais” de acordo com a sua
percepção por parte dos criadores e também, como vimos no caso do toque do chocalho e do
bodejar, pelos animais. A qualidade assim como os sinais corporais emitidos pela cabra no
momento antecedente à parição (busca constante de um local para repousar, úbere muito
inchado e as pontas das tetas muito duras) são “sinais” visuais, táteis; enquanto a folia e os
chocalhos emitem “sinais” sonoros, visuais; o “bodum”
203
ou o cheiro do pai de chiqueiro,
202
O autor ainda complementa: “a comunicação dos animais reduz-se, comumente, a sinais; na linguagem
humana, a forma imperativa pode funcionar como um sinal;” (Ducrot e Todorov, 2001: 104).
203
O odor característico dos pais de chiqueiro é produzido por uma glândula produtora de hormônios localizada
entre as pontas dos animais machos e não capados.
381
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
que pode ser sentido a uma distância aproximada de 3 metros, também pode ser considerado
um “sinal” olfativo.
É por meio desse modo de criação, em que cabras e bodes caminham soltos pelo
campo, que as veredas e rastros são produzidos. No entanto, esses caminhos são efeitos de um
processo muito mais longo e antigo, remetem à época de povoamento e fixação das pessoas
nas terras do sertão, quando as fazendas de gado iniciaram seu estabelecimento. As fazendas
eram praticamente administradas pelos vaqueiros, que tomavam da criação, uma vez que eles
tinham o direito a um quarto dos bezerros, mas também de caprinos (Andrade, 1964: 195).
Não obstante sua remota presença no cotidiano das pessoas que vivem no mato, as veredas só
devem ser seguidas por pessoas que conheçam o campo e o comportamento de um rebanho.
Caso contrário, se forem seguidas sem um conhecimento prévio, baseado na experiência
diária que constitui um conhecimento a respeito dos animais e da caatinga, certamente não
levarão ao caminho das cabras. Veredas e rastros servem como signos de localização dos
animais para os criadores. Mais especificamente, sugiro que podem ser entendidos como
“ícones” porque, por definição, determinam o signo a partir da natureza intrínseca ao objeto
participante da relação de significação, nesse caso, rastros e veredas determinados por sua
inscrição na terra, na caatinga.
Os criadores mais velhos reconhecem os caminhos da criação, os pastos onde cada
rebanho se alimenta diariamente, conhecem a caatinga de um modo particular, identificam e
nomeiam os lugares que dela fazem parte. É por meio dos pontos de referência que os
criadores se localizam no campo e auxiliam uns aos outros a encontrarem seus animais:
Sandro: Olha, a criação dessa região da gente aqui, a de Nivaldo, não. A de Nivaldo já vai
direto lá, por dentro do cercado ali. A de compadre Osmar, ela sai direto aqui por a Forquilha,
ela vai direto pela Forquilha, Furna da Onça e segue pro Boqueirão do Velho Ciço, nessa
direção. A de João Adão, ela já pega mais... Aí a minha já fica no meio, pega o Riacho do
Frejóis, a Capoeira de Tito Panta, e sai seguindo a Capoeira de Zé Adão, mas no meio. A de
João Adão já pega mais por baixo, pega uma parte da Capoeira de Euclides, segue e vai até a
capoeira de Tendengue. A criação de Teodomiro não vai pra Capoeira de Tendengue, se tiver
uma criação lá, anda perdida. A criação de Teodomiro já come da Lagoa do Caruá ao Serrote
382
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
do Macaco, junto com a criação de João Adão. Mistura mais um pouco, mas é mais ou menos
nessa direção. A criação de Zé de Erculano já pega aqui, Corte do Caldeirãozinho, mais ou
menos junto com a de Teodomiro e sobe até lá as lagoas, Lagoa do Caruá... Nessa direção aí.
Já a de Maurício vem de lá do Capim, que encontra com as de Teodomiro, aí por isso que
sempre sai criação de Maurício aqui no chiqueiro de Teodomiro e saí de Teodomiro lá, no
chiqueiro de Maurício. Porque o pasto que elas comem é encontrando um com o outro, aí
mistura.
Ariane: E todos esses nomes que você falou...
Sandro: Desses locais?
Ariane: É. São lugares aqui?
Sandro: É, lugares. São lugares na caatinga, que a gente conhece assim por ponto, por nome.
Aqui o pessoal mais velho, os mais novos não, mas os mais velhos se encontrarem uma cabra
minha... Vou fazer uma comparação agora, aqui. Teodomiro chega e diz: Sandro tem uma
cabra sua com cabritinho novo na Furna da Onça, na Capoeira da Furna da Onça, lá atrás da
Capoeira de Zé Delfonso. Eu sei ir onde é. Se ele disser, tem uma cabra sua na capoeira, no
Juazeiro Grande da roça de Zé Adão, eu sei onde é. Nós conhecemos os locais assim. Por
ponto e cada ponto tem seu nome. Aí aqui tem as capoeiras, o Barreiro de Romero, o
Boqueirão do Veio Ciço, a Capoeira de Tendengue, o Forno do Pereiro, o Forno da Algaroba,
Corda da Rocinha, Lagoa do Caruá...
Desse modo, proponho que os pontos de referência podem ser pensados como “índices”,
signos que são determinados especificamente em relação à materialidade do objeto. Assim
como o índice de um livro, quando consultado, remete o leitor que procura por um
determinado assunto à página exata que buscava, os pontos de referência indicam o local
exato que o criador procura em uma circunstância específica, quando deseja encontrar um
animal perdido, por exemplo.
383
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Entre as técnicas constituintes do laboro, o recorte nas orelhas dos animais utilizado
para sua identificação é um dos mais importantes204. O sinal205 é um recorte feito a faca nas
orelhas da criação. Geralmente, mas pode haver exceções, na orelha direita é recortado o
mourão da família, que é transmitido por herança de pai para filhos, netos e bisnetos. Na
orelha esquerda, mas nem sempre, fica a diferença, o sinal que identifica cada dono em
particular. Chamam diferença porque ele contém a mais ou a menos um desenho em relação
ao desenho do criador da geração ascendente. O sinal, portanto, denota propriedade, pertença
a um indivíduo, a uma família e a um território. Assim cada sinal é designado por um
nome206, tanto para o individual, a diferença, quanto para o mourão. Estes, afinal, são
combinações de sinais, como detalhes que são acrescidos ou subtraídos para formar uma
marca única, distinguir os bens de cada um em determinado território. Então, tratam-se de
sinais que são combinados, acrescentados detalhes para diferenciar um proprietário de outro,
visto que as criações se misturam no campo e precisam ser identificadas207. Proponho, por
conseguinte, que estes sinais podem ser pensados também como “símbolos”, signos que são
construídos pela interpretação, fundamentada em relação ao objeto e a uma convenção, “se
referem a alguma coisa por força de uma lei” (Ducrot e Todorov, 2001: 90). Assim, pensar os
sinais como “símbolos” permite salientar a perspectiva de sua determinação a partir de
204
Segundo Aristóbulo de Castro, na Espanha foi registrado o mesmo tipo de marcação por sinais e na Austrália,
algo semelhante. “Os australianos, por sua vez, adotam esse método, atribuindo, porém, a cada um desses sinais
ou cortes, valores que se traduzem em números, e mediante a leitura dos quais é feita a identificação individual
do animal. O sistema australiano usa somente a mossa e o buraco de bala. Este, por exemplo, quando feito na
orelha direita tem um valor, quando na esquerda, tem outro. [...] A posição da mossa, e a soma dos respectivos
valores atribuídos a cada mossa conforme o local em que se encontra, se em cima, se em baixo, se na ponta, se
na orelha esquerda, se na direita, é que conduz o criador ao cálculo e conhecimento do número animal.” (Castro,
1982: 103).
205
Sobre as assinaturas nas orelhas dos bodes (cf. Villela, 2004: 259). Outros autores também tratam de
marcações nos animais identificando pertenças (cf. Fijn, 2011). Os sinais já foram representados graficamente
por outros autores, estudiosos do Nordeste. (cf. Albano, 1918; Barroso, 1962; Castro, 1984 Domingues, 1955;
Silvio Julio, 1936).
206
Os nomes são, dentre os que eu conheci, ponta de lança, buraco de bala, brinco, canzil, mossa, forquilha,
boca de lagarta, garfo, coice de porta, bico de candiero, ponta troncha, dente, quadro.
207
É interessante a explicação de Aristóbulo de Castro, agrônomo e criador de cabras e bodes no interior do
Ceará, acerca da utilização de sinais nesse modo específico de criação. “Os caprinos, em regime extensivo,
soltos no mato – para usar a expressão sertaneja, - quando pressentem a aproximação de qualquer perigo,
instintivamente param, ficam quietos, erguem a cabeça, levantam as orelhas para ouvir melhor, e, com essa
postura, permitem que a perspicácia, a acuidade de nosso vaqueiro veja, em rápido relance, os sinais existentes
nas orelhas e possam, assim, identificar, distinguir, não somente os animais pertencentes ao rebanho da fazenda,
assim também cada indivíduo particular.” (Castro, 1976: 101)
384
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
relações de propriedade, parentesco e território, ou seja, convenções que são estabelecidas,
mas nem por isso imutáveis.
Identificados os elementos de análise, prossigo com a descrição do conceito de signo
escolhido para analisar os dados etnográficos.
TEORIA SEMIÓTICA
Há um reconhecido movimento que vai da proposição de uma ciência concebida como
Semiologia208 e que, através de problematizações e questionamentos no próprio interior da
disciplina, desaguaria, tempos depois, na Semiótica. Esse movimento teórico efetuou-se em
diversos lugares do mundo em um mesmo período e ao longo dos anos. Segundo Hénault
(2006 [1992]: 8-9), mesmo para os autores que faziam parte da constituição dessa disciplina
era improdutivo pensar em um movimento teórico com base nos pormenores históricos
considerando que, em perpétuo devir, a teoria se transformava por meio da multiplicação de
seus próprios questionamentos:
Tudo se passa como se, diante do esgotamento do valor heurístico de alguns conceitos
instrumentais, um novo projeto, a construção de uma sintaxe semiótica modal, capaz de criar
suas próprias problemáticas e de definir seus novos objetos semióticos, já estivesse pronta,
depois de dez anos de esforços coletivos, a tomar seu lugar. Trata-se de uma crise de
crescimento ou de um retorno decisivo, um novo rosto da semiótica vai pouco a pouco se
desenhando (A. J. Greimas apud Hénault, 2006: 9).
208
A proposta de F. Saussure (1999 [1916]: 23-25) é para que a Semiologia se constitua como uma ciência à
parte da Linguística, que esta última seja vinculada à primeira. Dessa maneira, propõe uma ciência que seria
encarregada de estudar os sistemas de signos através da língua, afinal, para o autor: “a língua constitui uma
instituição social, mas ela se distingue por vários traços das outras instituições políticas, jurídicas etc. Para
compreender sua natureza peculiar, cumpre fazer intervir uma nova ordem de fatos. A língua é um sistema de
signos que exprimem ideias, e é comparável, por isso, à escrita, ao alfabeto dos surdos mudos, aos ritos
simbólicos, às formas de polidez, aos sinais militares. [...] pode-se, então, conceber uma ciência que estude a
vida dos signos no seio da vida social; [...] chamá-la-emos de Semiologia. Ela nos ensinará em que consistem os
signos, que leis os regem” (Saussure, 1999 [1916]: 24).
385
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Considerando a densidade da teoria semiótica (que pode remontar à antiguidade
grega)209 e os deslocamentos constantes propostos no interior mesmo da disciplina, a
definição que utilizarei nessa análise considera, inicialmente, o signo210 “como uma entidade,
que pode tornar-se sensível, e para um grupo definido de usuários assinala uma falta nela
mesma. A parte do signo que pode tornar-se sensível denomina-se, desde Saussure,
significante, a parte ausente, significado, e a relação mantida por ambos, significação”
(Ducrot e Todorov, 2001: 102) 211.
Assim como a Semiologia tem seu marco reconhecido na publicação do Curso de
Linguística Geral de Saussure, “a semiótica torna-se disciplina independente com a obra do
filósofo norte-americano Charles Sanders Pierce. Trata-se, para ele, de um quadro de
referência que engloba qualquer outro estudo” (Ducrot e Todorov, 2001: 89). Assim, se de um
modo geral, considero o signo como uma entidade sensível que só pode ser compreendida em
relação a um grupo de pessoas e a um contexto específico, particularmente, emprego uma das
acepções de signo proposta por C. S. Pierce que o define como uma relação necessariamente
triádica entre signo, objeto e interpretante (ver Diagrama 1):
a primeira originalidade do sistema peirceano reside na própria definição que ele dá de signo.
Eis uma das formulações: ‘Um signo, ou Representâmen, é um Primeiro, que mantém com
um Segundo, chamado seu Objeto, uma relação triádica tão verdadeira que é capaz de
determinar o Terceiro, denominado seu Interpretante, para que este assuma a mesma relação
triádica com respeito ao mencionado Objeto, que a reinante entre Signo e Objeto’. Para
compreender essa definição é preciso lembrar que toda essa experiência humana se organiza,
para Pierce, em três níveis que ele denomina: Primariedade, Secundariedade e terciariedade e
que correspondem, grosseiramente, às qualidades sentidas, à experiência do esforço e aos
signos (Ducrot e Todorov, 2001: 90).
Outro aspecto conveniente desse conceito de signo é que:
209
(cf. Aubenque, 2012),
O signo foi definido com muitas variações e contradições por diversos autores, entre eles: Santo Agostinho,
Saussure, Hjelmslev, Hegel, Jung, Wallon (cf. Barthes, 1971: 39-41).
211
Outros antropólogos também propuseram análises semióticas: M. Sahlins (1976), E. Leach (1978) e, mais
especificamente para o caso de relações entre humanos e animais, E. Kohn (2013).
210
386
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
o signo é sempre institucional: neste sentido, existe apenas para um grupo delimitado de
usuários. Este grupo pode reduzir-se a uma só pessoa. Mas fora duma sociedade, por mais
reduzida que seja, os signos não existem. Não é correto afirmar que a fumaça é o signo
‘natural’ do fogo; ela é sua consequência, ou uma das partes. Somente uma comunidade de
usuários pode instituí-la como signo (Ducrot e Todorov, 2001: 102).
Portanto, além de definir o signo como uma relação triádica e como um elemento constituinte
dessa relação (representâmen), Pierce elaborou outras 10 classificações para o signo e as
chamou de tricomias: uma delas é a referente à relação do signo com seu objeto que pode ser
derivada em três níveis: ícone, índice e símbolo. É a partir dessa tricomia específica, que
comporta uma relação de representação do signo com o objeto que tratarei em seguida.
SINAIS, VEREDAS E PONTOS DE REFERÊNCIA
As classificações relacionadas anteriormente – veredas como ícones, pontos de
referência como índices e sinais como símbolos – fazem referência a essa classificação do
signo proposta por Pierce. São três gradações do signo vinculadas a outros três níveis
referentes à divisão proposta por ele da experiência humana: Primeiridade, Secundariedade e
Terciariedade, ou Sentimento, Reação e Pensamento (Pierce, 2007: 42).
Importante lembrar que os signos não podem ser pensados isoladamente porque
sempre fazem parte de um sistema. Desse modo, é como um sistema de signos que veredas,
pontos de referência e sinais podem ser analisados (ver diagrama 2).
O ícone, considerando a definição de Pierce, determina o signo por um objeto de
mesma natureza que ele, no caso, as veredas e rastros que são compreendidos por seus
próprios desenhos por meio das faculdades sensíveis; eles expressam ideias a respeito de um
objeto ou coisa específica apenas por imitá-los, essa semelhança ou imitação será o seu
significado (Pierce, 2007: 48-49).
O índice determina o signo considerando uma relação, ou seja, os pontos de referência
são índices no momento em que relacionam com um ponto material específico na caatinga,
387
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
uma árvore, um riacho, uma pedra ou caminho; os índices mostram algo a respeito de alguma
coisa, se atualizam quando conectam um objeto a um significado. Mais especificamente:
qualquer coisa que força a atenção é uma indicação. Qualquer coisa que nos alerta é uma
indicação, à medida que ela marca a junção de duas partes da experiência; [...] o índice está
fisicamente conectado com o seu objeto, eles fazem um par orgânico. Mas a mente
interpretadora nada faz com essa conexão, exceto dizê-la, depois de estabelecida (Pierce,
2007: 50-51).
Os símbolos, que sempre remetem a outros signos e são estabelecidos a partir de uma
convenção, só podem ser significados caso for considerado um contexto específico
212
. O
símbolo remete a outros signos e significados, além de estar ligado à representação de um
objeto, ou seja, “o símbolo é conectado com o seu objeto em virtude da ideia do uso
simbólico da mente [symbol-using], sem a qual nenhuma conexão existiria” (Pierce, 2007:
51). Desse modo, a compreensão dos sinais como símbolos possibilita remetê-los a outras
séries de signos e relações, como de pertencimentos, territoriais e familiares.
Finalmente, ao contrário do esforço teórico empreendido por Pierce que pretendia, a
partir da semiótica alcançar um conhecimento verdadeiro, minha proposta de análise busca,
através do conceito metodológico de signo, uma possibilidade de inflexão sobre os dados,
sem que isso suponha, como induz a semiótica pierciana, chegar a um conhecimento final
sobre eles.
212
A respeito de análises referentes a simbolizações em contextos de relações entre humanos e animais (cf.
Blok, 1981 e Derby, 2013)
388
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Diagrama 1: Definição de signo
Diagrama 2: Sistema de signos
389
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
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391
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
FORMANDO SUJEITO, TORNANDO OBJETO: AS RELAÇÕES COM
O CÃO NA AMAZÔNIA INDÍGENA
Paulo Büll
[email protected]
CNPq
PPGAS-UFRJ
Este trabalho tem como objetivo entender a relação dos indígenas amazônicos com o
cachorro, animal introduzido na região após a Conquista, e que exerce importante papel
auxiliar na caça. A questão a ser percorrida por este trabalho é a de como se pode tirar
proveito das capacidades cinegéticas do cão, já que ele é, a priori, considerado um animal
incestuoso, sexualmente descomedido e coprófago. Respondo a essa questão me baseando
nas relações de alimentação e nomeação do cão, as quais penso exprimirem uma passagem de
um momento no qual este animal é socialmente insignificante, para outro no qual ele é
valorizado. O cuidado, controle e proteção do cão, e o conjunto de técnicas elaboradas para
torná-lo caçador, são tidos aqui como modos de relação que marcam o estatuto social do cão e
que permitem a capacitação de suas habilidades cinegéticas.
Palavras chave: técnica, objetificação, animais, alimentação
***
Os cães estão presentes em grande parte dos grupos indígenas da Amazônia. Não só
etnógrafos e cronistas, mas também arqueólogos (Merey, 2007), historiadores (Schwarz,
1977) e geneticistas (van Asch et al., 2013) têm constatado esta presença, atestando a origem
europeia do animal. Em um ensaio sobre a história da bacia do Orinoco, o jesuíta italiano
Filippo Salvatore Gilii (1965 [1782]) expôs que os cachorros “propagaram imensamente” nas
Américas após a Conquista:
[Los perros fueram] traídos por los primeros conquistadores y propagados
imensamente em América (...). Todas lãs naciones (...) tienen perros por médio del comercio
de unos com otros, y hacen suma estima de ellos, tanto para la caza como para la centinela de
noche.
A presença do cachorro na Amazônia aparece, até mesmo, em uma das primeiras
fotografias amazônicas, registradas em 1867 por Christoph Albert Frisch em uma expedição
fotográfica na região do Rio Solimões ou Alto Amazonas213:
213
Sobre a discussão a respeito das primeiras fotografias amazônicas, ver Ferreira de Andrade (2013).
392
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
A evidência do cão como auxiliador da prática da caça também é recorrente
historicamente. Como afirma Marion Schartz em seu livro History of dogs in Early América
(1977:41, trad. minha), “os povos da Amazônia que não tinham tradição de criar e cuidar de
cães estavam ansiosos para obtê-los, uma vez que eles entenderam as habilidades de caça de
tais importações europeias”214.
Nas páginas abaixo, reflito sobre os mundos e seres aos quais os cães, na Amazônia
indígena, se associam; depois, baseio-me nas relações de alimentação e nomeação do
cachorro, e nos processos técnicos que visam torná-lo caçador, para argumentar que os
ameríndios relacionam-se com os cães de duas formas diferentes: uma primeira na qual
214
Assumo a responsabilidade por essa e pelas demais traduções feitas neste trabalho.
393
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
prevalece o desprezo e a insignificância, e outra segunda na qual os cães são valorizados
enquanto sujeitos sociais.
ASSOCIANDO CONTEXTOS E ECOLOGIAS
Em muitos grupos indígenas amazônicos, os cães são designados por termos
lexicalmente próximos ao português: cachoriru, kasuru e kasoro, respectivamente para o caso
dos Nambiquara, localizados no Mato Grosso, e dos Kawaiwete (Kaiabi) e Trumai215,
localizados no Parque Indígena do Xingu. Mesmo quando o termo usado para designar o cão
não é próximo ao português, muitas vezes o nome usado para chamá-lo revela sua associação
ao mundo dos brancos: na região das Guianas, os cães entre os Wayana são chamados por
termos em português que para eles são considerados engraçados: maça, bolo; e entre os
Hixkaryana, alguns cães têm nomes que vêm de personagens de novelas. Já na região do Alto
Rio Negro, entre Koripako, e no Rio Solimões, entre os Tikuna, os cães são chamados por
termos como negro, moreno ou feo216, os quais denotam suas características físicas.
A ligação entre cachorros e brancos também é expressa nos termos mediante os quais
os cães são repreendidos. Entre os Awá-Guajá, grupo tupi-guarani localizado no Maranhão, os
donos cães “têm por hábito comunicar [aos cães] suas ordens apenas em português” (Garcia,
2010: 293), até porque estes animais são considerados karaí nimá, termo que significa animal
de criação dos brancos (idem:223). Entre os Parakanã, também tupi-guarani, localizados no
Pará, o termo ‘passa’ é sempre utilizado quando se pretende repreender o cão. Já entre os
Kawaiwete (Kaiabi), falantes da mesma língua e localizados no Parque Indígena do Xingu,
215
Todos esses dados foram coletados a partir de um questionário, enviado a pesquisadores americanistas que
gentilmente responderam a perguntas sobre o tema da relação entre humanos e cachorros. Uma tabela com todos
os pesquisadores, seus respectivos grupos, e com o termo pelo qual o cão é designado, consta no final deste
artigo (anexo 1). Deixo aqui meu agradecimento a todos os pesquisadores que responderam o questionário.
394
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
quando os cães entram nas casas grita-se com eles em português, mesmo que os donos falem
apenas Kawaiwete.
A peculiaridade dos critérios de nomeação dos cães também está presente nos grupos
Chaco, localizados na Bolívia e Argentina. Diego Villar (2009) argumenta que enquanto a
atribuição de nomes para os animais é orientada por uma lógica antropomórfica, e para os
humanos zoomórfica, para os cães nenhuma destas duas lógicas se aplicam. Segundo o autor,
os termos de referência designado aos cães são ambíguos e revelam tanto sua associação aos
brancos quanto ao jaguar: "la etimologia presenta al perro como mascota del hombre,
paradigma del animal del hogar, pero también como mascota del jaguar, signo por
antinomasia de la inhumanidad deliberada, lo asocial y lo selvaje" (2005: 499).
Lévi-Strauss já havia chamado a atenção, em Do mel às cinzas, para a classificação
semelhante - e não-heteróclita - utilizada por grupos tupi para se referirem aos cães e jaguares:
“[a] partir do radical /iawa/ o tupi forma, por sufixação, os substantivos: /iawara/ ‘cachorro’,
/iawaraté/ ‘jaguar’, /iawacaca/ ‘ariranha’, /iawaru/ ‘lobo’, /iawapopé/ ‘raposa’ (2004 [1967]:
83). Entre os Ka’apor, Parakanã e Awá-Guajá, grupos de língua tupi-guarani, os cães são
chamados pelo mesmo termo utilizado para designar o felino: jawara para os casos Parakanã
e Awá-Guajá, e yawar para o caso Ka’apor. Já entre os Xikrin-Mebengokre e Canela
Apanjekra (Timbira), grupos de língua jê localizados respectivamente no Pará e Maranhão, o
radical Rop-, utilizado para se chamar o cachorro, é o mesmo que designa o jaguar.
Segundo Felipe Vander Velden, duas são as razões que explicam a associação entre
cães e onças. Em primeiro lugar, tanto os cachorros quanto outros carnívoros são associados
pelos Karitiana à onça pelo fato de que estes seres compartilham a ferocidade, atributo
prototípico do felino. Para os Karitiana, falantes da língua Arikém e localizados em Rondônia,
ser potencialmente perigoso é um dos fatores da qual a associação do cão ao maior carnívoro
das Américas é derivada217. Em segundo lugar, Vander Velden postula que cães e onças estão
inseridos em um contexto ecológico comum: a caça, a ferocidade, a agressividade e a
competição ecológica são características compartilhadas por cachorros e onças. A
217
Descola (1994:230) também observa que a classificação semelhante para cães (e também outras espécies de
mamíferos carnívoros) e onças provém da concepção nativa de que estes seres compartilham "natural ferocidade
e gosto por carne crua" (apud Vander Velden, 2009:8).
395
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
classificação nativa para ambos os seres, como apresentado acima, em muitos grupos
indígenas é a mesma (Vander Velden, 2012:296-303).
A representação do mundo, fato constitutivo do ser, é o que para Eduardo Kohn
compartilham jaguares e cães, mas também todos os tipos de seres. Em seu livro How Forests
Think (2013), que busca uma expansão etnográfica a ponto de alcançar uma ‘antropologia
para além do humano’, Eduardo Kohn realça que os não-humanos também representam o
mundo, mesmo que não linguística ou simbolicamente. Para além do contexto ecológico e dos
atributos compartilhados, cães e onças estão imersos em um mundo representacional no qual
as onças também adquirem atributos caninos. Portanto, na medida em que as onças se tornam
um cão dos seres espirituais mestres dos animais, “what we think of as a jaguar is actually
[the spirit animal master’s] dog” (Kohn, 2007:11).
Como entender um fundo comum ao contexto ligado aos brancos e à ecologia que os
cães compartilham? Existe alguma articulação entre o histórico e lexical vínculo dos cães aos
brancos, e sua física e ecológica associação ao jaguar? Enquanto sujeitos incestuosos
(Descola, 2006) e inquietos (Vander Velden, 2012), mas também objetos caçadores e
valiosos, os cães estão imersos na “ecology of selves”, a qual funciona articulando relações
ecológicas e relações (para-além-das) humanas (Kohn, 2013). Penso que não só entre os
Ávila-Runa, mas também em muitos outros grupos indígenas amazônicos, a relação humanocachorro conecta-se à “ecology of selves” ao mesmo tempo que ao mundo exterior às
florestas, o qual “alcança camadas de heranças coloniais” (Idem: 18; Kohn, 2013).
FORMANDO SUJEITOS
Embora os cães estejam imersos na “ecology of selves” da qual trata Kohn, isso não
significa que sua posição enquanto sujeito social está dada. Pelo contrário, o descumprimento
das regras sociais é uma característica destacada pelos indígenas das terras baixas sulamericanas quando estes se referem aos cachorros. Seja pelo caráter incestuoso do animal,
expressado nos mitos (ver Gow, 1997:46) ou mesmo nos discursos indígenas (ver Descola,
2006), seja pelo maltrato constante do qual o animal é vítima nas aldeias nas aldeias, pode-se
dizer que o estatuto associal do cão é o seu polo não-marcado.
396
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Na mitologia Piro, grupo indígena de língua Pano localizado na região amazônica
peruana, os cães possuíam uma linguagem sofisticada, mas perderam-na por desacatarem
certos tabus. Por isso, comunicam-se com os humanos apenas por meio de latidos, uivos e
rosnados (Gow, 1997:46). Para os Piro, casar-se com a filha de um tio materno significa
tornar-se cachorro, “gente de jeito nenhum” (idem). Entre os Karitiana, os cachorros são
considerados animais sujos (por comerem fezes e outros dejetos), promíscuos, traiçoeiros e
pouco confiáveis (Vander Velden, 2009:7). Já entre os Marubo, localizados no Rio Purus, os
cachorros são considerados fuxiqueiros e sexualmente descomedidos (Cesarino, 2008: 271).
O estatuto coprófago do cão é salientado por muitos grupos indígenas. Entre os Matis,
grupo de língua Pano localizado no Vale do Javari, os cães são particularmente mal visto em
relação aos outros xerimbabos, justamente porque se alimentam de dejetos humanos (Erikson,
2012:22). Segundo Philippe Erikson, o estatuto copofrágico do cão, bem como suas atitudes
que violam regras de parentesco, reiteram o estatuto associal e dificultam a socialização do
cachorro.
A concepção negativa em relação à ‘natureza’ dos cães também tem implicações no
modo com que eles se relacionam com os humanos nas aldeias indígenas: como disse Ana
Paula Rodgers (c.p), a propósito dos Enawene-Nawé, grupo não caçador localizado no
noroeste do Mato Grosso, cuidar bem e gostar de cachorro sempre lhes parecia estranho e não
muito adequado. Entre os Kanamari, povo de língua Katukina da Amazônia ocidental, um
homem que tratava os cães carinhosamente era visto pelos demais como excêntrico.
Os cães presentes nas aldeias indígenas são vítimas de constantes maltratos. Por
exemplo, entre os Hyxkariana, grupo localizado nas Guianas, as crianças se divertem e riem
quando atingem e queimam os cães com pedaços de lenha em chamas (Lucas, c.p.). Além
disso, os cães estão sempre doentes – com verminoses, sarna e outras doenças na pelagem.
Resumidamente, me aproprio da máxima de William Balée (c.p.) sobre os cães entre os
Ka’apor, onde são constantemente enxutados, e com peço permissão para generalizá-la: it’s
not easy to be a dog in a indigenous society of Amazonia.
397
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
De fato, como aponta Vander Velden (2009)218, e como apontei em outro trabalho
(Büll, 2014), o elevado grau de desprezo com o qual os indígenas da Amazônia se relacionam
com o cão não carece de certa ambiguidade: o maltrato muitas das vezes é acompanhado de
uma relação afetiva, e na maioria das vezes os donos choram com a morte de seus cães. Entre
os Paumari, localizados no Rio Purus, o falecimento ou adoecimento de algum cachorro é
motivo de ‘tristeza e preocupação’. Entre os Xikrin-Mebengokre, localizados no Pará, a morte
de um cão causada por um atropelamento acidental despertou fúria no dono do animal
falecido. Como explicar essa instável e ambígua relação com os cachorros na Amazônia?
Acredito que a passagem de uma relação de desprezo para outra de afeto ocorre apenas
quando os cães já marcaram sua posição de caçador. Enquanto não participarem da caça, ou
ao menos enquanto não forem controlados, e inseridos nos processos de treinamento e
cuidado, os cães continuarão marcados por seu estatuto incestuoso e destituídos de qualquer
relação afetiva. Entre os Kanamari, por exemplo, nenhum filhote de cão nascido em uma
aldeia sobrevive mais do que aproximadamente quatro meses. Isso ocorre em muitos grupos
indígenas da Amazônia porque os cães são abandonados ou, como já apontado acima,
deixados à sua própria sorte. A relação muda, contudo, quando o cão se envolve com a caça.
ALIMENTAÇÃO E NOMEAÇÃO
As práticas de alimentação dos animais contribuem para a socialização dos animais,
como diz Erikson (2012:22). Como demonstrado por Luiz Costa a propósito dos Kanamari, a
alimentação na Amazônia indígena é um dos modos pelos quais o parentesco se articula às
relações de maestria e de comensalidade, das quais são resultadas, respectivamente, as
relações de dependência e de parentesco propriamente dito (Costa, 2013). As modalidades de
distribuição e consumo de alimentos, no caso dos cães, também articulam e estão articuladas
em dois momentos: um primeiro, no qual se inserem os cachorros não-caçadores; e, segundo,
218
Segundo Vander Velden (2009:10), a ambiguidade característica do modo de relação com os cães resulta do
fato de que estes animais são vistos tanto como perigosos (visão decorrente de sua associação ao jaguar)
quanto como preciosos (visão decorrente de sua habilidade na caça). Vale lembrar que outros autores
conceberam a relação com o cão na Amazônia indígena, e alhures, como ambígua: ver, por exemplo, Villar
(2009) para o caso amazônico, Brightman (1993) para o caso dos Cree, localizados no Canadá, e Ariel de Vidas
(2002) para o caso dos Teenek no México.
398
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
um outro momento no qual há um processo de treinamento, controle, cuidado e proteção do
cão que visa o desenvolvimento de suas capacidades cinegéticas.
A relação de alimentação dos cães é ilustrativa para se pensar o caráter liminar do
animal, na medida em que ela varia de acordo com o estatuto do cachorro. Em um primeiro
momento, os cães precisam se virar para conseguirem comida. Entre os Hyxkariana, por
exemplo, cachorros recebem apenas partes imprestáveis de certos alimentos, como o beiju que
cai no chão ou um osso. Quando não são bons de caça, os cães precisam rastrear (ou mesmo
roubar) restos de comida, como ocorre entre os Paumari e Xikrin-Mebengokre. De um modo
geral, pegando o caso dos Bororo, localizados no Mato Grosso, os cachorros sobrevivem das
sobras dos alimentos comidos pelos humanos: espinhos de peixe, ossos, cascas de frutas,
farelo do milho e bagaço da cana219.
Algo diferente acontece a partir do momento em que o cão se envolve com a prática da
caça. Embora, em alguns casos, deixar de alimentar o cão na atividade cinegética seja uma
estratégia para que ele consiga maior produtividade, aos cães caçadores são compartilhados os
frutos da caça, os quais são preparados e cozidos em separado – como ocorre entre os
Wayana, grupo Karib localizado na região das Guianas. Em narrativas míticas entre os Siona
Tukano, localizados na Amazônia colombiana, os cães caçadores que não são alimentados
‘pensam mau’ de seu dono, resultando na morte prematura deste último. Para que tal
fatalidade não ocorra, os donos devem fornecer ao cão caçador alimentos cozidos, como as
tripas dos animais caçados.
As distintas formas de alimentar o cão evidenciam a passagem esboçada acima (e que
será melhor trabalhada baixo) entre dois tipos de relação: a saber, uma na qual o cão é tratado
como insignificante, e outra na qual ele é valorizado na medida em que participa da caça.
Entretanto, ao contrário do que ocorre entre os Kanamari, os grupos indígenas da Amazônia
219
Em diversos outros grupos os cães - especialmente quando não caçadores - se alimentam dos restos de
comidas. Dentre os 23 pesquisadores que me informaram sobre do tema, pensando em seus respectivos grupos
de pesquisa, 13 deles citaram a palavra “restos” quando se referiam à alimentação do animal.
399
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
não explicitam em expressões verbais a passagem de uma relação de alimentação para
outra220.
A passagem de uma primeira relação de abandono e hostilidade, comum aos cães nãocaçadores, para uma segunda, de controle e proteção, na qual o cão está envolvido na
atividade cinegética, é explicitada pelos nomes pelos quais os cães são chamados. Muitos cães
recebem nomes (que não necessariamente se tornam seus nomes próprios) de acordo com suas
características: entre os Tikuna, localizados no Rio Solimões (perpassando o Estado do
Amazonas, a Colômbia e o Peru), os cães são chamados por termos que remetem ao seu perfil
físico, como ‘negro’ quando têm coloração negra, chokü por sua coloração branca (a tradução
em espanhol é choco), ou chi-ekü por ser considerado “feo”. Já entre os Yanomami, o cão
também é chamado segundo suas características físicas. Já entre os Deni, grupo Arawá
localizado na região dos rios Juruá e Purus, os nomes dos cachorros de caça são sempre
descritivos, como kabany para o cão “malhado”, asari para o cão preto, e assim por diante
(Huber Azevedo, 2012:289). Vale a pena citar, por fim, os comentários de Arlindo Goes
Yanomami (c.p.) sobre a questão:
Se o cão estiver com orelha sem ter quebra na ponta se daria o nome de “yimikaki
hayawë” que dizer orelha de veado. Se o cão estiver quebra com a ponta da orelha se daria o
nome de “wërërë” que dizer orelha quebrada. “xetiti” que dizer pintas paralelas assim vai...
Recorro à Lévi-Strauss para entender a ligação entre alimentação e nomeação.
Segundo o autor francês, muitas proibições culinárias têm seu equivalente no plano do
discurso, o que “confirma a homologia da oposição metalinguística entre sentido próprio e
figurado com as que remetem a outros códigos” (2004 [1964]:426), como cru e cozido.
Segundo o discurso dos índios da região das Guianas, os Espíritos sentem-se ofendidos e
provocam tempestades caso determinados seres sejam chamados pelos termos literais que
designam a espécie em geral. O cachorro (ou perro, para o caso espanhol), por exemplo, deve
ser chamado kariro, ou dentuço, justamente alguma característica física. Este caso, como diz
220
No caso dos Kanamari, ayuh-man e da-wihnin-pu são as expressões verbais pelas quais os Kanamari
reconhecem explicitamente a passagem de um tipo de relação alimentar para outra. A primeira expressão designa
o ato de “dar de comer”, que implica maestria, ao passo que da-wihnin-pu designa o ato de comensalidade,
caracterizado por relações comunais que propagam relações de parentesco. Para uma análise mais detalhada
desse ponto, ver Costa (2013).
400
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
o próprio Lévi-Strauss (idem), remonta ao que as Mitológicas tentam demonstrar: “o sentido
próprio conota a natureza e a metáfora conota a cultura”.
Os cachorros na Amazônia, ao alimentarem-se de comidas cozidas, geralmente partes
da caça que eles auxiliaram a obter, e ao receberem nomes metafóricos, que geralmente
designam suas características físicas, marcam-se como sujeitos. Deixam de ser
insignificantes, abandonados. Não obstante, o que leva os humanos a modificarem sua forma
de conceber e de se relacionar com o cão? A resposta para esta pergunta, acredito, está na
pretensão de aproveitar suas habilidades cinegéticas.
TORNANDO CAÇADORES
As menções aos cães, nas etnografias ou nos relatos de cronistas, viajantes e
missionários, recorrentemente fazem referência ao papel deste animal como auxiliar na caça.
O próprio termo cinegética, comumente empregado por etnólogos para se referirem a tal
prática, etiologicamente significa “arte de caçar com auxílio de cães” (Dicionário Priberam da
Língua Portuguesa, 2008-2013). Vejamos a descrição de Spix e Martius, ao relatarem uma
expedição pela floresta amazônica com a ajuda de cães caçadores “bem amestrados”:
procuráva-mos, com o auxílio de alguns caçadores amadores e de seus
cães bem amestrados, caça grande: caititu, veado, onça e anta (...). De
repente o mato anima-se: aparece a anta, perseguida pelos cães
latindo, e que se precipita de cabeça estendida e cauda enrolada, em
linha reta pela brenha, atropelando à sua frente tudo que lhe embarga
o caminho. (Spix e Martius, 1981 [1828]: 83)
Como já apontado acima, o envolvimento do cão na prática da caça é imprescindível e
determinante em relação ao seu estatuto nas sociedades indígenas da Amazônia. Mesmo que
não se torne um exímio caçador, todos os cachorros são inseridos por um dono no processo
401
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
que tem como objetivo a capacitação das habilidades cinegéticas caninas221. Descrevo abaixo
as características desse processo.
Segundo Schartz (1977:47), diversos rituais e magias foram realizados pelos caçadores
com a finalidade de preparar os cães para a atividade cinegética. Segundo a autora, tais rituais
e magias eram realizados por xamãs e curandeiros, os quais visavam assegurar que os
espíritos que traziam má sorte estivessem apaziguados, e prontos para colocar as presas onde
os caçadores poderiam encontrá-las. Já Michael Brown, autor de uma etnografia sobre os
Aguaruna Jivaro do Peru, expôs que os cães de caça sempre foram objeto de considerável
atividade ritual. Por exemplo, “festas inteiras eram destinadas a dotar um cão com força e
habilidade” (1967: 80).
Na preparação para o início da caça, por exemplo, as mulheres são convidadas por
seus maridos para usarem suas músicas mais novas e mais poderosas, a fim de trazer sorte
para o cão de caça (idem:81). Tais rituais também estão estreitamente relacionados à
alimentação do animal, que recebem das mulheres dos donos mandioca previamente
mastigada. Como no caso dos Wayana, segundo Iori Linke (c.p.), estes rituais contínuos são
processos cujo objetivo é fazer com que o cão não entre na condição de panema (azarado,
ruim de caça).
A relação entre técnicas e procedimentos mágicos, tal como expôs Mauss, são
evidentes, mas nem por isso “demasiado universais para nisso insistirmos” (2003
[1950]:406). Diversas técnicas são utilizadas para desenvolver as capacidades ou aprimorar as
habilidades cinegéticas do cão. Em muitos grupos indígenas das terras baixas da América do
Sul, determinadas espécies de plantas, ou de animais, são colocados e esfregadas no focinho
do cachorro, já que a principal forma do cão detectar a presa é pelo cheiro (Koster, 2009:
577).
221
De fato, muitos grupos indígenas não fazem da caça sua principal atividade de subsistência, e isso claramente
problematiza uma generalização tal qual eu busco neste artigo. Entretanto, muitos grupos que não praticam a
caça, mas que têm cachorros, utilizam-nos como protetores das residências e da aldeia em geral. Mesmo que não
tanto amazônico, o caso dos Mapuche, localizados na região centro-sul do Chile e do sudoeste da Argentina,
parece ser pertinente: embora não se pratique a caça, os cães são utilizados neste grupo para expulsar os porcos
das proximidades da casa. Falta-me maiores dados (e fôlego) para me deter a esse ponto, contudo.
402
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Como expõe Uirá Garcia, sempre que os Guajá matam um animal de grande porte
(como antas e porcos), "esfregam o focinho do cachorro na presa morta, gritando com ele para
que ‘aprenda’ (imarakwá – ‘lembrar’) o cheiro da mesma, e passe a caçar melhor"
(2010:300). Esta técnica é utilizada também pelos Xikrin-Mebengokre, que passam espécies
de plantas também no corpo do cachorro. Marimbondo, como ocorre entre os Trumai, e outras
espécies de animais como formigas (entre os Siona Tukano), são usadas para picar o focinho
dos cães, técnicas essas que garantem maior resistência ao animal. Entre os Yanesha,
localizados no leste do Peru, os humanos esfregam pimenta em pó nas narinas do cachorro, e
também colocam pimenta nos olhos do animal, para que ele aguce seus sentidos do olfato e
visão.
Aguçar o faro e aprimorar as capacidades cinegéticas também consiste em ingerir
determinadas substâncias. Entre os Achuar, como mostra P. Descola (2006), os cachorros
recebem alucinógenos para que eles tenham um olfato mais aguçado e, entre os Kanamari, os
cachorros recebem o wakoro, substância extraída da barriga do sapo e ingerida para curar o
azar (panema) na caça. Já entre os Yanesha, tanto os homens quanto as mulheres usam
‘plantas mágicas’, chamadas genericamente epe' (ou em espanhol piri-piri local (Cyperus
spp.), para realizarem o feito de curar o azarna atividade cinegética.
Entre os Trio, também localizados nas Guianas, os cães têm seus corpos
‘manipulados’: seus pelos são cortados, suas caudas são torcidas e seus narizes são picados
para que eles adquiram resistência e bom faro. Todas essas técnicas visam o desenvolvimento
do corpo do cão. Entre os Waiwai, grupo Karib também localizado na região das Guianas, os
cães são levados ao rio para banharem-se mais de uma vez ao dia, têm seus piolhos e larvas
extraídos, e são revestidos de urucum vermelho (Howard, 2001:243-9). A pintura corporal dos
cães ocorre também entre os Bororo, que utilizam jenipapo para pintar o animal.
O processo de crescimento (growth) do corpo de um cachorro depende
consideravelmente não de um processo natural, mas de repetidos investimentos de cuidado
para com os cães: carregar-lhes nos braços, e também lhes dar os mesmos ‘alimentos básicos’
que os humanos comem (idem). O crescimento do corpo dos cães é efeito de repetidos
cuidados, os quais, entre os Waiwai, são realizados pelas mulheres. O fato da comida dada aos
403
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
cachorros não ser ‘bruta’, mas sim preparada por homens e mulheres a fim de que ela se torne
um ‘produto cultural’, bem como o fato de os cachorros serem ‘embelezados’ através de
adornos humanos, sugerem a Catherine Howard que o processo geral de crescimento dos cães
resulta antes em um modo de humanização que em mera nutrição/embelezamento (idem).
Tratando dos Qom, grupo indígena Chaco localizado na Argentina, Celeste Medrano
(n.p) produz argumentos semelhantes em relação à produção do corpo do cão. Segundo a
autora, o cachorro está mais próximo aos seres humanos do que outras espécies da fauna, e
sua vida é domesticamente moldada, alterada, educada e socializada de forma semelhante ao
que ocorre com os humanos. Sob um fundo contínuo no qual humanos e não humanos estão
ligados por uma interioridade comum, os cães tornam-se afins dos humanos e passam a se
comportar como “quase-parentes” (idem: 26).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Espero ter explicado o fundo por trás da instável e ambígua relação com o cachorro na
Amazônia indígena. Acredito que as relações de alimentação e nomeação do cão, bem como
sua inserção no conjunto de técnicas que buscam capacitar suas habilidades cinegéticas,
sobrepõem-se (ou ao menos são tão importantes quanto) a questão de sua origem nativa ou
exógena/introduzida. Nesse sentido, o tratamento dos animais autóctones diferente do
recebido pelos animais introduzidos parece ocorrer, pensando em relação aos cachorros,
menos por causa de sua origem (nativa ou exógena/introduzida) que pelas relações supra
citadas. Assim como faz Felipe Vander Velden (2012), demonstrando a relevância da idade de
certos animais para argumentar que a oposição entre animal domesticado (pet) e animal
familiarizado (wild pet) precisa ser recolocada, concordo com o autor quando ele diz que
podemos sugerir outras respostas a pergunta sobre o porquê da não domesticação do pecari na
Amazônia.
Em “Pourquoi les indiens d’Amazonie n’ont-il pas domestique lê pécari?” (1994),
Descola coloca que os índios da Amazônia preferiram incorporar novas relações técnicas (no
caso, europeias) ao invés de transformarem as presentes antes da Conquista. Assim, as
modalidades técnicas empregadas na relação com o cachorro, como o próprio americanista
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
diz, foram incorporadas às sociedades da América do Sul não-andina sem infletir na
"ideologia" ou ontologia ameríndia: segundo Philipe Descola, “é muito mais fácil adotar um
objeto técnico novo que inventar uma nova relação técnica” (2002: 107). Acredito, também,
ter deixado claro que o envolvimento do cão na prática da caça é imprescindível e
determinante em relação ao seu estatuto nas sociedades indígenas da Amazônia. A
complexidade e a relevância adquiridas pelo cachorro entre os grupos indígenas amazônicos,
expressadas pelo conjunto de técnicas aqui apresentadas, parecem expressar mais uma escolha
consciente pela domesticação desse animal que uma mera adoção de técnicas exteriores. Tudo
indica, de qualquer forma, que a domesticação na Amazônia concebida como de “segunda
ordem” (ver Digard, 1992) deve ser problematizada.
Anexo 1 – Tabela com autores das respostas do questionário
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
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“O CAVALO É IGUAL AO HOMEM”: UMA ETNOGRAFIA DA
RELAÇÃO ENTRE HUMANOS E CAVALOS NA INVENÇÃO DA LIDA
E DO MUNDO CAMPEIRO
Daniel Vaz Lima
[email protected]
PPGAnt / UFPel
Mestrando
Flavia Maria Silva Rieth
[email protected]
PPGAnt / UFPel
Docente
Este artigo consiste numa descrição etnográfica sobre a relação entre o domador e o cavalo na
aprendizagem do trabalho da doma no pampa sul-rio-grandense. Doma é definida como um
conjunto de técnicas que tem em vista a domesticação do cavalo para trabalhos relacionados
às lidas campeiras. O processo de aprendizagem e ensino que se estabelece entre o domador e
o cavalo marcam a invenção da cultura. (Wagner, 2010). O domador ensina o cavalo, ao passo
que este, por sua vez, ensina o humano demandando que acione determinados conhecimentos
para domesticá-lo. A experiência de estar no mundo agindo constrói uma “intenção
consciente” (Ingold, 1983) em que as habilidades, tanto dos animais não humanos como dos
humanos, incorporadas na pratica do treinamento configura a aprendizagem, embora de
maneiras distintas, de formas de saber/fazer.
Palavras-chave: Naturezas/culturas, Técnicas da doma, Humanos/não humanos.
INTRODUÇÃO
Este texto constitui uma reflexão etnográfica sobre a relação entre o domador e o
cavalo na domesticação, ou seja, na aprendizagem do trabalho da doma no pampa sul-riograndense, relação que trata de inventar a própria técnica presente na lida e o mundo
campeiro. (Sennett, 2013). As questões aqui apresentadas são desdobramentos da experiência
como pesquisadores do Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC – lidas
campeiras (1° Fase) 222” que objetivou documentar e reconhecer a pecuária extensiva (criação
de bovinos, ovinos e eqüinos com fins econômicos) e as práticas e saberes a ela vinculadas,
como referência na constituição da cultura pampiana, transformando-a em patrimônio cultural
brasileiro (Rieth et al, 2013). A pesquisa do INRC-Lidas Campeiras fez uso da metodologia
222
Esta primeira fase compreende os anos de 2010-2013. Equipe de pesquisadores do INRC – Lidas Campeiras
na região de Bagé/RS: Flávia Maria Silva Rieth (Coordenadora), Marília Floôr Kosby, Liza Bilhalva Martins da
Silva, Pablo Dobke, Marta Bonow, Daniel Vaz Lima, Cláudia Turra Magni (Consultora em Antropologia da
Imagem), Fernando Camargo (Consultor em História), Erika Collischonn (Consultora em Geografia).
408
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
constituída pelo Instituto de Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN), que propõe
levantar dados bibliográficos e etnográficos sobre as relações estabelecidas entre os humanos,
animais, artefatos e a paisagem envolvidos na produção pecuária no pampa sul-rio-grandense,
descrevendo os ofícios e modos de fazer que a compõem (Rieth et al, 2013). O INRC adotou
a expressão “lidas campeiras” para designar o conjunto de ofícios e saberes que envolvem a
pecuária que historicamente se desenvolveu no pampa sul-rio-grandense.
Neste trabalho desenvolvemos uma etnografia do saber/fazer do domador entendido
como aquele que tem a habilidade (Ingold, 2010) de um conjunto de técnicas e saberes que
tem em vista a domesticação do cavalo para trabalhos relacionados às lidas campeiras. É um
trabalho constituído de diferentes momentos e os quais acionam a utilização de determinados
artefatos, tendo como objetivo fazer com que o cavalo aprenda a estabelecer uma forma de
comunicação com o humano e que o domador aprenda este ofício com o cavalo.
AS TÉCNICAS DA DOMESTICAÇÃO DE CAVALOS NO PAMPA SUL-RIOGRANDENSE: DESCRIÇÃO DA DOMA EM UMA HOSPEDARIA NA CIDADE
A experiência etnográfica constituída a partir da vivencia com os domadores nos fez
pensar sobre os saberes/fazeres associados às lidas campeiras, considerando a agencia dos
sujeitos, dos animais, artefatos e paisagem na invenção do modo de viver. Sennett (2013)
chama “habilidade artesanal” a aptidão de alto grau em que a expansão dessa capacitação é
construída por meio da relação entre a solução de problemas e a detecção dos mesmos. A
técnica é uma atividade artesanal em que “as pessoas são capazes de sentir plenamente e
pensar profundamente o que estão fazendo quando o fazem bem.” (Sennett, 2013:30). Nesse
sentido, ao conceber a domesticação dos cavalos consideramos o termo técnica como o
“cultivo de um estilo específico de vida”, não sendo um procedimento maquinal, mas uma
“questão cultural” (Sennett, 2013:19). O domador se engaja de uma forma prática sendo sua
atividade uma arte, ou seja, um trabalho voltado para a busca da qualidade. Além disso, a
aptidão de domar é adquirida observando regras estabelecidas por gerações anteriores e por
meio da interação com o animal. Segundo Ingold (2010) a “educação da atenção” é o
conhecimento que não se dá pela entrega de um “corpo de informações desincorporada”, que
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
o autor concebe como “representações”, mas pela criação, por meio das atividades de
determinada geração, de “contextos ambientais dentro dos quais as sucessoras desenvolvem
suas próprias habilidades incorporadas de percepção e ação.”
Por conseguinte, ao etnografar a técnica, chama à atenção a dimensão não humana
que, ao se colocar em relação com os humanos, participam da construção de tal saber/fazer.
Ingold (1983) entende que não somos os únicos dotados de subjetividade. Partindo da noção
de Marx, em que a existência corporal constitui a condição de seu propósito consciente e
intencionalidade em agir humano, estende essa noção aos animais. A experiência de estar no
mundo agindo constrói um “intenção consciente” sendo as habilidades, tanto dos animais não
humanos como dos humanos, incorporadas na pratica do treinamento configurando a
aprendizagem, embora de maneiras distintas, de formas de saber/fazer.
As técnicas de doma se classificam de acordo com a graduação da violência utilizada
para a domestificação do cavalo: A doma tradicional ou gaúcha em que são utilizadas
técnicas de reforço e acionando artefatos que machucam o cavalo, se define em comparação
as técnicas de doma ditas “racionais” (como “doma racional”, “doma índia”) que, sem
machucar o animal, estabelecem uma relação de confiança entre o domador e o cavalo (Rieth
et al, 2013). Estas técnicas não são percebidas como dicotômicas considerando que é na
relação estabelecida entre pessoas, animais e artefatos que determinado saber/fazer vai ser
acionado. A diferença entre as domas está na “maneira de lidar” com o cavalo, e os artefatos
dependem da técnica embora não haja um artefato para determinado tipo de doma, mas para
cada relação estabelecida.
A doma praticada no pampa sul-rio-grandense passou por transformações/
atualizações no sentido de que a técnica entendida como um conjunto de habilidades
constituídas e incorporadas no modus operandi dos organismos humanos e animais (Ingold
2010; 1983) foi se adaptando de acordo com a conformação sociocultural, ambiental e
econômica da pecuária extensiva. A doma era praticada dentro das estâncias223, porém, como
se referiu Howes Neto (2006: 51), hoje, raramente se faz nestas propriedades. Com a
especialização das técnicas a atividade se transferiu para ambientes urbanos transformando a
223
Propriedades rurais voltadas para criação, com fins econômicos, de animais bovinos, ovinos e eqüinos.
410
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
relação entre o domador, o cavalo e o ambiente de trabalho. Exemplo disso é a doma para
competição em eventos (como as provas de freio-de-ouro224) praticadas nas cabanhas ou
hospedarias que são espaços de “hospedagem e centros de treinamento e doma para cavalos”.
Dentro de uma área de aproximadamente dois hectares, essas hospedarias constituem-se, de
maneira geral, de uma “mangueira” - área cercada por tábuas e tendo em torno de 20X20m2 e
coberta de areia - para os cavalos “retoçarem”, ou seja, para que estes possam correr e se
movimentar para relaxarem do estresse por ficarem presos. A hospedaria, edificação feita de
madeira ou concreto, coberta de telhas e dividida no seu interior por baias ou cocheiras que
são pequenos espaços fechados em que os cavalos descansam e ganham ração. Dentro de cada
baia ou cocheira têm-se os cochos recipientes utilizados para dar ração para os cavalos. A
superfície da cocheira é forrada com casca de arroz chamada de “cama”.
Anexado à hospedaria encontra-se um espaço de sociabilidade dos domadores,
também chamado de galpão, em que tem-se uma lareira com fogo aceso, algumas cadeiras,
uma cuia de chimarrão e, pendurados na parede, alguns quadros com os cavalos da cabanha
que ganharam prêmios nas provas que se relacionam as lidas campeiras. Os utensílios de
montaria como freios, rebenques ficam pendurados nas paredes das baias e os outros
utensílios que são maiores como as selas ficam em cima de cavaletes no corredor. Esses
utensílios entendidos em conjuntos como encilhas são, em parte, da cabanha e de alguns dos
proprietários dos cavalo que vez por outra, vem pegar seus cavalos para “sair pela cidade”.
Os trabalhos da doma que se iniciavam na primavera se estendendo até o verão e
inicio de outono, com as competições de cavalos promovidas principalmente pela ABCCC 225
passaram a ser praticados também no inverno. Conforme os interlocutores, durante o inverno
“tem umas categorias nas exposições em que eles [os cavalos] entram encilhados. Até dois
anos e seis meses eles entram a cabresto e de dois anos para cima eles entram encilhados e
assim, se faz necessário domar no inverno. Por conseguinte, a técnica de “amanunciar o
potro” que significa domesticar o animal acostumando-o com os humanos e com os artefatos
224
A prova de freio de ouro é organizada pela ABCCC (Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Crioulo),
entidade criada em 1931 por estancieiros do Rio Grande do Sul com o objetivo de padronizar a raça do cavalo
crioulo. As provas de 21 dias e freio de ouro são maneiras de incentivar a difusão da raça. (ABCCC, 2014).
225
Associação Brasileira de Criadores de Cavalos Crioulos.
411
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
utilizados para a montaria e trabalho não tem época. Esse trabalho, muitas vezes é feito desde
quando o potro (cavalo ainda não domado) esta sendo desmamado pela égua, com seis meses
de idade. Amanunciar ou amansar de baixo significa uma aproximação dos animais com os
humanos e artefatos de montaria facilitando o trabalho da doma. As técnicas da doma ditas
“racionais” exploram este momento em que o domador busca uma aproximação com o
cavalo, visando estabelecer uma relação de confiança em que utiliza a linguagem corporal
para se comunicar com este. Esta confiança não pode ser quebrada ao longo do processo e por
isso o não uso da violência, porém, se necessário o castigo, tem de estar de acordo com a
“natureza do cavalo”. Depois a doma fica a critério do domador que, considerando o
temperamento do cavalo, aciona a técnica do freio ou do bridão. Usam-se as técnicas da doma
racional, no que se refere à questão de aproximação e cuidado com o cavalo o que chamam de
“trabalhar a mansidão”.
Após a preparação do cavalo vem à etapa denominada “puxar o queixo”, considerado
entre os principais momentos do processo de domesticação do cavalo pelo humano. Esta etapa
da “iniciação do cavalo” é considerada relevante para os domadores, pois é o momento em
que este vai conhecer o artefato chamado bocal que é uma tira de couro, que se ata ao queixo
dos potros. Esse artefato estabelece uma primeira comunicação do cavalo com o domador no
processo de domesticação que vai estar terminado no momento em outro artefato chamado
freio, e o qual descreverei depois, passa a ser acionado.
Em trabalho de campo acompanhou-se a etapa inicial da domesticação numa
hospedaria e centro de doma para cavalos no município de Pelotas/RS. O domador iria
“puxar” uma égua de dez anos que fora mal iniciada tornando-se “redomona” que não se
deixa montar. Para o domador o cavalo “mexido” é ruim de trabalhar:
(...) nós não pegamos bicho mexido, mas como essa égua é de um amigo de um
amigo nosso, a gente vai tentar para ver que tal é. Eu conheço o homem velho que
era dono dela, que é um velho campeiro. Isso é a referencia do porque estamos
pegando ela, bicho mexido a gente não pega.
Para ele o cavalo redomão é difícil de domar, pois ele já trás em si a experiência dos
artefatos, a relação com o humano e tudo isso influencia na forma como o animal percebe sua
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
existência. O domador decidiu começar do zero na sua domesticação (re)“iniciando-a”,
produzindo uma nova relação. A égua era bastante agitada, pois não teve muitos contatos com
os humanos depois de algum tempo. Percebeu-se que este “amanunciou” a égua alguns dias
antes de iniciar tal processo, por isso a técnica era ativada com determinados artefatos e
saberes/fazeres.
Observou-se a iniciação desta égua, com o nome de “preta”, com o artefato bocal: O
filho do domador levou a égua até um palanque - que é um tronco de madeira com 3,5m de
altura em que 1,5m ficam enterrados no chão - localizado dentro da mangueira da cabanha.
Neste local ela foi “maneada”, ou seja, presa nas patas dianteiras e traseiras por uma corda de
couro ou náilon chamado “maneia”. O domador, calmamente, chamando-a pelo nome
colocou as maneias, no entanto, em alguns momentos a égua tentou sair puxando a cabeça na
qual estava o “cabresto226” preso ao palanque. Feito isso, ligam-se as maneias das patas e das
mãos através de uma corda de couro que cruza a argola de cada maneia diversas vezes.
Quando a corda é puxada as juntam-se as maneias, derrubando o animal e impossibilitando-o
de ficar de pé. Depois de colocada as maneias, o bocal é amarrado no queixo do cavalo. “A
gente sempre usa bem apertado [o bocal] quando puxa, não pode ser frouxo, pois machuca.
Só bota mais frouxo quando eles estão mais mansos.” No bocal estão anexadas as rédeas as
quais vão cruzar atrás do lombo do cavalo. Os domadores irão puxar as rédeas direcionando o
queixo na direção do peito dando um “tirão” único até este “patear” (agitar as patas) que
significa dizer que esta demonstrando que está doendo, que o animal “sentiu”. São três
“tirões” ou “puxões” de cada lado, ou seja, depois de dado os tirões, vira – se o cavalo e
puxa-se mais três.
O objetivo da técnica de “puxar o queixo” é deixá-lo “sensível de boca” e assim
quando, na próxima etapa que é o ato de montar, ele já possa atender as mensagens do
domador. É uma iniciação com o objetivo de sensibilizar essa parte do corpo do animal o qual
vai se estabelecer a principal comunicação no momento da montaria, e por isso tem que ter o
cuidado para não “puxar” com intensidade muito forte e traumatizar o animal, o que
impossibilitaria seguir no processo de doma. Conforme Gonçalves (2007: 27) os objetos
226
Artefato de couro que que envolve a cabeça do cavalo.
413
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
atuam no mundo, não sendo somente percebidos, através do que representam para as
coletividades, mas também no sentido de que organizam e constituem a vida social. Os
artefatos têm agencia na construção do sujeito como domador e agencia no processo de
domesticação do cavalo como pode se observar na descrição das técnicas da doma. Estes
objetos constroem e são construídos nas relações com os humanos e animais.
Nesse processo o cavalo é domado somente de bocal sendo que após isso deverá ser
domado de freio que é um aperfeiçoamento do processo de doma, considerando que este já
tem familiaridade com os artefatos e certa comunicação com os humanos. Quando o cavalo
esta sendo ensinado pelo bocal, os domadores neste momento começam a ensiná-lo as
habilidades das lidas pastoris. É nesse momento também que o cavalo pode participar da
chamada “prova de 21 dias”, uma etapa do Freio-de-Ouro, que consiste em preparar um
cavalo em menos de 21 dias para apresentar-se no evento seguindo algumas regras e
exigências da prova. Os cavalos que participam dessa prova são chamados “redomões”.
A terceira etapa consiste em montar no cavalo, também denominada como “primeiro
galope”. O “primeiro galope” significa subir no animal, que está com os arreios, e trabalhar
ele para que se acostume com os artefatos da montaria. Ao ser montado o cavalo muitas vezes
começa a corcovear, a pular querendo expulsar o domador do seu lombo. O domador tem de
ficar em cima mostrando-o para o animal que deve se acostumar com o fato. Nesse momento,
quem monta é auxiliado pelo “amadrinhador”, outro domador ou aprendiz que o acompanha
montado num outro cavalo.
No mesmo centro de doma, observou-se a técnica do “primeiro galope”. O aprendiz
de domador enquanto aparava a cola (rabo) e as crinas do cavalo disse que o cavalo “era de
campo” e “xucro” o que significa dizer que não foi criado em contato mais próximo com o
humano diferente dos cavalos criados dentro de cocheiras, em uma hospedaria da cidade. O
cavalo estava ali há dois meses e o filho do domador recém conseguira amanunciar ele de
forma com que ficasse tranqüilo com a presença dos humanos. Enquanto era encilhado o
potro olhava “assustado” para os artefatos de montaria. O domador, nesse caso, deixava o
potro cheirar o artefato antes de colocar no lombo do mesmo, técnica que, através da noção de
que o cavalo conhece algo pelo cheiro, faz o animal conhecer tal artefato.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Em determinado momento o cavalo fugiu indo parar no fundo da propriedade, depois
de buscá-lo, colocaram uma “maneia” para não fugir. O filho do domador levou o potro até o
corredor, estrada em que galopeiam seus cavalos, para começar o processo. O domador
apareceu depois montando uma égua com a qual iria amadrinhar. A “égua madrinha” tinha
quatro anos de idade, sendo um animal experiente, que “tem mais pratica”. O aprendiz se
mostrava bastante irritado com o potro ao ponto do pai lhe dizer por vezes: “calma filho!”.
Feito isso, o domador pegou o potro pelo cabresto, artefato de couro que é prendido na cabeça
do cavalo e ao qual está anexado um laço pelo qual o cavalo é manejado. Ao pegar o potro, o
domador puxou e saiu rápido fazendo com que o potro andasse um momento antes de ser
montado para reconhecer a presença dos arreios. Foi até o final do corredor e voltou para o
domador/aprendiz montar.
Ao ser montado, o potro saiu correndo para frente enquanto o amadrinhador com
sua égua madrinha, acompanhava-o fazendo com que esta tivesse o seu corpo sempre junto do
corpo do potro. Após esta etapa o potro segue sendo trabalhado e treinado (nos primeiros dias
ainda acompanhado do amadrinhador) todos os dias. A intensidade do trabalho é determinada
conforme o animal vai aprendendo os ensinamentos do domador. O cavalo no qual o
amadrinhador está montado é uma égua com experiência de montaria que estabelece uma
comunicação com o potro, pois o amadrinhador faz esta encostar o pescoço no pescoço do
potro. Em alguns casos, ata-se o cavalo xucro à égua madrinha por alguns dias antes de puxar
do queixo, pois esta o ensina a se acostumar com os humanos e artefatos. Eles ficam
“acolherados” como se referem os campeiros.
O processo de adestramento do cavalo é continuo e demora alguns anos. Embora
fique manso de bocal e montaria em alguns dias, nas entrevistas viu-se que para o processo
ficar completo demora mais de um ano. Como por exemplo, o cavalo para correr a prova do
Freio-de-Ouro, que é a etapa máxima da equitação gaúcha (Jacques, 2008), deverá no mínimo
estar a três anos sendo trabalhado. Um cavalo fica “bem domado” em seis meses, ou seja,
domesticado com os artefato e a presença dos humanos, se o cavalo vai “correr prova”, ou
seja, participar de competições eqüestres, ficará mais tempo no aprendizado, também o cavalo
domado para o trabalho no pastoreio não fica totalmente “pronto”, ou seja, será na lida, na
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
pratica do pastoreio, que este vai aprender tal habilidade. Os primeiros processos da doma
feita nas hospedarias estabelecem uma domesticação do cavalo ensinando-o a “interagir” com
o campeiro através dos artefatos, a aprendizagem para a lida se dá na pratica.
Pode-se considerar o momento de “enfrenar” o cavalo como a etapa final do
processo de adestramento. A domesticação do cavalo se completa quando este passa a
atender o freio. O freio é uma embocadura de ferro, ou de metal, ou de madeira, ou de
borracha que se constitui de uma barra sem articulações, que vai dentro da boca do cavalo,
exercendo forte pressão. Os domadores dizem que “a ciência da doma” está no freio e o
domador tem que saber o momento certo, de acordo com o aprendizado do cavalo, para ser
enfrenado. No inicio bota-se o artefato sem montar no cavalo e o deixa na mangueira,
“mascando o freio”, pode ser com a rédea ou sem a rédea. As rédeas são cruzadas por cima
do pescoço e atadas por baixo na barriga do cavalo. Faz-se isso para ele ir “mascando o
freio”, pra ele conhecer o freio, “calejar” a boca. Depois anda-se com ele ao seu lado com o
artefato, “sujeita” (faz parar), “puxa” (direciona para a direita ou esquerda), sempre com
cuidado pra não machucá-lo, para não ferir, pois ele já está sensível da boca.
Nas domas ditas “racionais” tem prevalência à utilização do artefato chamado
bridão que é uma embocadura de ferro, ou de metal, ou de madeira, ou de borracha que se
constitui de uma barra ligada por articulações, que vai dentro da boca. Por exercer uma
pressão menos intensa na boca do cavalo, os domadores dessa técnica entendem que o bridão
maltrata menos o animal. Por outro lado, ha necessidade de confiança entre ambos, pois o
cavalo não esta sujeito pela boca e nesse sentido pode em algum momento não atender aos
comando de quem o monta. Muitos domadores que utilizam o bridão dispensam a utilização
do bocal considerando que não se necessita de uma domesticação mais intensa. Entretanto,
nos relatos de domadores existem aqueles que utilizam os três artefatos no processo de doma
nesta ordem: Bocal, freio, e bridão. Partem do principio que, conforme o cavalo vai
conhecendo e acostumando com a pressão na boca, vai-se diminuindo a intensidade, pois o
animal já está sensível de boca. Além disso, existem diversos tipos de freios e bridões que
serão acionados conforme vai demandando o processo de domesticação do cavalo.
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Os domadores, embora tenham preferência por uma técnica em detrimento da outra,
utilizam técnicas dos dois tipos de doma – racional e tradicional - considerando que a
característica do cavalo que vai determinar a utilização de determinado manejo da violência.
Na relação estabelecida entre o domador e o cavalo que se aprende e constrói a técnica. Os
praticantes se referem a doma como “um livro” em que para ensinar um cavalo é preciso
aprender com ele. Cada animal é único, tem personalidade, e o domador tem que estudá-lo:
“Tu estuda ele e ele te dá as dicas”. Muitos domadores, interlocutores deste trabalho, foram
iniciados no ofício por meio de domadores mais velhos, no entanto eles percebem que
também foram os cavalos que os ensinaram tanto no que se refere a técnica, quanto a vida. O
processo de aprendizagem e ensino que se estabelece entre o domador e o cavalo marcam o
processo de invenção da cultura (Wagner, 2010) em que o domador ensina o cavalo, ao passo
que o cavalo ensina o humano, demandando que este acione determinados conhecimentos
para domesticá-lo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto propôs uma reflexão etnográfica sobre a relação entre o domador e o cavalo
no pampa sul-rio-grandense, relação que trata de inventar a própria técnica que constitui o
trabalho da doma e, o mundo campeiro (Sennett, 2013) . Percebeu-se que esse conjunto de
técnicas se classificam de acordo com a graduação da violência utilizada para a domesticação
do cavalo, no entanto, de acordo com os interlocutores, cada domador tem suas técnicas e
preferências ao mesmo tempo em que a relação estabelecida com o cavalo vai condicionar a
utilização de um determinado saber/fazer. Percebem que o “cavalo é igual ao homem, tem
temperamento”, em que uns são “velhacos”, ou seja, rebeldes, outros são “baldosos”,
caracterizados como animais traiçoeiros, e outros, ainda, são tidos como mansos. No processo
da doma, alguns assimilam mais facilmente os ensinamentos que outros. Além disso, a doma
é um processo continuo em que precisa estar sempre praticando o cavalo, pois se parar este
“perde a doma”, ou seja, esquece o que aprendeu. Na doma se estabelece uma relação entre
humanos e não humanos em que o domador ensina o cavalo, e este, por sua vez, o ensina na
habilidade técnica, fazendo-o experienciar maneiras de praticar tal saber/fazer. A
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aprendizagem é um processo de incorporação de habilidades constituídas na experiência e na
vivencia do habitar o mundo campeiro no pampa sul-rio-grandense. (Ingold, 2010; 2012).
REFERENCIAS
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Acesso em: 19 de fevereiro de 2014.
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patrimônios. Rio de Janeiro: IPHAN.
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identidades gaúchas e o tradicionalismo. Dissertação, UFSM, Santa Maria.
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Disponível
em:
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INGOLD, Tim. 1983. “The Architect and the Bee: Reflections on the Work of Animals and
Men”. Man, New Series, (18-1): 1-20.
INGOLD, Tim. 2010. “Da transmissão de representações à educação da atenção”. Educação,
(33-1): 6-25.
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mundo de materiais”. Horizontes antropológicos, (18-37): 25-44.
JACQUES. Bayard Bretanha. 2008, Registros da eficiência da equitação gaúcha: Primeiros
escritos. Jaguarão: Autor.
RIETH, Flávia ; KOSBY, M. F. ; Bilhalva da Silva, L. ; Rodrigues, M. B. ; Dobke, P.
R. ; LIMA, D. V. 2013. Inventário Nacional de Referências Culturais: Lidas Campeiras na
Região de Bagé, RS (volume 1). 1. ed. Arroio Grande: Complexo Criativo Flor de Tuna.
SENNETT, Richard, 2013. O artífice. Rio de Janeiro: Record.
WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
BÍPEDES E QUADRÚPEDES: AS RELAÇÕES DE METÁFORA E DE
ALEGORIA ENTRE CAVALOS E HOMENS – NÃO
NECESSARIAMENTE NESTA ORDEM
Rafael Velasquez
[email protected]
CAPES
PPGA-UFF
Mestrando
Este trabalho trata de examinar as relações de metáfora e alegoria que homens aficionados pelas
corridas de cavalos tem com estes animais. O ponto de partida são será significado e o sentidos que
estas criaturas assumem.
***
Prefiro cheiro de cavalo a cheiro de povo.
João Baptista de Oliveira Figueiredo
Os cavalos são criaturas que provocam emoção estética no homem. E eles estiveram sempre
muito próximos de nós, criaturas humanas. Não por acaso “o médico George Cheyne, em 1705,
explicou que o Criador fez o excremento dos cavalos ter bom cheiro porque sabia que os homens
estariam sempre na vizinhança deles” (THOMAS, 2010). E estes animais nos auxiliaram na
agricultura como também na indústria. Eles foram o fator surpresa das batalhas e das conquistas. E,
além disto, os equestres são também os heróis e os ídolos, por vezes inesquecíveis, do hipismo em alta
velocidade, isto é, o turfe.
E o trabalho que o leitor tem em mão trata das relações de metáfora e de alegoria entre homens
e cavalos. Para ser mais preciso se limita ao público aficionado pelas corridas de cavalos e estes
cavalos, ou seja, ao Puro Sangue Inglês. O Puro Sangue Inglês, raça destina a competições em alta
velocidade, é resultado da mais eficaz e criteriosa criação de equinos (cf. CARVALHO, 1998;
THOMAS, 2010). O conteúdo aqui descrito é fruto, em parte, da pesquisa de monografia “Cavalos,
Rateios & Barbadas” (VELASQUEZ, 2012) e da dissertação, em curso, no Hipódromo da Gávea, Rio
de Janeiro.
Este público aficionado é composto esmagadoramente por homens, sobretudo homens que
estão e passaram do que se pode chamar de idade madura – de cinquenta para cima. Atento para o fato
de que o conteúdo aqui apresentando faz parte de momentos da sociabilidade descontraída masculina
419
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em que este que vos escreve, sendo homem e heterossexual227 , pode não apenas testemunhar como
participar e se tornar, para o bem ou para o mal, cúmplice.
Feita esta introdução, é preciso explicar o que são as corridas. De modo direto e simples, o
turfe é uma atividade lúdica de competição, em que homens se desafiam por meios de suas projeções
equestres. E o dinheiro apostado é mais do que mediador desta relação, ele assegura a seriedade e a
devida profundidade ao jogo. Assim faço das palavras de Geertz (1989) as minhas, acerca das brigas
de galos balinesas, por concordar que “está em jogo muito mais do que o simples lucro material: o
saber, a estima, a honra, a dignidade, o respeito – em suma, o status”228.
E mais. O dinheiro perdido ou ganho mediante as apostas torna a derrota ou a vitória do cavalo
presentificada não apenas no bolso como na vida do apostador, levando consigo a ideia mesma de
ruína e ascensão. E como a bolsa de aposta é o somatório da movimentação das apostas rateadas pelos
cavalos mais e menos apostados229 resulta num clima de malandragem e acusação entre os aficionados.
Creio que isto seja mais bem ilustrado com as seguintes frases:
– Isso aqui é um cemitério de malandros – explicou Jota Santos, ex-jóquei e ex-treinador
aposentado – o sujeito aqui acha que é mais esperto que o outro, mas estão tudo aí... morrendo. E nem
sabem.
– Aqui só tem ladrão e filha da puta – me explicou um deles revoltado após algumas derrotas
consecutivas. E completou: “Mas eu não! Venho aqui só para me divertir”.
E quem melhor para me elucidar senão Quequé? Este antigo turfista que ronda por entre as
cocheiras e tem sempre uma profecia para o próximo páreo:
– Não entendo porque falam tanto de ladrões aqui dentro, nunca vi nada de suspeito. Como é
que pode alguém ser roubado aqui dentro nem ninguém ver? – perguntei.
– Não é assim que funciona. Ninguém aqui coloca a mão dentro do seu bolso, nós roubamos é
ali – apontando –, na pista.
227
A percepção destas características do pesquisador só se tornou clara após uma conversa com Fernanda
Azeredo de Moraes que também pesquisou o mesmo público aficionado no Paraná (MORAES, 2009).
228
Este aspecto está presente também em Whyte (2005), que vale ser citado. Para os jovens de Corneville
“quando não há nada em disputa, o jogo não é considerado uma rivalidade real. Isso não significa que o
elemento financeiro seja mais importante que tudo. Frequentemente ouvi as pessoas dizerem que a honra de
vencer era muito mais importante que o dinheiro em questão. Os rapazes da esquina consideram jogar por
dinheiro o verdadeiro teste de habilidade, e, a menos que um homem se saia bem quando há dinheiro na disputa,
não será considerado um bom competidor”.
229
Subtraído de uma percentagem que Jockey Club retira para cobrir seus custos. Portanto, não é o Jockey Club
quem paga o prêmio. E, por se tratar de ser uma atividade de rateio, as apregoações de cada cavalo são diferentes
conforme o volume de apostas que são feitas.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
E se roubam “ali, na pista” roubam sendo um cavalo. Seria apenas uma ligação por causa do
dinheiro apostado? Retorno a Geertz (1989) e as rinhas em bali para tentar responder melhor isso.
Aproximado assim os cavalos dos galos. Os balineses possuem uma identificação profunda com seus
galos. Para eles a noção de galo tem a funcionalidade de dublo sentido, seja na forma de trocadilhos,
piadas ou obscenidades. Deste modo, os galos funcionam ali como espécies de “pênis separados,
autofuncionáveis, órgãos genitais ambulantes, com vida própria”. Na língua portuguesa (mas não
exclusivamente) a ideia de cavalo apresenta sentido, não igual, porém similar.
Como consta no dicionário Houassis, o emprego da palavra cavalo, enquanto metáfora, é para
pessoa rude, grosseira, estúpida. E quando não falamos sugerimos: “se cai de quatro não levanta”. E o
termo designado aos cavalos para procriação, isto é, garanhão é associado aos homens “dados as
mulheres”, “Don Juan”, bem dotado. Potranca é toda égua nova de até 3 anos, e por extensão de
sentido trás a ideia da mulher formosa e provocante como também para qualificar seus avantajados
atribuídos carnais. Somando a isto, os verbos de cavalaria como montar e cavalgar são revestidos das
mesmas ambiguidades e são conjugados nas ações sexuais.
Numa conversa com Jota Santos, sobre avaliação do porte físico dos cavalos – tanto para
aposta como para compra –, disse que devia observar três aspectos, segundo ele, fundamentais.
Primeiramente era ver se o potro possui uma “cabeça de princesa”, isto é, uma cabeça não muito
grande e alinhada com o restante do corpo. Em seguida, se tinha uma boa “peitaria”, “um peitoral
largo e bonito”. E, por ultimo e não menos importante, se tem “bunda de cozinheira”.
– Espera. “Bunda de cozinheira”? – não consegui me conter – Ora, mas por que bunda de
cozinheira?
– Porque é um bundão! – e caia na gargalhada.
Noutro momento, após um páreo ter corrido, estando eu entre um grupo de “rapazes” que
discutiam sobre as corridas e sobre os próximos páreos. Um deles num gesto de cabeça apontou para
uma mulher que percorria a tribuna. Era uma jovem bonita numa vestido cinza esvoaçante. O seu
andar e seu corpo para nós foi algo agradável de seguir com os olhos. O primeiro de nós abriu os
comentários com: “Que potranca!”.
– E que canter bonito! De categoria! – acrescentou outro.
– Isto é favorita de pule de um Real! – um terceiro entrando na brincadeira.
– Essa corre em prova de grupo – um quarto.
– Só a inscrição nesse páreo é para lá de mil Reais! – outro sacramentando.
– Isso é páreo para ele! – apontando o dedo para mim.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Assim, no primeiro quadro o animal foi descrito com atributos humanos, mas precisamente
como atributos do sexo feminino. No outro, ao contrário, é a jovem que passa por um processo de
metamorfose simbólica em égua. E o mesmo se encontra nas “heroínas das tradições legendárias
relativas à orgia báquica, têm nomes em cuja composição entra, com notável frequência, o
componente hippé... ou recebem epítetos que despertam igualmente a ideia de qualidades
relacionadas a cavalos” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, grifo mantidos do original)230.
Portanto, os cavalos servem para adjetivar mulheres e as mulheres, cavalos.
E acontece, por vezes, da relação entre homem e animal ser mais do que simbólica. Um
cavalariço comentou de forma dúbia, provavelmente distraído consigo, que ao ver uma égua trotando
se sentia “atraído”. E a “história”, que Pita e Jota relembraram, de uma mulher que nos anos 70 que ia
às cocheiras com o propósito de “se esfregar em cavalo manso”. Outra, em termos insólitos, vivida,
porém não consumada, por mim:
Ajudava um treinador segurando as rédeas enquanto ele banhava a égua que acabará de
terminar o treino com uma caudalosa ducha d’água. E ao lavar as partes genitais apontou dizendo:
– No dia que você comer isso aqui não vai mais querer saber de mulher nenhuma! Ó, não
reclama de nada, não pede para ligar no dia seguinte. Se quiser, amarro as patas dela e te arrumo um
banquinho.
Como se percebe, o cavalo “simboliza os desejos exaltados, os instintos” (CIRLOT, 1984) e
“a impetuosidade do desejo, da juventude do homem, com tudo que ela contém de ardor, de
fecundidade, de generosidade” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998). Esta projeção simbólica e
erótica sobre dos animais é uma maneira dos homens atribuírem “aos animais os impulsos da natureza
que mais temia em si mesmo – a ferocidade, a gula, a sexualidade – apesar de ser o homem, e não os
animais que guerreava ativo durante todo o ano” (THOMAS, 2010). E para ficar nos termos de Sahlins
(2003), trata-se de um processo no qual os homens reciprocamente definem os animais em termos de
si mesmo e se definem em termos desses animais.
Antes de pular para outra parte, gostaria de abrir um pequeno parêntese para algo que nesse
processo que me chama a atenção: o simbolismo e a bestialidade. O significado erótico parece
descambar para a confusão do referente. Num primeiro instante temos o cavalo que é descrito como se
fosse uma mulher. Noutro o exato oposto, a mulher que é descrita tal com se fosse uma égua. No
230
Outro equestre que tinha a ligações com as mulheres era o unicórnio, criatura mítica que oscilava entre o
mundo real e imaginário da Idade Média. Para que um unicórnio pudesse ser capturado, contava-se, era
necessária a presença de uma virgem. Pois o unicórnio ao ver uma virgem pula em seu colo (cf. LeGOFF, 2011).
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
entanto é terceiro onde reside a confusão, o cavalo (no caso, a égua) é equivalente a mulher e viceversa.
Retornando as corridas, os equinos são os vértices profundos e absorventes do turfe. E são eles
os responsáveis por minimizarem o clima de suspeitas dentro do hipódromo todos ali, sem exceção, se
compreendem enquanto malandros. Não esquecendo que são os cavalos os meios por onde os homens
disputam entre eles com seu status, presente no dinheiro apostado. Mas as suspeitas recaem sobre os
ombros dos homens, mas em tempo algum sobre os cavalos.
Isto porque a criatura não-humana, diferente da criatura humana, é incorruptível. É
impossível – creio eu – subornar um cavalo, nem mesmo com alfafa ou com cenouras extras.
Talvez se possa dopá-lo, mas para isso existe o exame antidoping. E os cavalos não correm
sozinhos, em cima deles vão os jóqueis. Estes sim podem ser “comprados”, mas os jogadores e
turfistas sabem que jóquei algum “dá perna” para o cavalo correr. O papel do jóquei é apenas o de
conduz o animal na pista231. É verdade que o jóquei pode “puxar” o cavalo na pista para correr
menos, porém existe uma Comissão de Corrida para julgar tais casos – ao menos é o que se espera
dela. Por tais características, o equino torna-se superior aos homens atrás do poder de amenizar as
suspeitas, como uma espécie de Leviatã, este soberano bestial232 capaz de proteger os homens de
destruírem uns aos outros.
Ou seja: as corridas de cavalos são diferentes de outros jogos justamente por causa dos
cavalos. Dizer isso é dizer é o óbvio ululante, eu sei. Mas é necessário o explicitar. E para tanto mais
uma pequena cena de campo:
Estava assistindo às corridas ao lado de Eduardo, economista aposentado. Estávamos
aguardando os cavalos se apresentarem para o canter233. Uma senhora sentada próxima de nós, atrás,
conversava com duas pessoas – o caixa da pule e um outro senhor – sobre o jogo-do-bicho. E como
falava animada, acredito que tenha ganhado uma quantia razoável. E falava que sua estratégia era de
“cercar o bichinho”.
231
Não que não seja importante a condução. Ao contrário, a condução é vista mais como “técnica” que visa
aproveitar as virtudes e as características do cavalo frente a distância e a condição da pista. Ma de qualquer
forma vale a máxima de Federico Tesio: “O melhor jóquei é o que menos atrapalha o cavalo” (BARCELLOS,
2002).
232
É inegável a imagem hobbesiana da desconfiança que o homem tem de seu semelhante, que é amenizado com
a presença de um soberano. Segundo Hobbes, “a natureza fez os homens tão iguais” que se acaso “dois homens
desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo, que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos”
(HOBBES apud RIBEIRO, 2006).
233
É o galope de apresentação que acontece antes da corrida para apresentar as condições do cavalo com o
jóquei montado.
423
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Edu pediu licença para entrar na conversa. Perguntou para a senhora qual o jogo que ela fazia.
No que está o respondeu:
– Eu cerco o bichinho, meu filho. Vou bem na cabeça. Só cercando...
Edu voltou para mim e picou.
– Essa aí joga na desvantagem.
– Mas por que na desvantagem?
– No jogo-do-bicho você já começa perdendo.
– Por que?
– Veja bem, no jogo do bicho são vinte e cinco números, certo? Cada número é um bicho,
você sabe. No jogo que ela faz você escolhe um número contra os outros vinte e quatro que o bicheiro
tem de vantagem. A probabilidade do bicheiro é maior que a sua. É desvantagem.
Puxou um pedaço de papel e com a caneta começou a fazer os cálculos, para me provar. E de
fato, quem joga “na cabeça”, joga com 4% contra os 96% do bicheiro. Frente a isto não me contive e
comentei:
– Ora, mas aqui também é assim. É um jogo de azar como o jogo do bicho. Aqui também tem
suas probabilidades.
– Á-HA! – um tom alto como se estivesse esperando por tal e qual raciocínio. E
prosseguiu – Mas aqui é diferente. Na corrida tem o fator animal!
Mas que diabos quer dizer esse fator animal? Ora – numa palavra – a imprevisibilidade. Como
disse parágrafos acima, o cavalo não pode ser corrompido. Ele também não pode contar das suas
condições físicas e psíquicas para o páero; se está confiante, inseguro, nervoso, triste ou o que for. O
centro veterinário pode suspender a participação em caso o animal apresentar claudicância ou por
qualquer outro sintoma visível. Mas o cavalo por si não avisa. O cavalo é um enigma sobre quatro
patas que os espectadores tentam desvendar a partir de um processo hermenêutico de estudo de
histórico de corrida e estatístico aliado ao conhecimento de pedigree e somando ao olhar capaz
enxergar os sinais no futuro vencedor.
E como me alertou outro turfista de longa dada, também vale contar esse processo
personalidade de cada cavalo. Saber isso é mero detalhe. Nas palavras deles, “tem cavalo que se
acovarda e desiste, por medo, falta de empenho. Agora há outros que são mais determinados e querem
ganhar. E tem, ainda, cavalo que é trapaceiro e que tenta morder quem se aproxima para ficar na
frente”. Isto é mais um fator que só os mais íntimos dos cavalos sabem e atentam.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Se o cavalo é um enigma, a corrida é outro. Em um páreo muita coisa pode acontecer: o jóquei
e/ou cavalo podem cair, o favorito por ficar “preso” atrás dos seus adversários sem ter espaço para se
desenvolver, a ferradura pode abrir, o cavalo pode sentir, até mesmo se ferir mortalmente entre tantas
outras coisas, previstas e imprevistas. E é por isso que uma máxima do Edu, entre tantas, era “cada
corrida é um filme diferente”. E, ao se admira por saber destas prováveis eventos que podem acontecer
no decorrer da prova, uma jovem que acabará de assistir pela primeira uma corrida hípica perguntou
ao nosso já conhecido Quequé:
– Qual foi a coisa mais incrível que você já viu acontecer numa corrida?
Segundos para a reflexão.
– Ah sim! Foi eu acertar essa porra!
Esse processo de escolha de cavalo que chamei de hermenêutico consiste em vários elementos
que são examinados pelo aficionado234. Um deles é o conhecimento do pedigree dos cavalos, isto é,
sua filiação. O que há de mais elementar na filiação são três elementos: o pai, a mãe e o pai da mãe.
Esta informação reflete nas características familiar, se é animal para distâncias curtas ou longas – em
termos turfísticos, “sprinters” ou “stayers”. Aliado ainda os históricos de campanha que os cavalos
vêm apresentado e as estatísticas. E ainda outros detalhes do qual pouparei o leitor dessa enfadonha
enumeração. De qualquer maneira são apenas informação de papel, por assim dizer.
Outro tão importante, como venho demonstrando ao longo deste trabalho, é ver o animal, de
preferência vivo e respirando, antes do páreo. Aqui apresentarei algumas técnicas desta observação
com base nos dez mandamentos do apostador, de Phil Bull – que foi um dos maiores ganhadores nas
apostas hípicas inglesas (cf. BARCELLOS, 2002).
Antes dos cavalos entrarem para realizar o canter, eles ficam num lugar chamado padoque,
onde acumula um número razoável de pessoas para ver os cavalos. “É no padoque que 80% dos
vencedores de qualquer páreo ‘falam’ sobre o que vai ocorrer alguns minutos depois. O apostador tem
que entender o que os animais estão ‘dizendo’ enquanto caminham”, diz o Bill. E os sinais que o
provável vencedor deve exibir, lista ele, estão no pelo, na quantidade de suor, uma “atitude correta”,
no comportamento com o cavalariço que o conduz, na tonicidade da musculatura e o ritmo e a
determinação nas passadas (das patas). E durante o canter os sinais observados são: a posição das
orelhas, o movimento fluido e se diminui o ritmo quando o jóquei solicita.
234
Chamo a atenção do meu leitor para esta nota unicamente para lembrar que me refiro ao aficionado aqui
enquanto tipo ideal weberiado. Portanto, é uma ilustração que não existe em sua forma pura. Cada indivíduo tem
suas peculiaridades e idiossincrasias, optando mais por ou outro elemento de analise para apostar.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
No seu quinto mandamento – “tente entender os cavalos e o turfe de modo geral, antes de
arriscar seu dinheiro” – Bill argumenta para quem quer se aventurar no turfe que deve se perceber para
a existência de regras. “As corridas de cavalos são um esporte secular, regulado por conceitos e leis
implacáveis, testados ao longo de anos de experiência. Procure entender o comportamento dos animais
em competição, antes de avançar conclusões”. É isso que todo turfista quer, chegar a leis para acertar
sempre. Mas, para usar outra máxima de Edu, que na minha opinião condensa todas as regras, “em
corrida de cavalo a regra é a exceção”.
De modo para encaminhar à conclusão, retomarei alguns pontos. E, então, fecharei com uma
pequena história, também de campo.
O significado sexual e viril do equino não é nada mais do que o próprio reflexo bestial do
público aficionado. Apesar de aqui ter sido amplamente negligenciado, para os proprietários a força e
velocidade dos seus cavalos simbolizavam a condição sua superioridade (THOMAS, 2010). A
potência masculina e viril é uma equivalência daquilo que os homens apreciam e desejam apreciar em
si. Só é levando à sério que assim o homem que assim conduzir, independente da sexualidade não ser
heterossexual. E é daí que emerge o respeito.
Assim, cavalos são bons para pensar (LÉVI-STRAUSS, 1989), para apostar e si pensar. Sem
levar em consideração a participação desses animais enquanto sujeito na sociedade, com sues nomes
próprios. Eles se tornam, portanto, para nós, (latino-)americanos, um tabu de comestibilidade por
estarem mais próximos da humanidade (SAHLINS, 2003). E, destaco, por meio deles disputa e a
rivalidade contra o outro é mediada e, mais, assegurada.
A vitória de um cavalo demonstra sua superioridade frente os seus demais oponentes. E a
vitória em um cavalo é se virar superior aos outros homens pela sua capacidade de ter entendido o
“diziam” os sinais eqüestres que ninguém mais viu. E, portanto, a vitória se torna forma de “matar”
simbolicamente o adversário ganhando o que é dele, o dinheiro. Podendo ter o direito, de os diminuir.
Até que veja a hora de vir outro o diminuir, seja este um bípede ou um quadrúpede – não importa a
ordem.
Corrida de cavalo e brigas de galos são elas mesmas alegorias para os homens disputarem
entre si, de se humilharem. Mas todos sabem que não é nada sério, é apenas uma brincadeira.
Ninguém é realmente humilhado ou acende ou desce de estados. Estas atividades lúdicas, como
colocou Geertz (1989), é uma educação emocional por meio destes animais. Eles nos ensina perder
como homens, como adultos. Está é a dica de cocheira sem a menor sujeira que melhor deixou
Bukowski (1972) – outro aficionado pelas corridas.
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só aposte quando puder se dar ao luxo de perder. quero dizer, sem depois ter que dormir num banco de praça ou
se privar de 3 ou 4 refeições. o essencial é primeiro pagar o aluguel. evitar problemas. terá mais sorte. e lembrese do que dizem os profissionais: “se tiver que perder, perca com classe”. noutras palavras, desafie os outros a
derrotarem você. se de um jeito ou doutro tiver que perder, então mande tudo para o inferno, pegue alguém para
dançar nos portões de saída, a vitória é tua enquanto ninguém te derrotar, até que passem por cima do teu
cadáver.
E que está história sirva de posfácio.
Estava sendo com os rapazes do lado de fora da tribuna assistindo aos páreos. Ao termino do
8º páreo, como o tempo estava esfriando, um senhor comentou que o serviço de meteorologia previa
chuva para o dia seguinte. Um deles nos apontou para a quantidade de urubus que sobrevoavam
abaixo do firmamento. E eram inúmeros. Boneca ficou olhando para cima. Até que arriscou:
– Se aquele grupo continuar voando por ali [a sudoeste] não vai chover. Agora, se
passarem a voar para lá [a su-sudoeste] vai chover.
Boneca, com isto, estava, evidentemente, demonstrando seu conhecimento
naturalístico, que é ver e interpretar os sinais que a natureza estava informando, aos demais.
Ninguém ali pareceu dar grandes bolas para sua previsão por meio dos urubus, ainda mais que
com o passar das horas o bando não foi para su-sudoeste, o que apontava ir justamente contra
a previsão do tempo dos meteorologistas.
Ninguém pareceu dar grandes atenções para o Boneca e o seus urubus. Longos
minutos mais tarde, quando os cavalos entraram para fazer o canter do 9º páreo. Como de
costume, todos pararam para prestarem atenção e examinar os cavalos. Quando o último potro
fez seu galope Boneca surgiu com outra observação:
– Há muito tempo que não vejo um canter bonito como desse número seis [Artouche].
Que categoria de galope! Bonito, na medida, como tinha que ser. Há muito tempo que não
vejo um troço assim.
E novamente ninguém demonstrou pareceu lhe dar grandes bolas. Tenho duas
hipóteses para este segundo desdém. A) Talvez pelo descrédito da previsão de chuva através
do voo dos urubus. B) Era um páreo para produtos de 3 anos sem vitória. E o potro Artouche
– tinha uma campanha de 3 – 2º lugares, 1 – 3º lugar, e 2 - 5º lugares. O que, olhando a
campanha de outros cavalos era relativamente similar. Mas por se tratar de um produto de
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
criação e de propriedade do Haras Santa Maria de Araras – líder na estatística da temporada
2013/2014 de criadores e 2º na estatística de proprietário – o “peso da farda” era um provável
favorito a vitória. Tanto é que o totalizador sinalava que para este cavalo um favoritismo de
2,6 para 1. Sendo assim ele estava falando o que muita gente também acreditava mesmo
independente ou não do seu galope diferencia do canter.
No páreo Artouche venceu atropelando os adversários nos 100 metros finais. Ninguém
ali conosco, parecia ter acertado além do Boneca e de mim, que fui na sua onda. Outros até
jogaram o cavalo, mas combinando a dupla com outro conflagrando derrota. Boneca gritou de
alegria.
– Você tinha razão, no canter parecia mesmo... – E antes mesmo que eu pudesse
concluir fui atropelado pelo seu ardor da vitória.
– Aqui – se referindo aos demais – ninguém sabe de nada. Ninguém sabe nada! É tudo
neném! Tudo neném! Ninguém sabe é nada! Na próxima vez que ver um canter assim não
vou apostar só 10 reais, vou apostar 1 milhão! 1 trilhão! E não vou falar nada. Tudo neném!
E no dia seguinte houve pancadas de chuva.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BARCELLOS, Sergio. 2002. Cavalos de Corrida: uma alegria eterna. Rio de Janeiro: Topbooks.
BUKOWSKI, Charles. 1972. Dicas de cocheira sem a menos sujeira. In: BUKOWSKI, C.
Crônica de um amor louco. Porto Alegre: L&PM.
CARVALHO, Ney O. R (Editor). 1998. Jockey Club Brasileiro 130 anos: Rio de Janeiro, um século e
meio de turfe. Rio de Janeiro, Jockey Club Brasileiro.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. 1998. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio.
CIRLOT, Juan-Eduardo. 1984. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Moraes.
GEERTZ, Clifford. 1989. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.
LeGOFF, Jacques. 2011. Heróis e Maravilhas da Idade Média. Petrópolis, Vozes.
LÉVI-STRAUSS, Claude. 1989. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus.
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ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
MORAES. Fernanda Azeredo de. 2012. Sobre Glórias do Passado: um estudo sociológico sobre
homossocialidade, espaço, masculinidade e envelhecimento. Monografia. Universidade Federal do
Paraná.
SAHLINS, Marshall. 2003. Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro: Zahar.
RIBEIRO, Renato Janine. 2006. Hobbes: o medo e a esperança. In: WEFFORT, F. C. Os clássicos da
política, 1. São Paulo: Ática.
THOMAS, Keith. 2010. O homem e o Mundo Natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e
aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras.
VELASQUEZ, Rafael. 2012 Cavalos, Rateios & Barbadas: uma aposta etnografica nas corridas de
cavalos no hipódromo da gávea, Rio de Janeiro. Monografia. Universidade Federal Fluminense.
WHYTE, Willian Foote. 2005. Sociedade de Esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e
degradada. Rio de Janeiro: Zahar.
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O RASTRO DO PASTOR. CRIAÇÃO DE ANIMAIS E TÉCNICAS PARA
FAZER CARNE EM JUJUY (ANDES MERIDIONAIS, ARGENTINA)
Francisco Pazzarelli
[email protected]
Instituto de Antropología de Córdoba, CONICET
Universidad Nacional de Córdoba, Argentina
Pesquisador do CONICET
A criação de cabras e ovelhas em Huachichocana, uma “comunidade aborígene” nos montes
de Jujuy (Andes meridionais, Argentina), é uma das principais tarefas dos moradores. No
processo de se tornarem pastores, os huacheños vão virando “família” dos animais, num
desenvolvimento que acaba por deixar dentro do corpo dos animais parte das energias vitais
das pessoas: a “sorte”. Isso se torna evidente no momento de matá-los para comer. Neste
trabalho, meu interesse é apresentar um percurso etnográfico sobre as técnicas que permitem
“fazer carne”, discutindo a manipulação dos ossos, carne, pele e órgãos dos animais. Isso
permite desenvolver uma análise que sugere que nesse processo os pastores devem tirar dos
animais aquelas forças vitais próprias que, por causa do processo de criação, ficaram dentro
das cabras e ovelhas.
Palavras chave: carne, pastores, técnicas, Andes meridionais.
INTRODUÇÃO
Neste trabalho me interessa apresentar algumas perguntas sobre as relações que se
estabelecem entre pessoas e animais (cabras e ovelhas) em Huachichocana, uma pequena
“comunidade aborígene” dos montes da província de Jujuy, no norte da Argentina. Como
sugerem muitas etnografias em diferentes partes de Jujuy e dos Andes meridionais, as
relações que os pastores e pastoras estabelecem com suas haciendas235 acabam por colocar a
ambos (pessoas e animais) no lugar de parentes, de família. Esta família também inclui nas
suas relações os seres da “paisagem” (montes, lugares estreitos, olhos de agua, covas,
abuelos, casas antigas) sob uma lógica particular que, em Huachichocana como em outras
regiões do mundo andino, denominou-se criação (crianza).
Estas lógicas exprimem relações de “caráter forçoso”, que não podem ser evitadas ou
canceladas sem riscos. Entre outras formas, tais vínculos se propiciam com a alimentação e
com diferentes tipos de intervenções sobre o crescimento de outros seres (humanos e não
humanos), numa dinâmica que define “criadores” e “criados” (Arnold e Yapita, 1998; Bugallo
235
Hacienda se refere localmente ao conjunto de animais que uma família possui e pastoreia.
430
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e Tomasi, 2010; Lema, no prelo; Lema e Pazzarelli, 2013; Pazzarelli, 2009, 2012, no prelo;
Martínez, 1976). Outra forma de definir a criação (crianza) em termos locais seria: fazer
crescer à outros.
Usualmente, são as relações estabelecidas com a Pachamama aquelas que melhor
demonstram isso: as pessoas estão vinculadas com a Pacha mediante relações de
oferecimento de comida (dar de comer) que devem ser atualizadas cada ano, de maneiras
corretas; dessa boa execução ritual depende a prosperidade dos anos próximos. Mas essas
relações ocorrem sempre num duplo sentido: os montes criam as pessoas e as pessoas criam
os animais, mas as pessoas também alimentam os montes (ajudando a “criá-los”) e os animais
alimentam às pessoas (ajudando a “criá-las”). As criações são mútuas: todos criam alguém ao
mesmo tempo em que são criados por alguém; acabam, assim, por integrar uma rede de
pertenças mútuas, que lembram a definição do parentesco como “mutualidade do ser”
(Sahlins, 2013)236. Essa mutualidade se expressa etnograficamente na intimidade cotidiana de
pessoas e animais, que convivem, dialogam e se olham constantemente: inclusive, muitas das
palavras usadas para se referir aos animais são as mesmas que marcam aos parentes humanos;
por isso, muitas vezes é difícil distinguir se uma pastora está falando de seus filhos humanos
ou de seus bodes... porque chama a todos de filhos. Aliás, os animais também se envolvem em
rituais de matrimônio durante as Señaladas (marcação de animais) e têm um papel ativo na
constituição de linhas de descendência, especialmente quando eles são entregados às crianças
e começam a fazer parte da sorte (suerte) dos futuros pastores e pastoras (Arnold e Yapita,
1998; Bugallo 2014; Bugallo e Tomasi, 2012; Bugallo e Vilca 2011).
O domínio semântico e prático de sorte (suerte) é amplo, mas sempre se vincula às
capacidades para conduzir relações férteis de criação; capacidades que, ainda que definam a
condição de pastor, nem sempre se encontram “dentro” deles e por isso devem ser
zelosamente cuidadas237. De fato, a sorte de cada pastor ou pastora se desenvolve de forma
gradual (desde crianças), sendo ao mesmo tempo “pessoal” e “específica”: há pessoas com
236
Ainda que seja preciso mais discussão a respeito, a definição do parentesco como “mutualidade do ser”, ou
seja, a possibilidade geral de que as pessoas possam ser pensadas como intrínsecas à existência de outros, não
parece muito distante daquilo que discutem as etnografias da criação (crianza) nos Andes.
237
“De una u otra forma, [la suerte] se refiere a una energía vital que permite la reproducción y la regeneración
de la vida y que se despliega a través de la relación persona-animal” (Bugallo y Tomasi, 2012: 220).
431
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
sorte para criar cabras e outras com sorte para llamas, por exemplo (Bugallo, 2014; Bugallo e
Tomasi, 2012).
Mas se levamos a serio a criação (crianza) como aquele conjunto de relações que
define o vínculo entre animais e pessoas, que acabam por tornar-se família: que acontece
quando as pessoas têm que matá-los para comer? Numa ocasião, comentei com uma menina
minhas intenções de comprar meu próprio par de cabras para criá-las; animada, ela falou para
sua mãe, Francisco quer ter filhos! A mãe sorriu como gesto de aprovação. Imediatamente, a
menina me perguntou: Você sabe que vai ter que matá-los para comer? A mãe interveio para
dizer que a gente não ia falar disso e a conversa acabou. A complexidade da situação que se
intentava ocultar nessa conversa é o que me interessa neste trabalho, e ficou mais clara para
mim quando comecei participar dos processos de matança e carneado: ou seja, daquele
conjunto de técnicas que permitem fazer de um animal familiar o que nunca foi: carne.
FAZER CARNE
As famílias huacheñas moram nos montes do Departamento de Tumbaya, em Jujuy. Suas
casas e puestos encontram-se num território com profundas ravinas que, em poucos
quilômetros, articulam a Quebrada de Humahuaca (2300 msnm) com a puna (4200 msnm).
Entre um extremo e outro, configura-se um sistema agrícola-pastoril com características
particulares, segundo as variações ecológicas e os ciclos de mobilidades anuais.
As matanças de cabras e ovelhas para consumo familiar acontecem semanalmente ou a
cada dez dias, segundo a época do ano e a composição familiar. Essas matanças se
desenvolvem de manhã cedo, quando o sol aparece através dos montes: a pastora entra no
curral com algum assistente e caminha entre os animais até escolher um deles; ambos levam
rapidamente o escolhido para fora do curral e, em poucos segundos, acabam com sua vida.
Essa celeridade não é casual e, como vou mostrar, define um tipo particular de eventos entre
os quais se inclui o matar bem.
Para matar bem primeiro se passa a faca. Todas as famílias possuem um lugar
destinado para as matanças, geralmente indicado por uma pedra no chão ao lado do curral.
Sobre ela se repousa a cabeça do animal, que é colocado de lado, olhando para o leste o sol de
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manhã. A faca, pequena e bem afilada, passa uma vez pelo pescoço, rapidamente, para evitar
qualquer tipo de sofrimento ou grito. A matança geralmente inclui duas pessoas: uma delas
segura a cabeça do animal para o sangue sair, enquanto a outra recebe o sangue que cai em
algum recipiente, deixando que as primeiras gotas toquem o chão na forma de uma pequena
challa ou libação. Quando o fluxo de sangue acaba, termina-se de aprofundar o corte. As
pessoas sempre olham o animal morrer, atentas para que não sofra ou para a manifestação de
qualquer senha (seña) ou indício: diz-se que é um momento delicado e tudo pode sair errado.
Quando o sangue pára completamente, o animal é transportado à casa para carneá-lo
(desollar)
O carneado começa tirando o couro, iniciando na zona do esterno, ampliando-se para
as costas e passando pelas pernas, que são desarticuladas nesse momento e separadas do resto
do corpo. O couro, ou cuerito, é a primeira parte que começa a ser pelada, mas será a última a
abandonar o processo: ficará aderido à zona da coluna até o carneado finalizar.
A etapa seguinte é a abertura do abdômen, desde o pescoço até o cóccix. Retiram-se os
estômagos e os intestinos, enquanto toda a matéria contida nele é esvaziada em lugares já
definidos. Os estômagos esvaziados são colocados para secar em algum lugar protegido do sol
direto e dos cachorros. Os intestinos, porém, são logo colocados em panelas para cozinhar
alguma sopa ou guisado (sopa de menudos ou guiso de tripas, típicas comidas pós-carneado).
Continua-se com as costelas, separando-as do esterno com uma faca. Quando já foram
retiradas, se tira o bofe (pulmões) e o coração. Também se tira o fel, ou hiel, que é colocado
para secar. Quando tudo isso foi feito, acaba-se de separar a carne com ossos do couro; essa
carne com ossos é pendurada no interior da casa, com uma pequena panela embaixo para
coletar as últimas gotas de sangue. Durante todo o processo, as pessoas têm especial cuidado
de não partir nem estragar nenhum dos ossos que estão sendo manipulados.
O encarregado do processo, então, regressa para o couro: dobra-o sobre si mesmo,
acomodando com cuidado a parte das patas e a cabeça, que ainda está unida, para que durma.
Esse couro também tem que olhar para sol de manhã, da mesma forma que quando o
mataram. Fica assim até o dia seguinte, quando é colocado no pátio para secar-se com o sol;
antes, separa-se a cabeça, que poderá ser desidratada e reservada para futuras comidas rituais.
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MATAR BEM
No inicio do meu campo, achava que todo esse conjunto de técnicas (matança e pelado)
constituía o fazer carne. Porém, um dia, enquanto carneávamos um bode, uma de minhas
interlocutoras me disse, com as mãos completamente cheias de sangue, que ela nunca tinha
feito carne. Explicou-me que fazer carne era aquilo que acontece fora do curral e que inclui a
matança e o primeiro sangue. Quando a faca passa e quando o corpo separa-se da cabeça é
quando a carne se faz. A carne não existe antes, é só uma virtualidade que se atualiza nesse
momento (Archetti, 1992). Inclusive, dessa boa matança depende que a carne seja muita e
com sustância. Várias vezes me explicaram que ainda que o animal escolhido seja gordo,
pode ficar magro e sem carne quando eles carneiam: isso porque talvez alguém não matou
bem e, conseqüentemente, a carne não foi feita. Matar bem, então, é indispensável.
Durante os segundos que dura a matança, a cabeça do animal tem muita importância:
deve posar corretamente sobre uma pedra para que a faca passe bem, da boca não tem que sair
nenhum som e deve olhar para sol de manhã; nessa direção vai sair seu ánimu. Em diferentes
regiões dos Andes, o ánimu (ou ánimo) é uma das muitas “interioridades” que possuem os
seres e sobre as quais é possível intervir, positiva ou negativamente. Uma criação (crianza)
correta, por exemplo, é aquela que permite um bom crescimento dos ánimus dos rebanhos
(Bugallo e Vilca, 2011; Lema, no prelo; Pazzarelli, 2009, 2012; Ricard Lanata, 2009; Vilca,
2009). Os huacheños falam a mesma coisa: quando se mata bem, a faca passa e a cabeça
separa-se do corpo da mesma maneira (e no mesmo momento) em que o ánimu separa-se do
animal. Por isso, as matanças não são feitas nem terças-feiras ou sextas-feiras (dias maus e
das bruxas), nem domingos (dia do Senhor); de outra forma, os ánimus dos animais ficariam
no risco de ser roubados238 por outros seres.
Várias etnografias da puna jujeña sugerem que o “não sofrimento” é indispensável
para o ánimu do animal não se vingar do pastor, chamando aos animais vivos para abandonar
ele, por exemplo (Bugallo e Tomasi, 2012; Bugallo e Vilca, 2011). Mas se a matança é bem
238
Aquele que mata sem cuidado, fazendo sofrer o animal, não é um bom pastor e será objeto de “vinganças”. A
possibilidade de ficar “doente” logo depois de uma matança mal feita está bem presente na caça de animais
selvagens, uma prática escassa, mas sobre a qual existem várias anedotas e estórias (Pazzarelli, 2013).
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feita, o ánimu sairá para o leste (e não para o oeste, terra dos mortos e almas; Bugallo, 2014) e
voltará sob a forma de sorte para aumentar as haciendas. Por o mesmo motivo, deixam que as
primeiras gotas de sangue toquem o chão, como uma pequena libação, para alimentar o corral
e fazê-lo próspero. O olhar para o leste e as libações de sangue são feitas em muitas outras
práticas rituais vinculadas com a fertilidade (dos campos, das haciendas, da sorte).
Para resumir, matar bem permite, por um lado, que as relações de criação (crianza) e
a sorte não estejam comprometidas no futuro; por outro lado, separa de forma definitiva ao
animal do curral, habilitando os devires do carneado e da desidratação. Porém, essa carne
recém-feita não é comestível: ainda possui muitas vitalidades que é preciso fazer secar.
FAZER SECAR
O carneado e as desidratações são conseqüências de passar a faca: um conjunto de técnicas
que as pessoas são obrigadas a executar para que a carne termine de se fazer. Em primeiro
lugar, a desidratação das matérias contidas nos estômagos e intestinos, em algum lugar perto
da casa ou do curral, em montículos ou sobre um arbusto. Algumas pessoas falam desse
espaço como o lugar onde se juntam todos os falecidos do curral. A localização dessas
matérias nas alturas previne os ataques dos cachorros porque, como vou mostrar depois, isso
nunca é recomendável. Em segundo lugar, os estômagos já esvaziados são secados num canto
da casa até o dia seguinte, quando se termina de lavá-los.
O terceiro processo tem a ver com a carne e ossos pendurados no interior das casas e
que são denominados carne fresca e ossos frescos. A carne tem que ser pendurada com o
interior para fora, ou seja, ao contrário de como foi carneada: de outra forma, parece viva e se
voltia la suerte239. O cuidado para não partir nem perder nenhum osso se estende para este
momento: a carne se faz secar nas alturas. O estatuto de fresco dura um dia, e depois as carnes
e os ossos entram no circuito cotidiano do consumo de pessoas e animais. Se as pessoas
desejam comer essa carne fresca, podem sob a forma de churrascos (asados); porém,
conservam zelosamente os ossos até o dia seguinte ou os jogam no fogo cuidando que
239
A tradução mais aproximada seria que a sorte fica de cabeça para embaixo. Voltiar é uma expressão utilizada
para se referir a situações de má sorte ou desgraças.
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ninguém os roube enquanto se queimam. A carne fresca, e especialmente os ossos, não pode
ser pegada por cachorros ou outros animais (que poderiam pegá-la, comê-la e parti-la), porque
nesse caso a hacienda familiar pode falhar (fallar); isso porque a sorte do pastor está nos
ossos frescos.
O domínio semântico de falhar é muito amplo e se refere a desgraças, doenças e,
inclusive, ao ataque do puma (Bugallo, 2009; Bugallo e Tomasi, 2012)240. O que estas
observações sugerem é que no estado de fresco, a carne e os ossos ainda tem alguma
“vitalidade” do animal que desaparece quando ganha o estado de “seco”. Talvez por isso,
enquanto a desidratação atua, as pessoas tentam ocultar essas “vitalidades”: a carne deve
secar-se de um jeito que não pareça viva para que não se voltie la suerte. Alguns deles
afirmam, inclusive, que é melhor fazê-la secar em pedaços (troceada) porque de outra forma
também parece viva e o puma poderia roubá-la.
É o quarto processo de desidratação, dos couros, aquele que melhor mostra esta
“vitalidade”: os cueritos, com a cabeça ainda unida com o corpo, são dobrados e colocados
numa posição “natural” para que durmam. Dizem que tem que se acomodar como roupinhas
(ropitas), porque os couros são as roupas da hacienda. É interessante destacar que tudo
aquilo que não se faz com as carnes frescas, se faz com os couros: com as carnes, a intenção é
que não pareçam vivas; com os couros, a intenção é que pareçam animais dormidos e,
conseqüentemente, vivos. Em outras palavras, enquanto as carnes e ossos apontam para uma
matança que tem que ser esquecida, os cueritos colocam na frente de todos a cena de um
animal dormido que, porém, nunca vai acordar. O cuerito se põe a dormir para que o animal
termine de ir embora, e assim está mais vinculado com o ánimu que se separa quando a faca
passa e que abandona a hacienda para voltar como sorte (ver também Van Kessel, 1992: 43).
Acomodar os couros é o ultimo passo do processo; logo depois se limpa o lugar,
lavando todos os instrumentos e mãos envolvidos. Esta celeridade no tratamento do lugar e
dos objetos utilizados também se registra em outros momentos carregados de certa solenidade
e perigo: quando acontece algum acidente importante (que compromete o ánimu de alguma
240
Quando a carne fresca é comprada de outro pastor, os cuidados são os mesmos. Mas se a carne é de um
açougue do povoado mais perto, o problema do cuidado nunca aparece: eles afirmam que, com certeza, é carne
velha.
436
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
pessoa) ou em alguma situação que envolve a raiva da Pacha ou dos montes (o que também
pode comprometer vidas). Em todos aqueles eventos, o “perigo” das situações é manipulado
com celeridade, sem demonstrações de preocupação, medo ou dor. Da mesma forma como se
tira os animais do curral para matá-los em poucos segundos, e como se limpa o lugar onde a
carne foi carneada, a intenção é ocultar que um ánimu foi liberado ou está comprometido.
Mas quando no dia seguinte os cueritos são colocados para secar, agora sim têm que ser
dobrados como carne fresca, uma disposição que indica que o couro já não está (ou não deve
parecer) vivo. O ánimu, finalmente, foi embora.
O quinto processo de desidratação, o mais extenso de todos, pode durar semanas ou
meses: é o secado do fel (hiel) que é tirado do animal quando já está completamente aberto.
Cada família tem um lugar para isso: um espaço entre as madeiras do teto da cozinha, os
interstícios dos tijolos nos muros das casas ou um cravo no interior de algum quarto perto da
entrada. Quando os cravos estão cheios dessas pequenas vesículas secas, acumuladas umas
sobre outras, se tiram e enterram num buraco dentro do curral ou da casa, num lugar onde as
pessoas não caminhem ou pisem muito (um canto de algum quarto, por exemplo). As razões
para essa conservação são as mesmas que já coloquei acima: no fel está a sorte do criador e
por isso não deve ser atacado por cachorros ou pássaros. De fato, o processo para a extração
do fel também é especialmente cuidadoso: em primeiro lugar, porque se o fel explode
estragará (arruinará) a carne por causa do seu sabor amargo, o mais amargo de todos; em
segundo lugar, porque o tamanho do fel é senha da sorte do pastor, que definirá o ritmo futuro
da hacienda: animais com vesículas grandes sinalam relações de criação bem conduzidas,
uma matança bem feita e boa sorte para o futuro. Sua conservação é desidratação também é
particular, porque enquanto os outros secados não excedem um dia, o fel tem que ser
conservado muitos mais, cuidando que ninguém roube até ficar completamente seco. Ele é,
então, a parte mais pequena, mas aquela que precisa de mais tempo para se secar; a parte que
poder estragar toda a carne; e, finalmente, aquela que é senha e sorte do pastor ou pastora.
Esta importância é consistente com aquelas etnografias que, para os Andes aymaras,
437
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
assinalam que fel pode ser sinônimo de ánimu e jañayu (outras das várias “interioridades” dos
seres, Arnold e Yapita, 1998: 126, 134)241.
VITALIDADES
As desidratações mencionadas estão vinculadas com a necessidade de evitar os perigos de
uma (má) manipulação das vitalidades que conserva o corpo: essas vitalidades parecem ser de
vários tipos, incluindo pelo menos ao ánimu (que quando se separa corretamente permite a
reprodução da hacienda-familia), as vitalidades líquidas contidas no sangue e nas umidades, e
a sorte distribuída por diferentes partes do corpo (ossos, fel).
As substâncias líquidas parecem ter aqui certa relevância: a perda da umidade
produzida durante o fazer secar coincide com a perda de certa vitalidade. Da mesma forma, a
presença de líquido dentro do fel é senha da sorte dos pastores. E é o primeiro sangue aquele
que é oferecido ao curral, quando ainda está líquido, quente e não coagulado. Se esta sugestão
é correta, a relação entre as formas líquidas e a potencia vital parece ser reduzida mediante a
desidratação, fazendo da carne uma matéria um pouco mais inerte.
Neste ponto, porém, escolho falar de “reduzir” antes de “eliminar” porque a comida
em Huachichocana não está completamente livre de vitalidade. Ainda que os ánimus dos
animais se separem com a matança e ainda que a desidratação atue, as carnes sempre
conservam uma porção vital que é, justamente, o que alimenta. Em outras regiões de Jujuy e
dos Andes centro-meridionais observam-se situações similares: nas despesas, por exemplo,
incentiva-se o crescimento dos ánimus dos produtos conservados (Bugallo e Vilca, 2011).
Junto com isso, temos as clássicas referências aos processos de desidratação de batatas (para
fazer chuño) e de ancestrais (em chullpas), como técnicas de redução de potencias vitais que,
porém, podem ser reativadas mediante reidratações (Allen, 2002; Pazzarelli, 2009; Sillar,
1996). Em outras palavras, a desidratação ajudaria a apagar parte da vitalidade, ainda que
deixando um resto que é, finalmente, aquilo que é consumido, geralmente, como comidas
241
No aymara, Mulla significa “1. Un susto experimentado durante el embarazo o el parto; 2. La hiel o bilis; 3.
El ánimo, espíritu, jañayu”. Sobre el embarazo y parto, se dice que una mujer que se “asuste” puede
comprometer su ánimo y enfermarse e incluso “puede reventar la hiel y provocar la muerte”. Também “se dice
que el embarazo gemelar [temido en todos los Andes, generalmente] se debe a algún susto que sufrió la
embarazada, dividiendo la hiel” (Arnold y Yapita, 1999:159, 167).
438
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
fervidas (a melhor técnica para hidratar e cozinhar carnes secas). Mas, o que acontece quando
se comem carnes frescas?
A carne fresca não é boa para ferver porque ela é dura e muito azeda; e azeda ou
amarga é a mesma condição referida para o fel, aquilo que faz dele uma coisa tão perigosa
durante o carneado do animal. Para consumi-la, então, é preciso assá-la; e assar é uma técnica
que entrega como resultado um produto seco. O asado atuaria, assim, como uma forma de
desidratação acelerada que reduziria a vitalidade das carnes que se consomem frescas, no
mesmo dia da matança.
Porém, temos um ponto de fuga que, ainda que precise de maior atenção etnográfica, é
preciso ressaltar. No processo de carneado, eu disse que uma parte das carnes é consumida
sempre de forma imediata: os intestinos, parte das veias e, às vezes, os estômagos. Essas
partes são fervidas e concentram numa única preparação toda a sustância; todas as umidades
estão ai para ser consumidas. Constituem, assim, o contrário de todos os processos de
desidratação (incluindo o asado). Isso poderia se reportar a uma possível diferença entre
“vitalidades” encarnadas em diferentes cortes de carne frescos (costelas e intestinos, por
exemplo), com uma conseqüente distinção no tratamento culinário (asado e fervido). Mas
existe outra diferença: essas partes fervidas são entranhas que não possuem ossos.
Os ossos, em diferentes contextos, são fundamentais para compreender os tratamentos
dos animais e carnes: enquanto estão frescos nunca devem partir-se e são resguardados de
possíveis roubos, porque neles também está a sorte do pastor. Essa figura do roubo que os
ossos colocam de forma tão clara nos estudos da região (Bugallo, 2009; Pazzarelli, 2013,
2014)242, nos permite agora fechar o nosso percurso etnográfico.
A vida cotidiana dos pastores e pastoras envolve uma preocupação constante para não
perder o controle da integridade da hacienda: quando alguma ovelha ou cabra fica perdida nos
montes, eles dedicam dias inteiros para procurá-la. Se não fizeram isso, do animal pode se
fazer dono o puma, afetar a sorte e falhar a hacienda. Este exemplo huacheño demonstra algo
que a etnografia já sugeriu freqüentemente: todas as forças vitais manipuladas por os pastores
242
Inclusive, existem ‘jogos’ para roubar comidas rituais, como a tistincha: uma comida preparada para a
Pachamama, onde a presença dos ossos é fundamental (Bugallo, 2009; Pazzarelli, 2013).
439
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
podem ser roubadas por outros seres, sejam eles humanos ou não (Bugallo e Vilca, 2011;
Ricard Lanata, 2008; Pazzarelli, 2013; Rivera Andía, 2004; Vilca, 2009). Os pastores,
inclusive, estão muito atentos aao que acontece com as partes do corpo dos animais vivos: por
exemplo, não deixam que a lã fique em mãos alheias e conservam um pouco dela (vellones)
quando vendem um animal (Bugallo e Tomasi, 2012). Em outras palavras, quando carneaim,
quando vendem ou compram carne, quando perdem um animal ou quando perdem lã, aquilo
que está em jogo é a sorte. Assim, o problema cotidiano da manipulação das carnes esta
ligado com uma pergunta básica da vida de qualquer pastor: quem criou esse animal? Ou
numa possível reformulação similar: de quem é a sorte que está nessa cabra?
O RASTRO DO PASTOR
Freqüentemente, como mencionei, as relações de criação (crianza) são caracterizadas como
“mútuas” num intuito de deslocar a unilateralidade da relação de domesticação ocidental
(Arnold e Yapita, 1998; Bugallo, 2009, 2010; Bugallo e Tomasi, 2012; Bugallo e Vilca, 2011;
Lema, no prelo; Pazzarelli, 2009, 2012). A partir dessa “mutualidade” (ou “pertencimento
mútuo”), pessoas e animais criam-se entre si, ao mesmo tempo em que se transformam,
progressivamente, em família. Mencionei também que, quando os pastores ou pastoras temem
por uma má manipulação das carnes, ou pelo roubo de algum animal, estão temendo também
por uma parte deles: sua sorte “pessoal”. É a sorte, e não uma metáfora dela, que está contida
nos animais e pode ser roubada. A sorte, aquela força vital aparentemente imaterial, está no
fel. A sorte, aquilo que define a possibilidade de se constituir como um criador fértil no
monte encontra-se, ao menos parcialmente, “fora” das pessoas. Em outras palavras, tudo
parece sugerir que, no marco da “mutualidade” da criação (crianza), diferentes seres acabam
por compartilhar parte de uma mesma sustância: e assim, há uma parte do pastor que fica nos
animais.
É por isso que ninguém deve roubar os ossos ou carnes: nenhum pastor quer que uma
parte sua (sua sorte) fique nas mãos de um desconhecido ou de algum ser perigoso. Isso
também obriga matar bem e fazer secar ou assar a carne fresca: para poder comer um dos
seus animais, o pastor primeiro tem que cuidar das vitalidades que se concentram nesse corpo.
440
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
Deve, assim, liberar o ánimu do animal que voltará sob a forma de sorte, para renovar as
relações de criação. Mas essa relação de criação que coloca ao animal na posição de família,
coloca ao mesmo tempo uma parte do pastor “dentro” do animal. Uma parte que é preciso
fazer secar. O que intentei sugerir neste trabalho é que cada vez que alguém passa a faca para
fazer carne, não só se deseja apagar da carne o rastro de um animal familiar; o pastor também
quer apagar dali o seu próprio rastro.
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443
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
CRIAÇÃO E CONSUMO DE PORCOS NA REGIÃO DE Chapecó - SC:
ENTRE CASA À AGROINDÚSTRIA
Débora Vallilo Siqueira
[email protected]
CAPES
PPGAS-UFSCar
Mestranda
Em meio à região Oeste de Santa Catarina, que é a maior produtora de carne suína do país
com vendas no mercado interno e externo, o presente trabalho se propõe compreender como
se dão e o que significam algumas práticas e concepções acerca do porco crioulo (de banha)
nos dias de hoje na região do município de Chapecó – SC, polo regional econômico e
tecnológico. Os dados da pesquisa foram obtidos através do método etnográfico, no qual
foram realizadas entrevistas, observações participantes de abates de animais em propriedades
familiares, pesquisa bibliográfica.
Palavras-chave: humanos-animais, porcos, Oeste Catarinense, agroindústria.
INTRODUÇÃO
O Oeste de Santa Catarina é tradicionalmente conhecido pela economia agroindustrial
e pela sua articulação com a agricultura familiar, tendo como o principal produto a carne
suína. Lá foram fundaram as maiores indústrias de carne de porco do país (Sadia e Perdigão,
atual BRF, e Aurora Alimentos) e atualmente é o estado que lidera a produção
243
. A região
abrange o maior complexo de produção, abate e transformação desse produto da América
Latina, sendo considerada polo de inovação tecnológica na produção de suínos - e atualmente
também de aves - e exportadora dessas duas commodities, tendo grandes plantas industriais
em cidades como Chapecó e Concórdia, entre outras (Mior, 2005; Renk, 2000; Espíndola,
1999; Renk et al, 2013). O Brasil cobre a demanda interna de carne suína e é o quarto país que
mais exporta no mundo, a Rússia lidera as importações com 39,60% da produção. 244
A cidade de Chapecó é a maior cidade da região do Oeste Catarinense, com 183.530
habitantes
245
, sendo reconhecida como polo regional econômico e também uma das capitais
nacionais do agronegócio (Winckler et al, 2011). Exerce influência regional e também sobre o
243
Fonte: http://www.abipecs.org.br/pt/estatisticas/mercado-interno.html (Acessado em setembro de 2014).
Fonte: http://www.abipecs.org.br/news/820/101/Russia-respondeu-por-quase-40-das-exportacoes-de-carnesuina-em-setembro.html (Acessado em Setembro de 2014).
245
Fonte
online:
http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=&codmun=420420&search=santacatarina|chapeco|infograficos:-dados-gerais-do-municipio (Acessado em setembro de 2014).
244
444
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
meio Oeste, sobre o estado do Rio Grande do Sul e o sudoeste do Paraná e é sede da
Associação dos Municípios do Oeste de Santa Catarina (AMOSC). A etnografia não se
restringiu apenas a este município (sede da pesquisa), outras cinco cidades da região também
foram visitadas, são elas: Saltinho, Modelo, Pinhalzinho, Concórdia e Cordilheira Alta.
A base da formação social e econômica da região é, pois, a agricultura familiar e suas
articulações com as grandes empresas agroindustriais se dão através dos chamados sistemas
de integração (Renk, 2000, Mior, 2005, Espíndola, 1999). A indústria regional cresceu
abastecendo não apenas uma vasta porção do mercado interno, mas também buscou se
expandir no cenário internacional e se inseriu num mercado globalizado que exigia certos
padrões de produção (Coletti, 2001 e Mior, 2005). Assim, a indústria de transformação de
alimento de origem animal repercutiu influências na organização, no processo produtivo e na
comercialização desses produtos produzidos nas propriedades de famílias rurais integradas
(Mior, 2005:192), nos padrões alimentares e de consumo dessa mercadoria na região como
um todo. No entanto, foram verificados alguns limites na incorporação de certos padrões e nas
mudanças que eles acarretaram.
Uma das mudanças chave na modernização da suinocultura foi a substituição dos
porcos que produziam muita banha por outros que produziam mais carne, que passou a ser o
principal produto das agroindústrias a partir da década de 1960. Na região, um episódio
particular marcou essa transição das raças de porcos dos plantéis suinícolas: é o caso da Peste
Suína Africana, que teria chegado à região em 1978 e contaminado centenas de porcos. Tal
acontecimento ainda reverbera na construção de algumas categorias e práticas que envolvem a
criação e o consumo desses animais, notadamente a criação e o consumo do porco crioulo.
Este trabalho procura, então, tratar aspectos da oposição entre a criação tradicional e industrial
de porcos, bem como o consumo da carne e outros subprodutos nos dias de hoje na região.
As relações que se dão entre os porcos e os humanos são consideradas nesta pesquisa
de suma importância. É a partir das relações de criação e de comestibilidade que se pretende
pensar outros aspectos, como o papel das raças de porcos ao longo da história e da
modernização da suinocultura na região, as formas de aproveitamento dos subprodutos, os
445
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
modos de criação e consumo domésticos, o que pensam algumas pessoas sobre essas questões
e como elas acionam estratégias de criação e consumo desses animais.
Esta pesquisa teve como metodologia uma etnografia em “[...] múltiplos lugares de
observação e participação [...]”, como descreve o conceito de “etnografia multisituada”
(Marcus, 1995:95). O campo consistiu em “examinar a circulação de significados culturais
[...] e identidades em espaço-tempo difuso” ao redor do porco (p. 96). Os dados foram obtidos
através de entrevistas com diversos atores da região: de professores universitários a pequenos
proprietários, moradores da cidade e do campo; visitas em propriedades rurais familiares,
centros de memórias, museus, ONG e cooperativas.
SOBRE BRASILEIROS, COLONOS E PORCOS
A carne de porco se constitui como uma das mais importantes fontes de proteína para
as populações rurais em geral no Brasil, considerada uma das misturas mais apreciadas
(Cândido; 1964:106), além, é claro, da banha de porco e seu uso abundante na culinária e na
feitura de medicamentos (p. 108). Nas criações de terreiro no Seridó, os porcos são
considerados reserva alimentar e bens econômicos passíveis de serem transformados em
moeda a qualquer instante (Dantas, 2008:104). As tradições alimentares teuto-nórdicas, por
exemplo, trouxeram para o país os hábitos de criação e consumo dos subprodutos suínos e
estes, especificamente a carne e a banha, eram associadas ao trabalho pesado na lavoura na
medida em que classificados como comidas que sustentam (Terhorst et al, 2007 e Woortmann
e Woortmann, 1997). No Rio Grande do Sul, desde o início do povoamento por colonos
alemães no Vale do Taquari, as criações foram fundamentais para o abastecimento de banha e
carne para as famílias, culminando em uma importante atividade econômica (Terhorst et al,
2007). A carne de porco muitas vezes é considerada a preferida, mas por ser mais gordurosa
seu consumo não é feito diariamente (Froehlich, 2012).
No Oeste Catarinense, antes da chegada dos colonos (italianos, alemães e poloneses,
estes em menor número) nas primeiras décadas do século passado, as populações que já
residiam na área, brasileiros/caboclos
246
, também criavam porcos. Atualmente, os caboclos
246
O termo “brasileiro” é a autodenominação usada pela população que já residia na área antes da colonização
efetiva por descendentes de imigrantes europeus nas primeiras décadas do século XX que marca uma distinção
446
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
vêm recuperando a valorização de suas comidas ancestrais como um “idioma da etnicidade” e
a banha aparece como um dos alimentos que simbolizam sua cultura (Savoldi, 2008:74).
As raças de porcos são um dos aspectos mais relevantes na trajetória da suinocultura
brasileira e igualmente para este trabalho. As primeiras raças trazidas para o Brasil e aquelas
resultantes dos processos de adaptação até as décadas iniciais da colonização efetiva na região
Sul têm como uma das principais características a alta produção de banha e por isso são
denominadas em diversas localidades como “tipo banha”, “comum”, “mouro” e “de banha”.
O valor de mercado desse subproduto suíno já foi maior que o da carne em função da
importância na culinária e da facilidade do transporte. O cultivo da soja resultou na entrada
dos óleos vegetais no mercado e teve como consequência a substituição da gordura de porco e
sua crescente desvalorização e desuso.
Ademais, igualmente significativos são os modos de criar e alimentar esses animais
em tempos que precedem os processos de modernização em algumas regiões, embora a
permanência de alguns desses modos tradicionais não tenham acabado, como será relatado
mais adiante. No Vale do Taquari, os porcos viviam soltos (sendo presos à noite) e
alimentados basicamente com milho em espiga, mandioca ou com “lavagem” (composta por
batata-doce e abóbora cozidas) (Terhorst et al, 2007:104). Em São Paulo das Missões, a
alimentação mais “natural” e “limpa” se constitui de lavagem (mistura de vegetais, restos de
comida e farelos), mistura de milho, sal mineral, mandioca, “algum verde” e resto de leite
(Froehlich, 2011:72). Nesses contextos, a alimentação ministrada está diretamente associada à
qualidade da carne e ausência de produtos químicos e artificiais, como medicamentos e rações
elaboradas quimicamente.
No Oeste de Santa Catarina, no entanto, foram os colonos que introduziram o
cercamento desses animais. Os brasileiros criavam porcos em um “sistema diferente” (Renk;
2004:27) dos colonos: soltos nas chamadas “terras de criar”, que se localizavam próximas às
moradias, em oposição às “terras de plantar”, que ficavam longe das casas (Renk, 2000:94).
Isso se deu antes da “´lei de criar preso´ ou ´de fazer cerca´” introduzidas pelos colonos e que
entre eles e os colonos. “Caboclo” foi a forma estigmatizada que os colonos denominaram essa mesma
população (Renk, 2004:47).
447
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
não foram sendo incorporadas sem resistência (Renk, 2006:108). A alimentação mais “natural
e “saudável” baseadas em lavagem (resto de comida, verduras, legumes e às vezes soro de
leite), também estavam intimamente relacionadas à uma carne de boa qualidade.
No processo de colonização foi exigido dos colonos a ocupação rápida da terra e o
cultivo ou o povoamento com animais, constituindo unidades de trabalho familiar para a
construção do “celeiro do Brasil” (Renk, 2004:32). A terra, tomada como patrimônio familiar,
sempre foi a principal fonte de abastecimento e reprodução das famílias (Renk, 2000;
Woortmann, 1987). O tipo de agricultura praticada era a policultura subordinada à
suinocultura e, não obstante, os colonos do sul possuem uma trajetória de permanente vínculo
com o mercado, o que contribuiu com a modernização e instalação de agroindústrias
(Seyferth, 1974; Woortmann, 1995, apud Renk, 2000:19). Durante a primeira fase de
ocupação (1916-1930), os colonos do Oeste já tinham relações comerciais com importadores
e exportadores do litoral do Estado, o que possibilitou a construção da rede viária estadual que
suprisse o escoamento da produção das colônias. Desenvolveram também fortes relações
comerciais com o Rio Grande do Sul e São Paulo (Espíndola, 1999:48, 51 e 52).
Como já foi dito, as raças de porcos são de suma importância para essa atividade e a
substituição de porcos de banha por porcos brancos (“tipo carne”) e suas consequências na
região é, ainda nos dias atuais, marcada por um episódio em particular e que será tratado a
seguir.
“O ´ESPÍRITO DE PORCO´ DA PESTE SUÍNA [AFRICANA]” 247
A Peste Suína Africana (PSA) era considerada endêmica em quase todos os países da
África e atingia os porcos selvagens e javalis na sua forma subclínica 248. Quando da
introdução de porcos domésticos pelos colonizadores europeus, no início do século XX, o
247
Esta frase é de autoria dos Padres Valter Fiorentin e Ivo Pedro Oro e foi transcrita de um livro sobre o bispo
Dom José Gomes, “Dom José Gomes – Mestre e aprendiz do povo” (Uczai, 2002), que esteve à frente da
Diocese de Chapecó de 1960 a 1999. Dom José seguia a linha dos bispos latino-americanos da renovação
introduzida pelo Concílio Vaticano II, com visão em favor das lutas populares a partir da teologia da libertação.
Ele foi presidente nacional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) de 1979 a 1983 e da Comissão Pastoral
da Terra de (CPT) 1983 a 1987.
248
Situação em que o animal não apresenta os sintomas da doença e que necessita de testes laboratoriais para ser
detectada.
448
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
contato entre as duas populações, selvagens e domesticadas, fez com que as segundas fossem
contaminadas. A primeira vez que o vírus foi detectado para além do continente africano foi
em 1957, em Portugal. O vírus chegou as terras portuguesas a bordo de um avião vindo do
continente-origem da PSA que continha restos de alimentos contaminados com o vírus, o
provável uso desses restos de alimentos na granja causou a contaminação (Viana, 2008:9).
Este vírus é transmitido por um carrapato e causa uma enfermidade contagiosa, febril e
sistêmica (afeta todo o corpo) no animal. Ele é considerado altamente contagioso e possui
grande capacidade de sobrevivência nos mais variados ambientes. A sintomatologia varia de
aguda a inaparente, ou seja, neste último caso o animal pode conter o vírus, mas não
apresentar os sintomas da doença. O seu tratamento não é feito devido à alta incidência de
animais enfermos, alta taxa de mortalidade e pelo fato dos animais continuarem disseminando
o vírus através dos dejetos (Moura; 2009). Algumas das medidas de combate a PSA se
constituem no sacrifício dos animais contaminados e suspeitos, agrupamento dos mesmos em
valas e queima dos corpos.
Além de Portugal, a PSA atingiu a França (1964), Espanha (1960), Itália (1967), Cuba
(1971), República Dominicana (1978), Haiti (1979) e Malta (1978). Na maioria dos casos o
vírus chegou através de navios ou aviões vindos de outros países e que continham restos de
alimentos que estariam contaminados e foram reutilizados em vários casos como alimentos
para criações suínas. Ao Brasil, o vírus chegou e contaminou os porcos através de restos de
alimentos de aeronaves procedentes do exterior e que foram ministrados à uma criação de
porcos de Paracambi – RJ249. A partir desse primeiro foco, a PSA teria se disseminado
rapidamente por todas as regiões do país. Essa disseminação é oficialmente reconhecida pelo
governo brasileiro, mas não é consensual na literatura da medicina veterinária
250
(Viana,
2008 e Tokarnia et al, 2006) assim como entre a população do Oeste de Santa Catarina, como
será demonstrado mais adiante.
249
Segundo Viana (2009:89), existe sete versões para a entrada da PSA no país e esta é a versão “divulgada em
todos os documentos e comunicados do governo do Brasil”.
250
Das três referências consultadas na área da medicina veterinária, apenas o trabalho de Moura (2009) afirma
que a disseminação alcançou todo o Brasil.
449
ANAIS DO SEMINÁRIO DE ANTROPOLOGIA DA UFSCAR, ANO 1, EDIÇÃO 1
No ano de 1978, o que se passou na região Oeste de Santa Catarina foi e continua
sendo demasiado controverso e polêmico para significativa parcela da população, além de ser
considerada a maior crise da suinocultura da região. Segundo algumas referências na
literatura251 e relatos que coletei no decorrer da pesquisa de campo, essa peste foi responsável
pela eliminação de porcos de banha e

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