NÃO DEVEMOS SENTIR VERGONHA DA DOENÇA MENTAL
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NÃO DEVEMOS SENTIR VERGONHA DA DOENÇA MENTAL
NÃO DEVEMOS SENTIR VERGONHA DA DOENÇA MENTAL (“We must not feel shame about mental illness” ─ Nancy Cosman, jornal The Ottawa Citizen, 29/4/2010) José Raimundo Gomes da Cruz Guardei o recorte do jornal canadense acima, que trata do estigma que ainda existe em matéria de doença mental. Cosman aplaude Michael Kirby, diretor da Mental Health Commission of Canada (ou: Comissão de Saúde Mental do Canadá), por seus esforços para “achar meios de reduzir o estigma da doença mental”. Com redução do estigma da doença mental, “mais gente buscará tratamento para si e para seus filhos. Muitos canadenses que têm sofrido de doença mental notaram sintomas dela na adolescência, mas não procuraram tratamento em parte pela vergonha que sentiam da sociedade”. Nancy Cosman prossegue: “Como mãe e professora, resolvi não negar o fato nem ficar envergonhada, no caso de algum dos meus filhos manifestarem qualquer tipo de doença ou deficiência. Vindo de família na qual dois membros sofreram de grave doença mental, estou bem ciente de que meus filhos correm riscos. Se meus filhos precisarem de ajuda, não hesitarei em conceder-lhes tal ajuda. Proporcionando ambiente com aceitação e compreensão, acrescentaremos subsídios ao desenvolvimento da sua saúde mental – natureza e educação.” Ela acredita na ajuda de qualquer apoio necessário, mesmo para casos de doença mental grave. Para Cosman, problemas relativos à ansiedade tendem a complicar-se e a depressão acaba tornando-se mais grave e de difícil tratamento. Em tudo, parece imbatível a regra de que, quanto antes, mais eficaz o resultado. Devemos ensinar às crianças e aos jovens, como e quando obter ajuda, “de modo que eles saberão como ajudar-se a si mesmos sem medo ou vergonha”. Cosman afirma que sabe que até membros da família não portadores de problemas mentais podem sentir o estigma. Simples discussão sobre doença mental pode fazer as pessoas se sentirem desconfortáveis. No entanto, quanto mais a gente falar disso, melhor. Enorme parte do estigma deriva do fato de que muitos de nós sentimos certa pressão para lutar pela perfeição, com o fim de ter êxito ou ser aceito, e a admissão do problema mental coloca a gente em real desvantagem para atingir tal fim. A pergunta fica: “Haveria o estigma, ou mesmo tantos casos de doenças e problemas, se nós honrássemos o vigor, guiássemos a fraqueza e aceitássemos as diferenças?” Sem rever as páginas do meu livro Espinosa, anos 40 – Depoimento de um menino curioso (São Paulo : 1997), eu lembraria a seguinte passagem: “o pai do Compadre Moisés, com problemas de saúde, recebia cuidados especiais da família e seu nome era Domingos Lobo” (pp. 62/63). Na verdade, omiti a informação de que tais “cuidados especiais” consistiam na permanente prisão em jaula, fora da casa. Certamente, tratava-se de caso de grave doença mental, exigindo a proteção da própria pessoa do doente ou daqueles que com ele conviviam, ante a precariedade das instituições públicas. Quase todo o capítulo intitulado “Os não-participantes”, do mesmo livro (pp. 178/181) se dedica a portadores de perturbação mental. Assim, “o Belisário, morador de quartinho da Rua da Resina. Os meninos não o poupavam, com seus trapos, sua conversa com entes invisíveis ou consigo próprio.” (p. 179) Não convém esquecer o “Tião Barbacena”, com sua erudição e seu pouco riso. (p. 179) Minha sugestão valia, então, e continua valendo: “Não nos esqueçamos daqueles que, por deficiência de qualquer espécie, ficam à margem dos acontecimentos. Colaboram, esforçam-se e até se entusiasmam. Alegram-se com o êxito dos demais. Mas sempre acabam barrados no baile da vida.” (p. 181) Minha filha Denise Mendes Gomes, terapeuta familiar, diante de comentários meus ao livro coletivo Nos sertões de Guimarães Rosa (Org. Carlos Alberto Corrêa Salles. Curitiba : CRV, 2011), informou que a metade dos trabalhos nos congressos de psicologia visa a combater o preconceito contra a doença mental. E nesse livro, João Amílcar Salgado escreve: “Para com as doenças estigmatizantes (a loucura e as doenças contagiosas), seriam várias as citações para mostrar que Rosa é igualmente tolerante, em toda sua obra” (“Riobaldo embosca Jeca Tatu ou da Tolerância em Guimarães Rosa”. Ob. cit., p. 81). Mais adiante ele lembra que, para o I Congresso Mineiro de História da Medicina, em 2001, o psiquiatra Jairo Furtado Toledo, seu organizador, valeu-se da “figura de um profeta de Aleijadinho para logotipo”. Luiz Otávio Savassi Rocha “lembrou que Karl Jaspers era autor de estudo sobre possível esquizofrenia do profeta Ezequiel. Daí que Rosa poderia ter insinuado a insanidade do profeta, quando escolheu o nome de chefe Zequiel para uma personagem com sintomas pertinentes” (ob. cit. p. 82) No Canadá, a privacidade dos doentes, em geral, nos hospitais integra a reserva que, com certeza, existe para as perturbações mentais. Da mesma forma que, no Brasil, há muitos casos de pessoas que escondem os sintomas de câncer, como se a grave moléstia decorresse de mau desempenho do doente. Lá como cá, as observações de Nancy Cosman merecem a maior divulgação e acatamento. Certamente conduzem aos resultados mais eficientes e seguros. 2