Diagnóstico, prevenção e tratamento clínico da erosão dentária

Transcrição

Diagnóstico, prevenção e tratamento clínico da erosão dentária
Relato de caso clínico
Odontopediatria
Diagnóstico, prevenção e tratamento
clínico da erosão dentária
Clinical diagnosis, prevention and treatment of dental erosion
Fernanda Nahás Pires Corrêa
Doutora em Ciências Odontológicas,
professora da Faculdade de Odontologia
e Centro de Pós-Graduação SL Mandic
e da Associação Brasileira de Ensino
Odontológico, SP, Brasil
Christiana Murakami
Mestre em Ciências Odontológicas,
doutoranda, SP, Brasil
Thiago Saads Carvalho
Mestre em Odontologia pela Faculdade
de Odontologia da Universidade
Federal da Paraíba, doutorando em
Ciências Odontológicas da disciplina
de Odontopediatria da Faculdade de
Odontologia da Universidade de São
Paulo (Fousp), SP, Brasil
Maria Salete Nahás Pires Corrêa
Livre Docente, professora-associada
da disciplina de Odontopediatria da
Fousp, professora do curso de pósgraduação da UNICSUL, coordenadora
da especialização em Odontopediatria
da ABENO, SP, Brasil
Termo de consentimento livre e
esclarecido assinado pelos pacientes e
enviado à Revista
Autor para Correspondência:
Christiana Murakami
Faculdade de Odontologia da Universidade de São
Paulo
Av. Prof. Lineu Prestes, 2227
Cidade Universitária – São Paulo - SP
05508-000
Brasil
[email protected]
RESUMO
Estudos epidemiológicos recentes evidenciam um aumento na prevalência de erosão
dentária em vários países, principalmente entre crianças e adolescentes. O diagnóstico
precoce das lesões erosivas viabiliza a instituição de medidas preventivas logo no início
do processo de perda de estrutura dentária, evitando procedimentos reabilitadores extensos. Porém, o diagnóstico diferencial entre a abrasão, a atrição e a erosão dentárias ainda
é um assunto controverso entre os clínicos e os pesquisadores, sendo necessário estabelecer critérios claros para distinção entre as características destes tipos de lesões. Uma
vez diagnosticada a erosão dentária, terapias preventivas e restauradoras são necessárias
e diversas pesquisas têm sido geradas com este propósito nos últimos anos. Portanto, o
presente trabalho se propõe a apresentar uma revisão baseada nas evidências científicas
encontradas na literatura sobre o diagnóstico e o tratamento da erosão dentária.
Descritores: Erosão dentária; prevalência; diagnóstico; prevenção de doenças; reabilitação bucal.
ABSTRACT
Recent epidemiological studies revealed an increase in the prevalence of dental erosion around the world, mainly among children and teenagers. Early diagnosis of erosive
lesions enables the implementation of preventive measures at the beginning of process
of dental structure loss, thus avoiding the need for extensive rehabilitation procedures.
However, differential diagnosis of dental abrasion, attrition and erosion remains a controversial issue among clinicians and researchers. Therefore, there is a need to establish
clear criteria to make it possible to distinguish between the different characteristics of
each type of tooth wear lesion. Once dental erosion is diagnosed, preventive and restorative procedures are needed and a variety of researches have been published on this
subject. Thus, the present paper aims to review concepts of dental erosion diagnosis and
treatment, based on the scientific evidence found in literature.
Descriptors: Tooth erosion; prevalence; diagnosis use diagnostic; disease prevention;
mouth rehabilitation.
RELEVÂNCIA CLÍNICA
A erosão dentária tem ganhado destaque na Odontologia nos últimos anos devido ao
seu potencial destruidor de tecido dental duro e ao aumento de sua prevalência. Assim,
este artigo objetiva esclarecer aspectos sobre o diagnóstico, prevenção e tratamento
desta patologia.
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INTRODUÇÃO
Durante muitos anos, a erosão dentária foi uma condição
de pouco interesse para a prática clínica odontológica e para
a saúde pública 1. O diagnóstico de lesões erosivas era raramente realizado e havia pouco o que pudesse ser feito para
intervir nos estágios iniciais do processo erosivo.
Atualmente, uma mudança de percepção vem ocorrendo.
O aparente aumento da prevalência do desgaste por erosão,
associado ao aumento da longevidade dos indivíduos, compromete a habilidade dos elementos dentários de cumprirem
seus ciclos biológicos com integridade funcional e estética.
Ainda não há uma conscientização adequada da população
brasileira sobre a erosão dentária. Além disso, profissionais
da Odontologia frequentemente confundem os sinais e sintomas da erosão com os de outros tipos de desgaste, como
a abrasão e atrição 1.
Sendo assim, o presente estudo visa aprimorar o conhecimento dos Cirurgiões-Dentistas sobre a etiologia, o diagnóstico, a prevenção e o tratamento da erosão dentária que são
fundamentais para a prática clínica contemporânea.
Diagnóstico
O desgaste dental é normalmente estabelecido pela ocorrência simultânea de três fenômenos: a abrasão, a atrição e a
erosão. O Quadro 1 expõe as características que possibilitam
realizar o diagnóstico diferencial do tipo de desgaste que predomina em cada paciente.
A erosão dentária é definida como a perda progressiva e
irreversível do tecido dental duro decorrente de um processo
químico, sem ação bacteriana2,3. Como as lesões erosivas iniciais são frequentemente difíceis de visualizar, para o correto
diagnóstico é necessário que as superfícies dentárias estejam
limpas, secas e bem iluminadas. Um dos primeiros sinais da
erosão é a perda da caracterização do esmalte, onde as linhas
de deposição formadas durante a amelogênese (periquimatas) são levadas embora pelo ácido, gerando um aspecto de
lisura e brilho excessivos4 (Figuras 1 e 2).
Lembrando que o esmalte e a dentina são ricos em minerais como cálcio e fosfato, as soluções ácidas que entram em
contato com o dente reagem com o seu conteúdo mineral,
liberando esses íons para o meio oral. Isso causa, primeiramente, um amolecimento da camada mais superficial do esmalte/dentina que, posteriormente, é removida pela abrasão
ou atrição. Por este motivo, o aspecto final da maioria das
lesões erosivas se assemelha a de um esmalte submetido ao
procedimento de microabrasão, liso e brilhante (Figura 3).
Conforme o esmalte vai sendo levado embora, a junção
amelodentinária começa a se tornar evidente na forma de um
halo translúcido que segue o contorno da superfície dentária
(Figura 4). Vale a pena ressaltar que este halo translúcido não
deve ser confundido com a translucidez natural presente nas
bordas incisais dos incisivos.
Em dentes posteriores, frequentemente há a formação de
“cuppings”, que são pequenos pontos de socavamento do es438
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malte cuja forma se assemelha à de um pires de xícara (Figura
5). Se o fator etiológico não é removido, estes pequenos pontos vão se ampliando conforme o desgaste atinge a dentina,
podendo se tornar verdadeiras crateras (Figura 6).
Existe uma discussão na literatura acerca da possibilidade de determinar se a lesão erosiva está em esmalte ou em
dentina. Porém, quando a erosão atinge a dentina é possível
determinar que a dentina está exposta através da visualização direta do aspecto amarelado do tecido dentinário (Figura
7). Há casos onde é possível observar o aspecto amarelado
da dentina através da translucidez do esmalte remanescente,
mas onde a dentina ainda não está exposta (Figura 7).
Conforme aumenta a gravidade da lesão erosiva, é possível observar que, em profundidade, ocorre à proximidade da
lesão à câmara pulpar (Figuras 8 e 9).
Etiopatogenia
Os ácidos responsáveis pela destruição do dente durante
o processo de erosão podem ser de origem extrínseca ou intrínseca1, 5. O fator etiológico intrínseco da erosão dentária
advém do ácido gástrico que entra em contato com as superfícies do dente quando há refluxo, regurgitação ou vômito1. Isso ocorre freqüentemente nos quadros de distúrbios
psicossomáticos, desordens gastrointestinais e em pacientes
portadores de necessidades especiais. Por outro lado, os fatores extrínsecos são constituídos por ácidos cujas origens
podem ser: consumo excessivo de alimentos e bebidas ácidas,
exposição prolongada à água da piscina incorretamente tra-
QUADRO 1
Odontopediatria
FIGURA 1
Superfícies palatinas de incisivos hígidos
FIGURA 4
Lesão erosiva na oclusal do elemento 46. Observe que os sulcos foram
levados embora pelo ácido, aspecto aveludado, excessivamente
liso e brilhante. Há também a formação de halo e cuppings
FIGURA 2
Superfícies palatinas de incisivos com erosão. Observe a formação de um
halo translúcido contornando a superfície do dente, lisura e brilho excessivos
FIGURA 5
Aparecimento de um halo translúcido ao redor da superfície oclusal,
formação de cuppings nas vertentes internas, lisura e brilho excessivos.
Observar que partes do sulco acometidas por lesão de cárie inativa
(cujas áreas superficiais são mais mineralizadas) resistiram ao ataque ácido
FIGURA 3
Lesões de erosão em esmalte. Observe aspecto aveludado, liso e brilhante
FIGURA 6
Formação de cuppings nos molares decíduos, com exposição de
dentina. Observe a restauração de amálgama em ilha, protuberante
devido ao desgaste por erosão do tecido dental adjacente
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FIGURA 7
Observe halo translúcido nítido representativo da junção amelodentinária.
Esmalte encobrindo aspecto amarelado da dentina subjacente na maior parte
da superfície e exposição dentinária verdadeira na parte mesial da oclusal
FIGURA 8
Lesão erosiva com proximidade pulpar nos elementos 51 e 61, sendo
possível observar a câmara pulpar por translucidez do tecido remanescente
FIGURA 9
Lesões erosivas com proximidade pulpar nos elementos 63 e 64
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tada, o uso crônico de medicamentos ácidos, o uso de drogas
ilegais, o uso frequente de alguns produtos de higiene oral ou
a inalação de fumaças industriais corrosivas1, 6.
Entretanto, a etiologia da erosão dentária é multifatorial e sua completa compreensão não se restringe ao conhecimento das fontes de ácidos erosivos. Fatores biológicos,
químicos e comportamentais modulam a velocidade de progressão do desgaste por erosão. Dentre estes fatores, talvez
o que merece maior destaque na prática clínica é o fator
biológico da saliva.
A saliva exerce um papel protetor importante contra a
erosão dentária na medida em que tampona os ácidos, fornece minerais aos dentes - por ser uma solução supersaturada
-, realiza o clearance dos ácidos através do fluxo salivar e
promove a formação da película adquirida que protege contra a dissolução por ácidos6. Por este motivo, o uso crônico
de medicamentos xerostômicos assim como a realização frequente de atividades físicas, com desidratação subsequente,
aumentam o risco de o paciente desenvolver lesões erosivas3.
Prevalência
Devido à inexistência de um índice universalmente aceito
ou validado para o diagnóstico de erosão dentária, levantamentos diversos utilizaram diferentes índices e avaliaram superfícies dentárias distintas, dificultando a comparação dos
resultados de prevalência obtidos nestes. Entretanto, a maioria dos estudos epidemiológicos revela uma alta prevalência
de erosão dentária entre crianças e adolescentes ao redor do
mundo, que se situa entre 30 e 50% 7.
No Brasil, a erosão dentária acomete 51,6% dos pré-escolares de 3 e 4 anos de idade5, 19,9% dos escolares de 6 a
12 anos de idade8 e entre 7,2 e 34,1% dos adolescentes de
12 a 14 anos de idade9-14. Rios et al. (2007) encontraram que
34,8% dos incisivos, 64,7% dos caninos e 40,7% dos molares
de crianças brasileiras de 6 anos de idade apresentavam erosão15. Além disso, em um consultório particular em São Paulo 25,43% das 232 crianças e adolescentes avaliados tinham
erosão dentária 16.
A maioria destes estudos aponta o consumo frequente
de bebidas ácidas como fator associado à erosão dentária
em populações brasileiras. O consumo per capita de refrigerante na região Sudeste do Brasil é de 81 litros por ano 15-17.
Nesta mesma região do país, em São Paulo, dados recentes
do Ministério da Saúde evidenciam um alto consumo de
refrigerante entre bebês a partir do sexto mês de vida 18.
Ainda não há um consenso sobre a hipótese de a prevalência de erosão variar entre indivíduos de diferentes níveis
socioeconômicos.
Apesar de alguns estudos indicarem uma maior prevalência de erosão dentária em indivíduos do sexo masculino, a maioria dos achados indica que este tipo de desgaste
ocorre em proporções semelhantes em ambos os sexos 5. Com
relação à idade, uma revisão sistemática da literatura mostrou que a prevalência de erosão aumenta com a idade 7,
Odontopediatria
devido à natureza cumulativa do desgaste e à não remoção
dos hábitos de risco.
Prevenção e tratamento da erosão dentária
A prevenção da erosão dentária deve receber, por parte
dos Cirurgiões-Dentistas, o mesmo cuidado e a mesma minúcia dedicados à prevenção da doença cárie. Assim, cumpre aos
profissionais informarem aos seus pacientes sobre os fatores
etiológicos e predisponentes dessa desordem, aconselhandoos da melhor maneira possível sobre as condutas a serem adotadas para prevenir ou minimizar os problemas e motivandoos para obter a necessária cooperação (Figura 10).
O elemento fundamental na prevenção da erosão dentária
é a diminuição da frequência e da severidade do ataque ácido3. No entanto, pela sua etiologia multifatorial, muitas vezes
esta remoção torna-se difícil. Além disso, os indivíduos suscetíveis à erosão dentária podem ter envolvimento psicológico ou profissional com fatores predisponentes ao distúrbio
e, portanto, não serão cooperativos mesmo quando o agente causal for identificado 3. Por essa razão, a busca de meios
que minimizem a erosão dentária tem sido um dos objetos de
maior preocupação por parte dos especialistas.
Mudança de hábitos dos pacientes
Uma vez diagnosticada a erosão dentária no paciente, o
Cirurgião-Dentista deve promover um aconselhamento para a
modificação da dieta e dos hábitos do paciente para prevenir
a progressão das lesões.
Com o intuito de reduzir o contato com os dentes e aumentar a velocidade de remoção do agente erosivo da cavidade bucal, o ideal é que as bebidas ácidas sejam ingeridas com
um canudo e engolidas rapidamente 19. Devem ser evitados a
sorção lenta, a manutenção na boca e os bochechos com tais
líquidos. O consumo de bebidas ácidas geladas também diminui o efeito erosivo por desacelerar a velocidade da reação
química envolvida na dissolução de tecidos dentais duros20.
Indivíduos sujeitos a vômitos recorrentes ou regurgitação
devem ser encaminhados para tratamento médico concomitantemente ao tratamento dentário. Deve-se sugerir a esses
pacientes, assim como aqueles que consomem alimentos ácidos, que evitem a escovação logo após o contato dos dentes
com a substância ácida, pois os ácidos deixam os dentes mais
suscetíveis aos efeitos da abrasão mecânica3,6.
A estimulação salivar após o consumo de bebidas ácidas,
por meio do uso de gomas de mascar, também tem mostrado
um papel protetor em relação à erosão dentária.
Alterações dos ácidos presentes nos alimentos
Como a erosão dentária é um processo químico entre um
ácido e o elemento dentário, alguns fatores químicos influenciam diretamente o potencial erosivo dos ácidos. O principal
fator que influencia a desmineralização por erosão é o pH,
mas outros fatores que também podem influenciar a capacidade erosiva de uma determinada solução são as concentrações de íons cálcio, fosfato e flúor na mesma. A presença
desses íons determina a força com a qual a dissolução do
mineral do dente ocorre.
O gradiente de dissolução dos íons depende no grau de
saturação do esmalte em relação ao meio oral. A Figura 11 é
uma representação do grau de saturação do esmalte dentário
em relação ao pH e a concentração de cálcio e fosfato presente nas soluções. Se uma determinada solução tem um pH mais
baixo, ou uma menor concentração de cálcio e fosfato, será
subsaturada em relação ao dente. Esta solução tem a capaci-
FIGURA 10
Esquema ilustrativo de perguntas e orientações a serem dadas ao paciente com erosão dentária, seguidas pelos seus objetivos
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dade de reagir com o esmalte e causar a desmineralização do
dente. Analisando o traço pontilhado na figura, de uma solução de pH fixo, observa-se que dependendo na concentração
de cálcio e fosfato, esta solução pode estar subsaturada ou
supersaturada em relação ao esmalte, e isso determinará se a
mesma irá causar, ou não, erosão no dente.
Um exemplo de que a dissolução do esmalte não depende completamente no pH da solução é o suco de beterraba
e o iogurte, que têm pH de 4,2, mas a concentração de cálcio e fosfato é maior no iogurte natural o que leva o suco
de beterraba a causar uma maior desmineralização erosiva
do esmalte 21.
Tendo esse mesmo princípio, algumas pesquisas introduziram agentes modificadores a bebidas erosivas para minimizar o potencial erosivo da mesma. Os principais agentes
foram o cálcio e o fosfato 22. A adição desses íons em sucos
e refrigerantes pode diminuir significantemente a erosão do
elemento dentário 22,23.
Outros íons testados em bebidas erosivas foram o ferro24
e o flúor. O aumento da concentração do flúor ou sua associação com o xilitol25 na bebida pode diminuir o potencial
erosivo dos ácidos. No entanto, as concentrações necessárias
são muito altas e o custo-benefício desta incorporação é muito pequeno, pois possibilita o desenvolvimento da fluorose,
devido à intoxicação crônica pelo flúor ingerido durante a
formação dos dentes 6,26. Além disso, a adição e a manipulação
de ácidos nos produtos industrializados podem acarretar em
mudança no sabor ou redução na validade do produto 6.
Ação do flúor na prevenção da erosão
O efeito do flúor na prevenção da cárie dentária já está
FIGURA 11
Representação gráfica do grau de saturação do esmalte dentário em
relação ao pH e concentração de íons cálcio e fosfato em soluções ácidas
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bem estabelecido na literatura e aceito por clínicos no âmbito mundial. Da mesma forma, inúmeros autores recomendam
o uso do flúor como agente remineralizador para prevenir a
erosão dentária. Entretanto, a eficácia do flúor na prevenção
de lesões erosivas ainda é objeto de controvérsias devido às
suas limitações e à ausência de evidências científicas.
De acordo com Larsen e Richards (2002) 26, uma solução
ácida que é ingerida e entra em contato com os dentes, dissolve prontamente o fluoreto de cálcio e remove traços do
tratamento tópico com flúor, tornando assim improvável e limitada a ação deste agente na prevenção da erosão. Em contrapartida, Ganss et al. (2001)27 relatam que, como existe uma
camada de CaF2 na superfície do esmalte após a aplicação tópica de flúor, a camada de fluoreto de cálcio fornece minerais
adicionais para serem dissolvidos durante o ataque ácido e,
assim, os ácidos primeiramente terão que desmineralizar esta
camada, para posteriormente desmineralizar o esmalte dentário subjacente. Dessa forma, a desmineralização do esmalte
é retardada, porém não é completamente prevenida 28.
Tendo isso em vista, alguns autores sugerem o uso de géis
e vernizes fluoretados em altas concentrações para uma maior
formação de CaF2 no esmalte e melhor proteção da superfície
dentária contra erosão 6,28. Dentre os compostos fluoretados
estudados para a prevenção de erosão, os fluoretos metálicos
como o TiF4 e SnF2 têm mostrado os melhores resultados6. No
mercado brasileiro ainda não há produtos de aplicação profissional sendo comercializados com estes compostos. Porém,
outros produtos como os géis de fluorfosfato acidulado (FFA)
e os vernizes com alta concentração de NaF também possuem
ação inibidora significante contra a erosão dentária 6,28.
De forma semelhante, os dentifrícios fluoretados também
FIGURA 12
Lesões erosivas severas com
perda de conformação anatômica
Odontopediatria
podem proteger o esmalte contra a desmineralização por erosão, principalmente quando os mesmos entram em contato
com o esmalte dentário antes do desafio erosivo29. Entretanto, diferentemente dos produtos profissionais de alta concentração de flúor, os dentifrícios tem um baixo potencial de
proteger contra a erosão, reduzindo o desgaste somente em
até 30% quando comparado ao placebo6. Ainda dentro do
assunto de dentifrícios, pacientes com erosão dentária devem
ser orientados a evitar o uso de dentifrícios com partículas
polidoras altamente abrasivas e com agentes clareadores.
Ação do CPP-ACP na prevenção da erosão
Em busca de novos métodos para aumentar a supersaturação de cálcio e fosfato na saliva e/ou biofilme, outros agentes
contendo estes elementos vêm sendo estudados para prevenção de cárie e erosão. Estes íons interagem diretamente
com o aumento da incorporação de flúor no interior da lesão
de cárie durante a remineralização, reduzindo a solubilidade
do esmalte, aumentando a capacidade tampão, reduzindo a
quantidade de biofilme e modificando o metabolismo deste
através da elevação das concentrações de cálcio e fosfato,
potencializando então a remineralização 30.
A caseína foi identificada como uma das frações do leite bovino que apresenta efeito remineralizador do esmalte, o
que torna a estrutura mineral do dente mais resistente e menos solúvel ao ataque ácido31. Esse efeito deve-se a enzimas
presentes na cavidade bucal que produzem peptídeos a partir
da proteína do leite, formando os fosfopeptídeos de caseína
(CPP) que estabilizam o cálcio e o fosfato mantendo-os numa
forma amorfa ou solúvel conhecida como ACP, fornecendo
um reservatório de íons durante um ataque cariogênico 32.
Recentemente foi lançado um produto de uso profissional que contém em sua composição o CPP- ACP. Segundo o
fabricante, o MI Paste® (GC Corporation, Tóquio, Japão) é uma
pasta tópica baseada em água, contendo RecaldentTM CPPACP, caseína derivada do leite. É uma combinação única de
agente de polimento, limpeza e selante do túbulo dentinário
desenvolvido para aplicação profissional durante os procedimentos padrões da prática de higiene dentária. Quando o
CPP-ACP é aplicado no ambiente oral, ele se liga ao biofilme,
bactérias, hidroxiapatita e tecido mole liberando o fosfato e
cálcio biodisponíveis. Embora este produto pareça ser bastante interessante, ainda não há evidencias científicas suficientes para sua utilização na clínica.
Tratamento restaurador
Em situações mais severas, como nos casos em que as áreas de dentina exposta são grandes, quando há risco de fratura
dental, ou em situações nas quais a hipersensibilidade não
pode ser controlada por outro meio, indica-se a utilização
de manobras restauradoras (Figura 12). Isso é realizado para
devolver ao dente forma e função, proteção ao complexo
dentino-pulpar, alívio à dor decorrente da hipersensibilidade
dentinária, restauração da dimensão vertical oclusal no caso
FIGURA 13
Lesões da Figura 12 restauradas em resina composta
FIGURA 14
Lesões de desgaste severo por erosão associada ao bruxismo
FIGURA 15
Restauração das lesões da Figura 14 seguindo princípios de
mínima intervenção sem remoção da restauração antiga em amálgama
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de dentes excessivamente erodidos, e prevenção de possível
perda da estrutura dental 33 (Figura 13).
O tipo de tratamento restaurador a ser realizado depende
diretamente do grau de desgaste do elemento dentário. Assim, o tratamento pode variar desde uma restauração simples
utilizando resina composta ou cimento de ionômero de vidro
(CIV), até a reabilitação completa da dentição do paciente 34.
Contudo, a seleção do tratamento restaurador deve seguir
os princípios da Odontologia Minimamente Invasiva, onde o
desgaste de tecido dentário deve ser mantido ao mínimo (Figuras 14 e 15). Assim, no caso de lesões erosivas, preferem-se
as restaurações utilizando materiais adesivos onde as mesmas
são realizadas sem a preparação de cavidade.
Em um cenário semelhante ao descrito acima, um estudo
foi realizado observando o comportamento de restaurações
utilizando CIV modificado com resina, compômero ou a combinação de adesivo/resina composta em lesões erosivas sem
preparação de cavidades. Observou-se que todos os materiais
apresentaram uma boa retenção ao elemento dentário que
sofreu erosão, mesmo após 12 meses. Porém, sugere-se o uso
de resina composta ou CIV modificado por resina para esse
tipo de reabilitação, uma vez que esses materiais apresentaram uma melhor integridade marginal 35.
Conclusões
O diagnóstico precoce de lesões erosivas possibilita a atuação
do Cirurgião-Dentista na prevenção de desgastes severos na dentição decídua e permanente através da conscientização do paciente
e da utilização de compostos químicos. Adicionalmente, em alguns
casos de erosão causada por ácido gástrico, o Cirurgião-Dentista
pode ser o primeiro profissional da área da saúde a suspeitar de
alterações sistêmicas como o refluxo gastresofágico e a bulimia.
Novos métodos para inibir a progressão de lesões erosivas têm
sido investigados, porém nenhuma das terapias atualmente existentes é capaz de prevenir totalmente a ocorrência da erosão dentária. Portanto, o aconselhamento eficaz ao paciente almejando a
diminuição da frequencia de exposição de seus dentes aos ácidos
continua sendo a forma mais eficaz de prevenir o desgaste erosivo.
Agradecimentos
Os autores gostariam de agradecer o Dr. José Paulo Nahás Pires Corrêa pelas fotos de reabilitação de lesões erosivas gentilmente cedidas.
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