MADRE BASILEA SCHLINK E A IRMANDADE EVANGÉLICA DE

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MADRE BASILEA SCHLINK E A IRMANDADE EVANGÉLICA DE
MADRE BASILEA SCHLINK E A IRMANDADE EVANGÉLICA DE MARIA
Carina Mirelli Dias
(Mestranda da Universidade Estadual de Ponta Grossa)
Resumo: No pós segunda guerra mundial, na cidade de Darmstadt na
Alemanha, surge através da liderança de Madre Basilea e da Madre Martyria a
Irmandade Evangélica de Maria, com o objetivo de compartilhar uma vida de
serviço e oração seguindo o exemplo dos primeiros discípulos cristãos, têm
como principal desejo viver a simplicidade do Evangelho. Em março de 1980
algumas irmãs saem da Alemanha com destino a Curitiba para estabelecer
uma filial no país que ainda hoje, através de um ministério interdenominacional
chamado Canaã no Brasil, trabalha buscando a reconciliação e a formação de
laços de amizade com povos judeus e indígenas. Atuando também no trabalho
de evangelização através da distribuição de livros e folhetos baseados nos
escritos da Madre Basilea, produzidos em gráfica e editora instaladas no
Bosque de Jesus, sede situada em Curitiba. O objetivo desta pesquisa é
compreender o papel dessas mulheres a frente do ministério, assim como
pensar questões relacionadas ao estudo de gênero e religião. Outro fator a ser
estudado é a formação da irmandade como instituição e o seu papel de
reparação de traumas, mais especificamente ligado ao trabalho com os
indígenas brasileiros. Para isso, utilizaremos como fontes os livros e folhetos
produzidos pela irmandade, além de entrevista com as irmãs e análise de
correspondências, diários e fotografias encontrados na sede em Curitiba.
Palavras-chave: Gênero; religião; irmandade.
É possível através da religião e seus estudos discutirmos diversas relações
sociais, isso se torna possível quando a compreendemos como uma
construção social e cultural.
“A religião é, antes de tudo, uma construção sócio-cultural. Portanto, discutir
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religião é discutir transformações sociais, relações de poder, de classe, de
gênero, de raça/etnia; é adentrar num complexo sistema de trocas simbólicas,
de jogos de interesse, na dinâmica da oferta e da procura; é deparar-se com
um
sistema
sócio-cultural
permanentemente
redesenhado
que
permanentemente redesenha as sociedades.” (SOUZA, 2004 pág. 122).
Nesse artigo apresentamos alguns pontos já levantados sobre a
pesquisa em desenvolvimento que resultará na dissertação do curso de
Mestrado em História Cultura e Identidades, inserida na linha de pesquisa
Discursos e representações: produção de sentidos.
A Irmandade Evangélica de Maria tem sede em Curitiba – PR no bairro
São Lourenço desde março de 1980. Bosque de Jesus como é chamado,
recebe visitantes diariamente, também está aberto para a realização de
encontros e retiros espirituais. No bosque encontramos a gráfica aonde as
próprias irmãs reproduzem os materiais de evangelização que são distribuídos
por todo o mundo. Elas têm um trabalho interdenominacional evangélico, não
se trata de uma igreja, mas sim, de um ministério chamado Canaã no Brasil,
podemos encontrar irmãs de diversas denominações religiosas, como
luteranas, batistas, presbiterianas, entre outras, ambas declaram sua fé por
Jesus Cristo e baseiam sua caminhada nos ensinamentos bíblicos, afinal elas
acreditam que todas as denominações formam a Igreja de Cristo, em busca da
unidade, pelo bem comum. Podemos relacionar isso ao conceito de
ecumenismo;
“Ecumenismo é uma palavra nova sem equivalente na Bíblia, acusando um
déficit nas Igrejas hoje. Exprime o desejo pela "Igreja toda", pela recuperação
da plena catolicidade que em nenhuma das instituições se encontra de forma
acabada. Exatamente por isto, a palavra "ecumênico" passa a qualificar
determinada mentalidade. Consiste na consciência do vínculo que há entre
todos que professam o nome de Jesus Cristo, e da necessidade da
reconciliação entre as Igrejas divididas. Pois a unidade das Igrejas e de seus
membros é anterior às suas divisões. A unidade está em Cristo. Ela é dom
antes de ser tarefa. Não cabe ao ecumenismo construir ou produzir a unidade.
Cabe-lhe, isto sim, visualizar a unidade que em Cristo já existe.”
(BRAKEMEIER, 2001, pág. 200).
Dessa forma podemos perceber que a idéia de ecumenismo dentro da
Irmandade está diretamente relacionada à noção de mentalidade. Reforça o
vínculo que existe entre todos aqueles que professam sua fé em Jesus Cristo,
e isso independe da denominação ao qual o indivíduo pertence.
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Outra forma de pensarmos o ecumenismo é pelo trabalho que é
realizado pelas irmãs com as tribos indígenas, através da comunhão entre
indivíduos, partilhando da mesma fé e da mesma visão e buscando alcançar
um objetivo ainda maior, o de superação de pecados e reconciliação entre os
povos.
“Comunhão cristã, para ser autêntica precisa necessariamente sanar feridas
produzidas por motivos étnicos, econômicos, culturais ou outros. O membro da
Igreja não deixa de participar dos conflitos de sua respectiva sociedade. Vive
num só mundo, como cristão e como cidadão. Por todas essas razões, a
construção da unidade entre pessoas cristãs deve andar de mãos dadas com o
saneamento básico das relações humanas, com perdão e superação de
pecados, com o empenho por paz e justiça social, por um mundo mais
humano. O mesmo se aplica às instituições eclesiásticas.” (BRAKEMEIER,
2001, pág. 204).
Madre Basilea deu o nome à filial brasileira de “Canaã - A Luz de Jesus”
de acordo com o versículo bíblico de João 8.12 “Eu sou a luz do mundo. Quem
me segue, nunca andará em trevas, mas terá a luz da vida". Um jardim de
oração contendo esculturas e relevos que retratam a Paixão de Jesus no
caminho do Getsêmani até a ressurreição é um dos lugares mais especiais do
bosque, e está muito presente no cotidiano das irmãs, segundo a Madre
Basilea; “Em nenhum outro lugar o amor de Deus revela-se tão poderosamente
como nos sofrimentos de Jesus”. (CANAÃ, Folheto).
O surgimento da Irmandade aconteceu no pós Segunda Guerra Mundial,
na cidade de Darmstadt na Alemanha através da liderança de Madre Basilea e
da Madre Martyria.
“Numa noite de setembro de 1944, a cidade de Darmstad foi totalmente
destruída pelos bombardeios, mas das cinzas surgiu nova vida. Durante anos,
Klara Schlink (doutora em Psicologia) e Erika Madauss haviam orado por
avivamento entre as moças dos seus grupos de estudo bíblico. Assim nos
últimos meses da Segunda Guerra Mundial, irrompeu um avivamento à medida
que as jovens sentiram a mão de julgamento de Deus sobre a nação e suas
cidades, e arrependeram-se do cristianismo morno em suas vidas.
A experiência do perdão de Deus fez surgir um amor ardente por Jesus. Foi
despertado o anseio de compartilhar uma vida de oração e serviço, seguindo o
exemplo dos primeiros cristãos, que tinham todas as coisas em comum (Atos
1
2.44) . Consequentemente, em 1947, sob a liderança da Madre Basilea (Klara
Sclink, 1904-2001) e da Madre Martyria (Erika Madauss 1904-1999), foi
fundada a Irmandade Evangélica de Maria. O co-fundador, Paul Riedinger, um
pastor da Igreja Metodista, deu à Irmandade o nome de Maria, a mãe de Jesus,
que exemplificava a fé e a dedicação à vontade de Deus. Desejamos seguir a
2
Jesus e “fazer tudo o que Ele nos disser” (cf. João 2.5) . As nossas vestimentas
1
2
“Todos os que criam tinham mantinham-se unidos e tinham tudo em comum.” (NVI)
“Sua mãe disse aos serviçais: "Façam tudo o que ele lhes mandar.” (NVI)
1690
são expressão do nosso desejo de viver em simplicidade e separadas para o
serviço do Rei, Jesus.”(CANAÃ, Folheto).
Baseada no texto de Êxodo 25.83 Madre Basilea concluiu que
necessitavam de um local para prestar culto a Deus. As primeiras irmãs
construíram em 1949 a Capela e a Casa Matriz com suas próprias mãos, com
apenas 30 marcos em caixa utilizaram na construção restos dos escombros
deixados pela guerra. O lugar foi chamado Canaã, nome da “Terra Prometida”
na Bíblia, esta ficou como sede mundial de organização que conta com
diversos outros pequenos “Centros de Canaã” em várias partes do Mundo.
A Irmandade no Brasil conta agora com aproximadamente cento e
oitenta Irmãs de vinte nacionalidades diferentes, elas vivem em comunidade e
são a princípio muito parecidas com as irmãs religiosas da Igreja Católica,
usam uma roupa especial, parecida com um hábito que foi inspirado na tribo
dos levitas do Antigo Testamento, seu uniforme é um símbolo da sua
separação para o ministério, não se casam como sinal da consagração de suas
vidas a Jesus Cristo e vivem de doações, desejando seguir de forma simples o
evangelho cristão.
Inicialmente
a
pesquisa
tem
como
objetivo
principal,
analisar
historicamente as relações culturais de gênero presentes na Irmandade
Evangélica de Maria, desde a sua fundação, e assim compreender o papel da
Madre Basilea Schlink (1904 – 2001) como fundadora e direcionadora do
trabalho do ministério Canaã no Brasil através da produção de livros e folhetos.
A pesquisa mais especificamente, pretende identificar as construções
simbólicas, redefinindo papéis e contextos ligados a questões de poder,
dominação e corpo das mulheres da Irmandade Evangélica de Maria, analisar
o conceito de ecumenismo, pois trata-se de um ministério interdenominacional,
o qual visa a reconciliação e o estabelecimento de laços de amizade entre os
mais variados povos em nome de Jesus Cristo e de seus ensinamentos, e
identificar nas ações da Irmandade um diálogo de reconciliação, assim como
também, uma política de reparação diante de traumas causados no passado.
Uma das fontes utilizadas para a realização dessa pesquisa é grande
parte da Literatura escrita pela Madre Basilea, no total são cerca de cem
títulos, tais obras já foram traduzidas em mais de sessenta línguas, para a
3
“E farão um santuário para mim, e eu habitarei no meio deles.” (NVI)
1691
pesquisa serão selecionadas as obras que enfatizem o trabalho e a vida da
Madre assim como da formação e estruturação da Irmandade. Parte desses
escritos são atualmente reproduzidos e distribuídos por todo o mundo como
instrumento evangelizador, são livros com mensagens fundamentadas na
Bíblia ressaltando sempre a imagem de Jesus Cristo e de sua mensagem de
amor e paz. Também serão utilizadas como fontes para a pesquisa alguns
escritos particulares da Madre destinados às irmãs da comunidade, através de
cartas, Madre Basilea ensinava, orientava e se relacionava com as irmãs do
Ministério Canaã não só do Brasil, esses materiais encontram-se na sede em
Curitiba e nos foram disponibilizados pelas irmãs Nechama e Ádola para a
consulta.
Utilizaremos também fontes orais, afinal, assim como ressalta Guariza em
sua tese:
“A memória não é um passivo depósito de fatos, mas um ativo processo de
criação e de significados. Apesar da memória individual estar relacionada com
um quadro social mais amplo, o indivíduo mantém uma composição única a
partir de suas experiências. A forma de rememorar é uma seleção a partir das
vivências da vida do entrevistado e por isso é flexível, subjetiva e sexuada.”
(GUARIZA, 2009, p. 22).
As irmãs Ádola e Nechama atualmente são as responsáveis pela
comunicação com a Irmandade e as mesmas conviveram com a Madre
fundadora, essa é sem dúvidas, uma grande oportunidade de compreendermos
de forma mais específica e particularizada a trajetória da Irmandade,
acreditamos que a história oral consegue analisar o significado que as próprias
mulheres dão á sua participação na irmandade em questão, além de estar
muito ligado com a formação de identidade feminina e religiosa. Segundo
Guariza:
“Nas narrativas os homens e as mulheres diferem, e isso é um dado importante
para a produção da fonte oral numa pesquisa de gênero. Os homens discorrem
sobre a sua vida como uma série de atos conscientes e planejados, onde eles
assumem uma postura ativa. Por outro lado, as mulheres falam em suas vidas
a partir de suas relações, empregando o pronome pessoal no plural, como nós
ou a gente. As mulheres tendem a falar mais sobre as suas experiências
familiares e a diminuir a sua importância nos eventos. Elas apresentam uma
boa consciência do tempo histórico, o demarcando com os eventos do seu
círculo familiar.” (GUARIZA, 2009, p. 22).
“O ato de narrar permite a recriação da subjetividade por meio da qual o sujeito
constrói e atribui significado a sua experiência e identidade. As subjetividades
são construídas a partir de experiências construídas pelo trabalho ideológico,
por meio das relações materiais, interpessoais, econômicas, e por traços
sociais de longa duração que também constituem os sujeitos.” (GUARIZA,
2009, P. 23).
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Acreditamos que a recriação da subjetividade individual ou do grupo por
meio da narração será fundamental na compreensão dos elementos de análise
desta pesquisa. Todas as relações interpessoais e o trabalho ideológico
estarão mais visíveis à leitura do historiador do que se fossem encontrados
apenas nas produções literárias da Madre.
O interesse em pesquisar a Irmandade surgiu inicialmente com o
objetivo de analisar o papel destas irmãs a frente de um ministério internacional
apenas de mulheres, que foge do padrão de ordem religiosa tradicional, onde
uma igreja responsável é quem sustenta a instituição e o trabalho ministerial. O
ministério Canaã já teve no seu início e formação a atuação marcante e
determinada de duas jovens apaixonadas pela causa de Cristo, mas
principalmente atentas ao seu tempo e espaço. No contexto da Segunda
Guerra Mundial e vivendo como testemunhas das perseguições e extermínios
de um povo considerado “escolhido” por seu deus, naquela que é o seu manual
de vida, a Bíblia, por pessoas da sua nacionalidade, fez com que, uma grande
culpa tomasse conta daquelas jovens e de alguma forma elas achavam que
teriam como dívida fazer algo de bom por essas pessoas, algo que de alguma
forma reparasse seus traumas e gerasse uma onda de reconciliação entre
alemães e judeus.
A partir disso, outros pontos foram tornando-se alvos de interesse, o
modo de vida das irmãs que atualmente vivem no Brasil, seu cotidiano, suas
escolhas, a maneira como se vestem, como enxergam a si mesmas, como se
relacionam e seus objetivos de vida são questões que procuramos estudar
nessa pesquisa. O que leva uma mulher a dedicar sua vida por completo a um
trabalho ministerial religioso que a faz escolher deixar de lado uma vida
feminina baseado em uma construção cultural e que é considerada por nossa
sociedade como ideal?
“As mulheres, como alerta Bourdieu (1999), são tratadas como objetos ou
como símbolos cujo sentido lhes está alheio e cuja função é manter o capital
simbólico – especialmente a honra – em poder dos homens. Dessa forma, elas
circulam como mercadorias de ínfimo valor no mercado de bens simbólicos;
precisam estar sempre belas e magras, acompanhando a moda internacional,
cumprindo também suas obrigações de mães e donas-de-casa paralelamente
ao trabalho extra-doméstico que executam para melhorar o orçamento familiar
ou para se sustentarem quando vivem sozinhas ou na companhia de seus/suas
filhos/as pelos/as quais, geralmente, são as maiores ou únicas responsáveis.”
(SAYÃO, 2003, pág. 25).
1693
De que forma as irmãs entendem e como isso faz ou deixa de fazer
parte de suas vidas? Algumas questões como; a formação acadêmica, a
realização profissional, a construção de uma família e o tornar-se esposa e
mãe, algo que muitas vezes nos é imposto como inerente a toda mulher, o
desejo por servir e gerar vida. Em que momento essas mulheres optaram por
viver por completo uma vida de trabalho e serviço para deus, como foi essa
transição e de que forma isso trouxe a elas certa realização pessoal? Suas
experiências de vida nos trazem novas significações e sentidos na história de
gênero e na história das religiões, principalmente ao analisarmos a produção
teológica da Madre Basilea e a sua influência na vida de tantas outras
mulheres, assim como na vida de pessoas que tem conhecido o seu trabalho
através dos materiais de evangelização produzidos pela irmandade e assim
seguindo os seus ensinamentos.
Para Michelle Perrot:
“A relação das mulheres com a religião é paradoxal, ao passo que as religiões
representam, ao mesmo tempo, poder sobre as mulheres e poder das
mulheres. Exerce “poder sobre as mulheres”, por ter na diferença entre os
sexos um de seus fundamentos, como é comum entre as grandes religiões
monoteístas. No entanto, a religião torna-se “poder das mulheres”, quando
estas conseguem transformar a posição de submissão que a religião lhes
reserva, na base de um “contra-poder” e de uma “sociabilidade”. Dessa
maneira, a religião ainda que reforce a submissão das mulheres apresenta-se
como um abrigo às suas misérias.” (PERROT, 2007, pág. 83).
Essa transformação da posição de submissão para um contra-poder e
de uma sociabilidade descreve de maneira geral o trabalho da irmandade em
questão, da posição de meras espectadoras da situação desfavorável de um
povo específico, elas passam a, através da religião, tomar um poder e por meio
de suas produções propagarem um discurso reparador e reconciliador
buscando mudar a situação inicial não só do grupo, mas de outros povos, em
outros contextos. Elas assumem uma responsabilidade que as tira da posição
de submissão, ao mesmo tempo sem perder de vista aquilo que a religião e o
seu discurso moderador representam.
Nesse sentido, estudar gênero e religião significa desenvolver um olhar
ainda mais atento, afinal, “pensar as representações de gênero demanda
pensar o papel da religião na construção social dos sexos.” (SOUZA, 2004, p.
1694
123). Ainda mais quando vivemos em uma sociedade que procura desvincularse dos laços religiosos, mas ainda vive debaixo de discursos onde a religião
influencia a maneira como a sociedade reconhece os papéis sexuais.
Ao considerarmos que masculino e feminino são menos fatores
biológicos do que construções sociais e culturais, torna-se muito mais fácil a
compreensão de uma atuação das mulheres num contexto religioso, entretanto
a religião foi por muito tempo uma antagonista dos pensamentos feministas,
principalmente naquilo que está diretamente ligado no que diz respeito ao seu
papel como participante de uma comunidade religiosa, ou ainda como
pensadora de uma teologia religiosa. “As religiões têm, explícita ou
implicitamente, em seu bojo teológico, em sua prática institucional e histórica,
uma específica visão antropológica que estabelece e delimita os papéis
masculinos e femininos.” (NUNES, 2005, pág. 363).
Para Pierre Bourdieu (1999), a diferenciação entre o masculino e o
feminino deu-se pela grande influência de três áreas, a Igreja, a Escola e a
Família. Na Igreja percebemos essa ação através do antifeminismo
principalmente relacionado aos trajes, dando a mulher um lugar de inferioridade
por meio de uma visão pessimista sustentada por valores extremamente
androcêntricos, patriarcais e familiaristas, colocando a mulher num lugar
secundário e tradicional na sociedade. Enfatizando essa visão, a autora nos diz
que:
“Dados estatísticos costumam confirmar a observação do senso comum de
que as mulheres investem mais em religião do que os homens. Daí se conclui
que elas seriam „mais religiosas‟ do que eles. Tal visão esconde um enorme
equívoco que as atuais formas fundamentalistas das religiões, no Ocidente
como no Oriente, vêm desvendar. Na verdade, as religiões são um campo de
investimento masculino por excelência. Historicamente, os homens dominam a
produção do que é „sagrado‟ nas diversas sociedades. Discursos e práticas
religiosas têm a marca dessa dominação. Normas, regras, doutrinas são
definidas por homens em praticamente todas as religiões conhecidas. As
mulheres continuam ausentes dos espaços definidores das crenças e das
políticas pastorais e organizacionais das instituições religiosas. O investimento
da população feminina nas religiões dá-se no campo da prática religiosa, nos
rituais, na transmissão, como guardiãs da memória do grupo religioso.”
(NUNES, 2005, pág. 363).
Com base na afirmação da autora, a Irmandade Evangélica de Maria
destaca-se primeiramente já ao analisarmos sua formação institucional, apesar
de ter recebido apoio de um homem, Pastor Paul Riedinger no início do
ministério que inclusive foi quem sugeriu o nome da irmandade, em todos os
1695
escritos, nas entrevistas com as irmãs e sempre que nos referimos a
“liderança” da Irmandade encontramos mulheres como referenciais, em
especial a Madre Basilea que é a autora de quase toda a literatura da
Irmandade.
No Brasil, atualmente as irmãs tem um relacionamento ministerial com o
CONPLEI (Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas)
este conselho surgiu no Brasil em 1991 quando indígenas evangélicos,
entenderam que era hora de compartilhar a sua visão e sonho, de que embora
diferente em seu modo de vida, tinha algo a contribuir com a sociedade. O
povo
evangélico
conhecia
apenas
dois
movimentos
missiológicos:
a
estrangeira e a nacional. Mas havia outro movimento chamado terceira onda
missionária, onde vemos índios evangelizando índios. No Paraná, a irmã
Nechama e a Irmandade Canaã são associadas desse conselho e tem
trabalhado junto aos indígenas. Em julho de 2012 no centro de treinamento
Amí na Chapada dos Guimarães no Mato Grosso aconteceu um encontro
nacional do CONPLEI com mais de oitenta e uma tribos indígenas, assim como
demais participantes de outros países, totalizando mais de duas mil pessoas. O
principal objetivo desse encontro é gerar relacionamento entre os diferentes
povos ali presentes num ambiente de reconciliação.
As irmãs têm realizado esse trabalho com povos indígenas no Brasil
assim como também em outros países, tem buscado reconciliar-se com povos
que sofreram certo trauma devido à dominação, exploração ou perseguição
dos povos europeus. Um exemplo dessa preocupação da irmandade foi ainda
em Darmstadt na Alemanha no ano de 1933 quando Hitler já havia ascendido
ao poder;
“Madre Basilea foi pressionada, enquanto líder nacional do Movimento Cristão
Estudantil Feminino, a aceitar o parágrafo ariano, que barraria as judias cristãs
do Movimento. Ela recusou-se a fazê-lo, persuadindo o grupo a rejeitar a
exigência, De 1939 a 1944, em sua atividade de conferencista, ela arriscou sua
vida e a sua carreira, durante este período politicamente sinistro, falando
publicamente de suas convicções. Embora frequentemente houvesse
informantes presentes ás conferências que ela realizava por toda a Alemanha,
ela sentiu-se compelida a falar sobre a eleição dos judeus e sua posição de
liderança e incumbência a todas as nações no reinado do Milênio. Convocada
a comparecer diante da Gestapo, ela foi interrogada durante horas,
inexplicavelmente, somente pelo seu desafio de seguir a Jesus, pois na opinião
dos interrogadores existia somente “um verdadeiro Fuher(...)”(Schlink, 1996,
pág. 8).
1696
A partir desse breve relato podemos iniciar a compreensão do que
conhecemos por reparação de traumas.
“As políticas de reparação contribuem para a construção de um senso comum
democrático, substituindo o arcabouço de valores introduzidos por regimes
opressivos e fomentando o estabelecimento de reconciliações que possam
contribuir para a democracia e para a paz. Karl Jaspers (1979) insistiu que as
pessoas de um Estado devessem se reconciliar compartilhando uma
responsabilidade coletiva por crimes que foram cometidos sob a autoridade de
seus líderes. O resultado dessa responsabilidade – que permite que as
memórias das violações dos direitos humanos incentivem o acúmulo coletivo
de experiências para a educação social à ampliação democrática almejada por
um processo de justiça transicional, proporcionando um importante marco
teórico para se compreender e promover as práticas que envolvem o trabalho
da memória política e da justiça histórica. (ROSA, 2012, pág. 356, 346).
Dentro do viés religioso e atendo-se aos aspectos pertinentes a essa
área, as irmãs buscam alcançar povos que sofrem as conseqüências de um
processo de exploração sofrido no passado. No Brasil o caso mais latente sem
dúvida é contra a população indígena, eles que sofreram a dominação européia
na colonização do Brasil, que perderam não só a sua terra, mas principalmente
sua identidade cultural, tem sido alvos da tentativa de reparação. Destacamos
que a irmandade busca exclusivamente a reparação desses danos através de
um olhar cristão, ou seja, buscam não só a aproximação com diversas tribos
indígenas com a intenção de retratação e de estabelecer laços de amizade,
mas seu papel também é apresentar-lhes a religião e consequentemente a
salvação por meio de Jesus Cristo, através dos seus ensinamentos baseados
no amor e compreensão e não mais através da dominação incentivada pela
exploração.
A história da Irmandade, a maneira como as irmãs vivem, e
principalmente o trabalho que elas desempenham, seja através da produção de
literatura ou no contato com outros povos, todos estes aspectos estão
permeados numa construção discursiva diretamente ligada ao cristianismo e
aos ensinamentos de Jesus Cristo encontrados na Bíblia Sagrada.
Para Eni Orlandi;
“A análise do Discurso visa fazer compreender como os objetos simbólicos
produzem sentidos, analisando assim os próprios gestos de interpretação que
ela considera como atos no domínio simbólico, pois eles intervêm no real do
sentido. A análise do Discurso não estaciona na interpretação, trabalha seus
limites, seus mecanismos, como parte dos processos de significação. Também
não procura um sentido verdadeiro, através de uma “chave” de interpretação.
1697
Não há essa “chave”, há método, há construção de um dispositivo teórico. Não
há uma verdade oculta atrás do texto. Há gestos de interpretação que o
constituem e que o analista, com seu dispositivo, deve ser capaz de
compreender.” (ORLANDI, 2005, pág. 26).
É necessário pautar sempre a nossa pesquisa e produção textual na
análise do discurso transmitido por estas irmãs, os sentidos produzidos por
elas, trabalhando nos limites, não é possível alcançar um sentido verdadeiro. O
que torna possível a compreensão do discurso é a interpretação do historiador
dos gestos simbólicos identificados no objeto de pesquisa.
Outro desafio da pesquisa é compreender o que a Irmandade representa
para a sociedade que ela quer atingir, e como ela é representada pelas irmãs
que fazem parte desse trabalho, sejam nas ausências ou nas presenças.
A citação a seguir explica a relação de representação coletiva, que
pensamos ser fundamental para entender as relações entre o ministério Canaã
no Brasil, especialmente a Irmandade Evangélica de Maria e a sociedade em
geral.
“A noção de “representação coletiva” autoriza a articular, sem dúvida melhor
que o conceito de mentalidade, três modalidades de relação com o mundo
social: de início, o trabalho de classificação e de recorte que produz
configurações intelectuais múltiplas pelas quais a realidade é
contraditoriamente contribuída pelos diferentes grupos que compõem uma
sociedade; em seguida, as práticas que visam a fazer reconhecer uma
identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar
simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim, as formas
institucionalizadas e objetivadas em virtude das quais “representantes”
(instâncias coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo visível e
perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da classe.” (CHARTIER,
pág. 183, 1991).
Essa noção de que esses representantes marcam de modo visível a
comunidade está muito relacionada com o objetivo do trabalho das irmãs. Essa
maneira própria de ser no mundo é o que as torna participantes da
representação coletiva do grupo a que fazem parte, e é através disso que elas
buscam alcançar as vidas.
Fontes
Canaã no Brasil, Irmandade Evangélica de Maria – Folheto explicativo.
SCHLINK, M. Basilea. Israel, o meu povo escolhido. 143 pág. Curitiba 1996.
1698
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