dissertação léo
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dissertação léo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Programa de Pós-Graduação em Educação Leonardo Azevedo Neves Os Mangás e a produção de marcas identitárias dos modos de ser jovem: um novo olhar para a relação entre mídia e educação Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da UERJ como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação Orientação: Profª Maria Luiza M.B. Oswald Julho - 2007 2 3 Aos que tanto amo, Meus pais, Leila Luzia e Manoel Neves, pelo amor, incentivo e compreensão incondicionais. Vocês são meus primeiros e eternos heróis. Meu irmão Marcelo Azevedo, que leu comigo minha primeira história em quadrinhos. 4 Agradecimentos Este trabalho não poderia ser realizado se não fosse a presença de pessoas muito especiais que direta ou indiretamente, nos mais distintos momentos, contribuíram para meu equilíbrio ao longo de mais essa jornada. Agradeço à orientação companheira e maravilhooooosa da minha orientadora Maria Luíza Oswald que me recebeu de coração aberto, alimentou minhas idéias e desde sempre acreditou em mim. Ao longo desta caminhada aprendi muito com ela e para sempre levarei comigo seu exemplo de profissionalismo, dedicação e afeto incondicionais. Nós acreditamos nos jovens. Agradeço a todos os colegas de meu grupo de pesquisa, “Infância, juventude e indústria cultural: sociedade, cultura e mediações - imagem e produção de sentidos”, especialmente Adriana Hoffmann – minha “maga” maior - e Dagmar Canela, que muito colaboraram para a realização deste trabalho. Nossos encontros sempre marcados por intenso debate e maravilhosos sorrisos são o maior legado que levo. Ao CNPq e à UERJ-Rio, pelo auxílio concedido, sem o qual este trabalho não poderia ser realizado. Agradeço a todos os professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPED), que sempre se mostraram atenciosos e solícitos. Agradeço ao Professor Walter Kohan e a Professora Siomara Borba pelo estímulo constante durante as aulas (e nos corredores) e pela inestimável contribuição acadêmica dada para minha formação. Agradeço a Professora Rita Ribes. “Penso que” seu jeito único e sua genialidade me permitiram lançar novos e enriquecedores olhares sobre meu objeto de pesquisa. Agradeço aos amigos de minha turma de mestrado (2005) que foram parte importante de todo esse processo - e me aturaram debatendo incansavelmente em quase todas as aulas. Agradeço ao meu amigo e antigo coordenador, de minha antiga escola, Prof.Luiz Cruz. Sua dedicação à educação e ao jovem são um exemplo e abriram caminho para que as entrevistas deste trabalho acontecessem. Agradeço a todos os jovens que participaram desse trabalho e se constituem como razão fundamental de tudo que está aqui. Suas falas são a alma dessa pesquisa. 5 Agradeço com todo afeto a Roberta Dias, a quem conheci através da prática docente e, curiosamente, acabou me conduzindo até esse curso. Agradeço a Pedro Rafael Soares, meu grande Amigo e desenhista, pela paciência e confiança depositadas. Chegou a hora “meu rei”! Agradeço a Thiago Bianco e Tarcísio Pelissari, amigos especiais por tudo que fazem e representam em minha vida. Agradeço a Raquel Porto, pelo carinho, Amizade, respeito e por tudo aquilo que é tão vital para minha felicidade e ainda assim invisível aos olhos. Agradeço a Rebeca Vargas, pelo Amor, paciência e apoio incondicionais. Você foi, e sempre será, parte dessa história. A parte mais feliz e azul. Agradeço aos lendários Wagner Simão, Marcelo “7ing” e Márcio “Bobby”, que amam quadrinhos, RPG, games e são, sem sombra de dúvida, os melhores amigos que um cara como eu poderia ter. Agradeço a todos que acreditam no “Estúdio Casinha” e nos quadrinhos nacionais - especialmente o grande amigo e mestre André Brown. Agradeço a todos os meus aprendizes, ao longo de todos esses anos, que sempre me ensinaram muito, todos os dias, em cada encontro. Sem vocês nada disso faria sentido. Agradeço a todos da minha família, aos irmãos de luz que sempre me ampararam e especialmente meus avós, Antônia Augusta e José da Costa Azevedo. Suas vidas me dão o exemplo de amor e afeto com que ladrilho o caminho em que sigo. - “Yatá!” 6 RESUMO O presente trabalho procurou investigar os modos de ser jovem que se revelam nos sentidos que leitores de mangás produzem sobre essas histórias em quadrinhos que, junto com os animes e os videogames, constituem o tripé da indústria de entretenimento japonesa. O interesse crescente que este artefato vem despertando nos jovens foi o ponto de partida do estudo que aqui apresento, cuja intenção foi trazer contribuições ao campo de pesquisa em mídia e educação. Mais especificamente, busquei trazer compreensão para as experiências culturais compartilhadas por jovens que, não obstante venham constituindo modos de ser juvenis, são deslegitimadas pela escola. Os Estudos Culturais Latino-americanos (especialmente Jesús Martín-Barbero e Néstor Canclini) serviram de fundamento teórico à construção do objeto e à opção pelos procedimentos metodológicos. Seguindo a orientação desses estudos, privilegiei interpretar o consumo e a recepção dos mangás sob o prisma dos sentidos que as audiências produzem sobre os meios, o que me levou a reconhecer os jovens – sujeitos da pesquisa - não como “dóceis audiências”, mas como produtores ativos de sentidos. Com relação à identidade do jovem encarei-a como um exercício permanente de interação, de reconhecimento recíproco entre o eu e o outro. O estudo foi realizado numa perspectiva etnográfica, por intermédio de entrevistas individuais e coletivas com jovens leitores de mangá, observações nos animencontros – espaço onde se reúnem os fãs da indústria de entrenimento japonesa – e registros fotográficos. Com a presente dissertação espero contribuir para o reconhecimento das especificidades históricas, sociais e culturais da juventude, motivando a escola a conferir aos jovens alunos o papel social de protagonistas. Palavras-chave: mangás, práticas culturais de jovens, identidades juvenis, mídia e educação. 7 ABSTRACT The present work investigated some young people behavior revealed in the senses produced by manga readers just about that kind of “comic books”. Mangas, animes and videogames are the three pillars of Japanese entertainment industry. The starting point of the study I present here was the growing interest that specific artifact starts in young people. The goal of such a study was to bring contributions to the midia & education research field. In a more strict sense, I have tried to promote a comprehension to the cultural experiences shared by the young people that, despite their own way to construct the Youth have been illegitimated by the School. The LatinAmerican Cultural Studies (especially Martín-Barbero and Néstor Canclini) served as theoretical fundament to construct the subject and to choose the methodological procedures. Following the guidance of those studies, my interpretation – to both consume and reception of the mangas – is made on the light of the senses that the audiences produce about the Medias. That led me to recognize the young people – subjects of that research – as active producers of senses and not as “passive audiences”. Regarding the identity of that sense of youth, I face it as a permanent interaction exercise, with reciprocal knowledge between the one self and the other. The study was made in an ethnographic perspective, using: interviews – solo or collective – with young manga readers; making observations in the so-called anime meetings, i. e., spaces where fans of Japanese entertainment industry are gathered; and photographic records. With the present Dissertation I hope to contribute to the reckoning of historical, social, and cultural specificities of the Youth, motivating the School to attribute to those young students the social role of protagonist. Keywords: mangas, cultural practices of the youth, juvenile identities, midia and education. 8 Sumário Introdução 11 1. Conhecendo os mangás 20 2. Reconhecendo e construindo o objeto 2.1. Delimitando o objeto 2.2. A opção teórico-metodológica 2.2.1. Consumo como colonização X consumo como produção de sentidos 2.2.2. O receptor como sujeito 2.3. Sobre o conceito de juventude 2.3.1. Identidade Juvenil 2.4.1 A opção por um estudo etnográfico 2.4.2. O campo empírico 2.4.3. A entrada no campo 32 32 36 36 3. O Jovem e o Mangá: produzindo sentidos sobre a alteridade da experiência juvenil na contemporaneidade 3.1. Mangá e novas competências de leitura: “Eu sempre tenho um mangá na mochila. Qualquer coisa eu pego e leio” 3. 2. Mangá e sociabilidade: “Cada um tem a sua visão e a gente conversa para entender mais” 38 40 44 49 51 54 63 63 68 4. Identificação e Experiência nos Mangás: Novos heróis e novas narrativas para um novo jovem 4. 1 – O Herói no mangá e o herói além das páginas: “O herói é assim mesmo, tão diferente e ao mesmo tempo tão igual a gente” 4.2. (Re) conhecendo um herói: “Os mangás tentam focar mais a pessoa normal de cada dia, o ser humano. Um herói mais humano” 4.2.1. Os heróis no mito 4.2.2. O herói na cultura de massa ou anti-herói 4.2.3. Herói Épico + Anti-herói = Herói dos mangás 4.3. O jovem como herói de mil faces: “Muitas vezes eu vi a minha vida no mangá e lá encontrei respostas, caminhos...” 4. 4 – Mangá, narrativa e modos de ser do jovem: “A história no mangá é diferente de tudo. Ela fala algo que as outras revistas não falam. E o que ela fala tem tudo a ver” 4. 4.1. A relação do jovem com a imagem narrativa 4. 4.2. Mangás e juventude: uma nova narrativa capaz de dar conselhos? 97 99 102 Considerações Finais: Contribuições para se pensar práticas educativas interculturais 122 Anexo - Sites de onde foram extraídas as imagens utilizadas 127 Referências bibliográficas 129 81 81 82 83 89 91 94 9 Lista de Figuras Apresentação para o capítulo I 16 Fig. 1 – Exemplo de Kamishibai 22 Fig. 2 – Exemplo de Kashibon 22 Fig. 3 - Ôgon Bat 23 Fig. 4 - kashibon de Fantomas 23 Fig. 5 – Osamu Tesuka 23 Fig. 6 – A princesa e o cavaleiro 24 Fig. 7 - exemplos de Shonen mangás 27 Fig. 8 - exemplos de Shoujo mangás 28 Fig. 9 – Exemplos de Hentai, Yaoi e Gekigá 28 Apresentação para o capítulo II 29 Apresentação para o capítulo III 60 Fig. 10 – Jovens em animencontro 71 Fig. 11 – Jovens em animencontro 72 Fig. 12 – Cosplay Zabuza 73 Fig. 13 – Cosplay Spike, Itachi e Kiba 73 Fig. 14 – Cosplay Link e Sumo-sacerdotisa 74 Fig. 15 – Músicos do Anime Daiko 74 Fig. 16 – Jovens dançam com Anime Daiko 75 Fig. 17 – Comunidade no Orkut “Rurouni Kenshin” 76 Fig. 18 – Comunidade no Orkut “Viciado em Mangá” 76 Fig. 19 – Comunidade no Orkut “Eu leio mangá na sala de aula” 77 Fig. 20 – Fórum de discussão em comunidade de mangá 77 Apresentação para o capítulo IV 79 10 Fig. 21 – Kenshin: “nascimento/surgimento trágico” 84 Fig. 22 - Kenshin: “educação iniciática” 85 Fig. 23 - Kenshin: “chamado da aventura” 86 Fig. 24 - Kenshin: “auxílio sobrenatural” 87 Fig. 25 - Kenshin: “catábasis do herói” 87 Fig. 26 - Kenshin: “o retorno e o casamento” 88 Fig. 27 – Seqüência do mangá Blade 100 Fig. 28 - Seqüência da batalha entre Soujirou e Kenshin 109 Fig. 29 – Seqüência de despedida da personagem Soujirou 110 Fig. 30 – Mangá e RPG “Lodoss” 112 Fig. 31 – Diferentes narrativas originadas de “Lodoss” 113 Apresentação para considerações finais 121 11 INTRODUÇÃO A sociedade em que vivemos atravessa ao longo das últimas décadas profundas e contínuas transformações decorrentes do novo padrão tecnológico e de consumo hoje existentes. Nunca a velocidade das relações se deu de forma tão intensa, ainda que nunca também as relações sociais se encontraram tão fragmentadas. A globalização que possibilitou o encurtamento das distâncias e ampliou, através de seu poderoso viés tecnológico, o contato entre as diferentes culturas, também expandiu ainda mais a lógica exploradora do modelo capitalista. Cada vez mais o “indivíduo” se “individualiza” e talvez nunca tenhamos estado tão próximos e ao mesmo tempo tão distantes. Instituições antes reconhecidas imediatamente como alicerces fundamentais na constituição dos jovens, encontram-se desmerecidas e desacreditadas. Tanto o Estado, como a igreja e a escola não parecem hoje influir de forma tão expressiva no dia-a-dia de nossos jovens e na constituição de seus valores. No tempo da alta velocidade, a informação encontra-se amplamente acessível pelos mais diferentes meios, seguindo por circuitos cada vez mais alternativos e, levando assim, talvez, ao surgimento de uma “nova” juventude que enxerga a vida de uma forma muito diferente daquela de seus pais, sendo capaz de ver o universo político, religioso e o da cultura de um modo muito próprio e, assim, mais adequado ao seu tempo. O jovem de hoje apresenta uma nova e plural identidade que se constitui a partir do jogo de significados e relações subjetivas que estabelece com um conjunto de novos e variados códigos presentes em nossa sociedade. Essas interações, notadamente marcadas por sua velocidade e pela diversidade, parecem imprimir importantes marcas na constituição de sua identidade, tornando o jovem hoje capaz de aderir às mais diferentes “tribos” e adotar as mais diversificadas formas de expressão, principalmente nas grandes cidades. Um novo jogo de valores surge em cena em virtude desta nova circulação das informações e dos significados. Os jovens parecem menos preocupados com as competências culturais tão valorizadas pela escola - que prefere permanecer habilitada apenas para capacitar indivíduos para geração de renda, a partir da competitividade, na busca por status - enquanto reconhecem cada vez mais os saberes não diretamente funcionais, mas socialmente úteis, aqueles reconhecidos por seus grupos, constituintes de sua trajetória histórica pessoal e, assim, verdadeiramente indispensáveis. O que se verifica é um novo movimento de circularidade do saber que parece cada vez mais “descentralizado”, escapando do domínio da escola e dos livros, 12 conduzindo assim ao fim da fronteira que antes separava os conhecimentos acadêmicos do saberes comuns. De acordo com Martin-Barbero (2003), um dos principais representantes dos Estudos Culturais Latino-Americanos, vivemos hoje um “descentramento” do saber, onde o livro e a escola passam a conviver com novas formas de expressão e aprendizagem. Ainda que o desenvolvimento dos meios audiovisuais e a difusão dos hipertextos estejam rompendo a centralidade ordenadora imposta pelo livro e pelo modelo secular de aprendizagem, a escola ainda prefere ignorar estas novas expressões em nome de uma “tradição” que deslegitima os saberes que provêm da experiência social, não ajudando em nada a entender a complexidade das mudanças que estão atravessando as linguagens, as escritas e as narrativas. Como comenta o autor, afinal, se os jovens hoje não lêem, como professa invariavelmente a escola, é porque os professores continuam acreditando que ler trata-se apenas de ler livros. A razão que me atraiu a desenvolver uma pesquisa sobre o tema “Os mangás e a produção de experiências e sentidos pelo jovem: um novo olhar para a relação entre mídia e educação” repousa no fato de eu mesmo ser um leitor de quadrinhos, mais recentemente também de mangás (histórias em quadrinhos japoneses), e reconhecer em minha própria experiência que tais leituras tiveram um importante papel na minha constituição como leitor, estudante, professor, pesquisador e cidadão. Sei que em um primeiro momento é difícil entender como ler quadrinhos possa ser um exercício valioso de formação, mas minha trajetória até aqui, que não é diferente da de muitas outras pessoas, ajuda a comprovar isso. Hoje sou professor do ensino fundamental e do ensino médio e minha experiência docente cotidiana tem me demonstrado que, cada vez mais, os jovens têm se envolvido com a leitura de mangás encontrando ali uma importante fonte de aprendizado e reflexão, ainda que, de um modo geral, a escola permaneça ignorando o significado desta prática e de sua influência na constituição da identidade dos jovens. O constante descaso da escola pelas diversas culturas jovens me conduziu a integrar o grupo de pesquisa “Infância, Juventude e Indústria Cultural: sociedade, cultura e mediações” afim de justamente de me acercar mais sistematicamente das práticas juvenis em seus universos culturais e, mais precisamente, buscar verificar o que os jovens produzem a partir daquilo que lêem. Minha inquietação decorre diretamente de minha experiência discente e docente. A enorme maioria dos professores com quem convivi como aluno, e com quem hoje me relaciono profissionalmente, parecem não se dar conta do contexto que tem marcado a 13 emergência de novos interesses, necessidades e competências dos estudantes. Ao se referirem às culturas jovens revelam desconhecimento das mesmas, adotando, muitas vezes, uma perspectiva marcada pelo preconceito, observando o universo cultural do jovem com um olhar excessivamente crítico – no sentido negativo da palavra - e nada reflexivo. Recorrendo à minha condição não tão remota de aluno, lembro-me da sensação, descrita por Green e Bigum (1995), de ser um alienígena na sala de aula, decorrente da tendência da escola de colocar o professor na posição do “senhor do conhecimento”, afirmando todo tempo que sem ele o aluno não seria capaz de saber e conhecer o que realmente é importante. No entanto, avalio hoje que aprendi na escola várias coisas inúteis que não tiveram importância nenhuma para mim. E não estou falando do sentido utilitário do que se aprende nos bancos escolares. Estou falando do sentido social da aprendizagem, daquele que, constituindo-se no diálogo entre as culturas presentes na sala de aula, favorece o exercício da cidadania. Muitas características importantes e verdadeiramente constitutivas do que sou hoje, que consigo identificar em meu dia-a-dia, somente pude desenvolver fora do universo da escola, a partir do meu próprio interesse pelas coisas que participavam do meu cotidiano, através dos meus amigos, da televisão, das coisas que lia etc. É claro que a escola também teve participação aí, mas de uma forma, com certeza, bem diferente daquela que ela própria imaginava. Ao que me parece, as coisas mais importantes que a escola faz - e quando falo da escola aqui não me refiro àquela idealizada por pedagogos e sempre presente na reflexão de muitos autores, mas sim a escola real, com metas meramente conteudistas, como aquela em que estudei e que, infelizmente, tem o mesmo formato das que ainda estudam a maioria dos alunos – ela mesma ainda não sabe valorizar. Na verdade, tive alguns professores que me ensinaram coisas importantes. Foram as palavras que eles dividiram comigo que me estimularam a pensar além. Foram seus exemplos e estímulos que me fizeram querer ser professor. Eu queria fazer a diferença como estes poucos fizeram para mim. Ninguém é incompetente por ter dezesseis anos e ler mangás. Eu não era e sei que ninguém é. Eu sabia exatamente a profundidade das coisas que eu ouvia. O que merecia atenção ou não. Por isso eu jamais subestimo meus aprendizes. Eu tive muitos, muitos professores ruins. Profissionais – se é que eles merecem ser chamados assim – que sabem muito – pelo menos têm muitas informações acumuladas – mas não sabem transmitir absolutamente nada. Penso que o professor deva ser um estimulador e através de seu papel tentar apresentar para o aprendiz elementos que o cativem e que despertem sua curiosidade. Ninguém corre a 14 corrida de ninguém! Isso é uma ilusão. A escola parece viver de ilusão: ela finge que ensina, o aluno finge que aprende e bola para frente! Tem sido assim já há um bom tempo. A escola é anacrônica. Ela acha que atua na preservação da cultura sendo eternamente a mesma, mas, de uma maneira geral, só tem conseguido com isso afastar os jovens dos livros, do aprender, da diversidade cultural existente no mundo. Eu estudo a relação dos jovens com mangá porque aprendi muito com quadrinhos. Cresci e pude vivenciar naquelas leituras saberes e valores que até então eram bastante teóricos para mim. Tudo indica que precisamos ouvir os jovens para que possamos ser ouvidos por eles. Para que possamos lhes dizer coisas que façam sentido para eles. Coisas que permaneçam como aquelas histórias que ouvimos quando somos pequenos e que depois somos capazes de recontar para nossos filhos. O presente trabalho está integrado à Linha de Pesquisa “Infância, Juventude e Educação” do Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ e articulado ao projeto: Infância, Juventude e Indústria Cultural: sociedade, cultura e mediações coordenadas pela Profª. Maria Luiza Oswald, compartilhando com este não só o compromisso de reconhecer o papel dos jovens em suas especificidades históricas, sociais e culturais, contribuindo para conferir a esses sujeitos o papel social de protagonistas, mas também o interesse em investigar o consumo e a recepção do mangá – Histórias em Quadrinhos japonesas que vem se constituindo como fenômeno mundial de comunicação em massa – buscando entender o êxito mercadológico desse produto na perspectiva teórico-metodológica dos Estudos Culturais latino-americanos que permite conceber a recepção e o consumo cultural como modo de legitimação ou expressão de identidades. Dentro dessa perspectiva a dissertação foi estruturada da seguinte forma: o Capítulo I – “Conhecendo os mangás” – se propõe a apresentar o que é o mangá e uma breve trajetória histórica desta modalidade de história em quadrinhos, assim como sua recente entrada no mercado brasileiro. No Capítulo II - “Reconhecendo e construindo o objeto” – apresenta o processo de construção do objeto da pesquisa dentro do referencial teórico dos Estudos Culturais Latino-americanos, assim como uma análise do conceito de identidade juvenil, discutindo-o em relação às múltiplas manifestações culturais do jovem. No Capítulo III – “O Jovem e o Mangá: produzindo sentidos sobre a alteridade da experiência juvenil na contemporaneidade” – apresento a análise dos dados, apontando a alteridade das identidades juvenis que se revelam no consumo do 15 mangá assim como as diferentes redes de sociabilidades a qual participam os jovens leitores de histórias em quadrinhas japonesas. No Capítulo IV – “Identificação e Experiência nos Mangás: Novos heróis e novas narrativas para um novo jovem” – destaca como os mangás através de seus personagens heróicos e também de suas narrativas contribuem para a produção de sentidos de seus jovens leitores. 16 17 18 19 20 CAPÍTULO I Conhecendo os mangás “Não são poucos os japoneses que interpretam o mangá (...) como o terceiro sistema hieróglifo entre os dois que constituem a escrita textual japonesa” BERNDT, J. Até pouco tempo a palavra mangá era completamente desconhecida dos brasileiros não-aficcionados por quadrinhos. Mesmo que desenhos animados derivados de mangás (animes) ocupem nossa televisão desde muito tempo, sua matriz narrativa somente começou a ganhar visibilidade no país a partir da década de1990. Mangá é o nome das histórias em quadrinhos japonesas e se constitui como um estilo de arte sequencial com características bastante próprias. A palavra Mangá se origina da união de duas palavras do alfabeto Kanji (um dos três existentes no Japão): Manketsu (conto ou história) e Fáshiko (ilustração). O mangá mais antigo já encontrado data de 1702 (Tobae Sankokushi) e já tinha divisão em quadrinhos e balões. (Moliné, 2004) Os mangás têm suas raízes no período Nara com a aparição dos primeiros rolos de pintura japoneses: os emakimono. Eles associavam pinturas e textos que juntos contavam uma história à medida que eram desenrolados. O primeiro desses emakimono, o Ingá Kyô, é a cópia de uma obra chinesa. A partir da metade do século XII, surgem os primeiros emakimono com estilo japonês, dos quais “Genji monogatari emaki” é o representante mais antigo conservado. A partir daí tais “rolos de pintura e narrativa” se difundiram progressivamente, desenvolvendo um estilo estético de narrar que marcaria os mangás até os nossos dias (diversas vezes encontramos nos emakimonos textos explicativos após longas cenas de pintura. Essa prevalência da imagem assegurando sozinha a narração é até hoje uma das características mais importantes dos mangás). A origem dos mangás, como os conhecemos, é o Teatro das Sombras ou “Oricom Shohatsu”, que data do século XI e que consistia num grupo de artistas japoneses que percorria vilarejos contando lendas por meio de fantoches. As lendas acabaram sendo escritas em rolos de papel e ilustradas, seguindo a tradição emakimono, dando origem a histórias seqüenciais. Ainda no século XVIII já era possível se 21 encontrar diferentes modalidades de trabalho com imagens, com o uso de diversas técnicas, sobre os mais diferentes materiais, como os ukiyo-e - “imagens do mundo flutuante” – (gravuras feitas em pranchas de madeira, muitas vezes de temática cômica ou erótica, apreciadas pelas classes populares) e os kibyôshi – “livro de capa amarela” – que consistiam em compilações que traziam histórias contínuas em lugar de imagens isoladas, numa espécie de antepassados dos gibis. O primeiro grande nome neste cenário foi o pintor Katsuhika Hokusai (1760-1849), um famoso artista de sua época, o primeiro a desenvolver as imagens em sucessão de desenhos, que lançou em 1814 um encadernado intitulado Hokusai Manga. Ao criar o estilo que unia os caracteres man (“involuntário”) e ga (“desenho”, “imagem”) – cuja palavra resultante significa “imagens involuntárias” -, este impôs definitivamente como sinônimo de tudo o que é relacionado à caricatura e humor gráfico, à semelhança da palavra inglesa cartoon. (Moliné, p.18, 2004) Ainda que demorasse até a segunda metade do século XX para que o termo mangá fosse consolidado, Hokusai não imaginava que a palavra por ele inventada abriria caminho para uma das mais poderosas e prósperas indústrias do país. Entretanto é Rakuten Kitazawa o primeiro verdadeiro autor japonês de quadrinhos, que publicou em 1901 a primeira história japonesa com personagens fixos: “Tagosaku to Mokubê no Tokyo Kenbutsu” (“A Viagem a Tokyo de Tagosaku e Mokubê”), na qual era recuperada a expressão mangá. A partir daí temos, nas duas primeiras décadas do século XX, a consolidação e a expansão da narrativa ilustrada no Japão, que se apoiaram também na difusão das primeiras “tiras” de quadrinhos vindos dos Estados Unidos. Com a segunda guerra mundial, a produção foi interrompida, mas voltou após 45, graças em parte ao Plano Marshall, que destinou verbas para os livros japoneses. Com uma população estimulada a ler e poucas atrações culturais - a guerra havia destruído a maioria dos lugares destinados à cultura e ao ensino de artes - as editoras de mangá viveram então nesse momento um de seus maiores booms. Na verdade o Japão, no pós-guerra, necessitava, mais que nunca, de meios de entretenimento e distração para superar os acontecimentos recentes. Nesse sentido, dois elementos contribuíram para a difusão dos mangás: os kamishibai, ou “teatro de papel” (relatos em quadrinhos, feitos 22 em lenços e apresentados por um narrador) e os kashibon, “mangás de aluguel” (distribuídos nas bibliotecas ambulantes que difundiram as revistas em um momento em que os mangás eram raros e com preços elevados). Fig. 1 – Um exemplo de kamishibai e como ele é utilizado para contar histórias. Fig. 2 – Um kashibon que data do momento de seu surgimento. Curiosamente alguns personagens de kamishibai se transformaram posteriormente em séries de mangá; é o caso de Ôgon Bat, “Morcego Dourado”, criado em 1930, e que no final da década de 1960 tornou-se um anime – desenho animado japonês –que teve grande popularidade no Brasil com o nome de “Fantomas – o Guerreiro da Justiça”. É neste contexto de efervescência dos mangás, no pós-guerra, que surge Osamu Tezuka, o "Walt Disney Japonês". Entre outros, Tezuka criou “Ribon No Kishi” (“A Princesa e o Cavaleiro”), “Tetsuwan Atomu” (“Astro Boy”) e Kimba (“Leão 23 Branco”). Já em sua primeira obra longa – “Shin Takarajima” (“Nova Ilha do Tesouro”) – Tezuka vendeu milhares de exemplares e apresentou ritmo, estilo e uma dinâmica até então inédita nos quadrinhos japoneses. Como fã de cinema (especialmente das animações Disney e Fleischer) e dos comics norte-americanos ele soube fundir novas influências com a tradição narrativa japonesa, criando assim um estilo novo e próprio. Sua admiração pelas animações ocidentais torna-se evidente no seu próprio traço: ele foi o primeiro a adotar os olhos grandes, brilhantes e muito expressivos. Ainda que o estilo fosse uma homenagem à arte ocidental, hoje os “grandes olhos” tornaram-se um marca inconfundível dos quadrinhos japoneses. Fig. 3 - Ôgon Bat (Fantomas). Fig. 4 - kashibon de Fantomas. Fig. 5 – Osamu Tesuka e seu auto-retrato em versão mangá. 24 Fig. 6 – “A Princesa e o Cavaleiro”, um dos mangás criados por Osamu Tezuka. Ao longo das décadas seguintes, especialmente nos anos 60 e 70, os mangás se popularizaram, consolidaram-se como estilo narrativo e Osamu Tezuka tornou-se o maior desenhista japonês de histórias em quadrinhos. Nesse período surgiu um estilo de mangá que teve um importante papel para o progresso dos mangás entre os adultos: o gekigá (“imagens dramáticas”). Tratavam-se de mangás mais realistas, violentos, que abordavam temas mais densos, voltado para um público mais maduro e, habitualmente, de classe social mais baixa. Dessa maneira, enquanto nas Américas e na Europa as histórias em quadrinhos entravam em crise, talvez devido ao avanço da televisão, no Japão ocorria justamente o contrário: a indústria de mangá só se expandia – tanto no número de títulos como nas tiragens – e possibilitou também o crescimento da indústria de animação, que levou para as tv´s os mangás de maior sucesso. Atualmente podemos identificar algumas características que marcam os mangás e os diferem dos demais estilos de quadrinhos: - a opção pelo uso de grandes e diferentes olhos nas suas personagens para maior expressividade, para assim transmitir emoções mais “sinceras” e psicologicamente mais profundas; - o ritmo narrativo diferente dos demais quadrinhos com o uso de planos mais abertos, com paisagens detalhadas e closes muitos próximos, ambos com o intuito de destacar uma dada situação; o desenvolvimento de longas seqüências de narrativa baseadas somente na sucessão de imagens, sem qualquer tipo de texto; e mesmo a 25 presença de linhas de movimento para transmitir maior dinamismo nas seqüências de ação; - o layout das páginas não respeita os padrões das HQ´s ocidentais – ortodoxa disposição quadros em tiras - e apresenta um número baixo de quadros por página, com quadrinhos verticais, sobrepostos, espaços em branco entre quadros, enfim uma ampla variedade de formas que servem ao melhor desenvolvimento da narrativa; - a grande variedade de temas, que muitas vezes acabam fundindo elementos altamente realistas e dramáticos com o universo fantástico; - a psicologia das personagens é mais desenvolvida pelos autores, onde é possível identificar não somente virtudes, mas também seus defeitos e sentimentos; - as personagens crescem e evoluem na medida em que se desenvolve a história, muitas vezes envelhecendo, estabelecendo relações mais profundas com outras personagens – muitos se casam, tem filhos, morrem etc.; A ordem de leitura de um mangá japonês também é um elemento característico: ela é inversa da ocidental, ou seja, inicia-se da capa da edição com a lombada à sua direita (correspondendo à contracapa ocidental), levando a leitura das páginas a ser feita da direita para a esquerda. Além disso, a revista é impressa em preto-e-branco, contando esporadicamente com algumas páginas coloridas, geralmente no início dos capítulos, e em papel reciclado tornando-o barato e acessível a qualquer pessoa. No Japão os mangás são originalmente publicados em revistas antológicas, com cerca de 300 à 800 páginas, que abrigam diversos títulos e são publicadas com variada regularidade (podendo ser semanal ou até mesmo trimestral) dependendo do caso. Cada capítulo, de cada história, normalmente tem entre 10 e 40 páginas. Assim que uma determinada história atinge algo em torno de 160 à 200 páginas no total, é publicado um volume único que compila toda a história até ali (chamado tankohon ou tankobon) no formato livro de bolso. São justamente esses volumes únicos que sãos vendidos em diversos países, dependendo do sucesso alcançado. Para os japoneses as histórias em quadrinhos são uma leitura comum de uma faixa etária bem mais abrangente do que a infanto-juvenil. A sociedade japonesa é ávida por mangás e, em toda parte, vê-se desde adultos até crianças lendo essas HQ´S. Portanto, o público-consumidor é muito extenso, com tiragens na casa dos milhões e o desenvolvimento de vários estilos para agradar a todos os gostos. Outro aspecto curioso dos mangás é que estes são comumente classificados de acordo com seu público-alvo. Histórias para meninos — o que não quer dizer que 26 garotas não devam lê-los — são chamados de shonen (garoto jovem, adolescente, em japonês) e tratam normalmente de histórias de ação, amizade e aventura. Histórias para meninas são chamadas de shoujo (garota jovem em japonês) e têm como tema comum as histórias de amor (também existem garotos que lêem shoujo pois alguns contam com bastante ação e luta). Além desses existe o gekigá, que é uma corrente mais realista voltada ao público adulto (não necessariamente são pornográficos ou eróticos) e ainda os gêneros seinen para homens jovens e josei para mulheres. Existem também os pornográficos apelidados hentai. As histórias yuri abordam a relação homossexual feminina e o yaoi (atualmente chamado de BL – Boys Love) trata da relação amorosa entre dois homens, mas ambos não possuem necessariamente cenas de sexo explícito. Há também os fanzines e dōjinshis, que são revistas feitas por autores independentes sem nenhum vínculo com grandes empresas. Algumas dessas revistas criam histórias inéditas e originais utilizando os personagens de outra ou podem dar continuidade a alguma série famosa. Esse tipo de produto pode ser encontrado normalmente em eventos de cultura japonesa e na internet. Atualmente o mangá vive no Japão um momento de relativa crise. Se ele soube interagir bem com a televisão em tempos passados, o mesmo não está ocorrendo na sua relação com os videogames e com o avanço da internet – ainda que muitas personagens de populares mangás se tornem estrelas de jogos eletrônicos de sucesso. Desde o fim da década de 1990 as vendas têm caído e as editoras têm buscado por novos autores e por sua renovação. Já no Brasil, a entrada dos mangá data do início da década de 1990, através de títulos esporádicos, de poucos números (pois quase nunca eram publicados até o final) em edições que hoje são consideradas raras. Séries como “Akira”, do mestre Katsuhiro Otomo, e “Kozure Ookami” (“Lobo Solitário”), de Kazuo Koike, foram desbravadoras no sentido de apresentar o público brasileiro ao estilo. Ainda que as edições fossem ocidentalizadas (isto é, as páginas foram “espelhadas” para manter a estrutura de leitura tradicional) este primeiro contato fez com que o interesse pelos quadrinhos japoneses apenas crescesse. Mas foi no final da década de 1990 que ocorreu o grande boom dos mangás, quando a Editora Conrad, e pouco depois a JBC, trouxeram para o país títulos de grande popularidade entre os jovens, com heróis que já eram conhecidos pelos animes que eram transmitidos periodicamente na televisão. Esse é outro aspecto curioso de nossa relação com a cultura japonesa: desde o fim da década de 1960 o público brasileiro tem contato 27 com animações e séries japonesas, enquanto os mangás mantiveram-se fora do circuito nacional até então. O investimento audacioso dessas editoras em um tipo de quadrinho diferente – em formato menor do que os tradicionais comics, preservando o estilo preto e branco e editorial de narrativa original, isto é, de trás para frente - revelou-se extremamente lucrativo: heróis como Son Goku (“Dragon Ball Z”), Seya (“Saint Seya” / “Cavaleiros do Zodíaco”) e Kenshin Himura (“Rurouni Kenshin” / “Samurai X”) garantiram as vendas e criaram um novo nicho de mercado. Hoje podemos encontrar em qualquer jornaleiro ou livraria inúmeros títulos diferentes de mangás à venda, além de muitos outros livros que abordam assuntos e temas correlatos ao mangá e sua cultura. Atualmente são publicados no Brasil mais de quinze títulos, tais como: Samurai Girl, Angel Sanctuary, Vampire Knights, Priest, Lodoss War, Berserker, Full Metal Panic, Gravitation, dentre outros. Fig. 7 – Samurai X, Dragon Ball, Yu Yu Hakusho, Naruto e Dragon Ball Z: exemplos de Shonen mangás já lançados no Brasil. 28 Fig. 8 – Samurai Girl, Sakura Card Captors, Vampire Knights e Chobits: exemplos de Shoujo mangás já lançados no Brasil. Fig. 9 – Gravitation e Love Junkies são respectivamente Yaoi e Hentai mangás, enquanto Blade e Vagabond são tidos como Gekigá mangás. 29 30 31 32 CAPÍTULO II Reconhecendo e construindo o objeto 2.1. Delimitando o objeto. “Ao perguntar o que significa, hoje, ser jovem, verificamos que a sociedade que responde ser o futuro incerto ou não saber como construí-lo está dizendo aos jovens não apenas que há pouco lugar para eles. Está respondendo a si mesma que tem pouca capacidade, por assim dizer, de rejuvenescer-se, de escutar os que poderiam mudá-la.” - Nestor Garcia Canclini·. Em artigo, provocativamente intitulado “Alienígenas na sala de aula”, Green e Bigum (1995), referindo-se à realidade australiana, chamam atenção para os limites da “pesquisa educacional tradicional” que, ao se dedicar a investigar os motivos da repetência escolar entre jovens estudantes do Ensino Médio, fixa-se na experiência da escolarização, ignorando que a construção social e discursiva da juventude envolve não apenas essa, mas outras experiências, como a relação do jovem com a comunicação de massa, com o rock, com a cultura da droga, entre outras. A distância entre a pesquisa e o cenário no qual se reproduzem as identidades e as formas culturais estudantis determina a representação dos jovens como verdadeiros alienígenas. Questionando se não seria mais justo considerar que alienígenas são os professores, e os adultos de forma geral, que se mantêm cegos à interface dos jovens com as novas tecnologias do texto, da imagem e do som, os autores destacam a importância de estudos, como os que eles próprios vêm realizando, que investiguem o papel que a cultura da mídia vem exercendo sobre o mundo vital dos jovens e a relação entre essa cultura e sua escolarização. Comungando da mesma preocupação, Santomé (1995) mostra que o exame atento dos conteúdos que são desenvolvidos nas propostas curriculares de grande parte das instituições escolares está calcado nas culturas chamadas hegemônicas, deixando silenciadas as culturas que não dispõem de estrutura de poder, como é o caso das culturas juvenis. Nesse sentido, programas e professores não reconhecem as formas culturais da juventude (cinema, rock and roll, rap, quadrinhos, etc.) como expressão de suas visões da realidade, perdendo, assim, a oportunidade de aproveitar essas formas culturais para o trabalho cotidiano na sala de aula. 33 Se uma das missões-chave do sistema educacional é a de contribuir para que os alunos e alunas possam reconstruir a cultura que essa sociedade considera mais indispensável para poderem ser cidadãos e cidadãs ativos/as, solidários/as, críticos/as e democráticos/as, é óbvio que não podemos partir de uma ignorância daqueles conhecimentos, destrezas, atitudes e valores culturais que a juventude valoriza acima de todas as coisas (p.165). Essa situação de desvalorização dos modos de ser e conhecer dos jovens afeta particularmente minha condição de professor de História e Geografia no Ensino Médio, até porque resgatando minha situação não tão remota de aluno do então denominado 2º grau eu me coloco na posição de meus alunos – ou do Outro – conseguindo entender, e mesmo compartilhar, seu mal-estar em relação ao que a escola ensina e aos modos de ensinar. Essa troca de lugar, que me familiariza – enquanto jovem que sou – com a condição de meus alunos de “peixes fora d’água”, me permite ser cúmplice deles quanto ao ceticismo com que olham para a escola. Admitindo, entretanto, que essa cumplicidade é insuficiente para promover mudanças na minha prática, dispus-me nesse estudo a desvelar esse mal-estar, buscando não apenas me beneficiar, mas tentar contribuir para o “rejuvenescimento” da escola. Com relação à escolha do mangá como produto capaz de viabilizar a investigação, são os seguintes os motivos que me levaram a ela: por uma feliz coincidência, além de ser um dos focos do estudo coordenado por minha orientadora, conforme referenciado na Introdução, o mangá vem sendo objeto de meu próprio desejo há mais de seis anos, incitando-me não só à leitura, mas também à produção de histórias em quadrinhos. Além disso, não dá para ignorar a significativa incidência do seu consumo entre crianças e jovens. Embora somente agora os mangás venham tendo mais visibilidade na mídia, sua recepção por crianças e jovens no Brasil é significativa, haja vista a venda pela Conrad – editora que detém 47% do mercado nacional do gênero – de, em média, 200 mil exemplares mensais que estão disponíveis tanto em bancas de jornal, como em livrarias, havendo algumas que se dedicam exclusivamente à venda das HQs japonesas. Cabe ainda esclarecer que a opção por estudar o que poderia ser considerado no âmbito da sociologia e da antropologia clássicas um reles produto alienador da consciência, adquire, a partir da diluição das fronteiras entre alta e baixa cultura, a condição de artefato cultural. Referindo-se a Derrida, Foucault, Deluze e Guattari, Kellner (1995) diz que “eles atacam o elitismo inscrito no modelo conservador 34 da educação, que canoniza os grandes livros, complexas habilidades literárias e os artefatos da alta cultura” (p.106). E continua com a seguinte reflexão: Embora a alta cultura tradicional forneça prazeres e atrações singulares, sua glorificação e canonização também servem como instrumento de exclusão, marginalização e dominação, ao longo dos eixos do gênero, da raça e da classe social. Além disso, ela trabalha com um conceito altamente limitado de cultura e exclui do domínio dos artefatos culturais sérios precisamente aqueles fenômenos que mais imediatamente envolvem os indivíduos em nossa sociedade. Consequentemente, um dos méritos de certas posições pósmodernas é o de expandir o conceito de cultura, rompendo, ao mesmo tempo, as barreiras entre “alta” e “baixa” cultura. Isso possibilita a abertura de um amplo terreno de artefatos culturais para a análise crítica. (p.16) Entre esses artefatos culturais situam-se os meios de comunicação de massa que, sob o escopo da problemática mídia e cultura, vêm sendo objeto de estudo dos Estudos Culturais latino-americanos. O contato, no âmbito do grupo de pesquisa, com os subsídios teórico-metodológicos desses estudos me permitiu avaliar a importância de conferir ao mangá a dimensão de artefato cultural. Trata-se, com isso, de subtrair o consumo do mangá da subordinação do mercado, conferindo-lhe a dimensão de bem simbólico produzido no âmbito da cultura. Tomar essa perspectiva como ponto de partida me permite centrar o olhar nos modos pelos quais os jovens usam o mangá e produzem sentido sobre ele a partir de sua discursividade. Por fim, a opção por estudar de forma sistemática esse consumo cultural, de que eu desfrutava até então com a liberdade própria de quem está protegido pela ignorância teórica, foi determinada pela constatação da não-existência de estudos sobre a relação de jovens com esse produto, não obstante sua significativa presença no cenário cultural desses sujeitos. Vasculhando os trabalhos apresentados nos encontros anuais da ANPED em todos os GTs, desde 2000, encontrei apenas uma apresentação no formato de pôster na última reunião de 2005, valendo dizer que a autora era, então, bolsista de Iniciação Científica do Projeto Infância, Juventude e Indústria Cultural: sociedade, cultura e mediações. Em mapeamento sobre as formas de atuação juvenil nos movimentos sociais, Sposito (2000) aponta que os poucos trabalhos desenvolvidos na década de 90 se afastam da interpretação insuficiente de trabalhos das décadas anteriores que atribuem a crise de participação dos segmentos juvenis ao fato de que os jovens seriam “a expressão radical de uma sociedade que esgotou as modalidades públicas de 35 construção de sujeitos e atores, voltando-se sobre si mesma, em um momento de exacerbação da esfera íntima e de interesses de natureza individualista” (p.77). A autora refere-se à importância desses estudos da década de 90, que apontam para novas formas de participação coletiva dos jovens, expressas no âmbito da esfera cultural (manifestações protagonizadas por punks, clubbers, roqueiros, rappers, adeptos do reggae, funkeiros), constatando, entretanto, que “é preciso admitir a existência de significativa diversidade de práticas coletivas entre os jovens, ainda pouco visíveis e escassamente investigadas” (p.80). Diante disso, acho que não é demais considerar a relevância dessa proposta de estudo. Se, aludindo à epígrafe de Canclini, as respostas que a sociedade vem dando aos jovens são “caducas”, nada mais justo do que ouví-los, entendendo-os como aqueles que poderiam propor mudanças. Como diz Canclini, prefaciando Martin-Barbero (2001): ...o conhecimento de seus [dos jovens] hábitos de consumo e apropriação das indústrias culturais, assim como das formas próprias de organização da cultura cotidiana, são alguns dos caminhos para passarmos das respostas que fracassaram às perguntas que renovam as ciências sociais e as políticas libertadoras (p.25). Este foi o caminho que esta pesquisa se propôs a percorrer, buscando os sentidos/leituras que jovens leitores de mangá produzem sobre essas imagens com base na orientação dos Estudos Culturais latino-americanos que propõe que a recepção dos produtos midiáticos seja analisada a partir de um deslocamento teórico-metodológico que, redirigindo o foco dos meios/mensagem para as mediações, permite identificar os receptores não como “dóceis audiências”, mas como produtores ativos de sentidos. Pretende-se, com isto, tentar contribuir para a superação da tensão entre a escola e as culturas dos jovens, tensão que tem como um de seus pilares o conflito entre a cultura letrada e a cultura da imagem. Levando em conta meus interesses particulares de pesquisa delimitei o foco de minha investigação no seguinte recorte: buscar que sentidos conferidos ao mangá podem estar se constituindo como marcas identitárias dos modos de ser jovem na contemporaneidade ou, em outros termos, buscar a alteridade dos modos de ser jovem que se revelam no consumo e na recepção do mangá. 36 2.2. A opção teórico-metodológica “A cultura é menos a paisagem que vemos do que o olhar com que a vemos” Jesús Martín-Barbero A contribuição que os Estudos Culturais latino-americanos vêm trazendo à problemática do consumo cultural e da recepção justifica a opção de tais estudos como fundamento teórico-metodológico dessa pesquisa. 2.2.1. Consumo como colonização X consumo como produção de sentidos. Alguns autores, como Jameson (1996), e Baudrillard (2007), chamam atenção para a reviravolta que a cultura do consumo trouxe ao reconhecimento social dos sujeitos no momento em que a lógica do consumo se sobrepôs à lógica da produção. Se no âmbito das sociedades capitalistas modernas, esse reconhecimento era pautado pela profissão ou pelo modo como cada um ganhava a vida, sob o escopo do capitalismo pós-industrial a pessoa vale por sua capacidade de adquirir bens e mercadorias. Referindo-se à posição desses autores, Castro (1998) aponta que “consumir, e o que consumir, adquirem uma importância decisiva para definir ‘quem é quem’ no mundo social” (p.57). E complementa que, enquanto rótulo genérico que abarca os processos econômicos e culturais próprios da contemporaneidade, a cultura do consumo refere-se não só à aquisição de bens e mercadorias, mas também à criação e perpetuação de desejos em relação ao que não se tem, promovendo a cultura da obsolescência, da renovação pela renovação. Nessa perspectiva, o que garante status são as atitudes e comportamentos adequados ao que está “na última moda”. Moda lembra propaganda, imagem visual, não sendo à toa, portanto, que a cultura do consumo seja relacionada à mídia, às imagens mirabolantes de produtos, cuja freqüente substituição pelo mais novo, excita a constituição de subjetividades insaciáveis, instáveis, narcísicas. Concordando com a severa crítica de Guy Débord à sociedade do espetáculo, Fridman (2000) fala sobre isso, dizendo que: Na comunicação de massa, a onipresença da mídia, a inundação de imagens (televisão, computadores, publicidade etc.) e a integração entre vídeo, som e 37 bancos de dados suplantaram a cultura literária anteriormente predominante. A produção de narrativas midiáticas cria uma ‘realidade à parte’ e constitui o ambiente em que se processa a atual expansão do capitalismo através do consumo. Linguagens estéticas cada vez mais sofisticadas atingem dimensões da existência dos indivíduos que anteriormente não eram ‘colonizadas’ pelo universo das mercadorias, explorando os registros simbólicos e investimentos libidinais em torno do consumo de produtos. (p.16) Canclini (1999) coloca em xeque essa visão, argumentando que o consumo tem uma lógica que é determinada pelas práticas sócio-culturais dos sujeitos. Assim, segundo ele, caberia analisar “os processos de consumo como algo mais complexo do que a relação entre meios manipuladores e dóceis audiências” (p. 75-76). Longe de fazer a apologia do consumo, o autor considera que não é possível continuar entendendo o consumo como lugar de irreflexão e do gasto supérfluo, diante do qual o sujeito desaparece. A função mercantil, que fortalece a racionalidade do capitalismo pós-industrial é, segundo ele, apenas uma das funções do consumo que não pode ser encarado “como a mera possessão individual de objetos isolados” (id, ibid, p.90). Para ele, o homem atua como consumidor não apenas obedecendo à regulação do mercado, mas pode também, como cidadão, exercer uma reflexão e uma experimentação mais ampla do consumo. Nessa perspectiva, Canclini destaca que o consumo tem também uma função de interação e que consumir é um modo de distinguir-se dentro do próprio grupo para fazer parte de uma comunidade e/ou ampliar a interação. Como é o caso do consumo de artefatos da cultura de massa que acabam tornando-se símbolos de reconhecimento e aceitação para aqueles que, imersos nessa cultura, compartilham destes mesmos significados. Desse modo, consumir pode não ser necessariamente reproduzir, visto que essa prática pode estar diretamente associada às condições culturais de um dado grupo social que cria processos de construção de identidade na produção de sentidos que estabelece com os objetos consumidos. 38 2.2.2. O receptor como sujeito Jesús Martín-Barbero (2001), outro autor que privilegiei como interlocutor, propõe que o exame da recepção seja efetuado a partir do deslocamento do foco da mensagem ou dos meios, para as mediações. De acordo com ele, esse deslocamento permitiria rever a condição de passividade do receptor diante da reificação da mensagem. Para o autor, a atenção que as teorias críticas voltam apenas à ideologia da mensagem acaba supervalorizando os efeitos maléficos de inculcação de valores que os meios exercem sobre as audiências, deixando de lado o necessário (re)conhecimento da influência das mediações na construção de sentidos originais. Criticando o método que as ciências sociais utilizam para analisar a constituição do massivo, Martin-Barbero (2001) sugere que, ao invés de sustentar-se na inércia da teoria, a ciência deveria exercer o desconhecimento necessário ao reconhecimento das verdades culturais e dos sujeitos sociais, segundo a lógica das diferenças. Somente assim, seria possível implodir a dimensão apocalíptica das ideologias vigentes, buscando o próprio papel de mediadores que os meios podem estar exercendo hoje. Reconhecendo a complexidade cultural que está implícita nos diferentes usos do massivo, que remetem a novas formas de imaginação e criatividade social, o que Martín-Barbero procura com essa proposta são maneiras de resignificar as relações dos sujeitos com os meios de modo a superar a visão restrita que relaciona capitalismo pós-industrial e subjetivação acrítica. Na sua perspectiva a cultura de massas, tradicionalmente deslegitimada e desqualificada, tem seu valor reconhecido por intermédio das mediações que conferem lógica aos seus usos. Segundo ele, a cultura “popular” é palco da coexistência de múltiplas socialidades, ritualidades e significações (Martín-Barbero, 2001). Essa idéia me ajuda a pensar a recepção do mangá como espaço de constituição de socialidades, ritualidades e, principalmente de negociação e produção de sentidos. As contribuições de Nestor Canclini e Martín-Barbero foram fundamentais para eu pensar a definição do objeto, enunciada no item acima, formulada com base no entendimento de que é necessário que o campo da educação busque interpretar o enigma das identidades juvenis em relação à questão da alteridade. O que estou querendo dizer é que esses autores, ao permitirem que eu compreendesse o que se passou/passa comigo – jovem que sou – na relação que estabeleço com a cultura de meu tempo e, mais ainda, com a pluralidade dos interlocutores que me 39 possibilitaram/possibilitam significar essa cultura, me desafiaram a empreender um estudo que pudesse mostrar que ser jovem não é uma questão de destinação, mas de produção de sentidos. Trata-se, com isso, de colocar em xeque o reducionismo da idéia de que existe uma condição juvenil transitória de caráter absoluto e universal. Como diz Canclini (2005), entender o que significa ser jovem hoje não pode implicar em perguntas geracionais, pedagógicas ou disciplinares, mas em averiguações sobre o caráter intercultural do tempo, o que supõe tomar a alteridade como pressuposto teóricometodológico das pesquisas que se interessam por conhecer as culturas juvenis. A relação que o autor estabelece entre o caráter intercultural do tempo e a alteridade está implícita justamente na capacidade de a sociedade romper com uma concepção de tempo contínuo que coloca a juventude como fase de transição, dispondo-se a rejuvenescer-se, ouvindo os jovens que poderiam contribuir para mudá-la. Com relação a esse tema Martín-Barbero (1999), referindo-se à posição da antropóloga Margareth Mead no livro “Cultura e Compromisso”, diz que as gerações mais velhas deveriam enfrentar o medo que sentem diante das transformações que a contemporaneidade vem imputando à cultura e aos modos de comunicar, enfrentando o futuro e ajudando-o a nascer, e não ficando presas ao imaginário falacioso do passado como paraíso perdido. A chave para a gestação desse futuro não estaria nem na ciência, nem na arte, mas na desconcertante experiência cultural dos jovens que não cabe mais na sequência linear da palavra impressa, mas na exploração da visualidade e da sonoridade, do corpo e a velocidade – aprendizagens que não implicam na dependênci do adulto – que os jovens habitantes do novo mundo tecnocultural realizam. Essas foram as orientações que imprimi a esse estudo. Superando a noção de que ser jovem é uma condição passageira que o futuro pode consertar (futuro do qual fui muitas vezes refém), investi nesse estudo (me sentindo visado por ele), reconhecendo nos depoimentos dos jovens (e me reconhecendo neles) outras chaves para a leitura do que é ser jovem hoje. 40 2.3. Sobre o conceito de juventude. “Ser jovem é, antes de um destino, uma questão de escolha.” Carlos Henrique dos Santos Martins. Tendo em vista meu interesse de buscar que sentidos conferidos ao mangá podem estar se constituindo como marcas identitárias dos modos de ser jovem na contemporaneidade, apresento nesse item uma reflexão sobre juventude e identidade. Ter o jovem e suas práticas culturais como objeto de estudo leva necessariamente ao desenvolvimento de uma análise da categoria juventude e de seu significado na contemporaneidade. A “experiência juvenil” que na maioria das vezes é associada à figura do adolescente, acaba sendo caracterizada como um período de busca de referências, padrões estéticos e valores, entendido assim, pela grande maioria da sociedade, como um momento de contradições inerentes e transformações. Mas o que é de fato esta experiência juvenil? Isto é, o que significa ser jovem hoje? Muitos autores já buscaram entender melhor a juventude, sua complexidade e características. A maneira mais simplista de definir o que é um jovem seria estabelecer critérios que pudessem enquadrá-lo em uma determinada faixa etária. Entretanto a idade não possui caráter absoluto e universal. As noções de infância, adolescência, juventude e vida adulta resultam do momento histórico e variam segundo a organização da sociedade, se diferenciando ao longo do tempo e no espaço. O que se percebe nas investigações acerca da juventude é que, muitas vezes, os jovens são tidos como uma ponte entre a infância e a idade adulta. Esta “condição”, reconhecida como meramente transitória, nos afasta daquilo que o jovem experimenta como sendo sua verdadeira identidade. Busco aqui justamente destacar a juventude como um fenômeno complexo que varia histórica, cultural e socialmente. Antes de tudo é importante ter claro que a juventude é uma experiência que transcende qualquer estação da vida, não se esgotando dentro de uma determinada idade biológica. A idade biológica da adolescência chega ao fim, mas muitas características práticas e perspectivas ecoam ainda por muito tempo. Isso sinaliza que a experiência juvenil adapta-se, transforma-se e, pode sim, permanecer além de qualquer limite cronológico (Carrano, on line 1). 41 Marília Pontes Sposito (1997) sinaliza para a existência de um reconhecimento tácito, na maioria das análises sobre juventude, em torno da condição de transitoriedade como elemento importante para a definição do jovem. É exatamente a partir desse quadro que ela faz sua crítica, destacando dois diferentes aspectos: [...] o primeiro diz respeito a uma caracterização da transição como indeterminação; jovens não são mais crianças e também não são adultos, jovens viveriam uma espécie de hiato na acepção de Salem (1986) sendo definidos pelo que não seriam (...) O segundo aspecto incide sobre uma necessária subordinação dessa fase à vida adulta, referência normativa caracterizada pela estabilidade em contraste com a juventude, período da instabilidade e das crises. (SPOSITO, 1997, p.09) Assim, segundo Sposito (idem), a juventude, e consequentemente o jovem, sofre uma contínua desqualificação por ser entendida apenas como etapa passageira, e não como uma realidade presente. Como destaca Vianna (1997), este modo de ver a juventude como mera transição deve-se a uma compreensão que temos da vida adulta como rígida e estática diante da pretensa “instabilidade” juvenil. Ora, mas será que condições como transitoriedade, instabilidade e turbulência não se constituem hoje como características de nosso tempo, de todas as pessoas, em toda a sua vida, e não somente da juventude? Para Dayrell (on-line 1) existe um conjunto de imagens estabelecidas acerca dos jovens que interferem em nossa compreensão acerca de sua realidade. Uma delas é aquela que entende a juventude como uma etapa transitória, onde “prevalece uma perspectiva de ‘vir a ser’”. A negação do tempo presente anula assim o papel do jovem, amputando-lhe qualquer significado relevante. O autor aponta ainda para outros “olhares” do senso comum, a partir dos quais a juventude é reconhecida como um tempo de “liberdade” e “prazer”, de “comportamentos exóticos”, servindo como um período de “experimentações”. Desse modo a juventude acaba sendo tida como etapa da vida que seria marcada pela irresponsabilidade e o desajustamento social. Quando não, acaba sendo tida como um momento de crise, uma fase difícil, dominada por conflitos com a auto-estima e a personalidade. Infelizmente, a escola também não escapa dessas perspectivas. Essa concepção está muito presente na escola: em nome do "vir a ser" do aluno, traduzido no diploma e nos possíveis projetos de futuro, tende-se a 42 negar o presente vivido do jovem como espaço válido de formação, assim como as questões existenciais que eles expõem, bem mais amplas do que apenas o futuro. (Dayrell, on-line 2). Partindo desse quadro, Dayrell reconhece a juventude como, ao mesmo tempo, uma condição social e um tipo de representação. Se há um caráter universal dado pelas transformações do indivíduo numa determinada faixa etária, nas quais completa o seu desenvolvimento físico e enfrenta mudanças psicológicas, é muito variada a forma como cada sociedade, em um tempo histórico determinado, e, no seu interior, cada grupo social vão lidar com esse momento e representá-lo. Essa diversidade se concretiza com base nas condições sociais (classes sociais), culturais (etnias, identidades religiosas, valores) e de gênero, e também das regiões geográficas, dentre outros aspectos (Dayrell, on-line 02). Ainda que não exista um período específico em que cada identidade começa a ser constituída, assim como não há um prazo fixo para que ela se consolide, observa-se que esse processo coincide com o início da adolescência, podendo se prolongar por diferentes períodos, de acordo com as experiências pessoais e as possibilidades de escolhas oferecidas em cada grupo social. Assim, se a adolescência é tida como uma fase de transformações mais bem definidas, a juventude apresenta uma amplitude maior, de fronteiras móveis e limites imprecisos. O processo de construção da(s) identidade(s) do jovem passa por um processo simultâneo de reconhecer-se e ser reconhecido. Trata-se de um processo que não se constitui isoladamente, mas que refaz os seus sentidos nos diversos relacionamentos que se estabelecem com os adultos e os conjuntos de ações das redes culturais da juventude. Contemplamos aqui o conceito de juventude segundo a perspectiva de Carrano (on-line 2) que evita reducionismos e a apresenta como uma experiência ampla, mutante e capaz de se resignificar no tempo e no espaço. (...) não há uma única possibilidade de compreensão do que venha a ser a juventude, uma vez que a mesma é uma variável sociológica das mutações sociais no tempo-espaço, também não há linearidade histórica naquilo que as sociedades esperam de suas novas gerações (Carrano, on-line 2). 43 Na sociedade contemporânea ser jovem é mais do que uma condição biológica. É uma maneira de definição cultural. É o conjunto de experiências múltiplas, cada uma das quais caracterizada por formas de relacionamento, linguagens e regras específicas que assinala a experiência juvenil. Ela não é um dado e sim uma realidade construída através de representações e relações, menos como um fato e mais como um fazer-se. É desse modo que a juventude pode prolongar-se para além dos limites de idade, tornando-se “uma espécie de nômade no tempo, no espaço e na cultura”, onde a “maneira de se enfeitar, os gêneros musicais e o pertencimento ao grupo funcionam como linguagens provisórias e variáveis, através das quais os indivíduos se identificam e enviam sinais de reconhecimento frente ao exterior” (Carrano, on line 3). A juventude não pode ser entendida como um tempo que termina, como uma fase de crise ou de trânsito entre a infância e a vida adulta. Mais do que uma passagem, a juventude possui importância em si mesma. Ela representa o conjunto de mudanças do corpo, dos afetos, das referências e das relações sociais a partir da interação com o meio social e os tipos e intensidades das trocas que aí transcorrem. Ela abriga um conjunto de experiências significativas que transcendem qualquer tipo de determinação cronológica. Não se deve assim buscar por uma ideologia de unidade juvenil que de fato inexiste. Não é possível pensar a juventude de forma absoluta, desconsiderando as diferentes inserções sociais e as correlações de forças que atravessam a sociedade. Ao se falar sobre juventude, muitas vezes as – tantas – diferenças existentes acabam sendo diluídas em prol de um ideal inalcançável, uma vez que as múltiplas identidades forjadas, que caracterizam a experiência do “ser jovem”, se efetivam em função da diversidade de espaços e realidades que possibilitam o desenvolvimento de formas de socialização e de participação das mais diversificadas. Assim, apesar das especificidades, o mais próprio seria referir-se a diferentes “modos de ser jovem”. Daí se enfatiza a idéia de juventudes, no plural, destacando a diversidade dos modos de ser. A partir disso, me parece correto supor que o conceito de juventude é plural e ganha diferentes significados de acordo com o contexto histórico, social, econômico e cultural. Para Dayrell: “O tempo da juventude, para eles, localiza-se no aqui e agora, imersos que estão no presente. E um presente vivido no que ele pode oferecer de diversão, de prazer, de encontros e de trocas afetivas, mas também de angústias e incertezas.” (on-line 1) 44 2.3.1. Identidade Juvenil “O Eu é cadeia” - Fernando Pessoa Não é apenas o condicionante social externo que determina a resposta para a famosa pergunta “quem eu sou?”, mas também a capacidade individual que temos de nos definirmos e nos diferenciarmos uns dos outros. Numa sociedade complexa o “eu” se faz múltiplo ajustando-se às mudanças rápidas a que é submetido. Neste sentido, um “eu múltiplo” não estaria referido a uma essência permanente, mas ao processo da própria identificação sucessiva. Assim, a identidade se configuraria como um sistema dinâmico definido entre possibilidades e limites que gera um campo simbólico no qual o sujeito pode conquistar a capacidade de intervir sobre si e reestruturar-se. (Carrano, on-line 2). Identificar-se significa assim reconhecer-se e ao mesmo tempo ser reconhecido. É um jogo de interações nem sempre tranqüilas, muitas vezes conflituosas, entre a maneira que o jovem se vê e a percepção que tem dos modos como os outros o vêem. As mais atuais análises do conceito de identidade se afastam da consolidação da idéia de um “eu” estável, definidor da personalidade e do campo cultural dos indivíduos, assim como formulado na modernidade. Hoje, individualizar-se significa muito mais se redefinir continuamente. O desafio repousa agora em como garantir a unidade e a continuidade da história individual numa realidade marcada pela complexidade e pela alternância existencial. Embora o campo de escolhas na construção da autonomia e nas possibilidades de realização do indivíduo tenha se alargado, ainda permanecemos associados às múltiplas redes existenciais que constituem o social. Nesse sentido, parece ser no âmbito das múltiplas mediações que estabelecemos em nossa vida cotidiana que levamos à frente o continum de experiências que constituem nossa identidade. As possibilidades dos sujeitos controlarem a própria ação, produzirem sentidos existenciais diferenciados de suas famílias e comunidades de origem e a indeterminação frente ao futuro são traços marcantes do cotidiano das sociedades complexas que conduzem dessa forma ao surgimento de um novo conceito de identidade, mais concernente com a realidade em que este indivíduo, o jovem de hoje, se constitui. 45 Uma vez reconhecido o atual processo de identização – isto é, identidades passíveis de constante redefinição e experimentação (Carrano, on-line 1) – revela-se um dos grandes desafios da contemporaneidade a construção de uma unidade social em sociedades marcadas por significativas diferenças e desigualdades pessoais e coletivas. Como destaca Carrano: “Escutar a si e ao outro se torna, portanto, a condição para o reconhecimento e a comunicação. Para escutar numa relação solidária é preciso, contudo, assumir a própria identidade, entrar em relação com a diferença e rejeitar as desigualdades que venham a configurar a constituição das coletividades humanas.” (Carrano, on-line 2). Para ampliar a compreensão dos significados sociais das diferentes juventudes acredito ser de vital importância entender a complexidade do funcionamento das redes sociais, onde sem dúvida alguma os jovens são atores centrais no processo de consolidação de redes de ações coletivas que apontam para a afirmação de generosas e democráticas formas sociais de realização humana. As redes sociais são próprias da ação humana desde os primórdios da vida em sociedade, afinal desde o momento em que se estabeleceu um vínculo social, criou-se também o objetivo comum de associação, principio básico da rede. O geógrafo Milton Santos (1997) elaborou uma análise de relação existente entre sociedade e natureza, identificando três etapas fundamentais na trajetória de produção das redes. São estas: a) império dos dados naturais, onde a criação humana era limitada pela própria natureza e sua oferta, prevalecendo assim o surgimento de redes espontâneas e as relações sociais mais lentas; b) desenvolvimento da técnica, etapa de consolidação da modernidade capitalista, onde ocorreu o controle e a expansão dos territórios, com destaque para o surgimento dos Estados nacionais e o crescimento do comércio internacional com mundialização das redes através da relação com as colônias; e c) período técnicocientífico-informacional, onde os suportes das redes encontram-se nas forças naturais dominadas pelo homem e nas forças elaboradas pela inteligência e contidas nos objetos técnicos (como os microcomputadores), expandindo exponencialmente as relações em uma escala global. Esse quadro apontado por Milton Santos nos leva a entender que quanto mais avança a civilização material, mais se impõe o processo de constituição das redes. Ainda de acordo com Santos (1997), as redes dominantes são capazes de fazer repercutir seu discurso imediatamente e imperativamente sobre os lugares distantes, revelando-se os mais eficazes transmissores do processo de globalização. 46 As redes possuem uma dimensão física, mas também possuem uma dimensão social e política que se dão a partir das pessoas, mensagens e valores que as freqüentam, nos impedindo assim de ignorar o poder da ideologia que circula por elas. As redes dependem de fluxos e para os poderes hegemônicos interessa que estes ocorram com rapidez e eficiência. Nesse sentido Carrano (on-line 1) aponta nossa análise para um sentido ainda maior: É preciso superar a idéia de que a globalização seja algo produzido por forças inumanas – a mão invisível do mercado, por exemplo – em esferas que seriam efetivamente globais. Quero dizer com isso que todo processo de globalização é resultante de ações de sujeitos concretos e que possuem referências locais. Da mesma forma, toda globalização interage com uma localidade que não se apresenta apenas como um ente passivo; pelo contrário, as redes do lugar podem opor resistência aos fluxos de tendência dominante. A ordem global busca impor, a todos os lugares, uma única racionalidade. E os lugares respondem ao mundo segundo os diversos modos de sua própria racionalidade. A ordem local funda a escala do cotidiano, e seus parâmetros são a co-presença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização com base na contigüidade. Assim, o cotidiano é, portanto, o localmente vivido. Garantia de comunicação. (p.03). Milton Santos destacou também o papel desempenhado pelo lugar nas relações em rede e como este pode oferecer resistência e oposição a movimentos massificadores e totalitários. Ele apresenta o poder do lugar como o poder dos “homens lentos”, isto é, dentro das múltiplas temporalidades que coexistem no mesmo lugar, os indivíduos que não se integram à velocidade do modo de vida capitalista globalizado, seja por incapacidade participativa ou por resistência ideológica, expressam sua capacidade como coletividade, se organizando e se associando em redes colaborativas que atendem à demanda do homem e não do sistema. Tal ação pode ser reconhecida como uma busca da vivência segundo o ritmo dos interesses de coletividades humanas autodeterminadas (Santos, 1997). É possível compreender que as redes sociais não são auto-explicativas e que o poder de mobilização, reação e, principalmente, ação se faz presente de forma decisiva na compreensão dos processos local/global de efetivação destas. As redes sociais são desse modo fatos sociais que só podem ser compreendidos em seu processo de realização, estando sob contínua redefinição, revelando um forte 47 caráter orgânico, que demonstra sua ampla capacidade de auto-avaliação e transformação nas mais diferentes escalas. Para Dayrell (on line 1) o novo aparato tecnológico de comunicação existente em nossa sociedade contemporânea, redefine a relação entre os jovens e desses com a cultura:, pois por meio da intensificação da velocidade das informações, os jovens entram em contato e de alguma forma interagem com as dimensões locais e globais, que se determinam mutuamente, mesclando singularidades e universalidades, envolvidos numa pluralidade de pertencimentos: posições sociais, redes associativas, grupos de referência, etc. Dentro dessa lógica de relações em rede, podemos compreender as redes sociais da juventude como expressões de identidades múltiplas. As diferentes juventudes estabelecem uma gama vasta de vínculos em seus relacionamentos, que transcendem em muito as delimitações impostas por termos de análise (como ocorre com as “tribos urbanas”) que surgem com o intuito de categorizar a ação coletiva dos jovens na cidade, mas acabam por muitas vezes reduzindo o número real de intercessões e mediações sociais que essa “categoria/metáfora” permite revelar. Carrano destaca que a categoria de “tribos urbanas” é muito interessante para que identifiquemos determinado grupo social no espaço, pois é possível reconhecer determinados estilos em cada um dos diferentes agrupamentos jovens, que muitas vezes levam a homogeneização social. Mas segundo ele mesmo, isso vai ainda muito além: (...) quando abandonamos a perspectiva da evidência imediata e penetramos nos espaços sociais dos grupos, temos condições de perceber configurações sociais realmente existentes, expressando conjuntos de ações coletivas que não sustentam empiricamente as categorias analíticas que apresentam a idéia de isolamento e fragmentação social como os traços definidores da vivência das juventudes nas cidades. É neste sentido que considero que a categoria tribos urbanas dá idéia de um apartamento social que em verdade não existe. As relações dos jovens são muito mais complexas do que a idéia de tribo, herança da antropologia de sociedades tradicionais que, mecanicamente transportada para o urbano, pode criar mais uma idéia fora de lugar (Carrano, on line 4). Muitas vezes o debate sobre juventude se encontra separado do debate acerca do restante da vida social em suas múltiplas dimensões (social, política, econômica, etc). Segundo Carrano é impossível falar em “sociologia da juventude” sem buscar 48 compreender o social que constitui e é constituído pelas diferentes juventudes. Partindo dessa premissa, a adoção da perspectiva dos Estudos culturais latino americanos parece acertada pois nos conduz a entender a cultura do jovem a partir do conjunto de mediações que constituem seu dia-a-dia. No presente contexto de mundialização da sociedade, um dos significados fundamentais que devemos ter em mente é de que esta nova identidade que estamos vendo surgir não é estática, isto é, ela está em constante transformação assim como os fluxos que orientam a vida social. Como destaca Morin (1998), o “eu” é relacional e móvel, se redefinindo continuamente, fruto de uma dinâmica social tremendamente plural que exige uma racionalidade aberta às múltiplas novas experiências e ao conjunto de diversificadas mediações da qual participa o indivíduo. Este novo cenário orienta fortemente o surgimento de um novo conceito de identidade, muito mais fugaz. Trata-se de uma formação complexa e em permanente redefinição. (...) A unidade do tempo não é mais assegurada nas raízes da memória ou nos projetos para o futuro, mas na capacidade de ser presente momento por momento. A luta que o cotidiano traz é ainda aquela de construir uma experiência de tempo que aconteça através da variedade e da multiplicidade sem se perder (Carrano, on line 1). A identidade é assim vista como um exercício permanente de interação, de reconhecimento recíproco entre nós e os outros, onde sempre se expressa a tensão existente entre a definição que temos de nós mesmos e aquela conferida pelo outro. A condição de compartilhar sentidos nos faz participante de um grupo e sentimos a solidariedade de outros, quando nos sentimos parte do grupo. É isto que reforça nossa identidade e a garante. O que mantém os indivíduos ligados a outros não são apenas os interesses comuns, mas sim porque esta é, sobretudo, a condição que temos para encontrar sentido naquilo que fazemos. E é justamente nessa solidariedade que nos afirmamos como sujeitos. A mobilização em torno das expressões culturais pode estar apontando para questões centrais na sociedade contemporânea. Podem ser expressão do processo de transformações profundas pelas quais vem passando a sociedade brasileira e mundial, tendo na informação, no campo simbólico e na disputa do controle dos recursos 49 simbólicos o eixo em torno dos quais se caracteriza a chamada sociedade complexa. Por meio da intensificação da velocidade das informações, os jovens entram em contato e de alguma forma interagem com as dimensões locais e globais, que se determinam mutuamente, mesclando singularidades e universalidades, envolvidos numa pluralidade de pertencimentos: posições sociais, redes associativas, grupos de referência, etc... De tal forma que participam, no real ou no imaginário, de uma multiplicidade de mundos, tendo acesso a diferentes modos de ser, a diferentes modos de viver, a diferentes modelos sociais que terminam interferindo nos processos identitários. A identidade é vivenciada assim, como uma ação e não tanto como uma situação: é o indivíduo que constrói a sua consistência e seu reconhecimento, no interior dos limites postos pelo ambiente e pelas relações sociais. A construção da identidade é antes de tudo um processo relacional, ou seja, um indivíduo só toma consciência de si na relação com o Outro. Ninguém pode construir a sua identidade independentemente da identificação que os outros possuem a seu respeito, num processo intersubjetivo no qual “eu sou para você o que você é para mim ”.É uma interação social, o que aponta para a importância do pertencimento grupal e das suas relações solidárias para o reforço e garantia da identidade individual. Não nos sentimos ligados aos outros apenas pelo fato de existirem interesses comuns mas, sobretudo, porque esta é a condição para reconhecer o sentido do que fazemos, podendo nos afirmar como sujeitos das nossas ações. 2.4.1 A opção por um estudo etnográfico. Os pesquisadores que adotam a abordagem qualitativa em sua pesquisa se opõem à premissa que defende um modelo único de pesquisa para todas as ciências, recusando-se a “(...) legitimar seus conhecimentos por processos quantificáveis que venham a se transformar em leis e explicações gerais.” (Goldenberg, 2001 p.17). Para estes, as ciências sociais têm a sua especificidade, negando o modelo positivista e adotando uma metodologia própria. Max Weber, maior representante da chamada sociologia compreensiva, afirma que o principal interesse da ciência social é o comportamento significativo dos indivíduos engajados na ação social, isto é, o comportamento ao qual os indivíduos agregam significado considerando o comportamento de outros indivíduos. Tais cientistas sociais, que se dedicam a pesquisar os significados das ações sociais de outros 50 indivíduos e deles próprios, são sujeito e objeto de suas pesquisas. É objetivo destes compreender os valores, crenças, motivações e sentimentos humanos que, segundo sua própria perspectiva, só pode ocorrer se a ação é colocada dentro de um contexto de significado. Na década de 1970, surge nos Estados Unidos, inspirada nas idéias de Weber, a antropologia interpretativa. Um dos principais representantes desta abordagem é Clifford Geertz, que propõe um modelo de análise cultural plural e diferenciado, onde o antropólogo realiza uma descrição profunda (“densa”) das culturas, como “teias de significados” que devem ser interpretados. Para Geertz, os textos antropológicos são interpretações sobre as interpretações nativas, já que os nativos produzem interpretações de sua própria experiência. Tal perspectiva conduz o antropólogo a um constante questionamento a respeito dos limites de sua capacidade de conhecer o grupo que estuda e na necessidade de expor em seu texto os questionamentos, perplexidades e caminhos percorridos em sua interpretação, tida sempre como provisória e parcial. Posteriormente, a contribuição de Geertz influenciou o surgimento da antropologia reflexiva que propõe uma reflexão acerca do trabalho de campo e as escolhas epistemológicas onde o resultado da pesquisa não deriva simplesmente da observação, mas de um diálogo e de uma negociação de pontos de vista, do pesquisador e pesquisados. (Goldenberg, 2001). Como a objetividade e a neutralidade absoluta são impossíveis de serem alcançadas, já que a simples escolha de um objeto significa um julgamento de valor, a antropologia reflexiva propõe ao pesquisador o esforço de objetivação como forma de conter a subjetividade. Afinal, ainda que seja impossível atingir uma neutralidade plena, é essencial manter esta meta para não fazer do objeto construído um objeto inventado. Nesse sentido Goldenberg (2001) nos aconselha: quanto mais o pesquisador tem consciência de suas preferências pessoais mais é capaz de evitar o bias, muito mais do que aquele que trabalha com a ilusão de ser orientado apenas por considerações científicas. (p.45) É importante ter em mente que a sociologia interpretativa reflexiva adota uma abordagem qualitativa que não se preocupa em fixar leis para produzir generalizações. O que está em jogo aqui é uma compreensão mais profunda dos fenômenos sociais a partir de aspectos subjetivos da ação social. A abordagem qualitativa vem suprir a incapacidade da abordagem estatística de dar conta de fenômenos complexos e singulares através de questionários padronizados. 51 Seguindo a linha de uma sociologia interpretativa reflexiva, minha opção para o desenvolvimento dessa pesquisa foi por um estudo etnográfico, adotando uma perspectiva de análise holística, onde o comportamento dos jovens pôde ser entendido no contexto em que ocorre. Para tanto determinei alguns princípios fundamentais que nortearam o contato estabelecido: (a) o primeiro encontro ocorreu através de bate-papos informais nas escolas e, posteriormente, em animencontros, onde busquei reconhecer assim o ambiente e as atividades desenvolvidas pelos leitores; (b) a descrição – e não prescrição – de como os jovens se comportavam nesses encontros, onde busquei relatar com fidedignidade aquilo que era verificado, evitando sempre qualquer tipo de julgamento relacionado à como supostamente eles “deveriam” se comportar; (c) e entrevistas, de abordagem semi-estruturada em que o entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto sem condições pré-fixadas pelo pesquisador. O desenvolvimento da pesquisa envolveu o movimento de imersão minuciosa no campo para coleta dos dados empíricos, respaldado por alguns pressupostos construídos com base nos meus interlocutores teóricos. É importante ressaltar o cuidado que envolveu minha aproximação aos sujeitos em função de minha ligação com o tema do estudo. Os dados foram sendo organizados processualmente a partir de levantamento de categorias empíricas, interpretadas com o auxílio da teoria. Vale citar que em todo momento de campo busquei realizar uma observação em profundidade, enfatizando as relações informais, inclusive no momento das entrevistas, capazes de relativizar a dissimetria presente na relação entrevistador/entrevistados (MINAYO, 2000, p. 113117). O conceito de cultura escolhido para orientar essa investigação é o de MartinBarbero (2001), segundo o qual, a cultura é tida como o espaço de onde emergem as mediações e ocorre a constituição do sujeito. É no âmbito da cultura que se dá a produção de sentidos dos receptores. Para o autor, a cultura é mediação, lugar de constituição da identidade, onde os sentidos são produzidos e resignificados. O processo de recepção na cultura é sempre um processo de resignificação. 2.4.2. O campo empírico Cabe lembrar, conforme já foi mencionado na apresentação deste trabalho, que este estudo integra uma investigação mais ampla que vem sendo realizada no âmbito do 52 Projeto Infância, Juventude e Indústria Cultural: sociedade, cultura e mediações1. Isso significa que o material empírico utilizado nessa dissertação – depoimentos orais, registros de campo, fotografias – integra o acervo do Projeto, que está à disposição não só dos seus integrantes, mas disponível para outros grupos de pesquisa, bem como para estudantes e professores interessados no tema. Se, de início, essa questão foi motivo de discussões e controvérsias, relativas ao receio de que o uso coletivo do material pudesse ameaçar a originalidade e a autoria dos trabalhos, aos poucos, foi ficando claro inclusive depois da integração no Projeto de uma mestranda de outro programa de pósgraduação - que a relevância da pesquisa implicava também na disponibilização desses dados. Até porque, tendo em vista que tais dados não são “dados”, mas sim, uma construção, a originalidade e a autoria deixam de ser problema. O acervo do Projeto, que vem sendo desenvolvido numa abordagem qualitativa de cunho etnográfico, está constituído por entrevistas individuais e coletivas, pelos registros das observações realizadas nos animencontros, pelos registros fotográficos desses eventos e pelas produções acadêmicas do grupo (projetos, trabalhos apresentados em seminários e congressos, textos publicados em livros e periódicos), nas versões impressa e em CDROM. Esse material vem sendo colhido pelo grupo, com base em roteiros de entrevista e de observação nos quais são levados em conta os diferentes recortes de cada integrante do projeto. Tanto as transcrições das entrevistas, quanto os registros do campo (diários e fotos) circulam entre os participantes e, na medida do possível, a discussão das categorias de análise relativas a cada objeto é feita coletivamente. No caso deste estudo em particular, o campo empírico foi constituído por: (a) Duas entrevistas individuais, realizadas na fase exploratória do estudo, com um estudante do Ensino Médio e um universitário. No momento das entrevistas, José, tinha 16 anos e era estudante do Ensino Médio de uma escola particular de prestígio; e João, tinha 19 anos, era bolsista de Iniciação Científica no curso de Nutrição da UERJ e se definia como “uma pessoa de classe média baixa”. Ambos se ofereceram para dar seus depoimentos, a começar por José, sobrinho de uma integrante da pesquisa. Os depoimentos foram colhidos na UERJ, por intermédio de gravação de voz, tendo a duração, cada um, de 90 a 120 minutos. 1 Coordenado pela Profª. Maria Luiza Oswald no Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, o Projeto tem por interesse investigar os sentidos que crianças e jovens produzem sobre o consumo e a recepção dos produtos do tripé da indústria de entretenimento japonesa – mangás, animes e videogames – com base, prioritariamente, nas contribuições de autores filiados aos Estudos Culturais Latinoamericanos. 53 (b) Uma entrevista coletiva, por intermédio de gravação de voz, com sete alunos que até então pertenciam ao Ensino Médio de uma escola da rede particular em que eu lecionava, à época das entrevistas, as disciplinas de História e Geografia. Situada no bairro de Bento Ribeiro, a escola afirma adotar uma linha sócio-interacionista, atendendo a crianças e jovens de diferentes classes sociais devido ao sistema de bolsas que oferece. Os entrevistados eram meus alunos da segunda série do ensino médio em ambas as disciplinas e a escolha dos jovens entrevistados foi relativamente simples, afinal o grupo com quem conversei era constituído por assíduos leitores de mangás que liam e trocavam revistas durante as aulas das disciplinas que menos lhes interessavam – isto é, quase todo tempo. Toha tinha 18 anos, Henrique, Ramon e Vitor tinham 17 anos, enquanto Vanessa, Diogo e Luis tinham 16 anos. Os depoimentos foram colhidos na própria escola, por intermédio de gravação de voz, tendo a duração de 90 a 120 minutos. A opção pela realização dessa entrevista coletiva teve por objetivo observar a dimensão de socialidade que a recepção do mangá supõe, bem como investigar a influência da grupalidade na constituição das identidades. (c) Duas entrevistas individuais, com uso do gravador, com dois dos jovens que participaram da entrevista coletiva, Toha e Henrique, cuja forte relação com os mangás me permitiu preencher algumas brechas da entrevista coletiva. Cada entrevista teve a duração média de 40 minutos. (d) Duas entrevistas individuais com dois jovens da rede pública estadual de ensino, com quem tive contato nos animencontros de que participei. Daniel de 14 anos e Fábio de 15 anos, ambos matriculados na primeira série do Ensino Médio. Os depoimentos foram colhidos em dois animencontros. Um no Centro Cultural da UERJ e outro no Esporte Clube América, por intermédio de gravação de voz, tendo a duração média de 30 minutos cada. Minha intenção com essas entrevistas foi confrontar as falas desses jovens com os depoimentos dos jovens da escola particular. (e) Duas entrevistas individuais on line com duas alunas do ensino médio: Ana, então com 17 anos, aluna de um colégio/curso preparatório ao vestibular, e Bya, de 18 anos, aluna do terceiro ano do ensino médio, ambos particulares, situados na zona norte da cidade. A presença de apenas uma jovem na entrevista com alunos do Ensino Médio foi uma das motivações dessa opção. (f) Diários de campo dos seguintes animencontros: 9/10 de 2005, no “Anime Center de Aniversário”; 18/03 de 2006 no “Anime Center EXTRA!”, também realizado na UERJ; 27/05 de 2006 no “Anime Center Verão”, ocorrido no Esporte Clube 54 América; 29 e 30/07 de 2006, no “Anime Center Especial de Férias”, evento ocorrido na UERJ; e 25 e 26/11 em 2006, no “Anime Center Especial de Halloween”, também no Centro Cultural da UERJ. (g) Registros fotográficos dos mesmos em animencontros. 2.4.3. A entrada no campo Na escola No mês de setembro de 2005, entrei em contato com a direção da escola particular em que trabalhava há 5 anos e apresentei minha proposta de pesquisa ao coordenador, destacando meus objetivos e pedindo autorização para permanecer com os alunos interessados no horário posterior ao turno escolar. O coordenador aceitou prontamente meu pedido e sugeriu que as entrevistas fossem realizadas em uma das salas da própria escola. Apesar da estranheza inicial, ele demonstrou interesse na investigação, reconhecendo que cada vez mais os alunos têm sido vistos com histórias em quadrinhos japonesas que, segundo seu ponto de vista, eram “esquisitas e muito violentas”. Agendei com ele para uma semana depois o início do “bate-papo” com os alunos interessados. Visitei então, naquela mesma semana, uma turma do segundo ano do Ensino Médio em que lecionava História e Geografia, nas quais já havia percebido a presença de assíduos leitores de mangá. Em um papo informal contei para a turma que estava escrevendo um trabalho sobre mangás e juventude e que me interessava muito conhecer a opinião deles sobre essas histórias em quadrinhos. Sete alunos se dispuseram a conversar comigo. Uma semana depois, a própria sala de aula dos jovens foi, o espaço utilizado para a realização da entrevista. Um espaço amplo bastante familiar para todos nós, onde semanalmente discutíamos as mais diferentes questões referentes aos diversos temas abordados nas disciplinas que eu mesmo ministrava. Curiosamente, os alunos presentes para a entrevista eram aqueles que também revelavam grande entusiasmo nas aulas e interesse nos debates de questões políticas e sociais. Logo que eles chegaram e se acomodaram de forma livre e descontraída, percebi um deles retirar uma pequena pilha de mangás da mochila, me dando indícios de que a entrevista me renderia bons frutos. Nossa conversa, assim como em todas as aulas, fluiu de forma descontraída e todos animadamente queriam saber, logo no começo do encontro, no que eu havia me 55 metido agora para querer saber sobre mangás. Eu era professor-conselheiro dessa turma e nós já havíamos conversado outras vezes, sobre outros assuntos como música, cinema e RPG. Essa minha faceta, de compartilhar com eles suas práticas culturais foi o que os levou – como eles próprios relataram – a dispor-se a dar seus depoimentos como leitores de um produto que grande parte dos professores considerava pouco benéfico à sua formação. Saber que a opinião deles seria importante para o trabalho que eu estava desenvolvendo parecia significativo para eles, que confiavam em mim e se sentiam felizes em poder retribuir. O fato de eu compartilhar com o grupo o conhecimento e a admiração pelo artefato que eu estava investigando me proporcionou a vantagem de não precisar me esforçar para transformar “o exótico em familiar”. Tendo em vista o tempo restrito para o desenvolvimento dessa dissertação, essa vantagem foi um benefício. Por outro lado, é necessário dizer que não me eximi do esforço de transformar “o familiar em exótico”. Até porque, durante a entrevista, e ao longo do estudo, minha relação com o mangá não esteve protegida pela “ignorância” que nos dá liberdade para ver TV, assistir a filmes, ler Histórias em Quadrinhos etc, sem a “tutela“ da teoria. O ingresso no mestrado mudou minha posição de leitor/produtor de mangá para a de pesquisador da recepção desse fenômeno de comunicação de massa entre jovens. Minha condição atual de “desprotegido da ignorância” me garantiu a possibilidade de discernir a complexidade do meu objeto de estudo. Nos animencontros2 Por ser leitor de histórias em quadrinhos desde que aprendi a ler e conviver em meu dia-a-dia com amigos também leitores, sempre tive conhecimento da existência de eventos e encontros relativos ao universo dos personagens dos mangás. Cheguei a participar de alguns deles, mas nunca com regularidade. Entretanto, em outubro de 2005, meu interesse de pesquisa me levou a voltar aos encontros de anime e mangá realizados no Rio de Janeiro, desta vez como pesquisador. Minhas entradas em campo ocorreram no chamado “Anime Center”, evento realizado em média duas vezes por ano, 2 Os animencontros são mega eventos presenciais que reunem fãs da indústria de entretenimento japonesa- crianças, jovens e adultos - em torno de práticas relativas ao consumo e recepção de mangás animes e videogames, tais como: jogar cards, games; participar de palestras conferidas por editores, dubladores de animes, especialistas em videogames; participar de desfiles e concursos de cosplay (prática de caracterizar-se como heróis e heroínas de mangás e animes); encenar em jogos de arena lutas próprias da cultura japonesa; participar de oficinas de produção de mangás e animes; assistir a competições de videogames; trocar informações sobre os produtos; adquirir mercadorias; constituir grupos de amizade referentes às identidades aos produtos. 56 por vezes no campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e por vezes no Esporte Clube América (ambos localizados na região da grande Tijuca). Vale destacar que a experiência de ir a esses eventos não despertou em mim a curiosidade e a estranheza presentes nos demais membros do grupo de pesquisa. Muitas vezes, nas reuniões de pesquisa, meus colegas demonstraram um certo espanto com o cenário dos animencontros. Distantes do universo cultural dos mangás e animes e das práticas relativas ao consumo/recepção desses artefatos, meus companheiros de pesquisa demonstravam sentir-se como um antropólogo de visita a uma tribo indígena de uma terra distante, estranhando o jovem que vivia na mesma cidade que eles, freqüentava o espaço da mesma universidade, mas transitava por outro circuito cultural. Para mim, leitor desde sempre de histórias em quadrinhos, o cenário dos animencontros não gerava estranheza. A pele do pesquisador em nada me pesava. O que não significa dizer que eu me expus desavisadamente à “ilusão do saber fazer”, que segundo Brandão (2002) é um dos perigos a que se expõe os pesquisadores principiantes (e não só eles). Muito pelo contrário, me senti instigado a desvendar os sentidos que os jovens produziam sobre aquelas práticas, desencavando a cultura das mochilas escolares onde ela permanecia oculta. Para tanto, tomei algumas precauções para não incorrer no que Bourdieu, citado por Brandão (idem), chama de “arrogância da ignorância”. Muito embora eu não tenha ido para o campo coberto pela teoria, minha intimidade com a temática tornou necessário que eu me apropriasse de algumas categorias teóricas que me ajudassem a transformar o tema em problema. Canclini, Martín-Barbero e a revisão de literatura sobre práticas culturais de jovens (Paulo Carrano, Marilia Sposito, Hermano Vianna, Dayrell, entre outros ) me ajudaram nessa etapa, me auxiliando no trabalho de construção dos roteiros que me guiariam no que eu iria observar nos animencontros e perguntar para os sujeitos. Esses cuidados, essenciais diante do prazo exíguo para o desenvolvimento de dissertações de mestrado, foram importantes na fase da interpretação do material recolhido, já que me permitiram ir organizando processualmente os dados, livrando-me de ter que lidar com um volume enorme de registros e depoimentos não visados pelo estudo. Nesses animencontros tive contato mais sistemático com três jovens da rede pública de ensino que compartilharam comigo a relação que tinham com o mangá e os diferentes significados que constituíam a partir dessa leitura. Eram alunos que estudavam em escolas dos bairros do Méier e de São Cristóvão e que em seus relatos 57 apresentavam suas escolas como “boas” embora que “meio que abandonadas”, enfim, o lugar em que eles iam para “aprender sobre a vida e sobre o mundo para ser alguém”. Na rede Outra interessante experiência que vivenciei no desenvolvimento dessa pesquisa foi a realização de duas entrevistas on line que, em função de terem abordado garotas e devido a riqueza dos relatos, acabaram também tomando parte deste trabalho. Visitando o site de relacionamento Orkut, tive acesso a um vasto número de comunidades virtuais compostas por fãs de quadrinhos japoneses. Tanto a leitura quanto a arte de escrever e desenhar quadrinhos japoneses são temas recorrentes dessas comunidades que chegam a reunir de centenas a milhares de fãs. Para se ter uma idéia, Shaka (cavaleiro de ouro da casa de Virgem), um personagem coadjuvante do popular mangá Cavaleiros do Zodíaco (Saint Seya), chega a ter na comunidade que leva seu nome mais de 50.000 integrantes, dos quais muitos postam regularmente discutindo os mais diferentes assuntos referentes ao personagem e a história de que participa. Foi justamente em uma dessas comunidades – mais precisamente a de fãs da revista Samurai X: “Rurouni Kenshin Mangá” – que arrisquei entrar em contato com quatro internautas, dentre os quais duas jovens aceitaram serem entrevistadas através do programa de conversação on line MSN sobre a personagem Kenshin e a relação delas com os mangás. Essas comunidades virtuais têm se tornado novos espaços onde se compartilham experiências e significados referentes a uma determinada temática lançando as relações sociais em uma nova dimensão que despreza o espaço formal e permite a criação de espaços de interação temática. As duas jovens entrevistadas, que se definiram como classe média alta, estavam freqüentando cursos preparatórios para o vestibular, uma do bairro do Méier e outra no bairro da Tijuca, e a conversa com cada uma delas demorou em média 90 minutos tendo ocorrido no mês de agosto de 2006. A juventude transcende os rótulos que a fixam como fase de preparação para a vida adulta, como momento de transição com características que sugerem a incompletude de uma etapa da vida voltada para um futuro ainda por vir constituindose, ao contrário, como uma construção plural que tanto é determinada social, 58 econômica, cultural e afetivamente, quanto determina as transformações dos contextos que lhe diz respeito. Para os autores que se dedicaram a analisar os dados quantitativos da pesquisa “Perfil da Juventude Brasileira” (Abramo e Branco, 2005), o desenvolvimento das políticas e da legislação capazes de promover a cidadania do jovem supõe que se busque compreender o sentido de suas experiências, em todos os campos múltiplos e complexos que compõem a vida juvenil, relativamente ao seu contexto histórico e cultural, “evitando partir de expectativas fundadas sobre o comportamento adulto ou o de outras gerações, como se estes indicassem um padrão normal ou desejável” (p. 18). No que se refere à esfera do lazer e da cultura, interesse dessa dissertação, Carrano, Dayrell e Brenner (2005) – pesquisadores que participaram da análise dos dados da referida pesquisa - consideram fundamental que essa esfera seja investigada não numa perspectiva negativa, contraposta à esfera do estudo e do trabalho, mas como campo essencial responsável pela elaboração de identidades pessoais e coletivas, pela formação de valores e referências e pelo desenvolvimento da relação participativa do jovem com o espaço público. Segundo os autores, “é principalmente nos tempos livres e nos lazeres que os jovens constroem suas próprias normas e expressões culturais, ritos, simbologias e modos de ser que os diferenciam do denominado mundo adulto”, daí a necessidade de que o lazer seja considerado como “tempo sociológico no qual a liberdade de escolha é elemento preponderante e que se constitui, na fase da juventude, como campo potencial de construção de identidades, descoberta de potencialidades humanas e exercício de inserção efetiva nas relações sociais” (Carrano, Dayrell e Brenner, 2005, p.176). Foi essa compreensão que guiou meu trabalho de pesquisa com os jovens, conduzindo-me a focalizar que sentidos conferidos ao mangá podem estar se constituindo como marcas identitárias dos modos de ser jovem na contemporaneidade. São esses sentidos que trago neste capítulo a partir dos depoimentos dos sujeitos da pesquisa, interpretados em função de meu interesse de desocultar para a escola as práticas, valores e modos de vida dos jovens. Vale destacar que, como toda interpretação, as que aqui apresento estão relacionadas com a subjetividade relativa ao recorte do objeto de estudo tendo, portanto, um caráter incompleto e provisório. Diante dos dados, elegi como categorias de análise de quatro aspectos presentes nos depoimentos acerca da relação dos entrevistados com o mangá que me pareceram expressar alguns dos modos de ser que identificam a alteridade da experiência juvenil hoje. 59 Minha intenção é contribuir para que os sentidos que emergem dos depoimentos dos jovens, façam sentido também para a escola, auxiliando-a na construção de uma prática educativa intercultural, tal como sugere Orofino (on-line). São esses sentidos que trago nos capítulos a seguir, entendendo como Dayrell (on-line 2) que se a escola e seus professores querem estabelecer um diálogo com as novas gerações, é imprescindível romper com os estereótipos socialmente construídos que impedem que os jovens sejam vistos como realmente são, buscando descobrir como eles vêm construindo um determinado modo de ser jovem. 60 61 62 63 CAPÍTULO III O JOVEM E O MANGÁ: produzindo sentidos sobre a alteridade da experiência juvenil na contemporaneidade 3.1. Mangá e novas competências de leitura: “Eu sempre tenho um mangá na mochila. Qualquer coisa eu pego e leio”. Consumir produtos relativos a mangás constitui-se, também, como uma forma de interação entre os fãs desses quadrinhos e uma fonte produtora de novos sentidos.(sociabilidade) É fundamental apontar aqui a importância de um descentramento do conceito de cultura. Os Estudos Culturais preconizam a necessidade de se reconhecer cultura como não apenas aquela que corresponde à elite letrado-intelectual, mas também a cultura das massas que deve ser entendida como um campo fértil e rico no jogo das significações. Busca-se efetivar o reencontro com a cultura outra, isto é, aquela que não é eleita, estabelecida ou mesmo reconhecida. Todos os jovens entrevistados lêem “muito” mangá, acompanhando uma gama vasta de títulos, alguns com maior fidelidade, outros com o intuito de passar o tempo, não havendo nenhum tipo de grande distinção, sejam alunos de escola pública ou do ensino privado. Na verdade a experiência do mangá parece transcender espaços e momentos, estando presente em diferentes lugares e ocupando um tempo significativo da vida desses sujeitos. Diferente da televisão ou do computador que ocupam um espaço específico, não podendo ser transportados, o mangá na mochila revela-se onipresente, servindo de companhia ao leitor em casa, na condução, na escola, nos espaços de lazer aonde se reúne com outros leitores, como os animencontros, enfim, nos diferentes lugares por onde ele transita. Tudo indica que isso se deve à rede de sociabilidade que está por trás da leitura do mangá. Os rapazes não gostam dos chamados shojo mangás (de temática mais feminina e voltados no Japão especificamente para esse público) defendendo que são “bobos demais”. Entretanto não fazem nenhuma crítica severa, podendo mesmo lê-los quando “não tem mais nenhuma opção”, enquanto as meninas apreciam os shoujo mangás, não demonstrando, entretanto qualquer restrição à leitura de mangás de cunho masculino (shonen mangá). 64 Os títulos mais comuns citados no período das entrevistas foram: “Samurai X”, “Dragon Ball Z”, “Cavaleiros do Zodíaco” e “Shaman King”. “Naruto”, apontado por todos como um anime empolgante, divertido e de grande repercussão, surgiu também como o mangá preferido de três alunos do ensino particular que o acompanhavam via internet - até o dia das entrevistas ele ainda não havia sido publicado no Brasil. Outros títulos que também foram citados, mas com menor expressão foram “Yu Yu Hakusho”, “Blade”, “Evangellion”, “Guerreiras Mágicas de Rayearth” e “Sakura Card Captors”, dois desses (“Rayearth” e “Sakura”) classificados como shoujo mangá. A pergunta sobre que outras atividades prazerosas faziam parte de seu dia-a-dia, de uma maneira geral, tanto os jovens da rede pública quanto os da rede particular referiram-se a “ver TV”, “estar com os amigos”, “jogar videogame”, “escutar música”, “jogar RPG”, “ir ao shopping”, “namorar”. E, enquanto os da rede pública apontaram a prática de esportes (especialmente futebol) como um de seus lazeres preferidos, os da rede privada citaram “navegar na internet” como uma de suas preferências. O fato de tanto os jovens da rede pública quanto os da rede particular se envolverem em práticas semelhantes, como “ver TV”, “estar com os amigos”, “jogar videogame”, “escutar música”, “jogar RPG”, parece estar relacionado à sua identificação com o universo da indústria de entretenimento japonesa. Com relação à TV, a maioria deles referiu-se que sua aproximação aos mangás decorreu da assistência assídua aos animes. No que diz respeito a jogar videogame e RPG, muitas vezes os personagens do mangá são utilizados nesses jogos. Quanto a estar com os amigos, esta é uma experiência que eles demonstraram ser fundamental ao consumo e à recepção do mangá, como será analisado abaixo. O fato de navegar na internet não ter sido citado pelos jovens da rede pública pode ser um indício da característica ainda excludente dessa atividade. Chamou a atenção o fato de nenhum dos jovens ter mencionado a participação em práticas culturais coletivas em espaços sociais públicos, o que denota a escassez de políticas públicas voltadas à cidadania cultural, quanto de não terem relacionado escola e lazer/cultura. Brenner, Dayrell e Carrano (2005), comentando os dados da “Pesquisa da juventude brasileira”, mostram que tanto as escolas ainda estão longe de se transformar “em equipamentos culturais que favoreçam a expressividade juvenil e, ao mesmo tempo, dialoguem com os projetos pedagógicos escolares” (p.182), quanto chamam a atenção para o escasso envolvimento do Estado na promoção de atividades culturais em espaços públicos, indispensável para garantir “a apropriação da cidade 65 como espaço educativo, de encontro e sociabilidade” (p.183). Essa realidade permite colocar em xeque a desconfiança de que a juventude contemporânea cultiva os valores do individualismo, não tendo mais capacidade, como por exemplo a juventude de 68, de se articular em ações coletivas de resistência aos aparatos hegemônicos da dominação no mundo atual. Bem como coloca em suspenso a idéia de que a escola é hoje uma instituição obsoleta incapaz de contribuir para a constituição de subjetividades e identidades críticas. Se, como aponta Sposito (2005), a experiência de vida dos jovens mudou bastante nos últimos 30 anos em função das transformações da sociedade capitalista que incidiram sobre a esfera do trabalho, e portanto, sobre a esfera da escolaridade, Afirmar a desinstitucionalização da condição juvenil como fator positivo na medida em que faria emergir uma nova sociabilidade mais próxima do desejo, da experimentação e da liberdade pode desconsiderar a aspiração por escolaridade, os sentidos atribuídos à instituição escolar e a importância das redes familiares para muitos jovens, sobretudo aqueles que, em decorrência das estruturas desiguais, situam-se na base do sistema social. De outro, poderia eliminar da análise a permanência de certos mecanismos de poder do ‘percurso institucional’ e a emergência, também, de novas formas de dominação que surgem com desenhos diversos na experiência juvenil contemporânea (p.91-2). A distância entre escola e lazer/cultura apareceu na fala dos entrevistados. Quando indagados sobre em qual momento de seu dia eles liam os mangás, a maioria dos entrevistados, não havendo aqui distinção entre aqueles de ensino privado, público ou dos cursos preparatórios, responderam “sempre que possível”, inclusive no horário da escola, isto é, durante as aulas, como indicaram os alunos do curso técnico da escola particular. Pesq: Tem um momento certo para ler mangá? Fábio: O mangá fica na mochila. Ele vai comigo e sempre que tem chance eu leio... Hoje por exemplo tô com “Blade”... Victor: Não... No meio da aula... Toha: É ultimamente tem sido no meio da aula... Terças-feiras, por causa do técnico... As aulas do (M), de matemática têm sido “muito interessantes”... - Risos-. 66 Diogo: Pô, o mangá é muito importante pra mim. Sempre que eu tenho tempo eu leio. Mas nem sempre dá... Porque tem coisas que você tem de deixar de lado, às vezes, para fazer outras. Luís: Eu gosto de ler quando não tem ninguém perto. Na paz do meu quarto... Victor: Toda hora é hora! Essas falas parecem remeter a questões relativas aos desencontros entre jovens e seus professores, à dificuldade que apresentam com a lógica de aprendizagem calcada no livro e no impresso, à falta de interesse com as atividades escolares, entre outras. Referindo-se à importância de que esses desencontros sejam superados, Orofino (online) sugere que, para tanto, a escola precisaria colocar em funcionamento uma prática educativa intercultural que supõe o reconhecimento do papel que as indústrias da mídia, e os múltiplos e contraditórios conteúdos por elas veiculados, desempenham nos processos de constituição das identidades dos jovens estudantes. Esses desencontros também aparecem nas falas dos primeiros jovens entrevistados na fase exploratória do Projeto ao qual essa dissertação está articulada. Indagado sobre se achava o mangá menos importante do que o livro, José põe em dúvida o poder emancipador inquestionável que os intelectuais atribuem ao livro. José: Não, pra mim, não, mas pra outras pessoas talvez seja. Pesq: Pra que outras pessoas, por exemplo? José: Não sei os intelectuais. Pesq: Os intelectuais não consideram o mangá importante é isso? José: É. Mas pra mim conta. Eu acho que a mesma mensagem que o livro traz pra pessoa o mangá também pode trazer só que por outro meio de expressão, de comunicação. E à pergunta sobre porque os professores achavam o livro mais importante do que o mangá, João respondeu sem hesitação: “É, eu sou televisivo. Provavelmente a pessoa não é televisiva, mas aí, o problema é dela e de quando ela nasceu”. Essas falas parecem expressar a tendência da escola de interpretar a leitura “dos outros” à luz de um ponto de vista letrado, como se a leitura do conjunto de textos valorizados pela tradição cultural fosse “um bem em si mesmo, um valor e uma 67 necessidade a ser transmitida e difundida” (Batista e Galvão, 1999, p.18, apud Oswald, 2007). José também explica qual é o meio de expressão do mangá. Para ele: “Ler mangá é como ver cinema. [...] É bem cinematográfico, é como se você estivesse lendo um cinema. Aí é bem legal de ler é bem divertido... É como se você estivesse vendo um filme só que em papel”. Interpretados sob a ótica da leitura do livro, tais depoimentos poderiam ser encarados como alienação provocada pelas imagens midiáticas. No entanto, sob a ótica das novas competências de recepção, que envolvem as ações do ver, do escutar e do sentir (Orozco Gomes, on line), eles fazem sentido. Segundo o autor, a tendência de buscar compreensão para a maneira como os sujeitos interagem com os meios, colocando a tônica na ritualidade própria à leitura do livro, é equivocada, já que ler não é o que define essa interação, e sim ver, escutar ou sentir. Para ele, investigar a relação dos sujeitos com os meios sob a ótica da leitura do livro seria uma herança da “mentalidade ilustrada”, perniciosa porque “tem impedido afinar e matizar conceituações mais apropriadas aos fenômenos que inauguram, como por exemplo as visualidades tecnificadas que inundam as cotidianidades atuais” . O diálogo a seguir, que ocorreu na entrevista coletiva realizada com jovens do Ensino Médio, indica empiricamente o que Orozco Gomes (on-line) diz sobre as competências implícitas à recepção dos meios audiovisuais. À pergunta sobre por que se interessavam pelo mangá, seguiu-se a seguinte conversa. Henrique: O mangá é diferente de tudo que você já viu. Pesquisador: Diferente? João: No mangá os personagens sofrem, ficam felizes... Eles vivem como nós. Com sentimento (...) Os desenhos mostram a emoção. Dá pra ver no olhar deles. Henrique: É como eu já te disse aquela vez, a gente vê e vive aquela emoção junto com o personagem. João: No mangá o desenho diz tudo. É pura emoção! Você vive e se emociona com o personagem. E cresce com ele também... Martín-Barbero (2003) também ajuda a interpretar o que esse diálogo expressa. Segundo ele, o descentramento da cultura ocidental do seu eixo letrado, destitui a primazia não só do papel da escritura e da leitura na ordenação e divulgação dos saberes, mas de todo o modelo da aprendizagem centrada na linearidade e 68 seqüencialidade implicadas no movimento da esquerda para a direita e de cima para baixo. Como ele diz, embora estejamos diante de um descentramento cultural desconcertante, boa parte do mundo escolar ignora este desconcerto. E comenta que “somente colocada em perspectiva histórica, essa mudança pode deixar de alimentar o preconceito apocalíptico com que a escola, os professores e muitos adultos olham a empatia dos adolescentes para com os meios audiovisuais, os videojogos e o computador”. Para o autor, essa atitude não ajuda em nada a entender a complexidade das mudanças que estão atravessando as linguagens, as escritas e as narrativas. E ressalta que são essas mudanças que explicam porque os adolescentes não lêem, no sentido que os professores continuam a considerar o que é ler – apenas os livros. 3. 2. Mangá e sociabilidade: “Cada um tem a sua visão e a gente conversa para entender mais” Analisando os dados quantitativos da já referida pesquisa “Perfil da Juventude Brasileira”, no eixo relativo às culturas do lazer e do tempo livre dos jovens, Brenner, Dayrell e Carrano (2005) mostram que 82% dos jovens apontaram “encontrar com os amigos” como a terceira atividade mais significativa para usarem seu tempo livre, o que demonstra, segundo os autores, a importância da sociabilidade na vida dos jovens. O “tempo livre” torna-se assim um componente fundamental, como destaca Helena Abramo (2005), pois é nele que os jovens exercitam sua relação entre si e com o universo da cultura, onde “a vivência da experiência juvenil passa a adquirir sentido em si mesma e não apenas como preparação para a vida adulta” (p.43). Ainda para Abramo (idem) “(...) a juventude, mesmo que não explicitamente, é reconhecida como condição válida para todos os grupos sociais, embora apoiada sobre situações e significações diferentes. Agora a pergunta é menos sobre a possibilidade ou impossibilidade de viver a juventude, e mais sobre os diferentes modos como tal condição é ou pode ser vivida” (p. 44). Hoje é possível perceber que o jovem conta com uma ampla multiplicidade de instâncias de socialização, que não se limitam apenas à família e à escola, mas abrangem outros campos do lazer e da cultura, principalmente na constituição da sociabilidade, da identidade e da formação de valores. A leitura dos mangás, na presente 69 pesquisa, parece constituir-se na direção da sociabilidade - um dos modos os sentidos que os jovens entrevistados atribuem ao mangá são construídos na relação com o outro, dentro do espaço de mediação do seu grupo de amigos, isto é, de sua comunidade interpretativa. Varela (1999 apud Fernandes 2006) aponta que o conceito de comunidade interpretativa refere-se a união que se estabelece entre um grupo de indivíduos que compartilham de gostos, objetivos, crenças e ideais semelhantes, sendo suas atuações sociais orientadas, em alguns dados momentos, pelo que há de comum entre eles. Diversos elementos do consumo acabam assim sendo compartilhados por um grupo social e passam a ter valor para esse grupo que tem no consumo desses produtos um de seus elementos de interação, troca e produção de sentidos. Tal definição parece se adequar bem aos jovens leitores de mangás que se constituem como um grupo a partir de sua relação com esse artefato da cultura: Pesq: Como vocês começaram a ler mangás? Luís: Eu conheci por causa do anime. Eu assistia “Cavaleiros” e quando saiu o mangá eu quis conhecer. Aí vi que era bem melhor, mais completo. Daniel: Eu conheci através de um amigo meu, que me mostrou o mangá do “Dragon Ball”. Eu conhecia o anime mas não costumava ler quadrinhos. Aí como já gostava da história me interessei em ler. Aí foi “Cavaleiros” “Samurai”... Não parou mais. Toha: Um amigo meu comprou “Cavaleiros”, aí eu vi e “Putz! Nossa! Que da hora!”... Aí eu comprei e nós passamos a acompanhar. A relação dos mangás com os animes parece ser de grande importância na iniciação dos jovens na leitura dos mangás. Ocorre uma circularidade entre o consumo de mangás e animes, onde o consumo de um produto alimenta o outro. Em paralelo é possível perceber também que a mediação de um ou mais amigos fortalece e dá continuidade a essa leitura. O grupo lê troca informações, experiências e passa a estar mais tempo junto. João: Às vezes a gente lê e tem que discutir com o outro para entender melhor. Tem muito da cultura japonesa. Se for preciso a gente até pesquisa. Daniel: Cada um tem a sua visão e a gente conversa para entender mais. 70 Ana: Quando acabou Samurai X eu discuti muito com meu namorado sobre o final. A história marcou muito e na nossa conversa nós entendemos ainda mais o que aconteceu. E isso foi muito legal! Henrique: Todo mundo traz uma informação a mais e isso enriquece muito. Você fica sabendo mais e acaba ficando por dentro de tudo. A troca com outros e o debate sobre o que foi lido parece para esses leitores algo extremamente enriquecedor, significando uma experiência que amplia muito o que se encontra nas páginas da revista. Na verdade, os mangás trazem muitos elementos desconhecidos do leitores ocidentais – seja a cultura oriental ou simplesmente os componentes fantástico-mitológicos - e isso os torna ainda mais atraentes como também instigantes, levando os jovens a pesquisar sobre o que estão lendo. E todos procuram ler para compartilhar experiências para assim fazer parte do grupo. Ramon: Eu converso com todo mundo... Não tem essa de falar só com quem lê mangá. Toha: Eu lido com os caras daqui e com o pessoal de lá – aponta para onde seria a outra turma – que curte outras paradas... Aqui eu falo de anime e mangá e lá de outras coisas... Henrique: Mas quando a gente tá aqui conversando sobre mangá e anime e vem alguém de fora... Toha: Um não-iniciado! (Risos) Henrique: É isso aí! Um não-iniciado, ele fica perdidinho... Vanessa: É verdade. Quando eu comecei a ler “Samurai” eu pude conversar mais com o pessoal aqui O uso do termo “não-iniciado” pelo próprio jovem destaca como a questão de pertencimento ao grupo é forte e que membros da mesma comunidade interpretativa compartilham experiência e significados que estreitam a união e a amizade entre seus membros. À pergunta sobre com que freqüência liam mangá, detonou ainda mais respostas que apontaram para a importância da rede de sociabilidade relativa a essa prática: Luis: Diariamente. Coleciono oito. Tipo assim, eu racho com o meu primo, tá entendendo? Meu primo compra quatro e eu compro quatro. 71 Toha: Ela racha com a sala toda - Todos riem - Se ela [a Vanessa] cooperar, eu leio todo dia. Se ela esquecer, eu passo um dia sem ler. Pesq: Você não compra os mangás? Toha: Eu tive que parar, porque não me sobra dinheiro. Eu tava comprando “Blade”, que são R$5, 20, mas agora com namorada, acabou que eu fico sem dinheiro mesmo. Aí eu fui buscar assim: pegar Samurai X emprestado, pegar “Shaman King”, vou começar a pegar “Blade” com ela também, mas se eu puder ler todo dia, eu vou ler todo dia. Desde que sejam os mangás que eu gosto. Daniel: Eu leio mangá sempre que dá (...) Eu compro Samurai, Blade e o resto eu leio dos meus amigos. Eles também lêem os meus e assim todo mundo lê tudo e ninguém perde nada. Fábio: Mangá tem ficado muito caro, né? Mas a gente sempre dá um jeito e pega emprestado ou o cara te conta... Eu leio sempre que posso, principalmente quando volto do curso (...) Mas eu não leio qualquer coisa, só por ser mangá... Leio o que eu gosto. É possível perceber pelos depoimentos dados que o consumo é marcado por momentos de troca dos próprios produtos e de rico debate acerca do que é lido. A leitura dos mangás surge nas falas como uma atividade importante e enriquecedora, que leva os jovens a desenvolverem estratégias como compartilharem suas edições ou mesmo comprarem em conjunto para assim terem acesso àquilo que lhes dá tamanha satisfação. Outro exemplo de socialização dos jovens devido ao seu gosto pelo mangá são os chamados “animencontros”, onde fãs se reúnem para adquirir revistas e vídeos de seus mangás e animes preferidos, mas principalmente para encontrar com outros fãs e viver em conjunto a experiência de ler mangás e assistir animes. Fig. 10 Jovens reunidos em um animencontro ocorrido na UERJ, em outubro de 2005. 72 Fig. 11 Jovens em animencontro realizado no Esporte Clube América, em maio de 2006 Nesses encontros não é raro ver vários jovens reunidos pelos corredores, lendo mangás e/ou discutindo os eventos ocorridos em seus títulos preferidos. Também existem grandes salas onde centenas de jovens se amontoam para assistir episódios das mais diferentes séries de animes, muitos deles pela terceira ou quarta vez, só pela experiência de ver em conjunto. Pesq: Você estava na sala de exibição? Daniel: Tava. Pesq: Era “Cavaleiros” né? “Prelúdio do Céu”. Daniel: Era. Pesq: Foi bom? Daniel: Foi. Mas eu já tinha visto com um amigo. Pesq: E viu de novo?!? Daniel: Claro! É muito maneiro... E aqui eu vi com geral. Pesq: Com “geral” é diferente? Daniel: Claro. Aqui a gente vibra junto, zoa, grita... E depois ainda tem os comentários. Tem sempre alguém hilário. 73 Mas não somente existem mangás e animes nesses animencontros. Além de comidas típicas japonesas ocorre ainda um já tradicional “concurso de cosplayers” (fãs que se fantasiam de suas personagens preferidos dos mangás e animes e desfilam em uma competição que define o “cosplayer” mais fiel à personagem) e o anime daiko (evento de dança coletiva e coreografada que conta com a grande participação dos fãs presentes, que dançam ao redor de percussionistas que tocam as músicas-temas dos animes mais populares). Fig. 12 Cosplayer da personagem Zabuza Momochi, de Naruto. Fig. 13 Cosplayers das personagens Spike, de Cowboy Beebop e Itachi Uchiha e Kiba Inuzuka, também de Naruto. 74 Fig. 14 Cosplayers das personagens Link, de Legend of Zelda e Sumo-sacerdotisa, de Ragnarok. Fig. 15 Músicos do Anime Daiko, que se apresentaram em um animencontro na UERJ, em outubro de 2005. 75 Fig. 16 Músicos do Anime Daiko em ação enquanto os jovens presentes dançam em uma grande roda músicas-tema de animes, na UERJ, em outubro de 2005. Os mangás (e animes) parecem assim significar um tipo de catalisador que agrega os jovens que vivenciam a cultura do mangá, possibilitando uma ampla troca que leva à produção de sentidos. Quando vemos um filme ou lemos um romance não temos a necessidade de dividir com outras pessoas aquilo que vivenciamos? Não nos importamos em saber também o que outro achou? Os jovens buscam justamente compartilhar entre si as experiências que vivem ao lerem os mangás, e essas parecem ser tremendamente ricas, tendo em vista ocorrerem tantas manifestações diferentes que expressam sua relação com este produto da cultura. Acima de tudo, parece claro que é no grupo, isto é, na troca de experiências com outros jovens que ocorre a produção de sentidos. Além dos animencontros, outro espaço de socialização dos jovens leitores de mangás é a internet. Sites de relacionamento, como o orkut, abrigam centenas de comunidade de fãs de mangás, algumas chegando a ter mais de cento e cinqüenta mil integrantes. Existem os mais diferentes tipos possíveis de comunidades criadas pelos próprios leitores: para fãs de determinados títulos e/ou heróis; daqueles que gostam de desenhar mangás; os que rejeitam qualquer tipo de estereotipação por serem leitores; aqueles que detestam certa personagem; de colecionadores dedicados e muitas mais. 76 Fig. 17 Comunidade no Orkut referente a um título de mangá de grande popularidade: Rurouni Kenshin (128 membros). Fig. 18 Comunidade no Orkut de leitores fãs de mangá (33.312 membros). 77 Fig. 19 Comunidade no Orkut de pessoas que lêem mangá na sala de aula (9.364 membros). Em tais comunidades ocorre um amplo debate sobre os mangás e assuntos correlatos. Por um sistema de tópicos, destinados a discutir temas referentes a comunidade em que se está, os leitores postam suas impressões e idéias constituindo assim um espaço de alta circularidade destinado a compartilhar experiências a partir do debate, com acesso 24 horas. Fig. 20 Fórum de discussão no Orkut entre leitores de mangá. 78 Assim, é possível perceber que o consumo e a recepção desses produtos acontece e se institui na coletividade, onde a comunidade interpretativa pode ser identificada como uma significativa mediadora, talvez a principal, da produção de sentidos sobre o mangá. Mais uma vez vale destacar que tal prática de lazer, tida pelos “adultos” como sem valor algum se revela um valioso momento de constituição da identidade do jovem, rompendo com a idéia de juventude como um tempo de “vir a ser” e lhe conferindo sentido próprio, já no tempo presente. Carrano, Dayrell e Brenner (2005) parecem consoantes com tal interpretação ao destacarem que “Nos espaços de lazer, os jovens podem encontrar as possibilidades de experimentação de sua individualidade e das múltiplas identidades necessárias ao convívio cidadão nas suas várias esferas de inserção social. As diferentes práticas de experiência coletiva em espaços sociais públicos de cultura e lazer podem ser consideradas como verdadeiros laboratórios onde se processam experiências e se produzem subjetividades.” (p.177). 79 80 81 CAPÍTULO IV IDENTIFICAÇÃO E EXPERIÊNCIA NOS MANGÁS: Novos heróis e novas narrativas para um novo jovem 4. 1 – O Herói no mangá e o herói além das páginas: “O herói é assim mesmo, tão diferente e ao mesmo tempo tão igual a gente” Com base nas entrevistas encontrei muitas vezes termos como “personagens humanos”, “heróis realistas”, “uma história boa” e o fato de “dizer alguma coisa” como pré-requisitos fundamentais para o consumo regular de um certo título de mangá. Respaldado em Canclini (1999) que diz que “o consumo serve para pensar”, não sendo fruto de atitudes irrefletidas de sujeitos que se deixam cooptar irresistivelmente para as mercadorias, tais alusões me levaram a crer que estes jovens não consomem mangás por consumir, mas selecionam aquilo que vão ler a partir de uma lógica que tem relação com o que eles significam como fundamental aos seus modos de ser. Pesq: Como se escolhe um mangá para ler? Daniel: Bom, eu leio o que aparece na minha frente... Meio para ver como é. Mas só continuo acompanhando aqueles que eu acho legal, com mais ação, que tenha uma história boa... Fábio: Comigo é igual. Mas tem que dizer alguma coisa para que eu continue acompanhando. Ramon: O mangá tem que ter história e isso eles têm muito. Henrique: A maioria. Não são todos. Ramon: Claro. A gente acompanha aqueles dizem algo pra gente Atualmente os jovens revelam uma nova organização de pensamento que emerge de um conjunto de novas experiências que estão intrinsecamente associadas à cultura da mídia em que vivemos. Entender e interpretar este novo universo cultural permite que possamos compreender melhor também as crianças e os jovens de hoje. Dentro desse contexto é possível verificar que ao longo dos últimos anos os mangás têm se popularizado enormemente no mercado de revistas e livrarias das grandes cidades, assim como também, ao que tudo indica, os mangás vêm se tornando os quadrinhos 82 mais populares entre os leitores, superando até mesmo os tradicionais comics americanos, atraindo a atenção de crianças, jovens e adultos. Mas o que torna um mangá tão atraente? Porque cada vez mais jovens lêem mangás e se sentem atraídos por essa narrativa de entretenimento? Enfim, que significado os mangás possuem para os jovens leitores? E principalmente: quais significados seus leitores produzem a partir de sua leitura? Responder a essas perguntas pode ser uma maneira de compreender melhor o modo pelo qual a experiência juvenil se expressa. Ainda são poucas as pesquisas que focalizam a recepção e as mediações a partir das quais os sujeitos produzem sentidos sobre os mangás, além de eu não ter encontrado nenhum estudo que contemple as mediações que levam crianças e jovens a se identificarem com o novo arquétipo do “herói” forjado nos quadrinhos japoneses, daí a provisoriedade da interpretação dos dados que apresento, na esperança de que esse trabalho possa servir de abertura ao diálogo com escolas e professores que, porventura, tenham leitores de mangá entre os alunos. Apesar de existirem diversos títulos de mangás, onde se destacam diferentes temáticas, alguns elementos essenciais parecem estar sempre presentes nesses quadrinhos, definindo sua narrativa e conferindo-lhes características bastante peculiares e atraentes. Tendo como objetivo melhor compreender a relação dos jovens com os mangás e buscando verificar os sentidos que estes jovens produzem - como receptores ativos e produtores de cultura na sua relação com os meios - utilizo a figura do “herói”, arquétipo presente em todas as culturas e nas mais diversas narrativas ao longo do tempo, como eixo de análise, tendo em vista a constante recorrência dessa figura na fala dos jovens entrevistados. Uma vez que os “heróis” nos mangás revelam características universais e singulares minha intenção foi descobrir como este símbolo universal que é o “ser heróico”, tão presente nas falas dos jovens entrevistados, pode estar constituindo os modos de ser dos fãs de mangá. 4.2. (Re) conhecendo um herói: “Os mangás tentam focar mais a pessoa normal de cada dia, o ser humano. Um herói mais humano”. O herói é uma figura que reúne em si os atributos necessários para superar de forma excepcional um determinado problema de grande dimensão. Ele difere dos demais indivíduos comuns pela sua capacidade de realizar proezas que exigem a 83 abundância de alguma virtude crucial aos seus objetivos – fé, coragem, vaidade, orgulho, força de vontade, determinação, paciência etc. A análise da figura do “herói” nos mangás exige que investiguemos os dois principais modelos arquetípicos de heróis que se conhece: o “herói épico”, presente nos mitos da Antigüidade, e o “herói da cultura de massas”, ou simplesmente “anti-herói”. 4.2.1. Os heróis no mito Apesar de possíveis controvérsias quanto à origem e características do herói, não é muito difícil estabelecer um perfil deste guardião. O herói é um arquétipo que está presente no inconsciente de toda a humanidade. Na verdade, a existência de “heróis” constitui-se como uma necessidade psíquica universal. Através da figura do “herói” reafirmamos valores e crenças fundamentais para a humanidade. O herói tem sempre o dever mais difícil e incomum. Uma missão na qual os deuses, por serem onipotentes e habitarem uma esfera tão distante, não podem intervir. O herói, que é mortal, ao cumprir sua tarefa torna-se um modelo psíquico que se repete, infinitamente, no imaginário de todos - como o conceito formulado por Jung onde padrões de comportamento que fazem parte do inconsciente coletivo são compartilhados por toda a humanidade em todos os tempos. O herói épico revela uma personalidade dual e contraditória, centrada na tensão de opostos que irá levá-lo a aventuras estranhas, assinaladas por glórias e falhas, vitórias e derrotas. Ainda que seja virtuoso o herói também é repleto de carências e, mesmo após conquistas memoráveis, ele estará fadado a falhar em algum momento, quando justamente toda sua trajetória, desde o início, é ameaçada. No mito o herói passa sempre por ferimentos e sofrimentos de diferentes níveis. São provas difíceis em que ele é iniciado na trajetória de aventuras que o levarão a adquirir sabedoria e humildade. Tal quadro reproduz a unidade nuclear de toda aventura do herói, que implica uma mini-narrativa mítica que pode ser assim condensada: Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de desafios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e conquista uma vitória decisiva; o herói retorna então de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. (Campbell, 1997). Esse processo se dá numa trajetória de altos e baixos que irão marcar o amadurecimento do herói e seu reconhecimento como tal. Chama-se catábasis, palavra 84 grega que designa descida, submersão, o momento em que o herói conhece as trevas: uma viagem ao deserto, a exploração da caverna do dragão, etc. Todo esse sofrimento, até mesmo a morte, simbólica, do herói, é reversível e configura-se como o momento de “queda” do herói. Todavia a catábasis sempre é sucedida por uma anábasis, subida, emersão, é quando ocorre a renovação moral e física do mesmo. Aqui o herói conquista o tesouro, a espada mágica e a princesa perdida, alcança a maturidade interior e renova-se. O estudioso das religiões Joseph Campbell (1997) elaborou a estrutura básica do mito heróico que seria seguido por todos os heróis de todos os tempos e culturas. Segundo Campbell a aventura do herói pode ser dividida em fases elementares, pelas quais todo herói deveria passar. São estas: 1.“o nascimento complicado”; 2. “a iniciação”; 3. “o chamado da aventura”; 4. “o auxílio sobrenatural”; 5. “as provas iniciáticas – catábasis – e a luta contra o monstro”; 6. “o retorno - anábasis – e o casamento”; Campbell nos diz que o mito do herói segue sempre um padrão arquetípico, segundo os moldes da psique humana, onde tal mito corresponde simbolicamente ao próprio desenvolvimento da consciência do homem, individual e/ou coletiva, e é exatamente isso que nos permite seu reconhecimento. Deixando os épicos para trás, vamos observar como a estrutura elaborada por Campbell para o herói antigo encaixa-se perfeitamente em heróis modernos. Temos como exemplo Kenshin Himura, personagem-título do mangá “Samurai X”, muito citado entre os leitores entrevistados. Em seu caminho o “samurai andarilho” segue rigorosamente a estrutura simbólica apontada por Campbell: Kenshin tem seus pais mortos quando ainda criança Fig. 21 - 1. “nascimento/surgimento trágico”. 85 Seu pai adotivo, Seijuuro Hiko, torna-se seu protetor, guardião e mestre, oferecendo ao pupilo a sabedoria e as técnicas necessárias para o desenvolvimento das habilidades do futuro retalhador; Fig. 22 - 2. “educação iniciática”. 86 A ameaça de uma guerra, prestes a se iniciar através da figura de um outro retalhador (Makoto Shishio), leva Kenshin a abandonar seu exílio e lutar novamente. Fig. 23 - 3. “chamado da aventura”. 87 A necessidade de uma nova espada, ainda mais forte, e o retorno ao antigo mestre para aprender uma técnica secreta... Fig. 24 - 4. “auxílio sobrenatural”. ...Acabam conduzindo Kenshin a inúmeras batalhas, onde a mulher que ama, Kaoru Kamiya, é supostamente assassinada. Fig. 25 - 5. “catábasis do herói”. 88 Após se defrontar com seus maiores medos, Kenshin resgata em si a força necessária para, finalmente, confrontar seu algoz, descobrir que sua amada ainda está viva e assim reafirmar seu voto de nunca mais matar novamente, podendo viver em paz. Fig. 26 6. “o retorno e o casamento”. Assim percebemos que Kenshin percorre todas as etapas do herói mítico e revela ao longo de sua trajetória muitos elementos que são facilmente reconhecidos por todos nós, pois se comunicam com nosso inconsciente, tornando sua aventura legítima e satisfatória. Na verdade os heróis nos mangás costumam revelar essas características e isso faz com que sejam amplamente valorizados Bya: O herói tem a pretensão de ser um... O Kenshin não. Ele acaba se tornando [herói] ao longo da história e no final das contas ele não liga se ganhou, se o importante é fazer o bem. 89 Fábio: O herói nos mangás são movidos por um ideal maior, diferente dos outros. O Goku tem uma força extraordinária, treinou com todos os mestres que existem... A história dele começa com ele criança e conta toda a vida dele. Toha: O Goku é demais, né cara? Eu adoro o Goku! Eu cresci junto com ele. Vi ele ficando mais forte, aprendendo mais. Teve até o momento em que ele fica doente e quase morre... Mas depois ele volta ainda melhor e cumpre a missão de ajudar a todo mundo! Muitos outros mangás seguem a estrutura elaborada por Campbell, não sendo essa uma característica exclusiva de “Rurouni Kenshin” ou “Dragon Ball”. E, muito possivelmente, isso não se dá de forma sempre intencional e planejada, uma vez que tal estrutura parece existir na psique de todos nós, tanto que, quanto mais próxima a narrativa está desse modelo, mais gostamos da história (afinal é maior nossa identificação). Talvez isso explique porque cada vez mais leitores encontram-se atraídos pelos heróis dos quadrinhos japoneses. Já os heróis presentes nos comics americanos possuem uma trajetória indeterminada (muitas revistas são publicadas há mais de quarenta anos...) tornando seus protagonistas apenas figuras emblemáticas de histórias descartáveis, para consumo rápido, perdendo de vista, muitas vezes, os elementos fundamentais elaborados por Campbell. 4.2.2. O herói na cultura de massa ou anti-herói. O herói da cultura de massa é o herói do período em que vivemos e que alguns chamam de anti-herói. É aquele que hoje tem destaque como protagonista na maioria das obras de literatura, no cinema, quadrinhos e nas novelas que invadem nossas casas. Ele não é inumano, não está distante do cotidiano, não é agraciado por nenhuma força externa excepcional e, em uma primeira vista, não possui qualquer habilidade especial. O herói da cultura de massas é na verdade, apenas, o protagonista da história. Trata-se de um cara comum, como eu ou você. E talvez seja justamente esta alta humanização a principal característica deste “anti-herói” de nossos dias. O “anti-herói” é justamente aquele que protagoniza atitudes referentes às do herói clássico, mas que não possui vocação heróica ou que realiza as façanhas por motivos egoístas, de vaidade ou de quaisquer gêneros que não sejam altruístas. Espera-se que ao se acompanhar a trajetória deste protagonista o leitor/espectador sinta que aquilo que se passa com o personagem poderia ocorrer também com ele. Trata-se da 90 aventura/circunstância acessível, que poderia ocorrer com qualquer um, não somente com o herói eleito, de atributos notáveis. A figura do herói contemporâneo é menos estável que a do herói clássico. Humberto Eco, referindo-se à figura do Super-homem, mostra que este herói vive a continuidade de suas aventuras no tempo presente e não tem, como os heróis antigos um repertório fixo de aventuras já vividas e que são narradas repetidamente (Eco, 1990, p.249-51). Desta forma, o personagem ficaria menos mítico porque estaria sujeito aos imprevistos do dia a dia, como todos nós. Suas histórias não têm uma seqüência cronológica, mas, como ocorre com os sonhos e seus saltos de temporalidade recomeçam sem um fio temporal definido. (NAVES, p.129, 2002). O herói da cultura de massa é criado pela ocasionalidade, quase acidentalmente, é o sujeito absolutamente corriqueiro que ganha notoriedade dentro de uma determinada trama. Enquanto o herói épico tem uma missão a cumprir, tem que vencer algum obstáculo ou chegar a algum lugar, o herói das massas deseja apenas sobreviver à situação difícil em que se encontra para retornar ao cotidiano de sua vida. Este herói pós-moderno tem em suas fraquezas suas características (humanas) mais excepcionais. Não age por ninguém, mas em causa própria, e suas razões são geradas ao longo do próprio enredo. Estes elementos constroem o protagonista do objeto cultural na cultura de massa. Sua principal característica é a identificação com a pessoa que lê o livro ou assiste ao filme (poderia ser você tomando banho atrás da cortina de plástico enquanto o assassino se aproxima, como em “Psicose”). É fundamental que esse protagonista seja mundano, e dessa mundaneidade desempenhe um emocionante papel, pois essa é a exigência da própria sedução existente neste “humano herói”. Os mangás, como produtos dessa cultura de massa, obviamente também possuem em suas narrativas “heróis”, ou simplesmente protagonistas, com estas características. É o sujeito comum que, de repente, tem seu cotidiano transformado por um conjunto de eventos que o empurram para uma nova condição, que o leva a superar seus próprios limites e, na maioria das vezes, lutar para sobreviver e salvar aqueles que ama. Não é possível esquecer que, a princípio, este protagonista era um sujeito comum, com uma vida comum e ainda que de uma hora para outra tudo vire de ponta cabeça, ele continua sendo um ser humano com sentimentos, idéias e desejos, acertos e falhas, como qualquer outro. 91 Pesq: Você acha que os heróis dos mangás são super-heróis? Ana: Não... Acho que super-heróis são seres indestrutíveis, sem defeitos...E eles não... Eles tem alguns defeitos e podem ser destruídos. Acho que é por aí... Vanessa: (...) É um herói que, por vezes, não tem nada de herói. Por exemplo, eu tava vendo Naruto outro dia...o garoto parece um idiota... Ele é um idiota total. Ele só faz besteira, ele só quer chamar a atenção das pessoas, mas ele não é aquele estereótipo que “eu vou salvar o mundo”. Na verdade, a fala desses leitores revela um herói nada convencional, que mais se aproxima do protagonista da contemporaneidade, ou simplesmente o anti-herói. Seus objetivos não são nada nobres, assim como os meios para que eles sejam atingidos. Vanessa: Ele – o mangá - tá falando de um herói diferente. Geralmente, quando você vê no herói tem aquela coisa de querer salvar o mundo, mas no o Yu-yo do “Shaman King” você não vê isso. Que ele quer o quê pra vida dele? Ele quer um sonho meio impossível... Ele quer deitar numa rede e ouvir a música o dia inteiro e não fazer nada da vida...Esse é o sonho dele, entendeu? Ele não quer salvar o mundo e coisa e tal. Ele só quer virar o “Shaman King”, que é o rei supremo lá dos espíritos, pra ele encontrar sua vida tranqüila, para não ter que trabalhar, para não ter que fazer porcaria nenhuma na vida, entendeu? Henrique: Saito - uma das personagens de “Samurai X” – é um herói diferente. Ele quer destruir Shishio mas do jeito dele. Ele não se envolve muito com o Kenshin e seus amigos. Ele ainda acha que o Kenshin é um fraco por não matar. Toha: No Dragon Ball o Goku vai ficando cada vez mais forte, ganha várias habilidades, mas ele não perde a sua essência. Ele continua sendo o mesmo Goku brincalhão e comilão de sempre – risos –Ele é muito parecido com qualquer pessoa, só que tem o poder... Ele tem um coração enorme e apesar de tudo que ele conquistou você sabe que ele ainda é mortal. Esse é o grande barato! Nos mangás este “herói circunstancial” pode adquirir inúmeros poderes ou habilidades para superar a adversidade em que se encontra, mas ele continuará sendo o mesmo indivíduo de antes que deseja apenas uma vida normal, pelo menos até que sua jornada o leve a desenvolver uma visão diferente acerca do mundo, dos desafios que tem vivenciado e do tanto que pode realizar (e estas são também características bastante peculiares dos quadrinhos japoneses). 4.2.3. Herói Épico + Anti-herói = Herói dos mangás A partir do que verificamos, o herói nos mangás é capaz de conservar elementos tanto do herói épico, presente nas narrativas míticas da Antigüidade, como também 92 características do herói pós-moderno, produto da cultura de massas. Assim nos resta perguntar, o que caracteriza o herói nos mangás? Como será que os leitores vêem realmente este herói? As falas de jovens leitores, que acompanharam a saga de Kenshin, Goku, Yu-yo e muitos outros, podem lançar luz sobre esta questão: Vanessa: Eu acho que, em parte, ele é sim [o herói], porque é um herói que, por vezes, não tem nada de herói (...) ele não é aquele estereótipo que “eu vou salvar o mundo”, ele faz mais aquilo porque ele acha que é certo ou ele acha que é favorável para ele. Pesq: Kenshin é o herói? Um super-herói? Ana: Não sei... Quem lê tem a impressão que sim porque ele luta pelo bem e não mata mais... Mas no fundo ele também tem defeitos, já foi uma pessoa que fez muito mal a outras pessoas e ainda pode fazer escolhas nem tão boas assim. (...) Quando pensamos num super-herói pensamos no super-homem, no lanterna-verde, caras que já tem poderes praticamente dados. O Kenshin não. Ele não tem a pretensão de salvar tudo e todos... Só está do lado certo, fazendo o bem. A fala apresentada destaca o caráter humano das personagens do mangá e como a ocasionalidade e um conjunto de dificuldades acabam conduzindo-o para uma posição de destaque. Os heróis nos mangás possuem características em comum com os dois modelos que analisamos. Apesar das infinitas possibilidades de temas para se desenvolver a narrativa, o herói apresenta-se nos mangás, quase sempre, como os protagonistas das histórias de hoje. Trata-se do ser humano comum, com qualidades e defeitos e que, na grande maioria das vezes, só quer seguir em paz com sua vida. Essas características constituem-se como um primeiro passo fundamental para que haja a identificação do leitor com a personagem. Estabelece-se aí um pacto, uma relação de igualdade, onde leitor e o personagem seguem juntos pelas páginas da revista o caminho daquela aventura. Afinal, tudo aquilo poderia acontecer com o próprio leitor. Aconteceu com a personagem... Bya: Acho que as coisas que ele faz [Kenshin] as coisas em que acredita meio que tornam ele um herói (...) tem a honra do samurai, que ele tem de sobra. Ele não mata nem os inimigos, pois fez um voto pra não matar mais... Acho que isso ensina as pessoas a não tirarem conclusões sobre outras só olhando para elas. Ramon: O Goku luta porque quer se tornar o mais forte. E no meio desse caminho, desse objetivo, ele vai ajudando as pessoas. Ele às vezes tem que fazer escolhas e lutar mesmo quando não quer. E isso não é fácil... Não é simplesmente lutar e pronto. A luta tem um motivo. Tem que ter. Pelas fala desses jovens é possível perceber que a tão discutida “violência gratuita” parece não existir, pelo menos para eles, nos mangás. Apesar das fortes imagens, com seqüências de ação e luta bastante intensas, esses jovens acreditam que existe uma motivação maior que leva às batalhas e estas não podem simplesmente acontecer por si próprias. Eles destacam um conjunto de valores que parecem estar 93 sempre em jogo: honra, coragem, respeito, boa vontade em socorrer aqueles que precisam. Tratam-se de valores que eles destacam como importantes e comuns a todas as pessoas. Valores que humanizam e aproximam os heróis deles próprios. Toha: É diferente das revistas em quadrinhos americanas que o cara já é super inteligente, tipo Batman. O cara é o “Senhor Inteligência” (...) Bya: Comum? [falando sobre Kenshin] Acho que sim... Acho que qualquer um poderia ser como ele. De repente não em lutas, mas em atitudes. Henrique: Acho que a força dele, a determinação que tem para salvar as pessoas... Eu acho que a força dele é o que menos importa, acho que o que mais importa é a coragem dele e às vezes vem alguém mais forte que ele e, mesmo assim, ele quer ajudar aquela pessoa, botando em jogo a vida dele, a espada dele para salvar aquela pessoa. Outras características importantes também identificadas pelos leitores remetem à outra dimensão heróica, esta de perfil épico: Toha: (...) No mangá, o cara sempre se ferra, ele é o último a conseguir, ele só consegue no último segundo, ele vai descobrindo no meio da luta. Luis: É... Você acompanha o progresso do personagem Ana: O Kenshin vai crescendo ao longo das aventuras... Ele só quer ficar em paz... Mas as coisas vão acontecendo e ele é tirado da vida que queria para recomeçar a lutar. Ele tem que proteger as pessoas que ama e seus ideais e para isso enfrenta muitas provações... E é difícil pra caramba para ele preservar o que acredita. (...) Apesar de toda força que ele tem o caminho dele não é fácil... Chega até a pensar que perdeu quem mais ama... Mas no final, quando ele retorna para a tranqüilidade que queria ele não é mais o mesmo. Não só salvou as pessoas, mas também se transformou. Cresceu mais! Como visto pela fala desses jovens, o personagem heróico do mangá se aproxima também do herói épico, pois irá percorrer toda a trajetória, toda a estrutura apontada por Campbell (1997), e por fim não será mais o mesmo que iniciou a aventura. Ele não é um eleito pelos deuses, como o herói mítico (que muitas vezes nasce destinado a cumprir uma missão), esse herói relutante é arremessado para dentro da aventura, dos problemas, e terá que sair por conta própria. E nesse processo de escapar/enfrentar as adversidades é que ele gradativamente abandonará a posição de simples protagonista e se tornará um verdadeiro herói. Na verdade, os mangás parecem trabalhar com a idéia de que todos temos um grande potencial dentro de nós e, assim, todos podemos nos tornar heróis. Até o indivíduo mais comum quando colocado sobre circunstâncias adversas pode despertar o que há de melhor em si, revelar atributos e 94 valores até então desconhecidos e assim realizar o bem para o mundo e para aqueles que ama. O herói dos mangás sempre começa sua jornada a partir de um evento extraordinário (quando recebe o “chamado para a aventura” – como na primeira fase apontada por Campbell). Nesse momento ele ainda é apenas o protagonista e encontrase perdido e aflito, como se desejasse que nada de diferente tivesse acontecido em sua vida (assim como o herói da cultura de massa). Com o desenrolar das situações e dos problemas, ele inicia uma busca para mudar as coisas e acaba que a situação é pior do que parece e aqueles que lhes são caros correm risco. É a partir desse momento que o protagonista começa a percorrer os demais passos apontados por Campbell e, gradativamente, começa a desenvolver um senso de dever que o aproxima da coletividade e lhe permite, no fim, tornar-se um verdadeiro herói. Entretanto, em nenhum momento esse herói torna-se onipotente ou perde as características emocionais e psicológicas que o humanizam e o distanciam do “herói de papel” do ocidente. 4.3. O jovem como herói de mil faces: “Muitas vezes eu vi a minha vida no mangá e lá encontrei respostas, caminhos...”. De acordo com o que foi possível perceber, não só os modos de ser dos heróis do mangá determinam a preferência dos leitores pelas HQs japonesas, como os inspiram a ser como eles em suas experiências cotidianas. Além disso, os jovens usam os personagens para entender o que se passa com eles na vida. José: Sempre que eu leio o Mangá, eu acabo me identificando com alguns dos personagens (...) aí sempre que eu leio Mangá eu fico meio motivado a fazer as coisas que ele faz, tipo seguir adiante, é uma coisa que vem ás vezes eu fico feliz no momento, mas eu nunca procuro porque a coisa não pode ser forçada, eu não vou atrás, tipo agora eu vou ler este Mangá aqui pra ver se eu me identifico com tal personagem, você vai e acontece, isso é que é legal. Se eu fosse procurar um personagem pra eu me sentir identificado, motivado... É tudo meio que inconsciente: você vai ler o Mangá porque você gosta e você acaba ficando identificado. O presente quadro indica que a experiência social está mudando profundamente e os valores de nossa sociedade estão sendo fragmentados e rearticulados. Mais do que manipular a mídia, os publicitários parecem saber observar e descobrir os desejos das audiências. Isso se torna evidente na própria construção dos heróis nos mangás, 95 principalmente no que tange às características deste “novo” herói comum. O herói que pode ser qualquer um, até o próprio leitor, atende a uma demanda de sedução dessa indústria e estabelece pactos identitários que garantem a ligação entre leitor e personagem. Entretanto, como aponta Martin-Barbero (1995), temos de estudar não o que fazem os meios para as pessoas, mas o que fazem as pessoas com elas mesmas, o que elas fazem com os meios, com a sua leitura. A recepção não é programável e o receptor não é uma vítima manipulada dessa recepção. Assim o mangá parece trazer para seus leitores elementos novos para serem pensados. O herói dos mangás parece trazer consigo um ensinamento, um princípio que parece um tanto perdido. E como a fala de alguns jovens parece demonstrar é possível aprender com este herói. Ramon: É o mangá tem uma coisa que as pessoas não encontram em outros lugares é por isso que as pessoas que lêem mangá gostam muito e se sentem muito bem com ele (...) Vanessa: Quando eu leio o mangá eu procuro ali dentro uma filosofia (...) ele [a personagem dos mangás] - é um ser humano, ele tem vida, ele tem passado, tem presente, tem problemas, ele sofreu, ele tá crescendo, ele tá ali se desenvolvendo junto com você, ele tem uma história pra te contar, ele tá te mostrando a vida dele, então você lê.... A busca por uma filosofia e o reconhecimento de uma trajetória de vida dos personagens sinaliza como o mangá é importante para seus leitores e como, de alguma forma, eles parecem “viver” com o personagem sua jornada, onde ambos aprendem algo ao longo do caminho. A identificação com o herói leva ao resgate de alguns valores que se encontram aparentemente perdidos, permitindo aos leitores pensarem sobre suas vidas e, a partir das experiências vividas pela personagem, eles mesmo também parecem aprender. Ana: (...) Kenshin fala sobre váááárias coisas que também são valores e tal... Bya: O mangá costuma ter muitas lições... Aqui às vezes passa sem as pessoas perceberem, mas a gente aprende muito com eles. Pesq: O que se aprende com mangá? Bya: Acho que alguns valores perdidos... Amizade, lealdade... Não tratar os outros diferentes só porque não estão na mesma condição que você... Ana: Esse lance de você ser o que quer ser e não como o mundo te vê... Os valores... O “fazer o bem sem olhar a quem”... Muita coisa. 96 No caso dos heróis presentes nos mangás o que desejamos destacar aqui é justamente a importância da análise dos sentidos produzidos por estes leitores, isto é, me interessa buscar quais elementos os levam a identificar-se com um ou outro herói. Pesq: (...) o que Kenshin te ensinou? Bya: Ah, ele dá muito valor as amizades dele, quer o melhor pra eles... E isso é importante... Ele é honrado... Ele não trata as pessoas com superioridade só porque é mais forte ou mais velho. Pesq: Para você, o mangá “Samurai X” é uma história sobre o quê? Seria Kenshin lutando pelo Japão? Bya: Não, acho que é mais profundo que isso... Às vezes acho que é sobre amizade, às vezes sobre... Não sei como dizer isso... Ah, tipo... Às vezes acho que é sobre uma “viagem interna” de uma pessoa... Ela se descobrindo ou descobrindo coisas importantes pra ela. (...) Eu tenho algumas coisas que achei importante em Kenshin, e tento manter isso... Como a amizade, por exemplo... Os jovens leitores reencontram nas páginas dos mangás valores hoje distantes de seu cotidiano. A experiência da leitura do mangá parece conduzir justamente a um resgate de valores que estes jovens reconhecem como importantes tais como amizade, honra e respeito diante da diferença e que estão escassos e cada vez menos reconhecidos em nossa sociedade contemporânea. Entretanto, parece também contraditório que esta mesma sociedade tão marcada pelo apelo ao consumo fácil e rápido e pelo individualismo consiga gerar artefatos (os mangás) capazes de alimentar e gerar ideais fundamentais para o ser humano. Pois ao que parece, é através da relação com o fantástico/fantasioso das páginas dos mangás, através das aventuras de personagens heróicos como Kenshin, que estes jovens incorporam importantes valores e novas aprendizagens. Assim, a indústria cultural não deveria ser pensada como estímulo que impõe necessariamente as mesmas respostas. O sentido apocalíptico, adorniano, deveria ser substituído pela idéia da recepção como um espaço de interação e produção de sentidos. A recepção é um processo de interação (socialidade), negociação de sentidos, onde o receptor possui sim um poder de seleção sobre aquilo que consome e produz. Os mangás e seus heróis significam para seus leitores muito mais que um escapismo baseado em seqüências de ação. Significa sim uma oportunidade de reflexão acerca da vida e de valores, estabelecendo meios para a interação entre os jovens que constroem ainda identidades coletivas, incluindo aí até mesmo uma perspectiva de 97 “pertencimento” dentro de um dado grupo (Canclini, 1999). A socialidade é gerada na trama das relações cotidianas dos homens ao juntarem-se, nos modos e usos coletivos da comunicação. Nesse processo as matrizes culturais ativam e moldam habitus que conformam as competências de recepção, ou seja, os modos como cada grupo vai dar sentido aos meios de comunicação. (Martin-Barbero, 1999). Como sugere Oswald (2005), com base nas contribuições dos Estudos Culturais latino-americanos, “focalizar as mediações que constituem as audiências deixa brechas para que o receptor deixe de ser encarado apenas como consumidor de entretenimento, ou de supérfluos culturais, e passe a ser visto como produtor de cultura. Redefinidos pela cultura, os meios deixam de ser mera circulação de ideologia e passam a ser um processo de produção de significações. Nessa perspectiva, o objeto de análise não é a ideologia da mensagem e seu efeito danoso sobre as audiências, mas os relatos sobre os usos dos meios a partir dos quais é possível reconhecer a mediação que a cultura exerce na recepção”. Parece, assim, de fundamental importância estudar a relação de jovens com os mangás e seus heróis, o que poderia contribuir para uma melhor compreensão do jovem no que diz respeito às suas maneiras de ser e de se relacionar com seus pares. 4. 4 – Mangá, narrativa e modos de ser do jovem: “A história no mangá é diferente de tudo. Ela fala algo que as outras revistas não falam. E o que ela fala tem tudo a ver”. Basicamente narrar é contar uma história, e para tanto temos personagens, cenários, conflitos e cenas. A narração surge como o processo de enunciação da narrativa - a forma adquirida pela narrativa em sua realização. Como relato de acontecimentos a narração caracteriza-se por apresentar fatos que se desenrolam em determinado tempo e lugar, com a atuação de uma ou mais personagens. A narração é reconhecida como um expressivo recurso da prosa de ficção, lado a lado com a descrição, o diálogo e a dissertação. Hoje encontramos em nossa sociedade as narrativas presentes em diferentes dimensões da cultura, distribuídas nas mais diferentes mídias. Sejam em romances, filmes, novelas ou mesmo nos quadrinhos, a narrativa está por toda parte, ainda que seu significado tenha em muito se transformado ao longo do tempo. Ainda que vivamos hoje em um mundo repleto de informações que emergem dos mais diferentes meios, segundo as mais diferentes formas, a velocidade com que 98 isso se processa parece, segundo muitos autores, ser acompanhada de uma crescente alienação, decorrente de uma possível incapacidade nossa de selecionar, avaliar e utilizar plenamente essa gigantesca gama de informações a que estamos expostos todos os dias. Para o jovem que é um dos principais alvos da chamada indústria cultural isso, obviamente, não seria diferente. De acordo com Bauman (1999), a lógica da sociedade de consumo é fazer com que se consuma cada vez mais, gerando assim uma rápida insatisfação e o surgimento de novos desejos. Dentro dessa perspectiva, nada se edifica em todo esse processo a não ser o desejo interminável de consumir. Mas será que realmente nada “fica” daquilo que consumimos? Será que os jovens consomem apenas por consumir e não adquirem nada nesse processo? Será que os leitores de mangás não se dão conta de que os quadrinhos que lêem são histórias pobres, sem conteúdo, que distorcem a realidade e alienam seus pensamentos? Entendo aqui os processos de consumo como algo muito mais complexo do que a relação entre meios manipuladores e dóceis audiências Segundo Nestor Canclini (1999) “o consumo serve para pensar” e assim acredito que através da fala dos jovens sobre aquilo que consomem podemos encontrar muito sobre eles e sua relação com o mundo. O gesto de consumir não se resume a uma mera aquisição de bens, materiais ou simbólicos, mas sim também, e talvez principalmente, a uma experiência coletiva que influi na constituição da identidade do jovem e seu pertencimento junto a um grupo. Da mesma maneira, o consumo não é visto como mera possessão individual de objetos isolados mas como a apropriação coletiva, em relações de solidariedade e distinção com os outros, de bens que proporcionam satisfações biológicas e simbólicas, que servem para enviar e receber mensagens. (CALCLINI, 1999, p 90) Desse modo quando selecionamos os bens e nos apropriamos deles acabamos definindo os que consideramos publicamente valiosos, assim como os modos como nos integramos e nos distinguimos na sociedade. Temos aí o surgimento do que Canclini (1999) chamou de “cidadania cultural”, onde “ser cidadão não tem a ver apenas com os direitos reconhecidos pelos aparelhos estatais (...) mas também com as práticas sociais e culturais que dão sentido de pertencimento.” (p.46). Trata-se aqui de repensar a cidadania em conexão com o consumo, admitindo assim que o próprio conceito de cidadania pode ser despedaçado em uma multiplicidade infinita de categorias que transcendem a mera acepção jurídico-política, estabelecendo o que seriam “cidadanias alternativas”. Dentro dessa perspectiva, seria possível que os leitores de mangás possam 99 constituir o que Nestor Canclini definiu como “cidadania cultural”? Para tanto é preciso que escutemos o que os jovens leitores têm a dizer sobre a sua relação com os mangás. 4. 4.1. A relação do jovem com a imagem narrativa. Ao analisar a estrutura narrativa presente nos mangás, percebemos que sua maneira de “contar a história” possui características bastante próprias e inovadoras, quando comparado aos padronizados quadrinhos ocidentais (sejam os comics norteamericanos ou mesmo os europeus), assim como também coexistem alguns elementos mais tradicionais. É interessante perceber como os autores japoneses ao longo da evolução dos quadrinhos em seu país souberam assimilar diferentes influências e daí desenvolver um estilo próprio e certamente inconfundível. Entretanto ainda mais significativo para mim foi perceber como os jovens interpretam e pensam acerca daquilo que lêem Henrique: Tú vê o sentimento no mangá. Luis: Dá pra você ver as expressões nos olhos do personagem O desenho mostra perfeitamente (...) as várias imagens, a forma com que elas vão passando... Henrique: As expressões são perfeitas, praticamente. Você vê, assim... Você às vezes chega a se sentir... Quando você tá entretido com o mangá, você chega a sentir como o personagem. Você sente o que o cara tá sentindo, naquele momento ali. A arte empregada tem um papel fundamental nos mangás, pois a riqueza de detalhes presente nos desenhos, especialmente nas expressões que retratam as emoções das personagens, acaba estabelecendo um tipo de linguagem narrativa que muitas vezes ignora a escrita e consegue transmitir as emoções envolvidas naquele momento somente através das imagens. 100 Fig. 27 Seqüência sem falas de um mangá (“Blade”), onde as expressões são suficientes para o desenvolvimento da narrativa. Vanessa: É, porque foi feito pra isso mesmo... Os olhos, cada traço que eles fazem tem essa intenção de passar para o leitor aquela emoção... É a expressão do que o personagem tá sentindo naquele momento. Luis: É diferente de um livro. No livro, você não vê a expressão. Você vai ter que imaginar. E nem sempre bate. Ramon: Dá para perceber a emoção nos olhos, na expressão... Dá para ver como aquele sentimento é verdadeiro para o personagem. Não dá para ficar indiferente. Mexe coma gente Daniel: O mangá fala com as imagens e depois não dá para você deixar pra lá... Aquilo que tá acontecendo na revista traz a emoção e toca na gente e muda. Muda tudo. O termo “nem sempre bate” usado por Luis, para explicar as vantagens da imagem do mangá em relação ao livro, remete à curiosa preocupação desse jovem se aquilo que ele imagina ao ler um livro realmente faz jus à condição vivida pela personagem. Tal fala demonstra a importância da imagem para esses leitores e, mais ainda, parece sinalizar para um aspecto importante: esses jovens tendem a encarar as 101 emoções das personagens como um elemento fundamental dentro do universo do mangá. Tais emoções são para eles tão ricas que conferem vitalidade àquela personagem que deixa de ser apenas uma figura ficcional. Trata-se de uma pessoa como eles, que poderia ser um deles. As emoções vividas pelas personagens, expressas pelas imagens características do mangá, têm grande importância para eles e parecem significar um resgate de experiências que transforma suas próprias atitudes. Teria assim esse consumo um significado que transcende o mero consumo em si? Henrique: Uma vez conversando com um amigo sobre um personagem eu me vi como o personagem, eu me vi no personagem. Enquanto eu falava sobre o problema do personagem eu tava falando também sobre o meu. Luis: Você não encontra mais emoções como essa por aí... Pessoas dispostas a se sacrificar, lutar e morrer por aquilo que acreditam. Bya: O Kenshin [personagem de um mangá] luta por aquilo que acredita. E isso é a sua maior força. Ele me faz acreditar também. Acreditar no certo. José: O mangá tem uma coisa que as pessoas não encontram em outros lugares. E é por isso que elas lêem mangá, gostam muito e se sentem muito bem com ele. Eles [os mangás] tentam focar mais a pessoa normal de cada dia, o ser humano em si, e você encontra a sua vida ali. Eu estou lendo e aquele ali sou eu. Eu já encontrei muitas vezes personagens que eu me sinto muito identificado. E complementa José: [tem um mangá] bem famoso que fala de uns garotos normais, assim de 14 anos, que por terem 14 anos são os únicos aptos a pilotar uns robôs pra salvar o mundo de ameaças alienígenas... Mas aí mostra também a problemática toda do garoto. O pai não ama ele... Pelas falas desses jovens parece que os mangás oferecem muito mais do que mero entretenimento. Os mangás significam para eles aventura, diversão, mas também o momento de se encontrar com emoções, sentimentos e valores que “não se encontram mais por aí”. Através dos mangás e das intensas emoções vividas por suas personagens, esses jovens repensam seus próprios sentimentos e discutem pensamentos e sensações vividos por eles próprios. Trata-se de uma oportunidade de reflexão que deriva do encontro com aquelas imagens e da relação que esses leitores firmam entre si a partir de então. 102 4. 4.2. Mangás e juventude: uma nova narrativa capaz de dar conselhos? Em muitas falas pude verificar a distinção que os jovens fazem entre as histórias dos mangás e aquelas existentes em outros tipos de quadrinhos. Além da continuidade, da finitude e da forte expressão/emoção presente nas imagens, pude perceber também como os argumentos desenvolvidos nos mangás constituem-se também como um dos principais atrativos dessa mídia. Diogo: Mangá é quadrinho, mas é um quadrinho diferente. Luis: E não é só porque tem “olhão”... Mangá tem história. Diogo: É isso aí! Uma história que é diferente de todas as outras. Pesq: Mas existem diferentes tipos de mangá, não? Luis: Claro, mas muda os estilos... Para garotas, jovens, de terror, fantasia (...) mas todos têm uma história muito boa naquilo que eles querem contar. Pesq: Não poderia ter um mangá só com imagens? Toha: Hum... Acho que não. Henrique: Eu acho que poderia. Mas não seria a mesma coisa. Mangá tem que ter imagem maneira, mas tem que ter fala também. Luis: É isso aí. As duas trabalham juntas. Diogo: Em algumas revistas tem muita ação e altas imagens. Outras têm muita conversa, muita coisa acontecendo, e a fala é fundamental. Com o desenho então, aí fica perfeito! Diante de desses depoimentos me pareceu claro que as histórias contadas nos mangás na sua dimensão escrita – ainda que sempre associada à imagem, como eles mesmo destacam - tem para os jovens leitores um papel bastante significativo. Tal constatação me conduziu a refletir sobre o papel das narrativas em nossa sociedade hoje e como os jovens se relacionam com as narrativas presentes nos mangás. As narrativas contemporâneas encontram-se atreladas aos diversos artefatos da indústria cultural e, numa primeira vista, parecem ter perdido seu sentido primeiro, que se relacionava com o aprendizado a partir da transmissão oral, na medida em que se tornou progressivamente mais pobre de experiências. Para compreender isso acredito ser imprescindível retomar a concepção de narrativa tradicional desenvolvida por 103 Walter Benjamin (1994), onde essa é apresentada como um meio de troca de experiências de uma pessoa para outra. Segundo Benjamin (idem), os narradores podem ser reconhecidos como de dois tipos distintos, que são seus representantes mais arcaicos: o camponês sedentário e o marinheiro comerciante. O primeiro, por viver há muito tempo em sua terra, conhece-a bem e sabe contar suas histórias e tradições; o segundo por viajar muito e conhecer diferentes lugares tem sempre muito que contar dos povos e lugares visitados. Para Benjamin, a narrativa só pode ser compreendida se considerada a partir desses dois tipos fundamentais de narradores, estando assim sempre relacionada ao espaço e ao tempo do contar e do viver. Benjamin lembra que uma das características dos narradores tradicionais é o senso prático: o fato narrado é útil ao ouvinte e essa utilidade pode se revelar em um ensinamento moral, numa sugestão prática, num provérbio ou mesmo numa norma de vida. Enfim, o narrador é aquele que ao contar suas histórias sabe também dar conselhos, e assim ele transmite sua experiência. A experiência que passa de pessoa para pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias reais contadas pelos inúmeros narradores anônimos (Benjamin, 1994, p.198) Nesse sentido, Benjamin sinaliza que o romance, forma de narrativa surgida com a imprensa, apresenta novas características, dentre as quais se destacam sua transmissão restrita (para aqueles que sabem ler) e individualizada. Passa a inexistir assim nos romances a dimensão de aconselhamento, uma vez que esta se dá na oralidade, levando em conta as preocupações do narrador, sua relação com o outro, com as experiências e visões de cada ouvinte. Assim, a narrativa apontada por Benjamin só existe na oralidade, pois ali existe a possibilidade de qualquer história ser acrescida de novas experiências e assim retransmitida de forma diferente. O surgimento do romance é para Benjamin o primeiro indício da evolução que vai culminar no desaparecimento da narrativa. E esse processo se dá em paralelo com toda a evolução secular das relações produtivas. Mas, se ‘dar conselhos’ parece hoje algo antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em conseqüência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. (...) O conselho tecido na 104 substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção (Benjamin, 1994, p.200-201) A chegada da imprensa marca para Benjamin o progressivo desaparecimento da experiência, impondo um fim a história que até então era inacabada e livre, capaz de se alimentar sempre de mais experiências, através da transmissão oral, e se renovar infinitamente. Benjamin nos alerta ainda de um outro fator que afeta diretamente a narrativa, e também ao romance, sinalizando para uma forma outra de comunicação: a informação. Ele afirma que o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos. O saber que provinha do relato narrativo, vindo de longe – seja dos confins da tradição ou das distâncias - dispunha de uma autoridade que era válida, ainda que não fosse controlável pela experiência, enquanto a informação necessita de uma validação imediata, além de ser plausível e, acima de tudo, compreensível “em si e para si”. De acordo com essas características Benjamin aponta a informação como incompatível com o espírito das narrativas. Cada manhã recebemos notícias do mundo todo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. (Benjamin, 1994, p.203). O diferencial surge no fato da narrativa fugir de explicações e permitir, assim, ao ouvinte interpretar a história como quiser, levando o episódio narrado a uma amplitude que não pode ser atingida pela informação, que já traz em si explicações e nenhum acúmulo de experiência. A informação é fugaz e passageira, logo substituível e busca dar conta do fato na sua totalidade. Já a narrativa tradicional não se preocupa em explicar todas as circunstâncias, mas sim transmitir a experiência advinda do fato narrado, que intrinsecamente relaciona-se com a vida do narrador e o interesse dos ouvintes. No que tange ao tempo, a velocidade descartável da informação em nada se parece com a longa duração das narrativas, que demandam um tempo estendido para se 105 constituírem, se enriquecerem de experiências, sendo re-elaboradas e então retransmitidas. Refletindo sobre as narrativas contemporâneas, Fernandes (2006) resume bem, no diálogo que estabelece entre Walter Benjamin e Silviano Santiago, o impacto do romance e da informação para a narrativa tradicional. Como cada vez mais o tempo foi esvaindo-se na vida do homem, sem tempo ou com pouco tempo, as histórias não são contadas de novo e morrem no ostracismo já que deixam de ser rememoradas. Para Benjamin, o romance e a informação não trazem esse caráter vivo da experiência do contador, expressa principalmente pelo conselho, que dialoga com a experiência do ouvinte. O narrador é um homem que sabe dar conselhos. (Fernandes, 2006, p.04) No mesmo artigo, a autora realiza uma detalhada e rica análise da relação entre o conceito de experiência apresentado por Walter Benjamin e aquele desenvolvido por Silviano Santiago. Segundo ela, Santiago (1989) traz à luz um conceito de experiência que, diversamente da experiência contida na narrativa tradicional, irrompe no contexto contemporâneo da seguinte maneira: de forma distinta do narrador que transmite a experiência a partir daquilo que ele próprio viveu, emerge hoje um outro tipo de narrador que transmite a experiência obtida através da observação da experiência de outro. O dilema aqui repousa na autenticidade, onde discute-se se só é autêntico aquilo que narro a partir do que experimento, ou se será autêntico aquilo que narro e conheço só por ter observado? Para Santiago o narrador de hoje é um espectador que adquire a experiência pela observação e não por ser o ator da narrativa. Como Fernandes (2006) analisa, o narrador benjaminiano tem “senso prático”, pretendendo ensinar algo, enquanto o narrador da contemporaneidade, apontado por Santiago, se relaciona com o outro no intuito de levá-lo a falar, já que não importa para ele as ações de sua própria experiência, mas as ações da experiência do outro. É justamente aqui que podemos identificar o narrador como um observador, condição que o aproxima muito do leitor de nossos dias. Ambos [narrador e leitor] se encontram privados da exposição da própria experiência na ficção e são observadores atentos da experiência alheia. Na pobreza da experiência de ambos se revela a importância do personagem na 106 ficção pós-moderna; narrador e leitor se definem como espectadores de uma ação alheia que os empolga, emociona, seduz etc. (Fernandes, 2006, p.05). O leitor de mangás poderia assim ser identificado como esse espectador que se empolga, se emociona e aprende a partir da experiência vivida pela personagem presente na revista. Afinal as narrativas hoje não são mais como outrora, elas se modificaram historicamente, buscando se adaptar aos diferentes meios, adotando sempre novos recursos, para assim sobreviver. Todo esse conjunto de mudanças trouxe também uma mudança na natureza da experiência a ser transmitida, que não acontece mais de geração para geração, como na narrativa tradicional. Como reconhece Fernandes (idem), a partir de Santiago, e aqui estamos de acordo, “a experiência talvez seja hoje como (...) ‘um convite a olhar junto’, a viver junto algo para depois poder dialogar sobre a experiência que, ambos que olharam, viveram” (p.06). Segundo essa perspectiva parece correto afirmar que o mais experiente não é aquele com maior vivência, e sim quem é capaz de observar/desfrutar de um conjunto mais variado de experiências midiáticas. Mas todos podem usufruir disso? De certo não. As diferentes mídias de hoje oferecem diferentes narrativas e cada uma parece reservar um conjunto de experiências que lhes são próprias, sendo estas transmitidas quase simultaneamente e exigindo para sua assimilação um olhar apurado, na verdade contextualizado, para acompanhá-las de forma que estas sejam realmente significativas. Por essa razão, só aqueles que se constituíram, e assim constituíram seus olhares, no contexto da contemporaneidade conseguem reconhecer o valor e as experiências transmitidas pelos presentes meios. A partir desse cenário pude começar a refletir sobre o papel dos mangás para os jovens e os múltiplos significados que estes conferem a essas leituras. Afinal, para esses leitores, ler mangás parece constituir-se como uma experiência enriquecedora, muito além dos limites das páginas. Na verdade o que parece haver é uma relação bastante especial entre os jovens leitores de mangás entre si e com os mangás propriamente. Uma relação repleta de significados duradouros que podem ser sempre resgatados, desde que se retorne às páginas da revista. Pesq: Você já leu o mesmo número mais de uma vez? Henrique: Sim. Porque é aquela sensação: você lê uma vez e quer ler tudo de novo, aí lê de novo, e quer mais, e lê de novo... 107 Pesq: Mas não é a mesma coisa? Henrique: Não. Você enxerga com outros olhos. A primeira visão do mangá é pra você ter uma noção do que é aquilo. A segunda já é uma visão mais de... Você tem um amigo, entendeu? Você vai conhecer ele mais a fundo... Aí você passa mais tempo com ele e conhece mais Pesq: Mas você acha que quando você vai lendo a mesma história outras vezes, você não tá lendo a MESMA história outras vezes? Henrique: Não. Eu vejo outras histórias ali, eu vejo a história de outros personagens ali, também maneiros. Porque eu já li a história do personagem principal e às vezes eu me interesso pela história do personagem secundário e abre mais a visão pra ele, porque eu me interessei por ele... Eu vou para outros pontos... Diogo: Você lê mais e descobre mais. Luis: Você consegue perceber outras coisas e dá atenção a outras coisas que não são o principal ali, mas de repente é o principal para você. Parece evidente a partir da falas destacadas que esses jovens são capazes de encontrar múltiplos significados em um mesmo mangá à medida que retornam a ele, como se cada passagem imprimisse uma nova experiência, onde são descobertos “outros pontos” devido a esse “outro olhar”. Aqui a fala destacada por Fernandes (2006), a partir de Silviano Santiago, de que o mangá “convida a olhar junto”, ganha força, já que a cada visita do olhar, a cada reler, o narrador dessa história parece convidar o leitor a percorrer o caminho das personagens e vivenciar, pela identificação, um novo ganho de experiências que é orientado por uma nova perspectiva, não facilmente esgotável. Diante de tudo isso parece evidente que compreender a relação do jovem com o mangá nos indica caminhos na compreensão da sua própria relação com a sociedade. Um crítico poderia nos dizer que esse tipo de produto cultural não traz nada para os jovens, mas o consumo que eles fazem destas revistas nos permite pensar (Canclini, 1999) muitos aspectos da própria cultura jovem. Henrique: A história é maneira, a história é maneira... Em geral é. Pô, não tem como explicar o mangá em si. Tu sente a parada... O estilo de enxergar o mundo de outra forma. Se transportar para uma realidade fora da sua que faz você ir além... É muito legal. Luis: Às vezes porque a gente tem ali pessoas que dão asas à imaginação. Você gostaria de ser o que tá vendo ali... Ana: Os mangás falam sobre váááárias coisas que também são valores e tal... Como as coisas nem sempre são como parecem... Tem os vilões, que também nem sempre são o que parecem... O mal não é só mal e o bom não é perfeito. É como a vida. 108 Um novo modo de enxergar a vida, a busca por valores, o choque nada maniqueísta entre o bem e o mal... Os mangás parecem tratar de um conjunto vasto de questões, assim como diferentes posicionamentos que parecem empurrar seu público para uma reflexão mais profunda dentro da sua própria narrativa. Ramon: No mangá a gente encontra a luta por um ideal. A amizade é sempre muito forte... É uma luta da amizade. É o bem contra o mal, mas sem bobeira... Tem sentimento, tem paixão, tem ação... Muita luta! Mas nada de graça, sem motivo. Descobrir o porque de tudo, faz parte da viagem. E a gente sempre aprende alguma coisa. Pesq: Se você fosse um personagem de mangá, qual você seria? Toha: Ah, eu seria o Soujirou. Pesq: Quem? Soujirou? Toha: Do “Samurai X”. Pesq: O Espada Celestial? Tu sabe quem é esse cara? Toha: Ah... A história dele é sinistra demais, cara. O jeito que ele aprendeu as coisas e ele é forte pra caramba Pesq: Mas ele não é um herói. Toha: Ele não é um herói, mas eu seria ele. Ele não é um herói pro “Samurai X”, mas ele vai ser um herói para ele, papo dele buscar a vida dele... Por isso, na vida dele, ele é um herói. Os mangás transmitem, de acordo com seus leitores, uma mensagem que os leva a pensar sobre a vida, seus valores e sua escolhas. Encontrar o “porque” das coisas serem como são, valorizar sentimentos humanos e permitir uma livre interpretação das personagens parece aproximar essa narrativa contemporânea da narrativa benjaminiana que contém o conselho. Ainda que a princípio a narrativa dos mangás se encontre nas páginas de uma revista e não se realize no campo da oralidade, a partir da relação com o outro e a expectativa do ouvinte, a narrativa presente nos mangás parece “dar conselhos” ao seu leitor, fazendo-o pensar em questões antes talvez irrelevantes. A fala de Toha, que destaca Soujirou como sua personagem preferida nos mangás, é algo bastante revelador sobre a liberdade de interpretação e de pensamento que o mangá oferece. Soujirou é uma personagem secundária do mangá “Samurai X”Rurouni Kenshin –, trata-se de um rapaz de pouco mais de quinze anos que se tornou um exímio espadachim e assassino profissional depois de ser salvo pelo “vilão” da 109 história, Makoto Shishio, anos antes do tempo em que se passa a história. Na revista, o assassino Soujirou não é apresentado como uma das muitas faces do mal apenas. A história relata brevemente que ele foi educado assim por Shishio, ensinado a viver pela espada onde o mais forte deve sobreviver. O confronto do rapaz com o protagonista da série, o herói Kenshin Himura, termina em um empate e o jovem Soujirou decide então abandonar tudo e vagar pelo mundo por alguns anos a procura da sua própria verdade, que não seria nem a de Shishio, nem a de Kenshin. Soujirou não é morto, nem recompensado, não atinge seu objetivo inicial ou mesmo é derrotado. Na verdade a história da personagem continua, mesmo que esta não seja mais relatada na revista. Toha vê na saída de Soujirou a procura por algo maior e por isso se identifica com as motivações dessa personagem secundária que busca respostas para sua própria vida. Tal exemplo nos permite uma aproximação a mais com a narrativa tradicional de que fala Benjamin, pois aqui, também, a narrativa foge de explicações e permite ao leitor interpretar a história como quiser, levando o episódio narrado a uma amplitude que não está contida, nem limitada pelas páginas do mangá. Fig. 28 Seqüência da batalha entre Soujirou e Kenshin no mangá Samurai X. 110 Fig. 29 Seqüência destacada por um dos entrevistados (Toha) onde a personagem Soujirou se despede indo em busca de seu próprio destino. O fato de Toha ter se identificado com Soujirou, por ele ser capaz de se tornar o “herói de sua própria vida” demonstra, mais uma vez, o quanto essa narrativa está livre para múltiplas interpretações e assim rica em experiência a ser transmitida. Na verdade o mangá não dá todas as respostas e sim gera questões que acabam significando uma oportunidade para que seus leitores pensem e assim olhem para suas próprias vidas. 111 Fábio: O mangá é diferente de tudo que eu já li... Nele não tem essa de superhomem... Por mais que o cara tenha poderes ele é um cara como eu e você. Ele sofre, tem medo, pode falhar. Pode falhar como eu! Mostra todo o caminho do cara no seu dia-a-dia... Seus sentimentos, suas vitórias... Como ele deixa de ser mais uma pessoa e passa a ser “o cara”. Ele ganha experiência e a gente também. Luis: Você tá próximo do personagem... Como se fosse você. Diogo: Muitas vezes ele reage como você e não como um personagem. Aí você aprende sem ter que estar passando diretamente por aquilo. Toha: Tem também a questão de você se identificar com o personagem Ás vezes, o personagem é alguma coisa que você sempre sonhou em ser... Henrique: E nunca foi. A personagem que é “um cara como eu” aparece como um elemento bastante presente na fala dos entrevistados, o que destaca a identificação entre o leitor e a personagem como uma característica marcante dos mangás. Tal elo não significaria assim um caminho para a troca de experiências? Afinal, só não nos mobilizamos diante de relatos com os quais temos identificação? Ao que parece, à medida que o jovem leitor acompanha o caminho da personagem e seu crescimento, ele também realiza uma reflexão sobre o seu próprio caminho, sobre sua vida e escolhas. De acordo com as falas percebemos que estes jovens parecem aprender com a experiência transmitida pelas personagens. Vanessa: (...) - o mangá – é uma cultura diferente... É uma coisa diferente. Você aprende outras coisas e a gente acaba fazendo parte daquilo que a gente lê. A gente se apega as coisas. Luis: Porque tem que ler coisas diferentes que te ajudem a te formar. Dá muitas idéias... Talvez a palavra não seja formar... Tipo assim, eu tenho muitas idéias. Victor: São coisas diferentes que nos ajudam para conviver... Vanessa: Isso! Nos ajudam com o diferente. Nos ajuda. Bya: (...) às vezes acho que é sobre amizade, às vezes sobre uma “viagem interna” de uma pessoa... Ela se descobrindo ou descobrindo coisas importantes pra ela. E eu tento manter isso, porque é uma coisa importante para mim. Como amizade, que é muito forte nos mangás que eu leio. Parece que a experiência vivida pela personagem no mangá aparece para os leitores como um conselho, como uma aprendizagem que se desdobra a partir da leitura continuada da saga vivida na revista. E mais ainda: devido a indústria cultural contar com as mais diferentes mídias de comunicação, o narrador de hoje observa e coleta 112 experiências de diferentes fontes que se complementam e se intensificam mutuamente. Mangás apresentam narrativas que se desdobram e se ampliam e podem ainda – não obrigatoriamente – serem acompanhadas através de outras mídias como animes, romances, livros de RPG e games. Daniel: Eu curto “Lodoss” mas eu só conheço o anime. Estou ansioso pelos mangás... Pesq: Não é a mesma coisa? Fábio: Não! O mangá sempre tem mais coisa, apesar de ter vindo primeiro. Daniel: São iguais, mas diferentes. Um complementa o outro. Com mangá acontece muitas vezes isso... Fábio: Por isso é bom conversar, trocar... A gente passa a conhecer mais. O exemplo citado por Daniel é a série em mangá “Record of Lodoss War” (Recordações da Guerra de Lodoss) que se passa em um mundo de fantasia medieval estilo Tolkien – em que o universo da história é construído simultaneamente no mangá, no anime (que em uma das séries apresenta aventuras que se passam alguns anos após os eventos ocorridos nos quadrinhos) e nos livros de RPG. Um jovem leitor de “Lodoss War" é capaz de avaliar e selecionar os aspectos que julga mais relevantes dessa narrativa a partir de diferentes fontes disponíveis e retransmiti-los de forma própria entre seus amigos, isto é, através da comunidade interpretativa a que pertence. Mais uma vez aqui destaca-se o papel das mediações e das sociabilidades que irão conferir significado próprio a esta narrativa multimídia. Fig. 30 O mangá de “Lodoss” e seu primeiro derivado: o sistema de RPG que detalha o universo da história. 113 Fig. 31 O universo do mangá se expande em outras mídias que fornecem novas e diferentes informações. Aqui o anime, o game (do sistema SEGA) e um outro mangá contando uma história futura. Os diferentes formatos de narrativa acabam impulsionando este jovem a buscar o diálogo com outros, de sua geração ou não, e é nesse contato que se dá a transmissão da experiência que resgata, em alguma medida, sua dimensão oral e de circularidade. Nessa troca a experiência se revitaliza e nos aproximamos mais uma vez, e ainda mais, da concepção elaborada por Benjamin. Defendo assim que estamos assistindo - e não reconhecendo, na grande maioria das vezes – a existência de uma nova forma de transmissão da experiência narrativa, que hoje se dá através dos mais diferentes meios midiáticos, mas que ainda assim preserva seu significado constituidor. Na verdade, penso que tais novas mídias não corroboram apenas negativamente para os jovens, e sim que estes têm a capacidade de interpretar e imprimir significados outros a partir de sua comunidade interpretativa, muito mais amplos do que inicialmente possamos crer, às diferentes narrativas hoje existentes, incluindo aquelas presentes nos mangás. A forma e a maneira de difusão são certamente outras, mas as narrativas persistem e mantêm sua função tradicional de estimular e reflexão e a produção de sentidos, não de forma totalitária direcionadora como muitos acreditam, mas criando momentos que significam oportunidades importantes no jogo de constituição dos sentidos dos jovens. Henrique: Quando você tá interagindo com aquilo [o mangá], a coisas estão mais rápidas... Tem aquela sensação de que quando você gosta da coisa ela passa muito mais rápido do que quando você não gosta. E aí se você fica assistindo um tempo de aula de matemática, tudo é mais devagar. 114 Ramon: Você fica num ritmo diferente e passa a ver as coisas com outros olhos. Henrique: Não sei cara..., Parece um mundo diferente, parece que você está lá dentro... Quando você tá interagindo com aquilo, a coisas estão mais rápidas... Lá dentro – da revista – está lento, mas aqui fora passa depressa. Ramon: O dia real, fora da revista, é mais lento. Mais chato. Toha: Tu lê, tu lê, cara, só lendo, tu lê. O relato desses jovens sinaliza para o que Guilherme Orozco (2001) e Jésus Martin-Barbero (2001) chamam de revolução do sensorium individual e coletivo, isto é, todo um conjunto de novas relações, percepções e usos que a sociedade contemporânea tem estabelecido como os meios. Tanto Orozco como Martin-Barbero trazem este conceito para pensar a relação que existe hoje da sociedade com a televisão, pois entendem a Tv como o maior agente capaz de rearranjar as idéias e os limites do campo da cultura. Mas será só a Tv? Será que estes jovens também não ampliam, a partir de sua relação com os mangás, sua relação com a cultura? Afinal em suas falas percebemos uma nova relação com o tempo, onde o “dia real” é lento e sem graça. Na verdade esses jovens parecem encontrar nessas leituras uma velocidade que não encontram em outras, como nos livros tradicionais, ainda que o gesto de desfrutar de um mangá não aconteça na tela do videogame, da tv ou do computador. Os mangás são em preto-e-branco, tem intrincadas tramas e edições inteiras (de em média 90 páginas) só com diálogos. Para olhos não treinados apresentam figuras estáticas e aparentemente não possuem qualquer atrativo em comum com jogos de computador - como sons e cores intensos e diversificados - mas ainda assim atraem jovens de diferentes idades e classes sociais. Por quê? Daniel: Parado?Nada! O mangá tem movimento. Você vê! Tem emoção ali. Henrique: Coragem, força de vontade, determinação... Aquela sensação de você nunca desistir, entendeu? Sempre querer tentar mais... Não ficar para trás... Pesq: Como você consegue tirar isso de uma revista em quadrinhos? Henrique: Não sei te explicar... Eu acho que é a interação né? Quando você consegue ler e compreender o que tá sendo dito ali, compreender o personagem, a história e tudo mais, eu acho que aquilo já entra em você automaticamente... Não precisa mais de uma explicação. Toha: Tem algumas coisas que eu li, que eu me emociono, cara... Dava vontade de chorar e tudo (...) É completamente inexplicável! – risos - Não tem como explicar... 115 Você vai fazer um trabalho, não vai? – perguntando à mim sobre a pesquisa Então, talvez lá ninguém entenda o que a gente aqui sente lendo mangá e vendo anime... Só de você estar ali, lendo cara (...) É uma coisa completamente esquisita. Inexplicável.(...) tem que ler para saber... Talvez depois que você ler, você entenda. É a mesma coisa o RPG e o anime. Você tem que parar, sentar e viver. Pesq: Acredite: a maioria dos professores e pesquisadores que conheço, eu acho – risos – continuariam achando tudo muito, muito chato... Toha: Cara, para curtir o mangá você tem que nascer com isso. Você tem que ser o escolhido – risos – Você tem que ter a centelha mangá dentro de você. Diante das falas dos entrevistados, a resposta para a pergunta “por que ler mangá?” parece repousar não no mangá propriamente, mas nos olhos daqueles que o lêem, pois para seus leitores, isto é, jovens que se constituíram culturalmente na contemporaneidade, até mesmo na estaticidade das imagens de uma revista é possível encontrar movimento. Para eles existe movimento no mangá, além de um grande significado. Entretanto os próprios leitores, como demonstra Toha em sua fala, admitem que os demais, não adeptos da cultura mangá, não estão “alfabetizados” para essa linguagem, e eu, pessoalmente, me sinto inclinado a concordar com ele. Pesq: Muito bem, o que é essa tal “centelha mangá”? Risos Toha: O que eu quis dizer é que ler mangá exige imaginação. Você tem que gostar de sonhar. Precisa de ideal. Henrique: Você precisa curtir essas histórias... Assim como é com o RPG e o anime. Ali tem aventura e na aventura a gente aprende. Vanessa: O mangá não tenta te impor nada. Ele está lá e você leva o que pode levar dele. Os jovens leitores de mangás acompanham essa narrativa por se moverem na mesma velocidade que elas, e assim desfrutam intensamente daquilo que para a maioria parece demasiadamente fugaz. Desse modo acredito que o mangá deve ser reconhecido como um artefato da cultura jovem que se destaca por suas especificidades narrativas, e mais ainda, pelas singular relação, apropriação e produção de sentidos que possibilitam para seus leitores. 116 Vanessa: É uma forma de divertimento, uma forma de entretenimento... É uma coisa que interessa a mim não só pela forma como o assunto é tratado, mas com a tranqüilidade que tem. Porque não te controla. Daniel: Desde que eu leio mangá muita coisa mudou. Eu percebo e penso em coisas que não pensava antes, fiz novos amigos, e muitas coisas que aparecem na escola eu já vi no mangá. Só que nesse caso eu já tinha aprendido de uma forma mais divertida. A fala de Vanessa destaca como pontos positivos do mangá o fato dele acontecer com “tranqüilidade” e sem que ela seja “controlada”. Será que ela não está fazendo aqui uma oposição entre sua experiência com o mangá e aquela que ela vive na escola? Seria o mangá um meio de aprender com liberdade e se divertindo, como destaca Daniel? Fábio: Se eu aprendo com o mangá? Claro que sim. Aprendo um monte de coisa mesmo que ele não queira me ensinar. Pesq: Como assim? Fábio: Eu tô lá curtindo a história e aprendendo com tudo que tá acontecendo. Aprendo sobre o mundo, outras culturas, sobre as guerras do passado... Aprendo sobre ser humano. Nesse sentido, o momento da leitura dos mangás parece significar um momento de desaceleração e de liberdade diante da realidade, como se aquilo que acontece nas páginas pudesse ser desfrutado em ritmo próprio, mais lento. E assim, os mangás parecem se afastar dos aspectos da volatilidade e da descartabilidade próprios, segundo os apocalípticos, das narrativas presentes nas mídias. Cada vez que conversei com estes jovens pude perceber como eles se valem da experiência que tem com os mangás para buscar um diálogo com outras pessoas e assim retransmitir a experiência que tiveram. A diversão e o “aprender” proporcionado pelo mangá acaba tornando-o um meio de aproximação e identificação. Através dos mangás estes jovens compartilham de uma experiência com o “extraordinário”, isto é, um conjunto de elementos que rompem com a realidade do dia-dia e os aproxima do fantástico, de sonhos e desejos, enfim, de um conjunto de elementos fundamentais para o ser humano. Toha: O mangá ensina você a ser uma pessoa melhor... Acreditar mais no seu sonho. No “Shaman King” mostra muito isso, né? Tem que acreditar no seu sonho. 117 Diogo: De certo ponto, o mangá te ensina a viver. Toha: É claro. Pesq: Você sabe que essa frase é um pouco forte, né? Vanessa: Eu acho que ela – a frase - tem meio que um pouco de impacto, por que... Eu acho que ele – o mangá - faz, mesmo sem intenção. Ele mostra a vida de alguém, a história de alguém, mas não é bem com a intenção de te mostrar como viver, mas você acaba pegando aquilo pra você. Ele meio que faz aquilo, mas sem intenção de te doutrinar. Então eu acho que esse é um ponto importante no mangá. Toha: Ah, mas posso falar uma coisa? Todo mundo precisa de emoções para viver, sabe? Eu preciso de mangá por isso, porque ali tem emoções... Eu mesmo, tipo, o que eu faço da minha vida vou passando ali, você acaba acreditando. Henrique: Ah cara! Tipo, o mangá me deu outra cabeça, me dá uma idéia melhor, me ajudou muito, cara. Me ajudou a ter mais convívio social, em vez de eu ficar mais retraído em casa... Antigamente eu era assim, ficava igual um maluco e não saia pra nada. Fábio: Eu encontro força, coragem, determinação nos mangás. Quando eu li “Dragon Ball” e vi o que o Goku fez pelos amigos dele... O cara é demais! Você não vê mais gente assim por aí (...) E eu busco passar adiante isso. A importância da amizade e de lutar até o fim. Pesq: Você aprendeu alguma coisa com o mangá? Ana: Muuuuuito. Esse lance de você ser o que quer ser e não como o mundo te vê... Os valores... O fazer o bem sem olhar a quem... Pesq: Sem o mangá você não aprenderia isso? Ana: Possivelmente sim, mas com o mangá é menos doloroso né? A gente não precisa bater a cabeça na parede para saber que é ruim... Hoje eu sei mais e aquilo que sei posso passar pra outros. Lutar por outros assim como Kenshin. Parece claro que os mangás e suas narrativas têm um importante papel para esses jovens que encontram, na sua leitura, conselhos que comunicam uma experiência. , assim como defendia Benjamin. Na verdade estes jovens parecem encontrar nos mangás um conjunto de valores que parecem perdidos e que os fortalecem, gerando a possibilidade de agir de forma diferente em seu dia-a-dia. Eles vivem a experiência como espectadores através das páginas e depois “passam adiante” tentando transformar aquela experiência que tiveram em algo que pode ser compartilhado e, assim, atingir outras pessoas. Através da leitura dos mangás ocorre uma troca de experiência que não se limita apenas ao leitor, mas este traz isso para o seu dia-a-dia e tais valores reorientam sua ação cotidiana e, mais do que isso, também o levam a desenvolver, a partir do que 118 aprendeu, a capacidade de transmitir sua experiência para seus amigos, ampliando assim o alcance daquela narrativa que num primeiro momento encontra-se restrita às páginas do mangá. Assim esse novo sujeito, da contemporaneidade, que por um novo meio teve acesso a uma nova narrativa, a transmite oralmente reaproximando-a da sua forma tradicional, ainda que não mais atrelado aos dois arquétipos fundamentais destacados por Benjamin, mas capaz de carregar em si um conselho que deriva de uma nova modalidade de experiência adquirida. Os leitores de mangás parecem, desse modo, se tornar também narradores, revelando como hoje tais papéis encontram-se tão misturados e as fronteiras desses dois campos da experiência encontram-se tão difíceis de distinguir. Eu mesmo tenho uma experiência sobre esta questão que, sob a luz da elaboração desse trabalho, consegui evidenciar. Já há mais de 13 anos sou jogador de RPG (role playing games) e participo de uma campanha com a mesma personagem por todo esse tempo. O RPG é um jogo de interpretação em que cada participante desenvolve uma personagem, que podem ser dos mais diferentes tipos, e a interpreta reagindo a situações propostas por um outro jogador chamado “Mestre do Jogo” (MJ). O MJ é um narrador que conta uma história, onde os protagonistas são as personagens dos jogadores e estes devem reagir às situações apresentadas pelo MJ para que a história prossiga através de uma construção coletiva. Nos últimos 10 anos eu não só tenho atuado como jogador, mas também como MJ, e pude perceber como diversos elementos que adquiri em minha vida, fora da escola, e, mais especificamente, lendo revistas em quadrinhos e mangás surgem nas aventuras que narro para meus jogadores. Não falo aqui apenas do aspecto fantástico e aventuresco, mas do conjunto de valores que acabei trazendo para nossas sessões de jogo e que hoje percebo tiveram origem naquilo que li nas revistas que acompanhei. Meus jogadores (que atualmente variam entre 17 e 29 anos, mas ainda todos jovens), em sua grande maioria também leitores de mangás, trouxeram também para suas personagens características e valores que foram produzidos a partir da experiência que tiveram com os mangás Em conversas que tive com eles ao longo da elaboração desse trabalho, muitos me contaram como os mangás foram e são importantes para eles e como ali eles encontraram mais do que uma extraordinária aventura, mas “valores e exemplos muito legais e difíceis de encontrar por aí hoje”. Nenhum deles iria se opor se seus filhos um dia se tornassem leitores de mangás. 119 Trago este depoimento para reafirmar aqui o mangá como um elemento da cultura jovem e por esta razão, livre dos limites impostos por qualquer faixa etária. Ler mangá revela-se uma experiência rica para aqueles que se constituíram nesse novo contexto da comunicação, isto é, onde as narrativas apresentam-se sob outra roupagem, mas nem por isso mais pobres de significado. Todos nós refletimos e aprendemos a partir de nossa relação com os diferentes artefatos da cultura, acumulamos as informações que julgamos importantes e “deletamos” àquilo que não nos tem significado. Assim procedem todos os sujeitos, e assim é possível perceber que as novas formas de narrativas hoje existentes, como o mangá, tem aproximado o jovem da leitura e de uma aprendizagem que até então não é reconhecida pela escola. Não é possível que continuemos a recorrer ao passado para deslegitimar os processos de aprendizagem hoje existentes fora do universo da escola e que se revelam tão significativos para os jovens. Temos hoje a experiência sendo transmitida por novos meios, novas narrativas, em um novo contexto, constituindo novos modos de ser jovem. Diante disso me parece acertado concordar com Canclini (1999), uma vez que o consumo desses jovens nos auxilia a pensar sobre sua condição e relação com o mundo. A partir de suas falas percebemos que o consumo de mangás significa muito mais do que a mera aquisição de bens, como acredita Bauman (1999), sem qualquer fim de onde não ocorre qualquer aprendizado, ou onde nada permanece. Possivelmente o que temos é justamente o estabelecimento de uma “cidadania cultural”, onde a identidade também se constitui a partir daquilo que se consome e da experiência que se compartilha. Um antigo ditado árabe diz que “um homem é mais parecido com seu tempo do que com seu pai”, e se buscamos entender o jovem hoje, suas dúvidas, anseios, desejos e objetivos, me parece imprescindível que sejamos capazes de respeitar e compreender o contexto no qual se constituem suas experiências e assim sua identidade. Enfim, voltando a Walter Benjamin, o que salta do texto O Narrador... (Benjamin, 1994), não é a nostalgia da narrativa tradicional, nem a sugestão de que esta deveria ser buscada pelos homens de hoje como modo de superar a barbárie ocasionada pelo empobrecimento da linguagem e da experiência. Essa perspectiva em nada combinaria com a concepção benjaminiana de história para a qual a articulação do passado com o presente só faz sentido se queremos dar um outro acabamento à história. O passado para Benjamin seria o ponto de referência da utopia. O ponto de referência da utopia n’O Narrador... é o conselho, ensinamento que não é imposto, mas que é tecido alteritariamente. Este é elemento da narrativa tradicional que deveria ser trazido para a 120 narrativa do presente para garantir a permanência do diálogo entre os homens. Isso só pode ocorrer se a contemporaneidade se sentir visada pelas virtudes do conselho. Como parece acontecer com os jovens entrevistados. 121 122 Considerações Finais: Contribuições para se pensar práticas educativas interculturais. “Então, talvez lá ninguém entenda o que a gente aqui sente lendo mangá e vendo anime...”. A fala de um dos jovens entrevistados que trago aqui como epígrafe aponta a distância entre as experiências culturais juvenis e a escola. Como o depoimento não se refere à escola, mas aos leitores da Academia, não parece demais tomá-lo como alerta sobre a responsabilidade de nossas pesquisas de auxiliarem a escola a se aproximar dessas experiências, o que poderia garantir a ela tomar a si o seu papel institucional de educar as gerações mais novas, promovendo que elas, de fato, se apropriem dos benefícios da escolarização. Como mostram Green e Bigum (1995), a ignorância sobre as experiências culturais dos alunos é uma constante nos processos de escolarização do mundo ocidental, sendo urgente que os educadores se dediquem a avaliá-las alteritariamente, entendendo como elas concorrem para a constituição das identidadesalteridades sociais dos estudantes. Essa foi a principal motivação desse estudo, que me possibilitou chegar mais perto, e de forma mais sistemática, de jovens leitores de mangá, na tentativa de construir argumentos para mostrar à escola que, como eu já intuía por experiência própria, essa prática pode não ser mecanicamente atribuída à cooptação de “dóceis audiências” aos desígnios ideológicos da poderosa indústria cultural. Se, por motivos óbvios, não pude me abstrair do cenário da investigação, lidando com o objeto como estrangeiro, tomei todas as precauções para que minha condição de nativo na matéria em estudo não se constituísse como prerrogativa para que eu colocasse o “carro diante dos bois”. No final e ao cabo, esse foi um bom exercício: cumprida a tarefa, saio dela fortalecido em minhas convicções e com mais capacidade teórica para defender com conhecimento de causa o que antes eu já defendia: “ninguém é idiota por ter dezesseis anos e curtir mangás” (Neves, 2006). Se antes, essa declaração poderia ser desclassificada como mera opinião, invalidada como senso comum, agora ela passa a ser uma interpretação avalizada cientificamente. Destaco a dimensão de interpretação dos meus achados para esclarecer que não tomo o que defendo como uma verdade absoluta. Isso seria incorrer na mesma arapuca dos estudos da recepção de acepção apocalíptica que - priorizando a análise da mensagem sem procurar saber o que as audiências fazem com o que consomem – concluem, não certamente sem 123 procedência, sobre o caráter maléfico da mídia, ressaltando sua dimensão colonizadora capaz de, sub-repticiamente, condicionar os receptores a constituírem subjetividades conformes à ideologia da cultura de consumo. A orientação teórica dos Estudos Culturais latino-americanos – que sugere que o consumo e a recepção dos meios não é imediata, mas mediada, sugere a opção por um caminho diverso. Se, segundo tais estudos, as mediações que se interpõem entre as mensagens e as audiências são responsáveis pelos sentidos atribuídos pelos sujeitos aos meios, é indispensável chegar perto dos sujeitos, buscando compreender o que fazem, e porque, com os produtos da mídia. Foi o que procurei fazer nesse estudo de base etnográfica que, exigindo uma atitude aberta e flexível na coleta e na análise dos dados, me permitiu chegar a aspectos da relação dos sujeitos da pesquisa com os mangás ainda novos para mim que compartilho com eles dessa prática há tanto tempo. Se busquei manter essa atitude aberta e flexível, minha condição de leitor e produtor dessas HQs3, participante de comunidades de fãs de animes e mangás, a descrição, compreensão e interpretação da situação em foco não pôde deixar de estar relacionada a essa condição, daí eu não poder generalizar os achados como verdade. Nesse sentido, a interpretação de que a relação do jovem com o mangá aponta para modos de ser jovem que não estão sendo legitimados pela escola – é uma interpretação possível. A generalização, melhor seria dizer a legitimação, da idéia de que “ninguém é idiota por ter dezesseis anos e curtir mangás” (Oswald e Neves, 2006) ou, em outros termos, de que as experiências juvenis no plano da cultura provém de atores sociais historicamente constituídos, depende de outras pesquisas, de outros olhares e de outras interpretações. De minha parte, foi a essa conclusão que cheguei com esse estudo. Por um lado, não dá para abstrair, no caso dos jovens que acompanhei, que sua experiência com os artefatos da cultura praticamente restringe-se ao tripé da indústria de entretenimento japonesa. Se esse é um aspecto que preocupa porque limita a construção da expressividade juvenil, caberia perguntar se essa situação não seria fruto da escassa oferta pela escola e pelo Estado de atividades culturais que incentivassem o jovem a se aproximar de outras práticas culturais. No que se refere a isso, causa estranheza as críticas dirigidas aos jovens que se deixam cooptar pelo apelo das indústrias que promovem o consumo e a recepção dos produtos da cultura de massa. Se isso ocorre é porque elas ocuparam um espaço que está vazio. 3 Ver http://www.aventureirosdopoente.com/ 124 Por outro lado, sem deixar de admitir tal limite, minha implicação com esse estudo mostrou que parece um equívoco pré-julgar a relação dos jovens com esses produtos. O contato com os sujeitos da pesquisa me mostrou que ler mangá é sim entretenimento, mas não necessariamente alienante, escapista e apolítico. Além de ensejar o consumo e, portanto, a solidificação da poderosa indústria de entretenimento japonesa, e a diversão ruidosa e animada de seus fãs no universo exótico dos animencontros, os mangás levam seus leitores a sonhar, a pensar a respeito de suas condições e de suas experiências, a posicionar-se diante da vida e da sociedade e a acreditar em ideais que entendem como escassos hoje em dia. Essas atitudes e aspirações, determinadas pelas sociabilidades que o consumo e a recepção dos produtos japoneses supõem, vão afetando seus modos de ser e é, nesse processo de interação e troca, que eles vão construindo suas identidades, como procurei mostrar nos capítulos anteriores. A aproximação do seu universo cultural revela o quanto as identidades podem não ser estáveis, como sugere a concepção de juventude pautada em critérios desenvolvimentistas, mas múltiplas e móveis. O mesmo sujeito que é considerado alienado, incompetente, irresponsável, imaturo, indisciplinado na escola, pode se revelar crítico, implicado com questões sociais, preocupado com valores como solidariedade, bondade e justiça, interessado em questões relativas ao conhecimento científico acumulado pela humanidade, questões que caberia justamente à escola transmitir. Coisa que ela não vem conseguindo em função de sua tendência a desprestigiar as experiências dos alunos. Por essa razão, tudo indica que seria fundamental que a escola tentasse olhar para os contextos nos quais os jovens vêm constituindo suas identidades. Acredito e defendo que esse é um passo indispensável para que possamos, nós professores, refletir adequadamente acerca de estratégias educacionais que legitimem as práticas juvenis, reconhecendo o jovem como um sujeito em ação hoje, e não como um “adulto em potencial” que ainda irá desenvolver habilidades e se efetivar, no futuro, como sujeito. Da mesma forma que não há "a juventude", mas várias, não dá para pressupor que exista "o aluno". Tal rótulo não pode dar conta da imensa variedade de identidades presentes em uma sala de aula, onde um único aluno encontra-se filiado, simultaneamente, às mais diversas experiências juvenis. Se for objetivo da escola estabelecer um diálogo com os jovens aprendizes que a freqüentam, seria necessário que, de antemão, ela renegasse seu modelos arquetípicos de juventude, buscando 125 conhecer de fato os jovens com os quais atua, dentro e fora da escola, descobrindo como eles constituem seus modos de ser jovem. Pesq: Você acha que a escola podia aprender alguma coisa com os Mangás? Bya: Não sei. Acho que todos podem aprender coisas... Até minha mãe aprenderia algo... Pode não ser tão importante quanto é para as pessoas da minha idade, mas a gente aprende com tudo. Daniel: A escola poderia aprender com o mangá que somos feitos de mais coisa do que matemática, física e biologia... Que somos feitos de sentimentos e queremos viver emoções. Henrique: A escola podia aprender que a hora de ser feliz é agora e não depois que eu passar no vestibular. Não que isso não seja importante... Mas a vida é agora também. Toha: Eu queria que a escola fizesse a diferença como o mangá. Que ela dissesse algo que fosse importante para mim. Mas a escola nem sabe quem eu sou... Eu sou só mais um. O jeito é esperar o tempo passar. Os depoimentos sugerem que a escola não enxerga o jovem que a freqüenta. Que ela o observa a partir do estereotipo social, isto é, de uma forma negativa, não conhecendo assim o jovem real. Mostra também a incapacidade de professores de olhar além dos muros da escola, transcendendo os limites dos objetivos formais de suas disciplinas. Essas são algumas das causas das muitas dificuldades existentes para o diálogo entre os jovens e seus professores. Na verdade, parece que esses últimos não são capazes sequer de perceber o quanto são limitados na compreensão dos desejos, anseios e valores que constituem os jovens que os rodeiam. Presa a teorias de desenvolvimento e de ensino e aprendizagem que não mais correspondem às experiências juvenis contemporâneas, a escola não tem conseguido se transformar a ponto de reconhecer e valorizar as múltiplas culturas juvenis e, com isso, acaba desvalorizando e desprezando modelos formativos outros que ainda não são valorizados teoricamente. De acordo com Paulo Freire (1996), a tarefa pedagógica da escola é ampliar nos jovens aprendizes a sua condição de humanos. Isso demandaria, em primeiro lugar, ampliar a compreensão sobre os jovens, escutando-os, entrevendo em suas práticas culturais, e nas formas de sociabilidade que desenvolvem, traços de uma luta pela sua humanização, diante de uma realidade que insiste em desumanizá-los. 126 A relação dos jovens com os mangás mostra isso: até mesmo seus heróis são humanizados, sujeitos a falhas, mortais... A todo o momento sentimentos e emoções que transbordam por olhares e expressões surgem como componentes fundamentais. Assim, se quisermos contribuir para a formação humana desses jovens, seria bom que os encarássemos como “heróis” do cotidiano que são. Levar em conta os jovens como “heróis” do cotidiano implica repensar a escola e as práticas educativas. Implica em escutá-los para que sejam reconhecidos como protagonistas do processo educacional, permitindo-lhes seu exercício de direito: a atuação mais direta nos rumos de sua própria aprendizagem. Para tanto é fundamental que se estimule o interesse pelo saber, mas dialogando com os interesses e necessidades dos próprios jovens e não com premissas estabelecidas em tempos pretéritos que privilegiam ideais e valores anacrônicos. Enfim, o estudo que apresento pretende ser uma peça do mosaico que, acredito, precisa ser construído para que a relação entre mídia e educação seja encarada como um campo de estudos que necessita ser constituído. Se é descabido imaginar que este campo poderia vir a resolver os sérios problemas do sistema educativo, por outro lado ele poderia fornecer contribuições consistentes à superação da contradição que vem sendo imposta aos jovens de viverem num mundo high tech e terem que conviver com o anacronismo da escola. A aproximação entre mídia e educação poderia ensinar à escola a investir num olhar mais amplo e dinâmico, capaz de lidar com a velocidade das mudanças e com a multiplicidade do real. É importante que tal olhar seja crítico e nem por isso menos carregado de sentimento. É preciso que olhemos além. Talvez seja preciso um olhar mais mangá. Já é tempo de aprender com os aprendizes. 127 ANEXO Sites de onde foram extraídas as imagens utilizadas Fig. 1 http://www.taharamuseum.gr.jp/lib_image/kazan/kamishibai2.jpg http://www.aikisky.com/pics.php Fig. 2 http://du9.org/article.php3?id_article=725 Fig. 3 http://retrotv.uol.com.br/fantomas/fotos.asp Fig. 4 http://sunblade.iespana.es/Series/Fantasmagorico/ Fig. 5 http://p.espace.free.fr/mangas/mangakas http://www.sonic.net/~anomaly/japan/manga/tezuka.htm Fig. 6 http://i.s8.com.br/images/books/cover/img9/190419.jpg http://www.hanabatake.com/research/tezuka.htm Fig. 7 http://www.submarino.com.br Fig. 8 Idem ao anterior. Fig. 9 Idem. Fig. 10 Arquivo pessoal. Fig. 11 Arquivo pessoal. Fig. 12 Arquivo pessoal. Fig. 13 Arquivo pessoal. Fig. 14 Arquivo pessoal. Fig. 15 Arquivo pessoal. Fig. 16 Arquivo pessoal. Fig. 17 http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=22699641 Kenshin Fig. 18 http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=797160 viciado em mangás Fig. 19 http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=6022014 sala de aula Fig. 20 http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=797160&tid=18144049 viciado em mangás Fig. 21 Mangá Rurouni Kenshin no 23, pág. 13. 128 Fig. 22 Mangá Rurouni Kenshin no 23, pág. 12. Fig. 23 Mangá Rurouni Kenshin no 17, pág. 40. Fig. 24 Mangá Rurouni Kenshin no 20, págs. 16 e17. Fig. 25 Mangá Rurouni Kenshin no 47, pág. 25. Fig. 26 Mangá Rurouni Kenshin no 55, pág. 75. Fig. 27 Mangá Blade no 3 págs. 34 e 35. Fig. 28 Mangá Rurouni Kenshin no 30, págs. 60 e 61. Fig. 29 Mangá Rurouni Kenshin no 34, págs. 62 e 63 Fig. 30 http://www.paninicomics.com.br/img/collanaNews/1304.jpg http://mindrover.users.50megs.com/Images/rpg_splash.jpg Fig. 31 http://www.douban.com/lpic/s1637036.jpg http://www.vgmuseum.com/scans/mcd/record.jpg http://www.paninicomics.com.br/img/collanaNews/1078.jpg 129 Referências Bibliográficas ABRAMO, Helena Wendel e BRANCO, Pedro Paulo M. Retratos da juventude brasileira: Análises de uma pesquisa nacional. São Paulo: Instituto Cidadania, Editora Fundação Perseu Abramo, 2005. BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa, Editora Edições 70, 2007. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: zahar, 1999. BENJAMIN, Walter. O Narrador Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e Técnica, Arte e Política – ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, volume I, 2ª edição, São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. NAVES, Mauro Bilharinho. 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