tony bellotto victoria philpott lenise pinheiro og pozzoli

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tony bellotto victoria philpott lenise pinheiro og pozzoli
TONY BELLOTTO | VICTORIA PHILPOTT | LENISE PINHEIRO | OG POZZOLI
REVISTA DO ITAÚ PERSONNALITÉ N O 26 | ANO 7
TONY BELLOTTO
“Os escritores se levam
a sério demais. Gente
de banda não tem isso”
março | abril | maio
VICTORIA PHILPOTT
LENISE PINHEIRO
OG POZZOLI
EXEMPLAR DISTRIBUÍDO NAS
AGÊNCIAS PERSONNALITÉ
OFICIAL DA MARINHA FAZ MEDIÇÕES EM CARTA NÁUTICA
DURANTE TRAVESSIA DE 50 MINUTOS ATÉ A ILHA RASA (RJ)
A BORDO DO AMORIM DO VALLE
EDITORIAL
U MARCELO CORREA
m dos maiores ídolos do rock nacional e também escritor já consagrado; um colecionador de 170 carros antigos que se orgulha de contar
minúcias da “vida” de cada um; uma jovem inglesa que viaja pelo mundo e
abastece um blog de turismo que é referência na Europa; a mais importante
fotógrafa de teatro do Brasil.
Ao observar o sumário e deparar com o rosto do nosso quarteto principal, formado por Tony Bellotto, Og Pozzoli, Victoria Philpott e Lenise
Pinheiro, você vai concluir, de cara, que a diversidade permeia a nossa 26a
edição. Conseguimos reunir histórias distintas que têm, como ponto de
intersecção, uma palavra que dá norte ao nosso garimpo jornalístico: experiência. Mais do que simplesmente apresentar tais histórias, o desafio (para
um título que já tem sete anos) é como apresentá-las.
No perfil de Tony Bellotto, por exemplo, ao lado do texto que fala da
produção literária dele, colocamos um outro, em dourado, sobre Bellini,
detetive protagonista de seus livros. Para fechar, contamos em história
em quadrinhos a evolução da banda Titãs, que deve lançar novo disco em
maio. Já com a Lenise, em vez de editarmos um longo artigo, pedimos
que ela fizesse uma seleção de fotos fundamentais de sua carreira: dessa
forma, compreendemos a relevância da produção dela e também vemos
a atuação dos principais atores do país. Com Og Pozzoli, tivemos o privilégio de conhecer uma das coleções automotivas mais significativas do
país e destacamos quatro carros com um design e um estilo que não se
encontram mais nos modelos modernos. E, para acompanhar o perfil de
Victoria Philpott, reunimos em uma página os cafés da manhã que mais
chamaram a atenção em suas andanças e pesquisas pelo mundo.
Nos textos que acompanham o quarteto de personagens, alcançamos um
conjunto bem eclético. Apresentamos Torres del Paine, um parque nacional
no extremo sul da Patagônia chilena, pouco conhecido no Brasil, mas considerado um dos lugares mais lindos do mundo. Contamos a saga do cineasta
Samir Abujamra na África: ele estava em um jipe que explodiu durante a
gravação de um documentário no Saara Ocidental – e sobreviveu para narrar
como isso alterou seu jeito de ver a vida. Entrevistamos três frequentadores
da Sala São Paulo e três musicistas da Osesp (que está em festa graças à celebração de seus 60 anos) para entender melhor qual é a emoção da música
clássica ao vivo. Escalamos o escritor Ruy Castro para contar os detalhes de
uma partida de futebol de praia no Rio de Janeiro que deu o que falar na década de 1940. Ainda no Rio, visitamos a Ilha Rasa, fechada para o público e
endereço de um dos faróis mais emblemáticos da costa brasileira.
Reportagens e histórias de vida muito interessantes que inspiram nossas próprias escolhas e deixam esta edição atraente do começo ao fim.
Um abraço e boa leitura,
André Sapoznik
Itaú Personnalité
COLABORADORES
O jornalista RUY CASTRO, 66 anos, é autor de
biografias como O anjo pornográfico (sobre Nelson
Rodrigues), Carmen – Uma biografia (Carmen
Miranda) e Estrela solitária (Garrincha). Apaixonado
por música do século 20, escreveu Chega de
saudade: A história e as histórias da bossa nova. Em
2013, lançou Letra e música, coletânea de crônicas
escritas para a Folha de S.Paulo. Nesta edição, narra
a pelada no Leblon que reuniu a nata da cultura
nacional nos anos 40. “Conheço os detalhes dessa
história – é tudo verdade.”
Aos 35 anos de idade, o fotógrafo DANIEL
ARATANGY tem 26 atrás das lentes. Nascido
em Boston (EUA) e criado em São Paulo, ele fez
o primeiro curso de fotografia aos 9 anos. “Na
adolescência, clicava as ruas de dia e revelava à
noite.” Profissional desde 1998, hoje colabora para
revistas como Marie Claire e Playboy. Para esta
edição, Daniel enquadrou Tony Bellotto para a capa.
“Mesmo tímido, o cara é tão gente boa, generoso
e comprometido que as fotos fluíram muito bem”,
conta Aratangy.
Paranaense de Assis Chateaubriand, LUIZ
MAXIMIANO, 35 anos, entrou no mundo da fotografia
por acaso, em 2006, quando morou em Amsterdã
para ser missionário de uma ONG cristã. Começou
a registrar os projetos sociais em que se envolvia e,
no ano seguinte, ganhou o Canon Prize, na Holanda,
como “revelação”. Ano passado, recebeu o prêmio
Abril (melhor retrato) com uma série de boxeadores.
Hoje colabora para Veja, Rolling Stone, GQ e revistas
internacionais. Nesta edição, fotografou Og Pozzoli,
colecionador de carros.
DIVULGAÇÃO / LAURA ANCONA / PEPÊ SCHETTINO / ARQUIVO PESSOAL
Natural de Campina Grande (PB), o cineasta, ator e
escritor SAMIR ABUJAMRA, 44 anos, se considera
“um nômade pelo mundo”. Em janeiro, ele esteve
no Saara Ocidental filmando o documentário El
desierto del desierto e, junto à sua equipe, foi
surpreendido ao passar de carro sobre uma mina
antitanque. Ele fez fotos e o relato em primeira
pessoa dessa aventura, que você confere na matéria
“Tinha uma mina no meio do caminho”.
EXPEDIENTE
COLABORADORES
ARQUIVO PESSOAL / OTAVIO SOUSA / ARQUIVO PESSOAL / ARQUIVO PESSOAL
Editor Paulo Lima Diretor Superintendente Carlos Sarli Diretor
Editorial Fernando Luna Diretora de Criação Ciça Pinheiro Diretor
de Núcleo Tato Coutinho Diretor Financeiro Agenor S. Santos
Diretora de Publicidade e Circulação Isabel Borba Diretora de
Eventos e Projetos Especiais Proprietários Ana Paula Wehba
Diretor de Redação Décio Galina Editora Lia Bock Produtora
Executiva Kika Pereira de Sousa Assistente de Produção Juliana
Carletti Departamento Comercial Supervisora de Projetos
Especiais e Planejamento Comercial Ana Carolina Costa Oliveira
Assistente Comercial da Diretoria Gabriela Trentin Assistente
de Arte Marketing Publicitário Fabiana Cordeiro Gerentes de
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Comercial Aline Trida Para anunciar [email protected].
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MG Rodrigo Freitas PE Wladmir Andrade PR Raphael Muller
RJ Juliana Rocha RJ (Trip e Tpm) X² Representação RS/SC
Ado Henrichs SE Pedro Amarante SP Interior Daniel Paladino
Pesquisa de Imagens Aldrin Ferraz (coordenação) Bibliotecário
Daniel de Andrade Estagiárias Gabriela Fraga e Janaína Mattos
Produção Gráfica Walmir S. Graciano Produtor Gráfico Cleber
Trida Tratamento de Imagens Roberto Longatto e Roberto
Oliveira Revisão Ecila Cianni (coordenação), Janaína Mello,
Jaqueline Couto e Marcos Visnadi Projetos Especiais e Eventos
Coordenação Regina Trama Analista Mariana Beulke Trade e
Circulação Diretora Daniela Basile Analista de Trade Renata
Vilar Coordenadora de Assinaturas Andrea Fernandes Gerente
de Circulação Adriano Birello Analista de Circulação Vanessa
Marchetti Projetos Digitais Diretor de Mídias Eletônicas de
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Andreucci e Diego Maldonado Assistente de Arte Julia Vargas
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Braga Gerente de Negócios Izabella Zuanazzi Núcleo de Vídeo
Coordenação Ana Rosa Sardenberg Assistente de Produção e
Finalização Viviane Gualhanone Editor de Vídeo Pitzan Oliveira
TV Trip Direção Joana Cooper Diretora Assistente Anice
Aun Editora Daniela Guimarães Relações Públicas Taís Neri
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Colaboram nesta edição: Vanina Batista (direção de arte), Kiki
Tohmé (designer), Carlos Messias e Edmundo Clairefont (edição
de texto), Barbara Heckler, Carol Sganzerla, Décio Galina, Eduardo
Duarte Zanelato, Fausto Salvadori Filho, Juliana Carletti, Kelly
Cristina Spinelli, Luciana Lancelotti, Luis Patriani, Ruy Castro,
Samir Abujamra, Tato Coutinho (texto), Camila Fontana, Carol
Quintanilha, Daniel Arantangy, Felipe Pagani, Luiz Maximiano,
Marcelo Correa, Marcos Vilas Boas, Nelson Mello, Zeca de
Sousa (foto), Mauricio Pierro, Pedro Franz, Veridiana Scarpelli
(ilustração), Omar Bergea (make)
Comitê Itaú responsável por esta edição Fernando Chacon, André
Sapoznik, Cristiane Portella, Danielle Sardenberg, Camila Carneiro
e Elisangela Bonamigo Colaboradores DPZ Propaganda Marcello
Barcelos e Elvio Tieppo
Capa e quarta capa Daniel Arantangy
Revista Personnalité é uma publicação trimestral da Trip Editora
e Propaganda em parceria com o Itaú Personnalité.
Endereço para correspondência: rua Cônego Eugênio Leite, 767,
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A Trip Editora, consciente das questões ambientais e sociais,
utiliza papéis Suzano com certificado FSC
(Forest Stewardship Council) para
impressão deste material.
A Certificação FSC garante que uma
matéria-prima florestal provenha de
um manejo considerado social,
ambiental e economicamente adequado. Impresso na Pancrom – Certificada
na Cadeia de Custódia – FSC
Formada em arquitetura e urbanismo pela USP, a
paulistana VERIDIANA SCARPELLI abandonou os
desenhos de móveis e objetos em 2007, para se
dedicar à ilustração. Colabora com o jornal Folha
de S.Paulo e com revistas como GOL Linhas Aéreas
Inteligentes, Wine e Viagem & Turismo. Para a
Revista Personnalité, recriou o jogo que reuniu a
nata da cultura nacional no Leblon, em 1945. “Não
quis reproduzir um registro fotográfico e, sim, dar
um empurrão para que cada um imaginasse essa
pelada, curiosa e engraçada como deve ter sido.”
Os cliques do paulistano FELIPE PAGANI, 34 anos,
podem ser vistos tanto em publicações nacionais,
como Serafina e Vogue, como em estrangeiras:
Sunday Times, GQ China e Men’s Uno Hong Kong.
Para esta edição, o fotógrafo, residente em
Londres, realizou os retratos da inglesa Victoria
Philpott, a jovem blogueira de turismo que está
sempre em trânsito. “Embora estivesse atrasada
para embarcar para a Austrália, ela foi bem legal e
garantiu boas fotos”, ele relembra.
O paulistano CARLOS MESSIAS, 32 anos, é
mestre em literatura pela PUC-SP e jornalista
especializado em cultura pop. Edita o site de
música da Red Bull e colabora para as revistas
Audi, GOL Linhas Aéreas Inteligentes, Veja SP e
para o caderno “Ilustrada”, da Folha de S.Paulo.
Ele uniu o fascínio pelas letras e a paixão pelo rock
ao escrever sobre Tony Bellotto e Remo Bellini, o
principal personagem do titã. “Li o primeiro livro
com ele ainda na adolescência e sempre cultivei
um carinho pelo detetive”, diz Messias.
Com 14 anos de experiência em jornalismo,
FAUSTO SALVADORI FILHO, 35, é repórter da
revista Apartes, uma publicação da Câmara
Municipal de São Paulo. Seu trabalho lhe rendeu
uma menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog
de Direitos Humanos do ano passado. O grande
talento de Fausto é contar histórias humanas
e isso está evidente no perfil que ele fez do
colecionador de carros antigos Og Pozzoli
para esta edição.
SUMÁRIO
10 Cá entre Nós
Música, cinema, gastronomia, viagem –
dicas de quem sabe viver bem
15 Prestígio
NÃO É SÓ FACHADA
Premiado fotógrafo de moda e de publicidade, Bob Wolfenson
16
recorda a exposição com imagens de São Paulo que o inseriu
nas galerias de arte
16 “O MELHOR TRABALHO DO MUNDO”
Entre um desembarque da Tailândia e um embarque para a
Austrália, Victoria Philpott nos recebeu em um café de Londres
para contar como é a vida de uma blogueira de turismo
22 PRAZER, TORRES
Considerado um dos lugares mais lindos do mundo,
Torres del Paine, no extremo sul da Patagônia chilena,
ainda é pouco conhecido no Brasil
32 MUDANÇA DE HÁBITO
A discrição é a marca maior do trabalho de Lenise Pinheiro,
uma das mais importantes fotógrafas de cena do teatro
brasileiro. Por que então ela apareceu de freira para a sessão
de fotos de Revista Personnalité?
40 AOS SEUS LUGARES
Três músicos da Osesp e três frequentadores da Sala São Paulo
falam da emoção de estar diante da principal orquestra do país
32
FELIPE PAGANI / DANIEL ARATANGY / LUIZ MAXIMIANO / MARCOS VILAS BOAS
50
76
50 CORAÇÃO ROCK’N’ROLL
76 AUTO FALANTE
Entre o guitarrista e o escritor, o ídolo de rock e o detetive policial,
Quando está ao lado de um de seus 170 carros antigos, o
Tony Bellotto recupera o “espírito de garagem” que marca
colecionador Og Pozzoli dispara a contar a história de cada um
o melhor de sua produção
com entusiasmo. É como se os automóveis falassem, revelando
papas desobedientes e princesas ameaçadas de morte
60 AVISO AOS NAVEGANTES
Uma viagem à Ilha Rasa, no Rio de Janeiro, cujo farol, desde
84 TINHA UMA MINA NO MEIO DO CAMINHO
a inauguração em 1829, segue o mais importante dos 7.400
O cineasta Samir Abujamra entrou para uma rara estatística:
quilômetros de costa brasileira
sobreviveu à explosão de uma mina antitanque no Saara Ocidental,
onde filmou o documentário El desierto del desierto
68 A PIOR PELADA DA HISTÓRIA
Foi em 1945, na Praia do Leblon, o embate entre Copacabana e Ipanema.
Envolveu Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino... —
craques da literatura, mas pernas de pau no futebol
90 Primeira Pessoa
“NÃO FAÇO ESTARDALHAÇO”
A chef Carla Pernambuco escolheu uma batedeira que a representa:
“Faço mil coisas ao mesmo tempo e não tenho tempo para a fadiga”
CÁ ENTRE NÓS
VIAGEM, GASTRONOMIA E CULTURA – CONVIDADOS ESPECIAIS ABREM SUAS PREFERÊNCIAS
_
DAN STULBACH, ator
PASSE A PASSE
Corintiano doente, Stulbach recorda a virada da seleção sobre os soviéticos
na estreia da Copa do Mundo da Espanha (1982) e destaca golaço de Sócrates
POR LUIS PATRIANI
10
FICHA TÉCNICA
BRASIL 2 X 1 União Soviética
Segunda, 14/6/1982, estádio Ramón Sánchez
Pizjuán, Sevilha.
BRASIL Waldir Peres, Luizinho, Oscar, Leandro,
Júnior, Sócrates, Falcão, Dirceu (Paulo Isidoro),
Zico, Serginho Chulapa, Éder.
Técnico: Telê Santana.
UNIÃO SOVIÉTICA Dasaev, Chivadze,
Sulakvelidze, Demianenko, Baltacha, Bessonov,
Bal, Daraselia, Blokhin, Gavrilov (Susloparov),
Shengelia (Andreev).
GOLS Bal aos 34 minutos do 1º tempo;
Sócrates aos 30 e Éder aos 43 do 2º tempo.
DIVULGAÇÃO / FOTO DE ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO
“O gol da seleção brasileira que mais me marcou foi o golaço de empate
que o Sócrates fez na vitória por 2x1, contra a União Soviética, na estreia
da Copa do Mundo da Espanha, em 1982. Eu era um garoto de 11 anos,
torcedor do Corinthians, e aquela era a Copa dos meus sonhos. Perdê-la
significaria, assim como se mostraria depois, a maior derrota da vida.
Em campo, mais do que jogadores, havia heróis, legítimos personagens
saídos dos álbuns de figurinha que transitavam entre a fantasia e a
realidade. E o maior ídolo de todos era o Doutor Sócrates. O ícone do meu
Timão. O jogo começa e, aos 31 minutos do primeiro tempo, a URSS abre
o placar numa falha do goleiro Valdir Peres. A possibilidade da derrota
me assustou. Era terrificante. Um pesadelo. Até que, aos 29 minutos do
segundo tempo, a zaga soviética se atrapalha e a bola sobra para o rei
do calcanhar, que domina a pelota, dá um drible seco no primeiro, desvia
do segundo e emenda um canudo de fora da área, no ângulo direito do
gigante Dasaev. Apesar da desclassificação diante da Itália e da amarga
experiência infantil, aquele lindo gol ficará na minha memória como uma
obra de ficção, a pura demonstração do poder de um super-herói.”
CÁ ENTRE NÓS
_A MENSAGEM DA GARRAFA
ADRIANA BARRA, estilista
Da viagem para a Sicília, na Itália, em 2013, Adriana guarda
uma garrafa muito especial: Ben Ryé Passito di Pantelleria 2011
POR LUCIANA LANCELLOTTI
O NOME
Em árabe, a expressão Ben Ryé
significa “filho do vento”. A ilha
é árida, ventosa e de árvores
pequenas. A produção vinícola
fica nas encostas vulcânicas. Já
Donnafugata, em italiano, quer
dizer “mulher em fuga”, uma
alusão à história da rainha Maria
Carolina. Com a chegada de
Napoleão, em 1800, ela fugiu de
Nápoles para a Sicília, onde estão
os vinhedos da família produtora.
DIVULGAÇÃO / ALAMY/LATINSTOCK / DIVULGAÇÃO
“Em maio de 2013, fui para a Sicília e fiquei apaixonada por uma
vinícola, a Donnafugata, em Pantelleria, uma ilha bem pequena.
Foi onde conheci este vinho delicioso e muito específico. O fato
de ser doce não o restringe às sobremesas. Ele é tomado sempre,
em taças grandes, acompanhando as refeições. Foi tão marcante
que comprei vários. Trouxe uma garrafa que guardo até hoje a
sete chaves, pois sei que é difícil achar no Brasil.”
O RÓTULO
A ilustração de Stefano Vitale
marca a terceira versão da
etiqueta, que comemora o 20o
aniversário da primeira colheita.
Impressos, os símbolos da ilha: as
vinhas e as paredes de pedra dos
dammusi, como são chamadas
as casas típicas da ilha. Destaque
para o logo da vinícola, uma
mulher com cabelos esvoaçantes.
A SAFRA
Em 2011 os vinhedos de
Pantelleria tiveram um
ano ensolarado e quente,
produzindo vinhos de
excelente qualidade. A
edição de 2014 do Gambero
Rosso (guia de vinhos
italianos mais respeitado do
mundo) classificou o Ben
Ryé 2011 com sua cotação
máxima, os Tre Bicchieri.
O PRODUTOR
Fundada em 1983, a vinícola
Donnafugata tem no
comando a família Rallo,
com tradição de mais de 150
anos na produção de vinhos
Marsala e vinhedos em três
partes da Sicília: Marsala,
Pantelleria e Contessa
Entellina. Um dos ícones
do resgate do prestígio dos
vinhos sicilianos.
A UVA
100% Moscato de Alexandria,
conhecida localmente como
Zibbibo, colhida de vinhas
centenárias, em 11 vinhedos
diferentes. O nome Passito
vem do fato de as uvas ficarem
como passas, ao ar livre, durante
um mês. Com a redução da
água, o açúcar concentrado
da fruta produz vinhos
doces e encorpados.
11
CÁ ENTRE NÓS
_MEU CANTO
EDUARDO LEME, galerista
Da poltrona à mesinha, do cachorro à cabra, é tudo arte no
escritório do proprietário da Galeria Leme, em São Paulo
POR KELLY CRISTINA SPINELLI
MOBILIÁRIO BRASILEIRO
“Coleciono mobiliário brasileiro. Estas
poltronas da Lina Bo Bardi [1914-1992]
são lindas. Acho que comprei em um
leilão há uns cinco anos.”
HEREDITARIEDADE
“Ganhei esta Nossa Senhora da
minha mãe, e ela herdou do meu
avô. É linda e tem valor sentimental
importante por já ter passado por
várias gerações da família.”
PEQUENO GIGANTE
“Este cachorrinho é inspirado no
famoso cachorro balão do escultor
[norte-americano] Jeff Koons,
originalmente enorme.”
12
DESIGN DIFERENTE
“Não comprei esta mesinha de
Giuseppe Scapinelli [1911-1982] pelo
valor comercial, mas porque acho
que ela tem um design diferente,
que me agrada. Devo ter
encontrado em um antiquário.”
SOM DE CABRA
“Sobre a mesa tenho esta peça do
português João Pedro Vale. Gostei
muito da ideia dele, de usar guizos de
cabras na obra. O resultado é ótimo.”
CAMILA FONTANA
PRESENTE DE ARTISTA
“Adoro esta escultura dos
caquinhos. Ganhei de David
Batchelor, um artista que
representamos e expôs aqui
na galeria. É muito bacana,
e não muito comum, ser
presenteado pelos artistas.”
CÁ ENTRE NÓS
_TRILHA SONORA
PATRICIA PALUMBO, produtora cultural
À frente do programa Vozes do Brasil, pela Eldorado FM, a jornalista
paulista seleciona de jazz a rock, de Thelonious Monk a Karina Buhr
POR JULIANA CARLETTI
1
2
3
1. “SPIRIT IN THE DARK”,
ARETHA FRANKLIN
“Era criança e descobri este disco
de 1970 com meu tio. Ali eu vi que é
possível louvar a Deus mexendo os
quadris. A faixa homônima é uma
que não pode faltar quando a festa
é para dançar.”
2. “RUBY, MY DEAR”,
THELONIOUS MONK
“Recorro a esta coletânea [Monk
alone: The complete Columbia solo
studio recordings – 1962-1968] toda
vez que preciso descansar minha
cabeça de tanto ouvir música. A
dinâmica do pianista tem muito
silêncio, cheia de pausas e vazios.”
DIVULGAÇÃO / DIVULGAÇÃO
3. “CAMINHOS CRUZADOS”,
JOÃO GILBERTO
“O som [do álbum Amoroso,
de 1976] dialoga com os standards
do jazz norte-americano. Foi a
primeira música mais adulta
que ouvi na vida.”
4. “SEDUZIR”, DJAVAN
“Quando tinha 15 anos, meus
amigos e eu passávamos dias
inteiros na praia, em São Sebastião,
ouvindo o disco Seduzir [1981]
e pensando nos romances que
ainda não tínhamos vivido.”
5
6
7
4
5. “UM MÓBILE NO FURACÃO”,
PAULINHO MOSKA
“No final dos anos 90, as coisas
estavam um pouco repetitivas
em termos sonoros e o disco
Móbile [1999] deu uma boa
mexida rítmica no cenário.”
7. “AZUL DA COR DO MAR”,
TIM MAIA
“O disco [homônimo, de 1970]
foi uma contribuição marcante
do meu pai à minha formação
em música pop. A gente ouvia muito
essa canção em casa, na vitrolinha.”
6. “MANIA DE VOCÊ”, RITA LEE
“Tinha 14 anos. A faixa vinha nessa
onda de amor explícito que definia
o álbum Rita Lee, de 1979. A música
embalava a brincadeira da tarde.
Eu levava as minhas irmãs pra andar
de patins e pensava naquelas
letras deliciosas, mas ainda
não decifrava tudo aquilo.”
8. “EU MENTI PRA VOCÊ”,
KARINA BUHR
“Em 2010 a Karina fez um disco
com o mesmo nome dessa canção.
É um trabalho muito roqueiro sem
nenhuma guitarra. Assim, ela trouxe
o que eu acho de mais interessante
na música brasileira de todos os
tempos, que é a mistura.”
13
8
CÁ ENTRE NÓS
_ÁGUA NA BOCA
ANDRÉ CASTRO, chef
POR KELLY CRISTINA SPINELLI
Ele é carioca na certidão, mas não no sotaque. O acento de
André Castro vem de Brasília, onde morou a partir dos 4
anos de idade e aprendeu a jogar capoeira. Depois, mudouse para Salvador e tomou gosto pela cozinha abrindo e
administrando bares como o Casa Amarela. Ele também
rodou pela Europa, de onde trouxe expressões como cuisine
à la minute e a precisão técnica que hoje aplica no D’Olivino,
famoso pela variedade de azeites, do leve ao frutado, que
entram em cena para acompanhar delícias como o Tagliatelle
Nero Alla Pescatora, que ele ensina aqui.
TAGLIATELLE NERO ALLA PESCATORA
Ingredientes
Molho
120 g de polvo pré-cozido
120 g de lula cortada em tiras ou anéis
180 g de camarão limpo e eviscerado
50 ml de azeite de oliva extravirgem
3 colheres (sopa) de manteiga gelada
100 ml de vinho branco de boa qualidade
100 ml de caldo de peixe
16 tomates cereja cortados em quatro
2 dentes de alho finamente picados
1 colher (sopa) de cebola
finamente picada
Ervas frescas picadas – salsa,
manjericão, tomilho e alecrim
Sal e pimenta-do-reino moída na hora
Modo de preparo
Molho: Aqueça o azeite, adicione o alho,
a cebola e, assim que ele liberar seu
aroma, adicione os frutos do mar
previamente temperados com sal e
pimenta. Após 2 minutos, adicione
o vinho e o caldo de peixe, que irão
finalizar o cozimento dos frutos do mar.
Salpique as ervas picadas e junte o
tomates, reservando alguns para a
finalização do prato. Tempere com sal
e pimenta-do-reino.
Finalização: Cozinhe a massa em água
fervente salgada. Assim que a massa
estiver no ponto certo, leve-a à panela com
molho fervente, junte a manteiga e salteie
até montar o molho. Corrija os temperos
se necessário. Leve ao prato, regando com
um fio de azeite extravirgem, e finalize
com cerefólio e tomate cereja.
Rendimento: 4 porções.
Tempo de preparo: 30 minutos.
1. UM INGREDIENTE INDISPENSÁVEL.
Um abstrato ou um concreto? Abstrato:
energia. Concreto: azeite.
Tenho também uma tatuagem referente à
capoeira. Mas sou professor de capoeira,
não posso dizer que é um hobby.
2. COMEÇO NA COZINHA.
Foi a cozinha que me escolheu. Nunca
tinha pensado em ser chef. Primeiro fui
administrador. Comecei abrindo um barrestaurante em Salvador, depois outro, até que
decidi ir estudar e me aperfeiçoar mais.
4. SABOR DE INFÂNCIA.
A galinhada de parida da minha mãe.
Sabe o que é isso? Um ensopado caseiro da
galinha que se fazia para engrossar o leite das
mulheres que tinham bebê. Por isso é
“de parida”.
Experimente
D’olivino
R. Haddock Lobo, 1.159
São Paulo (SP)
Tel.: (11) 3068-9797
3. UM HOBBY.
A música. Tenho uma clave de sol tatuada
na mão. O violão é minha válvula de escape.
5. A SUA COZINHA.
A cozinha do D’olivino é o que se chama de
à la minute. É tudo artesanal e feito na hora.
O D’Olivino faz parte do Menu
Personnalité. Conheça os pratos em:
itau.com.br/personnalite/experiencia
14
Leia no tablet a receita
da massa negra
NELSON MELLO
Por trás da cozinha mediterrânea do D’Olivino, um chef brasileiro
com formação internacional — e boas doses de energia e azeite
PRESTÍGIO | BOB WOLFENSON
POR Kelly Cristina Spinelli
_
NÃO É SÓ FACHADA
ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO BOB WOLFENSON
Premiado fotógrafo de moda e de publicidade, Bob Wolfenson recorda a exposição
com imagens de São Paulo que o inseriu nas galerias de arte
É difícil escapar dos rótulos. Se um ator é
bom comediante, ele está fadado a fazer
sucesso com suas piadas, mas terá dificuldade em conseguir papéis dramáticos.
Não é diferente com músicos, dançarinos
e fotógrafos – Bob Wolfenson, por exemplo. Aos 60 anos, ele está há mais de três
décadas no mercado. Primeiro, consagrou-se como um dos grandes nomes de
ensaios de moda e produções publicitárias. Colecionou prêmios. Na Playboy, fez
história enquadrando celebridades como
Maitê Proença e Cleo Pires.
Em 2004, Wolfenson decidiu mostrar
outras facetas de seu trabalho. “Um dos
grandes turning points da minha carreira
aconteceu quando fiz a exposição AntifaRETRATO DO EDIFÍCIO COPAN, EM SÃO PAULO, PARTE
DA EXPOSIÇÃO ANTIFACHADA, DE BOB WOLFENSON
chada e Encadernação dourada na Faap
[Fundação Armando Alvares Penteado]”,
conta. “Até então, eu era o Bob Wolfenson da moda, das mulheres, da publicidade. A partir desse trabalho, consegui ter
uma inserção maior entre as galerias.”
A mostra reuniu dois ensaios que
não representavam nem a moda nem os
comerciais. Antifachada englobava cerca
de 40 fotos de São Paulo, cidade onde o
fotógrafo nasceu e cresceu. Encadernação dourada era composta de 70 fotos de
situações circunstanciais, algo como um
álbum de fotografias da trajetória de Bob
em seus caminhos de rotina.
“Eu tinha essa inquietação interior,
trabalhos que queria mostrar”, relembra.
15
“Rubens Fernandes, curador de fotografia da Faap, conseguiu um mês para eu
expor – e com dimensões grandiosas.
Foi quase um trabalho muralista.”
“Antifachada são fotos de São Paulo
que remetem a paisagens da minha
infância [cresceu no bairro Bom Retiro],
esse amassado de concreto, essa certa
decadência da região central. E Encadernação dourada é um livro de memórias, quase um caderno de notas. A partir desses trabalhos fui aceito em outro
circuito. Desde então, fiz umas quatro
ou cinco exposições, publiquei livros e
desenvolvi muito esse meu outro lado.”
Tudo isso sem sair de cena do mundo
da moda e da publicidade.
Baixe a Revista Personnalité no tablet
e assista ao vídeo com Bob Wolfenson
POR Eduardo Duarte Zanelato, de Londres FOTO Felipe Pagani
“O
MELHOR
TRABALHO
DO
MUNDO”
No primeiro e-mail que trocamos, Victoria Philpott
respondeu do Vietnã. Na semana em que aceitou nos
receber, acabara de voltar da Tailândia. Na entrevista
em um café de Londres, planejava o embarque para
a Austrália. Viajante profissional, a inglesinha de
28 anos vive mapeando trilhas e destinos pelo mundo
em um dos mais concorridos blogs do Reino Unido
PERSONNALITÉ
N a Gâmbia, um pequeno país na costa africana, há um hotel
tão tranquilo que os ocupantes dos apenas nove chalés,
com deques para um lindo rio, são, na verdade, coadjuvantes. Os
verdadeiros hóspedes do Mandina Lodge são as 580 espécies de
pássaros que vivem ali, nas cercanias de um paraíso natural, a
floresta Makasutu.
Em Cienfuegos, no litoral cubano, um restaurante pequenino
oferece uma grande experiência gustativa. Pouca gente haverá de
negar que comer um camarão vivo no Noma, em Copenhagen,
é mesmo um momento inesquecível. Mas quem não quiser
aguardar a longa fila de espera para experimentar a iguaria em
um dos mais famosos restaurantes do mundo e preferir dar uma
chance às lulas cozidas e aos camarões empanados da cozinha do
El Tranvia, guardará a certeza de que há tanto ou mais prazer na
simplicidade de um bom e velho prato feito à moda caseira.
Esqueça Berlim, Nova York, Miami ou São Paulo. Uma
grande e desconhecida arte de rua povoa os muros da pequena
cidade africana de Kubuneh. Um dos bairros mais charmosos
e coloridos do planeta chama-se Bo-Kaap, na Cidade do Cabo.
Em Londres, o creme do novo rock inglês (e internacional, claro)
ocupa o palco do Village Underground, sob os arcos pelos quais
passam os trilhos que levam à estação de Shoreditch. Falando
em música, existem poucos festivais tão peculiares quanto o que
celebra os laços entre Japão e Vietnã. Acontece em agosto, em
Hoi An, uma linda e histórica cidade do sudeste asiático.
UMA ROTINA INCOMUM
Sentada em um café da estação de Waterloo, em Londres,
Victoria Philpott lista uma série de dicas de viagem tão
fora do âmbito dos guias de turismo que é quase natural
a fama que conquistou em tão pouco tempo. Aos 28 anos,
Vicky é uma das blogueiras de viagem mais comentadas
da Inglaterra. Seu blog, Vicky FlipFlop Travels (As viagens
de Vicky Chinelo de Dedo, numa tradução livre; o apelido,
dado por amigos, é uma corruptela do sobrenome), constrói
uma ponte entre a vontade de conhecer o mundo e a ciência
de como fazê-lo bem.
Por conta de suas experiências, a inglesa acabou
convidada a gerenciar o conteúdo de uma importante rede
social, a GapYear, dedicada a quem pretende tirar sabáticos
ou mochilar. Victoria é também a responsável pela equipe
de especialistas do site Roundtheworldexperts, o principal
da Inglaterra na oferta de passagens e planos a quem quer
jornadas que circulem o globo. Ela ainda escreve para
revistas e jornais, como o gigante Daily Mail. Por fim, é
consultora de grandes companhias do continente. VICTORIA PHILPOTT
“VIROU UMA
OBSESSÃO. EMENDEI
UM PERÍODO DE
MUITAS VIAGENS
ALEATÓRIAS”
Em 2010, a RailEurope, maior empresa do mundo na
venda de bilhetes de trem, enviou Vicky para uma viagem
de cinco meses pela Europa. “O melhor. Trabalho. Do
mundo!”, ela diz, com a exclamação e as pausas todas. Sua
missão: mapear destinos que a agência pudesse explorar. Nessa toada, Victoria passa ao menos três meses por
ano viajando. E, a cada quatro semanas, uma se dá longe
de casa. Nosso encontro ocorreu em um fim de tarde no
meio do caminho entre o escritório onde trabalha, na
região sudeste, e sua casa, nas cercanias de Abbey Road.
O local, escolhido por ela, permitiria minutos a mais
de papo numa semana de preparativos para a viagem
seguinte: Austrália. “O que me motiva é um negócio bem
simples: amo visitar novos lugares”, diz. “E amo fazer
coisas diferentes, o máximo possível.”
TURNÊ EUROPEIA
ARQUIVO PESSOAL
Victoria nasceu em Barton-under-Needwood, um vilarejo
de 5 mil habitantes no interior inglês. Aos 18 anos, entrou
na faculdade de jornalismo. Nas férias, atravessou o
Atlântico e trabalhou em acampamentos de verão em
Nova York. “Conheci tanta gente interessante, e de toda
parte”, diz. “Fui percebendo que não era muito aberta
para o mundo.” Daí por diante, definiu o que queria
da vida. “Virou uma obsessão. Emendei um período
de muitas viagens aleatórias. Fui à Austrália. Conheci
todo o resto do meu país, visitei a Espanha.” Quando
se formou, em 2007, Victoria se mudou para Londres.
Por algum tempo, trabalhou em editoras de revistas. Ao
juntar dinheiro suficiente, empacotou as coisas e, com o
namorado, partiu em um mochilão. O casal ficaria quatro
meses rodando por Espanha, França, Itália, República
Tcheca, Sérvia e Eslovênia. Entre os espanhóis, Vicky ensinou inglês e pintou casas
em troca de moradia. Fez o mesmo na Itália. “A forma como
nos relacionamos com as pessoas dessas cidades pequenas
foi a melhor parte da viagem”, conta. “É completamente
diferente de só ficar visitando os pontos turísticos, o que
também fizemos, evidentemente. Mas percebi nisso um
jeito de mesclar as experiências e ter uma ideia mais real da
cultura de um país.”
Foi aí que Vicky decidiu transformar turismo em ganhapão. Ao voltar a Londres, conseguiu um emprego no site
Hostel Bookers. Parte do trabalho era acompanhar blogs e
publicações impressas para pescar dicas de viagem para
os clientes do portal. “Lia tudo aquilo e pensava: ‘Também
posso fazer isso!’.” Nesse ponto, decidiu criar seu blog. DE CIMA PARA BAIXO, RODA-GIGANTE NA FEIRA DE ABRIL EM SEVILHA,
ESPANHA; TRÂNSITO DE GÔNDOLAS EM VENEZA. NA PÁGINA AO LADO,
A ROTINA SELVAGEM OBSERVADA POR VICTORIA DURANTE SAFÁRI NO
SERENGETI NATIONAL PARK, NA TANZÂNIA, EM 2012
19
PERSONNALITÉ
_
Volta ao mundo em 10 cafés da manhã
Para Victoria Philpott, a comida é parte fundamental de uma viagem. Ela listou em
seu blog as refeições matinais mais significativas (e curiosas) de alguns países
2
1
3
4
9
8
5
6
7
10
1. ESCÓCIA
“Uma alternativa ao café britânico é essa
opção em que o bacon, os ovos e o feijão
vêm acompanhados por Haggis, iguaria
grossa] gigante mergulhado no mel. Não
quentinha de noodles misturado com ovos,
típica recheada por vísceras de ovelha.”
conseguia parar de comer!”
vegetais e temperos picantes?”
2 INGLATERRA
5. BAHAMAS
8. PORTUGAL
“Poucos digerem bem a mistura de ovos
“Os grãos dão tom ao desjejum local. Essa
“Em estilo art nouveau, o Café Majestic, no
mexidos, bacon, salsicha, torradas e, acre-
espécie de canjica surge com cobertura de
Porto, é experiência gastronômica farta.
dite, feijão com molho de tomate logo no
carne ou camarão para reforçar o sabor.”
Provei o café continental com champanhe.”
desjejum. Mas é uma das marcas do país.”
6. JORDÂNIA
9. EUA
3 JAPÃO
“Homus, falafel e a coalhada seca labneh
“Panquecas com bacon, melado e mirtilos
“Tofu com peixe, arroz e molho de soja. Um
servidos ao lado de azeite, salsicha de
são um delicioso golpe nas coronárias.”
prato leve e tradicionalíssimo.”
cordeiro, geleias e manteiga.”
4. MARROCOS
7. MALÁSIA
“Pão de centeio, queijos, cereais, salame,
“Provei um crumpet [espécie de panqueca
“Que tal abrir o dia com uma tigela
presunto, patês, mel e chocolate.”
10. DINAMARCA
20
VICTORIA PHILPOTT
hienas, é uma coisa fantástica.” A visita à Cidade de Pedra,
Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco, é uma
parada que a blogueira recomenda.
Ainda na lista de destinos prediletos, a jornalista
aponta para Cuba. Compartilha uma dica: “Cuba pode
ser conhecida de dois jeitos: existe a Cuba do [escritor
americano Ernest] Hemingway, com todos os locais em
que ele viveu, bebeu, escreveu. E tem a Cuba de quem se
hospeda nas ‘casas de particulares’ [quartos em residências
de cubanos]. É uma maneira única e confortável de entrar
em contato com a cultura local.”
Até hoje, Cuba resume as experiências latino-americanas
de Victoria Philpott. A blogueira reconhece o furo e pretende
tapá-lo. México, Costa Rica e Colômbia devem virar textos
em breve. “E tem o Brasil, claro. Mas sempre me vem à
cabeça aquela imagem de mulheres exuberantes andando
pela praia e devo confessar que me assusto com a ideia de ser
comparada a elas”, brinca. Pergunto, por fim, se dentro dessa rotina sem rotina
há espaço para os planos da vida comum: comprar um
apartamento, ter filhos. “Ah, eu ia adorar viajar com
crianças. Vai ser mais difícil, mas vou fazer funcionar. É
muito melhor dividir esses momentos.” Tendo pisado em
quase 40 países, ela tem uns 150 pela frente. Chão para
percorrer não falta. ARQUIVO PESSOAL
SOZINHA EM UMA ILHA AFRICANA
Na volta de seu mochilão, continuou trabalhando do jeito que
pôde, mas o primeiro passo para engrenar na carreira era ser
inflexível: toparia apenas serviços em empresas relacionadas
à sua paixão. Nos intervalos, mais viagens. Passou a buscar
um olhar distinto da concorrência. Victoria distribuía dicas
para pessoas que não querem “largar tudo e viver viajando”.
Ela explica: “Não concordo com essa visão de que as
pessoas só terão suas vidas mudadas se passarem três meses
longe de casa. Acredito em outra coisa: ter experiências
transformadoras aproveitando as férias, do tamanho que for”.
A visão pragmática encontrou um bom público. “Entendo
que a maioria das pessoas goste de viajar, mas nem todas
querem abandonar suas vidas para fazer isso.” Mas faltava
fôlego financeiro ao blog. Ela, então, recorreu a concursos
culturais. Venceu três, que lhe renderam passagens pela
Tanzânia, pelo Egito e pela Holanda.
A viagem a Amsterdã foi a mais “convencional”. No Egito,
visitou o balneário de Sharm-el-Sheikh, um destino de praias
paradisíacas e mergulho de qualidade. A experiência mais
recompensadora surgiu em Zanzibar, um conjunto de ilhas
na Tanzânia. Sob efeito colateral de remédios contra malária,
Vicky tinha sonhos que amplificavam a experiência de cruzar
a região sozinha. “Talvez por isso eu tenha me impressionado
com os sons dos animais durante a noite. Ouvem-se leões,
NO ALTO: VICKY OBSERVA A PAISAGEM EM FEZ, NO MARROCOS
21
FOTO: DÉCIO GALINA
CLÍMAX DA CAMINHADA DE 18 QUILÔMETROS
PARA A BASE DAS TORRES EM DEZEMBRO DE 2014.
QUANDO O TREKKING É FEITO DOIS MESES ANTES,
A SUPERFÍCIE DO LAGO AINDA ESTÁ CONGELADA
POR Décio Galina, de Puerto Natales, Chile
PRAZER,
Considerado um dos lugares mais lindos
do mundo, Torres del Paine, no sul do Chile,
ainda é pouco conhecido no Brasil
TORRES
– Já foi para Torres del Paine?
– Desculpa, pra onde?
São três pernas de pouco mais de
4 horas de viagem: voo São Paulo-Santiago, conexão para Punta Arenas
(banhada pelo Estreito de Magalhães,
quer dizer, no fim do mundo) e van até
o parque nacional. Mesmo famoso mundialmente graças aos lagos, glaciares e
montanhas lindas de morrer, poucos
turistas visitam o lugar: de março de
2012 a fevereiro de 2013 foram 155.952 –
só 6.349 (4%) brasileiros. A região atrai
principalmente pelas caminhadas para
23
todos os níveis de condicionamento –
de trekkings de 1 hora em trilhas planas
até percursos de mais de 8 horas, com
bastante aclive e terreno acidentado.
A dramaticidade do relevo é temperada
por fortes rajadas de vento e repentinas mudanças climáticas. É possível se
hospedar dentro e próximo ao parque
ou na cidade de Puerto Natales (a 147
quilômetros de Torres). A Revista Personnalité apresenta os destaques do
parque da perspectiva de três de seus
melhores hotéis: The Singular, Tierra
Patagonia e Patagonia Camp.
THE SINGULAR
“Atenção, silêncio. Estamos na casa dele
– e nem sequer fomos convidados.”
Ficamos, então, quietos, agachados,
como arbustos no topo do Cerro Benítez (550 metros), equilibrando o
corpo entre rajadas de vento e a visão
da Laguna Sofia, lá embaixo. Mais
próximo, porém, a uns 40 metros, um
casal de condores (símbolo chileno),
curte a brisa, sem grandes planos de
bater asas dali. Enorme a expectativa
de assistir de perto (e de cima) ao voo
do bicho que pode ter 1,10 metro de
altura e uma envergadura de 3,20 metros. Vinte minutos de espera e... nada.
No que pensamos em nos mover para
ir embora, o condor se atira – e parece
que vamos juntos a ponto de sentir
frio na barriga. Sem bater as asas ne-
nhuma vez, ele plana, enfrenta a fúria
do vento com desdém e usa as correntes
para voltar ao ninho.
O show se repete mais duas vezes
para os quatro hóspedes liderados por
dois guias do hotel The Singular. O
ápice das 4 horas e meia de trekking
é como um desses filmes que grudam
na memória e você não esquece nunca
mais. Na van para o hotel, o silêncio
mostra que todos ainda estão na companhia do condor.
Os alicerces do Singular são centenários. O hotel ocupa o antigo frigorífico Bories, construído pela La Sociedad
24
Exploratora de Tierra del Fuego de 1905 a
1915. Durante 70 anos, o Bories processou
e exportou a produção ovina da Patagônia
para a Europa. O prédio em estilo vitoriano foi declarado Monumento Histórico
Nacional em 1996, passou por uma reforma de mais de dez anos (o maquinário
inglês foi preservado) e abriu como hotel
de luxo em novembro de 2011. História
à parte, uma nova ala, de três andares,
foi erguida para acomodar 54 quartos
(45 metros quadrados) e três suítes (70
metros quadrados) – as janelas panorâmicas, com vidro do chão ao teto, são
espetaculares nos dois casos: 6 e 12 meACIMA, THE SINGULAR, ANTIGO FRIGORÍFICO QUE VIROU
HOTEL DE LUXO, A 5 QUILÔMETROS DA CIDADE DE PUERTO
NATALES; AO LADO, BIKE NOS ARREDORES DA LAGUNA SOFIA
E CAIAQUES NO GLACIAR SERRANO
DIVULGAÇÃO
Arquitetura secular e maquinário inglês
tros de comprimento. A vista é a mesma para todos: oceano Pacífico com o
fiorde Última Esperança ao fundo.
Do píer em frente ao hotel, sai a
embarcação com dois motores de 250
cavalos, exclusiva para hóspedes, para
conhecer (ou pelo menos tentar...) os
glaciares de Serrano e Balmaceda, no
Parque Nacional Bernardo O’Higgins, o
maior do Chile. Na primeira tentativa,
a navegação de 1 hora e 15 minutos teve
que ser abortada graças a uma repentina mudança de vento e de elevação
das ondas. No dia seguinte, deu não só
para se emocionar aos pés dos glaciares
como, na volta, para pedalar até Puerto
Natales e provar a cerveja artesanal Baguales, produzida pelo escalador Daniel
Darrigrandi. “Baguales são os cavalos
selvagens que ficam em uma área remota de Torres. A palavra virou verbo:
depois da temporada, quando descíamos da montanha após trabalhar, nós,
guias, gostávamos de farrear, beber com
os amigos, bagualizar...”, explica Daniel.
Algumas cervejas mais tarde, com um
baita vento contra na cara, foi impossível pedalar para o hotel. Hora de andar
e notar como são especiais as nuvens
que desenham o céu patagônico.
AARQUIVO PESSOAL
DIVULGAÇÃO
/ GETTY IMAGES
“SE O VENTO
SOPRAR
FORTE
DEMAIS,
DEITEM NO
CHÃO”
TIERRA PATAGONIA
Inspirado no vento, hotel some na paisagem
“Se o vento soprar forte demais, vou
gritar para deitarmos no chão. Por favor, obedeçam na hora e só levantem
quando eu disser.” As palavras do guia
Carlos Miranda Toledo, 29 anos, nascido em Punta Arenas, com 13 anos de
experiência em Torres del Paine, fazem
parte das instruções para a realização
do trekking mais emblemático (e difícil)
do parque: a Base das Torres, caminhada puxada de 18 quilômetros. São cerca
de 8 horas de pernada por três trechos
bem distintos: aclive suave, mas constante, por terreno árido, aberto e sujeito
a rajadas capazes de derrubar a pessoa;
bosque sombreado predominantemente
plano e, para fechar, um aclive íngreme,
de pedras soltas e sem proteção dos
ventos. A ventania deu as caras, mas
não a ponto de nos jogar no chão – foi
preciso, porém, em três ocasiões, fazermos uma espécie de “trenzinho”,
agarrando um nas costas do outro, para
evitar sair voando como uma folha de
papel penhasco abaixo. O guia Carlos
(especializado em birdwatching) é desses
craques que sabem dar a dose exata de
informação, mesclando curiosidades da
flora e da fauna com histórias dos nomes
que batizam as atrações locais, como o
lago Nordernskjöld, sobrenome do geólogo sueco Otto (1869-1928), da Universidade de Uppsala, explorador polar que
fez importantes mapas da região.
Esse extremo cuidado com a formação da equipe de funcionários e guias é
um dos diferenciais do Tierra Patagonia
26
Hotel & Spa, aberto em dezembro de 2011
e que já tem os turistas brasileiros como
segundo principal mercado (30%) – só
perdem para os norte-americanos (35%).
Faz toda a diferença também realizar a
subida à Base das Torres com um guia
exclusivo. Ao atingir o objetivo (o início
do trekking é a 135 metros de altitude; o
fim, a 886 metros), ainda engasgado com
a emoção causada em ver de perto os três
picos de granito que dão nome ao parque
(Torre Sur, 2.850 metros; Central, 2.800
metros e Norte, 2.243 metros), com um
lago em primeiro plano e o céu azul como
pano de fundo, Carlos saca da mochila
DIVULGAÇÃO
“SE O VENTO
SOPRAR
FORTE
DEMAIS,
DEITEM NO
CHÃO”
algumas surpresas: sopa (quentinha) de
tomate, espeto de legumes, azeitonas
e vários tipos de queijo (como se não
bastassem os sanduíches de salmão, de
rosbife e os chocolates que recebemos
no início da caminhada). Como um bom
guia, Carlos sabe sair de cena no momento certo. Ficamos ali, mais de 1 hora,
acompanhando a sombra das nuvens
ligeiras sobre a superfície verde do lago.
Tontos, não por falta de ar, mas pela beleza acachapante. Ao voltar de uma aventura como essa tudo o que se deseja é
AO LADO, O HOTEL TIERRA PATAGONIA, PARECE QUE NÃO
ESTÁ NA FOTO, MAS É ELE ALI, ENTRE OS ARBUSTOS E O
LAGO SARMIENTO. NO ALTO, ICEBERGUES NO LAGO GREY
chegar logo ao hotel – e aí a vantagem de
hospedar-se no parque: evitar cerca de 3
horas de traslado (ida e volta) até Puerto
Natales. Retornar ao Tierra, no entanto,
não significa ficar longe da natureza. Pelo
contrário. À margem do lago Sarmiento,
os 40 quartos, distribuídos em dois andares, são voltados para o Maciço del Paine,
bem como toda a área comum, dividida
entre o restaurante, lareira e ambientes
aconchegantes de leitura (ou para fazer
nada, só olhar as montanhas!), debruçada
sobre uma enorme parede de vidro que
27
dá a impressão de ser uma tela de cinema
transmitindo o dia inteiro um especial da
National Geographic (até a piscina aquecida coberta tem parede inteira de vidro).
O hotel foi idealizado para desaparecer
no cenário natural. “Ele é inspirado no
vento patagônico. Nasceu como mais
uma duna na paisagem”, comenta o diretor executivo do Tierra, Miguel Purcell.
“O projeto arquitetônico de Cazu Zegers,
Rodrigo Ferrer e Roberto Benavente não
deixou o hotel como protagonista da
área, mas, sim, como mais um elemento.”
_
Parque Nacional Torres del Paine
MAURÍCIO PIERRO
Local tem trilhas para trekking, cavalgada e contemplação da natureza
28
PATAGONIA CAMP
DIVULGAÇÃO
Cabana da Mongólia debruçada sobre o lago
Normalmente, não é simples chegar a um
ger (lar, em mongol) – a cabana redonda
típica da rotina nômade da Mongólia.
Ainda mais se ela estiver perdida em uma
estepe com cães de guarda fazendo a segurança do rebanho. Talvez por isso seja
surreal avistar os 18 gers às margens do
lago Toro (sem nenhuma dificuldade de
acesso ou cachorros pulando na sua canela): são as cabanas de luxo do Patagonia
Camp. Com 20 metros quadrados de área,
8 metros quadrados para banho e 25 metros quadrados de terraço, cada ger é ligado ao hotel por passarelas suspensas de
madeira que cruzam o bosque de coigues.
Diferentemente dos gers mongóis, que
não têm janelas, esses possuem verdadeiros mirantes do lago e de parte do Maciço
del Paine. Deitado na cama, as estrelas
aparecem de brinde pela cúpula transparente no topo do aposento. Vento e chuva
são ouvidos (e sentidos) com mais intenNO ALTO, QUATRO DAS 18 CABANAS DO
PATAGONIA CAMP ÀS MARGENS DO LAGO TORO
sidade – mas nada que comprometa o
conforto e o prazer de se hospedar aqui.
Decidir por um hotel dentro do
parque ou próximo à entrada, como é o
caso do Patagonia Camp, potencializa
a experiência de deparar com animais
como guanacos e nhandu – sem contar
a expectativa de ver um puma, o que é
raro, mas acontece. Para não ser pego
de surpresa pelos pumas, um grupo de
guanaco sempre deixa um dos seus no
topo do morro, observando. Veja bem.
O fato de estar em Torres facilita a
realização de passeios de longa duração,
como a volta de 3 horas de catamarã
pelo lago Grey até as paredes de gelo do
glaciar Grey: 6 quilômetros de largura
e cerca de 40 metros de altura. No percurso, icebergues que se desprendem do
glaciar. Vale a pena ir sem pressa e ter
tempo para caminhar pela praia de areia
fofa e escura antes do embarque.
29
Entre as cavalgadas disponíveis no
parque, a no Sector Serrano dá a chance de
ver o encontro da água cinza do rio Grey
com a azul do rio Serrano, em um passeio
de 3 horas. Os trekkings, claro, também
são facilitados quando o hotel está próximo ao coração do parque. O do Vale do
Francês tem 17 quilômetros, mas é bem
menos puxado do que o da Base das Torres e começa com uma maravilhosa ( juro
que gostaria de evitar esses adjetivos) travessia do lago Pehoé. Mais tranquilo ainda
é o percurso de 8 quilômetros do Mirador
Cuernos, uma clássica vista do parque.
Menos visitada, mas não menos incrível,
é a laguna Azul. Se você der sorte, pegará
um dia com pouco vento, fenômeno raro
que transforma a superfície do lago em um
espelho das Torres. Fica bonito demais.
Bonito a ponto de nem querer explicar
exatamente quanto, só para não parecer
exagero da nossa parte.
Baixe a Revista Personnalité no tablet
e assista ao vídeo de Torres del Paine
VICTORIA PHILPOTT PERGUNTA:
QUANDO
FEZ A FOTO
QUE MAIS
CAPTOU A
ATMOSFERA
DO PALCO?
30
LENISE PINHEIRO RESPONDE:
Acredito que a atmosfera do espetáculo seja apreendida na maioria
dos trabalhos que executo. Talvez esse seja o componente mais importante
e o que mais varia de um trabalho para outro. Presto muita atenção
nas informações que os atores, os diretores e os técnicos me passam.
Um detalhe que poderia passar desapercebido pode fazer toda a diferença.
31
POR Carol Sganzerla FOTOS Marcos Vilas Boas
MUDANÇA
A discrição é a
marca maior do
trabalho de Lenise
Pinheiro, uma das
mais importantes
fotógrafas de
cena do teatro
brasileiro. Por que
então ela apareceu
de freira para a
sessão de fotos
da Revista
Personnalité?
A resposta
vale o retrato
DE
HÁBITO PERSONNALITÉ
A ansiedade que aparentava em cima do palco remetia à
Lenise Pinheiro da década de 80, época em que começou
a retratar grandes nomes do teatro, como Antonio Fagundes
e Bete Coelho. Hoje, tida como a melhor fotógrafa do gênero,
a paulistana tem passe livre nas coxias e nos camarins do país.
Com toda essa bagagem, porém, ela sobe nervosa ao tablado.
Não se trata de uma estreia. Mas de um reencontro com o próprio passado. No mesmo ambiente em que seria fotografada
para a Revista Personnalité, o Colégio Maria Imaculada, em São
Paulo, Lenise encenou, aos 14 anos, sua primeira peça. O rapto das galinhas ganhou os aplausos dos pais dos
alunos, mas a aversão da direção da escola. “Sem querer, eu
tocava em tabus”, diz. “Falava da rejeição do aluno que atrasava
a mensalidade, da questão do gênero, umas meninas faziam
papel de homem. Reproduzi na peça que escrevi o que eu
passava.” Acabou expulsa um ano depois e nunca mais voltou
à escola. O reencontro se daria agora, na locação escolhida
por ela. O que ninguém sabia é que Lenise trazia na mala um
hábito de freira e assim apareceria para as fotos. Ela conta
que desenvolveu tamanha fixação pelo tema que passou a
colecionar a vestimenta – possui meia dúzia. Fantasiada,
participou de campanhas publicitárias da Shell e da Honda
indicada por agentes de casting que a conheciam. As atuações
a levaram ao cinema: uma freira no longa-metragem O corpo
(1987), ao lado de Antonio Fagundes e Marieta Severo.
Seria natural Lenise seguir a profissão de atriz. Mas
a história designou a ela outro papel. “O teatro é uma
arte efêmera, nada fica além do que provoca em você.
Por isso, a foto de uma peça é tão especial: é tudo o que
guardamos dela”, diz a atriz Debora Bloch. “A Lenise é
um bicho de teatro. Sabe tanto quanto nós, atores, por
conta disso o trabalho dela é tão sensível e fiel à linguagem
de cada espetáculo.” Aos 54 anos, ela contabiliza quase
90 mil fotografias, arquivadas em seu apartamento em
Higienópolis. Centenas dessas imagens ilustram seu primeiro
livro, Fotografia de palco (ed. Senac e Sesc Edições, 2008).
O segundo volume está programado para 2016, quando
celebrará 30 anos ininterruptos de carreira.
“Viver de fotografia de teatro é um luxo”, solta Lenise. Por
ano, registra, em média, 300 espetáculos. Boa parte desses
retratos é reproduzida na Folha de S.Paulo, para onde colabora
de forma fixa desde 1998, e no Cacilda, blog do periódico
que mantém em parceria com o jornalista Nelson de Sá.
Foi na Folha que teve sua primeira foto publicada, em 25 de
janeiro de 1984 – embora considere 86 o momento em que
engrenou na profissão. A peça se chamava Laços e o diretor,
Odavlas Petti (1929-97), foi um grande incentivador. “Ele
viu as imagens e falou: ‘Lenise, quase não há profissional de
fotografia no teatro. Por que não se profissionaliza?’.” Era o
estímulo que faltava para largar a faculdade de arquitetura –
antes, tentou publicidade, cinema e rádio e TV.
“JEITO CATIVANTE E DESASTRADO”
Foi Odavlas Petti que a levou para a Escola de Arte
Dramática (EAD), da Universidade de São Paulo, onde
ampliou seus contatos. Nos primeiros 15 anos de estrada,
vendia suas fotos pessoalmente a atores e diretores. Com a
entrada na Folha e a orientação da produtora cultural Íris
Cavalcanti, 43 anos, sua mulher há 16 e empresária há 15,
a carreira decolou. Na EAD, também conheceu o amigo e
fundador do Teatro Oficina, José Celso Martinez Corrêa.
“O Zé Celso mudou a minha condição de existência. Ele é
daquelas pessoas que fazem o seu caminho ser outro.” O
dramaturgo retribui as palavras. “Em seu trabalho criador
há uma valorização extraordinária do poder da atriz / do
ator, quer dizer: da pessoa humana, transumana, e do
contato com e entre elas.” Ainda em 2014, Lenise vai lançar
um livro com mais de 20 anos de registros do Oficina. “Tive
duas mudanças importantes na vida: quando conheci o
Oficina e a Ópera Seca”, diz, referindo-se à companhia
do diretor Gerald Thomas. “A Ópera me transformou,
influenciou até no jeito de me vestir, fiquei mais dark. Usava
as roupas da Bete [Coelho].” Amigas há mais de 30 anos,
chegaram a dividir apartamento. “A Lenise é extremamente
bem-humorada, emotiva, ri e chora com facilidade. Tem
um humor inteligente que pode se tornar crítico e ácido.
Ela é incansável em suas metas ao mesmo tempo em que
pode irritar com sua teimosia”, entrega a atriz. “Tem um
jeito cativante e desastrado, pode quebrar objetos na sua
casa. Mas, quando fotografa, tem total domínio espacial,
concentração e silêncio.”
A discrição para fotografar é a sua marca. “Venho da
escola [do filme] de 36 poses. A natureza do trabalho não
permite um show de cliques, desconcentra o ator”, diz
Lenise, nunca vista nas primeiras fileiras dos teatros. “Não
gosto de fotografar o buraco do nariz dos atores. A minha
missão é conseguir uma imagem envolvente, que seduza o
olhar. Acho a fotografia, por capturar uma fraçãozinha de
instante, um milagre.” Nove exemplos de seu estilo ilustram
as páginas a seguir.
34
LENISE PINHEIRO
1
_
“Lenise é como nós, do teatro”
1. BETE COELHO E GERALD THOMAS
Um processo (1988) | Texto e direção: Gerald Thomas
Por Gerald Thomas, diretor de teatro
ARQUIVO PESSOAL
Teatro Ruth Escobar, São Paulo
A Lenise é muitíssimo misteriosa. Não é à toa que ela escolheu
“Lembro que já tinha feito o ensaio uma vez, mas o negativo não ficou com a revelação que eu queria, então fui
de novo”, conta Lenise. “Mas estava gripada, com febre,
saí da cama para fazer. Nessa época eu tomava uísque
para sarar, só que piorava. Esta foto é carregada de significados. Para a peça, para a relação deles e para a minha
relação com o trabalho, porque a Ópera Seca me transformou. Gosto muito do Gerald, ele é um diretor muito
esteta. O personagem da Bete, o Joseph K., era visceral,
suscitava as emoções da plateia. Foi muito importante,
ela ganhou muitos prêmios. Esta foto tinha tudo a ver
com a verdade deles daquela hora.” A atriz Bete Coelho relembra: “A montagem de Gerald foi um marco na
história teatral do país. Coube a mim interpretar o personagem masculino. Deu trabalho para desenvolver por
exigir inúmeros graus de intensidade, densidade e precisão, mas me deu muitas alegrias pela receptividade das
plateias. Nesta foto, a Lenise conseguiu captar o melhor
movimento do ator, que é o movimento interno. Quando
ela fotografa a cena, encena junto. Percebe o ritmo, a respiração, e sabe quando se aproximar e clicar”.
o palco para fotografar. Não é à toa que entrou pelos camarins
adentro para clicar os atores se maquiando. Existe fetiche mais
bizarro? Teatro é um bicho muito estranho e avesso a fotos ou
vídeos e filmes. É uma arte em 3-D desde os gregos até nós, os
Troyanos! No entanto, de vez em quando (raro, muito raro!)
surge alguém que aparece e consegue a interlocução.
A Lenise é “clumsy”, assim como nós, do palco. Clumsy
significa trapalhona, aquela que esbarra nas coisas, pede mil
perdões, ri de tão sem graça. Ela é assim como nós, do teatro,
quando estamos fora do teatro. Então, a arte maravilhosa
de Lenise Pinheiro é justamente esta: ela, como um “Puck”
do Sonho de uma noite de verão, entra pelos nossos invernos
tenebrosos e consegue extrair deles os melhores momentos.
Os momentos mais dark, mais íntimos e mais medrosos. O que
há de mais terrível do que alguém que se olha no espelho por
horas antes de se expor no palco para se destruir, se degolar e
desconstruir toda a pintura de cara e olhos e bocas que foram
tão cuidadosamente esculpidos?
Lenise é o anti-Francis Bacon de hoje. Viva Lenise Pinheiro!
35
PERSONNALITÉ
2
3. MARCO RICCA
E HÉLIO CÍCERO
Hamlet (1997) | Direção: Ulysses Cruz
Teatro Caetano de Campos, São Paulo
“O Marco Ricca foi o primeiro ator que
me contratou, lá por 1985. Me telefonou
e disse: ‘Quanto você cobra?’. Porque
existia um aspecto onírico no trabalho,
aquela coisa de ‘vem aí fazer umas fotos’.
Eu pensava: ‘Como vou viver disso?’. Não
queria ser grosseira com as pessoas. Mas
o Marco tratou isso de uma maneira muito profissional. O monólogo em questão
era Bakunin, um texto russo, montagem
dele. Na época ele tomava conta do Teatro
do Bexiga, tinha esse espaço para ensaiar.
Ele sempre foi um bravo. Nesta foto,
foi Hamlet. O ‘ser ou não ser’ dele era
fazendo a barba. Eu achava legal, mas não
sei o que Shakespeare acharia.”
3
2. TEATRO OFICINA: ANA GUILHERMINA, AURY
PORTO E SAMUEL COSTA
Os sertões: a luta 1 (2005) | Direção: Zé Celso Martinez Corrêa
Teatro Oficina, São Paulo
“Os sertões é um épico. Esta foto compõe com as artes plásticas. Nunca
conversei isso com o Zé [Celso], mas tenho a nítida impressão que ele se
inspirou no quadro A liberdade guiando o povo, do [Eugène] Delacroix.
Essa montagem resultou numa filmagem de 30 horas, dividida em cinco
capítulos. Fui diretora de fotografia de Homem 2, que o Marcelo Drummond [um dos principais atores da companhia] dirigiu. Foi um exercício
maravilhoso. O Oficina é um teatro intelectualmente muito rico.”
36
LENISE PINHEIRO
5. JOELSON MEDEIROS
E EDUARDO MOSCOVIS
Por uma vida um pouco menos ordinária
4
(2007) | Direção: Gilberto Gawronski
Teatro Folha, São Paulo
“Esta foto une atributos que gosto de reverenciar. A coragem do ator Eduardo Moscovis de conciliar projetos comerciais com
experiências profundas em teatro; o texto
da Daniela Pereira da Rocha, que é uma
jovem autora carioca, com muita imaginação. E a direção do Gilberto Gawronski,
que tem a própria companhia e trabalha
com atores conhecidos e desconhecidos.
Sabe aquela peça que você não sabe para
onde vai e de repente um tiro muda tudo?”
Moscovis assume que não gosta de ser
fotografado: “Mas quando é um bom fotógrafo, que não atrapalha a encenação, tudo
certo! E a Lenise é mestra!”.
5
4. LÍGIA CORTEZ
Cheque ou mate (1997) | Direção: Roberto Lage
ARQUIVO PESSOAL
Teatro Sala São Luis, São Paulo
“A Lígia é minha parceira, somos amigas há anos. Ela fez
essa peça com o pai [Raul Cortez]. Ao mesmo tempo em
que tem essa herança genética, que toca os projetos de
teatro que a família começou, ela tem uma independência. Quando o Teatro Fecomercio, em São Paulo, ganhou
o nome de Raul Cortez, depois da morte dele [em 2006],
Lígia teve que subir no palco para falar. Sabe que história
contou? ‘Meu pai tinha um carro conversível que era o
que mais gostava na vida. Um dia ele me levou para passear e me perguntou: ‘Filha, é bom ter cabelo?’.” Com essa
lembrança, Lígia arrancou risadas do público. “O Raul era
um lorde, transbordava charme”, prossegue Lenise. “Era
um sucesso e sabia disso. Ele falava que não era chique ter
muito trabalho, dizia: ‘Você não está muito chique quando
está correndo’. Quando levei a Lígia para fazer Cacilda [no
Teatro Oficina], falei: ‘Quer ficar menos chique? Vamos
fazer o Oficina?’. Ela foi, descobriu que estava grávida da
Clara, mas não se abateu, continuou.”
37
PERSONNALITÉ
6. DEBORA BLOCH
Brincando em cima daquilo (2006) | Direção: Otávio Muller
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Teatro Municipal de Niterói, Rio de Janeiro
“Era a pré-estreia de Brincando em cima daquilo, um monólogo. Eu estava focada porque faria o cartaz da peça e
acabei usando um elemento de medir a distância. Só que
esse recurso acendia uma luzinha que atingia a Debora.
Fiquei chocada, porque ela olhou pra mim e falou: ‘Por favor, pare!’. Com uma voz trêmula, disse: ‘Mas, Debora, sou
eu’. Fiquei esperando por ela no fim do espetáculo, a gente
se abraçou, nos desculpamos, na hora já ficou tudo bem”,
conta Lenise. “Achei que era alguém da plateia que estava
fotografando”, recorda Debora. “Morri de vergonha quando ela veio contar que era ela.”
6
8
7. FERNANDA TORRES
Don Juan (1995) | Direção: Gerald Thomas
Teatro Guairinha, Curitiba
8. FERNANDO TORRES
E FERNANDA MONTENEGRO
Felizes para sempre (1996) | Direção: Jacqueline
Laurence
Teatro Sesc Anchieta, São Paulo
“Acho estas duas fotos de camarim muito fortes. Eles parecem uma família de circo. Você
via aquelas pessoas e pensava: ‘Será que eles
moram num trailer em Ipanema?’”, diz Lenise,
aos risos. “Eles têm um jeito muito teatral, envolvido, têm um traquejo muito especial com o
teatro. Seja no manuseio das coisas do palco ou
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LENISE PINHEIRO
9. PINA BAUSCH
Ensaio no camarim do Theatro Municipal (1988), São Paulo
“Acompanhei todas as vindas da Pina Bausch ao Brasil.
Ela fazia questão de sempre trazer o elenco principal.
No aeroporto, no Maksoud Plaza, no Instituto Goethe,
na coletiva, lá estava eu. Eles adoravam as caipirinhas, as
praias, sempre iam para o litoral norte no fim da temporada. A Pina tinha aquele jeito aristocrático, mas era brincalhona. Às vezes, me convidavam para o aquecimento,
cheguei a fazer um trabalho de corpo maravilhoso. É um
teatro-dança. O trabalho deles é muito forte, ele é a foto
pronta, qualquer máquina faz.”
ARQUIVO PESSOAL / AGRADECIMENTO: CMISP – COLÉGIO MARIA IMACULADA – SP
9
na naturalidade. Neste momento, a Fernanda
Montenegro estava me apresentando ao Fernando Torres e acabando de se arrumar. Ele era
um sujeito especial, atencioso, fazia perguntas
filosóficas, era uma pessoa muito interessante. Na minha percepção, essa foi a montagem
definitiva de Felizes para sempre, do Samuel
Beckett. A Fernanda ficava enterrada na areia,
só com a cabeça pra fora. Infelizmente, não vi
muito os dois no palco. Mas sei das histórias
do Teatro dos Sete, quem pôde fotografar se
esbaldou. E a Fernandinha [Torres] está nesse
camarim de Curitiba, numa montagem de Don
Juan, do Otávio Frias Filho. Ela tem uma verve,
é uma mulher que dá conta de tudo, sempre que
a gente solicita alguma coisa ela faz. Ela tem a
voltagem parecida com a minha.”
POR Barbara Heckler FOTOS Carol Quintanilha
AOS SEUS
Três músicos da Osesp e três frequentadores da Sala São Paulo falam da
DIVULGAÇÃO
LUGARES
emoção de estar diante da principal orquestra do país
FÁBIO PEIXOTO, frequentador há nove anos
“Ao rever os programas das temporadas da Osesp passa um filminho em minha cabeça. Frequento a Sala São Paulo desde 2005. Fui levado por uma amiga para assistir
à Orquestra Filarmônica de Israel, sob a regência de Zubin Mehta. Não esqueço da
minha impressão: era um conjunto de arquitetura e acústica impressionantes – e no
meu país! Senti-me privilegiado. Resolvi virar assinante na temporada de 2007. Ter
uma companhia para partilhar as emoções de uma obra passou a ser essencial. Por
isso, no ano passado, resolvi comprar duas assinaturas: uma para mim, outra, sem
nome definido. A intenção era ter um acompanhante diferente a cada concerto. Em
todos esses anos, proporcionei a diversas pessoas essa incrível experiência de ver a
Osesp, na Sala São Paulo. Como a Nona sinfonia, de Beethoven [1770-1827]. Por mais
famosa que essa obra seja, quando a ouvi, em 2007, fiquei paralisado, tamanha emoção. Existe essa mágica do instantâneo, a certeza de que a orquestra nunca mais irá
repetir a forma com que tocou naquela noite.”
42
“AO F CONCERTO,
OLHEIDSFA DSFAS DFASD
D PARA UM AMIGO E
ESTÁFSDFSTOS”
_
“Vamos celebrar
o legado da Osesp”
Regente titular, Marin Alsop divide a emoção
de conduzir a temporada comemorativa
Como se sente diante de 60 anos de Osesp?
É um momento maravilhoso. Tenho
muito orgulho de fazer parte dele. Vamos
comemorar o legado da orquestra,
ao mesmo tempo em que almejamos,
ansiosamente, as próximas conquistas.
Quando conheceu a orquestra?
Foi Tim Walker, que dirigia a Filarmônica de
Londres e era consultor da Osesp. Ele me
pediu para que pensasse a respeito de ser
uma regente convidada.
O que a fez aceitar o convite de vir ao Brasil?
O desejo dos músicos em melhorar e fazer
música de excelência. Sempre admirei a
administração e o conselho da Osesp. Eles
DIVULGAÇÃO
trabalham de forma incansável. Todo esse
EMMANUELE BALDINI, violinista
conjunto é a receita do sucesso.
“Uma antiga estação de trem transformada em uma sala de concerto? Com uma
orquestra de músicos internacionais? Confesso que a descrição do maestro John
Neschling me soou inventiva. Naquele momento, ele me convidava a fazer um teste como spalla [primeiro violino] na Osesp, em 2003. Saí da minha cidade, Trieste,
na Itália, e vim ‘pagar para ver’. E não é que ele estava falando sério? Quando pisei
na Sala São Paulo, foi amor à primeira vista. Mesmo como estrangeiro, sinto a responsabilidade de representar o Brasil. Entendi esse sentimento ao tocar no festival
londrino BBC Proms, em 2012. Ao surgirem bandeiras brasileiras na plateia, me
emocionei. Outro momento único foi quando o maestro britânico Frank Shipway
gravou conosco em 2012. Ele extraiu sons que raramente ouvi da Osesp. Ao escutar a gravação, pergunto-me: ‘Eu estava ali mesmo?’. Para mim, há concertos bons,
ruins e outros que são uma experiência de vida. E são esses que busco quando
subo ao palco. Como um monge que passa a vida atrás do seu nirvana.”
É diferente reger uma orquestra brasileira?
43
O Brasil é animado e otimista. Essa atitude
reflete no espírito da orquestra. É ótimo!
Quais foram os concertos mais marcantes?
Todo concerto é especial. Ser capaz de
apresentar obras como a Sinfonia do italiano
Luciano Berio [1925-2003] para um público
interessado é muito inspirador. Ou fazer uma
apresentação na praia da cidade de Santos
para 20 mil pessoas e outra para uma Sala
São Paulo lotada. Cada um desses momentos
faz de cada concerto um evento especial.
FERNANDO OLIVEIRA, frequentador há mais de 18 anos
“Cheguei a arriscar tocar piano, violão e violino. Mas me dei conta de que sou melhor
como plateia. Acompanho a Osesp desde que as apresentações eram realizadas no
Memorial da América Latina, nos anos 90. Segui os passos da orquestra de perto, por
pura adoração à música clássica. Mudei de teatro junto com ela. Saía de Santo André,
onde nasci e cresci, para ir ao Theatro São Pedro, casa que abrigou o grupo em 1998.
Mas quão grande foi a minha surpresa ao entrar na Sala São Paulo, pela primeira
vez. Eu estava lá, em julho de 1999: o concerto de abertura da Sala. Ali, me dei
conta: ‘Temos uma grande orquestra nesta cidade’. Como esquecer a força da
Sinfonia no 2 – A ressurreição, de Gustav Mahler [1860-1911]? Nunca me emocionei
tanto quanto na apresentação regida pelo maestro britânico Frank Shipway, em
2009. Ao final da Sinfonia no 2, de Jean Sibelius [1865-1957], olhei para um amigo
e estávamos aos prantos. São momentos assim que me fazem voltar. Compartilhar
uma boa música é tão bom quanto escutá-la.”
44
“AO FINAL DO
CONCERTO,
OLHEI PARA
UM AMIGO E
ESTÁVAMOS
OS DOIS AOS
PRANTOS”
SORAYA LANDIM, violinista
“Alguns colegas brincam que sou um dos ‘patrimônios’ da Osesp. A anedota existe
porque toco há 14 anos na orquestra. Entrei meses antes de ela pertencer à Sala São
Paulo. Eu tinha 22 anos. Antes, era integrante do Theatro Municipal. Mas, quando
passei na audição, não pensei duas vezes. Nasci numa família de músicos. Meu pai é
luthier [especialista em construir instrumentos] e me dava aulas aos 6 anos. Minha mãe
é pianista. Sinto-me honrada em fazer parte de uma orquestra que alcançou o respeito internacional. A Osesp possui uma identidade sonora. Dela, pode-se extrair um
som completo, homogêneo, cheio de vida e cor. Quando um regente consegue fazer
soar os instrumentos dessa forma, é transcendental. O britânico Frank Shipway é um
exemplo. Ele tirou o nosso melhor na gravação da Sinfonia alpina, de Richard Strauss
[1864-1949]. A música é muito mais do que nota, melodia e ritmo. É como demonstro a
minha alma. Sempre que toco e chego à essa aura, a sombra da rotina se esvai. Agradeço o privilégio de estar sentada ali no palco.”
45
SARAH CASEIRO, frequentadora há quatro anos
ÉDERSON FERNANDES, violista
“Lembro de ter ido pela primeira vez a um concerto aos 10 anos. Foi no
Theatro Municipal de São Paulo. E, mesmo fazendo aulas de violino, não
gostei da experiência. Era uma criança e senti sono. O despertar veio com
um pedido de aniversário de minha mãe: ao completar 52 anos, em 2010,
queria os cinco filhos com ela, em um concerto da Osesp na Sala São Paulo.
Não recordo da peça executada, mas lembro de ter achado o lugar especial.
Fiquei olhando para cima reparando nos detalhes da construção. Minha mãe
tomou gosto e fez uma assinatura. Resolvi acompanhar minha mãe uma vez.
E, depois, mais uma. E outra... Peço sempre para ela ir com ombreiras, para
eu encostar a cabeça. Tenho um ritual. Sempre dou uma cochiladinha na primeira parte. Ali, no ombro dela. Não penso em mais nada. Só a deixo entrar
em mim, enquanto esvazio a mente e me acalmo. Gosto de ficar no coro para
ver a execução da Orquestra. Reparo nos dedos precisos ao piano, ou na delicadeza da moça da percussão ao posar as baquetas com cuidado, para não
fazer barulho. Descobri Heitor Villa-Lobos e suas lindas ‘Bachianas brasileiras’. Hoje, aos 25 anos, percebo que, mais do que qualquer descobrimento
musical, encontrei, nos concertos, uma relação linda com a minha mãe.”
“Às vezes não acredito que tenho uma cadeira na Osesp. Foi tudo tão do acaso. Nasci na
periferia de Fortaleza. Um dia, acompanhando uma amiga, me matriculei em aulas de
viola. Para minha surpresa, afeiçoei-me ao
instrumento. Mais do que isso, tinha facilidade em tocá-lo. Então, vim a São Paulo, aos
16 anos. Dois anos depois, fiz o teste para a
Academia da Osesp. Entrei para a orquestra
com apenas 20 anos e até hoje sou o mais
novo. Com meus colegas, participei da primeira vez em que uma orquestra latinoamericana tocava no Festival BBC Proms,
em Londres. Tive a mesma emoção com um
concerto em Fortaleza, em 2008. Voltar a
minha cidade e tocar para o meu povo foi
uma emoção única.”
Baixe a Revista Personnalité no tablet
e assista à rotina de Emmanuele Baldini
46
_
Série Osesp Personnalité 2014
Dentre os destaques da temporada, a Sinfonia nº5 em mi menor, de Tchaikovsky, regida por Marin Alsop;
concerto com a obra de Heitor Villa-Lobos e, para fechar a temporada, Carmina Burana, de Carl Orff
17 MAI SÁB 16h30 Mogno
21 NOV SEX 21h Sapucaia
Marin Alsop regente
Frank Shipway regente
Olga Kern piano
Stephen Hough piano
ANNA CLYNE
ROBERT SCHUMANN
Night Ferry
Concerto para piano em lá menor, Op. 54
SERGEI RACHMANINOV
WILLIAM WALTON
Concerto no 1 para piano em fá
Sinfonia no 1
sustenido menor, Op. 1
ROBERT SCHUMANN
Sinfonia no 2 em dó maior, Op. 61
22 MAI QUI 21h Pau-Brasil
Eivind Gullberg Jensen regente
Mari Eriksmoen soprano
WOLFGANG A. MOZART
A flauta mágica, KV 620: Abertura
26 ABR SÁB 16h30 Jequitibá
A flauta mágica, KV 620: Ach, ich fühl’s (Ária
Isaac Karabtchevsky regente
de Pamina)
Nikolai Lugansky piano
Vorrei Spiegarvi, oh Dio, KV 418
5 DEZ SEX 21h Paineira
SERGEI RACHMANINOV
Exsultate, Jubilate, KV 165
Celso Antunes regente
Concerto no 3 para piano em ré menor, Op. 30
JEAN SIBELIUS
John Snijders piano
PYOTR I. TCHAIKOVSKY
o
Sinfonia n 5 em mi bemol maior, Op. 82
14 AGO QUI 21h Carnaúba
GYÖRGY KURTÁG
Marin Alsop regente
Stele, Op. 33
3 MAI SÁB 16h30 Ipê
Timothy McAllister saxofone
HEITOR VILLA-LOBOS
Arvo Volmer regente
ANTONIO CARLOS GOMES
Rudepoema
Jeremy Denk piano
Lo Schiavo: Alvorada
BÉLA BARTÓK
ROBERT SCHUMANN
JOHN ADAMS
O mandarim maravilhoso, Op. 19
Genoveva, Op. 81: Abertura
Concerto para saxofone [co-encomenda com
WOLFGANG A. MOZART
Sidney, Baltimore e Northwestern University.
18 DEZ QUI 21h Jacarandá
Concerto no 21 para piano em dó maior, KV 467
Estreia latino-americana]
Marin Alsop regente
JEAN SIBELIUS
PYOTR I. TCHAIKOVSKY
Edna d’Oliveira soprano
Sonhos de inverno
O bardo, Op. 64
o
Sinfonia n 5 em mi menor, Op. 64
Luciano Botelho tenor
Licio Bruno baixo-barítono
Sinfonia no 3 em dó maior, Op. 52
DIVULGAÇÃO
Coro da Osesp
Naomi Munakata regente
Sinfonia no 1 em sol menor, Op. 13 –
4 OUT SÁB 16h30 Imbuia
Coro da Osesp
9 MAI SEX 21h Paineira
Marin Alsop regente
Naomi Munakata regente
Marin Alsop regente
Nathalie Stutzmann contralto
Coro acadêmico da Osesp
Nadja Salerno-Sonnenberg violino
Coro da Osesp
Marcos Thadeu regente
LUDWIG VAN BEETHOVEN
Naomi Munakata regente
Coro infantil da Osesp
Abertura Leonora no 3, Op. 72b
Coro acadêmico da Osesp
Teruo Yoshida regente
SAMUEL BARBER
Marcos Thadeu regente
ARVO PÄRT
Concerto para violino, Op. 14
Coro infantil da Osesp
Mein Weg
SERGEI PROKOFIEV
Teruo Yoshida regente
Salve Regina
Sinfonia no 3 em dó menor, Op. 44
GUSTAV MAHLER
CARL ORFF
o
Sinfonia n 3 em ré menor
47
Carmina Burana
LENISE PINHEIRO PERGUNTA:
APÓS
LITERATURA,
QUADRINHOS
E MÚSICA,
VAI ESCREVER
PARA
TEATRO?
48
TONY BELLOTTO RESPONDE:
Lenise, já tentei escrever alguma coisa para teatro, mas não fui adiante.
Não posso dizer que não tentarei de novo, pois gosto muito de teatro, e
autores como Samuel Beckett, Eugene O’Neill e Sam Shepard me fazem
muito a cabeça. Tomarei sua pergunta como um estímulo, obrigado.
49
POR Carlos Messias, do Rio de Janeiro FOTOS Daniel Aratangy QUADRINHOS Pedro Franz
CORAÇÃO
ROCK’N’ROLL
Entre o guitarrista e o escritor, o ídolo de rock e o
detetive policial, Tony Bellotto recupera o “espírito
de garagem” que marca o melhor de sua produção
PERSONNALITÉ
BELLOTTO
BELLINI
M O arço de 2006, 19ª Bienal do Livro de São Paulo. O guitarrista e escritor Tony Bellotto – pai do detetive Remo
Bellini (leia perfil ao lado) – está sentado ao lado de uma
lenda dos romances policiais, o norte-americano Lawrence
Block, autor do clássico Quando nosso boteco fecha as portas
(1986). Os dois realizam uma palestra no Salão das Ideias
sobre a literatura de suspense. Em meio a divagações sobre
sequências narrativas e construção de personagens, Block vira
para Bellotto e faz uma pergunta sincera: “Eu tenho amigos
músicos. Eles passam a noite inteira tocando e se divertem
muito. Isso é algo que você nunca vai ouvir de um escritor.
Escrever é exaustivo e entediante. Então, Tony, me responde:
por que você escreve?”.
O titã deu uma risada.
Dezembro de 2013, apartamento de Tony Bellotto em Ipanema, Rio de Janeiro. A reportagem de Revista Personnalité
repete o questionamento de Block. Tony, desta vez, responde
sem rodeio: “Essa pergunta é ridícula, nem deveria ser feita.
É óbvio que tocar dá muito mais prazer. Escrever é uma sensação muito pequena perto do prazer que é tocar para 50 mil
pessoas cantando uma música que você fez. Mas é um impulso interior, uma coisa de realização pessoal, de você se resolver consigo e dizer: ‘Ah, consegui fechar um livro’”.
A resposta se torna ainda mais intrigante diante de um
guitarrista que já era bem-sucedido aos 20 e poucos anos e só
aos 32 atinou de começar em paralelo uma carreira literária,
atividade exigente e solitária. Hoje, com uma prateleira de sua
biblioteca particular destinada às cópias dos livros que escreveu — já soma sete títulos, todos pela Companhia das Letras
—, Bellotto retoma seu primeiro personagem, o detetive particular Remo Bellini, que protagonizou três romances.
Ainda neste primeiro semestre, lança Bellini e o labirinto, o
quarto livro da série, nove anos depois de Bellini e os espíritos.
Em 2015, quando Bellini e a esfinge, o livro de estreia de Tony
na literatura, completa 20 anos, o personagem ganhará traços
em uma história em quadrinhos com ilustrações de Pedro
Franz. “A HQ foi uma ideia nossa e serviu de impulso para o
Tony escrever o novo romance”, diz André Conti, editor da
Companhia das Letras. Bellotto lembra de ter sido cobrado
a reavivar o detetive canastrão. “O próprio Luiz [Schwarcz,
presidente da editora] falou: ‘Pô, você precisa trazer de volta
cruzamento das estradas 61 e 49, no município de
Clarksdale, no delta do rio Mississippi, Estados Unidos,
é o mítico local onde o guitarrista de blues Robert Johnson
(1911-1938) supostamente vendeu sua alma para o demônio.
Em troca, o músico pedia pleno domínio do instrumento.
Apreciador convicto do gênero musical, o detetive particular Remo Bellini lembrou-se dessa lenda quando chegou
ao interior de Goiás, onde fora conduzir uma investigação
sobre o desaparecimento de um membro de uma dupla sertaneja. A resolução do mistério, que se passa entre São Paulo
e Goiânia, poderá ser lida em Bellini e o labirinto, que deve
ser publicado pela Companhia das Letras até junho.
O blues é um parceiro fiel na vida solitária do investigador. Desde o início dos anos 80, quando vivia com um walkman a tiracolo, costumava escutar mestres como Muddy
Waters, Howlin’ Wolf e B.B. King. “Tomei uma dose de Jack
Daniels e dormi ao som da voz grave de John Lee Hooker”,
narrou – como sempre, em primeira pessoa – no romance
Bellini e a esfinge (1995), o primeiro registro da existência
do personagem, quando tinha 30 e poucos anos. “O Bellini
tem problemas de relacionamento”, diz seu criador, Tony
Bellotto. “Ele está sempre atrás das mulheres e, talvez por
isso, nunca consiga sair da solidão.”
O uísque é outra das companhias fiéis do detetive, seja
nos encontros casuais com suas investidas amorosas ou
investigando crimes em casas de shows eróticos, como a
Cocktail, na região do Baixo Augusta, em sua encarnação
decadente, décadas antes de virar um polo moderninho da
noite paulistana. “Ele é um personagem noir no sentido
mais clássico do termo”, define André Conti, editor da
Companhia das Letras.
Não se pode esquecer do humor ácido e da canastrice do
indivíduo. Fora de forma, Bellini se sente incomodado com
as “indesejáveis protuberâncias gordurosas” que alargam sua
cintura. Pudera. Sua dieta varia basicamente de acordo com o
menu do bar Luar de Agosto (nome tirado de um estabelecimento real que funcionava no centro de São Paulo, na década
de 70). Ali, bebe o expresso e come o pão na chapa de todas
as manhãs. É também por lá que costumava encontrar o delegado Bóris para almoçar PFs e discutir um caso. A apenas
um quarteirão dali está o que Bellini entende por lar: uma
52
TONY BELLOTTO
53
PERSONNALITÉ
o Bellini. Os autores que, como você, escrevem livros de outros
gêneros, não ficam tanto tempo sem lançar um título de série’.”
No início do ano passado, Bellotto enfrentou o desafio. “A
ideia amadureceu e achei que era a hora”, explica. “Porque
tem isto também: sempre tenho medo de não conseguir trazer o Bellini de volta. Mas dou uma relida nos outros, aí começo a sentir a voz e o ritmo do personagem, e é como se ele
baixasse em mim.” Em janeiro deste ano, o original estava nas
mãos de André Conti.
O ALTER EGO
Imagine-se Tony Bellotto por um dia. Você acorda na sua
cobertura dupla (com dois apartamentos integrados) em Ipanema. A primeira imagem que vê é Malu Mader (com quem é
casado há 25 anos). Toma café da manhã, preparado pela governanta, ao lado dos seus dois filhos com a atriz de 47 anos – João
e Antonio, 18 e 16 anos. Em seguida, vai fazer cooper na lagoa
Rodrigo de Freitas, a apenas dois quarteirões do seu prédio – ou
na praia de Ipanema, a cinco. Volta e diante de si tem duas possibilidades. Uma é ensaiar com a banda, uma das mais estáveis
do rock brasileiro, que mantém há 32 anos com os seus amigos
de infância. A outra é trancar-se no seu estúdio-escritório, com
acesso pelo terraço da cobertura, e passar horas desenvolvendo
ficção ou compondo músicas com a guitarra em alto volume.
Então, findo o ensaio ou encerrada a escrita, passa um tempo
com a família, assiste a um DVD em um potente home-theater
Bose e vai dormir com os anjos. Diante de uma realidade dessas,
com o que você fantasiaria?
No caso de Tony Bellotto, com indivíduos menos afortunados, com vidas destroçadas, com cenários decrépitos, com
Remo Bellini. “O fracasso e a solidão são coisas que enxergo
como uma possibilidade muito próxima”, conta. “Sempre senti
uma tendência muito grande a ficar só, acho que até me viraria
muito bem vivendo assim. Mas alguma coisa em mim me impeliu para o lado oposto. Desde garoto, sempre tive namorada. Aí
me casei com a Ana Paula e depois com a Malu.”
Tony se prepara para dar boas-vindas ao segundo neto.
Nina, 32 anos, sua filha mais velha, a única do casamento com a
arquiteta Ana Paula Silveira, é mãe de Francisco, 2 anos, e está
grávida de Antonio, esperado para junho. “Acho que a literatura
é fundamental para o Tony exercitar o lado menos família dele”,
diz o cantor Branco Mello, seu colega de Titãs.
Ao ressuscitar sua criação mais célebre, Bellotto teve de
remontar a atmosfera decadente que também sobrevoa os
personagens das outras obras do autor, tal qual Teo Zanquis, o
guitarrista fracassado e mulherengo de No buraco (2010). O in-
54
TONY BELLOTTO
quitinete mequetrefe no prédio Baronesa de Arary, localizado
na esquina da Paulista com a rua Peixoto Gomide. Também não
muito longe está o Edifício Itália, onde fica a Agência Lobo de
Detetives, capitaneada pela destemida Dora Lobo.
Foi lá, certa vez, que o Dr. Rafidjian bateu à procura dele, em
busca de sua filha desaparecida, a prostituta Ana Cíntia Lopes.
Ao desvendar seu paradeiro, como costuma fazer, Bellini misturou negócios e prazer. Atrás de pistas, acabou se envolvendo
com a misteriosa dançarina Fátima. Não perdoou nem a sua assistente, a angelical Beatriz.
A história de Bellini e a esfinge foi adaptada para o cinema em
2001, com Malu Mader encarnando Fátima e Fábio Assunção na
pele do detetive canastrão. O galã global repetiu o personagem
em Bellini e o demônio (2008), baseado no segundo livro com o
detetive, de 1997. Na trama, Bellini está falido e aceita dois casos:
localizar um manuscrito perdido de autoria de ninguém menos
que Dashiel Hammett, o grande mestre da literatura policial; e
investigar o assassinato da estudante Silvia Maldini. O detetive
acaba descendo ao submundo do tráfico de drogas e dá suas escorregadas no uso de entorpecentes.
PEIXE CRU
DIVULGAÇÃO
Felizmente, o caso seguinte acabou contribuindo com a sua saúde. Conforme narrado em Bellini e os espíritos (2005), o detetive
foi contratado por um cliente anônimo para desvendar a morte
do advogado Arlindo Galvet, abatido sem explicações em plena
corrida de São Silvestre. Ao descobrir correlações com a máfia
chinesa, o herói passou a frequentar o oriental bairro da Liberdade — às vezes a pé. Assim, conseguiu alternar os contrafilés do
Luar de Agosto com muito peixe cru.
Em sua próxima encarnação, Bellini talvez encerre a carreira se aposentando em uma praia deserta de Florianópolis. Esse
retiro será o pano de fundo da HQ Bellini e o corvo, prevista
para 2015 e ilustrada por Pedro Franz. O título é uma referência
ao poema “O corvo”, escrito em 1845 pelo pai da literatura de
suspense, Edgar Allan Poe. Em uma manhã chuvosa, Bellini,
já com 60 e tantos anos, observa a soturna ave sobrevoando a
praia. O cenário o faz lembrar um caso que investigou 20 anos
antes. A narrativa, então, alterna passado e presente.
Na contramão da vida solar de seu criador, Tony Bellotto,
o destino de Remi Bellini é triste. Até seu descanso numa praia
paradisíaca se dá entre dias nublados. “Quis retratá-lo como um
velho sozinho, alcoólatra, bem acabadão, no melhor estilo Charles Bukowski”, explica Bellotto, com a voz tranquila que o diabo
deve ter usado ao oferecer seus serviços ao bluseiro Robert
Johnson. Nunca foi fácil ter um mestre tão cheio de talentos.
EM SENTIDO HORÁRIO A PARTIR DO ALTO: FÁBIO ASSUNÇÃO ENCARNA
REMO BELLINI NA ADAPTAÇÃO DE BELLINI E O DEMÔNIO (2008); O DETETIVE,
CONFORME SERÁ RETRATADO NA HQ BELLINI E O CORVO, EM DUAS VERSÕES MAIS VELHO E MAIS NOVO; E MALU MADER, MULHER DO AUTOR, COMO FÁTIMA,
DANÇARINA DA BOATE COCKTAIL, NO FILME BELLINI E A ESFINGE (2001)
primeiros 25 anos da banda. “Hoje a gente não tem mais aquela pegada sexo, drogas e rock’n’roll”, conta Branco Mello. Em
1985, Tony Bellotto foi preso por porte de heroína. Condenado, cumpriu a pena em liberdade. “Tivemos sorte por termos
passado e sobrevivido a tudo aquilo e estarmos hoje aqui,
vivos”, conta Branco. “Foram anos de muita experimentação
e loucura, mas a gente traduziu aquela vivência em trabalho.
Até hoje curtimos muito a companhia um do outro. Costumamos jantar juntos, tomar vinho, passar horas dando risada.”
Os fortes laços afetivos, mantidos desde a adolescência,
quando os músicos estudavam no colégio Equipe, em São Paulo, parecem ser o que ainda sustenta o grupo. De 1982 para cá,
os Titãs passaram de um noneto a um quarteto. Nessa trilha,
passaram por brigas, crises e morte. Tudo superado por conta
da amizade. Jack Endino relembra um episódio ocorrido durante as sessões do disco A melhor banda de todos os tempos
da última semana, que começaria a ser gravado no dia em que
morreu o guitarrista Marcelo Fromer: 11 de junho de 2001.
“Meses depois, quando o Tony já havia gravado as bases, ele
chegou e me falou: ‘Jack, acho que está na hora de você tocar
guitarra’. Ele não se sentiu no direito de substituir o amigo.”
Depois da morte de Fromer, o baixista Nando Reis e o
baterista Charles Gavin deixaram a banda, respectivamente
em 2002 e em 2010 (Arnaldo Antunes, outro membro da formação clássica, partira em 1992). Agora, três décadas após o
lançamento do disco de estreia, os Titãs soltam novo álbum,
o primeiro com a formação atual (Tony, Paulo Miklos, Branco
Mello e Sérgio Britto). Bellotto diz que a turnê comemorativa
de 30 anos da banda, em outubro de 2012, na qual tocaram
na íntegra o álbum Cabeça dinossauro (1886), foi fundamental para a retomada de uma sonoridade mais crua e pesada.
“A melhor coisa que a gente fez foi dispensar os músicos de
apoio, que nos acompanhavam desde que o Nando saiu. Parecíamos artista de MPB. Agora, o Branco está no baixo e o
Paulo na guitarra. Isso traz um frescor, uma coisa meio imperfeita, que é justamente o espírito do negócio.”
Portanto, não se surpreenda com uma boa dose de solavancos que possam vir a ser percebidos em futuras apresentações
do grupo. Em cobertura de um festival no Rio em que os novos
Titãs abriram para os norte-americanos do Red Hot Chili Peppers, o jornal O Globo iniciou a resenha da apresentação do
grupo brasileiro da seguinte forma: “Sem alterar o seu jeitão
banda de garagem, com mais disposição do que apuro…”. Tony
Bellotto se diz lisonjeado com o comentário. “Um bando de
cinquentão, depois de 32 anos juntos, soando como banda de
garagem?”, comenta empolgado. “Pô, isso é uma glória.”
teressante é que basta sentar por 5 minutos diante do artista
para perceber como Tony Bellotto é tudo menos Remo Bellini,
um indivíduo desiludido, cínico e por vezes arredio.
“Sempre achei o Tony um sujeito muito bacana e fácil de
lidar”, afirma André Conti. O engenheiro de som norte-americano Jack Endino, que descobriu a banda Nirvana e produziu
cinco discos dos Titãs, tem outro punhado de adjetivos para
classificar o guitarrista. “Ele é simplesmente um cara legal”,
diz. “É um cavalheiro, um autêntico ‘sweetheart’ [a expressão
em inglês quer dizer algo como coração mole].”
Pois então: como um sweetheart desses consegue criar
tramas tão nebulosas e sedutoras? — cada título vende, em
média, 20 mil exemplares. Ou além: por que esse doce de
coco, quando toma uma guitarra para escrever canções, o
faz no máximo volume, com letras que gritam coisas como
“bichos escrotos”? Nesse sentido, talvez Tony possa ser comparado a Lou Reed, de acordo com a autodescrição que o
norte-americano cantou na faixa “Rock’n’roll heart”, de 1976:
“Não sou de mensagens nem de coisas por dizer/ Gostaria que
gente assim fosse posta para correr […] Pois bem lá no fundo,
eu tenho um coração rock’n’roll”.
É seguro dizer que Remo Bellini é o coração rock’n’roll
que ainda pulsa no paulistano Tony Bellotto. Por meio do seu
alter ego, o escritor elabora seus traços mais particulares — o
lado “menos família”, como definiu o amigo Branco Mello... É
como se a vida real, tingida com luzes tão douradas, obrigasse
à imaginação um equilíbrio soturno. Em Bellini, Bellotto vê-se
diante de um espelho desses que deformam. Há algo de terapêutico nesse processo.
BONS COMPANHEIROS
Ficcionista bem-sucedido, Tony Bellotto tem acesso ao circuito literário. Ao lado de Malu Mader, tem franqueada entrada
nos eventos globais. Mas, entre uma coisa e outra, ele prefere
ficar ao lado de seus colegas roqueiros. “Eu tenho amigos escritores, como o Marçal Aquino e o Reinaldo… como é o nome
dele?”, pergunta. “Moraes?”, arrisca a reportagem. “Isso, o
Reinaldo Moraes. Eles são caras divertidíssimos. Mas, no geral, não circulo muito nesse meio. Acho que, assim como entre
atores, em que tenho poucos e bons amigos, existe muito uma
coisa de ego. Fico mais à vontade com os meus amigos músicos”, diz. “Os escritores se levam a sério demais, e gente de
banda normalmente não tem isso.”
Uma boa radiografia da rotina dos Titãs pode ser vista no
documentário A vida até parece uma festa, de 2009, dirigido
por Branco Mello e Oscar Rodrigues Alves. O filme cobre os
56
COORDENAÇÃO KIKA PEREIRA DE SOUSA / AGRADECIMENTO HOTEL UNIQUE (WWW.HOTELUNIQUE.COM)
PERSONNALITÉ
“OS
ESCRITORES
SE LEVAM
A SÉRIO
DEMAIS; GENTE
DE BANDA
NÃO
TEM ISSO”
PERSONNALITÉ
O PULSO AINDA PULSA
Uma história concisa dos Titãs em quadrinhos
TONY BELLOTTO
PERSONNALITÉ
POR Tato Coutinho, de Niterói FOTOS Marcelo Correa
AVISO
AOS
NAVEGANTES
Às vésperas de completar 185
anos, o farol da Ilha Rasa, na
costa do Rio de Janeiro, segue
o mais importante dos 7.400
quilômetros da costa brasileira
Silencioso cubo de treva;
um salto, e seria a morte.
Mas é apenas, sob o vento,
a integração na noite.
Nenhum pensamento de infância,
nem saudade nem vão propósito.
Somente a contemplação
de um mundo enorme e parado.
A soma da vida é nula.
Mas a vida tem tal poder:
na escuridão absoluta,
como líquido, circula.
Suicídio, riqueza, ciência...
A alma severa se interroga
e logo se cala. E não sabe
se é noite, mar ou distância. Triste farol da Ilha Rasa.
Carlos Drummond de Andrade
P ara que serve um farol? Em “Noturno à janela do apartamento”, Carlos
Drummond de Andrade, um dos muitos
mineiros que foram morar a duas ou três
quadras da praia de Copacabana, no Rio
de Janeiro, oferece uma luz. A metáfora que se arma na cabeça do poeta é a
escuridão absoluta, em que não se sabe
mais “se é noite, mar ou distância”. Para
a figura perdida, desesperançada na tormenta, o farol é a vida.
O capitão de corveta Lacerda é mais
pragmático. À sombra do passadiço no
andar mais elevado do Amorim do Valle,
a embarcação que nos leva à Ilha Rasa,
ele sorri, com a mão à guisa de boné
protegendo os olhos do sol: “E se tudo
o mais falhar?”. A pergunta é retórica.
Por “tudo o mais”, entenda-se a síntese
representada pelo GPS. A Marinha, obviamente, não depende dos inconstantes
serviços de telefonia móvel, mas e se os
satélites forem derrubados ou uma tempestade magnética desorientar por um
momento as bússolas do mundo? E se...
A função de um farol é estar lá, inamovível a indicar sua posição geográfica,
percebido a distância pela emissão de
luz, sinal de rádio ou mesmo de um som
– sino, buzina, tiro de canhão. “Lembro
da alegria de avistar o farol de Garcia
D’Ávila, na Praia do Forte [BA], ao final
da travessia a remo do Atlântico [em
1984]”, conta o navegador Amyr Klink.
Ele havia partido cem dias antes da Namíbia, na África, com o que havia de mais
adequado para a segurança da navegação
– com exceção do motor. Em viagens
assim, Klink explica, não há garantias de
que você vá chegar exatamente aonde
planejou. “Ainda hoje, com todo o avanço da sinalização por boias, os faróis são
marcos referenciais importantes.”
Assim como para Drummond, o
farol da Rasa aparece para nós tão logo
a Diretoria de Hidrografia e Navegação
(DHN), em Niterói, fica para trás e nos
dirigimos à saída da Baía de Guanabara.
Alvo e robusto, ele é o mais potente dos
213 faróis sob responsabilidade do Centro de Sinalização Náutica Almirante
Moraes Rego (CAMR). Cabe à organização – expressão moderna de um serviço
iniciado em 1698 com o acendimento do
farol de Santo Antonio, em Salvador – supervisionar a manutenção e a operação
de cada elemento de auxílio à navegação
da Marinha ao longo dos 7.400 quilômetros de litoral e dos estimados 43.500
quilômetros de rios navegáveis.
O comandante Lacerda, 35 anos, não
esconde a satisfação de estar a caminho
da Rasa pelo segundo dia seguido naquela semana. Na manhã anterior, havia
participado da operação mensal de
abastecimento da ilha, com combustível
para o funcionamento de seus três geradores de energia e suprimentos para
a guarnição permanente do farol – um
faroleiro, um especialista em motores,
um eletricista e um curinga, escolhido
de acordo com alguma demanda pontual. O processo de seleção é organizado
para a rendição de metade da equipe a
cada três meses. Perguntado se a jornada pode ser considerada uma espécie
de “licença” em meio à dura rotina da
DHN, Lacerda sorri. A procura é sempre
grande, cerca de 12 candidatos por vaga,
mas a temporada está longe de ser tranquila. Além das obrigações específicas
de cada um, é o pequeno contingente
quem capina, varre, pinta, martela, cozinha – enfim, quem mantém a base em
dia. E sem nem a chance de um mergulho, já que não há praias na rasa.
CORSÁRIO ARGENTINO
“Na noite de 31 de julho desse anno [1829]
se illuminou pela primeira vez o pharol
da Ilha Raza, situado fora deste porto (...),
com altura de 441 palmos [101 metros]
62
A ESCADA DE ACESSO À ILHA, ESCULPIDA NA PEDRA POR ESCRAVOS.
NO ALTO, O SUBOFICIAL LUZ COM OS CÃES MEL E JÚNIOR; E O NAVIO
HIDROCEANOGRÁFICO AMORIM DO VALLE
ACIMA, AS TRÊS CASAS DE ALOJAMENTO – UMA GRANDE CISTERNA DE
ÁGUA DA CHUVA E O ESPAÇO CULTURAL DEDICADO À MEMÓRIA DO
FAROL COMPLETAM O CONJUNTO DE EDIFICAÇÕES DA ILHA
63
64
AGRADECIMENTO: MARINHA DO BRASIL
sobre o nível do mar e visível a 10 léguas
da barra.” O tom protocolar da mensagem
que a Junta do Commercio, Agricultura,
Fabricas e Navegação enviou à Sua Majestade, o Imperador, não faz jus ao histórico aventuresco de sua construção.
Desde antes da chegada da corte
portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, a
mesma junta já mandava acender fogueiras ali, todas as noites. Com a elevação
da colônia a Reino Unido de Portugal,
Brasil e Algarves, em 1815, a necessidade
de uma sinalização mais efetiva se impôs.
Registros apontam o tráfego de 1.460
embarcações pela costa da capital ao final
da segunda década dos anos 1800 – quase um sexto dos 9.300 atracamentos no
porto carioca em 2013, segundo a Companhia Docas. O alvará imperial autorizando as obras viria a 17 de setembro de 1819.
Não bastassem as já difíceis condições de
acesso ao lugar escolhido e as limitações
da mão de obra, em sua maioria presos
sentenciados, a empreitada ainda sofreria
um duro golpe antes de sua inauguração.
“Em 1826 a Junta do Commercio infor-
mou ao imperador que esse pharol já
estaria funccionando não fosse elle
tomado por um corsario de Buenos
Ayres ao chegar a este porto”, registra
o Histórico de pharoes, em 1913, sobre a
pilhagem do navio que trazia o maquinário encomendado da França.
Da inauguração em 1829 aos dias de
hoje, a Ilha Rasa viveria uma existência
sem sobressaltos, com a lenta e progressiva modernização de seu equipamento
luminoso até se tornar, em 1883, o primeiro farol elétrico da América do Sul.
Ao longo desse período, viveria um único evento extraordinário: o naufrágio
do Buenos Aires, no final do século 19.
“Ao contrário do que diz o senso
comum, a eficiência de um farol não
se mede pelos navios que viu afundar,
mas pelos que ajudou a passar ao largo”, diz Maurício Carvalho, criador do
Serviço de Informações de Naufrágios
(Sinau), um dos mais abrangentes
bancos de dados do setor. Biólogo e
instrutor de mergulho, Carvalho já
registrou, desde 1995, 2.536 naufrágios
106 DEGRAUS LEVAM AO ALTO DA TORRE DE 26 METROS DE ALTURA.
NO ALTO, SINO DE SINALIZAÇÃO; E O CABO FAROLEIRO MARKOS NO
INTERIOR DO FAROL, AINDA COM AS LENTES ORIGINAIS DE 1833
65
“AINDA HOJE,
OS FARÓIS
SÃO MARCOS
REFERENCIAIS
IMPORTANTES”,
DIZ AMYR
KLINK
“O TRABALHO
DO FAROLEIRO
É OFERECER
UM CAMINHO
DE VOLTA”,
ENSINA O CABO
MARKOS
66
NO ALTO, VISTA DA ENTRADA DO RIO DE JANEIRO TOMADA DA ILHA
RASA EM MAPA FRANCÊS DE 1839. ACIMA, O SUBOFICIAL LUZ NO
ALTO DO FAROL, A 101 METROS ACIMA DO NÍVEL DO MAR
MAPA: REPRODUÇÃO ACERVO BIBLIOTECA DA MARINHA
na costa brasileira, consolidando as informações em pelo menos duas fontes
primárias – acervos de jornais, documentos da Marinha, depoimentos de
testemunhas. A cada ano, o seu garimpo
resgata do esquecimento cerca de 40
novos casos. “O Buenos Aires está entre
os 106 naufrágios de importância histórica confirmados na costa da cidade.”
O vapor alemão vinha de Hamburgo
em direção a Buenos Aires quando se
chocou com a Rasa, na madrugada de
24 de julho de 1890. Na aproximação
para a escala no Rio, atingiu os rochedos
da parte leste da ilha. Resgatados com a
ajuda da brigada do farol, passageiros e
tripulantes remaram em segurança rumo
a Baía de Guanabara. “O que se sabe é que
o tribunal marítimo da Alemanha inocentou o imediato que conduzia o navio
na hora do choque”, diz o pesquisador.
“O farol vinha modernizando seu sistema
de iluminação. A tripulação pode ter sido
afetada por isso. É fácil falar de imperícia
da segurança da terra firme.”
UM CAMINHO DE VOLTA
Atracamos na Rasa ao final da manhã, do
lado oposto ao afundamento do Buenos
Aires, depois de 50 minutos de travessia.
O Amorim do Valle é fundeado ao largo
e fazemos a aproximação numa lancha
de apoio. Do ponto onde desembarcamos, uma escada esculpida na pedra por
escravos nos leva ao maciço principal da
ilha, com 1.020 metros de comprimento e
390 em sua maior largura. A partir dali, a
subida é íngreme e conta com um sistema
de cabos e roldanas para auxílio nas missões de abastecimento. No último terço
da caminhada, o farol desponta por trás
da vegetação, que vai ganhando altura
conforme nos aproximamos do platô, a
única e pequena área de superfície plana.
É uma construção de estilo colonial
de base quadrangular, em cantaria bem
67
trabalhada e paredes de mais de 1 metro
de espessura. Em contraste com as outras edificações da ilha, de arquitetura
indefinida, a torre parece não acusar a
passagem do tempo. “As lentes ainda são
as originais da época de sua eletrificação”,
diz o capitão de mar e guerra reformado e
pesquisador Ney Dantas, 75 anos. Graças
“à centenária engenharia ótica francesa”,
sua assinatura – dois “relâmpagos” brancos e um vermelho a cada 15 segundos
– pode ser percebida a quase 95 quilômetros de distância. “É até hoje o mais importante farol da costa brasileira.”
O zelo com que o cabo faroleiro
Markos, 28 anos, retira a cobertura do
equipamento em descanso para as fotos,
ao final da manhã, comprova a reverência
renovada a cada nova rendição da equipe.
Ele e o suboficial Luz, 46 anos, o encarregado de motores da vez, preparavam o
desembarque no final de março dos veteranos da guarnição, o eletricista Amaro e
o curinga Estrela, professor de educação
física. Em breve, receberão os novos
calouros para ambientá-los na rotina militar, que inclui, além da manutenção do
farol e de seus geradores, a tomada diária
dos dados da estação meteorológica que
funciona na ilha, para a atualização de
boletins da Marinha. Os dois não disfarçam que, mal completado o primeiro mês
de seu turno, já começam a sentir falta da
Rasa, por antecipação. “Com a internet, o
contato com a família é diário e a saudade
não chega a ser um problema”, diz Luz. “A
distância é até boa para o relacionamento”, argumenta Markos, também casado,
pai de um garoto de 5 anos. Perguntados
se, quando estiverem de volta ao Rio, sentirão mais falta da ilha do que jamais sentiram de casa quando estiveram na Rasa,
Markos se adianta com um quase enigma,
dando a entender onde prefere estar: “O
trabalho do faroleiro é oferecer um caminho de volta”.
POR Ruy Castro, do Rio de Janeiro ILUSTRAÇÃO Veridiana Scarpelli
A PIOR PELADA
DA HISTÓRIA
Foi em 1945, na praia do Leblon, o embate entre Copacabana e Ipanema.
Envolveu Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino... —
craques da literatura, mas pernas de pau no futebol
N elson Rodrigues passou a vida escrevendo sobre futebol – na Última
Hora, na Manchete Esportiva, no Jornal
dos Sports, no Globo. Foi o maior cronista
do futebol e também quem definiu a seleção como “a pátria em chuteiras”. Mas
é impossível imaginá-lo jovem, calçado
com as próprias e disputando uma pelada, mesmo que de alto a baixo com as
cores do Fluminense. Por quê? Porque
Nelson não teve tempo para ser jovem. Já
aos 17 anos, em 1929, defrontou-se com a
tragédia – o assassinato de seu irmão Roberto, que o condenou prematuramente à
vida adulta.
Da mesma forma, o rubro-negro José
Lins do Rego. O grande romancista, autor
de Fogo morto e Menino de engenho, era
também cronista esportivo e, de 1945 a
1957, escreveu diariamente sobre futebol
no Jornal dos Sports, falando quase que
exclusivamente do Flamengo. Mas, na
vida real, ninguém jamais viu Zé Lins
matando uma bola no peito, trazendo
para a coxa e emendando de primeira.
O mesmo quanto ao vascaíno
Carlos Drummond de Andrade, o botafoguense Otto Lara Resende, o americano Marques Rebelo e o banguense
José Mauro de Vasconcellos. Nunca
se soube que, um dia, eles tenham trocado as calças por calções para bater
uma bolinha. Aposto até que nenhum
deles conseguia fazer uma embaixada
com mais de dois toques. E era bom
que fosse assim – porque a recíproca
também deve ser verdadeira. Alguém
consegue imaginar um romance escrito
pelo Cafuringa, pelo Dadá Maravilha
ou pelo Ronaldinho Gaúcho?
Mas pode crer: houve um dia em
que alguns dos maiores craques da poe-
70
sia, da crônica e da literatura brasileira
entraram em campo no Rio para disputar uma pelada. Pelada de praia, bem
entendido. E com mais mulheres do que
homens na torcida. Mas, pela categoria dos nomes envolvidos, era como se
estivessem em campo Pelé, Garrincha,
Tostão, Zico e Romário.
O DONO DA BOLA
Foi em dezembro de 1945, e consistiu
num jogo Copacabana x Ipanema, reunindo intelectuais e artistas moradores
de um bairro ou de outro. O fato de
muitos já usarem óculos, terem pernas
finas e passarem o dia com uma certa
quantidade de álcool no sistema devia
comprometer seu rendimento atlético. Mas, como todos estavam mais ou
menos na mesma condição, as coisas se
equilibravam.
A ideia foi do influente poeta e editor Augusto Frederico Schmidt, então
com 39 anos, e havia um motivo secreto.
Era o único jeito de ele chegar perto
do seu sonho: o de vestir em campo a
camisa do Botafogo. E Schmidt tinha
uma bonita camisa listrada do seu clube, com a competente estrela solitária
ao peito, além de um calção branco
que lhe vinha ao meio das canelas.
Como ninguém no Botafogo era maluco para deixá-lo sequer entrar em
campo com os profissionais, o jeito era
inventar uma pelada da qual ele fosse
a estrela. Não por acaso, era também
possuidor de uma bola Superball nº 5,
oficial, o que o tornava dono do jogo,
com poderes até para escalar os times.
Foi assim que, para formar o escrete de Copacabana, Schmidt convocou
o pintor e goleiro Di Cavalcanti, 48
anos; o jornalista e cronista Rubem
Braga, 32; o publicitário e escritor Orígenes Lessa, 42, então mais conhecido
como criador do slogan da Coca-Cola
“Isto faz um bem...”; o escultor José
Pedrosa, 30, ainda pouco cotado na
71
O FATO DE
USAREM
ÓCULOS
E TEREM
PERNAS
FINAS
EQUILIBROU
O JOGO
praça; os jornalistas Moacir Werneck
de Castro, 30, e Newton Freitas, 36; e os
jovens críticos mineiros Paulo Mendes
Campos e Fernando Sabino, respectivamente 23 e 22 anos – recém-chegados
de Belo Horizonte, mas cujo charme já
os integrara às rodas literárias cariocas. Fernando, aliás, era o único ali que
poderia ser remotamente chamado de
atleta – fora campeão mineiro de natação ou coisa parecida, embora isso só
lhe valesse naquele momento se fosse
uma competição de polo aquático.
Por Ipanema, adentraram a areia,
entre outros, o poeta e diplomata Vinicius de Moraes, 32 anos, já quase de
partida para Los Angeles como cônsul;
o desenhista e publicitário Carlos Thiré,
28, então tão ocupado em desenhar histórias em quadrinhos para O Globo que
mal lhe sobrava tempo para sua jovem
mulher, a linda Mariinha, tão desejada
por tantos – e olhe que ela ainda nem tinha se tornado Tonia Carrero; o escritor
Aníbal Machado, 51, em cuja casa na rua
Visconde de Pirajá reuniam-se, aos domingos, todos os grandes nomes da literatura brasileira ou mundial, de visita
ao Rio; o diplomata Lauro Escorel, 36;
o trotskista Carlos Echenique, 32; e um
médico calvo que ninguém sabia bem
quem era, mas que se revelou o melhor
do time e levou uma traulitada do viril
zagueiro Rubem Braga, para deixar de
ser assanhado.
Mas a grande sensação da praia era a
torcida, concentrada nos degraus de cimento do Leblon. Ali estavam Mariinha,
loura, de olhos azuis e toda toda; Tati,
O JOGO
DUROU
TRÊS
TEMPOS E
IPANEMA
PERDEU
POR 3 A 1
a admirada mulher de Vinicius; a bela
Elsie, mulher de Orígenes e mãe de Ivan,
todos Lessa; Zora, mulher de Rubem
Braga; Miriam Etz, a gata alemã, modelo
de propaganda e pioneira do duas-peças
no Arpoador e no Brasil; e outras que os
cronistas daquele prélio não registraram.
Lindas de morrer, com seus shortinhos
brancos e curtos ou saias rodadas e vaporosas, chupando melancias, e rindo
tanto quanto torcendo.
Ah, sim, o jogo em si. Foi o que
menos interessou. Não havia juiz, e o
goleiro Di Cavalcanti decretou que, se
uma bola lhe passasse um palmo acima
da cabeça, seria tiro de meta. Como Di
tinha pouco mais de 1,5 metro, pode-se
imaginar. Schmidt, logo ele, deu o pontapé inicial e, com 1 segundo de jogo...
contundiu-se! Saiu e foi para trás de
um dos gols, formados por bolinhos de
camisas coloridas. Pouco depois, com 2
minutos de bola rolando, Vinicius também saiu mancando. “Senti o menisco”,
alegou, e foi alegremente juntar-se às
moças. Com algumas jogadas de efeito
e outras de delicioso ridículo – pés que
ficavam presos na areia, bolas sem querer entre as canetas e atletas com súbi-
73
tas dores nos rins –, o jogo durou três
tempos, ao fim dos quais registrou-se
a vitória de Copacabana por 3x1. Mas,
no futuro, Paulinho Mendes Campos a
classificaria como uma vitória de pirro,
porque, já então, quase todos os copacabanenses daquela jornada tinham
se tornado cidadãos de Ipanema. Essa
pode ter sido a pior pelada de todos
os tempos, mas nenhuma a supera em
textos que a cantaram. Em épocas diferentes, os três maiores cronistas brasileiros escreveram a seu respeito: Rubem
Braga, em seu livro Um pé de milho;
Fernando Sabino, na coletânea Gente 1;
e Paulo Mendes Campos em Os bares
morrem numa quarta-feira (relançado
com o título Murais de Vinicius e outros
perfis). Três pequenas obras-primas da
crônica brasileira, e cada uma melhor
que a outra. (Mentira: a de Rubem Braga é disparado a melhor.)
Fico imaginando uma pelada, hoje,
nas areias do Leblon, entre escritores,
músicos e outros, residentes no bairro
ou em Ipanema. Os craques seriam Nelsinho Motta, João Ubaldo Ribeiro, os
veteraníssimos Rubem Fonseca e Zuenir Ventura, o jornalista Sergio Augusto,
os cantores Fagner e Zé Renato, o compositor Guinga, o ex-craque Paulo César
Caju, o presidente do Ibope (e ex do
Botafogo) Carlos Augusto Montenegro
e que tais. Entre os quais, eu – para você
ver a que nível chegou o nosso futebol.
É verdade que o artilheiro Fred, do
Fluminense, também mora nos nossos
quarteirões. Mas, como vive machucado, decidimos não contar com ele.
TONY BELLOTTO PERGUNTA:
POR QUE
VOCÊ
PREFERE
OS CARROS
ANTIGOS?
74
OG POZZOLI RESPONDE:
O que acontece é que os automóveis antigos eram feitos numa
prancheta. Não eram feitos por um computador. Hoje, eles são quase
idênticos. Quando você olha um automóvel japonês, um americano,
um alemão, são todos praticamente iguais. Os antigos têm mais
autenticidade. Cada carro é um carro. Vamos pegar, por exemplo,
um Packard. Você sabe que é um Packard. Um Rolls-Royce: você tem
certeza que é um Rolls-Royce. Tudo isso faz a alma do carro. Prefiro
os antigos porque cada um deles tem seu DNA muito específico.
75
POR Fausto Salvadori Filho FOTOS Luiz Maximiano
AUTO
FALANTE
Quando está ao lado de um de seus 170 carros antigos, o colecionador
Og Pozzoli dispara a contar a história de cada um com entusiasmo.
É como se os automóveis falassem, revelando papas desobedientes e
princesas ameaçadas de morte. “Tudo aqui tem uma história”
OG POZZOLI EM UMA DAS GARAGENS DE SUA CASA NA GRANDE
SÃO PAULO AO LADO DO CHEVROLET 1932, MODELO CONFEDERADO.
AOS 83 ANOS, O EMPRESÁRIO CRIOU O PRIMEIRO GRUPO DE
COLECIONADORES DE CARROS ANTIGOS DO BRASIL
PERSONNALITÉ
uando o governo de São Paulo inaugura uma rodovia
e quer estrear a pista com um automóvel à altura do
evento, ou quando o Itamaraty recebe estrangeiros ilustres e
precisa recebê-los em veículos capazes de impressionar príncipes e papas, sabem a quem recorrer. Nessas horas, ninguém
melhor do que o empresário Og Pozzoli, dono da mais célebre coleção de carros antigos do Brasil.
Og já emprestou seus automóveis para recepcionar o papa
João Paulo II e a família real japonesa, inaugurar obras como
o Rodoanel e a segunda pista da rodovia Imigrantes, além de
participar de desfiles de Sete de Setembro e dos veteranos
da Revolução de 32. “Faço apenas uma exigência: que eu seja
o motorista”, conta. Os convites precisam ser feitos com antecedência. É que, para garantir que modelos fabricados há
mais de 60 anos permaneçam como novos, os carros passam
os dias assentados sobre cavaletes, sem gasolina, nem bateria,
com radiador seco e os pneus vazios. Estão “hibernando”, diz
Og. Para despertá-los, é preciso ir com cuidado. Tem que revisar os freios, limpar o cárter, lustrar algumas válvulas para
remover inícios de ferrugem, movimentar aos poucos os pistões... Um processo que não leva menos de duas semanas.
Os 170 carros da coleção, todos restaurados com as peças
originais, estão distribuídos em duas chácaras de sua propriedade, uma no interior do estado e outra na Grande São Paulo,
chamada Casa Vermelha, onde Og mora com a esposa. É na
Casa Vermelha que estão os veículos mais raros, mas nem por
isso favoritos. “Você tem um filho favorito?”, desconversa o
pai de dois casais e avô de três netas.
Dividida em cinco salões, a coleção da Casa Vermelha tem
a organização de um museu, com placas nos carros indicando
o ano de fabricação e avisos nas paredes para não tocar nas
obras. “É um museu fechado, e não posso abrir porque moro
nele.” Og afirma ter recusado ofertas de compradores que
queriam levar sua coleção para o Oriente Médio. Sonha com
o dia em que o poder público ou privado invista para transformar a coleção num museu aberto. “Espero que isso aconteça antes de ser chamado para o andar superior.”
Aos 83 anos, Og vive mesmo em um museu. “Apaixonado
por história”, enxerga o passado como uma fonte permanente de presentes. Até os vastos bigodes que cultiva desde sempre, entre os óculos grossos e o sorriso de homem bem vivido
que tem sempre “uma história interessante” para contar,
lembram um rosto de outro século. É com esse sorriso que
o colecionador recepciona a equipe da Revista Personnalité,
que chega à Casa Vermelha em um Toyota Corolla. “Esses
japoneses ainda são novos em automóveis”, brinca.
OG POZZOLI JÁ
EMPRESTOU
SEUS CARROS
PARA PAPAS
E PRINCESAS.
A ÚNICA
EXIGÊNCIA:
“QUE EU SEJA
O MOTORISTA”
78
REPRODUÇÃO DE ARQUIVO PESSOAL
Q OG POZZOLI
Em frente à sua casa, um canhão de quatro séculos
enfeita o jardim. “Estava num navio afundado no litoral de
Santa Catarina, em 1625”, conta. Depois de passar diante
de uma bomba de gasolina retirada de um posto Shell de
1910, Og conduz a reportagem ao “salão de bagunças” da
chácara, usado para festas e brincadeiras. Ali também o
passado das tecnologias está por todos os lados: numa
hélice de um avião Beechcraft mantida embaixo do piano,
num tear manual transformado em peça de decoração ou
em um motor de automóvel colocado numa mesa. Um motor que, aos olhos de Og, conta histórias sobre a industrialização do Velho Mundo. “Veja que o motor é um Peugeot
e o magneto é Bosch. Mostra que a indústria europeia já
estava se unindo”, explica.
Os passos seguintes levam aos automóveis, e aí a memória não para mais de jorrar. “Tem uma história interessante”
é um bordão que Og repete ao apresentar cada automóvel,
para logo em seguida enumerar uma série de acontecimentos, datas e nomes relacionados aos veículos. A paixão do
colecionador por esses objetos envolve não só a engenharia
NA PÁGINA AO LADO, OG CONDUZ A PRINCESA JAPONESA MICHIKO E O PAPA
JOÃO PAULO II. ACIMA, UM DOS QUATRO MERCEDES DO COLECIONADOR DIANTE
DE UMA BOMBA DE GASOLINA RETIRADA DE UM POSTO SHELL DE 1910
dos motores de 12 cilindros e a arte das carrocerias, como
também os eventos que evocam. É como se os automóveis
falassem, contando sobre papas desobedientes, governadores
ciumentos e princesas ameaçadas de morte. “Tudo aqui tem
uma história”, diz.
Uma dessas histórias conta que, logo após dar o golpe que
implantou a ditadura do Estado Novo, em 1937, Getúlio Vargas
visitou o governador de Minas Gerais. Benedito Valadares
comprara um Chrysler Imperial para receber o presidente.
Sabendo disso, o governador paulista, Ademar de Barros, não
quis ficar para trás. No ano seguinte, ao receber uma visita
de Vargas, tratou de conduzi-lo num Lincoln K fora de série
idêntico ao usado, na época, pelo presidente norte-americano
Franklin Roosevelt. “Por coincidência, os dois carros estão hoje
na minha coleção”, mostra Og (veja na página a seguir).
O Chrysler Imperial 1937, lembra, foi também usado para
conduzir a escolta da princesa japonesa Michiko, que visitou o
Brasil, em 1978, cercada de seguranças. Já o Lincoln acabaria
usado por Og para conduzir o papa João Paulo II na sua primeira visita ao Brasil, em 1980.
79
PERSONNALITÉ
CHRYSLER IMPERIAL 1937
Em 1978, quando o Brasil comemorava os 70
anos da imigração japonesa, o carro conduziu a
família real. A princesa Michiko seguiu num outro
Chrysler Imperial, ano 1928, dirigido por Og
FORD LINCOLN K 1938
Das cinco unidades fabricadas, restam duas.
A de Og foi usada por Getúlio Vargas, pelo
presidente Charles de Gaulle, pela rainha
Elizabeth II e, em 1980, pelo papa João Paulo II
OG POZZOLI
PACKARD 1936
Carro que serviu ao presidente Eurico Gaspar
Dutra é equipado para evitar atentados. O
banco de trás é recuado em relação à janela,
para atrapalhar a visão de um eventual atirador
MOON 1918
Pertenceu ao então governador de São Paulo e
futuro presidente Washington Luís. A Moon foi
uma fabricante norte-americana de carros que
faliu com a Grande Depressão, em 1929
PERSONNALITÉ
O Lincoln desperta em Og a lembrança do arcebispo Paul
Marcinkus, um norte-americano com 1,95 metro que atuava
como chefe de segurança do papa, sempre com uma pistola
Colt .45 embaixo da batina. Quando Og se preparava para levar
João Paulo II a bordo do Lincoln para saudar a multidão reunida no estádio do Morumbi, as ordens de Marcinkus foram claras: “Dê um quarto de volta à direita e pare. Se Sua Santidade
mudar qualquer coisa, não obedeça”. Quando o pontífice entrou no carro, pediu para virar à esquerda e dar duas voltas no
estádio. Og obedeceu. Quando reencontrou Marcinkus, o chefe
da segurança estava furioso e chamou o empresário de “irresponsável”. “Entre obedecer ao senhor e ao papa, eu obedeço ao
papa”, respondeu Og com uma risada.
PATRIARCA DO ANTIGOMOBILISMO
Og já nasceu em trânsito. Neto de um engenheiro italiano que
trabalhou nas obras da ferrovia Great Western, em Pernambuco, e filho de um engenheiro que também atuava como jornalista no Rio Grande do Norte, veio ao mundo em Itaboraí, no
Rio de Janeiro, durante uma viagem do pai para cobrir a Revo-
82
lução de 30. A família voltou para Natal, onde Og morou até os
25 anos. Em 1956, saiu do estado “para começar a vida em São
Paulo, com 54 cruzeiros e 30 centavos no bolso”. Fez um “rali
do eu sozinho”, a bordo do seu primeiro carro, um Opel P4 de
1937, com o qual enfrentou 3.400 quilômetros, vários deles em
estradas de terra, com poucos postos de gasolina, o que o obrigava a levar latas de combustível. Na nova cidade, o dinheiro
encurtou e Og se viu obrigado a vender o Opel.
Em 1958, criou uma empresa de engenharia, a Isoterma,
que participou de obras da recém-nascida Brasília, incluindo o
Palácio da Alvorada e o Congresso Nacional, das hidrelétricas
de Jupiá e Ilha Solteira, no estado de São Paulo, e pelo mundo
afora, na Argélia e na Mauritânia. Quando a empresa começou
a fazer dinheiro, realizou “o sonho de todo brasileiro da época”.
Comprou um Fusca. Comprou também um carro antigo, bem
mais barato, um Lincoln Continental 1948, “só para brincar o
Carnaval”. Passada a festa, ficou com pena de vender o carro.
“Aí descobri que tinha um espírito de colecionador.”
O Lincoln se tornou o primeiro carro da futura coleção
de Og. Foi recostado nesse automóvel, durante o Carnaval de
OG POZZOLI
1962, numa praia de Santos, que conheceu Lúcia, então com 18
anos. No ano seguinte, se casaram. “Estamos juntos há mais de
50 anos, sem arrependimentos”, diz.
Junto com mais 11 amigos, criou em 1968 o primeiro grupo
de colecionadores de carros antigos, o Veteran Car Club do
Rio de Janeiro, do qual foi o sócio número 1. Hoje, tem título
de sócio honorário em mais de 40 clubes filiados à Federação
Brasileira de Carros Antigos, da qual já foi presidente. É por
isso que outros colecionadores o chamam de “patriarca do antigomobilismo”. A esposa diz que compartilha da paixão de Og
pelas antiguidades motorizadas e já acompanhou o marido em
várias maluquices sobre quatro rodas, inclusive um rali de 9.600
quilômetros entre São Paulo e Valparaíso, no Chile, reunindo só
carros com mais de 40 anos para enfrentar altitudes de 4.200
metros e temperaturas de 18 graus negativos na Cordilheira dos
Andes. “Os carros antigos se comportam bem. Foram feitos para
andar em estradas de terra, aguentar o diabo”, diz.
O gosto pelo passado deve ajudar a encarar o presente, porque Og continua a levar uma rotina das mais ativas. Vai trabalhar todos os dias e não abre mão do gosto de dirigir o próprio
O COLECIONADOR EM UMA DAS GARAGENS DE SUA CASA. ACIMA, JARDINEIRA
DE 1914 COMPRADA DE UM FAZENDEIRO QUE TROUXE O VEÍCULO AO BRASIL EM
1918. NEM A MONTADORA FIAT POSSUI O ÔNIBUS EM SEU ACERVO
carro, mesmo que isso signifique passar até 4 horas no trânsito. Nem é tanto tempo assim, se ele puder passar dentro de
algum dos cinco caçulas da Casa Vermelha – quatro Mercedes e um BMW, todos com mais de 20 anos.
Quanto vale uma coleção dessas? Og não sabe dizer, e
nem tem muito interesse em descobrir – não pretende vender nenhum dos seus “filhos”. Nisso de viver cercado do
que ama e fazer o que gosta, descobriu toda a felicidade que
poderia querer. Uma vez (afinal, sempre há uma história
para contar), Og foi posto à prova por Gianni Agnelli, principal acionista da Fiat. Em visita à Casa Vermelha, o italiano
encantou-se com o veículo mais antigo da coleção de Og: um
ônibus do tipo jardineira, fabricado pela Fiat em 1912. Ofereceu US$ 1 milhão por ela, mas Og não aceitou.
Inconformado, Agnelli perguntou por quê. E o colecionador respondeu: “Eu sou um homem realizado. Se aceitar esse
milhão, vou continuar morando na mesma casa, casado com
a mesma esposa, bebendo o mesmo vinho, o mesmo uísque, e
vou ficar sem a minha jardineira”. O italiano deu uma risada
e concluiu: “O senhor é um filósofo”.
83
O “MURO DA VERGONHA”, QUE ISOLA
O POVO SAHARAUI DO OCEANO
TEXTO E FOTOS Samir Abujamra, de Lisboa
TINHA
UMA MINA
NO MEIO
DO CAMINHO
O cineasta Samir Abujamra
entrou para uma rara estatística:
sobreviveu à explosão de uma mina
antitanque no Saara Ocidental,
onde filma o documentário
El desierto del desierto
85
O nome não deixa dúvidas: o deserto do
deserto é uma das regiões mais inóspitas
do planeta. A autoproclamada república
dos saharauis, também conhecida como
Saara Ocidental, no noroeste da África,
vive uma violenta disputa territorial
com o Marrocos, envolvendo um muro
levantado para impedir o acesso do povo
do deserto ao oceano. Foi lá, em janeiro
passado, que o carro que levava Samir
Abujamra e o colega Tito Gonzales em
direção ao mar explodiu ao passar por
cima de uma mina antitanque. Samir ainda tenta entender como sobreviveu. Nas
páginas que seguem, o diretor divide suas
memórias e fotos dessa jornada. E retraça
os passos que o levaram a encarar uma
experiência-limite para contar o drama de
um povo que o mundo pouco conhece.
DOUGAJ, SAARA OCIDENTAL,
18 DE JANEIRO DE 2014
“Se eu morrer, estarei morrendo pelo
meu país. E se vocês morrerem, estarão
morrendo por quem?” As palavras do comandante Taleb, da 1ª Região do Exército
Saharaui, proferidas em um espanhol
perfeito, provocaram um longo silêncio
na fria e escura sala do quartel de Dougaj.
“SE EU
MORRER,
ESTAREI
MORRENDO
PELO MEU
PAÍS? MAS E
VOCÊS?”
Dougaj, no sul do Saara Ocidental,
é o último ponto antes de um sprint de
três dias pela parte mais perigosa do país,
uma estreita faixa junto ao Muro da Vergonha, com mais de 2.000 quilômetros
de extensão, levantado pelo Marrocos
para isolar o povo saharaui. A passagem
é a única forma de alcançar o Atlântico a
partir do território que sobrou aos saharaui – a porção mais inóspita do deserto
do Saara, chamada de El Desierto del
Desierto, título do nosso documentário.
O comandante Taleb, enrolado em sua
túnica, tinha o porte de um centurião
romano. O militar lia e relia os papéis
protocolares que solicitavam a nossa escolta
de Dougaj até o mar.
No canto da sala, uma
televisão velha exibia
um jogo de futebol. De
repente, Taleb quebrou
o silêncio. “Nós fazemos incursões regulares até os 30 quilômetros de litoral que
estão sob nosso comando”, disse ele. “É
uma área extremamente perigosa, com
muitas minas. Desde o cessar-fogo de
1991, nenhum jornalista, nenhum estrangeiro sequer esteve lá.” E avisou: “Isso
me parece uma loucura”.
Naquele dia completávamos duas
semanas de filmagem desde os campos
de refugiados do Bojador, no sudoeste da
Argélia. Para encerrar o roteiro que prevíamos para o filme, precisávamos que o
comandante Taleb autorizasse nossa passagem e providenciasse uma escolta. Ele
não parecia muito interessado.
Na TV, o juiz marcou um pênalti. Foi
aí que lembrei: eu tinha na mala um salvo-conduto que costuma ser eficiente em
situações rígidas como aquela – camisas
da seleção brasileira. “Comandante Taleb,
a usted le gusta el fútbol?”, perguntei. “No.
86
No me gusta el fútbol, me gusta el combate...” A reunião acabou pouco depois.
O militar comunicou que pensaria no
assunto e nos dispensou. Fomos dormir
sem saber se no dia seguinte partiríamos
rumo ao nosso destino, o mar.
MONTMARTRE, PARIS,
24 DE AGOSTO DE 2013
“Como nunca havia ouvido falar nessa
história?”, me perguntava, no apartamento de um amigo, o cineasta francochileno Tito Gonzalez Garcia. Eu estava
em Paris para participar, como ator, de
um filme. Bebíamos vinho enquanto ele
me mostrava as imagens que
havia feito três meses antes,
nos campos de refugiados do
Bojador, onde vivem aproximadamente 200 mil saharauis expulsos de sua terra,
ocupada pelo Marrocos.
Tito havia estado lá durante as comemorações dos
40 anos da formação da Frente Polisario,
a resistência constituída em 1973 para
pressionar a saída da Espanha – o que
acabou ocorrendo em 1975. Mas a saída
espanhola acabaria piorando as coisas.
Os europeus – que conviveram, ensinaram o castelhano e trabalharam com o
povo saharaui por quase cem anos – fizeram um acordo para deixar a antiga
colônia sob o comando do Marrocos e da
Mauritânia. Em troca, exigiram garantia
de continuidade na exploração de fosfato (a região possui as maiores reservas
mundiais do mineral) e autorização para
que mantivessem mil barcos de pesca na
costa do Saara Ocidental, uma lucrativa
zona pesqueira.
Eu, que não sabia de nada disso, via
atentamente o material bruto que Tito
me mostrava. Tentava processar em minha cabeça a enxurrada de informação
ACIMA, O DIRETOR SAMIR ABUJAMRA, DE TURBANTE, NOS CAMPOS DE
REFUGIADOS. NA OUTRA PÁGINA, CENÁRIO DA EXPLOSÃO, NO SAARA
OCIDENTAL: O QUE SOBROU DO JIPE DA EQUIPE DE FILMAGEM DEPOIS
DE DETONAR UMA MINA TERRESTRE
87
MAPA: BRUNO ALGARVE
que aquelas imagens traziam. Foi quando
apareceu o depoimento de um saharaui
dizendo que “la filosofia de los beduínos
es combatir el dolor con más dolor”. “Eles
falam castelhano?”, perguntei, incrédulo.
Descobri ali que os saharaui são os únicos
árabes que têm o espanhol (além do árabe, claro) como língua oficial. Foi o clique
que me faltava. Minha família é sírio-libanesa e eu vinha de uma experiência intensa: vivera dois anos como um nômade
moderno, viajando sozinho por 37 países
em todos os continentes. A soma da minha origem com esse impulso de circular
o mundo me fisgou. Como resistir diante
daquela história de nômades que têm a
sina de viver confinados?
Dias mais tarde estava na sala de embarque do aeroporto Charles de Gaulle,
em Paris. Postei no Facebook: “Alguém
aí tem 30 mil euros para investir em um
documentário internacional?”. Doze
horas depois, enquanto esperava minha
bagagem no Rio, vi que alguém havia respondido: um publicitário. Não o conhecia
pessoalmente. Ele queria financiar parte
do filme. Quatro meses depois (e com a
entrada de outros quatro investidores),
eu embarcava com Tito para o Saara
Ocidental. Nunca havia participado de
um projeto de longa-metragem com tamanha celeridade. Parecia, perdoem-me
o clichê, que aquela era uma história
que estava pedindo para ser contada.
GUERGUERAT, SAARA OCIDENTAL,
21 DE JANEIRO DE 2014
Naquela manhã despertei
um pouco antes do nascer do sol. Era a segunda
noite consecutiva que
dormíamos no deserto.
A temperatura média no
inverno do Saara oscila
entre 20 oC e 30 oC de dia.
À noite, cai para 5 oC. Havíamos partido
dois dias antes de Dougaj. O comandante Taleb finalmente autorizara nossa
incursão até a costa, depois de receber
uma chamada do presidente da Rasd,
88
República Árabe Saharaui Democrática.
Aproximadamente 400 quilômetros,
em linha reta, separam Dougaj do Atlântico, na costa de La Güera. O plano de
ataque para alcançar o mar funciona da
seguinte forma: viaja-se dois dias até um
lugar chamado Sbara – apenas um ponto
onde há um grande arbusto que serve de
abrigo para passar a noite –, distante 30
quilômetros da costa. De lá, parte-se cedo
rumo ao litoral, iniciando o trajeto inverso algumas horas depois,
sempre à luz do dia.
Partimos às 8h45.
Nosso carro era um
Toyota Land Cruiser
fechado, com quatro homens – além de mim, estavam Tito, Chino (nosso
assistente e tradutor) e
Mouktar, um soldado que havia substituído Ahmed, nosso motorista, na condução por aquela que era a parte mais
perigosa de todo o trajeto. Nós seguíamos o carro da escolta, um Land Crui-
NO ALTO, O MOTORISTA DA EQUIPE, AHMED, DIANTE DA CARCAÇA DE
TANQUE MARROQUINO CAPTURADO EM 1976. ACIMA, O COMANDANTE TALEB
ser aberto, com dois soldados na frente
e três homens na caçamba – Ahmed e
outros dois militares. O percurso era
feito muito lentamente. Na zona mais
densamente minada, a velocidade caiu
para menos de 10 km/h.
Era necessário um cuidado extremo para evitar,
a olho nu, as milhares de
minas espalhadas.
Os soldados conheciam bem a sinistra área,
repleta de todo tipo de
lixo militar, inclusive munição não deflagrada. Nosso carro tinha
que acompanhar, milimetricamente, o
traçado deixado na areia pelo carro da
escolta. O silêncio era absoluto. Estava
na frente, ao lado do motorista. Tinha
minha câmera no colo, mas a tensão era
tal que nem eu nem Tito gravávamos
qualquer imagem. A uma certa altura,
abri o vidro e aspirei o ar em busca de
algum sinal de maresia. Poucos minutos
depois foi como se o tempo parasse.
Uma violentíssima explosão impeliu o carro para cima e para o lado.
Fagulhas, areia e óleo diesel por todos
os lados. Havíamos passado sobre uma
mina antitanque. Saí do carro, atônito, e
vi Tito já do lado de fora. “Estás bien?”,
perguntei. Ele disse que sim. Meu estado de confusão mental era tamanho que
indaguei em seguida: “E eu? Eu estou
bem? Estou sangrando?”.
Os homens do carro da
escolta, uns 20 metros
à frente, começaram a
gritar desesperadamente.
Pediam para que não nos
movêssemos – todo o
entorno do que sobrou do
nosso carro estava salpicado de minas pessoais. Ao pisar em um
desses explosivos você, no mínimo,
perde uma perna. Por sorte ou milagre,
não pisamos em outra mina e fomos
embora no carro da escolta.
Nos dias que se seguiram, durante o
longo trajeto de volta para os campos de
refugiados, e na semana subsequente,
onde arrematávamos as filmagens por
lá, fomos entendendo melhor a magnitude do que havia ocorrido. Os velhos
soldados que estavam havia 40 anos na
guerra, gente de várias associações e
ONGs de apoio a vítimas de minas, especialistas e engenheiros militares – todos
MURO DA VERGONHA
As setas pretas indicam
o caminho de Samir. A
linha vermelha é o Muro
da Vergonha, com 2.700
quilômetros de extensão.
Erguido pelo Marrocos há
30 anos, ele impede que
o povo saharaui acesse
o oceano. Sete milhões
de minas terrestres estão
espalhadas ao longo de
seu percurso, no maior
campo minado contíguo
do mundo.
NO ALTO, CENA NÃO INCOMUM NO SAARA OCIDENTAL:
MERCADORES TRANSPORTAM DROMEDÁRIOS DE CARRO
89
O DESERTO
É REPLETO
DE LIXO
MILITAR
POR TODO
LADO
foram unânimes: nunca haviam sabido
de um caso em que quatro pessoas saíram com vida da explosão de um carro
por uma mina antitanque. Entramos
oficialmente para as estatísticas mundiais de vítimas de minas e para uma
lista muito menor de quem saiu ileso
dessa experiência.
Vencer El Desierto del Desierto
e chegar ao mar, ao espaço sem fronteiras, era o final planejado de nosso
documentário. Mas, naquela fração de
segundo em que a mina foi detonada,
a apenas 800 metros da costa do Saara
Ocidental – que nunca chegamos a ver
–, o filme tomou outro rumo. A contraposição da esperança anterior com
o impedimento causado pela explosão
apareceu de forma gritante. As coisas
assumiam outro sentido.
De certa forma, o acidente, a barreira de explosivos, invisível e brutal, ao
nos tolher a liberdade de seguir, ao nos
ameaçar a carne, é a maior representação do Muro da Vergonha e da tônica
da existência saharaui nos últimos 40
anos. Demos a volta, em direção ao deserto, para reescrever o final de nosso
filme. O documentário, bem como nossa própria trajetória, ganhava um novo
rumo, uma nova vida.
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PRIMEIRA PESSOA | CARLA PERNAMBUCO
_
“NÃO FAÇO
ESTARDALHAÇO”
TEXTO KELLY CRISTINA SPINELLI / FOTO ZECA DE SOUSA
Entre os utensílios indispensáveis na
cozinha, é com a batedeira que a chef
Carla Pernambuco mais se identifica.
“‘Multitarefeira’, silenciosa e rebolativa, é
o símbolo de uma boa cozinheira. Me sinto
assim: faço mil coisas ao mesmo tempo,
não faço estardalhaço nem tenho tempo
para a fadiga. E, convenhamos, para atuar
nesse mercado é preciso saber rebolar.”
A BATEDEIRA BRANCA KITCHENAID, QUE ELA TROUXE DE NOVA YORK
EM 1994 E “AINDA NÃO MOSTRA SINAIS DE FADIGA”, COM O TEMPO GANHOU
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