História da escrita

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História da escrita
Fonte: Scientific American Brasil - Edição No 40 - setembro de 2005
A saga do abecedário
Por Herbert E. Brekle
O alfabeto latino é o ponto culminante da evolução de uma escrita que começou há 3.500 anos na
península do Sinai. Descobertas recentes revelam os princípios que conduziram à mudança na forma das
letras do alfabeto, de suas origens ideográficas aos atuais traços abstratos.
Este texto semita do século X a.C. facilmente decifrado é um calendário
de agricultores , que indica, a cada mês, a melhor forma de cultivo.
Como seria nosso mundo sem escrita? Não existiriam jornais, livros e cadernos escolares, assim
como não existiriam anúncios luminosos de néon - e se fosse assim, teríamos de nos conformar.
Experiências de vida não poderiam ser registradas, e as tradições só poderiam ser passadas para gerações
futuras de forma oral. Sem o advento da escrita é quase impossível imaginar a civilização.
O alfabeto é para nós algo natural. Por isso, quase ninguém pensa de onde vieram realmente as letras
do alfabeto que hoje utilizamos. No entanto, a invenção do alfabeto não foi algo espontâneo e está marcada
por um longo processo de desenvolvimento.
Nosso alfabeto começou sua viagem através do tempo e do espaço há três milênios e meio, no Egito.
Lá os semitas criaram, com base, em parte, nos hieróglifos, as formas das letras do chamado alfabeto
proto-sinático.
Dessa escrita arcaica e ainda muito pictorial, desenvolveu-se posteriormente o alfabeto fenício.
Exportado por comerciantes e navegantes para a Grécia, esse alfabeto continuou a modificar-se, passando
pelos etruscos e romanos até chegar ao nosso alfabeto atual.
Há muito tempo os lingüistas descrevem as constantes mudanças presentes no processo de
configuração das letras do alfabeto, mas é difícil entender suas razões e causas. Apesar da notável
tendência à simplificação e à abstração dos signos da escrita, muitas das mudanças parecem até hoje
casuais aos olhos dos lingüistas.
Sem dúvida, o acaso sempre fez parte do desenvolvimento de nossa escrita - do mesmo modo que
também exerceu influência sobre a evolução biológica: ele cria variantes, cujas utilidades precisam ser
comprovadas de acordo com as demandas cotidianas. Na verdade, atrás das mudanças na forma das letras
esconde-se a capacidade do ser vivo em se adaptar às particularidades do ambiente - no caso do alfabeto,
isso pode ser percebido na utilização de diferentes materiais escriturários.
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Assim, efetivam-se critérios de seleção que controlam o processo de desenvolvimento e,
especialmente, as condições da escrita motora e a vantagem de uma capacidade de reconhecimento visual,
rápida e inequívoca. Desde a era do bronze, esses critérios de seleção atuaram no sentido de modificar e
simplificar constantemente a forma das letras, e com isso otimizaram-na passo a passo.
Como descobri e gostaria de demonstrar aqui, uma das estruturações introduzidas pelos fenícios
desempenhou um papel importante nesse processo. Essa estrutura, a qual batizei de hasta+coda, está
presente em grande parte dos signos da escrita. Em conjunto com propriedades de simetria, ela produz
alguns princípios fundamentais e simples, a partir dos quais podemos compreender o desenvolvimento da
forma das letras latinas, não apenas como adequado empiricamente, mas também como algo que se
explica teoricamente.
Raízes Semitas
Voltemos à origem do nosso alfabeto. Por volta de 1.500 a.C. havia na península do Sinai, que
pertencia ao território egípcio, trabalhadores semitas "convidados". Provavelmente com base em seu
conhecimento dos hieróglifos egípcios, eles desenvolveram uma escrita alfabética pura, na qual um signo
representava apenas um som específico. Os hieróglifos, diferentemente, eram a mistura de uma escrita de
palavras e consoantes, na qual alguns símbolos correspondiam a uma consoante, e outros, a uma palavra
inteira.
As letras do alfabeto, que os semitas criaram na península do Sinai, correspondiam apenas às
consoantes do dialeto falado por seus inventores - algo como se em vez de "gramática" escrevêssemos
"grmtc". Tal escrita era adequada à estrutura da língua dos semitas e até hoje é usada no hebraico e no
árabe. Os primeiros textos escritos com essas letras, gravados em pedra, registravam invocações divinas e
outros assuntos religiosos.
A forma das letras proto-sináticas era ainda muito pictorial: uma cabeça de boi asimbolizava, por
exemplo, o aproximante lateral alveolar semita / b/, que aparece também no alemão em vogais tônicas, no
início das palavras. Uma cobra c correspondia a /n/, a planta de uma casa d a /b/ e assim por diante. (Os
lingüistas anotam entre barras os tipos de som de uma língua, os chamados fonemas.)
A letra representa aqui o primeiro som da palavra semita para o objeto representado. Uma cabeça de
boi a significa "boi" - o correspondente semita é balep - e também o som de obstrução da glote no início
dessa palavra / b/. Analogamente, /b/ é derivado de bet, palavra usada para designar "casa". A letra inicial
de kap ("mão") representa /k/ e a inicial de mem ("água") representa /m/. Suas formas em letras protosináticas são e e f. O primeiro signo representa uma mão humana com polegar recolhido.
A água é representada como uma superfície ondulada.
Partindo do mote "tudo é uma questão de costume", os escritores semitas, com crescente prática,
acabaram simplificando, ao longo do tempo (até aproximadamente 1100 a.C.), o inventário das formas de
seu primeiro alfabeto. Eles queriam que as letras pudessem ser escritas com mais fluência, com o auxílio de
uma cunha ou de um cálamo. Essas letras foram configuradas com base nos antigos signos pictoriais,
porém de forma mais abstrata e simples. Os símbolos se tornaram assim, ao mesmo tempo, mais
inequívocos e fáceis de decorar. Porém, perderam gradativamente a semelhança com a imagem, que servia
como suporte imediato da memória.
No decorrer desses ajustes o e kap foi simplificado, por exemplo, por g, perdendo assim uma das
pontas semelhantes às de um garfo. Os fenícios, ao adotar e continuar o processo de desenvolvimento do
alfabeto semita por 3 mil anos, deram um passo à frente: deram à letra kap a forma h.
Como se explica tal transformação? Os escritos semitas eram lidos e também escritos da direita para
a esquerda - o que afeta a seqüência das letras. Porém, ao desenhar as letras - como os três traços de g os escribas semitas muito provavelmente moviam a mão da esquerda para a direita.
Traço Final
Pode-se facilmente imaginar a maneira com que a terceira ponta da letra, num impulso motor da mão,
prolongava-se para baixo, transformando-se em um traço final. Essa inovação foi aperfeiçoada pelos
fenícios, que uniram as duas primeiras pontas da letra g em um ângulo, voltado para a esquerda. Assim, a
letra era composta então por dois elementos, que deixavam a escrita mais rápida: um gancho curto i e um
traço final, que servia de apoio ao vértice do ângulo - daí dá-se h.
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Essa divisão em duas partes pode ser observada em cerca de metade das 22 letras do alfabeto
fenício. Dei a cada elemento estrutural uma identificação própria. Chamo o primeiro, o elemento da
esquerda, de coda ("cauda" em italiano, do latim cauda), e o segundo, o elemento da direita, de hasta
("haste" ou "lança" em latim). Como traço final, a hasta parece-se com uma "haste" vertical. A coda, por
outro lado, é formada de acordo com a direção da leitura, que vai da direita para a esquerda, como se fosse
a "cauda" da letra - mesmo se ela for escrita em primeiro lugar.
Com essa divisão em duas partes, pode-se explicar também, sem muito esforço, como mem f ("água")
e nun c (cobra) adquiriram depois as formas de k e l. Pode-se perceber claramente que ambos os signos mais uma vez por causa da escrita - contêm, da mesma maneira, um traço final vertical.
Em waw m ("martelo") e rosch n ("cabeça") a estrutura hasta+coda é aplicada já nas primeiras formas
pictoriais das letras. O primeiro signo desenvolveu-se, depois passou por o e posteriormente pela forma p,
na qual o arco da coda está posicionado acima e à esquerda. De maneira análoga, rosch n foi também
simplificado, assumindo a forma r. O traço final origina-se da nuca e da parte posterior da cabeça; na porção
mais alta à esquerda, o perfil estilizado transformou-se em um ângulo, que representa a coda.
A estrutura hasta+coda alimenta-se de duas fontes. A primeira origina-se de um impulso do ato de
escrever, gerando traços mais ou menos verticais. Na outra, a direção da linha, presente já nos primeiros
signos pictoriais, converte-se, como que por si própria, numa estrutura hasta+coda, através de
simplificações motoras da escrita.
Dessa forma pode-se dizer que as letras possuem uma direção: elas transformam-se em vetores, que
apontam para a esquerda. Assim, garantem que a direção da leitura e da escrita siga da direita para a
esquerda (o que afeta a seqüên-cia das letras). O resultado é a criação de um padrão, tanto ao se escrever
um texto, quanto na apreensão e decodificação das letras, que faz com que o leitor assimile o texto da
direita para a esquerda. Assim, por um lado, a escrita ficou mais fluente, enquanto, por outro, o
reconhecimento e a compreensão se tornaram mais fáceis - uma dupla vantagem relacionada ao advento
do alfabeto fenício.
"balep", disse um fenício lentamente. Depois, sob a luz fraca de uma lanterna a óleo, pendurou uma
plaquinha em frente a seus alunos gregos, contendo a letra x. Assim continuou, placa após placa, até
percorrer todo o alfabeto fenício: s - "balep", t - "bet", u - "he", p - "waw", v - "yod", S - "wayin" e assim por
diante. A cena não é verdadeira, mas a transmissão do alfabeto poderia ser representada por um fenício
que passa seu conhecimento a alunos gregos sedentos de saber, por volta de 800 a.C.
Apropriação Grega
Um problema é posto para o pobre estudante grego: alguns sons iniciais do nome das letras do
alfabeto fenício não soam familiares e, principalmente, não há correlato para eles em sua língua indoeuropéia. Mas o estudante descobre rapidamente a solução: ele procura sons que se assemelhem aos de
sua língua e que soem de modo familiar (ver quadro na pág. 41, em cima). Assim, ele substitui o som de
bloqueio da glote /b/ de balep, que não existe em sua língua materna, pelo som /a/ que lhe parece
semelhante. Esse procedimento possui um efeito reconfortante, e faz com que o novo significado da letra
possa ser representado por uma vogal grega; vale lembrar que os fenícios semitas escreviam apenas as
consoantes. Assim, os gregos organizaram um alfabeto capaz de representar na escrita grande parte dos
sons de sua língua.
As letras das primeiras inscrições gregas ainda apresentam, praticamente, a mesma forma daquelas
utilizadas pelos fenícios do mesmo período. As primeiras grandes mudanças se deram nas letras alpha,
beta, delta e iota. Assim o x transformou-se em s - a boca do boi não apontava mais para a esquerda e para
baixo, mas para a direita e para cima. Com mais um giro no sentido anti-horário a letra ficou de pé: B. Essa
transformação adapta-se perfeitamente à estrutura hasta+coda.
Do espelhamento horizontal da letra fenícia t dá-se C, que às vezes também é escrita com dois
semicírculos como em D. Observa-se aqui que a estrutura hasta+coda é preservada. O fenício dalet 5
aparece como delta em três variantes: E, F e G. As duas primeiras mostram, mais uma vez, a estrutura
hasta+coda típica e a segunda, arredondada para acelerar a escrita, encontra finalmente sua forma
canônica no alfabeto romano (espelhada, em função da inversão do sentido da escrita, que agora passa a
ser da esquerda para a direita). A terceira, variante axial simétrica, corresponde à forma clássica e moderna
da letra delta. O iota arqueado em forma de anzol foi logo substituído por um traço vertical simples j, que
corresponde a uma hasta sem coda.
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Os gregos diferenciam-se também, em outro ponto, de seus mestres fenícios: eles não se fixam mais
estritamente no sentido da escrita e da leitura, que se dá da direita para a esquerda. Assim, parte dos
primeiros textos gregos foi escrita também da esquerda para a direita. Mais interessante é perceber que os
gregos faziam uso de uma forma mista de escrever e alternavam, linha a linha, a direção da escrita. Os
gregos cunharam a expressão boustrophedon, "como os bois aram a terra". Dessa forma, quando uma linha
termina, não é preciso desviar o olhar para o início da próxima linha, basta dar "marcha à ré" e continuar a
leitura.
Pode-se dizer então que as letras com estrutura hasta+coda seguem, em sua orientação, a direção da
escrita correspondente: a coda olha sempre para a frente, em determinado sentido. Os escritores e leitores
da Grécia Antiga não consideravam arbitrária a sucessão de linhas, mas como símbolo direcionado. Isso
comprova o quão profundamente a estrutura hasta+coda estava ancorada em seu pensamento.
Como citei anteriormente, as letras indicavam, constantemente, a direção da leitura porém, nos textos
boustrophedon, sua orientação mudava de uma linha para a outra: cada par de linhas parecia uma escrita
espelhada.
Para seguir corretamente o texto, era necessário que o leitor e o escritor fizessem um considerável
esforço de elaboração: a cada linha, ambos precisavam mudar completamente sua programação neuronal,
responsável pela produção e reconhecimento de textos. Letras com um eixo de simetria vertical eram como
uma bênção, uma vez que permaneciam iguais. No início, porém, apenas algumas poucas letras
apresentavam tal simetria, como o H zeta, que mais tarde, devido à motricidade da escrita, foi simplificada
na forma de Z, o I (h)eta que mais tarde se tornou H, o J theta, o S omikron, o K tau e as letras adicionais
criadas pelos gregos F phi, X chi, Y psi e W omega. Aproximadamente, no século VI a.C., as formas B, L, k,
N e O passaram a ser simétricas. O motivo dessa mudança é facilmente explicável: a simetria axial facilitava
o reconhecimento das letras numa escrita de direção alternada.
Posteriormente, no século IV d.C., foi estabelecido que a direção da escrita língua grega seria da
esquerda para a direita. De certo modo, o princípio hasta+coda foi preservado. O hasta passou,
simplesmente, de traço final para inicial. Com isso a função motora da escrita foi modificada: ela não era
mais a expressão da energia excedente de movimento ao final da letra, mas o impulso com o qual o escritor
começava a escrever um signo.
Provavelmente, esse papel está também no fundo da segunda função do princípio hasta+coda:
orientar as letras no sentido da leitura para facilitar o seu reconhecimento pelo sistema visual. De todo
modo, esse princípio influenciou também, como se pode perceber, as futuras transformações na forma das
letras nos alfabetos grego e latino - provavelmente, como princípio regulador inconsciente. Isso ressalta o
fato de que não se trata aqui de uma marca casual das configurações da escrita fenícia, mas de um
dispositivo de auxílio à escrita e à leitura, enraizado em processos neuronais.
Foi mencionado que o princípio hasta+coda não exerce um papel no desenvolvimento da escrita
proto-sinática no caso das línguas hebraica e árabe. No entanto, podemos apenas especular sobre os
motivos desse fato.
Rumo a Oeste
Considera-se, em geral, que os fatores motores da escrita só podem ser operados quando um texto é
escrito manualmente, sob uma base, com uma cunha, uma pena ou qualquer outro instrumento. No caso
das inscrições talhadas, ao contrário, esses fatores atuariam de forma natural e indireta. No entanto,
também aqui os acidentes são muitas vezes assimilados, levando a modificações motoras da escrita. Podese dizer que a utilização da escrita cursiva foi o ponto de partida principal para as mudanças na forma das
letras. Até os primeiros gregos, era consensual o uso apenas de letras maiúsculas. Porém, essa disposição
começou a mudar quando o alfabeto seguiu seu rumo em direção ao oeste.
Ainda no século VIII a.C., o alfabeto da metrópole grega atingiu suas colônias do sul da Itália. De lá, foi
apropriado por etruscos e romanos - com pequenas modificações. A célebre inscrição lapis niger, que data
aproximadamente do ano de 600 a.C., apresenta uma impressão de tipos romanos arcaicos, inscrita sobre
um monumento - usando ainda a escrita de direção alternada, em estilo boustrophedon.
Paralelamente, houve a necessidade crescente de se desenvolver uma escrita cotidiana, que é de
fundamental interesse para a temática deste artigo. Porém, esses registros não se conservaram. Eles são
encontrados apenas a partir do terceiro século antes de Cristo. Um exemplo especialmente importante
provém do século I .É uma carta, escrita com um cálamo sobre papiro, material de escrita mais utilizado
pelos antigos.
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Nessa carta, as letras ainda eram dispostas separadamente, mas já se podia perceber algumas
marcas da nossa escrita cursiva atual. Como é o caso da utilização de letras maiúsculas e minúsculas,
observada aqui pela primeira vez. São visíveis as diferenças entre inscrições do mesmo período, gravadas
em pedra. Nessas inscrições, as letras preenchiam exatamente os espaços delimitados por linhas inferiores
e superiores. Na carta, ao contrário, alguns signos determinados quebravam o sistema clássico de duas
linhas, avançando para baixo e/ou para cima. Esse fenômeno pode ser facilmente observado nas letras U,
V, W, X, Y, e Z (= r).
O rompimento desses limites e suas causas tornam-se ainda mais fundamentalmente claras no século
I d.C. Escavações nas províncias romanas de Pompéia e Herculano, soterradas pelo Vesúvio no ano de 79,
propiciaram a descoberta de cem inscrições, que constituem um rico acervo para a reconstrução das
mudanças motoras ocorridas na forma das letras do alfabeto. Elas continham, especialmente, informações
sobre o cotidiano: os escritores as eternizavam, utilizando cunhas, pincéis ou penas, gravando-as sobre
superfícies minerais ou de madeira; o estilo da escrita poderia ser definido como algo entre cuidadoso,
dinâmico e solto.
À primeira vista, a forma das letras apresenta um considerável leque de variantes. Porém, analisandose com atenção, percebe-se que a aparente "orgia" desregrada dos signos, avançando ora para cima, ora
para baixo, é determinada estruturalmente. O fator determinante aqui é, mais uma vez, o princípio
hasta+coda.
Podemos tomar como exemplo uma confissão de culpa - escrita apressadamente, à tinta, sobre
madeira - composta por seis signos, que ultrapassam os limites estabelecidos pelas letras de comprimento
médio, como o, n, e v (que na época era idêntico ao u), e se movimentam, então, de acordo com um
sistema de quatro linhas. Trata-se aqui do 0 (= h), Z (= r), 1 (= d), 2 (= b), X (= s) e V.
Essas letras se formam da junção de um traço vertical, portanto uma hasta, com apêndices à
esquerda ou à direta, que podem ser chamados de codae. Assim, da união entre j e 4 tem-se um 0.
Uma característica decisiva desses seis signos é o fato de que as codae não envolvem
completamente nem limitam os dois lados do traço - como ocorre com o T de Sextio na penúltima linha (na
imagem, marcado em amarelo). A hasta é livre em pelo menos uma direção, e cabe a quem escreve
expandi-la - no caso do 0 para cima, do Z ou do V, ao contrário, para baixo (de acordo com aposição da
coda na hasta). O resultado é que as figuras coda permanecem no campo das letras de comprimento
médio, as que se prolongam para cima e para baixo têm apenas hasta.
Letras Minúsculas
Para minha convicção, os "exageros de Pompéia" são a fonte para as nossas letras minúsculas,
escritas num sistema de quatro linhas. Apenas a partir do século III d.C. os signos dos vários tipos de
escrita romana foram padronizados, e os critérios das hastas verticais livres definidos. Eles apresentaram,
posteriormente, formas mais rígidas até chegar ao nosso atual inventário de formas: b, d, f, g, h, k, l, p, q, (r)
e (=s) (porém, em seu processo de desenvolvimento, essas letras sofreram modificações até o período
carolíngio). Todas as letras restantes permaneceram com o comprimento médio do esquema de quatro
linhas. Conseqüentemente, é nelas que se encontra a maior densidade de informação óptica - delas fazem
parte também as figuras coda das letras que se prolongam para cima ou para baixo.
A uniformidade neste campo tornaria difícil a decodificação pelo sistema visual: não haveria pontos
marcantes, com base nos quais o leitor pudesse rapidamente se orientar. Os prolongamentos das letras
para cima e para baixo oferecem essa ferramenta. Eles dão às palavras contornos característicos e
psicologicamente fazem com que sua leitura seja rápida, e sua assimilação, possível.
Por fim, temos de agradecer aos fenícios por terem desenvolvido um alfabeto que serviu de base para
o nosso e facilitou o trabalho do nosso sistema de percepção. Os antigos escritores, ao inventar novas
letras usando o traço como elemento final, introduziram um princípio estrutural que até hoje nos beneficia - e
não exclui os leitores desta revista.
Se nossa escrita em sua viagem pelo tempo conseguiu alcançar o melhor, no que diz respeito ao seu
movimento e à possibilidade de leitura, permanece ainda em aberto. De qualquer modo, hoje as canetas
foram substituídas pelas teclas. Além disso, nosso mundo global, composto de estados emaranhados,
impede a continuação de um desenvolvimento natural, uma vez que a burocracia cultural desses estados
regula todos os interesses da escrita. Não se toca mais na forma fundamental das letras. É apenas na
sutileza de profissionais da tipologia (como Times ou Helvetica), que ainda sobrevivem variações e
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pesquisas que estudam como a forma dos tipos pode se relacionar a uma boa leitura. Mas essa é outra
história.
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