Andanças para a Liberdade 1
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Andanças para a Liberdade 1
Andanças para a Liberdade 1 Camilo Mortágua COLECÇÃO PALAVRAS COM HISTÓRIA PRIMEIRA SÉRIE | FICÇÃO 1. Os Guerrilheiros da Morte (Romance Histórico) Manuel Pinheiro Chagas 2. A Padeira de Aljubarrota (Novela Histórica), seguida de Auto Novo e Curioso da Padeira de Aljubarrota onde se contam a vida e as façanhas desta valorosa matrona J. A. de Oliveira Mascarenhas & Diogo da Costa 3. O Olho de Vidro (Romance Histórico) Camilo Castelo Branco 4. Os Crimes de Diogo Alves (Biografia Romanceada) Leite Bastos SEGUNDA SÉRIE | NÃO-FICÇÃO 1. Enquanto se esperam as naus do reino… João Aranha 2. Andanças para a Liberdade. Volume I: 1934-1961 Camilo Mortágua 2 Andanças para a Liberdade (frontispício 1, designglow) COLECÇÃO PALAVRAS COM HISTÓRIA SEGUNDA SÉRIE • 2 3 Camilo Mortágua Título Andanças para a Liberdade Volume I: 1934-1961 Autor Camilo Mortágua Direitos Reservados © Esfera do Caos Editores Lda e Autor Design DesignGlow Impressão e Acabamento Papelmunde SMG Lda Depósito Legal XXXX ISBN 978-989-8025-77-7 1ª Edição: Abril de 2009 ESFERA DO CAOS EDITORES LDA Campo Grande Apartado 52199 1721-501 Lisboa [email protected] www.esferadocaos.pt 4 Andanças para a Liberdade (frontispício 2, designglow) Contextualização temporal Heloísa Paulo Iconografia Aníbal Lemos Prefácio Luís Reis Torgal 5 Camilo Mortágua 6 Andanças para a Liberdade Fazer sermões sobre a liberdade, sem se implicar no esforço de estabelecer as condições prévias à responsabilidade da sua prática quotidiana, leva-nos ao fascismo. Wilhelm Reich 7 Camilo Mortágua 8 Andanças para a Liberdade Para a Inês, Mariana e Joana Impulso maior para este trabalho. Também para o Jorge e para a Fátima. Agradecimentos Ao Júlio Fernandes pela enorme e dedicada colaboração prestada na recolha de documentação útil. Ao Gino e à Irene, pela calorosa hospitalidade em Caracas. A todos os Mortáguas de Salreu e Estarreja pelo acolhimento. À Eduarda e ao Francisco pela dedicação dada à correcção deste trabalho e à nossa longa amizade. Ao Joaquim Alberto, à Annie e a todos quantos se disponibilizaram para cooperar neste projecto, com as minhas desculpas antecipadas aos que aqui não citei e um renovado convite para que participem nas seguintes. Aos inúmeros incentivadores que ao longo dos anos me têm “exigido”o relato destas andanças. A todos, testemunho os meus sinceros agradecimentos. Camilo Mortágua 9 Camilo Mortágua 10 Andanças para a Liberdade “andanças” Volume I 1934-1961 Simples andanças de crescer e brincar, de aprender, de aventurar. Andanças de viver e arriscar o que apenas se tem, sonhos e vida, pela Liberdade. 11 Camilo Mortágua 12 Andanças para a Liberdade Índice Prefácio 15 Antevisão prospectiva das “andanças” 17 Contextualização temporal Da construção e afirmação do Estado Novo aos movimentos da oposição 21 AS ANDANÇAS 49 Capítulo primeiro 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. As origens 37 E assim vos conto os primeiros anos do “Come e Cala” A viagem inicial Em casa dos Mortáguas O Tó Xarela e o Batata Madrugadas de aventura: candonga e águas largas A casa do Salça O pó de arroz As incontinências do Batata As visitas às propriedades O rio Antuã As mondadeiras Os coelhos do Batata A paixão da Páscoa O “Flecha de Prata” Os sonhos do Batata A morte do Salça 37 51 53 42 56 57 63 65 67 67 69 70 70 71 72 74 13 Camilo Mortágua Capítulo segundo 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. 29. Aprendizagens (Alto Pina – Lisboa) 37 Lisboa à vista O pátio O “Porto funileiro” A biblioteca de sabão Os negócios do pai O menino padeiro O Zé Caracóis À caça na recta da Tocha A Cova Funda A doença Partir para onde? A Leitaria Apolo O Constantino 76 77 78 80 81 82 83 84 85 86 89 90 91 Capítulo terceiro A primeira travessia atlântica 37 30. Adeus, Portugal 31. Tenerife: “As leitarias ambulantes” 93 96 Capítulo quarto Venezuela 32. 33. 34. 35. 36. 37. 38. 39. 40. 41. 42. 37 Terra à vista A Venezuela No “mato sem cachorro”? Os hotéis de emigrantes Entrada no ABC da emigração O tio Zé Maria O Regresso a Catia Por portas interpostas! Enfim… por conta própria O parasita das públicas meninas Os polícias amigos 14 97 99 101 104 107 114 116 117 119 123 125 Andanças para a Liberdade 43. 44. 45. 46. 47. 48. 49. 50. 51. 52. 53. 54. 55. De lambreta pela América do Sul À boleia pela América do Sul Fugindo ao “amor” Escapando ao “diabo” Forneiro da “lata d’água” Ecos de Portugal Preparando o derrube do ditador “Não importa onde se nasce… o que importa é onde se luta!” Por Cuba Livre Fidel Castro em Caracas A Junta Patriótica Portuguesa Mário Mendes da Fonseca O major Calafate 127 135 138 142 147 152 155 163 165 178 182 191 Capítulo quinto Santa Maria (Santa Liberdade) 56. 57. 58. 59. 60. Génese e preparação do assalto ao Santa Maria Santa Maria: o embarque Santa Maria: a véspera do assalto Santa Maria: o ataque No Santa Liberdade, rumo ao Brasil 37 198 205 208 211 213 Capítulo sexto “Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar.” (imagens) 217 Xpto Apêndices 219 Bibliografia 221 15 Camilo Mortágua 16 Prefácio Prefácio A Memória não é História. Trata-se de um dos grandes equívocos do tempo presente – em que se impõe o que é facilmente consumível – a confusão entre esses dois níveis de conhecimento, ao ponto de se inventar a expressão “História Oral”, que não é mais do que uma das fontes de que o historiador (nomeadamente o historiador de História Contemporânea) se serve para “fazer História”. E a situação é tanto mais perigosa, neste mundo do espectáculo e do virtual, que, com base directa na fonte oral, se modela toda uma ficção entre a “literatura” e a “história”, a qual se apresenta como “verdadeira”, às vezes mesmo como “a única verdadeira história de…”, por exemplo… da “vida privada de Salazar”. Depois de passar na televisão e nas revistas de faits divers, essa “estória” originou não uma polémica – este país não é de polémicas a sério, e sim de simples “conversas interrompidas” ou de “explosão de opiniões” normalmente sem qualquer efeito –, mas um sentimento de incredulidade perante o aproveitamento de simples indícios ou meras suspeitas para se criar uma “verdadeira história”, de sucesso comercial garantido. É neste contexto de incomodidade e de luta, e com um grande sentimento de frustração, que escrevo este Prefácio, a pedido de Camilo Mortágua, que conheci num colóquio sobre as oposições ao Estado Novo realizado em Coimbra no ano passado, onde não faltaram as memórias de intervenientes na história, que afinal (de um modo ou de outro) fomos todos os que vivemos nesse período. O que nos conta Mortágua são, evidentemente, as suas memórias, contadas de forma simples, como quem conta uma “estória”. São as memórias de um “homem do povo” (como se costuma dizer), que ao mesmo tempo foi um “revolucionário” e um “resistente” ao regime de Salazar, o qual é agora objecto, num tempo de desvalorização de 17 Luís Reis Torgal ideais e de ideologias, de subtis operações de “branqueamento” ou, melhor, de revalorização, através dos métodos mais ínvios e lamentáveis. Trata-se, pois, de um livro de memórias, que o leitor e, em especial, o historiador tem de analisar e confrontar com outras fontes, numa complexa teia, que cada vez se vai mais esquecendo para dar lugar a simples reflexões ocasionais e superficiais, construindo de maneira fácil o que vão chamando “história”. Por isso entendo, como outrora Lucien Fèbvre, que, hoje mais do que nunca, é necessário “combater pela História”, não no sentido de uma história ideológica e finalista, mas sim no sentido de uma História científica, em que a objectividade deveria ser considerada um valor fundamental. As oposições, infelizmente, têm sido menos analisadas pelos historiadores do que o próprio Estado Novo de Salazar. Eu mesmo tenho sido mais um historiador do Estado Novo do que das oposições, ainda que actualmente tenha estudado o movimento de Renovação Democrática dos anos trinta e esteja a coordenar cientificamente um dicionário dos candidatos oposicionistas às eleições da Assembleia Nacional do Estado Novo, que está a ser elaborada por Mário Matos e Lemos. Depois da síntese de D. L. Raby, e para além do estudo de casos, só Cristina Clímaco – autora de uma excelente tese sobre os exilados em França e Espanha, agraciada com o prémio de “História Contemporânea” da Fundação Mário Soares, mas ainda infelizmente por publicar pela imprensa – e, agora, Heloísa Paulo, que está a procurar alargar ainda mais o percurso dos exilados, sobretudo à América Latina, se têm verdadeiramente interessado pelas oposições, se bem que tenham surgido alguns estudos sobre personalidades de primeiro plano, nem sempre de carácter propriamente historiográfico, onde se mistura a história com a ideologia e até a hagiografia. As memórias de oposicionistas (sobretudo das personalidades de maior destaque) já têm sido mais frequentes, ainda que pareçam não interessar tanto o público leitor como o atraem as memórias de algumas figuras do Estado Novo, e não só, sobretudo quando estas procuram levantar a ponta do véu da “intimidade” ou da “humanidade” de Salazar. 18 Prefácio Camilo Mortágua, que desempenhou as mais variadas profissões ao longo da vida – desde caixeiro, padeiro, ajudante de carpinteiro, aprendiz de agricultor a produtor de programas radiofónicos, locutor… –, que correu mundo à procura da Vida e ao serviço dos seus ideais e mesmo da estratégia mais violenta da luta pela Liberdade, esteve presente nos golpes mais significativos e simbólicos da oposição, desde o assalto ao navio Santa Maria ao assalto ao avião da TAP, da carreira Casablanca-Lisboa. Ligado a Henrique Galvão, mas também a vários movimentos clandestinos que no estrangeiro operavam contra o Estado Novo, está integrado no grupo de figuras, por assim dizer, mais “espectaculares” da oposição. “Assalto” é o nome que soa, nestas jornadas generosas mas porventura ingénuas, e passíveis de serem consideradas “malditas”, com que uma certa oposição revolucionária se quis opor ao regime autoritário de Salazar. O início da história deste tipo de acção encontra-se, no entanto, numa série de revoluções, mais ou menos sangrentas, que se verificaram no começo do regime, incluindo a nossa “operação Valquíria” (passe o exagero e a diferença de situações), ou seja, o ataque bombista realizado em 4 de Julho de 1937 contra o próprio Salazar. São operações perigosas, de que, todavia, agora, por vezes, só se destaca as suas consequências mortíferas, o que pretende pôr em causa a sua generosidade e salientar em especial a sua violência. Mas importa anotar também que, se esses actos não se entenderiam numa democracia, têm de se explicar na lógica de uma acção contra um sistema político que cometia, dizia-se que “legalmente” e “a bem da Nação”, uma série de atropelos à legitimidade: prendia sem culpa formada e prolongava indefinidamente as penas aplicadas, lia a correspondência particular e invadia os lares de cidadãos, fazia eleições e ao mesmo tempo evitava que as oposições nelas se manifestassem (fossem elas comunistas ou de simples cidadãos liberais), possuía uma polícia política e uma censura capazes de cometer as maiores atrocidades… Mas, não compete ao historiador acusar e transformar a história num tribunal. Importa fundamentalmente que descreva, analise e explique, tendo, no entanto, em conta as realidades indiscutíveis que se equacionam no xadrez complexo das muitas linhas que se formam e desenvolvem na sociedade. Por isso a História é uma ciência, embora indirectamente concorra ainda para um estado de cidadania. 19 Luís Reis Torgal Vamos, pois, ler este texto de Mortágua. Será mais um elemento que pode ajudar o investigador a tecer – e, por vezes, a desfazer e tornar a fazer – o pano de Penélope, que é a História. Para já, Heloísa Paulo, na qualidade de historiadora, dará alguns elementos para o enquadramento destas memórias. Mas, repito o que já sugeri: é necessário fazer uma História das Oposições. Trabalho ingente, de anos de investigação e de análise crítica, que só um historiador ou uma equipa de investigadores pode levar a efeito com sucesso científico. Coimbra, 4 de Março de 2009 Luís Reis Torgal 20 Andanças para a Liberdade Antevisão prospectiva das “andanças” A spiramos a contar-vos estas acontecidas “andanças” por palavras simples de imediatos e claros significados, palavras que possam ser absorvíveis como gotas de fresca e cristalina água brotando de rara fonte, em terrenos e tempos de secura!… Se o conseguirmos, será essa mais uma das razões do nosso contentamento. Camilo Mortágua será o nosso principal guia e “testemunhante presencial” dos percursos percorridos por estas “andanças”. “Andanças” porque viagens acontecidas por terras, situações, tempos e espaços que se tornaram “santuários de referência histórica” para amantes da LIBERDADE. Para que os factos aqui relatados sejam mais facilmente compreendidos pelos nossos leitores, procuramos que olhares e mentes mais distanciados desses tempos nos dêem, à luz da análise possível sobre a História contemporânea, uma contextualização temporal capaz de relativizar o compreensível desajuste valorativo de quem directamente neles esteve envolvido. Para essa tarefa, confiamos no conhecimento, rigor e competência da investigadora de História Contemporânea, Heloísa Paulo. Para que a percepção das “andanças” se torne, se possível, mais precisa, recorremos aos conhecimentos fotográficos de Aníbal Lemos para nos facultar a possibilidade de olhar imagens intemporais de realidades que o tempo por vezes deteriorou. “Andanças” também colectivas, de pessoas normais confrontadas com os desafios do seu tempo. Medos com coragem, coragem com Medo, são as determinantes destes episódios de vidas que, partindo dos mais remotos e solitários 21 Antevisão prospectiva lugares e caminhos, se encontraram, de maneira circunstancial ou permanente, na grande avenida comum da luta pela LIBERDADE. Medo e Anseio de LIBERDADE, nunca resignação. Revolta e esperança; sentimentos permanentes a impulsionarem as acções e comportamentos destes “caminhantes pela Utopia-LIBERDADE”. LIBERDADE Utopia… porque nunca igual à sonhada, qual arco-íris inalcançável, apesar de para ele corrermos, braços abertos, obstinadamente, sem reservas nem cuidados de vida. LIBERDADE Utopia… porque atracção maior para os indivíduos, e dificuldade intransponível (até hoje) para os anseios de uma organização harmoniosa e pacífica das sociedades humanas. Partindo de uma aldeia portuguesa da Beira Litoral durante o negro período em que o país mergulhava numa situação de total ausência de LIBERDADE, e o Medo começava a amarfanhar as consciências e a paralisar as disponibilidades para a demonstração pública da indignação e revolta, as nossas “andanças” atravessarão os Mares e Continentes, em viagens de ida e volta, embora bem distanciadas no tempo. Neste primeiro volume iremos de Ul-Estarreja até ao Santa Maria (Santa Liberdade). Das origens do “andante” até à sua primeira intervenção pública, para conhecer as “andanças” forjadoras da consciência de um combatente pela LIBERDADE. Recordaremos a meninice, infância e juventude do nosso guia destas “andanças”, revisitando costumes e vivências que o tempo tende a apagar. Falaremos da luta do povo venezuelano contra a corrupção generalizada e a miséria, do derrube da ditadura de Pérez Gimenez; das ligações e solidariedades com a revolução cubana. Aparecerá nestas “andanças” a figura de Henrique Galvão e de outros “andantes” menos conhecidos. Narraremos alguns aspectos do dia-a-dia desses muitos milhares de compatriotas que a partir do fim da Segunda Guerra Mundial fizeram da Venezuela o “El Dorado” dos seus sonhos e lugar de novos projectos de vida. Registaremos, para memórias futuras, o papel de alguns daqueles que, embora longe da pátria, ali se devotaram à causa da sua Libertação. 22 Andanças para a Liberdade Recordaremos o nascimento e morte prematura do Directório Revolucionário Ibérico de Libertação – DRIL, e a concepção, preparação e execução do assalto ao Santa Maria. No segundo volume, que será oportunamente publicado, entre muitos outros lugares e tempos em que se fez História, andaremos pelo Brasil, Itália, Marrocos, Senegal, França, Bélgica e, finalmente, por Portugal Libertado. Começaremos a segunda parte das nossas andanças pelos conturbados tempos da ascensão e queda de Jânio Quadros e da implantação da ditadura militar no Brasil e as suas consequências na política externa do Brasil e nas lutas da oposição ao regime de Salazar. Falaremos da insigne figura de democrata que foi o embaixador Álvaro Lins; andaremos pelos corredores exteriores do assalto ao quartel de Beja, diremos das memórias que nos ficaram do drama do general sem medo, trataremos das dissidências e “birras” entre Delgado e Galvão, detalharemos a preparação e execução da operação VAGÔ (desvio do avião da TAP a partir de Marrocos); e lembraremos desses tempos de África, as ligações entre Salazar – De Gaule – Senghor, e certas “coincidências” dos primórdios da guerra colonial. Falaremos, por que não, das misérias, desânimos e traições entre militantes; dos tempos em que o PCP se opunha à luta armada; da decisiva decisão de transferir as nossas “andanças” da América do Sul para a Europa; da guerra entre a Argélia e França como exemplo de guerra colonial a influenciar a desagregação interna do colonizador; da influência do Maio de 68 na nossa luta; da situação dos refugiados políticos em França; da preparação e execução do assalto ao Banco da Figueira da Foz e do subsequente aparecimento da LUAR; dos percursos feitos por muitos dos nossos “Líderes” de hoje nesses tempos de Medo e Luta; do 25 de ABRIL e, sobretudo, do 1º de Maio de 1974, estação maior destas andanças, momento de excelência histórica para a celebração da liberdade e da coesão nacional. Mas… como se impõe, também falaremos dos tempos da descoberta da condição de Utopia para a LIBERDADE conquistada, do confronto do combate quotidiano, do 25 Abril até hoje, pela construção de uma sociedade o mais justa e democrática possível. Não se tratará de vos relatar feitos extraordinários, nem somente o percurso de vida de uma pessoa. 23 Antevisão prospectiva Recorrendo às memórias de muitas pessoas, tentaremos dar-vos a conhecer algumas das andanças de desespero e esperança, algumas das estórias das lutas civis contra a ditadura, simples contributos para a História da luta dos portugueses pela Liberdade e pela Democracia. 24 Contextualização temporal Contextualização temporal Da construção e afirmação do Estado Novo aos movimentos da oposição Heloísa Paulo 1. A realidade portuguesa de 1926 a 1960 Em 28 de Maio de 1926, um golpe militar implanta em Portugal uma ditadura que, ganhando contornos fascistizantes nas décadas seguintes, perdurará 48 anos. O país conta então com um excesso populacional e uma economia atrasada, apesar dos intentos de reformas levadas a cabo pelo regime republicano. Durante os anos seguintes ao golpe, o regime caminha para o fascismo, com o aparecimento das instituições que assim o caracterizam, como a União Nacional, o seu “partido único”, a regularização dos instrumentos de repressão e propaganda, como a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado e o Secretário de Propaganda Nacional, e associações paramilitares, como a Legião e a Mocidade Portuguesa. São os marcos do Estado Novo, um regime claramente inspirado no exemplo fascista italiano, do qual o seu principal personagem, António de Oliveira Salazar, é um admirador. Nos seus primeiros momentos, o regime já aponta para a conti1 nuidade da ditadura. Em Julho, são promulgados dois decretos cujo teor é essencialmente o mesmo: impedir que a liberdade de imprensa 1 Os Decretos citados são o nº 11 839, de 5 de Julho de 1926, e nº 12 008, de 29 de Julho do mesmo ano, que ratifica o anterior, estabelecendo o prazo de quinze dias para o envio das publicações não periódicas para o exame censor, previsto no Artigo 8º de ambos os textos. 25 Heloísa Paulo possa vir a gerar publicações que “aconselhem, instiguem ou provoquem os cidadãos portugueses a faltar ao cumprimento dos deveres militares, ou ao cometimento de actos atentatórios da integridade e independência da Pátria”, que contenham, em suma, informações que possam “causar prejuízo ao Estado”, ou atentar contra a sua 2 “ordem” ou “tranquilidade” pública . Em 30 de Junho de 1930, surgem as bases para a formação da União Nacional, partido único, considerado como o “legítimo” representante de toda a sociedade, agora pensada em moldes corporativos. Definida como uma “organização política e civil”, distanciada de qualquer modelo pluripartidário liberal, a UN age como “uma asso3 ciação cívica” e “moral” , sendo um veículo do Governo para formalizar a sua imagem de um Portugal “uno”, cujo lema “Nada contra a Nação, Tudo pela Nação” traduz a adesão de todos ao regime. Assim sendo, fazer parte ou aceitar a UN como a “voz” dos portugueses é legitimar o silêncio de todas as outras vozes opostas ao Estado Novo. Neste sentido, as Comissões Distritais da UN trabalham para obter adesões, congregando “os portugueses dispostos pela compreensão dos seus maiores deveres cívicos a trabalhar para 4 a salvação e o engrandecimento de Portugal” . Em troca, os membros da UN contam com algumas benesses, como a indicação preferencial para a ocupação de cargos públicos. Os que se opõem ao regime, como os acusados de delito de “rebelião”, são formalmente dispensados dos seus empregos, graças ao Decreto de 16 de Setembro de 1931, que prevê o afastamento de qualquer funcionário do Estado que “professe doutrinas comunistas e procure iniciar a mocidade escolar, as massas operárias e os soldados no conhecimento e 5 na prática dos mais avançados princípios de subversão social” . Em 1932, o Conselho Político Nacional, órgão criado para a elaboração do novo texto constitucional, aprova o projecto da nova Constituição dita “corporativa”. O seu texto apresenta o país como 2 Artigo nº 10 dos Decretos nº 11 839 e nº 12 008. Cruz, Manuel Braga. O Partido e o Estado no Salazarismo. Lisboa, Editorial Presença, 1988, p. 169. 4 Bases orgânicas da União Nacional citadas em Anais da Revolução Nacional. 1930/1936. Vol. III. Barcelos, Companhia Editora do Minho, s.d., p. 19. 5 Preâmbulo do Decreto nº 20.314, de 16 de Setembro de 1931. 3 26 Contextualização temporal um Estado Corporativo, onde cada “classe” é representada na Câmara Corporativa. Assim sendo, formalmente, cada um dos ofícios da sociedade possui representação na Câmara, ainda que a sua função 6 seja a de simples consultora da Assembleia Nacional . Na verdade, a maior parte dos seus membros pertence ao patronato, “reais interessados” no funcionamento da sociedade. A nova constituição impõe as regras do regime através da formalização dos instrumentos de controlo social e de repressão, como a “tutela” da opinião pública e de “todos os factores que desorientem a sua visão contra a verdade, a justiça, a boa administração e o bem 7 comum” . “República unitária e corporativa”, Portugal tem no Presidente da República a sua principal representação de poder, sendo este ladeado pela Assembleia Nacional. Nas eleições prevalece o sufrágio universal directo, mas todo o processo é controlado directamente pelo regime. Assim sendo, votar é sempre um exercício de teatro, já que os resultados são sempre favoráveis aos candidatos oficiais do Governo. Quando a oposição chega a apresentar candidatos, é preciso ter convicções políticas bem fortes para correr o risco de arriscar votar contra o regime. As cédulas de votação são diferentes e apresentar uma cédula de um candidato da oposição é assumir um posicionamento político diferente e contrário ao do regime. O poder decisório está formalmente nas mãos do Presidente da República, mas, na prática, ele é exercido pelo Presidente do Conselho. Desta forma, Salazar impõe o seu comando não só sobre o Presidente, mas também sobre a própria Assembleia Nacional e demais ministros. A possibilidade da sua demissão só será admitida por Humberto Delgado, em 1958, o que vai causar furor na sociedade portuguesa de então. Completando o ideal corporativista do Estado Novo estão algumas instituições voltadas para “congregar os trabalhadores”, como as Casas do Povo, destinadas ao meio rural, as Casas dos Pescadores, reunindo os que se dedicam à pesca, e os Sindicatos Nacionais, des6 A partir de 1938, com a revisão constitucional, a Câmara Corporativa passa a ser, também, o órgão consultivo do Governo em geral, ainda que, de facto, seja um elemento meramente “decorativo”. 7 Título VI, artigo 22 da Constituição de 1933. 27 Heloísa Paulo tinados aos restantes participantes do mundo do trabalho e considerados os seus únicos representantes pelo Estado. E “encimando a obra” está a Fundação Nacional para a Alegria do Trabalho, a F.N.A.T., que, a partir de 1935, “cuida” das horas de lazer do trabalhador, criando e mantendo colónias de férias e escolas de desportos, para além de organizar eventos e promover a imagem do “bom cidadão”, laborioso e fiel ao regime. Em 1934, surge o SPN, o Secretariado Nacional de Propaganda, o órgão de propaganda por excelência do regime. Directamente vinculado à Presidência do Conselho, a sua função alia o controlo das manifestações públicas ao propagandear da visão oficial do regime acerca de si próprio e do país. De acordo com o Artigo 7 do citado Decreto, os funcionários do SPN possuem a livre entrada em espectáculos e reuniões públicas, reforçando o papel de condutor do ideá8 rio oficial . O seu Boletim da Imprensa controla a imprensa, abrangendo os jornais de Lisboa, Porto, dos pequenos núcleos das Províncias, as Ilhas, as Colónias do Ultramar e a Colónia Portuguesa do Brasil. O seu objectivo é dar ao governo os informes sobre a posição política dos periódicos, atestando ou não a sua proximidade ao ideário do Estado Novo. Chama-se, ainda, a atenção das autoridades para alguns pontos de crítica ou referências directas ao Governo, tais como a publicação das notas ou artigos enviados pelo Secretariado ou queixas e reclamações quanto aos serviços públicos, alertando ainda para a existência de jornais como o Diário de Lisboa e o Diário Popular – “potências de inconformismo ou hostilidade”. O órgão actua, ainda, como uma espécie de força auxiliar das Comissões de Censura, criadas pelo Decreto-lei nº 22 469 e encarregadas de retirar das publicações aquilo que o regime não desejava que fosse a público. O primeiro director do SPN, António Ferro, vai trabalhar no sentido de construir a imagem de um Portugal eminentemente rural, com um povo pobre, humilde, mas feliz na sua condição e, sobretudo, satisfeito com o Estado Novo. Nos documentários, filmes e publicações do SPN, a gente do campo aparece sempre bem alimentada, com os dentes perfeitos, trabalhando e cantando durante a faina diária. Esta é a imagem da aldeia perfeita, cujo exemplo 8 Decreto-lei nº 23 054, de 25 de Setembro de 1933. 28 Contextualização temporal máximo é Monsanto, eleita a “Aldeia mais Portuguesa de Portugal”, no concurso promovido pelo SPN em 1938. É uma visão idílica, muito distante de uma realidade rural marcada pela necessidade, pela emigração ou pela miséria. De facto, o ambiente rural que então domina o território português, é marcado pela pequena ou micro propriedade ao norte e pelos latifúndios típicos da zona do Alentejo, onde a maioria dos camponeses sobrevive graças ao trabalho sazonal. No Minho, Trás-os-Montes e Beiras, as pequenas porções de terra são insuficientes para manter grandes famílias, mas servem para assegurar os empréstimos para pagar os bilhetes para a emigração. Na verdade, do 28 de Maio até o final dos anos trinta, as saídas de emigrantes atingem o número de 167.595, sendo a crise mundial o único entrave para um maior fluxo emigratório. Em geral, aquele que parte não tem qualificações especiais, e, na maioria das vezes, sabe apenas assinar o próprio nome, tal como é previsto na legislação. A tradição da emigração para determinados países caracteriza algumas áreas do país, como a preferência pelo Brasil para os transmontanos, e a Venezuela pelos habitantes da zona de Aveiro e arredores. Neste período e nos seguintes, e, em especial, nas décadas quarenta e cinquenta, estes dois países são os destinos preferenciais para aquele que não tem oportunidade na sua aldeia natal. O número cada vez maior de portugueses “fora de Portugal”, leva o regime a traçar as normas para um inquérito destinado ao “conhecimento, tanto quanto possível exacto e actualizado, do número, condição e situação dos portugueses residentes no estrangeiro […] a fim de que aqui se saiba, sempre, documentada e minu9 ciosamente, como vivem os nossos nacionais, fora de Portugal” . Nos itens do referido inquérito, levado a cabo em Junho de 1934, constam a relação das escolas portuguesas e das agremiações ou associações, visando traçar um quadro da organização da comunidade emigrante que, posteriormente, é usada para difundir a men- 9 Circular Oficial destinada a todos os consulados de Portugal, 20 de Junho de 1934, M.N.E., Armário 11, Maço 440. 29 Heloísa Paulo sagem do Estado Novo. As colónias de emigrantes no estrangeiro 10 passam a ser vistas como potenciais apoios do Estado Novo . Apesar destas medidas, porém, o emigrante continua à mercê da sua própria sorte. O pagamento da sua passagem implica em juros que variam de 15% a 20% sobre o valor inicialmente tratado pelo “engajador”, figura mítica em áreas como Braga, Aveiro, Bragança. A função deste personagem é angariar candidatos à emigração e organizar a sua ida para a “terra prometida” em troca de quantias determinadas a serem pagas aquando do embarque ou aquando do seu retorno à terra natal. Misto de agiota e empregador, o engajador enriquece às custas das terras deixadas como garantia pelos que emigram e, longe de fazer fortuna, acabam esquecidos nos seus destinos. Quem fica, há que cumprir horas de trabalho ao sol para obter “o pão de cada dia”. A famosa “Campanha do Trigo”, levada a cabo pelo regime entre 1929 e 1937, afirma na sua propaganda que “o trigo é a fronteira que melhor nos defende”. O seu objectivo é livrar Portugal da dependência do trigo estrangeiro, acabando também por favorecer o industrial das moagens e os ramos da química dos adubos e alfaias, que lucram com o crescimento da procura de instrumentos. Mas, apesar de um crescimento na produção do cereal nos primeiros anos, a persistência de antigas formas de cultivo, aliadas ao esgotamento do solo e às condições climáticas pouco favoráveis, fazem com que a “Campanha” tenha um saldo negativo a longo prazo. Fora o “pão”, o vinho é outro componente do dia-a-dia de trabalho do homem português, quer no campo, quer na cidade. Juntamente com a cortiça, a oliveira, a pesca e a lã completam o quadro da economia portuguesa no período, e para as quais o regime oferece especial atenção. No ramo das demais indústrias, o quadro de crescimento é instável, como ocorre na região de Aveiro, entre 1930 e 1960, onde os sectores mais tradicionais, como o têxtil, calçado e vestuário sofrem quebras, enquanto outros, como o alimentar, regridem ou sofrem oscilações consideráveis como a produção 11 de cortiça e mobiliário . Tal instabilidade, só ultrapassada na década 10 Sobre o tema, ver, entre outros, Paulo, Heloísa. “Aqui também é Portugal!”. O salazarismo e a colónia portuguesa no Brasil. Coimbra, Quarteto, 2000. 11 Nunes, Ana Bela. População Activa e Actividade Económica em Portugal dos Finais do Século XIX à Actualidade. Uma contribuição para o Estudo do Cresci30 Contextualização temporal de sessenta, pode ser traduzida na emigração e na procura de centros urbanos, como Porto ou Lisboa. A metáfora do “pão e do vinho” remete para outra base de apoio do regime: a religião católica. Declarada no texto constituinte como “oficial”, o catolicismo usufrui benesses especiais por parte do Estado Novo, ainda que permaneça a separação entre Igreja e Estado implantada pela República. A Igreja coloca o regime na condição de defensor do ideal católico, assim como o regime o diz fazer. Na propaganda oficial, a presença das imagens vinculadas ao quotidiano religioso, como as procissões, o campanário das igrejas e o enaltecimento de figuras como D. Nuno Álvares Pereira, oferece uma visão da cumplicidade mantida entre o regime e os sectores conservadores da Igreja. O próprio Salazar assume a postura de católico militante, tendo sido, na juventude, um dos fundadores do Centro Académico de Democracia Cristã, em Coimbra, juntamente com o Cardeal Cerejeira. O culto mariano, o aparecimento de novos seminários, como o Seminário de Filosofia de Aveiro, em 1939, o crescimento de ordens e movimentos de leigos, a actuação da Acção Católica Portuguesa, para além da mobilização em torno dos Congressos religiosos, demonstram a primazia da religião católica. A imagem do culto popular a Nossa Senhora de Fátima, amplamente incentivado pela Igreja e pela propaganda oficial do regime, complementa a visão de um Portugal católico. Em 1942, o jubileu das aparições é comemorado por todo o país, contando com a mobilização popular e o apoio das autoridades locais. Mas o consenso em torno do regime é apenas uma imagem fictícia, já que desde 1927 os opositores à ditadura saem à rua para tentarem depor os seus representantes. Assim é no Porto e em Lisboa, neste ano e no seguinte, e em 1931 nos arquipélagos da Madeira e dos Açores. Em todas estas revoltas participam antigos membros do governo republicano, militares, como Jaime de Morais e Sarmento Pimentel, intelectuais, como Jaime Cortesão, homens públicos, como João Soares e Alberto Moura Pinto, e até mesmo participantes do movimento do 28 de Maio, como o general Sousa Dias. A repressão brutal levada a cabo pelas tropas da ditadura põe mento Económico Português (dissertação de doutoramento). Lisboa, 1989, pp. 122 e seguintes. 31 Heloísa Paulo fim aos movimentos, mas não ao combate a que, nos anos seguintes, a oposição dá continuidade, tendo como objectivo o retorno à normalidade democrática e o fim do salazarismo. Para muitos dos membros da oposição é o início de uma longa “peregrinação”, marcada pelo exílio e o degredo. Em 1934, a polémica em torno do aparecimento de duas obras simboliza o combate dos oposicionistas. No centro da questão, estão 12 os livros A verdade sobre Salazar , de José Jobim, e Esta é a verdade 13 sobre Salazar, de Henrique Cabrita . O primeiro reproduz uma entrevista dada por Afonso Costa e as denúncias feitas pelo então exilado republicano acerca da administração do Ministro das Finanças. A obra de Cabrita é fruto de uma encomenda do regime, uma espécie de resposta às acusações feitas pelo antigo líder republicano. No entanto, maior do que o debate em torno das “verdades” do regime, é o movimento de greves encimado pelos operários contra o regime em Janeiro de 1934. Na madrugada do dia 18, o corte de linhas telegráficas e actos de sabotagem contra comboios e postos policiais leva o governo a um sobressalto, desencadeando uma resposta brutal contra o que seriam os primeiros frutos de uma greve geral. Na Marinha Grande, os operários da grande indústria vidreira são os mais activos, com a ocupação da vila e o deslocamento de contingentes para Leiria, onde também tomam de assalto os postos da GNR e os meios de comunicação. A acção das forças do regime leva a um grande número de prisões, mas o exemplo da manifestação fica como alerta, contribuindo para o recrudescimento maior da actuação coerciva do Estado. De facto, há muito que a repressão caracteriza o regime, com a actuação e vigilância constante da Polícia de Defesa do Estado, cujos agentes e a rede de informantes cobre todo o país, espalhando o clima de desconfiança e terror próprio dos regimes fascistas. A PVDE, criada em 1933, tem como principal função a defesa do Governo e a prisão dos seus opositores, julgados em “tribunais especiais”, destinados a actuar especialmente nestes casos. O recurso a 12 Jobim, José. A verdade sobre Salazar. Rio de Janeiro, Calvino Filho Editora, 1934. 13 Cabrita, Henrique. Esta é a verdade sobre Salazar. Lisboa, Editorial Império, 1934. 32 Contextualização temporal 14 “meia dúzia de safanões” contra os que atentam contra o regime é apenas o primeiro contacto dos opositores anti-salazaristas com este tipo de polícia repressiva, especializada na tortura e na execução dos seus “tutelados”, como vai ocorrer aquando da captura e prisão daqueles que, entre 1936 e 1939, combatem os rebeldes de Franco e se atrevem a passar ou aproximar da fronteira portuguesa. Em 1936 a violência do regime chega ao rubro. A vitória das Esquerdas e a implantação de uma República de carácter e matiz socialista em Espanha representam um perigo para o Estado Novo, que teme que os seus opositores possam buscar apoio no país vizinho. Salazar perfila ao lado de Franco no golpe militar, enviando tropas portuguesas para lutar ombro a ombro com os apoiantes franquistas, monárquicos, nacionalistas, tropas marroquinas, soldados fascistas e nazistas. No período de duração da Guerra Civil espanhola, o desvio de géneros alimentícios para os franquistas contribui para o aumento das dificuldades no campo e nos meios pobres urbanos no país. A fome continua a ser uma constante, enquanto parte da produção agrícola é mandada para a Espanha rebelde – são os chamados “restos de Portugal” que, ao assegurar a retaguarda franquista, aumentam a miséria em solo português. Fora isto, outros acontecimentos trágicos marcam as aldeias da raia com a captura e morte dos republicanos espanhóis fuzilados sumariamente em locais públicos, como o conhecido caso da morte no campo de touros de Moura, no Alentejo. Mas nada disto se conhecia fora das portas destas aldeias ou vilas: a censura à imprensa e aos demais meios de informação impedia que esse tipo de notícia circulasse num país tido como de 15 “brandos costumes” . Nos jornais apenas aparecem os feitos dos “viriatos”, os combatentes do Portugal de Salazar, que lutam em Espanha apoiando as tropas de Franco. Entre estes, vários fazem parte da recém-formada Legião Portuguesa, “uma formação patriótica de voluntários destinada a organizar a resistência moral da Nação e cooperar na sua 14 Declarações de Salazar a António Ferro quando indagado sobre os maus tratos infligidos a presos políticos. Ferro, A. Salazar, o Homem e a sua obra. Empresa Nacional de Publicidade, 1933, p. 82. 15 Ver, entre outros, Oliveira, César de. Salazar e a Guerra Civil de Espanha. Lisboa, O Jornal, 1987. 33 Heloísa Paulo 16 defesa contra os inimigos da Pátria e da ordem social” . São alguns dos mais empenhados combatentes contra o regime republicano legalmente eleito em solo espanhol. Alguns membros da Legião permanecem em Portugal, colaborando com a recém-criada Mocidade Portuguesa, uma instituição destinada a formar as gerações futuras. De carácter paramilitar, novamente uma cópia de uma organização fascista, a Juventude Fascista Italiana, a MP reúne meninos dos 7 aos 14 anos, estudantes ou não, para receberem os fundamentos doutrinais do regime e seguirem regras de conduta profundamente militaristas. Eles têm direito a um uniforme e participam em paradas e actos públicos a favor do regime, sendo instruídos para divulgarem a mensagem do Estado Novo junto dos seus pais. A sua imagem está presente nos livros e cadernos escolares e nos cartazes presentes nas salas de aula, como um exemplo a ser seguido pelos mais velhos. Para as meninas, destinadas a serem mães e donas de casa, no ano seguinte surge a Mocidade Portuguesa Feminina, onde as jovens recebem lições de puericultura, trabalhos manuais, aprendendo a fazer malhas e bordados e a serem boas cozinheiras, obedientes aos pais, aos maridos e ao regime. A escola complementa a formação dada nas instituições citadas. Os manuais escolares e os livros de História reproduzem um ideal de conduta a ser seguido. Para além deles, o SPN lança uma colecção para crianças, formada por pequenos opúsculos intitulada “Colecção Pátria”, com 43 volumes escritos por Virgínia de Castro e Almeida, consagrada autora de livros educativos. O objectivo dos livritos é evocar os “heróis” e o passado do país, desde a Reconquista do território aos mouros, quando os portugueses capitaneados por D. Afonso Henriques “iam passando aquela gente ao fio das espadas e à ponta das lanças e o sangue corria pelas ruas como se ali se estivesse 17 fazendo matança de gado grosso” , passando pela expansão marítima, quando “mesmo os sábios, sabiam menos das terras e dos mares deste mundo do que sabe um rapazinho de doze anos das escolas de 16 Base I da Legião Portuguesa, in Anais da Revolução Nacional. 1936-1939. Vol. IV. Barcelos, Companhia Editora do Minho, s.d., p. 78. 17 Almeida, Virgínia de Castro. Segunda História do Cavaleiro sem Medo. Lisboa, SPN, 1937, p. 6. A história de D. Afonso Henriques merece nesta colecção dois volumes, sendo este trecho retirado do 2º volume. 34 Contextualização temporal 18 hoje, se é bom estudante” , levando os meninos do presente, “que fazem exercícios militares e camping, e ginástica, e jogam o football” a aceitarem o que o regime considerava a sua versão oficial da História. Estas mesmas noções de enaltecimento do passado e do culto aos heróis está presente na historiografia, sendo vulgarizada em folhetins distribuídos nos mais diversos periódicos da época. Esta concepção de História Pátria é premiada no ano seguinte com a entrega dos Prémios Literários aos autores mais nacionalistas e às suas obras, como é o caso de Subsídios para a História de Portugal, do 19 ultradireitista Alfredo Pimenta . Contudo, a grande maioria dos meninos e meninas do meio rural e dos bairros pobres das cidades está muito longe da descrição feita nos livros do regime. Longe das brincadeiras, as crianças convivem cedo com a rotina de trabalho nos campos, nas pequenas oficinas e no comércio da área urbana, trabalhando lado a lado com os adultos e cumprindo um igual número de tarefas. Quanto ao ensino, na década de trinta, o número de analfabetos atinge 66,5% da popu20 lação e a infância é passada bem longe das salas de aula, sendo poucos os que conseguem terminar o curso primário. Para a maior parte das crianças é quase impossível conciliar a escola com os afazeres do quotidiano. A obrigatoriedade do uso de calçados nas cerimónias escolares evidencia o nível de extrema pobreza de uma grande parte da sociedade e o fosso existente entre o país “legal” e a realidade. A escola dos pobres é igualmente pobre, funcionando em edifícios degradados ou nas casas dos professores, facto que o regime procura escamotear com o Plano das Escolas do Centenário, empreendido na 21 década de 40 . 18 Almeida, Virgínia de Castro. História do Grande Marinheiro que o Mar Enfeitiçou. Lisboa, SPN, 1941, p. 4. 19 Os Prémios são criados pelo SPN para galardoar os escritores mais próximos ao regime. Alfredo Pimenta recebe o Prémio Alexandre Herculano, um dos inseridos no concurso. Sobre o tema ver: Paulo, Heloísa. Estado Novo e Propaganda. Coimbra, Minerva Editora, 1994. 20 Nóvoa, António. “A ‘Educação Nacional”, in Rosas, Fernando (coord.). Portugal e o Estado Novo (1930-1960). Nova História de Portugal. Vol. XII. Lisboa, Presença, 1992, p. 475. 21 O Plano visa a modernização das escolas, modificando algumas das instalações escolares do país. Ver, entre outros, Nóvoa, A. op. cit. 35 Heloísa Paulo O que não mudou, nem mudaria durante muitos anos, é o recurso constante ao castigo corporal, sendo o “mestre-escola” a metáfora do próprio regime, aquele que castiga se não lhe cumprem as regras. Por fim, podemos afirmar que o sistema escolar também reproduz a estrutura corporativa da sociedade. O ensino primário é reservado para aqueles a quem a vida está destinada ao trabalho braçal, sendo o ensino técnico para os que almejavam funções subalternas numa sociedade dita “em crescimento”. As elites são as únicas frequentadoras do meio universitário, dando continuidade à hierarquia da sociedade. Mas, mesmo entre a elite estudantil, o consenso em torno do regime também não é uma unanimidade. Os universitários são um grupo de pressão contra o regime ditatorial e muitos deles passam o resto das suas vidas na oposição. Os movimentos estudantis iniciam-se ainda em 1927, com manifestações académicas contra a Ditadura Militar em Lisboa, Coimbra e Porto. Em 1938, um decreto governamental põe fim ao processo de escolha directa dos dirigentes das academias, cerceando ainda mais a liberdade nos meios estudantis. Tal facto, porém, não determina o fim do movimento estudantil, que volta com força nas décadas seguintes. Instituições à parte, a propaganda é continuadamente usada pelo regime. Ainda nos anos trinta, ocorrem as primeiras sessões de cinema do “Cinema Ambulante”. Esta nova iniciativa do SPN é levada a cabo nas Casas do Povo, nos Grémios e demais instituições do Estado Novo. Tal como o Teatro do Povo, criado em 1936, que percorre as aldeias, o Cinema Ambulante leva a mensagem do 22 regime aos mais distantes lugarejos de Portugal . São exibidos documentários oficiais e filmes veiculadores do ideário estado-novista, como A Revolução de Maio, de António Lopes Ribeiro, com o argumento do próprio António Ferro. Esta película conta a história de um revolucionário que se converte ao salazarismo. Noutras das películas exibidas no “Cinema Ambulante”, como em Pátio das Cantigas, é a vida urbana da velha Alta de Lisboa que serve como argumento para a mensagem do regime. A história fala das desventuras e aventuras dos moradores dos Pátios da capital, 22 Sobre a temática do cinema no Estado Novo, ver, entre outros, Torgal, Luís (coord.). O cinema sob o olhar de Salazar. Lisboa, Círculo de Leitores, 2000. 36 Contextualização temporal onde a vida em comum é marcada pela necessidade do convívio e da partilha de espaço. Em plena Segunda Guerra, a acção do filme reflecte a realidade de Portugal e da Europa. Assim sendo, quando ocorre uma briga de vizinhos, as crianças do Pátio são levadas para um camião, longe do conflito. Na carroçaria do veículo um letreiro exibe o nome de Salazar, numa alusão às atitudes do Presidente do Conselho frente ao conflito europeu. Rodado em 1941, com a direcção e argumento de Francisco Ribeiro, o popular actor Ribeirinho, o filme estreia em 23 de Janeiro de 1942, sendo um imenso sucesso na sua época. Em 1940, a Exposição do Mundo Português remodela o espaço de Lisboa e oferece oficialmente ao resto da Europa a imagem de uma “ilha de Paz” no meio da guerra. A Emissora Nacional, criada em 1935 e reestruturada neste ano, transmite as principais cerimónias que cercam o evento, como a sua abertura em Junho de 1940. Milhares de pessoas chegam de todos os cantos do país para ver a Exposição. O comboio é o meio de transporte preferencial, havendo excursões promovidas pelas associações corporativas com direito ao bilhete para o evento. Neste mesmo ano, começam a circular entre Lisboa e Porto as novas carruagens de origem americana, cujo fabrico é logo iniciado nas oficinas do Caminho de Ferro no Bar23 reiro . As carruagens prateadas, dispostas em número de 4, dão origem à designação popular do comboio, o “Flecha de Prata”, unindo 24 o Norte à capital até 1953. O Portugal perpetuado nas pequenas aldeias moldadas a gesso para a exposição, pouco ou nada tem a ver com a realidade, com excepção do atraso técnico perpetuado nas tarefas mais tradicionais. Apesar dos avanços nos meios de transporte, ainda prevalece a força animal no campo, o recurso aos moinhos de vento ou água no fabrico da farinha e a predominância da charrua e demais instrumentos agrícolas do passado. O campo possui uma estrutura de produção arcaica que sofre com as variações climáticas e com a escassez de recursos modernos, apesar das promessas e dos parcos investimentos levados a cabo pelo regime. 23 Lobato, Luís Guimarães. “A evolução da engenharia portuguesa nos últimos 50 anos” in Ingenium, nº 1, s.l., s.d., p. 30. 24 Informações retiradas do site www.engenhoeobra.com.pt 37 Heloísa Paulo Um exemplo desta fragilidade e do carácter assistencial imediatista do Estado Novo é dado pelas reacções governamentais diante da devastação do “dia do ciclone”. Ocorrido em 15 de Fevereiro de 1941, o fenómeno é marcado por ventos de 135 km que atingiram todo o país, em especial a região centro, levando ao derrube de árvores, moinhos, casas, postos de electrificação e demais estruturas, nomeadamente nas áreas costeiras e ribeirinhas. O número de feridos e mortos assusta as autoridades, assim como o prejuízo causado pela destruição. Como resposta, sobretudo para atenuar os imensos estragos na produção de cortiça, uma das principais actividades económicas do país, o regime lança o Decreto nº 31.204, de 1 de Abril de 1941, que promulga várias medidas atinentes a atenuar os danos causados, entre as quais algumas disposições sobre a compra e venda da cortiça das árvores derrubadas. No entanto, a grande parte da população não recebe nenhum auxílio para reparar os estragos nas habitações ou compensações pela perda das colheitas. Nos anos seguintes e até 1945, ainda que a guerra seja algo distante, o desenrolar do conflito mundial marca profundamente o quotidiano do país. São realizados exercícios de defesa passiva do território e a escassez de mantimentos ocasiona o racionamento, tal como em qualquer outra parte da Europa envolvida directamente no conflito. A postura de neutralidade assumida pelo regime não o impede de vender grande parte do seu volfrâmio aos alemães, recebendo as organizações nazistas em solo português e fortalecendo os laços com a Itália de Mussolini. Em 1943, sofrendo as pressões do governo inglês, o regime permite a instalação de uma base militar aliada nos Açores. Após o término da guerra, esta concessão possibilita ao Estado Novo a defesa da sua posição no conflito como a de uma “neutralidade colaborante”, justificativa para a sua aproximação 25 com os alemães e a sua postura de colaboração para com os aliados . Apesar da posição portuguesa, a “guerra” chega nos navios ou comboios procedentes da zona conflituosa, repletos de refugiados estrangeiros, sobretudo judeus, distribuídos e confinados em áreas específicas, como Cascais, a Figueira da Foz ou o Caramulo. Entre os que chegam, alguns são figuras de relevo, como o escritor André 25 Ver, entre outros, Telo, António José. Portugal e a Segunda Guerra. 2 vols., Lisboa, Vega, 1992. 38 Contextualização temporal Maurois, ficando por pouco tempo. Outros, porém, resolvem permanecer, como é o caso de Calouste Gulbenkian, que chega a Lisboa 26 em 1941 . Estes novos personagens, ilustres ou não, introduzem hábitos estranhos, como mulheres de fatos de banho com duas peças, que fumam em público, ou homens que não ligam para este tipo de conduta das referidas esposas. Uma mudança que introduz novos hábitos e permite o contacto com um “mundo novo” para alguns sectores da burguesia urbana. Por sinal, ideias novas nunca faltaram nos meios urbanos, grande foco do republicanismo e do ideário de esquerda em geral. É nas cidades que floresce o anarquismo, junto dos pequenos artesãos, o comunismo, vinculado ao meio fabril, e o socialismo, defendido por intelectuais desde os finais do século XIX. É na rua das grandes cidades que ocorre a comemoração popular do fim da Segunda Guerra e do derrube dos regimes fascistas, motivo de esperança para os opositores ao regime de Salazar. Mas, o regime resiste ao clima de euforia e o Estado Novo procura modificar a sua imagem oficial, ainda que não abdique do fascismo propriamente dito. Há uma mudança de nomenclatura que pouco muda a face do regime. A PVDE passa a ser chamada de Polícia Internacional de Defesa do Estado, “um sistema similar ao adop27 tado em Inglaterra”, “vulgarmente conhecido” por “Scotland Yard” . No entanto, a PIDE, como passa a ser conhecida, não tem nada a ver com o seu suposto similar britânico, mantendo as características que sempre a definiram como uma fiel seguidora dos aparelhos repressivos fascista e nazista. Os seus agentes, conhecidos popularmente como os PIDES, e assim como no organismo anterior, são sinónimo de coerção e medo. O SPN, deixando de lado o termo “propaganda”, passa a ser chamado Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, o SNI, mas mantém a mesma “política do espírito” empreendida por António Ferro, o seu principal responsável até ao final da década de quarenta. O SNI mantém as funções de controlo, como o registo e licença para jornalistas e agências noticio- 26 Ver, entre outros, Martins, Maria João. O paraíso triste. O quotidiano em Lisboa durante a II Guerra Mundial. Lisboa, Vega, 1994. 27 Preâmbulo do Decreto-lei nº 35 046, de 22 de Outubro de 1945. 39 Heloísa Paulo 28 sas, a censura prévia, o controlo da radiodifusão , podendo manter fiscais permanentes junto das emissoras para “visto prévio” de todos 29 os textos a difundir , e ainda a execução das antigas atribuições da 30 Inspecção dos Espectáculos . Com esta última atribuição, o órgão passa a centralizar a fiscalização e o fornecimento de registo, licenças e vistos para toda e qualquer manifestação artística ou casa de espectáculo aberta ao público, exercendo desta forma forte vigilância sobre a vida cultural e artística do país. Assumindo uma nova postura, o regime procura demonstrar a sua preocupação com os problemas sociais, entre eles o da emigração. Assim sendo, em 1947, o Estado passa a deter o papel do “engajador”, que é então perseguido por lei e pela PIDE. É criada a Junta de Emigração, que tem por objectivo cuidar de “todas as diligências e formalidades preparatórias do embarque de qualquer emigrante”. A JE orienta o candidato a emigrante na obtenção dos papéis necessários à sua saída, incluindo o visto da PIDE e as “cartas de chamada”, passadas por um parente ou associação no estrangeiro que se responsabiliza pelo emigrante, ou ainda o “termo de responsabilidade”, válido somente para o Brasil e a Venezuela, mais comum nos anos cinquenta, com o qual um emigrante já estabelecido se torna responsável pelo recém-chegado, garantido as suas condições de sobrevivência e o seu acesso ao trabalho. São criadas ainda as Casas de Emigrante, administradas pela Legião Portuguesa, “destinadas a guiar e a proteger os emigrantes chegados da província”, um 31 trabalho assistencial a preços módicos . Os passaportes, por sua vez, anteriormente fornecidos pela Inspecção Geral dos Serviços de Emigração, passam a ser responsabilidades da Junta de Emigração. Para tal, são pagas taxas que variam conforme o tipo de passaporte, individual ou familiar, sendo o segundo mais em conta no caso da viagem em família, e o do emigrante mais barato que o passaporte ordi28 Ao assumir a tarefa explicitada pelo artigo 4 do Decreto-lei nº 29 937, de 21 de Setembro de 1939, conforme o disposto no Item 2, “Da Informação”, artigo 3 do Decreto-lei nº 34 134 de 24 de Novembro de 1944. 29 Artigo 16 do Decreto-lei nº 34 134, de 24 de Novembro de 1944. 30 Regulamentado pelo Artigo 5 do Decreto-lei nº 34 133, de 24 de Novembro de 1944. 31 Decreto-lei nº 36.558 de 28 de Outubro de 1947, Diário do Governo, Iª Série, nº 250. 40 Contextualização temporal 32 nário . Fora este documento, é necessário um certificado de saúde e vacinas, pelo qual o emigrante deve pagar 20$00, mais 1$50 do selo 33 fiscal, e sem o qual lhe é vetado o embarque . A sua saída é supervisionada pelos agentes da PIDE, responsável pelo atestado de boa conduta, necessário para todo aquele, maior de dezoito anos, que pretendesse emigrar. Como parte da nova maquilhagem do regime, há a convocação das eleições legislativas, ainda em 1945, e para a presidência, a serem realizadas em 1949. Neste quadro, a ideia de que o fim da guerra e a derrota das potências do Eixo poderia acarretar a queda dos regimes autoritários é a grande esperança dos oposicionistas. Em Outubro de 1945, a oposição anti-salazarista está congregada em torno do MUD, Movimento de Unidade Democrática, apresentando ao governo uma série de medidas para a realização do pleito, tais como a preparação de um novo recenseamento eleitoral, a autorização para a formação de partidos políticos e a protecção às liberdades individuais. Uma vez não satisfeitas as exigências, o MUD recomenda a abstenção do eleitorado nas eleições para a Assembleia Nacional, o que não contribui para a ideia de abertura que o Estado Novo busca passar para o exterior no pós-guerra. No ano seguinte, o veto da União Soviética à entrada de Portugal na ONU parece reforçar a imagem negativa do regime diante das democracias emergentes da Segunda Guerra. Em Abril de 1947, uma série de greves é acompanhada pela tentativa de um novo golpe militar. Conhecido por Abrilada, o frustrado movimento envolve nomes que se tornam verdadeiros símbolos para a oposição, como Hermínio Palma Inácio. 32 Decreto nº 15 825, Diário do Governo, Iª série, 8 de Agosto de 1928, Artigo 3º, parágrafo 5º. O custo de um passaporte, para o ano de 1944 (Decreto-lei nº 33 917, de 5 de Julho de 1944), é de 20$00 para o passaporte individual, 30$00 para o passaporte de casais, a taxa de 1$00 por cada filho. Na década de cinquenta estes valores encontram-se alterados, respectivamente, para 27$50, 37$50 e 5$00 por cada filho. JUNTA DE EMIGRAÇÃO. Instruções para as Câmaras Municipais. Lisboa, Ministério do Interior, 1957, p. 54. 33 Valores para 1927. Posteriormente serão alterados para 40$00. JUNTA DE EMIGRAÇÃO. Instruções para as Câmaras Municipais. Lisboa, Ministério do Interior, 1957, p. 17. 41 Heloísa Paulo Em 1948, o governo ilegaliza o MUD, enquanto rejeita as ajudas 34 do Plano Marshall . Por outro lado, Norton de Matos apresenta a sua candidatura à presidência, conseguindo o apoio de grande parte da oposição. O antigo militar faz frente ao Marechal Carmona, o candidato oficial do regime, e exige garantias para a realização do pleito, como a alteração da lei eleitoral. A campanha é curta e feita em clima de repressão, devido à pressão constante da PIDE e à contrapropaganda desencadeada pela União Nacional. Em 7 de Fevereiro de 1949, os oposicionistas, por considerarem a não existência de condições justas para o pleito, retiram a candidatura e recomendam a abstenção. No entanto, o agudizar da Guerra Fria favorece o salazarismo. Salazar, opositor dos ideais democráticos vitoriosos no pós-guerra, aparece como defensor dos valores culturais europeus e, sobretudo, 35 ocidentais . A adesão de Portugal à Organização do Tratado do Atlântico Norte, a OTAN, ainda em 1949, baluarte do combate anti-comunista, confirma este posicionamento. As mudanças externas parecem não abalar as bases do Governo, assim como o levantamento anti-colonialista, que cresce nas zonas de ocupação europeia em Ásia e em África no pós-45, não altera a concepção colonialista 36 do regime . Os anos 50 são marcados pela ocupação indiana dos antigos enclaves portugueses de Nagar-Aveli e Dadrá, mas a participação de Portugal na ONU e os resultados obtidos com os Planos de 37 Fomento , aquém das necessidades concretas do país, fornecem um último brilho a Salazar, reforçado pela propaganda personalista, aparentemente não oficial, em torno da figura do velho ditador. Parale34 Sobre o tema, ver, entre outros, Rollo, Maria Fernanda. Portugal e o Plano Marshall. Da rejeição à solicitação da ajuda financeira norte-americana. (1947-1952). Lisboa, Editorial Estampa, 1994. 35 Sobre o tema ver: Torgal, Luís Reis. “Salazarismo, fascismo e Europa”, in Vértice, Janeiro/Fevereiro de 1993, pp. 41-52. 36 As mudanças introduzidas em 1945 com o fim do Acto Colonial não vão, de facto, alterar o panorama nas colónias, agora denominadas “províncias ultramarinas”. 37 O primeiro plano é de 1953, mas já na década de 1940 o regime lucrara em termos dos investimentos provenientes do Plano Marshall. Sobre o tema ver: Rosas, Fernando. “As Grandes Linhas da Evolução Institucional”, in Fernando Rosas (org.). Portugal e o Estado Novo (1930/1960). op. cit. 42 Contextualização temporal lamente, os rompimentos de antigos colaboradores com o Estado Novo abrem uma brecha a ser aproveitada pela oposição. O primeiro a romper é Henrique Galvão, antigo combatente do regime em Espanha, director da Emissora Nacional e deputado da União Nacional. Após um inquérito disciplinar em 1949, é preso em 1952, acusado de actividades conspirativas. Em 1957, recebe a visita de um antigo companheiro de armas, Humberto Delgado. Dois anos depois, ainda em regime de prisão, foge do hospital de Santa Maria, pedindo asilo político na Embaixada da Argentina, seguindo posteriormente para a Venezuela. Um segundo rompimento ganha maior destaque pela forma como se processou. Humberto Delgado, um dos homens mais destacados na esfera militar, apresenta-se como candidato independente às eleições para a presidência em 1958, conseguindo, de imediato, o apoio de parte da oposição. Antigos oposicionistas radicados em Portugal, como António Sérgio e Cunha Leal, vêem o general como a grande possibilidade de atrair os insatisfeitos com o Governo. Mais tarde, um outro apoio surge do lado mais radical da oposição: o próprio Partido Comunista que, até então, apoiava o advogado e pintor Arlindo Vicente, também ele candidato pela oposição. Em Maio, dois momentos marcam o processo de campanha eleitoral: a conferência de imprensa no Café Chave de Ouro, onde Delgado admite a demissão de Salazar como sua prerrogativa enquanto presidente, caso fosse eleito; e a desistência da candidatura de Arlindo Vicente em favor do general. O pleito eleitoral decorre com algumas garantias até então inexistentes, como a possibilidade da presença de fiscais eleitorais e o uso de uma mesma cédula de votos para ambos os candidatos, o que 38 impossibilita a identificação da opção política dos votantes . No entanto, apesar de toda a mobilização popular em torno da figura de Delgado durante a campanha, o resultado final dá a vitória para o candidato da União Nacional, o Almirante Américo Tomás. Alguns dos nomes da oposição, entre eles o próprio Arlindo Vicente e o antigo combatente republicano Jaime Cortesão, são presos sem 38 Anteriormente, as cédulas de votação eram diferenciadas em termos de cor e qualidade de papel, o que permitia a fácil identificação daqueles que votavam nos candidatos da União Nacional e dos que se atreviam a votar na oposição. 43 Heloísa Paulo nenhuma outra acusação que não seja a de participação no pleito eleitoral. O general pede asilo à Embaixada do Brasil e dali, graças à intervenção do Embaixador Álvaro Lins, consegue embarcar rumo ao Rio de Janeiro. Delgado inicia um período de exílio, marcado por polémicas e controvérsias com a oposição portuguesa e exilada. A década de cinquenta termina com mais uma tentativa de golpe, a Revolta da Sé, realizada em Março de 1959, envolvendo civis e militares, reunidos em torno do chamado Movimento Militar Independente. Alguns dos participantes, como é o caso de Luís Calafate, Jaime Conde e Manuel Serra partem para o exílio, dando continuidade à militância política. Os anos sessenta, iniciados com as Comemorações do Vº Centenário da Morte do Infante D. Henrique, não prometem muito ao salazarismo. O início da Guerra Colonial é apenas uma das facetas do desmoronamento do regime, sendo o assalto ao Paquete Santa Maria uma das suas imagens mais significativas. Aquando do assalto ao Santa Maria, o posicionamento de Jânio Quadros vai contribuir para o aumento da desconfiança das elites conservadoras e dos militares brasileiros com relação ao posicionamento interno do presidente e à sua política externa. Gradativamente, o governo de Jânio Quadros fica isolado social e politicamente, renunciando o presidente em 25 de Agosto de 1961. 2. Exilados e emigrantes: a Venezuela com porto de partida Da mesma forma que o Brasil, a Venezuela acolhe emigrantes portugueses; o maior fluxo emigratório acontece nas décadas de quarenta e cinquenta do século passado. Na sua grande maioria são provenientes da zona de Aveiro e Coimbra, trabalhando em padarias e outros ramos do pequeno comércio. Na verdade, até à primeira década do século XX, a economia da Venezuela era essencialmente agrícola e pecuária. O petróleo, explorado deste a segunda metade de Oitocentos, ganha um novo papel no desenvolvimento económico com investimentos maciços na sua extraçção, graças às concessões dadas pelos sucessivos Governos às grandes companhias estrangeiras. Em 1920, existem já cerca de 44 Contextualização temporal 1.312 contratos de exploração de campos petrolíferos naquele país; três anos mais tarde, surge a Companhia Venezuelana de Petróleo, 39 destinada a controlar uma parte da produção . No entanto, todo o desenvolvimento nesta área não significa um retorno de benfeitorias para a grande maioria da sociedade venezuelana. O governo ditatorial presidido por Juan Vicente Gómez, no poder entre 1908 e 1935, concentra os lucros do petróleo na mão de uma minoria, reprimindo as manifestações sociais com violência graças a um complexo aparato da polícia política. As greves de trabalhadores são proibidas e a exploração desenfreada acaba por contaminar as nascentes e os lagos das regiões limítrofes aos poços. Com a morte de Gómez, assume o Governo Eleazar López Contreras, que se vai afastar da linha política do seu antecessor, promulgando uma nova constituição, o que permite o aparecimento de um primeiro partido, a Acção Democrática, 40 AD, em 1941 . No entanto, as mazelas do regime anterior não desapareceram de todo. Caracas parece espelhar os males sociais do crescimento desenfreado, sendo a prostituição um dos sintomas mais visíveis da política governamental. Entre 1939 e 1945, um programa radiofónico intitulado El espejo de la ciudad, transmitido pela Radio Continente de Caracas, procura erradicar os “males” que assombram a capital, como a prostituição nas ruas de Caracas. O principal responsável é o radialista Alberto Ravell, membro fundador da AC, que 41 estivera no exílio durante a ditadura de Juan Vicente Gómez . Em 1945, os ventos da democracia fazem eco no país e anunciam o fim do período de ditaduras consecutivas, iniciadas por Juan Vicente Gómez e finalizadas no governo do general Isaías Medina Angarita. Assume o poder uma Junta Revolucionária de Governo 39 Ver, entre outros, Arroyo Urbaneja, Diego Bautista. Pueblo y petróleo en la política venezolana del siglo xx. Caracas, Cepet, 1992; Mcbeth, Brian S. Juan Vicente Gómez and the oil companies in Venezuela 1908-1935. Cambridge, Cambridge University Press, 1983. 40 Sobre a história recente da Venezuela, ver, entre outros, Calvani, Arístides y otros. Venezuela Moderna: Medio Siglo de Historia (1926-1976). Caracas, Editorial Ariel, segunda edición, 1979; ou ainda, Mudarra, Miguel Angel, Historia General de Venezuela, Caracas, Editorial Biosfera, 1991. 41 Sobre o tema, ver, entre outros, Cortina, Alfredo. Contribución a la historia de la radio en Venezuela. Caracas, Ediciones del Instituto Nacional de Hipódromos, 1982. 45 Heloísa Paulo que prepara o terreno para as eleições presidenciais. Uma série de decretos regularizam as condições de exploração do petróleo e a relação entre os sindicatos e as companhias concessionárias. Surgem novos partidos, como o COPEI (Comité de Organización Política Electoral Independiente), de inspiração social-cristã, e a União Repu42 blicana Democrática, URD, de tendências liberais, ambos em 1946 . O novo presidente, eleito em finais de 1947, o escritor Rómulo Gallego, pretende dar continuidade às reformas, mas novamente um golpe militar põe fim ao regime democrático na Venezuela. Os militares e outros grandes beneficiados com as concessões feitas ao estrangeiro não permitem o avanço das mudanças pretendidas pelo Governo de Gallego, em especial uma sonhada Reforma Agrária. O novo governo militar tem na figura de Marcos Pérez Jiménez o seu principal nome. Com o capital proveniente da chamada “etapa de ouro” da exploração petrolífera florescem as obras monumentais, como uma auto-estrada que passa a ligar Caracas a La Guaira, enquanto as grandes reformas sociais propostas anteriormente são esquecidas. A repressão dos opositores é acompanhada pela censura e pelo desrespeito do sistema eleitoral. O exílio é a alternativa à prisão, ainda que os estabelecimentos prisionais recebam cada vez mais os dissidentes do regime. No México, Chile, Costa Rica, Colômbia, Equador, Bolívia, Trinidad, Argentina, Uruguai e Cuba encontram-se núcleos de oposicionistas venezuelanos. No entanto, a imagem do país no exterior é de crescimento económico, apesar das denúncias constantes dos exilados políticos, entre os quais Rómulo Betancourt 43 e Alberto Ravell . A aparente prosperidade, da qual a capital é um verdadeiro ícone pelo seu crescimento constante, seduz cada vez mais os emigrantes da velha Europa, em especial da Península Ibérica e da Itália. Entre 1952 e 1957, chegam ao país cerca de 45.000 emigrantes, sendo os portugueses os mais atraídos pela capital. Em Caracas, trabalham no pequeno comércio, em especial em padarias, restaurantes, cafés e na florescente construção civil. 42 Ver, entre outros, Magallanes, Manuel Vicente. Los Partidos Políticos en la Evolución Histórica Venezolana. Ediciones Centauro, Caracas, 1983. 43 Ver nota 49. 46 Contextualização temporal Entre os que chegam há um grande número de exilados políticos. Os primeiros a chegar vêm de Espanha, como o médico August Pi y Sunyer, antigo deputado republicano, fundador do Instituto de 44 Medicina Experimental em Caracas , ou o galego Xosé Velo Mosquera, antigo secretário-geral da Federação das Mocidades Galeguistas, exilado na Venezuela deste Outubro de 1948. Entre os portugueses, Mário Mendez da Fonseca, que chega a Caracas em 1952, 45 em plena ditadura de Pérez Jiménez . Mas, não são só portugueses e espanhóis os que esperam no exílio o retorno da democracia aos seus países de origem. Na cidade do México, os exilados venezuelanos lutam contra a ditadura venezuelana e, entre os meios utilizados, publicam periódicos de propaganda oposicionista, como Venezuela Democrática e Noticias de Venezuela, o primeiro em representação da AC e o segundo do Partido Comunista venezuelano, PCV. De igual forma, internamente, os partidos alargam as suas actividades clandestinas, procurando mobilizar a população contra o regime ditatorial. As acções são coordenadas pela Junta Patriótica, organismo que reúne um representante de cada partido político. A partir de Caracas, as iniciativas da Junta alcançam as demais cidades do país. Em Dezembro de 1957, pressionado pelas manifestações populares, o ditador convoca plebiscito popular, objectivando confirmar ou não a sua permanência no poder. A manipulação na contagem dos votos dá a vitória ao Governo, mas não por muito tempo. A partir de 1 de Janeiro, uma série de rebeliões ocorrem por todo o país, incorporando militares e civis com um único objectivo: a deposição de Pérez Jimenez. A 21 de Janeiro, uma greve geral é convocada pela Junta Patriótica e, dois dias depois, as Forças Armadas exigem a deposição do Governo. Na madrugada do dia 23 de Janeiro, o presidente deposto parte para o exílio na República Dominicana. 44 Sobre o tema, ver, entre outros, Martín-Peña, José Francisco Tinao. “Los médicos del exilio repúblicano en Venezuela”, in Historia Actual Online, nº 7, Primavera 2005, pp. 43-54. 45 Ver, Pio, Francisco de Oliveira. “Prologo. Una vida ejemplar”, in Fonseca, Mario Mendez. 42 años de “Estado Novo”. Patria sin Hombres y Hombres sin Patria. Caracas, Movimiento Democratico de Liberacion de Portugal y sus Colonias, 1969. 47 Heloísa Paulo A queda da ditadura é marcada por manifestações populares, entre elas a tomada pela multidão de instituições-símbolos da repressão, como a sede da Segurança Nacional. A população ataca os estabelecimentos e coloca em liberdade os presos políticos. O retorno de centenas de exilados, entre eles Rómulo Betancourt e Rómulo Gallegos, marca igualmente o clima de “euforia democrática”. Em carácter provisório, o Governo é assumido por uma Junta Militar, chefiada pelo contra-almirante Wolfgang Larrazábal, que promete a realização imediata de eleições e a promulgação de um novo Estatuto Eleitoral. Entre Maio e Julho, os partidos iniciam os preparativos para o pleito, mas uma nova crise surge quando o Ministro da Defesa, o general Jesús María Castro León, solicita o adiamento das eleições por 3 anos e a suspensão da AD e do PCV, pregando o retorno à censura do regime anterior. A tentativa de golpe é controlada, mas outras acontecem, igualmente sem êxito. A situação económica interna é preocupante, frente ao deficit orçamental deixado pelo regime anterior. O desemprego é o grande espectro social e o desafio imediato da Junta Patriótica, que coloca em prática um Plano de Emergência, buscando empregar o maior número possível de trabalhadores. O clima político é igualmente conturbado, agravado pela disputa eleitoral para a presidência. Os partidos sofrem com a instabilidade política e tentam dar continuidade ao regime democrático, estabelecendo um “pacto partidário”. No chamado Pacto do “Punto Fijo” participam representantes da AD, da COPEI e da URD. O vencedor das eleições é Rómulo Bettencourt, candidato pela AD. O seu mais forte concorrente, membro da Junta Militar, Larrazábal, apesar do apoio da URD e do PCV, não consegue fazer frente ao poder da AD. Em termos económicos, as reformas empreendidas espelham o novo regime. A realização da tão sonhada Reforma Agrária, o posicionamento firme do Governo frente aos grandes consórcios petrolíferos, com o lema de «no más concesiones», e o papel desempenhado pela Venezuela na criação da OPEP, Organização dos Países Exportadores de Petróleo, são exemplos desta nova conduta. No âmbito das liberdades democráticas, a Constituição de 1961 reconhece a soberania popular e regula as relações entre a sociedade e o Estado, assegurando a consolidação institucional da democracia. 48 Contextualização temporal A rádio volta a ser um veículo democrático, marcada pelo retorno de programas de conteúdo social, como o de Ravell. Os estudantes, que haviam comparecido em peso às manifestações, ganham benesses, graças às mudanças realizadas no ensino. Na política externa, o novo regime procura fortalecer os laços com os restantes países da América Latina, fomentando o desenvolvimento dos movimentos democráticos latino-americanos. O apoio dado pela Venezuela à Revolução Cubana é expresso na visita de Fidel Castro ao país, aquando das comemorações do primeiro aniversário do fim da ditadura de Marcos Pérez Jiménez. No seu discurso, em Caracas, Fidel reafirma os princípios da política externa venezuelana, declarando a urgência da independência económica e política para os povos latino-americanos, mas sobretudo da necessidade de 46 permanente evolução no processo democrático . O clima de liberdade democrática favorece os posicionamentos mais combativos dos exilados políticos estrangeiros. Ainda em 1958, o jurista e ex-combatente republicano na Guerra Civil espanhola, Manuel Garcia Pelayo chega para leccionar na Universidade Central da Venezuela, onde vai fundar o Instituto de Estudos Políticos, passando a ser uma figura importante da oposição espanhola naquele país. Em 1959, o engenheiro Félix de los Ríos, antigo Director-geral 47 de Obras Hidráulicas da República , funda a Junta de Exilados da República Espanhola. Neste mesmo ano, é também criada a Junta Patriótica Portuguesa, que congrega antigos oposicionistas portugueses, como o já citado Mário Mendez da Fonseca. Ambas as associações contam com o apoio de políticos venezuelanos, como 48 Alberto Ravell . O contacto entre os exilados ibéricos leva à criação do DRIL, Directório Revolucionário Ibérico de Liberação. Entre os seus prin46 Sobre o tema ver, entre outros, Furiati, Claudia. Fidel Castro. Uma Biografia Consentida. Tomo II. Do Subversivo ao Estadista. Rio de Janeiro, Editora Revan, 2001, pp. 38 e seguintes. 47 Diaz-Marta, Manuel. “. Los ingienieros del exilio español”, in Los ingienieros españoles en América. Cuadernos de la Fundacion Españoles en el Mundo. Madrid, Fundacion Españoles en el Mundo, 1996, p. 30. 48 Ver, entre outros, de Abreu Xavier, Antonio. Santa Libertad (Una muestra de la actividad política portuguesa en Venezuela. TF, abr. 2004, vol. 22, nº 86, pp. 253-266. 49 Heloísa Paulo cipais nomes, Xosé Velo Mosquera, José Fernández Vázquez (Jorge de Sotomayor), membro da Marinha republicana na Guerra Civil, e Humberto Delgado e Henrique Galvão, ex-membros do regime de Salazar. As primeiras acções deste movimento são realizadas em Espanha, no ano seguinte à sua fundação, em 1960, incluindo ataques terroristas ao aeroporto de Barajas, em Madrid, e aos caminhos-de-ferro na zona de Barcelona e Bilbau. A sua actuação mais conhecida, porém, é realizada entre 22 de Janeiro e 4 de Fevereiro de 1961 e mobiliza a atenção internacional, envolvendo directamente ou indirectamente, para além de Portugal e Espanha, a Venezuela, o Brasil e os Estados Unidos. O assalto ao paquete Santa Maria é o símbolo de uma década marcada pelo combate em prol da democracia e pelo fim das ditaduras mais antigas da Europa, a portuguesa e a espanhola. 50 Contextualização temporal AS ANDANÇAS 51 Heloísa Paulo 52 Andanças para a Liberdade Capítulo primeiro As origens 1. E assim vos conto os primeiros anos do “Come e Cala” Come e cala… disseram-lhe! Eu ouvi! Estava lá. Ajudava a mãe e a avó Janarda nas suas actividades de vendedeiras de carnes e enchidos, pelas praças das terras vizinhas, carregando o menino pelas congostas estreitas e empedradas, mas refrescadas pela sombra das latadas que as cobriam. Sempre que em casa da mãe não houvesse quem dele cuidasse, lá íamos nós: eu, a “Nuvem” portadora da canastra lá no alto da cabeça com o menino, a caminho de S. João, de Macinhata, da Feira, ou da Arrifana, e até de lugares mais longínquos! Na canastra de levar o pão, aconchegado entre brancos panos de linho, também cabia o Come e Cala. No princípio era difícil segurá-lo; habituámo-nos, ele deixou de se mexer tanto e habituou-se à cadência do meu caminhar. Mal eu começava a andar, adormecia como um anjinho! Fui a sua primeira “Nuvem”, nome que mais tarde utilizou para recordar esses dias e essas viagens de canastra. Mas a sua primeira ama foi um primo que, pouco paciente, não lhe suportando o choro, lhe enfiava papa e açúcar pela boca abaixo, repetindo a ordem de comer e calar: “come e cala, Camilinho”, dizia-lhe! A minha memória já não é o que era, das coisas de ontem já não me lembro, mas das antigas lembro-me de todinho, lá isso é verdade. Infelizmente não vos posso contar muitas coisas, porque levaram-no de cá ainda muito pequenino. Da sua meninice temos que ser nós, as pessoas que bem o conheceram, a contar as coisas… depois, só ele mesmo vos poderá dizer por onde andou e o que fez, embora a gente 53 Camilo Mortágua sempre tenha sabido alguma coisa pelos jornais e por uns Senhores de chapéu e gabardina, que, com ar misterioso e grave, às vezes apareciam por aí, quase sempre a quererem saber coisas e a contar mentiras. Esta estória, como todas as estórias, não pode começar no dia do nascimento do menino. Tenho que vos dizer alguma coisa sobre os precedentes mais ou menos influenciadores da futura personalidade da criança. Esse bebé, bem cedo apelidado de Come e Cala, nascia em tempos favoráveis à imposição do silêncio e à exigência da obediência. Pelo choro incontido e persistente, abrilhantado com estridentes e frenéticos berreiros, bem cedo a criança deu sinais da sua revolta contra quem o mandava… comer e calar! Eu, a sua primeira “Nuvem”, de meu nome oficial Maria Soares da Silva, mais conhecida por Maria Peixeira (peixeira da mesma família dos Peixeiras a que pertencia a bisavó do Come e Cala, e não por vender peixe) com os meus oitenta e oito bem contados, estou convencida que aqui começou o seu “fado”, o seu destino. Ainda hoje há muito quem acredite nessas coisas! Desde então, como se veio a verificar, percebeu-se que o rapaz saía ao avô Aureliano Tavares, falecido na prisão, antes de ele nascer, não se sabe bem se das pestes bubónica ou pneumónica, se da tuberculose, ou dos maus tratos sofridos por contínuas prisões, devidas à sua participação nas lutas políticas da época. Consta que, forçado a nascer pelos ferros do Dr. Figueiredo (médico em Estarreja) durante cesariana trabalhosa, violentado desde a nascença, o Come e Cala lançou o seu primeiro grito na alta madrugada de 29 de Janeiro de 1934 quando o dito médico, então democrata activo (parece que se arrependeu de o ser), lhe mostrou o ameaçador instrumento de corte do cordão umbilical. Depressa se refez do susto do nascimento e, aos cinco dias de vida, iniciava a sua vocação de andarilho. Com a mãe e acompanhado dos padrinhos e avó, espreitando a paisagem lá do alto da “minha canastra nuvem”, logo foi levado a participar da grande romaria e festa do S. Brás de Riba-Ul, sua primeira festa, a 3 de Fevereiro. Dezasseis dias antes, os Vidreiros da Marinha Grande tinham contribuído, a priori, para balizar o tempo e o sentido das suas andanças pela vida. Sem ainda o poder saber, pela festa perpassava já 54 Andanças para a Liberdade o espalhar de um rumor generalizado de repressão e a angústia, sentida pelo avolumar das primeiras ameaças prenunciadoras da perda das liberdades e da implantação do fascismo em Portugal e na Europa. Durante os seus primeiros dois anos, o ambiente que o envolveu sem que disso tivesse consciência, ou talvez não, foi um ambiente de luta clandestina pela vida. As freguesias de Ul e Travanca, no concelho de Oliveira de Azeméis, são terras de moleiros e padeiras, e de águas cantantes, elemento energético crucial para a vida destas terras ao fazer mover os moinhos que também foram sempre, e são, aqui, fundo musical e chamamento à emigração. Terras de gente extremamente laboriosa e de actividades nem sempre legais, mas honestas (naquele tempo, porque nem todo o grão que se moía era dado ao manifesto… nem todo o pão que se comia era de lei!), a maioria das famílias era “candongueira”, dedicando-se à moagem e à elaboração do seu famoso pão, que era preciso “comer e calar”. O pão das padeiras de Ul, que durante tantos anos foi a actividade principal da economia da terra e sustento das suas gentes, era um produto elaborado com matéria-prima ilegal… mas, como tantas vezes acontece (gato escondido com rabo de fora!), se os grãos eram da “candonga”, depois de transformados em pão adquiriam toda a legalidade que a necessidade de encher os estômagos lhes conferia. Por isso, se a água abundava, os grãos não podiam faltar! Era necessário ir buscá-los às terras férteis mas muito trabalhosas do baixo Vouga e Antuã, das marinhas ribeirinhas da Ria de Aveiro pertencentes às Freguesias de Fermelã, Canelas, Salreu, Pardilhó e Murtosa; entre outras terras das quais outros vos falarão mais adiante, acompanhando o Come e Cala a Salreu e Estarreja. 2. A viagem inicial Assim foi que um dia, se a memória não me falha lá por volta dos seus três anos, a “sagrada família”, menino e pais, com todos os seus haveres, seguiu estrada fora, numa carroça puxada por dois cavalos, à maneira do Oeste, pela velha Estrada Nacional 1 (à época chamada de estrada real), a caminho da casa dos avós paternos, os Mortáguas, situada no Ribeiro da Ladeira-Salreu-Estarreja. 55 Camilo Mortágua Primeira grande viagem, a primeira grande e sempre latente recordação gravada, de forma bem precisa, na memória do Come e Cala, por ele tantas vezes contada. Passada a Freguesia da Branca, já bem perto de Albergaria-a-Nova, ali onde a velhinha e ronceira linha do Vouga atravessava a estrada (aquele comboio que permitia que os passageiros descessem para fazer as suas necessidades fisiológicas e voltassem a apanhá-lo na próxima curva), as bestas assustaram-se com as sombras das árvores que naquele local bordejavam a estrada e acabaram por encalhar os rodados da carroça nos carris da via-férrea. Já o sol se tinha posto… e ao longe ouvia-se o surdo roncar da máquina a vapor soltando agudos apitos de advertência; o pânico instalou-se! Gritos e aflições, vergastadas e estímulos alimentares aos animais, tudo em vão! Quando o estrondo do avançar da máquina se tornou mais assustador e próximo, finalmente os muares compreenderam que seriam as primeiras vítimas! Pregaram quatro coices no ar e, ao som de dois fortes relinchos, desbloquearam a situação! O Come e Cala, deitado dentro da canastra de ir a vender o pão poisada contra o tronco de um eucalipto, assistia ao desenrolar dos acontecimentos, temendo que na euforia do perigo passado se esquecessem dele ali encanastrado! Retomada a marcha, sem mais incidentes até ao destino, segundo o próprio nos contou, entraram pela porta pequena do grande portão dos Mortáguas. Era tempo de vindima. Às narinas do Come e Cala chegou-lhe o perfume intenso, nunca mais esquecido, da imensa latada de uvas americanas que, cobrindo todo o quinteiro, ali criava um inebriante ambiente de frescura e exotismo. E pronto, aqui chegados... deixo-vos o Come e Cala entregue aos pais e avós. Aqui me despeço, porque mais não vos posso contar. Ainda vi o “meu menino” algumas vezes, poucas, já rapaz dos seus dez anitos, franzino mas rijo e senhor de si, quando, só ou acompanhado por um primo, vinha de bicicleta, de Salreu até Ul, para visitar a avó. Várias vezes e durante meses e anos o julguei morto. Mas mesmo isolada cá na aldeia, sempre me chegaram notícias da sua “ressurreição”, que é como quem diz… da sua sobrevivência! Foram essas boas notícias que contribuíram para querer guardar na memória os tempos primeiros do Come e Cala. Os tempos da sua 56 Andanças para a Liberdade “primeira nuvem” protectora, a quem ainda hoje lembra e de quem é lembrado. Também eu, adquirindo uma designação bem menos poética e terna, deixando de ser a “primeira nuvem” para passar prosaicamente a ser a Maria Peixeira, espero que outros que com ele partilharam a vida nos possam contar os passos da transformação do Come e Cala em tantos personagens como o seu viver lhe foi exigindo, entre outros: Batata, Pé Ligeiro, Zé entre Zés, Manuel, José, Carlos e, finalmente, Camilo Mortágua! 3. Em casa dos Mortáguas O grande e austero casarão dos avós, de estrutura tipicamente agrícola, era composto por um piso térreo, um rés-do-chão elevado ao nível da eira, e um primeiro andar. No térreo, estavam a adega, os armazéns, os currais; a nível da eira, os diferentes espaços para todo o tipo de arrumações e a eira onde se debulhava e secavam os diferentes produtos colhidos. Da eira partia uma escadaria em granito para o primeiro andar, no patamar da qual o velho António Mortágua, já em cadeira de entrevado, passava os dias controlando o que em baixo se passava e descarregando insultos a quem se aproximasse, para alívio da sua amargura de paralisado. Para lá do patamar, situava-se à direita uma enorme cozinha camponesa, à maneira da época, com chaminé de chão e enorme mesa em madeira maciça toscamente trabalhada, com grandes gavetas, para onde se empurravam rapidamente os alimentos expostos se algum intruso inoportuno se anunciava. À esquerda e a toda a largura encontrava-se um amplo celeiro que, em caso de necessidade, também servia de dormitório e, ao fundo dum corredor, acedia-se à sala principal e desta para os quartos. Ainda debaixo da grande latada de videiras americanas que cobria todo o quinteiro encontrava-se o poço e, para além deste, o extenso aido de onde vinha quase tudo o que naquela casa se comia. 4. O Tó Xarela e o Batata 57 Camilo Mortágua Reinava naquela casa a avó Joaquina, baixinha, miudinha e elegante, mulher viva e expedita, “a raposinha” como então lhe chamava o Batata. Lembro-me bem! Então… vivia eu, o Tó Xarela, mesmo em frente. Aliás, aí mesmo tinha nascido. Apresento-me!... Sou um dos melhores amigos do Batata (ex-Come e Cala), vizinho, companheiro de escola e de brincadeiras, sou o Tó Xarela. Nessa época havia por cá muita rapaziada nova, rapazes e raparigas. Nunca tínhamos problemas para organizar as novenas até à Senhora da Boa Memória em época de exames, ou, em épocas mais folgadas, até à Senhora do Socorro! Bicicletas pela mão, os rapazes acompanhavam as raparigas em ritmo de passeio, nove pares em fila pela borda da estrada, sem pressas, para alongar o tempo de namoro. Eram as Carapinheiras, as Botas, as Tunas, os Capitões e Capitoas, os Tenentes, os Passamanas, os Xarelas, etc., etc., tudo famílias com muitos filhos, rapazes e raparigas que facilmente se juntavam para cortar lenha nas margens do rio, carregando-a para as grandes fogueiras de S. João ou para qualquer outra festividade mais ou menos tradicional. Dos anos passados em casa da avó Joaquina, poucos, talvez três, muitas vezes nos falou ele das surras de vime que o pai lhe dava por ir para o rio fugindo à sesta e, a rir, nunca se esquecia da história do tio a tirar as botas para ir rachar lenha, não fosse o machado dar algum golpe no cabedal. Apesar da lojeca que os pais entretanto tinham aberto no rés-do-chão da casa paterna, a vida mostrava-se-lhes de horizontes sombrios e limitados, face às responsabilidades acrescidas pelo nascimento das irmãs Ana e Augusta. Aí por volta dos seis anos, quase a fazer os sete, recebe a triste notícia: os pais decidem ir tentar governar a vida para Lisboa! O Come e Cala e a irmã mais velha ficaram em Salreu, Augusta, a mais nova, acompanhou os pais. Ficavam, mas na casa em frente. Em casa do tio António Salça, irmão da avó Joaquina, e de sua mulher a ti Ana. Casal sem filhos, casa suficientemente abastada para manter, contratados ao ano, o Zé e a Maria. Ele, um jovem com alguma deficiência mental, e ela, uma garrida moça em idade casadoira. Nesta casa, sob o rígido controlo do justo, austero e muito respeitado António Salça, começou a formação moral e cívica do 58 Andanças para a Liberdade menino Come e Cala. Ali morreu o Come e Cala e nasceu o BATATA! Primeira mudança de alcunha devida à sua entrada na escola primária, inspirada no seu ar introvertido e pouco dado a responder a provocações. Alcunha que lhe é posta pelos seus colegas de escola sobrinhos do Dr. Oliveira e Silva, médico da terra, que por esses dias tinha sido levado, de madrugada, por “uns senhores todos vestidos de preto e gabardina, parecidos com a morte, que levavam as pessoas que pensavam pela sua cabeça para destino desconhecido, não se sabendo se algum dia voltariam” – era o que se dizia em surdina quando as pessoas se encontravam pelos descampados da Marinha, longe dos muros da aldeia, porque “as paredes têm ouvidos”, enquanto que em campo aberto, “palavras leva-as anónimas o vento”. Ao Batata, assim chamado porque, segundo constava, não reagia nem que lhe batessem… e desatava a chorar quando batia nos outros, estas histórias das pessoas levadas antes do nascer do dia para sabe-se lá onde, inquietavam-no e punham a sua imaginação a pensar no Mundo desconhecido, num mundo sem contornos precisos, escuro e sem fundo nem fim. “Já se ouvia falar em desterro”, coisa que ele não sabia o que seria mas lhe criava muita angústia e ocasionava, segundo dizia, sonhos com fantasmas assustadores que, na sua imaginação, o perseguiam para o levarem também para o desterro, que devia ser um lugar parecido com o inferno de que falava o Padre Gomes (“cabeça de cimento”, como lhe chamavam), fantasmas esses que o punham a tremer de pavor cada vez que vislumbrava dois ou mais homens vestidos de preto e chapéu! Sobretudo quando caminhava de casa até ao apeadeiro de Salreu pela linha do comboio, para ir fazer a sopa à ti Maria do Jampais que morava no extremo da Freguesia à saída para Canelas, numa casa “típica”, mais curral que casa. Quinteiro e currais no rés-do-chão, térreos com muito estrume a servir de chão, uma empena escura a servir de cozinha e no primeiro andar, ao cimo duma escada de granito, uma sala e dois quartos, perfeitamente atapetados por meio metro de acumulada porcaria ao longo dos últimos trinta anos, sem jamais terem visto água ou vassoura! Num dos quartos, jazia, há tantos anos como a porcaria, o Zé Jampais, conservado em espessa e bafienta negrura de difícil distinção quanto à sua natureza. A missão do Batata naquela casa, encomendada pela ti Ana Salça, que, se bem 59 Camilo Mortágua me lembro, era irmã do submerso entrevado, a quem a própria mulher se esquecia de alimentar, era a de fazer sopa numa panela de ferro que estava proibido de lavar para não desperdiçar a gordura das sopas anteriores, e, de galochas, fazendo atenção para não escorregar na bosta, despejá-la numa espécie de tigela sebosa à cabeceira do Zé Jampais. Como ele dizia, nessa caminhada pela linha-férrea, salvo nos dias em que algum vagão carregado de rolhas tinha deixado algumas pelo caminho, coisa que sempre lhe fazia jeito para fazer bóias para a pesca ou para a troca por berlindes (pirolitos), o que mais temia era ver chegar a guerra – a guerra, na sua imaginação, só podia vir pela linha férrea e nas pessoas de uns homens fardados que, de vez em quando, avistava ao longe. Que não eram senão grupos de trabalhadores da C.P de capacete na cabeça e estranhas vestimentas… aquilo era a sua guerra, a Guerra vinha pela linha do comboio! 5. Madrugadas de aventura: candonga e águas largas Nesse tempo, em certos dias de Outono, após o período das colheitas, toda a gente se deitava cedo – o terço rezava-se de boa hora. Sem explicações (pelo menos para os mais novos), a família e o pessoal de serviço recolhia a penates, finda a ceia. Ninguém perguntava nada… mas, todos sabiam que ia ser preciso estar alerta desde bem cedo. Lá por volta das duas da madrugada, todos se preparavam para, de ouvidos bem abertos, pressentirem as carroças. Estas, puxadas por duas ou mais parelhas, rodando em silêncio pelas calçadas e congostas empedradas das aldeias, com as rodas revestidas por tiras de velhos pneus e as patas das bestas bem calçadas do mesmo material, vindas de Ul e de outras terras vizinhas, apresentavam-se aos portões das casas de lavoura, eixos diariamente bem untados, para deslizarem sem que os vizinhos disso se apercebessem. Todos desconfiavam de todos… o medo reinava! Pelas noites dentro, praticava-se a “candonga”! Procedia-se às transacções comerciais não autorizadas: a venda da parte dos produtos alimentares que os agricultores não entregavam aos Grémios, 60 Andanças para a Liberdade que não “davam ao manifesto” para os poderem vender “à candonga”, ou seja, fora da tabela imposta. Bem cedo o Batata percepcionou o clima conspirativo destas actividades clandestinas e a necessidade de não aceitar passivamente as condições impostas, a necessidade que todos tinham de correr riscos para sobreviver. Era destes celeiros que partiam os grãos para os Moinhos de Ul. Destas terras baixas, irrigadas e drenadas pelos extensos canais da Ria, adoçados por variadíssimos desaguamentos de ribeiros e rios, do Antuã ao Vouga. Terras recentemente agricultadas e, por isso, muito férteis, delas se extraindo em abundância não só o milho e o arroz, mas também algas, ou melhor, o moliço que fertilizava as abundantes sementeiras temporãs das terras altas. Mas não só o moliço, também junco e “canizia”, recursos naturais das terras alagadas, para serem empilhados nos quinteiros das casas agrícolas e utilizados em “camas de gado” para a sua transformação em fertilizantes naturais. Tudo transportado esteiros acima pelos coloridos e vistosos barcos, artisticamente decorados, empurrados à vara larga pelo vigor e força dos moliceiros, ou pela maré e brisa que, vinda do largo, inchava os panos, fazendo-os deslizar na paisagem pintalgada de brancas velas em mar de verdura a perder de vista! A viagem anual às águas largas para ir buscar o junco era, para as crianças da terra, uma viagem ao “fim do Mundo” a não perder. Com receio de que não o chamassem, o Batata fazia grandes esforços para permanecer acordado até ouvir a azáfama da partida. 6. A casa do Salça No Inverno do ano de 1941, já instalado em casa dos “Salça do Ribeiro da Ladeira”, o nosso Batata deslumbrava-se pela primeira vez com o espectáculo das grandes cheias. Naquele ano, dizia-se que era a maior desde há muitos invernos. Salreu ficava ligado a Estarreja apenas pela Estrada Nacional. As águas quase inundavam a linha-férrea, ali a menos de cem metros de casa. O aido da tia Albertina, a guarda da passagem de nível, completamente inundado! Com o vale 61 Camilo Mortágua por onde corre o Antuã completamente coberto, mesmo para nascente da linha-férrea, o Ribeiro da Ladeira transformava-se na “Ponta de Sagres” de Salreu e o caminho que daí descia até ao rio, ia dar a uma espécie de porto improvisado (o porto das vacas), de onde partiam as bateiras para ir à pressa salvar algum gado. Ali descarregavam os “salvados” de alguns palheiros localizados em pontos mais altos e acessíveis. Do aido dos Salça, olhando a poente, era o MAR! Lá longe, bem longe, olhando sessenta graus à direita, na direcção de Pardilhó e Murtosa, quem tivesse boa vista podia vislumbrar as copas de alguns pinheiros mansos, árvores onde as cegonhas enamoradas daquela paisagem faziam anualmente os seus ninhos. Naquele ano, às cheias, veio juntar-se o ciclone. Decorria o mês de Fevereiro. Em todo o distrito de Aveiro os prejuízos materiais foram de vulto. Em casa dos Salça, como em toda a freguesia, cada um procurava desesperadamente segurar as telhas do seu tecto. Coisas e animais leves voavam pelos ares embatendo contra os muros das casas ou em alguma árvore de raízes mais profundas e seguras. As mulheres ajoelhadas frente ao altar da sala, rezavam e rogavam a Santa Bárbara. Os homens da casa, o António Salça e o criado Joaquim, acompanhados pelo Batata, segurando-se o melhor que podiam, sem que os silvos do vento permitissem que se ouvissem entre si, lá iam tentando amarrar as telhas com arames aos caibros, porque as ripas, essas, não resistiam à pressão do vendaval. Para o Batata, segundo o que depois me contou, foi a sua primeira vitória sobre o medo. Do sótão, após mais de duas horas de luta, desceram os três, sem chapéu, mas o Batata muito mais “homem”! Foram muitas e muito diversas as consequências desta calamidade. A enorme laranjeira que cobria toda a cerca onde se criavam as galinhas, aquela árvore que mantinha frutos todo o ano, incluindo aquela bonita laranja em cima da qual se colocava a moeda pascal para oferecer ao Senhor Padre aquando da visita do Domingo de Ramos, ficou sem frutos e quase sem folhas… pelo chão ficaram dois carros de bois cheios de laranjas, mais tarde empilhadas junto à eira, sem grande saída por terem sido derrubadas antes de amadurecer. Foi um Inverno difícil para os adultos; para o Batata foi um Inverno revelador da coragem necessária para lutar pela vida. Após 62 Andanças para a Liberdade alguns dias sem ir à escola, lá voltou para “as meninas” da Ladeira, as mestras e donas da sua escola primária. Uma sala de aulas anexa à residência das professoras, duas filas de carteiras, uma para rapazes, outra para raparigas, uns sessenta alunos de todos os anos na sala (da primeira à quarta classe), os da quarta classe à frente, os da primeira atrás, das nove à uma para todos, das três às cinco e meia (se bem me recordo) para os da quarta classe; próximo dos exames o horário estendia-se até às sete. Quando a professora tinha necessidade de ir preparar o almoço ou ausentar-se por qualquer motivo, escolhia um aluno para tomar conta da classe, o que era visto como uma distinção a premiar os mais estudiosos. A igualdade de género, coisa desconhecida nesse tempo, pelo menos por esta designação, era ali aproveitada para estimular a motivação pelo estudo e a “emulação amorosa precoce”: eram feitas as mesmas perguntas a um rapaz e a uma rapariga; quem respondesse, tinha o direito de aplicar umas palmatórias (com a célebre menina de cinco olhos) em quem não tivesse respondido. Claro está que, dado o conceito de superioridade masculina então existente, apanhar duma rapariga era a maior das vergonhas! Mas acontecia. Quando era ao contrário, e se o rapaz que tinha respondido bem andava de olhinhos na menina que não respondeu, este, em vez de bater, encostava suavemente a palmatória, o que significava ter de ser a professora a aplicar o castigo no apaixonado com a força necessária para ser exemplar! O Batata já nessa altura era marrão: passava o tempo a ler tudo o que encontrava e era dos primeiros nas respostas; como os outros, também apanhou algumas reguadas por querer poupar algumas meninas da classe; que me lembre, as mais “poupadas” foram a Mariazinha e a Cecília. Bem, mas dizia eu que as consequências do “Vendaval” (ninguém lhe chamava ciclone, não porque não o fosse mas por desconhecimento do nome) foram muito diversas. Uma das mais curiosas teria acontecido ao ti Zé Máximo barbeiro, avençado de muitos lavradores que lhe pagavam ao ano ou por semestre, mas quase sempre em Outubro, depois das colheitas, com uns alqueires de milho ou de arroz, umas quartas de feijões, uns 63 Camilo Mortágua litritos de azeite e, por vezes, conforme a abundância da casa e o número de homens a barbear, uns almudes de vinho! O ti Zé Máximo, exímio contador de histórias para entreter os clientes enquanto se ocupava das barbas e cabelos, jurava convictamente e a pés juntos que no dia do Vendaval, ia ele na sua bicicleta com o seu guarda-chuva de noventa varetas aberto, a caminho da casa dos Petiscos (petiscos de nome, não de comer), quando, ladeira arriba, a ventania lhe pegou por baixo e fez inchar o seu famoso guarda-chuva de noventa varetas, mais parecido com uma tenda de marajá que com um chapéu-de-chuva (palavras suas), elevando-o aos céus a voar alto sobre as águas até poisar de mansinho no ninho das cegonhas existente na copa daquele enorme pinheiro que se avista sobressaindo do espelho prateado das águas… não contente com a proeza, o Zé Máximo garantia que lhe valeu na altura a sua velha amizade com as cegonhas, que o tinham trazido de volta, agarrado ao seu guarda-chuva de noventa varetas pendurado no gancho do pescoço do passarão. ― Sim… sim… ― dizia ele ―, eu e as cegonhas damo-nos muito bem; muitos dos bebés que elas têm trazido para a freguesia, fui eu quem os fez vir! Daqueles tempos em que o Batata por cá andou, muito tenho para vos contar. Como já disse, andávamos quase sempre juntos. Eu era mais livre… tinha o tempo todo para mim: na minha casa não havia essas obrigações de ter que dormir a sesta depois do almoço, entrava e saía quando me apetecia, o meu pai andava pelas feiras e tabernas a negociar gado e a minha mãe ocupava o tempo a caminho da “tia Palmira”, aquela mercearia e taberna que existia na Estrada Nacional, ali mesmo no sopé da colina do Hospital Visconde de Salreu, onde íamos à missa aos domingos. A vida em casa dos Salça, naquela casa de esquina onde a rua do ribeiro vira para a ladeira, embora muito regrada e de alguma austeridade, tinha a vantagem de espargir sobre quem lá morava algum do prestígio e autoridade de que gozava o patriarca da casa, o Procurador, como às vezes lhe chamavam aquelas pessoas que sem saber ler nem escrever vinham a casa do António Salça para que este as aconselhasse, lhes tratasse dos papéis e lhes pagasse as décimas. Logo que aprendeu a ler e escrever, aí por volta dos seus oito anitos, já o 64 Andanças para a Liberdade Batata dava uma mãozinha ao tio (era por tio que o tratava) nestas questões das escritas e leituras. Naquela casa não havia distinção no trato entre patrões e criados, comiam todos à mesma mesa, embora os melhores bocados fossem sempre reservados para o menino Batata e para o dono da casa. A base da alimentação eram as sopas e os cozidos com carnes da matança anual do porco (Novembro/Dezembro), normalmente de dez a doze arrobas, guardadas na salgadeira até antes do Verão. A partir de então, o calor e as fainas das colheitas deixavam menos tempo para a cozinha e aconselhavam maior consumo de verduras, saladas e coisas simples de preparação rápida. Então era a época de estarem atentos aos búzios dos pescadoresmoliceiros ou dos moliceiros-pescadores, nunca soube muito bem (penso que eram mais moliceiros que pescadores), a anunciar ao vento e às populações das redondezas, de Estarreja à Murtosa, do Bunheiro e Pardilhó a Salreu e mais longe, até Santo Amaro e Avanca, entre outros lugares, que havia berbigão. A sardinha e outros excelentes peixes da pesca costeira e artesanal da Murtosa, Espinho e outras comunidades piscatórias das proximidades, vinham vendê-los as peixeiras de porta em porta, mas o berbigão ia-se comprar, ao litro, no esteiro de Estarreja, ali junto à estação dos comboios, directamente a quem o apanhava nas águas largas da Ria. Por estas bandas sempre se comeu muito peixe, do mar e de água doce, e o Batata era menino dado a todas as pescarias especiais: solhas à fisga; aos barbos com um saco depois da tapagem do rio metendo as mãos por entre as raízes dos salgueiros e nas tocas de onde por vezes saíam cobras de água; com bolas de pão amassadas com coca que se comprava na farmácia; por escoamento das valas e canais; às enguias de “setela” nas noites chuvosas de águas barrentas com minhoqueiro, guarda-chuva e candeeiro a petróleo; de “ripanço” no Verão quando os canais secam e as enguias metem a cabeça fora do lodo. O pimpão frito, a enguia de caldeirada e frita e o barbo, eram coisas muito apreciadas e abundantes, mas o berbigão era o preferido de muitas famílias. Barato e fácil de preparar, era, em muitas casas, prato diário. Na lareira de chão colocava-se a tampa do forno virada ao contrário em cima da trempe, chegavam-se-lhe umas brasinhas por baixo, os ber65 Camilo Mortágua bigões abriam e a família ia-se servindo e acompanhando com broa e vinho da casa. Para as donas de casa que participavam nos trabalhos do campo ao lado do resto da família, esta era a solução ideal. Aquilo era bem como dizia a canção. Havia sempre pão e vinho sobre a mesa, coziam todas as semanas, e ainda vendiam alguns almudes de vinho – em verdade se diga que não era grande vinho, embora fosse muito apreciado. A casa era farta mas austera, à mesa, por princípio mais que por necessidade – uma sardinha das grandes dava para três. Muito pão e pouco conduto, era a recomendação várias vezes repetida. Manhã cedo, mesmo de madrugada se fosse tempo de apanhar feijões, lá por essas quatro da manhã levantava-se toda a gente, o Batata também. Na lareira, meia enterrada em brasas, já estava a grande cafeteira cheia daquele café “à turca”, feito deitando o pó em água a ferver, mexer com colher de pau, esperar que levante de novo fervura, acalmar com água fria, voltar a mexer, e depois esperar que as borras assentem. Antes do café, havia a escolha entre umas migas de alho e umas sopas de leite acabado de ordenhar com broa e bastante açúcar, que era o que o Batata mais gostava, sobretudo das côdeas. Em dias de maior pressa, despachava-se o assunto com as sopas de vinho (ditas de cavalo cansado). Se alguém manifestava indícios de constipação, era obrigatório um copito de aguardente caseira queimada, com açúcar. A base do farnel para o pequeno-almoço, lá por volta dessas nove horas, já no campo, era os rojões que se retiravam do pote de barro onde estavam conservados em banha de porco desde a matança. Normalmente, o Batata acompanhava o pessoal da casa nos trabalhos das lavouras e das colheitas, salvo em períodos de pré-exame, ou quando as terras-leiras onde se trabalhava eram mais distantes. As migas de alho (água a ferver, alho, azeite e pão) com o café da manhã, o pequeno-almoço por volta das nove, dez horas, o almoço à uma da tarde, a merenda das cinco, o jantar às oito, e, no Verão, a ceia lá para as onze e meia-noite, eram as refeições do dia-a-dia. No Verão havia actividade na eira, frente à porta da cozinha, por vezes até de madrugada. 66 Andanças para a Liberdade Debulhavam-se, malhavam-se e secavam-se todos os cereais colhidos: principalmente milho, feijão e arroz. O arroz era a maior colheita e a mais trabalhosa e incómoda. Primeiro espalhava-se o arroz ainda agarrado à palha por toda a eira, numa espessa camada de aproximadamente setenta centímetros de altura; depois metia-se o gado (vacas) a dar voltas sobre voltas de forma a pisar uniformemente a camada exposta; pelas bermas, entravam em função os manguais ou mauais, como por cá se chamam, com tantos malhadores quantas fossem as pessoas disponíveis. Cada um tem o seu maual preferido; é frequente ouvir-se de casa em casa aquela pancada ritmada do… truz, truz, catrapuz, truz! Fazem-se despiques e pode-se mesmo dizer que quando os malhadores são experientes e em número suficiente, acontecem autênticos concertos de truz… catrapuz! Quando se considera que a palha já largou uma boa parte da semente, entram em cena as forquilhas para virar a camada de baixo para cima; depois de virar, recomeça tudo de novo. Quando se agarra uma “macheia” (mão cheia) de palha e se verifica que já soltou todo o grão, passa-se à fase seguinte: retirar a palha e limpar os grãos das folhas miúdas. Quando o arroz fica limpo, espalha-se uniformemente na eira e durante os próximos dois dias, conforme o tempo, mexe-se várias vezes para facilitar a secagem do grão. A maneira mais usual de mexer o arroz era: pés nus, ir arrastando os pés abrindo regos paralelos bem juntos, para cá e para lá, até remexer toda a área. Depois destas operações, guarda-se o grão no celeiro, limpa-se a eira, e recomeça-se de novo com mais uma carrada de palha de arroz com o seu grão. 7. O pó de arroz É bem conhecido o pó de arroz como produto de embelezamento. Porém, nós por cá sabemos bem o incómodo que dá o verdadeiro pó de arroz… de todo este trabalho, passar o tempo a coçar a comichão provocada pelo pó do arroz é o sofrimento maior. Nesses dias, com o dito pó entranhado no corpo, sobretudo em volta do pescoço e braços, e por todas as partes por onde se infiltrava durante os trabalhos da noite, apesar dos muitos lenços e panos usados para dele se defender, acabada a tarefa, lá pelas primeiras horas 67 Camilo Mortágua dum novo dia, muitos corriam para a água do rio, de toalha e sabão azul na mão, ansiosos por mergulharem nas águas correntes para se libertarem da comichão que não deixava ninguém dormir, mesmo com o cansaço típico de uma jornada de Verão numa casa de lavoura, de vinte horas e mais de labuta, por três ou quatro de descanso! Para os agricultores, as estações do ano é que impõem o ritmo e os horários de trabalho, é a Natureza que manda e não uma qualquer legislação feita pelos homens. Cada tarefa deve ser executada em condições específicas apropriadas. O sol, a chuva, o frio, o calor é que foram, ao longo dos tempos, moldando o “programa de actividades” dos homens que trabalham a terra. Há quem pense que o Verão é a melhor época do ano… como para todas as coisas, depende da actividade de cada um. Cá pelas nossas bandas, os lavradores e o seu pessoal gostam é do Inverno, não por ser frio, mas pelo descanso que dá. Em casa do Salça, como em muitas casas de lavoura, no Inverno recarregam-se baterias, põe-se o sono em dia e ganham-se algumas gorduras para derreter no Verão. Também se aproveitam as longas noites para cuidar, por muito pouco que seja, de aprender algumas coisas do passado, contar aos mais novos as estórias do viver de antigamente e renovar as práticas da fé. O velho Salça, sem o ostentar, tinha o seu orgulho no menino Batata. Sem filhos, o Batata era o seu menino. Discretamente procurava incentivar o rapaz a aprender, a estudar para ser alguém, de preferência Doutor ou Padre. Já nem me lembro onde (talvez até os vendessem porta a porta), ele lá arranjava os folhetins de história, uns fascículos sobre personagens ou acontecimentos da História de Portugal: D. Fuas Roupinho, Egas Moniz e a corda ao pescoço, Nuno Álvares Pereira, padeira de Aljubarrota, Infante D. Henrique, Martim Moniz entalado na porta, etc., etc., e, à noite, depois de rezar o terço, enquanto o pessoal da casa lavava os pés numa grande escudela ou selha (que é como nós lhe chamamos) de água quente, que se ia aquecendo na grande panela de ferro de três pernas, posta no meio da lareira de chão, o Batata fazia os seus primeiros comícios lendo em voz alta, para o público da casa, sempre muito atento e interessado, as aventuras dos nossos grandes personagens históricos. 68 Andanças para a Liberdade Cada folhetim era lido várias vezes durante a semana até que chegasse o da semana seguinte para continuar a estória. Era a nossa telenovela, bem mais interessante que essas que temos agora! Cá para mim, acho que foi nesses serões que o Batata começou a gostar dessas coisas que projectam a memória das pessoas para além da morte. Dessas acções grandes e arriscadas que depois se contam à lareira e nas bibliotecas… Naquela casa, como já disse, cozia-se a broa todas as semanas. A broa e o bolo. As broas para durarem até à próxima cozedura, e o bolo (uma rodela de massa, assim do tamanho duma peneira pequena, bem espalmada, da espessura do toucinho do porco) que se comia no próprio dia ou no pequeno-almoço do dia seguinte. Bolo ou bola quente, com chanfana, era normalmente o prato dessa noite. Mas atenção, a chanfana cá da terra não tem nada a ver com a chanfana de outras terras, nomeadamente, segundo me disseram, com a chanfana de Coimbra e arredores. A nossa chanfana é muito simples e compõe-se apenas de batatas, couves e bacalhau, tudo cozido e temperado com muito azeitinho e alho para aí poder molhar a bola. 8. As incontinências do Batata Conhecia-o bem. Quando me aparecia acabrunhado e sem vontade de falar, muito parado e a querer passar despercebido, zangado e sem paciência para nos aturar, já sabia… tinha mijado no folhelho! Pois, naquele tempo, os colchões dos lavradores eram umas enxergas recheadas de folhelho de milho, ou seja, das folhas que envolvem as espigas de milho. O nosso Batata sofria e envergonhava-se, sobretudo pelo facto das consequências da sua incontinência urinária serem expostas ao sol, para secar, sem recato, à mercê do julgamento e gozação de toda a família. Durou-lhe algum tempo este trauma. Mais tarde contou-me que se tinha curado deixando de mijar ao ar livre. Nunca mais mijava sem ser no penico, porque, dizia ele, de noite, quando sonhava que descarregava águas (expressão sua) contra o cabanal onde se guar- 69 Camilo Mortágua davam as bandeiras do milho e os fenos secos para o gado, como a mão não encontrava o penico, esse facto fazia-o acordar, evitando dessa forma a inundação involuntária! Que alguém se atrevesse a começar a pronunciar alguma palavra começada por mi… logo as orelhas de abano do Batata se arrebitavam, qual cachorro desconfiado do pau que o dono empunha. 9. As visitas às propriedades De quando em vez, quase sempre em dias santos ou feriados em que não havia escola, o Batata não aparecia nas nossas brincadeiras; aí já sabíamos… tinha ido com o tio Salça visitar as propriedades. Normalmente, de fato domingueiro e com as botas de ir à missa, partiam de Salreu ao alvorecer e rumavam até aos pinhais da Senhora do Socorro no concelho de Albergaria-a-Velha. A partir daí, iniciavam o regresso visitando as propriedades próximas da Estrada Nacional a caminho de Albergaria-a-Nova e, no cruzamento da estrada para Salreu, naquela casa que ainda lá está, o Salça condescendia em pedir uma sandes de leitão e um copo de tinto para cada um; era isto ou gastar o dinheiro na camioneta de carreira, nunca as duas coisas. Acabado o pequeno-almoço, repartiam estrada fora em direcção a Oliveira (Oliveira de Azeméis) a inspeccionar as leiras herdadas pelo lado da mãe do Batata, situadas em Travanca. Pela estrada de Oliveira a Estarreja, passavam em Ul para a família ver o rapaz e “meter água” (como ele dizia) e, já noite dentro, regressavam a Salreu. O Batata tinha pavor dessas caminhadas, da sua “cruz das semanas santas” (como lhes chamava): com a sua tenra idade, tinha que acompanhar o passo do vigoroso Salça para não ficar para trás. Por mais que choramingasse e descalçasse as botas, por mais que se sentasse nas paragens da “Carreira” a ver se o tio se resolvia a ir de camioneta, nunca o conseguiu. Convenhamos… um dia inteiro a caminhar a passo de lavrador, não era coisa que agradasse ao Batata, já nessa altura muito mais dado ao prazer das leituras que à dureza das marchas forçadas. 10. O rio Antuã 70 Andanças para a Liberdade O rio Antuã exerceu para todos nós e também para o Batata uma grande atracção. Havia ali, logo a seguir à passagem de nível da Ti Albertina, no enfiamento dum caminho carroçável, uma velha ponte de madeira sobre o rio, e, logo a jusante, as águas espraiavam-se em correntes mansas de muito baixa profundidade, permitindo que os carros de bois atravessassem o rio a vau. Quase debaixo da ponte era o lavadouro onde as mulheres iam lavar tudo. Lavava-se a roupa todo o ano; as tripas para os enchidos na época da matança dos porcos (Novembro, Dezembro); e na sua época também ali se batia e punha o linho de molho. O rio era quase o prolongamento da casa de cada família. Lavar-se no rio era mais cómodo do que em casa: não era necessário acartar água do poço, nem acocorar-se nas selhas ou escudelas de uso doméstico. Mas o rio era muito mais que a casa de banho colectiva e pública, para as pessoas que mais perto dele viviam. Dava peixe, dava frescura, dava pão irrigando as terras, dava espectáculo com as suas cheias, das suas margens saía a lenha para as nossas fogueiras de S. João e de Natal. O rio era a grande veia por onde circulava o sangue que alimentava a nossa fartura e alegria de viver! Também era a nossa piscina pública, outras não existiam. E era o nosso local predilecto para arreliar as mulheres sujando-lhes a água com os nossos mergulhos e brincadeiras a montante da área em que esfregavam os seus lençóis. Sem mestre, foi aí que o Batata se autoformou nas artes de esbracejar para se manter à tona d’água. Para as povoações situadas entre Aveiro e Porto, a linha férrea é a grande divisória entre o mar, as terras baixas (marinhas) e as terras altas do interior. Entre Aveiro e Estarreja, muito especialmente ao longo da linha férrea, desdobram-se em anfiteatro os casarios multiformes das aldeias contemplativas deste horizonte marítimo. É como se, para poente, para lá da linha férrea até ao mar, se estendesse o palco; e, para nascente, do lado de cá, desde Salreu, Fermelã, Canelas, etc., até à Branca, Pinheiro da Bemposta e serra acima, fossem a plateia e o primeiro e segundo balcão deste grande anfiteatro da NATUREZA. Se vos tento descrever esta paisagem que é a nossa, é para vos ajudar a perceber o porquê das fortes raízes que prendem a vida do 71 Camilo Mortágua Batata a estas terras, a estes nossos costumes e maneiras de ser, aos valores que sempre foram os nossos, mesmo que assumidos com a ligeireza e alegria próprias da infância. E não falo por falar: o próprio Batata tem-me dado continuadas provas disto que vos digo. Sempre me falou com imensa saudade e muita ternura dos tempos passados em casa do Salça, sempre considerou aquela casa a sua primeira grande Universidade precoce. 11. As mondadeiras Por vezes, quando nos reencontrávamos, desafiávamo-nos a ver quem se recordava de mais acontecimentos e de coisas que partilhávamos com imenso gosto. Apesar de ter partido muito novo, ou talvez por isso mesmo, ele ainda se lembra de coisas que eu já esqueci. Imagens recorrentes dessas recordações são: Ao entardecer, quando os sinos da Igreja tocam as Ave Marias, começam a ouvir-se ao longe, vindos lá das marinhas, do tal palco deste anfiteatro da Natureza, uns rumores melodiosos que pouco a pouco se transformam em celestial polifonia, aumentando progressivamente de volume, como se das águas e das marinhas do arroz brotassem mil sereias a quererem atrair-nos com os seus cânticos… são as mondadeiras que regressam da monda. Ranchos e ranchos de mulheres cantando em coro, centenas e centenas de vozes a inundar de poesia e luz um horizonte de sonho, um quadro de artista genial. Como é hábito dizer-se, as conversas são como as cerejas, umas puxam pelas outras. Também costumamos recordar com alguma pena aquele dia do Grande Congresso Eucarístico do distrito de Aveiro, em Estarreja, com as crianças de todas as escolas presentes: os cruzados, vestidos de branco e com a cruz de Cristo a vermelho, alinhados no largo da Praça (onde se fazia a praça semanal aos domingos), formados por pelotões, de pé, ao sol, de manhã até ao fim da hora de almoço à espera do Senhor Bispo de Aveiro, que só apareceu já a fome era muita e as pernas tremiam de cansaço. Também ainda nos lembramos da noite em que acenderam uma cruz iluminada no alto da torre da igreja da Senhora do Monte. Foi coisa anunciada durante semanas em todas as missas das redondezas. Para que os paroquianos não fossem confundir a cruz com 72 Andanças para a Liberdade alguma coisa vinda do outro mundo ou algum milagre, nessa noite todos ficaram muitas horas a olhar para o alto da Senhora do Monte, até ao acender da Cruz! 12. Os coelhos do Batata Por falar na Festa da Senhora do Monte, que se realiza a quinze de Agosto, o Batata era fã desta romaria – dizia que daquela festa se podia ver ao longe. Mal chegava ao arraial ia logo para o “pilinhas”, um jogo de dados (muito frequente nas feiras e romarias desse tempo); havia sempre dois ou três sujeitos com as suas mesinhas desdobráveis, de abrir e fechar rapidamente por causa da polícia, jogava-se a tostão, apostando sobre um quadrado marcado de zero a seis, num paninho verde estendido na pequena mesa. O Batata, com o dinheiro dos coelhos vendidos na praça do domingo precedente, tinha sempre umas moedas, 2$50 a 5$00. Tinha sido essa a solução do tio quando um dia o Batata lhe pediu 5 tostões para ir à festa. ― Queres dinheiro? Arranja-o! Cria coelhos e vai vendê-los à praça. Desde esse dia, era ver o Batata pelas ruas a apanhar leitugas pelas bermas, enchendo um saco de comida para os seus coelhos. Nunca mais pediu um tostão ao tio nem a ninguém; regulava as suas necessidades pelas ninhadas de coelhos que vendia. De todos nós era o mais abastado. Os coelhos lá iam dando para as suas guloseimas, para jogar ao “pilinhas” e ainda para nos emprestar uns tostões de vez em quando, cuja devolução nunca pedia! 13. A paixão da Páscoa Por altura da Páscoa, algumas semanas antes, começavam os preparativos para as solenidades religiosas: a procissão das velas, a construção do calvário no topo da igreja, onde se iriam sentar os anjinhos vestidos de branco e com asas, com o Cristo e a Madalena vestidos de roxo, lá no alto, em pose de primeiras figuras, o decorar dos textos dos sermões, etc. 73 Camilo Mortágua Um ano houve em que o Batata levou muito a peito ser escolhido para representar a figura de Cristo por causa de fazer par com a rapariga que tinha sido escolhida para Madalena, de quem se dizia apaixonado. Nós gozávamos com ele, chamando-lhe “Cristo Batatinha”. Por não ter conseguido convencer o “cabeça de cimento” do Senhor Prior a dar-lhe a representação de Cristo, acusava-o de ter-se deixado corromper por umas ofertas para a igreja, de uma outra família, mais disposta a abrir os cordões à bolsa ou as arcas do celeiro. Foi um tempo de crise… naquela Primavera andou até ao Verão a rogar pragas aos representantes de Deus na Terra. Sentia-se ofendido, dizia que por não o terem escolhido, ele é que afinal era o que sofria, ele é que, à imagem de Cristo, carregava a sua cruz… andava pelos campos a pregar sozinho… tivemos receio pela sua saúde, mas com a chegada do Verão e do tempo em que todos os dias ia esperar o “Flecha de Prata”, a coisa foi passando, até nunca mais se falar no assunto. 14. O “Flecha de Prata” Mais ou menos por essa altura começaram a aparecer os comboios prateados, em alumínio ou inox, brilhantes e reluzentes ao sol do entardecer. Quando passava o “Flecha de Prata” vindo de Lisboa a caminho do Porto, segundo dizia o Batata, era naquele comboio que vinham os pais. A partir do começo do Verão corria para a beira da linha à hora do “Flecha” passar, para ver se via os pais à janela. A vinda dos pais a passar férias era o acontecimento maior do Verão; o Batata falava-nos com incontido entusiasmo e alegria dessas visitas; com os pais vinham as coisas que sabiam e cheiravam a Lisboa. Aquele cesto feito de vime, pintado de vermelho e roxo, atafulhado de pão de trigo, figos secos, amêndoas e nozes, e alguma camisola nova para estrear na festa da Senhora do Monte. O “Flecha de Prata” era o bom mensageiro que lhe trazia tudo aquilo que ele imaginava existir lá por Lisboa… era o comboio dos seus sonhos! 15. Os sonhos do Batata 74 Andanças para a Liberdade Era um visionário… andava sempre a chamar-nos a atenção para coisas que só ele via, coisas que aconteceriam no futuro. Ainda me lembro de uma tarde em que o acompanhei a guardar as vacas, numa terra que tinham junto ao rio ali prós lados do moinho da ladeira, num daqueles dias em que desatava a correr mal se ouvia ao longe o resfolgar do “Flecha de Prata” (um resfolgar inconfundível para ele). Depois de ver o comboio passar sem ter visto os pais, mas ainda cheio de esperança de que tivessem vindo sem ele os ver, voltou para a beira das vacas, estendeu-se ao comprido em cima duma maçaroca de azevém e ali ficou, olhando o céu e as “lavrandeiras” esvoaçando à procura de lagartas nas raízes do milho recém-cortado. Já o Sol desaparecia ao longe lá para os lados da Murtosa ou da Costa Nova, levantou-se com um salto e veio sentar-se à minha beira: ― Deixa-te de atirar pedrinhas à água e toma atenção ao que te vou dizer. ― Não me venhas com as tuas estórias que é quase noite e é preciso dar de beber ao gado. ― Deixa o gado comer. Mesmo que seja de noite a gente sabe bem o caminho. Estive a pensar no que pode acontecer aqui às marinhas e às lezírias e a todas estas terras tão férteis que agora se estendem quase alagadas até ao mar. Eu bem vejo, nós gostamos muito disto… mas já pensaste na vida dura que as nossas famílias levam? Nem é preciso pensar muito; olha, ainda ontem ao nascer do Sol encontrei o velho Passamana, o pai da Carminda. Passou por mim todo encolhido do reumático e a arder em febres. Ainda lhe perguntei, que é isso ti Ernesto? Sabes o que me respondeu… de mau modo como se eu tivesse a culpa das maleitas dele?! “São as putas das sezões que não me largam!” Ainda lhe disse, vá p’ra cama homem, para onde vai tão cedo? “Tem de ser. Tenho que ver se vou até lá abaixo apanhar umas bichas para chuparem esta puta desta maligna.” Vá mas é ao médico, homem, deixe-se de sanguessugas, já chega o que elas nos chupam quando não as conseguimos evitar. “Já fui; foi o Dr. Macarrão que mandou buscar as bichas para pôr atrás das orelhas, isso e umas cataplasmas de linhaça e mostarda nas costas…” ― O ti Ernesto é um caso, mas bem sabes que anda para aí muita doença. 75 Camilo Mortágua Lembro-me de ter acrescentado: ― Isto de andar muitas horas metido dentro da lama e da água, com as sanguessugas a sugar-nos vivos, há-de acabar. ― É disso que tenho medo ― respondeu-me ele. ― A vida aqui é tão dura, que todos vão querer fugir… e depois, quando não houver ninguém para cuidar disto, que será feito do nosso rio, das nossas marinhas, dos barcos, dos moliços, da fertilidade das terras? Que será feito dos peixes e do berbigão? Sabes, já falam para aí numa grande fábrica de amoníaco. Já cheiraste isso a que chamam amoníaco? É uma coisa que, quando se cheira, faz desmaiar as pessoas! Vê lá bem, andam para aí uns inconscientes a dizer que a fábrica é uma coisa boa porque dá muitos empregos às pessoas, mas trabalho já nós temos, e muito, se quisermos tratar como deve ser das nossas terras. Estive a pensar, não sei se a pensar se a sonhar… que, um dia… quando, não sei, as Câmaras de Estarreja, da Murtosa e das outras terras ribeirinhas cá da nossa Ria Grande, vão juntar-se às pessoas donas das terras todas e criar uma grande companhia para salvar e dar valor a tudo o que aqui há de bom e fazer com que o Mundo todo queira conhecer este paraíso. Uma companhia capaz de respeitar as nossas tradições, valorizando-as através da introdução de coisas novas, com condições para se trabalhar sem tanto esforço e risco. Uma companhia que aproveite as imensas possibilidades turísticas destas terras, mas em benefício das populações que as desbravaram e não para enriquecer um qualquer esperto endinheirado vindo sabe-se lá de onde. Este é o meu sonho, no dia em que alguém meta ombros e cabeça a esta minha grande ilusão, nem que já esteja morto, hei-de cá voltar. Nessa tarde, o Batata andava nas nuvens, falou como se dentro de si existisse um outro Batata… pálido e fremente, como se, também ele, estivesse com a febre das sezões. Tinha mergulhado na sua utopia, já via os esteiros e canais desassoreados, a Ria despoluída, os camiões da tal grande companhia a transportar o moliço para as terras de lavoura em substituição dos adubos químicos, aqueles milhares de hectares de massa vegetal (juncais e canaziais) transformados em energia, uma pista para os aviões dos turistas, um grande estaleiro para construir mais moliceiros, unidades de turismo rural espalhadas pelas aldeias ribeirinhas, circuitos de observação de aves a serem trilhados por grupos de apaixonados pela Natureza, eu sei 76 Andanças para a Liberdade lá… nunca o tinha visto assim… andava aos saltinhos e meio cambaleando como se estivesse bêbado. É o que vos digo… era um visionário! Imaginava coisas que na época ninguém conhecia, coisas malucas! Lembro-me bem desse fim de tarde, foi no dia da morte do tio Salça. No dia em que o Mundo virou do avesso todos os planos do Batata. 16. A morte do Salça Não o vi chorar, mas acho que este seu primeiro encontro com a morte, matou nele o menino… cá p’ra mim morreu nesse dia o Batata. Era previsível… a ti Ana não era mulher para se opor à gula dos seus herdeiros. Estes não queriam ninguém naquela casa que pudesse vir a subtrair, um centavo que fosse, à herança esperada dos bens adquiridos pelo casal. Embora casados com separação do património pessoal, o muito que posteriormente adquiriram, era a ela que passava a pertencer! Pouco tempo depois veio a confirmação: naquela casa não havia mais lugar para o criado Joaquim nem para o menino Batata. A irmã ainda ficaria mais alguns dias. Ele foi-se embora para Lisboa, acompanhou os pais e adeus Batata! Ficou a criada Maria para ajudar nas lides da casa e acabou-se com as lavouras. Os dias que antecederam a partida do Batata, foram os mais tristes do nosso relacionamento. Ele, tanto andava triste como alegre. Triste por tudo o que deixava; alegre por finalmente ir conhecer Lisboa, comer pão de trigo, e estar ao pé dos pais… imaginava a vida junto dos pais à semelhança daquela que tinha com eles anualmente quando vinham de férias! Para mim, também foi um marco na minha própria vida. A falta do companheiro de todas as horas, de todas as brincadeiras, levou-me a olhar com muito mais atenção para o interior da minha própria família, e o que via deixava-me muito triste. A ausência quase permanente do pai e do irmão mais velho, sempre de feira em feira, deixavam a bondosa da minha mãe deses- 77 Camilo Mortágua perada e entregue à compensação do álcool. A casa e a lida das terras cada vez mais abandonadas! Anos mais tarde, voltámos a encontrar-nos algumas vezes, já não sei dizer quantas. Muito mais alto e esguio, todo vestido à moda da cidade, sem botas nem chapéu. Até que um dia veio despedir-se, antes de ir para o estrangeiro. Foi-se embora, para a Venezuela… disseram-me… ainda hoje gostava de lhe perguntar se continua a sonhar com o futuro das nossas terras… estou convicto da resposta: Sempre! E pronto, o Tó Xarela desaparece aqui. Da transição da aldeia para Lisboa, passa a contar-vos o Camilo. Com ele continuarão o Come e Cala e o Batata e os outros personagens que ao longo da caminhada for encontrando. Se puderem, sigam-no, na vida real e nos sonhos que lhe comandam a vida. 78 Andanças para a Liberdade Capítulo segundo Aprendizagens (Alto Pina – Lisboa) 17. Lisboa à vista Cá vamos nós! Mas é preciso ter azar. “Nós” sou eu e meus pais, vindos para o funeral do tio Salça. De mim falarei mais tarde, por agora vou contar-vos esta minha primeira viagem de comboio num dia do Verão de 1946 à tão sonhada Capital. Para trás ficaram todas as coisas que já vos contaram e mais algumas que por razões diversas só eu posso recordar. No último ano da escola primária, durante quase dois meses fui transportado para a escola pelo criado Joaquim, em carrinho de mão, o mesmo que se usava para levar o estrume para o aido. Atacado por uma qualquer bactéria, fiquei com chagas nos pés, sem os poder pousar no chão e, como o exame da 4ª classe estava próximo, o Salça ordenou que me fossem levar e buscar de riquexó à portuguesa. A meio do último período do meu primeiro ano no Liceu de Estarreja, a úlcera maligna leva-me o padrinho e protector e remeteram-me para a capital, por isso cá vou em companhia dos pais. Já não sei por que motivo, perdemos o “Flecha de Prata” (lá se foi um sonho) e tivemos que recorrer a este comboio à antiga. Faz de rápido até à Pampilhosa ou Alfarelos e, a partir daí, pára em todas as estações e apeadeiros da linha do Oeste até Lisboa. Saídos de Estarreja lá pelas 10,30 da manhã, chegamos a Lisboa depois da meia-noite. 79 Camilo Mortágua Não guardo nenhuma recordação especial dessa chegada à Capital! A grande desilusão, ou mais que isso, foi a de ver a “casa” onde íamos morar. No pátio do nº 26 da rua Luís Monteiro, ao Alto Pina, encostado à quinta da Curraleira, com vista para as traseiras do cemitério do Alto S. João, onde vi pela primeira vez as iluminações azuis dos fogos-fátuos, o “passeio nocturno dos candeeiros das almas”, como se dizia lá no pátio. 18. O pátio O pátio em questão ficava nas traseiras de um pequeno prédio de rés-do-chão e águas furtadas, quatro a cinco metros abaixo do nível da rua, cercado por um muro que impedia, a quem nele estivesse, de ver para além do espaço que vedava. Para poder ver para além do muro, era necessário subir pelo menos até meio da escada que dava para a rua. Essa minha primeira descida para o pátio, sempre a considerei a minha primeira descida ao inferno, ou a minha primeira entrada no mundo dos mortos-vivos, como se Orfeu e Aristeu, numa só pessoa, sem o saber, ali tivessem encontrado Eurídice, aquela por quem, a partir de então, me bateria, aquela que, ao contrário da outra da lenda, me resgataria do subterrâneo da vida, do limbo social, para a luz do Sol e da Liberdade. A minha Eurídice, ali e então revelada, ainda se chama consciência de classe. Ali aprendi a conhecer profundamente as razões da minha assumida e inevitável paixão pela Liberdade. A paixão de lutar pela vida entre os vivos, à luz do sol, e em favor dos da minha condição. Ali, quatro a cinco metros abaixo do nível das ruas e das casas onde viviam aqueles que eram considerados “pessoas”; sem água corrente, nem luz, nem esgotos; ali onde era necessário ter bons rins para enfiar o cu em semicúpio na retrete suspensa e entalada lá no alto, ao nível da rua; ali, onde se escondiam sete famílias em 120 a 140 metros quadrados, entre as quais ainda existiam abissais diferenças de cultura e de condições económicas; ali, daquele pátio que nos colava à pele o estigma da não existência social, afugentando do nosso convívio quem ali não pertencesse (como se leprosos fôsse- 80 Andanças para a Liberdade mos); ali, repito, no dia-a-dia da vergonha que sentíamos nos outros pela nossa presença, fui forjando os mecanismos das minhas futuras opções. Razão tinha Braudel ao afirmar que “é nas «caves» do tecido social, na humidade dos espaços térreos, que nascem as raízes das grandes transformações sociais”. A aldeia e as brincadeiras de infância, o respeito que sentimos por nós próprios quando os outros nos respeitam, o genuíno e puro das relações desinteressadas, o esvoaçar das estrelas e papagaios de papel ao vento das marinhas, as primeiras ingénuas descobertas sentimentais, a segurança no mundo conhecido, tudo isso desapareceu ao descer ao Pátio do 26 da Rua Luís Monteiro. Impacto mais desolador, porque o meu sonho sobre a longínqua capital, sobre a terra de onde vinha o pão de trigo, era um sonho impreciso, mas repleto de belas imagens. Lá na aldeia eu era: o Come e Cala, o Batata, o menino Camilo, o menino dos Salça; de repente, senti-me ninguém… senti-me remetido à condição dos que não contam! Os anos que passei naquele espaço térreo construíram em mim certezas inabaláveis, convicções mais fortes e duradouras que as que me foram dadas através das leituras feitas ao longo da vida. O dia-a-dia da família – eu, meus pais e minhas duas irmãs, vivendo em dois compartimentos de alguns nove metros quadrados cada – exercia sobre nós pressões contraditórias mas intensas. A exagerada densidade demográfica do nosso espaço habitável impelia por um lado uma exagerada intimidade física provocadora de atritos comportamentais e, por outro, exigia uma grande coesão sem a qual a vida se tornava impossível. 19. O “Porto funileiro” Num cubículo debaixo da escada, espaço escuro sem janelas nem divisórias, esparramados aleatoriamente pelo chão, viviam o Xico Porto, sua mulher e cinco filhos, três raparigas e dois rapazes, todos menores; ali aconteciam, quase todas as noites e às vezes durante algumas matinées, ou até em sessões contínuas, as “revistas à portuguesa” lá do Pátio. Eram uma espécie de “novelas radiofónicas em 81 Camilo Mortágua vernáculo vinícola” que, de tão repetidas, deixaram de ser a grande diversão do pátio para se transformarem em mais um motivo da nossa vergonha! Invariavelmente, quando o Porto descia as escadas do pátio com a sua caixa de funileiro às costas a roçar pelo corrimão, ia começar a função: ― Suas putas… olhem-me estas putas todas a engordar… vão trabalhar, fora daqui suas putas, fora! Desde manhã a calcorrear com os tachos e panelas às costas e estas putas aqui, sem fazer nada à espera do meu dinheirinho… não levam nada suas putas… vá, p’ra rua… vão lá p’ra madrinha… tudo na minha frente e a toque de caixa… ran, pan, pan (o Xico tocava na caixa de funileiro o ritmo da marcha que queria impor a caminho da “Madrinha” ou “Madama”, como dizia por vezes em dias de maior inspiração)… toca a andar, tudo na minha frente a saltar, suas galdérias (nunca se referia aos filhos, porque estes, quando o pressentiam a descer as escadas do pátio, esgueiravam-se como ratos a esconderem-se em casa dos vizinhos). Passadas duas ou três horas, noite escura, lá voltava o Xico funileiro mais cambaleante e rosnão. Aproveitava a energia do vinho, ficava de pé a meio metro da porta e quando o cambaleio o fazia inclinar-se para a frente, acentuava o movimento e com forte cabeçada empurrava a porta caindo ao comprido, meio dentro meio fora. ― Onde estará o filho da puta do candeeiro… ó candeeiro dum cabrão onde estás tu, que puta de casa esta, não se vê nada, olha, olha… o filho da puta do candeeiro já anda… anda cá, nem está aceso nem apagado, e tem pernas o filho da puta… já te agarrei... tzeet... tzeet… cabrões de fósforos também não querem nada… vá lá… acende-te porra… mas que merda… então não acendes… luzinha de merda, estás aos pulos… estás aos pulos, então não querem lá ver, o cabrão do candeeiro está aos pulos comó Benfica, fica lá quieto…. Oh! caralho… o que é isto? Temos bruxas, ó quê… ainda agora vos fui levar e já estão aqui outra vez… suas putas, bruxas dum cabrão, fui a pé e vim a pé e vocês já aqui estão… Vieram de vassoura, pois é, querem vassoura suas bruxas… tomem lá vassourada suas bruxas de merda, tudo p’ra rua, vassouras, tachos, panelas e colchões… ai que me matam… rua… rua, putedo, deixem-me descansar, bruxas do diabo! 82 Andanças para a Liberdade E enquanto durasse o “pitróleo”, não parava a “representação” do Xico Porto. Quando por fim caía por si aos pés de Morfeu, passada a tempestade, terminada a função da noite, a prole lá juntava tudo quanto tinha sido jogado porta fora e cada qual podia finalmente adormecer. O texto das representações era pouco variado. A duração dependia da quantidade de tinto ingerida, mas… justiça lhe seja feita, durasse o tempo que durasse, sete da manhã, o Xico Porto subia a escada do Pátio com a sua caixa de funileiro ambulante pronta para remendar tachos e panelas. 20. A biblioteca de sabão Num dos compartimentos da nossa “casa”, que servia de cozinha, sala de jantar e arrecadação, tinha eu a minha cama. Sobre a cama, pendurada da parede do lado da cabeceira, estava fixada a minha biblioteca, aquilo a que chamei a biblioteca de sabão. Biblioteca de sabão porque tinha-a feito a partir das tábuas de uns caixotes de sabão azul, obra que levou várias semanas a concluir, enquanto minha mãe pedia que arrumasse os “papéis” espalhados por aquela falta de espaço. Claro que esta minha maneira de sentir as consequências de morar naquelas condições, não era partilhada nem talvez compreendida por meu pai – a sua escala de valores era outra. Padeiro de profissão, escolarização e instrução bloqueadas ao nível do ensino primário, sem formação cívica geradora de apetências culturais, vivia com grande empenho para tentar alimentar a família – desde que o estômago estivesse satisfeito, o resto era secundário. Momentos existiram em que a roda da fortuna criou condições materiais mínimas para a família poder aspirar a uma habitação minimamente condigna, mas não era essa a sua preocupação; tentava ganhar dinheiro, mas não tinha jeito para tal. 21. Os negócios do pai 83 Camilo Mortágua Um dia, vi, duma só vez e bem juntas, em cima da mesa da “cozinha”, ao lado do meu divã, bem alinhadas e juntinhas, mais notas do que todas as que tinha visto até então… vim a saber que esse dinheiro era o produto da venda dumas terras de Travanca, herdadas pela minha mãe, propriedades que teriam resultado dumas segundas núpcias de facto da minha avó materna com um abastado senhor, comerciante naquela freguesia. Com os capitais assim adquiridos, meu pai meteu-se “nos negócios”. Comprou um camião para fazer transportes de mercadorias por aluguer. Como não sabia conduzir, contratou um condutor. Era um camião Volvo a gasolina, que, ao que parece, bebia mais por quilómetro do que o Porto funileiro conseguia consumir por hora na taberna do Xico Saloio, quase em frente do 26, onde havia um pipo sempre cheio só para ele. Dizia-se, como ilustração ao seu consumo da pinga, que o Porto funileiro não usava ácido para limpar a folha antes das soldaduras… cuspia-lhe! Com o camião a necessitar dum “pipeline” só para ele, mais as habilidades do condutor para arredondar o salário, o veículo, como agora se diz, não era competitivo! Apesar do meu forçado contributo servindo de ajudante benévolo… durante os largos períodos de imobilidade de meu pai, acocorado em alguidar de água quente durante dias e horas, única forma de suportar as dores de uns rins com mais pedras que uma canteira de Borba (como mais tarde se veio a verificar)… o negócio não podia durar muito. Naquele tempo, carregávamos mercadorias muito diversas. Do Norte, de Matosinhos, trazíamos folha-de-flandres para as fábricas conserveiras do Algarve, sobretudo para Vila Real de Santo António e Olhão. Mas também fardos de tecidos para Lisboa (esta carga era muito incómoda para mim). Em alguns pontos da Estrada Nacional, em subidas mais pronunciadas, sobretudo na subida de Coimbra para Condeixa, havia grupos de assaltantes que se escondiam nas bermas da estrada e, aproveitando-se da lentidão do camião, um ou dois subiam e desamarravam parte da carga que iam deitando abaixo para os colegas recolherem. Quando a natureza das cargas era apetecível ou facilmente manipulável, já sabia… era obrigado a viajar em cima da carga, quer chovesse quer nevasse. Nos pontos mais críticos, como na estrada entre Alcácer e o Torrão, junto a um chafariz que ainda lá existe, era 84 Andanças para a Liberdade preciso acender o farol portátil e segurar-se de pé, qual sentinela dissuasora dos assaltos à fortaleza! As únicas viagens tranquilas eram aquelas em que transportávamos blocos de folha-de-flandres pesando mais ou menos mil quilos cada – essa era a carga que ninguém assaltava. Como o camião não era competitivo, meu pai resolveu desfazerse do “monstro”. 22. O menino padeiro Tenho que interromper aqui a história dos negócios de família, porque, em simultâneo, meu pai continuava com a sua actividade da venda do pão ao domicílio e a minha mãe distribuía leite, era leiteira, a ti Micas leiteira como a chamavam. Claro… da distribuição do leite dava a minha mãe boa conta com a ajuda das minhas irmãs, mas já no que se refere ao pão, com a doença do meu pai, acabava por sobrar para mim. Por isso, durante a maior parte do tempo que vivi em Lisboa com a família, também andei de bandeja ao ombro calcorreando as ruas do Alto Pina, Penha de França e não só, subindo e descendo escadas, por vezes até ao quinto andar, para vender um papo-seco à freguesa sonolenta, que queria apalpar meia bandeja, à procura do mais jeitoso e molinho! Era uma actividade, como quase todas na época, muito sujeita a perseguições para controlar os pesos, a brancura da toalha, o aferimento da balança, etc. O grande perseguidor da época era um agente da Intendência de quem fugíamos como rato do gato, chamado Nove Dedos. Dessa actividade, o que mais me custava era ter de me levantar lá por essas quatro e meia da manhã e carregar os pesados 50 a 60 quilos de pão para começar as entregas. Barão de Sabrosa acima até ao antigo cinema Max, descer pela travessa das Baldracas, subir a Heróis de Quionga, a calçada do Poço dos Mouros, e lá ia eu até à Estefânia, Campo Santana e Anjos, para voltar a casa por volta dessas onze da manhã. Durante algum tempo, ia de tarde às explicações com o “Senhor Almirante” – era assim que lhe chamávamos, um oficial da Marinha 85 Camilo Mortágua reformado que morava na Rua D. Estefânia e que dava explicações de geografia e matemática. Confesso que não consigo lembrar-me do objectivo destas explicações, a menos que fossem preparatórias para a minha admissão na Escola Industrial Afonso Domingues. As recordações encavalitam-se umas nas outras, todas a querer ser lembradas ao mesmo tempo… mas, falemos de outra coisa. 23. O Zé Caracóis O Zé Caracóis, assim chamado por ter o cabelo ruivo e encaracolado, foi o meu grande companheiro desses anos de Lisboa. Não morava no Pátio. Vivia com a mãe nas águas furtadas do nº 26, “no nosso prédio”, como lhe chamávamos quando, perante estranhos, não nos queríamos referir ao Pátio como lugar de residência. Era a única pessoa de fora do Pátio com quem convivia. Se bem me lembro, o Caracóis era ligeiramente mais velho que eu, mais velho e muito menos dado a sonhos e utopias. Foi na sua companhia que ousei explorar alguns dos bordéis mais em voga na Lisboa dessa época. Iniciado no 100 da Rua da Boavista, passando pela “Madame Blanche” do largo da Misericórdia, costumávamos sair do Alto Pina e ir “à pendura”, ou seja, nos estribos dos eléctricos com um olho no revisor, outro no polícia, subindo e descendo em andamento, até à Baixa, correr os bordéis e ouvir aquelas ordens clássicas das patroas: ― Meninas p’ra sala, cavalheiros p’ró bufete, quem não vai p’ró quarto vai p’ra rua. Como andávamos sempre tesos, divertíamo-nos com a cobiça das mulheres por tão viçosos e apetitosos anjinhos a fingir de homenzinhos. Por ali andávamos, ébrios de curiosidade, a tentar perceber se aquilo, como diziam alguns, era o Céu; ou se seria o Inferno, como outros anunciavam! Estes passeios de fim-de-semana eram as nossas maiores aventuras. Davam-nos a sensação de já sermos grandes, grandes… andávamos pelas casas do pecado…! Sem nos sentirmos pecadores ou não nos importando com isso. Com catorze anos feitos, sem disso ter a certeza, sempre suspeitei que meu pai (como então era costume os pais fazerem) tinha 86 Andanças para a Liberdade tomado a medida cautelar de dar os tais vinte escudos ao Zé para que ele “tratasse de levar o rapaz a uma mulher que o ensinasse a ser homem”. A única alternativa a estas “idas à ginástica” eram as poucas manifestações ou ajuntamentos que às vezes encontrávamos pelo Rossio ou nos Restauradores. Aí, corríamos para o “aperto” ou para o “esfreganço”, como dizia o Caracóis com um ar enjoado e superior. Nunca nos interessaram, por essa altura, os motivos que levavam as pessoas a manifestarem-se, o que o Zé me tinha feito ver era que ali podíamos encostar-nos às meninas e senhoras bem, sem que nos perguntassem de onde vínhamos! Também nos divertíamos nas manifestações, sim senhor… era o tempo de procurar a vida. 24. À caça na recta da Tocha Por algum tempo, talvez um a dois anos, fui empregado de escritório numa empresa de agenciamento de cargas chamada “Douro Expresso”. Era dona da empresa uma judia alemã, penso que refugiada, chamada Madame Gertrudes Phfeifer, vivendo com um português que lhe deve ter assegurado a permanência legal no país. Por vezes, calhava ter de ir cobrar facturas a clientes e acompanhar os camiões que carregavam em Lisboa para o Norte, sobretudo para a zona de Cortegaça, Esmoriz, Espinho etc., cargas para as cordoarias dos Rôlas e Violas. Apreciava sobretudo acompanhar um determinado camião cujo condutor, o Liberto, assim se chamava, era um exímio caçador. Quando nos aproximávamos da recta da Tocha, ele passava-me o volante, pegava na espingarda, descia o vidro do lado do direito e à medida que os coelhos iam saindo à luz dos faróis, pumba! Chegávamos ao Porto com almoço e jantar assegurados. Os bichos eram entregues ao dono de um restaurante da rua das Pretas que, em troca, nos oferecia almoços e jantares à borla. Já não sei por que razão, acho que por desentendimentos devidos ao valor das despesas de viagem ou porque entretanto meu pai tenha deixado de ter camião, deixei o emprego. 87 Camilo Mortágua 25. A Cova Funda Vendido o camião, meu pai tomou de trespasse uma taberna e mercearia, chamada Cova Funda e situada numa cave rés-do-chão (parecia sina minha não sair das covas e dos pátios fundos), num prédio de gaveto na esquina do Largo Mendonça e Costa com a Rua Oliveira Ramos, onde está hoje uma agência de camionagem. Desta decisão resultaram consequências marcantes para aquilo que vieram a ser as minhas “andanças” até hoje. O negócio não corria mal, mas como era um estabelecimento com duas áreas distintas, dum lado uma taberna com os seus anexos interiores (pequenos compartimentos sem luz nem janelas onde os clientes jogavam às cartas e queimavam provisórios e definitivos sem parar, em ambiente de partilha colectiva da espessa fumaça), do outro a mercearia, meu pai entendeu que o meu futuro era aturar bêbados, servir copos de três e uns cálices de aguardente e ilustrarme com as conversas de alto nível cultural da clientela copofónica. Sempre entendi que a conhecida expressão – “ambiente de cortar à faca” – era bem aplicada àquele ambiente. Nessa situação… Adeus estudos, adeus futuro… como meu pai dizia: “eu também não estudei e governo a vida!” As perspectivas tornaram-se sombrias; a cada zaragata de bêbados o meu nojo crescia; ainda consegui que, para amenizar a angústia, me autorizassem a ir para uma fábrica de malhas como aprendiz. Embora tivesse que iniciar e acabar o dia na Cova Funda, pelo menos sempre arejava durante o dia agarrado à máquina de tricotar. Quis o azar ou a sorte, vá-se lá saber, que um dia, já ao cair da noite, à saída da fábrica, avisto ao longe e pelas costas um amigo que já não via há tempos. Corri e, tentando surpreendê-lo, alcei o braço direito para lhe dar uma boa pancada no ombro. Quando baixei o braço, o sangue “espichava”! Sem que disso tivesse dado conta, o meu amigo levava, debaixo do braço, uma vidraça para instalar numa porta de casa. Com um corte profundo no pulso, lá fui para a Cruz Vermelha de Arroios: uma vez cosido e curado, de braço empanado, tive que voltar à serventia dos copos sem poder regressar ao tricotar das malhas. Também percorri as ruas de Lisboa de “bomba da merda” (era assim que lhe chamávamos) às costas, acompanhando o oficial de 88 Andanças para a Liberdade canalizações, ao serviço de uma empresa existente numa rua com um nome parecido a “Edite Caldwel”, transversal à Morais Soares, para desentupir retretes. No desespero da minha revolta interior, tentava encontrar saída para a situação, apelando a todos os ardis que podia imaginar, nem sempre os mais recomendáveis, incluindo o de retirar dinheiro das gavetas para jogar fora, a ver se o negócio acabava! Minha mãe, mais sensível aos meus problemas, prestava alguma atenção às minhas angústias, dando-me a oportunidade de pouco a pouco tentar convencer meu pai a deixar-me estudar. Foi então que consegui o acordo paterno para me matricular na Escola Afonso Domingues. Como já disse, queria ser oficial da Marinha; comecei a tratar dos papéis, e entretanto continuava a distribuir pão e a aviar copos na Cova Funda. Apesar da expectativa de mudança ter melhorado, aconteciam dias tremendos em que o contacto com os mais “desgraçados que eu, dopados pelo álcool”, se tornava tão doloroso, não só por eles, mas também por medo de vir a ser como eles, que, incapaz de me controlar, abandonava tudo e saía porta fora, até à Alameda (então em construção) para escorregar nas rampas de areia do que mais tarde viria a ser a chamada “fonte luminosa”. 26. A doença Uma madrugada… à hora de ir pelo pão, acordei com fortes dores de cabeça, sobretudo na nuca. Queixei-me e foi-me dito que me levantasse e me deixasse de desculpas para ficar na cama. Tentei, mas tive que voltar à cama. Não segurava a cabeça… sem saber porquê, esta rodava constantemente de um lado para o outro. Nesse mesmo dia, à noite, deixei de mover braços e pernas; teso “como um carapau seco”, só a cabeça continuava a rodar; no dia seguinte de manhã, a febre subiu e comecei a delirar com uma conversa repetitiva: ― Três decilitros de vinho, dois copos de três, uma gasosa, um cálice de aguardente, um cortado, um abafado, dois do melhor… e por aí fora! Ao terceiro dia, minha mãe levou-me às urgências do Hospital de S. José. Chegámos de madrugada. Deitado numa maca, lembro-me de ter ficado, de barriga para o ar, a olhar para os arcos do tecto de um enorme, medonho e frio corredor, ao lado de outros doentes, até 89 Camilo Mortágua ao fim do dia, altura em que minha mãe agarrou em mim e, assumindo a responsabilidade perante o pessoal hospitalar que se queria opor à minha saída, me arrancou àquela antecâmara dos passamentos, trazendo-me para casa. Quis a sorte que o médico que foi chamado de emergência fosse homem de coragem e de gosto pela inovação. Diagnosticou uma meningite e colocou à consideração da família os tratamentos possíveis: o tradicional, com punção lombar; ou a utilização da grande descoberta do momento, a penicilina, em doses cavalares, de quatro em quatro horas, durante o tempo necessário para debelar a infecção. O tratamento tradicional curaria a doença mas podia deixar sequelas graves, o recurso à penicilina era uma experiência em que o médico acreditava, mas uma experiência muito cara, tendo em consideração o preço desse antibiótico na época. Decidiram-se pela penicilina. Ao fim de três meses pude levantar-me, sem grandes efeitos aparentes da doença. Depois de muitos exames e exercícios, o Dr. Francisco Martins, assim se chamava o “salvador”, entendeu que eu era um caso de estudo e resolveu mostrar-me aos colegas, para que vissem como tinha ficado perfeitinho! Perfeitinho ou não, acompanhou as recomendações com uma terrível proibição. Durante um ano e até observações posteriores, não podia estudar nem, como dizia, forçar a cabeça com leituras! E pronto… lá se ia a Escola Afonso Domingues, o sonho de ser oficial de Marinha, enfim… o futuro! Mais uma vez, alguma coisa me fechava a perspectiva da vida desejada… entretanto, a doença deve ter servido para dar um grande rombo nas finanças familiares, e a Cova Funda foi-se… Uf!, ao menos dessa estava eu livre! Sem poder estudar, sem nada de concreto a que pudesse deitar mão, os dias voltavam a ser sombrios, vegetava-se, era preciso encontrar maneira de contornar os obstáculos do destino. Com dezasseis anos feitos, acabava a década de 40. Lá fora, nessa Lisboa e nesse país a mergulhar aceleradamente na intolerância e na repressão de tudo o que fosse novo e criativo, não havia espaço nem oportunidades para sair do pátio, para saltar a barreira social. 90 Andanças para a Liberdade Sem compreender os porquês, sentia intuitivamente ser certo aquilo que o Zé Ninguém (ainda apenas eco interior de origem desconhecida) me ia persistentemente sussurrando aos ouvidos: Salazar não se importava (assim murmurava o Zé Ninguém) de ter um país pobre desde que fosse seu! Para ele, era preciso evitar desenvolver massivamente o povo, não fosse a situação descontrolar-se e ele ter de correr o risco de perder o poder absoluto. Nada de aventuras… um povo mantido a baixo regime cultural e alimentar, habituado à frugalidade da pobreza, mas possuindo o quanto baste para ainda ter medo de perder as migalhas que come, e uma Nação a passo de caracol para não precisar de muita energia, nem de músculos e cérebros ginasticados, eram a melhor das garantias da estabilidade da sua ditadura. Que os homens de negro que nos governavam, tratavam em privado dos seus interesses, e publicamente juravam servir o “Bem da Nação”, seguindo e defendendo acarneiradamente o pensamento do chefe, eram os argumentos recorrentes do Zé Ninguém. Nem desconfiava que, por essa altura, o próprio Salazar apreciasse a situação de forma tão condizente com o que eu subjectivamente sentia: “As características do momento actual são, não só na Europa como no Mundo, a miséria e o medo, estas duas realidades moldam o pensa1 mento e actividade dos povos e dos governos.” A miséria e o medo, eis as coisas que determinavam o meu estado de espírito por aqueles tempos. Por um lado, a miséria remediada em que vivia, pelo outro, o medo de perder o remedeio e passar a fazer parte dos mais miseráveis que eu, daqueles que à minha volta já tinham perdido a esperança, daqueles que à minha volta já tinham deixado de se importar com a vida, daqueles que já nem sequer tinham consciência de estarem socialmente mortos! Para mim, face a este colectivo baixar de braços (as informações da existência de combatentes não chegavam ao Pátio), revoltado com a situação pessoal e com a miséria que me rodeava por um simples e espontâneo sentimento de solidariedade desprovido de toda e qualquer reflexão ou formação de carácter ideológico, com o senti1 António Trabulo, O diário de Salazar, Parceria A. M. Pereira, Lisboa, 2007, p. 175. 91 Camilo Mortágua mento de que nada jamais mudaria, nem o Papa, fui-me convencendo de que a única alternativa era partir, ir para o desconhecido, para um desconhecido longínquo onde ninguém me identificasse com o Pátio. Enquanto o dia da partida não chegava, era necessário preparar-se. 27. Partir para onde? Partir, encontrar um lugar onde pudesse ser eu. Pobre, mas sem amarras inquebráveis à pobreza. Pobre, mas sem estigmas sociais colados ao corpo nem caixões de chumbo a delimitar-me os voos p’ra liberdade de aprender e saber. Partir, mas para onde? A escolha, não pôde ser a escolha ideal, tinha que ser a escolha possível. Era necessário assegurar as mínimas condições para a sobrevivência material. O resto, se a energia se revelasse suficiente, viria com o tempo. Analisadas as diferentes alternativas possíveis, tornou-se óbvia a escolha pela Venezuela. Só se podia sair legalmente mediante uma dita “carta de chamada” e só na Venezuela tinha quem eventualmente a pudesse fazer. O meu tio Zé Maria para ali tinha emigrado logo após o fim da guerra e por lá se tinha estabelecido com uma padaria. Ao que constava, as padarias da Venezuela eram todas, ou praticamente todas, de portugueses. A Venezuela ficava… onde ficava a Venezuela? Após consulta de vários Atlas, lá descobri. Era muito longe… convinha-me. Tomada a decisão, impunha-se aprender o ofício que me permitiria ganhar a côdea, por isso decidi-me a aprender o ofício de padeiro, era óbvio. Servindo-me das relações da família, fui para aprendiz de padeiro na melhor fábrica de panificação que havia em Lisboa. A fábrica da Sociedade de Padarias Castanheira de Moura estava situada num enorme casarão de rés-do-chão e primeiro andar implantado no meio do Largo Martim Moniz (último prédio a ser demolido), durante muito tempo o único prédio sobrevivente daquele largo, onde existiu o cinema “Piolho”, sala onde vi os meus primeiros filmes, também chamado “Salão Lisboa”. Íamos ao “Piolho” vendendo 92 Andanças para a Liberdade “mosquitos, polutos e diabretes”, leituras juvenis da época, para poder pagar os quinze tostões que custavam os bilhetes mais baratos. No Martim Moniz aprendi a padeiro e não só. Mestre Constantino, homem dos seus 50 à época, arranjou maneira de me ensinar muitas outras coisas. Dele já vos contarei outras belas recordações. 28. A Leitaria Apolo Se bem me lembro, a Leitaria Apolo ficava ali mesmo junto ao Martim Moniz, na Almirante Reis, esquina com uma rua da qual já não me lembro bem o nome, talvez fosse a Poço dos Negros, uma rua por onde os eléctricos, Mouraria acima, subiam até ao Castelo. O meu horário de aprendiz de padeiro ia das onze da noite às seis da manhã na fábrica do pão e depois até ao meio-dia, como ajudante de caixeiro nos depósitos da rua da Betesga e Eugénio dos Santos, ao lado do antigo restaurante “Come e Bebe”. Normalmente, a muito custo, conseguia descansar lá no Pátio das 2 às 6 da tarde; depois, quase sempre ensonado e mal disposto, no Verão optava por sair para a rua, livro na mão, até ao jardim Constantino, à procura de mais leituras e dos bancos onde se podia respirar calmamente. Dizia-se que era o jardim dos paneleiros – isso a mim nunca me incomodou, o importante era a micro-biblioteca pública ali existente, aberta até tarde. No trajecto entre o Alto Pina e o Jardim, aproveitava para, na Cavaleiro de Oliveira, ir ao velho Lampreia, alfarrabista-livreiro que me alugava livros a 5 tostões por semana e do qual era cliente assíduo. Da Estefânia passava aos Anjos e daí ao Intendente. Habitualmente dava entrada na Leitaria Apolo lá por volta das 9 da noite, quando começavam a rarear os clientes do dia e a aparecer os e as da noite. Tinha mesa e cadeira certa. Estávamos em plena guerra da Coreia e toda a gente sabia o que era o paralelo 38! Com o meu jornal diário e algum livro, ali permanecia até à hora do trabalho, comendo a sandes do jantar e o respectivo galão. Por vezes, alguma das meninas que por ali faziam vida pedia-me que lhe desse o braço para a acompanhar durante um quarteirão ou 93 Camilo Mortágua dois, até ao Intendente, para que a polícia não a levasse para a esquadra, o que aconteceria se fosse apanhada sozinha! Eu desempenhava com alguma frequência o papel de bengala de salvação; confesso, gostava de me sentir garante da liberdade de alguém. 29. O Constantino O Senhor Constantino era o encarregado da fábrica de panificação da Sociedade de Padarias Castanheira de Moura onde eu era aprendiz. A laboração propriamente dita ficava no primeiro andar, o rés-do-chão servia para armazenar as farinhas e as outras matérias-primas necessárias. Naquela época a farinha vinha em sacos de 60 quilos que era necessário transportar do rés-do-chão para um primeiro andar muito alto, ao longo de uma escadaria com vinte e cinco degraus (lembro-me por os ter contado muitas vezes). Os oficiais e ajudantes de padeiro, mais velhos na casa, logo que ali cheguei entenderam que a tarefa de carregar os sacos era do aprendiz; portanto, mal chegava, essa era a minha primeira tarefa: transportar os dez a doze sacos necessários para a cozedura da noite. O Senhor Constantino tinha um horário diferente, porque era o responsável da expedição e passagem das respectivas guias de remessa. Por isso, ficava até mais tarde e entrava também mais tarde, quase sempre lá por volta da meia-noite. Uma noite em que calhou chegar mais cedo, acompanhou-me escada acima com os meus 60 quilos às costas. Chegado ao seu canto/escritório, mandou chamar o Gomes amassador, que na sua ausência era o encarregado, e disse-lhe que nunca mais mandasse o miúdo carregar os sacos… isso era trabalho para homens feitos, que tivessem vergonha! Desde esse dia passei a olhar o Senhor Constantino com grande admiração – pela primeira vez alguém me demonstrava solidariedade e sentido de justiça. Interessei-me por conhecer melhor o Senhor Constantino. Homem dos seus cinquenta e tantos, franzino, profundamente calvo mas com farta cabeleira branca em torno dos lisos cimos duma cabeça demasiado grande para o tamanho do corpo que a suportava, olhos pequenos e brilhantes de permanente curiosidade, o Constan- 94 Andanças para a Liberdade tino, companheiro Constantino, como me pediu que o tratasse, fascinou-me… fascinou-me e quase abalou em mim a vontade de partir. Tinha passado uns anos, nunca me disse quantos, na Colónia Penal do Tarrafal. Também nunca me explicou porquê, nem eu perguntei, logo associei esse nome ao do tal lugar de desterro para onde os homens de preto mandavam quem vinham buscar de madrugada, como tinham feito com o Dr. Oliveira e Silva. O companheiro Constantino nunca falava sobre si. Todos os dias me trazia um livro da sua biblioteca particular, livros que vinham sempre embrulhados em papel das sacas de farinha (só mais tarde soube porquê), livros que eu devorava desde que saía do trabalho até lá voltar, indo para casa a pé para ter mais tempo de leitura. Tinha apanhado o hábito de ler andando, sempre confiando que se desviassem de mim sem necessidade de ser eu a desviar-me dos outros. As pessoas desviavam-se, mas os candeeiros não – por isso, foram muitas as cabeçadas. Começou por trazer-me uma série de romances anticlericais e de cunho erótico para acentuar em mim o gosto e entusiasmo pela leitura (dizia), passando pouco a pouco a obras de acentuado pendão libertário – o “libertário” é apreciação a posteriori; naquela altura o que me interessava era o romantismo da entrega dos heróis às suas causas e o enaltecimento constante das atitudes de solidariedade entre quem combatia pela Liberdade. Hoje suspeito que o meu mestre Constantino tinha uma costela de anarquista. Nunca falámos sobre isso. Nem sobre isso, nem sobre questões políticas, certamente por se dar bem conta que a minha ignorância dessas matérias era total. Por cada livro que me trazia, havia sempre um questionamento: ― Já leste? Que te pareceu? O que é que não percebeste? Queres que traga mais alguma coisa sobre o mesmo tema? Durante cerca de ano e meio, devo ter lido quase uns trezentos livros, livros proibidos, como ele me tinha informado, quando me recomendou que não os mostrasse a ninguém, nem deles falasse com estranhos! Ainda me lembro dos dois últimos livros que lhe devolvi na véspera de me despedir, quando lhe fui dizer que ia para a Vene- 95 Camilo Mortágua zuela: As Palavras Cínicas, de Albino Forjaz Sampaio, e O Crime do Padre Amaro. Com um olhar resignado, deu-me um grande abraço e recomendou-me que nunca deixasse de ler, nem me esquecesse de Portugal! Honra à tua memória, meu amigo! 96 Andanças para a Liberdade Capítulo terceiro A primeira travessia atlântica 30. Adeus, Portugal Era uma segunda-feira luminosa! À memória ocorre-me em primeiro lugar a lembrança dessa luminosidade, não porque a desse dia tenha sido especial, mas porque a recordação da luz de Lisboa foi das coisas que mais perduraram na memória daquele jovem de 17 anos. A isso não dei então grande importância, por nunca ter conhecido outras e, talvez, por pensar que todos os céus da Terra seriam iguais! Minha mãe, irmãs e restante família, tia Alice e primos, acompanhados pela vizinhança lá do pátio, incluindo o “Zé Caracóis”, vieram todos até ao cais de Alcântara, despedir-se desse rapaz que, como diziam as vizinhas mais exuberantes: “coitadinho, tão novinho e não mais o tornaremos a ver!” À despedida lá do Pátio, ainda a Dona Aurora me puxou por um braço até à cancela da sua “casa” e, em voz baixa e com gestos discretos, meteu-me na mão uma minúscula figurinha de Cristo em prata dizendo-me: “olha, nunca o percas, é o meu anjo da guarda, o meu Zé Ninguém, que sempre te protegerá” – e foi assim que o Zé Ninguém me foi apresentado e passou a fazer parte do meu “Comité de Auto-Análise Comportamental – C.A.A.C.” À chegada ao cais, já o navio estava atracado. Aos meus olhos, era um “granda barco” pintado de cinzento e branco com o nome escrito à proa, “Luciano Manara”. Já nos dias antecedentes tinha sabido que pertencia a uma companhia italiana e que faria escala na Gran Canária antes de rumar à Venezuela. Por volta das três da tarde desse 7 de Maio de 1951, com a cabeça já longe, “navegando na volúpia da aventura” para lá do desconhecido 97 Camilo Mortágua destino, e o coração teimosamente agarrando-se ao cais de onde me acenavam lenços brancos humedecidos pelas lágrimas do amor e da amizade, o “Luciano Manara” largou amarras e fez-se ao Tejo. Ia vestido de calça e blusão de linho, ligeiros e de cor clara como mandavam as regras para quem ia para países quentes – era isso que se dizia e alguns acrescentavam “um país tropical que fica a norte da Amazónia”. Bem eu queria saber onde ficava; já o encontraríamos, ficasse ele onde ficasse, e então se veria. Não queria saber de nada, não queria que me dissessem nada, queria espantar-me com o desconhecido, com o nunca imaginado. Senhor dos meus 37$50 no bolso, nunca a morte me pareceu o limite! A trabalhar desde que o tino foi suficiente para encontrar o caminho de volta a casa, aí ia eu, oceano fora, ao encontro das minhas próprias capacidades e forças, com confiança e imensa ilusão. O meu mundo, de repente, deixava de ser apenas aquele que me descreviam as páginas dos livros, alargava-se em espaço e em interesses por conhecimentos. Já a cabeça começava a levantar-se para olhar longe… eu havia de ser capaz! De quê? Isso não me preocupava. Havia de ser capaz de ser alguém, capaz de ter uma banheira onde pudesse tomar banho sem ser no carvoeiro, capaz de ter uma cama num quarto de dormir! Sei lá… havia de ser capaz de ir “além de Taprobana”. Apeteceu-me gritar bem alto: “tenham confiança, eu voltarei”. Porém, à medida que a silhueta de Lisboa se esgueirava por entre a bruma do horizonte, a ondulação aumentava e começava a revolta interior e a vergonha de não ser capaz de evitar deitar, borda fora, o que no estômago ainda vinha de Portugal. Os dois primeiros dias de viagem foram desmoralizantes. Ainda por cima, para piorar a situação, o salão-refeitório tresandava a parmesão. Com a minha aversão ao queijo, só o “bafo do refeitório” me fazia recuar para os espaços abertos onde, sentados sobre os mais diversos aprestos, alguns grupos de compatriotas se entretinham jogando à sueca ou avançando sobre os petiscos que pensavam levar para a Venezuela: presuntos, chouriços, bacalhau, vinho e tudo quanto servisse para melhorar o rancho italiano servido a bordo. A viagem que estava anunciada para demorar catorze dias, prolongou-se por vinte e um, terminando a 29 de Maio! 98 Andanças para a Liberdade Durante esse período, e até porque a minha reserva de “petisco do nosso” era escassa, dei início à minha primeira “acção reivindicativa”. A bordo ia um médico português, médico da emigração, destinado a apoiar os emigrantes portugueses. Por minha iniciativa organizou-se um grupo que lhe foi expor a necessidade dos italianos variarem de comida. Não podia ser só macarrão com queijo, precisávamos de comida à nossa moda… Com o apoio dos espanhóis, que também estavam descontentes, conseguimos atingir os nossos objectivos (bacalhau com batatas), passando a comer bastante bem (à nossa moda) até La Guaira, onde chegámos bronzeados e bem nutridos! 31. Tenerife: “As leitarias ambulantes” Antes de atracar em Tenerife (Gran Canária) uma avaria nas máquinas paralisou o navio durante largas horas. Como era um barco misto de carga e passageiros, as “mercadorias” que tinha de levar para a Venezuela, para além dos emigrantes italianos, espanhóis e portugueses, eram cebolas! Era a primeira vez que pisava terra não portuguesa, que olhava uma ilha. Durante os dois dias que durou o embarque de todas aquelas grades de cebolas (dizia-se que seiscentas toneladas), aproveitei para calcorrear as ruas da capital da Gran Canária. De manhã, colei-me cheio de espanto e curiosidade ao sistema local de distribuição de leite. Um homem e um rapaz, conduzindo duas ou três vacas, conforme os casos (nunca vi menos de duas nem mais de três, do mesmo distribuidor), andavam pelas ruas da cidade batendo às portas dos fregueses que anunciavam a medida de leite que queriam entregando ao dono das vacas a vasilha apropriada à dita quantidade. O leiteiro voltava à rua e, enquanto o rapaz segurava as vacas, sentava-se num banquinho que trazia pendurado nos cornos do animal e ordenhava a quantidade de leite pedida. Quando a primeira vaca já não dava mais, passava-se à segunda e quando esta também se esgotava, acabava a distribuição. 99 Camilo Mortágua Nunca cheguei a perceber se o leite chegava sempre para todos os fregueses ou se sobrava, ou como era feito o cálculo para que a oferta batesse certa com a procura! Filho de distribuidora de leite, gente sempre suspeita de vender maior quantidade que a comprada e por isso perseguida por tudo quanto é fiscalização ávida duns trocados para arredondar o ordenado, pareceu-me aquela uma maneira bem prática e transparente de proceder… Claro que aquele leite ordenhado à vista do freguês, tinha de ser um leite de confiança! A higiene não era lá grande coisa, nem das mãos do ordenhador nem das ruas por onde as vaquinhas deixavam a rica bosta, mas a economia e simplicidade de meios era óbvia. Enquanto as distribuições não acabassem, não arredava pé, lá seguia as operações, ávido de lhes fixar até os mais ínfimos detalhes. Depois de almoço, voltava às ruas, sobretudo às praças e jardins cobertos de vegetação exuberante e árvores fascinantes, imensas, de grande porte e aspecto estranho que, na minha imaginação, deviam ser elas próprias as – ou parentes das – famosas “árvores do pão” das aventuras do Sandokan pelos mares tropicais, segundo relatos de Emílio Salgari, lidas nos bancos do Jardim Constantino. Deixámos Tenerife e logo ao terceiro ou quarto dia de viagem as máquinas pararam de novo e ficámos durante dois ou três dias à espera sem saber muito bem de quê: se duma reparação, ou de um outro navio que nos levasse ao destino. Foi durante esse período que tomei conhecimento de alguns detalhes da vida daquele velho navio, baptizado com o nome de um herói da defesa da República de Roma e ilustre político italiano, grande figura do renascimento italiano, morto muito jovem aos 24 anos de idade, em Roma, no ano de 1849. Este barco parecia estar gasto! Tinha sido intensamente usado como transporte de tropas durante a última guerra, sofrido algumas “fracturas” e, recuperado para a vida civil, estava fazendo (segundo se dizia) a sua penúltima travessia do Atlântico. Ao fim de tantas horas de expectativa, numa madrugada desse tempo, ouviu-se de novo o matraquear das máquinas e ao romper do dia singrávamos a boa velocidade rumo ao mar Caribe. 100 Andanças para a Liberdade Capítulo quarto Venezuela 32. Terra à vista Aqueles que estavam de volta, já conhecedores do esboço característico que El Ávila, a grande montanha que esconde e protege Caracas, desenhava no ainda longínquo horizonte, foram os primeiros a anunciar a iminência da chegada. La Guaira...! “Llegamos!” Pouco a pouco, a silhueta da costa foi-se tornando mais nítida. Junto à beira-mar, encostadas ao sopé da montanha, foram-se revelando instalações portuárias de pequena dimensão, quase sempre térreas ou com um piso, de cores e formas muito diversas, recobertas quase sempre de telhados de chaparia ondulada, pintados de cores bem contrastadas, dando ideia de “coisa provisória”. Nesse tempo, La Guaira deveria ter uns 10 a 15.000 habitantes, vivendo em pequenas casas térreas, situadas em volta do porto e nas margens da única estrada que atravessava a povoação e dava ligação a Caracas. De certa maneira, esta primeira vista do mítico continente sul-americano, daqueles imaginados e fabulosos cenários das aventuras dos piratas das Caraíbas, deixava muito a desejar. Era até um pouco decepcionante para aquele jovem que, confinado ao “pátio fundo” da já distante Lisboa, tinha recorrido aos livros para, através dos relatos romanceados das grandes aventuras dos seus idealizados heróis, criar as únicas referências para imaginar tudo o que pudesse existir para além do seu mundo estreito e cinzento. Contudo, o entusiasmo dos companheiros de viagem e a determinação de não se deixar impressionar negativamente logo à che101 Camilo Mortágua gada, foram suficientes motivos de encorajamento e boa disposição para o encontro com tio Zé Maria que devia estar algures entre algumas dezenas de pessoas que já se avistavam no cais. O dia começava com um céu meio encoberto por grossas nuvens baixas, talvez chovesse, os experientes diziam que não, que era assim mesmo! À medida que nos aproximávamos das nove da manhã e do cais, sentia-se o dia a aquecer e a humidade a abafar. A luz não era igual à de Lisboa! Naquela manhã de terça-feira do dia 29 de Maio de 1951, com dezassete anos e quatro meses de idade, ébrio de ilusões e curiosidade, desembarquei em La Guaira assessorado pelo meu “Comité de Auto-Análise Comportamental – C.A.A.C.”, e confortado pelos 27$50 (na época, aproximadamente um dólar) que sobravam dumas “suecadas” em que tinha perdido uns trocos, pronto para o que desse e viesse e que mais adiante se contará. 33. A Venezuela Estava na Venezuela, sem saber grande coisa do país que começava agora a descobrir. Mas, mesmo assim (graças aos livros do Constantino), sabendo mais da sua história do que os meus companheiros de viagem, conforme tinha verificado durante as nossas conversas a bordo, conversas que me tinham servido para ganhar alguma consideração entre os experientes fanfarrões que me acompanhavam. O pouco que tinha lido sobre o país dava-me, apesar de tudo, para ter uma ideia de como o nome de Venezuela tinha vindo ao mundo. No dizer do seu mais ilustre e respeitado escritor, historiador, politólogo e pensador, Arturo Uslar Pietri, já então com 55 anos e muito prestigiado, mais tarde embaixador junto da UNESCO e contemplado com o Prémio Príncipe das Astúrias, o nome de Venezuela teria sido pronunciado pela primeira vez em 1500 por Américo Vespúcio à entrada do golfo entre a península de Paraguaná e a de Guajira, no território que mais tarde veio a pertencer ao Estado Zúlia. Vespúcio, que era de Veneza, ao observar as casas sobre estacas dos indígenas que viviam sobre a água e lhe fizeram lembrar Veneza, chamou àquele lugar – Venezuela! –, querendo significar pequena 102 Andanças para a Liberdade Veneza, nome que mais tarde seria dado a toda a “Província colonial” que abarcava grande parte do território da actual Venezuela. A Venezuela, primeiro como Província da Gran Colômbia, depois, em 1811, como país independente, e a partir de 1930 como Estado real e completamente soberano, é um caldo de culturas e etnias provenientes de imigrações das mais diversas origens. Um país que, pela grande diversidade étnica da sua população, nunca se colocou o problema da procura duma determinante e específica cultura de origem, revendo-se por inteiro na personagem do LIBERTADOR, como símbolo fundador e estruturante da identidade e coesão do povo venezuelano. “SIMON BOLÍVAR EL LIBERTADOR” – a sua áurea transcende muito para além das fronteiras da Venezuela, graças ao seu decisivo empenho na independência de outros cinco países sul-americanos: Panamá, Colômbia, Peru, Equador e Bolívia. BOLÍVAR, ainda hoje caso único na História mundial por ter sido Presidente da República de três países distintos: Venezuela, Colômbia e Bolívia! País sensivelmente do tamanho de Angola, algumas dez vezes maior que Portugal, situado no extremo norte do continente sul-americano (estas eram as generalidades que primeiro tinha aprendido), contava à época com uns escassos 4 milhões de habitantes e estava desenvolvendo, desde o fim da guerra, uma intensa política de acolhimento de imigrantes, aproveitando as grandes crises sociais e económicas do pós-guerra na Europa e noutros continentes. É deveras significativo que aquele jovem emigrante que eu era, ao chegar, nada soubesse, nem se tivesse interessado em saber, sobre quem governava o país ou qual a natureza do regime vigente. No conjunto dos seus interesses de então não entravam as questões declaradamente políticas, embora fosse, por experiência própria, muito atento às “situações” da marginalidade social. Só muito mais tarde vim a saber que tinha saído duma ditadura para vir para outra! Na prática, já dominava o Governo da Venezuela aquele contra quem, anos mais tarde, havia de conspirar em cumplicidade estreita com os democratas venezuelanos do sector da radiodifusão... o general Pérez Gimenez. Este militar, ao que se dizia, era beneficiário não inocente do assassinato, no ano anterior, do seu ex-colega Carlos Chalbaud, que 103 Camilo Mortágua fora presidente da Junta Revolucionária de Governo, da qual viria a tornar-se o homem forte, apesar do Presidente em exercício se chamar Suarez Flamerich. É tido como principal responsável pelo desrespeito pelos resultados das eleições de 1952 que deram a vitória a Jóvito Villalva, líder da União Republicana Democrata (URD), fazendo-se então nomear Presidente da República, com o apoio dos militares. 34. No “mato sem cachorro”? Até ao momento de lançar a escada a terra, não vislumbrei a presença do tio… O Januário, um dos companheiros de viagem, o mais animado e folgazão de todos, baixinho e ruivo, braços compridos quase até aos tornozelos, dando saltinhos que mais o faziam parecer macaco, dedo indicador em riste, começou logo a exclamar: “Eu bem dizia… eu conheço-o, tás fodido, não veio ninguém, nem tio nem Zé nem Maria, vai mas é pedir ao comandante do navio para te levar de volta antes de desceres.” Embora sorrindo, olhei em volta com um ar de quem pergunta – “e agora, que faço?” Toda aquela gente estava empenhada em descer rapidamente a terra, arrastando malas e baús, praticamente só homens, nem mulheres nem crianças! Os de origem espanhola, sobretudo galegos e canários, rondavam os sessenta e a leva era completada com cerca de cem italianos e uma vintena de portugueses. Entre os portugueses companheiros de viagem, cinco ou seis eram conterrâneos de Salreu! Logo um se adiantou, solícito e risonho: “Não te preocupes, vais comigo para Caracas e dou-te trabalho até que o teu tio apareça. Bem sabes que ficas entre amigos. Conheço a tua família lá da terra e cá longe temos de ser uns para os outros…” Era verdade, de nome eu conhecia o sujeito… afinal a distância parecia influenciar o comportamento das pessoas, para melhor! O bom “conterrâneo” (como então resolvi chamar-lhe) acalmou as minhas angústias mais imediatas e permitiu-me prestar de novo atenção ao cenário que nos rodeava, mas… voltando a pensar na História da Venezuela, país ao qual chegava quando “esse gigante parecia querer erguer-se para novas e importantes etapas do seu 104 Andanças para a Liberdade desenvolvimento” (estávamos no início do período áureo da exploração petrolífera), ainda na confusão da algazarra do desembarque, que sentimentos me assaltavam o espírito? Só de um me recordo bem, o de uma enorme curiosidade, a ânsia de querer fixar e memorizar todos os detalhes desse dia, porém… à distância de mais de meio século, o recurso, quer aos papéis quer à memória, não são suficientes para permitir o ordenamento cronológico das projecções que mentalmente consigo percepcionar; encavalitam-se as imagens e as situações, diluem-se ou fecham-se réstias de luz reveladoras de ambientes pouco precisos, por mais que nos esforcemos, baralham-se os nomes e os contornos daquilo que hoje julgamos teria sido muito importante fixar e, na altura, a memória não gravou! Sem razão aparente, surgem-me nitidamente ínfimos detalhes vividos em lapsos instantâneos de tempo, coisas sem importância nenhuma como a cor de um botão ou a tonalidade de um entardecer, e não encontro o registo de longos períodos com importantes e decisivos momentos que sei terem existido, mas a memória perdeu!… por isso, a narrativa deste tempo não é o relato quotidiano das aventuras de umas quantas vidas, ou de uma vida só; é a tentativa de reposição daquilo que a caprichosa memória do autor reteve. Como diria Gunter Grass, “a memória, como a cebola, descascam-se de fora para dentro, camada a camada”. Pelo que experimento, a dificuldade está em começar por compreender o que nos diz o registo de ontem na casca de fora, sem a lembrança precisa do que nos reserva o registo do tempo antigo impressionado nas camadas de dentro! Para resolver o problema, teríamos que começar por rever a nossa história de dentro para fora, pela ponta interior do fio da meada, “desatando o nosso novelo” do fim para o princípio, da morte para a nascença, o que nos impediria de “descascar as nossas próprias cebolas, ou desatar os nossos próprios novelos de vida” por não existirmos para além do próprio fim! Antes do fim… tudo é possível! Por isso preferimos ser fiéis ao que recordamos, como recordamos, sem pretensões a sermos o único “pintor destes quadros”, tornando-os, como agora se diz, interactivos à memória de quem os puder e quiser completar. 105 Camilo Mortágua Finalmente verificou-se que o Januário tinha razão, como ele dizia: “Nem tio, nem Zé, nem Maria – ninguém!” Estava entregue ao “bom conterrâneo”. Lembro-me perfeitamente daquela estrada que ligava Maiquetia (La Guaira) a Caracas. Mais tarde, depois da inauguração da auto-estrada (autopista) Caracas-La Guaira, veio a chamar-se “estrada velha”. Logo me anunciaram que tinha trezentas e não sei quantas curvas – parece que havia o hábito de as ir contando como quem conta carneiros para dormir, do princípio ao fim, paisagem de intenso e profundo verde. Sempre subindo, Caracas fica lá no alto a mais de 800 metros de altitude, bem abaixo dos 2600 do “pico del Ávila”, imponente pirâmide de verdura, protegendo e refrescando Caracas, como que a confirmar a sua apregoada condição de “sucursal del cielo”! 35. Os hotéis de emigrantes Caracas contava naquela época com cerca de trezentos mil habitantes. O perímetro central da cidade era composto por uma extensa quadrícula de casas térreas na sua maioria bem cuidadas, de estilo tipicamente colonial, com grandes espaços interiores ajardinados, por vezes até com frondosas árvores ultrapassando os níveis dos telhados, a pintalgar de verde os terraços desnivelados, formando um imenso puzzle de reminiscências andaluzas, então não percebidas como tal. O “bom conterrâneo”, testemunha compreensiva do meu absorvente encantamento, daquela minha “bebedeira” de desconhecido, manteve-se respeitoso do meu silêncio durante toda a viagem de quase três horas, de La Guaira até ao hotel Benfica. O hotel Benfica, como mais tarde vim a constatar, não era muito diferente dos outros hotéis para emigrantes portugueses e até espanhóis: o Luso-Americano, o Lisboa, o Camões, o Oporto, etc. Eram reconversões de casas tradicionais, bem espaçosas, com várias divisões dando para o pátio interior com um número variável de camas instaladas em fileiras que iam de parede a parede, com estreitos corredores de passagem entre elas, minúsculo armário para os objectos pessoais à cabeceira, malas debaixo da cama onde se 106 Andanças para a Liberdade guardavam todas as riquezas e as roupinhas coloridas e floridas com que um dia se voltaria à terra dando ares de rico e a falar espanhol para impressionar os vizinhos e tentar alguma moça abastada lá da freguesia, que outrora nem da sua sombra daria conta. Podíamos ser oito ou vinte na mesma camarata, como na tropa ou na prisão; tínhamos que gerir com muita atenção o acesso às casas de banho colectivas, de maneira a não correr o risco de ficar sem tempo para um clássico pequeno-almoço (pão com manteiga e café com leite) e para preparar a lancheira com o almoço, em muitos casos nem isso, já que os preços das diárias eram diferentes e, sem almoço, era mais barato! Estava-se no tempo do “Pórto-guês, pão, pepsicola e cambur (banana)”. Esta era uma boa parte da explicação para o mistério dos “ricos da Venezuela”! Estes hotéis, propriedade de portugueses, geridos por alguns dos pouquíssimos casais existentes (nos primeiros anos as mulheres ficavam em Portugal, à espera, umas vezes dos maridos e do dinheiro, outras tão só do dinheiro, e muitas vezes também, nem de uma coisa nem de outra, porque as de cá também são atraentes e estão à mão), garantiam o essencial à satisfação das necessidades dos milhares de homens que só pensavam em duas coisas: quanto é que conseguiam mandar para a terra no fim do mês, quando é que teriam amealhado o suficiente para poder voltar! Os hotéis praticavam preços idênticos e não havia grandes diferenças nos serviços prestados; por vezes a diferença estava nas pequenas atenções. Como as diárias compreendiam normalmente dormida, comida e roupa lavada, os cuidados com a roupa ou uma sobremesa mais ao gosto, podiam fazer toda a diferença. A grande maioria dos emigrantes deste período vinha trabalhar para a construção civil, dada a grande expansão e dinâmica deste sector, estimulado pela política governamental de “entregar grandes obras públicas a estrangeiros” (sobretudo portugueses e italianos) mediante chorudas comissões aos governantes, comissões que, obviamente, eram generosamente calculadas e toleradas nos orçamentos. Os aprendizes de todas as artes depressa se faziam mestres-de-obras, e estes guindavam-se com rapidez a empreiteiros! Trabalhavam meia dúzia de meses como assalariados de alguém e rapida107 Camilo Mortágua mente entravam a fazer parte das teias de subempreiteiros, em cascatas sucessivas de subcontratações, o que ocasionava aos do fim da escala, aos últimos a subcontratar um trabalho, ter de aceitar preços que obrigavam a trabalhar dezoito e vinte horas de seguida para alcançar os níveis de remuneração desejados, ocasionando, por falta de descanso, grandes acidentes de trabalho e até graves doenças pulmonares e do foro psiquiátrico. Chegavam aos hotéis, indicavam-lhes a cama, e a partir daí, só se pensava no trabalho. Os próprios hotéis funcionavam como centros de recrutamento e de emprego! Em cada hotel sabia-se quem ia chegar… parentes ou amigos de quem já lá morava tratavam de se assegurar previamente da pronta colocação daqueles a quem mandavam as “cartas de chamada”, para não correr o risco de ter de suportar à sua conta os recém-chegados, ou perder tempo a escolher patrão. Como a procura suplantava a oferta, alguns iam trabalhar no mesmo dia da chegada! Uma boa parte dos que iam chegando destinava-se a satisfazer as necessidades de mão-de-obra das empresas de quem os mandava vir, dado que as relações de trabalho entre quem “manda vir” e quem chega, oferecem sempre vantagens apreciáveis para os empregadores, como mais adiante se verá. Por cerca de doze bolívares diários assegurava-se o essencial à sobrevivência. Era frequente ganhar entre quarenta a sessenta bolívares por dia e mais – o bolívar da época valia, salvo erro, uns oito escudos. A diferença, sem qualquer desvio por gastos supérfluos, era para a transferência ou para acumular para a entrada dum negócio: um “abasto” (mercearia-frutaria), uma “fuente de soda” (bar e cervejaria) ou, de preferência, uma padaria. A meta mais ambicionada, para quem trabalhava à jorna, era a de poupar pelo menos mil bolívares por mês! Nada podia desviar as atenções deste objectivo, nem fadigas, nem doenças. O ritmo tinha de ser mantido custasse o que custasse, o estômago que se contentasse… Uma grande banana (cambur) com uma pepsi por cima, e ficava um homem a “arrotar que nem um lorde”! Daí que, durante alguns anos dessa época, o maior insulto que um venezuelano podia fazer a outro venezuelano era chamar-lhe “pórtu-guês”! 108 Andanças para a Liberdade Claro que a aquisição de riqueza que se visse obedecia a regras menos sofridas e ortodoxas – a ancestral capacidade lusa para o improviso e o desenrascanço, auxiliada pela gula da oligarquia reinante, conjugavam-se para proveito mútuo dos mais afoitos e empreendedores. Quando as relações já eram suficientemente proveitosas, os ricos deixavam os hotéis e iam viver para os seus apartamentos nos prédios que tinham construído, com o “respaldo” político e creditício de algum “amigo” bem colocado. Todas estas considerações só compreendidas alguns anos mais tarde, como bem podem supor, não me inquietavam o espírito quando cheguei ao hotel Benfica onde me levou o “bom conterrâneo”. Fui vendo, ouvindo e seguindo, exteriormente impávido e airoso, todas as informações e consignas que me iam dando; mas… ó inconsequente memória, por que será que me dizes que em mim permanecia, apesar da longa viagem, o sentimento de continuar a pertencer ao “pátio fundo” do Alto Pina lisboeta?! 36. Entrada no ABC da emigração ― Amanhã venho buscar-te às oito. Vais ajudar ali na minha fábrica de “galhetas”. Quando lá por volta das seis da tarde daquele meu primeiro dia na Venezuela, começaram a chegar os outros hóspedes, resolvi alongar-me na cama que me tinham indicado, para ir vendo quem seriam os meus vizinhos de camarata! À medida que iam chegando, sucediam-se as perguntas: sobre Salreu, sobre futebol, sobre vizinhos ou parentes e familiares conhecidos e desconhecidos, sobre ofertas de trabalho, sobre sonhos e fantasias que lhes atenuavam as saudades, alguns a dizer-me que eu é que estava certo, que era com a minha idade que deviam ter vindo! Nessa noite, as conversas duraram até tarde, as incertezas e expectativas eram mais fortes que o sono, e os roncares da vizinhança não ajudaram a adormecer. Na madrugada seguinte, logo que as lides da preparação do pequeno-almoço se fizeram sentir, pus-me de pé. Nesse dia fui o 109 Camilo Mortágua primeiro a entrar na casa de banho que nos estava destinada. Cinco e meia e eu a mastigar o primeiro pão venezuelano do pequenoalmoço. Antes que o futuro patrão viesse, queria dar um passeio pelas redondezas, olhar os grandes anúncios de néon, alguns maiores que as casas que os suportavam, e começar a decorar a toponímia da cidade. Surpresa das surpresas, não havia nomes para as ruas! Nomes… só para as esquinas! Tracabordo a Miguelacho; Miguelacho a….?; Manduca a…?; Cují a Puncéres; Reducto a Miracielos; Delícias a Mercês; Romoalda a Manduca; Chorro a Dr. Diaz; Ibarra a Urdaneta, etc., etc., achei engraçado e de mais fácil localização que quando nos dizem: Av. tal, nº 387! Com a constatação da facilidade em compreender a língua, regressei ao hotel Benfica a esperar pelo conterrâneo (birras da memória, perdi o rasto ao nome deste personagem) que me iria levar para o meu primeiro dia de trabalho como emigrante. ― Vamos para Roca Tarpeya ― dito isso, sem mais, pusemo-nos a caminho para a tal Roca Tarpeya, que, por muito que me esforçasse, não conseguia imaginar o que seria! Era mais um nome, não de uma esquina mas duma encruzilhada de ruas com uma grande rocha no meio e alguns “ranchitos” (barracas) por cima. A «fábrica das galhetas» era numa garagem térrea de três por seis metros, pouco mais, num edifício de dois andares, com uma misturadora e um pequeno forno eléctricos, onde cabiam quatro tabuleiros de cada vez, e uma pequena mesa de empacotamento das “galhetas” (uma espécie de grandes biscoitos em forma de bolachas do tamanho dos nossos conhecidos hambúrgueres). O meu trabalho consistia em descolar as “galhetas” dos tabuleiros, limpar tudo e proceder ao empacotamento em sacos de papel com uma dúzia de unidades. A actividade deu para entreter os dias que ali passei, não muitos, apenas quatro, e ganhar os meus primeiros bolívares: sessenta! Se bem me lembro, vá-se lá saber porquê, apenas lá fiquei de quarta a sábado. Ao fim do dia de sábado, antes de voltar para o hotel, o patrão informou-me que não voltaria para aquele local. Que na segunda-feira seguinte iria levar-me para a sua padaria situada no Cerro de Catia onde eu poderia aproveitar melhor as minhas com110 Andanças para a Liberdade petências como padeiro, que o meu tio não tinha dado sinais de vida, que se ele demorasse em aparecer, um dia iríamos procurá-lo a La Victória, uma cidadezinha a uns oitenta quilómetros de Caracas, a caminho de Maracay. Tinha pela frente o meu primeiro domingo solitário e vazio de perspectivas. Os companheiros de hotel, segundo me tinham dito, passariam o domingo a jogar às cartas e a escrever para a família, isto… se não arranjassem uma empreitada para ganhar um dia bem pago, o que era frequente. Bem… não era programa que me entusiasmasse, mas as alternativas, dado o meu total desconhecimento do meio, não eram muitas! Curioso, fui à procura de descobrir onde seria esse tal bairro de Catia; os sorrisos que tinha apercebido nos colegas de camarata, quando lhes disse que na segunda-feira iria para Catia, tinham-me deixado “de pulga atrás da orelha”; era preciso tirar as dúvidas. Não era a primeira vez, desde a minha chegada, que ouvia esse nome. Lembrava-me vagamente de o ter escutado a um dos acompanhantes da viagem de La Guaira até Caracas, no fim da autopista, ao entrar na cidade. Se mal não recordava, o comentário tinha sido algo como: “lá estão elas!” – confesso que, absorvido pela imensidão da paisagem, não me apercebi a que se referia o comentário, nem dei importância ao mesmo. Só agora, ao ser-me apontado como próximo destino e graças aos sorrisos enigmáticos dos companheiros, a curiosidade se revelou suficiente para me levar à procura do seu significado! Pelo menos, se as minhas recordações estivessem certas, Catia ficava, grosso modo, à saída de Caracas para La Guaira, referência que me facilitava a tarefa! Contrariando todas as regras da economia do emigrante (foi apenas um começo), decidi utilizar os tais “carritos por puesto”, uma espécie de táxis colectivos onde cada passageiro paga pelo seu “posto” (lugar) e indica o seu destino, desde que ao longo de um itinerário predefinido. Do hotel até El Silêncio (Centro de Caracas) e daí até Catia, pela Av. Marechal Sucre, ainda gastei dois bolívares nos tais carritos, quase metade dos capitais com que tinha desembarcado em La Guaira. Catia era tão imensa e tão igual aos outros arredores já apercebidos, que a minha curiosidade esvaiu-se por entre a dispersão colo111 Camilo Mortágua rida dos milhares de “ranchitos” espalhados, de alto a baixo, por um imenso “cerro” (morro) de onde desaguavam na parte baixa urbanizada e plana daquela quase cidade, torrentes de apressadas multidões manifestamente excluídas dos portentosos benefícios petrolíferos da sua pátria! Nada vi que me chamasse especialmente a atenção. Ao fim de umas quantas horas de caminhar pelas principais avenidas da parte urbanizada de Catia, voltei ao Hotel sem nada comentar da minha expedição, guardando para melhor oportunidade a descoberta do porquê dos enigmáticos sorrisos sobre Catia. À volta, fiz grande parte do percurso a pé, o que me ajudou a adormecer sem grandes angústias e expectativas sobre a nova experiência que se anunciava. Oito da manhã, chega o patrão. Vem numa carrinha de caixa aberta, carrega vários utensílios próprios para a limpeza duma padaria à mistura com sacos de farinha e alguma fruta. Agarrei na mala, deitei um último olhar à camarata, despedi-me do Rodrigo e da Clarinda, donos do hotel, e lá fomos nós para Catia. O mesmo percurso do dia anterior, até entrarmos na Avenida principal já minha conhecida. De repente, o patrão vira para uma transversal, entra numa estrada de terra ladeada por valetas por onde escorriam os esgotos daquele mundo, subida íngreme e irregular. Primeira a fundo para não deslizar imparavelmente morro abaixo, lá fomos subindo, morro acima, até onde o possante motor da Dodge nos conseguiu levar. Quando a carrinha se negou a avançar, o patrão desceu e dirigiu-se para o portão de uma “barraca melhorada” com uma fachada em alvenaria, pintada de branco, e uma espécie de terraço a sobressair das traseiras, qual “torre de vigia” improvisada, com tecto de chapas de zinco, vibrando com o sopro da ventania que arejava o alto do “cerro” dos vapores imanentes das íntimas necessidades daquele formigueiro humano. Abriu o portão, e logo percebi que deveria ser ali a tal padaria onde, como tinha dito o patrão, poderia exercer as minhas competências de padeiro! Neste “cerro” de Catia, que ocupava uma das colinas dos arredores de Caracas à saída para o porto de La Guaira e para o aeroporto internacional de Maiquetia, tentavam viver, na década de 50 112 Andanças para a Liberdade do século passado, mais de dez mil semi-excluídos da petroliferamente rica e emergente sociedade venezuelana. O “cerro” é sempre, em relação à cidade, e no imaginário dos poetas que sentem a necessidade de sublimar a miséria – um lugar mais pertinho do céu…! –, um pouco à semelhança daquela “casinha portuguesa com certeza, com pão e vinho sobre a mesa”! “Um lugar mais pertinho do céu”… talvez o seja para as almas (tenho as minhas dúvidas) que por falta de condições para viver lá no morro, preferiam abandonar os corpos e voar... para parte incerta, à procura desse tal céu onde parece que agora já é possível ir e voltar (nesses tempos ainda não era). No caso presente, factualmente, naquele morro, nem depois de mortos se lhes encurtava o caminho a percorrer, pois tinham que vir colina abaixo (algumas vezes “encaixotados” e em cima dum burro) até à avenida que delimitava a fronteira com a cidade, para poder aceder ao lugar terminal onde descer à terra! Cenário típico, já na época, dos imensos subúrbios das capitais latino-americanas e não só. Chagas ambientais e sociais poluentes que, ano após ano, têm vindo a inchar até ao infinito as paisagens peri-urbanas das grandes metrópoles dos continentes mártires do grande enriquecimento dos outros. Barracas de todos os feitios e materiais, algumas mais sólidas construídas pelos parasitas das necessidades alheias para alugar aos mais pobres dos pobres. Labirinto de ruelas e carreiros de terra perfumada pelos escorrimentos dos dejectos humanos e de outros animais. Portas abertas a todos os negócios. “Botecos e botequins”, onde ao som estridente de todas as músicas e gritos se vende alegria... alegria! E se comercializa de tudo: “arepitas” para os estômagos, óleos e lustros para os corpos, promessas de influência para a entrada das almas no paraíso, mas também, e sobretudo, álcool, que é aquilo que no dizer do poeta, “tapa a veia do medo!” Penso serem suficientes detalhes para vos situar no contexto ambiental do Cerro de Catia, na periferia de Caracas, capital da Venezuela dos anos cinquenta. Nesta época, como já vos disse, já por cá conviviam com os autóctones um bom meio milhão de estrangeiros, principalmente espanhóis, italianos e de muitas outras nacionalidades. E mais de quarenta mil portugueses, na sua grande maioria originários da Madeira e do distrito de Aveiro, entre os quais um 113 Camilo Mortágua grande número de “padeiros” e industriais de panificação que, da arte e do ofício, sabiam tanto como Pedro Álvares Cabral demonstrou saber do caminho para a Índia! Foi aí, no coração deste imenso formigueiro humano pleno de vidas frenéticas de esperança e desilusão, que me foi dado exercer, durante o mês de Julho do ano de 1951, as competências de jovem padeiro, que tinha por despertador a “alma da massa”! Reunidos pela primeira vez desde a chegada, o Come e Cala, o Batata e o Zé Ninguém, notei que só o Batata mantinha intacta a fé de voltarmos ricos, de ultrapassar as dificuldades, o espírito do bom emigrante; os outros, pressenti-os meios frustrados com a situação. Era tal a convicção do Batata que decidiram que, naquele “cerro”, eu próprio me deveria chamar Batata – o Batata de Salreu. Para a actual situação concorria obviamente o facto de que, quando o navio carregado de cebolas e emigrantes acostou ao porto de La Guaira, o tio Zé... tinha esquecido o dia da chegada do sobrinho, ao que mais tarde me disseram, por estar fortemente preso nos braços de uma “dengosa cabocla mulata” com quem ele se ressarcia das austeras, parcas e agrestes carícias da mulher que tinha ficado lá na terra; mulher de “rija têmpera” e punho firme no arado, boa parideira e melhor mãe que esposa. Sem tio nem dinheiro... valeram-me na situação os companheiros de viagem, alguns voltando pela segunda ou terceira vez, já com conhecimentos e até com negócios estabelecidos. A mais insistente das ajudas vem de alguém originário da mesma terra que, evocando grande amizade com meu pai, em nome dessa especial amizade, e depois de saber que o Batata tinha aprendido as artes dum bom padeiro durante a sua preparação para a aventura venezuelana, me convida para a “grande oportunidade de ser o encarregado e único empregado” da sua padaria no Cerro de Catia! Naquela padaria de quatro paredes com uma placa de cimento por tecto, em cima da qual o “industrial” tinha “construído” uma barraca em chapas de zinco a que chamava o quarto do padeiro (a torre de vigia), havia: água e electricidade, uma masseira onde, a pulso, procedia à osmose dos elementos, à amassadura, ao produtivo acto sexual quotidiano (como ironicamente lhe chamava), recitando para a massa, com um sorriso triste, a adivinha que a avó lhe contara: – qual é a coisa qual é ela? Com a minha barriga encostada à tua, 114 Andanças para a Liberdade meto e tiro um palmo de carne crua. Era desse acto tão fecundo que, da farinha e da água, com umas pitadas de sal e algumas gotas de suor à mistura com o fermento, fazia a massa com alma. Para além da masseira, havia a mesa-cama onde ambos, a massa e ele, se estendiam a repousar e levedar para um novo dia. Também umas quantas tábuas a servirem de tabuleiros e um forno aquecido a “mazoute”, dois baldes e três cestos para levar o pão pelas vielas do cerro até aos fregueses. Nesta “unidade artesanal de panificação”, como era designada no cerro pelos metidos a intelectuais quando queriam armar ao polimento, o nosso padeiro faz tudo! O patrão amigo do pai disse-me: “tens que amassar, tender, cozer e ir vender tantos pães por dia; se fizeres mais, o produto é dividido a meias. Podes dormir no «quarto do padeiro» e uma vez por semana, quando vier fazer contas, deixo-te comida feita e pago-te doze bolívares por dia” (nessa altura, mais ou menos cem escudos portugueses). E a faina começou! Numa tarde, por volta das seis, comecei a amassar tal como tinha aprendido, dando à massa a mesma quantidade de fermento que habitualmente dava naquele gélido casarão do largo Martim Moniz... em Lisboa. Mas, bem aconchegada pela cálida temperatura local, a “alma” da massa acelerou o crescimento de forma surpreendente e o Batata-padeiro lá teve que desunhar-se para meter os pãezinhos no forno antes que, de alma perdida, se esparramassem desfalecidos. A partir dessa primeira cozedura, saída do forno um pouco cedo demais, a minha ligação permanente “às massas” nunca mais se interrompeu. Por volta das cinco da manhã começava a faina da distribuição e a venda porta a porta, tarefa que podia durar até ao meiodia; seguia a amassadura, confecção e cozedura das rosquinhas doces e floridas que “el muchacho de los dulces”, como ficou a ser conhecido no cerro, ia vender pelo fim da tarde antes de começar a amassar para o dia seguinte! Só visitava o “quarto do padeiro”, lá sobre o tecto, madrugada adentro dos domingos. Durante toda a semana, dormia com as “massas”. Em primeiro lugar, porque o tal quarto do padeiro era quase tão quente como o forno onde cozia o pão; em segundo, porque tinha casualmente 115 Camilo Mortágua aprendido que encostando a cabeça à massa acabada de amassar, ela própria, ao levedar-se, crescia e vinha acariciar-me o rosto e “chamar por mim” para ser tendida e repartida em muitos pães. Estendidos sobre a mesa de tender, lado a lado, bem juntinhos, em repouso, ambos aguardavam o momento da separação, e era a massa do futuro pão que acordava aquele que, levando-a para o forno, lhe permitiria a sua última metamorfose, transformando-a naquilo para que havia nascido... o pão! Durante infindáveis três a quatro semanas, esta tão intensa relação levou à exaustão o jovem Batata, ao fim das quais, sem forças nem ânimo, dois dias e duas noites dormiu sozinho sobre a mesa de tender, até que o industrial, seu patrão e amigo de seu pai, apareceu no dia do costume para buscar as “suas massas” e assim o encontrou! Ao que parece, a partir desse momento, depressa foi encontrado o tio Zé Maria. Com os remorsos do abandono do sobrinho, lá arranjou forças para se desprender dos braços da mulata dengosa, para o levar até à sua padaria... de la Victória! 37. O tio Zé Maria Permanece em branco o registo da viagem de Catia para La Victória. Sobre essa viagem tudo se apagou… deve ter sido do esgotamento, ou da “ressurreição”, depois de ter dormido dias e noites a fio… só voltando a acordar, sem “massas”, já em La Victória. Cá estou, ao balcão desta padaria que tem o mesmo nome da terra, situada na Estrada Nacional e rua principal da localidade. Com os seus dois mil e tal habitantes, era na altura uma tranquilíssima cidadezinha tipicamente venezuelana, de meia altitude, fresca e frondosamente coberta de árvores fruteiras de grande porte: mangas, “mamones”, “lechosas”, abacates, laranjas, bananas, ananases; de tudo havia pelos quintais da vizinhança e até no grande terreno das traseiras da padaria. Sem explicações nem desculpas, o tio Zé Maria disse-me: ― Agora ficas aqui a tomar conta da padaria. Tens que ter muito cuidado para não te deixares enganar nem roubar. Durante a noite tens que controlar a hora de chegada dos padeiros e fornecer tudo o que é necessário para a laboração. Não deixes ninguém ir ao arma- 116 Andanças para a Liberdade zém onde estão os produtos para o fabrico do pão e dos folhados e a mercearia para venda ao balcão, o arroz, o açúcar e essas coisas; traz a chave sempre contigo! Tens que ficar no atendimento do balcão alguns dias por semana, sempre diferentes, para poder controlar a Gertrudes. De manhã, controla bem o peso e a conta do que entregues aos vendedores e anota tudo nos livros deles e no nosso para poderes fazer as contas com eles ao sábado. Quem não pagar ao sábado, não levanta pão na segunda-feira. Todos os dias guardas as receitas no cofre e eu venho aos domingos para abastecer o armazém e levar o dinheiro da semana. Do pessoal que trabalha cá, podes fazer confiança no velho Romeu e em mais ninguém. Não te distraias; à noite fecha bem as portadas da frente; entre as dez da noite e as quatro da manhã podes descansar, mas convém que te levantes de vez em quando para ver o que se passa. Eu vou para Caracas e volto no próximo domingo. E assim aconteceu. Durante largos meses, cujo número não sou capaz de precisar, o tio vinha todos os domingos limpar o cofre e eu começava a “desfrutar” daquela canseira de vida. Para além das tarefas inerentes às de “gerente do estabelecimento” tinha que cozinhar para mim e, muitas vezes, para quem à última da hora se apresentasse a pretexto de provar a comida do português! À medida que as rotinas se instalavam e ia conhecendo melhor o lugar e as pessoas, ia ganhando também uma certa calma, uma sensação de normalidade. Diminuída a angústia pela incerteza do dia seguinte, comecei, pouco a pouco, a interessar-me por coisas que desde a partida de Lisboa tinha tentado esquecer… em primeiro lugar, a questão da satisfação dos desejos sexuais tão reprimidos durante os últimos tempos e, em seguida, conseguir respostas para as perguntas que me iam surgindo ao deixar-me enredar em pensamentos mais ou menos filosóficos sobre a vida e o sentido verdadeiro das práticas sociais que ia observando. O ambiente calmo e a vida solitária que levava eram propícios à meditação. Embora o material fosse escasso, recomecei com os meus hábitos de leitura… de tudo o que tivesse letras! Quando começava a estabilizar e a conhecer melhor algumas das morenas da terra… coisa que ia mitigando as saudades e recordações do Alto Pina, apareceu o dono da padaria a anunciar: 117 Camilo Mortágua ― Vendi a padaria. O novo dono vem tomar conta disto depois de amanhã, mas não te preocupes que vais comigo para Caracas e pago-te o hotel enquanto não comprar outro negócio! Vagamente, vem-me à memória ter havido alguma conversa sobre o pagamento do meu trabalho até então, cujo resultado era o de continuar, ao fim de uns seis meses de Venezuela, tão rico como tinha chegado, salvo de experiências da vida do mundo dos emigrantes. 38. O Regresso a Catia Voltei a Caracas, mas desta vez para o hotel Luso-Americano, situado de Tracabordo a Migulacho, bem no Centro de Caracas, propriedade de uma família de Espinho, gente bem castiça e atenciosa, mais palavrão que palavra, bem à maneira da feira lá da terra. A este hotel voltaria várias vezes, pela simpatia da filha dos proprietários enquanto esta não casou, depois pelas pequenas atenções e estima que a família sempre me testemunhou. Passados alguns dias, recebi a visita do tio que me vinha buscar para ir tomar conta duma lanchonete-frutaria que tinha comprado na Avenida principal de Catia. Era um pequeno negócio que vendia um leque bastante variado de produtos: gelados, batidos de fruta, fruta fresca, refrescos, alguns legumes, cigarros, etc. A clientela era pouca e, por mais que me esforçasse, as vendas não aumentavam significativamente. Cedo comecei a perceber que dificilmente aquilo daria para pagar a renda e o meu ordenado que, finalmente tinha sido fixado em seiscentos bolívares mensais, com dormida nas traseiras do estabelecimento e livre acesso aos géneros existentes! Portanto, o tio não devia levar dali grande coisa e deveria estar a viver do dinheiro da venda da padaria, ele e a mulata que não o largaria enquanto o dinheiro não se acabasse. A situação manteve-se, ao que recordo, por uns largos seis meses. Durante esse período, tive tempo para, finalmente, conhecer a razão para os enigmáticos sorrisos dos meus companheiros do hotel Benfica ao ouvirem mencionar o Bairro de Catia. De facto, lá estavam elas. 118 Andanças para a Liberdade 39. Por portas interpostas! Seguindo indicações mais ou menos precisas de uns conhecidos do meu tempo de vendedor de rosquinhas floridas ali pelo cerro vizinho, numa noite como as outras, mas de solidão mais profundamente sentida, depois do fecho da frutaria, como sempre às dez da noite, fui à procura daquilo que supunha fossem… ELAS! Tinham-me dito: “elas estão numa rua paralela logo à entrada da autopista de La Guaira, nas últimas casas de Catia, à entrada do cerro, com uma série de pequeninas luzinhas coloridas às portas, mas sem iluminação pública; lugar pouco recomendável, propício a assaltos de rua e outras violências”. Não foi difícil descobrir o objectivo. O tremelicar das “luzinhas coloridas” na escuridão duma rua às escuras, era suficientemente insólito para chamar a atenção dos mais distraídos. Afoitamente, com a coragem dos inexperientes, apertei os cotovelos contra a carteira e avancei em direcção às luzes. A princípio tive muita dificuldade em perceber a situação! A rua só tinha casas dum lado e cada casa tinha uns escassos dois metros de frente com uma porta; aliás, não eram portas inteiras, eram meias portas por detrás das quais se encontravam mulheres a descrever, por gestos e palavras, o serviço que prestavam, pouco variado, diga-se de passagem, dadas as peculiares “infra-estruturas” de que dispunham. Olhando com mais atenção, vi vários homens de pé contra as meias portas, balançando os corpos contra as ditas, como se as quisessem derrubar com a barriga. Finalmente, bem observadas as cenas, o que não se via adivinhava-se! Como não dispunham de espaço, as mulheres faziam das meias portas saias, postando-se de pé contra as meias portas, praticamente nuas da cintura para baixo, convidando os clientes ao acto sexual, de pé, através dum buraco aberto na madeira das tais meias portas. Como estes buracos eram abertos a alturas variáveis, cada freguês tinha de escolher uma porta que se adaptasse à sua altura! A altura a que estava aberto o buraco era mais importante na escolha que o aspecto da dona do buraco que se encontraria para lá da porta. Boquiaberto e meio pasmado, devo ter feito fraca figura naquele cenário pré-civilizacional. Após ter compreendido o essencial, o que 119 Camilo Mortágua não era nenhum motivo de regozijo ou prova de grande esperteza, fugi das portas e dos buracos, atravessei a rua para o outro passeio, sobranceiro e paralelo à auto-estrada. O ruído do contínuo e intenso tráfego, a iluminação fugaz dos faróis dos automóveis, tudo se conjugou para instantaneamente relativizar o imprevisto tenebroso da situação. Contudo, até onde eu me encontrava, e apesar do rumor de fundo que provinha da auto-estrada, de tempos a tempos ouviam-se insultos e gritos de dor, cuja origem levei mais tempo a compreender. Tratava-se do momento da desinfecção. Sim, sim!… digo bem. Apesar de velhas, feias e habituadas a trabalhar na posição vertical, preocupavam-se com a higiene! À falta de água, sabão e paninhos, havia sempre um saco daqueles limões pequenos e verdes que bem espremidos no pénis dos fregueses provocavam os gritos e insultos, em variadíssimas línguas (foi ouvindo-os que aprendi as minhas primeiras noções de italiano); por bónus, a cada um era fornecido um rolo de papel para que procedesse à sua própria limpeza. Era verdade… lá estavam elas. E, segundo mais tarde pude averiguar, abriam as meias portas e os buracos condizentes lá por volta das três da tarde e mantinham os estabelecimentos abertos até às seis ou sete da manhã. Ao longo destas andanças, nunca me foi dado ver situação mais desumanizada relacionada com o comércio do sexo. Quando, mais tarde, procurei aprofundar a minha compreensão da degradação de uma tal situação, foi-me dito que as grandes causas eram a imigração. À Venezuela chegavam diariamente centenas de homens sós, homens sem família e completamente dominados pela febre do enriquecimento rápido, sem disponibilidade para criar relações sociais, nem tempo para manobras de enamoramento. Tinham necessidades e satisfaziam-nas da maneira mais económica e rápida possível. Por seu turno, em Catia existiam inúmeras casas de prostituição de níveis mais sofisticados e confortáveis, mas, quando as mulheres deixavam de ser suficientemente atractivas para “prestigiar” o estabelecimento, eram despedidas e obrigadas a recorrer a sistemas cada vez mais degradantes, para sobreviverem. 120 Andanças para a Liberdade Para o jovem que eu era, ainda crente na bondade deste mundo, foi um forte empurrão para a urgência de lutar por outro mundo diferente… foi a grande noite do reconhecimento da relativa “riqueza” da minha própria condição na sociedade. Um tal choque adiou a solução dos meus próprios problemas, fazendo desaparecer todas as motivações que ali me tinham levado, reforçando a convicção que então se me impunha, de que não é pela sua sexualidade que a humanidade se pode distinguir dos outros animais. 40. Enfim… por conta própria Passados uns meses, o que eu previra aconteceu. O negócio não era suficientemente rentável para que o tio pudesse viver no seu enlevo amoroso, sem dele se ocupar, tendo por isso que pagar (ainda que pouco) a quem dele cuidava, neste caso, eu. Numa sexta-feira do início de Fevereiro de 1953, sensivelmente ano e meio depois de ter chegado à Venezuela, com dezanove anos feitos em Janeiro desse ano, fiquei inteiramente por minha conta. O tio anunciou-me que tinha vendido a frutaria e que estava disposto a ajudar-me a comprar um “reparto” de pão para eu poder seguir a minha vida. Passado pouco tempo, andava eu a distribuir (vender) pão por toda a Caracas e arredores, montado numa moto Harley Davidson de 1200 cc, com uma caixa atrelada. (Sempre era outra coisa que andar de bandeja às costas a calcorrear a pé as ruas do Alto Pina ao Intendente.) Naquela época era um dos negócios mais de moda para quem começava o percurso de comerciante por conta própria. Carregava-se a caixa-do-pão atrelada à moto com as quantidades de pão adequadas à clientela que constituía o “reparto”, pão que era pago normalmente semana a semana à padaria a que estava informalmente ligado aquele “reparto”, e, entre as seis da manhã e o meio-dia, e às vezes também à tardinha, cada “repartidor” ia pela cidade entregar aos seus fregueses o rotineiro pão de cada dia… algumas vezes vendido a pronto, na maioria dos casos a crédito, em condições muito variáveis, segundo o choradinho das freguesas, ou a percepção do padeiro 121 Camilo Mortágua sobre as necessidades encapotadas pela vergonha de quem não ousava confessá-las a um jovem estrangeiro. A minha clientela, de condições sociais muito diversas, incluía bairros muito humildes e urbanizações da média e alta burguesia da época. Estavam criadas as condições para que o jovem negociante de pão, confrontado com alguma pobreza, sobrepusesse a sua solidariedade ao legítimo interesse de defender a rentabilidade do seu negócio. As burguesas jeitosas e bem-falantes das grandes vivendas da alta, fazendo olhinhos provocadores ao jovem padeiro a ver se podiam desviar o dinheiro do padeiro para as “suas agulhas”, ou as pobres dos bairros populares, envergonhadas da sua pobreza, contando todos os dias as “bocas da casa” na esperança de poder reduzir a conta do pão, todas concorriam, objectivamente, de uma forma ou de outra, para o insucesso do meu negócio, acabando por transformar os créditos concedidos em actos mais ou menos voluntários de solidariedade social. Não contente com fornecer o pão, o Zé Ninguém convenceu o Batata, não sem grande relutância deste, que o negócio seria mais rentável se juntasse o leite ao pão. Passei a distribuir também leite, o que aumentou substancialmente o valor do crédito mal parado. O que concorria para algum equilíbrio da gestão dessa minha actividade era o facto de uma boa percentagem dos clientes, se não a maior parte, serem cafés e restaurantes compradores certos de grandes quantidades pagas diariamente. Todos os estabelecimentos de comes e bebes instalados ao longo da dita “carretera vieja”, estrada velha de Caracas a La Guaira, eram meus clientes. Todos os dias treinava a minha destreza de condutor de motos com “sitecar” nas tais trezentas e não sei quantas curvas da velha estrada, onde aprendi a apreciar o fenómeno das grandes chuvadas tropicais. Parava a moto a alguns metros da chuva e aí ficava, sequinho e ao vento, a ver chover e a sentir a frescura dos seus efeitos; quando a chuva ia chover para outro lado, passava do seco para o molhado, de onde emanavam densos odores a coisas agora imprecisas. Quando se comprava um “reparto” não se comprava nada de concreto e documentado. Ia-se durante dois ou três dias com o ven122 Andanças para a Liberdade dedor do reparto que nos ensinava onde moravam os seus fregueses e nos apresentava como “o primo que tinha chegado há pouco e ia ficar no seu lugar”… quando o comprador já sabia as voltas a dar e em que casas devia bater, o vendedor entregava os documentos da moto, recebia o dinheiro, importâncias que variavam entre os cento e sessenta e os trezentos contos portugueses (vinte a quarenta mil bolívares) conforme os quilos de pão que se distribuía e o número de fregueses a servir… e pronto, o negócio estava feito. Se no dia seguinte os clientes te dissessem que não queriam mais pão por esta ou aquela razão, ou até porque não simpatizavam com a tua cara, ou simplesmente porque não queriam pagar a conta que ficaram a dever ao primo a quem tinha ficado de mandar o dinheiro, paciência, era um cliente a menos. Cada cliente perdido significava a respectiva desvalorização do teu “reparto”. Podia acontecer que, de um dia para o outro, te encontrasses sem clientela e sem negócio. O meu negócio dependia, como é verdade que acontece na maioria dos negócios do género, da minha capacidade de conservar e se possível alargar a clientela. Para alargar a clientela existiam muitos métodos; o mais comum era andar sempre muito atento às camionetas das mudanças para as casas que sabíamos estarem vazias ao longo do nosso percurso. Apesar de ter começado bem cedo, ainda em Lisboa, a lidar com as “técnicas das vendas a domicílio”, as circunstâncias eram-me todas desfavoráveis: falta de ambição para o ter, para a acumulação rápida de riqueza, ou de disponibilidade para me submeter à disciplina de trabalho e austeridade a que isso obrigaria, o que vem dar no mesmo; dezoito anos, uma enorme ambição de ser alguém, autonomia plena, algum dinheiro no bolso a tilintar (mesmo que fosse do dono da padaria que fornecia o pão); a companhia dos jovens filhos dos donos da padaria que, imitando os padeiros de verdade, dormiam de dia… mas iam “trabalhar” de noite para os bordéis de Catia; a prevalência dada ao Zé Ninguém, aquele outro eu optimista e superconfiante no futuro, muito à imagem do da lenda de “Ulenspiegel” e de suas aventuras heróicas, alegres e gloriosas, referência que vinha dominando os meus “diálogos interiores” da época. Assim pensaria o herói mítico da Flandres: “Nada de rotinas… ainda sou muito jovem… tenho tempo… aproveitemos o tempo para 123 Camilo Mortágua conhecer coisas novas, para dar sentido e reconhecimento à vida, fazendo coisas que nem todos ousam fazer.” Ao Zé Ninguém opunham-se, sem grande convicção, e até com ares de alguma cumplicidade: o Come e Cala de Santiago de Riba Ul e, com muito mais firmeza, o Batata de Salreu em memória do austero Salça. Cada um com as suas razões, alimentavam o grande debate sobre os caminhos a percorrer, e eu, preso à dinâmica das argumentações, balançava alternadamente entre uns e outros, sem me decidir sobre o rumo a tomar. O mais fácil era não decidir, ouvir o herói da Flandres, ir por onde a vida me levasse… se possível, algum dia… de retorno a Lisboa, feito “Zé Alguém”! Emigrar jovem, com a vida pela frente, não é a mesma coisa que emigrar quando já se constituiu família e a necessidade de estabilidade económica se impõe como objectivo maior e urgente. Para mim, a expressão “governar a vida”, na Venezuela daquele tempo (tempo de ditadura), significava uma de duas coisas: ou “honestamente” dedicar-se exclusivamente ao trabalho braçal, sem pensar em mais nada, privando-se de tudo o que não fosse essencial à sobrevivência física e à manutenção da saúde para trabalhar, embrutecendo para ser um rico “bruto”, ou pôr de lado princípios e valores, “perder os escrúpulos” e, traficando influências, manipulando e interagindo com os poderosos corruptos locais, alcançar a fortuna de um dia para o outro. Aí comecei a compreender porque os governantes e poderosos, quando corruptos, preferem praticar a corrupção com “gente de fora”, com estrangeiros sem relações sociais susceptíveis de serem aproveitadas para os denunciar. Sempre me pareceu que voltar sendo alguém pelo que se é e não pelo que se tem era uma opção de difícil concretização, incompreendida pelos mentores dos pátrios estereótipos sociais reinantes, e para a qual os caminhos eram muito mais reduzidos e incertos do que aqueles que podiam levar a ser alguém pela acumulação e ostentação da riqueza material. Sobretudo para quem os escrúpulos éticos e os valores morais não fossem impeditivos de ilícitos bem lucrativos. Sem disso ter então consciência, graças ao ditador de Santa Comba, tive a oportunidade de poder encontrar, anos mais tarde, 124 Andanças para a Liberdade um caminho para o SER… empenhando vida, família e improvável fortuna, na luta pela LIBERDADE do meu país, na luta contra a miséria material e cultural de todos os “pátios fundos” do Mundo, e pela afirmação e universalização de valores que, naquela época, o jovem emigrante que eu era, ainda não relacionava com políticas ou ideologias. Prestando atenção às projecções do que a memória reteve, suspeito sempre que as reflexões hoje feitas não passem de meras justificações para dar razoabilidade a práticas de vida que não eram nada resultantes de opções conscientes, tão só e apenas, as mais atractivas para um jovem que se vê aos dezoito anos, só e senhor da sua vida e do seu corpo, sem orientações tutelares de qualquer espécie, para além dos ensinamentos práticos retirados da sua curta existência. 41. O parasita das públicas meninas Salvo o Come e Cala, tanto o Batata como o Zé Ninguém batiam-me na consciência a cada momento de diálogo do meu “Colectivo de Auto-Análise Comportamental”. O Zé Ninguém era o mais violento nas críticas às tardes e noites que passava nos bordéis de Catia. Com toda a razão, aliás. Mas… embora revoltados por os levar comigo para esses ambientes, todos reconheciam que, moralmente, nada havia a dizer… embora estivessem sempre a inventar nomes provocadores da minha consciência de ingénuo moralista. “Parasita das públicas meninas”, “chulo platónico”, “romântico das putas”, eram alguns desses nomes! E eu, após algum tempo de frequência normal, tinha adquirido um estatuto de privilegiado junto de algumas das meninas de diferentes casas que disputavam as minhas visitas, dispensando-me das retribuições financeiras correspondentes. Não pagava, nem cobrava, daí a tal afirmação pouco adequada de “chulo platónico”. A mistura de razões e sentimentos que me empurravam para essa facilidade relacional com as meninas dos bordéis de Catia, segundo vagamente recordo, tinha por fundamento razões ou pseudomotivações que, sem o parecer, eram extremamente objectivas… Seriam? 125 Camilo Mortágua Incipiente e ingénuo redentor do mundo, tinha que fazer alguma coisa para tirar as meninas daquele meio! Por isso, sem grande consciência das razões que lhes impunham aquela vida, dedicava-me a usar a atracção que elas pareciam sentir por mim para apelar “ao coração e à moral”, sem grande sucesso para elas, mas com resultados muito interessantes para mim. Ser o preferido de tais profissionais, para além da grande economia que isso significava, era motivo gerador de grande autoconfiança nas minhas capacidades de desempenho de género (naquele tempo esta coisa dos géneros não estava de moda). Dados os grandes potenciais físicos próprios da idade, e os inebriantes apelos dos prazeres novos, as energias foram sendo dirigidas preferencialmente para a actividade da mútua satisfação minha e das meninas, em prejuízo das responsabilidades e cuidados a ter com o negócio. Como o corpo, apesar de jovem, não era de ferro… sem descanso, a vida começou a mostrar as suas leis. Quando pelas manhãs, por vezes passadas as seis, me libertava para a actividade de ir repartir pão e leite, os olhos teimavam em permanecer fechados e a caixa do pão a carambolar repetidamente nos carros parados junto aos passeios das ruas e avenidas por onde tinha de passar. Durante esse período, tenho consciência de ter conduzido a Harley Davidson por muitas ruas e avenidas de Caracas, de olhos nem sempre abertos. Entre multas e indemnizações a alguns dos donos das viaturas abalroadas, ia-se muito mais do que o dinheiro que as meninas não me cobravam. A conjugação dum certo fastio sexual com os prejuízos decorrentes da falta de descanso, conseguiram que os três mais influentes personagens da minha consciência me impusessem o bom senso de mudar de vida. Para tentar recuperar a situação económica, troquei o trabalho dos bordéis, pelo trabalho como padeiro. Passei a trabalhar na padaria da meia-noite às cinco da manhã, a fabricar o pão. A essa hora carregava e ia para o meu reparto até às duas ou três da tarde. Depois de almoço, entre as cinco e as dez ou onze horas, dormia. 126 Andanças para a Liberdade Seguindo um princípio muito caro ao Batata (ensinamento do tio Salça: “temos que estar sempre dispostos a pagar o preço dos erros que cometemos”), este novo ritmo de trabalho deu os seus frutos e, em poucos meses, o barco reequilibrou! Mas, feita a experiência, havia que tomar providências para evitar recaídas. A padaria em questão, padaria Otava, ficava numa das principais avenidas de Catia, não muito longe das casas das meninas, e algumas não se privavam de ali procurar pelo seu “jovem português”. Era preciso sair de Catia… ir para outra padaria bem distante, lá para o centro de Caracas, o que encurtaria as distâncias a percorrer para dar a volta pelos fregueses e me colocaria ao abrigo de perseguições, agora indesejáveis. 42. Os polícias amigos Como os “repartidores motorizados” eram quase todos portugueses, e havia muitos, a polícia de trânsito tinha montado um esquema para arredondar os seus ordenados. Cada “repartidor” tinha um amigo na polícia de trânsito com quem ia ter cada vez que era multado, para que este lhe arranjasse maneira de anular a multa. O amigo anulava a multa mas, por sua vez, tinha de dar qualquer coisa ao agente que tinha passado a multa; ao polícia amigo, para se manter amigo, havia que “untar as mãos” para que da próxima vez ele não dissesse que não! Cada um dos “repartidores” era multado duas a três vezes por mês, e cada “polícia amigo” arranjava um certo número de agentes para multarem o seu “protegido” de forma a que este continuasse a necessitar continuamente dos seus serviços. As multas eram aplicadas “porque sim”, pneu muito cheio ou muito vazio, tubo de escape a deixar escapar, por não ter parado sem se saber por que o devia fazer, por não dizer bom dia senhor “jefe”… quem protestasse ou não recorresse ao amigo, ia preso, levado para uma cadeia que havia ali para os lados de San Martin, lá no alto dum cerro. Tinha que ficar de pé, em celas de chão de cimento. Cada vez que alguém era apanhado sentado no chão ou encostado à parede 127 Camilo Mortágua era metido debaixo de um duche de água fria. Ao fim do dia era solto. Hoje interrogo-me se essas detenções eram legais. Estes polícias amigos também serviam para “encontrar” as motos que frequentemente nos roubavam. Nas ruas, junto de padarias com vários repartidores, havia sempre estacionadas várias motos com as respectivas caixas; todos os dias roubavam motos de repartidores portugueses (também os havia italianos e espanhóis, embora muito menos); pedia-se ao polícia amigo para ver se descobria a moto roubada e passados dois ou três dias a moto aparecia mediante oferta para o agente que a tinha encontrado! Aproveitando o roubo da Harley Davidson mudei-me para uma padaria situada na Praça da Candelária, bem no centro de Caracas. Como aportava a clientela do meu “reparto”, creio que me ofereceram algumas facilidades para adquirir uma nova moto; se bem me lembro, uma AJS. Enquanto na padaria de Catia habitava nas próprias instalações da padaria, nuns quartos por cima da sala de fabrico, agora tinha voltado ao convívio dos emigrantes puros e duros do hotel Luso-Americano, ali para os lados de Tracabordo a… qualquer coisa de que já não me lembro. Continuava a trabalhar no fabrico durante a noite e a repartir durante o dia; tinha abandonado a clientela de Catia, salvo a da estrada velha, para evitar maus encontros. Claro que dormir de dia numa camarata dum hotel onde toda a gente trabalha de dia e descansa de noite, exigiu um período de difícil adaptação ao pessoal do hotel. Três anos após a chegada… riqueza nem vê-la, e projectos aliciantes e fiáveis para o futuro também não… aqui começa a impor-se-me a ideia de assumir ser “um emigrante falhado”! 43. De lambreta pela América do Sul Continuo padeiro… mas já sem “reparto”. Cheguei à conclusão de que pelo menos assim, como simples operário, sempre posso contar com o salário. A decisão de abandonar o negócio foi estimulada pelo 128 Andanças para a Liberdade roubo de outra moto, já lá vão três, e muitos mais dias à espera de recuperar outras tantas. Agora ando de lambreta… passeio por Caracas nas horas que posso…os conterrâneos já começam a abanar a cabeça cada vez que me vêem passar, como quem diz: “aquele está perdido, rapazes novos não têm juízo, perdem-se por cá, é o que é”. Lá para a sua maneira de pensar e ver as coisas, têm razão. Eu é que não vou por aí! Sou muito novo e o mundo é grande. Assim pensando… outro projecto nasce. Propor ao representante das motorizadas lambreta, na Venezuela, uma viagem de promoção da motorizada, de Caracas ao Rio de Janeiro, através da América do Sul. Para o efeito, convido mais dois compatriotas, colegas padeiros, para a grande viagem, cerca de vinte e dois mil quilómetros. A fábrica de Itália autoriza o representante local a apoiar a iniciativa e começam as negociações para definir condições e itinerários: Caracas, Maracay, Valência, Barquisimeto, Guanare, Mérida e S. Cristobal, na Venezuela; Cucuta, Bucaramanga, Bogotá, Arménia, Tulua, Cali, Popayan, Pasto, na Colômbia; Ibarra, Quito, Guayquil, Cajamarca, Arequipa, no Equador; Arica, Sta. Maria de Iquique, Santiago, Cristo de los Andes, no Chile; e daí, atravessando a cordilheira, até Bariloche, Buenos Aires, Montevideo, Rio Grande do Sul, S. Paulo e Rio de Janeiro. Tínhamos chegado a um acordo. As lambretas dos outros dois participantes seriam oferecidas pela fábrica, eu viajaria com a minha, que ainda estava pagando, sendo-me oferecido o restante. As despesas de viagem seriam integralmente suportadas pelo representante da marca em Caracas e, se chegássemos até 31 de Dezembro desse ano ao Rio de Janeiro, recebíamos um prémio de vinte mil dólares. À medida que se iam estudando as condições dos itinerários possíveis e se verificavam as dificuldades em encontrar alternativas para certos troços do trajecto mais aconselháveis (nessa época, a já famosa Pan-Americana só existia no papel), o entusiasmo dos patrícios esvaía-se. Pouco tempo antes da data escolhida para a partida, salvo erro 10 de Outubro, os companheiros desistiram! Durante algumas semanas o projecto esteve comprometido, mas, à última da hora encontrou-se uma solução híbrida, que viria a 129 Camilo Mortágua revelar-se fatal, comprometendo irremediavelmente a possibilidade de alcançar o objectivo traçado. A viagem seria feita por mim, mais um jovem venezuelano de dezanove anos, Felipe Muñoz Mendoza de seu nome, e um mecânico italiano a trabalhar para o representante nas oficinas da marca em Caracas, chamado Marcelo Tomaricchio A viagem foi adoptada oficialmente pelo Instituto Venezuelano da Juventude e dos Desportos, presidido pelo Almirante Wolfgang Larrazabal (que viria a ser mais tarde o Presidente da Junta de Governo na sequência do derrube do ditador Pérez Gimenez), como “embaixada de saudação da Juventude da Venezuela às Juventudes dos países visitados”. Foram-nos dadas credenciais e mensagens oficiais a entregar aos organismos desportivos nacionais dos outros países, o que significou sermos recebidos em festa e por grande número de jovens e autoridades oficiais em cada cidade e país por onde passámos. De Caracas a Barquicimeto, a viagem decorreu normalmente e a bom ritmo. As motorizadas eram de série, com 125 cc de cilindrada, sem nenhuma modificação especial, a não ser a instalação de uma pequena caixa onde transportávamos o essencial (alguns medicamentos e o saco-cama com um ligeiro impermeável), instalada no lugar reservado ao passageiro. Viajava-se, quando por bom piso plano, a velocidades entre os quarenta e os sessenta quilómetros hora. A caminho do pico Bolívar, com os seus 4980 metros de altura, e de Mérida, capital dos Andes Venezuelanos, por uma pista em muito mau estado, por vezes inexistente, chamada de “transandina”, as dificuldades e a verdadeira dimensão do arrojo da aventura começaram a evidenciar-se. Apesar de a viagem ter sido programada para a época seca, o mau estado do caminho só era comparável, em sentido inverso, ao deslumbramento da paisagem. Naquelas paragens tudo era diferente! A altitude, à medida que nos íamos aproximando dos páramos, fazia desaparecer a diversidade étnica da população venezuelana. Só autóctones, pessoas baixas e entroncadas de caras arredondadas e pele bem curtida pelo frio, envoltas nos seus ponchos de cores escuras, pés andarilhos e pernas ligeiramente abertas para melhor se equilibrarem pelos carreirinhos 130 Andanças para a Liberdade traçados por calcorreares antigos pelas encostas íngremes daquelas monumentais paisagens. Sem asas para nos guindarmos às alturas do “Condor”, tivemos que carregar com as lambretas às costas durante vários trechos do caminho, para atravessar leitos de riachos quase secos mas bem empedrados por enormes calhaus que dificultavam a passagem, mesmo às pessoas, quanto mais às motorizadas. A dois, eu e o venezuelano, lá carregávamos uma máquina de cada vez, enquanto o italiano fazia de conta que se ocupava da revisão... era o mecânico, que se podia fazer?! Aprendi, nesta minha primeira subida às alturas andinas, a ir abrindo o carburador das máquinas à medida que íamos subindo e o ar se tornava “mais pesado”, como por lá se dizia, não só para as máquinas mas também para as pessoas. O companheiro venezuelano, ao chegar ao cimo do Pico Bolívar, apesar de prevenido, pousou a máquina e pretendeu expandir a sua satisfação por ter conseguido chegar ao lugar mais alto do seu País, dando pulos e umas carreirinhas, até que tombou por terra desmaiado. Valeram-lhe os socorros prontos do posto de turismo ali existente, já habituados a terem à mão o oxigénio da praxe. A partir de então, adeus pretensões a cumprir médias e horários previamente traçados. Apesar de estarmos obrigados a prevenir os lugares por onde passaríamos no dia seguinte sobre a hora aproximada da nossa passagem ou chegada, a fim de poderem preparar a recepção, tivemos que renunciar a essa prática, restringindo-a praticamente às grandes cidades e apenas com duas a três horas de antecipação. Claro que o itinerário previamente traçado definia as etapas de cada dia e as cidades de pernoita, mas o estado concreto das estradas ou da falta delas é que, em última análise, impunha o ritmo e marcava o final de etapa. A pouco e pouco, apareceram outros condicionantes, como por exemplo, o facto do nosso mecânico não poder começar o dia antes de ir à missa e negar-se a continuar depois do pôr do Sol! Apesar dos atrasos causados pelas dificuldades naturais e pelo agravamento progressivo das relações com o italiano, chegámos até perto da fronteira equatoriana sem graves problemas. 131 Camilo Mortágua Entre a cidade de Popayan e Pasto, numa pequena povoação chamada El Bordo, numa região denominada Valle del Cauca, partiu-se a forquilha de direcção da moto do italiano. No local não havia condições de reparação; as alternativas eram: voltar atrás até à cidade de Cali (uns dois dias de caminho) para proceder à soldadura da peça partida, ou mandar vir de Bogotá ou de Caracas uma peça nova. Mais uma vez, o mecânico impôs a sua vontade. Negou-se a continuar com uma peça soldada e resolveu que tínhamos de esperar que Caracas enviasse a peça. E ali ficámos, em El Bordo, uma aldeia com uns cem habitantes, vivendo da “ganaderia”, grandes rebanhos de bovinos em regime extensivo, umas quantas casas alinhadas ao longo da estrada que atravessava a povoação, com um comércio reduzido a uma casa onde serviam comidas e excepcionalmente dispunham duns quartitos de chão térreo onde nos instalámos e a um comerciante distribuidor de bebidas. Foram três semanas de repouso, de aborrecimento, mas também de algumas experiências que ajudaram a passar o tempo. A família que nos acolhia era composta por um casal dos seus 40 anos e duas filhas entre os 14 e os 16. Eu e o Felipe (assim se chamava o companheiro venezuelano) entretínhamo-nos e éramos entretidos pelas filhas que, como manda a tradição e os costumes locais, apesar da tenra idade, já desfrutavam de actividade hormonal intensa. Elas ensinavam-nos a montar “em pelo” e a cair dos cavalos; nós, ensinávamos as jovens amazonas a fazer acrobacias com as lambretas, os nossos cavalos. Como o que tem que ser tem muita força, logo ali se iniciaram dois pueris e só platónicos namoros; só platónicos porque, de contrário, entre a fúria dos pais e dos vaqueiros locais ou a prisão à vida naquele vale perdido, as alternativas não eram nenhumas. As moças bem se esforçaram. Avisando-nos discretamente quando iam tomar banho nuinhas debaixo das luxuriantes cascatas naturais existentes nas redondezas, enfiando-se entre os nossos lençóis mal os pais se deitavam… mas aí… valeram-me os abanões de consciência e a firme vigilância dos meus interiores e íntimos acompanhantes do “C.A.A.C”, sempre presentes em momentos de opções cognitivas: Zé 132 Andanças para a Liberdade Ninguém, Batata e Come e Cala, embora entre eles existissem nuances de atitude e de argumentação. O Come e Cala era menos firme na resistência à tentação que os outros dois. Para nossa surpresa, o italiano começou a não vir dormir no quarto que lhe estava reservado! Perante as nossas interrogações, foram as nossas entusiásticas namoradeiras que nos esclareceram… o italiano ia ficar a casa do distribuidor de bebidas que era homossexual. Como o mundo é verdadeiramente diverso e pequeno! Durante a estadia fomos convidados de honra para um gigantesco churrasco ao ar livre, numa das propriedades da vizinhança. Dois novilhos inteiros rodando em imensos espetos por cima de enormes braseiros aos quais cada convidado ia cortando o seu pedaço com o facalhão que nos era entregue à chegada; uns merengues bem tocados pelos músicos locais, vários bidões de duzentos litros cheios de caldo de cana fermentado, um terreiro limpo de ervas e humedecido para não levantar poeira com o rodopio dos dançarinos, e, normalmente… por quarenta e oito horas contínuas, estava armada a rija festança. Bem rija por sinal. Rija, mas surpreendentemente ordeira. Com tanto facalhão e suminho de cana, os comportamentos eram bem descontraídos, mas ninguém cortou carne sem ser dos sacrificados novilhos! Menos rijos fomos nós. Jovens turistas metidos a homens de barba rija, inexperientes dos efeitos combinados do calor com o caldinho de cana, íamos morrendo! Ao começo da primeira noite, as minhas tripas começaram a revoltar-se, a terra acelerou o seu movimento de rotação, o meu “C.A.A.C.” deixou de se manifestar, senti-me a subir e descer ao sabor de gigantescas ondas e tive que “lançar carga ao mar”, toda a carga que ali tinha engolido e mais toda a outra que porventura restava dos dias e semanas anteriores. Não tenho a certeza, mas acreditei ter ficado limpo de todas as impurezas até aí acumuladas. Durante vários dias a alimentar-me exclusivamente com um chá de ervinhas preparado pelas jovens filhas dos donos do nosso albergue, cheguei a temer pela existência dos meus personagens íntimos; foi melhor assim, pelo menos livrei-me das suas intermináveis reprimendas! 133 Camilo Mortágua Quando finalmente a nova peça chegou, após longas e sentidas despedidas, fizemo-nos de novo à estrada. Do Vale del Cauca até à fronteira equatoriana, retomam-se alturas andinas. Em poucas horas tão depressa estamos abaixo do nível do mar como a dois ou três mil metros de altitude. A estrada, qual monstruosa serpente, vai-se colando às montanhas, desafiando os abismos sobre os quais se mantém em equilíbrio. As curvas e contracurvas dadas por entre as nuvens, constituem panoramas propícios à realização da acção intimamente pensada mas ainda não definitivamente decidida. Durante a nossa estadia em El Bordo, eu e o Felipe tivemos ocasião de trocar impressões sobre o comportamento do Marcelo, o mecânico italiano, terceiro elemento do grupo. Segundo o Felipe, por conversas escutadas antes da nossa partida de Caracas (coisa que eu desconhecia), o italiano tinha acordado com o seu patrão, o representante na Venezuela da firma italiana Inocenti, fabricante da Lambreta, participar da nossa viagem mediante o pagamento de um subsídio de deslocação acrescentado ao ordenado que recebia como mecânico da oficina em Caracas. Este facto ajudava a compreender o seu comportamento de constante bloqueio ao ritmo de avanço da nossa viagem… o homem queria que a viagem durasse o mais possível por interesse próprio, e até, talvez, em cumplicidade com o patrão, impedir que chegássemos ao Rio dentro do prazo combinado para não ter que pagar o prémio de 20.000 dólares. Por outro lado, tinha sido a ele que a empresa entregara o dinheiro para fazer face às despesas de viagem e, se a viagem durasse muito mais tempo do que o previsto, os custos tornar-se-iam incomportáveis… Assim, tínhamos concluído que, de uma forma ou de outra, o êxito da viagem estava comprometido… e era necessário pensar numa solução. Ao rolar pelas altas paragens e os desfiladeiros profundos e desertos dos páramos andinos, vieram-nos à mente as mesmas ideias, por subentendidos recíprocos, mas apenas explicitadas entre nós os dois, poucos quilómetros antes da fronteira. “Havia que dar um empurrão ao obstáculo”, fazer com que o Marcelo voasse através das nuvens cavalgando a sua lambreta alada. 134 Andanças para a Liberdade A passagem da fronteira da Colômbia para o Equador era uma zona bem propícia: durante uns oito a doze quilómetros a estrada era tão estreita, escorregadia e perigosa, que todos os veículos (automóveis e camiões) eram obrigados a entregar o volante a condutores locais, os chamados condutores da variante de Guananbú. Esteve para acontecer…. mas, no meu caso, por interferência peremptória do Zé Ninguém, com o apoio dos outros membros do meu “Colectivo de Auto-Análise Comportamental – C.A.A.C.”, nada aconteceu, e chegámos os três sãos e salvos à Capital dos Índios Otavalos, a muito bonita e branca cidade equatoriana de Ibarra. Tão tacitamente como em relação à decisão inicial, fomos aceitando a ideia cada vez mais evidente de que o objectivo não seria atingido, porque tal fim não podia justificar os meios extremos. A viagem continuou, até que em princípios de Dezembro o italiano nos anunciou que o dinheiro estava a acabar e que tinha de pedir reforço a Caracas. Como sempre duvidámos que, chegado esse momento, a nossa viagem pudesse continuar, com alguma expectativa, mas sem grandes esperanças, começámos a analisar os cenários da pós-interrupção. Estávamos aproximando-nos da capital do Peru. Tínhamos percorrido sensivelmente metade da distância, a metade mais difícil. O que nos restava, à excepção da ligação litorânea inexistente entre o Uruguai e o Brasil, e a travessia do Chile para a Argentina pelos cumes andinos “Del Cristo de los Andes”, não parecia oferecer grandes dificuldades… mas de dificuldades não esperadas estávamos nós bem servidos e avisados! Ao chegar a Lima, após os festejos da grande recepção oficial que nos foi oferecida com grande cobertura mediática, tudo ficou resolvido… não como queria o patrão da lambreta em Caracas, também não inteiramente como gostaríamos que fosse. Tal como prevíramos, era na capital do Peru que deixaríamos de “navegar”; ali, à semelhança de Pizarro, “queimámos as nossas naus”, ficámos sem naus (motorizadas) e, deitando pernas aos caminhos, cada um seguiu o seu destino. A ordem que nos tinha sido mostrada vinda de Caracas era a de entregar os veículos do venezuelano e do italiano aos representantes da lambreta em Lima (a minha era propriedade própria) e abandonar-nos à nossa sorte. 135 Camilo Mortágua Conhecida a decisão, mandei imediatamente um telegrama ao Almirante Larrazábal, Presidente do Instituto Venezuelano de Desportos, a quem tínhamos informado regularmente das peripécias da viagem, informando-o do facto de nos encontrarmos em Lima sem meios de sobrevivência nem recursos para voltar a Caracas. No dia seguinte, recebemos por telegrama a cópia da ordem enviada ao representante da lambreta em Caracas, dando-lhe vinte e quatro horas para nos enviar o dinheiro necessário para pagar a nossa estadia em Lima e para o bilhete de avião de retorno a Caracas, sob pena de os mandar prender imediatamente e proibir a representação da lambreta na Venezuela. Por uma vez, o poder instituído funcionava a nosso favor. Informado da situação, o italiano diminuiu a arrogância e disse-nos que no dia seguinte nos entregaria o dinheiro para podermos voltar. Não quisemos saber das suas intenções. Felizmente já não nos diziam respeito e, de certa maneira, estávamos aliviados por nos vermos livres de tal personagem e da tentação recorrente de o perder pelo caminho. 44. À boleia pela América do Sul Ouvi dizer que o italiano tinha convencido o patrão a seguir viagem e que teria chegado ao Rio de Janeiro em Março do ano seguinte. O companheiro venezuelano regressou a Caracas de avião. Eu, depois de vender a minha lambreta, decidi regressar à Venezuela… mas à boleia. Durante a preparação da viagem tinha aproveitado para me informar o mais possível sobre os países que iríamos atravessar. Embora nessa altura o assunto não fizesse parte das minhas preocupações, sabia que na maioria dos países da América do Sul dessa época, existiam regimes ditatoriais governados por militares: Pérez Gimenez na Venezuela; Rojas Pinilha na Colômbia; Velasco Ibarra no Equador; o general Odria no Peru; o general Aramburu na Argentina e ainda outro general no Chile, o general Ibañez, embora este à frente de um governo de cariz democrático. No Brasil, o suicídio de Getúlio Vargas tinha guindado ao poder Café Filho. 136 Andanças para a Liberdade Tinha-me interessado pela história e pelos locais de maior nomeada e relevância cultural, em particular por tudo que dissesse respeito aos Incas e sua civilização. Desta vez com o acordo unânime dos membros do meu C.A.A.C. decidi que não havia pressa em retornar a Caracas e que a oportunidade de ir ver, pelo menos uma boa parte daquilo que os livros me tinham descrito, não podia ser perdida. À boleia umas vezes, outras dando gorjetas aos condutores daqueles camiões típicos da região, mistos de carga e passageiros em caixa aberta, onde as pessoas disputam aos animais o seu espaço, lá me meti a caminho. Quis começar por subir aos 3400 metros de Cuzco, no vale sagrado dos Incas, para conhecer, nessa altura ainda identificáveis, as monumentais paredes do antigo palácio dos Incas e os vestígios do templo do Sol. Cuzco, que no meu imaginário representava qualquer coisa de inacessível, fora do nosso tempo, onde só chegaria quem fosse reconhecido e revelado como descendente de Manco Kapac (segundo a lenda, fundador desta cidade e talvez pai de Tupac Amaru, cuja gesta e coragem veio a dar nome à guerrilha uruguaia dos Tupamarus), constituía para mim um lugar mágico. Poder ir a Cuzco para de seguida alcançar o mítico Machu Pichu (ou Maxu Pixu) era, por si só, razão suficiente para ignorar todos os percalços expectáveis de um retorno a Caracas, à boleia, numa época em que a mobilidade, por aquelas paragens, era mais que reduzida e os transportes públicos andavam intemporalmente ao azar dos afluxos ocasionais de passageiros. Maxu Pixu é um lugar por onde não se pode simplesmente passar… assim o senti! Ali, mais do que em qualquer outro lugar por mim percorrido, senti a necessidade de me deitar sobre as pedras e, naquele silêncio cósmico, em sonhos reencontrar os principais protagonistas da heróica resistência aos predadores de uma civilização que muito nos poderia ter ensinado a melhor viver em comunhão com a Natureza. Satisfeito o meu principal desejo de conhecimento históricoturístico da região, tracei a rota rumo a norte e encaminhei-me para a incerta mas única via susceptível de me proporcionar a ambicionada boleia, a pouco consequente e fiável estrada Pan-Americana. 137 Camilo Mortágua A minha intenção era, sem grandes desvios, retornar a certos lugares por onde tinha passado e onde pensava poder receber algum apoio para descansar do saco cama ao relento e da papaia como base alimentar. Apesar da grande austeridade, o mealheiro esvaziava-se e uma certa angústia de ficar sem recursos para obviar aos imprevistos começava a minar a minha autoconfiança. Claro está que, nesta situação, os três íntimos confidentes do meu C.A.A.C. não eram de grande ajuda. Sobretudo o Come e Cala e o Batata, personagens provincianos e pouco habituados a mergulhar no desconhecido. Mais ou menos uns oito a dez dias depois de sair de Lima, consegui chegar a um dos tais sítios a que queria voltar… a cidade equatoriana de Ibarra, a tal cidade branca junto da fronteira com a Colômbia, para mim capital dos Otavalos. Os Otavalos tinham-me deixado uma grande impressão positiva e ao mesmo tempo um enorme interesse em aprofundar a compreensão dos modos de vida e de organização social deste povo de exímios artesãos e artistas. Afáveis em extremo, de todos e em todas as circunstâncias recebendo sempre um sorriso acompanhado de um muito atencioso – “Buenos dias senhorito” – despertaram a minha atenção por só ver mulheres a cuidar dos campos. Pelas ruas da cidade e das aldeias, passávamos por homens carregados de peças de vestuário de cores vivas e outros artigos de tecelagem artesanal, com as crianças nos braços ou às cavalitas, num afã permanente de comerciar os seus produtos. Depois de ser convidado a entrar em algumas casas destas pessoas, fiquei a saber que, entre eles, aos homens competiam a produção artesanal e a educação e cuidados com os filhos, e às mulheres os trabalhos do campo, dos quais repousavam durante os períodos da “impureza”. Os homens eram os “comerciantes” que aportavam os rendimentos monetários à família, as mulheres sustentavam a casa aportando a base essencial da alimentação, tanto para as pessoas como para os animais de pequeno porte que entravam na cadeia alimentar, embora muito espaçadamente. A alimentação era muito à base de 138 Andanças para a Liberdade produtos vegetais de produção local, com grande predominância da batata e do milho. Não fora pelos condicionalismos financeiros, bem que teria gostado de permanecer mais tempo entre os Otavalos, gente simples, alegre, acolhedora e de aspecto feliz! A partir de Ibarra, punha-se de novo um problema já resolvido na fronteira entre o Peru e o Equador. Através duma gorjeta ao condutor de um camião carregado de materiais de construção, este acedeu a arranjar-me um espaço entre tijolos. Era preciso um visto para que um cidadão português entrasse na Colômbia, visto impossível de conseguir sem grandes demoras e diligências na capital, coisa incomportável para o meu orçamento. Como a necessidade aguça o engenho, por indicação de um dos amigos que me tinha recebido em casa, fui apresentado a um senhor que contrabandeava porcos para a Colômbia. Ao fim de algumas hesitações e de se certificar que eu podia caminhar com ligeireza durante pelo menos quatro horas, concordou em deixar-me acompanhá-lo a ele e aos seus porcos. Pelo que depois me contou, só comprava porcos que lhe dessem as mesmas garantias de resistência e ligeireza no caminhar que eu lhe tinha dado. Só porcos de perna alta e não muito gordos. De camião aproximámo-nos da fronteira e, para meu espanto, os porcos foram descarregados, e com a ajuda de dois cães e dois homens encaminhados para um carreiro que, através de arrepiantes desfiladeiros, nos levou em pouco mais de três horas a um outro camião que nos transportou a todos até Pasto. Uf! Mais um obstáculo vencido! Estava na Colômbia, mas ainda tinha outra fronteira para atravessar. 45. Fugindo ao “amor” Na Colômbia daquela altura ainda se podia viajar em relativa segurança. Falar de segurança na Colômbia não significa a mesma coisa que em relação à maioria dos países do mundo. Na realidade, nesta parte do continente sul-americano, antes e depois da sua formação como país independente, nunca, em momento algum, se viveu com- 139 Camilo Mortágua pletamente em paz. Desde que o espanhol Alonso de Ojeda a “encontrou”, decorria o ano de 1499 (um ano depois da viagem de Vasco da Gama à Índia), as lutas pela independência, as guerras civis e as guerrilhas mais ou menos permanentes, têm dilacerado este grande país, impedindo-o de ocupar uma posição cimeira no contexto da América Latina. País de relevo singular, de ricas planícies (lhanos) contrastando com alguns dos mais altos glaciares das cordilheiras andinas, próximos dos 6000 metros de altitude, com as suas três cordilheiras a formarem uma espécie de coluna vertebral de norte a sul do País, separadas por importantes rios como o Madalena e o Cauca a correrem para o Pacífico, e alimentando muitos outros que, por sua vez, vão engrossar os grandes Orinoco e Amazonas a desaguar no Atlântico, a Colômbia encerra dentro de si uma síntese bem completa da paisagem física e cultural sul-americana. Dada a sua rica diversidade climatérica e geológica, ao longo do seu território, praticamente, do café à banana, tudo se pode produzir… como é notório, mesmo as mais nocivas e rentáveis ervas da actualidade! Desde os anos 48 que se vivia o chamado período da “La Violência”, mas nessa altura ainda de dimensão incomparavelmente menor do que aquela que viria a ganhar dos anos 60 e 70 até aos nossos dias. Na memória ficou o registo. Nesse fim de ano de 1954 percorri a Colômbia sem grandes medos. À ida, para fazer a estrada entre Bogotá e Cali, lembro-me de nos terem aconselhado a não viajar de noite e de, sempre que possível, procurar acompanhar os camiões que costumavam agrupar-se para percorrer determinados troços sujeitos a assaltos de vulgares ladrões de estrada, principalmente na região de Ibagué. Sempre acreditámos, talvez ingenuamente, que a nossa própria condição de “pobres viajantes despidos de coisa que valesse a pena” funcionava a favor da nossa segurança. Como nada nos aconteceu, podemos deduzir que talvez tivéssemos razão. De regresso a Pasto, cidade colombiana junto à fronteira com o Equador, deixada para trás a companhia dos suínos equatorianos, procurei regressar a El Bordo o mais rapidamente que a sorte da oferta de uma boleia o permitisse. 140 Andanças para a Liberdade Estávamos em princípios de Dezembro, numa região equatorial, no planalto del Cauca, na confluência das cordilheiras Ocidental, Central e Oriental, entre os 1500 e os 3000 metros de altitude. Comigo guardava com todo o cuidado, como coisa imprescindível à sobrevivência, o meu saco de dormir. Um saco especial, bem almofadado a penas, com capucho e fecho de correr, hermeticamente fechado a correntes de ar e bichos, impermeável e muito levezinho, enrolado e metido numa improvisada mochila onde de vez em quando guardava a “bucha” de reserva. Chapéu de vaqueiro atado ao pescoço, um camisolão de lã branca de feitura artesanal que me tinha sido oferecido pelos meus hospedeiros Otavalos, calçado de botas grossas que tinham resistido às andanças, três t-shirts de algodão para os dias quentes, de cores indefinidas devido às lavagens de ocasião, alguns dólares ao fundo da biqueira da bota esquerda em contacto com o dedo grande a servir de sensor, diversos bilhetes em sucres e pesos (moedas dos países visitados) espalhados e repartidos por todos os bolsos e cavidades susceptíveis de os dissimular, e, segundo a contribuição que a memória dá, era este o meu equipamento durante a viagem de regresso. Interiormente, o desassossego era permanente. À minha firme decisão de aproveitar todas as oportunidades de avançar para o desconhecido, de ver o que ainda não tinha visto, de desafiar o que me aconselhava o meu “Colectivo de Auto-Análise Comportamental”, condenando com insistência as minhas entregas aos devaneios do acaso e à doida confiança na sorte... dos três, o Zé Ninguém era o menos crítico. Não ousando contrariar a opinião dos outros dois, esforçava-se por lhes relativizar as exigências de voltar rapidamente para a vida normal, procurar trabalho e arranjar sítio onde viver sem “aventuras”. Contrapunha, argumentando pacientemente com os outros dois: “Que não fossem chatos, que havia muito tempo para voltar à monotonia dos dias iguais, que era o tempo certo para praticar a vida, para ganhar as referências necessárias à alimentação da capacidade de imaginar vida melhor, quando ela se tornasse difícil, monótona e desinteressante. Que a aventura, por muito que pareça irresponsável, faz parte do amor à Liberdade!” (por vezes o Zé Ninguém revelava-se filósofo). 141 Camilo Mortágua Ao chegar a El Bordo, ao albergue onde tínhamos estacionado durante as três fatídicas semanas de espera pela reposição da peça partida, prenúncio do insucesso da nossa viagem, a recepção foi calorosa. Tanto a Márcia como os pais pareceram-me muito satisfeitos e contentes por me verem de volta… bem desiludidos quando lhes disse que não poderia ficar mais de dois ou três dias! Durante esse período, repetiram-se os convites para que ficasse mais algum tempo… nunca me falaram em ficar definitivamente… mas percebia-se que esperavam que o tempo ajudasse a acontecer o que eles mais queriam… arranjar um marido para a filha e um homem para tratar do gado! Sob pressão, apressei a partida. Como a hora mais provável de conseguir apanhar uma boleia era ao romper do dia, com a passagem dos primeiros camiões que atravessavam a fronteira a caminho de Cali, levantei-me cedo, deixei um bilhetinho de despedida e… ala para a estrada. A sorte sorriu-me e na tarde desse dia cheguei a Cali a bordo de um camião carregado de novilhos que de vez em quando o faziam baloiçar tanto ou mais que as covas da estrada. O condutor, homem dos seus cinquenta e muitos, contou-me a sua vida e quis saber da minha, acabando por me pedir que lhe arranjasse maneira de ir para a Venezuela porque tinha “arranjado várias famílias” que lhe extorquiam tudo quanto ganhava, matava-se a trabalhar e não conseguia nem vestir-se convenientemente. Já não me lembro, mas acho que lhe dei vagas esperanças; talvez por isso me tenha convidado para almoçar, enquanto esperava, à porta do matadouro de Cali, pela sua vez para descarregar o gado. Tinha planeado que, pelo menos nas duas ou três principais cidades do meu percurso de regresso, havia de me dar ao luxo de dormir em verdadeira cama, tomar um prolongado banho de imersão em água quente com toalhas limpas e tudo. Em Cali, onde à ida tínhamos ficado instalados num luxuoso hotel por conta das autoridades locais, aí tínhamos feito alguns conhecimentos com os trabalhadores dos vários sectores, mas especialmente com o pessoal que acompanhava os hóspedes dos quartos até à piscina situada no terraço, para lhes transportar as toalhas e os ajudar com os roupões, um para a ida, outro para o retorno. Entre esses acompanhantes, tinha feito uma boa amizade com o Renato, um jovem dos seus dezassete anos, natural de Popayan, que 142 Andanças para a Liberdade me contou que estava ali a trabalhar até ao Natal para arranjar dinheiro para a viagem até Bogotá, onde iria frequentar o Conservatório, porque queria ser músico. Foi através dele que conheci razoavelmente a cidade e os arredores e até a história da Igreja de Fátima de Popayan, onde, se não estou em erro, era aguardada, por esses dias, a visita da Virgem em peregrinação pela Colômbia. Ele adorava andar de lambreta. Demos excelentes passeios, sobretudo quando os seus turnos de trabalho lhe deixavam as manhãs livres. Alegre e nada tímido, tinha momentos de grande exaltação a lamentar os males do seu país e do que era preciso que a juventude fizesse para acabar com a espiral de violência que estava empurrando para a morte ou para o estrangeiro a maior parte da juventude colombiana. Sensível e sagaz observador da sociedade em que estava inserido, filho de pequenos comerciantes, os pais tinham um pequeno restaurante (junto à estação rodoviária) que assegurava o sustento e os gastos da família (ele mais quatro irmãos mais jovens, três rapazes e uma rapariga), excelente conversador e bom conhecedor do seu meio para a idade, tinha-me deixado vivas recordações. Procurei-o. Depois de lhe responder muito sinteticamente às muitas perguntas provocadas pela momentânea excitação e surpresa pela minha inesperada presença, fez questão de irmos até ao estabelecimento dos pais, beber um “tintico” e provar uma parrilhada especial. Conversa puxa conversa, onde ia dormir, quantos dias ficava… se era só por um dia… então tinha que ir ter com ele ao hotel, às dez e meia da noite, que ele instalava-me num quarto sem pagar nada… tinha um cliente amigo dele que tinha ido a Bogotá e só voltava daí a dois dias, o quarto estava pago e tinha sido feito de novo, a rapariga que fazia esse quarto era amiga dele e por isso não havia problema nenhum, com todo o gosto, que não me preocupasse que ele trataria de tudo sem problemas. Sem diminuição das minhas escassas reservas financeiras, fiquei super bem instalado nessa noite de Cali… “cereja em cima do bolo”. Acompanhado pelo Renato ainda fiquei admirando a cidade, lá de cima, daquele décimo andar onde estava instalada a piscina até à hora de fecho, lá pela uma da manhã. 143 Camilo Mortágua Aí mesmo me despedi do amigo, dado que tinha programado voltar à estrada logo de manhã e ele só viria trabalhar ao fim do dia. Ainda nos correspondemos durante algum tempo. Depois, sem que me lembre porquê, o rasto do Renato apagou-se, sem nunca ter chegado a saber se conseguiu ou não ser músico. 46. Escapando ao “diabo” De manhã, embora o principesco leito fosse muito convidativo, decidi ir à vida ao bater das oito, por precaução para não criar um eventual problema ao Renato e porque queria tentar chegar cedo ao meu próximo destino. Quando à ida fizemos um ligeiro desvio do percurso mais directo para, a convite das autoridades locais, visitar a cidade de Ibagué, ao passear pelo seu esplêndido mercado, já equipados para seguir viagem, como vinha sendo hábito, fomos cercados por um alegre grupo de jovens a solicitar que lhes oferecêssemos uns postais que levávamos com as nossas fotografias e a propaganda da lambreta e do Raid. Entre os muitos pedidos de autógrafos, um reteve a minha atenção. Uma jovem morena, de rosto oval, grandes olhos negros e cabelos castanhos até aos ombros, vestida com um poncho azul, blusa branca com flores azuis, saia escura comprida com duas linhas verticais amarelas de cada lado, veio até mim. Sorrindo e com ar desafiador estendeu-me um postal com uma fotografia dela e foi dizendo: “este és para ti, aí tienes mi direccion, aguardo que vengas firmar el tuyo”. Sem saber que fazer… ou dizer, olhei-a nos olhos e dei por mim a murmurar, com ar de quem está prestes a adormecer… onde? – “A la Hacienda…” – deu meia volta, acompanhada de dois “índios” de meia idade, largos de costas e pernas curtas bem abertas sobre pés descalços bem curtidos, grandes “sombreros” em pele de qualquer coisa e largos e afiados “machetes” presos à cinta por uma faixa de grosso tecido de cor de terra enlameada. Como bem podem supor, a imagem ficou-me bem gravada. Apesar de todas as peripécias da viagem, sempre me tinha intrigado aquele insólito e algo misterioso convite. 144 Andanças para a Liberdade Sabia apenas, pela fotografia que me tinha sido entregue, que a atrevida se chamava Mónica e que morava na “Hacienda de las Fuentes”, a uns escassos oito quilómetros da cidade de Ibagué. De Cali a Ibagué, para norte, encontram-se boleias facilmente, mas pelo litoral, pela dita Pan-Americana com destino a Panamá, Cartagena, Barranquilha, Santa Marta, etc. Mas, a partir do cruzamento para Arménia, Ibagué e Bogotá por Girardot, o trânsito era muito escasso. Para além do inconveniente da escassez de trânsito, essa era a zona central do “banditismo” então existente. Não consegui, nesse dia, chegar a Ibaqué onde tencionava desvendar o mistério da oferta da Mónica. Por precaução, estendi o meu “saco a penas” à entrada da cidade de Arménia, junto a uma estação de serviço, uma “gasolinera”, onde um camião carregado de café me tinha deixado. Embora, à sorte, tivesse perguntado pela tal “Hacienda de las Fuentes”, tal não era do conhecimento do meu condutor, nem do seu acompanhante… naturais de Bogotá, para onde se dirigiam depois de ter descarregado em Cali uma carrada de farinha. Esperei todo o dia por um transporte para Ibagué, mas a estrada estava deserta! Ao fim da tarde, já disposto a recorrer às reservas financeiras, procurei pela possibilidade de um transporte público… não havia, a menos que chamasse um táxi e encontrasse mais passageiros com quem repartir a exigência astronómica do taxista para se aventurar ao cair da noite pela estrada. Ainda na véspera, segundo anunciava o Jornal Regional, tinham assaltado um carro e roubado até os pneus! Não houve hipótese… estendi de novo o “saco a penas” e, com idas e vindas entre sonhos e realidade, ao ritmo do barulho da passagem de motos e motorizadas de todos os tipos, únicos veículos que justificavam afinal a presença da “gazolinera” naquele local, lá consegui chamar a mim o sono que enxota os medos. Quando abri os olhos, já o Sol desvendava os mistérios da noite, mas ainda era hora de “gatos pardos”. Amanhecia… o dono da “gazolinera” estava em viva conversação com o condutor de uma carrinha de caixa aberta carregada de gaiolas com galinhas, quando se deu conta que me estava mexendo. Veio até mim e com ar de quem tinha ganho a lotaria, disse-me: 145 Camilo Mortágua ― Caracas, se queres ir para Ibagué o melhor é aproveitar agora. Já falei com o Rojas das Plumas e ele está disposto a levar-te se o ajudares a descarregar e a vender as galinhas lá no mercado, pelo menos até ao meio dia. É p’ra já. ― Buenos dias Rojas… tienes ayudante ― disse eu. ― Puedes subir ― disse o Rojas. Vim a saber que lhe chamavam Rojas mas que o seu verdadeiro nome era Reinaldo. Rojas das Plumas. Rojas, pelas bochechas bem coradas pelos frios ventos das madrugadas a caminho do mercado e os litritos de rum com que tapava as veias do medo; das plumas, por negociar com “plumas” (penas). Antes das nove dessa manhã, já estávamos a montar o negócio no mercado de Ibagué, debaixo de um toldo da ala central, situado quase à entrada, por onde passava a grande maioria do público. Enquanto empilhava as gaiolas, ia pensando baixinho para não acordar os meus outros eus do “Colectivo de Auto-Análise Comportamental”… quem sabe se a tal Mónica não vem ao mercado e me convida a passar uns dias lá na tal “Hacienda”!... Quem sabe se ainda não me torno “fazendeiro”?! Ao meio-dia, já com o mercado em declínio… disse adeus ao Reinaldo que me quis obsequiar com um vistoso galináceo de penas douradas. ― Não… muito obrigado, ó Reinaldo… fica bem, homem, eu é que agradeço, para que quero eu uma galinha? ― Sim… sim… vais acolá àquela tenda e ofereces-lhes a galinha, que eles dão-te de comer hoje e amanhã. ― Ah, bom… nesse caso, muito obrigado! Assim foi. Nesse dia, almocei bem e deixei um crédito aberto para quando precisasse. Um bom cozido de frango com maçarocas de milho e mandioca, bem enriquecido com xuxu e beringela. A digestão apresentava-se difícil, mas o tempo não permitia descansos. Era preciso começar a procurar a “Hacienda de las Fuentes”. Logo ali, mesmo junto ao mercado, disse cá para mim… por onde vais começar? A resposta veio pronta, como sempre, pelos taxistas! 146 Andanças para a Liberdade Abeirei-me do primeiro taxista, estacionado bem em frente da porta de entrada do mercado, e perguntei-lhe se sabia onde ficava a “Hacienda de las Fuentes”… olhou-me com um ar de quem estava à procura da resposta e, após alguns segundos, com um meio sorriso muito serviçal lá foi dizendo: ― No estoy viendo, vea usted, por esse nombre non conosco non senhor ― agradeci e fui à procura de outro taxista que, comportandose de igual maneira, me deixou na mesma! Ali havia “gato”… intrigado resolvi voltar atrás e informar-me junto da dona da tenda onde tinha almoçado. Ao repetir a pergunta, a mulher ficou muito nervosa e pediu-me para a seguir até às traseiras da tenda. Aí, começou: ― Ai señor, no debe hablar asi esos nombres, tenga mucho cuidado, los hombres de D. António estan en todas partes! És muy peligroso! Espantado, lá consegui que a apavorada mulher me escutasse: ― Pero señora, que se passa? ― No lo sabe usted!? porquê pergunta usted por essa gente? ― Somente porque la niña Mónica hace unas semanas me invito a ir visitá-la. ― Vaya-se señor! olvide esa niña del diablo! y vaya-se pronto antes que los hombres de D. Antonio lo encuentren. D. Antonio anda como loco después que su hija desapareció… con esos hombres que andan escapados por ahí matando a la gente y asaltando las haciendas… juró matar a todos los que tengan algo a ver con su desaparecimiento. ― Pero señora, eu não sei de nada, contei-lhe como tinha conhecido a Mónica e como estava apenas de passagem e pensei corresponder ao seu convite. ― Non aja caso señor… esa niña es loca, nunca se sabe con quienes andará, ni que cosas andará haciendo, poco tiempo después de morir su madre se escapo de casa y anda por ahí diciendo que quiere matar a su Padre que es el hombre más rico de Ibagué! Nadie sabe que aconteció en la Hacienda, pero debe haber ocurrido cosa mala. Allí anda el diablo! Lembrei-me dos acompanhantes da Mónica naquele dia em que a conheci e dos “machetes” bem afiados à cinta… não havia tempo a perder! Junto ao mercado estavam paradas umas carrinhas de nove lugares que faziam de transporte “por-puesto” para Bogotá. Estavam ali estacionadas à espera de terem todos os lugares ocupados. Dirigi-me ao condutor de uma delas e perguntei a que horas parte. 147 Camilo Mortágua ― Quando estiver completo, respondeu-me o condutor. ― Quantos faltam? ― Cinco, senhor. ― Quanto custa a passagem? ― Ochenta pesos… ― Aqui tem… quatrocentos pesos e vamos embora já. Adeus Mónica, adeus “Hacienda de las Fuentes”, adeus rico fazendeiro e filha única. Na madrugada do dia seguinte, iniciava em Bogotá a última etapa do meu percurso de volta a Caracas, a bordo de uma das carrinhas chamadas de transandinas que faziam habitualmente o percurso Bogotá-Caracas, ou vice-versa, em vinte e duas a vinte e quatro horas. Tinham-me prevenido para não tomar esse meio de transporte porque os condutores eram loucos, voavam pelas estreitas estradas de terra dos cumes andinos a velocidades de causar pavor. Tinham-me aconselhado que, se não encontrasse outro meio, para não morrer do susto, arranjasse uma manta para pôr pela cabeça para não ver a estrada nem os precipícios que a bordejam, e confiasse em Deus. Soube bem poder comprar o bilhete para ir até Caracas, embora tivesse esgotado o mealheiro ao comprar umas bananas para a viagem. Isto sem contar com o necessário para pagar o hotel em Caracas durante umas três semanas, que era o tempo que eu previa demorar até encontrar trabalho. Para acautelar essa incerteza, ao pararmos em Bucaramanga, numa tenda que deveria fazer função de estação de assistência a estes micro-buses da viação transandina, abeirou-se de mim um fulano a perguntar se não tinha um passaporte que lhe vendesse, porque… (contou-me uma história longa e mal contada de que já não me lembro) ofereceu cem dólares… como os meus outros eus estavam completamente atordoados pela trepidação e balanceio do caminho, pensei rapidamente para comigo, “não penses duas vezes, para entrar na Venezuela não precisas de passaporte já que tens os documentos de residente, os cem dólares dão jeito”. Vendi o passaporte, disse cá para mim que possivelmente tinha ajudado a resolver uma situação embaraçosa para a pessoa que o comprou e isso permitia-me chegar a Caracas com mais à vontade. 148 Andanças para a Liberdade Saí da Colômbia, graças à sorte dos “inocentes”, por onde tínhamos entrado, Cúcuta. Ao chegar a San Cristóbal, tive a sensação de ter voltado a casa, de que a partir daí estava ao abrigo de uma qualquer ameaça. 47. Forneiro da “lata d’água” Aproximava-se o Natal. Estávamos no final de 1954, quase três anos após a minha chegada à Venezuela. De papo cheio da Liberdade que a aventura proporciona, havia que compensar. Vamos lá a isso! Entremos na rotina dos dias iguais… voltei ao hotel Luso-Americano por uns dias, para me mudar para o hotel Portugal (dizia-se que estava a servir melhor e que o ambiente era mais descontraído). Poderia ter começado a trabalhar ainda antes do Natal. O Come e Cala era dos meus três vigilantes cognitivos o que mais pressionava para que voltássemos a ter, como dizia, “o pão de cada dia sem incertezas no amanhã”. Já o Zé Ninguém, que durante a passada viagem tinha sido o mais afoito, começava a embezerrar, sempre calado, e muito indiferente ao dia-a-dia. O Batata, esse, bem imbuído da importância da sua origem de “cagaréu”, terra de emigrantes de sucesso, estava todo disposto a, desta vez, “levar as coisas a sério”, o que significava arranjar trabalho e amealhar dinheiro. Enfim, como sempre tinha sido, após ouvir o meu próprio “Colectivo de Auto-Análise Comportamental”, decidi escutar o Batata… e combinei com o Senhor Gomes (não me lembro do nome completo), proprietário da padaria El Faro, ali bem próxima da Praça da Candelária e da pensão, começar a trabalhar a cinco de Janeiro, véspera de Reis, como forneiro. Na altura era um estabelecimento moderno instalado num prédio de três andares, com uma loja no rés-do-chão onde se vendia pão e outros artigos correlacionados (sumos de fruta, tabaco, chocolates, pastelaria, etc.); nas traseiras da loja funcionava a fabricação do pão e derivados, em espaço amplo e razoavelmente equipado e limpo. Tínhamos acordado que o horário de trabalho era variável de acordo com as necessidades e o andamento dos trabalhos, tendo 149 Camilo Mortágua como período de referência das nove da noite às oito da manhã. Para além do ordenado que agora não posso precisar, era-me facultado um “quarto” instalado no terraço, coisa simples, com tecto de chapa de zinco mas bem arejado, sobretudo para quem, como seria o meu caso, teria de o utilizar durante o dia. Como forneiro, obviamente a minha responsabilidade era “fornear” tudo o que ali se fabricava. Para isso tinha à minha disposição um forno de fabrico italiano, rectangular, de dois pisos, daqueles em que as portas constituídas por lamelas basculantes a toda a largura, em vidro, permitem visionar o interior e o estado da cozedura, e abrir e fechar as ditas lamelas com a própria pá. Neste caso, é um forno de trabalho contínuo, já que quando se acaba de encher, já o primeiro pão que se meteu está cozido. Bem sei que não devem os persistentes leitores que até aqui têm seguido estas «andanças» estar muito interessados nestas especificações do forno da padaria El Faro, porém já compreenderão o porquê da necessidade de bem caracterizar a actividade que me tocava desenvolver. Tudo corria normalmente, até que dois ou três meses após, comecei a interrogar o meu “Colectivo de Auto-Análise Comportamental”: nem pensem… eu não saí de casa para ser padeiro toda a vida… escusam de estar para aí silenciosos, com ar de instalados nas suas rotinas, sempre sossegadinhos a ver se não me acordam, que isto tem de mudar! Outro Projecto começava a desinquietar o ramerrame. Estávamos em 55, no auge desenvolvimentista do período da ditadura de Pérez Gimenez. A especulação imobiliária expandia-se de forma galopante, as grandes obras públicas solicitavam cada vez mais mão-de-obra, a exploração petrolífera atingia limites nunca antes sonhados, o caudal de emigrantes aumentava de dia para dia sem conseguir satisfazer as necessidades crescentes. A este ritmo, a corrupção alastrava e permitia aos mais desenrascados enriquecer quase que de um dia para o outro. A Venezuela enriquecia e procurava afirmar-se no plano internacional como nação de promissor futuro. Os portugueses, bem introduzidos na dinâmica das cumplicidades governativas da ditadura, aproveitavam bem as oportunidades existentes. 150 Andanças para a Liberdade Era a época forte da instalação dos portugueses no comércio retalhista. Com «quitandas», «fuentes de soda», bares, churrasquerias, padarias, abastos (mercearias), dominavam o sector agro-alimentar de retalho e até os transportes públicos de Caracas. A maioria dos que iam chegando, tornavam-se pequenos comerciantes ou industriais ao fim de um ano ou dois de permanência, muito pela via da entreajuda familiar. Os mais antigos ajudavam os recém-chegados. Por essa altura, calculava-se que cerca de cinquenta mil portugueses residiam na Venezuela. Aos portugueses, sobretudo madeirenses e naturais do distrito de Aveiro, juntavam-se os espanhóis, sobretudo galegos e asturianos, muitos italianos e, em menor número, pessoas de todos os países europeus afectados pela guerra de 1939-45. As estatísticas chegaram a acusar mais de 10% de população imigrante, em relação aos quatro milhões de venezuelanos, para um país com quase o dobro da superfície da França! Avaliando pelas minhas próprias necessidades e interesses, deduzi que a maioria dos portugueses sentia agudamente a falta de notícias de Portugal (sobretudo notícias desportivas). Era possível escutar a Emissora Nacional, mas com muita dificuldade e com receptores já sofisticados e caros que praticamente ninguém possuía. Dessa constatação resultou a minha decisão de comprar uma hora de tempo numa das mais importantes emissoras de Caracas, Rádio Rumbos, entre as sete e trinta e as oito e trinta da noite, aos domingos, para aí transmitir todos os resultados desportivos previamente gravados da transmissão do programa “Domingo Desportivo” da Emissora Nacional que, graças à diferença horária, ali se podia escutar durante a tarde. Munido dum receptor comprado numa daquelas casas que vendiam excedentes do exército americano e duma antena instalada no terraço sobre o telhado de zinco do meu quarto, mais um gravador daqueles de grandes bobines de fita magnética, comecei a produzir e transmitir um programa misto de música (com discos emprestados) e noticiário desportivo, chamado “Ecos de Portugal”. O proprietário da padaria onde era forneiro, o Sr. Gomes, prontificou-se a servir de fiador, perante a emissora, do pagamento contratado, que na altura era, salvo erro, de mil e quinhentos bolívares por programa (mais ou menos doze mil escudos ao câmbio da época). 151 Camilo Mortágua Em troca oferecia-lhe a inserção de três curtas menções publicitárias da sua padaria. Embora ao princípio a motivação fosse a de realizar uma inovação útil aos portugueses e, ao mesmo tempo, encontrar uma actividade que permitisse valorizar-me e me abrisse perspectivas de afirmação social, cedo me dei conta que, como em qualquer outra actividade, havia que encontrar receitas para as despesas, sem as quais tudo teria que acabar bem pronto. Portanto, acabado o trabalho de forneiro, partia à procura de clientes que quisessem anunciar no meu programa, munido de argumentação objectiva: eram os portugueses donos do comércio alimentar de retalho que nos seus estabelecimentos vendiam os produtos das suas preferências; os consumidores finais, muitas vezes, chegavam e pediam, por exemplo, uma cerveja ou um litro de leite, não pela marca da cerveja ou do leite; nestes casos, quem servia é que escolhia… para testar a eficácia e popularidade da publicidade nestes programas bastava passear-se pelas ruas de Caracas às horas das transmissões, para as escutar em todos os estabelecimentos. Um outro aspecto veio a consolidar a eficácia da cumplicidade entre “Ecos de Portugal” e a maioria dos portugueses. Os programas serviam para divulgar todas as iniciativas culturais, conviviais, desportivas e sociais da colónia portuguesa, contribuindo dessa forma para a sua maior coesão social e cultural. Na sequência desse sucesso, outra emissora, Rádio Tropical, onde já existia um programa diário com música portuguesa feito por um venezuelano, convidou-me a tomar conta do programa, mediante a oferta de lá poder incluir seis anúncios de clientes meus. Salvo erro, chamava-se esse programa “Portugal Canta” e era transmitido todos os dias das seis e trinta às sete da tarde. O sucesso do radialista tinha que interferir com as responsabilidades do forneiro. De dia, procurava publicidade e tratava da produção e correspondência dos programas; de noite era forneiro. Normalmente chegava ao meu quarto do terraço da padaria por volta das cinco da tarde e dormia até precisarem de mim para começar a cozer o pão; só que, por vezes, quem me vinha chamar ao terraço tinha que subir duas e três vezes até que acordasse. 152 Andanças para a Liberdade De comum acordo, encontrou-se a solução. Por cima da cabeceira da minha cama fixou-se à parede um ferro que atravessava uma lata de vinte litros, uma daquelas latas em que se comprava a gordura vegetal para a elaboração do pão. À lata atou-se um fio que descia pela parede do prédio até à sala de laboração. Quando eu chegava, antes de adormecer, punha uns cinco litros de água na lata; quando chegava a hora de fornear o pão, o encarregado puxava o fio, eu tomava um duche e acordava sem ser preciso andar para baixo e para cima a conseguir o efeito que a água conseguia com apenas um puxão de cordel! Como só voltaria à cama no dia seguinte por volta das cinco, a essa hora os lençóis estavam de novo secos e prontos para outro duche! Durante cerca de dois meses a situação manteve-se, até ao dia em que, tendo conseguido acordar com o respectivo duche, comecei a meter o pão no forno e fiquei dormindo de pé, com a pá na mão. Os outros trabalhadores, “colegas”, deixaram-me ficar nessa posição até o pão virar carvão… algo contentes com a vingançazinha sobre o “esperto” que queria ser mais do que eles. Nesse dia, chamei o Senhor Gomes e disse-lhe: ― Faça o favor de arranjar outro forneiro, porque, como estamos, nem para si nem para mim… Respondeu-me: ― Vai tratar da tua vida. Não te preocupes que eu continuo a manter a fiança. Poucos… mas encontravam-se alguns destes homens… capazes de incentivar quem tinha iniciativa e vontade de ser alguém sem ser pelo dinheiro. 48. Ecos de Portugal Olhando retrospectivamente para estas minhas andanças, tenho que chegar à conclusão que, sem o saber, ao iniciar a minha actividade de “comunicador social” estava traçando o rumo futuro da minha actividade política! Foi por aí que tudo começou a definir-se Aos programas iniciais, foram-se sucedendo outros e, desde a segunda metade do ano 55, Ecos de Portugal transformou-se na única empresa de Comunicação Social da colónia portuguesa da 153 Camilo Mortágua Venezuela, produzindo e apresentando eu, os seguintes programas: “Domingo Desportivo”, aos domingos na Rádio Rumbos; “Portugal canta”, programa diário das 6,30 às 7 na Rádio Tropical; “Romarias de Portugal”, diariamente na Rádio Crono Radar das 12,30 às 13; “Serenata Portuguesa”, das 19,30 às 20, na Rádio Oriental; “Revista da Semana”, ao domingo de manhã na Rádio Cultura. A esta actividade radiofónica veio juntar-se o jornal “Ecos de Portugal” – semanário, por muitos considerado o melhor jornal português editado no estrangeiro – e ainda, durante alguns meses, um programa quinzenal de televisão, transmitido ao vivo, com cenas das tradições populares portuguesas (desfolhadas, matanças do porco, cante ao desafio, etc.). No plano artístico, participaram dessa fase, com grande empenho e merecimento, algumas pessoas (músicos e cantores) com jeito e talento, do qual é justo destacar o Silva Freitas, homem sempre disponível para colaborar em iniciativas culturais, e o jovem Filipe Dias. A empresa Ecos de Portugal, utilizando todos estes suportes de comunicação, era o grande veículo dinamizador das iniciativas sociais e culturais dos portugueses da Venezuela. Para a sua fundação contribuiu, de forma decisiva, uma das maiores figuras da Colónia Portuguesa, talvez e em minha opinião a mais exemplar personalidade portuguesa da nossa emigração para aquele país: Daniel Morais. Foi em associação com ele que fundámos a Ecos de Portugal, e que lhe demos um rumo, assim como princípios éticos, morais e políticos. Antigo membro do MUD juvenil, democrata de firmes convicções e ponderada acção, homem de causas e defensor persistente dos interesses colectivos e gerais dos portugueses a sobreporem-se sempre aos seus próprios, foi, sem dúvida e a partir de então, um dos mais influentes exemplos na minha formação cívica e política. Data dessa mesma altura a minha convivência com outro personagem (este menos pedagógico e ponderado), que muito influiu nas minhas opções futuras, chamado Sérgio Alves Moreira, exemplo de militante comunista e de homem honesto, felizmente ainda vivo, à frente da sua livraria e do Instituto Português de Cultura, em Caracas. 154 Andanças para a Liberdade Dos dois, cada um à sua maneira, fui bebendo os fundamentos essenciais da minha incipiente preparação política e aprendendo a aceitar ou rejeitar o que me parecesse. Do Sérgio, a positividade da sua abrangente cultura descompensada pela rigidez da sua convicção na certeza da cientificidade do Socialismo Soviético e na infalibilidade do pensamento marxista; do Daniel, sobretudo, o alerta para a necessidade de pensarmos pela nossa própria cabeça e de relativizarmos sempre os dogmas estabelecidos, a coerência entre o discurso e a prática, o amor à Liberdade e, sobre todas as coisas, a disponibilidade para a solidariedade universal, sem crivagens de espécie alguma. Bem cedo me dei conta da grande oportunidade que a convivência quotidiana com pessoas de tal qualidade me podia proporcionar. A empresa Ecos de Portugal foi a real plataforma de lançamento para a natureza das minhas andanças futuras. Protagonista desta intermediação com a colónia, na qualidade de responsável pelas emissões e edições de Ecos de Portugal, todas as Associações ou grupos formais e informais portugueses necessitavam da minha cooperação para divulgar e promover as suas iniciativas, daí os convites para fazer parte dos corpos sociais dessas mesmas entidades. A minha actividade como dirigente associativo concentrou-se no Club Desportivo Português, que chegou pela primeira vez em 1958 a Campeão da Venezuela em futebol. Colaborei igualmente com bastante assiduidade com a União Ciclista de Portugal e na fundação das primeiras instalações do Centro Português (na Urbanização Paraíso), sendo o criador e principal promotor de alguns eventos desportivos, tais como o prémio ciclista “Ecos de Portugal”, que, com um espectacular itinerário entre Caracas e Los Caracas pela estrada velha, proporcionou grandes triunfos aos atletas do União, dos quais lembro o valente Joaquim Amorim. Porém, a popularidade também se estendia ao género feminino da colónia que por essa altura começava a mudar a sua composição social, deixando de ser exclusivamente masculina. Era o início do processo da estabilização social dos portugueses. Já não se vinha apenas para amealhar e voltar o mais depressa possível; já se pensava em alternativas de vida, em chamar a família! Em fazer da Venezuela um país para viver e não apenas para ganhar dinheiro. 155 Camilo Mortágua As jovens portuguesas naturalmente começaram a assediar o jovem apresentador dos programas de rádio, nessa altura com 22 anos de idade. E, este jovem que eu era, mais experiente nas relações com as públicas meninas de Catia do que com “meninas sérias e socialmente consideradas”, deslumbrado com a nova situação e já surdo às chamadas de atenção do Zé Ninguém e dos outros íntimos forjadores de consciência, deixa-se envolver em rápida teia, dando por si já “casado” e disposto a pagar o preço de tal precipitação. Completamente impreparado para tal situação e já totalmente decidido a ser solidário com as lutas de todos os privados de Liberdade, em primeiro lugar com os portugueses vítimas dessa privação, nem por instantes podia admitir que nada me desviasse desse rumo. Consciente dos malefícios que esta minha decisão iria causar aos filhos meus, considerei que, mesmo assim, o mal que é apenas nosso não pode anular a possibilidade de contribuição para o bem de muitos outros. Deles espero apenas a compreensão e o julgamento da utilidade do seu sacrifício. 49. Preparando o derrube do ditador O ano de 1957 é decisivo para o regime então vigente na Venezuela. O ditador Pérez Gimenez mantinha-se no poder desde 1948 graças a sucessivos golpes de Estado: golpe militar puro e duro, o primeiro, em 48, contra Rómulo Gallegos; e mais palaciano o segundo, em 52, na sequência da vitória da URD de Jovito Villalva, pela deriva fraudulenta da criação de uma Assembleia Constituinte que em 53 acabou por nomear Pérez Gimenez como seu Presidente para um período de 5 anos, ao mesmo tempo que nomeava igualmente senadores e deputados para um novo congresso totalmente dependente do ditador. De acordo com a Constituição, este seria o ano em que se deveriam realizar eleições para a sucessão de Pérez Gimenez… mas nada parecia indicar que tal viesse a acontecer. As lideranças das diferentes oposições radicadas no exílio faziam o possível para aprofundar as suas exigências de eleições livres e isolar a ditadura. 156 Andanças para a Liberdade Dizimados, presos ou mortos muitos dos seus adversários políticos, o regime debatia-se agora com as gritantes contradições evidenciadas pela opulência desavergonhada dos governantes e respectiva oligarquia, face às infra-humanas condições de miséria em que vivia a grande maioria dos venezuelanos. O próprio sucesso económico devido ao exponencial desenvolvimento da produção e dos preços atingidos pelo petróleo, transformavam a Venezuela num país com muita riqueza e muita miséria! A crispação social engrossava dia a dia. Foi o ano em que me encontrei mergulhado num ambiente onde a permanente discussão política e ideológica era contínua e apaixonada. Foi, também para mim, o grande ano de, através da situação local, estabelecer comparações com o que acontecia em Portugal. Em repouso das minhas andanças pelos países andinos, entusiasmadamente empenhado no meu novo projecto de “Comunicador Social”, entrava rapidamente e em força na dinâmica do processo venezuelano ao mesmo tempo que aí encontrava as motivações para procurar mais e melhor informação teórica sobre situações idênticas. Ao azar das ocasiões, lia, mesmo aquilo que não compreendia! Um dia, sem saber o que comprava, apenas porque era um volume muito espesso e parecia falar de política, comprei um exemplar do Anti-Duhring. Durante alguns meses, li páginas atrás de páginas. Não me recordo de ter compreendido ou retido – quem sabe se não – algum dos pensamentos do Senhor Duhring. O ano começou com a realização, em Fevereiro, do Congresso do Partido Comunista Venezuelano na clandestinidade, com a novidade de um primeiro grande apelo à unidade das forças democráticas para o derrube da ditadura. Em Maio, Monsenhor Árias Blanco, arcebispo de Caracas, lança uma carta pastoral denunciando a injustiça de tanta miséria e da condição dos trabalhadores venezuelanos. O impacto foi enorme: a mensagem foi lida em todas as igrejas do país e o Governo começou a dar-se conta da vaga de fundo que contra si se levantava. Gabriel García Márquez, então a viver em Caracas, fez-se eco deste documento numa vibrante reportagem a que chamou “El Clero en la Lucha”. Nesse ano dizia-se à boca cheia que se as receitas do petróleo fossem divididas igualmente por todos os venezuelanos, novos e 157 Camilo Mortágua velhos, homens e mulheres, cada um teria direito a… pelo menos, 500 dólares por mês! Esta pastoral teve a virtude de tocar fundo na consciência dos venezuelanos, desarmando a férrea censura que o regime usava como muro de contenção para a divulgação dos desvarios de novos-ricos, protegidos e protectores da oligarquia instalada. A ostentação desmedida e irreflectida dos nababos funcionava como catalisador da revolta popular! Até para um jovem aprendiz de político como era o meu caso, essa correlação de causa a efeito era claramente perceptível. Em Junho, veio para a fogueira da sublevação popular a decisiva acha, com a constituição da Junta Patriótica, integrando representantes da Acção Democrática (AD) a quem tinham assassinado os dirigentes – Leonardo Ruiz Pineda, Alberto Carnevali, António Pinto Salinas e Luís Hurtado Higuera, entre outros –, incluindo igualmente representantes da União Republicana Democrática (URD), do Partido Comunista, da Democracia Cristã e várias personalidades públicas, entre as quais Fabrício Ojeda, um popular e conceituado repórter do jornal El Nacional. O papel da Junta Patriótica na mobilização e enquadramento da revolta popular foi decisivo, muito facilitado pelas próprias asneiras e bravatas do regime. Num ambiente de disseminada efervescência de contestação ao regime, Pérez Gimenez propõe ao seu Congresso títere que aprove uma lei para substituir as eleições previstas na Constituição por um plebiscito sobre o seu abandono ou não do poder. A 15 de Dezembro desse ano, surdo ao clamor de revolta, o venal congresso aprova a proposta. O povo iria pronunciar-se sobre: se SIM queria que o ditador permanecesse, ou se NÃO para que se fosse embora. Era voz corrente que as duas palavras queriam dizer a mesma coisa: SIM para que ficasse; NÃO para que não se fosse embora. Realizado o plebiscito, com os emigrantes (quase 10% da população activa) a serem obrigados a votar e todos os empregados por conta de outrem a terem de mostrar na segunda-feira seguinte ao dia de voto o boletim vermelho que comprovaria que tinham usado o azul do SIM, anunciaram os resultados: dos 2.738.912 eleitores registados, 2.374.790 tinham votado SIM! O NÃO teria contado com apenas 384.182 votos. 158 Andanças para a Liberdade A 20 de Dezembro desse ano, com a sociedade venezuelana em generalizado estado de indignação e por entre grandes manifestações estudantis, o Conselho Superior Eleitoral proclamou Pérez Gimenez como Presidente da República para o período de 58 a 63. Os últimos dias desse ano, e os primeiros vinte do novo ano, foram, para mim e para muitos dos meus companheiros de trabalho e de conspiração, dias sem sono. Discutia-se a todos os níveis e em todos os grupos a natureza da resposta a dar às provocações do ditador e ao desrespeito pela consciência democrática dos venezuelanos. Sobre uma coisa todas as correntes da oposição estavam de acordo: o regime tinha que cair e rapidamente. Após infinitas negociações, pareceu-me ter-se chegado a um consenso: não haveria acções militares, não se recorreria à violência das armas, o povo daria a sua lição ao ditador e ao Mundo. Embora nunca se tivesse utilizado esse slogan, ali começou para mim a demonstração prática do significado das palavras que só muito mais tarde viria a escutar em contextos semelhantes: O POVO UNIDO… etc. Desde Agosto desse ano que vinha a colaborar discretamente com os preparativos da organização de um levantamento popular contra a ditadura. Jovem apresentador de programas de rádio em quatro emissoras diferentes, estrangeiro sem ligações partidárias susceptíveis de terem sido detectadas pelas secretas do regime, sem opinião política conhecida mesmo entre os compatriotas – segundo me explicaram… era a pessoa ideal para servir de elemento de ligação entre as células das diferentes emissoras que frequentava. Bastava que levasse de um lado para outro as mensagens que me seriam confiadas, primeiro verbalmente, mais tarde codificadas e escritas. Esses pequenos serviços rotineiros duraram mais ou menos de Agosto a Novembro. Logo que a notícia do plebiscito e da ausência de eleições se soube, foi-me pedido que assegurasse esse serviço de maneira mais assídua. As mensagens eram levantadas em determinados lugares das instalações das diferentes emissoras e deixadas nesses mesmos lugares, negando-me eu, desde o início, a conhecer a identidade dos remetentes ou receptores. 159 Camilo Mortágua Aumentar o ritmo das recolhas e ou entregas, obrigava-me a frequentar as emissoras fora das horas normais dos meus programas. Para obviar a tal dificuldade, foi necessário disfarçar esse aumento de passagens pela emissora através da simulação de alguns assédios amorosos virtuais a algumas das funcionárias. À medida que o processo avançava, ia-me apercebendo da importância da coisa, mas também dos perigos implícitos. Como me deslocava de motorizada para poder chegar rapidamente e a tempo aos diferentes programas a serem difundidos de emissoras por vezes situadas em extremos opostos da cidade, tinha adquirido uma destreza pouco comum para circular com rapidez por entre as intermináveis filas de automóveis que atulhavam as ruas de Caracas (nessa época a rasgar as primeiras grandes avenidas da Caracas moderna e actual), sempre rogando a todos os deuses que nenhuma porta se abrisse de repente. Cada vez mais consciente do que significava, na prática, envolver-se em “trabalhos políticos contra os poderes estabelecidos” – a leitura das notícias de prisões e torturas para isso contribuía –, passei a ser muito mais observador daquilo que à minha volta se passava. Comecei então a apanhar o hábito de olhar para trás… a raciocinar em função do que faria se estivesse do outro lado; coisa que não me servia de grande ajuda por não ter conhecimento algum da maneira de agir dos do “outro lado”. De dedução em dedução, lá fui chegando à conclusão que de nada lhes serviria seguir-me nas minhas deslocações, já que elas eram quotidianas e mais ou menos rotineiras. Se alguém se interessasse pelas minhas “andanças”, era nas minhas relações com as pessoas com quem conversava nas emissoras e eventualmente com as que encontrava na vida de angariador de publicidade e nas actividades de dirigente associativo, que as atenções se concentrariam. Como o meu relacionamento social continuava a ser o que sempre tinha sido, como rigorosamente a ninguém tinha falado ou comentado sobre o meu estado de espírito em relação a opções políticas, estas bem guardadas só para mim (ensinamentos do “mestre Constantino” desde há muito adoptados), a análise serena das probabilidades de ser descoberto acalmava as minhas preocupações e 160 Andanças para a Liberdade incitava-me a fazer orelhas moucas ao alarido interior dos membros do meu C.A.A.C. Pouco antes do dia do anunciado plebiscito, a pessoa que inicialmente me tinha solicitado colaboração, locutor comercial de um dos programas que realizávamos em conjunto, pediu-me para incluir no programa que estávamos a transmitir uma mensagem comercial nova, de uma entidade que eu desconhecia. Claro que lhe disse que sim… (os estrangeiros, como eu, tinham carteira profissional de comentadores, mas não podiam fazer anúncios comerciais – isso estava reservado para locutores profissionais venezuelanos). Nessa mesma ocasião explicou-me que as necessidades organizativas do movimento tinham aumentado e que tinha sido decidido acrescentar às funções de simples correio a utilização dos meus programas para a transmissão de certas mensagens disfarçadas de anúncios comerciais, que me seriam transmitidas telefonicamente como se de pedidos para a passagem de discos se tratasse, o que era prática comum. Essas mensagens não podiam ser do conhecimento dos locutores dos outros programas. Entre umas e outras, foi necessário estar muito atento a esta actividade de maneira a não cometer nenhum deslize que pudesse levantar o véu do que se escondia por dentro daqueles inocentes programas em língua portuguesa, dirigidos a uma colónia de emigrantes na generalidade tão fiéis aos mútuos interesses, seus e da ditadura, com quem pactuavam em proveitosa cumplicidade. Sentia-se que a exaltação da contestação ao regime estava em permanente crescendo. Já não se tratava de simples manobras de grupos mais ou menos isolados, ou de cúpulas partidárias e políticas. As pessoas, em todas as situações, começavam a exteriorizar cada vez mais abertamente as suas opiniões, começavam a surgir as primeiras acções contra os estabelecimentos de portugueses, sobretudo os mais ligados à distribuição de produtos alimentares (“abastos” e “fuentes de soda” – mercearias e cervejarias), em retaliação pelo manifesto apoio dado ao ditador aquando do último plebiscito, mas também devido aos escandalosos enriquecimentos ilícitos de muitos, tidos por associados corruptos dos governantes. As condecorações concedidas a Perez Giménez pelo Presidente português Craveiro Lopes, impostas em 56 pelo ministro Branquinho da então Legação de Portugal em Caracas (só em 59 viria a ser transformada 161 Camilo Mortágua em embaixada) com grande pompa e circunstância no salão nobre do Santa Maria, também pesavam na memória dos democratas venezuelanos. Adivinhava-se que, no imaginário popular do momento, os portugueses eram considerados genericamente amigos e cúmplices da ditadura! O que não poderia deixar de ter consequências na hora de celebrar a vitória. O clima de insurreição espalhava-se. Caracas era uma cidade decidida a dar o salto para a Liberdade. O ditador, para além da rejeição provocada pela natureza do seu regime repressivo e manifestamente corrupto, tinha perdido respeito e credibilidade, mesmo em relação a certos sectores mais conservadores e ligados à Igreja, ao transformar a residência presidencial da Ilha da Orchila em lugar de desenfreado recreio libidinoso. As fotografias, que o mostravam a correr pelas praias da Ilha, em calção de banho e de motorizada, atrás dum grupo de espampanantes “vamps” que, segundo se dizia, todas as semanas enchiam o avião em que viajava, circulavam por todo o país e davam origem a histórias de rocambolescas ironias, de efeitos devastadores para a sua imagem. É desse tempo o termo “orchiluda” para nomear uma jovem exuberante ou as motorizadas, que deixaram de ser designadas pelas respectivas marcas, para passarem a ser simplesmente… “orchiludas”! No primeiro dia do ano, vários aviões militares procedentes da base de Boca de Rio, situada perto da cidade de Maracay, sobrevoaram Caracas. Dizia-se que com o propósito de demonstrar ao ditador que, “se quisessem”, o tinham bombardeado no seu Palácio de Miraflores… O anúncio da greve geral veio logo depois, nos primeiros dias de Janeiro, marcada para segunda-feira 21. A minha actividade como “correio da revolução” parou na sexta-feira anterior, 18 de Janeiro. Tinham-me dito: ― Obrigado por tudo… quando já não tivermos medo, não te esqueceremos… agora só resta esperar… mas vais ver, o nosso povo não é tão primitivo e insensível aos valores humanos como muitos emigrantes pensam. Também temos orgulho no nosso passado de lutas pela independência e pela Liberdade… verás… a partir de hoje, só nos voltaremos a encontrar se vencermos. 162 Andanças para a Liberdade O fim-de-semana que precedeu a greve geral, passei-o em casa, ouvindo as notícias e olhando a avenida deserta. O povo de Caracas parecia ter sentido a necessidade de se repousar antes da grande batalha. Era muito escasso, praticamente nulo, o movimento de pessoas ou viaturas. Nessa altura, vivia num quarto andar de um prédio de construção recente, situado numa avenida premonitoriamente chamada Av. Victória. Intimamente ansioso pelo desenrolar dos acontecimentos, assisti como simples cidadão ao encadeamento sucessivo das notícias, o que limitou o meu conhecimento directo das múltiplas situações ocorridas e a análise dos verdadeiros protagonismos do conjunto das forças envolvidas. Por inexperiência da complexidade destes processos, por simplicidade de análise, o que mais profundamente me impressionou foram aquelas quarenta e oito horas de ruas absolutamente desertas, com um país integralmente parado, pacientemente à espera que o indesejado tirano se rendesse. À imagem do que em nossa casa se passava, por detrás de janelas e balcões, o povo de Caracas, qual multidão de vigilantes caçadores, montava gigantesca e serena espera! Espera que durou largas quarenta e oito horas, de segunda-feira, início da greve geral, até quarta-feira! Coesão, disciplina cívica, auto-controle colectivo! Como prática formativa do carácter do jovem aprendiz de cidadão livre, que eu então era… que privilégio… que motivação! Obviamente, tanta contenção tinha que resultar em grande explosão! “Povo de Caracas, Venezuelanos, Vitória… Vitória… o tirano fugiu! Neste momento escutais o voo da «vaca sagrada» a sobrevoar Caracas, saído da base de Carlota, o avião leva no seu bojo o Tirano Pérez Gimenez, sua família e alguns dos mais comprometidos e corruptos personagens do seu regime. HOJE, 23 DE JANEIRO DE 1958, HONRAMOS BOLÍVAR E A NOSSA HISTÓRIA, VIVA VENEZUELA… VIVA O POVO VENEZUELANO… VIVA A LIBERDADE!” Todas as rádios, em cadeia nacional, gritavam VITÓRIA! 163 Camilo Mortágua A euforia da vitória despejou nas ruas da Capital, em poucos minutos, multidões de pessoas em transe e absoluta liberdade de comportamentos: cantava-se, bailava-se, bebia-se, abraçavam-se uns aos outros, jogavam fora as angústias e vergonhas dos dias da repressão e do aviltamento das suas consciências. Segundo diziam as rádios, o país inteiro estava em festa! O grande novelista colombiano Gabriel García Márques, autor de Cem anos de solidão, então a viver em Caracas ao serviço da revista Momento, viu “as lutas de rua à sombra do enorme edifício do Governo na Plaza del Silencio, a multidão cercando a sede da polícia secreta do ditador, a Seguridad Nacional e, alguns meses depois, os distúrbios com que foi saudado o então vice-presidente Nixon, quando seu cortejo esgueirou-se em meio à massa hostil aglomerada defronte às pobres lojas de móveis e aparelhos domésticos da Avenida Sucre, no bairro operário de Catia. Aquela parecia ser uma época de esperança: os camponeses vinham às cidades e aí erguiam suas casas, e os políticos democráticos saíam da cadeia ou voltavam do exílio para formar novos Governos”. A Venezuela, diria García Márquez depois, era “o país 1 mais livre do mundo”. Eu, do meu balcão de um quarto andar da Av. Vitória, nada vi, a não ser as carrinhas de polícias ou militares que, de tempos a tempos, muito espaçadamente, passavam pela avenida a disparar para o ar, nunca soube com que verdadeira intenção, e, ao lusco-fusco da madrugada, a sombra negra do “vaca sagrada” voando sobre o céu de Caracas, rumo a Santo Domingo, República Dominicana, cidade escolhida pelo ditador para seu primeiro lugar de exílio, onde o seu grande amigo e correlegionário general Rafael Leonidas Trujilho desgovernava, impondo o seu bárbaro poder, matando e fazendo desaparecer quem se lhe opusesse. Nem a presença do ex-ditador da Venezuela e o exemplo da sua queda lhe serviram de lição. Nesse ano ainda teve forças para aniquilar aquilo que ficou conhecido como o “Movimento 14 de Junho” e a 25 de Novembro de 1960 assassinar as irmãs Mirabal: Pátria, Maria Teresa e Minerva. Este assassinato e o advento da revolução cubana marcam o prenúncio do seu próprio assassínio a 30 de Maio 1 Texto publicado por Norman Gall. Origem: Argumento, nº 4, 1973. 164 Andanças para a Liberdade de 1961, sendo voz corrente que a própria CIA, com a conivência de círculos ligados à Igreja Católica dominicana, teria estado envolvida. Por sua vez, Pérez Gimenez cedo percebeu que aquele também não era um lugar seguro. Era preciso sair da América Central, onde o seu nome estimulava sentimentos perigosos… mas onde encontrar gente que dele gostasse? Foi aí que lhe surgiu a ideia de ir ao encontro dos conterrâneos daqueles simpáticos emigrantes da Madeira com quem tão bem se tinha entendido, ainda para mais, quando todos lhe diziam bem da beleza e do nível luxuoso da sua hotelaria. Rumou à Madeira e ali viveu, segundo consta, em paz! 50. “Não importa onde se nasce… o que importa é onde se luta!” Os dias que se seguiram ao derrube do ditador foram dias de folguedos e muitas celebrações para o povo venezuelano, e ao mesmo tempo, dias de alguma angústia para muitos compatriotas que viram os seus estabelecimentos arrombados e saqueados por multidões ávidas da sua desforra contra os “comerciantes especuladores responsáveis pela carestia da vida”. Esses actos assustaram muita gente e estiveram na origem de um acentuado movimento de retorno. Os círculos da traficância de favores políticos para a obtenção de bons negócios desfizeram-se rapidamente; os compatriotas que tinham investido fortemente nesse método para desenvolver as suas actividades, temeram seriamente pelo futuro e retiraram-se rapidamente. Instalou-se entre os comerciantes portugueses alguma instabilidade e receio de que as reacções espontâneas e a quente dos dias imediatos à queda do ditador se transformassem em algo mais sério e permanente. As autoridades da Junta de Governo, tudo fizeram para travar essa possibilidade, nomeadamente através de campanhas públicas na televisão, jornais e rádios, e inundando Caracas e outras cidades do país de cartazes com o slogan: “Não importa onde se nasce… o que importa é onde se luta!” 165 Camilo Mortágua O sector da construção civil e obras públicas, principal esteio de sustentação das políticas de emprego, desmoronou-se; entretanto, o preço do petróleo desceu abruptamente. Pouco a pouco… a crise foi-se instalando. A Junta de Governo que tinha sido nomeada logo a seguir à vitória da revolta era presidida pelo meu conhecido almirante Wolfgan Larrazábal. Os outros membros eram: o coronel Carlos Luís Araque, Pedro José Quevedo, Roberto Casanova e Abel Romero Villate. Já no dia 23 ao ser conhecida a composição da Junta, os venezuelanos protestaram contra a presença de Casanova e Villate, que tinham colaborado com o Governo deposto aquando do acontecido no dia 1 de Janeiro. Obrigados a renunciar, são substituídos pelos empresários Eugénio Mendoza e Blas Lamberti e pela criação de um gabinete composto por juristas, empresários e gestores. O Ministério da Defesa foi entregue ao coronel Jose Maria Castro León. A Junta de Governo marcou eleições para Dezembro desse mesmo ano e mandou soltar os presos políticos, decidindo igualmente reforçar a Junta Patriótica com representantes de sectores independentes. O jornalista Fabrício Ojeda foi confirmado como seu presidente. Pela sua composição, os novos órgãos de poder mereceram generalizada aceitação popular. A inclusão de empresários de grande prestígio, como Eugénio Mendoza, veio atenuar a predominância dos militares e emprestar um cariz mais ecléctico e representativo da sociedade venezuelana. Pelas enormes multidões de excluídos da riqueza do país perpassava uma onda de esperança em melhores condições de vida, numa mais justa repartição da riqueza proveniente das imensas exportações petrolíferas. Embora se adivinhassem tempos difíceis para os negócios, sobretudo na área da construção civil, o pequeno comércio retalhista da área alimentar, o mais numeroso entre os portugueses e o mais atacado por ser o mais exposto ao confronto directo com a pobreza generalizada e carente de protecção social, esse, resistiu bem à turbulência inicial, recuperando com rapidez a calma e a serenidade necessárias à sua estabilização, conseguindo até consolidar posições de liderança nesse sector. 166 Andanças para a Liberdade Esse período também serviu para estimular uma certa crivagem entre os nossos emigrantes. Os mais empenhados em abanar rapidamente “a árvore das patacas” para voltar rapidamente à terra, os imunes a outros interesses para além da acumulação de fortuna, esses foram os primeiros a partir. Os outros, os que hesitaram e mesmo receosos decidiram ficar, esses já pertenciam a uma segunda geração mais sensível às possibilidades de organizar projectos de vida e de inserção familiar na sociedade venezuelana, prestando por isso outra atenção e interesse à evolução do país em que admitiam viver. 51. Por Cuba Livre O entusiasmo provocado pela conquista da democracia, impulsionou rapidamente um grande movimento popular de auxílio solidário a Fidel Castro. Não sei se desinquietados pelos ruidosos festejos à sua volta, ou se pela alegria interior que a festa generalizada e popular em mim provocava, os personagens meus estruturantes cognoscitivos, vulgo Comité de Auto-Análise Comportamental, entraram em viva discussão sobre a presente situação, tentando encontrar um consenso que me obrigasse a definir um rumo perante os acontecimentos que adivinhavam poder vir a influenciar o nosso próximo futuro. O Come e Cala… limitava-se a ouvir; o Batata, que como sempre era o mais medroso e conservador dos três, queria, à viva força, que voltássemos ricos; o Zé Ninguém, esse… transpirava optimismo e confiança no futuro. Dizia o Batata: ― Não percebo porquê tanta algazarra! Estão a ver, estamos na mesma que antes, a correr de um lado para o outro, até com menos clientes, a fugir entre os automóveis, sujeitos a apanhar com uma porta pelas trombas e ainda por cima a ser insultados, sem tempo para descansar como pessoas normais… não mudou nada… temos tanta LIBERDADE como tínhamos! Respondia o Zé Ninguém em tom airado: ― Cala-te morcão… és mesmo matarruano das berças… então já não te recordas do cimento frio e dos duches gelados que nos 167 Camilo Mortágua obrigavam a apanhar lá naquela choldra para onde nos levavam às vezes quando algum polícia de trânsito lhe apetecia embirrar com a gente? Já não te lembras do medo com que andávamos, sempre temendo que algum dos “amigos polícias” se lembrasse de mandar roubar-nos as motos? Não te interessa nada que os nossos amigos venezuelanos andassem sempre receosos de dizer o que pensavam com medo de serem denunciados à “seguridade” do facínora Estrada, que nos vissem como estrangeiros inimigos e exploradores, que nunca quisessem conviver connosco e nos julgassem simples mercenários de fortuna; e agora te abracem e falem espontaneamente das suas vidas, com alegria e sem verem em ti um delator e um falso amigo? Não te sentes mais confiante em ti e nos outros sem as ameaças arbitrárias de uma repressão sem lei nem justiça? Não vês que a LIBERDADE… não sentes… a LIBERDADE … não te dás conta que estamos aqui, só nós e mais ninguém, absolutamente senhores do nosso destino, a decidir para onde voar? Acorda… porra! Temos que voar para ir alargando o espaço em que as pessoas possam exercer livremente os seus destinos!… Vamos mas é entrar na campanha a favor do Fidel, em vez de estar p’raqui com conversas vãs… O Come e Cala: ― Olha o gajo! Está feito político… estamos feitos! Claro que, por receio que se cansem das conversas de tais personagens, sou obrigado a resumir estes debates interiores, quase permanentes e inconclusivos. Vejam bem que já ouvi, um dia destes, o Zé Ninguém afirmar em tom reivindicativo: ― Afinal de contas, não vale de nada estarmos aqui a dar palpites, porque vivemos em ditadura encerrados num corpo cuja vontade não dominamos! Contradições. Reconquistada a LIBERDADE, o entusiasmo popular, bem secundado pelas novas autoridades, voltou-se entusiasticamente para o apoio à Revolução Cubana. Nas ruas e encruzilhadas de todo o país funcionavam brigadas de recolha de donativos (em dinheiro). Foram criadas estruturas de coordenação a todos os níveis e em quase todos os sectores de actividade. A imprensa e quase toda a comunicação social louvavam e informavam sobre o desenvolvimento das lutas que a partir da Sierra Maestra iam alastrando ao resto do país. 168 Andanças para a Liberdade Nos dias que se seguiram à festa, veio até mim o Solano, o que me tinha recrutado para “correio da revolução” (como ele sempre lhe chamou) e, de braços abertos e sorriso escancarado, foi gritando: ― Portó… ganhámos! Dá cá um grande abraço! Temos que comemorar. Amanhã vens jantar lá a casa. Vai ser um jantar de amigos a quem te quero apresentar. A casa do Solano era um apartamento com um grande terraço no último andar de um daqueles prédios “caixotes”, mesmo em frente do primeiro grande supermercado da Venezuela, a Central Madeirense, na Urbanização antigamente chamada de 2 de Dezembro e, agora, rebaptizada 23 de Janeiro, em recordação do dia da conquista da Liberdade. Neste bairro, lugar de referência das lutas populares que levaram ao derrube do ditador, maioritariamente habitado por pessoas pertencentes àquilo a que se pode chamar a pequena burguesia operária, reinava ainda, nessa fresca noite de fins de Janeiro, uma certa brisa festiva que agitava as inúmeras bandeiras nacionais disseminadas por todas as janelas e balcões. Quando lá cheguei, no terraço estava preparado o cenário para o jantar. À luz de um cordão de pequenas lâmpadas pendentes de um fio suspenso por dois pequenos postes em ferro fixos ao solo, estava posta a colorida e farta mesa. Como podem os sentidos gravar fundo na memória as sensoriais emoções de determinados momentos, nunca de outra forma, ou noutras situações, explicitados ou lembrados. Mais do que tudo, lembro-me do inebriante perfume que emanava daquela mesa, e da luz que as cores vivas dos frutos e das flores reflectiam naquele ambiente, fazendo-nos esquecer um céu apesar de tudo meio cinzento, de onde a queda de um forte aguaceiro não seria surpresa alguma. Lídia, a companheira de Solano, com o seu ar decidido, jurava que sabia de fonte segura que não iria chover nessa noite! Como a temperatura era agradável e a retirada se podia fazer rapidamente e sem problemas, se afinal chovesse, isso refrescaria flores e plantas e também o ar, permitindo que os convidados pudessem conversar descontraidamente durante o breve tempo em que as nuvens descarregariam a sua rega benfazeja. Em Caracas, a chuva cai forte mas passa depressa. 169 Camilo Mortágua Não choveu! À mesa estivemos umas quinze pessoas, que me lembre, quatro ou cinco companheiras de alguns convidados e o resto eram colegas do Solano nas diferentes emissoras onde trabalhava. Havia apenas um personagem a merecer tratamento discretamente diferenciado: o senhor Morales. Vestido de calça de ganga e camisa havaiana, nada demais para um venezuelano comum, tinha apesar disso um certo ar de vigor ginasticado, o que, a juntar a um cabelo muito curto de cor indefinida e um porte de alguma rigidez vertical, me deu logo a ideia de ser alguém ligado à vida militar. Após a degustação duma refeição rigorosa e deliciosamente venezuelana, à base de suculentas “ayaquitas e parrilladas” de carnes e enchidos variados, os convivas foram formando pequenos grupos dispersos pelos quatro cantos do terraço. Ao sair da mesa, o Solano apresentou-me o senhor Morales. ― Portó… apresento-te aqui um grande amigo e companheiro, o tenente Morales. Foi ele que coordenou o sector da Comunicação Social para a preparação da nossa revolução. Disse-lhe quem tu és e a ajuda que nos deste, e ele disse-me que queria conhecer-te. Portanto… Morales, aqui tens o Portó de que te falei. ― Muito prazer… ― O Portó tem nome próprio, Solano? ― Si, claro… mas não sei! ― O Solano sabe, mas ainda não foi autorizado a dizer (muito bem Solano), muito prazer senhor tenente e os meus sinceros votos de muitos sucessos para si e para o futuro da Venezuela democrática. O meu nome é Camilo e o apelido, Mortágua. ― Muito obrigado… é assim que se agradece em português? Nós é que estamos muito agradecidos. A sua ajuda foi mais importante do que imagina. Você é bem a prova de que nunca devemos acreditar em generalizações. Quem diria que um português podia ser aliado do nosso povo contra o ditador! ― Senhor tenente, nem os portugueses que aqui colaboraram com a ditadura, nem o actual governo português, nem eu, representamos o povo do meu país. Um dia, ainda havemos de falar das verdadeiras qualidades do povo português, quando ele for tão livre e tiver representantes tão legítimos como hoje acontece com o povo venezuelano. 170 Andanças para a Liberdade ― Estamos de acordo. Espero que saibamos não ser egoístas. Há que ajudar todos os povos oprimidos a conquistar a sua libertação. Vejo, caro amigo, que as nossas tarefas comuns ainda não acabaram. Vamos ajudar o Solano a esvaziar as garrafas e já voltaremos a conversar sobre isso. Interrompida a conversa, o Solano acercou-se de mim dizendo-me em tom de confidência: “estamos contando contigo, se és mi amigo no puedes recusar”… Quando me preparava para as despedidas, Lídia aproximou-se e, sem dizer nada, foi-me puxando discretamente por um braço, espalhando em volta o seu sorriso moreno e matreiro, brilhantemente iluminado pelo fulgor radiante e audaz de um daqueles olhares com que só as mulheres intensamente apaixonadas sabem incendiar o coração dos homens. Discretamente, foi-me conduzindo até uma pequena salinha interior, situada fora da zona destinada aos convidados, onde o marido conversava com o tenente Morales. ― Aqui está ele ― disse a Lídia. ― Senta-te ― disse o Solano. Sentei-me numa espécie de grande “pouf” em pele de bovino e, sinceramente apreensivo, lá fui dizendo: ― Sou todo ouvidos… Tenente Morales: ― Caro amigo, espero não me enganar, ao pensar que a ajuda que desinteressadamente deste à nossa luta não foi devida a uma circunstancial amizade pessoal aqui pelo nosso comum amigo Solano, mas corresponde a uma coerente atitude de quem partilha com convicção os nossos ideais de Liberdade e Justiça Social. Mais uma vez quero agradecer em nome da Junta Patriótica Venezuelana e dos democratas do meu país, a tua disponibilidade e solidariedade. Mas, não foi para isso que pedimos à Lídia para te trazer até nós… acontece que, como bem compreenderás, a liberdade que aqui conquistámos, obriga-nos, também por coerência de homens libertos, a não nos esquecermos daqueles que ainda lutam pela própria libertação. No presente caso, para ser completamente honesto contigo, nem sequer é apenas por solidariedade, é também no nosso próprio interesse. Para melhor defender a liberdade aqui conquistada é necessário que outros povos alcancem a sua própria liberdade e alarguem o 171 Camilo Mortágua espaço democrático. Como já terás compreendido, estou a referir-me a Cuba e à luta do Fidel, mas também à República Dominicana, onde o famigerado ditador Rafael Leónidas Trujillo, “o papá doc”, tortura e massacra um povo irmão. A Junta Patriótica, com o pleno acordo da Junta de Governo, estão decididas a mobilizar ao máximo o nosso Povo e os recursos da Nação, para emprestar a estes companheiros todo o apoio que seja necessário e possível. Neste sentido, o departamento que eu coordeno vai começar a identificar as necessidades e analisar a forma de as poder satisfazer. Por enquanto não temos planos concretos. Dentro de dias teremos um encontro com os camaradas cubanos para estabelecer prioridades. Hoje, o que quero é saber se podemos contar contigo, para, desde a Venezuela, participar nas tarefas que teremos de desempenhar. ― Sempre que sejam consideradas as minhas limitações e a melhor maneira de me tornar útil, podem considerar-me inteiramente disponível. Depois desse jantar, passei a interessar-me muito mais pelas notícias sobre os acontecimentos na Sierra Maestra e pela situação política prevalecente na América Latina em geral, e na América Central em particular. A minha actividade de radialista e publicitário continuou a desenvolver-se normalmente, agora com muito mais tempo dedicado às discussões políticas e consequentemente ao trabalho organizativo da Junta Patriótica Portuguesa da Venezuela. Uns dias mais tarde, já não me lembro quantos, o Solano, que andava desaparecido, apareceu na Rádio Tropical, foi cumprimentando os amigos e, discretamente, deixou-me em cima da minha mesa de trabalho um pequeno bilhete que dizia: “amanhã às oito da manhã na nossa «arepeira»”. A nossa “arepeira” era uma muito pequena casa de venda de “arepas” e sumos de fruta existente na Av. Urdaneta, bem no centro de Caracas, onde muitas vezes íamos, de dia ou de noite, depois dos programas, “dar milho à pomba”, como o Solano dizia. A pomba do Solano era a fome: “estoy con la paloma”, dizia ele frequentemente! As “arepas” são as sandes ou empadas dos venezuelanos. De consumo generalizado e bem popular, são umas pequenas rodelas achatadas, parecidas com as de jogar à malha, feitas de massa de milho pré-cozido e assado na chapa onde, depois de abertas ao meio, 172 Andanças para a Liberdade se introduzem os mais variados recheios segundo a escolha de cada freguês. Enquanto esperava pelo Solano, dei milho à minha “pomba” com duas “arepitas” de frango e um delicioso “jujo” (sumo) de “lechosa” (papaia). Quando já estava disposto a abandonar o lugar, aparece-me sorridente e com ar descontraído o tenente Morales. ― O Solano não pôde vir, venho eu no lugar dele. Desculpa o atraso mas tive que procurar este vosso ponto de encontro. Não te demoro mais. Vim para te convidar para um passeio no próximo sábado. Conforme te disse em casa do Solano, temos que ir ao encontro de umas pessoas que precisam da nossa ajuda. Voltaremos domingo à noite, por isso o Solano disse-me que tinhas de ser avisado com antecedência para poderes gravar os programas onde não poderás estar em directo. Traz roupas de bom abrigo porque pode chover. Passo a buscar-te na Av. Victória às cinco da manhã! Para toda a gente, vamos fazer uma pescaria com uns amigos para a ilha Margarita, nada mais do que isso. O peixe havemos de o arranjar, não te preocupes com isso. ― Lá vamos nós outra vez! ― gritava o Batata… (o Zé Ninguém esfregava as mãos de contente e o Come e Cala fingia que não era nada com ele). Os dias que faltavam para o tal passeio foram dias de grande expectativa. À hora combinada, um “Chevrolete” preto, com o tenente Morales ao volante, encostou, sem hesitações, à entrada do parque do edifício onde morava: o Solano tinha feito o trabalho de casa, informando-se da minha morada. ― Bom dia. ― Entra, entra, não nos podemos atrasar que estão à nossa espera. Rolámos em direcção a Sabana Grande. Demos algumas voltas e quando dei por mim estávamos no aeródromo da Carlota. Um jovem soldado apresentou-se ao tenente Morales, esboçou a continência e tomou conta do volante e da viatura, convidando-nos a sair. ― Vamos Portó… segue-me. Por uma espécie de cancela entreaberta, penetrámos numa área reservada à força aérea e dirigimo-nos a um pequeno avião todo 173 Camilo Mortágua pintado de branco, cujo motor já se impacientava por levantar voo, roncando a todo o gás. Com o Morales a conduzir-me por um braço, entrámos para as entranhas do pássaro. Dada a minha ignorância na matéria e a “turbulência interior” provocada pelo imprevisto da situação, não vos posso dizer mais sobre as características do nosso transporte, já que a minha atenção estava concentrada no que viria a seguir. Do compartimento onde nos sentámos, com duas confortáveis cadeiras equipadas com cintos de segurança e mesinhas de apoio, nada se podia vislumbrar. Uma cortina espessa e escura separava o nosso habitáculo da parte dianteira do aparelho onde era suposto estar o piloto ou pilotos e, para fora, apenas umas diminutas janelas camufladas de adesivos escuros. Apercebendo-se da minha estranheza, o Morales fez questão de me tranquilizar. ― Não te preocupes, que tudo vai correr muito bem. Temos que obedecer às regras que estão definidas. Quem participa destas missões não deve ficar a conhecer mais que o estritamente necessário. Vamos voar cerca de hora e meia até ao nosso destino, o melhor é descansar um bocado. Era como pedir ao trapezista que dormisse no trapézio… após a hora e meia anunciada aterramos… melhor dito, poisamos. Ávido de luz e horizontes, ao abrir das portas perscrutei a paisagem em busca de referências, mas tudo me era desconhecido. Pelas cores que decoravam uns aparelhos que ao longe se vislumbravam, devíamos estar algures na Venezuela, bem perto da costa. Para lá de uma estrada que tracejava de preto a vermelha planície, viam-se barcos de recreio de diversos tipos e um corrupio incessante de pessoas, qual carreiro de formigas, transportando alimentos para o seu formigueiro, no caso, um grande «catamarã» totalmente branco. Ao nosso encontro encaminhou-se um jovem de uns vinte a vinte e cinco anos, franzino, com óculos de cientista, de grossas lentes redondas e aros de metal, sandálias de praia, bermudas e camisa floridas a condizer, barba por “cultivar”, com ar de estudante. Estendeu os braços para Morales. Abraçaram-se. Logo de seguida: ― Portó… te presento al compañero Luís Aguirre; Aguirre, esta és la persona com quien vamos trabajar. 174 Andanças para a Liberdade ― Tanto gusto, Aguirre. ― Entonces vamos? ― Si… vamos. Começámos a andar dirigindo-nos para o porto. Entrámos num pequeno veleiro que logo levantou âncora e se fez ao mar… repetia-se a cena… instalados num compartimento interior, nada nos era dado observar para o exterior. Pouco tempo depois, o Aguirre abre uma pequena mesa, pousa sobre ela a grossa pasta de cabedal e diz: ― São agora nove horas da manhã, dentro de quinze a vinte minutos estaremos a bordo do nosso hotel por esta noite. Começaremos por tomar o pequeno-almoço e depois metemo-nos ao trabalho de forma a tudo poder aprontar até amanhã ao meio dia, a tempo de reentrarem em Caracas de dia. Dirigindo-se a Morales: ― Estás de acuerdo? ― Claro, hombre, macanudo… (o Morales a falar calão… era de admirar). Passaram-se os vinte minutos anunciados e continuávamos a navegar, ao que me parecia, dando voltas no mesmo lugar… Morales para o Aguirre: ― Que se passa? ― Nuestro hotel aun no llegó… hay que esperar un rato… Uma meia hora depois aparece o Aguirre e vai explicando: ― Los compañeros tuvieron unos encuentros inesperados, pero estan llegando… Pouco depois ouviu-se um forte roncar de motores e dizem-nos para subir: junto ao nosso pequeno veleiro, a uns escassos cinquenta metros de distância, baloiçava suavemente um belíssimo catamarão com um “apartamento” de dois andares a ligar os dois flutuadores. Do tecto sobressaíam silhuetas que embora recobertas de camuflagem, deixavam facilmente adivinhar os fins a que se destinavam. Um pequeno bote de borracha foi lançado à água e nele nos trasladámos, Aguirre, Morales e eu, até ao nosso “castelo” marinho, de brancura imaculada. Fomos recebidos pelo tenente Linares, homem dos seus quarenta, baixote e entroncado, de pele escura e olhar perscrutante, que nos entregou a um membro da sua tripulação, dizendo-lhe: 175 Camilo Mortágua ― Robles… lleva estes compañeros a sus aposentos y indica-les la sala de desayuno. Confortavelmente instalados e bem restaurados por abundante e variado pequeno-almoço tipo continental, com muitas frutas de acrescento, instalámo-nos numa acolhedora sala para, finalmente, saber ao que vinha. Na sala já se encontravam duas pessoas. Uma mulher ainda jovem, morena, de cabelos e olhos negros, vestida de saia e blusa caqui, grandes olheiras e ar ensonado, que nos foi apresentada como companheira Rosália, acompanhada por um personagem inverosímil, baixinho e franzino, movendo-se num movimento ondulante como se as pernas fossem de borracha, todo ele elástico, grande cabeleira e barbicha curta, olhos como faróis, dono de um vozeirão grave e forte nada condizente com a pequenez do corpo, que se apresentou ele próprio como comandante Parra, responsável pelos serviços de radiodifusão da Revolução. Instalámo-nos: Morales, Aguirre, Rosália, o comandante Parra e eu. Parra tomou a palavra: ― Compañeros, muchas gracias por vuestra disponibilidad en venir hasta nosotros. Los objetivos de nuestro encuentro son: fijar las bases de los sistemas y normas de comunicación capaces de asegurar con seguridad e eficacia nuestras necesidades de información y coordinación para las acciones a desarrollar entre Venezuela y la Sierra, en general, y de manera particular lo que tiene a ver con: A) las entregas de apoyo logístico; B) la difusión de nuestros boletines sobre la lucha y la situación Cubana; C) los servicios de depistaje de nuestros emisores móviles; D) mejorar la eficacia de nuestras comunicaciones de coordinación entre los diferentes grupos de combatientes. Tenemos que trabajar adentro de los más rigurosos métodos de seguridad, no porque la ayuda de Venezuela sea un secreto, que no lo es, pero para que el enemigo infiltrado no pueda saber: como, cuando y donde, las cosas se pasan, para nuestra propia seguridad. Trabalhámos nesse dia até altas horas da noite, à nossa volta apenas o chape-chape da leve ondulação batendo nos flutuadores bem por baixo de nós. De tempos a tempos, as máquinas punham-se 176 Andanças para a Liberdade em andamento e sentíamos as vibrações de curtas mas rápidas deslocações. Antes de ir para os beliches, o Morales veio ter comigo para me tranquilizar: ― Não estejas preocupado… eu amanhã acerto com o Parra as questões que sei te estão a preocupar de maneira a que as nossas actuações não saiam de território venezuelano. Pelo que se tinha consensualizado, os meus programas de rádio, mais um outro período de emissão designado por Voz Libre del Caribe a transmitir após a hora de fecho das emissões normais por um potente emissor venezuelano que não me foi identificado, constituiriam os pontos iniciais e terminais de todo o sistema. No meio, estaria um complexo conjunto de postos retransmissores móveis, num e noutro sentido, de forma a impossibilitar a identificação da origem das transmissões. O Morales seria o responsável do sistema para a Venezuela e vizinhanças: Curaçau, Aruba, Colômbia etc., e numa outra altura seria feito trabalho idêntico de coordenação com os companheiros da República Dominicana – neste caso, com mais dificuldades técnicas, dada a enorme capacidade de meios de intercepção de que dispunha Rádio Trujilho e o ditador, face à fragilidade das forças combatentes ainda em fase embrionária. Voltámos a Caracas nesse primeiro domingo de Março de 1958, dois escassos meses após a queda do ditador. Na carrinha que me transportou da Carlota até casa, encontrei o resultado da grande pescaria que tínhamos feito… Combinámos, o Morales e eu, que todas as manhãs iria comprar o jornal El Universal num determinado quiosque perto dos supermercados Oporto, em Sabana Grande, que o dono teria sempre apartado para mim, dentro do qual estariam todas as instruções para o trabalho de cada dia. Durante esse ano, voltámos duas vezes às “pescarias” para acertar pormenores, corrigir falhas que se tinham revelado ao nível da descodificação de certas mensagens emitidas em português e para adaptar as respostas às novas necessidades que o avanço da luta ia colocando. (Sobre os companheiros Dominicanos e suas tragédias não se voltou a falar.) Da última vez, meados do mês de Outubro, o nosso trabalho limitou-se a tratar da evolução do nosso papel futuro. 177 Camilo Mortágua Durante este ano, muitas foram as mudanças significativas operadas nas diferentes actividades que me iam ocupando os dias. A actividade principal era sem dúvida a de dar cumprimento aos compromissos assumidos com o Morales, tendo para isso que garantir a produção e a difusão dos programas quotidianos previamente estabelecidos e, em consequência, continuar a prestar a Ecos de Portugal toda a assistência necessária à procura de anunciantes. As notícias vindas de Cuba, cedo começaram a fazer prever que a luta não duraria muito tempo. A partir de Agosto-Setembro instalou-se em nós a convicção de um final vitorioso durante o primeiro trimestre de 59. À medida que os guerrilheiros avançavam em direcção a Havana, mudavam completamente as necessidades, mas também as possibilidades e a natureza do aprovisionamento. Os serviços que prestávamos revelavam-se cada dia mais desajustados. No nosso último encontro do ano, tínhamos tomado uma decisão: se determinadas condições previsíveis se concretizassem, a partir de 15 de Novembro seria desmontado o dispositivo, permanecendo apenas a valência de difusão dos boletins procedentes de Cuba e a promessa de que um último encontro seria marcado para as despedidas. Como as expectativas vinham sendo ultrapassadas, a partir da data combinada deixámos de receber instruções diárias e amainou o meu corre-corre, sempre angustiado com medo de que um erro ou atraso numa informação pudessem ter consequências fatais para quem directamente arriscava a vida no campo das operações militares. Se alguma vez aconteceu, nunca fui informado disso. Por vezes, isso sim, muitos pontapés e murros sobre aparelhagens as mais diversas, ou exaltações acompanhadas de insultos a quem nos empatava as corridas ziguezagueantes pelas avenidas de Caracas “embotelladas” até aos passeios, serviram-nos de escape à angústia provocada pelo temor de um desastre iminente, evitado no último minuto. Mas esses momentos eram, ao fim e ao cabo, o sal que temperava e dava gosto àquela surda rotina. Quando esse último encontro foi marcado, pensei para mim que esse seria o encontro para a “grande festa”, mas enganei-me. Havia mais uma tarefa a cumprir! Para minha surpresa (o convite veio uma semana depois da chegada de Fidel a Havana), sete dias após a vitória da Revolução, apenas sete dias! 178 Andanças para a Liberdade ― Portó… (era o Morales) temos que ir à pesca! ― Outra vez? ― Siempre, mí Hermano, después de las victorias, las conmemoraciones…. ― Não podia ser em La Havana com barbudas e tudo? ― No, no, hombre, nosotros trabajamos por el aire, somos como el viento, nadie nos vê! ― Bem, bem, deixa-te de filosofias e desembucha. ― Pasado mañana, vengo a buscar-te, a la hora de siempre, cinco de la mañana… ― Ouve lá… os guerreiros não costumam descansar depois das batalhas? ― Aun es muy joven para descansar… deja-te de bromas y no duermas. E lá partimos para outra “pescaria na ilha Margarita”. Com os mesmos personagens dos outros encontros, ou quase, lá nos encontrámos no nosso “castelo flutuante” sem adornos nem cores, apenas branco. À mesa sentaram-se dois novos personagens apresentados como sendo os comandantes ajudantes do comandante supremo, que estavam ali para nos dar as instruções do que deveríamos fazer durante a visita do camarada Fidel a Caracas, onde chegaria dia 23. A tarefa não era muito complicada, e era tarefa para o Solano e para o Morales. Tinham-me convidado por gentileza e apreço pelo trabalho realizado conjuntamente, não porque precisassem de mim naquele encontro. Apreciei a atenção. Apenas tínhamos que conseguir que o máximo possível de emissoras de Caracas e do interior transmitissem as palavras de Fidel à chegada e à partida, e almoçar dia 24 com uns companheiros da República Dominicana no hotel Humbolt, lá no cimo do Ávila. Esclarecido esse ponto, entrou-se no período dos brindes… dos abraços e das teimosas lágrimas a selar aqueles momentos de extrema emoção aos gritos de Viva Cuba… Hasta siempre! 52. Fidel Castro em Caracas 179 Camilo Mortágua Caracas e Venezuela engalanavam-se! Vinte e três dias depois da sua entrada triunfal em La Havana, um ano depois da queda do ditador venezuelano, o Herói das Américas, o novo Bolívar, o grande redentor da honra e orgulho dos Povos Latino-Americanos, Fidel o Libertador, Fidel o “David” vencedor do grande “Golias Imperial”, Fidel o cavaleiro mitológico daqueles tempos, que dominava mentes e sonhos de todos quantos acreditavam serem esses os dias em que se construiria o Mundo Novo de há muito prometido, esse ídolo absoluto daquela época naqueles lugares, vinha até nós, num nobre acto de inequívoco agradecimento pela imensa solidariedade recebida do Povo e Governo da Venezuela. Ainda hoje sinto que existe na América Latina um sentimento espontâneo, uma predisposição natural dos povos para se entreajudarem, um quase sentimento de nacionalidade latino-americana a sobrepor-se às identidades nacionais, dificilmente compreensível para quem tome por referência a evolução histórica e os comportamentos colectivos das sociedades nacionais de outros continentes. Para uma possível explicação dessa consciência de ser latino-americano, concorrem, primeiro, um colonizador único, a Espanha (à excepção do Brasil), depois um “ocupante e opressor” também quase único, os EUA, e, talvez, um processo quase simultâneo e solidário de acesso às independências nacionais. Cedo os latino-americanos compreenderam que só na União encontrariam a salvação. Também o “ocupante-opressor” assim o entendeu, empenhando todo o seu poderio para evitar essa almejada união dos povos latino-americanos. Penso ser por isso que cada vitória real ou aparente de um povo é sempre saudada como vitória dos outros. O juízo que a priori possamos fazer dos acontecimentos que constituíram o processo da evolução histórica deste continente, em particular os dessa época, em nada podem alterar, como é óbvio, os sentimentos e estado de espírito de quem os foi protagonizando. Também eu, com os meus 25 anos quase completos, tinha a sensação de estar a viver na “cabeça” do mundo. No lugar onde se estavam a colocar os alicerces e traves mestras das sociedades humanas do futuro. Para mim, a Caracas da época era algo assim como o Paris da Revolução Francesa, ou Moscovo dos tais “dez dias que abalaram o Mundo”... mas, não sei porquê (lembro-me bem desse pensamento), 180 Andanças para a Liberdade também me passou pela mente que tudo pudesse acabar como há quase dois mil anos no Monte das Oliveiras. Nada havia, na manhã daquela sexta-feira 23 de Janeiro, que pudesse empalidecer os céus de Caracas. Quando por volta do meio-dia surgiu, ultrapassando a crista del Ávila, o superconstellation da Aeropostal Venezuelana, trazendo a bordo Fidel Castro e uma extensa comitiva da qual, segundo indicações do comandante Parra no nosso último encontro, fariam parte Célia Sanchez, Pedro Miret, Luís Orlando Rodiquez e Violeta Casals, entre outros, as rádios transmitiram directamente desde o avião o comentário de Fidel ao sobrevoar a majestosa cadeia de montanhas que circundam Caracas: ― Se Havana tivesse estado cercada de montanhas como estas, a guerra não teria durado tanto tempo. Ao voar sobre estas montanhas imagino que estamos na Serra Maestra. Agradeço imensamente ao povo de Caracas e da Venezuela a oportunidade de poder participar do primeiro aniversário da sua libertação. Respondem-lhe os venezuelanos: ― O povo venezuelano experimenta hoje a sua mais profunda emoção martiana. Um filho de Cuba, da mesma estirpe de Marti e da mesma coragem batalhadora de Maceo, vem compartilhar connosco o aniversário do 23 de Janeiro. E vem, depois de ter realizado a façanha libertadora e libertária mais assombrosa do nosso tempo americano. Em Maiquetia, no aeroporto internacional, já tinha aterrado o Britania da Cubana de Aviação com a restante delegação que se preparava para enquadrar a recepção ao Líder Cubano, quando este pisasse solo venezuelano após ter sobrevoado Caracas. As multidões em delírio irrompem imparáveis para o avião mal as portas se abrem. As forças militares presentes têm dificuldades em evitar a avalanche. As coisas só se acalmam graças à intervenção do almirante Larrazábal, acompanhado por todos os líderes dos partidos políticos, membros do seu Governo e de Fabrício Ojeda, presidente da Junta Patriótica Venezuelana. Nesse memorável dia, acompanhado pelo Solano, deixámos Maiquetia pouco depois das cerimónias de recepção junto ao avião… O Solano tinha combinado com o Morales encontrarem-se no centro de transmissões da Força Aérea, na Carlota, para fazer a verificação 181 Camilo Mortágua das transmissões das emissoras que se tinham comprometido a retransmitir as cerimónias e elaborar o respectivo relatório para enviar ao comandante Parra. Só ao fim dessa tarde a caravana oficial chegou à Praça do Silêncio em Caracas, centro da capital venezuelana. Aí discursou Fidel durante duas longas horas, perante uma multidão avaliada em mais de trezentas mil pessoas. Até à sua partida, a 27 de Janeiro, sucederam-se as homenagens e os contactos com diferentes responsáveis políticos, sindicais, universitários, etc. Durante a sua visita à Universidade é anunciada a criação do Comité pela Libertação de Santo Domingo, para o qual Fidel contribui com cinco bolívares, esclarecendo que assim se iniciava a marcha de Bolívar pela Liberdade da República Dominicana, gesto seguido pela contribuição do almirante Larrazábal. Uma nova frente de luta se abria. Entre os convidados encontrava-se o poeta chileno Pablo Neruda que, ao dirigir-se ao microfone para ler o seu poema Um canto para Bolívar, esclarece: “Nesta hora dolorosa e vitoriosa que vivem os povos de América, meu poema, mudando de lugar, pode entender-se que vai dirigido a Fidel Castro, porque nas lutas pela liberdade, surge de cada vez o destino de um homem para dar confiança ao espírito de grandeza na história dos nossos povos.” A visita terminou num encontro com Rómulo Betancourt que tinha sido recentemente eleito Presidente da Venezuela e se encontrava repousando na sua residência de Baruta. O encontro, a dois, durou mais de duas horas, sem que nada fosse dito sobre a conversa entre eles. Para mim, a visita de Fidel terminou no fim do primeiro dia, após a imponente manifestação nos espaços “del Silêncio”. Este momento tinha que constituir um efectivo virar de página… era tempo de dedicar mais tempo e atenção à nossa própria luta… maior participação na Junta Patriótica Portuguesa. Salvo que, os Dominicanos estavam à espera lá no alto do Ávila, e amanhã se saberia que novas “andanças me esperavam”. Lá iria, em companhia do Solano e do Morales ao encontro de novos homens, novos companheiros, que, com as suas acções, me iam preparando moral e psicologicamente para quando fosse chegado o momento de lhes seguir os exemplos. 182 Andanças para a Liberdade Desta vez, os três homens vestidos de caqui verde sem distintivo algum, não tinham nomes. O comandante Parra limitou-se a dizer: ― Estes são os companheiros dominicanos. (Infelizmente, alguns meses depois, em finais de Junho, vim a descobrir os seus nomes. Todos faziam parte dos heróis mortos em Constanza e Estero Hondo, poucos dias depois de terem desembarcado com mais uma meia centena de companheiros. Dessa tentativa de sublevação, apenas sobreviveram uma escassa meia dúzia de combatentes.) Aquele que assumiu ser o responsável pelo grupo foi dizendo: ― Companheiros, este nosso encontro destina-se apenas a conhecer-nos para facilitar contactos futuros. Temos conhecimento dos grandes serviços prestados pelo vosso grupo aos irmãos de Cuba e esperamos que, chegado o momento, nos ajudem de igual forma. O estado de desenvolvimento da nossa luta ainda não está em condições de aproveitar cabalmente as vossas capacidades de ajuda. Esperamos que dentro em breve, já instalados em solo pátrio, possamos indicar com rigor a natureza das acções que nos serão necessárias. Logo que esse momento chegue, utilizaremos os bons ofícios do companheiro Parra para entrar em contacto. Até lá, estejam atentos à nossa luta e divulguem-na o mais que puderem, sobretudo se o puderem fazer junto do nosso povo, para o interior da pátria dominicana. Abraçámo-nos e desejámo-nos mutuamente sorte e coragem! Os nossos desejos de nada lhes serviram… não perderam a coragem e, por isso, encontraram a morte em combate com o exército do ditador Trujilho. Enfim… a acalmia que se adivinhava nas correrias quotidianas, também devia servir para dedicar mais atenção às coisas de carácter profissional necessárias à sobrevivência. Entre nós, Morales, Solano e eu, estabelecemos que embora não tivéssemos tarefas específicas a cumprir, nos iríamos encontrando uma vez por semana para… “dar milho às pombas”. 53. A Junta Patriótica Portuguesa 183 Camilo Mortágua Politicamente falando, o “menino de coro” que eu era, entrou nessa ocasião pela primeira vez numa “paróquia política”: A Junta Patriótica Portuguesa! Durante a minha colaboração com os companheiros venezuelanos e cubanos, só se falava do que havia a fazer e de como devia ser feito. Estava dado por entendido que todos sabíamos por que razão o fazíamos… sobre isso não havia discussões. Ao entrar na Junta Patriótica Portuguesa, fazia o meu baptismo de militante político, onde o que havia a fazer era conseguir explicar aos outros compatriotas (aos ditos democratas e aos que ainda não o eram, sobretudo a estes) quais as razões por que deviam lutar contra o regime vigente em Portugal, e, ao mesmo tempo, como é que essa luta deveria ser feita para obter o resultado desejado. Ora… era aqui que as coisas se enredavam. Embora todos falássemos em Democracia, cada “paroquiano”, obedecendo ao seu “bispo ou papa” defendia e proclamava a sua maneira de querer conquistar a “Liberdade”. Comecei a perceber que isso não passava, quase sempre, e de parte a parte, de mera manobra de diversão, para melhor poder impor o seu controle sobre a Liberdade dos outros. Remetendo-me o mais possível à condição de observador, fui assistindo às práticas dos “sacerdotes da política”, militantes experientes e treinados para obedecer sem vontade nem opinião própria aos seus “superiores” na hierarquia de cada igreja-aparelho, guindados sistematicamente à posição de directores/controladores de todas as “capelas” ditas de base, mestres naquelas artes e rituais de empatar toda a discussão até se obter a decisão superiormente encomendada. (Pobre de mim, que nem desconfiava vir a encontrar muito pior. Estes “sacerdotes”, apesar de tudo, eram, na sua maioria, “sacerdotes operários”, pelicanos dadores de sangue à causa, não vampiros chupadores de energias alheias.) Confesso que, quanto mais assistia às reuniões onde estas “inteligentes” exibições de estilo e competência política eram encenadas, mais crescia a desilusão. Afinal, eram assim os políticos, aquilo é que era a política? Eu, que, na minha ingenuidade da “coisa política propriamente dita”, tinha criado para mim mesmo a imagem de que um “político” era qualquer coisa assim como ser “bombeiro”, trabalhar para evitar incêndios, estar sempre disposto a ajudar os 184 Andanças para a Liberdade outros, a arriscar a vida para salvar a do próximo, começava a duvidar dos méritos de tais personagens. Naquela altura, a “confissão” dominante na “paróquia” da Junta Patriótica Portuguesa era de obediência ortodoxa moscovita; os “sacerdotes” em exercício, embora pregassem o ecumenismo, na prática retiravam sempre o «e» à palavra, para não estranharem demasiado a ressonância da verdadeira, à qual se devotavam. Quando por alturas de Setembro-Outubro desse ano de 1959 se começou a falar na próxima vinda à “nossa paróquia” dos verdadeiros “Papas” da oposição política à Portuguesa, pensei cá para comigo... já agora… aguenta aí, vamos lá a ver se isto “à portuguesa” e a nível de cúpula, é mais interessante! Esperava-se pela visita de Humberto Delgado, o “general sem medo”. A propósito desta designação, lembro-me perfeitamente de ser interpelado pelo Zé Ninguém; com a anuência dos outros membros do meu C.A.A.C., disse-me ele: ― Mas tu não achas que um general sem medo é um irresponsável… se não tem medo… não precisa de coragem; se não precisa de coragem… não pode avaliar o perigo… chiça… eu é que não ia para a guerra com esse general. Na altura não dei grande importância ao atrevimento dos meus “sacerdotes cognoscitivos” (como um deles pretendeu que eu os designasse), mas, depois disso, tenho pensado muitas vezes no assunto. Anunciava-se igualmente a vinda do capitão Henrique Galvão. Este viria para ficar. Para dirigir a oposição portuguesa da Venezuela. Embora a Junta Patriótica Portuguesa fosse oficialmente a entidade responsável pelos convites, na prática, tudo quanto a “oposição portuguesa” fazia ou deixava de fazer na Venezuela, dependia da vontade de um só homem, o deputado César Rondon Lovera. O professor Rondon Lovera, destacada figura do partido Accion Democrática, onde ocupava o pelouro de Secretário dos Assuntos Internacionais, Presidente da Comissão de Política Internacional do Congresso Venezuelano, Vice-Presidente do Comité Pró-Libertad y Democracia de Portugal, secundado pelo português Mário Mendes da Fonseca na qualidade de Secretário-geral adjunto deste mesmo comité, e igualmente dirigente da Junta Patriótica Portuguesa, constituíam a dupla de filtragem das relações do Governo da Venezuela 185 Camilo Mortágua com os democratas portugueses, o que, na prática, significava que, a quem não fosse membro da Junta Patriótica Portuguesa, não lhe era reconhecida a condição de democrata e de opositor ao regime de Salazar! Esta dupla, cuja origem a minha memória não consegue separar de um impreciso e fugaz comentário acidentalmente retido (de procedência indefinida e em tempos imprecisos), teria a sua circunstancial génese num incidente que teria envolvido o professor Rondon e a polícia salazarenta, aquando de uma sua passagem por Lisboa, durante os seus tempos de exilado. Fossem quais fossem as circunstâncias da sua criação, a verdade é que, pelos menos aparentemente, eram duas almas inseparáveis e incontornáveis, nada se podendo pedir às autoridades venezuelanas sem passar pelo intermediário Mário Mendes da Fonseca. O Mário Mendes da Fonseca, à época sujeito dos seus quarenta ou cinquenta anos, fazia questão de bem ostentar a sua ligação a tão importante personagem, como factor de promoção pessoal e da sua indispensável utilidade. A sua utilidade e credibilidade só existiam, sem questionamento, porque avalizadas pelo prestígio e confiança devidos a este político venezuelano, sinceramente dedicado à causa do derrube do ditador português. (Se vos estou comentando estes detalhes que vos podem parecer de reduzido interesse para as nossas “andanças” é porque sei, por experiência própria e pelas razões que já compreendereis, que nas vidas de quem viveu os caminhos da luta pela Liberdade, as pequeníssimas e banais histórias do relacionamento quotidiano entre activistas foram quase sempre as verdadeiras causas dos sucessos ou fracassos da luta, depois explicados e ou justificados por sofisticadas razões de ordem moral ou técnica.) Como vos vinha dizendo, na Junta Patriótica “oficiava-se” a doutrina do “socialismo científico”. A Direcção estava entregue a gente de confiança com provas dadas em outras paragens, com experiência mais do que suficiente para enquadrar e “conduzir”, pela “via justa”, os recém-tocados pela “febre revolucionária” que agitava corações e mentes das juventudes dessa época histórica. A maioria do grande número de novos recrutas que então acorriam a bater às portas dos “templos” político-ideológicos… era bemintencionada, mas politicamente ignorante e ingénua, como eu. Nas 186 Andanças para a Liberdade mãos dos “velhos militantes”, éramos como cordeiros nas mãos de Abraão em época de “sacrifícios ao Senhor”. Com a chegada de Henrique Galvão, as condições alteraram-se radicalmente. Entre os “sacerdotes” instalados e os “noviços seminaristas da catequese”, havia agora uma espécie de “cardeal” a querer discutir a correcção dos fundamentos doutrinários ali praticados. Logo pude observar que embora todos utilizassem palavras mais ou menos iguais, o “cardeal” defendia uma teologia diferente! Ao fim de duas ou três reuniões, Galvão fechou a porta atrás de si, dizendo que aquilo não era uma organização democrática e que a Junta não passava de uma secção local do Partido Comunista Português, partido e gente com a qual não podia trabalhar por andarem a enganar os democratas fazendo-os crer que queriam derrubar o regime, ao mesmo tempo que condenavam e combatiam a acção directa contra a ditadura, preferindo a procura de “uma saída pacífica para o problema português”, no seguimento da linha oficial do Partido adoptada no seu V Congresso de 1957. Na dúvida… achei que essa coisa da “acção directa” tinha mais a ver comigo do que as discussões sobre o teor dos discursos e comunicados a que nos tínhamos dedicado até então. Também me fui embora… optei por seguir o homem que queria acção directa… desde esse dia e durante quase cinco anos, apesar de nem sempre estarmos de acordo, raramente nos separámos. Consumada a ruptura entre Henrique Galvão e a Junta Patriótica Portuguesa, onde pautavam, entre outros, o Mário Mendes da Fonseca e os assumidos militantes comunistas Sérgio Alves Moreira, Joaquim Lisboa, João Lopes, e ainda o indefinível major Luís Cesariny Calafate, instala-se a guerrilha entre a Junta e o pequeno grupo que tinha decidido acompanhar Henrique Galvão, grupo do qual eu fazia parte e que incluía, entre dois a três companheiros mais de quem não guardei memória, o Engenheiro Júlio Cid da Costa Mota e o José Frias de Oliveira. É certo, como afirma o então major Luís Calafate, mais tarde tenente-coronel Luís Calafate, no seu livro A Liberdade tem um preço, edição do autor de 1975, que na altura em que os convites a Delgado e a Galvão foram feitos, a Junta Patriótica perseguia o objectivo de conseguir do governo venezuelano um empréstimo suficientemente avultado para cobrir as necessidades de financiamento de uma acção 187 Camilo Mortágua capaz de abalar seriamente o regime e garantir condições de continuidade à luta dos revolucionários portugueses. Esta expectativa era alimentada pelas informações e promessas do senhor Mário Mendes da Fonseca, intermediário único entre a Junta Patriótica Portuguesa e o reconhecido e oficial Comité Pró Libertad y Democracia de Portugal, através do seu amigo e Vice-Presidente do referido Comité, deputado César Rondón Lovera. De certa maneira, esperava a Direcção da Junta Patriótica que a presença de tão prestigiados e ilustres personagens pudesse servir para que, em negociações ao mais alto nível com o Governo venezuelano, se concretizasse a referida promessa, até aí apontada com optimismo pelos referidos interlocutores! Pessoalmente, era céptico quanto à concretização de tal promessa, dada a minha experiência das práticas venezuelanas em relação à ajuda a Cuba e à República Dominicana, as quais, segundo os meus contactos, sempre tinham sido exclusivamente dadas em ajudas materiais e de serviços, nunca em dinheiro, o que segundo o Morales obedecia a um acordo interpartidário bem estabelecido. Com todas as expectativas intactas, chegou o general Delgado. Por entraves diplomáticos relacionados com a obtenção do seu passaporte, Henrique Galvão só conseguiu chegar na véspera da partida do general, que tinha passagem marcada para Londres via Nova Iorque. Sobre a visita do general, dou a palavra ao major Luís Calafate: “(…) Os dias decorreram com programas sobrecarregados de visitas, cerimónias, reuniões, comícios. Os ventos da fraternidade varreram, por instantes, a tristeza nostálgica do emigrante. Tudo isto, porém, não sendo pouco como contribuição para umas horas de alegria entre compatriotas, perderia importância se terminasse com a partida do general. Verdadeiramente, o que importava acima de tudo era que as consequências se continuassem através da concretização do apoio financeiro à luta revolucionária. Já não punha dúvidas na sua consumação: o nosso Presidente eleito iria agora torná-la realidade, com o aval do seu grande prestígio. A delicadeza da operação, por envolver altas individualidades, torna evidente o seu carácter rigorosamente secreto, que nos cria a obrigação de, a partir deste momento, nos afastarmos, deixando sozinho em campo o nosso chefe, apenas com quem ele escolhesse, e com todo o peso da sua autoridade, selar o acordo. 188 Andanças para a Liberdade A despeito das perspectivas mais optimistas, o empréstimo não se conseguiu. Um indizível desalento foi o pesado tributo desta derrota – uma arma que nos escapa da mão, sem o que o combate não é, de modo algum, possível. Devido às dificuldades diplomáticas, Galvão não chegara ainda da Argentina. Com ele estudaríamos a forma desesperada de tentar uma recuperação. Fama, glória, talento organizador, valentia, resistência, tenacidade, inteligência, tantos trunfos haviam de resultar – a esperança ressuscitou. A experiência aconselhava mais cautela, conduta menos espectacular, outra vez um trabalho progressivo de consolidação de confiança. (Referindo-se a Galvão)… uma colaboração que me torna seu crescente admirador e, dia a dia, fortalece uma aliança que parece ser indestrutível, cimentada também na camaradagem das privações e apertos de dinheiro, quando os escassos bolívares das nossas colaborações nos jornais nem sequer chegavam para a renda do andar que habitávamos. Mas, o imprevisível aconteceu: a sua irredutível posição anticomunista iria provocar inevitável divisionismo nas fileiras dos exilados antifascistas, com reflexos fatais na confiança que até agora tínhamos 2 conquistado aos nossos anfitriões (…).” No texto de Luís Calafate, sublinhei as palavras “mais cautela, conduta menos espectacular”; que nos quererá dizer Calafate com estas cautelosas palavras, a que se quererá referir? É óbvio que nos está dizendo, de maneira indirecta, que o general Delgado, a quem deixaram sozinho na negociação com as “altas individualidades” do Governo Venezuelano, não tinha sido suficientemente cauteloso e discreto. Porém, não estava na índole do apaziguador Calafate assumir uma crítica frontal. Um pouco como no caso da “senhora Carrar e das suas espingardas” Calafate, queria ser neutral, mas a dinâmica dos acontecimentos obrigava-o a optar! Ao escolher ficar na Junta Patriótica, continuava prisioneiro da crença nas promessas do Mário Mendes da Fonseca relativas aos apoios do Governo Venezuelano, promessas de veracidade nunca confirmada. Essas promessas eram reais, ou fantasiadas pelo Mendes da Fonseca para valorizar o seu papel na relação 2 Luís Calafate, A Liberdade tem um Preço, 1975, edição de autor, pp. 205-206. 189 Camilo Mortágua com César Rondon Lovera? Para mim, e para os poucos jovens recrutas da Junta, não obedientes à disciplina partidária do Partido Comunista, esta questão estava em aberto. Orquestrada pelos membros da Direcção da Junta Patriótica, desencadeou-se então uma ofensiva destinada a isolar o capitão Galvão e o seu grupo dos contactos com as autoridades venezuelanas, de forma a coarctar-lhes toda a possibilidade de acção e até de sobrevivência. Atente-se, a propósito, e apenas a título ilustrativo do ambiente descrito, na carta de Mário Mendes da Fonseca ao major Calafate, datada de 7 de Março de 1960, cuja cópia publicamos em apêndice, sob o título Carta de Mário Mendes da Fonseca para o major Calafate. Em minha opinião é um documento interessante a merecer estudo atento, cujo original se encontra no Centro de Documentação 25 Abril, arquivo Calafate. Eu próprio tenho dificuldade em descodificar certos pormenores: nele se confessa a vilania de, com argumentos absolutamente falsos, pretender retirar o emprego ao capitão Henrique Galvão para o oferecer ao major Calafate, com o argumento falso de que o patrão, o dito senhor Sousa, não estaria satisfeito com os seus serviços. Ora, este senhor Sousa é o Maximino Alves de Sousa, uma das pessoas a quem Henrique Galvão dedica especialmente o seu livro sobre o assalto ao Santa Maria, pessoa que sempre o apoiou, levando a sua solidariedade muito para além duma simples relação de trabalho. Mendes da Fonseca dá-se ao trabalho de procurar influenciar o bom do Calafate dizendo-lhe que não deve ter escrúpulos! Esta primeira experiência de fractura entre comunistas e não comunistas, viria a repetir-se indefinidamente ao longo dos tempos que trabalhei lealmente com Henrique Galvão. Era assunto incontornável e sem inflexão possível. Sempre e quando se verificasse real ou pretensa hegemonia das orientações do Partido Comunista, coisa fácil de verificar pela tipologia das práticas e pela fraseologia dos seus militantes, Galvão afastava-se: “Essa não é a minha luta, não tenho tempo nem energias para combater dois adversários ao mesmo tempo, não me posso dispersar, tenho que dedicar toda a minha capacidade de luta contra o Salazarismo, mas, ao fazê-lo, não posso ir fortalecendo o inimigo que lhe sucederá.” 190 Andanças para a Liberdade Era a sua posição, assumida claramente e sem subterfúgios. Aceitava-se ou não! Como ali só se pensava em arranjar forças e meios para combater a ditadura, sem esperar por miríficas ofertas mais que duvidosas que só nos dispersavam, fazendo-nos por vezes esquecer a nossa condição de “pelicanos”, as coisas tornavam-se simples: tínhamos que ser nós a encontrar as soluções para poder atacar. Da nossa imaginação e arte, dos nossos paupérrimos recursos, materiais e humanos, do nosso sangue e cérebro teria que sair a energia para o combate, sem ilusões! Entre nós, a palavra de ordem era: cortemos as amarras com que nos quer internar no porto do comodismo rotineiro dos grandes discursos e homenagens, das verborreias retóricas para demonstrações de fazer de conta que se é, aquilo que não demonstramos, na prática, ser capazes de ser. Calados e discretos, façamos de conta que não ouvimos “o ladrar dos cães”. A planificação e preparação do assalto ao Santa Maria foi feita neste clima de exacerbação e desconfiança entre os afectos à Junta Patriótica Portuguesa e ao “Grupo Galvão”, grupo este que só viria a ter outra designação após o acordo com os espanhóis para a constituição do DRIL, feito pelo Galvão na qualidade de Secretário-geral do Movimento Nacional Independente. Esta representação deixava-nos (aos membros deste grupo) algumas interrogações, já que, segundo informações que circulavam abertamente em Caracas, o general Delgado continuaria, ao mesmo tempo, a manter ligações com a Junta Patriótica. Aqui chegados, um esclarecimento se impõe: Ao começar a “andar” com as ditas e tantas vezes auto-proclamadas “altas individualidades políticas”, a apreciação destas “andanças” deve ter em consideração que aquilo que vos conto não pretende ser a narrativa de “uma qualquer verdade histórica” destes tempos e acontecimentos. Longe disso. Não pretendo transmitir-vos resultados de pesquisas realizadas ou de sistemática e ponderada análise às inter-relações do conjunto dos factos narrados. Não sou historiador. Tenho-me a mim mesmo como um razoável contador de histórias vividas. O que vos conto é aquilo que a minha memória reteve da forma como compreendi, vi e senti os acontecimentos narrados e que nela 191 Camilo Mortágua permaneceram sem alterações. Sempre que não resista a um ou outro comentário, como é óbvio, ele é feito à luz de uma visão retrospectiva, ou por razões que o desenrolar de acontecimentos posteriores assim aconselhe. São resenhas da interpretação actual do vivido-recordado, e nada mais. Mas é, ao mesmo tempo, a afirmação de que a nenhum outro protagonista, nem sequer a Henrique Galvão, companheiro de algumas das próximas “andanças”, reconheço o direito de reivindicar para si o privilégio a uma qualquer verdade incontestável. Partilho da convicção de que só o cruzamento sistemático de diferentes testemunhos nos pode aproximar da melhor compreensão global das particularidades de cada caso. O texto que em apêndice se insere, intitulado Os esquecidos da democracia, da autoria de Júlio Fernandes, é exemplo e prova desta minha convicção. Lamento não dispor de meios e oportunidade para relembrar as muitas centenas de anónimos “dadores de sangue” à causa da luta pela LIBERDADE encontrados ao longo destas “andanças”. A História contemporânea de Portugal e dos portugueses, vai-se fazendo… também com os contributos daqueles que, com ou sem razão, julgam ter dela feito parte. Que essa História não venha, mais uma vez, a ser apenas configurada obedecendo ao critério da relativa “altura” mitificada das individualidades mencionadas, ou por desejos de promoção pessoal ou de auto-elogio familiar, e não pela excepcionalidade e exemplaridade da entrega de tempos de vida e vidas, a causas comuns, é um dos motivos do relato destas “andanças”, de discretas mas exemplares individualidades de que mais ninguém provavelmente falará. Por último, desejo sublinhar que, como qualquer outro, estou consciente de padecer, e ainda bem, das subjectividades inerentes à condição humana, susceptíveis de influenciar, num ou noutro sentido, as apreciações e descrições destas “andanças.” O que daqui para a frente for dito, repito, não deve ser tomado como pretensão a julgar as/os combatentes com quem me fui cruzando, tão só e apenas, dar e pedir testemunhos de diferentes visões dos acontecimentos relatados, coisa que não foi possível obter na quantidade e diversidade desejadas para este primeiro volume das “andanças”, mas que espero conseguir para o próximo. Pela minha 192 Andanças para a Liberdade parte, a idade adquirida e o que ainda espero da vida, incitam-me a tudo dizer sem a pretensão de julgar, mas, sem medo, até de errar! Sem os medos cuja ausência permite afastar de mim o “cálice paralisante” da incerteza no futuro. Quanto ao resto, caberá ao tempo e aos investigadores da História, atribuir-lhes a sua utilidade. 54. Mário Mendes da Fonseca Muito tenho hesitado em falar das “andanças” deste personagem. Por várias razões. Por receio de ser injusto ou pela omissão do que para nós, grupo do assalto ao Santa Maria, significou o temor das suas possíveis delações. Sem que ninguém, que eu saiba, tenha alguma vez apresentado provas incontestáveis disso, instalou-se entre nós a convicção de que este senhor tinha sido mandado para a Venezuela pela PIDE. Na dúvida, e sem meios para investigar o assunto, decidiu-se que nos devíamos comportar como se o boato correspondesse à verdade e cortar todo e qualquer contacto, não só com ele, como com todos os membros da Junta, em especial com os elementos mais representativos e sectariamente dependentes das orientações do Partido Comunista. Afirmações de aparência misteriosa, como aquela onde na carta que publicamos em apêndice diz: “Pois o assunto espinha dorsal é que interessa… e que isso é só com nós os dois” – correspondem bem ao tipo das enigmáticas promessas-isco pelas quais todos iam ao “beijamão” deste senhor! No livro de Henrique Galvão, O Assalto ao Santa Maria, edição Delfos para a colecção Compasso do Tempo, de 1973, a páginas 139 e seguintes, o autor diz ter pedido informações a Lisboa sobre este indivíduo, ficando a saber tratar-se de “um homem de passado escuro, condenado e procurado em Portugal por má conduta, uma sentença de três anos à sua espera. Fugira do país e refugiara-se na Venezuela onde, com o seu talento para o embuste, conseguira que o aceitassem como exilado”. Nesse livro, Galvão diz coisas que nunca tinham sido ditas (que eu saiba), nem a mim, nem a nenhum dos companheiros que com 193 Camilo Mortágua ele colaboravam, o que, no ambiente de quase clandestinidade em que se trabalhava, era perfeitamente normal. Cada um deveria saber apenas o necessário ao correcto desempenho das suas funções. Contudo, é sabido que as normas, depois de consensualmente aceites, podem ser usadas segundo os interesses de quem as utiliza… Sobre este mesmo sujeito, existem diversos documentos no arquivo do comandante Francisco Oliveira Pio, presidente da delegação regional do Movimento Nacional Independente (MNI) no Estado da Guanabara, Brasil, no arquivo existente na Biblioteca Museu República e Resistência em Lisboa e no arquivo do Dr. Sertório existente no Centro de Documentação 25 Abril em Coimbra, tecendo os mais rasgados elogios ao personagem e relatando-lhe um passado de lutador e democrata. Era um activista incansável, escrevia livros (creio que chegou a editar dois ou três cujos títulos não recordo), escrevia a toda a gente e a pretexto de poder enviar os seus livros pedia aos democratas espalhados pelo mundo (Brasil, Suíça, Paris, Argélia, etc.) as direcções pessoais dos mais destacados membros das oposições ao regime. Seja como for, para nós, membros do grupo que preparava as acções directas a levar a cabo sob o comando do capitão Galvão (que muito poucos sabiam quais seriam), este homem estava ao serviço da PIDE… e pronto, não se falava mais nisso. 55. O major Calafate O major Calafate, era assim que o tratávamos, de seu nome Luís Cesariny Calafate, major de Cavalaria, também chegou à Venezuela em 1959, três a quatro meses antes de Delgado e Galvão. Homem dos seus 40-45 anos, bem-parecido e simpático, percebia-se à distância a amargura que lhe ia na alma. As saudades da família e da vida que tinha deixado em Lisboa, dos saudosos passeios no seu barco de recreio, da estabilidade e do desafogo material de que desfrutava, da pacatez e estabilidade da sua vida de católico praticante e, sobretudo, do convívio rotineiro dos seus camaradas de arma e de carreira, afectavam-lhe o espírito e reduziam-lhe o discernimento para encontrar os antídotos à letargia que por vezes o assaltava. 194 Andanças para a Liberdade Depois de o conhecer, tive que suportar grandes lengalengas do Batata: “tás a ver… estes gajos malucos com vidas boas lá em baixo, que chegam aqui com eles a abanar… deixa-te dessas fantasias… andas a aturá-los e a gastar o que não temos para nós… porra… que vão trabalhar… assim nunca mais saímos desta merda… os gajos não aguentam… vais ver… não nasceram para estas vidas” – e por aí fora, horas e horas a fio sem parar. Estranhamente, quer o Come e Cala quer o Zé Ninguém deixaram de se fazer ouvir. Entraram de “licença sabática”, expressão usada pelo Zé, logo depois da minha decisão de optar pela via “acção directa”. Sempre suspeitei que o seu silêncio fosse uma atitude táctica para não levantar ondas antes de tempo. Dá-lhe guita… sussurrava baixinho o Come e Cala! Mas, reacções do Batata à parte, gostava do simpático major. Era transparente, simples, delicado e atencioso. Nessa altura vivia no mesmo apartamento do Henrique Galvão, em Sabana Grande – um apartamento moderno mas simples, no primeiro andar de um prédio de construção recente. Este apartamento era de facto a sede e base de operações do nosso grupo. Nele trabalhávamos todos os dias a partir das seis-sete horas da tarde, muitas vezes até altas horas da madrugada. Não havia móveis na verdadeira acepção da palavra. Sempre que lá estivessem mais de duas pessoas, sentavam-se no chão. Creio que havia uma espécie de estrados-cama em dois dos quartos, mas Galvão dormia numa esteira estendida num canto da sala, onde uma pequena mesa de abrir e fechar suportava a máquina de escrever que lhe servia de alfaia. No apartamento ao lado faziam vida umas damas italianas, das muitas que nessa época se dedicavam à prostituição em casa própria, até conseguirem amealhar a quantia desejada para (como diziam) poderem regressar à terra… com os véus da virgindade, casar bem, e abrir um negócio! Ora, porque um homem não é de ferro e a saudade não anula os vícios da carne, o nosso major, apertado pelos desejos e pela penúria material em que vivia, resolveu apelar para a solidariedade das ditas damas, pedindo-lhes um significativo desconto nos serviços, dada a sua condição de exilado político. Claro que as ditas senhoras não só 195 Camilo Mortágua não foram sensíveis à infeliz situação do frustrado cliente, como, ainda por cima, divulgaram o atrevimento. Conhecido o incidente, este, junto ao facto de o nosso major de Cavalaria, professor de equitação, ter sido atirado garupa fora e partido as costelas logo ao dar as primeiras aulas, ajudaram a criar à sua volta um certo clima de “tolerância condescendente” com aquilo que era tido como “as suas limitações”. Quando mais tarde se viu dividido entre os comunistas da Junta Patriótica e Henrique Galvão, na sua infinita e ingénua boa vontade, surgiu-lhe a luz! Queria juntar os comunistas com os católicos, fazê-los compreender que ambas as correntes lutavam pela felicidade dos homens e que essa seria a melhor maneira de isolar o ditador na sua aleivosia cega contra os comunistas. Com católicos e comunistas juntos, estaria feita a unidade que emprestaria força à oposição. Plenamente convencido de ter encontrado a solução para as misérias e dissidências que nos afligiam, uma noite, decidiu-se a argumentar com o Galvão para o convencer da sua teoria. Saindo fora da sua natural bonomia, não desistiu até que o Galvão caiu prostrado por terra com um enfarte. Nunca vi o nosso major tão aflito e pálido. Deve ter rogado a todos os deuses pela recuperação do seu amigo… Quando esta se verificou, o Calafate renasceu! Penso que esta terá sido a noite em que, sem o saber, ficou selado o seu percurso futuro: pedido de perdão a Salazar e regresso à pátria, à família e à sua carreira de militar. Mesmo depois do seu regresso, sempre acreditei na sinceridade deste homem. Um homem sem máscaras. 196 Andanças para a Liberdade Capítulo quinto Santa Maria (Santa Liberdade) 56. Génese e preparação do assalto ao Santa Maria Muito se tem escrito, não sei se o suficiente e nem sempre com honestidade, sobre o caso do assalto ao barco-navio Santa Maria, também designado por “Santa Liberdade” e “Operação Dulcineia”. Aqueles que, como Henrique Galvão, escreveram logo a seguir aos acontecimentos, compreensivelmente usaram aquilo a que eu chamo “linguagem de combate”; uma linguagem pensada e escrita como instrumento de animação e mobilização para a luta. Quarenta e oito anos depois, esse tipo de linguagem não me parece adequado. Empolar a adjectivação de situações extremas, mas mais ou menos genéricas, sem as tentar descrever nos pormenores mais ilustrativos da sua densidade dramatúrgica, trágica ou cómica, não se coaduna com a narrativa destas andanças. Porque, as nossas, são simples “andanças” de andar e dançar, de ir e vir, de passar para lá e para cá, procurando caminhos, umas vezes sérios, outras vezes parecendo que não. Preferimos ater-nos a falar daqueles raros momentos em que fomos capazes de rir de nós próprios… acreditando que o riso espanta o medo e, sem medo… a liberdade é possível! (Coisa que tínhamos compreendido muito antes do Umberto Eco o escrever.) É certo que éramos menos de meia dúzia de pobretanas, superiormente mobilizados e motivados para combates indefinidos. Um “D. Quixote” rodeado de “Sanchos Panças” apeados e desarmados. Mas… “o sonho comanda a vida”, e tínhamos uma grande capaci- 197 Camilo Mortágua dade de sonhar, embora não fôssemos ainda capazes, por essa altura, de ousar rasgar e ultrapassar certos preconceitos cuja observação nos paralisava. Ouvindo as discussões entre os membros do meu C.A.A.C., por vezes era intimamente alertado sobre certos paradoxos guardados para reflexão própria, não fossem eles levantar incompreensões e suspeitas capazes de abalar a coesão da nossa reduzida equipa. Lembro-me bem da pergunta do Come e Cala aos outros dois: ― Então digam lá, como é que se percebe que andemos p’raqui a choramingar de mão estendida por uns cobres para fazer a revolução? Então vocês não vêem que quem tem muito dinheiro não quer que a revolução se faça por medo de o perder; e quem quer fazer a revolução não tem nada a perder nem dinheiro para a fazer… e que é por isso que vocês não passam duns maluquinhos inconsequentes…tomem juízo… ou sim ou sopas… ― Muito bem, ó Cê-Cê (Come e Cala)… e as sopas, onde estão? ― Onde está o dinheiro, meus palermas. Vocês já admitem sacrificar vidas, sobretudo as vossas, para alcançar a Liberdade, mas ainda não são capazes de atacar o dinheiro, ainda não perderam o respeitinho ao dinheiro, suas crias… sem o dizerem, instintivamente, para vocês o dinheiro pertence ao divino, ao sagrado… Ia-me desequilibrando com o salto do Zé Ninguém, braço no ar… indicador em riste… grita: ― É isso mesmo, porra! Ó Cê-Cê, tás grande! É isso mesmo, somos mas é uns revolucionários da punheta… ― Vejam lá se têm juízo! ― dizia o Batata. ― Não se ponham para aí com punhetinhas revolucionárias, senão ainda nos lixamos todos. Ninguém acredita politicamente em assaltantes de dinheiro, é tabu, passas automaticamente a ladrão e deixas de ser revolucionário. Não adianta querer ser coerente, a coerência e a política nunca se deram bem. Por enquanto, até o Cê-Cê vai ter de se habituar a perder o primeiro Cê… vamos mudar-lhe o nome: não é mais Come e Cala, passa a ser só Cala. Não me quiseram ouvir enquanto era tempo, agora aguentem, seus bacorinhos de leite. Andávamos de “seca para Meca”, constantemente à procura de encontrar o “divino unto” para olear a nossa emperrada máquina. Há quem pense que a primeiríssima e única acção do Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL), nascido por alturas da 198 Andanças para a Liberdade celebração da morte e ressurreição do Senhor desse ano de 1960, foi a operação DULCINEIA. Poucos eram aqueles que sabiam do sacrifício supremo dos companheiros espanhóis enviados pelo DRIL para desenvolver acções directas no interior do território espanhol, garrotados (mortos no garrote) pelos carrascos do regime franquista, drama que obrigou os responsáveis a concluir que essa estratégia de querer “mandar pedradas” de uma margem para a outra do Atlântico, na prática, só servia para mandar “borregos” para o matadouro. A partir de Maio, Junho, a ideia de, também nós, termos que “dar o salto”, saltar o “charco”, foi ganhando corpo e pernas para andar. Antes de fixar a escolha sobre o veículo a utilizar, “despacharam-me” em missão, a bordo de uma outra nave, de nacionalidade espanhola, para observar, in loco, recursos e ambiente existentes durante o percurso de La Guaira a Puerto Rico. Ao voltar, já a decisão tinha sido tomada: seria o Santa Maria. Como, por essa altura, já tivesse participado publicamente nuns poucos programas radiofónicos da oposição, entendemos, eu e o meu sócio Daniel Morais, de comum acordo, que, para não prejudicar a empresa com o boicote da maioria conservadora da colónia portuguesa, devia deixar de fazer os programas da empresa Ecos de Portugal. Do ponto de vista das condições de sobrevivência, era uma agravante de peso; era necessário continuar a ganhar a bucha… Aconteceu estar-se instalando em Caracas uma pequena empresa de um compatriota que tinha uma concessão de exclusividade da NOVACAP (a empresa responsável pela promoção e administração da instalação da nova capital do Brasil em Brasília) para a venda de lotes de terreno dentro do perímetro do plano oficial de implantação da nova cidade. Esta pequena empresa tinha como proprietários o Maximino de Sousa e um outro português, a cujo nome a minha memória não chega. Desde a sua chegada à Venezuela mantinha com estas pessoas óptimas relações motivadas pelo seu interesse em publicitar a venda dos terrenos através da Ecos de Portugal. Foram essas relações que permitiram encontrar uma ocupação remunerada para o capitão Galvão, um simples emprego de auxiliar administrativo que ele respeitava e exercia com inteiro profissiona- 199 Camilo Mortágua lismo, tanto ou mais, como se fosse (expressão sua) lugar de ministro! O Sousa e o sócio, chamemos-lhe França, dois homens estruturalmente bons e adeptos entusiastas da nossa luta, acabaram por me facilitar a vida, confiando-me a responsabilidade de percorrer a Venezuela numa dupla função: tentar cobrar os créditos dos terrenos já vendidos e procurar vender novos lotes. A esta actividade veio juntar-se ocasionalmente a de agente-empresário de duas equipas inglesas de futebol feminino entretanto chegadas à Venezuela por intermédio de um português que, por ter que regressar com urgência a Portugal, me pediu para prosseguir com a promoção de jogos de demonstração através dos países vizinhos da Venezuela. Mas, na Venezuela daquele tempo, estávamos em situação idêntica aos da célebre história do socialismo e da banana. Como dizia o resmungão do Batata: “antes havia dinheiro, mas não havia liberdade; agora tínhamos democracia e liberdade, mas não tínhamos «banana», isto é, dinheiro; que porra de troca!” ― És mesmo um morcão burro ― respondia-lhe o Zé Ninguém. ― Então, ó meu tanso, diz-me cá… quando havia dinheiro, quem é que tinha as duas coisas, o dinheiro e a Liberdade? Continuamos a não ter dinheiro, mas temos a LIBERDADE… és mesmo calhau! Sem me deter aqui nas causas desta situação, já retratada por gente muito mais competente na matéria, o importante é que ninguém pagava a ninguém, ninguém comprava nada… os que se tinham locupletado com as imensas receitas petrolíferas do tempo da ditadura boicotavam como podiam a democratização social e económica que lhes retirara os privilégios. Este era o motivo das nossas conversas com os velhos amigos Solano e Morales, quando nos encontrávamos para dar “milho às nossas pombas”. O Leonardo, o mais infeliz de todos os companheiros, aquele que, por não ter podido entrar no Santa Maria, chorou como criança perdida da mãe, tinha participado de algumas das nossas mais aventurosas e trágico-cómicas andanças, em busca “das pastas” (como ele dizia). Uma das suas últimas tinha sido a tentativa de rapto do irmão! Sim, sim, isso mesmo. Tinha-nos proposto raptar o “barrigudo” do irmão para o obrigar a dar uma ordem de transferência das chorudas contas bancárias que tinha no Canadá, para as 200 Andanças para a Liberdade contas do DRIL. A operação foi estudada ao pormenor; ele próprio descreveu os percursos quotidianos do irmão; foi constituída a equipa para executar o plano; fizeram mais de dois mil quilómetros até ao oriente da Venezuela, mas… por sorte do Barrigudo ou falta de jeito e inexperiência dos assaltantes, entre os quais me encontrava, a futura vítima parecia intuir o perigo e sempre nos trocou as voltas. Desistimos, mais pobres que antes. Outra destas andanças foi a tentativa de conseguir que o próprio governo português financiasse a operação Santa Maria! Com esse fim, a secretária de Henrique Galvão, “Rosa Soskin”, foi mandada estabelecer contacto com o embaixador de Portugal na Venezuela, na tentativa de lhe vender informação importante sobre as actividades do Henrique Galvão. Também esta andança não resultou, servindo apenas para ficarmos a conhecer o que a embaixada conhecia das nossas actividades. Esses dias, semanas e meses, de meados do ano 60 até Janeiro de 61, pareceram-nos largos anos. Apesar disso, nem tudo foram angústias, desespero e frustrações. Também tínhamos os nossos momentos de descontracção… para afastar o “maligno”. Havia companheiros que, sem serem mobilizáveis para a acção, eram extremamente generosos e prestáveis para apoiar aquilo a que hoje chamaríamos a “logística essencial”, o “milho para as nossas pombas”, a comidinha de cada dia. Havia até quem, na sua ingenuidade e singeleza, escrevesse e gravasse constantemente inflamados discursos destinados a serem transmitidos pela nossa virtual emissora clandestina. Um deles tornou-se motivo anedótico entre nós, de uso recorrente quando alguém queria aliviar a tensão: era o discurso contra “os dez putas”. Começava assim: “Abaixo os dez putas (déspútas), abaixo os «monolópios» do capital… etc., etc.” Quando pela primeira vez se logrou reunir uma dezena de “guerrilheiros” (era esse o termo usado, influências guevaristas) num local dito de treino, uma espécie de colónia de férias denominada Los Caracas, junto ao mar, nas fraldas da montanha que faz de Caracas a sucursal do Céu, a umas dezenas de quilómetros do porto de La Guaira, os nossos problemas multiplicaram-se, principalmente os meus. 201 Camilo Mortágua Transformar dez pessoas adultas, das mais diferentes origens e profissões, habituadas a rotinas profissionais fisicamente hiper-activas, de níveis educacionais muito reduzidos, sem referências culturais que lhes permitissem absorver facilmente conceitos elementares de política, num grupo coeso e disciplinado de “guerrilheiros-revolucionários”, revelou-se tarefa bem mais difícil do que se supunha. Tido por responsável do funcionamento desta experiência, quanto mais não fosse para fazer aparecer diariamente o “milho” necessário para alimentar aquele “pombal”, ao mesmo tempo aluno e mestre, ali verifiquei, ao vivo, o que significava a repetida afirmação do Galvão, quando dizia: “o duro e difícil da vida de um revolucionário é resistir ao desgaste provocado pela necessidade de ultrapassar a impotência, a solidão, a angústia e o medo de não chegar à concretização da acção sonhada, de não chegar ao momento da acção, que é o seu momento da FESTA.” Todos os dias havia que imaginar um esquema para encontrar a comida para aquele grupo; todos os dias havia que manter aqueles homens suficientemente cansados fisicamente para que o espaço comum não se transformasse num campo de batalha; todos os dias havia que reforçar as motivações capazes de sublimar as carências e até o aparecimento das dúvidas que começavam a surgir sobre as razões de ali estar e as perspectivas do futuro imediato; todos os dias era necessário reforçar os elementos protectores do segredo sobre o nosso verdadeiro objectivo. (Até à véspera, que eu soubesse, dos portugueses, apenas três ou quatro pessoas eram conhecedoras do verdadeiro objectivo: Galvão, eu, o Costa Mota e o Frias.) Estava-se ali para nos prepararmos para combater, algures, contra a ditadura. Preparação física e mental. Aprender a conviver em grupo, a discutir ordenadamente, a ser capaz de praticar com rigor a autodisciplina acordada democraticamente, a conhecer noções elementares da nossa História, a descansar de dia e fazer esgotantes marchas nocturnas pela montanha, a praticar exercícios de orientação e localização, a, sobretudo, gerar confiança e solidariedade entre todos, cuidando do físico e da mente. Aproveitando-me das vastas relações estabelecidas durante os meus tempos de “homem da rádio”, uma a duas vezes por semana vinha a Caracas bater à porta dos comerciantes conhecidos, pedindo o pão, a carne e aquilo que mais falta fizesse (para alimentar umas 202 Andanças para a Liberdade famílias vítimas duma qualquer desgraça lá pelo interior do país). Durante algum tempo o sistema funcionou, mas a cada dia que passava, era mais difícil. Para cúmulo das dificuldades, o Santa Maria só passava um dia por mês. Quando por falta de recursos falhámos a primeira passagem programada, foi preciso resistir mais um mês. A ideia era que os nossos homens saíssem daquele local directamente para o barco sem voltarem a Caracas, para não corrermos o risco de espalhar a existência daquela concentração entre os amigos dos núcleos portugueses de Caracas. Claro que todos eles tinham abandonado as actividades e ou empregos a que se dedicavam. Se fossem devolvidos aos seus lugares de origem, seria muito difícil voltar a mobilizá-los. Havia que resistir. Apesar de tudo resistimos, até apesar da galopante tensão provocada pela longa permanência de pessoas livres num espaço concentracionário, de permanente exasperação dos mais insignificantes atritos interpessoais a descambar para disputas por vezes violentas. Quando pela segunda vez os meios materiais não permitiram avançar… aí sim, tudo pareceu desmoronar-se. Paciência. Desmobilização geral. Para, sem encargos nem situações incontroláveis, tentar começar de novo. No meio de tantas frustrações, uma coisa tinha de ser preservada: o segredo sobre o nosso objectivo! Vejam bem… “o descascar da cebola” da memória, como se de coisa autêntica se tratasse, faz lacrimejar e esvanecer a nitidez de certas recordações… creio terem-se passado mais dois ou três meses a ver passar o nosso barco, sem poder reunir forças e meios para dele fazer a nossa “Bastilha”. Sucediam-se as tentativas e os desaires: o enfarte do Galvão, a oferta do Sousa a disponibilizar o dinheiro que conseguíssemos receber dos terrenos vendidos sem que daí tivéssemos conseguido nada, a visita e promessa de apoio de Jânio Quadros já presidente eleito do Brasil, as guerrilhas e intrigas dos “democratas patrióticos” instrumentalizados pelo Mendes da Fonseca e seguidores, a contínua falta dos tostões necessários para deslocações, alimentação, etc. No início de 61, começaram a aparecer esperançosas notícias. Tinha-se finalmente arranjado algum, muito pouco, o suficiente para 203 Camilo Mortágua comprar meia dúzia de passagens e umas migalhas para aguentar a situação por uns dias. Constou-me, extra-oficialmente (mais tarde pude verificar que sabia muito menos do que eu julgava), que essa diminuta mas decisiva contribuição era proveniente da venda de um apartamento do comandante Jorge Sotomayor, um dos três representantes espanhóis na direcção do DRIL meus conhecidos. Os outros eram: o Junqueira de Ambia (Xosé Velo Mosquera) e o Romara Rojo, este último ocupando em relação ao grupo espanhol uma posição idêntica à minha no grupo português – uma espécie de segundo, abaixo dos comandantes. Dos recursos disponíveis, a parte portuguesa podia comprar cinco passagens, se duas ou três delas fossem para o trajecto La Guaira-Miami. A dificuldade em se obterem vistos para os EUA dificultava-nos a vida, já que a passagem para Vigo ou Lisboa era duas a três vezes mais cara! O companheiro Ojeda, venezuelano anexado ao grupo português, pagaria ele próprio as suas despesas! Contas feitas, faltavam passagens para outros quatro companheiros portugueses e para a viagem de avião até ao Curaçao e respectiva noite de hotel para o Galvão. Claro que era impensável dizer a alguém que estava dispensado; seria tremendamente injusto e cada homem a menos significava uma redução de dez por cento das nossas forças! Os “pelicanos” que éramos (na expressão do Galvão) já não tínhamos mais sangue para dar! Ainda teríamos que contar com uma quantidade razoável de miúdas despesas até nos podermos alimentar por conta da Companhia Colonial de Navegação. Já o Frias tinha vendido o táxi com que ganhava a vida, quase todos andavam a viver de créditos que teriam de ficar por pagar e esperávamos poder juntar ainda alguns bolívares, no próprio dia do embarque, quando, por despedida, cada um desse um último “esticão” nas jóias da família. Tínhamos acordado entre nós, a nível restrito e confidencial, que uma vez o barco tomado seria enviada para terra, para um ponto a estabelecer, uma lancha com o dinheiro necessário para que as famílias depenadas pudessem subsistir durante alguns dias. Dinheiro que sairia dos recursos financeiros encontrados a bordo. Depois, nunca mais ninguém falou nisso! 204 Andanças para a Liberdade Das dificuldades da parte espanhola nada sabia. Nestas circunstâncias, recebi alguns dias antes a responsabilidade do embarque de homens e bagagens, a coordenar-me com o Romara. Quando este me informou que os companheiros espanhóis tinham todos passagem e embarcariam legalmente, fiquei mais optimista. 57. Santa Maria: o embarque Foi numa sexta-feira do mês de Janeiro de 1960, dia 20. Henrique Galvão, no seu livro O Assalto ao Santa Maria, na página 159, diz que “o dia amanheceu claro e brilhante com um sol glorioso” – cá por mim, nada vos posso dizer sobre o assunto. Não me lembro de ter olhado para o céu, nem prestado atenção ao tempo que fazia… As minhas preocupações eram outras. Manhã cedo as rádios estavam a anunciar que por causa dos distúrbios e manifestações, tinha sido decretado o recolher obrigatório. Íamos ter problemas! Como normalmente o embarque dos passageiros só começava lá por volta das três da tarde, tinha combinado com o Costa Mota (Eng. Júlio Cid da Costa Mota, responsável pelo “apoio de retaguarda”) que nos encontraríamos às dez e meia da manhã para um último apronto. Para a maioria dos companheiros, aquele era o dia da partida tão esperada, mas não sabiam para onde nem como, embora alguns tenham começado a associar ideias! A essa hora, já as últimas “prendas” familiares teriam sido negociadas e estaríamos em condições (se tudo corresse bem) de distribuir por cada homem os tais 20 bolívares que tínhamos combinado, para assegurar as despesas desse dia. As indicações sobre a bagagem de cada um foram dadas anteriormente: apenas uma mala, roupa ligeira mas forte, calçado de caminhante e caixinha de primeiros socorros segundo as necessidades pessoais. Pessoalmente, deveria encarregar-me de levar para bordo as armas e munições dos quatro companheiros que viajariam de avião para Curaçao, Galvão incluído. 205 Camilo Mortágua Em boa verdade, à excepção dos comandantes, ninguém tinha a sua arma, já que entre o magro lote existente, três ou quatro eram de cano longo (uma delas servindo apenas para fazer vista por ter uma bala encravada no cano), dificilmente disfarçáveis em vestes de Verão. Entre os espanhóis havia dois ou três casos de possuidores de armas próprias (revólveres ou pistolas). Numa proporção aproximada de uma arma para cada dois homens, as volumosas teriam que ir para as malas, as restantes confiadas aos companheiros mais experientes. As munições também eram extremamente escassas: dois carregadores por arma e umas duas centenas de projécteis de reserva para a velha Tompson que fazia figura de equipamento pesado do grupo de assalto. À hora e no lugar combinado, dez e meia da manhã, à entrada do estádio universitário, tudo correu como programado. O Costa Mota apareceu com os carros e condutores para nos transportar a La Guaira e lá deixámos Caracas para trás à procura da “Dulcineia”. Tinha pedido ao “nosso mais novo” (o José Ramos) que fosse aos escritórios da Companhia Colonial de Navegação pedir uma senha para visitar o barco, com a recomendação de que essa era uma missão secreta, sobre a qual não podia falar a ninguém. Ao “velho” e seguro Viegas Aleixo, tinha pedido para olhar pelo miúdo e que não o deixasse desviar-se do caminho. Devia fazer um recado só e voltar imediatamente. O resultado, tal como eu temia, foi bem desagradável. Devido ao “recolher obrigatório”, desta vez não havia autorizações para visitas ao barco. Mais um problema para resolver… e dos difíceis! Era hábito de muitos compatriotas ir almoçar ou jantar ao Santa Maria, para matar saudades da boa pinga e do bacalhau. As senhas ou passes eram fornecidas gratuitamente sem formalidades nem identificações. Sem esses passes, como iria embarcar os quatro companheiros para quem não tinha sido possível comprar passagem? Chegados ao porto, fui confirmar nos escritórios locais da Companhia se, de facto, não era possível visitar o barco. Nada a fazer! Dos quatro em risco de ficar, diz-me o Grande e Valente Aleixo: 206 Andanças para a Liberdade ― Algarvio vai no desenrasca, não te preocupes. Foi um dos primeiros a embarcar! Agarrou-se a um companheiro que tinha passagem, meteu-lhe duas improvisadas bengalas nas mãos, pediu-lhe para dobrar os joelhos e andar curvado e devagar, agarrou as duas malas, a sua e a do companheiro, e aí vai ele: ― Então não está a ver, coitado do meu primo, não pode largar as bengalas se não cai, vou só levar as malas lá acima e volto já ― Ah! algarvio duma figa, chegado ao cimo da escada, ninguém mais o viu! Também o menino José Ramos, o nosso mais novo, lá se desenrascou e entrou! Nunca me explicou como, nem eu tive ocasião de lhe perguntar. Sei que vive algures no Brasil, quem sabe se ainda haverá essa oportunidade. Como nestas coisas os imprevistos estão sempre encadeados, basta um para provocar uma sucessão deles. A impossibilidade de haver visitas ao barco veio desestabilizar o plano estabelecido e provocar um certo desassossego e aumento da normal tensão destes momentos. Tinha combinado com o Costa Mota que ele subiria também a bordo para, uma vez lá dentro, observarmos se havia ou não alguma coisa de anormal que pudesse indiciar a montagem de uma armadilha. O resultado deveria ser comunicado ao Galvão, por telefone, logo à saída do barco. Não só o resultado dessa nossa observação, mas também a constatação da correcta instalação dos nossos homens. Para além disso, contava com ele para me aliviar do “excesso de peso”, levando para bordo duas das quatro “alfaias” e algumas das munições pelas quais tive que me responsabilizar, das que estavam destinadas a serem transportadas pelos que não puderam entrar como visitantes. Com quatro “ferros” e alguns quilos de chumbo, mais havia de parecer o caminhar de um extraterrestre! Como tinha dito o Viegas… vai no desenrascanço! Fui a uma farmácia comprar uns quantos rolos de ligaduras e adesivos, peguei nas pastas onde carregava o material, fui para a casa de banho dum café junto ao porto, tirei a roupa e enrolei o material no corpo, seguro pelas ligaduras e os adesivos, espalhado pelo tronco e pernas. Assim “armado”, reverifiquei o embarque dos companheiros. Dos quatro impedidos de embarcar, dois tinham conseguido entrar, um tinha decidido ir de avião para Curaçao para ali apanhar o barco 207 Camilo Mortágua como visitante e o Leonardo, sem dinheiro para comprar o bilhete de avião, mais choroso e triste que borreguinho desmamado, teve que voltar para trás, ele que era talvez quem mais merecia fazer parte do grupo. Para mim, em terra, nada mais havia a fazer. Pesado como um guerreiro medieval, fazendo o possível por imprimir ligeireza no andar, meto a mão ao bolso para pegar no bilhete da passagem e… nada! O bilhete tinha desaparecido. Com estas “andanças” atribuladas, estava perdido… o bilhete, e eu também! Ao arrepio tremido e frio seguido dum enevoamento fugaz que me toldou a visão, sucedeu uma grande acalmia!… ― Desenrasca-te, meu velho… ― era o sussurro do Zé Ninguém. ― Não desistas ― responde-lhe o Batata com o seu prático bom senso. ― Vá, ó bácoros, suas fecundações inacabadas, agora é que ele precisa de nós, para incitar a estas “andanças” de merda estão sempre disponíveis, agora calam-se! Nada de aflições. Cá o Cê-Cê, por ser o mais velho, resolve o problema… vá, põe-te direito e calmo como se fôssemos às enguias no Antuã… vamos ali ao escritório da Companhia, eles têm com certeza uma lista dos passageiros, mostras o passaporte e eles deixam-te entrar. Abençoado sejas, ó Cê-Cê! Vamos lá a isso. Como não havia balança nem detector de metais, como diria o outro… safei-me! Por volta das seis da tarde, estava a bordo do Santa Maria. Rumo à Liberdade? 58. Santa Maria: a véspera do assalto Sábado, 21 de Janeiro. Da minha primeira noite a bordo nada consta no “disco rígido da memória”. Extenuado das emoções da véspera, devo ter mergulhado profundamente em sono preventivo das noites brancas que se anunciavam. Aproveitar todos os momentos possíveis para desligar do consciente, sempre foi uma das minhas regras de conduta ao longo das “andanças”. A melhor maneira de permanecer acordado é dormir enquanto se pode! Bem cedo, fui para a proa do navio acabar de despertar com a fresca brisa da manhã e assistir, lá do alto, à majestosa entrada na 208 Andanças para a Liberdade cidade pelo canal que faz do porto uma espécie de avenida movimentada, cidade adentro. Por volta das nove horas, saí para ir ao encontro do Galvão no hotel onde se tinha hospedado na noite anterior. Após um breve relatório do sucedido até então, deu-se início a uma prevista reunião com o Sotomayor, o Velo Mosquera, o Romara e, se bem recordo, o Fernandez, em representação da parte espanhola; o Galvão, eu, o Frias de Oliveira e… aviva-te memória… alguém mais que não recordo, pela parte portuguesa. Sim, porque apesar de tudo, sem que isso estivesse regulamentado, na prática, éramos um grupo com “duas partes”! Tratava-se de consensualizar o plano e a metodologia do assalto, acertando certos pormenores que estavam ainda em branco. Havia já tempo que o Galvão e o Sotomayor não se encontravam… embora nada tivesse transpirado, os mais chegados ao seu quotidiano convívio, tínhamos notado sinais de alguma crispação entre os dois, provocada por questões desconhecidas, mas provavelmente ligadas ao enervamento causado pelas muitas dificuldades enfrentadas. A este respeito, veja-se o texto da carta enviada por Galvão a Sotomayor “Fernandez”, sete dias antes do embarque, que se publica em anexo. Esta carta indicia bem o clima desta reunião. Foi, sem dúvida, uma reunião cordialmente tensa, carregada de sentidas ofensas reais ou imaginárias, nunca frontalmente expressas, onde pela primeira vez senti que o “poeta” Velo Mosquera (ai filho… quanta poesia pode haver no gesto delicado de pressionar o gatilho para matar um fascista) não ajudava em nada a limar as arestas… O resultado só podia ser aquele que se verificou. A pedra da discórdia era a seguinte: Galvão pretendia que a ponte de comando fosse atacada por um só lado, bombordo ou estibordo, colocando do lado contrário apenas um homem, abrigado, para poder impedir que alguém tentasse sair. O Sotomayor não abdicava de um ataque simultâneo pelos dois lados; segundo dizia, para não deixar nenhuma hipótese de reacção. O Galvão argumentava que o ataque simultâneo era demasiado perigoso porque, como o interior da ponte de comando permanece pouco iluminado, corria-se o risco de nos matarmos uns aos outros com disparos cruzados. 209 Camilo Mortágua Todo o resto da operação estava acordado. Hora, local, formação dos grupos, etc., mas este detalhe impediu que os dois avalizassem o plano de ataque. O assunto ficou para ser resolvido mais tarde quando o Galvão entrasse no barco e se dirigisse ao camarote do Sotomayor. Entretanto, para minha inquietação, fui nomeado “oficial de ligação”, como se aqueles dois precisassem de outra coisa para além de mais bom senso e menos orgulhos injustificáveis e inadequados à situação. Regressei a bordo do Santa Maria para organizar o acolhimento do Galvão e dos restantes companheiros. Estava acordado que o nosso “mais novo”, o José Ramos, esperaria o Galvão à entrada do navio, para o conduzir o mais directa e rapidamente possível ao camarote de segunda classe ocupado pelo Sotomayor. Os outros companheiros seriam conduzidos pelo Paiva até às cabines de terceira que eram totalmente ocupadas por elementos nossos viajando legalmente com passagens. Quis o destino, ou lá o que tenha sido, que o “mais novo” perdeu o rumo e não conseguiu levar o Galvão ao dito camarote do Sotomayor. Em desespero de causa e para evitar que a qualquer momento pudesse ser reconhecido, foi levado para uma das tais cabines de terceira. Pronto… aí estava o “oficial de ligação” metido em trabalhos suplementares. Durante o resto desse dia, lá andei eu, escada acima, escada abaixo, a repetir o que um dizia ao outro, sem progresso algum. Ao aproximar da noite desistimos os três, e eu apressei-me a ir carregar baterias, porque a noite anunciava-se longa e turbulenta. Como o ar condicionado andava avariado, nas cabines da terceira classe o calor extraía perfumes desagradáveis dos corpos, obrigando-os a procurar ar respirável fora das cabines, pelos corredores e deks exteriores, onde se instalavam para passar a noite – nesses mesmos corredores por onde tínhamos que passar, todos fardados de roupa de caqui, sem distintivos, braçadeira do DRIL no bolso, a caminho do nosso lugar de concentração, no penúltimo dos deks superiores à popa, junto à piscina. Aí às zero horas e trinta minutos desse domingo 22 de Janeiro de 1961, se o navio largasse do Curaçao à hora marcada, devíamos estar no ponto ideal para mudar de rumo e sair do mar das Caraíbas 210 Andanças para a Liberdade pelo canal de Santa Luzia ainda de noite, a tempo de alcançar mar aberto sem que o navio fosse descoberto. Essa era a condição para dispor de uns calculados quatro a cinco dias sem que o desvio fosse conhecido, permitindo-nos aproximar-nos de Fernando Pó de surpresa. Sem este elemento de surpresa, o objectivo era inalcançável. À hora marcada todos os “comandos” se encontravam a postos, com o equipamento disponível presente, graças, mais uma vez, ao desenrascanço do Velho Viegas, transportador da “perigosíssima” espingarda “rifle 22”, embrulhada num cobertor e respectivas almofadas, como quem procurava sítio para dormir ao fresco! 59. Santa Maria: o ataque O que tinha sido planeado para a meia hora do dia 22 de Janeiro, veio a dar-se bem mais tarde. Para todos nós que vivemos esse momento, a espera pareceu-nos interminável! O barco tinha partido do Curaçao exactamente à hora prevista. Para voltarmos ao ponto onde deveríamos ter mudado de rumo para sul, com a distância percorrida a mais para norte, nunca mais seria possível abandonar o mar das Caraíbas antes do novo dia. De dia, a possibilidade do navio ser avistado era praticamente uma certeza! Porquê este atraso? Porque os nossos comandantes, chegados ao ponto de concentração, puseram-se a contar as estrelas, cada um para seu lado, sem que ninguém ousasse dar a ordem de ataque… foi necessário que dos subordinados saísse uma iniciativa – ou vinha a ordem ou dispersávamos (não sei para onde) – para que o nó se desatasse e enfim partíssemos para a acção. Como o grupo comandado pelo Sotomayor com a quase totalidade dos espanhóis tinha por objectivo o assalto à ponte de comando, e o grupo comandado pelo Galvão com dois ou três espanhóis à mistura, estava encarregue de iniciar as hostilidades tomando conta da sala da rádio e de seguida da casa das máquinas e camarotes dos oficiais, estes situados por baixo da ponte de comando, o problema resolveu-se naturalmente. O Sotomayor atacou como ele quis, e o Galvão dirigiu os “seus homens” como lhe pareceu. 211 Camilo Mortágua Quando se ouviram os primeiros tiros, deu-me vontade de não estar ali. Com a sala da rádio e a casa das máquinas controladas, corremos para a ponte de comando a ver o que se tinha passado. Junto à escada que dá acesso à ponte de comando apercebi-me duma pessoa deitada de barriga para baixo a esvair-se em sangue… merda, de repente deixei de ver as estrelas e o céu ficou preto! Fazia frio… muito frio! Ergui a cabeça e segui em frente atrás dos companheiros. Lá em cima, na ponte do comando, tudo tinha acabado! Disseram-me que havia um ferido que eu não vi e iniciaram-se as negociações entre o Galvão e o Comandante Maia, já relatadas em muitas outras ocasiões. Pronto, para já, o Santa Maria estava sob nosso controle… e agora? Tal como estava estabelecido, o Sotomayor assumiu o comando da navegação, sob o comando político de Henrique Galvão, (se o navio tivesse sido espanhol, o comando político seria igualmente espanhol). A mim coube-me a responsabilidade de instalar os nossos homens em camarotes contíguos de forma a poder garantir o seu sono em segurança com um só companheiro de guarda, e distribuir “as forças” pelos pontos vitais do navio, assegurando que uma parte pudesse descansar para substituir os colegas cada quatro horas, mudando constantemente de local de serviço, para dificultar a verificação quantitativa do grupo. Ao venezuelano Ojeda, dei a missão de se misturar com os passageiros, difundindo discretamente o boato de que havia muito mais revoltosos disfarçados entre os passageiros. Passamos ao largo de Santa Luzia dia claro! Do meu posto de observação vi arrear a lancha que levava o tal ferido e mais alguém da tripulação. Tinha sido tomada a decisão de, em nome de uma demonstração do humanismo dos combatentes, desembarcar um ferido que corria risco de vida. Esse gesto, disse-se, era a grande prova da superioridade moral dos responsáveis pela acção, gesto que captaria a nosso favor a opinião internacional, etc. e tal. Que teríamos ganho se não desembarcássemos o ferido? Pelos vistos, nada… já que, de qualquer maneira, seríamos avistados por aquelas paragens. O desembarque do ferido serviu para branquear as consequências do atraso com que o aprisionamento do barco foi feito e de justificação subsequente para a impossibilidade de seguir o rumo pre212 Andanças para a Liberdade viamente estabelecido? Ou foi de facto um gesto humanitário? Em todos nós… os que confiadamente tínhamos decidido servir e obedecer, começaram a surgir dúvidas que iriam perdurar para sempre. 60. No Santa Liberdade, rumo ao Brasil Na manhã do primeiro dia, logo antes da hora do pequeno-almoço, o Galvão informou pelos altifalantes sobre o que se tinha passado durante a noite (a maioria, se não a totalidade, não se tinha dado conta de nada), assegurando que todos seriam bem tratados e que os passageiros seriam desembarcados na primeira oportunidade. O que eu temia, não se verificou. Não houve reacção descontrolada, os seiscentos passageiros aceitaram os factos com absoluta serenidade e até, bastantes, mesmo emigrantes, espanhóis e portugueses, com algum entusiasmo. Os americanos e de outras nacionalidades que viajavam como turistas, a esses tinha-lhes saído um grande prémio, um bónus inesperado para as suas férias. Durante o assalto, tinha-me tocado descer à casa das máquinas, ao caldeirão onde se gerava toda a energia que fazia mover aquela “aldeia libertada” dos nossos territórios de além-mar. Lá, alimentando as fornalhas, tronco nu, fui encontrar uma equipa de cabo-verdianos, homens já bem entrados em idade, a quem explicámos o que tinha acontecido. Olharam-nos com olhos de espanto… quedos e curvados… por momentos ficámos assim a comunicar com os olhos, mudos… de repente, ergueram-se aprumados, bateram-nos a pala, e disseram: ― Até que enfim que é dia de festa! Desde esse momento e enquanto permanecemos a bordo, fui hóspede convidado para comer do rancho do pessoal das máquinas! Pouco a pouco foram-se instalando rotinas. Tomaram-se algumas medidas para melhorar as condições dos passageiros da terceira classe. Todos podiam circular à vontade e frequentar as instalações antes reservadas à primeira e segunda classes. Com a alimentação procedeu-se de igual modo. A orquestra continuava a animar os bailes, mas, como é óbvio, a inquietação sobre o próximo destino não podia deixar de estar presente. 213 Camilo Mortágua Embora dos vinte e quatro iniciais passássemos a ser agora vinte e sete, graças à adesão de três tripulantes, continuávamos a ser poucos. Discutíamos entre nós para onde estaríamos indo. Durante três dias andámos ziguezagueando para dificultar a localização, sem emissões de rádio, mas sem controle sobre as notícias que os rádios pessoais dos passageiros e tripulantes recebiam com as mais absurdas e contraditórias atoardas. Por ter sido decidido que não haveria confiscação desses rádios pessoais, tínhamos que andar constantemente a apagar boatos e corrigir alarmismos. Entre os “comandados”, portugueses e espanhóis, havia a convicção de que o plano original estava irremediavelmente comprometido e já não podíamos rumar a Fernando Pó. A maioria, sobretudo dos mais responsáveis entre os portugueses, optava pela solução da Guiné Conacry, onde à época governava Sékou Touré, com o fito de podermos passar facilmente para a Guiné-Bissau e estudar a possibilidade de nos juntarmos aos combatentes do PAIGC. Esta solução, tínhamos disso consciência, seria inviabilizada pela oposição do Henrique Galvão, dada a imagem de comunista do regime de Sékou Touré… portanto, os dados estavam lançados e o Brasil era recorrentemente a única solução à vista. Apesar das “bocas políticas” inflamadas de demagogia revolucionária que, segundo as notícias que nos chegavam, o general Delgado ia lançando para a imprensa brasileira e mundial sobre a decisão de nunca entregar o barco e ir até ao seu afundamento se necessário fosse, para nós, isso era isso mesmo… “bocas”. Para qualquer comum mortal, não inteiramente desprovido de senso, a utilização do Santa Maria sem o “escudo” dos passageiros, era um puro suicídio! Desembarcados estes, o navio era um estorvo! Muito se disse e continuará dizendo e escrevendo sobre a dúvida se haveria ou não contactos e coordenação entre a operação do Santa Maria e o assalto às prisões de Luanda; ou seja, Galvão dizia a verdade quando afirmava ter contactos com as forças democráticas de Angola? Nós acreditávamos nisso. Mas não tínhamos a certeza… o que, na presente situação, não alterava grande coisa. Posteriormente, tomei casualmente conhecimento de declarações de um líder angolano, de credibilidade algo duvidosa, que, pelo contexto em que são 214 Andanças para a Liberdade colocadas, me merecem crédito, embora também não possam influenciar o passado. Refiro-me a declarações de Holden Roberto para o primeiro volume de Angola: Depoimentos para a História Recente, edição dos autores Drumond Jaime e Hélder Barber, em que, a páginas 19, afirma: “(…) Então, apareceu um senhor português, um senhor chamado Júlio Clemente. Veio falar comigo e disse que precisava de homens. Isto, alguns meses antes do início da luta de libertação. E disse porquê. Ah, porque nós queríamos fazer uma operação em Luanda, porque vão exilar os prisioneiros políticos que estão presos lá e nós queríamos fazer um conjunto com o general Delgado e o Henrique Galvão. E naquela altura o Henrique tinha raptado um barco chamado «Santa Maria». Mas eu como sabia da ideia do Henrique Galvão e dos outros – queriam fazer de Angola um segundo Brasil, que não era nem tão pouco a favor do povo angolano – e nós achámos que era um grande perigo. E esse senhor pediu-me e eu disse que não tinha homens. (…) E então, eles estavam à espera do barco Santa Maria em Luanda para fazer um levantamento. E eu – o cónego Manuel avisou-me – então mandei dizer ao cónego Manuel que não fizesse nada, que esse movimento era um movimento de inspiração branca e não nos devíamos meter nisso.” Mais adiante, os autores perguntam a Holden Roberto: “― Bem, o senhor fala da vinda a Angola de alguns americanos. Quem eram esse americanos? ― Já dei o nome aqui: Frank Monteiro. ― Sim, sim, mas eles pertenciam a alguma organização? ― Pertenciam a um grupo de progressistas americanos chamado “American Comitee on Africa”. ― Tinham algumas ligações com a CIA? ― Faz favor? ― Tinham algumas ligações com a CIA, esses americanos? ― Com a CIA? ― Sim. ― Isso não quer dizer nada, a CIA.” Que os Comités Americanos pró várias coisas: África, democracia, Liberdade, Portugal, etc., estavam infiltrados de agentes da CIA, para nós sempre tinha sido uma certeza. 215 Camilo Mortágua Henrique Galvão pode muito bem ter utilizado os seus contactos com estes comités com quem mantinha correspondência assídua para, por essa via, articular as acções previstas. Quando fomos localizados por um avião americano de busca e salvamento, começaram as negociações com o Comando da Esquadra do Atlântico. A bordo, começava-se a adivinhar o fim da aventura! Entretanto, o Galvão, sempre atento à mise en scène tinha mandado fazer as divisas para si e para “as suas tropas”; a mim calharam-me algumas, já não sei de que “nível”. Avistámos hoje luzes da costa brasileira. O Santa Maria, como eu e os companheiros, cá andamos nestas “andanças”, para trás e para à frente, ao largo do Recife, a umas cinquenta milhas, à espera da visita do contra-almirante Smith e do inevitável desembarque em Recife. As próximas “andanças” hão-de levar-nos de volta a Lisboa e à Liberdade. Ao contrário destas, serão menos as minhas, e mais as nossas, as dos companheiros de “andanças”, de gente comum em luta pela Liberdade, esperando dela, e tão só, todas as recompensas. E pronto, por aqui tenho que interromper. Era sábado, 28 de Janeiro de 1961, e acabava de ser convocado pelo meu “Colectivo de Auto-Análise Comportamental” para uma reflexão retrospectiva aos vinte e sete anos de vida em comum, que amanhã, como me recordaram, se completavam, a bordo deste Santa Liberdade, de onde sairei rumo à Avenida do mesmo nome, por muito que demore a lá chegar. Camilo Mortágua Alvito, Janeiro de 2009 216 Andanças para a Liberdade Capítulo sexto “Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar.” (imagens) 217 Camilo Mortágua 218 Andanças para a Liberdade Apêndices 219 Camilo Mortágua 220 Andanças para a Liberdade Bibliografia Holanda, Lourival e França, Humberto, Álvaro Lins: ensaios de crítica Literária e Cultural, Editora Universitária - UFPE, 2007. Castro, Margarida, Memórias da Minha Terra Salreu, Edição da Autora, 2008. Moreira da Cunha, José Fernando, Viagem à Venezuela, Edição do Autor, 1998. Galvão, Henrique, O Assalto ao “Santa Maria”, Edições Delfos, 1973. 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