MEM Ó RIAE PAT RIM Ô NIOCU LT URALDEC

Transcrição

MEM Ó RIAE PAT RIM Ô NIOCU LT URALDEC
Volume
3
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L
D E C ATA G U A S E S
Apoio:
Execução:
Patrocínio:
Incentivo:
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L
D E C ATA G U A S E S
Vo l u m e 3
2ª EDIÇÃO – 2012
Organização e Coordenação: Paulo Henrique Alonso
Pesquisadoras (1ªedição):
Gláucia Siqueira, Mariana Cândida Garcia Cardoso Almeida
Auxiliares de pesquisa (1ªedição):
Irenilda R.B.R.M. Cavalcanti, Luciana Ferreira de Oliveira,
Maria Aparecida Torre Barcelos
Entrevistadores (1ªedição): Gláucia Siqueira, Hedileuza Maria de Oliveira
Valadares, Hélvia Peres Cordeiro, João Carlos Juste, José Luiz Batista, Maria
José de Oliveira Paula, Mariana Cândida Garcia Cardoso Almeida, Mônica
Machado da Silva, Rosângela Schettini Rodrigues
Coleta material iconográfico: Marcela Andrade da Silva
Design: Birte Paetrow, Gustavo Baldez, Holger Melzow
Infraestrutura e tecnologia: Américo Vicente Sobrinho
Plataforma de rede e internet: David Azevedo, Danilo Marinho
Comunicação: Beth Sanna
Produção: Bárbara Piva
Gestão administrativo-financeira: Djalma Dutra Jr, Geisiane Marinho de Lima
M533
Memória e patrimônio cultural de Cataguases / Paulo Henrique Alonso
(Coord.). – 2 ed. – Cataguases / MG: ICC, 2012.
272 p.: il. pb. – (Memória e patrimônio cultural de Cataguases; III)
ISBN: 978-85-65550-02-4
1. Memória Oral. 2. Patrimônio Cultural. 3. História. 4. Cataguases / MG. I.
Alonso, Paulo Henrique. II. Instituto Cidade de Cataguases – ICC. III. Título.
CDD: 981.5
Ficha Catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias:
Carla Viviane da Silva Angelo – CRB-6/2590.
Edna da Silva Angelo – CRB-6/2560.
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L
D E C ATA G U A S E S
Vo l u m e 3
A P R E S E N TA Ç Ã O
Este é o terceiro volume, em 2ª edição, da série que
registra a memória oral de vários personagens da cidade de Cataguases, Minas Gerais. Ele é parte de um
projeto iniciado em 1988 pela Prefeitura Municipal
de Cataguases e pela antiga Secretaria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional/Fundação Nacional
pró-Memória.
Aqui, damos continuidade e retomamos o trabalho original, com a produção periódica de novos
exemplares e a reedição dos volumes publicados anteriormente. O propósito é que tenhamos, de forma
sistematizada, registrada e divulgada a memória da-
queles que fizeram e fazem a história da cidade e que
possamos, assim, contribuir para a preservação da
memória local.
Neste volume estão 12 relatos, colhidos entre
1988 e 1989 e publicados em 1996. Como na edição
anterior, o texto privilegia a fala própria dos entrevistados, regendo-se mais pelas regras da comunicação
oral do que pelas normas da escrita. Na reprodução
das fotos, as autorias e datas que não foram identificadas estão citadas nas suas respectivas legendas
como s/a e s/d.
Esta publicação está também disponível, em
formato PDF, para download gratuito no sítio eletrônico www.fabricadofuturo.org.br.
ÍNDICE
11
AMÉLIA GOMES FERNANDES
Tecelã, 80 anos
31
AMÉLIA LANDÓES
Diretora de Escola, 75 anos
53
JOÃO KNEIP
Eletricitário, 80 anos
75
M A R I A D A G L Ó R I A A L V E S S I L VA
Dona de Casa, 90 anos
97
MARIA MAGALHÃES PEREIRA
Tecelã, 67 anos
125
M A R I TA G U I M A R Ã E S C O S TA C R U Z
Dona de Casa, 74 anos
145
R E N AT O T E I X E I R A
Bancário, 70 anos
169
SEBASTIÃO LOPES NETO
Pastor Metodista, 70 anos
191
S Í LV I A M E N D O N Ç A L E I T E ( D O N A V I C A )
Dona de Casa, 85 anos
209
S T E L L A A B R I TA A LV E S
Professora Aposentada, 77 anos
233
TEODORICO TEIXEIRA CARDOSO
Ferroviário, 83 anos
245
TEREZINI MASSENA GUIMARÃES
Professora Aposentada
AMÉLIA GOMES
FERNANDES
TECELÃ
80 anos
Eu nasci em 1911. Nasci em Ponte
Nova, mas vim pr ’aqui pequena e morei em
Camargo, no sítio da minha avó: minha avó tinha sítio a meia. Agora não tem mais nada lá não. Acabou
tudo. Mas nós vivemos lá muitos anos. Vim pr’aqui
pequena e fiquei até fazer três anos. Eu fui parar em
Cachoeiro do Itapemirim, depois viemos pr ’aqui,
vim com uns doze anos. Ficava na roça. Acho que papai veio de Juqueri, um lugar que ninguém nem ouve falar dele. Em Ponte Nova, logo que ele casou trabalhou na roça. Meu pai, deixa eu ver, acho que teve
quatorze filhos. Foi uma porção, mas são sete vivos.
Foto: Interior da Fábrica de Tecidos, Alberto Landóes, início séc. XX,
Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de
Cataguases
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Morreram todos assim com um ano, um ano e meio.
Morria tudo! Depois vingou... da Aparecida pra lá
acho que vingou quatro ou cinco. E nós somos sete irmãos vivos. Tem o Zé Mole, o pai da Carminha; tem
a Aparecida, mulher do Osvaldo e pai da Marilene. A
mãe da Marilene é minha irmã e tem uma também
que mora lá no Haideé Fajardo, também é viva. Sei
que nós somos sete irmãos. O Zezé toda vida viveu
de negócio. E depois têm os outros. Um trabalhou
aqui na Manufatora muito tempo. Depois foi embora
pra São Paulo, arrumou tudo, lá ficou, lá trabalhou,
casou e veio embora pr’aqui. Mora aqui. O outro tá
lá até hoje. Minhas irmãs moram por aqui mesmo.
Uma está até morando na Vila Reis, outra no bairro Haideé Fajardo. A da Vila Reis a casa é dela; a do
bairro Haideé, não é não. E a Aparecida do Osvaldo,
quando casou ficou lá pra São Paulo muito tempo.
Depois voltou. Agora foi pra Juiz de Fora. Meu pai
trabalhava na roça mesmo. Plantava, fazia plantação: minha vó também ajudava, tinha uma tia que
ajudava também. Aí fazia tudo, não comprava nada.
Só comprava as coisas que não podia mesmo fazer
em casa.
Depois nós começamos a andar... minha vó
vendeu o sítio porque ela não podia continuar também. Aí nós ficamos andando. Eu fui pra todo lugar,
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até que papai arrumou serviço no Nogueira, trabalhou na fábrica de macarrão. Talvez cê lembra dele:
Raimundo Carroceiro. Ele trabalhava de carroceiro.
Trabalhou de carroceiro muitos anos, até quase ficar muito velho. Trabalhou de carroça muitos anos.
Depois da carroça pegou a charrete... Ele já não
aguentava mais fazer muita coisa, né. Ele também
não aposentou depois de velho... Aposentou agora,
depois que começou esse negócio... Funrural. Aí ele
aposentou por bagatela, né. Ele morreu com oitenta
e seis anos. Carregou muito saco nas costas... Ele fazia tudo com a carroça... Não tinha tanto caminhão,
né. Ele ficava ali na estação esperando os trem de
carga. O Expresso chegava, vinha viajante... O viajante pegava as coisas, ele entregava. Trabalhou muito
com viajante... Trabalhava... Mamãe cuidava da casa
e fazia muitas... Assim... negócio de flor pra mês de
Maria, coroa e flores para o cemitério: quando morria
uma pessoa, às vezes encomendava. Então ela fazia
muita coisa pra fora. Ela fez muita coroa... papel, pano, passava na pena fina. A coroa dela era muito bem
feita, muito bonita! Ela fez muita coroa mesmo, pra
essas meninas tudo que coroava aí... engomava os
panos, fazia coroas, e ainda, às vezes, pegava umas
costurinhas pra fazer. Tudo isso ela fazia. Ajudava,
porque o papai sozinho trabalhando para sustentar
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os filhos todos... Naquele tempo tudo era difícil, mas
difícil mesmo! Depois eu comecei a trabalhar também. Ganhava mucadinho melhor. Eu ganhava, a
Rita também ganhava, a Mira ganhava e aí foi melhorando mucadinho. Ajudei bem em casa... trabalhava
em casa. Fazia todo serviço de casa. Todo serviço
de casa eu fazia... logo depois eu casei, com 23 anos
acho. E aí continuou tudo em casa. Os meninos, mamãe, o papai. Nós moramos juntos até ele morrer.
Aqui, sabe onde que eu morei? Ali, defronte o
(Grupo Escolar) Guido Marlière - nem o Guido não
tinha nessa ocasião - tinha uma casinha de sapé, lá
no canto. Então nós morávamos ali, numa casinha de
sapé - era do Dr. Lisupi, irmão da Dona Luiza Villas
- na beira do córrego. Nesse tempo o córrego não era
direto, ele fazia aquela curva assim e nós morava ali.
Nem era a avenida que tá alí (hoje). Logo depois fizeram o grupo e logo já começou a aumentar. Nós
fomos na festa do dia da pedra fundamental do grupo. Até, me parece, que foi o governador... Acho que
o Antônio Carlos veio. Foi uma festa daquelas! Uma
das maiores festas que eu vi aqui em Cataguases
foi aquela!
E dali é que eu entrei pra fábrica... O ano não
me lembro... Eu entrei pra fábrica foi em (19)28... Não
sei se foi, não sei. Tinha feito a pouco tempo, aque-
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las casinhas ali atrás da fábrica. Aquele meio de casas.
Aquele meio dali daquele morro de pedra. E ali eles
me deram uma casa. Ali pagava acho que quinze mil
réis... O Seu Lisupi foi embora pra São Paulo... Nós
ficamos ali. Trabalhava na fábrica e morava naquela
casa: pagava, quinze mil réis, com luz. Eu tava e minha irmã também entrou... entrou com doze anos pra
fábrica. O contramestre não queria dar a ela o serviço. Depois ele adoeceu e aconteceu que ela entrou.
Quando ele voltou, não mandou ela embora não. Eu
morei ali, depois fui lá pra perto da fábrica, nessas
casas novas, e de lá eu passei pr’aqui, pra essa casa aqui onde mora o Bitoca do Serafim Barata, sabe?
Nós viemos pr’ali; e ficamos morando ali uns tempos.
Depois, de lá vim pr’aqui. Aqui também é da fábrica. Esta casa é da fábrica. Tem cinquenta e um anos
que eu moro aqui... Eles davam pros operários... Mas
agora já pediram essas casas... mudaram muita gente... já tem uns seis anos que eles pediram, mas nós...
Mas a gente... pra onde é que a gente vai? A gente
só tem que ficar é aqui mesmo! Aí eu falei: - Eu já tô
com oitenta anos, deixa eu morrer primeiro...
Mas ali não tinha casa, não tinha nada. Era
uma roça no tempo do Chico Leonardo. Aquilo ali
era do velho Leonardo. E ali defronte, onde é aquelas
casas, onde é a Vila Raimundo - que eu nem sei se
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tem o nome ainda, acho que não tem mais não - ali
tinha um correiozinho de casa. Nesse correiozinho
de casa morava o senhor Lisupi... Tinhas uns pra cá...
O Senhor João, que era ferrador de roda de carroças,
era ferreiro. Acho que era ferreiro. Morava ali também. E nós... morava atrás da casa, tinha que passar
pelo beco. E aquele córrego passava atrás da nossa
casa, passava assim... fazia aquela volta e vinha pra
cá. Não passava direto conforme passa (hoje) não.
Era brejo e água pra todo o lado!
Ali é muito bom. É um dos lugares que a
gente tinha vontade de morar. Ou ali, ou então na
Granjaria. Tem uns quarenta e cinco anos, mais ou
menos, a gente olhava: suspendia uma casa. Cada
dia que a gente olhava suspendia uma casa! E até hoje ainda tão suspendendo casa ali! A Vila Domingos
Lopes era uma coisinha pequena. Era muito pequena
mesmo! Agora progrediu... Quase que são duas cidades, ou três, porque lá na Taquara Preta também...
Aquilo lá também... Mas lá eu só fui uma vez... Fui
lá de passagem... É muito difícil porque... nem sair
de casa, quase, eu saio. Na Vila... comerciante que tinha aqui era o Seu Pandeló, sogro da Ana. Ele tinha
negócio de mantimento e também de pano. Ele tinha
bastante coisinha... era ali defronte a loja Estrela, naquela casa alta que tem alí... mucadinho pra cá, onde
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agora estão fazendo banco... por ali afora... era ali a
loja do Seu Pandeló. A casa de cá era da mulher dele... Acho que ele era casado “segunda vez”... eu não
me lembro mais... o Seu Rafael trabalhava ali dentro, nos fundos, até quando ele morreu... eu ainda
tenho uma panela que eu comprei dele. Mas o Seu
Rafael tem pouco tempo, né. Não tem muitos anos
não... em frente à fábrica tinha um corredor de casa muito vagabundo, que até o Senhor Zé Bonifácio
tinha um botequinho lá... Tinha uma casa onde morou o Tanda e mais algum pra cá. Eu não me lembro
mais também. A gente não lembra, né. É muita coisa!
Muitos anos passam, a gente não lembra. Tem muita
coisa que podia... mas não tem jeito mais... não lembro mesmo não... eu esqueço tudo! Aqui só tinha essas quatro casas... Joaquim Almeida tinha uma casa
aqui. Nessa rua aqui onde morou também o Serafim
Spíndola, depois morou a dona Maria Vargas... Acho
que deixaram essa casa aqui pra pagar dívida lá no
banco. As outras repartiram pros filhos. Diz que teve uma enchente aqui... Foi até lá em cima também,
mas eu não lembro... Lá de cima do Rio Pomba... Eu
não me lembro dessa não. Eu só lembro de enchente
aqui depois que começou a aterrar essas coisas tudo!
Esse Rio Meia Pataca aqui, esse enche à toa! Mas ele
também era um rio que tinha muita volta... Fazia vol-
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ta assim... Agora não... Eles cortaram, ele ficou certo,
vai direto até lá adiante, mas enche muito! Esse Rio
Meia Pataca aqui foi muito aproveitado! A criançada
não saía de dentro dele! A criançada tomava banho
nele diariamente. Era uma beleza! Agora, depois que
essa fábrica de papel sujou acabou o rio. Acabou tudo! Tem hora que a gente não aguenta a catinga que
solta. A água está toda suja, né. Mas aqui era muito bom! Os meninos brincavam, muita gente lavava
roupa nessa beirada aí... Agora não se pode mais
não... De uns tempos pra cá é que deu enchente. A
Vila não tinha nada: da fábrica pra cá só tinha a fábrica. Depois começou aquelas casinhas que nós moramos nela... Fizeram aquelas casas ali. Eu até fui uma
das primeiras que morou lá. Cá não tinha quase nada. Não tinha casa, não tinha nada! Aquele morro ali,
do Haideé Farjado era mato. Aquilo ali era mato só!
Acho que tem uns quarenta e poucos anos que começou aquilo ali. E ficou do jeito que tá! Tem, mais ou
menos, uns quarenta e cinco anos...
Tem muita coisa que eu não lembro... Pra falar
a verdade foi muito difícil! Além do trabalho, eu passeava, brincava muito, saía no carnaval... Brincava
carnaval era no “Modesta Violeta”, no Seu Emílio.
Cê lembra dele? Não sei se o Seu Emílio ainda é vivo. Foi no tempo do Seu Emílio, mas isso há quantos
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anos! Eu era nova ainda, né. Brincava nos bailes, saí
no carro, participava nos dias de carnaval. Eu brinquei muito carnaval. Mamãe não deixava a gente ir
sozinha não. Mamãe levava, né. Mas foi há muitos
anos... Foi na época que eu entrei pra fábrica. No
tempo das crianças eu brinquei muito. Fazia muita
farra mesmo! Tive muita regalia, que meus pais davam assim, com eles... Papai não, mamãe. Papai não
brincava muito não, com mamãe eu tive muita regalia. Jogava bola, batia bola, tudo eu brincava! Já estava moça quando eles arrumaram esse negócio de
basquetebol. Fizeram um campinho ali onde é essas
casas novas dos Peixoto. Pra cá tinha um campo, fizeram na rua mesmo. No meu tempo de criança eu
aproveitei muito!
Eu tenho o primeiro ano só, primeiro ano de
Grupo... Coronel Vieira. Foi só o primeiro ano. Não
tinha condição, não tinha tempo, não tinha jeito de
ir. Não tinha nada: aí fiz só o primeiro ano. Escrevia
muito mal, aprendi as quatro contas... Agora eu nem
sei mais fazer conta! Trabalhava de dia pra estudar
de noite... A gente achava muito... Além de trabalhar
lá fora eu ainda fazia muito serviço aqui. Ajudava, eu
fazia muito o serviço de casa, porque a gente trocava
de turno. A turma que ficava em casa ficava trabalhando. Não dava para mais nada! Mas eu acho que
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aprendi melhor do que agora. Eu vejo esses meninos
aprendendo quarto ano... Eu aprendi melhor! E o
que sei hoje é isso... Meus filhos tiraram o quarto ano.
A Rita estudou dois anos e parou. Depois de mais velha ela continuou estudando. Fez até a faculdade. O
Zezé não. O Zezé estudou até a segunda série. Não
estudou mais não.
Eu entrei pra fábrica ainda não tinha 14 anos.
Entrei pra fábrica e ali fiquei até aposentar. Trabalhei
como tecelã até sair de lá. A gente trabalhava muito,
então a gente estragava muito pano! Quando a gente
pensava que, no fim do mês, ia receber dinheiro vinha os panos tudo nas costas. Dinheiro, além de ser
pouco, nós pagava... eles cobravam os panos todos
que a gente errava. Pagava e ficava com ele. Então
nós não trazia dinheiro quase nenhum pra casa. Aí ficava aquela panaiada tudo lá em casa! Trabalhava pelo que fazia: se fizesse muito, ganhava muito, se fizesse pouco, ganhava pouco. Era produção... Mas toda
vida trabalhei muito e puxei muito serviço sempre!
Eu trabalhava mais e ganhava mais... mucadinho. Ah,
aprender, não tive (dificuldade) não. Depois que eu
aprendi, até fazer o serviço daqueles contramestre
eu fazia! Também eu trabalhava só com o tear liso né,
porque não deu pra aprender também o xadrez. Não
aprendi de jeito nenhum! Trabalhei uns tempos com
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xadrez, maquineta, mas era ruim. Era muito difícil!
No meu tempo às vezes tocava dois, três, quatro teares! Acabava uma braçadeira punha a outra. Não dava tempo pra gente fazer nada. Só andando pra lá e
pra cá, mudando braçadeira, troçando... às vezes, rebentava da lã, ficava vago de cá. Naquele tempo era
muito ruim... às vezes o encarregado não tinha tempo
de olhar, ficar perto da gente... Atrapalhava a engrenagem, quebrava a peça. Aí ficava parado. Eu gostava muito de trabalhar quando a tecelagem estava boa
mesmo, dando produção, eu gostava... Mas quando
parava um mucadinho, eu achava ruim... Se tivesse
boa produção ganhava bem mais. Às vezes, o tear da
maquineta ficava parado uma porção de dias... Eles
pelejando com ela. Ela ficando parada a gente não tava ganhando. Eu trabalhava já de turno trocado, porque na ocasião que nós entramos era assim. Quando
tinha muita coisa, muito pedido, nós trabalhava quatorze horas. Trabalhava das seis às dez da manhã. Às
dez saía pra almoçar e voltava às onze. E saía as cinco pra jantar e voltava e saía as dez da noite... Isso,
quase a semana inteira. Só ficava dois dias em casa...
Mais pro fim do ano fracassava o serviço, aí nós trabalhava só quatro horas por dia. Uma semana inteira
quatro ou seis horas. Ia assim uns dois ou três meses, depois consertava outra vez. Depois começou
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as duas turmas... Atrapalhou muito porque até que
aprendia uma, a outra tava tendo prejuízo. Aí, não
fazia quase nada porque tava sempre arrumando o
tear, arrumando as coisas pra outra turma entrar. Foi
muito ruim trabalhar ali naquela ocasião.
O patrão era mesmo o Senhor Manoel Peixoto.
Nem o doutor Francisco trabalhava lá ainda. Depois
que o doutor Francisco formou é que voltou pra trabalhar lá. Era o doutor Manoel, Senhor Altamiro, o
João Peixoto, que de vez em quando estava lá também... E os encarregados era o Serafim Spíndola,
Senhor Werneck, que já morreu também há muitos
anos, né. O Serafim era encarregado de uma parte
da fábrica, e o Senhor Werneck era da tecelagem,
onde eu trabalhava. O Onofre foi bem depois. O
Onofre também da tecelagem. Ele era muito bom
pra mim. Não tenho o que queixar. Eu não tenho
o que queixar de nenhum deles, graças a Deus! Eu
gostava muito deles. Eu gosto até hoje porque eles
todos me tratavam muito bem, tanto os encarregados, como os que trabalhavam pra consertar o tear... Eu acho, também, que eu procurava fazer por
onde, né. Muitas coisas eu... eles até me chamavam
de “puxa-saco”. Eu não importava não. Até o doutor
Francisco, quando passava lá na fábrica, ele chegava
perto de mim, cumprimentava e tudo. Eu gostava
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dele. Mas muita gente reclamava dele, e reclamava do Senhor Manoel, que toda vida foi muito bom,
muito atencioso. Quando eu precisava de conversar
qualquer coisa com ele, eu ia lá no escritório. Ele era
muito bom pra gente. Eu gostava tanto de trabalhar
que, quando eu aposentei, eu queria continuar trabalhando, sabe. O Zezé falou até que ia fazer um
escândalo, lá na porta da fábrica, se eu voltasse pra
trabalhar. Aí eu fiquei quieta em casa. Também foi
bom. Já tem vinte e dois anos que eu estou aposentada. Também não incomodava o contramestre não.
Por exemplo: mudar martelo, mudar correia, aquela
correinha... Tudo isso eu fazia. Eu sentia que o contramestre tava apertado, eu via que eu podia fazer,
eu fazia... Muitos ficava esperando... Às vezes com
o tear parado toda a vida... Depois, parece também
que eles gostavam muito de mim... Quarenta e dois
anos é uma vida! Mas eu tive uns anos fora de lá,
porque eu adoeci... Eu acho que foi nervoso e trabalhar demais. Adoeci e fui pro sanatório. Tive no
sanatório um ano. Depois que eu vim de lá, sarei e
voltei... Muita gente morria mesmo, né.
Eu nunca fui atrás de médico. Meus filhos tudo nasceu com parteira... Quatro... Morreram dois:
a mais velha com seis meses. E morreu o mais novo
com três meses. Ficou abaixo da mais velha, ficou a
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caçula que é a Rita. Nunca fiz tratamento nenhum.
Nunca fiz. Sempre foi tudo em casa. O médico que eu
sempre gostei muito dele, e que também eu precisei
mais dele, foi o doutor Otônio. Já o doutor Edson...
Uma vez, quando eu adoeci, fui embora para o sanatório... Ele negou até a tirar a chapa, sabe. Aí eu fui
até o escritório - a Liza, minha irmã, veio ao escritório, falou com o Senhor Manoel e ele falou, então, que
fosse onde fosse! Se precisasse de sair, que podia sair,
fazer os exames todos, e que não ficasse sozinha também! Aí fomos a Leopoldina e fizemos todos os exames. Arrumou tudo para a gente ir. Foi tudo pago por
ele. Nesse tempo não tinha Instituto. Não tinha nada.
Eles é que pagavam o sanatório, porque no princípio,
quando eu entrei, não tinha garantia, não tinha nada.
Se adoecesse morria à míngua... Se não tivesse quem
tratasse... Depois que veio esse negócio de Instituto, e
tudo, foi que começou a pagar. Depois que começou
a vir esse negócio de Instituto - que a gente precisava
dele - é que eu comecei a sentir. Foi o Getúlio Vargas
que arrumou tudo. Férias... Essas coisas todas foi ele
que fez. Ele fez tudo de bom pra gente... Mas sei lá...
cada dia que passava parece que ficava pior a situação na fábrica, né. O que havia era muito pequeno. A
fábrica, pequenininha mesmo... quando eu saí já estava bem maior. Teve uma ocasião que ganhamos um
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lucro. Mas o lucro foi tanto que não deu pra nada! Foi
pouco... Acho que foi só um ano que deram...
Em certos pontos eu acho melhor é agora, né.
Eu não ia ao cinema... quase que não ia ao cinema
nenhum. Não ia a cinema, passear no jardim não passeava... Só ia à Igreja. Eu fui ser “Filha de Maria” e
deixei tudo. Eu tava com dezessete anos e fui ser aspirante de Filha de Maria. Depois passei a Filha de
Maria, no dia 8 de dezembro, ia fazer dezoito anos...
No primeiro domingo do mês ia prá Santa Rita de
uniforme branco, de faixa azul, véu e tudo. Tudo uniformizado. Nós íamos também aos retiros: só rezando e ouvindo prática do padre. Nesse tempo, retiro
era na Semana Santa, depois passou pro carnaval.
Durante os últimos dias da Semana Santa nós ficava presa lá dentro... Ficava ali... Era só rezar. A gente ajudava os outros porque queria ajudar, mas não
era obrigado não... Todas as roupas de manga comprida... Era assim umas roupas mais decentes, mas
não era igual à Assembleia (de Deus) não. E também
andar com namorado pra baixo e pra cima, essas
coisas tudo eles proibia. Moças, só, não tinha nenhuma casada... Cindonga... Cora Duarte... Carmelita
Guimarães... Padre Cota, Padre Zé Avelino de Castro
que eu acho que era sobrinho do Padre Cota. Até eu
casar ainda tinha. Depois que eu casei é que acabou
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com isso. Mas era muito bom também. Eu gostei
muito! Tinha convivência...
O pai do meu marido era irmão da mãe do
Manoel Peixoto. Essa gente é primo dele. Eles eram
primos: primo primeiro. Meu marido era filho daquele Zeca Julião. Vocês não lembram dele não, tem
muitos anos que ele morreu. Eu sei que é meio parente dos Peixoto, sabe. E porque o velho era casado
duas vezes. Ele tinha... acho que dois ou três filhos
da primeira mulher, não sei... Depois é que ele casou
com a irmã do pai do meu marido. E aí que deu essa
porção de filhos: Zé Peixoto, Eponina Peixoto... e se
eu não me engano, essa gente tudo era do segundo
matrimônio. Era primo do meu marido. Eu não sou
parente, ele é que era...
Meu marido trabalhava aqui, depois daqui levaram ele emprestado quando começou a
Manufatora. Levaram emprestado pra lá e não deixou sair mais. Ficou lá até sair: também aposentou.
Eu não sei se ele era maçaroqueiro... eu não sei se era
cargueiro. Falar a verdade: nem sei não. Eu acho que
ele trabalhava na carga... Eles tiraram algumas pessoas pra trabalhar na Manufatora, que eles fizeram
aqui, ali atrás da estação. No comecinho, a fábrica
ficava ali atrás da estação. E naquele correio de casa que tem ali. Eles fizeram um cômodo alí. Depois
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foram lá para baixo. Fizeram um prédio lá em baixo
e passaram pra lá. Aí tiraram meu, e mais alguns, de
cá. Daqui passaram pra lá, pra ensinar. E ensinando
ficou... ensinando até sair... Não voltou mais...
Toda vida fui dos Peixoto! Toda vida fui! Desde
que começou a primeira eleição. Na primeira eleição
votamos com eles. A gente votava porque gostava.
Eu, por exemplo, gostava. Tudo o que eles fazia, para
mim era bom. Eu gostava muito deles! Mas muitos
falam, até hoje! Falam que era cabresto! Que era isso,
que era aquilo. Mas não era cabresto nada! Não era
não. Eu considero assim. Agora, outra gente eu não
sei... porque tem muita gente que não é do mesmo
lado da gente, né. Nesta época tinha tantas colegas...
eu gostava delas todas. Nunca tive raiva de nenhuma. Nunca briguei com ninguém Helena do Tito...
Marilene... já morreram muitas... muitas mesmo! Já
morreu quase tudo... a Eva Comello morreu há pouco tempo. Morreu bem velha! Morreu em 82... 81...
não sei... eu tirei retrato com ela... eu fui naquele filme, o primeiro filme do Humberto Mauro... eu lembro dele, mas não lembro dele mesmo não. Lembro
só... falava dele... até naquele filme dele eu fui, sabe.
Um filme que passou aqui primeiro. Eu era menina...
passou a Eva Comello, passou o pai dela o Sr. Pedro
Comello e, muito mais...
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Tem mais ou menos cinquenta anos... não, tem
menos... que o Padre Antônio veio pra cá. Ele morava em Santana, né. Ele morava em Santana e veio
pr’aqui. A Rita, minha filha, era pequena. A Rita foi
batizar lá em cima porque aqui estava em movimento, tava construindo, foi batizada lá em cima... essa
igreja foi desmontada duas vezes. Era uma capelinha
mesmo, quase que não tinha ninguém. Não tinha padre, não tinha nada. Era uma coisinha pequenininha.
E aí, ia lá em cima, na Igreja Santa Rita. Tinha a capelinha pequena, depois aumentaram, agora de uns
tempos pra cá fizeram aquela outra grande. Não fui
lá em cima mais porque o padre Antônio começou foi
missa aqui, quando a igreja era pequena. Ia lá em cima quando tinha festa, uma coisa qualquer, mas para
assistir missa não. Essa daqui, depois que começou
eu não saí mais não... vou à missa só sábado de noite... eu gosto de ir de noite... seis horas estava ermo,
antes deles mudarem o horário. Eu acostumei ir sábado, porque domingo a gente... Sei lá.
Tinha passeata, tinha! Teve “pic-nic” do 1º de
maio. Sempre tinha. Teve “pic-nic” no horto, acho
que duas vezes e acho que lá em Dona Euzébia também teve dias. Tudo isso eu tomei parte. Passeata
foi dia sete de setembro, me parece. Eu não lembro
mais...
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Tinha muito movimento... tinha bastante... tinha dia de semana - acho que terça e sexta-feira que
ia e voltava duas vezes. Saía de Caratinga, acho que
às nove horas, chegava ao meio dia e ia pra Miraí.
Voltava de tarde, cinco e meia, seis horas ele voltava, sempre cheio com passageiros. Aqui era muito movimento de trem. Tinha trem de carga, de lenha, tinha essas coisas todas daqui pra Miraí, daqui
pra Recreio... só sei que era muita máquina! E tinha
Expresso daqui também. O Expresso ia e voltava
cheio pro Rio... o Expresso é que acabou mais depressa... agora tem estrada de ônibus... é mais perto...
com uma, duas horas tamos lá... era bem movimentada... aqui onde mora Maria José, essa casa grande,
ali era Estação Velha, mas eu não alcancei ela não. Ali
não é do meu tempo não. Essa ali era velha... logo
eles fizeram aquela dali e passaram pra lá... eu só
me lembro daquela. E tinha um barracão comprido...
esse barracão era caso sério! Pra gente vir da fábrica
de noite era uma escuridão! Nossa Senhora! A gente
vinha correndo... com medo, porque aqui não tinha
casa, não tinha nada. Era só mato. O barracão era da
estação também: guardava máquinas... no barracão
faziam limpeza das máquinas...
Eu acho que quando fizeram a Rodoviária, lá
em baixo, o Sr. Manoel já tinha morrido... eu vou fa-
29
zer oitenta anos agora em janeiro. Muitos anos, né.
Tem hora que eu cismo assim que vou morrer... eu
não estou muito longe de morrer não. Mas eu fico
pensando assim... meu Deus do Céu, eu não quero ficar morrendo toda vida na cama... aí não dá... minha
mãe morreu com oitenta e cinco... eu não sei... não sei
nada não... eu esqueço tudo!
Entrevistada em 30/8/1990 por Gláucia Siqueira e José Luiz Batista
30
AMÉLIA LANDÓES
DIRETORA DE ESCOLA
75 anos
Eu posso contar muito pouco porque
eu saí de lá muito pequena. Eu saí de lá com quatro
anos. Só me lembro do jardim de Cataguases... Eu me
lembro que eu brincava muito no jardim. Minha irmã
Alcina, tinha uns quatorze anos, é que me levava... E
me lembro do cinema. Papai tinha um camarote e eu,
pequenininha, tinha uma cadeirinha de armar, que
ele botava assim na frente... A nossa casa ia da Rua
Coronel Vieira até a Avenida Astolfo Dutra. Aquele
pedaço todo, uma casa enorme! Nós tínhamos cavalos, tínhamos um carro com dois animais... O carro
que ele gostava de passear com as filhas, não é. Era
31
uma casa muito grande... tinha então uma tipografia,
era uma continuação: tinha a nossa casa, tinha o atelier fotográfico, depois a tipografia.
Cataguases era muito pequeno, não é meu filho? Eu só me lembro de Cataguases... da nossa casa... A “Força e Luz”... Depois tinha um hotel assim
na esquina... depois descia a Rua da Estação... depois tinha, lá no fim perto da estação, o Hotel Villas.
Ainda existe? Tinha muito viajante, muito movimento mesmo e papai era o festeiro do lugar. Todo mundo gostava dele. Todo sábado havia uma reunião lá
em casa, porque todo sábado ele ia à estação buscar o
barrilzinho de chope pros amigos. Ele era jovem nesse tempo, né. Os amigos dele era só gente moça, muito alegre. Bailes no clube, ele marcava quadrilha. Era
um homem muito alegre. Mamãe já era mais discreta.
Também tinha uma diferença grande, quase dez anos,
entre eles, né. Ele tinha um relacionamento muito
grande. O Mares Guia, Gaston Bajor, a família do
Luiz do Carmo. Ele gostava muito de festa... Papai
conhecia aqueles Peixoto, Villas, aquela gente toda.
Ele estava em tudo quanto é reunião. Tudo quanto
era... qualquer coisa que houvesse em Cataguases
papai estava presente.
Ele era estrangeiro, quer dizer, ele não tomava
partido. Ele explicava sempre:
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- Eu não tenho partido político. Eu sou estrangeiro.
Eu não sou nem A nem B. Agora, eu tenho o meu
jornal, eu imprimo o que me trazem aqui.
Ele não tomava partido, mas ele tinha a tipografia. Vinha o jornal, ele editava. Ele vivia disso. O
jornal vinha e ele imprimia. Aquilo era um meio de
vida. Ele só imprimia o jornal, isso eu quero que fique bem claro!
O jornal era da oposição - Jornal da Mata - primeiro foi o jornal, depois veio a Revista da Mata. Ele,
como estrangeiro, ele não se metia, ele não votava
nem nada. Ele era suíço do cantão alemão. Papai era
suíço da cidade de Zurique e estudava em Hamburgo.
Era de uma família que tinha meios para que o filho
estudasse lá. Ele era um homem de uma cultura muito grande. Ele falava o alemão, falava o francês, o
italiano e alguma coisa do inglês. Meu pai - Alberto
Landóes - tinha uma cultura muito grande. O senhor
sabe que a Suíça é um pedacinho de terra... Ele tinha
uma cultura! Ele conhecia música, ele cantava, ele tocava instrumento... Uma cultura enorme! Papai estudava física e química comigo. Em matemática era um
colosso! Era um homem de uma cultura muito rica.
Ele não chegou a se formar em engenharia...
Ele veio aqui para o Brasil, viu a mamãe e casou-se. Disseram a ele:
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- Olha, São João Dei Rei tem moças muito bonitas!
Ele chegou lá e na Igreja de São Francisco de
Assis ele conheceu mamãe, se casou e ficou por aqui.
Quando ele quis voltar à Europa arrebentou a guerra
- foi quando eu nasci - e aí ele não foi. Quando terminou a guerra - graças a Deus nós tínhamos a parte
monetária sempre direitinha - quando acabou a guerra, em 1918, ele disse:
- Eu vou ver a minha mãe.
Aí a mãe dele morreu. Ele aí perdeu o interesse... Ele fez de memória o retrato dela, como ele deixou a mãezinha dele... Eu tenho o retrato da minha
avó. Ele fez o retrato dela, a lembrança dele.
Meu pai era um artista. Ele desenhava e pintava que era uma beleza! Ele ganhou um prêmio na
Europa de um desenho de mãos. O senhor sabe, dar
expressão a mãos é uma coisa difícil. Ganhou o prêmio! Isso foi em 1890 e pouco, lá na Europa. A expressão da figura que ele pintou... ele ganhou prêmio pela
expressão das mãos... Expressão no olhar, no sorriso,
é fácil, mas nas mãos... Modéstia a parte, papai era
um colosso! Ele fazia clichê, fazia fotogravura, zincogravuras, fotografia. Tudo isso é arte. Tenho aqui tudo isso que ele fazia, era completo nisso, certo?
Ele fazia retratos. Ele veio pra cá com o prêmio
que ele ganhou de retrato. Ele escolheu o Brasil como
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prêmio, para vir pra cá. Ele tinha uma irmã, a mais
velha, ela morava no Rio, no Leme, ele ficou com ela.
Ele gostava de fazer retratos né, e conversando assim
no meio de amigos disseram:
- Olha, moças muito bonitas o senhor encontra em
São João Dei Rei.
Então, na Igreja de São Francisco de Assis,
num domingo de missa, ele conheceu minha mãe Afonsinha Pereira Landóes - que tinha 15 anos, e ele
24 (anos). Ele nem sabia falar português nem ela sabia falar alemão. Não sei como eles se entenderam, né.
Então se casaram em São João Dei Rei. Ele casou-se com mamãe em 1894.
Passou a trabalhar aqui em Minas. Viajou pelas
cidades todas. Ele se casou em Minas e continuou em
Minas. Sempre em Minas. A maior parte do tempo
ele ficou em Cataguases. Uns trinta anos. Ele vinha
ao Rio trabalhar com a “Bastos Dias”, uma firma aqui
muito grande. Ele fazia retratos pra “Bastos Dias”.
No Rio de Janeiro, a “Bastos Dias” sempre tinha retratos daqueles políticos todos da época. A “Bastos
Dias” recebia a encomenda e passava pro papai. Ele
então fazia o retrato do Washington Luiz, Epitácio
Pessoa, Artur Bernardes, toda essa gente... com um
negócio de veludo assim, na vitrine da “Bastos Dias”,
na Rua Sete de Setembro... Retratos de fulano, ele fa-
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zia, eles punham lá. Ele recebia encomenda, ele não
sabia pra quem... Retratos de família... Retratos todos
que ele fez... Quem gosta de ver isso é meu marido.
Ele não conheceu o meu pai, mas pelo que nós
falamos...
Papai teve sete filhos. Teve um menino... morreu com quatro meses. Ele quase ficou enlouquecido com a morte desse menino. Depois veio o outro. Esse foi um grande construtor aqui no Rio de
Janeiro. Aposentou-se, mas é conhecida a construtora
Landóes aqui. Como meu irmão - era o filho único
- ele tinha verdadeira paixão. Ele não quis estudar engenharia como papai queria, mas acabou sendo construtor. Ele não era engenheiro-construtor, mas era dono da empresa: Construtora Landóes.
Muito conhecida aqui no Rio de Janeiro pelos
bons trabalhos... Ele teve quatro filhas em seguida,
uma atrás da outra, com uma diferença de um ano e
meio de cada uma: a Albertina, a Augusta, Adalzira e
Alcina. Papai as chamava “meu soneto”. Moças muito bonitas, fizeram até muito sucesso em Cataguases
nas festas e tudo, né. Eu não me lembro dessas coisas.
Eu lembro disso porque ouvia mamãe comentar, minhas irmãs...
As minhas irmãs, duas estudaram na Escola
Normal, as outras duas estudaram no Grambery. A
36
mais velha e a última estudaram lá, e as duas do
meio estudaram no Grambery. Todas professoras. Ele
nos educou numa rigidez extraordinária, não é.
Por isso que todas nós - todos nós, porque só
temos um rapaz, um homem né - todas nós vencemos na vida. Ele fez questão que nós estudássemos.
Pai amantíssimo, carinhoso, mas enérgico. Ele era
genioso. Nos deu uma educação rígida. Aquele rigor,
aquela disciplina! Papai tinha hora pra tudo! Eu já
mocinha feita, noiva, dez horas tinha que ir dormir.
Ele dizia:
- Vai dormir. Às dez horas é o sono da beleza!
Ele tinha muito carinho comigo porque eu fui a
caçula, fui a última. Então, minhas irmãs reclamavam:
- O xodó que o senhor tem pela Amelinha... Tudo pra
Amelinha!
- É com esta que eu vou viver menos, é com esta que
vou viver menos!
Elas estavam “trintonas” quando ele morreu. Eu estava meninota de 16, 17 anos, quer dizer:
“é com esta que vou viver menos”... Ele falava bem
o português, mas com um certo sotaque, sabe. Era
um homem muito inteligente. Ele tinha tiradas... Em
1935, 21 de maio, ele faleceu...
As crianças da vizinhança iam todas lá pra
casa. Papai fazia circo, armava fogãozinho para eu
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brincar, balanço... tudo isso no quintal... quintal
enorme!
Agora, ele não me deixava ir pra casa do vizinho. Eu não ia, todo mundo era lá em casa. Eu ainda
eduquei minha filha assim. Minha filha ainda teve a
educação a “lá Landóes”.
Depois, nós viemos pro Rio por causa da política. Ele tinha um jornal que ele editava, o jornal da
oposição. Ele tinha a tipografia, o que viesse ele imprimia. De uma noite pro dia eles quiseram empastelar a tipografia dele... Ele não se metia em política,
porque ele era estrangeiro. Ele conhecia o seu lugar...
Ele fez todo aquele trabalho da Zona da Mata
toda. Veja aqui por esta revista.
Tudo isso é trabalho dele, organizando... E a
beleza desse trabalho dele é que a família dele nunca
entrou! Ele nunca colocou a família aqui. Você viu o
jornal? Meu irmão há tempo me falou, que foi mais
ou menos 1915... Eu era novinha, eu tinha nascido
naquela época. Nós temos a Revista da Mata de 17,
18, 19. Tudo isso aqui da revista era feito por ele. A revista foi fundada por Eurico Ribeiro. Aqui na própria
revista - eu estive vendo ontem, eu já vi isso várias
vezes - tinha vários colaboradores aqui. Olha aqui,
tenho aqui uma porção de colaboradores. Hermano
Mares Guia - que até gostou da minha irmã mais
38
velha - era um dos poetas. Olha aqui o homem que
deu nome à rua onde nós morávamos: Rua Coronel
Vieira, fundador do município de Cataguases, né.
Olha aqui o Venceslau Brás. Esse retrato ele fez foi
quando eu nasci. Aqui o Astolfo Dutra, esse ficou
contra nós porque papai editava o jornal. Eles foram
contra, quiseram até empastelar nossa tipografia. O
Astolfo Dutra... o Pedrito era namorico com minha irmã, o Homero Dutra também, com outra irmã. Quer
dizer, nos dávamos bem. Mas por causa do bendito
jornal houve essa dissidência, houve essa separação...
Ele sofreu vários atentados naquela época. Um,
que eu ouvia falar, jogaram ele na linha do trem. A
sorte grande que o trem passava aqui e ele caiu ali,
naquele bequinho, naquele vãozinho. Não teve nada!
Mamãe vivia em sobressalto. Papai saía, ela não sabia se ele voltava. Basta dizer que o papai era um homem pacífico - era um homem muito enérgico e tudo,
mas pacífico - ele passou a andar armado. A mamãe
não tinha sossego.
Papai saía, viajava muito... Leopoldina, aqueles lugares todos ali, e mamãe ficava preocupada.
Nós nos dávamos muito bem com aquelas famílias
de destaque, como era a família Astolfo Dutra. Até os
meninos dele, o Homero e o Pedrito, eram namorico
lá com minhas irmãs. Nós nos dávamos bem com to-
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do mundo, mas depois que acirrou aquela política e
o papai foi muito... Mamãe ficou apavorada! Queria
vir para o Rio, queria ir para outro lugar! Fomos. Ele
vendeu tudo de qualquer maneira. Nós tivemos que
fugir da nossa casa porque empastelaram a nossa tipografia.
Agora, o que eu me lembro é que quando nós
tivemos... quiseram empastelar a nossa tipografia,
a nossa casa, nós saímos correndo para a casa do
Capitão Ezequiel. Era uma fazenda que havia. Esse
capitão era muito amigo de papai. Fugimos pra lá
então... A política foi horrorosa! Era uma coisa horrível viver assim! Minhas irmãs já estavam moças, e eu
pequenininha, minhas irmãs estavam loucas para vir
pro Rio de Janeiro. Papai tinha uma irmã mais velha
aqui, que tinha um atelier de costura muito elegante,
na Rua Senador Dantas. Então ele resolveu sair de lá.
Teve que sair correndo.
Então ele resolveu vir para o Rio de Janeiro.
Aqui ele teve uma tipografia e fotografia, na Praça da
Bandeira. Aí ele trabalhou muitos anos.
Nós morávamos aqui em São Cristóvão.
Minhas irmãs, então, foram trabalhar com esse diretor, professor João de Camargo. Era um grande
mestre! Minhas irmãs, professoras, trabalhavam com
o professor João de Camargo e construíram esse co-
40
légio. Antes, em (19)24 o colégio foi fundado pelo
professor João de Camargo. Ele era diretor do “Pio
Americano”, que era um colégio pra rapazes. Então,
o sonho dele era fazer um colégio modelo para meninas. Ele comprou esse prediozinho, só tinha aquele
palacetezinho aqui na frente, onde nós agora estamos
demolindo e fazendo uma área maior. Quando o colégio estava com quatro anos o professor Camargo
vende para nós. Em 1929, o João de Camargo quis
desfazer o colégio para fazer uma colônia de férias
em Paquetá. Então ele vende o colégio à minha família. Minhas irmãs não podiam comprar, papai então
comprou este colégio. Custou cento e vinte contos só
esse prédio aqui. Isso aqui nós compramos depois...
Aqui tinha uma porção de casas... Aqui era a antiga
Rua Emereciana... Eu fui a primeira aluna desse colégio: Escola Brasileira de Educação e Ensino. Uma escola modelo para meninas. Eu fui a primeira aluna...
Ele comprou esse colégio e ficou trabalhando
aqui com mamãe e as minhas duas irmãs mais velhas.
Eu era muito menina, eu estava na escola pública,
aqui na Gonçalves Dias, na segunda série. Eu estava
no primário. Nós compramos o colégio no dia 6 de
janeiro de (19)29. Ele ficou muito satisfeito! Ele organizou tudo! Ia a São Paulo comprar carteira! Foi um
homem muito dinâmico! Foi a alma desse colégio no
41
princípio, né. Ele e mamãe, mamãe sempre marcou...
Mamãe também era uma mulher maravilhosa! A filha falar do pai é muito difícil, porque eu tenho um
xodó! Com minha mãe então, nem se fala, né. Porque
minha mãe foi uma mulher do lar. Nunca cortou os
cabelos, nunca pintou as unhas. Mamãe era uma sentimental, uma romântica. Ela dizia:
- Nesta mão só aliança. Aqui é só aliança, essa mão
só serve aliança. Nessa mão minha filha...
Pro senhor ver o encantamento que ela tinha
pelo casamento! Ela não usava anel nenhum desse
lado. Podia usar desse (outro) lado, mas aqui não...
Usava brincos de brilhante... O papai, quando nascia
um filho, ele dava uma joia para mamãe.
Eu tenho brilhantes aí que papai dava para
mamãe... Isso eu me lembro com admiração. Ela só se
dedicou a nós. Foi de uma dedicação! O papai também. Papai viajava, ela ia junto...
Nós todos morávamos aqui, toda a família aqui,
até as irmãs casadas. Nós morávamos aqui no colégio, aqui na frente. Fizemos esse Colégio Brasileiro a
maravilha que ele é! Nós tínhamos o horário integral,
das dez horas da manhã até às cinco horas da tarde.
Nós tínhamos o curso completo. Enquanto papai foi
vivo o colégio... Nós fizemos exposições belíssimas
na cidade! Tinha professora de pintura, nós fazíamos
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uma porção de trabalhos e expúnhamos. A minha irmã, essa aqui, a Augusta desenhava, arte do lápis, né.
Ela desenhava, ela fez curso de pintura e tudo. E todas nós temos jeito para desenho. Minhas irmãs eram
muito bonitas. Elas escreviam, elas desenhavam, mas
eu não encontrei nada aqui do trabalho delas... Se o
senhor tivesse pegado a minha irmã Alcina, que faleceu em 1972... Essa é que sabia tudo! Esse livro, papai
passou pra ela. Depois, em (19)58 ela passou para outra irmã, Augusta Landóes... Depois que ele morreu
perdeu um pouco, porque ele era a alma de tudo isso.
Ele foi a alma, ele foi o alicerce.
O papai foi um homem dedicadíssimo! Fez de
nós gente boa. Nós todas temos a mesma educação,
temos o mesmo critério aqui no trabalho. O Colégio
passou por papai e mamãe, depois veio as minhas
duas irmãs mais velhas. A Augusta, esta aqui, já morreu há quatro anos. Era a coisa linda da família, essa
alvoroçou Cataguases! Muito bonita mesmo! Depois a
outra, Adalzira, morreu agora, há um ano e meio. Eu
me aposentei, estava em casa, não quis saber de nada.
Ela morreu, essa imensidão, esse gigante branco ficou
pra mim... Nós fizemos coisas muito boas.
Minhas irmãs foram ótimas diretoras! Mas isso
nós devemos ao rigor - com muito carinho, mas muita energia né. Agora já está... eu digo que é a quarta
43
geração: papai e mamãe, minhas irmãs, agora estou
eu e já trouxe a minha filha, e já trouxe uma neta, que
já está trabalhando. Ela está fazendo informática na
Faculdade, mas já está nos ajudando aqui na parte de
contabilidade. Estamos aqui pra dar amor a isto, porque isto aqui é obra Landóes!
Hoje eu sou a última, mas eu trouxe a minha
filha, que já estava casada há vinte anos, sempre
dedicada à família. Eu a preparei para isso. Ela fez
tudo quanto era pra ser ótima diretora! Ela estudou
na Europa, passou dois anos lá. Fez o curso de Física
aqui na Nacional, foi se aperfeiçoar na Alemanha, fez
a pós-graduação, passou lá dois anos e meio. Casouse também com alemão. Eles se conheceram na
Faculdade e quando acabaram, casaram-se e foram
fazer o curso na Alemanha. O alemão é muito agarrado à família, dedicado à família. Meu genro é uma
coisa maravilhosa! Essa menina é a que hoje está aqui
comigo trabalhando.
Papai adorava Cataguases! Quando viemos
pro Rio e tudo, ele tornou a voltar.
Botou um atelier pequeno, porque ele ia e
voltava, né. Não era aquele atelier maravilhoso, que
ele teve no princípio. Era lá em casa mesmo, na
Rua Coronel Vieira, 60. Era ali. Depois foi na Rua
da Estação, com meu irmão, para vender máquinas,
44
filmes, porta-retratos, tudo. Ele fez um comerciozinho... Os quadros de formatura eram todos feitos por
ele. Quando eu estive em Juiz de Fora, em 1972, já se
conhecia papai. Quando Ari Barroso morreu, os retratos que apareciam eram do atelier de papai. Papai
não era fotógrafo de jardim, não. Era atelier fotográfico, era arte! Não era só fotografia, não. Ele fazia retratos a pincel. Era fabuloso! Era do pincel, mesmo!
Era do lápis! Tinha uma letra linda... as assinaturas
dele... Vinham pessoas de fora para procurar o atelier para fotografias e tudo... Sempre trabalhou por
conta própria.
Com aquela saída (de Cataguases) teve um prejuízo muito grande... Vendeu de qualquer maneira né.
Ele aí trabalhou na Ilha dos Pombos, com os americanos. Ele se localizou em Porto Novo do Cunha. Ficou
lá muito tempo só com mamãe. Minhas irmãs no Rio
e uma tia veio tomar conta de nós. Mamãe sempre
acompanhou papai. Ele se fixou em Porto Novo do
Cunha, trabalhou naquela represa do Rio Paraíba,
que a Light estava fazendo. Aí trabalhou muitos anos
e ganhando um dos maiores ordenados! Teve uma situação muito boa! Ele fez este trabalho durante anos,
ajudando o engenheiro chefe, que era o Kandel. Em
parte ajudava na engenharia, porque ele tinha um
estudo - não chegou a se formar engenheiro, porque
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veio para o Brasil e não acabou. Quando acabaram
aquele serviço o convidaram, com uma situação invejável, para ir a São Paulo. Ele não aceitou. Quando
acabou essa represa do Rio Paraíba, ele foi convidado
pela Light para ir para São Paulo como um dos maiorais, ganhando um belíssimo ordenado! Ele disse:
- Não, eu não tenho patrão.
Ele fazia o trabalho dele, dava o preço e era
muito elogiado. Ele fez um serviço lá muito bonito,
isso é que eu sei. Tinha até um Fordeco, um “ford bigode”. Quando a Light o quis efetivar ele não aceitou
absolutamente. Ele nunca aceitou... Sempre autônomo. Era um homem muito rígido, muito honesto, gostava de tudo muito direitinho. Isso ele incutiu em nós.
E quando ele quis, coitado, reunir a família em
1929, as filhas... a Albertina, a mais velha, casada há
um ano e meio, morre de parto. Ele ficou com uma
paixão, porque ele queria toda a família unida. Ela teve um choque pavoroso... Ele veio esperando o nascimento do neném... Foi um choque! Ele aí teve um
ataque cardíaco, quase morreu.
Ele ainda durou cinco anos, mas sempre tinha
suas crises de coração... Até tínhamos medo quando
ele viajava... Ele continuou a viajar e tudo. Ele tinha
negócios em vários lugares, né. Em Itaperuna, em
Cachoeiro do Itapemirim, ele tinha fazenda lá. Ele
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abandonou tudo depois. É uma doença muito traiçoeira a do coração... Ele continuou conosco até 1935.
Morreu de um ataque cardíaco... Levantou-se muito satisfeito, tomou banho, fez barba, vestiu-se, isso
tudo... Estava conversando conosco - comigo e com
outra irmã - na sala de jantar. Ele aí virou-se pra mim
- eu já estava com meus dezesseis anos - ele virou-se
para mim e disse:
- Olha, está dando o sinal.
Então eu peguei a pasta, desci as escadas e fui
pro colégio. Mal eu chego no colégio me chamam dizendo que ele tinha tido um ataque cardíaco. Morreu
bonitinho, não é?
Já sofria do coração. O primeiro ataque cardíaco que o papai teve foi quando ele chegou de viagem,
ele veio de Minas e a Albertina...
Engraçado, ele sempre teve amigos muito
mais moços do que ele... Levava a gente ao corso de
carnaval aqui no Rio: ele, a mamãe e nós. A gente
queria uma fantasia de última hora, ele cortava umas
bolotas e fazia uma colombina. Aqueles “frufrus”, ele
ajudava a passar. Ele sabia enfeitar a roupa da gente...
Um artista! Por exemplo, eu tinha aulas de desenho,
eu não entendia nada de perspectiva... A professora
botava lá uma pilha de livros e mandava copiar... Ele
então me orientava, e eu fazia. Estudava com os fi-
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lhos... Quando eu era pequena, ele com a tesoura fazia bonecas... Brincava de circo comigo em casa, ele
era o acrobata... ele era um homem muito liberal, sabe, muito liberal mesmo.
Ele gostava de ir, aqui no Rio, aos teatros. Ele
botava as quatro filhas no camarote e ele ficava na
plateia para ouvir os comentários, orgulhoso do “soneto” dele... Eu era um bebê muito bonitinho, tem
uns retratos. Eu assim em cima da mesa, eu sentada
em coluna, eu era um catalzim gordinho, bonitinho,
naquele tempo. Agora, uma velhusca, né. Eu sei que
minhas irmãs queriam vir era para o Rio. Sabe-se como é que é toda moça, né. Elas tiveram pretendentes lá (em Cataguases) para se casar. Mas elas vieram se casar aqui no Rio. Eu tive quatro cunhados,
né. E papai - o pai das moças - como eles se davam
bem! Papai gostava de botar todo mundo de pileque.
Minhas irmãs tinham que fechar os maridos porque
senão papai fazia... gostava de botá-los de pileque.
Gostava de uma brincadeira, gostava muito! Ele era
muito moleque. Ele dançava... mas só o olhar dele,
todo mundo respeitava. Ele tinha um domínio sobre
as pessoas muito grande. Ele só olhava... Natal era
uma festa belíssima!
Isso eu não sei porque eu sou a “rapa do tacho”. Tem o caso da política, quando quiseram matar
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Anísio Cardoso, que era o grande escritor do jornal, e
era da oposição. Ele foi alvejado, quase que morreu.
O irmão dele, o Mau (Dr. Mário Cardoso), que era
médico, é que cuidou... me parece que a língua ficou
esfacelada... Mas quando ele se recuperou continuou
naquela luta... Daí, então eles acharam que o papai
era da oposição.
Ele era muito alegre, muito chistoso. Era um
homem adorável para se viver...
Acho que eu devia ter uns nove anos, eu voltei lá pra visitar papai (em Cataguases). A mamãe
estava com ele. Minha irmã Alcina, que sempre cuidou de mim, fomos lá e passamos uns quatro dias.
Interessante... eu tenho uma passagem... O meu marido foi comandante da IV Região Militar, lá em Juiz
de Fora. E lá em Cataguases acabaram sabendo que
a esposa do general era uma cataguasense. Foram lá
me procurar para eu ir a Cataguases. O prefeito me
convidou para um almoço num domingo... Eu queria
conhecer Cataguases... Sabe que eu não tive ocasião
de ir a Cataguases.
Isso eu não sei não, não lembro tudo. Isso meu
filho, eu sou um pouco ignorante nisso, porque como eu disse, eu sou o último rebento. Ele era maçom,
ele foi venerável da maçonaria, da “Cataguasense”,
ali perto do cinema. Papai era venerável - eu nem
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sei o que é isso, viu - naquele tempo eu ouvia falar.
Minhas irmãs, elas bordavam tudo pra maçonaria,
até aquelas bandeiras, aquelas coisas lindas...
Eu estive vendo... Eu estou vendo coisas que
se reclamava naquele tempo e nós estamos reclamando agora. Eu vi aqui uns títulos... a mesma crise
daquela época nós estamos vivendo agora. Então é
antigo... Isso aqui tem quantos anos? Papai já morreu
há cinquenta e tantos anos... Ele morreu moço, morreu muito cedo, com sessenta e sete... E, a história se
repete.
Entrevistada em 5/5/1989 por José Luiz Batista.
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JOÃO KNEIP
ELETRICITÁRIO
80 anos
Nasci aqui. Eu sempre vivi aqui em
Cataguases, desde criança. Vou fazer oitenta anos...
Meu pai, minha mãe, tudo aqui em Cataguases. Eu
sou descendente de alemão, meu pai era filho de
alemão. Eu me lembro que o meu pai era um homem muito respeitado aqui em Cataguases. José de
Almeida Kneip: tem uma rua aí com o nome dele. O
meu pai era um homem que andava muito alinhado!
Eu vou te mostrar um retrato do meu pai. Naquele
Foto: Usina Maurício (Fachada da casa de força da Usina Maurício),
Alberto Landóes, 1908, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico
e Artístico de Cataguases
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tempo os homens andavam tudo direitinho! Tudo
que precisavam vinham atrás do papai. Qualquer
coisa, o velho estava lá para aconselhar. Questão de
balanço, às vezes estava dando prejuízo; ele ia lá, organizava. Era uma beleza nessa época! O respeito de
um ao outro: não tinha esse negócio de “conto de vigário”, essa bandalheira que está existindo hoje. Os
homens eram mais sinceros, mais puros.
A vida em Cataguases era uma beleza naquele tempo. E como se diz: Cataguases antigamente era
uma família, você conhecia todo mundo. Todo mundo te respeitava e gostava... precisava de um e outro...
pedia... Minha mãe chamava Maria e era chamada de
Dona Garrincha. Ela não gostava não, mas atendia.
Papai era Zequinha. Todo mundo chamava o velho
de Zequinha. Ele ensinou muita gente a trabalhar
em escritório. Mais ou menos em 1918, eu era garoto
ainda, era menino, ele abriu uma escola de contabilidade. Ensinou muita gente. Mas era um tempo bom
aquele... Meu pai, minha mãe, meus irmãos... Um trabalhava no Banco de Crédito Real, o outro foi pro Rio.
Tem uns retratos antigos aí, que eu vou guardando,
que foi do velho, da minha velha, das minhas tias...
Todas elas eram comadres naquele tempo... Papai e
mamãe têm uma porção de afilhados. Eu mesmo já
tive uns quatro ou cinco afilhados... tudo era uma fa-
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mília só. Hoje eu quase não conheço mais ninguém!
Cataguases triplicou. Isso aqui é um colosso.
O velho era um homem muito respeitado,
muito querido... Trabalhou na Companhia Força e
Luz muito tempo. Ele era respeitado como se fosse
um gerente! Muito bom, muito honesto. Ele não era
gerente não, mas ele era respeitado como gerente!
Eu entrei pra “Força e Luz” em 1925. Naquele
tempo não era como hoje. A Usina era pouca.
Chegava a ocasião da seca, era uma coisa horrorosa!
A Companhia fazia tudo: do poste até a iluminação.
Hoje não. Hoje o governo ajuda. Hoje, para aumentar
a luz nem precisa... Eu me lembro que, numa ocasião,
nós fomos lá no Sindicato pedir um aumento de luz
para os empregados. Chegamos lá, pedimos... um
dos diretores até brigou:
- Mas não pode! Vai subir o custo de vida!
Eu tenho vontade de falar com ele:
- E hoje? Hoje sobe todo dia, não é?
Quando eu entrei para a “Força e Luz” eu ganhava cinquenta mil réis. Depois fui para oitenta, para noventa e fui terminando até ficar chefe da oficina. Eu trabalhei muitos anos ali na Usina Maurício.
Era a mesma Usina, só que tem que ela foi aumentada. Hoje, está outra coisa. Está muito bem organizada, tudo arrumadinho. Ia sempre lá: dava defeito
55
nas máquinas, eu ia pra lá. Eu com o meu pessoal. O
doutor Gabriel Junqueira era um diretor muito bom.
Eu gostava muito dele.
Já trabalhei muito nessa Cataguases, Nossa
Senhora! Trabalhei quarenta anos só essa parte de elétrica, eletricidade. Eu me aposentei em (19)66. Estou
com vinte e tantos anos de aposentado. Depois que eu
aposentei, eu botei uma firma aqui. É minha. Trabalho
aqui. Trabalho para essa zona toda aí. Conserto motor e transformador, tudo quanto é aparelho de eletricidade. E, qualquer coisa que entrar aqui! Graças a
Deus sou muito conhecido nessa zona aí, sabe.
Eu sou emérito da Maçonaria. Aquele prédio
ali foi construído por mim. Eu era tesoureiro, fui tesoureiro durante o tempo todo, até construir. Eu mais
o Paulo Pessoa... Todos os irmãos ajudaram, mas
aquele que foi mesmo par meu foi o Paulo Pessoa.
Aquele prédio ali, quando eu vejo aquilo, parece um
sonho! Quando eu terminei aquele prédio sabe quanto estava? Quarenta e dois contos! Quarenta e dois
mil contos! Hoje, compramos uma sala por trezentos
mil... Nós fizemos aquilo e fomos vendendo as salas... Depois fomos apanhando (as salas) outra vez. O
meu pai, ele é que organizou essas atas. A rua que
eu nasci... eu não estou lembrando não, sabe. Não sei
se é lá na Rua do Pomba... por ali assim, sabe. As ru-
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as antigamente era tudo de chão. Eu me lembro que,
tempo de chuva, dava aquele barro! Essa avenida
quem abriu essa avenida foi o Coronel João Duarte.
Naquele tempo, ele era prefeito de Cataguases. João
Duarte Ferreira era um capitalista muito grande. Ele
morou ali onde vocês vão fazer o Museu, ali na praça. Coronel João Duarte tinha muita indústria, tinha
Banco, tinha tudo. Quando morreu era o homem
mais rico, ricaço mesmo!
Aqui era brejo, aqui tudo era brejo. O trem
passava aqui, passava mais pra cá, o “corgo” passava aí. Esse “corgo” foi feito, acho que foi feito em
1922. Fizeram o canal em mil novecentos e vinte e
tanto, não me lembro não. Acabaram com o “corgo”... Mas aqui tudo era brejo. E a rua tinha aquelas
pedras grandes. Automóvel só existia um, era da
Companhia (Força e Luz): Benz, do Doutor Gabriel
Junqueira. Depois começou a aparecer novos carros.
Veio um carro aí todo bonitão! Quem vendia carro
muito bonito era o Agenor de Barros. Era capitalista,
agora perdeu tudo, ficou pobre... O negócio do café derrubou muita gente naquele tempo... Isso aqui
era um brejo, plantava arroz aqui: arrozal. Era um
colosso! João Duarte que abriu essa Avenida Astolfo
Dutra e fez o canal. Tirou o que passava ali atrás...
onde é hoje, era tudo do lado de cá. Não tinha casa
57
nenhuma... Mas ali na avenida já tinha a casa do doutor Astolfo, foi uma das primeiras casas que fez ali.
Depois foi fazendo as outras.
Olha aí no livro... Não era livro, era revista, você pode ver aí: janeiro, fevereiro...
Era revista, cada vez saía... O papai foi juntando aqui nessa escrivaninha. Depois o papai morreu,
eu abri lá e vi. Aí mandei encadernar todas três. E
a “Revista da Mata”... 1917... Foi o Alberto Landóes,
ele que fez isso. A fotografia dele era muito boa!
Todo lugar: Leopoldina, Astolfo Dutra, Ubá, São João,
Cataguases... Tem muito verso aí, muita coisa antiga,
nomes antigos respeitados: Ribeiro Junqueira, doutor
Lobo... Aí, esse é o Eurico Rabelo, homem direito...
ensinava mesmo! Naquele tempo ensinava... Hoje
não ensina conforme era não... No entanto, ganhava pouco essa gente. Andava bem vestida, ensinava
bem... Hoje, essas greves aí...
Estudei (no Grupo Escolar Coronel Vieira). A
professora era a Dona Tita, deve estar aí Dona Tita.
Naquele tempo era só ele... 1912... 1913... só tinha
ele. A não ser a Escola Normal, não é? Aqui tem a
Escola Normal, era aqui atrás, você vê justamente em
cima, logo no final. Era a Chácara Arthur Cruz. Eu
me lembro, eu era menino, não é? Naquela ocasião
eu devia ter uns quatorze anos... Ali era um pomar,
58
você ia lá, apanhava fruta... Depois passou a chácara, fizeram a Escola Normal na praça. O Ginásio
era onde é o Colégio hoje, lá em cima. Do tempo do
Antônio Amaro, velho respeitado, bom professor! O
Sr. Francisco... a Industrial... compraram, derrubaram e fizeram este. O Jânio Quadros... com aquela lei
que era obrigado... toda a companhia tem que fazer
o colégio. (Fizeram a doação do) colégio pro Estado.
Hoje é do Estado.
A Revista Verde era uma revista boa, mas eu
não tinha... Naquele tempo eu não me lembro da
Revista Verde não... Eu não ligava pra essas coisas
não. Quem podia dizer sobre a Revista Verde é o filho do doutor Francisco, ele que pode informar melhor. Tem o Rosário Fusco, tem o Guilhermino, que
fazia parte da Revista... Tem o livro até que eles me
deram. Emprestei: nunca mais me deram o livro!
Esse negócio de emprestar livro pros outros... Eu tenho um ciúme desse livro! Uma ocasião, eu emprestei, mas (uma) criança pegou e passou (as páginas)
de qualquer jeito. Tem que pegar direito! O doutor
Enrique (de Resende) fez um outro livro, está ali, e
até pôs o meu nome!
A “Irmãos Peixoto” é a fábrica mais antiga que
tem. A mãe das fábricas aqui é a “Irmãos Peixoto”,
dela que saíram todas. Só sei que ela foi aumentan-
59
do muito. Depois que passou para os netos melhorou
cada vez mais. Dali foi a “Industrial”... “Manufatora”,
tudo da mesma família: o Zé Peixoto, o Manuel
Peixoto. E tem o Rodrigo Lanna também, que é da
Emília Peixoto... A indústria era muito pouco, tinha
mais lavoura. Agora, tem mais indústria. As operárias agora só andam bem vestidas...
Eu me lembro que os operários, antigamente,
saía de madrugada com o tamanquinho: toc-toc-toctoc. Hoje não, operária hoje está igual a professora:
chique, bem vestida. Hoje operário tem geladeira,
televisão, tem tudo. Naquele tempo a coisa era... ganhava pouco... O ordenado naquele tempo não dava
muito, dava trinta mil réis; mas passava bem, muita
fartura. Você comprava um litro de leite por duzentos réis; um frango muito caro era oitocentos réis. O
lavrador, por exemplo, comia carne seca. Comia bem!
Eu me lembro. Eu tenho um cunhado que ia lá, vendia carne seca, arroz feijão, saco de farinha... Hoje,
quem come carne seca? Está cada vez pior a vida!
Não tem jeito, não.
Naquele tempo o pessoal tinha mais disposição para trabalhar, não é. O pessoal era mais alegre,
não tinha que ficar com medo de ser assaltado. Hoje,
você não pode sair de noite aqui! Fiz tudo a grade,
tudo de grade. A gente fica na grade e os vadios sol-
60
tos aí. Seis, sete horas já tranco o portão: tem só eu
e a mulher aqui! Naquele tempo, um Juiz de Direito
quando passava - o doutor Cleto - o pessoal parava
com todo respeito, no meio da estrada. Eu me lembro,
o doutor Cleto Toscano, quando passava, o pessoal
parava pra ele passar, cumprimentavam... Tudo bem
vestido. Hoje acabou isso tudo.
Terno e gravata! Era tudo direitinho, tudo direitinho. Antigamente... eu me lembro que a gente
fazia baile aqui. Aqui em casa mesmo já fez. Vinha
pr’aqui aquelas mocinhas. Fazia baile. Não era muita
gente não. Era na casa do vizinho, outro na outra casa - do Coronel Antônio Augusto - um homem muito
estimado aqui. Morreu... Me lembro das minhas namoradas... Já morreu tudo... O namoro era de noite,
de vez em quando conversava, mas nada de mão dada. Qualquer coisa diferente era um escândalo, sabe.
Hoje, tá um caso sério, não é? Absurdo!
Os bailes eram ali no “Comercial”. Ali em cima do Cinema Recreio, naquele tempo, tinha o clube. Tem o retrato aí. Era ali que eram os bailes, em
cima do cinema. Eu dancei muito ali, brinquei muito. Depois derrubaram ele, desmancharam e fizeram
aquela porcaria! Eles não deviam ter desmanchado
este prédio do Cinema Recreio. Eu tenho retrato dele
aí: por dentro e por fora. Olha aí no livro. Duas coisas
61
que eu fico com dó: a igreja e o prédio... Fizeram uma
reunião: o Padre Solindo com porção deles. Fizeram
uma reunião lá, houve votação se devia desmanchar
ou não. Muitos foram contra. Mas tem a maioria: a
maioria era a favor de derrubar. Quem ajudou muito
ali foi o João Peixoto, a pedra para aquilo tudo foi ele
que deu. Mas é uma pena... O cinema Recreio, por
exemplo, pra que desmanchar? Deixassem ele... Eu
achei um absurdo derrubarem aquela igreja, uma
beleza que era! Que fizesse esta em outro lugar, mas
que deixassem aquela! A igreja você conhece? Tem
ali o retrato dela. Olha que beleza de igreja aí! Olha
que beleza! Devia conservar... Antiguidade é que é
bonito. Desmancharam uma igreja dessa para fazer
essa igreja feia desse jeito! Moderna! Tudo antigo é
mais bonito! Eu acho horrível essa igreja! Aquilo
nem parece igreja! Esquisita, não parece igreja não!
Não gosto desta igreja não! “A primeira era muito
mais bonita que a de agora, não é?” (intervenção de
Wanda Kneip, filha). Mês de maio aí era uma beleza!
Não tem mais coroações não. No mês de maio, todo dia, tinha! Agora tem lá na Vila, não é? O padre
Antônio ainda conserva. Já fui lá, de vez em quando eu vou lá... No batizado da minha bisneta... Eu
já tenho, já vem pra quatro bisneto! E neto eu tenho
treze! Quando eu casei eu fui para o Rio... a primei-
62
ra filha foi passear em 1932. Eu casei em (19)21, vou
fazer cinquenta e oito anos de casado... Eu me lembro
quando o Pedro Dutra casou. Você ia a tudo, saía de
casa tudo de braço dado para o casamento. Aquela
fila parecia uma procissão. Não tinha carro, não tinha nada... Esses velhos aí, eu me lembro deles todos. Essas professoras... Dona Olinda, a Flávia Dutra,
mulher do Pedro Dutra... Ela ainda está viva, a Dona
Flávia mora no Rio com o filho dela.
Eu estive no Rio em 1927. Estive na “Força e
Luz”, depois fui para o Rio, o senhor Gabriel mandou eu ir pra lá. Lá fiquei um ano através da CIBS.
Mas eu adoeci... Depois papai não quis deixar eu voltar, senão era capaz de ter ficado lá. Eles não queriam
deixar eu sair. Antigamente eu ia para o Rio... Eu me
lembro que quando eu ia para o Rio de trem - tinha
que ir de trem - pegava o trem, chegava lá no Rio
às vezes dez horas... onze horas. Era uma viagem
boa. O Rio de janeiro era outra coisa, naquele tempo.
Eu me lembro da ocasião em que fui batizar a Nilza,
nós fomos de trem. Levamos uma matutagem1 para
comer no caminho... Eu me lembro que quando eu
vim do Rio, com o papai, pra todo lado via... enchia
1
) Expressão mineira para merenda, refeição rápida durante uma viagem.
63
a Estação. Todo mundo ia esperar o “expresso” ali,
de tarde, na Praça da Estação. Quando era dez horas, ia todo mundo para a estação para ver o pessoal
sair na Leopoldina - o trem que vai para o Rio, que
ia até o Rio. Quando vinha do Rio... vai tudo para a
Estação... Ali na Praça da Estação era um movimento naquele tempo! Tudo era despachado, vinha tudo ali... Gente, era um movimento danado, naquele
tempo. Não tinha essa praça. Eu me lembro que, eu
era menino, solteiro, rapazinho já, ficava passeando.
Tudo bem vestido. As moças vinham de lá e a gente ficava rodando ali no jardim, para lá e para cá. A
Praça da Estação, hoje, é quase a mesma coisa. Ficou
o prédio ali, aquela casa ali onde era o João Duarte...
Já derrubaram alguma coisa, não é. Mas o prédio ali,
do lado de lá, na Leiteria, é quase o mesmo. Estão
conservando o Hotel Villas. É bom a gente saber que
reformaram isso tudo... A Carcacena foi feita depois. Foi em 1922, eu me lembro quando fizeram a
Carcacena... A Praça de Santa Rita tinha um chafariz
que era uma beleza! Veio um tal de engenheiro e acabou com aquilo tudo: o chafariz, o coreto, as palmeiras... derrubou tudo! Era praça bonita! O chafariz era
uma beleza!
Isso aqui tinha um bando de andorinhas!
Quando chegava... às vezes, de tarde voava tudo!
64
Era bonito, por causa desse jardim... Aqui era onde
fazia o coreto pra leilão. Era do lado de cá. O jardim
foi pra frente... aqui tinha duas palmeiras... Banda
de música... Tinha a do Rogério Teixeira, tinha a do
Pierre. Mas a bonita era a do Rogério. Eu me lembro
é a do Rogério, por toda vida. Era uma coisa louca! O
Rogério Teixeira era um músico formidável! O cinema, antigamente, era mudo, mas quem tocava no cinema era o Rogério Teixeira, era a senhora dele, João
Ciodaro, aquela turma. Bonito, né. De vez em quando toca uma música, eu lembro dele...
Acabou tudo... O jardim era... era uma beleza
aquele jardim! Tinha banda de música, o coreto, o
chafariz, muito bonito! O cinema, né. Tem aquela foto ali do João Butiga, do lado ficava vendendo doce...
doce do João Butiga. Meu pai comprava umas cocadinhas dele. Ele ficava era do lado daquelas colunas,
ele ficava ali vendendo...
O bonde é uma coisa interessante, puxado a
burros. Ele ia até o colégio, o ginásio. Ele partia lá
da Vila, vinha aqui, lá do outro lado da ponte também, passava na ponte ali. Tinha três trilhos. Eu botava muita pedra debaixo da linha pra fazer ele descarrilar! Mas ia mesmo mais longe. Ia até no colégio.
Vinha lá da Vila, lá da Estação, passava na praça e
vinha aqui... Descia para a ponte de madeira.
65
Aqui era o colégio das irmãs, era aqui. E tinha
uma rua ali que era para a ponte de madeira, depois
eles desmancharam. Quando eles fizeram esta ponte
de metal, que é a ponte velha (hoje), eu me lembro. A
ponte velha era de madeira, viu. Ponte de madeira,
depois fizeram a de ferro. Acho que tem até o retrato
aí. Era aqui onde está o colégio das Irmãs. Era ali, tinha um prédio, acho que tem um retrato aí.
Quando houve a (gripe) espanhola, o doutor
Gabriel Junqueira era o gerente. Uma coisa horrorosa! Ele levou meu pai lá pra casa dele, pra tomar conta dele lá. As Irmãs Carmelitas tomou conta de lá de
casa, porque o papai é que fundou o orfanato para
elas. Tem retrato dele lá (no orfanato). Então elas iam
pra lá e ficou tratanto da gente. Naquele tempo as
Irmãs eram outra coisa... Eu perdi uma irmã...
Eu me lembro daquela turma velha, aquela
turma ali da Praça Santa Rita. O Alfredo Campos... Já
morreu todo mundo, os médicos daquele tempo, não
é. Naquele tempo não tinha... depois que eles fizeram
esse hospital aqui. Tinha um hospital lá em baixo,
muito pequeno. Era lá... quem vai lá naquela ponte do “Meia Pataca”, ali tinha um prédio que era o
hospital. Eu ainda me lembro daquele hospital. Certa
vez, eu estava até machucado, fui lá e tratei. Mas não
tinha recurso nenhum! Operação, quem tivesse que
66
fazer ia para o Rio. Aqui não tinha não. Os médicos
não eram operadores igual é hoje, não é? Hoje tem.
Hoje tem uma porção de coisa. Está caro, não é? É
verdade, não tinha esse negócio de aposentadoria.
Não tinha nada naquele tempo, não é?
Natal... Natal era aquelas mesas de doce que
era uma beleza! Eu me lembro. Aqui em casa, no mês
de São João, fazia festa de bandeirinha. A Wanda
fazia São João, chamava os outros pra tocar valsa...
A vizinhança, as crianças, tudo pra cá! Pé de moleque, arroz... Naquele tempo era bom! Era uma festa
de família, linda. O meu quintal era até na Avenida,
então fazia festa ali: fogueira, aquilo tudo... Todo o
ano era ali. Era aniversário de uma menina? Festa!
Aniversário de um, era festa!2 Cada dia numa casa...
Aqui dava também... Na casa do Luiz do Carmo, ficava aquela enxurrada... Brincando, jogava água, invadia a casa. É, jogava água e molhava tudo! Era água
mesmo. Tinha o chafariz ali na rua... Às vezes agarrava o sujeito e jogava dentro d’água! Domingo, como
eu já te falei, passeavam no jardim. Aquelas moças
2
) As festas eram nas casas de família. De primeiro, dava muita brincadeira
– brincadeira de laranja, de maçã – todas as férias de julho. Fazia laranjada,
lembra João? (intervenção de Wanda Kneipp)
67
todas passavam pra lá e pra cá. Tudo bem vestidinha,
né. Hoje, acabou isso tudo, não tem mais...
Carnaval, antigamente tinha esse negócio de
bolas de cera. Então tinha esse negócio que vendia,
que era uma bola: uns tinha perfume, outros não. Aí
jogava assim... pá... molhava o sujeito! O ruim era o
perfume. Jogava e molhava as costas do sujeito todo! Isso há muitos anos! Eu era garoto, menino, tinha uns oito... dez anos. Era muito animado, lança
perfume em cima. Tinha gente que jogava na vista:
doía. Outros gostavam de cheirar; era perfumada. Eu
mesmo comprava muito lança perfume pra vender.
Muito mais brilho! Muito melhor! Os bailes... faziam
fantasias. Em baile, cada qual fazia a fantasia mais
bonita! Hoje, o pessoal já esta tudo fantasiado aí, né.
Essas roupas de hoje, antigamente era fantasia! De
rua então era uma beleza! De rua tinha aqueles blocos. O senhor Emílio fazia os blocos aí. Muito interessante! Cantava aquelas mulatas, morenas, tudo! Fazia
até concurso para ver quem ganhava. Era animado
mesmo! Antigamente tinha o bloco do “Flamengo” e
do “Operário”: faziam aquelas coisas, que hoje não
tem mais... agora acabou... só do clube... O clube dos
viajantes era muito animado. Animava muito o carnaval aqui... A gente fazia no “Comercial” mesmo,
ele era muito animado! Tem aí a Climene Barroso,
68
que foi fantasiada. O Ciodaro, aquele pessoal, mas eu
não me lembro daquilo ali não. Era muito criança.
Eu fazia parte do Flamengo Futebol Clube, ajudava e tudo. Era Atlético, depois passou a Flamengo
Futebol Clube. Esses aí, todos já morreram... Ofir
Ribeiro, o Charrão, aquela turma boa. Jogava mesmo! Tinha o meu irmão, o Geraldo, que jogava muito bem! Eu me lembro daquele tempo do Flamengo,
que era uma beleza! As moças iam tudo pra lá. A sociedade ia toda assistir. Era uma festa: dia de jogo era
uma festa! Flamengo e Operário naquele tempo: era
caso sério! Antigamente havia mais amor. Ninguém
ganhava pra jogar. Hoje não, tudo é dinheiro! Eu gostava muito daquele tempo: era uma festa, era bonito!
Tem o Daniel Lopes, que era o presidente do... Osório
de Souza... Vinha time do Rio... Vinha time do Rio,
mesmo, jogar aqui! Naquele tempo a gente fazia sacrifício... Naquele tempo o campo não tinha grama,
era tudo poeira. Aqui na Avenida, o campo era aqui
na avenida onde está ali a “Cima”, a Igreja Metodista,
em frente ao Grupo. Armava circo ali. Naquele tempo o campo era aberto, quando vinha o circo... Fazia
circo é ali, do outro lado da “Cima”. O circo era ali, o
futebol era em frente...
Aqui na Avenida Astolfo Dutra fazia a festa das árvores. Deixa eu ver aqui... plantavam ár-
69
vores... era o prefeito, plantava árvores. Naquele
tempo tinha mais amor às coisas... Eu não lembro
não, eu era garoto... Isso aqui é a Casa Felipe. Aqui
a “Henriques Felipe”, é no fim da Avenida... Essa
Mecânica Cataguases era do Antônio Lopes. Já acabou. Ele quebrou... morreu... uma mecânica muito
boa, sabe.
Naquele tempo, a estrada era tudo de chão,
não é? Para Miraí, por exemplo, era uma estrada horrorosa! Era só aquele trenzinho de Miraí. O
trem... linha daqui pra Miraí. O único que tinha pra
ir pra Miraí era o trem. Naquele tempo não tinha estrada, não é. Depois começaram a fazer estrada, fizeram estrada para Ubá, né. Isso aí foi em (19)28 a
(19)30 mais ou menos... Não iam mais de trem, iam
de ônibus. Eles deixaram de ir de trem. O trem acabou. O Maroti foi um dos primeiros. Era do... Eu me
esqueço o nome dele... Ele botou uma linha de ônibus para o Rio. Eu esqueço o nome... O Maroti tinha
ônibus também...
Depois veio aquele negócio de fazer filme. Eu
estava mais ou menos com dezesseis, dezessete anos.
Até uma vez tomei parte, dançando lá. O Humberto
Mauro foi muito meu amigo. Quando o Humberto
Mauro fez a festa, eu iluminei a cidade toda! Tem um
livro aí, que é da festa dele, e estão me elogiando por
70
causa da festa. O Humberto Mauro é uma coisa muito formidável. Ele trabalhava em eletricidade, eu trabalhei com ele também. Começou a fazer filme aqui
em Cataguases. Foi aqui, aqui em Cataguases que ele
começou a filmar. Foi mais ou menos em (19)24, por
aí a fora. A Eva Nil... o Luiz Soroa... Eu me lembro,
tem eu dançando lá (no filme), eu fiz parte do baile...
Era ali na Estação. Chiquinho Mauro foi um dos artistas também, do “Brasa Dormida”. Eu estava sempre em comunicação com o Luiz Soroa, Eva Comello,
Humberto Mauro, Aghenor de Barros, o pai da Eva
Comello... A Eva Comello era fotógrafa, né, depois
desse negócio de cinema. Era uma criatura muito
boa, distinta! Foi uma coisa formidável! Até hoje ainda festejam a memória do Humberto Mauro. Eu trabalhei muito com Humberto Mauro, ele mexia com
negócio de eletricidade. Aqui o cinema por dentro.
Olha aí, viu? Tem um lugar aí que ficava a polícia. Eu
sou do tempo do Tom Mix... pagava seiscentos réis
para entrar...
Naquele tempo tinha muito jogo de bicho...
Existia mais do que hoje. Jogo de bicho é o jogo mais
sério que tem, não é?
Política naquele tempo era brava, mas eu era
amigo de todos eles. Por exemplo: me chamaram para vereador, eu nunca quis porque aqui se você fosse
71
para um lado... o outro lado ficava mal com a gente. De forma que eu nunca quis, tratava todos eles...
doutor Pedro Dutra era meu vizinho aqui. Era um
homem muito bom. Era brincalhão doutor Pedro. A
minha filha era pequenininha quando eu mudei para
aqui. O doutor Pedro passava a mão na folhinha e
falava:
- Folhinha verde, quem está com a folhinha verde?
Quem estivesse com a folhinha verde, ele dava bala. Politiqueiro... A política naquele tempo era
feia mesmo. Mas eu nunca quis salientar em política.
Sempre tratei todo mundo... Os Peixoto gostavam
muito... O Pedro Dutra também... Política, antigamente era uma coisa horrorosa... Eu já assisti tanta coisa
na política! Eu ficava de longe, via muita coisa, muita
injustiça em palavra do homem. Eu sabia a verdade,
mas ficava quieto. Hoje... já me convidaram para ser
vereador agora. Estou com vontade de entrar, sabe.
Estou animado porque eles estão querendo:
- Oh João, só o seu nome Kneip! Você pode entrar!
Vai atrás disso, vai!
Eu me lembro... fazia procissão do enterro... A
Rua Coronel Vieira, eles tudo jogava coisas... E das
portas e janelas, tudo com aquelas colchas bonitas
enfeitando... com jarros nas janelas por onde passavam... e bandas de música. Carregavam o Cristo:
72
era só gente maior, da alta sociedade. O Juiz, coisa e
tal, maior respeito... e a banda do Rogério atrás. Era
bonito naquele tempo, eu era garoto... João Butiga...
o Ciodário velho eu me lembro dele, o Paulinho
Fernandes... o telefone era da “Força e Luz”. O telefone atendia toda essa zona. Em 1920 ou 22 vendeu o
telefone pra “Telefônica”.
Não havia preconceito não. Eu não me lembro de preconceito não. Havia mais respeito, né...
Morei naquela casa, não tinha nada, só umas cobertazinhas, um barraco velho tudo bem arrumado. E a
“Força e Luz” era pequena também... Tinha o Luiz do
Carmo... a família do Augusto Cunha, gente importante! Era ricaço! Eu me lembro... só existia o Hotel
Villas... Tinha outro também - Hotel da Estação - era
mais pobre. Também acabou, derrubaram aquilo
tudo... Conheci toda turma antiga, mas esqueço é o
nome... Esqueci de muita coisa... eu podia ter dado
mais, queria dar mais ainda, mas eu ando muito esquecido.
Entrevistado em 5/7/1988 por Hedileuza Maria de Oliveira Valadares e
Maria José de Oliveira Paula.
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MARIA DA GLÓRIA
A L V E S S I L VA
DONA DE CASA
90 anos
Nasci em Cataguases no dia 28 de
novembro de 1901. Graças a Deus vou fazer noventa
anos agora, o mês que vem.
Meus pais eram brasileiros, nascidos aqui em
Cataguases também. Eu nem sei como é que eles casaram, aqueles dois. Ah, porque naquele tempo não
havia namoro, não podia namorar. Uai! Namorava...
um sentava lá, outro aqui. Sentar perto não podia
não. Eu não sei, mas eles viveram muito bem. Na
ocasião em que me conheci como gente, eu já estava
com uns seis, sete anos, oito anos, a gente já compreende, né. Graças a Deus viveram muito bem. A famíFoto: Operárias da Fábrica de Tecidos, Gilson Costa, s/d, acervo iconográfico do IBGE
75
lia da mamãe. Deram bom exemplo pra gente, ele era
muito bom.
Meu pai, Antônio José Maria, era carpinteiro.
Ele trabalhava em casa, né, fazia canoa, guarda-roupa, fazia malas, tudo ele fazia. Ele trabalhava no terreiro lá de casa. A pessoa precisava, ia lá pedia a ele,
e ele fazia, só de encomenda. Fazia sozinho. Era ele
só. Lá uma vez ou outra eu ajudava um mucadinho.
Comecei a trabalhar muito cedo, né, com dez
anos eu entrei na fábrica dos Peixoto. Trabalhei até
vinte e dois anos. Aos vinte e dois eu saí, fui trabalhar
com uma costureira - D. Elza. Com dez anos eu estava trabalhando na fábrica. Tinha uma com sete também, até morreu lá dentro, né. Ela ia apanhar uma
espula assim no chão, o cabelo dela - um cabelo muito grande, né - enrolou ela aqui, ela morreu. Ainda vi
ela morrer assim. Até (que) parasse a máquina...
(Eu) trabalhava nos teares. Até que os teares
não era muito pesado não. Era um tear menor. Não
é aquele grandão não. Aqueles que faz maior, né, as
toalhas, o americano, o pessoal que tecia. Tinha o
estreito e tinha o largo. Era o mesmo horário (dos
adultos). Entrava às seis horas da manhã. Saia às
dez pra almoçar, voltava às onze e saia às seis da
tarde. Quando fazia serão saia às cinco e voltava às
seis. Quando estava apertado de pano pra entregar, a
76
gente entrava às seis da tarde outra vez e saia às dez
da noite. A gente ganhava por metragem. Se tivesse
cem metros ganhava os cem, conforme o tecido que
a gente fizesse, os metros. Era pago por metragem.
Ah, tinha os mestres, né, pra ensinar a gente. Era fácil! Eu graças a Deus não tinha nada que queixar não.
Meu mestre era muito bom. Ah... me lembro só do
seu Olinto, mas não sei o sobrenome dele não. Era
italiano. Depois de doze anos eu saí, ele ainda ficou.
O chefe era o Manoel Peixoto. Manoel Peixoto, José
Peixoto. Eram os donos da fábrica. Eles tratavam a
gente muito bem, né, mas se falhasse em alguma coisa eles também chamavam a atenção. Era muito bom
pra gente.
Uma moça me chamou pra costurar com ela,
eu sai e fui aprender a costurar.
Uma senhora que tinha aí. Aí fui aprender a
costurar, mas não fiquei lá também não. Não achei
bom costurar não, era muito parado. Depois voltei
pra fábrica de novo, trabalhei uma porção de anos
ainda. Naquele tempo não tinha aposentadoria não.
Não tinha nada não minha filha. A gente saía com
uma mão atrás e outra na frente. Não tinha nada disso não.
Ah, meu filho! Pra te falar a verdade... antigamente a gente não tinha infância não... Porque... tra-
77
balhava fora, uai! Chegava em casa cansada, né, às
vezes ia até dormir, não tinha esse negócio de brincadeira, brinquedos, essas coisas não. Eu tenho muita
lembrança não. Eu morava em frente à fábrica, numa
casa velha que tinha lá. Nós morávamos lá. E de maneira que eu não me lembro bem não. A mamãe era
muito... como se diz, era severa pra gente. Não deixa
a gente brincar com qualquer moça, qualquer criança.
De maneira que a gente tinha aquele respeito. Ficava
mais dentro de casa.
Estudei. Com sete anos, quando inaugurou o
grupo (Coronel Vieira) eu entrei. Entrei no primeiro
ano, fiz até o terceiro, o quarto não fiz não. Eu não
podia comprar material pra gente estudar. Quando...
a gente pedia coisa a ele, às vezes um caderno, um
lápis, uma coisa assim, papai dizia que não tinha
dinheiro pra comprar. Ele ganhava dez... era dez
tostões por semana. Eu não sei como era o dinheiro antigo. Dez tostões ele ganhava por semana. Era
eu, Conceição, papai, mamãe e o Nonô, meu irmão, Nonô, sapateiro. Cê lembra dele? Tinha as tias.
Quando a vovó morreu, foram duas tias morar com
a gente também. Aí quando apertou aqui na cidade
nós fomos pra roça. Fui criada lá no Estado (Colônia
Major Vieira). Aí perto onde morreu aquela menina
do Francisco Toledo (Raquel). Naquela lagoa que ti-
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nha aquele negócio de fazer travesseiro... paina. Ela
morreu afogada ali, né. Minha casa ficava lá em cima. Foi antes de sete anos que nós viemos pra cidade.
Nós viemos pra cidade estudar. Depois quando eu...
quando nós estudamos, eu, Nonô e Conceição, voltou pra roça de novo. Eles davam a terra pro pessoal
plantar - O Estado. Ali papai plantava milho, plantava feijão, a gente ajudava, né, na roça também. Tudo
que a gente fazia era da gente.
Iiiih, mas era tão bom! Eu achava bom lá no
Estado. Eu achava muito bom! Eu morava lá no
alto do morro, longe. Lá onde ele (o vizinho) gritava a gente ouvia lá em casa. Era um nosso primo. Chamava Alberto. Mora lá em cima no morro.
Vizinho perto mesmo não tinha não... Não sei quem
foi morar na casa lá, porque quando nós viemos pra
cidade não voltamos mais lá. Dizem que aquela casa
está de pé até hoje. É no caminho de Itamaraty. A última vez que eu passei pra ir em Itamaraty... da estrada a gente via a casa lá nos fundos.
De lá do Estado a gente vinha até na Igreja, de
dia. Nasci na Metodista. (Meus pais) já eram metodistas. Fui criada ali naquela igreja perto da cadeia.
Ali que eu fiz a minha “Profissão de Fé”. Sou metodista desde que nasci, graças a Deus! Alfredo Duarte,
Juvenal Pereira, Seu Guerra - teve muito pastor
79
aqui - Bittencourt, acho que João de Barros também.
(Quando passou) pra Avenida, o Reverendo Kennedy,
um americano, era nosso pastor. Tinha uns outros
(pastores) porque demorou a fazer a igreja. Por causa
de dinheiro, por causa de material. O Afonso Pires
é que fez a igreja. Ele era construtor. Tem aquela
Chácara Pires, lá na Vila Reis, era dele também.
Ah, me lembro quando puseram luz elétrica,
quando furaram os buracos para fincar os postes pra
botar a luz. O Nonô até ainda caiu dentro de um buraco, quebrou um braço ou a perna - mamãe encanou. E me lembro quando puseram luz, mas era uma
luz igual querosene. Acendia às seis horas da tarde
e apagava às dez horas da noite. Ficava tudo escuro. (Antes) tinha lampião na rua. A gente não saía de
noite na rua não, tinha medo. Não iluminava muito bem não. Mas... um negócio assim que eles botavam em cima de um ferro. Botava um aqui, botava
outro dez metros mais distante. Quase que não iluminava nada não. Devia ser querosene, porque tinha
um homem que chegava com uma tocha e acendia
ele. Tinha um homem que tomava conta. Às dez horas ele voltava apagando tudo. Tinha só umas ruas
assim, só aqui no centro é que tinha luz. Pra outros
lados não tinha não. Cataguases antigamente era isso aqui, só... eu conheci isso aqui tudo mato. Da es-
80
quina aqui até lá embaixo no rio tudo era mato (Rua
Alfredo G. Barroso). Conheci tudo mato isso aí. Praça
Rui Barbosa toda cercada de uns pedaços de trilho.
Tinha uns buracos, passava uns arame e cercava a
praça toda. Cavalo... era porco, cabrito, tudo que andava na rua entrava pra comer as plantas, né. A gente tinha um portãozinho... você entrava em frente a
padaria Santo Antônio e saía lá em frente o Bemge.
Tinha outro portãozinho lá. Você entra ali e saía lá.
Não podia deixar o portão aberto. A gente tinha que
entrar, passar e fechar. De noite, a gente, às vezes, ia
sentar lá mucadinho, mas não podia porque era muito escuro, tudo lampião. A gente tinha medo. Mamãe
não deixava a gente sair de noite por causa da escuridão, o lampião quase não iluminava nada. Perigo
mesmo não havia, mas você sabe, o perigo está em
toda parte, né.
Eu andei muito de bonde. Pagava duzentos
réis pra andar de bonde, mas eu andava de graça. Eu
morava na Praça Santa Rita na ocasião dos bondes.
Puxado a burro, né. Tinha, acho que três... três ou
quatro bondes. A linha lá na ponte... aquela linha o
bonde não chegou a estrear ela não. O percurso era
na Praça Santa Rita, descia, virava ali no Mulambo
- aqui na Praça Rui Barbosa, aqui em cima - virava,
descia até lá na Estação. Pra lá da Estação tinha uma
81
casa velha lá onde guardava os bondes e os burros.
Eram quatro burros que puxavam o bonde. Não, na
Avenida não (Avenida Astolfo Dutra). Nessa ocasião
não tinha Avenida não, era tudo mato e tinha aquele córrego. Aquele córrego que tem perto do Felipe
(Casa Henriques Felipe), ele passava lá perto da Força
e Luz, por ali assim. Depois passaram ele pra cá para
poder passar a linha de trem. Ali não podia passar
o bonde, porque era tudo mato. Conheci a Avenida
desde ali debaixo, onde foi a Carcacena, até lá em cima, na Usina de Açúcar (atual Praça de Esportes e almoxarifado da Prefeitura). Conheci aquilo tudo mato,
não tinha casa nenhuma não. Era tudo mato, foi tudo
capinado ali. Só sei que eu andei muito de bonde e
o moço não cobrava nada porque era garotinha, tinha idade, mas era muito magrela, ele achava que eu
era nova e deixava eu andar. (Funcionava) dia inteiro, à noite não, até seis horas da tarde. (Era) mais pra
passear. Ih... tinha ocasião que ele enchia de gente. O
burrinho coitadinho, é que cansava, né. Era muito
bom aquele bondinho. Eu sei que tinha um condutor
e tinha o que recebia as passagens, né, que a gente
levava, mas não lembro muito bem deles não. Eram
muito amigos da gente, mas não me lembro não.
O Hospital era ali onde era o beco, Vila Duarte.
Ali era o Hospital antigo mesmo. Era ali, nas du-
82
as partes ali. Aqui, nessa rua de lá. Rua Professor
Alcântara. E, aquela escada. Ali que era o Hospital.
Vila Duarte, agora é Vila Adolfo de Carvalho (próximo à antiga Telemig). Até uma ocasião tinha uma
Dona que morou lá, numa casa daquela, disse que de
noite as coisas mexia na casa dela, tirava as panelas
do lugar botava em cima do fogão, parecia que mexia
nas panelas. Diz que era os defuntos que... alma dos
defuntos que ficou lá. Falei assim:
“Ah deixa de ser boba menina! Quem morre
não volta aqui não”. “Ah, mas mexe sim! Mexe nas
minhas panelas a noite inteira”. Bobagem, né.
Na inauguração do Hospital, onde é hoje, eu
fui. Acho que foi... o mês eu não me lembro, mas foi
em 1923. Aquela ponte metálica... lembro da inauguração dela também. Agora, essa última inauguração
que teve quando pintaram ela e arrumaram, eu fui
também. Conheci (a ponte de madeira). Era onde...
sabe lá do outro lado da ponte? Tem rua que tem
uma meia entrada assim, ali que era a ponte. Saía lá
no colégio das Irmãs. Eu um dia eu vim com a mamãe pra Igreja, nós viemos todos juntos, eu enfiei o
pé no buraco, a tábua quebrou comigo, quase que eu
caí dentro do rio, lá na ponte de tábua. Iiiih! Mas tava
muito velha, precisava tirar mesmo, na ocasião que
fizeram essa de ferro. Alemã, né, acho que é alemã.
83
Num instantinho construíram a ponte. E desmancharam a de lá. E teve gente que chorou, por tal ponte
ter acabado, a ponte de madeira. Todo domingo eu
passava nela pra ir à Igreja. Vinha lá do Estado a pé.
Passava por ela e saía onde é o colégio das Irmãs hoje.
(Ali) não tinha nada não. (Tinha) uma igrejinha pequenina que tinha lá. Uma capelinha. Atravessava a
ponte, ia pra Igreja. Vinha nessa perto da cadeia, porque não tinha outra lá não.
“Da Maria Fumaça”? Lembro, muito mesmo.
Andei pra Miraí. Era a “Maria Fumaça” que ia pra
Miraí, aquele trem velho, aquela maquininha pequenininha. Era uma fumaçada mesmo! Eu fui muito a
Miraí na “Maria Fumaça”. Quando a minha amiga
casou que foi morar lá, eu ia lá sempre. Era a “Maria
Fumaça” que rodava. Parecia que era muito longe.
Era tão pertinho! Ia uns dez (passageiros), quase não
ia ninguém não. Se tivesse gente para embarcar ele
parava (em São Diniz), se não tivesse não parava não.
Depois ia até Glória... Sereno, Glória. Depois tinha
um lugarejo pra lá, aquele parava também. Chegava
em Miraí num instante, dentro de uma hora a gente chegava lá. Miraí era muito atrasado também, né.
Conheci muito Miraí quando Lila Poyares morava lá.
Lembro! Lembro muito! Antiga aquela chácara! Era menina e já conhecia aquela chácara, era mui-
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to bem tratada. Conheci o Seu João Duarte também.
Quando eu trabalhava na fábrica passava lá, o Seu
João Duarte tava lá, no escritório, naquela chácara
em frente ao Hotel Villas, naquela chácara que hoje
está acabando, né. Ele mesmo trabalhava no escritório. Era português. Dona Catarina era... diziam que
era amiga dele. Eu não sei não. Era uma portuguesa,
morava lá. A dona Catarina era uma senhora já... de
quase uns cinquenta anos mais ou menos, quando eu
conheci ela. Era bonita! Ficava sempre no portão, a
gente passava pra fábrica, né, eu abanava a mão pra
ela. Ela morava com seu João Duarte, do café.
Humberto Mauro... me lembro. Ele era de cinema, né. Eu fui lá em Volta Grande pra ir na casa dele, mas não encontrei com ele não, porque ele estava
viajando. Humberto Mauro foi muito amigo da gente: ele, os irmãos dele. A Bebe, a mulher dele, era da
nossa Igreja. Um dia desse, um sobrinho meu foi lá
(em Volta Grande) e disse que a casa dele ainda está
lá. Acho que é museu. Diz que é uma chácara bacana
mesmo lá, casa dele.
A Eva Comello eu conheci ela com dois anos.
Dois aninhos, quando ela veio para aqui. Trabalhava
no cinema. Eu conheci muito a Eva, foi muito minha
amiga também. Pai dela tinha um cinema aí, acho
que tinha um cinema aonde é a padaria do Nelo,
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por ali assim. E, eles faziam filmagens. Depois mudou aqui pra rua... aquela rua que desce pra cadeia...
É Marechal. E ela morava ali com a mãe dela. Ele
(Pedro Comello) era italiano. Dizem que vieram fugido, né. Veio a Eva e veio o irmão dela. Era um casal
só que tinham. Dona Ida que é mulher dele, mãe dela.
Iiiiih!! Rosário Fusco, eu conheci ele chupando
bico com dois anos. O filho dele, o François, teve namorando uma neta minha e então a gente teve lembrança do pai dele. Eu passava às vezes ali em cima,
ele morava prá lá daquele botequim, indo pra praça
(Rui Barbosa), numas casas que tem ali ainda. Perto
da Canuta por ali assim. Eu passava na rua, o Rosário
Fusco estava assentadinho chupando bico. Depois
que ele cresceu, casou... ele foi pra França, né, foi ser...
o que ele foi ser na França? Ele ia ser um negócio na
França. Chegou lá encontrou aquela francesa e casou
com ela, né, depois ele veio pr’aqui outra vez casado.
Morou lá em cima na Avenida, o François nasceu lá.
Dr. Francisco eu lembro, eu lembro porque trabalhei na fábrica, ele estava sempre lá. Francisco, o
João, o José, o Manoel - Manoel careca.
Dr. Norberto? Me lembro. Aquele... um terreno que tem lá em baixo do pontilhão grande, aquele
terreno à direita ali, onde é a fábrica de papel, onde é
a... aquela química (Indústria Química), por ali assim
86
tudo era dele. Diz que ele tinha doado aquilo tudo
pro hospital. A fazenda da fumaça também, lá em
Santana, deixou pro hospital. O Seu Anízio Pinheiro
ficou tomando conta. Ah, esse, Cataguases tem muita coisa... as pessoas deixavam uns pros outros sem
ser deles. Às vezes deixava uma coisa pro fulano,
quando ia ver a coisa era do outro muito diferente. É.
Não tinha nada. Não tinha escritura, não tinha papel
nenhum.
Quem conheceu Cataguases como eu conheci! Rua tudo chão! As fábricas lá embaixo. Tudo desorganizado, né. Se a gente perdesse hora era multado em dois, dois mil réis, que era naquela época.
Descontava no pagamento da gente, quando ia pagar.
Perdesse hora de manhã podia entrar pra trabalhar,
mas tinha que pagar os dois mil, dois mil réis que
eles falavam. Levava todo dinheiro que a gente ganhava. Seu Manoel era muito ruim pros operários.
Seu José não, Seu José era muito bom. Altamiro...
mas o Manoel era muito ruim.
Eu só trabalhei naquela lá embaixo (Irmãos
Peixoto). Trabalhei lá 12 anos. Depois de 12 anos
papai me tirou. Achou que eu estava ficando doente, estava emagrecendo muito, me tirou de lá. Em
uma ocasião quase que eu fiquei tuberculosa, uai!
Alimentava mal e trabalhando naquela poeirada!
87
Tinha o sanatório lá em Barbacena, já tinha uma parte
do sanatório separada pras operárias daqui. Numa
ocasião, foram cinco de uma vez pra lá, pro Hospital.
Não havia remédio pra isso né. A gente passava mal
e tinha que suportar tudo. Quando papai me tirou
da fábrica eu estava muito doente. Ele fez um remédio no leite com uma porção de coisa pra mim tomar.
Foi quando eu fiquei mais forte. Fábrica não serve
não, a gente toma muita poeira. Hoje tá outra coisa.
Naquele tempo a gente entrava às seis da manhã, ia
até às seis da tarde e voltava... vinha em casa jantava,
voltava e saía às dez da noite. Quando estava muito apertado de pano, de pedido, fazia serão. Um fio
que desse defeito no pano a gente tinha que pagar
ele. Quando a gente recebia uns trocadinhos já era
por milagre de Deus.
Trabalho e Igreja. Trabalhava na fábrica, entrava às seis horas da manhã e saía às dez da noite,
né. (lgreja) aos domingos e quando tinha reunião das
moças eu ia também. Mas era mais só aos domingos,
porque, às vezes, dia de reunião a gente não podia ir,
né, por causa da fábrica. Cansava muito também. O
serviço. A fábrica cansa muito. Cansa mesmo.
Olinda Neves, Alice Neves. Elas eram minhas
amigas inseparáveis, essas duas, morreram no Rio.
Acabaram. Tem a Zizinha Marinho também. Era me-
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todista também. Morava lá na Vila. Antigamente a
gente não tinha tempo de ter amiga não. Porque trabalhava fora, estava fora, estava sempre em casa ajudando a mamãe no serviço da casa. De maneira que
a gente quase não tinha tempo de sair com as amigas
não. Encontrava um mucadinho no domingo na igreja.
(Praça) Lá uma vez ou outra, que a mamãe
não gostava não. Ela não gostava que agente saísse,
principalmente para ir na praça. Quando a Olinda e a
Alice iam lá em casa pedir, ela deixava dar umas voltinhas. De lá mesmo ia pra Igreja, da Igreja vinha pra
casa. Mas era muito difícil passear assim. Não é igual
hoje: filhas às vezes sai de casa, a mãe nem sabe onde
estão andando. Naquele tempo, a gente tinha de falar
aonde ia. Às vezes ela até mandava o Nonô atrás pra
ver se a gente estava no lugar que a gente pedia. Era
tão severa assim e graças a Deus eu queixo nada, eu
acho que estava muito bom, porque eu fui uma chefe
de família, né, minhas filhas me obedecem até hoje,
são muito boas pra mim.
De noite tinha que ir pra Igreja. Carnaval...
nunca brinquei em carnaval. Mamãe não deixava
não. Circo era proibido. Metodista não ia em circo
não. Uma noite tinha um negócio que ia haver lá no
circo, não sei o que foi, eu sei que foi muita gente,
muito metodista. Aí o pastor não pôde... não deixou
89
de chamar atenção, mas não castigou ninguém não,
porque foi muita gente, né.
(Naquela época) era muito melhor. Parecia que
havia mais amor entre os crentes... No dia da inauguração da Igreja nova, lá na avenida, nós saímos a
pé ali de perto da cadeia, fomos cantando hino até
lá. Passamos pela Prefeitura e descemos aquela rua
da “Cima” cantando hino, até lá na inauguração. Dia
vinte dois de julho a inauguração da nossa igreja,
mas não lembro o ano não (30/7/1922). Todo mundo tinha que ajudar. As crianças da Escola Dominical,
todo domingo, levava um tijolo. Tinha que levar um
tijolinho e botar lá. Foi construída com a maior dificuldade aquela Igreja. Até o Pires trabalhava de graça. Não cobrava pra fazer, nunca cobrou um tostão
pra fazer a Igreja. A gente dava lá uns trocados a ele,
mas que ele cobrava não.
Pra te falar a verdade, não me lembro da enchente quando eu era menina, quando eu era mocinha. Agora, só me lembro de uma... eu morava na
rua do... Rua do Cabral (Dr. Sobral). Eu lembro de
uma que foi lá no meio de nosso quintal. Chegou
aqui na pracinha (Sandoval Azevedo), aqui tudo. O
meu quintal, onde eu morava lá em cima, era um
morro, de maneira que dava no meio do morro. Só
me lembro daquela enchente grande que dava. Era
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solteira ainda, morava ali, morava com mamãe o papai, a Conceição. Não me lembro de enchente que dava não. (Agora) a enchente chega até aqui. Qualquer
chuvinha que dá vem enchente. A Déa tinha limpado a casa o ano passado. Quando foi esse ano (1991),
princípio do ano, foi que deu enchente... Ficou tudo
sujo outra vez. A gente não tem segurança.
Lembro da “espanhola”. Papai ficou muito ruim! A mamãe deu chá de erva-cidreira, aquela
erva-cidreira de capim, fez um chá bem forte e deu
a ele com um negócio lá, com azeite, não sei. Ele teve ruim com a “espanhola”! Uma febre! Era febre só
que dava na gente, mas eu não tive não. Eu trabalhava na fábrica, continuei trabalhando. A Lelé, minha
tia, teve também. Teomília que ela chamava. Sarou.
Mamãe deu chá de erva-cidreira a ela com azeite de
mamona, ela sarou. Papai também. Morreu depois. A
única que me lembro de epidemia foi a “espanhola”.
Não me lembro mais de nenhuma.
Ah, a gente dava remédio caseiro. Eu dava
remédio caseiro. Eu às vezes fazia. Plantava em casa hortelã. Tinha poejo, tinha tudo em casa. Adoecia
com gripe... qualquer coisa era chá de mato que eu
dava. Dava resultado. Médico uma vez na vida e outra na morte. Porque não podia pagar médico, mesmo
barato do jeito que era, né. Dr. Miranda... Dr. Walter
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ali que é antigo... o mais velho é o Dr. Miranda. Tinha
outro eu não me lembro bem não. Dr. Otônio era
muito bom. Nunca fui no médico. Ganhei oito filhos.
Parteira. Não, nunca frequentei médico, nunca consultei com médico, este período, nascia tudo em casa.
Na hora que começava a passar mal chamava a parteira. Era Dona Rosa Amaral, mãe do Antônio Amaral
da Igreja, era da nossa Igreja também. D. Rosa...
“D. Rosa Parteira”. Graças a Deus em três dias levantava, ia cuidar da minha obrigação e não tinha nada.
Era muito desdeixado o comércio. Era ruim
da gente andar, ruim da gente comprar as coisas, tudo muito... a gente achava caro porque a gente não
tinha dinheiro, mas a gente comprava com muita
dificuldade, muita dificuldade mesmo. Me lembro
do Joaquim Peixoto Ramos, que era ali na esquina
onde é o Banco Nacional hoje. Era do tamanho do
Banco. O Fortunato era em frente da Marcelus, o seu
Joaquim Carvalho era ali pra baixo também; depois
lá em baixo tinha o Felipe, o Felipe é antigo ali. A
Nacional também.
Não tinha armazém grande da gente comprar
as coisas não. Era tudo pequenino, igual aquele boteco que tem ali em cima. A gente ia, comprava uma
coisa aqui, comprava outra lá. Custava encontrar
aquilo que queria. Fome graças a Deus, nunca nin-
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guém passou, né. Todo mundo plantava, todo mundo colhia, né, trazia pra cidade para vender.
Não! Que calçamento! Não tinha nada, era
chão puro mesmo. Ah, o calçamento foi pouco tempo.
Eu estava até em Brasília quando calçaram a minha
rua aqui, resolveram calçar ela.
Me lembro no outro lado da ponte, do Flamengo. Lá naquele fundão (atrás da Industrial), lá tinha campo do Flamengo. Iiiih! Eu ia muito a futebol
lá. Tudo uns fulasqueiros! Vinha de Miraí, vinha de
Sereno jogar aqui; a gente ia lá pra distrair. Ah, futebol
antigamente era muito ruim, eu acho, não sei, porque
eu não conheço, né, negócio de futebol. Mas eu gostava do Flamenguinho, quando tinha o campinho dele
ali, né. Onde é o SESI, por ali tinha um campinho do
Flamengo, bom mesmo. Todo joguinho do Flamengo
eu estava lá, torcendo prá ele. Era uma vargem ali.
Ah, mais alegre? Ah, acho que quando eu
me casei. Que eu gostava muito do Antônio, né, ele
era um mulatinho, ele era um mulato bem fechado.
Mamãe não gostava muito não, mas deixou eu casar.
O dia mais triste da minha vida foi quando ele morreu. Me deixou com os filhos tudo. E, (as moças) casavam muito cedo, mais eu casei com 30 anos. Não
sei porque eu... fui conhecer o Antônio muito tarde.
O Antônio trabalhava na Força e Luz, depois passou
93
pra telefônica. Quando nós casamos ele trabalhava
na telefônica. Eu casei no dia 30 de setembro de 1931.
Se meu marido tivesse aí... eu fazia sessenta anos de
casada. Nós casamos e fomos pra Muriaé. (Depois)
viemos pra Leopoldina, de Leopoldina fomos pra
Volta Grande. Em Volta Grande fiquei cinco anos. A
Déa, o Udnei, a Loló são nascidos lá em Volta Grande.
Depois voltamos pra Cataguases e estamos aqui até
hoje. Meu marido morreu e nós ficamos aqui. Eu morei lá na Vila naquele beco do Agustinho Rezende,
um beco que tinha ali. Depois morei na Vila Minalda,
e na Vila Duarte. De lá é que o Antônio comprou essa
daqui. Foi a Companhia que comprou pra nós e foi
pagando, foi descontado no ordenado dele, né, mas
quando foi daí a nove meses ele morreu. Ficou um
tanto ainda para pagar e eles perdoaram a dívida,
não cobraram não. Eu fiquei com a casa.
Eu acho que... pouquinho mas tinha (uma pensão). Mas eu custei boba! Passou acho que sete meses sem receber um tostão. As meninas trabalhavam
ali na Nogueira embrulhando balas e o Udmar lá na
farmácia do José Esteves, é que ajudava. (Tive) oito.
Cinco mulheres e três homens. Graças a Deus são todos oito vivos: todos casados.
Ah, Gláucia! Pra te falar a verdade, minha filha,
eu acho que antigamente era mais fácil. Não havia
94
dinheiro não, mas era fácil. Ah, porque as crianças
eram obedientes. Hoje se vê crianças muito rebeldes
pros pais. Os meus filhos, graças a Deus, nunca me
deram trabalho. Nunca me desobedeceram, mesmo
depois que o pai morreu. Eles me ajudaram muito,
principalmente o mais velho, o Udmar. A vida, acho
que era mais fácil, as crianças tinham mais vontade
de estudar. Mas, (ao mesmo tempo) era muito difícil.
Eu ganhava... às vezes eu pedia no grupo um caderno, folha... aquelas folhas de almaço que eles precisavam, eu pedia tudo no grupo pra eles, eu não podia
comprar. Eu recebia muito pouco, né. Estavam todos
dentro de uma casa ainda, todos comigo.
Eu acho que sou tão feliz! Graças a Deus! Fui
feliz no meu casamento, um marido muito bom.
Tenho saudade dele até hoje. E meus filhos também
são muito bons pra mim. De maneira, que a única
coisa que eu tenho que agradecer a Deus é a bondade dos meus filhos pra mim. São muito bons. Bons
mesmo!
Entrevistada em 3/10/1991 por Gláucia Siqueira e José Luiz Batista.
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MARIA MAGALHÃES
PEREIRA
TECELÃ
67 anos
Sou de Astolfo Dutra, meu pai é
de Astolfo Dutra, minha mãe é de Astolfo Dutra.
Antigamente era Porto de Santo Antônio, depois
passou à cidade de Astolfo Dutra. A minha mãe
é Carolina Maria de Jesus. Meu pai é Aristides
Magalhães Pereira. Eu nasci em 1925. Então, eu gosto
muito da minha terra, sabe. Eu adoro Astolfo Dutra,
mas tem tanto tempo que eu não vou lá!
Eu vim muito pequena pra Cataguases, sabe.
Naquela época, eu era muito pequenininha e gostava muito de brincar no jardim... Corria aquele jardim
Foto: Maria Magalhães Vieira, 19 anos, Rainha dos Operários, Indústria
Irmãos Peixoto, s/a, 15.05.45, Arquivo Instituto Nossa Senhora do Carmo
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de Astolfo Dutra... Eu brinquei muito naquela praça
com as outras colegas, sabe? Brinquei... Eu não saía
da Igreja. Eu era pequena, podia ter uns quatro ou
cinco anos, mas eu gostava muito de ajoelhar nos
pés de Nosso Senhor dos Passos e Nossa Senhora
das Dores.
Ficava encantada de ajoelhar ali... Eu tenho
muita vontade de ir em Astolfo Dutra... Ainda vou,
eu tenho conhecidos antiquíssimos... é pertinho, mas
minha luta não deixa eu ir. Sempre tem uma coisa
pra resolver todo dia! Faço uma coisa, faço outra...
Então, nunca chego a apanhar o ônibus pra poder ir
à Astolfo Dutra... Mas qualquer hora vou aparecer
lá. Lá tem um senhor que eu quero muito ver, compreendeu. Ele chama Rui, sabe eu não sei o sobrenome dele, porque eu era pequenininha... Ele tinha
venda, eu comprava muito doce na mão dele, sabe.
Rui... eles eram da família dos Florianos... São pessoas assim que a gente tem uma recordação de infância,
compreendeu?
Nós... o papai tinha uma casa muito grande.
Papai possuiu casa, uma casa muito grande, sabe? O
meu pai comprava café, entendeu. Ele é um Senhor
de Camargo, Joaquim Carvalho, que eu não cheguei
a conhecer. A nossa casa era grande! O salão de pôr
café também era grande! Então, meu pai comprava
98
café junto com esse senhor Joaquim Carvalho, mas
veio uma época... eu não sei te explicar que época
é essa... Foi uma febre de café, sabe. Então meu pai
quebrou junto com Joaquim Carvalho também3. Não
sei te dar uma explicação porque eu era criança, naquela época. Então, meu pai vendeu a casa lá a troco
de outra casa, pra poder vim pr’aqui. Nem me lembro mais o nome do homem que comprou. Naquela
época tudo era baratinho, né. Eu era pequenininha e
achei ruim com meu pai de vender aquela casa! Mas
o homem que comprou, dando outra casa a meu pai,
voltou um tanto a ele, compreendeu: dinheiro, porque nossa casa era um terrenão! Uma casa grande,
um terreno muito grande, fizeram um prédio nesse
lugar! Então nós viemos pra Cataguases.
Nós moramos ali naquela casa do Francisco
Rossi, onde é a Rodoviária. Eu conheci o Francisco
Rossi, sabe, tava velhinho... Naquela época eu era
criança... Então, nós viemos pr’ali, nós moramos...
nós mudamos também para vários lugares aqui, depois que meu pai vendeu... Meu pai chegou a comprar uma casa, ali na Rodoviária. Ele veio pra cá pra
gente poder trabalhar, pra minha irmã mais velha
entrar na fábrica, sabe. O meu pai começou a conser3
) Crise de 1929, com a quebra da bolsa de NY.
99
tar máquinas, concertava relógio, punha mesa nas
máquinas... muito caprichoso, muito! Depois ele viveu disso. Era tão inteligente que na mocidade dele,
ele fez um moinho sem ninguém ensinar! Moinho
d’água, sabe, porque ele já morou na roça também.
Isso não é do meu tempo não. Eles que contava e eu
tava sempre ouvindo as conversas, né? Então ele fez
um moinho na roça. Você tá vendo aquela caixa que
tá ali? Ela tem mais de cem anos! Aquela caixa ali
foi do tempo do meu pai. É relíquia! É uma madeira
roxa, sabe. É relíquia porque ali ele guardava roupa,
ali em cima daquela caixa ele trabalhava. Aqui em
Cataguases consertava máquina, consertava relógio,
compreendeu? Depois ele vendeu a casa dele aqui...
não comprou mais. Nós ficamos sem casa. Aí, você
sabe... Mas naquela época o meu irmão Elias estava
trabalhando, a minha irmã Dalila estava trabalhando... Eu não, eu ainda era muito pequena para trabalhar. Eu tava estudando ainda, né. Eu estudava no
Grupo. Eu era pequena ainda...
Eu estudei aqui no Grupo Guido Marlière. Eu
só tenho o terceiro ano. Não estudei mais não, sabe?
Vendo os trabalhos da minha mãe, do meu pai, dos
meus irmãos, um dia eu cheguei perto da minha mãe
e falei assim: - Minha mãe, me tira do grupo. Eu paro
de estudar. Vou trabalhar para ajudar a senhora.
100
Aí resolveram. Naquela época eu tava com
treze pra quatorze anos. Eu fiz quatorze anos, a minha irmã pediu serviço pra mim. Aí o Onofre Correa
Neto arrumou o serviço pra mim. Minha irmã entrou
na Indústria Irmãos Peixoto não sei a época. Eu entrei na fábrica com quatorze anos. Eu fui criada dentro da Indústria Irmãos Peixoto. Eu não arrependi de
ter parado de estudar, porque eu gostava muito de
trabalhar na fábrica. Eu fiquei trabalhando só na fábrica, foi uma coisa muito boa pra mim. Eu fui criada
dentro da fábrica porque quatorze anos, pra chegar
até o ponto que eu cheguei... trinta e dois anos... Eu
trabalhei trinta anos e me aposentei. Mas tive que
trabalhar mais dois anos para pagar o INPS. Porque
a gente às vezes falha porque fica doente, né, fica por
conta do INPS. Então, aqueles dias, aqueles meses
que a gente falhou é descontado. Então, eu trabalhei
trinta anos. E quando eu me aposentei, eu fiz aquela
festa pros operários! Convidei os operários pra tomar uma cervejinha na minha casa, como eu te mostrei no retrato.
Em 1944 mudamos pra casa da Indústria
Irmãos Peixoto, porque minha irmã já trabalhava,
ela arrumou. O Seu Manoel Peixoto deu a casa pra
nós morar. A nossa casa foi ali na Rua José Hardy
Ramos. E ali aquela rua que vai pro pontilhão, pra
101
Vila Reis. Ali, beirando a linha tem um correio de casa, ali perto da Companhia, aquela Estação Velha. Eu
não sei se você lembra não, porque ali antigamente...
Naquela época, o Seu Mota - que Deus dê a ele um
bom lugar - trabalhava na fábrica e conseguiu, com
Seu Manoel Peixoto, uma casa pra Dalila minha irmã, sabe? Aí nós mudamos e moramos ali quarenta
e três anos. Aquela casa ali, pra mim tem uma relíquia. Você nem queira saber! Gosto muito dali, porque graças a Deus, fui muito feliz! Os vizinhos são
tão bons! Ali todo mundo é bom, entendeu? Então,
aonde eu vou eu faço amizades. Eu sou muito comunicativa. Eu gosto de comunicar! Eu gosto de ter
boas amizades! Tem uma senhora que mora ali, você
conhece a dona Maria Vargas? Ela deve ter uns 86
anos... Quando eu mudei ela já morava ali. Uma vizinha ótima, só você vendo!
Quarenta e três anos eu morei ali: de 1944 até
1987. Eu mudei pr’aqui porque o pessoal agora, eles
tão pedindo a casa aos aposentados, entendeu. Em
1960... eles me ofereceram a casa, pra comprar. O
doutor Francisco mandou o chefe, não sei se era o Zé
Margato que era o mestre... não sei. Eu sei que ele
mandou me oferecer... cem cruzeiros, naquela época. Eu queria, mas meu dinheiro era pouco. Eu não
cheguei nem a conversar com ele, só falei que não
102
queria comprar. Foi o erro que eu fiz na minha vida!
Se eu comprasse aquela casa... Eu tô pagando pouco porque o dono da casa aqui, e a dona, são muito
bons para mim. Eles faz um preço camarada aqui pra
mim, compreendeu? Mas eu vejo que aí na cidade
ninguém aluga mais casa por três mil! Eu vou te dizer uma coisa: um chefe de família como é que vai
pagar roupa e alimentação? Tá tudo caro! Então, eu
falo que o aposentado que ganha um salário devia
ganhar dois!
Eu aposentei com um salário. Se eu aposentasse ao menos com dois salários, ainda vá lá, mas eu
aposentei com um salário! Não tá dando, sabe? Não
tá dando porque um salário não dá: tem despesas de
casa, as roupas estão muito caras. Eu sou sozinha e
passo aperto, quanto mais um chefe de família! Eu
aposentei com trezentos e onze... Hoje não está valendo nada... Hoje, são três notas de cem, né. Eu recebo o
salário mínimo na minha aposentadoria. Quem ganha
um salário mínimo não dá pra pagar aluguel de casa
não. Não dá não! Não tenho nada! Trabalhei esse anos
todos e não tenho nada! Só tenho minha aposentadoria: eu vivo da minha aposentadoria. E dou graças a
Deus! Dou conselho à mocidade: entra numa fábrica,
entre em qualquer serviço, trabalha, paga o INPS até
aposentar, porque o dinheiro da aposentadoria é sa-
103
grado! É pouco, mas é sagrado! Mas o Collor vai dar
um jeito de melhorar isso, não vai? O Collor podia dar
mais um salário pra quem ganha um salário mínimo.
Na época que eu aposentei o doutor Francisco
- o Seu Manoel acho que já tinha morrido - uma pessoa muito boa para os operários... Eu, mesmo aposentada, continuei na casa. Eu aposentei em (19)72.
Mesmo aposentada eu continuei na casa porque o
doutor Francisco é uma pessoa muito boa pros operários. O seu Emanoel é ótimo! O seu Altamiro, o João
Peixoto... Tudo foi bom pros operários. Aposentou,
ele deixava ficar, né? Nós somos inquilino bom, eu
fui uma operária muito boa. Graças a Deus fiz por
onde. Eles gostava muito de mim e eu também gostava deles, entendeu? Eu não tenho nada a dizer da família dos Peixoto porque eles foram muito bons pra
mim. Todos eles.
Eu entrei na fábrica em 1939. Eu trabalhei na
tecelagem. Eu trabalhei não sei quantos anos na tecelagem! Eu mudei de serviço porque eu adoeci. Eu
tive problema acho que de rins... não sei, não me lembro mais. Então eu fui trocada de serviço. Depois da
tecelagem eu trabalhei nos carretéis. Eu fui encarregada da maquininha de espularia, pra fazer espulas
pras tecelagem, entendeu? Depois eu fui pra sala de
pano, duas salas de pano. A sala pra gente revisar os
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panos e depois tem outra sala pra gente cortar os panos, arrumar tudo direitinho e despachar, compreendeu? São duas salas de pano: uma só pra revisar. A
gente vai revisando, as outras vão cortando. Então eu
trabalhei: tecelagem, carretéis, sala de pano, fui encarregada da maquininha de espularia. Eu aposentei
como encarregada da maquininha.
Na tecelagem, o Onofre Correa era o mestre.
Tinha um contramestre, ele morava na Vila Minalda,
tratava ele de Neném. Não sei o sobrenome dele não. Depois o Riviria também entrou na fábrica.
Eu fui pros carretéis, o encarregado era José Alves.
Encarregado é o mestre; o contramestre é para consertar as máquinas, consertava tear... Tinha um rapaz que também trabalhou na maquininha, chamava
Expedito. Tinha o Zé Vieira, que também trabalhava nos carretéis e na maquininha. Era uma seção só:
carretéis e maquininha. Depois que eu fui pra sala
de pano, o encarregado era o Ciro. Não, era o José
de Souza. Falar nisso tem o Zé de Souza pra você entrevistar, na casa dele. Ele foi chefão da sala de pano
também. O Ciro também trabalhava na sala de pano
como encarregado, sabe? Tinha... ah meu Deus, ele
já morreu...
Tinha muita gente trabalhando na fábrica: oito
horas, toda vida. Na fábrica, a gente que vai trabalhar
105
tem que dar produção, né. Se a gente trabalhava na
tecelagem, tem que dar produção! Se a gente trabalhava nos carretéis, tem que dar produção! Se trabalhar na maquininha, também tem que dar produção,
porque tem que dar conta das espulas pra tecelagem.
A sala de pano também tem que dar produção, porque se tiver defeito você tem que cortar os defeitos,
separando os panos com defeito e outros panos sem
defeito, entendeu? Os panos sem defeito eles manda
alvejar, limpar tudo direitinho e manda despachar.
A fábrica era diferente, quando eu entrei. Tinha
uma roda enorme, compreendeu. E tinha as outras
roda pequena, como no retrato. Olha. Só tem que no
retrato não apareceu a roda grande puxando. A roda
grande rodava todas rodas, da tecelagem toda, sabe?
Depois, passando um tempo, eles puseram um motor.
Neste retrato que tá aqui ainda era as correias, entendeu. Depois, passando uns tempos, eles tiraram as
correias tudo e puseram um motor nos teares. Cada
tear tinha um motor pra gente ligar e trabalhar.
Teve uma época, sabe, que os operários da
Indústria Irmãos Peixoto usou uniforme. E esse uniforme que eu estou com ele aí no retrato: saia azul,
blusa branca, tênis branco, meia branca, com um
escudo aqui no braço. Durante um tempo nós trabalhamos de uniforme. Depois, não sei o que houve,
106
acabou nosso uniforme. Acho que a gente ganhava,
não tenho certeza, não. Eu não me lembro mais não.
A gente ia de uniforme desfilar. O desfile era muito
bonito dentro de Cataguases. Então teve uma época que o João Peixoto trouxe uma pessoa, não sei de
onde, pra poder filmar Cataguases. No dia do filme,
quando eles filmaram dentro da Indústria Irmãos
Peixoto, eu estava de uniforme. A Manufatora, eu
não sei se filmaram lá, mas o pessoal da Manufatora
foi filmado na rua também. Durante o desfile, dentro
de Cataguases, foi filmado. Eu só sei que todas vezes
- 1º de maio, 7 de setembro - nós desfilava, compreendeu? Saía a Indústria Irmãos Peixoto, Manufatora,
Industrial, o Colégio das Irmãs, os Grupos, tudo saía
pra desfilar. Era uma festa! Banda de música... Tinha
mais de não sei quantos homens, cada um com o seu
instrumento, sabe? Era bonito! Nós ia de uniforme
para desfilar... A banda de música de Cataguases era
muito bacana! Muito bonito, só você vendo!
Todo mundo gostava de festa! Coisa boa é uma
festa! E eu gostava: desfilava, carregava bandeira.
Era coisa muito boa mesmo. Tinha tudo, todos mesmo: homem, mulher... tudo. Toda vida gostei de festa.
Quando eu fui eleita pra ser rainha dos operários...
Sabe, dentro da Indústria Irmãos Peixoto eles me escolheram! Naquela época, minha mãe não gostava
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muito de baile, não deixando eu frequentar baile não.
Não deixava não! Mas aí, uma senhora - chamava
Lourdes Peixoto - foi candidata, e os colegas me arrumaram pra ser candidata. Eles que venderam voto pra mim, sabe? Eu não vendi nenhum voto. Eles
mesmos, os colegas, vendia votos na rua, dentro da
Indústria Irmãos Peixoto... Aquela que tinha mais
voto ganhava. No final das contas eu ganhei como
rainha da Indústria Irmãos Peixoto. Eles me elegeram, sabe? Foi em 1945 que eu ganhei como rainha.
Venderam votos... não sei te explicar direito como foi
o negócio não. Eu só sei que eu ganhei como rainha.
Fui coroada no Clube dos Operários. Houve um baile muito bonito, que baile, antigamente, dava gosto a
gente ir! Fui muito feliz! Depois de mim a Elza - não
sei o sobrenome dela - também foi rainha. E teve a
Galiléia, que também foi rainha na Indústria Irmãos
Peixoto, depois de mim. E teve também concurso de
simpatia. A moça que ganhou o concurso de simpatia
saiu da fábrica. A Elza, depois que ela foi rainha, saiu
também. Acho que casou, não sei, foi embora. Só eu
fiquei plantada dentro da Indústria Irmãos Peixoto.
Ali, trabalhando: a durona foi só eu!
João Peixoto organizava isso. Gostava muito
de festa. Aqui dentro de Cataguases João Peixoto tava em primeiro lugar pra fazer festa pros operários,
108
pra pobreza. Dia 13 de maio: bate-pau. O pessoal ia
desfilar na praça com bate-pau pra lembrar dos tempos do cativeiro. Eu acho bonito... Cataguases era
animado! Cataguases era animado demais! Agora
Cataguases não é mais esse Cataguases... Você não vê
ninguém fazer festa... Outro dia, na Igreja aqui, eu vi
banda de música atrás da Virgem. Eu falei com minha colega assim:
- Ah, no tempo do João Peixoto, seu Manoel, doutor
Francisco tinha muito, sabe. Tinha banda de música atrás dos operários da Industrial, tinha banda de música atrás do pessoal da Indústria Irmãos
Peixoto, então, quando ajuntava era muito bonito,
só “cê” vendo! Tempo bom, já acabou...
Eu gosto daquela praça, o busto do Zé Peixoto
foi uma homenagem sim. E a praça é bonitinha. Eu
não lembro muito de festa não, mas foi animada
aquela festa ali. Não sei te contar sobre aquela praça
ali não. Não me lembro da festa ali não. Não sei se
houve discurso... Só sei que eles fizeram aquela festa
ali, né?
Eu sei que houve uma festa dos “pracinhas”,
mas eu não sei contar não, sabe? Não me lembro, não
me recordo da festa dos pracinhas não. A única coisa que eu lembro, é que eles foram lá no salão dos
operários. Foi assim: nós estávamos dançando, tinha
109
baile no Clube dos Operários. Podia ser quase nove ou dez horas da noite, chegou - não sei se foi o
Pedro Dutra ou Zé Esteves - uma turma de homens
que eram os “pracinhas”. Na hora parou de dançar.
Reuniu os “pracinhas” tudo lá no baile. Puseram
banco, mandaram sentar ali, os “pracinhas” assim
em volta e tiraram nossos retratos. Eu, como estava
no baile... Acho que os “pracinhas” venceram a guerra... não sei se é guerra ou se é revolta, não me lembro mais o que era não. Eles vieram embora... Então,
como nós tava no baile dançando, eles chegaram
foram no Clube, reuniram todo mundo e tirou retrato. Naquele retrato tá o Pedro Dutra, o Zé Esteves, o
doutor Edson, doutor Jaime... Tem várias pessoas ali
que hoje em dia - o retrato tá meio embaçado - não dá
pra gente reconhecer os outros... Tem o Rolô, que foi
“pracinha”... o Didi foi também. O Didi mora aqui.
É isso mesmo, nós tiramos aquele retrato. Ninguém
esperava quando eles chegaram... Aquela porção de
homem lá dentro do salão. Aí eles resolveram, puseram um banco lá e tiraram nossos retratos.
Olha, eu toda vida gostei de baile, gostei de
cinema e rodar aquela praça, passear. Na época que
eu era jovem eu não passeava porque minha mãe
não deixava. A minha mãe não deixava eu sair sozinha, não deixava eu passear sozinha, não deixava eu
110
ir a lugar nenhum. Tinha de ficar rente com ela, ali!
Aonde que fosse, tava comigo. Ela me levava no baile,
com esse meu irmão Elias, que morreu agora. Ele ia
com minha mãe: me levava no baile às nove horas e
quando dava onze horas me trazia pra casa. Ele não
deixava eu ficar até terminar o baile não.
A minha mãe soube me criar, Deus dê um bom
lugar a ela, porque eu agradeço a ela, sabe. Eu agradeço muito! Eu acho que o filho, uma filha, deve obedecer pai e mãe, porque é tudo na vida! A família da
gente é muito importante. A coisa mais sagrada que
tem na vida da gente. Os pais se pôs filho no mundo, precisa saber criar, porque tem de entregar conta a Deus. Cê sabe disso? O que minha mãe e meu
pai falava, tava falado! Minha mãe era antiga, desse
tempo antigo, ela é antiguíssima, mas ela sabia criar
um filho. Eu gosto do tempo antigo, sabe, porque os
filhos ficam obedientes ao pai e mãe. Minha família
pra mim é sagrada. E uma família distinta, uma família de gente boa. Uma família que não tem defeito
nenhum. Eu te pergunto: porque os mais novos de
hoje não podem olhar um pai ou mãe, na velhice?
Eles puseram no mundo, eles criaram... Educou o filho: formou pra médico, formou pra engenheiro, formou pra doutor! Porque esses filhos não pode olhar
mãe ou pai na velhice? Eu graças a Deus, eu olhei
111
minha mãe, olhei meu pai e meu irmão. Eu deixei de
me casar. Eu não casei, tô solteirona até hoje porque
tinha um compromisso com o meu pessoal! Como é
que eu ia casar? Também se eu casasse, nem sei como
era minha vida... Já estava viúva já muitos anos, porque vários rapazes que eu namorei, já se foi... Eu tava
sozinha do mesmo jeito. E como eu disse a vocês: a
gente nasce sozinha e morre sozinha. Ninguém vai
com a gente. É ou não é? Tô certa ou não tô?
A vida é essa. Eu não me importo de me envelhecer. A velhice não é bonitinha? Outro dia no
“Fantástico”4 passou aquela velhinha, de cabelo branquinho, com noventa e seis anos. Sozinha. Porque
neste mundo é assim mesmo: você nasce sozinho,
termina sozinho... todo mundo tem sua vez de ir.
Vamos conformar como Deus faz a gente... Na minha
mocidade eu fui muito feliz! Agora estou sendo feliz!
Se eu chegar nos oitenta ou noventa, se eu for até lá,
pra mim é sagrado... Única coisa que eu acho triste,
aquelas velhinhas no asilo...
Eu me sinto uma pessoa realizada na minha
vida. Minha vida pra mim é boa, uma vida sagrada,
porque fiquei muito junto com pai e mãe, toda vida.
Não me casei. Olhei minha mãe - morreu em (19)53
4
) Programa que de TV que vai ao ar aos domingos.
112
- depois ficou meu pai - morreu em (19)63 - depois
teve meu irmão mais velho, que foi nosso pai. Meu
irmão mais velho trabalhou, ajudou a criar a gente. Ajudava em casa, pagava aluguel, punha mantimento dentro de casa. Meu irmão mais velho - Elias
Magalhães Pereira - foi carpinteiro. E tinha apelido
de Elias carpinteiro. Ele trabalhou na Igreja de Santa
Rita, trabalhou no Edgard Cunha, trabalhou até na
casa do doutor Francisco. Trabalhou em vários lugares. Então ele ficou esclerosado, sabe. Olhei ele cinco
anos! Eu deixei de passear, deixei de ir em festa, deixei de ir à igreja, tudo porque não podia deixar ele
sozinho. Eu era uma companhia, uma irmã. Ele ajudou papai me criar, então eu olhei o fim da vida dele.
Ele não casou, mas teve um filho. Esse filho dele, que
é o Roberto, também me ajudou. Eu criei o Roberto
(depois) que a mãe dele morreu. Com idade de dez
anos ele foi pra minha casa, ficou aos meus cuidados
e do pai dele. Criei e eduquei, graças a Deus! Ele estudou no colégio Cataguases, formou contador, trabalha no INPS. Agora está estudando Direito. Este
ano ele forma pra advogado. É casado, tem uma filhinha. Isso é uma felicidade! Pra mim, que sou solteira,
nunca fui mãe, é uma felicidade! Também criei uma
sobrinha - de um aninho até sete anos - hoje ela é casada, já tem filhos, está no Rio de Janeiro. O que cai
113
nas minhas mãos eu amparo, quer dizer, eu ajudo. O
que eu puder fazer para ajudar, eu tô pronta pra ajudar. Coração bom tá aqui, só falta trato.
Depois que meu irmão Elias adoeceu, com arteriosclerose, eu não pude sair. Eu não saía mais de
casa. Eu só ficava dentro de casa, cozinhando e olhando ele. Eu abandonei tudo pra ficar de olho nele, porque estava esclerosado. Eu tomei conta do meu irmão
cinco anos. Hoje, graças a Deus, tão quase tudo velho,
mas todos aposentados. Só tá faltando pra aposentar
o Expedito, que trabalhou no Clube do Remo e mora
na Taquara. Eu não faço queixa de ninguém, porque
eu fui bem tratada. Eu não tive problema com ninguém, entendeu, com ninguém! Trabalhei muito em
política pro Seu Manoel Peixoto. Trabalhei em política pro João Peixoto - o João Peixoto foi prefeito - todos eles gostava muito de mim. Eu também gostava,
tratava todo mundo bem. Todos os operários foram
bons, porque a coisa melhor na vida da gente é tratar
todo mundo bem. Não faço queixa de ninguém.
Na casa do doutor Geraldo, eu trabalhei dobrando cédula, entregando cédula. Eles punha a gente pra trabalhar, pra dobrar cédula. Depois de tudo
dobrado, a gente ia entregar nas casas, compreendeu.
Eu trabalhei com Adail, com a Minalda Simões. Eles
tiravam uma turminha pra fazer o serviço pra eles,
114
porque naquela época os papelzinho era pequeno.
Tinha folha do prefeito, dos vereadores. Agora, com
uma cédula só, você tem que por o xis. De primeiro
era diferente, já levava a cédula. A gente arrumava
a cédula e ia entregar nas casas pra poder votar. Pra
quem eles quisesse dar o voto, né. Eu trabalhei muito... gostava, gostava muito. Mas eu fui cortada da
fábrica, por causa de política. Não me importo com
isso não... Se alguém falou da minha pessoa, que eu
estava dobrando cédula, marcando cédula com baton, eu não ligo pra isso não. Mas eu chorei muito,
na época que eles me cortaram, porque eu adorava a
fábrica! Eu gostava muito de trabalhar. Nós... trabalhando pro Peixoto, eu não me lembro mais quem era
o candidato, eu fui acusada. Não sei quem falou de
mim, quem levou meu nome não sei pra quem. Eu só
sei que o Onofre Correa chegou perto de mim e falou:
- Maria, você está despedida.
- Por que? Que que eu fiz?
- Não sei.
- Você pode falar com eles que eu não andei marcando cédula de baton não.
Eu acho até graça! Eu não liguei não, porque
naquela época eu era muito nova. Tinha o meu pai,
tinha a minha mãe, não liguei muito não. Eu só virei
e falei assim:
115
- Fizeram uma calúnia comigo, porque eu não fiz o
que eles estão falando não. Mentira! É mentira! Eu
fui cortada? Não tem importância não!
Eu apenas trabalhava na rua. Eu, a Eva, muitas
moças trabalhava na rua pra tomar conta das pessoas,
levar as pessoas, ensinar onde tinha que votar, ensinar as pessoas como vota. Mas é mentira, eu não fiz
nada disso não... Anulava as cédulas, anulava o voto!
Aí sai, em 1946.
Eu fiquei o ano todo estudando lá no seu
Domingos Tostes. A filha dele, a dona Dulce dava aula
de bater máquina, uma professora muito boa. Comecei
a estudar, bater máquina. Eu sei mais alguma coisa
porque estudei particular durante um ano. O ano que
eles me cortaram eu fiquei estudando. Foi aí que eu
aprendi mais... até bater máquina: aula de datilografia.
Passou 1946, tô na minha, né. Quando foi em
(19)47 houve outra eleição. Não sei quais eram os
candidatos... Aí eles mandaram o João Ramalho. Ele
foi lá em casa, bateu lá em casa:
- Maria, o João mandou falar com você. Se você votar
neles...
- Você fala com eles lá, com João, com doutor Manoel
ou com doutor Francisco, que eu nunca fui contra
eles. Eu não sou fingida não. Eu sou uma pessoa
muito pontual, muito sincera na minha vida. Eu
116
não votei contra eles não! Eu tô pronta pra trabalhar pra eles: voltar pra fábrica pra trabalhar; trabalhar nas eleições pra eles, como antigamente.
Eu não sei qual dos dois, dos três... eu não sei
se é o João, se é o doutor Francisco, ou se é o Seu
Manoel... mandou me oferecer uma vaga na fábrica
de novo, se por acaso voltaria... Aí eles arrumaram
um discurso pra mim. Quando foi no dia da festa do
comício, eles arrumaram um papel pra eu falar. Fui.
Trepei no palanque, falei bonito! Decorei o meu papel: um discurso a favor dos Peixoto, a favor do candidato, que eu nem lembro mais quem era... Eu não
me lembro quem fez o discurso. Eu só sei que eles
me deram o papel pra falar. Aí eu decorei o papel e
falei. Aí eu fiz o meu discurso.
Aquela turma, aqueles colegas da gente, tava
tudo assim perto do palanque. Aquela festa toda, as
bandeiras... Seu Mota também estava no meio - Deus
que dê um bom lugar a ele. A gente trabalhava tudo em política. Aí, na mesma hora eu vim parar cá
dentro da fábrica, junto com a turma. Quando foi no
outro dia, eu já estava trabalhando.
Eu gosto muito da família dos Peixoto, porque
eles foram muito bons pra Cataguases. Se alguém fala deles, eu não tenho nada com a vida dos outros.
Cada um tem o seu problema. Cada pessoa tem um
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modo de ver. Então, eu não tenho nada a dizer deles.
Todos eles são bons pra mim. Eu sou muito feliz. Fui
muito feliz. Foi muito bom. Até hoje, se eles quiser eu
vou lá fazer um cafezinho pra eles lá. É mesmo, eu
gosto de lidar com as pessoas. Eu não tenho nada a
dizer dos Peixoto. Eles foram bons patrões.
Metade da minha vida foi na Vila Rezende.
Naquela época era umas casas, agora está tudo mudado. Agora, um vai comprando, vai renovando...
Hoje, a vila tem muitos prédios bonitos. Os antigo
eles vão comprando, vão desmanchando... vai renovando. A cidade de Cataguases, hoje, é outra cidade.
Do jeito que a gente viu, antigamente...Porque aquelas casa antiga tá se acabando... Tá fazendo prédio,
fazendo apartamento... Tem que melhorar a cidade.
Antigamente as pessoas tinha amor às casas, tinha
amor a um objeto. E a gente entrava naquela Igreja
Santa Rita... Era uma coisa antiga, a gente achava bonito. Era bonita!
Vai mudando os tempos, vai renovando os
tempos, as pessoas vão derrubando as coisa antiga e
fazendo tudo novo. A Igreja de Santa Rita era muito bonita... Eu não me lembro quem quis fazer outra matriz... A população de Cataguases aumentou
muito! Cataguases agora é uma cidade maravilhosa!
Uma cidade muito bonita! Você vai na praça e você
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só vê juventude! Cataguases tem muita gente nova,
bonita. Cataguases tá renovando. Lá uma vez ou outra, você vai na praça, cê vê aquela colega antiga, que
você tinha antigamente. Eu tinha tanta colega! Tem
a Judite, A Judite é a única colega que eu saía mais,
passeava na praça. Essa irmã da Elvira, que mora ali
perto do CB, foi minha colega de passeio. Trabalhou
na fábrica comigo. Naquela época tive várias colegas,
sabe. Tinha a Arlete, do Bazar René. A Arlete não foi
operária não, mas ela era minha colega de passear na
praça.
Baile é a coisa melhor que tem! O divertimento melhor que tem, eu acho que é baile! Baile assim
familiar somente. Baile direitinho, como antigamente tinha. Tinha o Clube do Operário atrás da Estação.
Aquele correio de casa que tem ali... o Clube do
Operário era ali, um salão muito bom, prédio novo...
Eu dançava muito no Clube do Operário... Agora
já tudo velho... O Emílio era ali onde é o Sindicato
do Fundo Rural, o Clube do Emílio era ali. O pessoal gostava muito porque o Emílio, quando punha o
pessoal dele pra sambar na rua, minha filha! Vou te
contar! Todo mundo gostava de ver aquela turma dele nos carnavais! Tinha carruagem bonita! Na minha
época o Clube do Operário fazia carruagem também.
No carnaval eu saí numa carruagem vestida de rai-
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nha. Um vestido muito bonito! Aquele vestido ali, todo bordado de vidrilho. Eu não me lembro mais se
eu ganhei, se eu comprei aquele vestido... Não me
lembro mais... Eu só sei que arrumei a costureira. Ela
chamava Carmem, essa senhora que fez este vestido
lindo. Ela era costureira e eu sou madrinha da filha
da Carmem. A menina chama Dirce. Ela me deu a
menina pra batizar... Ela era esposa de um senhor
magro, alto, branco...
Ganhei a taça. Eu trouxe a taça pro Clube
do Operário. Era um clube muito bom, respeitador. Tinha polícia tomando conta do clube. O Mário
da Paixão também frequentava muito o Clube do
Operário, o Clube do Emílio... Era cem por cento, não
tinha briga nem nada... O Lord Clube, eu ainda era
criança, eu vinha com minha irmã olhar. Nunca dancei não, os de menor não entrava no baile. O Lord
Clube era em frente à Indústria Irmãos Peixoto, ali
onde é aquela padaria. Então, as moças se apresentavam muito bonitas, vestido comprido. Antigamente
as moças se vestiam bem, era charmosa... Os homens
também se apresentavam de terno; gravata... Muito
bonito! No Comercial eu entrei uma vez, numa festa que houve lá. Uma vez eu entrei, nem me lembro
mais... ali no Comercial era muito animado! O cinema era animado! Olha, ia gente pro cinema! Tudo ia
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pra primeira sessão - tinha primeira e segunda sessão,
né - nós ia pra primeira pra depois a gente poder passear na praça. A gente saía às oito horas do cinema,
a praça tava cheia! Hoje, eu vou à praça e fico recordando, sabe, lembrando daqueles tempos... Era mais
animado! Você chegava na praça sete horas... aquela
turma de rapaz, de homens, tudo engravatado, tudo
de terno passeando em volta. A gente, as moças, passeava de um lado, os moços de outro. A gente, naquela época, só flertava. Flertava com um, flertava com
outro, depois a gente escolhia com quem queria falar.
Eu gosto muito daquele tempo. É um tempo muito
bom, gostoso... Eu não sei se porque o pessoal tem
muito carro, (hoje) só passeia de carro, né.
Eu sou católica toda vida. Eu sou da Irmandade
de Nossa Senhora do Rosário.
Eu sou da Irmandade do Sagrado Coração
de Jesus, São José e Santa Rita, desde o tempo que
o Padre Antônio veio pra essa Igrejinha aqui. Antes,
eu frequentava muito a Igreja de Nossa Senhora do
Rosário, frequentava a Igreja de Santa Rita. Eu era
muito católica, não perdia uma procissão! Você sabe
que Deus ajuda muito a gente nas horas que mais a
gente precisa. Nós devemos ter muita fé em Deus!
Pedir a Deus sempre proteção, compreendeu. Pedir
pra ter uma vida boa neste mundo. Desde que eu
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nasci, o meu tempo foi bom. Eu tenho essa felicidade
na minha vida, porque eu acho a vida boa. Eu acho
a vida gostosa! A gente precisa de aprender viver. Se
você não fizer sua parte, quem vai fazer? Eu, graças
a Deus, até hoje me sinto muito alegre, tenho alegria!
O que eu tô contando aqui... esse gravador...
muita gente não vai acreditar! São coisas que eu nunca falei com ninguém. Você está me entrevistando,
me fazendo pergunta, eu estou contando a minha vida. Eu gosto de lembrar do passado. Tem muita gente que não gosta da idade, nem gosta de falar. Mas
eu não ligo não, porque minha mocidade foi muito
bonita. Meu tempo de mocidade foi bom... Se você
quer viver muito, você tem que chegar na velhice...
se você não quiser... tem que morrer novo... Cada um
lembra do seu passado. O meu passado foi maravilhoso! Até hoje tá sendo bom. Não tenho nada, mas
tenho Deus comigo! O que eu estou dizendo aqui é
sobre minha vida, é o meu passado. Sobre o passado
dos outros, eu não sei informação. Eu agradeço e fico
muito satisfeita de você estar aqui comigo, me fazendo perguntas, compreendeu.
Entrevistada em 27/6/1990 por José Luiz Batista e Gláucia Siqueira.
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M A R I TA G U I M A R Ã E S
C O S TA C R U Z
DONA DE CASA
74 anos
Minha família é de fazendeiros, lá
de Campo Limpo. Hoje Campo Limpo é chamado
de Ribeiro Junqueira, (município de) Leopoldina.
Naquela época a pessoa era fazendeira, era rica,
comprava título. Por exemplo, meu pai era coronel, uai! Todo mundo o chamava de Coronel Chico
Guimarães. Antigamente era assim: era rico, era coronel. A pessoa era rica, era fazendeira, tinha muito
Foto: Fazenda do Coronel Arthur da Costa Cruz (Fazenda Bom Retiro),
Alberto Landóes, s/d, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico
e Artístico de Cataguases
125
café, muita coisa, comprava título: era coronel. Meu
pai, Francisco Ribeiro Guimarães, todo mundo só
chamava de Coronel Chico Guimarães. Minha mãe,
Cecília Ventura da Silva Guimarães era lá de Barra
do Piraí, Estado do Rio. A minha mãe é fluminense,
né. Papai é que é português. A Marilis é que sabe
contar... Minha família é daqueles Breve... tinha os
Breve miúdo e os Breve graúdo, né.
Eu nasci em Campo Limpo, em 1918, e vim
pra cá com 10 anos. Dez para onze anos... eu perdi
pai e mãe e vim pra cá. Minha mãe morreu num ano,
meu pai no outro. Mamãe foi rins, meu pai suicídio.
Desesperado, né. Perdeu tudo! Tinha um ano que
tinha perdido a mulher, desorganizou tudo! Nós tínhamos uma fazenda muito boa, um sítio muito bom,
muito bem montado, muita fartura! Nós residíamos
em Recreio. Tinha casa própria e tudo, em Recreio.
A gente tinha sítio pra passar fim de semana... Tinha
a Fazenda Bocaina, em Campo Limpo. Em Recreio,
uma casa de luxo. Ainda tem lá até hoje, aquela casa
no alto da Igreja. Uma casa de luxo! A nossa casa lá
era do tipo desta, né. Meu pai tava muito bem de vida! Negócio de café: era fazendeiro e tinha armazém
de café. Depois ele perdeu tudo, aí desesperou!
Foi em 1930. Meu pai perdeu tudo! Perdeu
fazenda, sítio, a casa que morava, carro... Tinha au-
126
tomóvel, tinha tudo! Hoje, ainda existe a Fazenda
Bocaina. Era dele... Ele entrou naquela Revolução
de 30. Ele queria tanto morrer, que ele entrou
na Revolução de 30. Ele foi elevado a tenente na
Revolução, por ato de bravura! Ele era contra a
Aliança Liberal, eu acho que era... Era contra, devia
ser contra... Um dia nós vimos ele e o ordenança chegando, lá na porteira... Todo mundo achando que era
as forças federais que tavam entrando...
A fazenda produzia açúcar, cachaça, muito arroz, café. Ele montou armazém de café, em Recreio.
Trabalhou muito, também, naquela companhia de
café Monteiro de Barros, lá em Providência. Nós viemos pra cá depois da Revolução de 30. A Revolução
foi em outubro, papai morreu em novembro e eu
vim terminar o quarto ano aqui. Eu era aluna da
dona Flávia, esposa do Pedro Dutra. O quarto ano
era dona Flávia... A Cordélia Dutra foi examinadora. Depois eu fiz o curso em Leopoldina, interna no
Colégio Imaculada. Formei lá e vim para Cataguases
trabalhar na Força e Luz. Foi aí que conheci a família
Cruz.
Eu me lembro quando nós ficamos sem nada.
Eu tinha dez pra onze anos. Nós viemos morar aqui,
em frente às Carneiro. Foi a primeira casa que moramos. Saímos do conforto e viemos morar numa casa
127
que nem banheira tinha! Era só chuveiro e privada.
Passamos um choque tremendo! Sair disso tudo, dessas grandezas todinha, e morar numa casa alugada! Nós todos ficamos morando com esse irmão, o
Armando, e esta irmã, Marilis... Todos eram solteiros,
não tinha nenhum casado na época. Meu irmão mais
velho tinha 22 anos e a irmã mais velha tinha 24 anos.
A Marilis uma heroína! E o Armando também! Foi
quando abriram “A Nacional”. Meu irmão estabeleceu junto com o senhor Antônio Rodrigues Gomes.
O irmão mais velho trabalhava na “Nacional”.
Antigamente era ali, perto da Casa Felipe, onde é a
Dirce hoje. Quem tomou conta da família foram os
dois irmãos mais velhos.
Quando meu pai perdeu tudo, falou que ia
para Belo Horizonte. Arranjou colocação lá em Belo
Horizonte e veio, até com três aluguéis adiantados.
Antigamente era assim: pro cê entrar numa casa tinha que pagar adiantado. Quer dizer que ele não
tava com ideia de morrer... Quando foi no dia de
finados - ele morreu no dia de finados - ele colheu
muitas flores, pra todo mundo lá em casa. Ele fez um
buquê de flor pra cada um levar pra mamãe. Lá em
casa tinha muitas flores! Nós estávamos saindo pro
cemitério, quando a empregada veio com a notícia
que ele tinha morrido. Ele morreu na linha, longe de
128
casa... Ele saiu fora da cidade... Pra nós foi um choque tremendo!
Nós tínhamos que começar tudo de novo,
porque ele vendeu o que podia vender; o que não
pode vender, deu pros outros. Ele tinha dado tudo
pros outros. Não queria que levasse nada para Belo
Horizonte, só as malas. Ele falou pra Marilis, que
tinha alugado casa e que ia comprar tudo de novo.
Então, ela pôs roupa de cama, talher, umas travessas
bonitinhas que a mamãe tinha, uma bandeja muito
bonita - que a Marilinha tem, até hoje, de lembrança - muita roupa... Foi o que salvou! O resto ela deu
pras nossas vizinhas, lá em Recreio. A Marilis deu
muitas coisas para elas: jarras bonitas, de porcelana...
Nós ficamos sem nada! Veio montar casa aqui, não
tinha nada!
Deus parece que calha tudo, que encaixa tudo
direitinho. O senhor Kleber Miranda tava mudando,
nós compramos tudo! Tinha uma prima, que o marido trabalhava na Irmãos Peixoto - Diocélio Tindó, era
guarda-livros na fábrica velha - e tava de mudança
pro Rio; também. Então deu muita coisa pra Marilis
montar a casa.
Estudei um ano aqui em Cataguases, no
Colégio Nossa Senhora do Carmo, formei e fui pro
colégio, interna. Fui pra Leopoldina. A Marilinha
129
também estudou interna no Colégio Imaculada.
Fiquei lá até formar, em (19)36. Eu achava ótima a
vida no internato. Gostava muito das freiras. Elas
eram rigorosas, mas davam muito carinho pra gente.
Eu me dava muito bem com essas freiras. Eu ajudava muito na secretaria a passar nota... Eu tenho, até,
um quadro, uma Imaculada Conceição que a diretora
mandou pra mim, de presente de casamento. O colégio era apertado. O professor de português, doutor
Bandeira de Melo, era muito bom! O professor Gilrat,
de francês. O professor Machado, de matemática. Na
minha época, era aritmética. Eu gostava muito! Eu alcancei aritmética até o segundo ano normal, depois
passou pra matemática. Eu já não gostava mais. Todo
último domingo do mês tinha saída. Saía na Semana
Santa, às vezes no feriado. Às vezes eu passava em
casa de conhecidos, lá em Leopoldina. Não vinha
aqui não, aquele ônibus era muito ruim! Eu passava o
último domingo em Leopoldina, porque situação não
era das boas, pra ficar trançando pra lá e pra cá, não.
Aqui em Cataguases, eu frequentei pouca festa
porque eu entrei logo pra “Filha de Maria”. Lá em
Leopoldina, eu fui, eu ia a festas, mas não dançava.
Antigamente, quem era “Filha de Maria” era muito
presa. Não podia namorar, não podia dar braço ao
rapaz, só no dia do casamento! Toda de branco, só
130
manga comprida... Eu entrei lá no colégio interno.
Lá todo mundo era “Filha de Maria”. A Nilzinha, a
Nidinha, a irmã da dona Titiva, do Dr. Edson, todas
eram... elas foram minhas contemporâneas.
Eu formei, um ano e pouco mais ou menos,
quase dois, eu casei. Não lecionei não. Trabalhei na
contabilidade, na Força e Luz. O Dr. Junqueira era
muito amigo do meu pai, negócio de política. Meu
pai era chefe político lá em Recreio. A minha família se dava muito com a família Junqueira. O Dr.
Junqueira era meu padrinho... arrumou colégio pra
mim. Eu estudei por conta dele: Dr. José Ribeiro
Junqueira, tio do Dr. Ormeu. Eram três irmãos: José,
Custódio, Sebastião Ribeiro Junqueira. As irmãs, eu
não lembro tanto, só da Pequetita Junqueira. Eu ia
muito na casa dela, quando ia com papai nas festas em Leopoldina. Meu padrinho vivia pedindo a
papai pra me dar pra ele, sabe. Então, nesta época
nós perdemos pai e perdemos mãe, a Marilis escreveu uma carta para ele, falando que a gente estava
naquela situação. Ele, imediatamente, escreveu que
podia mandar pra Leopoldina, porque ele tinha arranjado colégio interno pra mim. Fui interna por
conta dele. Quando eu formei, ele arranjou com o Sr.
Manoel Peixoto, político aqui em Cataguases, deputado na época, pra eu ser professora. O Sr. Manoel
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Peixoto escreveu um cartãozinho dizendo que, depois que nomeasse as três afilhadas dele, a primeira
vaga era minha. Ele nomeou as três afilhadas, e nós
sabíamos quais eram, e eu fiquei esperando a minha
vaga. A minha vaga não apareceu! Ele nomeou a filha do Domingos Tostes, que era farmacêutico rico, e
nomeou a Tereza Souza também, que o pai era dono
de usina. A minha ficou esquecida, né. Aí a Marilis
escreveu para o Dr. Junqueira de novo, falando que
havia uma vaga na Força e Luz. A Olga ia casar com
o Sicarini, ia haver essa vaga, que ela pedia para
mim. Nós mandamos a carta. Daí a três dias veio
um radiograma para a Força e Luz: “Coloque Marita
Guimarães, haja vaga ou não”! Aí, eu entrei de estalo.
Devia ser fim de (19)37.
Na Força e Luz tinha a Evangelina, a Lurdes
Drumond, a Virita trabalhou também, a Olga... A
Berenice Barroca também era do meu tempo. A
Mariazinha Athouguia, a Iracema Fonseca. O escritório era muito difícil! Trabalhei com o Sr. Gonçalves,
pessoa muito boa. O Afonso Lanna era o chefe.
Afonso Lanna, Sr. Gonçalves, Seu Mourão da dona
Cidália, eram os diretores. Na parte de engenharia
era o Dr. Walter, casado com a dona Maria, irmã da
Idinha. Depois veio o Dr. Osmar trabalhar na seção
de engenharia. Foi pouco tempo, minha filha, um
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ano e três meses só. Eu fiquei conhecendo... A história é tão grande!
Eu fiquei conhecendo ele, lá na Força e Luz,
porque ele foi lá fazer um pagamento... tinha uma
menina, que estudava comigo interna, e falava muito
dele, né. A Nair Duarte era namorada do José Cruz.
Aí, quando foi um dia, eu estou lá na Força e Luz - eu
estava escrevendo na máquina - José entra, diz que
foi fazer um pagamento. Nunca tinha visto! Diz ele
que eu fui receber, mas eu não me lembro. Eu olhava tão pouco esse negócio de homem, porque eu era
novinha. Tinha dezoito pra dezenove anos, na época.
Armando falava assim:
- Cuidado com esses viajantes! Cuidado com esses
homens assim mais maduros, porque geralmente
são casados!
Então, a gente nem olhava quando via um rapaz maduro. A diferença dele comigo era dez anos,
né! Ele procurou pelo Sr. Mourão, eu fui lá, chamei o
Sr. Mourão e voltei outra vez pra máquina. E ele cismou comigo na máquina de escrever. Foi embora pro
Rio... Diz ele que estava lá num cassino, não sei onde,
aquela porção de mulher, uma porção de coisa e ele
estava vendo só aquela menina escrevendo à máquina. Ele só via aquela menina escrevendo na máquina!
Voltou outra vez pra Cataguases... Ele disse que fica-
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va todos os dias ali em frente à farmácia. Ali, onde é
o BEMGE, tinha a farmácia do José Venâncio. Então
ele ficava ali, pra ver eu passar, pra lá, pra cá. Eu sem
saber quem era. Até que um dia ele quebrou o nariz
(montando) cavalo, sabe. Então, nós estávamos na sacada da Força e Luz e eu falei assim:
- Coitado daquele rapaz ali, com uma cruz no nariz!
- Ele tá com cruz no nariz e ele é Cruz.
A Clotildes falou. Você lembra da Clotildes,
mãe da Isa? A Isa é prima da Vera, do Edinho, que
mora em São Paulo. Pois é, eu falei assim:
- Que Cruz é aquele?
- E o José Cruz.
- Ah, esse é o José Cruz da Nair?
Nesse dia nós começamos a namorar, porque
eu olhei pra lá, vi que ele estava olhando e veio todo
mundo:
- Ele tá olhando é pro cê!
Ele ainda brincava comigo e falava sempre
assim:
- Foi preciso eu quebrar o nariz pra você me enxergar! Não havia meio de você me enxergar! Já tinha
quase três meses que eu estava ali, naquela farmácia, olhando você passar pra lá e pra cá.
Era filho do coronel Arthur Cruz, fazendeiro. A família de José vem de índio, vem daquele ín-
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dio Tibiriçá. Eram dois irmãos. Um fez a família do
Getúlio Vargas e outro fez a família do José Costa
Cruz. A Marilinha tem um livro... tem a árvore genealógica todinha da família Cruz. Se vocês quiserem
alguma coisa assim, no livro tem tudo, tem os fundadores... agora, dos Costa Cruz só existem dois: a
dona Tatá e o Breno. E a Tatá tem uma filha só... e um
enteado... a família Cruz vem lá de Itabira.
O doutor Joaquim era médico, irmão do seu
Arthur. Ele morou naquela Fazenda da Saudade,
ali por Dona Euzébia, que agora ficou pros herdeiros. E teve (a chácara) Passa-Cinco. O Dr. Joaquim é
pai do Antônio Carlos, que morreu há pouco tempo,
que era médico de vista. O José estudou em Além
Paraíba quando menino. Depois foi aqui mesmo, no
Colégio Cataguases. Não quis ir pra fora. O único
que estudou, formou pra advocacia, foi o Afonso...
o Geraldinho estudou também lá em Viçosa... os outros ficaram... seu Arthur Cruz, ele morou na Vila
onde é aquela chácara do João Carroceiro. Aqui
na chácara era um colégio antigamente. Ali nessa
esquina... pegando a casa da Marizinha até na da
Marilinha... Esse quarteirão todo, aquela esquina
toda ali, e ainda pegava um pedaço do terreno da
Emília. Era uma chácara que tinha um casarão no
meio: era um colégio. Meu sogro transformou esse
135
colégio numa casa. Comprou e veio morar aqui na
chácara. Tinha muitos quartos, salões enormes! Era
um casarão imenso! Tinha dois portões, esse portão
que tinha ali na Marilinha era da chácara. Esse meu
também era. Eu me lembro, quando eu casei tinha a
chácara... a Marília é casada com um irmão do meu
marido. São duas irmãs casadas com dois irmãos
Costa Cruz. Meu sogro era dono disso aqui até na
Belém, indo ali pro horto. Isso tudo aqui era dele!
Eu vim pra cá com dez... seu Arthur já morava nessa
chácara. Ali, onde é hoje o campo de esporte tinha
uma outra chácara que era do pai da minha sogra.
O senhor Arthur era muito rico! Tinha muita terra!
Naquele tempo, terra não valia nada, dava até pros
outros. Ele deu pra construir casa. Ele dava terra
pros outros assim à toa. Amigo dele, ele dava posse... Antônio Amaro também teve muita terra aqui.
Quem deu o terreno pra fazer o Fórum foi o Antônio
Amaro e o Senhor Arthur. Foi ele que deu pra prefeitura fazer caixa d’água. Eles tinham muito gado:
café e gado leiteiro. O senhor Arthur era produtor
de creme... mandava pra Guarani. Eu acho que antigamente não tinha esse negócio de botar dinheiro
em banco. Era só produzir, eles queriam era comprar
gado, muito gado! Naquela época o pessoal tinha
mania de ter muito, né. Tinha muitos empregados,
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muitas casas de colono. Antigamente tinha muito.
Foram pra fazenda depois... eu não sei se aquela fazenda era deles... era da firma do Rama, marido da
Dedé Peixoto. A fazenda foi a leilão, né. Eu não sei
esses negócios direito não. Eu acho que a fazenda
era da firma - negócio de café - que fazia parte seu
Manelinho Cruz... O Rama era muito rico também.
Foi dono da Fazenda do Retiro. A casa do Rama pegava o quarteirão assim, na esquina...
Eu casei e fui pra roça: Fazenda Goiabal, depois de Barão de Camargo. Lá tinha café, cana, gado.
Primeiro, o José tinha gado Gir, esse gado é importado. Depois comprou vaca de leite. Foi quando foi
diretor da cooperativa, junto com o Dr. Cardosinho,
o Dr. Moura. Um era tesoureiro, outro secretário... foi
presidente da Cooperativa, acho.
A vida na fazenda eu gostei muito. Eu fiquei
sem luz elétrica muito pouco tempo. Eu quebrava
tanto lampião, que o José resolveu colocar luz elétrica. Eu ia pegar o lampião, aquilo tava quente eu
soltava o vidro! O tio dele, seu Juca Cruz, tinha trabalhado na Usina Afonso Pereira e ele falou com José:
- Vou trazer um transformador e vou botar aí pro cê.
Vou botar uma luz de dínamo.
Eu fiquei sem luz de abril a setembro: dia 7 de
setembro inaugurou a luz lá.
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Mas eu não tinha prática de fazenda não. Eu ia
na fazenda a passeio, com meus avós. Meus avós paternos eram fazendeiros em Ribeiro Junqueira. Então,
nas férias, a gente ia para a fazenda do meu avô. A
gente achava mais graça ir pra fazenda do vovô, do
que a nossa fazenda, que tinha administrador. A gente preferia ir pra fazenda do meu avô, porque lá tinha
outros primos que moravam lá perto. Os outros tios
todos tinham sítio perto. Tinha aquelas cachoeirinhas... Era tão bom tomar banho naquelas cachoeiras,
aquele ribeirão gostoso! Tudo limpinho! Tinha uma
cascatinha que descia assim... A gente adorava ficar
ali, deitado nas pedras, deixando a água correr... de
roupa! Às vezes a gente ia no sítio para passar o fim
de semana, porque o sítio era bonitinho. Papai estava
arrumando o sítio quando morreu... O sítio era muito
perto de Recreio.
Eu tive meu primeiro filho aqui na chácara.
Nasceu aqui o Raimundo, com parteira. A segunda
foi a Cecília, que nasceu na fazenda Goiabal. A parteira era uma crioula, e a minha sogra também estava lá. O terceiro, que foi o Armando, já tive aqui
em Cataguases. O Armando e a Gilda, com parteira
também. E o último, o quinto, também com parteira, eu tive lá na Fazenda Goiabal. Esse nasceu doente, esse que eu tenho até hoje doente. Nasceu per-
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feito... teve derrame com cinco dias de nascido... Ele
teve derrame e não fala, não anda... Passei bem em
todos! Nesse também! Eu comecei a sentir aquele
derramamento de água só, resolvi entrar num banho.
Tinha uma banheira muito grande, tomei um banho,
de água bem esperta. Quase que ele nasceu dentro
d’água, minha filha. Quando eu saio da água para
escovar dente senti aquela dor fortíssima. Não teve
segunda dor, porque na segunda ele nasceu. Achei
uma felicidade! Foi o melhor de todos pra nascer!
Mas cinco dias depois ele teve derrame. Aí a vida já
não teve mais graça. Ter um filho doente assim... Já
passou a não ter aquela graça que tinha, que teve...
todos os outros sadios, muito sadios. Mas esse deu, e
continua dando, muito trabalho. Ele está com 37 anos,
vive numa cama... Gosta de televisão... novela... Mas
é um sofrimento, né.
Eu vim pra cá a Gilda tava com 8 anos. Os meninos estudavam... passou a ficar muita gente na casa do Afonso, casado com a Marilinha, minha irmã:
Raimundo, Cecília, Armando, Gilda. Aí resolvi fazer
casa. José fez essa casa aqui. O Zezé precisava de mais
conforto - ele já tava maiorzinho - e lá na roça não tinha um ventilador! Não podia ter luz contínua, porque era dínamo! Então, tinha que ter mais conforto,
televisão... pra ter um fim de vida melhor... Aqui, ele
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tem o apartamento dele, que tem tudo, né: a televisão dele, ar refrigerado, renovador de ar... Agora botei
ventilador. Na fazenda não tinha recurso para isso...
Só dava pra ferro elétrico. Mas a noite não podia ligar
ferro elétrico, porque ligava a luz. A luz do gerador
não podia puxar muito! Agora não, porque tem tudo
lá. Tem até aquele aparelho de puxar televisão.
Armando gosta muito de gado de leite, planta
muito pouco. Nem pro próprio sustento o Armando
tá plantando! Acha que precisa de muita gente... Ele
acha que é mais fácil tirar leite. Agora também, ele é
da Cooperativa, ele tá no mesmo lugar do pai dele,
ocupando o mesmo cargo que o José ocupou.
Eu sempre falo com a minha nora: eu tive bons
empregados. Ótimos! Eu não me queixo dessa parte
de empregados. Eu não sei se é porque eu lidava com
eles com muito carinho... Eu tinha ótimos funcionários. Lidava com doze mulheres, mas de primeira!
E elas gostavam de trabalhar pra mim. Vinha gente
de fora, de outras fazendas, pra trabalhar pra mim.
Eu dava gratificação pras empregadas. Quando terminava a safra eu gratificava. A safra de goiaba era
maior! Eu fazia muito doce pra vender: muita goiabada, muita pessegada, muita laranjada! Tudo quanto era fruta que eu podia industrializar, eu industrializava. Eu tinha uma fábrica de doce e ganhei muito
dinheiro! Eu desmanchava seis sacos de açúcar por
dia! Trezentos e sessenta quilos de açúcar por dia!
A gente trabalhava, mas os filhos estavam todos ali por perto. Era mais fácil do que hoje. Dona
de casa, hoje, trabalha fora, os filhos ficam entregues
a empregada. Eu não me queixo, tinha boas empregadas. E essa que mora comigo - crio desde os cinco anos - é muito leal! Mal de mim se não fosse ela,
que me ajuda muito! No fim do ano eu gratificava
minhas empregadas! Eu tinha dinheiro! Era meu!
Minha menina tem pulseiras de ouro, tudo dado por
mim, com dinheiro dos doces. Muita coisa aqui em
casa, eu que comprei, porque eu queria do meu jeito!
Eu dava joias pras minhas meninas...
A vida na roça era boa, eu gostava! O José tinha
muito porco. Lá em casa tratava de porco com inhame, banana nanica, batata doce, abóbora, moranga...
Aqueles montes de inhame, fazia aquela fileira de
inhame no meio do arroz... Colhia e vinha pro terreiro aqueles montes de inhame, pra tratar de porco...
Na fazenda tinha bailes, era muita gente! Natal, a
gente fazia na fazenda. Era uma vida mais pura.
Eu acho que era mais animado... Na praça tinha aquelas bandas de música...
Os bailes também eram muito animados, eu
acho. Eu ia sempre olhar. Carnaval também era mui-
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to era mais animado! Aqueles carros alegóricos bonitos! Um rico que tinha, - Inácio Duarte - que era
dono da casa onde morou o João Peixoto, a filha dele
fantasiava-se muito, a mãe dela também. As fantasias
eram caríssimas! Vestido bordado a ouro, até. Eles
viviam na sociedade e acabaram pobres, riquíssimos,
tinham palacete no Rio também, davam recepções...
Todo mundo falava isso. Mandava fazer carro alegórico... Teve um carro de melancia - esse eu cheguei a
ver - a filha fazendo o miolo da melancia, aquela fantasia toda vermelha, e as outras cabecinhas eram as
sementinhas aparecendo no meio daqueles babados.
Foi uma coisa rica! Uma beleza esse carro da melancia! Tudo patrocinado pelo Inácio Duarte... ficou pobre, ele morreu pobre... Pobre mesmo!
Entrevistada em 15/5/1990 por Gláucia Siqueira e Mariana Cândida.
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R E N AT O T E I X E I R A
BANCÁRIO
70 anos
Eu nasci em 20, em 1920. Eu não sei,
mas se tratado da minha família aí eu tenho mais
condições... com o tempo, da cidade propriamente
dita, já me falha alguma coisa...
A minha mãe era filha de Pedro Soares de
Nazaré, português, que foi um dos donos do “Porto
dos Diamantes”. Ao que me consta, ali havia uma
pequena povoação, em 1810 por aí. E ali parece que
descobriram algum diamante. Deve ter sido um fato muito raro, porque nunca mais apareceu diamante por aqui. Se você for procurar, se você aceitar coFoto: Banda de Música da Indústria Irmãos Peixoto, maestro Rogério
Teixeira, s/a, 1945, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e
Artístico de Cataguases
145
mo “Porto dos Diamantes” daria a impressão que
realmente tinha diamante. Se teve, é aquele “Tipo
Conceição: ninguém sabe, ninguém viu”. E igual girafa: existe, mas eu não compreendo com aquele pescoço! Como “Meia-Pataca” também. Dizem que foi
descoberto quantidade de ouro equivalente a uma
moeda de valor meia-pataca. Nunca mais ninguém
falou em ouro no “Meia-Pataca”. Pode ser ilusão, vamos dizer assim.
Então ali que aglomerou, ali se constituiu um
pequeno núcleo. Vieram alguns padres para... Não
sei se somente pelo espírito missionário ou também
em busca de fortuna. A Igreja também, era muito
comum, a Igreja juntava o útil ao agradável. Então
vieram esses padres pr’aqui, para catequizar e botar
uma certa ordem ali naquela povoação. Existiam índios. Eram agrupamentos de índios civilizados, mas
eram poucas pessoas, pouca gente. Se não me engano
não chegavam a cinquenta, coisa assim. Mas eu acredito que esse problema de índio trabalhar... Você sabe
que os índios eram muito arredios ao trabalho. Eles
não aceitavam a escravidão. Os índios nunca se submeteram, ao trabalho escravo. Senão, talvez... tanta
migração, tanta compra de escravos da África pra cá.
Nós... o Brasil, ainda submetido a Portugal, tinha necessidade de fazer comércio com o exterior, vender as
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suas mercadorias. E a maneira de... Até hoje, quanto
mais barata a mão de obra, mais condições tem de exportar. Então, não havia mão de obra mais barata do
que a mão de obra escrava. Umas das razões porque
prevaleceu, por muito tempo, a escravidão no Brasil
foi, justamente, para produzir barato e vender, principalmente a cana-de-açúcar. O que eu sei é mais ou
menos isso... E ali mesmo. Está lá. Ainda resta, ainda
existe o chalé. O núcleo da família Soares é ali nesse
chalé, saiu dali. Nunca me constou que ele (meu avô)
tivesse escravo não. A escravidão terminou em 1888.
Ele veio de Portugal, os ascendentes dele ficaram em
Portugal... (Trabalhava com) comércio em geral, minha irmã tem uma fotografia da loja dele. Era na boca
da ponte de madeira, mas não era na praça, era do
outro lado do rio. A gente vê pela fotografia que era
uma casa boa para a época, uma casa grande...
Ali onde tem aquele pedaço daquele chalé antigo... eu acho que era uma sede de fazenda. Quando
você chega mais ou menos no Beco do Fruta-Pão, tem
uma ponta lá que é um chalé antigo. Ali morava o
Pedro Soares Nazaré, que era meu avô. Quando ele
morreu eu tinha seis meses, mas ele me deixou uma
marca. Diz a minha mãe, que ele brincando comigo,
eu no colo dele pulando, bati com a cabeça na janela e fiz uma brechinha na cabeça, que até hoje tem a
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marca. O meu avô morreu quando eu tinha seis meses, mas mesmo assim eu fiquei marcado por ele.
Ali morava, então, a família do Pedro Soares
Nazaré. Ele casou duas vezes e teve vários filhos. O
mais velho estava até estudando medicina na França.
Morreu. O outro filho, ainda é vivo, mora em São
Paulo. Deve estar com oitenta e três anos! Todos tocavam piano. Todos eram músicos, porque naquela
ocasião fazia parte da educação... a pessoa ter sempre
essa parte musical, uma instrução de música qualquer. Ele morou aqui onde é a escola Flávia Dutra,
aqui desse lado, morou aqui também. Mas ele começou mesmo lá, nesse “Porto dos Diamantes”, lá no
chalé do Bairro Leonardo.
O meu pai (Rogério Teixeira) era de São João
Nepomuceno e veio para Cataguases com onze
anos. O pai dele era professor, a família de meu pai
era de professores. Eles desbravavam um certo local, construíam uma escola, ficavam lecionando até
um certo tempo, depois iam pra outro lugar... Meu
avô paterno era assim... Meu pai era o caçula da família. Era criança ainda quando morreu o pai dele e
eles ficaram em situação difícil, no que vieram para
Cataguases... Aí já tinha esse princípio de música, os
outros irmãos dele também já estavam estudando
música... Ele tinha um irmão, João Teixeira, que era
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maestro de uma outra banda de música. Dizia meu
pai, que naquele tempo Cataguases era atrasado, havia mais manifestações artísticas que Cataguases de
hoje. Ele dizia que aqui veio muita opereta italiana.
Empresas de teatro do exterior vinham a Cataguases!
Com onze anos de idade ele já começou a fazer
parte de alguma banda de música, que talvez tivesse aqui naquela época. Era comum... Você vê nessa
banda de música do Sigismundo, que é muito esforçado, crianças também. Então, foi daí que começou
a se desenvolver musicalmente. Ele era autodidata,
porque a instrução musical que ele teve não foi muito grande. Mas ele tinha querer e vocação! De forma
que foi um dos maiores destaques... O meu pai era
uma pessoa modesta. Ele não gostava de... não era
pretencioso não, mas ele realmente tinha muita habilidade! Ele tocava qualquer instrumento de sopro.
Embora não tocasse podia dar aulas de piano, sabia
dar aula de piano. Foi professor de música muitos
anos e nesse setor, realmente ele se destacou na história de Cataguases.
Depois de casado, já mais velho, ele tinha uma
orquestra que tocava no Cinema Recreio durante os
filmes. O Cinema Recreio era bem montado. O cinema era mudo, então eles tocavam, procuravam mais
ou menos tocar a música de acordo com o enredo
149
do filme. Assim, se era um filme mais triste, eles
tocavam música de mais emoção. Inclusive, muitas pessoas diziam que iam ao cinema pela música. Gostavam tanto da orquestra que iam mais pela
música do que pelo cinema! Essa orquestra, ele dizia
que os empresários dessas operetas, desses grupos
teatrais elogiavam muito a Orquestra de Cataguases,
porque era mesmo muito adiantado pra época!
Eu me lembro que era meu pai, minha mãe porque ele também era pianista - Adolfo Teixeira, irmão dele. Tocava também uma irmã de minha mãe, a
Dona Madalena, viúva do Cesar Abranches, que foi
um dentista muito bom aqui de Cataguases. E outro,
o Pascoal Ciodaro, que era pai do “Seu” João Ciodaro,
“Seu” João pai da Irene Ciodaro. A Dona Carmelita,
mulher dele... Era assim... pessoas que faziam seguir
aquele conjunto. Eram profissionais. Durante o dia
tinham suas atividades e à noite iam para o cinema
tocar, para dar fundo musical. Eu acho que, naquela
época, não tendo televisão, não tendo cinema - aliás,
o cinema tinha, mas era mudo - e outras coisas atrativas, o pessoal se dedicava mais a esse tipo de arte, e
isso enchia o tempo deles.
Por falar nisso, eu tinha 7 anos mais ou menos,
eu me lembro perfeitamente disso. A casa onde o Dr.
Francisco morou e morreu, ali era uma casa pareci-
150
da com aquela casa do Lacerda, da casa da Meina
Vaz. Eram casas iguais parecidas... e tinha uma sala
muito grande com aqueles sofás de palhinha, piano... Lá em casa sempre teve piano. Então, quando
chegava depois do jantar - naquela época jantava-se
mais cedo - mamãe sentava-se ao piano e começava
a tocar. Isso eu me lembro muito! Aí papai pegava a
flauta e começava a acompanhar. O meu tio Adolfo
Teixeira tocava violino, não se continha, vinha com o
violino e começava a tocar. Daí a pouco aparecia o Sr.
Pascoal Ciodaro com o contrabaixo, começava a tocar.
Olha, os meus irmãos mais velhos tinham amigos...
os viajantes... Essas pessoas começaram a ir lá pra
casa. Aí uns começavam a declamar. Eram verdadeiros serões de arte! Um declamava, um cantava... As
companhias, em dia de folga, vinham também. Isso
aí, mais menos, no máximo até nove horas, porque
nove horas já era tarde, naquela ocasião. Eu me lembro perfeitamente dessas noitadas de arte. Isso deve
ter sido mais ou menos em 1927.
Agora, eu me lembro, quando nós morávamos numa casa em frente onde morou o falecido Dr.
Francisco, ali, pra lá da casa do Dr. Tarcisio. Aquela
casa ali foi do meu pai também, e eu morava ali em
criança. Não me lembro bem a idade que eu tinha,
mas eu me lembro, que depois de todos os serviços
151
caseiros - colocar todos os filhos na cama, ela teve
quatorze filhos - quando, às vezes não tinha cinema
pra ir tocar, minha mãe então é que iria tocar piano,
pra se exercitar e por prazer também!
Mais tarde, conversando com meus irmãos,
eu dizia que muitas vezes, deitado na cama, criança ainda, eu me emocionava ouvindo minha mãe
tocando e acabava chorando de emoção. Ela tocava
“A Grande Fantasia Triunfal” sobre o Hino Nacional
Brasileiro. Eu não sei a nacionalidade dele, o nome,
portuguesmente falando é Gottschalk5. É um arranjo
muito bonito!
Então, nós fomos criados assim, numa família
em que predominava a música.
Engraçado, os filhos de meu pai não se dedicaram à música. Todos eles - quase todos, menos eu
- estudaram um pouquinho. Quando chegou a minha
vez, ele já estava sem paciência. Mandou eu começar
a solfejar, eu comecei a chorar, ele falou:
- Some, some que eu não aguento mais!
Neste conservatório de musica da Dona Lila
Lorenzo Fernandes, que eu saiba, só três alunos tiraram nota dez, do princípio do curso até o fim, até o
5
) Louis Moreau Gottschalk, Orquestra Sinfônica de Berlim: Regência de
Samuel Adler; Piano: Eugene List.
152
exame no Rio de Janeiro. E desses três alunos duas
são da minha família. Uma é Renata, minha filha eu só tenho uma filha - que hoje mora na Argentina.
Outra é a Silvinha, casada com Paulete6 do Banco
do Brasil. A terceira, a Verinha, casada com Carlos
Alberto de Souza, filha da Dona Lila, tirou dez também, do princípio ao fim! A Renata casou, foi embora,
está cuidando dos filhos em Buenos Aires, não tem
mais tempo pra isso. O piano dela está aí. Quando
vem aqui, de vez em quando, ela se preocupa um
pouquinho... Eu acho que só a Silvinha é que continua gostando muito. A Verinha, nem tanto... De certa
forma eu, nós da família, embora a gente seja muito
modesto, sem falsa modéstia, nós nunca procuramos
receber homenagens, mesmo que a gente por ventura
merecesse! Mas recebemos com justificado orgulho o
nome da escola (Marieta Soares Teixeira) por se tratar
de uma professora de música, mãe de quatorze filhos,
um exemplo de mulher dedicada ao lar, dedicada a
criação da família. Então, homenagear uma pessoa
simples, do povo, uma mãe, uma senhora que criou
uma família com todo amor e carinho, todo sacrifício... Esse lado humano da homenagem...
6
) Paulo Sérgio Ferreira de Souza.
153
Agora é noite... mas aqui no quintal eu fiz
um jardinzinho... Eu gosto. Tenho muito orgulho
do meu quintal que é muito arrumadinho! O Paulo
Shelb, quando era presidente do “Operário” me
deu uma placa que sobrou da praça da Rodoviária:
Praça Rogério Teixeira! Então ele me deu a placa e
eu botei (no quintal). De forma que até hoje eu me
recordo desta fase da minha vida. E até hoje me emociono quando eu ouço o arranjo do Hino Nacional
Brasileiro, porque eu volto àquela época. Porque é
piano também, e ela (minha mãe) tocava isso... E tocada pela Orquestra Sinfônica de Berlim, não é nacional não, é alemão, mas tem solo de pianista. Descobri
esta fita numa loja, lá no Rio de Janeiro...
Nós tivemos crise de todo jeito! Foram momentos de muita dificuldade que nós vivemos!
Mudamos para o Rio, mudamos para Miraí, voltamos para Cataguases, essa luta toda e ela ali, no leme.
Mesmo porque o homem é um trabalhador, mas sem
ter uma retaguarda, uma mulher forte também segurando a barra, ele não vence não! De forma que a minha mãe deixou um exemplo muito bom, e eu creio
que todas as minhas irmãs seguiram. São todas excelentes donas de casa e pessoas do melhor conceito.
Mas em matéria de filharada nenhuma seguiu, não!
Quando chegou em (19)35, a situação da nossa famí-
154
lia foi ficando cada vez mais apertada. Muitos filhos,
muita coisa. Aqui não tinha emprego, não tinha nada.
Então meu pai foi convidado por uma sobrinha dele,
para ir para o Rio, pra gente se empregar lá. O primeiro, ponta de lança, fui eu. Eu tinha quinze anos
quando comecei a trabalhar. Já trabalho há cinquenta
e três anos!
Eu me lembro que saí aqui do Ginásio, daquela boa vida - apesar de ninguém ter nada, todo mundo vivia numa miséria danada - era uma boa vida!
Então, em julho, eu comecei nessa fábrica de lâmpadas. Eu fiz dezesseis anos em setembro e trabalhava
nove horas em pé! No fim do dia eu achava que minha perna estava mais curta que o corpo! Isto na GE,
na General Eletric, uma fábrica americana. Eu respeito o americano nesse ponto: o almoço lá era fabuloso!
A hora do almoço, tinha o restaurante, uma bandeja
muito farta, uma comida saborosíssima! Muito boa,
muito bem feita! Isto naquela época. Eu fiquei lá não
sei quanto tempo. Até houve um acidente comigo queimei o braço - coisa de somenos. No dia seguinte
eu estava trabalhando.
Dali, mais tarde, eu entrei para a Estrada de
Ferro Leopoldina, no Rio de Janeiro. Comecei a trabalhar como “boy”, na administração, com os ingleses. Eles eram muito gentis, muito atenciosos, muito
155
boas pessoas. Tratavam a gente muito bem, esses ingleses. Não posso falar mal de estrangeiro não, porque com quem eu trabalhei, eu me dei muito bem.
Nessa parte eu tive muita sorte. Tinha um irlandês,
que era mais exótico, me deu um relógio, o relógio
dele. Parece que ele estava sempre em briga com o
relógio. Acabou me dando o relógio e quedê que o
pessoal aceitava que um homem tivesse me dado um
relógio! Isso era preocupação de saber que aquele relógio foi mesmo ganho, se eu podia ter “subtraído” o
relógio, por uma fraqueza. Isso é coisa de educação,
que deve prevalecer em todas as famílias! Mas ele me
deu o relógio! Por fim, eles se convenceram mesmo
que eu tinha ganho: o relógio era uma porcaria! Não
funcionou nada e eu joguei fora!
Bom, mas ali da Leopoldina eu fiz, depois,
concurso para o Banco Crédito Real. Eu estava tão fora de estudo que eu não sabia mais nem fazer conta
de dividir. No duro! A gente vai largando de lado...
Mas eu tenho força de vontade! Eu sei que, quinze para as cinco da manhã, eu já estava estudando.
Estudava até a hora de trabalhar, ir para a Estrada
de Ferro Leopoldina. Depois eu pedi demissão e vim
pra Cataguases. Fiquei quatro meses - eu digo, com
franqueza, que foi o período da minha vida que eu
fiquei à toa - estudando para o concurso do Banco
156
Crédito Real. Então fiz o concurso e passei. Voltei para o Rio, o Banco me mandou para o Rio de Janeiro.
Mas meu período no Crédito Real foi um período
de uma gestação, porque nove meses depois, eu tinha feito concurso para o Banco do Brasil, fui para o
Banco do Brasil no Paraná.
Eu fui trabalhar em Ponta Grossa, no Paraná.
Cidade muito boa! Ponta Grossa é uma cidade fabulosa! Naquela época, era a segunda cidade do Paraná.
Cidade muito limpa, um planalto, novecentos e setenta metros de altitude. Venta muito. O vento varre a cidade, não precisa ter varredor não. Então, eu
acostumando na cidade fui transferido para o Rio,
novamente. Eu tinha um irmão que era do Banco e
conseguiu minha transferência, meio assim sem eu
querer. Mas foi bom, porque eu me aproximei novamente daqui. Eu cheguei no Rio mais ou menos em
setembro, em abril de (19)42 eu já estava transferido
para Cataguases. Eu fiz a carreira do Banco toda em
Cataguases. Em (19)43, logo em seguida, eu já peguei
um cargo de comissão no Banco.
Então eu fui depois chefe da Carteira Agrícola.
Minha vida toda foi no Banco do Brasil, então funcionário comum, depois fui pra Carteira Agrícola.
Eu lidei muito com o pessoal da roça daqui. Eu tinha muito pouco contato com o pessoal da cidade
157
propriamente dito. Então eu fui a subgerente, fiquei
mais preso internamente. Depois eu fui à gerência, aí
(lidei) mais com comércio e indústria.
Um dos funcionários que trabalhavam comigo, e eu gosto de lembrar sempre, é o Levi Simões
da Costa, que escreveu este livro “Cataguases
Centenária”. O Levi era uma criatura fora de série!
O Levi sempre foi muito modesto, tinha muita timidez pra redigir. O Levi era incumbido de examinar
os relatórios finais da Carteira Agrícola. Um relatório normal era resolvido na Agência mesmo, mas todo relatório que tinha uma anormalidade tinha que
ser encaminhado à direção geral do Banco. Então,
havia necessidade de um parecer. O Levi punha esses relatórios na minha mesa para eu dar o parecer.
Então, falei:
- O Levi, você escreva!
- Mas eu não tenho jeito... Eu não sei...
- Você escreva o que você quiser! Você pode escrever
a maior bobagem, eu faço tudo de novo, mas preciso
que você escreva. Eu quero que você escreva!
Moral da história: o Levi escreveu um livro e
eu não escrevi livro nenhum! Mas eu acho que eu tenho o mérito de ter forçado o Levi a redigir, porque
no fim ele escreveu este livro. Um subsídio tremendo
para Cataguases! Esse livro sempre vai ser pesquisa-
158
do futuramente. Então, eu acho que tenho um pouquinho desse mérito desse livro do Levi.
Em janeiro de 65 eu assumi a gerência. Eu fui
nomeado em 1965 e fui gerente até 1972. Foi justamente no período... um ano depois da revolução, que
esse Roberto Campos foi Ministro do Planejamento,
e ele virou a mesa do país, financeiramente falando. Todo o sistema financeiro foi modificado por ele.
Houve uma recessão muito grande! Nós passamos o
maior aperto! Cataguases, mesmo, viveu momentos
de muito aperto! E eu peguei essa batata quente! Mas,
felizmente, aqui em Cataguases, os industriais daqui
sempre progrediram com cautela, batendo o pé no
lugar, sabiam onde estavam pisando. De forma que
eu consegui ajudá-los a vencer a crise. Isso foi em 65.
Eu fiquei até janeiro de 72, quando eu me aposentei.
Aliás, eu estava propenso a aposentar, mas eu nunca
acostumei a ficar à toa.
Aposento, não aposento, aposento, não aposento... O pessoal queria que o Rodrigo Lanna fosse
candidato a prefeito pela segunda vez. Ele não queria. Reuniram vários para ir forçar o Rodrigo a mudar de ideia. Fui junto com a turma. Eu não me lembro agora as pessoas. Mas as pessoas de maior destaque na cidade foram lá. Tinha bastante gente. Ele
relutou muito, no fim acabou aceitando. Muito bem,
159
passados uns dias ele me telefona:
- Renato, eu preciso falar com você. Que horas eu
passo aí no Banco?
- Bobagem, eu dou um pulo aí e converso com você.
Fui lá e ele falou assim:
- Você foi um dos que insistiram para eu aceitar a
candidatura e todos prometeram que, se eu precisasse, estavam às ordens. Eu vou precisar de você.
Você vai ser meu secretário na Prefeitura. Você vai
aposentar no Banco do Brasil e vai ser meu secretário.
- Que é isso Rodrigo?! A gente fala assim de brincadeira! Aquilo é pra botar sujeito em cima do lombo
do burro! Botar peão em cima do burro, depois deixar o burro pular!
Eu me aposentei. Já que eu tinha que me
aposentar mesmo, pelo menos é uma oportunidade de trabalhar pela minha cidade. Fiquei vinte
dias só à toa. Logo em seguida comecei a trabalhar
na Prefeitura com ele. Eu não sei como é a situação
hoje, eu sei que, naquela ocasião, dinheiro não tinha! O dinheiro era suficiente para a manutenção
da Prefeitura... Varrer as ruas, pagar o pessoal e olhe
lá! Durante os quatro anos que eu fui secretário da
Prefeitura - isso eu falo com muito orgulho - eu trabalhei com o meu carro e com a minha gasolina. E
160
o Rodrigo Lanna também viajava no carro dele. Nós
não tínhamos recursos, não tínhamos condições. O
sujeito ser um prefeito já é um sacrifício! E ainda vai
pagar pra ser prefeito, pra trabalhar! Era a contribuição que a gente prestava à cidade. Nós fazíamos isso
porque não tinha outro jeito, não tinha dinheiro. Não
tinha. Justamente aí é que houve a reforma tributária do Roberto Campos. O que vinha do Governo
Federal vinha com fins específicos: telefone, rodoviária, ICM... tanto para educação, tanto pra aquilo, tanto pra aquilo outro. O imposto da cidade é pouquíssimo. Até hoje eu acredito que o imposto arrecadado
na cidade é muito pequeno!
Depois dos 15 anos fui pro Rio. Trabalhei fora,
fui para o Paraná, voltei com 21 anos. Eu me lembro...
engraçado, eu morava... a Rua Major Vieira ainda
não era calçada, era de terra, e o senhor João Ciodaro
tinha um ônibus - o ônibus era tipo jardineira, aberto do lado - isso eu me lembro perfeitamente. Vocês
já viram esses ônibus antigos parecendo um bonde,
aberto de um lado e de outro? Então, ele fazia um
transporte... era mais um trenzinho praticamente,
porque não era pra transportar gente pro trabalho,
era mais pra passeio. Levantava uma poeirada!
Aqui (na rua) era uma família só! Morava ali
o pessoal do senhor Jota Lacerda, o Zé Lacerda que
161
já morreu, a Dona Olga, mãe dele, uma santa criatura! O senhor Alípio Vaz - o nome do Museu - a
Taninha, mãe dele. Tinha a Meina, a Maria, a Meirene,
a Marina, o Alísio, o Alípio, filho dele. Em frente de
minha casa morava o senhor Raimundo Queiroz.
Eu me lembro do Humberto Mauro, quando eu morava nessa esquina, em frente ao Hotel
Cataguases. Ali tinha uma casa, logo depois da casa
da Aninha7, do falecido José Pinto, tinha mais uma
casa e ali morava o Humberto Mauro. Eu me lembro,
ainda, de uma filmagem de Humberto Mauro, nesta casa onde mora hoje o Tarcísio. Ali morava o Sr.
Drumond, não me lembro o primeiro nome dele. Ele
era dentista e eu tratei de dente com ele, com motor
de pedal. Então, ali naquele terreno, um pouco pra
lá, na casa mesmo do Tarcísio tem aquela parte onde
desce pra garagem, ali era um terreno baldio. A casa
era um pouco pra cá... Morou muito tempo depois o
pessoal do Peloso: Dona Maria Peloso, Emília Peloso.
Não estou lembrando não... Então, ali tinha um menino, filho do Drumond, que fez parte em um filme.
Ele fazia parte de um dos filmes de Humberto Mauro.
Ele era um menino... Antigamente tinha aqui um sapo muito grande, que chamava sapo-boi. Eu não vejo
7
) Ana Pinto Pinheiro.
162
mais sapo-boi aqui, já desapareceu com certeza... Os
meninos colocavam cigarro na boca do sapo para ele
fumar. Já viram falar nisso? Pois é. Então foi filmado
pelo Humberto Mauro, eu me lembro disso8. Conheci
muito o Humberto Mauro. Assisti filmes dele e assisti às filmagens... A Eva Comello, o pai dela, o Pedro
Comello, conheci muito. O senhor Homero Cortes é quase contemporâneo, porque morreu tem muito
pouco tempo - o Homero Cortes era um dos financiadores, um dos produtores. Isso eu me lembro dessa
época. E gente muito amiga mesmo.
E depois eu me lembro quando a Rua do
Pomba foi calçada, em “pé de moleque”. A gente
chamava a Rua do Pomba, até hoje a gente chama
Rua do Pomba, para mim é Rua do Pomba! Calçou
em “pé de moleque”... rede de esgoto... A gente jogava bola de meia. Hoje não se vê menino com bola
de meia. Era meia comprida: virava a meia, enchia
de pano, fazia aquela bolinha, costurava e era bola
de meia. Valia mais a força do pé do que outra coisa! Gente no meio fio, um empurra pra lá, outra pra
cá, aquela briga! Podia-se jogar bola no meio da rua
à vontade... O que eu queria dizer é o seguinte: era
uma família só. As mães tomavam conta de todos co8
) Cena do filme Thesouro Perdido, 1927.
163
mo se fossem zeladoras de todos. Aquela que tivesse
ocupada não se preocupava, que outra mãe tomava
conta, chamava atenção. E não havia briga de vizinho, não havia não. As meninas brincavam de roda
e os meninos brincavam de pique e outras coisas, até
uma certa hora. Aí de repente: fulano, beltrano, sicrano, cada um pra sua casa tomar banho, lavar os pés,
não sei o que e tal, porque era tudo poeira!
Tinha uma família aqui, o Luiz Megre, o Miguel
Megre... Eu não sei se eles eram descendentes de
franceses... Naquela época tinha um portão na minha casa e eu conseguia, com o “Seu” Megre, a gente pedia emprestado o lagarto e arranjava barbante,
qualquer coisa assim, e punha o lagarto em baixo
do portão. E ficava do outro lado da rua. Quando ia
passando, principalmente pessoa velha, a gente ia
puxando devagarinho aquele lagarto... Aquela farra!
Era uma brincadeira ingênua, mas era a nossa brincadeira daquela época. Eu sei que o mundo mudou
muito!
Eu sou meio piadista. Eu costumo dizer que o
único diploma que eu tenho é de primeira comunhão.
Até botei na parede! Mas eu fui vítima das circunstâncias. Em (19)34 eu repeti o ano, o terceiro ano ginasial
eu repeti. Em consequência disso eu perdi a minha
turma, que se formou mais tarde. Eu voltei... Fiquei...
164
O senhor Amaro era o diretor do colégio antigo, aqui em Cataguases. Quando eu estava no segundo ano ginasial, ele arrendou o colégio para uns padres. O senhor Amaro já estava cansado. Anos e anos,
a vida inteira lutando, calculo eu, estava cansado e
achou que seria uma boa. Quer dizer, arrendava para
os padres. Os religiosos sempre foram destacados como educadores - seria uma solução para Cataguases
e para ele propriamente. Mas não deu certo. Isso foi
em 1933... 34, por aí. Não sei se eles eram franciscanos. Sei que tinham aqueles capuchinhos espanhóis,
que estavam fugindo da revolução na Espanha. Então, nessa época, vieram esses padres espanhóis para
Cataguases... Eles não falavam português e ficou conturbado o estudo. Com esses padres ficou completamente desmanchado o colégio. Eles ficaram aqui
um ano e meio, mais ou menos, se não me falha a
memória. Então, a gente... menino sabe como é que
é, muito levado, nós já fomos assim meio de cambulhada. Quando chegou no meio do ano seguinte, eles
abandonaram simplesmente... Quando o Franco9 dominou a situação eles entregaram o colégio ao professor Amaro e foram embora! Os outros professores
9
) Franco, ditador espanhol.
165
já tinham saído. Não tinha mais professores aqui, na
época, contratados pelo professor Amaro. Então ele
ficou no ar. Foi muito difícil pra ele! Ele se esforçou
ao máximo! As filhas dele, a Carmenzinha, a dona
Filhinha, eu me lembro que tinha um médico aqui, o
doutor Sicarini, que também dava aula... Era o único ginásio que tinha. Tinha o colégio das Irmãs, mas
era só mulheres, era feminino... Bom, em consequência, eu repito o ano. O francês era a matéria que eu
tinha mais facilidade na época, mas o Antoniquinho
Mendes, que era o professor, me reprovou. A minha
irmã Silvia, a mais velha falou assim:
- Não tem esse negócio de fazer segunda época não.
Se tomou pau tem que repetir o ano!
Isso era a conclusão dela... eu achei que podia...
Eu lembro do Cardozinho, foi meu colega. Tinha o Leôncio Moura, filho do juiz... A Josélia
Peixoto, Irmã do Zezito... Tinha a Dinha, a Maria
de Lourdes, que é filha do doutor Amaro também...
Foram meus colegas. Eu lembro do Luiz Peixoto, que
foi escrivão até pouco tempo... Era uma série muito
grande. Uns seguiram e eu fiquei com a turma atrasada... Meu amigo Luiz Peixoto era também um menino meio levado. Nós fizemos as nossas artes aqui...
Mas as artes de antigamente, comparadas com as de
hoje... Dá pra tornar santo qualquer um!
166
Eu tenho uma prima, que mora em Uberlândia
- nós brigamos porque ela é defensora da separação
do Triângulo - ela saiu de Cataguases pequenininha,
novinha, mas ela tem uma ligação... tem um amor
por Cataguases! Coisa impressionante! Então ela veio
aqui, depois de muitos e muitos anos e fez questão
de ir lá no chalé. Eu tirei uma fotografia de lá e tudo
(para) a família conhecer...
Uma das meninas que está fazendo esta pesquisa já descobriu de quem (o meu avô) comprou o
“Porto dos Diamantes”... Pode ser, quem sabe, talvez
um engano, porque isso pode acontecer. Mas trinta e
seis quilômetros afora passaria de Barão de Camargo
e chegaria bem longe. Sairia talvez, até, da área municipal. Não seria o caso. Eu acho que há um engano qualquer. É ali mesmo! Está lá! Ainda resta, ainda
existe o chalé!
Entrevistado em 14/6/1988 por João Carlos Juste e Rosângela Schettini
Rodrigues
167
SEBASTIÃO LOPES NETO
PA S T O R M E T O D I S TA
70 anos
Em primeiro lugar, eu gostaria
de agradecer a oportunidade que a Secretaria de
Cultura está me oferecendo para esta entrevista, relatando alguma coisa ligada à Igreja Metodista, em
Cataguases. Em segundo lugar, devo me apresentar
como pastor da Igreja Metodista em Astolfo Dutra,
Campestre, Piraúba e Dona Euzébia, tendo nascido
na cidade de Cataguases, no dia 8 de janeiro de 1922,
e aqui militando na Igreja Metodista desde a infância. Quando eu nasci meus pais já eram da Igreja
Metodista. Naturalmente, como filho de membros da
Igreja Metodista, eu tive uma ligação muito grande
com a Igreja.
Foto: Templo Metodista (rua Major Vieira), Alberto Landóes, 1915,
Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de
Cataguases
169
Meus pais - Otávio Corrêa Neto e Ana Áurea
Neta - eram muito fiéis à Igreja e, desde a minha
meninice, ensinando e doutrinando para servir à
Igreja. Numa certa ocasião eles mudaram aqui para
Cataguases e foram residir numa fazenda próxima
do Estado - a localidade era conhecida por Estado10
- e ali eles se tornaram metodistas. Trabalhando sob
a administração de Bento de Souza e dona Maria de
Souza, uma família da Igreja Metodista, eles vieram
a conhecer a Igreja. Meu pai era carpinteiro e minha
mãe do lar, naturalmente.
Os dados que eu tenho sobre a história da
Igreja Metodista foram coletados pelo reverendo
Epaminondas Moura, que foi pastor aqui na década
de 40. Através de documentação, através de informações de nosso saudoso irmão José Fernandes Sucasas,
o que nós temos aqui é o seguinte, e eu tomo a liberdade de fazer a leitura do próprio histórico da Igreja:
“No dia 9 de fevereiro de 1894 chegou em
Cataguases, pela primeira vez, o Reverendo Felipe
Revale de Carvalho, que trazia algumas Bíblias para vendê-las aqui na cidade. Contudo, havia um fato
curioso, ele não conhecia ninguém... Naquela época o senhor Sucasas trabalhava de alfaiate ali, num
10
) Antiga Colônia Major Vieira.
170
prédio próximo à Estação da Estrada de Ferro. E, trabalhando ali, viu aquele homem passar com aquele
amarrado de livros, e o chamou e perguntou que
livros eram aqueles que ele levava. Então, ele disse
que era a Bíblia e outros livros religiosos para vender. E o Sucasas, naturalmente, perguntou a ele como
fazia para adquirir os livros. Como o Sucasas vinha
da Espanha e via falar tanta coisa a respeito da Bíblia
dos chamados protestantes, ele quis tomar conhecimento. Adquiriu duas Bíblias de uma só vez, em vez
de adquirir uma Bíblia só. E passou a estudar a Bíblia.
Sempre que Felipe Revale de Carvalho vinha à
Cataguases hospedava-se na casa do Sr. Sucasas e da
Dona Encarnação. E também do Sr. Ezequiel Alonso,
sogro do Sucasas, também espanhol.”
Já nessa época residiam na Rua Alferes
Henriques de Azevedo, naquelas imediações do
Sindicato de Fiação e Tecelagem. E ali surgiu a
ideia da criação de um ponto de pregação da Igreja
Metodista. Residindo ali, eles instalaram ali a
Congregação Metodista. Ela teve seu ato inaugural
no dia treze de maio de 1894. Mas no dia 20 de maio
de 1894, quando eles estavam ali reunidos - realizavam um trabalho normal de culto, de estudo da palavra de Deus - aconteceu um fato inédito! Aquele ambiente muito alegre, muito festivo, foi surpreendido
171
com a chegada de, mais ou menos, cinquenta homens
armados de porretes e de chibatas, tiraram o pastor
de dentro da casa, levando até as proximidades da
Estação Ferroviária. Arrastado pelas ruas da cidade!
O propósito deles era deportá-lo, mandar para outra
cidade! Naquela época havia uma intransigência religiosa. Havia como que uma certa oposição entre o
catolicismo e o protestantismo. Com essa oposição
a igreja sofreu quando iniciava aqui o movimento.
Mas o Sr. Sucasas, que era jovem ainda, espanhol, de
sangue agitado né, então ele enfrentou todos aqueles homens. E surgiu também José Schettini, uma
figura que era da maçonaria em Cataguases. Então,
juntamente com ele, conseguiu tirar Felipe Revale de
Carvalho das mãos dos agressores. Retornaram com
ele ao ponto de partida, lá na Rua Alferes Henriques
de Azevedo. Não tardou que chegasse lá um capitão
da polícia, juntamente com as autoridades, perguntando ao pastor se queria que punisse os agressores.
Ensanguentado, Felipe Revale de Carvalho - com a
roupa toda em sangue - já presidindo uma reunião
de orações, pedindo bençãos a Deus para dar força
àquele povo. Mesmo naquele estado! O reverendo
disse:
- Não, não quero que dê castigo nenhum a eles. Eu
desejo apenas que eles se convençam, reconheçam o
172
poder de Deus e esse poder do evangelho, que transforma suas vidas espiritualmente. Essa foi, naturalmente, a primeira iniciativa, vamos dizer assim.
Na época era tão pequeno o grupo pra começar! Era
nada mais que umas quatro ou cinco pessoas.
Agora, uma coisa que devemos observar também, no início, era pouca frequência. E sendo pouca frequência enfrentava-se, também, um problema
muito difícil! Na época fazia-se de tudo para sufocar
aquele trabalho que estava começando, estava se iniciando... Mas aconteceu que logo no início houve várias conversões. Muitas pessoas começaram a chegar...
Era esse o desejo, mas para decidir mesmo, para batizar, para se tornar membro da igreja, foram poucas.
José Fernandes Sucasas foi o pioneiro, vamos dizer
assim, o iniciador. Ele, juntamente com o sogro dele,
Ezequiel Alonso é que foram os primeiros. Depois começou a chegar, como foi o caso da família do Bibiano
Pimenta... Outras pessoas. Mais ou menos na época,
quando foram recebidos Bibiano Pimenta e sua esposa, foram recebidos o senhor José de Almeida e a
esposa, um outro simpatizante, um outro membro
da igreja. Mais tarde, a figura do nosso saudoso irmão Sizenando Dutra de Siqueira, avô da nossa irmã
Gláucia né, que foi um dos que ajudou, também, a levar avante a bandeira do metodismo, na época.
173
Agora, nós temos aqui os quatro primeiros batizados realmente. No dia 15 de outubro de
1894, Felipe Revale de Carvalho recebeu por batismo e profissão de fé, os primeiros quatro metodistas: José Fernandes Sucasas, José de Almeida Pinto,
Encarnação Del Rego Sucasas e Bibiano Pimenta. No
dia seguinte - porque eles faziam reuniões diárias mais dois batizados: dona Hisbela Francisca Pimenta,
que era esposa do Bibiano, e a dona Angélica de
Moura. Agora, conforme eu disse, surgiram posteriormente outros nomes como: Joaquim Pereira
Louro, Sizenando Dutra de Siqueira e muitos outros.
Depois tiveram sequência em prosseguir a obra do
metodismo em nossa cidade.
A Igreja Metodista de Cataguases é a pioneira
dessa região toda aqui. Foi daqui que saiu a igreja
das cidades de Leopoldina, Ubá, Além Paraíba. Toda
essa região da Zona da Mata leste, enfim. Quando o
Reverendo Felipe chegou aqui, ele era um pastor missionário, quer dizer, era subordinado à Conferência
de Juiz de Fora, parece. Ele percorria essa região fazendo trabalho missionário.
Nós conseguimos pesquisas, né. Havia uma
coisa interessante... Isso é um fato verídico! Acontecia
o seguinte: os que saiam a campo mesmo, para realizar o trabalho verdadeiramente, era o José
174
Fernandes Sucasas e o Bibiano Pimenta. Agora, o
seu avô, o senhor Sizenando Dutra de Siqueira e o
Joaquim Pereira Louro - que eram homens de certo
poderio econômico por aqui - custeavam as despesas
desses que estavam no campo realizando trabalho.
Eles faziam questão! Pagavam a mensalidade para
que o senhor José Fernandes Sucasas se dedicasse ao
trabalho religioso. Ele tomava algum tempo da profissão dele - alfaiate - então aquilo que faltava eles
complementavam. Era assim custeado por eles. Era
cooperação.
Agora, uma coisa que eu gostaria de frisar, já
que estamos falando sobre a história, é que, infelizmente, daquele ponto de pregação da Rua Alferes
Henriques de Azevedo, quando nós tivemos aquela
prova de fogo, como eu já me referi, o Monsenhor
Araújo - que era o padre da Igreja Matriz - ele assistia
passivamente da casa dele! Eu tenho a impressão que
seja ali, naquela casa onde mora a família do doutor
Tarcísio, hoje. Pela que se deduz, seria ali... A hostilidade era a olhos vistos, dada a oposição religiosa
que havia na época. Inclusive, a residência do senhor
José Sucasas era alvo de pedradas. Atiravam pedras...
quebravam janelas... Era realmente uma época muito
difícil, de pouca tolerância religiosa. A intolerância
foi mais com o Monsenhor Araújo...
175
Dali, da Rua Alferes Henrique de Azevedo, teve algum tempo reunida na casa do senhor Bibiano
Pimenta, avô do Jairinho - Jairo Pimenta Junior - esse
nosso amigo. Mas eu não consegui precisar onde era
a casa do Bibiano Pimenta. Procurei o Jairinho, ele está viajando, está para São Paulo, então não consegui
precisar... Da casa do Bibiano Pimenta a Igreja foi pra
Rua do Pomba, que é a Major Vieira, ali no Beco da
Cadeia. Tem fotografia do templo ali... Dali nós fomos para a Avenida Astolfo Dutra, em terreno que
foi doado pela Prefeitura Municipal de Cataguases.
Na época, foi inaugurada em 30 de julho de 1922, já
tinha acabado aquilo, em parte. A própria comunidade dando apoio aos trabalhos da Igreja Metodista.
Em 1922 a situação amenizou bem.
Quando saíram aqui do beco da cadeia, do
templo antigo para o templo novo, da Avenida, saíram em procissão. O jornal Cataguases deu ampla
cobertura do acontecimento de inauguração do novo
templo. O senhor Pergentino era superintendente da
Escola Dominical, ia à frente com o Reverendo José
de Azevedo Guerra, o pastor. E a banda de música
acompanhando o desfile dos metodistas.
Eu acho que a causa metodista pesou muito,
quando Felipe Revale de Carvalho teve aquela atitude. Foi dado conhecimento à própria comunida-
176
de... As autoridades queriam punir os agressores...
Inclusive o Doutor Astolfo Dutra, que era pai do
Doutor Pedro Dutra Nicácio, neto, quis mover um
processo e Felipe Revale de Carvalho foi lá no Fórum
e pediu a retirada do processo! Quer dizer: não punissem os agressores, que cada um deles se conscientizasse, e salvasse a vida deles espiritualmente...
Transformasse, né?
Naquele tempo, Cataguases era uma pequena
cidade. Eu acho que isso aí pesou muito na balança
porque a comunidade tomou conhecimento desse
fato. Então começaram a sentir que aqueles poucos
evangélicos, que estavam ali, mereciam um certo
apoio! No dia da inauguração estavam vários pastores, inclusive o bispo da Igreja Metodista, na época.
Não preciso o nome dele, porque não consegui... Eu
não tenho nome de todos aqui... Mas foi, realmente, uma noite de gala para a família Metodista de
Cataguases, o ato de inauguração, em 1922.
O templo que nós temos agora foi ampliado. Nós construímos no fundo aquele salão social.
Está servindo até à comunidade, com salas de aula
alugadas ao município, para atender à reforma do
grupo Coronel Vieira. Examinando as atas da Igreja,
examinando todos aqueles dados históricos, houve
um crescimento rápido. A gente vê pela recepção de
177
membros anualmente. Sempre havia um crescimento,
a despeito daqueles que saíram de Cataguases para
outras cidades...
Naquela época poderíamos dizer que a classe social que era recebida como membros da Igreja
Metodista era... equilibrada. Uma parte mais humilde, outra mais elevada e entre eles podemos
destacar a família Siqueira: dona Jandira Siqueira,
que era formada em farmácia; o senhor Pergentino
Siqueira mais os filhos do senhor Sizenando, como o
Elvindo, professor em Belo Horizonte. Então, a Igreja
Metodista tem caminhado no campo da conquista de
almas para Cristo. É o objetivo principal!
Nós observamos que a Igreja tem um nível social equilibrado, nós temos pessoas de uma certa capacidade intelectual e temos, uma boa parte também,
de pessoas mais humildes. Mas todos eles se desenvolvem! Todos eles procuram se aprofundar, cada
vez mais, nos conhecimentos religiosos, na doutrina
da própria Igreja. O relatório escrito pelo reverendo
Felipe Revale de Carvalho, datado de 17 de outubro
de 1894, diz o seguinte:
“Amados irmãos,
É com contentamento indizível que eu levanto-me diante
de vós, congregados em conferência, para relatar-vos so-
178
bre a nossa obra evangélica, desde que para aqui cheguei,
enviado em nome de nosso Bendito Salvador Jesus Cristo. Entrei na cidade de Cataguases com fim único de pregar o evangelho da salvação, no dia 9 de fevereiro de 1894.
Durante três meses e quatro dias, unicamente, conversei
com o povo e visitei várias famílias. No 13 de maio, gloriosa data da fraternidade brasileira, inaugurei nossa sala
de culto, desde quando temos trabalhado com regularidade, pregando todos os domingos, às sete horas da noite, à
uma assistência média de vinte pessoas. Às onze horas da
manhã, uma Escola Dominical com assistência satisfatória.
Pela fidelidade dos irmãos, nossos ouvintes, aos cultos e à
aceitação das Santas Escrituras e Doutrinas, temos tido
como resultado a benção já conhecida por nós, isto é, trinta
e três candidatos. Destes, seis foram batizados e fizeram
sua profissão de fé. Esses são os seguintes: José Fernandes
Sucasas, Encarnação Del Rego Sucasas, Bibiano José Pimenta, Hisbela Francisca Pimenta, Firmina Angélica de
Moura, José de Almeida Pinto. E batizamos também três
crianças que são: Leopoldo Del Rego, Samuel Del Rego e
Israel de Carvalho. A causa evangélica da cidade promete
um futuro risonho, embora muitos de nossos candidatos
tenham se retirado e mudado de residência. A nossa Escola
Dominical, que foi organizada com dez membros, só tem
uma classe devido a motivos justos, mas em tempo oportuno aumentaremos os membros e o número de alunos das
179
classes. Contamos, presentemente, com treze membros,
que se esforçam a responder as perguntas que lhe são feitas.
Durante o tempo de minha residência na cidade tenho conseguido angariar vinte e sete assinaturas do órgão oficial da
Igreja, ‘O Expositor Cristão’, e tenho a esperança de mais
alguns. Concluindo esse relatório, peço aos irmãos congratularem-se comigo por termos já uma Igreja Evangélica
organizada em Cataguases, e pedir ao Nosso Pai Celestial,
que nos cubra com suas santas bênçãos e nos guie com o
Espírito Santo, para que possamos desempenhar a nossa
tarefa, que é bastante espinhosa.
Nada mais tenho a dizer.
Respeitosamente,
Felipe Revale de Carvalho
Pastor”
Naturalmente que o trabalho produziu frutos.
Em primeiro lugar, todos aqueles que passaram a militar na doutrina metodista, abandonando um caminho de vícios, de erros, caminho de pecados, essa coisa toda, eles obtiveram frutos procurando santificar
mais a vida. O espírito doutrinário obedece a uma
doutrina rígida com referência à abstenção de vícios,
essas coisas... Já saíram daqui para desempenharem
suas missões dentro do pastorado da Igreja. Dentre
eles, podemos destacar o Bispo Isaías Fernandes
180
Sucasas, que chamado para ser pastor veio a ser, mais
tarde, consagrado bispo da Igreja Metodista do Brasil.
Ele passou a exercer o episcopado ao tempo em que
a Igreja só tinha um bispo. Como pastores nós temos o José Sucasas Junior, filho de José Fernandes
Sucasas, hoje aposentado. Temos o Tércio Machado
de Siqueira, pastor metodista também, hoje exercendo o magistério na Faculdade de Teologia em São
Bernardo do Campo, São Paulo. O Tércio, inclusive,
esteve fazendo mestrado na Inglaterra e nos Estados
Unidos. Nosso irmão Tércio Machado de Siqueira é
hoje uma das colunas mestras da Igreja Metodista do
Brasil, em matéria de cultura, do Velho e do Novo
Testamento.
Aluísio Faria de Siqueira, militando no pastorado em Belo Horizonte; Luiz Israel de Barros foi
pastor aqui em Cataguases cinco anos, falecido recentemente. Nós tivemos também o Ormeu Alves da
Costa, pastor lá em Curitiba, Estado do Paraná; Silas
Namorato, pastoreando em uma das Igrejas de São
Paulo; Olívio Andrade da Silva, que saiu daqui para
pastorear igrejas e hoje faz parte, como economista,
da alta cúpula da Igreja Metodista! E Sebastião Lopes
Neto, que está sendo entrevistado, pastoreando quatro campos: Astolfo Dutra, Piraúba, Campestre e
Dona Euzébia.
181
Pra chegar ao pastorado, naturalmente depois
do preparo ginasial, ou melhor, primeiro e segundo
graus, vai à Faculdade de Teologia, fazer cinco anos
de bacharel em teologia... Fazer um vestibular para
ingressar é... (curso) superior! Agora, existe também
a categoria pastor evangelista. Esse pode chegar ao
pastorado através de um curso básico de teologia,
que é o meu caso. Eu sou pastor evangelista. O critério para a escolha do candidato hoje é da Igreja
local, onde a pessoa está exercendo a sua atividade
religiosa. Ela é recomendada pelo Concílio da Igreja
às autoridades superiores para dar encaminhamento
ao processo de estudo do candidato. Muita gente aí
anda confundindo as coisas...
- Eu vou ser membro de determinada Igreja pra ser
pastor!
Não é bem isso não! O chamado para o Ministério é uma coisa realmente maravilhosa! Meu chamado foi através de uma visão, em sonhos. Eu atribui que foi Deus falando. E Deus, realmente, me
abençoou e tenho feito um trabalho... da melhor forma possível.
Para ser missionário da Igreja Metodista exigese o curso superior, desde que a igreja existe. E sempre teve, assim, uma oportunidade para aqueles que
não pudessem chegar ao curso superior. Pra atender
182
às Igrejas menores, poderia ser através de um curso
básico de teologia, ou uma equivalência, vamos dizer
assim. Eu tenho a impressão que o Felipe Revale de
Carvalho tinha curso superior porque ele exercia o
trabalho missionário.
O trabalho metodista iniciou em 1738, na
Inglaterra, através do movimento de John Wesley,
juntamente com seu irmão Carlos Wesley. Ali na
Inglaterra eles se levantaram para aconselhamento
dos jovens, num momento de revolução espiritual.
Eles denominaram de “grupo santo”. John
Wesley relata, no diário dele, que cancelava nomes
de membros da Igreja por quebra do dia de domingo! Quem trabalhava domingo era excluído da Igreja!
Quem passava na rua e olhava para a mulher do outro, se ficasse provado... Chegou ao Brasil com os primeiros missionários americanos. Vários bispos americanos passaram por aqui! Até pastores americanos
pastorearam a Igreja Metodista de Cataguases!
A igreja procura manter o seu nível doutrinário
e disciplinar. Ela não pode abrir mão totalmente! A
essência ela procura manter! Um equilíbrio... continua a abstinência dos vícios. O jogo, por exemplo, a
loto, a loteria, é proibido... se tornar um alcoólatra, é
excluído da Igreja! Tudo isso é abstinência de vício!
Se cometeu falta grave é advertido, dá-se oportuni-
183
dade por determinado tempo. Agora, se continuar...
A Igreja não abre mão disso! Desde os tempos de
Wesley a filosofia é esta. A Igreja Metodista não está
preocupada em quantidade, mas sim em qualidade.
Agora, as Igrejas aí estão preocupadas em conseguir
maior número de adeptos... Mas do jeito que entra,
sai. Parece que não há consistência doutrinária. A
pessoa entra por entusiasmo, né. De qualquer forma,
seja qual for o tipo de trabalho, tem seu mérito porque estão contribuindo para um aprimoramento de
cada cidadão. E isso vem ajudar muito no comportamento da vida de cada pessoa: deixar aquilo que
eles faziam, aqueles vícios que tinham, abandonaram
aquilo tudo para se dedicar a uma causa.
Agora, infelizmente, o que nós estamos vendo aí, pela televisão... Há uma proliferação muito
grande de pessoas, que assumem o comando de uma
igreja, visando mais a parte monetária. O perigo está
aí! A Igreja Metodista, como muitas igrejas evangélicas, sobrevive com as contribuições que os membros dão. Mas a Igreja Metodista não faz carga cerrada em termos de contribuição, quer dizer, pede a
cada membro uma oferta liberal, naturalmente. Uma
oferta liberal quer dizer nem tão pouco, mas também
não muito! Cada um na medida que pode, na possibilidade...
184
Há anos atrás, a Igreja desenvolvia um trabalho melhor, realmente. Mas de uns tempos para cá,
parece que havia se acomodado. Agora a Igreja hoje está com nova dimensão. A igreja parte para um
trabalho de avivamento espiritual. Em Astolfo Dutra,
a Igreja Metodista vai espantar muita gente, porque
é um trabalho de despertamento espiritual. A Igreja
cantando, orando, vibrando, testemunhando o evangelho! De uma maneira positiva e extraordinária! E
a mocidade que tá abandonando o mundo lá fora e
se entregando nas mãos de Deus. Por exemplo: eu
tenho dois jovens na Igreja - um cantava no conjunto da cidade, outro jogava futebol - abandonaram...
Ainda não é membro da Igreja, ainda não se batizou,
ainda não assumiu o lado de membro da Igreja!
- Não, para servir a igreja e ser realmente um cristão,
eu estou abandonando tudo lá fora, que possa impedir a minha candidatura!
Eu vejo a Igreja se despertando realizando um
grande trabalho... Cataguases está despertando também. Agora, no tempo em que fomos da sociedade
de jovens, você lembra, você também já pertenceu à
igreja, nós tínhamos um trabalho muito bem programado. Muito bem programado!
A Igreja tem uma comissão de Ação Social
e essa comissão procura atender, na medida do
185
possível, e diante de suas possibilidades de arrecadação, às pessoas mais carentes da própria Igreja.
Naturalmente dando uma certa prioridade aos membros mais pobres da igreja e, também, atendendo
às pessoas pobres da comunidade, geralmente em
época de Natal: distribuição de gêneros alimentícios, roupas, etc. Os trabalhos da Igreja Metodista
se organizam dentro da própria igreja, por exemplo: Sociedade de Senhoras, Sociedade de Homens,
Sociedade de Jovens... Crianças... Cada um na sua
faixa etária, procurando elevar o nível de cada um
deles.
Eu gostaria de fazer aqui uma colocação muito
importante. Nós falamos tanto no princípio - a época
em que a Igreja enfrentou duras perseguições - que
havia aquela oposição, então eu gostaria de dizer hoje,
aqui nesta entrevista, como a Igreja hoje caminha. Eu
me recordo que, no pastorado do Reverendo Omar
Daibert, nós fizemos parte de uma Comissão Central
de Festividades aqui. Numa reunião que nós estávamos lá na Prefeitura - Omar Daibert, Monsenhor
Solindo, e membros da comissão - o reverendo Omar
propôs um culto de Ação de Graças, nas festividades
de 7 de setembro11. Houve a proposta do pastor da
11
) Festividades de aniversário da cidade.
186
Igreja Metodista, e houve apoio. Monsenhor Solindo
gostava de estar sempre relacionado com metodistas.
O pastor propôs que a Católica fizesse seu palanque
de um lado, que a Igreja Metodista faria de outro. O
monsenhor levantou e declarou:
- Ô pastor, porque não estamos juntos, as duas
Igrejas no mesmo palanque?
- Desde que o palanque estivesse simples.
O pastor Omar Daibert aceitou o desafio e, naturalmente, fez algumas observações... Nós temos a
nossa doutrina e a Igreja Católica tem a dela... Foi
combinado tudo isso e, no dia 7 de setembro, nós estávamos no palanque: os pastores, o coral da Igreja
Católica e o Coral da Igreja Metodista. Eu tenho fotografia desse evento: 1962. Outra coisa que eu gostaria
de dizer, é que aquele mesmo pastor que foi massacrado, que foi arrastado pelas ruas da cidade, hoje
dá nome a uma das principais avenidas do Bairro
Independência, um dos bons bairros de nossa cidade.
Foi na administração do prefeito Milton Cavalheira
Peixoto este ato, homenageando os metodistas, dando nome: Avenida Reverendo Felipe Revale de
Carvalho. Eu publiquei uma reportagem... A inauguração se deu no dia 20 de maio de 1979, quando estiveram presentes autoridades civis, militares e religiosas. O decreto da egrégia Câmara Municipal recebeu
187
o número 942 e foi publicado no Jornal Cataguases,
no dia 6 de maio de 1979. Quer dizer, nós vimos aqui
duas épocas distintas: uma em que havia intolerância religiosa, e hoje nós caminhamos de mãos dadas,
para alegria de toda nossa comunidade. Haja visto o 7 de setembro este ano (1990). Nós tivemos um
grande culto ecumênico abrangendo todas as Igrejas
Evangélicas de Cataguases. Todas as Igrejas da cidade estiveram no palanque, não somente a Igreja
Metodista e a Igreja Católica.
Encerrando essa nossa entrevista sobre a
História da Igreja Metodista de Cataguases - este ano
ela completa 96 anos de existência - que está a caminho do centenário, nosso propósito é realmente dar
um cunho festivo. Que esta data do centenário marque época na história religiosa de Cataguases! Como
humilde membro da Igreja Metodista de Cataguases,
filho da terra, filho dessa Igreja que tanto amo, essas
são as minhas palavras para deixar nos arquivos da
Secretaria de Cultura.
Entrevistado em 3/4/1990 por Gláucia Siqueira e Mariana Cândida.
188
189
S Í LV I A M E N D O N Ç A L E I T E
(DONA VICA)
DONA DE CASA
85 anos
Meu pai, Veríssimo Mendonca, ele era
fazendeiro. Aquela fazenda onde é que chama Ibraim
Mendonça, aquilo ali era de papai, ali era uma fazenda, Santa Clara. Vinha até aqui na cidade, atrás do
Hospital, Vila Tereza (atual). Ali tinha uma porção de
casa até ali em baixo; aquela casa tá lá até hoje, é dele,
uma casa que tem uma entrada assim, perto daquele... daquele gerente da “Cima”. Aquilo ali é do papai.
Papai quando morreu deixou pra Ceição. Ceição foi
herdeira, uma irmã, né. Conceição. Depois ela vendeu.
Primeiro ele tinha uma outra fazenda lá em
Santa Cecília, lá perto da Fazenda Estrela. Era um
sítio, uma fazendinha, né. O movimento da fazenda
era café, cana, né, essas coisas de engenho de cana...
Foto: Vila Tereza, A Brasileira, 1915, Departamento Municipal do
Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases
191
Tinha os empregados. Não, tinha grande numero não.
Uns quatro, cinco. Hoje acabou tudo, aquilo tudo lá é
pasto hoje. Já passei lá há pouco tempo, já vi, não tem
mais nada. Vendeu pra essa gente de Aurora, né.
A Fazenda Estrela era daquela gente Souza,
lá perto da Aurora, Fazenda Aurora, né. Era lá pra
aqueles lados. Ainda tem até hoje por lá. A Fazenda
da Saudade... terra dividindo com a Aurora. Aquilo
ali era do Souza. Souza era riquíssimo! Minha irmã
mais velha era casada com o Tonho de Souza, pai do
Filhinho. Ih! Os Souza tinha dobrado de enorme! Só
cê vendo! Nós perto dele não, tinha nada. Engenho
de café, de cana-de-açúcar, tinha muita coisa. Gente
riquíssima! Acabou tudo, né, menina? Acabou tudo,
tudo, tudo!
A família da minha mãe, Jovelina Soares
Mendonça, era de Ubá. Meu pai que era daqui.
Minha mãe morava aqui perto, o pai dela tinha um
sítio. Depois até papai quando casou foi tomar conta da fazenda, a Fazenda Santa Cecília, lá perto da
Aurora. Minha vó, não sei nada dela, tinha uma fazendinha, e depois o papai tomou conta. A minha vó
era viúva, né. Pra tomá conta... ele casou, foi pra casa
de minha vó e foi tomar conta do sítio. Onde do sítio ele fez uma fazenda. Cresceu! Não comprou tanta
terra, mas mexeu... progresso, né.
192
Fui criada na fazenda, nessa fazenda lá perto
da Aurora, criada não, eu vim de lá com sete anos
pra oito anos, pra Fazenda Santa Clara. Estudei interna no colégio, fui até o segundo ano Normal, só
isso. (Saí) não foi pra casar não, fui pra roça, pra casa,
né, depois que eu casei, porque nem foi mais a minha
mãe... eles começaram a entrar em rixa, ele deu um
pulo fora lá, sabe como é que é, né, e ela não aguentou e brigaram muito e tudo. Isto atrapalhou muito a
família. Ele nos botou interna aqui no Colégio, estudei interna uns tempos - eu, Ceição e Cinoca. Aí depois fomos lá pra casa, né, pra roça. E nós ficamos
convivendo lá, até casar.
Quando eu tava solteira, ele morava junto com
ela. Viviam separados, mas sabe como é que é, né,
dentro de casa. Quando, essas coisas, mas moravam
juntos. Eu já era casada quando ele morreu, sabe, aí
dividiu tudo pros filhos em vida, sabe, dividiu tudo.
Quando ele morreu deixou cada um com o seu pedaço, igualzinho. Dividiu a fazenda. O Ibraim ficou
com a sede, né, e nós ficamos com os outros pedaços.
Até, por exemplo, onde morou o Faber Rezende, que
casou com minha irmã Cinoca, ali no Beira Rio, ali é
do papai também. A Cinoca casou e ficou morando
ali. Ah! Mas acabou tudo, minha filha! Só o Sadi que
era rico, né, mas não foi com herança do papai não.
193
Ele trabalhou muito, era muito trabalhador, agenciador da vida, sabe. Ele ficou bem, a família dele ainda
está bem, nos dias de hoje. Trabalhou (com café), com
cana, moinho de cana. (Vivi na fazenda) até quando
eu casei, né. (Depois vim) pra cidade, Cataguases.
Eu já rodei mundo, boba! A gente já andou
muito. Eu conheci (meu marido), José Leite, na cidade, que ele é filho daqui, né, ele era filho daqui.
Conheci ele aqui, fui namorando, eu acho que eu fiquei noiva uns seis meses, ou um ano, nem sei mais
não, e logo casei. Não fiquei permanente, porque ele
era contador daquele... João Duarte, do Banco do
João Duarte. Quando casei com ele era... depois perdeu, houve a falência, né. Ele perdeu o emprego.
(O banco) logo que abriu falência, né, foi uma
desilusão, foi uma tristeza, sabe. Nós fomos passear
no Rio de lua de mel, quando nós voltamos a falência
já tinha sido declarada. Perdeu o emprego. Ih! ... aí
depois ele fez coisas do diabo! Não sei quantos empregos que ele teve! Ele era um agenciador da vida,
sabe, nunca ele ficou parado. Teve uma ocasião que
nós saímos daqui e fomos morar em... botou uma
sociedade com um primo dele lá em... pra cima da
Ponta Nova, esqueci o lugar, o nome. Moramos lá
uns tempos, mas ele não gostava de lá, então nós
viemos embora. Mas eu andei, minha filha, nessa vi-
194
da! Filho e mudando! (Meu marido) foi prefeito aqui
na Prefeitura. Quer dizer, ele trabalhava com o Dr.
Edson Rezende e depois o Dr. Edson saiu pra candidatar a deputado, ai ele ficou como prefeito uns tempos. Tanto é que naqueles retratos, de ex-prefeitos,
que tem lá no Fórum, ele deve tá lá.
Política era fervendo aqui. Pedro Dutra com os
Peixotos, né. Ah, naquele tempo? Tiro? Uai! Deram
tiro na Rádio, foi uma coisa horrível! (“Meu pai
foi preso, foi preso pelo Pedro Dutra, né, tudo por
causa da política”, esclareceu Virginia, filha de D.
Vica). Naquele tempo prendia todo mundo. Manoel
Peixoto era o chefão aí, né. Seu pai era guarda-livros,
trabalhava com os Peixoto. E o Pedro Dutra era contra. Muita gente já passou aperto por causa de política aí. Hoje, graças a Deus, já acabou tudo. O papai,
o papai... não, o papai levou tiro foi na roça. Era por
causa da fazenda.
Vizinhança de fazenda. Você sabe onde mora o Josué Peixoto hoje, na roça? Pois é, ali morava
um que era inimigo do papai. Ele passava na porta
lá de casa, pra ir pra cidade. Papai andava a cavalo. Naquele tempo todo mundo andava era a cavalo.
Não tinha esse negócio de automóvel pra aqueles lados nem nada não. Era só de carro... de carro de boi
e de cavalo. Então, papai um dia vinha pra cidade...
195
ele vinha sempre, todo dia ele vinha. Quando chegou numa volta que tem lá - até hoje tem essa volta
lá, aqui no Beira Rio. Como é que se chama aquele
lugar ali? Faber Rezende? E quando chegou na volta
lá, o homem tirou a garrucha e deu um tiro nele. Não
é de revolver não, é de garrucha. Ele atirou no papai,
o cavalo pulou; ele atirou o segundo, o cavalo pulou;
o terceiro, acho que acabou a coisa, né, não disparou.
E o papai contou uma coisa que tinha sido atirado.
Ele tinha uma oração que chama “Justo Juiz”. Eu tenho essa oração que não sei quem me deu. Uma vizinha, uma senhora que tinha lá que era vizinha, e que
gostava muito dele falou: “O seu Veríssimo, você vai
usar essa oração no bolso, porque você anda muito
em perigo”. Ele usava daquele lado, dentro da carteira. Eu acredito que seja isso, porque eu sou muito católica e acredito muito nas coisas. O homem deu três
tiros nele, e a garrucha... era garrucha que ele tinha,
Nem era revolver não. (A polícia) interferia, tudo,
mas não prendeu nada porque não foi flagrante, não
foi pego na hora, né, e o tiro não pegou... Ih! Nós viramos num desassossego, mas uma coisa horrorosa!
E ele ainda voltou para a cidade. A mamãe gritando
e falava: “Não vai Veríssimo, não vai!” Porque estava
com medo dele atirar outra vez. Veio para a cidade
voltou e não teve nada.
196
Rico, rico, não, né, (papai) era bem rico, não
era rico igual os Souza, Antonio Augusto de Souza,
não era, mas ele era abastado, né, como se diz, né.
Ih!... Nós fomos criados na fartura. Lá em casa tinha
ceva de porco, porco gordo, galinheiro, galinha em
quantidade e roça de café, lavoura de café, de cana.
Tinha engenho de cana. Pé de fruta. Ih!... tudo. Uma
coisa eu posso falar: fui criada na fartura, graças a
Deus. Agora os meus filhos já não foram criados assim, não foi criado na miséria, mas tudo... você sabe como é que é, né, com o marido desempregado...
sai de uma coisa pega noutra, sai daqui pega noutra,
porque ele perdeu o emprego, né. Se ele perde o emprego antes, uns dias antes, eu não tinha casado. Ah!
Papai não deixava, não deixava mesmo!
Na minha infância tenho lembrança, minha
mãe tinha piano, tocava piano... e reunia as pessoas lá em casa, ia gente daqui da cidade pra lá, uma
família, por exemplo, que tinha – Samuel -, ia pra
lá ficava dez, doze, quinze dias. E lá tocava piano e
aquela coisa. Papai fazia fogueira... tempo de fogueira, Nossa Senhora! Era uma fartura! Tinha forno de
fazer quitanda, lá fazia quitanda, fazia tudo. Padeiro
não aparecia lá em casa. A cidade era longe. Hoje está
mais perto. Mas era longe. Tanto é que quando aparecia um padeiro lá, ficava tudo gritando: “Ô padei-
197
ro! Ô padeiro!” Vinha o padeiro com o pão fresquinho. Então era feito em casa biscoito, broa, bolo, tudo. Era uma fartura! Por exemplo, dia de sábado era
dia de enfornar junto com as empregadas. Amarrava
um pano na cabeça e ia enfornar pra semana inteira.
Tinha, me lembro, um caixote grande, umas caixas de
pau, sabe, usava assim. Aquilo ficava cheio de quitanda pra semana inteira. O dia de fazer quitanda, já
de manhã cedo, cedo, mamãe tava lá, fazendo, enrolando, fazendo as coisas, a massa da broa, a massa do
biscoito, aquela coisa toda, biscoito de polvilho dos
grandes, sabe, mamãe fazia... era uma fartura, só cê
vendo! Naquele tempo era uma beleza!
O pessoal da Aurora... você já viu falar na
Fazenda da Aurora? Gente de Farjado... Acho que
tem aquela fazenda até hoje lá, né. Hoje lá até fábrica existe. Lá era uma beleza! Dia de sábado assim
eles iam lá pra casa, aquele pessoal da Dona Ritinha
Farjado ia lá pra casa, tinha piano, minha mãe tocava piano, e a gente cantava... era uma farra, sabe. Era
bom demais! A minha infância foi uma beleza!
As visitas... um domingo eles vinha pra cá, outro domingo nós ia pra lá. Eles iam muito lá pra casa
porque mamãe tocava muito piano, tocava até tarde
da noite. Mamãe tocava piano e tinha um professor,
não sei quem é, eu era pequena, não me lembro mui-
198
to, tocava violino. Tinha um que tocava flauta, não
sei quem é mais; sei que era uma movimentação na
roça, a gente não ia à cidade não. Divertia na roça.
Eu era, nós era boba, tinha tanto medo da cidade!
Quando a gente via soldado agarrava na barra da
saia da mamãe. Medo de soldado, quando era pequenininha. Vinha de carro de boi, punha tolda no carro
de boi, tanto é que tinha uma pessoa... daquela gente
do Samuel, ia pra roça, ficava lá às vezes quinze dias.
Vinha carro de boi buscar eles na cidade. Minha casa
era um movimento muito grande.
A casa era grande, toda envidraçada! Não, não
tinha (banheiro) era água na bacia. Dava uma trabalheira, né, esquentar água assim na bacia! Tinha (casinha) lá de fora, no terreiro. Eu conto sempre caso do
meu tempo. Os urinóis todos tinham nome. Naquele
tempo tinha muito médico em Cataguases e a mamãe conhecia muito médico, eles iam sempre lá em
casa. Dr. Ventania, Dr. Pedro de Sá, Dr. Cavalcante e
não sei mais quem... era uma porção de médicos e
todos... então os meus urinóis tinham nome. Na hora
de tirar a gente falava: “agora vou tirar o fulano de
tal.” É, nome dos médicos. Eles falavam que médico
é doutor, e urinol tem apelido de doutor. Mas a mamãe sempre teve empregadas boas. Nós tínhamos lavadeira e cozinheira dentro de casa. Mamãe nunca fi-
199
cou sem empregada. Naquele tempo havia empregada. Eu lembro quando... antes de mamãe... papai nos
deixar... a gente andava de cavalo era cavalo de lado,
assim, cilhão, não era igual montaria não, montaria
veio depois, né! E... então papai tinha viajado, e a empregada acabou de arrumar cozinha, a lavadeira também... ficava dentro de casa, tudo lá. De noite é que
ia pra casa. Só a cozinheira que dormia em casa. Mas
então “agora nós vamos na roça, buscar verdura na
roça...” umas verduras que dava no mato, cariru de
porco, você já ouviu falar? Cariru de porco, e não sei
mais o que, que nós vamos buscar na roça. Então nós
fomos todas pra roça, as empregadas, a cozinheira, a
lavadeira. Sei que moravam todos dentro de casa. E...
então mamãe viajou com papai e nós fomos pra roça
buscar cariru de porco. Cobra gosta muito de cariru
de porco. Aquelas coisas mais verdes, fresquinhas,
cobra gosta muito de ficar ali dentro. Então tinha
uma casa de colono, tinha caído... ficou velha caiu, ficou caído lá, ficou aquele sapé - você conhece sapé?
- sapé que cobria a casa, ficou caído lá, e tinha cobra
lá debaixo. Sei que nós descemos para buscar cariru
de porco, desceu todo mundo na frente, empregada
na frente, outra atrás, correndo. A última que vinha
atrás foi a minha irmã Cinoca. A cobra mordeu nela. Ela gritou: “Maria, Maria Rita, volta aqui, cobra
200
me mordeu!” Aí ninguém apanhou cariru de porco,
ninguém apanhou nada! Foi tudo embora correndo
lá pra casa. A mamãe não estava em casa nem papai.
Usava... naquele tempo... homeopatia existia, um vidrinho que fazia cura, negócio de cobra, mordida de
cobra, sabe. Alguém trouxe uns, pôs umas coisas, um
negócio assim. Não veio médico, não foi médico, não
foi médico lá não. Acho que um senhor lá, e que sabia
tratar, começou a tratar, botar remédio, dar remédio,
pra beber também, de plantas. Não teve nada, não
morreu, não ficou aleijada, não ficou nada. Botou remédio de horta, remédio no pé, sei lá, sei que punha
pano com leite... pra chupar, pra tirar veneno da cobra, né, ensopava um pano com leite, tirava, depois
tornava a por outro. O pano saía amarelinho, tirava
o veneno da cobra. Não me recorda mais que eu era
menina, também era mais nova do que ela. Sei que
tomou o remédio. Ela sarou. Ficou muitos anos, uns
três ou quatro anos sem andar, encostada numa muleta. Depois ficou boa. Até hoje ela tem o tornozelo
meio inchado por causa do pé.
(Eu) frequentava a (Igreja) Católica. Tanto é que
nós estudamos no colégio interno, né. Frequentava,
mas era muito difícil, a gente morava na roça, né. Mas
eu não perdia uma missa de domingo, isso é quando
eu morava aqui, onde eu casei. Quando eu morava
201
antigamente né, no Rio Pardo, perto da Aurora, lá
não, fica fora de mão, muito difícil. Nem sei como é
que a gente ia à missa. Agora, a Fazenda da Aurora
era uma fazenda enorme! Era uma fazenda enorme!
Era uma fazenda que não deixava a desejar nem pra
cidade! Ela tinha um engenho de cana, engenho de
café, fabrica de manteiga, tinha venda grande, tinha
uma banda de música, campo de futebol... De maneira que o nosso movimento todo era lá.
Nossa! Papai era assim uma coisa horrível!
Exigente. Não podia sair pra parte nenhuma. Às vezes a gente quando saía, dava umas fugidas, como
por exemplo, uma ocasião nós... mamãe arranjou
uma mentira com ele, nós fomos passar o carnaval
em Ubá. O Carnaval! Uma beleza! Fugido dele, ele
não sabia onde nós tava. Mamãe... eu... acho... não sei
se foi eu, a Ceição e a Cinoca, ou se foi eu e a Ceição
só. Acho que a Cinoca também foi. Olha, mas eu era
sirigaita pra baile, pra clube... Ih!... Nossa Senhora!
Mas não podia ir, ele não deixava, não deixava a gente ir em baile não, Eu lembro numa ocasião que eu
entrei num bloco aí, daquela gente de... como é que
chama aquele farmacêutico... de Tostes. Eu entrei
num bloco de “Pierrô” e “Pierrete”. Até atrapalhou
o bloco, que o papai tirou a gente. Depois de tudo
arrumado, aquele branco e preto, tão bonito! Aquelas
202
bolas... Lembro tanto disso! Ele atrapalhou muito o
bloco, duas “pierretes” saíram, eu e minha irmã.
(O Carnaval) era no clube, Comercial Clube,
mas eu ia fugida lá, nunca tive... olha, eu me lembro
que uma ocasião que eu passei um baile lá... isso foi
depois de casada. Um baile de passagem de ano, sabe. A D. Nair Peixoto era muito animada! Lembro
tanto disso! Mas eu, por exemplo, o meu marido era
de sociedade, ele gostava de festa, de baile, tudo, mas
e a filharada? Tenho 12 filhos.
A gente vinha muito à cidade, uai! Antigamente isso aqui era uma coisinha pequenininha,
não tinha jeito de cidade. Hoje é... tem um movimento grande, né. Passeava muito sabe, só não frequentava baile que ele não deixava. Mas a gente ia
na praça. Antigamente minha filha... aquela praça
ali, aquilo era uma coisa... não é aquele lixo que
tem lá hoje, aquilo é um lixo, né, lá, aquela Praça
Rui Barbosa é um lixo. Antigamente era uma beleza,
era um jardim mesmo! Tinha canteiros... Tinha passagem embaixo e em cima; as moças passeavam em
cima e os rapazes passeavam embaixo, sabe, nem
sei explicar. Ah, mas era muito bonito ali! Só cê vendo! Antigamente a praça não era aquilo ali não, agora está muito diferente, muito diferente! Hoje está
chique, tem coisa muito nova, mas nem se compara
203
com antigamente. Tinha muitos bancos... eu lembro
até que a gente passeava em cima - as moças - os
rapazes passeavam na parte de baixo. As vezes eu
tinha namorado, papai não queria... Então ele falava
assim: “Eu vou lá pra cima.” Eu falava assim: “Você
vem cá pra cima que eu vou lá pra baixo”. Eu falava pra ele porque papai zangava, sabe, papai não
deixava a gente namorar não. Passear com namorado, Deus me livre! Não deixava, eu nem sei como
a gente namorava. Namorava mesmo... Ele prendia,
prendia, muito, papai.
Minha filha, vou te falar uma coisa, sou tão
presa! Tão presa! O papai prendia tanto a gente, que
a gente não tem... não tô falando com você? Clube...
Comercial Clube, às vezes tinha um baile lá, ia escondido dele, ele vinha buscar a gente. Era uma brasa
pra gente. Minha mãe era doida pra festa. Foi criada
em festa. Ela estudou naquele... num colégio grande
perto de São Diniz. Eu sei que ela tocava piano junto
com o Dr. Astolfo (Dutra). Ela tocava, ele acompanhava, declamava, fazia coro sabe, estudou junto com ele.
Eu aprendi a tocar piano. Zé tocava música,
tocava com meu marido, tocava violino, tocava piano. Depois, a filharada entrou, acabou tudo. Ele tinha
dois violinos... eu estava conversando com minha
menina aqui. Falei: “Minha filha, e os violinos de seu
204
pai, heim?” Um senhor, vindo de lá de Governador
Valadares, levou pra consertar, nunca mais nós vimos o violino. O violino, era daquele violino, ó... antigo, alemão.
Nunca vi tanto filho! Dez filhos que eu tenho,
né. Hoje só se tem dois, e olhe lá! Vinha mesmo, assim mesmo, não há isso que há hoje, hoje está uma
beleza! Hoje você tem os filhos que quiser, que quiser
ter. Nunca perdi nenhum, nunca teve um aborto, não
tive nada! Graças a Deus! Dois eu tive com médico,
porque foi muito demorado e tal, e veio o médico.
Mas era parteira que fazia, D. Rosa Amaral... a gente
antiga aqui de Cataguases. Tinha com ela. Mas dois...
duas foi preciso médico. A primeira foi preciso, tava
passando do tempo e tal. Era o Dr. Edson Sicarini.
Você já ouviu falar nele? Era um médico e tanto!
Naquele tempo ninguém tinha criança no hospital,
bem dizer, né. Hoje é só passar mal, e a beleza do
hospital, né. Eu era em casa mesmo. Era em casa que
o Dr. Edson Sicarini fez meu parto sozinho. A parteira não era nem formada; D. Rosa Amaral. Prática,
muita prática. Era mãe dessa gente de Cataguases,
quase toda, as mais velhas, ela era a parteira. Depois
é que foi acabando esse negócio de parteira.
Dr. Sicarini era um médico e tanto! De tudo!
Depois que o menino acabou de nascer o Dr. Sicarini
205
falou assim: “Nunca mais!” Quer dizer, fazer parto
sozinho, né. Ele arriscou, uai! Podia ter perdido eu,
ou ter perdido o menino e ter morrido. Foi mesmo
um parto difícil. Essa última, a Silvinha, eu chamei
o Dr... como é que chama, meu Deus, o médico... o
doutor... Dr. Otônio. o Dr. Otônio era um médico e
tanto!
Ah, foi só criar filho, nem sei nada de alegria,
quer dizer, tristeza também não tem, porque eu nunca perdi nenhum, graças a Deus. Só teve esse que ficou doente que foi pro Rio tentar estudar medicina
e adoeceu, não pôde continuar a estudar. Vem pra
cá, doutor Edson (Rezende) olhou e não deu certo.
Depois foi para Belo Horizonte, lá tratou e sarou, né,
o Raul. Cuidava só de casa e de filho. Só. Não arredava pé pra nada. Passeio... nada.
Entrevistada em 17/6/1991 por Glaucia Siqueira e Mariana Cândida
206
207
S T E L L A A B R I TA A LV E S
P R O F E S S O R A A P O S E N TA D A
77 anos
Eu escrevi aqui nesse livro: “Recordar
é sofrer com saudades. O passado nos faz sofrer, mas
é dever de gratidão relembrar tudo que nos deu alegria, e todos que foram tão bons amigos, carinhosos,
principalmente nossos pais, irmãos”... Isso daí eu escrevi aqui, da minha cabeça, não é de ninguém não.
A gente lembra sempre de todos com saudade, né,
às vezes a saudade dói. Às vezes eu fazia soneto no
Colégio quando eu era interna. Eu dormia perto da
janela, hora que a lua aparecia, pegava um caderno e
começava a fazer. (Mas) quem era poeta era Oswaldo,
meu irmão. A Emilinha Quaresma é que gosta de falar que eu sou poetisa. Ah! Nada! Uns versos bobos
que eu faço. O Joaquim (Branco) falava comigo que a
Foto: Escola Normal, dormitório, s/a, s/d, Departamento Municipal do
Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases
209
minha poesia é do tipo espanhola. Não sei, Não entendo. Eu faço qualquer... de acordo com a atualidade, o que acontece: um aniversário, um nascimento...
Olha um rascunho de poesia minha aqui: “Sabedoria
Infinita”.
“No começo: Adão e Eva
amor: chave de tolerância
tempo: chave de sofrimento
Não em câmara lenta
com sorriso, com lágrimas, com lamúria”.
(Nasci) em Cataguarino. Vou fazer 77 (anos) no
dia 29 de julho. Sou da idade do Padre Antônio. Meu
pai chamava-se Boaventura José Abrita. (Minha mãe),
Castorina Maria Abrita. Morreram novos, já faleceram há muito anos. Minha mãe faleceu com 48 anos e
meu pai faleceu em 1933, com cinquenta anos. O meu
pai foi agente do correio de Cataguarino e era vereador da Câmara Municipal de Cataguases, na época
vereador não tinha ônus nenhum. Trabalhava por
amor a política. De vez em quando ele falava com a
minha mãe assim: “Apronta a minha roupa que amanhã tem reunião lá na Prefeitura, eu tenho que ir”.
Então tinha que pegar cavalo, comparecer no dia seguinte nas reuniões. Nessa época que ele era vereador
210
não tinha estrada. Era mesmo só para carro de boi e
cavalo. Quase não ia carro. La em Cataguarino, para ir um carro naquela época era um... Uma história.
Quando chegava um carro, o arraial ficava em festa.
Não tinha luz elétrica, não tinha instalação de água,
era muito atrasado mesmo. E quem começou, deu a
primeira melhoria em Cataguarino foi o João Peixoto,
que colocou a luz. Foi o primeiro prefeito que se interessou por Cataguarino. E na política, na época da
política feminina, quem iniciou mesmo pra trabalhar
em Cataguarino fui eu. Na época eu subia serra atrás
de voto feminino. Os políticos daqui daquela época
eram o Dr. Sandoval Soares de Azevedo e o Sr. Alípio
Vaz. Foi uma época de muita luta, muita briga de política. Nessa época o Dr. Pedro (Dutra) já trabalhava
na política. Meu pai era contra o Dr. Pedro e a favor
do Dr. Sandoval. Ele me apanhou no Cataguarino pra
estudar aqui em Cataguases. Eu era apaixonada com
política! No início (do voto feminino) eu ia completar
dezenove anos. Vou te falar na gíria: achei um barato! Aquilo deu pra fazer movimento. O meu pai me
deixou trabalhar bastante. A gente vinha até aqui em
Cataguases pra trazer os eleitores. A minha parte foi
a Serra da Onça, lá no alto do Retiro. Então eu subia...
o carro levava e depois a gente subia a pé pra ir lá em
cima, porque o carro não subia, ele ficava lá em baixo.
211
A gente ia a pé. Então precisava de tirar o sapato... Eu
tinha saído do internato, né, com os pezinhos bem fininhos... quando chegava lá na minha casa, tinha que
dar banho de água de sal nos pés, porque estava todo
machucado, de tanto andar naquele pedregulho lá da
Serra da Onça. Consegui bastante eleitores. Aí meu
pai falou comigo: “agora você toma conta dessa turma”. Aí ele tinha que contratar um carro e trazer aqui
na cidade pra poder fazer a inscrição. (Os maridos)
concordavam. Eu trazia as mulheres todas aqui.
(Minha infância) foi um pouco tolhida. Meu
pai era muito severo. A gente não podia brincar até
tarde da noite... lá não tinha luz. Às vezes, na época
de lua, todo mundo tava brincando, a gente só ficava
ate às oito horas. Às oito horas tinha que deitar, tinha
que dormir cedinho. Meu pai era bonzinho, cuidava
muito das coisas, trabalhava muito, tudo que podia
dar à gente ele dava, preocupava com os estudos da
gente... tanto que ele mandou o Oswaldo aqui pro
colégio do Antônio Amaro (Ginásio de Cataguases)
e me mandou aqui pra Escola Normal pra eu estudar
interna, né, com 13 anos, mas por muita insistência
do Dr. Sandoval e do Alípio Vaz.
Quando eu nasci, (Cataguarino) chamava
Empossado. (Minha) casa (era) assim um sobrado, dois andares, eu achava bonita. Quando lá no
212
Cataguarino aparecia circo, meu pai deixava fazer debaixo tinha um porão grande - o meu pai deixava até fazer um circo. A minha mãe falou que no dia
que eu nasci, tinha um circo debaixo do quarto. Lá
em casa era tudo. Às vezes servia até pra prender os
ladrões. Quando a polícia ia dar uma batida, pegava
os ladrões - lá não tinha cadeia - quando era tarde da
noite prendia lá os crioulos pelos pés. Muitos ladrões
de cavalo. A roubaria mais lá no Cataguarino era de
cavalo. E também tocaia. Tinha muita tocaia lá no
Cataguarino. Constante tinha um cadáver lá na estrada. Por qualquer coisa eles brigavam. Tinha muita
cachaça e negócio de peão montar na rua. Cada um
queria lançar o campeão... o peão melhor... Quando
acabava aquele negócio, era briga certa. Cachaçada.
Eu acho que eles ganham pra isso, pra amansar cavalo, amansar burro. Gente brava mesmo.
Fui reprimida. Até os 13 anos a gente ficava lá
no Cataguarino. Festa que tinha lá era coroação, brinquedo de roda, as coisas durante o dia; mas à noite a
gente não podia brincar de roda na rua porque tinha
escuridão. Quando tinha luar, meu pai punha a gente
pra dormir às 8 horas.
Lá em Cataguarino, nas férias, a gente passava
uma vida! Como é que a gente ficava lá? Passar as
férias... eu tinha 16 anos e um namorado que mora-
213
va em Juiz de Fora. Ele tinha dezoito (anos). E pra
conversar com ele? Só cê vendo que sacrifício! Era
demais. Eu me lembro uma vez que meu pai estava meio adoentado, ele falou: “Vou deitar um pouquinho”. Eu falei: “Gracas a Deus, agora eu vou dar
uma voltinha”. E saí. O rapaz vinha de Juiz de Fora
ficar com um irmão dele que era farmacêutico no
Cataguarino. Passei na farmácia, comecei a conversar com ele, chegou o papai: “Que que cê ta fazendo
aí, menina?” Ih pai, saí pra comprar agulha, o senhor
não viu que eu deixei a maquina aberta? Ele falou assim: “Ah é? Comprar agulha em farmácia?”
Do internato, tanta lembrança... era bom, eu
gostava. (As irmãs) não tratavam ninguém mal.
Carinhosas... Só muito severas. A gente não podia,
por exemplo, passar na portaria. Se passasse, tinha
que ficar de castigo. Lá no colégio eu fazia parte da
Congregação dos Santos Anjos e me puseram como
conselheira geral da irmandade e tinha uma fitinha
cor-de-rosa que punha no pescoço. Eu era a santinha
lá do colégio, uma santa do pau-oco. Eu dava nó em
fumaça. Sabe o que eu fazia? Combinava com umas
três meninas, Falava assim: “Ó, nós temos que arranjar uma paquera. Você faz o seguinte: ‘Vai falar que
esta com dor de dente’”; a outra com dor de dente, a
outra com dor de dente. Com três meninas com dor
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de dente, as Irmãs mandavam a gente pro dentista.
Então a gente paquerava os filhos do pessoal da Casa
Matos. O Waldir Matos com os irmãos dele. Eles tinham uma casa de comércio lá perto do Meia Pataca,
em frente de Conceição Quaresma, aquela casa alta.
Naquela casa morava o Sr. João Guimarães, dentista.
Três (meninas) era bom. Enquanto uma estava no gabinete dentário, a outra estava na janela namorando.
O dentista até me quebrou um dente de tanto que eu
falar que meu dente doía. Espatifou meu dente bom.
Cataguases... a Praça Santa Rita... a gente passeava de vez em quando, fazia umas barraquinhas...
não tinha calçamento, era só terra; duas palmeiras
bonitas e aquela igreja linda que foi desmanchada.
As irmãs de vez em quando deixavam a gente fazer
barraquinha em benefício. Aquela Capela da Escola
Normal foi construída quase que com nossa turma.
E aqui a Praça Rui Barbosa... o “footing”. As moças
prum lado e os rapazes pro outro lado, era engraçado.
Ali onde mora a Nancy de Souza, na Praça
Santa Rita, tinha um birô eleitoral (onde) eu trazia
as mulheres pra fazer inscrição. Foi assim que pegou
o meu namoro com o Domingos Ciribelli Alves. Eu
já tinha sido apresentada a ele no dia 1º de dezembro de 1932, na minha festa de formatura. Bom, me
marcou. Desde essa época pra cá... ele também tra-
215
balhava muito no birô do Dr. Pedro, e aquele batepapo pra cá, bate-papo pra lá... começou o namoro
com ele. O Domingos nasceu em Miraí. (A família)
mudou pra Cataguases, ele era rapazinho novo; trabalhava com o Sr. Humberto Henriques e o Sr. Janir.
Era auxiliar da Coletoria. (Aí) comecei a frequentar
a sociedade. Quando havia baile no Comercial, os
rapazes entravam todos de branco, baile de verão.
Noite de inverno já era outro tipo de roupa. Naquela
época os bailes eram muito chiques. Tinha um espelho bisotê em volta do salão. Então, na noite de inverno - eu era membro da comissão - enfeitava o espelho,
o lustre, tudo de algodão. Ficava como neve, tudo
penduradinho lá. Muito bonito! (As moças) sempre
de longo, principalmente a comissão. Uma semana
antes a gente trabalhava, fazendo barbante, aqueles
algodões com papel douradinho... a gente aproveitava até aquele papelzinho de cigarro para dar reflexo
no salão. Não tinha orquestra. Quase sempre Aída
Ribeiro no piano. A gente dançava a noite toda. As
moças usavam decote até o meio da cintura. Na frente tapadinho, coberto.
Quando eu saí do internato, que eu vim trabalhar comecei a namorar sério o Domingos. Eu era
sozinha aqui na cidade e pagava pensão. Então eu
ía ao circo com ele todas as noites, eu ia em baile
216
com ele... aos domingos, eu, ele e o motorista fomos
jantar lá em Ubá, na casa do irmão dele que era gerente do Crédito Real. E língua cascando, o pessoal
falando que isso não tava direito, que minha mãe
ficava lá em Cataguarino, não sabia da minha vida... e eu não tava nem aí, ó. Vinha às duas horas
da madrugada do circo. O Rubens Cunha me cortou na língua com o Seu Fortunato. “O Fortunato, se
eu fosse você não ficava com essa menina na casa
não, que ela está com um namoro muito adiantado.
Você porque não sabe. Olha, chega tarde em casa, cinema acaba tarde, fica conversando toda a vida na
porta”. Ih, mas o Rubens Cunha me estragou, sabe,
mas eu nem me incomodei, falei assim: “Não estou
nem aí com conversa”. Muita que passou, eu falei:
“Primeiro o temor de Deus e deixa o resto”. A gente nesse mundo tem que ter temor de Deus. Então,
nessa ocasião, eu passei por uma experiência engraçada. Eu achava graça. Todo mundo batia asas. Eles
falam hoje: “Ah, que antigamente... eu não fazia isso,
eu não beijava namorado, não sei o que...” que não
beijava o quê! Saltava até janela pra conversar com o
namorado! Quando a família tinha melhor estrutura,
uma educação mais fina, respeitavam e davam um
jeito de amenizar, de esconder. (Quando) eu morei
em Teixeiras, a sobrinha do prefeito engravidou e
217
eles ficaram com ela direitinho. Quando o menino
tinha nove anos, ela arranjou um ótimo casamento. Aqui em Cataguases eu me lembro de uma moça muito bonita que era professora em Rio Branco.
Ela engravidou e o pai botou ela pra fora. Então ela
veio ficar aqui na zona, tinha uma zona aqui onde é
a Telemig. Naquela época o ruim era isso, o pai da
criança não assumia. Agora já é diferente, a maioria
assume, não existe o preconceito que havia antigamente. Coitadinha da moça, ficava isolada! Muitas
faziam o aborto, iam pro Rio, pra Juiz de Fora... Mas
eu saí do internato, bobinha como ninguém, tinha
muito temor a Deus, tinha um medo danado de pecar. Comigo não tinha perigo não.
Ainda ontem mesmo eu tive uma conversa
aqui do internato. (O Domingos), casei com ele, tinha
uma namorada aqui em Cataguases que era filha do
coletor, e esse coletor morava ali, naquela casa que
tinha sido do Enrique de Resende, (que) passou para o João Peixoto. Por sinal ela era minha colega, externa, e eu interna. Então, por causa do namoro dos
dois, que era muito avançado, o pai botou ela interna.
Então a Madre Madalena falou assim: Olha aqui, a
Marta - que era a namorada dele - vai dormir perto
de você aqui no dormitório. E a Marta chorava que
era uma coisa horrível! Eu perguntava: “ô Marta, por
218
que você está chorando?” Não falava nada. Quando
foi uma noite, a Marta subiu na beirada da janela;
quando abri os olhos vi a Marta na janela pra suicidar. Passei a mão na camisola dela e fiz “buf” com ela
no chão. Fui até a sala das Irmãs e a Madre Joselina
falou: “o quê que foi? Eu falei assim: “A Marta queria pular da janela e eu a segurei”. No dia seguinte
foi aquele sururu. As Irmãs falaram com o pai, que
a Marta não podia continuar interna porque estava
com umas ideias muito extravagantes. Aí ela prometeu. Falei: “Ô Marta, você dorme perto de mim, não
faz arte não, senão como é que eu fico? Os outros vão
pensar que eu te joguei da janela abaixo, não vai fazer uma bobagem dessa não”. Ela falou: “Não, não
vou fazer mais, pode deixar”. Passou. Também na
hora do recreio eu tinha que ficar fiscalizando a turminha toda: o que estava acontecendo, quem estava
de bolinho, quem ficava de conversa... e acompanhando a Marta. A Marta vai lá pro canto, vou eu de
olho atrás dela. Então eu vi a Marta assim na beirada
do muro, entregando um bilhete pro empregado do
quintal. Fiquei quieta e chamei a irmã Catarina, falei:
“Irmã Catarina, a Marta entregou um bilhetinho pro
seu Gastão”. Ai ela falou: “Vou ver o que é”. “Vem
aqui, Gastão, escuta aqui, me dá esse papel que está
no seu bolso”. Ele falou assim: “Não tem papel não,
219
Irmã Catarina”. Agora ela: “Tem. Me dá esse papel
que a menina te entregou”. Ele ficou tremendo um
mucadinho e entregou o papel. A irmã Catarina leu
assim: “Aqui no Colégio tem muito rato, preciso de
arsênico”. Pedindo pra comprar arsênico! Aquele dia
acendeu mesmo a fogueira no Colégio! A Marta estava querendo apanhar arsênico pra tentar suicídio
por causa do Domingos. Aí veio tudo: o pai, a mãe,
ele... eu fui lá na sala pra confirmar... eu nem me
lembro mais como era a cara dele na época. O pai e
a mãe levaram pra casa. Então o pai dela ficou desorientado, porque ela tinha que estudar. Mandou
ela pro Colégio Salesiano em Muriaé. Botou externa.
Daí mucadinho ela começou a fazer programa com o
Sady Mendonça lá em Muriaé. Ele era um fazendeiro.
Nessa ocasião o Sady era solteiro. Foi aquele sururu.
De Muriaé, o pai resolveu mudar pra Barbacena. Lá
ela arranjou um casamento com um jogador de futebol. Acabou a novela da Marta. Eu já tinha casado
com o Domingos, não sabia que a história era com ele
não. Então um dia, depois de casado, ele foi fazer um
curso lá em Barbacena. Chegou e falou assim: “Você
não sabe com quem eu encontrei lá em Barbacena?
Falei: “Com quem?” “Com a Marta”. Falei: “Que
que tem a Marta?” “Ela ficou contando o caso do
Colégio”. Que eu nem sabia que era com ele.
220
Me formei em (19)32. Naquela época era só política. Então comecei a trabalhar no dia 15 de outubro
de (19)33, uma vaga que o Dr. Pedro me arranjou no
(grupo) Astolfo Dutra, substituindo a Ema Ciodaro.
(Era) irmã do Seu João Ciodaro. Ela foi dirigir um
grupo em Belo Horizonte. Aí eu fiquei trabalhando
de (19)33, (19)34... trabalhei (19)35 também. No fim
de (19)35, dezembro, me casei. Quando eu voltei pro
grupo em (19)36, entrei na sala de aula pra turma
do... do Gelson Rocha, Roberto Sachetto, da Carmem
Souza, do Ladário Faria... a Isabel Henriques... então
eu tava na sala de aula quando entrou o Custódio
Leite, naquela época era inspetor. Eu dando aula,
ele entrou e falou assim: “Ah, de agora em diante a
senhora está dispensada.” Aí comecei a chorar dentro da sala de aula. “Ah, por que dispensada?” “É
porque aqui tem outra professora”. Era a Emília
Carvalheira. “Por ordem do Sr. Manoel Peixoto, a
Sra. está dispensada. A Sra. nos dá muito prazer
de ficar aqui no grupo, passear, visitar os seus alunos...” Então eu tive que sair da sala e entrou a Emília
Carvalheira... tive um trauma! Como eu sofri! Aí eu
fui pra casa, naquele bangalozinho, perto onde mora
a Isabel Salgado. Quando eu casei, morei ali. Cheguei
lá de manhã, chorando. O meu marido passou a mão
num revólver e queria ir lá pra matar o Custódio. Eu
221
falei “Não, não vai fazer isso não, deixa ficar.” Passou.
Depois o Manoel Peixoto falou que eu trabalhei pro
Pedro Dutra e todas pessoas que tinham trabalhado
pro Dr. Pedro tinham que desocupar o Grupo. Ele
ganhou pra Deputado Estadual. Um dia encontrei
com a D. Ondina (Esposa do Manoel Peixoto) e ela
falou assim: “Onde você trabalha, minha filha?” Eu
falei assim: “Agora não trabalho em lugar nenhum,
D. Ondina, já deixei o grupo muito tempo.” “Oh, você não está no grupo mais não.” Não levei a conversa
pra frente. Deixei pra lá. E com o passar dos anos...
fiquei viúva. (Fui) casada quinze anos. E logo que fiquei viúva, fiquei sem trabalhar, mas precisava trabalhar. Um dia a Tereza Ladeira chegou lá (em casa)
e falou assim: “Stella, você não tem uns livros aí da
Biblioteca do SESI?” O João Batista, meu filho, frequentava a biblioteca. Então ficou trazendo livro pra
casa e não entregava. Eu falei: “não sei, Tereza, tem?”
Ela: “Seu menino precisava de dar um jeito de entregar os livros.” Aí eu olhei pro guarda roupa dele e
tinha uns livros mesmo. A Tereza falou assim: “Ih, eu
vou te falar um negócio: eu estou mais apertada não
é por causa dos livros não, é porque o curso supletivo do SESI vai acabar, eu não tenho uma professora
pra esse curso”. Eu falei: “Muito bonito! Eu fiz a inscrição pra professora no SESI, mas era o Adail Matos
222
com a Lupi Siqueira que estavam lá na liderança. Ela
falava: “Ah, você não pode mais entrar pro SESI, depois de 35 anos não pode candidatar a professora no
SESI”. Não consegui, né. Eu falei: “Tereza, eu não
posso...” ela falou assim: “Você podia ir lá pro SESI
agora, pra ver se fica alguns dia como professora do
curso supletivo, porque já correram onze candidatas,
elas não aguentam o trabalho da noite com adulto.
Você podia... porque senão... o diretor falou que vai
mover o curso supletivo. Você vai lá pro SESI porque
tem uma semana que estou pelejando pra segurar o
curso supletivo”. “Mas Tereza, eu não vou poder, eu
já estou com 38 anos, e também aquele serviço do
SESI é impossível”. Eu tinha olhado o serviço de uma
professora, irmã do Américo da Caçula. O serviço
do SESI é muito complicado, eram nove folhas pra
um serviço de um mês de aula. Era demais! Muito
cheio de burocracia. Aí: “Bom, você vai lá, toma conta das aulas e eu faço o serviço”. Nessa ocasião a
Naudir Machado tinha um curso em Belo Horizonte
e ficou lá como orientadora, na época que eu entrei.
A Naudir falou: “Você vai ficando por aí”. Eu disse:
“Tá bem, eu dou as aulas”. De repente lá no Senai
(emprestado ao SESI), estava com quarenta alunos
na turma. Eu falei: “bom, vou empregar o método
global, que aprendi na época do colégio, e a Naudir
223
vai observando”. Foi indo, chegou o fim do mês, a
Tereza falou assim: “Ah, difícil... não fui eu que dei
aula e agora eu é que vou fazer o serviço... você podia ver como é que faz “. Comecei a olhar e falei assim: “Você precisa me dar três dias pra eu olhar esse serviço”. Nesses três dias veio uma modificação.
Eu li direitinho as orientações. Falei: “Naudir, nem
Tereza, nem ninguém precisa de olhar. Deixa quebrar
a cabeça com isso lá na minha casa que eu vou fazer o serviço”. E fiz. Aí a gente passou a trabalhar na
Rua do Pomba. Eles comecaram (o SESI) na prefeitura com corte e costura, mas quando veio o curso
supletivo, não tinha lugar, foi lá pro Senai. Você imagina, onze moças concursadas, nenhuma aguentou a
turma de adultos. Então eu fiquei. Mandaram eu assinar o serviço, eu assinei como substituta. Aí comunicaram a Belo Horizonte e a direção do SESI lá mandou que eu ficasse uns três meses como experiência.
Fiquei três meses e me mandaram a carteira, todos
os documentos. Fui ficando. Tinha reunião em Belo
Horizonte, eu ia: ninguém nunca tinha me pedido
diploma, nem nada de concurso. Quando tinha uns
seis meses, veio um elogio imenso, porque eu mandei um trabalho feito com uma árvore genealógica
de Cataguases. Então a Marlene Sete Câmara levou
pro Rio e o trabalho foi muito elogiado, e eu fiquei
224
satisfeita. Foi passando o tempo, fui trabalhando e
estudando. Na época eu alfabetizei uns mil operários dessas fábricas. (Fiquei) vinte (anos) no SESI. Na
época que eu entrei, todos escreviam com impressão
digital. Esse vereador, Jorge Sales, foi meu aluno também. Então eles traziam os pagamentos, aquela coisa,
eu dava mais uma aula prática pra eles. Aprendiam a
controlar o desconto do sindicato, a encher cheque...
o negócio foi passando... quando chegou uma ordem
aqui que todas as não concursadas seriam dispensadas do serviço. Falei: “Agora é hora”. Mas eu já tinha passado de dez anos, né, tinha estabilidade. Fui a
única no Estado de Minas Gerais que permaneci. Foi
até... eu fui dispensada pela política dos Peixoto, e
trabalhei a favor da política dos Peixoto ensinando
a fazer requerimento depois pra eleitores, ensinando
os analfabetos. Trabalhei com os operários para eles
poderem votar nos Peixoto. Eu ajudava e nunca entrei em conversa política. A gente nesse mundo tem
que ser assim, deixar a coisa passar. Fiz meu enxoval
dentro da casa da Eponina Peixoto. Nunca briguei
com ninguém. Conversava muito com a D. Ondina...
depois eu fui muito elogiada pelos próprios Peixoto.
Trabalhei até dentro da área da Industrial.
O meu irmão, Osvaldo Abritta, fazia parte da
Verde. Está escrito aqui: “Falecido aos 28 de feverei-
225
ro de (19)47 em Carandaí.” Muito novo. Ia completar
39 anos. Tem umas poesias aqui... ele era apaixonado
pela Zoraide Guimarães. Casou com outra, mas morreu apaixonado pela Zoraide. Foi através do Grêmio
Literário Machado de Assis que nasceu a “Verde”.
Todos amigos frequentavam o Colégio de Cataguases.
Eu tenho todos os capítulos da Verde, os poemas dele. Eram cheios de esperança. Com o afastamento de
um pra cada lado, a “Verde” morreu verde. (Mas) ela
deixou um bom exemplo de literatura. O Osvaldo
foi embora para Belo Horizonte com o Guilhermino
César. Rosário Fusco partiu pra outro lado, o Ascânio
morreu... o (Osvaldo) fazia direito em Belo Horizonte.
Foi juiz municipal em Carandaí. Morreu como juiz.
Na ocasião, a política que ele liderava perdeu. O chefe da outra política sabe o que fez? Prendeu os eleitores dele e deu purgante de azeite! Fez uma maldade
louca! Ele ficou super apaixonado e foi ficando doente, até aparecer com cirrose. E outro (irmão), morreu
como desembargador do Rio.
(Fiquei casada) quinze anos, mas eu conto só
treze, porque dois anos eu fiquei no Rio com a minha
filha mais velha - Mariangela - que sofreu encefalite
com quatro anos. Vinha em casa passear, arranjava
um filho voltava pro Rio. Depois Domingos ia passear lá, arranjava outro filho. O negócio ficou assim,
226
constituindo família no maior sacrifício. Nove filhos.
O primeiro parto, um casal de gêmeos, que é essa que
sofreu encefalite; perdi o outro por descuido médico,
porque a gente não fazia pré-natal. A menina nasceu
de parto normal, de lado, e deu muito trabalho, e o
menino ficou, o médico não sabia que tinha outra
criança. Nasceu depois com três quilos e duzentos,
já com o sangue todo perdido pelo cordão umbilical.
Eu nunca fiz exame ginecológico. Não se usava. O Dr.
Edson Rezende, coitado, até chorou. Falou que sentia muito, mas ele nunca tinha feito parto de gêmeos
com uma placenta só. Depois eu tive mais dois meninos gêmeos, perdi também. Tudo isso pela falta de
progresso de Cataguases, porque os meninos nasceram com seis meses e quinze dias, muito gordinhos...
o Hospital não tinha estufa nem balão de oxigênio.
Ficou combinado que eles iam ser levados pro Rio,
mas daqui pro Rio eles poderiam morrer. Os meninos foram esfriando, esfriando... perdi três homens.
Comecei a fazer a novena do São Geraldo Magela e
falei com a Mariangela: “minha filha, reza pro papai
do céu dar a gente um irmãozinho, que ele vai chamar Geraldo Magela”. Fiz a novena. Marquei direitinho: do quinto dia da novena ao nono dia, eu engravidei. Então arranjei a caminha, peguei uma estampa
de São Geraldo, coloquei na cabeceira, falei assim:
227
“Agora São Geraldo vai me dar um menino, um filho, que eu quero um filho”. Passei uma gravidez ótima. Morava em Astolfo Dutra. O Teotônio Lourenço
vinha a Cataguases sempre de moto e falava assim:
“o que vai trazer hoje pro nenê?” Porque em Astolfo
Dutra não tinha nada. Eu falava: ‘’Traz um abacaxi
gostoso, Teotônio”. Ele levava. No dia seguinte ele
falava assim:
“Nenê quer outra fruta?”. “Então traz maçã”.
E foi assim. Passei uma gravidez ótima, comendo
muita fruta. O parto foi natural. Ele nasceu com quatro quilos e duzentas gramas, com o Dr. Antonio, irmão da Zezé Cortes. Depois dessa época não perdi
mais não.
Meu marido era um santo! Uma santa criatura. Ele trabalhava na Coletoria e eu então de tarde
arrumava as crianças, mudava roupinha, levava pra
esperar ali na praça - nessa ocasião já tinha voltado
pra Cataguases, como escrivão - então a gente encontrava naquela alegria. Jantava com as crianças às 6
horas. Ele falava assim:
“Minha filha, você está cansada de olhar menino” - é pra você ver só como ele e eu tinha cozinheira e tinha arrumadeira; a arrumadeira me ajudava a
olhar os meninos, eu não trabalhava fora - mas ele
falava assim: “Eu fico com as crianças e você vai ba-
228
ter um papinho na praça. Se você quer ir ao cinema
você pode ir”. Me mandava passear e ficava sentado
no escritório dele com o menorzinho. Dava mamadeira... ele era bom demais! Todo sábado pegava as
crianças, cortava as unhas de todas. E eu, às vezes,
deitava mais cedo, quando (ele) chegava eu estava
dormindo... eu até tenho remorso. Uma noite ele pegou um copo de leite e levou pra mim. Falou assim:
“Você jantou muito pouco, comeu mal hoje, toma esse copo de leite”. Ele era muito bonzinho, sempre foi.
As cartas dele desde namorado... está tudo aqui. Os
desenhos que ele fazia pras crianças enquanto eu estava na praça... sentava no birô com os dois menores
e ficava desenhando. Às vezes eu vou fazer limpeza,
quero jogar fora, mas me dá uma dorzinha no coração (e)vou guardando. Na ocasião que eu fiquei viúva, quatro filhos, eu fiquei procurando meio de vida
pra sustentar os filhos. A Elizabeth estudou na Escola
Normal, o Geraldo estudou, não houve perturbação
de coisa nenhuma. Mas eu comprava cerâmica em
Recreio e vendia em Cataguases. Eu andava vendendo vasos, toalhas... (meu marido) recebia onze contos de réis na época. Eu fiquei com um conto e cinquenta e seis mil réis. Foi um tombo muito grande.
Arranjei um fornecedor de cerâmica em Recreio. Eu
ia apanhar, às vezes telefonava ou mandava apanhar.
229
Tava fazendo uma feriazinha, mas deu um descarrilamento de trem e o meu capital foi embora. Eu desanimei da venda de cerâmica, mas nem por isso fiquei
desatinada. Fui em Carandaí, na casa das minhas
irmãs, então elas me arranjaram a representação da
fábrica de manteiga Carandaí, para ajudar na renda
familiar. Vinha de trem umas latas de dez quilos e eu
vendia. Mandava entregar no Hotel Villas, no Hotel
Cataguases, em casa de família.
Mas daí mucadinho começou todo mundo a
reclamar que pedia dois quilos; chegava lá pesava,
não tinha dois quilos de manteiga. “Ai meu Deus! Já
vou desistir também dessa manteiga”. Fui procurar
saber: é porque os meninos iam entregar a manteiga, sentavam na praça e comiam a manteiga. Falei:
“Olha, então agora nem vocês vão comer manteiga”.
Do lucro dava pra todo mundo comer manteiga em
casa, mas eles começaram a tirar manteiga. “Então
eu vou desistir da manteiga, porque eu estou com
vergonha. Vou deixar essa manteiga de lado”. E os
meninos ficaram... o dinheiro era pouco, não dava
pra comer manteiga todo dia. Aí o João falava assim:
“Como é que é? Hoje tem ou não tem manteiga pra eu
passar nesse pão levar de merenda?” Eu falava assim:
“Manteiga de filho de viúva, sabe o que é? É sopro, ó
fu... “ Fechava o pão: “Leva esse pão e vai pro grupo”,
230
falava com ele. Ele falou assim: “Por desaforo eu vou
untar esse pão todo de gordura de coco”. Então enchia o pão de gordura de coco. Comia tanta gordura
de coco que deu um caroço nele que foi preciso o Dr.
Hugo abrir. Eu só comprava manteiga uma vez por
semana. Se desse, muito bem; se não desse paciência. Então eu passei esses apertos todos com a viuvez.
Ah, eu vou falar mesmo com verdade: eu achei que a
minha vida que foi boa mesmo, foi a minha vida de
colégio. O marido foi ótimo, foi uma boa vida de casa,
mas muito cheia de atropelo com a doença da menina. Hoje a vida é de uma preocupação intensa! Nossa
Senhora! Sou muito preocupada, me preocupo muito
com os filhos, com os netos e agora com dois bisnetos.
Ninguém tira essa preocupação de mim, (mas) pode
começar tudo de novo que eu enfrento.
Entrevistada em 4/6/1991 por Gláucia Siqueira e Hélvia Peres Cordeiro
231
TEODORICO TEIXEIRA
CARDOSO
FERROVIÁRIO
83 anos
Meu pai era de Portugal: Joaquim
Teixeira Cardoso. Minha mãe brasileira, daqui de
Cataguases: Joaquina Martins Teixeira. Vou completar oitenta e dois anos... 1908... primeiro de julho de
1908... eu era o mais velho... e a minha mãe falava
que não podia casar, porque tinha de ajudar a criar
oito irmãos. Resta três ainda... quatro... aqui eu só
tenho uma irmã, aqui em São Diniz... Trabalhei em
casa quando era menino. Naquele tempo os pais, por
exemplo, só se preocupavam com os filhos com barriga cheia, né. Meu pai perguntava assim:
Foto: Estação Ferroviária, s/a, 1906, Departamento Municipal do
Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases
233
- Tá com a barriga cheia, meu filho? Tá? Então graças a Deus!
E não perguntava se tinha alguma roupa bonita. Não perguntava mais nada. Só perguntava se a
barriga estava cheia, não tinha uma vida, tinha... o
negócio de ter roupa bonita, sapato bonito, não usava
não. Pra pobre não, né.
Não gosto muito de lembrar da infância não.
Estudei no Grupo da Avenida (Coronel Vieira) dois
anos. Uma péssima recordação! Porque eu vinha a pé
de lá de São Diniz aqui no Grupo da Avenida. Não
trazia um tostão para comprar merenda! Na entrada
de Cataguases, pela estrada, pra lá não tinha luz. A luz
elétrica ia só até ali. Muitas vezes passei numa figueira
que tinha lá, com medo de assombração! Pra lá era entrar no escuro até lá em casa. Dali pra lá não tinha luz
não... A gente almoçava e vinha, ficava aqui... chegava
aqui meio-dia. De tarde saía às quatro horas... ia brincando por aí afora... chegava cinco e meia, seis horas
pra jantar e tomar café também... depois fui trabalhar...
Meu primeiro emprego foi na rede. Aos dezessete anos eu entrei na estrada de ferro. Eu comecei
a trabalhar em 1925, e naquele tempo não tinha carteira (de trabalho), não tinha nada! A primeira férias
que eu gozei foi em abril de 1934! Fui gozar férias
tinha nove anos de serviço!
234
Trabalhava na linha, capinando, socando dormente. Serviço de conservação de linha tinha um
ponto certo, não tinha turma. Isso quando eu entrei,
né. Depois eu passei a feitor, a mestre de linha.
Aí, daqui eu fui pra Viçosa... não, daqui eu fui
pra Guarani como feitor, e de Guarani eu tornei a voltar pr’aqui. Daqui eu fui pra Viçosa como mestre de
linha. Mestre de linha comanda os feitor. Trabalhava
muito! Quando eu entrei na Estrada trabalhava das
seis às cinco da tarde: dez horas de serviço! Depois
passou pra oito... depois veio a semana inglesa... ao
sábado trabalhava até meio dia. Agora eles... sábado
nem vai lá. Quando havia um acidente, ou coisa assim, tinha que trabalhar domingo, né. Só (descansava) domingo quando podia.
De distância a distância tinha um médico que
atendia o setor. Tinha um médico. Meu pai trabalhou dezoito anos doente. Sofreu dezoito anos com
reumatismo.
Tinha muito movimento na Estrada, e quando
chovia muito... caiu muita chuva nas costas, pegou
um grande reumatismo. Adoeceu e aposentou. Ele
aposentou por invalidez. A princípio eu pegava o envelope que recebia e entregava ao meu pai sem ver o
dinheiro! Depois, ele me entregava o dele, porque ficou doente e então eu tomava conta. Sempre na luta!
235
Fui folgar depois de aposentado. Saí com cinquenta
e sete anos e tenho vinte e cinco de aposentado. Os
ingleses é que exploravam: cortês eles eram muito,
né. Mas pagava pouco. Pagava muito pouco! O pagamento atrasava muito naquele tempo. Enquanto
o pessoal não fazia greve não saía pagamento! Nós
nem recebia um, já tava vencendo outro. Atraso do
pagamento num passava de dois meses, porque tinha que comer, né.
O Rio de Janeiro comandava todo o setor.
Vinha correspondência do Rio, pagamento, tudo
vinha do Rio de Janeiro. Tinha um escritório inglês
da Rede: mandava de Recreio e, naquela época, ia
até Raul Soares. De longe em longe vinha um trem
cheio... Tinha que tirar o chapéu pra eles: um absurdo! Mas não havia perseguição não. A perseguição é
que ganhava pouco, mas tinha que trabalhar muito!
Se trabalhasse estava tudo bem, se não trabalhasse
rodava, né. Apertava no serviço até o camarada largar e ir embora. Depois foi modificando... modificou
tudo. E hoje tá tudo diferente!
A estrada de ferro mudou muito, nem parece
aquela. Passou pra Rede foi em 1947. Ainda houve
umas greves, mas foi modificando e melhorou ultimamente, porque o pagamento vem no dia certo.
Antigamente tinha trem de passageiros, tinha trem
236
noturno, hoje não tem trem. O que passa é trem de
carga pra Recreio e pro lado de Ponte Nova. Num
tem movimento quase nenhum. Acabou. Deixaram a
ferrovia acabar, né. Quem fosse a Miraí e perdesse o
trem, tinha que dormir lá pra vir no outro dia. Se fosse a Santana, se não viesse no trem que vinha de manhã cedo, tinha que vir a pé, ou ficar pra vir no outro
dia. Não tinha ônibus, não tinha nada. Num tinha
outro transporte. Não tinha outro meio de transporte fácil não. Transporte forte era trem, né. O pessoal
andava de trem. Então começou a... aquilo tava dando prejuízo, porque começou a aparecer ônibus pra
carregar os passageiros, e caminhão pra carregar as
compras... o café fracassando... não foi só Miraí, não.
Santana também tinha outro ramal... Leopoldina...
Aqui, de ligação a Três Rios também tinha. Cada canto, pra Juiz de Fora... Tudo foi desativado porque eles
achavam que era deficitário. Então foram arrancando
os trilhos, em (19)64. Trabalhei não, começou a retirar
e eu saí. Um mal que eles fizeram né. Porque agora o transporte de caminhão tá muito caro. O transporte pesado pelo menos... Que passageiro hoje não
sujeita... Porque saindo daqui de Cataguases às nove
e vinte, chegava ao Rio às nove da noite: era doze horas, se não atrasasse! Quando dava de atrasar, atrasava era muito: era hora, não era minuto, não. Tinha
237
época que havia algum tombamento de vagão, coisa
e tal... mas não era tanto não.
Aqui era muito pequeno e qualquer coisa
importante falava: vai buscar lá no Rio de Janeiro.
Quando iam fazer compras precisavam de quase tudo. Não me lembro bem, nesse tempo eu era garoto.
Aqui era zona de café. Aqui, Miraí, Santana. Cana era
só quase que pro gasto, né. Transporte pesado mesmo era o café. O trem pegava e levava pro Rio, mas
tinha leite, tinha galinha... tinha passageiro que levava pro Rio. Vinha de Santana, Miraí, chegava em
Cataguases. A galinha e o leite era transportado no
expresso. Todo expresso que chegava levava aquilo
pro Rio.
Aqui teve uma época de queima de café, né.
Ali onde era a Manufatora, na Saco-Têxtil, ali é que
queimava café. Juntava café, ia despejando num
monte lá e punha fogo! Eles diz que tava barato demais, então queimava pra dar preço! Não lembro
bem não... o presidente acho que era o Getúlio. Ah,
os grandes fazendeiros... agora não me lembro o nome... ele foi fazendeiro aqui, mas eu não me lembro
que ele produzia muito café não...
Eu conheci a Praça Rui Barbosa de cascalho,
saibro... Tinha um chafariz no centro, ali. A gente ficava rodando. Vinha passear na praça. Mas não era
238
todo dia não, né. Porque de tarde não tava com vontade de andar muito não. Ah... era diferente d’agora.
Ninguém tinha dinheiro. Não saía porque não tinha
condição, né. A gente ia em baile na roça... Dançava
valsas, xote, mazurca: A coisa que eu mais gostava
quando solteiro! Mas depois que casei não fui mais
dançar não. Porque não tinha graça eu ir em baile
depois de casado. Tem gente que falava que dançava
pra divertir. Eu sempre dancei interessado... Não era
igual agora não. Havia mais respeito. Hoje o pessoal
tá mais avançado.
Conceição... Acho que foi num baile... Namoramos... Casamos, tem aí cinquenta e cinco anos! Eu
casei com vinte e sete anos. Desobedeci minha mãe
e casei. Ganhava cento e trinta e cinco réis por mês,
quando casei. Eu tinha dez anos de Leopoldina e só
ganhava cento e trinta mil réis! E ganhava bem! Tinha
muita gente que tinha inveja do meu ordenado! Foi
muito apertado. Criei oito filhos - seis homens e duas mulheres - apertado. Tinha que dar, né. Padaria:
eu comprava o pão o dia que podia. Tinha mês que
dava mucado na farmácia, no armazém... o ordenado... quando vinha o aumento, já tava precisando dele há muito tempo! Eu ganhei duzentos mil réis na
Leopoldina muitos anos! O pessoal da roça ganhava
dois mil réis por dia. Dois mil réis não é do seu tem-
239
po não, né? Teve uma época que eu tive oito filhos eu
e a mulher - dez dentro de casa - só meu ordenado!
Também não tinha jeito pra inflação não! Se subisse, o
sujeito não podia comprar, não tinha dinheiro. Fosse
agora não dava não. Eu consegui. Graças a Deus!
A vida aqui sempre girou em torno da indústria. Tinha uma fábrica, aquela fábrica mais velha do
que eu, só tinha aquela. Depois foi criando as outras
indústrias, a cidade foi crescendo, foi crescendo, mais
indústrias... Sempre o forte aqui foi a fábrica. Tinha
muito português, tinha italiano, espanhóis... mas
português era mais.
Gostava muito dos estrangeiros pra trabalhar.
Porque português vinha pro Brasil só pra ganhar dinheiro, né. Chegava aqui, dava duro pra não perder
o emprego! Eles dava preferência à Estrada de Ferro.
Os portugueses até já vinha com lugar arranjado na
Estrada de Ferro. Tinha o Joaquim Peixoto Ramos, o
Joaquim Carvalho, o João Duarte Ferreira, que era o
chefão grande comprador de café. E tinha até uma
agência de Banco aqui. Eu sei que o Banco era ali,
perto do Hotel Villas, ali onde é o SAPS (Cobal), ali
que funcionava. Ouvi falar que ali onde tem um correio12, na barreira da linha, pra lá do escritório: ali foi
12
) Arruado, conjunto de casas ao longo de uma rua.
240
Estação Estrada de Ferro Cataguases, até Miraí. Ali,
linha, pra lá do escritório: ali foi Estação Estrada de
Ferro Cataguases, até Miraí. Ali, na Vila Tâmega...
Antes o trem voltava dali... no meu tempo, já vinha
cá na Estação pra completar o percurso.
Fui criado aqui... seis quilômetros... Miraí.
Aqui tinha uma estação chamada Astolfo Dutra...
Dona Euzébia... Depois, não sei por que passaram
pra lá. Astolfo Dutra era Santo Antônio... Trocaram
de nome passaram Astolfo Dutra... Onde é hoje. Não
sei porque. Ele morou aqui na avenida. Ali. Conhecia
de longe... Conheço. Zacarias era o supervisor. O
Zacarias, ele entrou bem depois. O Zacarias entrou
na turma da picareta, na linha. Depois passou pra
turma de pedreiro. Depois passou a encarregado e
de encarregado aposentou. No meu tempo era encarregado de obra, né. Agora apelidaram de supervisor. Tinha Rezende, mas não conheço não. Ofélia eu
ainda conheço. Ainda é viva. Acho que ela nunca se
casou. Ou casou? Os sobrinhos conhecia alguns... conhecia assim... Eles era grande, eu era pequeno, inté
passava longe deles, né. Aqui tinha muita briga do
Pedro Dutra com o Manoel Peixoto, mas era política
daqui da cidade. Partido... Não tomava parte. Nessa
ocasião eu só pensava em trabalhar, sabe. Nunca gostei de tomar parte nessas coisas. Aqui todo mundo
241
era grevista, né. Eu sempre fui contra! Achei que podia... por outras maneiras... Não era contra as greves,
porque elas falavam que o pagamento atrasava porque não tinha dinheiro, depois da greve tinha dinheiro!? Sacanagem, né. Não podia gostar de outra coisa
porque eu não tinha dinheiro. (Batistinha) foi depois.
Isso não é do meu tempo não. Ele era do Sindicato,
né. Na época da Revolução é que andaram... Mas não
por aqui, por lá mesmo... o pessoal do Getúlio Vargas
andava de trem... não tem nenhum não... Os amigos
já morreram todos, né.
Eles falam: Que tempo bom! Tempo bom é
agora! Melhorou. Agora trabalha pouco, ganha bem.
Tempo bom, mas ninguém quer que volta aquele
tempo. Tempo bom pra cachorro. Morava na roça,
então não tinha tempo... criei oito filhos: nenhum pega ferramenta não! Agora é melhor, dinheiro é melhor... não, acho que pra mim nunca teve tão bom!
Entrevistado em 14/3/1990 por José Luiz Batista e Mônica Machado da
Silva
242
243
TEREZINI MASSENA
GUIMARÃES
P R O F E S S O R A A P O S E N TA D A
Sou mais conhecida como Lora, porque eu era muito lourinha quando era criança, cacheada, aquele louro quase prata. Aquele louro prateado, e a vovó, mãe da mamãe, tinha loucura comigo. Ela só me chamava de “Lora”, ou então “meu
sonho dourado”. E a gente à medida que os anos
vão passando, o cabelo vai escurecendo. O meu não
branqueou nada ainda, até gostaria de ter cabelos
brancos porque eu sou avó, com todo orgulho, de
três; agora a Flávia vai ter mais um. Eu gostaria de
ter cabelos brancos, então eu faço reflexo pra mim
continuar loura, pra fazer jus até ao meu apelido
que a minha avó me colocou carinhosamente: “meu
sonho dourado”e “Lora”.
Foto: Pedro Dutra e correligionários, s/a, s/d, Departamento Municipal
do Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases
245
A minha avó, a vovó Josefa, mãe da mamãe,
ela morreu com 96 anos. É família que dura muito. A
mamãe vai fazer 90 agora dia 22 de maio. Você não
fala que a mamãe tem 90, pela disposição dela. Eu
lembro que a vovó, pouco tempo antes de morrer,
ainda conserva uma faixa loura no meio do cabelinho branco, que ela fazia coquinho para traz. Eu sou
descendente do lado da mamãe de italiano. Graciolli.
E o meu pai... a mãe do meu pai era filha de escravos.
O pai do papai veio... eu não lembro, não sei aonde
eles moravam. Veio, gostou da mãe do papai e teve,
ele teve o papai. É onde veio o Massena. Ele é francês.
O pai do papai. Papai é descendente de francês.
Um sobrinho meu de Friburgo, ganhou uma
bolsa de estudo, foi fazer belas artes na França. Ele
procurou se informar da família Massena. Então ele
viu rua Lorde Massena, porque lá é Massena, né. É
uma família nobre da França. Não sei o que ele (meu
avô), veio fazer. Aventura. Às vezes ele veio procurar
uma escrava, né.
Os Graciolli, a vovó e o vovô, vieram da ltália. Ela trouxe filhos da Itália - uma até morreu no
navio na vinda pra cá - mas a mamãe é nascida em
Cataguases, né. Mas o vovô chegou... chegou aqui
ele sentiu muita saudade, teve vontade de voltar. Ele
apareceu até num filme da... da... hoje é Eva Comello,
246
como é o nome dela? Eva Nil. Ele (apareceu) com
aquele pau de... passando, vendendo frango. Ele não
se realizou como ele desejaria. Então ele se apaixonou muito porque ele gostaria de voltar, mas não tinha condição pra voltar com a família. Já tinha mais
filhos aqui, que nasceram aqui. Então ele passou a
beber, bebeu até morrer. O avô materno, Graciolli.
A mamãe fala que eles moravam numa rua
aqui perto, que, na época, tinha o nome de Bedengó.
A mamãe conta que eles moravam numa casa de pau
a pique. E conta que uma coisa que divertia muito e
quando aqueles barros começavam a cair. Uma ficava de dentro segurando, e outra de fora juntando o
barro e batendo pra tampar os buracos. Eles tiveram
uma vida muito difícil aqui. Agora, se alimentavam
muito bem por causa do costume da Itália. Eles faziam muito queijo, faziam massa de macarrão em
casa, eu mesma comi muito macarrão feito pelas minhas tias e pela minha avó. Mamãe não tinha tempo
porque costurava muito, né. Uma beleza de massa! E
quando era uma sopa daquela massa fininha, sequinha, elas usavam botar um pouco de vinho dentro da
sopa. Então foram criados assim muito fortes, muito
corados, sempre muito trabalhadores.
(Meus pais foram) nascidos e criados em Cataguases. O papai (Nestor Massena) morreu com 83
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anos para 84 anos. Ele com 70, 80, ainda tirava umas
quatro horas por dia para estudar música. Ele lisava
muito o saxofone, limpava porque era de prata o último dele, sabe. Ele estudava diariamente 3 a 4 horas
de música. E sabia a fundo a música. Aqui mesmo
na rua tem uma pessoa que às vezes tava ensaiando
e eles, de lá do bar dele, falava assim: “Tudo errado,
num sabe nada!” Era um dom, eu acredito até que
ele não tenha estudado. Eu... isso eu não sei, sinceramente. Eu fui uma filha que amava, ele falava mesmo
com as pessoas: “Eu gosto de todos os meus filhos,
mas a Lora é diferente, é especial”. Porque eu acompanhei o papai a vida inteira. A profissão dele era
música e alfaiate. Detestava ser alfaiate. Então não
era. Mas a roupa dele, ele próprio, ele mesmo fazia.
Consertos em ternos e tudo.
Ele tocava em baile, por exemplo, era uma coisa que não dava, né! Então é como eu falo. Esse aqui
(Luís Cláudio) tem aí dom de compositor e tudo. Vai
dar um show no Elite mês que vem. Eu falo: “meu
filho, você tem que ter a sua profissão pra sobrevivência.” A música não mantém família, num... num...
vai ter que dar muita alegria, muita realização, nesse ponto de... Porque a família, parece que a família
é muito romântica, o italiano é muito romântico, o
francês passou de romântico. Então a mistura é fina.
248
A gente tem sangue negro porque a minha avó era
filha de escravos. Então meu pai é descendente de escravos. A gente tem sangue de italiano e de francês,
que é uma super mistura.
Ele (papai) compunha músicas de carnaval
todo o ano e deixou uma valsa lindíssima, que ela
(Aparecida Massena) toca no piano até hoje. Uma
valsa lindíssima! Eu não lembro o nome, mas é um
encanto! Às vezes, numa audição de piano que ela dá
todo ano com as alunas, ela toca no fim a valsa. Ele
fez várias marchinhas de carnaval e fez uma música
chamada Espera, e eu fiz a letra. Ele ainda brincava
comigo, falava assim: “eu te dou um trocadinho pra
você fazer a letra pra mim”. Teve qualquer coisa no
cinema, no Cinema Edgard, então apresentou aquele conjunto velha guarda: o Ciodaro, o papai... tinha
mais uns antigos. Só que cê sabe, hoje a música é
muito barulhenta, pode não ter agradado tanto assim... “Esperei o romper da aurora e o por do sol /
Esperei que os pássaros partissem no inverno. E você não veio / Vieram sóis, chuvas e flores. A esperar
me debati / E perdido de amor esperei, esperei você / Esta espera me angustia, esta espera me tortura
/ Você virá, virá um dia e findará minha amargura”.
Era muito animada! Ritmada mesmo! E foi um sucesso assim... mas o pessoal jovem que tava no cinema
249
não se empolgou, porque eles estão gostando de barulho do rock.
Eu fui assim quase como babá do meu pai.
Porque eu... Ele trabalhou... o primeiro emprego
dele na Prefeitura, ele foi perseguido pela política.
Antigamente era PSD e UDN. O Dr. Pedro Dutra era
meu padrinho de casamento, ele tinha muita consideração. O João Peixoto foi meu padrinho de formatura. Quer dizer, a gente era amigo, a gente não tinha
nada pessoal. A gente tinha gratidão com o Pedro
Dutra, que ele me colocou, colocou meu pai, que já
estava vinte anos desempregado. Mamãe costurava
de manhã à noite inteira. Quando a gente era de menor ela punha os colchonetes, esteiras, naquele tempo era mais esteira, e a gente dormia tudo em volta dela aí, 8 filhos. Depois que ela ia deitar, que ela
punha cada um na cama. A gente não dormia sem
ela. Sabe, mamãe não respeitava nem resguardo. No
segundo dia ela já tava sentada cortando costura e
fazendo. Costurando na máquina, sabe. Mas o papai
foi assim... uma pessoa que eu orientei muito a carreira dele, eu que consegui a nomeação pra fiscal de
renda do Estado. Aí melhorou a situação da casa, da
família, né.
Eu formei muito nova, eu formei com 16 anos.
Eu tirei diploma com 9 anos, mas era uma menina
250
muito precoce na escola. Tive professoras maravilhosas: Ruimar, Minalda Peixoto... Dona Minalda me punha era pra cantar e dançar. Ela punha aquele cachorrinho de pele que eu usava... a boquinha do cachorro
prendia no rabinho, sabe. Bolsinha, aquele vestido
bem curtinho, aparecendo a beiradinha da calcinha,
aquelas pernas grossas. Ih... ela me punha muito pra
cantar. A gente fazia um sucesso! O grupo tinha salão,
tinha palco, cortina de veludo, tinha tudo, depois tudo se transformou. (o prédio era do) Coronel Vieira,
mas era Astolfo Dutra o horário da manhã. Eu sempre estudei e me aposentei lá como diretora, a minha
vida toda lá.
Do grupo eu fui para a Escola Normal, mas como eu tinha nove anos só, a Irmã, a Madre Aparecida,
aconselhou... Eu fui estudar porque a Cacilda Duarte,
vizinha da mamãe, minha madrinha de primeira comunhão - havia naquela época madrinha de primeira comunhão - falou: “Nós não podemos perder essa
inteligência da Lora”. Então eu consegui uma bolsa
de estudos com a Prefeitura. Era aquele tipo de bolsa
que a gente não podia perder um ano que perdia o
lugar, e a Irmã, deu a ideia de aumentar minha idade
pra doze. Foi ideia pra não perder a bolsa. Mas eu
formei com quinze anos. Com dezesseis fui nomeada
pelo Pedro Dutra.
251
No tempo que eu formei era tão... era uma glória tão grande ser professora... eu acho que é, que deve ser encarado assim até hoje. Porque tudo começa
ali, né.
Caiu muito... não há estímulo, e muita reforma de ensino. (Na época) só tinha a Irene, filha da
D. Clarisse, no Banco Nacional. Fora disso não havia
moças, mulheres trabalhando em repartição pública.
E ser professora era uma glória! Eles diziam assim
quando a gente era nomeada professora: “a filha da
Terezinha Graciolli ganhou uma cadeira”.
Nessa época que eu formei, fui trabalhar num
armazém na Rua da Estação, que era a antiga Social.
A Alva Spíndola estava saindo - e a afilhada da mamãe - me chamou pra trabalhar no lugar dela. Foi
meu primeiro trabalho. Dali uma tarde eu fui conversar com o Pedro Dutra sobre a situação do papai.
Papai estava trabalhando na Prefeitura e foi perseguido. Depois foi na fábrica, através do João Peixoto,
que sempre foi amigo nosso, que Deus o tenha. Mas
ele não aguentava trabalhar numa sala de pano, em
pé das seis às cinco da tarde. Mamãe toda vida foi
muito trabalhadora. Desde criança senti o drama da
mamãe com o marido desempregado. Quer dizer, ele
tocava num baile, cê sabe que não dava nada. E mamãe lutava muito. Eu sempre me preocupei. E então,
252
uma tarde, eu fui lá no escritório do Pedro Dutra.
Encontrei ele sozinho. Por acaso, acho que a chance
tinha que ser minha mesmo, né. Ele ficou muito admirado que eu falei: “Eu trabalho, mas ganho pouco,
mamãe luta muito”. “Mas você trabalha? Você é uma
menina!” Realmente eu era miúda, apanhei muito
corpo depois de casada, depois do primeiro filho. Era
um brotinho muito bem feitinho de corpo, mas não
era corpulenta. Eu falei: “Não, eu sou normalista”.
Ele falou assim: “Olha, eu vou nomear você e o seu
pai. Mas por enquanto você vai avisar lá o seu patrão e vai trabalhar no meu birô”. Nos éramos vinte e
cinco moças no birô eleitoral. (Era época) de eleição.
Foi quando ele ganhou para deputado federal. Então
chegaram juntos os telegramas: o meu, me nomeando professora, e do papai nomeando fiscal de rendas
da coletoria estadual. Aí tudo passou a melhorar lá
em casa. Mamãe já tinha um apoio, né, tanto meu que ela exigia, até três meses antes do casamento ela
exigiu - como o do papai. O chefe de família sabe o
que ele representa, né.
Eu trabalhava num fichário que tinha todas as
informações do eleitor. Tinha informações até assim
de... O quê que a pessoa pediu na eleição passada.
Tinha adversário, correligionário... Tinha gente que
tinha pedido uma caixa de pó de arroz.
253
Tinha o eleitorado tudo no fichário. Eu precisava de qualquer informação ia ali. Tinha tudo ali.
Na época de eleição fazia-se uma listagem, e por ali
ele sabia mais ou menos se ele ganhava ou não eleição. Ele já sabia antes da eleição. Eu trabalhei bastante! Ele foi um patrão excelente, um ser humano
maravilhoso! Pra nós da minha família, ele foi um
pai. Porque ele beneficiou minha família toda. Pra
nomear a Estelina professora, por causa de concurso, a colocação do concurso, ele teve que nomear duas adversárias pra não saltar, pra poder beneficiar a
Estelina. Eu sempre tive nele um amigo. E depois de
casada ele colocou o meu marido na Receita Federal,
(onde) morreu numa chefia.
Ele tinha tanto poder e ele brigava tanto com
os políticos, tinha liberdade, que ele conseguia pelo
telefone daqui falar com os políticos e exigir: “Você
vai nomear fulano de tal”. Ele pôs muita gente no
Banco do Brasil pela janela, através do telefone dele.
“Ó, eu exijo que você faça isso”. Ele tinha muito poder
mesmo. Mas ele fez tanto bem! Ele botou o pão na
mesa de tanta gente! Na época que eu fui nomeada,
ele nomeou todas que estavam no birô, eram umas
vinte e cinco professoras. E na época que o Procópio
foi nomeado, nomeou o Procópio, a Hermínia, a
Viena, Ula e o Klebinho. Cinco. E se tivesse consegui-
254
do durar aquele “IPASE” aqui, que chegou a abrir, teria colocado muita gente.
Foi uma política terrível! Ele foi traído na época do Zé Esteves. Ele... num ficou satisfeito porque
o Zé Esteves foi candidato dele. Então foi muito trabalhado, foi muito votado. Mas ele, aquela vitória,
parece que ele já sabia que num ia levar nada dela,
porque ele dizia que a prefeitura é uma mãe, porque
podia dar emprego a muita gente.
Eu mesma fui muito perseguida. O Pedro
Dutra me punha pra diretora, daí uns dias o outro
me tirava. Bastava ele perder a eleição pro outro me
tirar. Então me perguntaram uma vez como é que
eu encarava aquilo. “Eu encaro isso como uma coisa
mesmo de política, porque pessoalmente nem a gente tem nada um contra o outro, somos amigos”. Eu
fui muito amiga da Lourdes do Fortunato, Lourdes
Ribeiro. Ela até falava que eles chamavam o pessoal
que gostava do Pedro Dutra, que era amigo, de “lombriga”. Eu ia em comícios da UDN com ela e ela falava assim: “Cê é uma lombriga mansa”.
Mas a minha família, a gente nunca foi fanático, a gente era amigo, sempre continuamos amigos
da dona Flávia enquanto ela teve vida. Sempre com
muita atenção com eles - era uma dívida de gratidão
- porque ele nunca exigiu da gente. Quando o pa-
255
pai foi trabalhar na fábrica, passaram uma lista, um
manifesto contra o Pedro Dutra pra assinar, ele não
aceitou assinar. Foi mandado embora. Foi quando ele
foi... daí a pouco colocado como fiscal de rendas 2.
Papai trabalhou na sala de panos, ali na
Irmãos Peixoto. Ele era vaidoso, gostava de andar
bem vestido e de chapéu. Chapéu da moda. Então
eles queriam que colocasse um macacão e não usava chapéu. Então ele não aceitou aquilo. E realmente
não estava fazendo bem pra saúde dele, começou a
inchar as juntas, e eu me preocupava muito com a
família toda, observava todos os problemas. Eu me
propus a colocar o papai melhor. Acompanhei a carreira dele a vida inteira. Quando era época de retornar: “Papai, dia tal o senhor tem de retornar”. Eu fui
a primeira a estudar, porque a Eni, a mais velha, ficou
na sala de costuras, arrematando e bordava a sutache,
bordava a lantejoula. Mamãe tinha uma máquina de
bordar... e a gente nunca viu igual. Então, em época
de carnaval faziam capas de fantasia com aquele dragão atrás. Ela incluía num instantinho, a cores. Uma
máquina fabulosa, nunca mais a gente viu. Não sei
porque a mamãe dispôs daquilo. Teve que vender,
algum aperto que ela deve ter passado na vida, né.
Mas eu acompanhei o papai. A licença toda pra ele
aposentar... eu acredito que ele tenha sido muito feliz.
256
Porque ele foi muito amado, mamãe era muito apaixonada pelo papai. Foi uma convivência muito bonita, muito boa. A gente foi criada com uma mãe que
é um exemplo até hoje. Naquela luta, naquela peleja.
Ele amolado de não ter como... eu dei um impulso
depois que formei, né. Mas eles vieram muito bem.
Ele pode ter tido as mancadas dele aí, por fora, né,
mas a gente não ficou sabendo de nada não. Papai
participou duma banda. Até eu, numa crônica minha,
eu citei, “Meu largo do Rosário quanta saudade”,
porque quando a gente era pequeno o circo era armado ali, todos os circos. Foram os circos mais lindos e
mais ricos que passaram por Cataguases. Então, chegava 7 horas, 7:30, quando ia começar o espetáculo,
antes um pouco, vinha lá de cima a banda tocando
dobrado. Papai na frente. Então eles puseram o apelido de “Banda Furiosa”, sabe. Que vinha trazendo
mais crianças, mais gente. Eram circos maravilhosos!
E a gente tinha o direito ao camarote. Um parente ia
todo dia, não pagava, né, por ele tocar. Todos os músicos tinham permanente pra família ir. A gente não
perdia uma noite. Era uma coisa louca! Nós tivemos
uma infância maravilhosa! Eu não lembro do papai
ter dado aula de música pra ninguém. Ele num teve
assim alunos de música, porque depois que ele passou a trabalhar na coletoria, trabalhava o dia todo, né.
257
Então não teve condição. Estudava muito: três a quatro horas por dia. Isto era diariamente. Sabia e gostava de um livro de inglês perto dele. Todo ano, no
meu aniversário, ele fazia uma quadrinha pra mim.
Me cumprimentava pelo aniversário. Ele terminava...
“your father”. A gente foi muito amigo. O cinema era
mudo. Eu já ouvi comentários da mamãe, da dona
Hilda Condé. Dona Margarida Condé também comentava muito que eles tocavam. Era o Ciodaro, o
papai, a Aída Nacarati e o Rogério Teixeira. Então
enquanto passava o filme havia a orquestra. Mas o
pessoal ia mais pra ouvir a música, do que, propriamente pra ver o filme. Realmente era uma música
muito boa.
Eu sempre amei Cataguases. Coisa assim que
me faz bem demais e quando eu saio um pouco,
quando eu começo a avistar ali o João XXIII, já começo a chegar em Cataguases... ai, que coisa boa! Que
felicidade de estar voltando! Às vezes eu saio, visito
um filho aqui, dali vou pro outro, de lá vou pro outro, porque eu sou pai também, então não abandono. Agora, gosto, gosto do meu cantinho sossegado.
Deito cedo e levanto cedo. Dou uma caminhada de 3
Km todos os dias.
Eu acho que a cidade progrediu muito. Mas eu
sempre gostei de ter nascido em Cataguases. Este pe-
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daço... Praça Sandoval Azevedo hoje... antigamente
Largo do Rosário e aqui a rua Francisco Rossi, foi o
pedaço de minha vida, né, porque ali a gente brincava, e na época da enchente isso aqui era o nosso lugar
de brincar. Tinha aqui a chácara do Chico Rossi, de
goiabeira assim na beirada da cerca! (Nessa rua) não
tinha nada, nada, nada! Tinha lá em baixo um matadouro. Isso aqui tudo é coisa do progresso. A chácara
do Chico Rossi era aquele pedaço ali da Catauto. Dali
daquele ponto do prédio da Catauto. Pra lá era uma
chácara enorme. Então, na rua... tinha assim, uma
distância de pedra. E a cerca, de arame farpado, era
toda volta goiabeira! ... Ah, mas a gente pintava e bordava ali com aquelas goiabeiras! Então, na época de
enchente, que era uma tristeza para todo mundo, pra
nós era uma alegria. A Carminha Graciolli, a Lucy
Graciolli, a Eni, tem as irmãs do Paulo Esquerdo que
mudaram pro Rio, Vanda e Ivone Santos... Primavera
era uma menina muito bonitinha. A gente fazia jangadas com os troncos de bananeiras, ia até lá perto
do campo, atravessava o campo do operário quando
a enchente era muito forte. Era uma festa pra nós enchente aqui. A gente vinha até aqui, até no meio, era
uma festa.
Foi um encanto a minha infância! Aliás, das
meninas todas do meu tempo. Um brinquedo que
259
a gente apreciava muito é brincar de circo. Então, a
gente arranjava tudo quanto é roupa estrambólica
pra apresentar os números da gente, né. A gente fazia às vezes no quintal de uma, no quintal de outros.
Arranjava assim uma coisa alta, preparava tipo um
circo. E pra entrar pagava cinco palitos de fósforos na
entrada. E aí tinha de tudo. Esta época tinha a Zélia
e a Zilda Marques, a Eni casada com o Fernando
Miranda. Mas a gente se distraiu muito porque... a
gente vivia com treze anos, a gente vivia uma criança, uma menina de treze anos. As meninas de treze
anos hoje como é que estão? Elas não têm infância,
não tiveram infância. Nós tivemos aqui no Largo do
Rosário um time. Era queimada. Então a gente fazia o nosso time e tinha um time na rua Dr. Sobral.
Tinha domingo que era jogo contra o outro. Era aquela turminha. Carminha Graciolli, Lucy Graciolli, Eni,
minha irmã, eu. E nessa época tinha também dois...
Narte e Nilson Vassalo. Narte namorava a Eni, e o
Nilson me namorava. Eles mudaram daí há muito
tempo, anos. Tinha Delvani, que morreu, o Manoel
Ladeira que também morreu. São meninos que brincavam, não havia essa coisa... essa malícia, essa maldade que há hoje. A gente falava que era namorado,
pra ser sincera até sem saber o que era flertar. Mas foi
muito gostosa a minha infância. E a minha vida toda
260
eu sempre fui muito feliz. Eu sempre fui muito otimista. E sempre tive muita presença de Deus na minha vida. Assim, eu tenho muito amor pra dar. Como
professora eu fui uma daquelas crianças. Eu encontro
na praça ali, aqueles homões, aqueles cavalões, me
abraçam, me beijam: “o D. Terezini, me dá receita, eu
estou mais velho do que a senhora.”
“Ah! eu comecei a dar aula eu tinha dezessete,
você tinha quatorze, nós regulamos você tá de cabelo branco, cê tá sem dente. Você que não está se cuidando”. “Ó, se eu não fosse casado, eu ia paquerar
a senhora”. Todos falam assim. Ah, o Meia Pataca!
Que coisa linda! Até coloquei no “Cataguases” uma
crônica:
“Meu Meia Pataca Pobrezinho”. Que coisa linda! Quando a gente volta passa aí, fica até triste. Você
via o fundo, a gente juntava ali, atravessava para o
outro lado. Do lado de cá, assim... a volta dele todo
fazia uma curva, tinha tamarindo - vivia carregado
o pé - e muita goiabeira. Então a gente tinha tudo
ali, né. E como eu falo na crônica, eu faço um paralelo da poluição dele com a minha: ele poluído pelo
progresso, né, sujo, feio, fétido e eu poluída pelo desencanto da angustia da saudade, do amor que partiu cedo demais. A água era tão cristalina, tão linda,
que a gente enchia as mãos e vinha cheinha de giri-
261
no. Água branquinha! A gente atravessava com água
aqui, (pelos joelhos). Não tinha peixe grande ali, que
era muito razinho. Tinha aqueles peixinhos pequenininhos. Aí desse lado da Rua Professor Alcântara, naquela margem ali, a gente brincava. Então na crônica
eu pergunto: “aonde estão os meus girinos?”
A mocidade foi maravilhosa. Eu sou uma pessoa muito feliz, sempre fui muito feliz. Eu comecei
a trabalhar muito cedo e a mamãe sempre foi muito
enérgica pra mim. Comigo mais que com as outras.
Eu não tenho nada a reclamar, são todas ótimas, todas modelos de mãe de família e de donas de casa e
tudo. Mas a mamãe, o modo que ela me criou, talvez
ela visse em mim muito mais capacidade para exigir
mais de mim. Ele exigia tanto de mim, que eu passei, eu mesma, a exigir de mim, o que me forçou a
ser esta mulher autossuficiente que eu sou. Há muito tempo que eu sou esta mulher autossuficiente. Ela
exigia demais de mim e eu aprendi a exigir de mim
também.
Ah! A Escola Normal acabou, não tem mais,
não volta nunca mais! Era uma coisa louca! Tinha internato e externato, mas não era mista, no meu tempo não era mista. Eu peguei o Colégio novo, né, já
novo, este prédio novo. Mas o internato e o externato era muito amigo. A minha turma tinha Carminha
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Peixoto, tinha a Nize Pessoa, a Eliana que foi aquela artista da Atlândida, que hoje está acabadíssima,
muito doente, que teve uma trombose. Ela ficava
hospedada numa casa da Avenida. Ela veio fazer o
terceiro ano normal. Sabe, a gente fazia o primeiro e
o segundo de adaptação, que seria assim uma quinta
série, uma sexta. Depois vinha o primeiro, o segundo
e o terceiro normal. No ano seguinte que eu saí, começou o de Formação. Então quem tinha o terceiro
normal já podia começar no segundo de Formação.
Eu já trabalhando, eu voltei pra fazer o de Formação.
Mas a gente saía sabendo. A gente tinha tirocínio. Eu
tive uma professora uma professora de português
maravilhosa, a irmã Edith, que hoje eu soube que
ela está em Mariana. Está velhinha e tá cega. Nancy
Salgado, que foi minha professora de matemática
muitos anos, Dona Nancy, ótima professora. Depois
no último ano foi a irmã Salomé, Irma Paulina. Ah,
mas eram professoras maravilhosas, não desfazendo das de hoje. Agora, eu acho que mudou muito
do meu tempo pra cá. Porque no meu tempo a gente recebia uma educação religiosa, cristã, coisas que
acompanham a gente a vida inteira. Princípios morais, uma formação. A gente, por exemplo, estudava
uma História Sagrada, Antigo e Novo Testamento.
Dessa grossura! Além disso, um catecismo assim. E
263
a gente tinha aqueles horários de ter uma visita ao
Santíssimo. Hoje a minha filha não aprendeu nem o
Pai-nosso lá. Além do exemplo de casa, do lar que é
muito importante, aquela educação que a gente recebia lá, aquilo dava a gente uma posição de fortaleza
diante da vida. Firmeza de caráter. Porque a gente
que teve felicidade dessa formação... aquilo sempre segurou, sempre foi um obstáculo para alguma
mancada que se pudesse dar ali adiante. Um princípio moral. Mudou muito, o ensino mudou. A gente
aprendia realmente.
Ah, Naíde Quaresma, professora de Educação
Física, não tinha nada mais lindo! A gente fazia aquela ginástica de pião, sabe, a gente tinha sempre uma
coisa preparada pra um momento de ter uma festa. Foi um professorado... eu não estou desfazendo
dessas agora. Mas eu... foi uma coisa maravilhosa
a Escola Normal na minha época! Muito bom (o relacionamento com as irmãs). Elas conversavam sobre namorados, elas falavam dono. “E o seu dono?
Você já tem dono?” Elas conversavam, tinha toda
a liberdade de conversar com a gente. Ah, as internas tinham aquele regime de hábito de Escola mesmo. Levantavam muito cedo, banho frio e começar
cedo. Tinha hora de estudo, tinha hora pra tudo, né.
E a gente não podia, por exemplo, era proibido, era
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proibido levar uma carta cá de fora, uma carta de um
namorado pra uma interna. Eu mesma quase fui suspensa por uma semana, porque a Carminha Peixoto
namorou o Mário Góes e ele mandou uma carta pra
ela, eu entreguei e a irmã pegou a carta.
Tinha internato (no Colégio de Cataguases).
Foi quando o colégio era pago, né. Ai foi uma época
que veio o Chico Buarque, veio o Darcy Fernandes,
que é o capitão. Que me paquera, que está comigo
a uns 4 anos, né. Ele veio a Cataguases com o filho.
Veio até de moto, ele pratica muito esporte. Veio visitar, mostrar pro filho o colégio que ele estudou. Era
filho único, estudou um ano, e depois o pai adoeceu,
eles voltaram pro Rio, eles são do Rio. Depois de algum tempo que a gente se conheceu, conversando,
eu falei: “Darcy, eu te conheço de algum lugar. Tenho
certeza que já te vi”. Ele virou pra mim e falou assim:
“Você não é aquela menina lourinha, que dava aula
naquele grupo da Avenida, naquela primeira janela?
Lembra que eu flertava com você, você não era aquela menina?” Lembrei, era eu mesmo. Ele passava, a
gente flertava. Ele não chegou a ficar interno, né. Era
filho único, estudou aí, estudou pouco.
Nossa! Os bailes hoje até da tristeza vê baile.
Os bailes eram lindíssimos! Acabou a poesia, onde
está a poesia? Acabou. Em todos os pontos. Não digo
265
só em baile. Por exemplo, baile de professora, era um
baile lindo! A gente fazia em benefício a caixa escolar.
Eu fui a bailes no colégio Cataguases, baile a rigor.
Mamãe costurava muito e fazia vestidos de bailes lindíssimos. Eu tenho até um retrato aí de vestido de
baile. Pena que não era colorido, né. E os bailes... havia muita poesia, a própria música era muito romântica. E não havia essa barulheira. A última vez que eu
fui lá no clube do Remo, que ele (Luís Claudio) insistiu muito, a gente não podia conversar na mesa, porque a gente não escutava nada, uma da outra! Você
saía dali cansada, super cansada. (O traje) ou era rigor ou era passeio, traje passeio simples. Hoje você
vê bermuda, calça jeans, short colorido, longo, tudo
junto. Chanelsinho, tudo junto num baile só. Quer dizer, não entende.
Carnaval era uma coisa linda! Havia o “Lord
Club” e a rivalidade era com as “Mimosas Camélias”.
Eu com treze anos saía na carruagem do Emílio.
Tinha atrás de mim um avião enorme. Eles fizeram
uma espécie de uma jarra toda sextavada ou oitavada. Toda em espelho com aquelas flores coloridas.
Em cima, no meio daquela porção de flores de papel,
eu sentada. Com a roupa linda, branca, jogando beijos. Quando eu passava em frente do Social, cheio de
pessoas na sacada pra ver passar os blocos, o avião
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deu aquele tiro de confete. Foi lindo! Era lindo! Era
lindo! Pra te falar a verdade eu nem vou à rua pra ver
carnaval mais. Uma pobreza, é uma pobreza.
Os bailes eram lindíssimos, lindíssimos! Não
esse negócio de pessoa beber, jogar copo, jogar garrafa um no outro. Não tinha isso. Aliás, uma moça não
bebia cerveja. Era feio. A gente tomava refrigerante.
Eu era muito nova, eu já era professora, mas eu não
tinha aparência de moça. Então eu dançava na matinê e a noite também.
Ah, a Praça Rui Barbosa era interessante. Era...
a gente andava assim... os rapazes assim e a gente ao
contrário. Chamava “footing” na época. Ali a gente
arranjava os namorados, né, porque agente passava
por eles assim. Cortava volta (pra encontrar mais rápido). Às vezes quando a gente chegava a dar uma
volta ele já vinha. O cinema também era muito bom.
Quer dizer, o cinema você tinha condição de ir. Hoje
você quase não tem. Ou é karatê ou é filme de sexo. Então a gente prefere ver um filme na televisão.
Como ontem, sessão da tarde, “Noviça Rebelde”,
que coisa linda! Eu já vi três vezes aquele filme e não
canso. Que saudade... Foi uma época muito... muito
bonita.
Eu gostaria de falar sobre o ensino, um pouco,
né, porque eu trabalhei dezessete anos com regência
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de classe. Eu fui regente de classe de quarto ano, quatorze anos seguidos. Eu já dava sistema métrico decimal, aquilo saía assim, com a maior facilidade. Fui
professora do Joaquim Branco, o que é uma honra!
Aliás, todos os meninos que passaram por mim, eu
acho que foi uma honra. Porque pra mim são filhos.
Eu amei aquelas crianças desde a primeira vez que vi,
sabe. Então isso marca muito a gente.
Agora, realmente a professora nunca foi bem
remunerada. É uma coisa que magoa. Mas há a recompensa invisível, que gratifica muito a gente. E o
carinho dos ex-alunos, a gratidão dos pais, alguns,
né. Quer dizer, isso é a recompensa que a professora
tem, porque em matéria de ordenado uma professora não pode pagar uma doméstica que ganha salário.
De jeito nenhum. Agora, quanto a um deputado, que
passou pela professorinha primeiro, pra chegar onde ele está, não faz um movimento em benefício das
professoras. Eu já gritei muito pela classe, mas você
sabe, sabe como que são os gritos que ficam sufocados. Publiquei tudo, correu o mundo, o estado de
Minas todo. Entreguei nas mãos do Newton Cardoso,
do Hélio Garcia, quando estiveram aí. Então você
vê uma professora que trabalhou trinta e cinco anos,
quanto você acha... comparado com um deputado
que ganha aquele horror. E uma professora, ela tem
268
que manter uma linha, a maneira de vestir, né. A gente dá muito material escolar pras crianças que não
tem. Merenda... quanto a gente segura pela merenda diária. Eles não estão mandando nada! Quando
chega aquelas coisas dos Estados Unidos, você abre
aquele saco assim de triguilho, ou duma farinha laminada, que eles mandavam quando eu era diretora, já tava saindo borboleta. Você vai dar aquilo pra
menino? Você ia dar aquilo pra criança, aquilo podre,
saindo borboletinha pra todo lado? Quantas vezes a
diretora, como eu, saía de porta em porta. Era óleo,
era macarrão, era tudo que eu ganhava. A professora
além de estudar muito ela tem que saber psicologia
para entender cada aluno. A professora vai lapidar,
ela tem que saber entender cada cabeça, porque tudo
começa no lar; a escola é a continuação do lar, se não
é, devia ser. Então a professora bem preparada entende cada criança daquela.
Ah, foi linda! Me realizei demais como professora, e mais ainda como diretora.
Porque diretora eu pude ajudar muita criança
pobre. Eu ajudei o máximo que eu pude as da minha
sala, enquanto eu fui regente de classe. Eu fui regente de classe dezessete anos, quatorze anos no quarto
ano primário. E depois eu passei dez anos como diretora. Então eu trabalhei vinte e sete anos. Como eu
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entrei com dezesseis anos, eu sai com quarenta e três.
Aposentei nova e com muita vontade de continuar.
Abri aquele jardim de infância no Centro Espírita, onde a gente pode ajudar muito as crianças menos favorecidas, e quase não cobrava, a gente dava todo o material. Ali eu devo ter ficado uns seis anos. Como eu
gostava de ficar no meio das crianças, eu vim pra creche SOS. Achei uma beleza o trabalho da Dona Emília,
da diretoria toda. E mais ainda o da Sebastiana, que
tomava conta dos meninos, né. E me ofereci pra ajudar quando precisasse dum relatório, quando precisasse de um cartaz, porque eles têm convênio com a
LBA e exigem, né. Semana da Comunidade, Semana
da Alimentação, tudo. Logo que eu comecei a trabalhar lá como voluntária, a primeira coisa que eu
fiz foi abrir duas salas de aula, porque os meninos
dormiam depois do almoço. Então os pequenos, as
menores tinham aula de manhã e as maiores, que já
não gostavam, de dormir, faziam à tarde. Então há
um trabalho pra duas professoras. O que sempre me
realizou muito foi poder ajudar a colocar mais pessoas. E eu orientava, até que a D. Emilia conseguiu
que o Mobral pagasse as professoras, porque estava
ficando difícil pra ela pagar as professoras. Consegui
fazer coisas lá que ninguém acreditava que eu conseguiria. Fazer, por exemplo, peças infantis todo Natal
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com as crianças. Crianças pequenininhas, muito carentes, de ambientes terríveis... porque além da parte de diretora das duas salas, eu fazia a escrita toda.
Os prontuários do LBA tinham toda a informação de
cada criança. Então eu tinha que entrevistar as mães,
no princípio do ano, uma a uma, pra saber aonde que
ela morava, se a casa era de cimento, se tinha banheiro... a maioria não tinha banheiro em casa. Então era
um ambiente assim de meninos que vivem na promiscuidade mesmo. Tudo numa cama só com o pai
e a mãe. Mas eu consegui fazer peças infantis lindas.
Trabalhei lá quatro anos e foi muito bom.
Sou uma mulher muito feliz, muito realizada,
tive assim, muitas derrotas, sofrimento, mas sou uma
vitoriosa. Eu tenho aquilo que as pessoas me dão, não
é? Porque realmente a gente tem aquilo que aparenta ter. Mas de coração eu devo tá com vinte e cinco
anos, que eu tenho um coração assim muito apaixonado, muito jovem. Eu tô realizando um sonho dos
meus quinze anos: ter um quarto cor-de-rosa. A minha filha teve um quarto cor-de-rosa. Agora eu estou
realizando meu sonho. Nunca é tarde para o amor e
nunca é tarde para realizar um sonho. Coração não
tem idade...
Entrevistada em 27/04/1990 por Gláucia Siqueira e Mariana Cândida.
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