Fascismo é quando um homem quiser

Transcrição

Fascismo é quando um homem quiser
Há um
museu
vivo a
erguerse da terra, do mar e
Foi uma
distracção dos
OPINIÃO
Há
centenas
de
milhares
de multas de trânsito
Jogos do
Benfica
na Luz
mantêmse no canal do clube
Fascismo é quando um
homem quiser
ANTÓNIO ARAÚJO 30/05/2016 ­ 08:09
O texto de José Rodrigues dos Santos representa um
lamentável exemplo de como uma amálgama confusa
de referências e factos históricos pode conduzir a conclusões erradas.
Em 2016, o panorama editorial português fica marcado pela publicação de
dois best­sellers altamente tóxicos: O Pavilhão Púrpura, de José Rodrigues
dos Santos, e A Minha Luta, de Adolf Hitler.
Em O Pavilhão Púrpura, Rodrigues dos Santos sustenta que o "fascismo
alemão" se chamava "nacional­socialismo" por uma razão muito simples: o
sufixo "socialismo" significa que o nazismo é um movimento de origem
marxista. Em A Minha Luta, logo no segundo capítulo, Adolf Hitler descreve os seus
tempos em Viena, e diz: "Foi nessa altura que os meus olhos se abriram
para dois perigos que eu mal conhecia e cuja assustadora importância para
a existência do povo alemão eu estava longe de suspeitar: o marxismo e o
judaísmo".
Um pouco mais à frente, Hitler confessa: "Fiz um esforço sobre mim
próprio e tentei ler as produções da imprensa marxista, mas a repulsa que
elas me inspiraram acabou por tornar­se tão forte que procurei conhecer
melhor os que urdiam estas canalhices". Eram os judeus, obviamente. "Contudo, dos milhões de palavras proferidas por Hitler de que há registo,
nenhuma indicia que se debruçou sobre os escritos teóricos do marxismo,
que tenha estudado Marx ou Engels, ou Lenine (que esteve em Munique
não muito antes dele), ou Trotsky (seu contemporâneo em Viena). Fosse
em Munique ou em Viena, Hitler não lia para se cultivar ou aprender, mas
para confirmar os seus
Concedendo-lhe um piedoso
benefício da dúvida, podemos
pensar que José Rodrigues dos
Santos acredita mesmo naquilo
que diz. Nesse caso, o problema
será de outro foro, mais grave.
preconceitos", escreve Kershaw na
sua monumental biografia do líder
nazi (cf. Ian Kershaw, Hitler, Vol. 1
– 1889­1936: Hubris, Londres,
1998, pág. 84).
Adolf Hitler, portanto, nem sequer
leu Karl Marx antes de se proclamar
anti­marxista. E José Rodrigues dos
Santos, pelos vistos, nem sequer leu Adolf Hitler antes de proclamar que o
nacional­socialismo tem origem no marxismo. Quanto ao fascismo em termos mais genéricos, recomenda­se­lhe a leitura
de um livro saído entre nós em 2011. Logo nas primeiras páginas de
Fascistas, Michael Mann tem um capítulo chamado Para uma definição de
fascismo (pp. 34ss). Aí, passa­se em revista a abundante literatura
académica que tem sido produzida pelos maiores especialistas mundiais
sobre o tema. Certamente por lapso ou lamentável distracção, não se
menciona o nome do doutor Rodrigues dos Santos, nem os seus recentes
trabalhos de filosofia política, como As Flores de Lótus e O Pavilhão
Púrpura, ambos demonstrativos da tese de que o fascismo tem origem no
marxismo. Mas Michael Mann cita, por exemplo, o insuspeito Ernst Nolte,
que, num clássico de 1963 (Der Fascismus in seiner Epoche), identificou
um "mínimo fascista", o qual combina três "antis" ideológicos: o
antiliberalismo, o anticonservadorismo e… o antimarxismo. No esmagador
History of Fascism (1995), Stanley Payne considera a definição de Nolte
insuficiente, mas adere à sua ideia de que o antimarxismo constitui uma
das características essenciais do fascismo.
O texto de Rodrigues dos Santos
publicado neste jornal (/1733362)
representa um lamentável exemplo
A complexa e turbulenta
de como uma amálgama confusa de
evolução dos movimentos
referências e factos históricos pode
políticos italianos passa
completamente ao lado do nosso conduzir a conclusões erradas,
sobretudo quando se pretende, com
romancista de sucesso.
pontinha de imodéstia, apresentar
um sound bite provocatório,
estratagema promocional que, de resto, já fora usado pelo autor no
lançamento de outros títulos da sua pavorosa bibliografia. Concedendo­lhe
um piedoso benefício da dúvida, podemos até pensar que o autor acredita
mesmo naquilo que diz, julgando ter feito descobertas revolucionárias,
assombrosas, como os heróis dos seus romances. Nesse caso, o problema
será de outro foro, mais grave, surgindo geralmente diagnosticado com o
epíteto de mitomania. Metendo­se por caminhos sinuosos e veredas que
não conhece, o autor de O Pavilhão Púrpura julga que descobriu uma
"verdade" onde afinal só existia uma ignorância – a sua. Como se estivesse
perante um júri académico ou numa sala de audiências, convoca as "provas
que apresento nos meus romances". Infelizmente, nada apresenta de novo.
O socialismo juvenil de Mussolini, por exemplo, foi minuciosamente
descrito por Renzo de Felice em Mussolini il revoluzionario, 1883­1920
(Turim, 1965, pp. 1­200), por Luciano Dalla Tana em Mussolini
massimalista (1964), por Emilio Gentile em Mussolini e "La Voce" (1976)
ou por Gerhardo Bozetti em Mussolini direttore dell’Avanti (1979). A esta
excelsa bibliografia deveremos juntar, a partir de agora, dois romances de
José Rodrigues dos Santos, que, ao contrário da presunção do autor, nada
acrescentam ao que já consta de publicações respeitáveis como a
Wikipedia, quer sobre a influência de Sorel e de Michels, quer sobre as
metamorfoses do sindicalismo revolucionário em Itália. A complexa e
turbulenta evolução dos movimentos políticos italianos, aliás, passa
completamente ao lado do nosso romancista de sucesso. Não se tem
presente, por exemplo, que na fundação, em 1919, na Piazza Santo Sepolcro
de Milão, dos Fasci Italiani di Combatimento, é já bem notório o
predomínio do sindicalismo nacionalista sobre o sindicalismo
revolucionário.
Dizer que "o fascismo tem origem no marxismo" estará correcto, num certo
sentido, mas é o mesmo que dizer nada, absolutamente nada, do ponto de
vista historiográfico e politológico. Como observa Ernst Nolte, é óbvio que
sem o marxismo não existiriam o fascismo e o nazismo, justamente porque
estes se afirmaram como anti­marxistas (e, para ser coerente, entre as
"provas" que revela nos seus romances Rodrigues dos Santos deveria ter
apresentado declarações a favor do ideário marxista feitas por Mussolini na
sua fase fascista pós­1920 ou por Adolf Hitler nas páginas de Mein Kampf).
Em suma, para o ponto que interessa – a classificação tipológica dos
regimes políticos – qualificar o fascismo como um movimento de origem
marxista é um erro, pois as supostas "raízes marxistas" do fascio não
caracterizam a essência do seu perfil. Pegando no texto de Rodrigues dos
Santos, também poderemos dizer, se quisermos, que o fascismo tem origem
no evolucionismo de Darwin ou que o nazismo se inspirou nas leis de
Newton. Entra­se no vale­tudo, pois, de facto, isto anda mesmo tudo
ligado. Com jeito e audácia, poderemos até sustentar que o Benfica foi
campeão de futebol este ano porque o Beira­Mar falhou aquele penálti
decisivo contra o Leixões nas semifinais da Taça de 1967. Já agora, e
porque nestes últimos livros se aventurou por terras do Oriente, Rodrigues
dos Santos deveria ter referido o "fascismo japonês", de que os soviéticos
começaram a falar em 1934. A esse propósito, poderia até ter citado o nome
do jornalista nipónico Motoyuki Takabatake (1886­1928), antigo
anarquista que traduzira O Capital em 1924 e, pouco depois, abraçava a
causa nazi – mais uma prova irrefutável de que "o fascismo tem origem no
marxismo".
À defesa, Rodrigues dos Santos vem
agora dizer que o pensamento dos
fascistas "continuou a evoluir", o
Dizer que "o fascismo tem
que é próprio dos seres humanos e
origem no marxismo" estará
correcto, num certo sentido, mas doutros animais. Todavia, não
esclarece os leitores que, na sua
é o mesmo que dizer nada,
etapa plenamente fascista,
absolutamente nada, do ponto
Mussolini já havia rompido com o
de vista historiográfico e
politológico.
socialismo de juventude. Rodrigues
dos Santos afirma, por último, que
os fascistas se declararam como antimarxistas, "o que, a partir de certo
ponto, realmente aconteceu". É nesse ponto que bate o ponto. Foi
precisamente a partir daí que o fascismo se afirmou, cresceu e alcançou o
poder, florescendo como um movimento que não só não era marxista como
se manifestava, na teoria e na prática, como militante e combativamente
antimarxista. Como nota Stanley Payne, só no Outono de 1920 o termo
"fascismo" se tornou uma expressão corrente, servindo para designar os
cada vez mais violentos Fasci di Combatimento, que se afirmavam nas ruas
como vanguarda agressiva e nacionalista de uma "guerra contra o
bolchevismo". O número de filiados passou de 20.000, em finais de 1920,
para 100.000, em Abril de 1921, quase duplicando esta cifra no mês
seguinte. Em Novembro, os Fasci tinham já 320.000 aderentes. Eram
agora um movimento de massas, com muitos membros que, sobretudo nas
zonas rurais do Norte de Itália, passaram directamente da CGL socialista
para o fascismo. As eleições de 1921 foram um triunfo pessoal de Mussolini,
tendo os socialistas descido de 32% para 24% e o novo partido comunista
obtido uns ínfimos 2,8%. A campanha eleitoral foi de enorme violência: de
acordo com um relatório policial, nos primeiros quatros meses de 1921
houve, no mínimo, 206 assassinatos políticos. A violência era tanta que
Mussolini foi instado a controlar as suas hostes, expulsando do movimento
criminosos de delito comum e outros militantes particularmente
agressivos. No dia a seguir às eleições, foram mortos 10 socialistas. Estes
reagiram com igual violência, matando 18 "camisas negras" em Génova, em
Julho de 1921. De vendetta em vendetta, foi impossível alcançar a paz; e
Mussolini percebeu que era melhor organizar a violência a seu favor do que
tentar controlá­la. Transformados os Fasci no Partito Nazionale Fascista,
este configura­se como uma organização paramilitar e, em Outubro de
1922, marcha sobre Roma, sendo dispensável contar o resto da história. De
há muito que os socialistas eram os alvos principais da violência dos
fascistas (e vice­versa, note­se), pelo que dizer que o "fascismo tem origem
no marxismo" é não perceber nada da sequência temporal dos factos.
Numa síntese arriscada, quando o fascismo verdadeiramente surge,
quando emerge como autêntico fascismo, de há muito tinha abandonado as
suas origens sindicalistas­revolucionárias; e, mais ainda, agora perseguia a
tiro e a golpes de navalha os socialistas e os membros de outros grupos de
esquerda.
De permeio, é certo, muitos dirigentes fascistas das zonas rurais gritaram
"a terra a quem a trabalha". Talvez num próximo romance José Rodrigues
dos Santos nos traga a revelação sensacional de que as ocupações no
Alentejo em 1975 tiveram origem em Mussolini e nos seus adeptos. Que
Deus lhe perdoe.
Jurista e historiador
COMENTÁRIOS

m
Princípio da caridade: princípio desenvolvido por filósofos americanos para
guiar e governar a interpretação do que os outros dizem e que, em variadas
versões, constrange o interpretador a maximizar a verdade ou a
30/05/2016 23:54 racionalidade das afirmações de terceiros. O princípio recomenda
interpretações favoráveis. Nalgumas versões, o princípio implica que, se
os ditos de alguém puderem ser compreendidos de diferentes maneiras,
deve ser preferida aquela que maximiza o número de ditos que forem
validados ou que atraiam assentimento. Noutras, nem exige que a
interpretação necessariamente valide as afirmações como verdadeiras mas
tão só que procure dar­lhes um sentido pelo menos razoável.

ContraCorrente
Marx demonstrou a natureza cíclica das crises do capitalismo. Demonstrou
a concentração e acumulação do capital. Previu que a essa concentração
e acumulação do capital conduzirá a um imperialismo capitalista. Escreveu
30/05/2016 23:26 com Engels o Manifesto Comunista onde enfatizam a luta de classes como
motor do processo histórico e termina com o seguinte apelo: Proletários de
todos os países, uni­vos! Isto não tem nada a ver com fascismos.

São
É sempre o Homem a fazer tudo o que odeiam e amam. Queixam­se de si
próprios. Os fascismos existiram feitos pelos habitantes dos países onde
eles existiram. Em nome da pureza da raça perseguiram minorias fossem
30/05/2016 22:43 judeus, ciganos, comunistas, testemunhas de Jeová. Acreditaram que
estavam a fazer uma grande coisa. Os que percebiam a besteira calavam­
se com medo de serem mortos também. Morreram mais de 50 milhões a
conta dos fascismos europeus.

Tiago
DG
Sobrou alguma coisa na lata de "whoop­ass"? Hehehe
30/05/2016 20:54

joaocpedro
Como é óbvio António Araújo tem formação e conhecimentos que lhe
permitem formar uma opinião bastante mais desenvolvida, coerente e
factual que a de JRS. Só não vê quem é faccioso (para não chamar
30/05/2016 19:42 ignorante). A questão é que se dissermos que o Fascismo surgiu como
resposta/ oposição ao Marxismo é uma coisa (mas nem é isso que JRS
diz). Mas dizer que o Fascismo tem a sua origem no Marxismo é uma
falácia história, um revisionismo barato, o que lhe queiramos chamar. A
extrema­direita tem a sua origem na extrema­esquerda? Pessoalmente
acho que os dois extremos são aberrações, mas também me parece óbvio
que as origens de um e de outro não têm nada a ver. E não são precisos 2
dedos de testa para perceber isso.

FD
"[O] problema será de outro foro, mais grave, surgindo geralmente
diagnosticado com o epíteto de mitomania". À boa maneira da ex­URSS o
historiador (de que desconheço as obras), acha que qualquer pessoa que
30/05/2016 17:13 se oponha à ideologia marxista do socialismo científico é, por definição,
perturbada mentalmente e, como tal, caso de psiquiatria.

Joam Roiz
Não conhece as obras do autor, não consegue separar o
estudo científico da origem das ideias (transversal a
várias disciplinas, entre elas a História) do combate
30/05/2016 20:21 político­ideológico, mas tem o topete de vir criticar um
Historiador consagrado, respeitado interpares. No seu
caso, FD, o atrevimento só pode justificar­se pela
ignorância ou, então, mais grave, por uma boa dose de
"mitomania" anti­marxista.
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