A impermanência do processo: poeira, caminhos - ppgartes

Transcrição

A impermanência do processo: poeira, caminhos - ppgartes
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Artes
Cristiana Nogueira
A impermanência do processo: poeira, caminhos, objetos
Rio de Janeiro
2009
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Cristiana Nogueira
A impermanência do processo: poeira, caminhos, objetos
Dissertação apresentada como
requisito parcial para obtenção
do título de Mestre ao Programa
de Pós-Graduação em Artes, da
Universidade do Estado do Rio
de
Janeiro,
área
de
concentração em Arte e Cultura
Contemporânea
Orientadora: Prof.ª Dr. Leila Maria Danziger
Rio de Janeiro
2009
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
N778
Nogueira, Cristiana.
A impermanência do processo: poeira, caminhos, objetos /
Cristiana Nogueira. – 2009.
110 f. : il.
Orientadora: Leila Maria Danziger
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Artes.
1. Arte Contemporânea – Séc. XX – Teses. 2. Poeira na arte –
Teses. 3. Melancolia na arte – Teses. 4. Memória na arte – Teses. 5.
Arte conceitual – Teses. 6. Arte e fotografia – Teses. I. Danziger,
Leila Maria Brasil. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Artes. III. Título.
CDU 7.036
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação
__________________________
Assinatura
__________________
Data
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Cristiana Nogueira
A impermanência do processo: poeira, caminhos, objetos
Dissertação apresentada como
requisito parcial para obtenção
do título de Mestre ao Programa
de Pós-Graduação em Artes, da
Universidade do Estado do Rio
de
Janeiro,
área
de
concentração em Arte e Cultura
Contemporânea
Aprovado em:
Banca Examinadora:
Prof.ª Dr.ª Leila Maria Brasil Danziger
Instituto de Artes da UERJ
(Orientadora)
Prof. Dr. Roberto Corrêa dos Santos
Instituto de Artes da UERJ
Prof. Dr. Cezar Tadeu Bartholomeu
EBA-UFRJ
Rio de Janeiro
2009
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Para Hílio
(In memoriam)
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AGRADECIMENTOS
A minha mãe por sempre acreditar
Ao Breno pelas madrugadas de risadas em meio aos inúmeros livros
A minha avó por me acolher nos momentos difíceis
Ao Rogério por ser ele mesmo
Ao Claudio Castro pelo apoio constante
A todos os meus amigos que entenderam o sumiço necessário
Ao Roberto Corrêa pelas observações poéticas em minha qualificação
Ao Cezar Bartholomeu pela grande inspiração
Ao Roberto Conduru por acompanhar minha longa caminhada sempre
com questões pertinentes
A Malu Fatorelli pelas importantes contribuições ao meu trabalho
A Ricardo Basbaum pelas conversas sempre enriquecedoras
A todos os integrantes do Programa de Pós-Graduação de Artes da
UERJ pelas diversas formas de ajuda
E a minha querida orientadora,
encorajamento e direcionamento
em
especial,
pela
paciência,
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RESUMO
GOMES, Cristiana Nogueira Menezes. A impermanência do processo:
poeira, caminhos, objetos. 2009. 110 f. Dissertação (Mestrado em Artes)
– Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2009.
Essa dissertação levanta um conjunto de questões relacionadas à
reflexão do processo artístico. Focando em conceitos como poeira,
melancolia, flânerie e memória, foi desenvolvido um diálogo entre
Walter Benjamin, W.G. Sebald, Georges Perec, Susan Sontag, Georges
Bataille e Giorgio Agamben e, também, foram pesquisados os trabalhos
de Marcel Duchamp, Joseph Cornell e Robert Smithson. O texto é
dividido em três momentos nos quais as principais questões são
expandidas em fragmentos que consistem em proposições inseridas na
arte contemporânea. Junto com o texto é apresentada uma série de
imagens que pertencem ao conjunto de fotos que serão expostas
durante a defesa.
Palavras chave:
Contemporânea.
Poeira.
Melancolia.
Flânerie.
Memória.
Arte
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ABSTRACT
This dissertation raises a set of questions related to the reflection of the
artistic process. Focusing on concepts like dust, melancholy, flânerie and
memory, it was developed a dialogue among Walter Benjamin, W.G.
Sebald, Georges Perec, Susan Sontag, Georges Bataille and Giorgio
Agamben and also, the works from Marcel Duchamp, Joseph Cornell
and Robert Smithson were researched. The text is divided in three
moments, which the principal questions are expanded in fragments that
consist in propositions inserted in the contemporary art. Along with the
text is showed a series of images that belong to a set of photos that will
be exposed during the presentation.
Keywords: Dust. Melancholy. Flânerie. Memory. Contemporary Art.
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LISTA DE IMAGENS
Jeff Wall - A Sudden Gust of Wind (after Hokusai), 1993
p 9
Sherrie Levine - After Walker Evans, 1981
p. 9
Sophie Calle - Exquisite Pain (Day 12), 2000
p.11
Christian Boltanski - Sans-Souci, 1991
p.11
Marcel Duchamp – Boîte Verte, 1934; Élevage de Poussière,1920 p.12
Joseph Cornell – Spent Meteor: Night of Feb. 10, 1843 (for E.A.Poe.),
1943
p.12
Robert Smithson – A Non-site (Franklin, New Jersey), 1968
p.12
Água, 1998-2001; Stressbugs, 2006; Onde estou?, 2007; Qual o peso do
mundo, 2007
p.13
Cartas, 2007; Monumentos Urbanos 2005-2008, Onde estou?, 20072009
p.14
Onde estou?, 2007-2009
p.16
Marcel Duchamp - Élevage de Poussière, 1920
p.17
Marcel Duchamp – Boîte –en- valise, 1934-1931
p.18
Joseph Cornell – Spent Meteor: Night of Feb. 10, 1843 (for E.A.Poe.),
1943
p.19
Passage de l'Opéra, Paris
p.20
Diorama. Paris Exposition, 1889
p.20
Imagem do verbete ‘Dust’ do Dicionário Crítico
p.21
Marcel Duchamp – Boîte Verte, 1934
p.24
Fac-símile anotações sobre ‘Onde estou?
p.26
Fac-símile anotações sobre ‘Onde estou?
p.27
Onde estou?, 2007-2009
p.29
Joseph Cornell- L'Egypte de Mlle Cleo de Merode, cours élémentaire
p.34
d'histoire naturelle,1940
Eugen Atget - Avenue des Gobelins, 1927
p.34
Programa de Referência Visual do Rio de Janeiro, 2001
p.35
Maxime Du Camp- Tebe, 1849-1851
p.36
Onde estou?, 2007-2009
p.42
p.43
Robert Smithson - Monuments of Passaic, 1967
Lara Almarcegui-Guia de terrenos baldios de S.P.- uma seleção dos
lugares vazios mais interessantes da cidade,2006
p.46
Robert Smithson - A Non-site (Franklin, New Jersey), 1968
p.47
Ajudantes, 2008
p.58
Sem título
p.60
Gordon Matta-Clark – Conical Intersect, (Paris) 1975
p.63
Gordon Matta-Clark - Fake States, (New York), 1974
p.65
Fac-símile anotações sobre ‘Onde estou?
p.67
Onde estou?, 2007-2009
p.68
Onde estou?, 2007-2009
p.69
Cartas, 2007
p.70
Robert Walser, Microgramme
p.73
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
9
1. POEIRA
1.1.Dust Breeding
1.2.Melancolia
1.3.Sísifo
17
20
30
2. CAMINHOS
2.1.Flâneur
2.2.Entropia
34
40
3. OBJETOS
3.1.Memória
3.2.Coleções
3.3.Pedras
3.4.Ajudantes
52
58
61
70
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
ANEXOS
76
77
81
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INTRODUÇÃO
Em meu projeto inicial, apresentado por ocasião de
meu ingresso no PPGARTES, pretendia explorar questões
relativas ao Pós-Modernismo1 a partir da análise de artistas
como Sherrie Levine e Jeff Wall. De início era coerente com
meus propósitos, já que, ingenuamente, achei poder dar
conta da conceitualização deste período selecionado e
também de minha produção. É claro que a escolha inicial de
artistas deveu-se a aspectos presentes em seus trabalhos
que seriam também pertinentes a minha produção até então.
A principal questão abordada por estes artistas era a
apropriação e citação, que de fato me interessam ainda, mas
que tiveram um novo direcionamento nos últimos dois anos.
Percebo agora que a memória é um conceito muito presente
em meu trabalho, assim como a escrita. Se nos trabalhos
anteriores a apropriação se dava de forma mais ‘literal’,
agora há algo mais sutil, pois ela se dá em outro contexto.
Penso meu trabalho muito mais próximo de uma narrativa do
que como uma análise conceitual envolvendo críticas de
autoria e percepção do espectador, tal como o trabalho de
Sherrie Levine. Assim, Jeff Wall seria mais interessante para
minha pesquisa ao recriar espaços da modernidade na
contemporaneidade, criando um espaço narrativo através de
suas fotografias gigantes. Porém, vejo que a idéia de
estudar tais artistas já se integra às minhas investigações,
que caminham para a percepção dos restos, das ruínas.
Busco pensar a apropriação não como algo
retirado de sua autoria, mas sim como algo retirado de seu
contexto inicial. Por mais similar que isto seja, não quero
1
Partindo de conceitos tais como: pluralismo, ‘entropia estética’ de Arthur Danto, caos desordenado,
perda de referente, ‘neovanguarda’ de Peter Bürger e ‘dimensão de simultaneidade‘, de Hans Ulrich
Gumbrecht, pretendia analisar o Pós-Modernismo.
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reproduzir uma obra tal Jeff Wall, ao trazer para a
contemporaneidade o Manet ou um gravurista japonês. Ou
mesmo não quero causar no espectador um choque de
valores ao refotografar um 'clássico' da fotografia. Apropriome de restos da cidade que ninguém quer ou percebe.
Aproprio-me de restos de meu corpo que já perderam sua
utilidade. E ainda de objetos que perderam seu valor
simbólico. Ao realizar este gesto, procuro atribuir outro
significado a este objeto,
outra significação simbólica. É
neste momento que fatos biográficos entram em jogo, pois
para
aqueles objetos fazerem novamente sentido no
mundo, eles precisam fazer sentido para mim.
Assim como minha pesquisa artística mudou, a
reflexão teórica também caminhou para algo distante da
análise do Pós-Modernismo como um período a ser
estudado. Este estudo ampliou-se, quer dizer, afastou-se do
vínculo inicial com a história e a crítica de arte que meu
projeto inicial apresentava. Acredito que, em grande parte, o
motivo do projeto, inicialmente, aproximar-se muito mais da
linha de história e crítica do que propriamente da linha de
processos, relaciona-se ao fato de toda a minha graduação
ter sido muito mais voltada para a História da Arte do que
para a prática artística, desenvolvida de modo paralelo e
autônomo. Se antes o Pós-Modernismo era importante para
se entender a produção dos artistas supracitados, agora vejo
que isto não representa um fator primordial em minha
pesquisa. No lugar de pensadores voltados para a
conceituação deste período, busco autores que dialoguem
com conceitos mais próximos de minha produção.
Vejo como muito mais pertinentes autores que
tenham o colecionismo, a memória ou mesmo a melancolia
como assunto, do que qualquer outro que eu tenha
escolhido como fonte, baseado na temática anterior. No
entanto, não percebo uma mudança tão radical em minha
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produção quanto percebo na conceituação de meu trabalho.
Isso talvez ocorra por conta não de minha mudança de
interesse nos trabalhos dos artistas, mas sim de uma nova
abordagem
deles.
A
partir
desta
mudança,
vejo
o
pensamento de Walter Benjamin muito mais próximo de meu
trabalho. A construção do livro ‘Passagens’, em que o autor
se apropria de variados textos, de diversos meios, assim
como a sempre presente questão da construção de coleções
que incluem os restos gerados pela rápida urbanização,
aproxima-se muito de trabalhos onde
procuro selecionar
restos e vestígios, sejam eles urbanos, corporais ou
culturais.
Outro autor que considero importante é Georges
Bataille. Ao partir de elementos presentes em sua obra,
como por exemplo, transgressões e interditos, penso que
certas atitudes de prática artística estejam relacionadas a
atitudes que fogem ao que seria socialmente aceito.
Considero o ensaio de ‘Noção de Despesa’ e seu ‘Dicionário
Crítico’ como particularmente importantes, na medida em que
utilizo as ruínas, os restos, como elementos de meu trabalho.
Em relação aos artistas, vejo que atualmente
despertam meu interesse artistas que trabalhem a memória,
seja ela uma memória pessoal ou mesmo inventada. Em
meus trabalhos, a memória sempre esteve presente de
alguma forma. Seja ela como apenas um indício fotográfico2,
ou mesmo de forma mais explícita, em que há uma relação
com a minha memória pessoal ou coletiva. De início, o
trabalho de Sophie Calle interessou-me por ela buscar criar
uma narrativa própria a partir de sua observação. A
observação do mundo ao redor é o que me aproxima muito
de sua investigação artística.
2
Essa maneira de perceber
Neste caso, não quero entrar em toda uma discussão acerca do que seria índice (ou que não seria )
dentro da fotografia. O índice seria mesmo algo físico, da materialidade do registro, ou melhor, da
suposta presença do objeto fotografado.
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pequenos detalhes, de buscar situações fora do comum e
retratá-las de modo a criar uma narrativa de mundo e, ao
mesmo tempo, criar uma memória que nem sempre
existiu, faz com que eu busque novas maneiras de pensar
esta questão. Outro artista sobre o qual busquei mais
referências foi Christian Boltanski. Sua maneira de criar
espaços a partir de trabalhos fotográficos, com imagens
que também recontam uma memória fictícia, é algo que
me interessa, já que minha ligação com a fotografia é
muito anterior a qualquer perspectiva de uma prática
artística. Apesar de não terem sido incluídos na presente
dissertação, estes artistas foram fundamentais para a
minha pesquisa e o desenvolvimento de meu trabalho
poético.
Dentro de minha dissertação, três artistas
foram
escolhidos e pesquisados: Marcel Duchamp, Joseph
Cornell e Robert Smithson. Duchamp foi abordado a partir
de dois trabalhos: ‘Élevage de Poussière’ e ‘Boîte verte’; já
que ambos desenvolvem duas questões presentes em
minha produção que são a poeira e a memória. Joseph
Cornell, apresenta questões pertinentes à melancolia,
principalmente em seu trabalho ‘Spent Meteor: Night of
Feb. 10, 1843 (for E.A.Poe)’. Em relação a Robert
Smithson, seus escritos sobre a entropia e a analogia,
entre
o
Site
e
o
Non-site,
foram
particularmente
importantes no desenvolvimento de minha conceituação
sobre a prática artística.
O fato de me sentir muito mais próxima às
questões relativas à bidimensionalidade, enfrentar a
plenitude do espaço e partir para experimentações
tridimensionais, é algo bem mais complexo do que parecia.
E foi justamente no mestrado que senti necessidade de dar
um
passo
além
da
fotografia,
que
sempre
me
acompanhou. Não penso em abandoná-la, mas sim em
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explorar novos caminhos em que seja possível trabalhá-la
de maneiras diferentes. O objeto surge como mais um
elemento em meus trabalhos. Ir além da fotografia,
ultrapassar
o
que
era
confortável
e
relativamente
conhecido. Buscar desafios para minhas idéias, desafios
espaciais, em outra dimensão desconhecida.
Vejo uma tentativa incipiente disto em dois
trabalhos: em ‘Água’, de início um exercício de aula da
graduação, que resolvi como uma instalação com três
projetores simultâneos no mesmo espaço, que alternavam
imagens relativas ao título, juntamente com um som
ambiente produzido por mim. O segundo trabalho foi
‘Stressbugs’, em que as imagens eram expostas em
backlights na parede. Creio que foram momentos distintos,
mas em que já havia uma necessidade de se pensar algo
além da construção da imagem.
No mestrado, os primeiros exercícios foram quase
todos voltados para a ‘construção’ de um objeto. Seja na
mala com a carta de ‘Onde estou?’ ou na vitrola com o disco
infantil em ‘Qual é o peso do mundo?’, a imagem está na
tridimensionalidade do próprio objeto e não mais na foto.
Resolver isso no espaço tornou-se um problema novo para
minha produção que até então se pautava muito na imagem.
Até mesmo em outro exercício que a imagem era o resultado
final (Cartas), a produção da mesma deu-se a partir de uma
‘ação no mundo’, ela surgiu do recolhimento de restos de
papéis encontrados no chão durante uma caminhada. Ora,
deixei de ser o fotógrafo moderno que sai de casa com sua
câmera em busca da ‘imagem perfeita’, do instante decisivo,
e passei a buscar objetos, restos que seriam utilizados numa
imagem criada, ficcional, pertencente a uma narrativa
inventada (como todas são aliás).
Acredito que até minha maneira de pensar a
fotografia tenha mudado, já que antes de fotografar as
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ruínas (Onde estou?) e as frases que busco pela cidade
(Monumentos Urbanos), passo várias vezes pelo local, vejo
várias vezes, com diferentes luzes aquele lugar, antes de
fazer o tão esperado ‘click’. Toda a minha vida eu pensei em
comprar câmeras portáteis para carregar sempre na bolsa,
em busca deste instante que não podia ser perdido. Vejo
hoje, que tenho não só uma câmera portátil, seja ela a do
celular, a digital ou qualquer outra que esteja ali presente,
mas que isso não faz nenhuma diferença no meu trabalho.
Ele não está de forma alguma associado a este conceito
moderno da caça ao instante, do momento que não pode ser
perdido. Pelo contrário, as coisas precisam ser absorvidas,
eu preciso de um tempo para conviver com aquela idéia,
com aquela mudança de percepção da paisagem. Ao
perceber que aquilo existe, que aquilo sempre (ou nunca)
esteve presente em meu caminho, eu preciso digerir,
interagir, para só então ‘registrá-lo’. Mas isso não será um
mero registro. Isso será toda uma vivência, um processo
entre que o que está ali e eu. Essa é a observação do
mundo no meu ritmo. Propus que minha pesquisa seja
composta por ensaios diversos, baseados em influências
teóricas, observação de outros artistas, que estão divididos
em três capítulos. O primeiro capítulo tem como tema
principal a poeira e todos os aspectos relevantes presentes
em minha produção. No segundo capítulo, trabalho os
caminhos que proporcionaram a realização das fotografias e,
no terceiro capítulo a importância dos objetos colecionáveis
e a relação com a minha coleção de imagens desses locais.
Para pensar minha produção, busquei referências teóricas
nas obras de Walter Benjamin, Georges Bataille, Rosalind
Krauss, Susan Sontag, Giorgio Agamben, além de trazer
para o texto autores e artistas que foram importantes para
pensar e visualizar meu processo, como Robert Smithson,
Marcel Duchamp, W.G. Sebald, Georges Perec, Edgar Allan
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Poe e Italo Calvino. No decorrer do texto falo sobre minha
ação artística,
intercalando minha experiência, vivência,
com questões conceituais pertinentes a este processo.
Junto com o texto são apresentadas imagens de trabalhos
citados de outros artistas e outras do trabalho chamado
‘Onde estou?’, no qual me baseei para a escrita da
dissertação. As imagens fazem parte de um grupo de várias
fotografias, divididas em pequenas séries, na qual uma foi
apresentada no dia da qualificação do mestrado e outras
duas serão apresentadas, juntamente com esta, no dia da
defesa da dissertação.
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1. POEIRA
1.1 Dust Breeding
A fotografia feita por Man Ray do trabalho
“Grande Vidro” de Duchamp - (Dust Breeding) - aproxima-se
muito do tipo de memória que procuro em meus trabalhos.
Sobre esta fotografia, Rosalind Krauss diz que a poeira
acumulada é “uma espécie de indício físico da passagem do
tempo”.
3
Tratamos aqui não só deste indício direto do
tempo (poeira) como também podemos analisar a questão
da fotografia em si como o próprio índice4. (A fotografia seria
o próprio índice da passagem do tempo, já que há uma
ligação física entre a imagem e seu referente).5 Essa poeira
é o que denuncia a passagem de tempo e, também, coloca
‘materialmente’ o trabalho na própria história. O que faz esta
poeira acumulada despertar o interesse é justamente a
questão sensível deste tempo passado. Além do acúmulo
dos indícios, há a materialidade do desenho formado, uma
paisagem aérea, tão melancólica quanto a própria poeira.
Ambos denunciam a qualidade de abandono de que trata a
fotografia.
A idéia da utilização da poeira como elemento
principal deste trabalho de Man Ray e Duchamp é um dos
aspectos que desperta interesse para esta fotografia. Ao
fazer uso da poeira, Duchamp se apodera de várias
pretensas (ou não) referências, tanto no campo da arte
quanto no da filosofia, o que segundo Arturo Schwarz, pode
3
KRAUSS, Rosalind. The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths. Cambridge:
MIT Press, 1986. Pág. 202-203.
4
Segundo Dubois, “(…) a fotografia pertence a toda uma categoria de ‘signos’ (sensu lato)
chamados pelo filósofo e semiótico americano Charles Peirce de ‘índice’ por oposição a ‘ícone’ e a
‘símbolo’.” - DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 2003.
Pág.61. Em relação ao Duchamp, o próprio Dubois diz que a obra dele é essencialmente indicial, quer
dizer, pertencente à lógica do índice.(páginas 254 e 256).
5
“A foto é literalmente uma emanação do referente.” - BARTHES, Roland. A câmara clara: nota
sobre a fotografia. Rio de Janeiro, Nova. Fronteira, 1984. Pág. 121
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ser mais um de seus ‘jogos’. Podemos dizer que isto se
relaciona
bem com a questão da passagem de tempo.
Marcel Jean, no
livro ‘The complete works of Marcel
Duchamp’ nos lembra:
Nas anotações de Leonardo da Vinci, podemos
encontrar a mesma idéia humorada de utilização da
queda da poeira como medida do tempo; o
procedimento de Duchamp é quase idêntico ao que
Leonardo formula a seguir: ‘O vidro deve ser
envernizado ou raspado em seu interior, de modo que a
poeira que caia do funil possa se fixar ao vidro; e o
lugar onde ela atinge vai permanecer marcado; e isso
significa que você verá e será capaz de com certeza
discernir a exata altura onde a poeira se fixou, porque
ela vai permanecer presa lá.’ Podemos finalmente
notar que a queda da poeira é um importante tema no
pensamento Zen-Budista Chinês: o que não
surpreende, em vista do objetivo final do Budismo, de
domínio sobre o tempo. Mas Duchamp parece ter
aperfeiçoado as disciplinas chinesas, de alguma
maneira mística, introduzindo sua própria ironia
afirmativa: ele não varre a poeira fora do ‘Mirror of the
mind’, e nem elimina isso com a idéia de vazio – ele a
aumenta.6
Duchamp
apresenta
uma
convivência
peculiar com a poeira. Além de estar presente neste trabalho
(segundo o próprio Duchamp, esta foto foi feita a partir de
restos que se acumularam durante alguns meses sobre o
Grande Vidro), ela parecia ser um elemento de contato
diário. Ela habita seus estúdios de uma forma que
impressiona não só Georgia O’Keefe como também Jeanne
Reynal, como pode ser visto no trecho a seguir:
“Depois que Georgia O’Keeffe visitou o estúdio
de Duchamp em NY em 1918, ela relatou que ‘O
quarto parecia que nunca tinha sido varrido... e a
poeira por todo o lugar era tão espessa que era
difícil de acreditar.’ Duchamp eventualmente
6
SCHWARZ, Arturo. The complete works of Marcel Duchamp. London: Thames and Hudson, 1997.
Pág. 130-131.
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usou verniz para capturar uma parte da poeira do
estúdio na representação das ‘peneiras’ quando o
Grande Vidro estava deitado. Condições similares
persistiram no seu estúdio em NY na rua 14,
como recordado por Jeanne Reynal no final dos
anos 40: ‘A poeira se depositou no chão em uma
camada grossa de duas polegadas com um
caminho estreito a partir da porta da frente e
outro seguindo para o banheiro 7...”.
Essa poeira indicial vai permear também as obras
de Joseph Cornell, que apresenta grande ligação com
Duchamp. Além de terem desenvolvido uma relação de
amizade, Cornell foi um dos que ajudou Duchamp na
construção
de
réplicas
da
Boîte-en-valise.
Cornell
desenvolveu uma série de caixas temáticas, que, assim
como as caixas desenvolvidas por Duchamp, foram
chamadas de museus-portáteis. A aproximação dos dois
artistas pode ser também feita através de aspectos
melancólicos que ambos os trabalhos carregam. Se Joseph
Cornell faz uma homenagem a Edgar Allan Poe8 em um de
seus trabalhos, Duchamp encarnará o próprio ‘Homem da
Multidão’, quando se muda para NY e cria a figura do
‘celibatário9’; ele deixa a Paris que se torna obsoleta e sai
7
PHILADELPHIA MUSEUM OF ART AND MENIL COLLECTION. Joseph Cornell/Marcel
Duchamp ... in Resonance. Houston/New York: Distributed Art Publishers, 1998. Pág. 250-251.
8
“Poeira é outro material implausível para o artista, ainda que ambos os artistas ficassem intrigados
pelas partículas da existência cotidiana.(...)Cornell freqüentemente falava de maneira encantadora da
tarefa mundana de limpar restos no chão do seu porão. Ele tinha tanta ligação com a poeira que
chegou a adicionar um pouco dela na caixa chamada ‘Mouse Material’. Ele citou um precedente
artístico: ‘Refletindo sobre Morandi – a poeira cobria suas amadas garrafas usadas, utensílios de
metal etc., o acordo feito com sua mãe permitia que ela só limpasse metade do quarto!’. Na mesma
edição da View de janeiro de 1943 que publicou pela primeira vez o Cristal Cage, Cornell incluiu um
quadro fotográfico dedicado ao Edgar Allan Poe, intitulado Spent Meteor: Night of Feb. 10, 1843 (for
E.A.Poe) que combinava três símbolos recorrentes para evocar o tema de Vanitas: um livro objeto
recoberto de poeira e vidro quebrado. Enquanto tomado por verdadeiro, o acúmulo de poeira
realmente marca um aspecto profundo do temperamento de ambos os artistas, quer dizer, uma
elevada consciência dos processos naturais. A fotografia de Harry Roseman tirada na garagem de
Cornell captura isto de maneira essencial – a imagem da bailarina do século XIX Fanny Cerrito em
uma caixa deteriorada é envolvida por restos, sujeira e folhas secas. Para Duchamp e Cornell, poeira
era uma companhia agradável.” – PHILADELPHIA MUSEUM OF ART AND MENIL
COLLECTION,1998.Op.cit. Pág. 250-251.
9
“Nova York era uma cidade moderna e Duchamp, um indivíduo da metrópole. (...) Só na grande
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em busca de algo que o instigue: é o próprio flâneur
entediado, que viaja e vai atrás de novidades. O diálogo com
pensadores da modernidade se faz presente de maneira
direta, com citações ou mesmo com a criação de uma
identidade tão forte quanto os seus trabalhos que, segundo
Calvin Tomkins10, consegue separar bem as figuras do
‘homem que sofre’ do ‘artista que cria’ e com isso alternar
entre personagens, tal como o dândi (de um terno só) ou o
caçador/flâneur que atuava na sociedade para criar uma
nova maneira de se fazer e divulgar a arte.
1.2. Melancolia
A poeira estaria presente como algo análogo ao tédio,
como afirma Benjamin na frase que relaciona a pelúcia como
depósito de poeira, no capítulo ‘Tédio, Eterno Retorno’ de
seu livro ‘Passagens’.11 O local do acúmulo, juntamente com
a sensação de uma perspectiva sufocada e poeirenta do
panorama12 ou mesmo a poeira que se acumula nas
passagens e suja os vestidos das mulheres quando chove.
Essa poeira que sufoca o passado, que se perde em meio a
uma modernidade que se faz presente. A poeira que alerta
para um local que não faz mais sentido, anacrônico frente a
cidade, lançado a sorte, ao inesperado do acaso, pode existir o ‘celibatário’, projeto existencial e
intelectual que Duchamp traçou para si e, quem sabe, para o homem moderno. (...) De situações
fortuitas e aleatórias Duchamp tira mais valia. Daí o flâneur ser o grande caçador de acasos da
sociedade de consumo nascente; o consumidor das vitrinas onde os objetos são como a passante de
Baudelaire que, à distância, perversamente, se oferece à fantasia e à imaginação. À sua maneira, O
Grande Vidro é também uma vitrina.” - TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. São Paulo.
Cosac & Naify, 2005.pág. 9
10
TOMKINS, Op.cit., 2005.pág. 7-8.
11
BENJAMIN, Walter. Passagens. Ed. org. por Willi Bolle. Belo Horizonte / São Paulo: Ed. UFMG /
Imprensa Oficial SP, 2006. Pág. 143.
12
Além dessas construções terem o aspecto melancólico por ficarem expostas ao ‘tempo’ e com isso,
apresentarem o indício da poeira, elas serviam como uma forma de reviver cidades destruídas,
paisagens que haviam sumido, trazendo com isso a questão das ‘ruínas românticas’, que tanto
encantou os pensadores da modernidade, em um paradoxo inerente aos seus textos. Segundo Sonia
Hilf Schulz, em seu livro ‘Estéticas Urbanas’, “(...) os panoramas registravam cenários de cidades
desaparecidas e possibilitavam, assim, a análise das mutações no ambiente construído (...).”
Benjamin diz que as “passagens são casas ou corredores que não têm o lado exterior – como o
sonho.” Os panoramas vão geralmente se localizar na entrada ou na saída de uma passagem, o que
seria quase como um sonho dentro do outro.
P á g i n a | 22
uma cidade que insiste em mostrar sua modernidade.
Esta poeira que se acumula, que revela o tempo
passado/perdido, é a mesma de que fala Bataille em seu
Dicionário Crítico13, de uma maneira bem singular ao referirse à poeira e às teias de aranha que estariam supostamente
acumuladas na Bela Adormecida depois de seu sono
profundo e que se dissipariam ao menor movimento de seus
cachos. Temos aqui não só o aspecto temporal como
também o melancólico. Não é à toa que Bataille vai trazer
uma
personagem
do
imaginário
infantil
(que
nunca
envelhece, apenas vive feliz para sempre) com camadas de
poeira para retratar a passagem do tempo e a melancolia14.
A idéia desta passagem do tempo no conto de fadas
inexiste. O tempo passa mas nada se modifica. Todos
permanecem congelados em um espaço-tempo em que não
há envelhecimento nem provas físicas de que houve alguma
modificação. A figura dos personagens traz também a
questão da melancolia porque estão distantes, fazem parte
de uma época que já passou, seja ela a infância (momento
em que ouvimos tais histórias) ou mesmo a época em que
são ambientadas (Idade Média). Adorno, em seu livro
‘Minima Moralia’, coloca que o conto da Branca de Neve,
através
de
sua
ambientação,
caracterização
dos
personagens ou a própria história e seu conteúdo moral é
um dos que ‘exprime melhor do que nenhum outro a
melancolia.’ Melancolia esta que percebemos na grande
13
BATAILLE, Georges, “Dust” in Bataille et al., Encyclopedia Acephalica. London: Atlas Press,
1995. Pág.42-43.
14
Segundo o Dicionário de Psicanálise, de modo simplificado, a melancolia é um “termo derivado do
grego melas (negro) e kholé (bile), utilizado em filosofia, literatura, medicina, psiquiatria e
psicanálise para designar uma forma de loucura caracterizada pelo humor sombrio, isto é, por uma
tristeza profunda, um estado depressivo capaz de conduzir ao suicídio, e por manifestações de medo e
desânimo que adquirem ou não o aspecto de um delírio. (...) a teoria hipocrática dos quatro humores,
que durante séculos, permitiu descrever, de maneira mais ou menos idêntica, os sintomas clínicos
dessa doença: ânimo entristecido, sentimento de um abismo infinito, extinção do desejo e da fala,
impressão de hebetude, seguida de exaltação, além de atração irresistível pela morte, pelas ruínas,
pela nostalgia e pelo luto.” PLON, Michel; ROUDINESCO, Elizabeth. Dicionário de Psicanálise.
Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 1998. Pág. 505-506.
P á g i n a | 23
maioria dos contos de fadas que ouvimos na infância15.
No filme Samsara16, de Pan Nalin, temos uma
idéia semelhante, mas de forma inversa. O filme conta a
história de um monge tibetano e sua dúvida entre seguir a
vida no monastério ou experimentar viver como um homem
comum, pois apenas conheceu a vida dentro dele. O que
aproxima este filme dos contos de fada é justamente o fato
de que aqui temos a passagem de tempo muito bem
representada. O monge; depois de três anos, três meses,
três semanas e três dias; é tirado da caverna onde estava
fazendo um retiro espiritual. Se a Bela Adormecida acorda
sem que nada houvesse mudado, o monge está com seus
cabelos, sua barba e unhas muito além do comprimento
normal. Além disso, seu corpo não agüenta o esforço, pois
não exercita sua musculatura há muito tempo. Mas o que
importa mesmo é o fato de estar coberto de pó, pois, como
se não bastasse os indícios corporais de que o tempo
passou, temos o melhor indício para isso: a poeira que cobre
tudo que é abandonado ou deixado de lado; que alimenta
este estado ‘vegetativo’.
Numa direção oposta, Italo Calvino vai entender a
melancolia como algo associado à leveza, em seu livro ‘Seis
propostas para o novo milênio’. Ele
conceitua, em
determinado momento, a melancolia como
(...) um véu de ínfimas partículas de
humores e sensações, uma poeira de átomos
como tudo aquilo que constitui a última
substância da multiplicidade das coisas17.
Novamente
temos
a
poeira
permeando
a
melancolia, porém esta poeira é mais fina, brilha e não pesa
tanto quanto a poeira de Bataille. Ele ainda diz que “a
15
ADORNO, T.W. Mínima Moralia. Lisboa: Ed.70, 2001. Pág. 122-123.
Samsara – Dir. Pan Nalin (Alemanha/India) (2001).
17
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Pág.32 -33.
16
P á g i n a | 24
melancolia é a tristeza que se tornou leve (...) [é] a gravidade
sem peso18.” Ela é a poeira que está na canção ‘Stardust19’,
é ‘a busca da leveza como reação ao peso do viver20.” A
melancolia é vista com esperança, como um estado possível
de sofrer transformação.
Neste mesmo verbete, ‘Dust21’, Bataille associa a
poeira também com ambientes que trariam lembranças
assombradas, espaços decadentes, abandonados (velhos
quartos e sótãos), em que a poeira estaria ali presente para
‘alimentar’ tais aspectos. A poeira é algo que não deveria
estar nestes lugares, que não queremos ver, que aspiramos,
limpamos freneticamente para não termos o indício de
passagem de tempo. Ela é quase invisível, mas também se
faz presente e essa presença é indesejada. Buscamos
sempre retomar o aspecto ‘novo‘, o viço de tudo que
limpamos para não termos que conviver com a melancolia
que a poeira traz.
Na história ‘Max Aurach’, do livro ‘Emigrantes’ de
W.G. Sebald, temos um exemplo de narrativa que expõe a
melancolia na própria forma de construir a narrativa. Além do
texto fazer uma descrição minuciosa do ateliê do artista, ela
é arrastada, lenta, com longos parágrafos
e frases que
nunca chegam ao final. São várias imagens que o escritor
cria, que formam uma única rede, com pequenas referências
do cotidiano melancólico do artista, pequenos detalhes que
compõem o cenário perfeito para o artista ‘saturnino’, como
pode ser visto no trecho a seguir:
Entrando no ateliê leva um bom tempo
até os olhos se acostumarem à estranha luz
reinante, (...) A escuridão acumulada nos
18
Idem. Pág.32.
Stardust - 1927 - Hoagy Carmichael
20
CALVINO, 2001. Op.Cit. Pág. 39.
21
BATAILLE, Georges, “Dust” in Bataille et al., Encyclopedia Acephalica. London: Atlas Press,
1995. Pág.42-43.
19
P á g i n a | 25
cantos, o reboco de cal inchado com manchas
de sal, e a pintura descascando nas paredes, as
prateleiras cobertas de livros e montes de
jornais, as caixas, (...) Aurach instalou seu
cavalete, na claridade cinzenta que entra pela
janela do norte, coberta por décadas de poeira.
(...) o chão está coberto por uma massa de
vários centímetros de altura já endurecida, com
uma crosta, misturada com pó de carvão, (...)
Certa vez Aurach disse em tom casual que
sempre considerara muito importante que nada
mudasse em seu local de trabalho, que tudo
ficasse do jeito que ele organizara, assim como
estava agora, e nada se acrescentasse além do
lixo que caía enquanto ele pintava nem da
poeira que baixava incessantemente e que,
como lentamente aprendeu, era mais ou menos a
coisa que mais amava no mundo. A poeira,
disse ele, lhe era muito mais próxima do que a
luz, o ar e a água. Nada lhe era tão insuportável
quanto uma casa em que se limpava o pó, e em
nenhum lugar sentia-se melhor do que ali onde
as coisas podiam ficar imperturbadas e
abafadas22 (...).
Esta poeira que Aurach tanto venera é uma poeira
que, ao mesmo tempo dá vida ao ateliê e que denuncia o
seu estado de abandono melancólico. Por mais que ele viva
e sinta que o tempo passa ao trabalhar, é na poeira que a
passagem de tempo está mais bem representada. Por isso
não se pode limpar o cômodo, por isso a poeira tem de cair
lentamente, acumular todo dia, formar camadas tal como a
tinta que se mistura ao piso. É como se ele fosse um
prisioneiro deste indício de tempo, destes pequenos
resquícios de sua vida.
Quando Bataille afirma que a
poeira é uma espécie de alimento para estes locais, de
alguma forma deixados de lado, (incluindo as coisas que são
depositadas/abandonadas nestes espaços para depois
serem revisitadas), temos o mesmo movimento melancólico,
22
SEBALD, W. G. Os emigrantes. Rio de Janeiro: Record, 2002. Pág.160-161
P á g i n a | 26
pois a fotografia do ‘Grande Vidro’ fará parte de uma espécie
de memorabilia23 habitante de uma caixa (Caixa Verde) e
que deverá ser ‘lida’ junto com a obra do ‘Grande Vidro’. A
‘Caixa Verde’ será o depositário de todas as ‘lembranças’
sobre ele (Grande Vidro), tudo o que importa, mas que não
pode estar junto da própria obra. São os indícios que
contribuíram para a formação do próprio trabalho.
Esta idéia da limpeza do ateliê, dessa poeira que
se acumula, da ‘Élevage de Poussière’ relaciona-se com
questões presentes no item ‘Dust Breeding’, em que Cornell
e Duchamp ‘representam’ na vida real a composição deste
personagem descrito por Sebald. Tanto Duchamp quanto
Cornell apresentam uma relação análoga com a poeira,
como vimos anteriormente. Seus ateliês ficavam cobertos de
pó e chegaram a utilizá-la como material de trabalho.
A presença do impalpável e do sensível em um mesmo lugar.
Pó
Dust
Poussière
Ao buscar estes locais abandonados pela cidade, pensei
que agiria em um movimento de recuperação, de valorização de um
23
“Quase duas décadas depois da primeira iniciativa desse tipo, quando havia reproduzido dezesseis
notas e um desenho, Duchamp decide reproduzir em fac-símile todas as suas notas, esboços,
desenhos e algumas pinturas sobre ‘O grande vidro’ realizadas entre 1912 e 1920, e reuni-las sem
nenhuma ordem em uma caixa que, em setembro desse ano, edita sob o título La Mariée mise à nu par
sés Célibataires, même (A Noiva despida por seus celibatários, mesmo) também conhecida como
Caixa Verde, devido à cor do material aveludado com que a caixa era forrada. Para Duchamp, a
caixa devia ‘(...) acompanhar o Vidro e ser consultada quando se olha o Vidro, já que, pelo menos
para mim, não deve ser ‘olhado’ no sentido estético da palavra. Deve-se consultar o livro e olhá-los
juntos. A conjunção de ambas as coisas remove completamente o sentido retiniano que não me
agrada.’” – FILIPOVIC, Elena (org.) et.al. Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra ‘de arte’.
Buenos Aires: Fund. Proa; São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, MAM-SP, 2008. Pág.58.
P á g i n a | 27
ambiente que não apresentava valor real. Ao apontar minha câmera
para eles eu os trazia para a realidade, para a cidade, como se eu os
contextualizasse novamente. Este trabalho começou quando eu
passei a perceber, nos meus caminhos diários, alguns desvios,
locais que faziam meu olhar ter um estranhamento. Quer dizer,
eles me tiravam de uma espécie de transe, de um olhar que vagava
sobre uma superfície contínua. Os terrenos eram uma interrupção
no ritmo contínuo, um buraco que tropeçamos na calçada quando
andamos sem prestar muita atenção e que nos faz olhar para trás
para ver o que realmente ocorreu. Mas no caso dos terrenos a
sensação de choque era maior pois eu não tinha como voltar. Esses
caminhos cotidianos eram feitos de carro e ao passar por uma
localidade que apresentasse essa peculiaridade, já era tarde demais
quando me dava conta do que havia ocorrido. A única maneira de
preservar este momento era anotar em um pequeno bloco que
carrego na bolsa, para poder observar com mais calma quando
fosse passar novamente.
De fato, poderia voltar já com a câmera para
registrar logo a existência deste espaço fugidio, já que eles
costumam desaparecer rapidamente, mas isso nunca ocorria.
Costumava voltar e observar este local inúmeras vezes até achar
que era necessário fazer a fotografia. Na maioria das vezes, só
tomava a decisão quando sentia que o local estava novamente se
transformando, quando havia uma ocupação por moradores de rua
ou quando uma empresa começava a limpar o terreno para uma
nova construção. Precisamente este era o momento perfeito, o
momento em que a entropia era percebida, a mudança de estado era
visível. Acredito que esta não-ação em relação à fotografia era
uma atitude de resistência, um modo de achar que aquela situação
poderia permanecer por mais tempo. Observava constantemente,
numa ilusão de que aquilo era minimamente duradouro. Mas, ao
menor movimento inerente à cidade (seja de crescimento ou
destruição) se fazia necessário guardar esse pequeno instante. Seria
a paráfrase do ‘instante decisivo’ de Henri Cartier-Bresson. Se ele
P á g i n a | 28
estava sempre pronto, com sua câmera à mão para poder fazer a
melhor foto, eu quase perco este momento ideal por preferir
observar e acreditar que ele vá durar para sempre sem a minha
interferência.
Esses lugares em relação à cidade representam o
indício de sua entropia, o local em que isso pode ser percebido de
maneira mais clara, mas que ao mesmo tempo, nem sempre é
notado. São espaços de transição e, justamente por isso, não são
apreendidos por todos que passam perto deles. Ao fotografá-los,
crio um duplo indício (duplo índice). Eles simbolizariam a poeira
do ambiente urbano, o que não pode ser contido, o que extravasa.
Quando são fixados em forma de imagem, tornam-se o indício de
sua existência. A fotografia, o trabalho, transforma-se na afirmação
desta poeira. Duplamente, ela faz com que a poeira nunca deixe de
existir, pelo contrário, a poeira encontra ali sua maneira de
eternizar-se. Segundo Elio Grazioli, em seu livro ‘Polvere
nell’arte’, assim como os objetos, os lugares a natureza e o homem
se
transformam,
se
‘consomem’,
todos
tendemos
ao
desaparecimento, onde a poeira é o índice deste mundo moderno
que morre a cada dia, aquele local tem apenas na fotografia a
chance de ultrapassar o presente e chegar ao futuro24.
A poeira seria como um símbolo de morte e vida,
de transformação entre um lugar que não é mais o que era e que
pode ser uma nova coisa a qualquer momento. O local da entropia
per se, onde não há volta para aquele resquício de construção e o
que virá nunca será igual àquilo que se foi. Poeira como a
passagem entre o antigo e o novo, como metáfora25 da eterna
transformação ‘você é pó, e ao pó voltará.26’
A busca por esses lugares ocorre de maneira
24
GRAZIOLI, Elio. La polvere nell’arte. Milano: Bruno Mandatori, 2004. Pág. 44.
“A metáfora da poeira é evidentemente antiqüíssima já que Deus na Bíblia a utiliza para criar o
corpo do primeiro homem. Subitamente é ligada à origem, à matéria e ao tempo.” – GRAZIOLI,
2004. Op.cit. Pág. 1.
26
SBCI . Bíblia Sagrada - edição pastoral. São Paulo: Paulus, 2000, 40º reimpressão. Pág. 17 –
Gênesis 3,19
25
P á g i n a | 29
semelhante a flânerie parisiense. Análogo porque a apreensão da
cidade também está relacionada com a observação tediosa que leva
a uma descoberta. O ‘belo’ que desperta do habitual. Porém, não
tenho o mesmo tempo do flâneur. Tento criar este tempo quando
retorno ao local. Entretanto, a experiência sempre ocorre através de
um filtro. Ela não é direta como a do flâneur que vaga pelas ruas
sem rumo atrás de um momento que o desperte do tédio. Estou
sempre atrás de uma janela, seja ela a do carro ou da câmera. O
meu caminho é sempre tedioso, é o caminho da casa para o
trabalho ou derrubados, mas que deixaram impressos nas paredes,
que cercam o terreno ao qual pertenceram, a sua poeira, o seu
índice de que um dia ali estiveram com toda a sua força
construtiva. Os restos frágeis tentam reproduzir o que havia ali. Ao
mesmo tempo, percebe-se o vazio, a sensação de não-existência, de
alguma coisa que tenta resistir, mas não consegue. Ao refazer esse
caminho, a repetição das fotos traz de volta as inúmeras
observações que foram feitas do terreno antes da apreensão das
imagens. Uma monotonia e, de alguma maneira, uma tentativa de
armazenar, reter a memória fugaz do local.
P á g i n a | 30
P á g i n a | 31
1.3. Sísifo
Segundo Yve-Alain Bois, no verbete ‘Zone’27
do livro ’Formless’, a poeira tem um duplo índice, já que na
escala urbana, os locais em que ela aparece28, representam
a poeira na escala residencial. Se em casa temos aqueles
objetos velhos empoeirados que queremos não ver (e por
isso eles acabam em locais que também são abandonados),
nesta escala urbana, os locais inóspitos representam o asco
da poeira residencial. São locais que não desejamos ver e,
se pudéssemos, evitaríamos sua existência. Além disso,
estes espaços seriam o lixo, a perda inevitável da produção,
resultado de uma ‘overproduction’, segundo Bataille29.
Ao mesmo tempo, podemos dizer que em sua
teoria econômica, Bataille trata da ‘despesa improdutiva30’.
Este conceito abre possibilidade para pensarmos estes
espaços vazios sob outro aspecto. Ao trabalhar o princípio
de perda como algo importante para a sociedade, Bataille
chega a relacioná-lo com a arte, as jóias, os jogos e a
religião e o que significa sua importância para os homens31.
Podemos aproximar isto do fato de que estes espaços
‘desperdiçados’, de alguma maneira, são necessários para o
equilíbrio
da
cidade,
pois
os
gastos
visivelmente
empregados e perdidos nestas construções fazem com que
percebamos melhor tudo que está a sua volta. Eles são os
espaços ‘inúteis’, indefinidos, em que quanto maior o
desperdício maior sentido eles fazem para o equilíbrio
urbano. Eles carregam um valor agregado simbólico que faz
com que olhemos para eles com certo receio de que aquilo
27
BOIS, Yve Alain; KRAUSS, Rosalind E. Formless: A User's Guide. New York: Zone Books, 2000.
Pág. 224-231.
28
Terrenos baldios, estacionamentos fora de uso, prédios abandonados etc.
29
Conceito que Bataille trabalha em seu livro ‘A noção de despesa’.
30
BATAILLE, Georges. A Parte Maldita (precedida de "A Noção de Despesa"). Rio de Janeiro:
Imago, 1975. Pág. 29.
31
A importância de gastar uma quantia grande ao comprar uma jóia; a importância da arte para uma
sociedade, já que ela é inútil por princípio; a questão da competição esportiva etc.
P á g i n a | 32
tome uma proporção maior do que já têm, tal como a poeira
que pode se acumular indefinidamente se deixarmos de
limpar.
Essa poeira que se acumula nas casas à revelia
de tantos esforços também poderia ser relacionada com
estes
espaços
vazios,
abandonados,
que
estão
em
constante movimento de reaproveitamento pela cidade
(quando estão adormecidos em sua poeira) ou ficarem por
um tempo sem utilização adequada (quando perdem sua
função anterior). Os locais passam sempre pela ‘limpeza’
para serem renovados, modificados e deixarem de ser o
‘local sagrado urbano32’ para virarem um local ’produtivo’.
Ou passam por todo um processo de degradação para
virarem um não-lugar. Nesse movimento entre produtivo ou
sagrado,
estes
espaços
proporcionam
alterações
significativas na paisagem urbana. Segundo Marc Augé,
(...) por ‘não-lugar’ designamos duas
realidades complementares, porém, distintas:
espaços constituídos em relação a certos fins
(transportes, trânsito, comércio, lazer) e a
relação que os indivíduos mantêm com esses
espaços33.
Podemos aproximar esta idéia sobre o não-lugar de Marc
Augé com as heterotopias de Foucault, que ele conceitua
em seu texto ‘Outros Espaços34’. Na verdade, o próprio
Augé chega a fazer isso em seu livro quando classifica o
não-lugar como o contrário da utopia.35
Para Foucault, existem dois posicionamentos: as
utopias e as heterotopias. A primeira é um posicionamento
32
Sagrado no sentido que Bataille emprega em relação às despesas improdutivas, em que a religião,
principalmente ao realizar cultos, estaria associada.
33
AUGÉ, Marc. Não- lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas:
Papirus, 1994. Pág. 87
34
FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: MOTTA, Manoel Barros (org.). Michel Foucault.
Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. (Ditos &
Escritos. v. III) pág. 411-422.
35
AUGÉ, 1994. Op. Cit.Pág. 102.
P á g i n a | 33
sem lugar real. A segunda é uma espécie de utopia
concreta, com posicionamentos reais. São locais opostos, tal
como a conceituação de Augé. Já para Miwon Kwon, em seu
artigo ‘O lugar errado36’, diz que estes locais, que podem ser
chamados de ‘não-lugares’ e heterotopias, são relacionados
com uma sensação de inadequação, de estar em trânsito.
Em todos os casos há um ponto em comum. Esses são
locais em que a disjunção está presente. Em que habitamos
um ‘entre’, uma fresta, um espaço provisório, de passagem.
É um espaço que na maior parte das vezes não é percebido
como tal e, por isso, quando ele chega a ser percebido,
sentimos esta sensação de ‘lugar errado’.
Apesar
dessas
conceituações
se
referirem
sempre a locais que representam lugares de passagem,
podemos perceber como isso pode ser aplicado aos locais
tratados neste trabalho. Estes terrenos ou construções
imprecisas
não
deixam
de
apresentar
características
similares aos locais que são apresentados pelos autores
(hotéis, aeroportos, barcos, ônibus, jardins, cemitérios).37 Ao
vermos os terrenos/construções a partir de uma escala
urbana, percebemos que estes locais são os espaços em
que a cidade vive de fato. Se isso representa uma espécie
de posicionamento, é justamente o de poder trabalhar o
caos, de ser entrópica.
Isto seria, ainda segundo Yve-Alain Bois, o trabalho
eterno de Sísifo ou mesmo o mito de Hidra de Lerna e suas
cabeças que sempre nascem novamente. A cidade sempre
trabalha por modificar este espaço urbano em ações
entrópicas já que estão sempre em um moto-contínuo. Ora,
36
KWON, Miwon. O lugar errado. Trad. Jorge Menna Barreto. Art Journal. Spring 2000. Pág. 33.
Não deixa de ser interessante notar que Benjamin, em sua obra ‘Passagens’ caracterizou estes
lugares como “moradas de sonho do coletivo: passagens, jardins de inverno, panoramas, fábricas,
museus de cera, cassinos, estações ferroviárias.” - BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II. Rua de
Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1987. Pág. 449.
37
P á g i n a | 34
a poeira que estava lá no ‘Grande Vidro’ era um sinal de
abandono, de algo que fora deixado de lado por algum
tempo.
A reconstrução é eterna e, assim como Sísifo, sempre estaremos
impossibilitados de perceber nossa ação como um todo, presos que
estamos nesse moto-perpétuo.
P á g i n a | 35
2. CAMINHOS
2.1.
Flâneur
Esses indícios ou/e espaços que comportam
estes indícios (tratados no capítulo anterior) irão interessar
os artistas de maneira geral, a partir das Vanguardas, e mais
precisamente, como escreve Susan Sontag, a partir da
estética do Surrealismo. Em seu ensaio sobre a melancolia e
a fotografia denominado ‘Objetos de melancolia’, Sontag
afirma:
De fato, a fotografia - a exemplo do
próprio gosto surrealista preponderante revelou um apego inveterado ao lixo, a coisas
repugnantes, dejetos, superfícies esfoladas,
bugigangas estranhas, kitsch.38
E mais adiante, complementa:
(...) foram o Breton e os outros
surrealistas que inventaram a loja de
mercadorias de segunda mão como um templo
do gosto de vanguarda e alçaram a visita aos
brechós à condição de um tipo de peregrinação
estética.39
É perceptível que este movimento de procura dos
restos de uma sociedade ainda se faz presente na
contemporaneidade. Se dentro deste universo citado por
Sontag (as fotografias de vitrines de Atget, as caixas de
Joseph Cornell ou outros artistas que utilizaram este
procedimento) temos uma peregrinação pelos centros ou
pelas periferias da cidade para se conseguir o material
adequado, atualmente não deixa de apresentar tanta
disparidade. Assim como ela diz em seu ensaio sobre este
flâneur de Baudelaire e Benjamin, que olha o mundo de
forma diferente, ao caminhar pela feira de antiguidades da
38
39
SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Pág. 93.
SONTAG, 2004. Op.cit. Pág. 93.
P á g i n a | 36
Praça XV, ou mesmo pelos inúmeros sebos e brechós do
centro da cidade, sinto-me o próprio flâneur tupiniquim, o
próprio João do Rio em seus passeios e descobertas pelo
centro do Rio de Janeiro.
Ora, não é lá que se localiza o que há de mais
exótico na cidade? Não é lá que os personagens de uma
suposta classe que perdeu seu status vendem suas
pequenas preciosidades para quem quiser ouvir uma boa
história? Encontra-se de tudo, desde raridades kitsch até um
lixo tecnológico produzido recentemente, tais como controles
remotos velhos, teclados usados e sem função. Nestes
lugares têm-se sempre a sensação de que poderemos
encontrar alguma raridade a preço de banana ou mesmo um
objeto estranho, desprovido de toda função, mas que possui
algo que desperta interesse visualmente.
A caça deixou de ser pelo instante decisivo e
passou a ser pelo objeto perfeito. Esse personagem
andarilho, que busca um “je ne sais quoi”
tal como o
“Homem da Multidão”40, está sempre em busca de algo, em
busca dele mesmo, de ser invisível e visível ao mesmo
tempo. Se na Modernidade a procura era por alguma coisa
que ainda mantivesse resquícios de um mundo que se
perdia (daí a melancolia); tal como as passagens eram para
Benjamin ou o próprio flâneur que buscava sempre algo
relacionado ao transitório (moderno) e ao eterno (passado);
atualmente temos esta pesquisa não só a partir destes
resquícios, mas também por qualquer coisa que surpreenda,
que nos tire do lugar-comum, através desse olhar pelo
exótico. O exótico que se relaciona com o outro, que nos faz
ver, através do outro, nós mesmos. Esse olhar que é voltado
para o passado seria muito similar ao olhar que temos
quando observamos o que está distante. De certa forma,
40
POE, Edgar Allan. Ficção Completa, Poesias & Ensaios. Trad. de Oscar Mendes e Milton
Amado. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. Pág. 392-400.
P á g i n a | 37
quando nos distanciamos temporalmente, estamos também
distantes espacialmente e, por isso, podemos entender este
olhar para o passado como o olhar para os povos
‘primitivos’, como um interesse que faz ressaltar nossas
qualidades e nossos defeitos, já que esse outro é criação
nossa, ele só existe para nós. A apropriação do passado, do
outro, não deixa de ser uma afirmação do eu, já que vemos
neste passado algo que faz parte de nós.
Em seu livro ‘Polvere nell’arte’, Elio Grazioli faz
uma analogia entre a poeira e o exótico representado pelas
fotografias do século XIX de grandes expedições e viagens
arqueológicas ao redor do mundo41. Ele comenta que a
mesma poeira que não suportamos em nossas casas e que
nos faz limpar freneticamente o ambiente, é a mesma
poeira que nos faz perceber essas fotografias como
exóticas pois nelas a poeira executa um papel quase
pitoresco, que nos distancia e permite entender aquele local
como inatingível, tal como a questão da poeira nos contos
de fada já comentada no capítulo da poeira. Ao mesmo
tempo, essa poeira coloca essas fotos em outro patamar do
passado, um passado que desloca nosso olhar para este
exotismo, o mesmo exotismo que habita os objetos nas
feiras de antiguidades ou os locais inóspitos buscados pelo
flâneur.
Este flâneur vai vivenciar a cidade, experimentar
cada canto, beco, lugares desacolhedores, tais como os
lugares habitados pela poeira comentada anteriormente.
Lugares que mantêm o cheiro de mofo, mas que estão no
presente
pelo
fato
de
existirem
(afinal
somos
contemporâneos). Ele se deixa embriagar por aquela
atmosfera, deixa-se contaminar por esta poeira e depois sai
incólume do lugar, tal como o ‘Homem da Multidão‘. O
41
GRAZIOLI, 2004. Op. Cit. Pág 45.
P á g i n a | 38
devaneio é temporário, está presente apenas no momento
de se percorrer a cidade em busca deste belo moderno
baudelairiano. Benjamin diz que
O homem que lê, que pensa, que espera,
que se dedica à flânerie, pertence, do mesmo
modo que o fumador de ópio, o sonhador e o
ébrio, à galeria dos iluminados42.
Ele é o homem que se deixa levar pelas
sensações, que apura os canais de comunicação para poder
sentir melhor o que a cidade pode dar a ele. Ele aprecia
cada instante que os seus sentidos proporcionam. Georges
Perec também vai se descrever como um flâneur que além
de se deixar vagar, gosta de fazer jogos, criar situações para
andar pela cidade de Paris, como uma maneira de perceber
essa cidade de várias formas, entretendo-se com o que ele
já viu, já reconhece. Ele conta que
Eu adoro andar por Paris. Às vezes numa
tarde inteira, sem nenhum objetivo, não
casualmente, ou aleatoriamente, mas tentando
deixar-me levar. Às vezes tomando o primeiro
ônibus que para (você não pode mais pegar
ônibus quando eles estão em movimento). Ou
então preparando um cuidadoso e sistemático
itinerário. Se eu tivesse tempo, eu gostaria de
criar e resolver problemas análogos ao da ponte
de Königsberg ou, por exemplo, encontrar um
caminho que cruzasse Paris de um lado ao outro
utilizando somente ruas começando com a letra
C43.
O flâneur tornou-se um personagem de fácil
vestimenta, que ainda produz bons resultados em suas
buscas. Sai sem rumo pela cidade, para experienciar,
entrega-se ao devaneio e volta como qualquer outro homem,
sem rótulos, sem distinção aparente. Benjamin afirma:
42
BENJAMIN, Walter. “O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia”. In ‘Obras
escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura’. São Paulo:
Brasiliense, 1985. Pág. 33
43
PEREC, George. Species of Space and Other Pieces. London & New York: Penguin Books, 1997.
Pág. 63.
P á g i n a | 39
A figura do flâneur prenuncia a do
detetive. O flâneur devia procurar uma
legitimação social para seu comportamento.
Convinha-lhe perfeitamente ver sua indolência
apresentada como aparência, por detrás da qual
se esconde de fato a firme atenção de um
observador seguindo implacavelmente o
criminoso que de nada suspeita.44.
Essa figura do detetive que procura, no detalhe,
nas minúcias, as pistas para a solução do crime, deriva, de
acordo com a citação de Benjamin, deste homem que busca
na multidão qualquer coisa destacável, algo que o diferencie
do resto e, que é ao mesmo tempo, o olhar para o banal,
para o que está ao seu lado, o prosaico. É interessante
perceber que Poe, vai ser o escritor que se ‘especializa’ em
contos fantásticos, policiais e de terror. O detalhe será o
ponto principal em sua obra.
Em outro capítulo, citado anteriormente, Benjamin
aborda o “Tédio e o Eterno Retorno”. A idéia deste eterno
retorno estaria associada a uma noção de mistura, uma
fantasmagoria do passado presente no moderno, em que, de
alguma forma, sempre buscamos algo do passado ‘extinto’ e
dialogamos com o presente45. Sem este movimento, não há
presente. Essa revisitação do passado, num movimento de
espiral, em que o retorno não seria em um mesmo ponto,
mas sim em um ponto paralelo, é o que faz o flâneur em sua
busca pela cidade-labirinto. Ele retorna aos elementos do
passado, experimenta esta história e transforma esta
experiência em algo interessante. Na verdade, para que ele
apreenda alguma coisa, é necessário também outro tempo,
outro ritmo. A multidão tem a velocidade da modernidade.
44
BENJAMIN, 2006. Op. cit. Pág. 485.
“O eterno retorno é uma tentativa de unir os dois princípios antinômicos da felicidade: ou seja,
o da eternidade e o do ‘mais uma vez ainda’. A idéia do eterno retorno faz surgir por encanto, da
miséria do tempo, a idéia especulativa (ou a fantasmagoria) da felicidade.” - BENJAMIN, Walter,
Obras escolhidas. Vol. 3. São Paulo: Brasiliense, 1987. Pág. 174.
45
P á g i n a | 40
Ele vai ser a velocidade do tédio, da melancolia. Ao mesmo
tempo, esse eterno retorno também pode ser visto como o
tédio que proporciona o extraordinário.
Apesar de C. Guys46 afirmar que o homem que
sente tédio no meio da multidão é um tolo, será justamente
através do tédio, (o tédio que também proporciona o olhar
para o banal, cotidiano etc.), que o extraordinário surgirá.
Exatamente por nos encontrarmos no meio de um círculo
vicioso do banal (nada desperta a atenção, pois tudo é
prosaico) é que será possível a curiosidade ser despertada,
já que, será através deste ‘olhar tedioso’ que o novo surgirá.
Ao estarmos tão anestesiados com o banal, qualquer coisa
de diferente que surja nos despertará a atenção. Em seu
ensaio “Sob o Signo de Saturno”, Susan Sontag destaca que
o olhar de Benjamin é o olhar do melancólico: aquele que
nada vê, que não enxerga quase nada à sua frente.47
O olhar precisa ser apontado48 para algo não
visto, algo novo; é através do espanto pelo óbvio que esta
curiosidade surge, um olhar quase infantil que se surpreende
com o que está bem à sua frente, mas ainda não foi
percebido. Georges Perec diz que isso só pode ocorrer na
cidade, pois é nela que a surpresa existe. Segundo ele
Eu sou um homem da cidade; nasci,
cresci e vivi em cidades. Meus hábitos, ritmos e
meu vocabulário são os hábitos, ritmos, e
vocabulário de um homem urbano. A cidade
pertence a mim. Estou em casa lá: asfalto,
concreto, trilhos, a rede de ruas, o entediante
46
BAUDELAIRE, Charles. (org. Teixeira Coelho). A Modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1988.pág. 171.
47
“E desta obstinação deriva, ‘acima de tudo, um olhar contemplativo que parece não enxergar
um terço do que vê.” - SONTAG, Susan. Sob o Signo de Saturno. Porto Alegre: LP&M, 1986. - pág.
89
48
Assim como a câmera é apontada para os momentos decisivos, o olhar sem o dispositivo também
fará este papel. Agamben faz uma observação sobre este vagar sem rumo atrás de imagens no conto
‘O dia do juízo’ no qual diz que “(...) Dondero, que, assim como Robert Capa, sempre se manteve fiel
ao jornalismo ativo e muitas vezes praticou o que se poderia denominar a flânerie (ou ‘andar a
deriva’) fotográfica: passeia-se sem meta e se fotografa tudo o que aparece.” - AGAMBEN, Giorgio.
Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. Pág. 27.
P á g i n a | 41
cinza das fachadas que se estendem além da
visão, essas são as coisas que podem me
surpreender ou me chocar, mas de um mesmo
modo que eu posso ser surpreendido ou chocado
pela, por exemplo, extrema dificuldade que
temos quando queremos olhar atrás do nosso
pescoço ou a injustificável existência dos seios
da face (frontal ou maxilar). No interior, nada
me choca; eu posso ser convencional e dizer que
tudo me surpreende; na realidade tudo me deixa
mais ou menos indiferente.49
Não deixa de ser um eterno retorno ao tédio da multidão.
Esse olhar para a multidão traduz-se como o olhar para sua
época, mas que de maneira nenhuma está desvinculado do
passado, “(...) a cidade não conta o seu passado, ela o
contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das
ruas50.”
Este olhar ‘moderno’ percebe o transitório e o eterno
simultaneamente.
2.2. Entropia
A busca pelos locais inóspitos da cidade ocorre
sem percebermos. Ao caminhar pela cidade, estamos
sempre vagando, sem distinguir direito as coisas, já que o
hiperestímulo é constante. Sons, cheiros, outdoors, letreiros,
pessoas, tudo ao mesmo tempo concorrendo por sua
atenção. Olhamos a esmo, tentamos entender a informação,
mas tudo também parece pasteurizado, parecido. Olhamos
mas não apreendemos nada. Só saímos deste torpor
quando algo sai do comum, quando percebemos alguma
coisa que não pertence àquele lugar, momento. Aí surge o
terreno baldio, a construção abandonada, o vazio.
A cidade absorve as construções de diversas
49
50
PEREC, 1997. Op.cit. Pág. 69.
CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Pág. 16.
P á g i n a | 42
formas, inclusive as deixando tornarem-se ruínas ou não. É
interessante pensar isso, principalmente a partir de uma
frase do Argan em que ele vê a ‘(...) cidade como espaço
visual’51. A cidade passa a ser a tela para qualquer
manifestação visual. Logo adiante ele complementa:
Cada um de nós, em seus itinerários
urbanos diários, deixa trabalhar a memória e a
imaginação: anota as mínimas mudanças, a
nova pintura de uma fachada, o novo letreiro de
uma loja; curioso com as mudanças em
andamento, olhará pelas frestas de um tapume
para ver o que estão fazendo do outro lado;
imagina e, portanto, de certa forma projeta, que
aquele velho casebre será substituído por um
edifício decente, que aquela rua demasiado
estreita será alargada, que o trânsito será mais
disciplinado ou até mesmo proibido naquele
determinado ponto da cidade; lembra-se de
como era aquela rua quando, menino, a
percorria para ir à escola ou quando, mais tarde,
por ela passeava com a namorada; ou o famoso
incêndio, o crime de que falaram todos os
jornais, etc. (...) Como o espaço da pintura de
Pollock, o espaço da cidade interior tem um
ritmo de fundo constante, mas é infinitamente
variado, muda de figura e de tom do dia para a
noite, da manhã para a tarde – o espaço da rua
que percorremos de manhã para ir trabalhar é
diferente do espaço da mesma rua percorrida à
tarde.52
51
ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes,
1995. Pág.228.
52
Idem. Pág. 232 e 233.
P á g i n a | 43
P á g i n a | 44
Se para Argan temos um movimento curioso que
se aproxima do olhar do detetive benjaminiano ao buscar
essa relação corporal com a cidade, para Nelson Brissac,
essa não-percepção ocorre a partir do momento em que não
há um deslocamento físico do espectador em relação ao que
é percebido. Ele diz que:
O pitoresco pressupõe um caminhante,
alguém que constrói sua percepção a partir do
movimento, não do olhar. O espaço não é
apreendido oticamente, mas de modo físico. Em
vez do dispositivo ótico, uma visão
peripatética.53
Em outro momento, ele diz que:
A metrópole é o paradigma da saturação.
Contemplá-la leva à cegueira. Um olhar que não
pode mais ver, colado contra o muro,
deslocando-se pela sua superfície, submerso em
seus despojos. Visão sem olhar, tátil, ocupada
com os materiais, debatendo-se com o peso e a
inércia das coisas. Olhos que não vêem. 54
Na verdade, nem sempre estamos aptos a
enxergar estes locais. Pelo contrário, eles nos percebem
primeiro. Verdadeiramente, na maioria das vezes, a cidade
absorve estes locais muito antes do que eles sejam
percebidos. Assim como muitas vezes ‘perdemos’ o prédio
que sempre víamos em certo lugar e só notamos muito
tempo depois, quando ele já está em ruínas. O terreno
baldio desaparece para a cidade, numa espécie de
mimetismo, de uma não distinção entre figura e fundo.
Em uma parte do texto ‘Um passeio pelos
monumentos de Passaic’, Robert Smithson cita uma
experiência com areia para explicar o que é entropia e
provar a ‘irreversibilidade da eternidade’. O exemplo é
simples mas significativo. Ao pegarmos uma caixa de areia
53
54
PEIXOTO, Nelson Brissac . Paisagens Urbanas. São Paulo: Ed. SENAC, 1996. P. 179.
PEIXOTO, 1996. Op.cit. Pág. 175.
P á g i n a | 45
em que metade tem areia branca e a outra metade areia
preta e misturarmos no sentido horário, teremos uma caixa
com areia cinza. Porém, se fizermos o movimento reverso,
girando no sentido anti-horário, a areia não volta para o
início, quando era separada entre branco e preto. Na
verdade, haverá um aumento da mistura, ela ficará ainda
mais cinza55. Quer dizer, ao relacionarmos isso com a
questão urbana, veremos que um terreno abandonado não
volta ao que era antes depois de reformado; um edifício
restaurado não será o mesmo de antes; uma construção que
ocupe este terreno nunca será como que o ocupou da
primeira vez. É um processo sem volta.
Neste mesmo texto o artista faz um passeio pelas
ruínas da cidade de Passaic. Ao passear pela cidade munido
de sua câmera, (que o controla), Smithson faz uma análise
do que seriam certos ‘monumentos’ estabelecidos por ele
como tal. Ele categoriza como monumentos certos locais da
cidade que não têm nenhum apelo visual, a não ser pelo fato
de que poderiam ter sido alguma coisa que nunca chegaram
a ser. São monumentos que trazem a carga da destruição.
Segundo ele
Esse panorama zero parecia conter as
ruínas às avessas, isto é, todas as novas
edificações que eventualmente ainda seriam
construídas. Trata-se do oposto da ‘ruína
romântica’ porque as edificações não
desmoronaram em ruínas depois de serem
construídas, mas se erguem em ruínas antes
mesmo de serem construídas56.
Essa antinomia que o artista propõe ao enxergar
uma não-ruína, um local cheio de futuros locais, aproxima-se
um pouco da idéia de que os locais que fotografo estão em
constante movimento. Quer dizer, ao olhar para o terreno em
55
SMITHSON, Robert. Um passeio pelos monumentos de Passaic, in: O nó gordio - jornal de
metafísica, literatura e artes, ano 1, n.1, dezembro de 2001. Pág. 47
56
SMITHSON, 2001. Op.cit. Pág. 46
P á g i n a | 46
ruínas, vemos uma futura construção e ao vermos uma
construção no início de sua degradação, imaginamos um
futuro terreno vazio. A idéia de que ali sempre haverá uma
mudança, atualiza a ruína, pois não a deixa ficar
romantizada.
É como se esses lugares tivessem um
potencial a ser ainda explorado, quase como um ‘futuro
abandonado.57’ Um pouco depois no texto, ele diz que o
centro de Passaic poderia servir para uma galeria, pois ele
era um ‘típico abismo ou um vácuo comum58’.
Se em Smithson o vagar por Passaic é um tipo de
vagar afirmativo, onde ele fotografa aqueles monumentos,
investiga locais sem significação, locais que não chegam a
ser ruínas; os lugares pelos quais os personagens de Sebald
passam
estão muito mais associados com uma ruína
romantizada
das
cidades
arruinadas
do
pós-guerra.
Smithson busca uma não-ruína por não querer um
fetichismo, enquanto Sebald tenta recriar uma atmosfera
melancólica e culposa.
Essa atração pelo local degradado, decomposto,
existe na narrativa de Sebald através dos passeios que seus
personagens fazem sempre no início de seus livros
carregados de uma atmosfera de desencanto, como
observado nesta passagem:
(...) e outra coisa é num entardecer
sombrio passar pelas filas de casas com
fachadas arruinadas e grotescos jardinzinhos da
frente e, quando finalmente se chega ao centro
da cidade, não encontrar nada senão salões de
jogo ou bingo, betting shops, videolocadoras,
bares de cujas entradas escuras sai um cheiro de
cerveja azeda, lojinhas de artigos baratos e
duvidosas pousadas59 (...)
Sebald descreve o local com uma riqueza de
57
Idem. Pág. 46
Idem. Pág. 47
59
SEBALD, Winfried Georg. Os anéis de Saturno. Rio de Janeiro: Record, 2002. Pág. 51.
58
P á g i n a | 47
detalhes, de maneira desprezível, em que chegamos a sentir
como esses lugares são repulsivos mas ao mesmo tempo
temos uma atração visceral por estarmos próximos de algum
modo deles (seja em nossa vivência urbana, seja através da
leitura desses textos).
No trabalho ‘Guia de terrenos baldios de São
Paulo- uma seleção dos lugares vazios mais interessantes
da cidade’, de Lara Almarcegui apresentado na 27ª Bienal
de São Paulo, a principal questão é este local da cidade que
não é exatamente um local; uma presença que não é uma
presença. É chamar a atenção para estes espaços que
ocupam a cidade. Segundo ela,
O principal interesse dos terrenos baldios
é que eles estão entre os poucos lugares da
cidade que não estão ligados à realização de um
projeto, ainda que tenham proprietário e sua
existência esteja relacionada a planos de
urbanismo do futuro ou do passado que, por
diversas razões, estão parados. Os terrenos
baldios são lugares em que quase tudo é
possível, porque neles não há nada, são lugares
de possibilidades em que o cidadão pode se
sentir livre. (...) Outros terrenos baldios estão
relacionados a situações conflituosas em algum
momento, e seus restos ficam como resíduos
arqueológicos de um fracasso. (...) Como os
terrenos costumam carecer de manutenção,
neles se podem observar processos naturais de
decadência, mistura e entropia que se escondem
no resto da cidade60.
Estes locais, na verdade, são locais de transição,
em que a entropia nunca deixa que fiquem como estão,
sempre faz com que eles se transformem em seu oposto. Ao
se transformarem em seu oposto, em alguma coisa que se
completa, estes locais apresentam um equilíbrio provisório,
uma troca de posições constante, uma tentativa de dar
ordem ao caos que a entropia promove. Essa maneira de
60
‘Guia de terrenos baldios de São Paulo- uma seleção dos lugares vazios mais interessantes da
cidade’, de Lara Almarcegui apresentado na 27ª Bienal de São Paulo - 2006
P á g i n a | 48
ver a natureza buscar um equilíbrio no caos estabelece
relação com o que Smithson diz ao definir o que seria o Site
e o Non-Site. Ao criar estes trabalhos, ele, grosso modo, cria
um vínculo entre o mundo e o espaço expositivo, como pode
ser visto no trecho a seguir:
O alcance da convergência entre Site e
Non-site consiste no curso do acaso, um duplo
caminho feito de signos, fotografias, e mapas
que pertencem a ambos os lados da dialética.
Ambos os lados estão presentes e ausentes ao
mesmo tempo. A terra ou solo do Site está na
arte (Non-site) ao invés da arte localizada no
solo. O Non-site é um contêiner dentro de outro
contêiner – a sala. O terreno ou pátio externo é
ainda outro contêiner. Coisas bidimensionais e
tridimensionais trocam de lugar entre si para
alcançar a convergência. Grande escala torna-se
pequena. Pequena escala torna-se grande. Um
ponto no mapa expande-se para o tamanho de
uma porção de terra. Uma porção de terra
contrai-se em um ponto. É o Site uma reflexão
do Non-site (espelho) ou é de outro jeito? As
regras desta rede de signos são descobertas
assim que você caminha por trilhos incertos
tanto mental quanto fisicamente61.
Podemos também fazer uma relação entre as
ruínas que são encontradas, vistas pela cidade e os objetos
com que nos deparamos nas andanças pela feira de
antigüidades. Se os terrenos, com seus restos, suas
construções inacabadas são as ‘ruínas’ da cidade, pode-se
dizer que os objetos nessas feiras são o que restaram das
vidas das pessoas, seus resquícios, que de alguma
maneira, precisam sofrer uma mudança, deixar de pertencer.
Assim como os prisioneiros que se apegam aos poucos e
pequenos objetos que lhes são permitidos durante sua pena,
esses objetos funcionam como o último laço entre lembrar e
esquecer. Eles representam uma mudança necessária, por
61
SMITHSON, Robert. The Collected Writings. Berkeley: University of California Press, 1996. Pág.
153.
P á g i n a | 49
isso estão sendo vendidos, doados, desfeitos.
Sonia Schulz faz um paralelo entre memória e
cidade que estabelece analogia entre o esquecimento e o
vagar pela cidade, no qual o fato de andarmos pelos
mesmos lugares estaria relacionado com a construção
complexa de ambas (cidade e memória). Ela diz que
A memória e a cidade são territórios
labirínticos, traçados como uma rede infinita de
percursos e nós, com centros e periferias
mutáveis, referentes e limites fluidos,
dimensões e posições instáveis. As múltiplas
orientações levam à desorientação, à exploração
sem mapa ou, mais precisamente, sem pontos
fixos. (...) O deslocamento acelerado no tempo
moderno também converteu a cidade em lugar
de amnésia, da dissolução da lembrança, em
esquecimento. Os movimentos na cidade e na
memória da cidade constituem um persistente
deslocamento para nenhum lugar específico,
induzindo à perpétua redescoberta de
fragmentos urbanos. A perda parcial da
memória condena o nômade urbano a revisitar
os mesmos espaços, a rever as mesmas
paisagens,
a reencontrar um passado
dissimulado de presente. O antigo aparece como
novo exatamente porque os registros das
imagens são, muitas vezes, apagados62.
O fato de sempre voltarmos aos mesmos lugares
sem que nos lembremos pode ser analisado junto com o fato
de olharmos para a cidade e não percebermos direito o que
nos cerca, como foi colocado por Brissac anteriormente
neste texto. A memória não consegue registrar devidamente
pelo excesso de estímulo e ignora certos aspectos que
poderiam servir de referência. Assim, ao passarmos pelo
terreno que está degradado, não conseguimos perceber que
ali era a casa de chá que costumávamos ir. Somente depois
de construído um posto de gasolina é que lembramos que ali
era o local que tomávamos chá com nossa avó na tarde de
62
SCHULZ, Sonia Hilf . Estéticas urbanas: da pólis grega à metrópole contemporânea. Rio de Janeiro:
LTC Editora, 2007. Pág. 156-157.
P á g i n a | 50
sábado. Necessitamos de muitas idas e vindas para que
nossa memória consiga apreender as várias etapas de
degradação e modificação impostas pela cidade.
A cidade é redundante : repete-se para
fixar alguma imagem na mente. (...) A memória
é redundante: repete os símbolos para que a
cidade comece a existir63.
Podemos pensar que além desse flâneur
que vaga pela cidade a observar os espaços, temos também
uma série de personagens que habitam estes locais
degradados e que, de alguma maneira, também contam com
a companhia de seus ‘ajudantes’. Esses personagens vivem
à margem, assim como esses locais que queremos que
desapareçam da cidade, eles não são notados, viram parte
dessa paisagem sinestésica como a qual já estamos
acostumados. Nelson Brissac, em seu livro ‘Cenário em
Ruínas’ ressalta que
Um homem vaga por entre prédios
abandonados, vasculhando os montes de móveis
e objetos quebrados, examinando cada coisa que
se encontra em meio aos detritos. É lá que
espera encontrar a imagem de si mesmo e de
seu lugar. Tudo que possa explicar o que
ocorreu, como ele foi acabar ali. Objetos e
paisagens, retirados do passado, ele transforma
em símbolos de sua vida e de sua condição
atual. É um melancólico. (...) Ele é um
colecionador64.
Esses
personagens
também
vagam
erroneamente como o flâneur, passam despercebidos, têm
um olhar treinado, quer dizer, não deixam de apresentar as
mesmas características do flâneur, mas não apresentam as
mesmas condições. Eles não são cidadãos do mundo, não
passam de um local para o outro com facilidade. Eles
pertencem a estes locais degradados. Eles fazem parte da
63
64
CALVINO, 1998. Op.cit. Pág. 25.
BRISSAC, Nelson. Cenários em ruínas. São Paulo: Brasiliense, 1987. Pág. 168.
P á g i n a | 51
entropia urbana. Quando os espaços se modificam, eles
mudam de lugar para buscar um novo lugar para ‘habitar’.
Eles vagueiam sempre na mesma condição.
No subitem ‘Sísifo’, vimos a questão das
áreas chamadas ‘Zone’, do livro Formless, em que certos
espaços da cidade podem ser analisados metaforicamente
como a poeira que assombra a nossa casa. Esses espaços
são justamente estes terrenos baldios, antigas fábricas
desativadas,
estacionamentos
abandonados,
subaproveitados, que são deixados de lado pela sociedade,
que preferem ser esquecidos. Esses lugares são os lugares
que a cidade ‘busca, sem parar, combater a proliferação
entrópica, ao mesmo tempo em que a engendra65.’
Ou,
como Georges Perec assinala em seu livro ‘Species of
Spaces and Other Pieces’, podem ser locais que incomodam
e que precisam ser eliminados:
Os prédios se posicionavam um do lado
do outro. Eles formam uma linha reta. Espera-se
que eles formem uma linha, e isso se torna um
defeito e é uma séria falha quando não o fazem.
Eles então são ditos como ‘sujeitos ao
alinhamento’, significando que podem ser
demolidos ou assim como reconstruídos numa
linha reta com os outros66.
Este
movimento
é
necessário
para
a
sobrevivência da cidade67. É da mesma ordem da reflexão
65
PEIXOTO, 1996. Op.cit. Pág.403.
PEREC, 1997. Op.cit. Pág..46.
67
Italo Calvino fará uma leitura poética desta necessidade de sobrevivência da cidade no seguinte
trecho do seu livro ‘Cidades Invisíveis’: “(...) quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula; as
escamas de seu passado se solidificam numa couraça impossível de se tirar; renovando-se todos os
dias, a cidade conserva-se integralmente em sua única forma definitiva: a do lixo de ontem que se
junta ao lixo de anteontem e todos os dias e anos e lustros. (...) Quanto mais cresce em altura, maior
é a ameaça de desmoronamento: basta que um vasilhame, um pneu velho, um garrafão de vinho se
precipitem do lado de Leônia e uma avalanche de sapatos desemparelhados, calendários de anos
decorridos e flores secas afundam a cidade no passado que em vão tentava repelir, misturado com o
das cidades limítrofes, finalmente eliminada – um cataclismo irá aplainar a sórdida cadeia
montanhosa, cancelar qualquer vestígio da metrópole sempre vestida de novo. Já nas cidades
vizinhas, estão prontos os rolos compressores para aplainar o solo, estender-se novo território,
alargar-se, afastar os novos depósitos de lixo.” - CALVINO, 1998. Op.cit. Pág. 110-111.
66
P á g i n a | 52
do qual Smithson fala: o Site reflete o Non-site e vice-versa.
É imprescindível que eles existam para que a cidade exista.
Não há cidade moderna sem a ruína.
Não há ruína fora da cidade.
P á g i n a | 53
3. OBJETOS
3.1. Memória
Em um artigo publicado recentemente no site do
jornal ‘Folha de São Paulo’68 foi noticiado que cientistas
isolaram uma proteína para inibir lembranças evocadas pelo
cérebro humano. Esta notícia apresenta certa semelhança
com o argumento do filme “Brilho de uma mente sem
lembranças’”, de Michel Gondry, no qual a personagem
principal utiliza-se de um tratamento para apagar a
lembrança de um relacionamento amoroso, para apagar a
memória do trauma. A personagem age estranhamente e
não fica claro para o espectador o motivo. No decorrer do
filme, descobre-se que a personagem buscou os serviços de
uma empresa especializada em apagar fatos desagradáveis
da memória.
A princípio, este procedimento seria uma maneira
radical para fazer com que a lembrança de um acidente, de
uma morte de um familiar ou mesmo de uma agressão fosse
apagada. Porém, com a facilidade deste método, ele se
torna banalizado. O que ocorre durante o filme é que por
qualquer motivo, as pessoas passam a apagar brigas com
ex-namorados, morte de animais de estimação ou uma
demissão do emprego, como forma de não vivenciar a
perda. Ao voltarmos para a história da personagem principal,
depois de uma série de acontecimentos, percebemos que o
ex-namorado descobre que foi apagado da memória de sua
namorada e resolve fazer o mesmo em relação a ela.
Esse procedimento ocorria durante o sono,
quando funcionários da empresa faziam uma espécie de
eletroencefalograma
68
computadorizado
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u397438.shtml
na
pessoa
P á g i n a | 54
inconsciente.
No
transcorrer
de
seu
processo
de
apagamento, ele fica semiconsciente69 e descobre que não
quer mais que a recordação de sua ex-namorada seja
apagada, empreendendo uma jornada em seu cérebro em
associação com a personificação da lembrança de sua exnamorada, para que qualquer reminiscência dela permaneça
em sua memória. Numa das cenas mais belas do filme, ela
pede para ser inserida em uma recordação que seja só dele,
que tenha ocorrido antes deles se conhecerem, como por
exemplo, em sua infância, pois assim os funcionários
contratados não teriam como localizá-la nem apagá-la. Isto
pode ser explicado melhor através da descrição de como o
procedimento de apagamento era realizado.
Em outro momento significativo do filme, o
médico diz para o personagem que ele precisa trazer para a
clínica objetos que estejam relacionados com a namorada,
que remetam a qualquer lembrança. Isto tem uma lógica
simples: a partir daqueles objetos, sensações de prazer e
desprazer associadas aos momentos em que eles viveram
juntos, serão apagadas da memória. Ele terá de se desfazer
desses objetos para que não tenha nenhum contato com
eles, já que este contato poderia provocar uma lembrança
do tempo em que passaram juntos, revertendo todo o
processo.
Aqui podemos fazer uma associação com o
conceito de memória involuntária70 de Proust. A partir do
69
A sensação exibida no filme é semelhante a que temos quando percebemos, durante o sonho, que
estamos sonhando e tentamos acordar.
70
A memória involuntária estaria de alguma forma desvinculada do consciente. Segundo Harald
Weinrich, em seu livro ‘Lete - arte e crítica do esquecimento’, a memória involuntária é “uma forma
de memória que se esquiva de ser dirigida pela razão e pela vontade, fugindo habilmente ao controle
de ambas. Essa memória não tenta mais evocar lembranças através de um esforço da vontade, e
também desiste de assegurá-las contra o esquecimento com toda a sorte de artifícios mais ou menos
hábeis. A memória involuntária antes de mais nada se dá tempo.” - WEINRICH, Harold. Lete/ Arte e
Crítica do Esquecimento. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2001. Pág. 208. Esta memória
pode vir a qualquer hora/momento, não depende deste esforço de lembrança, portanto é, teoricamente,
passiva e está relacionada com eventos/objetos que despertam essa memória espontânea, poética,
P á g i n a | 55
momento em que o personagem toca ou olha para certos
objetos, a lembrança é naturalmente evocada e a mesma
sensação do passado é rememorada, trazendo o prazer ou o
desprazer. Claro que a memória involuntária de Proust,
exemplificada inúmeras vezes em sua obra ‘Em busca do
tempo
perdido’,
está
muito
mais
relacionada
com
lembranças perdidas da infância do que lembranças
recentes e são provocadas por sensações vindas através da
experiência que inicia a rememoração da vivência e não por
imagens. Mas, de alguma maneira, os objetos que são
usados e descartados pelo personagem do filme apresentam
uma similaridade com o processo experimentado pelos
personagens de Proust. Podemos entender melhor esta
questão através da diferenciação que Susan Sontag faz do
conceito da memória involuntária e a questão da fotografia
para Proust quando ela diz que
Toda vez que Proust menciona fotos, o
faz de modo depreciativo: como sinônimo de
uma relação superficial com o passado,
exclusiva e excessivamente visual, e meramente
voluntária, cujo resultado é insignificante
quando comparado com as profundas
descobertas a ser feitas ao reagir às sugestões
oriundas de todos os sentidos – a técnica que ele
chamou de ‘memória involuntária’. (...) Mas a
razão para tal não está na incapacidade de uma
foto de evocar memórias (ela é capaz disso,
dependendo antes dos predicados do espectador
do que da foto), mas sim naquilo que Proust
esclarece acerca de suas próprias exigências no
que se refere à recordação imaginativa, ou seja,
que ela não se mostre apenas ampla e acurada
mas dê a textura e a essência das coisas. E ao
considerar as fotos apenas na medida em que
podia usá-las, como um instrumento da
memória, Proust como que entende de forma
errada o que são fotos: não tanto um
instrumento da memória como uma invenção
dela, ou mesmo um substituto71.
agradável.
71
SONTAG, 2004. Op. cit. Pág.180 e 181.
P á g i n a | 56
A memória involuntária de Proust não pode ser
controlada72, nem evocada, pois surge ‘naturalmente’
através da experiência. No entanto, essa experiência
raramente era visual. Proust irá privilegiar os outros
sentidos, e portanto, a fotografia (imagem) passa a ter uma
importância menor, pois é ‘essencialmente’ visual. Assim,
relacionar esta memória com o que ocorre no filme pode
parecer uma leviandade, já que os acontecimentos dos
personagens são extremamente recentes, não estão sob
camadas de esquecimento; estão perfeitamente acessíveis.
Podemos alegar que a experiência de tempo, de narrativa,
de vivência é diferente para justificar tal analogia. Até
mesmo a apreensão da imagem fotográfica como suposta
substituta da memória se modificou em relação à sociedade
atual. O conceito elaborado por Proust é perfeitamente
oportuno se levarmos em consideração tais hipóteses.
Quando o personagem sofre o processo de apagamento, a
máquina que está em sua cabeça é ligada a um computador
que revira as partes menos acessíveis de seu cérebro para
buscar pequenos resquícios de memória. Podemos entender
isso como um esforço em descobrir, desvelar essas
inúmeras camadas da vivência. Mesmo quando levamos em
consideração os objetos utilizados para relembrar as ações
dos personagens, já que isso é um processo ‘controlado’
(por ser provocado por outrem), podemos aceitar que isso
seria uma espécie de aceleração da memória involuntária.
Ao tocar os objetos, toda a lembrança surge; ao sentir o
perfume, lembra-se de uma situação prazerosa ao lado da
pessoa amada.
72
“Pois, ao contrário dos objetivos imediatos a que a memória voluntária tem de obedecer, a
memória involuntária, que se serve dos sentidos inferiores, é uma memória a longo prazo, que
abrange o tempo de vida da pessoa. Anos e décadas podem estar entre a percepção sensorial inicial e
a vivência lembrada efetuada. (...) Em outras palavras, a memória involuntária passa por baixo de
um esquecimento longo e profundo.” – WEINRICH, 2001. Op.cit. Pág. 211.
P á g i n a | 57
Outro aspecto é que este processo também pode
ser relacionado com o processo da flânerie, em que, ao
caminhar pela cidade, o flâneur é despertado por inúmeras
lembranças trazidas por cheiros, texturas, disposição de
paisagens etc.73. Como afirma Benjamin, em “Princípio da
flânerie em Proust”:
Então, fora de todas essas preocupações
literárias e sem estabelecer nenhum vínculo com
elas, de repente, um telhado, o reflexo de sol
sobre uma pedra, o cheiro de um caminho, me
faziam parar por um prazer especial que me
davam e também porque pareciam esconder,
para além daquilo que eu via, alguma coisa que
me convidavam a vir apanhar e que, apesar de
todos os meus esforços, eu não chegava a
descobrir.74
Essa suposta obrigação de eliminarmos da
memória certos eventos, de não vivermos mais este ’luto’, a
necessidade de estarmos aparentemente sempre felizes é
algo que o senso comum admite como verdade e que
podemos perceber em frases de efeito do tipo “O povo
brasileiro sofre, mas se diverte”; “O brasileiro vive alegre” e
que poderíamos, com algumas exceções, estender para a
sociedade global. Se no Romantismo talvez fosse ‘moda’
contemplarmos a melancolia, (o artista era aquele que quase
’dependia’ da melancolia para criar), agora temos uma
espécie de cobrança maior para não demonstrarmos certas
fraquezas. Um sintoma que pode ser visto nas páginas dos
principais semanários com a criação de uma lista de livros
de auto-ajuda mais vendidos, paralela a lista oficial de livros
de literatura de ficção e não ficção; ou mesmo com a procura
por medicamentos para o controle imediato de qualquer
73
Uma das primeiras cenas do filme é justamente a que mostra o personagem principal desistindo
de ir ao trabalho para pegar um trem na direção oposta , sem saber exatamente porque, e vivenciar um
novo encontro com sua ex-namorada na mesma praia onde eles se conheceram e, ao mesmo tempo
sem se reconhecerem, pois já haviam passado pelo apagamento de memória.
74
BENJAMIN, 1987. Op.cit. Pág. 191.
P á g i n a | 58
sensação desagradável.
Se
no
luto
temos
um
processo
de
elaboração saudável da perda, na melancolia isso não
ocorre tão simplesmente. A perda difusa estaria associada a
esta melancolia, o que nos faz entender, em parte, porque
ela seria o motor para alguns artistas. Na verdade, de forma
bem simplificada, enquanto no luto temos o objeto perdido
bem delineado, na melancolia, este objeto inexiste, ele se
interioriza, voltando-se para o próprio ego, numa espécie de
narcisismo.
A melancolia pode ser entendida como uma
forma de resistência, tanto ao progresso quanto ao tempo
linear e, por isso, uma tentativa de se caminhar num tempo
diferente do restante da sociedade, tal como os caminhantes
que passeavam pelas passagens parisienses e suas
tartarugas,75 afinal, o ritmo da resistência era o ritmo imposto
pela tartaruga. Uma forma de resistir ao progresso. Numa
sociedade em que a maioria das coisas é descartável, a
memória passa a ser algo do mesmo gênero. O que
acontece com os colecionadores de memória então? Creio
que eles se tornarão os detentores de lembranças alheias (já
o são, na verdade), mas com grandes possibilidades de
comercializarem as ‘melhores lembranças’ para pessoas
sem lembranças de tanto apagarem sua memória. O
colecionismo, neste sentido, está diretamente associado ao
movimento do melancólico em ‘retardar’ o tempo. Ao
recolher estes resquícios da sociedade, o colecionador de
memórias (sejam elas próprias ou alheias) tenta correr em
direção oposta ao senso comum, que busca apagar todo e
qualquer indício para não vivenciar a história. Nada mais
melancólico do que uma coleção de fotografias. Nelas,
75
“O pedestre sabia ostentar em certas condições sua ociosidade provocativamente. Por algum
tempo, em torno de 1840, foi de bom-tom levar tartarugas a passear pelas galerias. De bom grado, o
flâneur deixava que elas prescrevessem o ritmo de caminhar.” - BENJAMIN, 1987. Op. cit. Pág.
122.
P á g i n a | 59
temos a lembrança física do esquecido.
(...) a fotografia exige que nos
recordemos; as fotos são testemunhas de todos
esses nomes perdidos, semelhantes ao livro da
vida que o novo anjo apocalíptico – o anjo da
fotografia – tem entre as mãos no final dos dias,
ou seja, todos os dias. 76
Não há nada pior para alguém que queira apagar a memória ou a
lembrança de nossa finda existência do que a fotografia.
Ou como enuncia Sontag
“A fotografia é o inventário da
mortalidade.”77
3.2. Coleções
Ao pensar a questão da memória, um fator
importante de ser abordado é o do arquivo. O arquivo é o
grande instrumento para o ‘desmemoriado’. É através dele
que a memória é revivida, seja este arquivo formal ou
informal, ele será de suma importância. Podemos pensar o
arquivo não só como o local de armazenamento de
informações, mas também como o local em que o
colecionismo irá aflorar. Através desse recolhimento de
resquícios materiais e sensoriais da cidade, o flâneur poderá
utilizar-se de um local onde organizar tantas descobertas. O
arquivo funcionará como uma caixa em que as lembranças
serão guardadas, tal como a ‘Caixa Verde’ de Duchamp, em
que
todas
as
experimentações
informações,
do
todos
‘Grande
os
resquícios
Vidro’
e
encontram-se
organizadas.
As
caixas
que
muitos
artistas
surrealistas
elaboraram são pequenos espaços não só de experiências
vivenciadas, mas também de lugares que nunca foram
76
77
AGAMBEN, 2007. Op.cit. Pág.30.
SONTAG, 2004. Op.cit. Pág. 85.
P á g i n a | 60
visitados (como exemplo, as caixas de Joseph Cornell). Ao
recriar um ambiente quase ideal, com objetos, escritos ou
qualquer outra coisa que sirva para rememorar algo, esses
artistas
tentam
anteriormente
saturnino.78
reter
com
Essas
o
tempo
Benjamin
coleções
assim
e
e
seu
caixas
como
vimos
temperamento
agirão
como
verdadeiras cápsulas do tempo, ou se quisermos, como
ajudantes, tal como escreve Agamben:
O ajudante é a figura daquilo que se
perde, ou melhor, da relação com o perdido.
(…) O que o perdido exige não é ser lembrado
ou satisfeito, mas continuar presente em nós
como esquecido, como perdido e, unicamente
por isso, como inesquecível. 79
Eles são coisas que guardamos apenas para
saber que estão guardadas. Porque de alguma maneira,
aquilo nos transmite alguma segurança, apenas por estar ali.
O colecionismo traz um pouco este aspecto porque, muitas
vezes, perdemos a noção do que temos, mas sabemos que
ali está algo que nos dá uma sensação transitória de
saciedade. Transitória porque, não demora muito, partimos
para nosso próximo objeto de desejo. Um aspecto digno de
atenção levantado por Alberto Manguel em seu livro
‘Biblioteca à noite’ é o fato da coleção, no caso de livros, não
necessariamente ter que ser utilizado em sua totalidade. Na
verdade, em quase todos os tipos de coleção, nos perdemos
em meio aos inúmeros objetos. Ele relata que
Os visitantes costumam perguntar se li
todos os meus livros; minha resposta costumeira
é que com certeza abri cada um deles. O fato é
que uma biblioteca, seja qual for seu tamanho,
não precisa ser lida por inteiro para ser útil; todo
leitor tira proveito de um sábio equilíbrio entre
conhecimento e ignorância, lembrança e
78
79
SONTAG, 1986. Op.cit. Pág. 88-91
AGAMBEN, 2007.Op.cit. Pág. 35.
P á g i n a | 61
esquecimento. 80
Esses objetos-ajudantes carregam a melancolia
porque contamos com eles para reter o tempo e também para
seguir em frente. Eles são a poeira que se acumula e nos dá a
noção de tempo, da mesma forma que nos permite perceber o
novo, ao nos desvencilharmos deles. Em outro trecho, Alberto
Manguel diz que é possível descobrir novidades em nossa
coleção, justamente por nos esquecermos do que temos:
Minha biblioteca é constituída, meio a
meio por livros que lembro e por livros que
esqueci. (...) Os livros esquecidos de minha
biblioteca levam uma existência tácita e
discreta. Mesmo assim, sua própria qualidade de
livros esquecidos às vezes me permite
redescobrir uma história ou um poema como se
fossem perfeitamente novos. 81
Geralmente o colecionador estabelece ordens
para sua coleção. Essa ordem tediosa, melancólica, é da
mesma ordem desse olhar para o banal que faz o flâneur
descobrir o extraordinário. Por esse motivo, o colecionador
consegue descobrir o novo e partir para um novo objeto de
desejo. Benjamin, em ‘Desempacotando minha biblioteca’82,
aborda esse mesmo hábito do colecionismo. Afirma que o
colecionador está entre o caos e a organização e que a
compra é sempre o momento mais interessante para o
colecionador, pois ele tem a chance de fazer renascer um
livro, principalmente se este livro já carregar uma história
anterior (um antigo dono, por exemplo). A coleção está
diretamente relacionada à lembrança. O que temos aqui é
justamente uma ode ao colecionador e de como são os
processos para obter essa coleção. Ele descreve o
procedimento para reconhecer um bom item para sua
80
MANGUEL, Alberto. A Biblioteca à Noite. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Pág. 210
MANGUEL, 2006. Op.cit. Pág. 209 a 212
82
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1987. - pág.
227-235.
81
P á g i n a | 62
coleção e como essa coleção deverá ser mantida, entre
outras coisas. Esse processo de se apegar aos objetos, em
que Benjamin baseia toda sua obra, está diretamente
relacionada ao fato do melancólico estabelecer sua relação
com o mundo através dos objetos e não com as pessoas.
Portanto, a história feita através dos objetos, através da
fidelidade estabelecida com o acúmulo de coisas, através de
fragmentos e das ruínas, em que há uma totalidade em cada
fragmento
vai
ser
a
história
representativa
destes
personagens da modernidade e que permanecem presentes,
de alguma forma, como conceitos operacionais em meus
trabalhos.
A busca por objetos perdidos pela cidade, que fazem
parte de uma memória urbana ou alheia; a busca
por espaços degradados e absorvidos pela cidade;
espaços-tempo
que
não
são
percebidos,
que
permanecem ‘congelados’, à espera do olhar; o
renascimento de livros ou imagens através de uma
coleção; operariam como meus ajudantes ao fazer
com que o processo abranja o novo e o eterno.
3.3. Pedras
Em um conto de Virginia Woolf chamado ‘Objetos
83
sólidos’ , temos a história de um personagem que se
encanta por um objeto achado na praia (pedaço de vidro) e
esta descoberta faz com que ele empenhe sua vida em uma
busca incessante por outros objetos semelhantes a este.
Seu percurso passa a ser a busca de objetos com certas
características que só ele ‘entende’ e que lhe dão um prazer
83
WOOLF, Virginia. Contos completos. São Paulo : Cosac Naify, 2005.
P á g i n a | 63
que dispensa qualquer outra necessidade. Na verdade, ele
abandona todos os outros setores de sua vida para dirigir
toda a atenção nesta busca, que se torna cada vez mais
difícil. Esses objetos não são encontrados em qualquer
lugar. São objetos especiais, que dependem de alguns
acasos para que surjam: pedaços de garrafas de vidro que
não apresentam mais nenhuma parte pontiaguda; um
pedaço de cerâmica quebrada perfeitamente em formato de
estrela; um pedaço de ferro com uma origem extraterrestre,
além de tantos outros similares. Esses objetos são
encontrados por acaso, em seus passeios, que, de
ocasionais, tornam-se uma obsessão.
É importante notar que uma ação que começou
como um mero acidente, mero acaso (a descoberta na
praia), passa a ser um objetivo, uma necessidade vital.
Esses passeios assemelham-se aos passeios do flâneur
pela cidade, só que em vez de observar a multidão, o olhar
deste personagem volta-se para objetos informes, achados
pela cidade. Isto, de certa forma, relaciona-se diretamente à
questão do detalhe, no romance policial, que foi visto nos
capítulos anteriores, em que o olhar deste personagem vai
percorrer locais para discernir entre objetos próprios para
seu propósito e outros nem tanto. Ou mesmo, com o olhar
para o prosaico, já que estes objetos são ’banais’ mas
despertam o extraordinário no personagem (apenas ele vê
sentido neles).
P á g i n a | 64
Na verdade, este personagem encarna uma série
de características do flâneur já que ele também passa a ser
um, pois nada mais interessa, apenas sua busca, seu vagar
pela cidade para ‘descobrir’ novos objets trouvés84. De
início esses objetos tinham a função de peso de papel,
porém, posteriormente, isso deixa de acontecer; o que
realmente importa passa a ser o prazer da descoberta do
novo. Um novo pedaço de qualquer coisa que não é
exatamente novo. Um novo pedaço de mais uma coisa que
se parece com a anterior e com a que segue. Ao comentar a
obra de Marcel Duchamp, Octavio Paz faz uma analogia
interessante entre o ato de se apropriar de objetos comuns e
a cultura oriental. Este movimento de se recolher cacos,
pedras pode ser relacionado com o que diz o autor no
seguinte trecho:
Uma pedra é igual a outra pedra e um
saca-rolhas é igual a outro saca-rolhas. A
semelhança entre as pedras é natural e
involuntária; entre os objetos manufaturados é
artificial e deliberada. A identidade do sacarolhas é uma conseqüência de seu significado:
são objetos produzidos para extrair rolhas; a
identidade entre as pedras carece, em si mesma,
de significado. Tal é, pelo menos, a atitude
moderna diante da natureza. Não foi sempre
assim. Roger Callois assinala que alguns artistas
chineses escolhiam pedras que lhes pareciam
fascinantes e as convertiam em obras de arte
pelo único fato de gravar ou pintar seu nome
nelas. Os japoneses também colecionam pedras
e, mais ascéticos, preferem que não sejam
demasiado belas, estranhas ou insólitas:
verdadeiras pedras arredondadas. Buscar pedras
84
“Objeto encontrado por um artista e exposto como obra de arte, após sofrer pouca ou nenhuma
alteração. Pode tratar-se de um objeto natural, como um pedregulho, uma concha ou um ramo de
árvore, ou um objeto artificial, como uma cerâmica ou antigas peças de ferro ou de máquinas. A
essência da concepção de objet trouvé está em que o artista reconhece no achado um ‘objeto
estético’, o qual submete à apreciação de outros como o faria com uma obra de arte. (...).” –
CHILVERS, Ian. Dicionário Oxford de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Pág. 383. No conto, o
personagem coloca seus achados em cima da lareira, como se eles fosse objetos que deixam as pessoas
orgulhosas a ponto de exibirem na sala: porta-retratos, troféus, vasos valiosos, castiçais etc. Para ele,
esses cacos são realmente motivo de orgulho, transformam sua vida numa eterna busca pelo objeto
perfeito, tal um colecionar atrás de sua obra de arte mais valiosa.
P á g i n a | 65
diferentes ou iguais não são atos distintos:
ambos afirmam que a natureza é criadora.
Escolher uma pedra entre mil equivale a dar-lhe
nome85.
Estes objetos carregam certa melancolia, pois
estão entranhados de um passado desconhecido que os
moldou, ao mesmo tempo em que passam a ser novidade
quando assumem nova função com a descoberta do
personagem. Quer dizer, eles são forjados por um passado
e, quando redescobertos, assumem caráter de novidade.
Eles são os restos, a ruína de que faziam parte
anteriormente, ao mesmo tempo em que são ressignificados
pelo personagem. É o belo moderno de Baudelaire, em que
moderno e antiguidade caminham juntos. Outro aspecto
presente neste conto está relacionado com o local onde o
personagem procura seus objetos.
Como
são
objetos
que
apresentam
características particulares (precisam ser pedaços de algo,
cacos que foram abandonados, precisam apresentar a forma
‘perfeita’) eles não são encontrados em qualquer lugar. Fazse
necessário,
além
de
um
olhar
treinado
(do
detetive/flâneur), o conhecimento sobre onde buscá-los.
Este conhecimento está em conexão direta com a
experiência, a vivência, pois somente através dela o
personagem percebe que apenas em locais que ninguém
enxerga (terrenos baldios, nesgas rente à linha férrea, casas
demolidas) ele poderia encontrar espécimes excelentes para
sua coleção86.
Ora, de alguma forma, esses lugares não passam
85
PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. Pág.
26 e 27
86
O fato de ele iniciar esta coleção de objetos (tão estranhos) também está associado ao
comportamento melancólico, de se apegar a objetos que dêem um significado para a vida da pessoa, o
que não deixa de ser o caso deste personagem, já que abdica de todo o resto de suas atividades para se
dedicar exclusivamente à busca destes objetos que passam a ser seu objetivo.
P á g i n a | 66
de não-lugares, espaços negativos87. Eles são lugares que
não apresentam função, não podem ser alcançados, que
são deixados de lado e praticamente inexistem para a
cidade. É um espaço que está sempre entre alguma
construção. Se olharmos as intervenções que Gordon MattaClark fez em casas abandonadas e que seriam demolidas
podemos entender a analogia com os espaços que o
personagem busca seus objetos. Na 27ª Bienal de São
Paulo foram exibidos vídeos em que apareciam estes
espaços escavados em prédios na cidade de NY. Esses
espaços são ausência, vazios em meio à construção; é uma
anarquitetura.88
Quando pensamos no trabalho ‘Fake States’ em
que os espaços entre os edifícios e que não pertencem a
ninguém são vendidos, temos também uma questão
afirmativa, pois se o que faz um lugar ser lugar é a
propriedade, aqueles espaços de 25 cm entre edifícios não
são lugares. Os locais onde o personagem procura seus
objetos não são locais, já que as frestas entre linhas do trem,
terrenos abandonados, casas demolidas, bueiros, são
lugares que não existem, são os espaços negativos da
cidade: o bueiro é o espaço negativo da calçada, as frestas
são da linha e os terrenos e casas abandonadas são das
casas construídas. São espaços que não são percebidos
normalmente,
onde
deixamos
a
poeira
acumular89,
abandonados, como percebemos neste seguinte trecho do
conto:
Habituou-se ele também a andar de olhos
no chão, especialmente nas adjacências dos
terrenos baldios onde são jogados fora os
refugos das casas. Tais objetos ocorriam lá com
freqüência - jogados fora, de nenhuma utilidade
87
Cito esta expressão como influência direta do trabalho ‘Fake States’, de Gordon Matta-Clark em
que ele compra espaços que, geralmente, não são acessíveis de terrenos ocupados por construções.
88
WISNIK, Guilherme. O ‘informe’ a partir de Matta-Clark e Rem Koolhaas. Manuscrito.
89
Questão discutida anteriormente no capítulo 1.
P á g i n a | 67
para ninguém, disformes, descartados.90
Em outro trecho do conto há uma descrição
em que fica muito claro como esses lugares são
inacessíveis, já que para sua empreitada o personagem
carrega uma sacola e uma vara em que ele poderia adaptar
um pequeno gancho. Na medida em que sua procura
continuava, sua exigência aumentava. Os lugares passam a
ser mais difíceis, as descobertas mais escassas, mas, ao
mesmo tempo, são mais prazerosas. É uma necessidade de
retenção, de deter o tempo, de contê-lo para não ter que
lidar com ele. Assim como o personagem de Kafka no conto
‘Ante(s) (d)a lei‘91, que espera eternamente para entrar na lei
onde há sempre um guardião. A imagem que surge durante
o conto de vários salões que se sucedem, com inúmeros
guardiões, é a imagem da imobilidade e da incapacidade de
penetrarmos na intrincada rede que é tecida na estrutura
burocrática. De alguma forma, é quase uma tentativa de
continuar no mesmo regime da melancolia, não fazer parte
do presente e nem tentar atualizar o passado.
No entanto, o personagem do conto de V.Woolf
torna-se um pária. Seu comportamento se modifica, ele
passa a não ter prazer nas suas outras atividades, torna-se
taciturno, neurastênico. Seu trabalho deixa de fazer sentido,
seus amigos não conseguem mais conviver com ele e suas
atividades sociais são reduzidas porque ele não consegue
mais interagir com as pessoas por não ver mais graça na
vida. Sua vida passa a ser apenas sua busca insana por
outros pedaços de cerâmica, pedras ou qualquer outro resto
que ele encontre. De algum modo, os ambientes que ele
freqüenta para encontrar os objetos e as maneiras que
desenvolve para capturá-los fazem mais sentido do qualquer
90
WOOLF, Virginia. Contos completos. São Paulo : Cosac Naify, 2005. - pág. 138
KAFKA, Franz. Nas galerias. Org. Flávio R. Kothe. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. Pág. 9192.
91
P á g i n a | 68
outra coisa. Ele é contaminado pela melancolia presente
nestes lugares, nestes objetos. Tal como o homem da
multidão, ele desaparece como indivíduo e torna-se mais um
ser invisível para os outros.
Uma tentativa de viver a vida dos outros. A vida dos objetos.
A busca por locais escuros, cinzas.
Um desinteresse manso.92
Quando busco os locais que fotografo, quer dizer,
quando os encontro, sempre imagino o que havia sido construído
ali. Que tipo de casa, que tipo de empresa, como teria sido a cor
das paredes, como era a movimentação pela manhã com a chegada
dos funcionários. Parte desta minha investigação ocorre quando
volto aos lugares inúmeras vezes para observar. Paro e vejo como é
tudo ao seu redor, como as pessoas se relacionam com o que agora
é um terreno vazio. Porém, não pesquiso de fato as informações.
Elas não me interessam. Prefiro imaginar e criar situações somente
para minha satisfação. No entanto, nada é mais prazeroso que a
primeira visão do lugar. Ela é tão rápida, tão efêmera, que traz
perturbação. Às vezes acho que sonhei com o local, que foi um
lampejo criado por meu cérebro. É quase um momento de cegueira.
A partir do momento que volto ao local, a história que
crio passa a ser objeto de interesse maior. Freqüento o terreno e
vejo que a cada dia cresce mais mato, cai mais um pedaço do
emboço ou surge mais um
morador para habitá-lo. Vivo a
existência daquela localidade, que nunca me pertenceu tanto quanto
agora. Na verdade, ele só pertence a partir do momento que
percebo a sutil mudança de estado. Quando ele deixa de ser aquele
resíduo urbano e passa a ser uma perspectiva do novo, ele passa a
pertencer a mim. A captura através da fotografia, das inúmeras
92
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Pág. 172.
P á g i n a | 69
P á g i n a | 70
P á g i n a | 71
imagens que faço para que nada se perca, faz com que ele deixe de
existir como o conheci. Passo a colecioná-lo em uma tentativa de
preservação daquele momento. Coleciono imagens de locais que
não existem mais, que por um instante, só eu percebia. Locais que
pertenciam apenas à cidade e que passaram a ser parte de minha
vida.
Depois disso, eles deixam de interessar, passam a ser
apenas mais um lugar que nem os outros tantos que existem na
cidade. Integram a ‘fachada contínua’ imperceptível dos locais que
passamos. Ao expor as fotografias ‘repetidas’ desses locais de
maneira contínua, recrio esta ‘fachada contínua’ mas com a
diferença que
esta não é a paisagem em que perdemos a
consciência em nosso transe diário. As fotografias não são a
paisagem que olhamos pela janela do ônibus e que nos fazem
adormecer temporariamente. As imagens são, ao contrário, o que
nos desperta, o que faz ter aquele momento de estranhamento, de
não saber o que realmente aconteceu. As fotografias permitem a
contemplação do transitório diversas vezes. Imprimem a poeira em
nós.
3.4 . Ajudantes
O texto ‘Os Ajudantes’ de
Giorgio Agamben
aborda personagens que surgem em narrativas que ele
classifica como ‘ajudantes’. Estes seriam indivíduos que
atravessariam não só as narrativas, como também nossas
vidas, travestidos sob diversos nomes.
São pessoas que
passam despercebidas, mas que têm um papel importante
em
nossas
histórias,
apesar
de
apresentarem
comportamento contraditório. Segundo o autor,
[os ajudantes] (…) são observadores
atentos, ‘ágeis’, ‘soltos’; têm olhos cintilantes e,
contrastando com seus modos pueris, rostos que
parecem de adultos, ‘de estudantes, quase’, e
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barbas longas e abundantes. (…) sempre
absortos em imaginações e projetos para os
quais parecem dispor de todas as qualidades,
não conseguem, porém, concluir nada, e ficam
geralmente sem o que fazer. (…) São os
personagens que o narrador esquece no final da
história, quando os protagonistas vivem felizes
e contentes até o final de seus dias (…)93.
Agamben destaca que objetos também
podem fazer este papel dos ajudantes. Acredito que, como
grande parte dos artistas, pertenço à categoria de
‘acumuladores’. Guardo desde objetos inúteis, quebrados ou
que não apresentam mais nenhuma utilidade, até panfletos
distribuídos nas ruas (ou mesmo papéis jogados nas ruas
que acabaram por se transformar em um trabalho)94. Estas
‘criaturas’ me cercam e fazem acreditar que de alguma
forma consigo reter ou mesmo deter a vida ou o tempo.
Estes objetos têm aparentemente esta capacidade, tal como
diz Agamben: “O ajudante é a figura daquilo que se perde,
ou melhor, da relação com o perdido.”95 Mesmo que esta
perda seja alheia (a busca de objetos que nunca
pertenceram a mim, por exemplo) ele, o ajudante, se faz
presente e indispensável para a manutenção de uma
‘normalidade‘.96 Por conta deste ‘poder’, a conservação
aparentemente desmedida destes objetos se faz plenamente
93
AGAMBEN, 2007. Op.cit. Pág. 31-32.
No trecho seguinte fica muito claro o que significam estes objetos quando assumem o papel de
ajudantes para Agamben:“Também entre as coisas aparecem ajudantes. Todos conservamos certos
objetos inúteis, metade lembrança e metade talismã, de que nos envergonhamos um pouco, mas aos
quais não gostaríamos de renunciar por nada neste mundo. Trata-se às vezes de um velho brinquedo
que sobreviveu aos estragos infantis, de uma caixinha de estudante que guarda um cheiro perdido ou
de uma camiseta apertada que conservamos, sem motivo, na gaveta das camisas ‘de homem’.” AGAMBEN, 2007. Op.cit. Pág.33.
95
Idem. Pág.35.
96
Assim como em algum transtorno psíquico, em que certos rituais são repetidos, ao obter-se estes
‘ajudantes alheios’, busca-se manter a relação com algo perdido mas que não foi jamais
presentificado. Portanto, poderia ser caracterizado como uma tentativa de se criar um controle sobre
algo que é aparentemente artificial apenas pelo fato de não pertencer à vida pregressa de quem buscou
este ajudante. É, de fato, a invenção de uma narrativa.
94
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justificável.
Ao ler que “O que o perdido exige não é ser
lembrado ou satisfeito, mas continuar presente em nós como
esquecido, como perdido e, unicamente por isso, como
inesquecível.”97,
relembrei a questão da fotografia e do
vídeo substituírem o evento98. Há uma tendência de o senso
comum acreditar que, atualmente, as pessoas substituem a
experiência de se estar em algum lugar pela ação de se
retratar ou filmar. Os eventos importantes de nossa vida
passaram a ser fotografados sem que o vivenciemos
realmente99. O vídeo ou a fotografia são mais importantes no
momento do que o evento em si. Quer dizer, ao nos
preocuparmos em registrar aquele momento, acabamos por
nunca vivenciarmos, já que não poderemos tê-lo de volta ao
vermos a foto ou o vídeo.100 Segundo Adorno
(…)no fim das contas, é como nas
fotografias avidamente tiradas durante a
viagem, em que pela paisagem se dispersam,
como desperdícios, os que dela nada viram, e
como recordação recolhem o que, sem memória,
se despenhou no nada.101
Assim, a fotografia ou o vídeo nos faria lembrar
fisicamente do esquecido. Fisicamente não só por causa da
questão material do meio (mesmo sendo digital há uma
relação material nem que seja pela necessidade de
97
AGAMBEN, 2007. Op.cit. Pág.35.
“Uma foto é tanto uma pseudopresença quanto uma prova de ausência.” – SONTAG, 2004. Op.cit.
Pág. 26
99
Susan Sontag esclarece este movimento de fotografar o presente no seguinte trecho de seu livro
‘Sobre a fotografia’: “Fotos são um meio de aprisionar a realidade, entendida como recalcitrante,
inacessível; de fazê-la parar. Ou ampliam a realidade, tida por encurtada, esvaziada, perecível,
remota. Não se pode possuir a realidade, mas pode-se possuir imagens (e ser possuído por elas) (...)
Mas os resultados dessa prática de acesso instantâneo são outro modo de criar distância. Possuir o
mundo na forma de imagens é, precisamente, reexperimentar a irrealidade e o caráter distante do
real. (...) as fotos tiradas hoje transformam o que é presente numa imagem mental, como o passado.
As câmeras estabelecem uma relação inferencial com o presente (a realidade é conhecida por seus
vestígios), proporcionam uma visão imediatamente retroativa da experiência.” – Idem. Pág.180 e
183.
100
Também podemos lembrar que a questão da visão do momento através de um anteparo (câmera) é
uma maneira de não vivenciar, porém, não entraremos nesta discussão.
101
ADORNO, 2001. Op.cit. Pág. 112.
98
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equipamentos para ver o resultado), mas também pela
questão indicial inerente ao processo; e nisso residiria a
materialidade deste ‘objeto-ajudante’.
Ao pensar todos estes pontos, do que fica
esquecido, perdido em nossa memória, ocorre a associação
com a guenizá, pois como foi exposto anteriormente, este é o
local da retenção, da memória. Segundo o livro ‘A historical
atlas of the jewish people’, editado por Eli Barnavi,
(…) o significado da palavra guenizá é
esconder. Esta seria um local designado para
depositar bíblias danificadas, livros de orações
amassados e objetos ritualísticos que não podem
ser mais utilizados. De acordo com a lei
Judaica, objetos que contêm o nome de Deus
não podem ser destruídos e devem ser
preservados mesmo que não tenham mais
utilidade. (…) quando fica cheia, a guenizá tem
que ser transferida para ser enterrada em um
cemitério.102
É interessante pensar que o ajudante seria
algo que permanece guardado, perdido no limbo da
memória, tal como as escrituras que não podem ser
destruídas
pelo
homem
e
aguardam
sua
própria
desintegração, num processo de entropia. Nesse processo
de entropia, sempre é aproveitado algo, algo que retorna.
Assim, o ajudante viria como algo que reatualiza o passado,
pois participa sempre do ciclo do eterno retorno.
A questão da miniaturização é outro fator a
ser levantado. Ao ser utilizado como um pequeno talismã
(estes pequenos objetos que nos acompanham) cria-se uma
poética de preciosidade, de fragmentos que se aproximam
muito do trabalho de Robert Walser. Sua escrita diminuta
criava a necessidade de um aproximar-se para poder ler. É
interessante perceber que mesmo o significado de miniatura
102
BARNAVI, Eli, ed. A Historical Atlas of the Jewish People. New York: Schocken Books, 1992.
Pág. 90.
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carrega indícios presentes na concepção do trabalho.
Segundo Houaiss103, a miniatura é:
1
Rubrica:
desenho,
pintura.
pintura ou desenho muito delicado, caprichado,
em tamanho pequeno, feito em pergaminho ou
outra superfície, ger. com mínio ou algumas
outras
cores
fortes
2
Rubrica:
desenho,
pintura.
letra inicial de capítulos dos manuscritos
antigos, bastante ornamentada, inicialmente
traçada em vermelho, com mínio, e
posteriormente
com
preto,
azul
etc.
Obs.:
cf.
rubrica
('letra
inicial')
3 Rubrica: desenho, pintura. Estatística: pouco
usado.
m.q.
iluminura
('desenho,
grafismo')
4 Derivação: por extensão de sentido. Rubrica:
artes
plásticas.
objeto artístico de pequenas dimensões,
delicado
e
minucioso
Ex.: neste museu, há um tesouro em m. antigas,
gregas e egípcias.”
Dando continuidade, Susan Sontag aponta que
miniaturizar é ocultar (…) significa
tornar inútil. Pois o que foi reduzido de forma
tão grotesca, de certa forma, é libertado de
qualquer sentido - a pequenez é sua
característica mais notável. É, ao mesmo tempo,
um todo (ou seja, completo) e um fragmento
(tão pequenino, na escala errada). Torna-se
objeto de contemplação desinteressada ou de
devaneio.104
Esses pequenos objetos são tão reduzidos, ocultos, mas
diferente do que diz Susan Sontag, eles não deixam de fazer
sentido, mas passam a pertencer ao comportamento
contraditório, dialético no qual o ajudante está envolvido.
Passa a ser apenas um objeto de devaneio porque vaga
pelo limbo em que as imagens estão inseridas, no local em
103
HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2001, verbete "Miniatura".
104
SONTAG, 1986. Op.cit. Pág. 96.
P á g i n a | 76
que as coisas não são acessíveis diretamente, mas apenas
através “[dos] ‘enviados’ do inimigo”105.
Eles são os intermediários necessários.
É a pequena caixa sagrada, onde referências são guardadas e não
podem ser destruídas.
Referências que assombram.
105
AGAMBEN, 2007. Op.cit.Pág.31.
P á g i n a | 77
[At the club Silencio]
No hay banda.
There´s no orchestra.
Il n´y a pas
de orchestra.
It´s all recorded.
No hay banda!
It´s all in the tape.
There is no band.
i l l u s i o n … 106
106
Cidade dos Sonhos – Dir. David Lynch (EUA) (2001).
It is all an
P á g i n a | 78
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Cidade dos Sonhos – Dir. David Lynch (EUA) (2001).
Samsara – Dir. Pan Nalin (Alemanha/India) (2001).
P á g i n a | 82
ANEXOS
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O homem da multidão
"Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul."
La Bruyère
De certo livro germânico, disse-se, com propriedade, que "es lässt sich nicht
lesen" - não se deixa ler. Há certos segredos que não consentem ser ditos.
Homens morrem à noite em seus leitos, agarrados às mãos de confessores
fantasmais, olhando-os devotamente nos olhos; morrem com o desespero no
coração e um aperto na garganta, ante a horripilância de mistérios que não
consentem ser revelados. De quando em quando, ai, a consciência do homem
assume uma carga tão densa de horror que dela só se redime na sepultura. E,
destarte, a essência de todo crime permanece irrevelada.
Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a
grande janela do Café D. .. em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já
me encontrava em franca convalescença e, com a volta da saúde, sentia-me num
daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o oposto do ennui; estado
de espírito da mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o
intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que
cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias. O simples
respirar era-me um prazer, e eu derivava inclusive inegável bem-estar de muitas das
mais legítimas fontes de aflição. Sentia um calmo mas inquisitivo interesse por tudo.
Com um charuto entre os lábios e um jornal ao colo, divertira-me durante a maior
parte da tarde: ora espiando os anúncios, ora observando a promíscua companhia
reunida no salão, ora espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas.
Essa era uma das artérias principais da cidade e regurgitara de gente durante o dia
todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multidão engrossou, e, quando as
lâmpadas se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam
pela porta. Naquele momento particular do entardecer, eu nunca me encontrara em
situação similar, e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de
uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar atenção ao que se
passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior.
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De início, minha observação assumiu um aspecto abstrato e generalizante. Olhava
os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias.
Logo, no entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso
interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte, semblante e expressão
fisionômica.
Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam
pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas
vincadas, e seus olhos moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em
outro passante, não mostravam sinais de impaciência; recompunham-se e
continuavam, apressados, seu caminho. Outros, formando numerosa classe, eram
irrequietos nos movimentos; tinham o rosto enrubescido e resmungavam e
gesticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários em razão da própria
densidade da multidão que os rodeava. Quando obstados em seu avanço,
interrompiam subitamente o resmungo, mas redobravam a gesticulação e
esperavam, com um sorriso vago e contrafeito, que as pessoas que os haviam
detido passassem adiante. Se alguém os acotovelava, curvavam-se cheios de
desculpas, como que aflitos pela confusão.
Nada mais havia de distintivo sobre essas duas classes além do que já observei.
Seus trajes pertenciam àquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram,
sem dúvida, nobres, comerciantes, procuradores, negociantes, agiotas _ os
eupátridas e os lugares-comuns da sociedade _, homens ociosos e homens
atarefados com assuntos particulares, que dirigiam negócios de sua própria
responsabilidade. Não excitaram muito minha atenção.
A tribo dos funcionários era das mais ostensivas, e nela discerni duas notáveis
subdivisões. Havia, em primeiro lugar, os pequenos funcionários de firmas
transitórias, jovens cavalheiros de roupas justas, botas de cor clara, cabelo bem
emplastado e lábios arrogantes. Posta de lado certa elegância de porte, a que, à
falta de melhor termo, pode-se dar o nome de "escrivanismo", a aparência deles
parecia-me exato fac-símile do que, há doze ou dezoito meses, fora considerada a
perfeição do bon ton. Usavam os atavios desprezados pelas classes altas - e isso,
P á g i n a | 91
acredito, define-os perfeitamente.
A
subdivisão
dos
funcionários
categorizados
de
firmas
respeitáveis
era
inconfundível. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calças pretas ou
castanhas, confortáveis e práticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos
sapatos sólidos, pelas meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabeça
ligeiramente calva e a orelha direita afastada, devido ao hábito de ali prenderem a
caneta. Observei que usavam sempre ambas as mãos para pôr ou tirar o chapéu e
que traziam relógios com curtas correntes de ouro maciço, de modelo antigo. A
deles era a afetação da respeitabilidade, se é que existe, verdadeiramente, afetação
tão respeitável.
Havia muitos indivíduos de aparência ousada, característica da raça dos batedores
de carteiras, que infesta todas as grandes cidades. Eu os olhava com muita
curiosidade e achava difícil imaginar que pudessem ser tomados por cavalheiros
pelos cavalheiros propriamente ditos. O comprimento do punho de suas camisas,
assim como o ar de excessiva franqueza que exibiam, era quanto bastava para
denunciá-los de imediato.
Os jogadores - e não foram poucos os que pude discernir - eram ainda mais
facilmente identificáveis. Usavam trajes dos mais variados, desde o colete de
veludo, o lenço fantasia ao pescoço, a corrente de ouro e os botões enfeitados do
mais desatinado e trapaceiro dos rufiões às vestes escrupulosamente desadornada
dos clérigos, incapazes de provocar a mais leve das suspeitas. Não obstante,
denunciava-os certa tez escura e viscosa, a opacidade dos olhos, assim como o
palor e a compressão dos lábios. Havia, ademais, dois outros traços característicos
que me possibilitavam identificá-los: a voz estudadamente humilde e a incomum
extensão do polegar, que fazia ângulo reto com os demais dedos. Muitas vezes, em
companhia desses velhacos, observei outra espécie de homens, algo diferentes nos
hábitos mas, não obstante, pássaros de plumagem semelhante. Podiam ser
definidos como cavalheiros que viviam à custa da própria finura. Ao que parecia,
dividiam-se em dois batalhões, no tocante a rapinar o público: de um lado, os
almofadinhas; de outro, os militares. Os traços distintivos do primeiro grupo eram o
cabelo anelado e o sorriso aliciante; o segundo grupo caracterizava-se pelo
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semblante carrancudo e pela casaca de alamares.
Descendo na escala do que se chama distinção, encontrei temas para especulações
mais profundas e mais sombrias. Encontrei judeus mascates, com olhos de falcão
cintilando num semblante onde tudo o mais era abjeta humildade; atrevidos
mendigos profissionais hostilizando mendicantes de melhor aparência, a quem
somente o desespero levara a recorrer à caridade noturna; débeis e cadavéricos
inválidos, sobre os quais a morte já estendera sua garra, e que se esgueiravam pela
multidão, olhando, implorantes, as faces dos que passavam, como se em busca de
alguma consolação ocasional, de alguma esperança perdida; mocinhas modestas
voltando para seus lares taciturnos após um longo e exaustivo dia de trabalho e
furtando-se, mais chorosas que indignadas, aos olhares cúpidos dos rufiões, cujo
contato direto, não obstante, não podiam evitar; mundanas de toda sorte e de toda
idade: a inequívoca beleza no auge da feminilidade, lembrando a estátua de
Luciano, feita de mármore de Paros, mas cheia de imundícies em seu interior; a
repugnante e desarvorada leprosa vestida de trapos; a velhota cheia de rugas e de
jóias, exageradamente pintada, num derradeiro esforço por parecer jovem; a menina
de formas ainda imaturas, mas que, através de longa associação, já se fizera adepta
das terríveis coqueterias próprias do seu ofício e ardia de inveja por igualar·se, no
vício, às suas colegas mais idosas; bêbados inúmeros e indescritíveis; uns,
esfarrapados, cambaleando inarticulados, de rosto contundido e olhos vidrados;
outros, de trajes ensebados, algo fanfarrões, de lábios grossos e sensuais, e face
apopleticamente rubicunda; outros, ainda, trajando roupas que, em tempos
passados,
haviam
sido
elegantes
e
que,
mesmo
agora,
mantinham
escrupulosamente escovadas; homens que caminhavam com passo firme, mas cujo
semblante se mostrava medonhamente pálido, cujos olhos estavam congestionados
e cujos dedos trêmulos se agarravam, enquanto abriam caminho por entre a
multidão, a qualquer objeto que lhes estivesse ao alcance; além desses todos,
carregadores de anúncios, moços de frete, varredores, tocadores de realejo,
domadores de macacos ensinados, cantores de rua, ambulantes, artesãos
esfarrapados e trabalhadores exaustos, das mais variadas espécies _ tudo isso
cheio de bulha e desordenada vivacidade, ferindo nos discordantemente os ouvidos
e provocando-nos uma sensação dolorida nos olhos.
P á g i n a | 93
Conforme a noite avançava, progredia meu interesse pela cena. Não apenas o
caráter geral da multidão se alterava materialmente (seus aspectos mais gentis
desapareciam com a retirada da porção mais ordeira da turba, e seus aspectos mais
grosseiros emergiam com maior relevo, porquanto a hora tardia arrancava de seus
antros todas as espécies de infâmias, mas a luz dos lampiões a gás, débil de início,
na sua luta contra o dia agonizante, tinha por fim conquistado ascendência, pondo
nas coisas um brilho trêmulo e vistoso. Tudo era negro mas esplêndido - como
aquele ébano ao qual tem sido comparado o estilo de Tertuliano.
Os fantásticos efeitos de luz levaram-me ao exame das faces individuais, e, embora
a rapidez com que o mundo iluminado desfilava diante da janela me proibisse lançar
mais que uma olhadela furtiva a cada rosto, parecia-me, não obstante, que, no meu
peculiar estado de espírito, eu podia ler freqüentemente, mesmo no breve intervalo
de um olhar, a história de longos anos.
Com a testa encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba
quando, subitamente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns
sessenta e cinco anos de idade), um semblante que de imediato se impôs
fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão.
Nunca vira coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de longe. Lembro-me bem
de que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido
Retzsch, e não haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas
do Demônio.
Enquanto eu tentava, durante breve minuto em que durou esse primeiro exame,
analisar o significado que ele sugeria, nasceram, de modo confuso e paradoxal, no
meu espírito, as idéias de vasto poder mental, de cautela, de indigência, de avareza,
de frieza, de malícia, de ardor sanguinário, de triunfo, de jovialidade, de excessivo
terror, de intenso e supremo desespero. Senti-me singularmente exaltado, surpreso,
fascinado. "Que extraordinária história", disse a mim mesmo, "não estará escrita
naquele peito!" Veio-me então imperioso desejo de manter o homem sob minhas
vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apressadamente o sobretudo e, agarrando o
chapéu e a bengala, saí para a rua e abri caminho por entre a turba em direção ao
local em que o havia visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de vista. Ao
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cabo de algumas pequenas dificuldades, consegui por fim divisá-lo, aproximar-me
dele e segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe atrair a atenção.
Tinha agora uma boa oportunidade para examinar-lhe a figura. Era de pequena
estatura, muito esguio de corpo e, aparentemente, muito débil. Suas roupas eram,
de modo geral, sujas e esfarrapadas, mas quando ele passava, ocasionalmente, sob
algum foco de luz, eu podia perceber que o linho que trajava, malgrado a sujeira, era
de fina textura, e, a menos que minha visão houvesse me enganado, tive um relance
através de uma fresta da roquelaure, evidentemente de segunda mão, que ele trazia
abotoada de cima a baixo, de um diamante e de uma adaga. Essas observações
aguçaram minha curiosidade, e decidi-me a acompanhar o estranho até onde quer
que ele fosse.
Era já noite fechada, e uma neblina úmida e espessa, que logo se agravou em
chuva pesada, amortalhava a cidade. Essa mudança de clima teve um estranho
efeito sobre a multidão, que logo foi presa de nova agitação e se abrigou sob um
mundo de guarda-chuvas. A agitação, os encontrões e o zunzum decuplicaram. De
minha parte, não dei muita atenção à chuva; uma velha febre latente em meu
organismo fazia com que eu a recebesse com um prazer algo temerário. Amarrando
um lenço à boca, continuei a andar. Durante meia hora o velho prosseguiu seu
caminho, com dificuldade, ao longo da grande avenida; eu caminhava grudado aos
seus calcanhares, com medo de perdê-lo de vista. Como nunca voltou a cabeça
para trás, não se deu conta de minha perseguição. A certa altura, meteu-se por uma
travessa que, embora repleta de gente, não estava tão congestionada quanto a
avenida que abandonara. Evidenciou-se, então, uma mudança no seu procedimento.
Caminhava agora mais lentamente e menos intencionalmente do que antes; com
maior hesitação, dir-se-ia. Atravessou e tornou a atravessar a rua, repetidas vezes,
sem propósito aparente, e a multidão era ainda tão espessa que, a cada movimento
seu, eu era obrigado a segui-lo bem de perto. A rua era longa e apertada, e ele
caminhou por ela cerca de uma hora; durante esse tempo, o número de transeuntes
havia gradualmente decrescido, tornando-se o que é ordinariamente visto, à noite,
na Broadway, nas proximidades do Park, tão grande é a diferença entre a população
de Londres e a da mais populosa das cidades americanas. Um desvio de rota levounos a uma praça brilhantemente iluminada e transbordante de vida. As antigas
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maneiras do estranho voltaram a aparecer. O queixo caiu-lhe sobre o peito,
enquanto seus olhos se moviam, inquietos, sob o cenho franzido, em todas as
direções, espreitando os que o acossavam. Abriu caminho por entre a multidão com
firmeza e perseverança. Surpreendi-me ao ver que, tendo completado o circuito da
praça, ele voltava e retomava o itinerário que mal acabara de completar. Mais
atônito ainda fiquei ao vê-lo repetir o mesmo circuito diversas vezes; quase que deu
comigo, certa vez em que se voltou com um movimento brusco.
Nesse exercício gastou mais uma hora, ao fim da qual encontramos menos
interrupções, por parte dos transeuntes, que da primeira vez. A chuva continuava a
cair, intensa; o ar tornou-se frio; os passantes se retiravam para suas casas. Com
um gesto de impaciência, o estranho ingressou num beco relativamente deserto.
Caminhou apressadamente, durante cerca de um quarto de milha, com uma
disposição que eu jamais sonhara ver em pessoa tão idosa; grande foi a minha
dificuldade em acompanhá-lo. Alguns minutos de caminhada levaram-nos a uma
grande e ruidosa feira, cujas localidades pareciam bastante familiares ao estranho, e
ali ele retomou suas maneiras primitivas, enquanto abria caminho de cá para lá, sem
propósito definido, por entre a horda de compradores e vendedores.
Durante a hora e meia, aproximadamente, que passamos nesse local, foi-me mister
muita cautela para seguir-lhe a pista sem atrair sua atenção. Felizmente, eu calçava
galochas e podia movimentar-me em absoluto silêncio. Em nenhum momento ele
percebeu que eu o vigiava. Entrou em loja após loja; não perguntava o preço de
artigo algum nem dizia qualquer palavra, mas limitava-se a olhar todos os objetos
com um olhar desolado, despido de qualquer expressão. Eu estava profundamente
intrigado com o seu modo de agir e firmemente decidido a não me separar dele
antes de estar satisfeita, até certo ponto, minha curiosidade a seu respeito.
Um relógio bateu onze sonoras badaladas, e a feira começou a despovoar-se
rapidamente. Um lojista, ao fechar um postigo, deu um esbarrão no velho, e, no
mesmo
instante,
vi
um
estremecimento
percorrer-lhe
o
corpo.
Ele
saiu
apressadamente para a rua e olhou ansioso à sua volta, por um momento;
encaminhou-se depois, com incrível rapidez, através de vielas, umas cheias de
gente, outras despovoadas, para a grande avenida da qual partira, a avenida onde
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ficava situado o Hotel D... Esta, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto.
Estava ainda brilhantemente iluminada, mas a chuva caía pesadamente e havia
poucas pessoas à vista. O estranho empalideceu. Deu alguns passos caprichosos
pela antes populosa avenida e depois, suspirando profundamente, tomou a direção
do rio. Após ter atravessado uma grande variedade de ruas tortuosas, chegou por
fim diante de um dos teatros principais da cidade. Este estava prestes a fechar, e os
espectadores saíam pelas portas escancaradas. Vi o velho arfar, como se por falta
de ar, e mergulhar na multidão, mas julguei perceber que a intensa agonia do seu
semblante tinha, de certo modo, amainado. A cabeça caiu-lhe sobre o peito
novamente, como quando eu o vira pela primeira vez. Observei que seguia agora o
caminho tomado pela maioria dos espectadores, mas, de modo geral, não conseguia
compreender a inconstância de suas ações.
Enquanto caminhava, o número de transeuntes ia rareando, e sua antiga inquietude
e vacilação voltaram a aparecer. Durante algum tempo, acompanhou de perto um
grupo de dez ou doze valentões; mas o grupo foi diminuindo aos poucos, até que
ficaram apenas três dos componentes, numa ruazinha estreita, melancólica, pouco
freqüentada. O estranho se deteve e, por um momento, pareceu imerso em
reflexões; depois, com evidentes sinais de agitação, seguiu em rápidas passadas
um itinerário que nos levou aos limites da cidade, para regiões muito diversas
daquelas que havíamos até então atravessado. Era o mais esquálido bairro de
Londres; nele tudo exibia a marca da mais deplorável das pobrezas e do mais
desesperado dos crimes. A débil luz das lâmpadas ocasionais, altos e antigos
prédios, construídos de madeiras já roídas de vermes, apareciam cambaleantes e
arruinados, dispostos em tantas e tão caprichosas direções, que mal se percebia um
arremedo de passagem por entre eles. As pedras do pavimento jaziam espalhadas,
arrancadas de seu leito original, onde agora viçava a grama, exuberante. Um odor
horrível se desprendia dos esgotos arruinados. A desolação pervagava a atmosfera.
No entanto, conforme avançávamos, ouvimos sons de vida humana e, por fim,
deparamos com grandes bandos de classes mais desprezadas da população
londrina vadiando de cá para lá. O ânimo do velho se acendeu de novo, como uma
lâmpada bruxuleante. Uma vez mais, caminhou com passo elástico. Subitamente; ao
dobrarmos uma esquina, um clarão de luz feriu-nos os olhos e detivemo-nos diante
de um dos enormes templos urbanos de Intemperança: um dos palácios do demônio
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Álcool.
O amanhecer estava próximo, mas, não obstante, uma turba de bêbados
desgraçados atravancava a porta de entrada da taverna. Com um pequeno grito de
alegria, o velho forçou a passagem e, uma vez dentro do salão, retomou suas
maneiras habituais, vagueando, sem objetivo aparente, por entre a turba. Não fazia,
porém, muito tempo que se ocupava nesse exercício quando uma agitação dos
presentes em direção à porta deu a entender que o proprietário da taverna resolvera
fechá-la por aquela noite. Era algo mais intenso que desespero o sentimento que
pude ler no semblante daquela criatura singular a quem eu estivera a vigiar tão
pertinazmente. Todavia, ele não hesitou por muito tempo; com doida energia,
retomou o caminho de volta para o coração da metrópole. Caminhava com passadas
longas e rápidas, enquanto eu o seguia, cheio de espanto, mas decidido a não
abandonar um escrutínio pelo qual sentia, agora, o mais intenso dos interesses.
Enquanto caminhávamos, o sol nasceu, e quando alcançamos novamente a mais
populosa feira da cidade, a rua do Hotel D... , esta apresentava uma aparência de
alvoroço e atividade muito pouco inferior àqueles que eu presenciara na véspera. E
ali, entre a confusão que crescia a cada momento, persisti na perseguição ao
estranho. Mas este, como de costume, limitava-se a caminhar de cá para lá; durante
o dia todo, não abandonou o turbilhão da avenida. Quando se aproximaram as
trevas da segunda noite, aborreci·me mortalmente e, detendo·me bem em frente do
velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a
andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se.
"Este velho", disse comigo, por fim, "é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se
a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a
seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro
mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mercês de Deus que "es
lässt sich nich lesen".