Amamentação: fardo ou desejo: estudo histórico-social dos

Transcrição

Amamentação: fardo ou desejo: estudo histórico-social dos
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FACULDADE DE MEDICINA DE RIBEIRÃO PRETO
DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
DEPARTAMENTO DE MEDICINA SOCIAL
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: MEDICINA PREVENTIVA
AMAMENTAÇÃO: FARDO OU DESEJO?
ESTUDO HISTÓRICO-SOCIAL DOS SABERES E PRÁTICAS
SOBRE ALEITAMENTO NA SOCIEDADE BRASILEIRA
Dissertação
apresentada
à
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da
U.S.P., j u n t o ao Departamento de Medicina
Social, para obtenção do grau de Mestre.
Aluno: ANTÔNIO AUGUSTO MOURA DA SILVA
Orientador: PROF. DR. JOSÉ CARLOS DE MEDEIROS PEREIRA
RIBEIRÃO PRETO(SP)
1990
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AGRADECIMENTOS
Ao Prof. José Carlos de Medeiros Pereira, pelo estímulo, orientação e sugestões
oferecidas ao longo deste trabalho. Dos inúmeros diálogos sobre o tema brotaram idéias e
ensinamentos fundamentais para esta dissertação.
Ao Prof. Marco Antônio Barbieri, pelo incentivo constante na busca de
respostas para os desafios da prática pediátrica.
À Profa. Ana Maria Canesqui, cujas sugestões contribuíram para aperfeiçoar
este trabalho.
Ao Prof. Juan Stuardo Yazlle Rocha, coordenador da pós-graduação, pelo
interesse demonstrado, sem o qual não teria a oportunidade de realizar o Mestrado em Ribeirão
Preto.
Aos amigos de Pós-Graduação, especialmente Eugênia Rodrigues, Ari Ott,
Márcia Mitiko Azuma e César Xavier, pelos momentos compartilhados na busca do saber.
À Patrícia, amiga e companheira, pelo apoio e alegria com que vivenciamos
este momento de nossas vidas.
Aos meus pais, irmãos e familiares pelos momentos subtraídos ao convívio.
À José e Margarida Beleza, pelo apoio, sem o qual não teria sido possível
minha vinda a Ribeirão Preto.
Aos professores e funcionários do Departamento de Medicina Social da USP,
Ribeirão Preto, especialmente Afonso Diniz Costa Passos, Rogério, Paulina, Célia, Aírton,
Solange e Adriana.
Aos professores e funcionários do Departamento de Pediatria e Puericultura da
USP, Ribeirão Preto, especialmente Heloísa Bettiol.
Aos professores e funcionários do Departamento de Medicina III da
Universidade Federal do Maranhão, especialmente Maria Nazareth Neiva, Antônio Nilo,
iv
Maria José Guimarães e Alice Adélia Brandão, pela amizade e colaboração durante a ausência.
À Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
pela ajuda financeira.
v
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................................1
CAPÍTULO I — ANTROPOLOGIA CULTURAL DO ALEITAMENTO..............................14
CAPÍTULO II — O ALEITAMENTO MATERNO ENTRE OS INDÍGENAS
BRASILEIROS, ESPECIALMENTE ENTRE OS TUPINAMBÁ...............................22
CAPÍTULO III — O ALEITAMENTO ATÉ O SÉCULO XIX...............................................27
1.
A sociedade colonial, sua constituição demográfica e a situação do aleitamento....27
A família colonial...............................................................................................30
A família escrava................................................................................................32
A visão negra da maternidade............................................................................33
A criança negra...................................................................................................34
A ama-de-leite escrava no Nordeste...................................................................36
O abandono infantil no Rio de Janeiro...............................................................37
A ama negra da criança branca no Rio de Janeiro..............................................39
A mãe branca recusa o seio.................................................................................43
2.
O nascimento da polícia médica, higiene e puericultura como instrumentos de
regulação do corpo — radicalização e apropriação médica da infância...................46
3. Análise do discurso médico sobre o aleitamento........................................................49
A tese pioneira....................................................................................................49
Do aleitamento materno......................................................................................53
Do aleitamento artificial.....................................................................................60
Do aleitamento mercenário.................................................................................63
vi
4. O abandono infantil, as rodas de expostos e a mortalidade infantil...........................69
5. Aleitamento, natalidade e riqueza nacional................................................................76
CAPÍTULO IV — O ABANDONO DO ALEITAMENTO......................................................82
1. A sociedade urbano-industrial — o urbanismo como modo de vida e sua relação
com o aleitamento....................................................................................................82
2. A família nuclear voltada para a intimidade — a criança e a mulher como centros
— o amor materno...................................................................................................85
3.A consolidação
4.Progressos
da puericultura....................................................................................92
na esterilização — o aleitamento artificial como alternativa viável — o
discurso médico adaptado às novas circunstâncias.........................................................98
5. A disseminação do leite em pó e as promoções comerciais das indústrias — o papel
das instituições de saúde no decréscimo da amamentação....................................107
6.Razões
do declínio do aleitamento.............................................................................113
7.O discurso
das mães sobre o aleitamento...................................................................120
8.A mudança
nas percepções sobre o aleitamento........................................................126
CAPÍTULO V — A REDESCOBERTA DA AMAMENTAÇÃO..........................................129
1.
O fenômeno da retomada do aleitamento.............................................................129
2.
O discurso epidemiológico....................................................................................138
3.
O discurso médico reatualizado - mortalidade infantil, desnutrição e
aleitamento............................................................................................................149
4.
O discurso psicanalítico.........................................................................................155
5.Aleitamento
natural como fórmula de controle da natalidade...................................158
6.A puericultura
nos dias atuais....................................................................................164
vii
CAPÍTULO VI — O ALEITAMENTO COMO PROCESSO SOCIOCULTURAL..............168
1.Mudanças
sociais e aleitamento.................................................................................168
2.Aleitamento,
3.O processo
propaganda e imperialismo....................................................................172
de criação/satisfação de necessidades em relação à alimentação
infantil................................................................................................................................179
CAPÍTULO VII — PROCESSOS SOCIAIS E ALEITAMENTO..........................................183
1.Trabalho
feminino e amamentação.............................................................................183
2.Aleitamento
materno, feminismo e emancipação da mulher............................................193
3.Família,
divisão sexual do trabalho e amamentação..................................................195
4.Cultura,
sociedade e sexualidade — as razões da maternidade.................................200
CAPÍTULO VIII — AMAMENTAÇÃO: FARDO OU DESEJO?................................................208
CONCLUSÕES........................................................................................................................................................................211
RESUMO..................................................................................................................................214
SUMMARY..............................................................................................................................216
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................218
1
INTRODUÇÃO:
O aleitamento materno está na ordem do dia. Médicos, sobretudo pediatras,
psicólogos, artistas, setores governamentais e algumas organizações sociais envolvidas
empreendem uma vasta campanha nos meios de comunicação, enfatizando os benefícios da
amamentação para a criança. É como se, de repente, a sociedade se redescobrisse,
percebesse um erro e desse uma volta atrás, criando uma nova moda. Diversas vantagens
são propaladas e as mulheres das classes dominantes, especialmente as mais instruídas,
começam a seguir esses conselhos. Como se pode explicar essa mudança de comportamento
tão recente em nossa sociedade urbano-industrial?
Em alguns recantos do Brasil, muitas mulheres, embora considerem a
amamentação como a melhor opção para a criança, relutam em alimentar os filhos com seu
leite.
Há mais ou menos uns 40 ou 50 anos houve a difusão da produção e
consumo do leite de vaca pasteurizado e em pó. Assim, foi fácil atribuir à indústria, à
difusão dos meios de propaganda e marketing o abandono do aleitamento. Como se a
indústria moldasse os indivíduos que, massificados e robotizados, perdiam a sua identidade
cultural e a contingência da escolha!
Para muitos, o aleitamento é fenômeno biológico, natural, guiado pelo
instinto e pelas leis hormonais. Se este assim o fosse, completamente, como explicar as
flutuações históricas que este comportamento apresenta no decorrer do tempo nas várias
sociedades e culturas e, num mesmo momento, em diferentes camadas sociais?
Considerando o Brasil, vemos que a civilização indígena amamentava
amplamente os seus filhos e não tinha o hábito de desmamá-los precocemente. No entanto,
já na sociedade colonial e nos tempos do Império, as mulheres brancas e mais ricas, tinham
o costume de entregar o seu filho aos cuidados de uma ama-de-leite, geralmente negra, para
que o criasse e amamentasse. Este costume, talvez imitado das européias, no início não
sofria sanções sociais, pois que era encarado como sendo de bom tom e decente. No século
XIX é farta a literatura dos médicos higienistas condenando as mulheres que, segundo eles,
negando a natureza, descumprindo os seus deveres de mãe, recusavam-se a amamentar os
seus filhos.
O que observamos historicamente é que a prática de amamentação do recémnascido humano pela ama-de-leite surge, como prática social mais disseminada, a partir do
momento em que a sociedade se estratifica e surgem novas hierarquias entre os indivíduos.
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Antes, não havia praticamente escolha: a criança era amamentada por sua mãe ou por uma
pessoa do seu círculo de relações pessoais. Este hábito surge no Brasil a partir da divisão
entre senhores e escravos e, mais tarde, sofre mercantilização, como muitas outras práticas
sociais, através do aluguel de amas pelos senhores ou quando a própria ama oferecia seus
serviços em troca de uma remuneração. Assim, o aleitamento pelas amas surge antes do
advento do capitalismo, com a mercantilização das relações, quando se transforma em
aleitamento mercenário.
Mais tarde, o desenvolvimento científico tornou possível a alimentação da
criança com o leite de vaca diluído, com poucos riscos à saúde da criança. Só depois, com a
descoberta de novas tecnologias, como a pasteurização do leite e a produção em larga escala
do leite em pó, é que a alimentação artificial tornou-se amplamente disponível a
praticamente todas as camadas sociais. Pouco a pouco, a alimentação com mamadeira
transformou-se em hábito bastante difundido na sociedade brasileira.
No século XX, nos acostumamos a ver na vocação de mãe um dever sagrado,
natural e inquestionável. Assim, não podemos explicar a recusa do aleitamento pelas
mulheres, em alguns casos, como um sintoma de uma rejeição mesmo que "inconsciente"
do seu filho. Da mesma forma, nos negamos a perceber que muitas mães talvez não
amamentem por não estarem dispostas a carregar o que podem estar vivenciando como um
fardo, de se anularem para dar vida a outrem, ainda que saído de suas próprias entranhas.
Não que todo filho constitua-se em um fardo. Em uma sociedade, que entrega à mãe o
cuidado absoluto do filho, em que o pai mostra-se reticente a colaborar na maternagem, em
que a mulher abdica de sua realização profissional, às vezes pela premência econômica de
produzir valores de uso doméstico sem remuneração ou reconhecimento, no sentido de
equilibrar a unidade familiar, a amamentação pode parecer, de fato, um fardo. Nesse caso, o
decréscimo na prevalência do aleitamento não seria um sintoma desse possível fardo?
Nos seres humanos, o ato de amamentar ao seio ou não, antes de ser
biologicamente determinado, é social e culturalmente condicionado. Daí as variações que
apresenta nas várias sociedades humanas ou, na mesma sociedade, em diversos momentos
históricos. Um ato socialmente determinado não pode ser livre e consciente, ainda que
assim pareça ao agente. A determinação sociocultural, nos seres humanos, tende a se
sobrepor à determinação biológica. De modo geral, só superamos a determinação quando
dela tomamos consciência. A tomada de consciência da determinação social de uma atitude
só acontece, geralmente, com um pequeno número de pessoas e tal processo é insuficiente
para se explicar um comportamento coletivo.
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Assim, não podemos explicar o aleitamento ou a sua recusa como uma
atitude livre e consciente dos seres humanos, a não ser em poucos casos. O hábito do
aleitamento não parece ser uma questão de desejo individual, voluntário, através do qual o
ser humano, embora preso às sanções do seu grupo social, encontra espaço para manifestar
a sua liberdade. No entanto, a amamentação não é um instinto natural e biológico.
No decorrer do trabalho, analisamos os saberes e práticas sobre o aleitamento
como elementos culturais que obedecem, a nosso ver, às leis de difusão definidas pelos
etnólogos. Desse modo, buscamos localizar o nascimento de novos saberes em diversos
discursos ao longo do tempo, como o discurso médico, o psicanalítico, o discurso das mães,
o discurso natalista ou antinatalista etc. Em seguida, tentamos esboçar os principais
caminhos percorridos no processo de difusão, desde a apresentação até a aceitação do traço
cultural, discutindo, nesse processo, o empréstimo de novos elementos pelas subculturas
baseadas em camadas ou classes sociais. E, por fim, pretendemos estabelecer os principais
canais da difusão dos saberes sobre lactação no passado e na sociedade de massas.
Encontramos duas tendências predominantes: primeiro, a redefinição dos padrões de
aleitamento a partir da inter-relação entre o discurso médico e as práticas sociais da elite,
durante todo o século passado. Em segundo lugar, a modificação das percepções sobre a
amamentação passou a se dar na articulação entre os diversos saberes científicos e o
comportamento no meio urbano, a partir do século XX. Por outro lado, em todos os
momentos históricos, a codificação de novos saberes começou, predominantemente, a partir
das camadas dominantes e, a partir delas, se difundiu para as demais camadas sociais.
Cabe, nesse ponto, algumas considerações sobre o sentido em que foram
empregados os termos discurso e saber. Entendemos discurso como a maneira de pensar
característica de algum grupo, inclusive científico. Esta percepção engloba a existência de
certo número de juízos valorativos. Entendemos que a própria "ciência constitui, ela
própria, um modo valorativo de ver a realidade, ao privilegiar uma forma de obtenção de
conhecimento e não outras" (PEREIRA: 1983,69). Entretanto, em determinados discursos
analisados como, por exemplo, no epidemiológico, percebe-se uma maior dose de
cientificidade. O termo saber foi empregado praticamente como sinônimo de discurso,
referindo-se mais ao estoque de conhecimento, científico ou não, possuído por um grupo
social.
O aleitamento também está, em nossa opinião, condicionado pelas mudanças
sociais imperantes na sociedade brasileira e relacionado com diversos processos sociais em
curso. O retardo na difusão dos conhecimentos ao longo das classes sociais é interpretado
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como fruto do descompasso existente entre os ritmos de mudança entre os segmentos da
cultura tecnológica e não-material, caracterizando a "demora cultural". Observamos que,
nas duas últimas décadas, o aleitamento se incorporou na prática de diversas instituições
sociais, num esforço de mudança social dirigida.
No trabalho, procuramos caracterizar que, em alguns momentos históricos,
predominam determinadas representações socioculturais sobre o aleitamento. Pudemos
observar que é muito usado o termo "fardo", para designar um conjunto de representações
que o aleitamento materno possuía no século passado e nos primeiros anos deste, e que
coincide, em parte, com a percepção da maternidade como uma imposição à mulher e do
papel de mãe como a vivência de um sacrifício. Nos últimos anos, assiste-se ao nascimento
do "desejo" como representação sociocultural, a partir da difusão das "psicologias" na
sociedade contemporânea, acompanhando uma mudança no papel de mãe, que passa a ser
visto como uma possibilidade de realização e prazer para a mulher. Assim, a escolha dos
termos para designar tais percepções de significado não representam termos antitéticos, mas
constituem a maneira mais utilizada na literatura para verbalizar a rede de relações sociais
envolvidas na vivência do aleitamento.
O aleitamento é um comportamento social, mutável conforme as épocas e os
costumes. Hábito preso aos determinantes sociais, às idéias e manifestações da cultura. A
prática da amamentação depende de concepções e valores assimilados no processo de
socialização, além do equilíbrio biológico e perfeito funcionamento das funções hormonais.
Se o aleitamento fosse um ato natural, ele permaneceria imutável nos sujeitos. Se ele se
modifica, não se pode traduzir tal mudança como um erro ou uma imperfeição da natureza.
Cada sociedade, em determinada fase de sua história, cria percepções e
construções culturais sobre o aleitamento, que se traduzem em saberes próprios. E, ainda,
dependendo da complexidade da formação econômico-social, cada agrupamento social ou
classe social constrói referências também específicas sobre a amamentação.
A análise do aleitamento reside no estudo dessas concepções que formam os
saberes, sobretudo no caso de sociedades mais complexas e, em geral, mais estratificadas.
Esses valores nem sempre são percebidos pelos sujeitos que, às vezes, os internalizam sem
disso tomarem "consciência". E também, às vezes, não se refletem, imediatamente, na sua
prática histórica do momento. "A compreensão do destino social de um saber implica
descobrir as razões de sua oportunidade, encontrar o vínculo existente entre suas
propriedades
discursivas
e
os
problemas
instituições" (DONZELOT: 1988,124).
colocados
pelo
funcionamento
das
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Essa percepção é dinâmica no corpo social, está sujeita a mudanças que ora
modificam o corpo dos saberes, ora alteram o curso de suas práticas. Assim, analisemos um
exemplo. Um determinado corpo de conhecimentos se consolida como um saber específico
no âmbito da medicina e, pouco a pouco, se difunde na sociedade, inicialmente nas classes
dominantes e depois, ao longo do tempo, chega às classes subordinadas. Se a velocidade de
difusão desse saber for muito lenta, antes que tais concepções se propaguem a todas as
camadas sociais — o que nem sempre acontece devido a vários fatores, dentre os quais a
resistência cultural — um novo saber poderá já se estar formando e se difundindo. Tais
acontecimentos, dada a diversidade social dos saberes, complica a análise da matéria.
O saber sobre o aleitamento não forma um assunto completo, acabado,
hermético e sem relação com os demais saberes de uma sociedade. Pelo contrário, as
concepções sobre o aleitamento são parte de um corpo de conhecimentos mais geral, que
abrange uma infinidade de setores da vida humana. Assim, a maneira como a sociedade
pensa a família, a criança, os papéis culturais materno e paterno, o cuidado com os filhos, a
doença e as práticas de regulação do corpo (dentre as quais se inclui a medicina ocidental) e
as concepções de maternidade traz uma relação estreita e indissociável com os saberes e
práticas acerca da amamentação ao seio.
Numa sociedade que não valoriza a criança, onde a mãe culturalmente não
exerce o papel de vigilância e criação do filho, na qual a maternidade seja encarada como
um fardo impeditivo à realização da mulher na vida e no trabalho, provavelmente as mães
não amamentem elas próprias os filhos, se dispuserem de meios materiais, tecnológicos ou
de nutrizes substitutas. Nesse caso, a sociedade não pode até mesmo praticar o abandono
infantil, o infanticídio ou o aborto, no sentido de aliviar a mulher do peso da maternidade?
Tais concepções são saberes culturalmente construídos que se interpenetram.
A história do aleitamento na sociedade brasileira é a história desses saberes e das práticas
sociais que os acompanham e da difusão dos mesmos no interior do organismo social.
Nem sempre é fácil ou possível perceber, no desenrolar da prática, as idéias e
valores que a formam, lhe dão consistência e a tornam possível. Tais conteúdos, muitas
vezes, não são percebidos e/ou verbalizados pelo sujeito. Pode vigorar uma moral que
constrói uma norma universal passível de sanções, mas que tolera as transgressões a ela
dentro de certos limites. Não amamentar pode constituir uma transgressão a uma regra. O
discurso do sujeito sobre o aleitamento, que se constitui no objeto de sua prática, poderá ser
camuflado, "consciente" ou "inconscientemente', para evitar desacordos ou reprovações.
Sendo o seu corpo que amamenta objeto de uma vigilância, o reconhecimento, por exemplo,
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da amamentação como desagradável, poderá trazer culpa ou sofrimento para a mulher. Esta
se defende ocultando o seu saber ou, às vezes, não admite nem para si mesma que tem um
saber discordante da moral vigente sobre o aleitamento. Como a sociedade tolera a
transgressão justificada, ela transfere o discurso dos motivos, que seriam contra a norma,
para uma norma reinterpretada conforme convenções e justificativas socialmente aceitas.
Assim, mesmo que a norma seja amamentar, geralmente a sociedade permite a não
amamentação, seguindo-se um determinado modelo de conduta padronizado e com
explicações estereotipadas — pois tais explicações são também socialmente aprendidas e
condicionadas.
Não há uma relação necessária entre o modo de produção dominante numa
dada formação histórico-social e as concepções e práticas sobre o aleitamento. Nem existe,
mecânica e obrigatoriamente, associação entre classes sociais e saberes sobre o aleitamento.
Se assim o for, as classes sociais podem ter, em um instante, saberes convergentes e noutro,
saberes divergentes sobre a amamentação ao seio.
A construção de um saber sobre o aleitamento pode perpassar a desigualdade
social e a divisão da sociedade em classes. “A análise do fenômeno superestrutural não
pode, de modo algum, ignorar os nexos com o plano infra-estrutural, mas estou firmemente
convencido de que um discurso sobre um setor cultural específico que deseje ser realmente
rigoroso e, conseqüentemente, eficaz, requer uma peculiaridade de instrumentos de
investigação e de que não é possível superar a dificuldade específica que a análise daquele
determinado fenômeno do mundo popular coloca, remetendo-o de modo genérico, quando
não absolutamente automático, à infra-estrutura ou à divisão da sociedade em
classes” (SATRIANI: 1986,11-12). Não se pode negar que as concepções culturais estejam
ligadas às condições de vida, mas muitas crenças e valores permanecem mesmo depois que
tais condições tenham sido modificadas. Numa mesma estrutura socioeconômica as idéias
sobre o aleitamento podem variar e serem antagônicas, se tomarmos uma fase em relação à
outra. É que as concepções sobre o aleitamento são parte de um saber superestrutural mais
amplo sobre o corpo humano. O saber sobre o aleitamento não é específico e pode ser
continuamente redefinido em função da ideologia dos outros saberes mais amplos. Tem
relação com os outros saberes nas é, por sua vez, dotado de autonomia ou especificidade
relativa dentro da superestrutura.
As idéias sobre a amamentação ao seio tendem a ser semelhantes nas
sociedades mais simples, em que não há quase diferenciação social e onde se observa
uniformidade na maneira de pensar, agir e sentir. Nas sociedades mais complexas, como as
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capitalistas, há cada vez mais heterogeneidade. Por outro lado, há uma facilitação dos
contatos sociais, o que promove um afrouxamento das relações de dominação e
subordinação, que se tornam mais tênues, ocorrendo uma maior difusão sociocultural.
Apesar de haver diferentes saberes culturais, a universalização da educação escolar pode
fazer com que esses saberes de classe tendam à uniformidade. Boltanski interpreta a difusão
da puericultura de uma forma diferente: "Vê-se que a regra formulada em 1900 não se
impõe senão hoje à maioria das mulheres dos meios populares que ignoram ainda o
abandono destas técnicas pelos médicos, ainda que os membros das classes superiores se
recusem por um instante a abandonar uma regra em afinidade com o seu etos de classe e as
quais estão habituados a pôr em prática há muito tempo. Assim, a análise estatística pode
trazer a ilusão de uma identidade de condutas entre os membros de duas classes diferentes,
pois ela fixa um momento, uma fotografia de duas evoluções em sentido inverso e que se
reencontram antes de divergir de novo" (BOLTANSKI: 1984,137-138).
Assim, à medida em que avançar o desenvolvimento capitalista, as
concepções e práticas sobre o aleitamento poderão tender a se assemelhar nas diferentes
camadas sociais. O estudo da mudança das concepções e práticas sobre amamentação em
uma sociedade ao longo do tempo compreende a historicidade desse conhecimento.
Conhecimento que ora surge como resultado das transformações sociais, ora se antecipa a
estas com o fim de prevenir dissensões.
O aleitamento é uma questão fundamentalmente socioantropológica. Guarda
relação essencial com o homem e sua cultura. Está ligada ao biológico, mas não se amarra
mecanicamente a ele. Goza de autonomia relativa em face das transformações econômicas,
mas também pode sofrer influências dessas mudanças. Enfim, saber antropologicamente
necessário, socialmente contingente e mutável.
O ato de amamentar está orientado por valores, mas é o agir reciprocamente
condicionado que mantém ou transforma esses modelos. As normas sociais e as regras de
conduta compartilhadas constrangem o sujeito a se adequar às convenções sociais, o que
este geralmente faz de maneira inconsciente.
A história dos saberes se inscreve no que a tradição francesa denomina de
história das mentalidades. Constitui uma crítica da razão política: rompendo com essa
leitura política, ela mostra a existência de um regime de transformação própria do
sentimento, dos costumes, da organização do cotidiano (DONZELOT: 1986,11). História
que não se constitui apenas na arquitetura de um projeto de dominação de una classe social
perante a outra. Mas que procura, na análise social dos saberes, entender porque um se
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tornou dominante sobre o outro. Vamos assumir a hipótese de que um saber muitas vezes
predomine historicamente não por representar a vitória de um projeto de classe dominante
mas justamente por permitir a autonomização do poder, a fragmentação do repressivo, por
distender as vontades e, como resultado, promover a coesão do corpo social.
A história percebida como submissão dos dominados aos dominantes é, de
certo modo, ahistórica. “Embora esta modalidade de análise apreenda o conflito, o dissolve
na derrota dos humilhados. Como se o resultado social das ações fosse arquitetado e
previsto, como se os sujeitos planejassem a história e esta fosse a repetição mecânica de
suas vontades. Nesse ponto de vista, não se nega objetividade à história, mas reduz-se-lhe
ao consciente dos sujeitos, hipotrofiando-se seus aspectos objetivos. Na realidade, o sistema
social é um conjunto de forças e tendências, frequentemente contraditórias, onde muitas
instituições e mecanismos psicossociais ou culturais, embora sendo funcionais ao sistema,
são criados sem finalidade consciente” (SATRIANI: 1986, 93).
De outra forma, a história é visualizada como fatos que se impõem ao
sujeito. Estruturalmente, os eventos seguiriam uma relação linear de causa e efeito que
poderia ser antecipadamente prevista. Porém, a história é sempre produto de reações e
concessões mútuas. Esta é resultado de um embate que deixa feridos e vitoriosos dos dois
lados. Vitória muitas vezes do consenso sobre o conflito. Não que a luta desapareça mas
esta se transfigura. O perene domina a mudança por um instante e se institucionaliza. A
história se faz trégua.
A amamentação diz respeito ao corpo dos indivíduos. Corpo esse articulado
com a realidade social, constantemente em transformação. Os cuidados com o corpo
feminino, antes tarefas delegadas à família ou às comadres, são hoje atribuições da
instituição médica.
Segundo Foucault, o capitalismo vem, pouco a pouco, socializando o corpo
dos indivíduos. “O controle da sociedade não se opera simplesmente pela consciência ou
pela ideologia mas começa no corpo com o corpo. Foi no biológico, no somático, no
corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade
biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica” (FOUCAULT: 1984, 80).
É no espaço histórico desse corpo em processo de socialização que vamos
penetrar para o entendimento biopolítico do aleitamento materno.
Para a análise das articulações desse corpo com a realidade social se faz
necessário estudar alguns aspectos desta em cada momento para clarear a compreensão do
problema. Assim, dividimos, didaticamente, o processo em duas etapas. Na primeira,
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realizamos o estudo histórico-social do aleitamento materno na sociedade brasileira. No
primeiro capítulo, realizamos um esboço de interpretação antropológica do aleitamento; no
segundo, abordamos a cultura indígena, principalmente a tupinambá e a sua visão sobre
amamentação; no terceiro, analisamos o aleitamento até o século XIX, onde descrevemos a
amamentação mercenária, o nascimento da polícia médica e as rodas de expostos; no
quarto, estudamos o abandono do aleitamento, os processos de urbanização e
industrialização e a alimentação artificial com leite de vaca; e, no quinto capitulo,
discutimos a redescoberta do aleitamento a partir dos finais da década de 70.
Na segunda etapa do trabalho, rompemos com o tratamento histórico do tema
e analisamos, no sexto capítulo, o aleitamento enquanto processo sociocultural; vemos as
mudanças sociais, discutimos determinadas interpretações que analisam a propaganda ou o
imperialismo cultural como fatores determinantes da lactação e estudamos o processo de
criação/satisfação de necessidades em relação à alimentação infantil; no sétimo capítulo,
analisamos alguns processos sociais e sua relação com o aleitamento. Nesta parte,
levantamos algumas hipóteses, pretendendo apontar linhas de investigação para outros
trabalhos. E, no capítulo final, discutimos as representações sociais do aleitamento enquanto
fardo e desejo.
Em cada etapa histórica avaliamos a formação econômico-social; os saberes
sociais sobre a família, a criança, a maternidade; as práticas sociais de regulação do corpo
— as parteiras tradicionais, os médicos, os curandeiros, os psicólogos; os papéis sociais de
pai e mãe; a articulação social do corpo que amamenta enquanto espaço de produção de
bens e serviços e de reprodução humana; e a divisão social e sexual do trabalho. Tais
aspectos vão influir, diretamente, tanto nas concepções como nas práticas que uma
sociedade tem do aleitamento em cada período histórico. Como Leite, sentiu-se a
"necessidade de apresentar quadros sociais mais amplos, onde se insere a vida
feminina" (LEITE: 1984,68).
Para tanto, foi necessário ampliar um pouco o objeto do trabalho e dissecar,
na anatomia social, esse corpo dissolvido também em outros sabores e práticas. E depois,
interpretar, dinamicamente, o corpo, referindo-o à totalidade dos saberes que formam o
social, integrando-o na unidade de seus múltiplos enraizamentos e determinações.
O projeto, então, era este. Para tanto, fomos buscar em diversas fontes
historiográficas dispersas o material necessário para análise. Consultamos manuais de
puericultura, teses médicas sobre o aleitamento e higiene infantil produzidas nas Faculdades
de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia desde o século passado, relatos de viajantes
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estrangeiros sobre o Brasil, jornais, artigos publicados em revistas científicas, documentos
oficiais das organizações de saúde nacionais (Ministério e Secretarias Estaduais de Saúde,
Instituto de Alimentação e Nutrição), e internacionais (Organização Mundial da Saúde,
Organização Panamericana de Saúde, Fundo das Nações Unidas para a Infância —
UNICEF), publicações da Sociedade Brasileira de Pediatria, resumos de congressos
médicos, teses de Mestrado, Doutorado e Livre-Docência, livros publicados sobre o
assunto, mensagens publicitárias das indústrias de leite em pó em revistas de circulação
médica e cartilhas populares sobre puericultura escritas para as mães. Optou-se por não
consultar obras de filantropos, moralistas ou filósofos do século XIX, a literatura, a
iconografia de Debret e Rugendas ou as mensagens veiculadas nos meios de comunicação
de massa (rádio, televisão, revistas) e também não foram realizadas entrevistas pessoais.
Sobre as teses de puericultura, Orlandi acrescenta que "não tiveram
divulgação popular e circularam em âmbito restrito, mas refletem as idéias e pensamentos
de grande número de médicos daquela época, daí sua importância" (ORLANDI: 1985,172).
E afirma, ainda, que "os livros de puericultura prestam inestimáveis informações sobre a
vida e a história da infância de um país" (ORLANDI: 1985.113).
Leite porém acha que "as teses e anais das Faculdades de Medicina da Bahia
e do Rio de Janeiro ... são recortes horizontais, ainda muito necessitados de elaboração, para
uma utilização adequada" (LEITE: 1984,18-19). No entanto, é muito provável que muitas
das concepções difundidas naquelas teses tenham se popularizado.
Com
base
nessas
observações,
cabe
aqui
algumas
considerações
metodológicas sobre os cuidados que se deve ter em um trabalho de reconstrução histórica.
Na leitura dos textos não se pode tomar a informação como sendo verdadeira mas separar o
puramente ideológico dos relatos que apresentam maior dose de cientificidade. Nem todos
os escritos são reais, representando antes a maneira que a pessoa se utiliza para convencer o
leitor, incutir-lhe o seu pensamento. Torna-se necessário tentar separar, no discurso, o juízo
de valor do juízo de fato, embora isso não seja de todo possível.
A literatura de viagem, "se é uma documentação importante no registro de
dados exteriores da vida cotidiana, torna-se precária ou, pelo menos, vulnerável, quando
tenta interpretar as relações e as instituições sociais" (LEITE: 1984,22). Desse modo, "entre
os cientistas sociais contemporâneos, como se verificou, na falta de outra documentação,
seu testemunho vem sendo aceito, quase sempre sem parâmetros críticos e sem levar em
conta a historicidade das obras" (LEITE: 1984,33). Nesta literatura, percebem-se
"estereótipos culturais e os preconceitos de classe, raça e sexo que mediavam a sua
11
percepção" (LEITE: 1984,34).
Novaes alerta para um problema comum a todo trabalho historiográfico: o
material de análise "reflete a opinião de uma parte da sociedade da época, ou seja, aquela
que tem autoridade (científica, técnica e política) suficiente para fazê-la registrada e
conservada. No caso da puericultura, pode-se ouvir a voz dos médicos e dos
administradores, mas não a voz das pessoas que foram objeto de sua prática" (NOVAES:
1979,5).
Pelo exposto, podemos observar que as fontes primárias existem em
quantidade razoável, apesar da falta ou desconhecimento de relatos sobre a amamentação
pela mãe negra do seu filho. É quase certo que a história deixou poucos registros do
pensamento das mulheres das classes subordinadas e, principalmente, das concepções e
valores que as escravas negras possuíam sobre o aleitamento materno. Sobre esses pontos
reina um silêncio histórico quase que absoluto, abafado pela escravidão. A sociedade
patriarcal e, após ela, o predomínio do homem na sociedade pós-colonial dificultou ou
impediu a exteriorização escrita do pensamento das mulheres por elas mesmas. Resta a
dúvida se na literatura, na iconografia ou, talvez, nos diários familiares do século passado se
possa encontrar alguma luz para descortinar este assunto. Ou, talvez, recolher o depoimento
de mulheres idosas, negras e brancas, que viveram ou ainda registrem algum traço de
memória histórica daquele período. Tarefa esta muito difícil, em virtude da ressocialização
e dos novos valores que estas mulheres absorveram. Ainda assim, desse modo talvez se
possa coletar apenas as informações mais concretas, que digam respeito a práticas de
aleitamento.
Hoje as mulheres começam a externar os seus pensamentos e a serem
ouvidas. Neste trabalho tentamos esboçar apenas uma síntese do discurso social,
predominantemente médico, burguês, masculino e branco sobre a amamentação. Falta, a
posteriori, emendar as lacunas que existem neste início de pesquisa sobre a matéria.
Desvelar as percepções culturais sobre o aleitamento das mulheres, das operárias, das
domésticas etc.
Alguns aspectos da análise foram apenas descortinados neste trabalho.
Como, por exemplo, a relação entre os controles sociais — entendidos como o conjunto dos
meios e processos pelos quais um grupo ou uma unidade social leva os seus membros a
adotarem comportamentos, normas, regras de conduta, até mesmo costumes, conforme ao
que o grupo considera socialmente bom — e a amamentação. Até que ponto o encerramento
da mulher em casa para amamentar não constituiu amarras e grilhões sobre a sua
12
personalidade? Ou, como se traduziam na prática os controles sobre o aleitamento?
Atuavam por persuasão ou por constrangimento?
No século passado e, até recentemente, o discurso "científico" preponderante
sobre o aleitamento era o médico. Já agora parece emergir um novo saber regulador
dominante, o discurso psi1, menos "fechado", descaracterizado externamente de juízos
morais, mais indulgente e, talvez, menos repressivo, enfatizando o livre arbítrio das
mulheres. Até que ponto ele representa uma forma de controle mais eficaz e coercitivo,
apesar de aparentemente mais frouxo? Ou constitui-se de valores mais coerentes com o
momento histórico de democratização dos saberes e socialização dos corpos, enfim, estágio
mais avançado de evolução social? Distensão do repressivo em nome do educativo?
Em todo trabalho de reconstrução histórica se enfrenta muitas dificuldades
que gostaria de deixar relatadas. É impressionante o profundo descaso com que a sociedade
e as autoridades tratam as bibliotecas públicas e a nossa memória histórica. Livros cheios de
traças, desorganizados, sujos, úmidos. Recintos de leitura com lâmpadas queimadas,
deixando entrar até mesmo a água da chuva. Livros preciosos e raros amontoados a um
canto. As explicações: funcionários insuficientes, falta de verbas. Retrato grotesco de um
país que não pensa, que não trata a si mesmo com seriedade.
Segundo Linton, "o observador tem demasiado em comum com seu objeto.
Haverá sempre alguma ligação emocional e esta ligação será a mais forte possível quando
alguém estiver estudando os fenômenos de sua própria sociedade e cultura" (LINTON:
1981,12). Assim, "como sempre viveu aquela realidade social e tem uma história pessoal
engrenada à história e aos costumes do grupo social de que faz parte, o habitante, afora
alguns observadores mais lúcidos, freqüentemente dá por suposto, toma como natural, uma
situação ou relações sociais que, para o estrangeiro, aparecem com maior nitidez, por
comparação com as suas maneiras de viver o cotidiano... as contradições do sistema social,
que se diluem para quase todos os habitantes, integrados nele" (LEITE: 1984,19). O grande
desafio é perceber o objeto externamente embora estando dentro dele. O que nem sempre é
factível nem o será de todo, pois "tanto os indivíduos como os grupos e também os
pesquisadores são dialeticamente autores e frutos do seu tempo” (MINAYO: 1989, 22). Há
uma relação indissolúvel entre o sujeito e o objeto da investigação, o pesquisador "tende a
importar para o objeto os princípios de sua relação com a realidade, incluindo-se aí as
relevâncias” (MINAYO: 1989, 6). Embora haja ideologia na ciência, predominam nesta os
1
psi — termo genérico empregado para englobar as psicologias, incluindo aqui todas as ciências que tenham
por objeto o estudo da dimensão psíquica do homem. Assim, de maneira geral, discurso psi representa o
discurso sobre o psiquismo.
13
elementos
científicos
(PEREIRA:
1963,11)
e
constitui
tarefa
do
pesquisador
"descontaminar", o mais possível, a ciência das representações ideológicas. Reconhecer
esse fato permite esclarecer as limitações de todo trabalho intelectual e projetá-lo no
horizonte do possível. É condição de honestidade deixá-lo aberto para o futuro, incompleto,
factível de refutabilidade. Citando Popper: uma pesquisa será sempre provisória, estará
sempre sujeita a ser demonstrada como falsa; permanecerá apenas provisoriamente
verdadeira, não descartada do rol das obras aproveitáveis (POPPER: 1972,41-44).
14
CAPÍTULO I — ANTROPOLOGIA CULTURAL DO ALEITAMENTO:
Segundo Linton, "o homem se distanciou tanto de seu começo animal, que
praticamente tudo quanto ele faz é modelado pela cultura. Até atividades elementares e
vitais como a amamentação e o cuidado das criançinhas, são controladas por padrões
culturais e não pelo instinto. A prova são as extensas variações destas atividades, que
verificamos em sociedades diferentes. Assim em algumas sociedades as criançinhas são
amamentadas sempre que pelo choro manifestam vontade de mamar; em outras são
amamentadas segundo um horário. Em algumas, são amamentadas por qualquer mulher que
casualmente estiver à mão, em outras apenas pelas mães. Em algumas, o processo de
amamentação permite vagares e é acompanhado de muitas carícias e com um máximo de
prazer sensual para a mãe e o filho. Em outras, é apressado e perfunctório, encarado pela
mãe como interrupção de suas outras atividades, apressando-se a criança para que acabe o
mais depressa possível. Em alguns grupos o desmame se faz em idade muito tenra; em
outros a amamentação prossegue durante anos" (LINTON: 1981,445-446).
Quanto às técnicas para cuidar das criancinhas, existe ainda maior variedade
cultural. Em algumas sociedades ou épocas, a criança será o centro de atenção da família,
noutras será um aborrecimento, recebendo poucos cuidados, geralmente limitados à
satisfação de suas necessidades físicas.
A respeito das diferenças culturais em relação ao tratamento dispensado às
crianças, Margaret Mead estudou os Mundugumor, grupo da Nova Guiné, no qual a criança
era percebida como um aborrecimento. Escreveu que o menino nasce em um mundo hostil e
violento. "As mulheres Mundugumor aleitam os filhos em pé, segurando a criança com uma
das mãos em posição que força o braço da mãe e prende os braços da criança. Nada há do
prazer sensual e divertido que sente a mãe Arapesh ao alimentar o filho. Tampouco tem a
criança permissão de prolongar sua comida por qualquer carinho brincalhão em seu próprio
corpo ou no da mãe. É firmemente mantida no desempenho de sua tarefa principal, de
absorver alimento bastante para que cesse de chorar e consinta em ser recolocada na cesta.
No momento em que pára de mamar, mesmo que seja por um instante, é devolvida à sua
prisão. Por isso, as crianças desenvolvem uma bem definida e propositada atitude de luta,
segurando firmemente no bico do seio e sugando seu leite tão rápida e vigorosamente
quanto possível. Muitas vezes se engasgam por engolir muito depressa; o engasgo aborrece
a mãe e enfurece a criança, convertendo a situação do aleitamento mais caracterizada pelo
ódio do que pela afeição e segurança" (MEAD: 1969,194).
15
No Brasil, os Yanomani são um grupo também agressivo. "As mulheres
Yanomano são maltratadas desde a infância. Quando o irmãozinho de uma menina bate
nela, ela é castigada se lhe bater também. Meninos, entretanto, jamais são
castigados" (HARRIS: 1978,75). "Os Yanomano sempre matam uma grande porcentagem
dos bebês femininos, não só por negligência seletiva, mas através de atos específicos de
assassinato... Os homens exigem que seu primeiro filho seja homem. As mulheres matam as
filhas até que possam apresentar um bebê masculino. A seguir crianças de ambos os sexos
podem ser assassinadas. As mulheres matam os filhos estrangulando-os com cipós,
firmando-se nas duas extremidades de um pau colocado na garganta da criança, batendo-lhe
com a cabeça contra uma árvore, ou simplesmente abandonando o recém-nascido na
floresta" (HARRIS: 1978,82).
As sociedades são inconscientes das influências gerais que sua cultura exerce
sobre seus membros. Assim, tendemos a explicar as diferenças de organização da
personalidade numa base de qualidades inatas (LINTON: 1981,457). Ao contrário, "os
hábitos de amamentação... , assim como a valorização deste ato biológico são
historicamente definidos através de padrões e normas vigentes na sociedade e controlados,
direta ou indiretamente, por instituições, pela classe social, pelo grupo ou pela
família" (BERQUÓ: 1984a,6-7).
Em nosso trabalho, consideraremos, para efeito de exposição, as diferenças
de valores sobre o aleitamento nas classes sociais como subculturas distintas. Para
Boltanski, muitos dos saberes sobre puericultura que as classes subalternas possuem hoje
são herdados da medicina oficial de outras épocas (BOLTANSKI: 1979,26). Isso pode ser
exemplificado com o seguinte fato: a valorização popular que ainda hoje é dada à dentição,
para justificar diarréias ou episódios febris, pode ser uma "memória" desta medicina mais
antiga (NOVAES: 1979,64). Neste ponto se percebe que o que era antes um credo médico,
hoje é uma crença popular.
No Brasil, muitos saberes e práticas sobre o aleitamento podem também ter
tido origem na difusão de conhecimentos da medicina indígena ou da medicina africana.
Tais práticas, provavelmente, devem ter ficado restritas a algumas subculturas, devido ao
predomínio da medicina européia. No entanto, talvez, nestas últimas décadas, pela
influência dos meios de comunicação e pela maior secularização dos costumes, o
conhecimento sobre o que se poderia denominar visão negra das coisas expandiu-se. O
saber construído sobre o aleitamento no século passado pode estar residindo, com certas
modificações, na subcultura das classes subalternas. A transmissão das regras de
16
puericultura dos médicos às classes subalternas ocorre como a transmissão dos traços
culturais de uma sociedade a outra, seguindo as leis de difusão definidas pelos etnólogos
(BOLTANSKI: 1979,31). "Os elementos culturais, em parte devido à dificuldade de
comunicação, nunca se transferem completamente de uma cultura para a outra... tende-se a
tomar só o centro desse complexo, as partes mais concretas e tangíveis e que, portanto
podem ser mais facilmente imitadas... a sociedade receptora desenvolve para ele novas
interpretações, moldando-o para servir a novas finalidades." (LINTON: 1981, 331).
A forma de um traço cultural — os padrões objetivos e exteriores de um
padrão de comportamento — é transmitida com maior facilidade, apenas com ligeiras
modificações. O significado, subjetivo, desta forma sofre, no entanto, profundas
reinterpretações. "Uma cultura receptora liga aos elementos ou complexos tomados de
empréstimo, significados novos e estes podem ter pouca relação com os significados
encerrados nos mesmos elementos quando em seu ambiente original", e estes novos significados podem servir a fins também completamente diversos (LINTON: 1981, 388).
Os ensinamentos médicos, devido à facilidade de comunicação, passam
inicialmente às classes dominantes que compartilham com os médicos o mesmo etos de
classe e sofreram ambos a mesma influência racionalizadora da escola. O saber médico e o
saber das classes dominantes sobre a saúde são contemporâneos. A difusão deste saber para
as classes subalternas demanda um tempo maior, quase nunca é transferido completamente
e sofre uma transfiguração de significados no novo ambiente cultural, a tal ponto que se
torna tremendamente difícil a percepção da origem destes saberes.
O processo de difusão de um elemento cultural envolve três etapas:
apresentação, aceitação e integração. Após a apresentação, se a cultura receptora aceitar o
novo elemento, este sofrerá reinterpretações e, por fim, será integrado ao novo ambiente. A
aptidão à descontextualização do traço, o tempo de contato entre as subculturas e a
comunicabilidade intrínseca do elemento cultural determinam a sua apresentação. O grupo
receptor julgará a utilidade, a compatibilidade do traço com seus valores culturais e,
dependendo da moda e do interesse social, poderá adotá-lo.
Conflitos subjetivos devem existir nas classes médias pela persistência de
valores contraditórios no interior dos sujeitos. As mães oscilam entre as normas
transmitidas do exterior, pelos puericultores, e as regras familiares arcaicas e tradicionais.
Esta situação é geradora de ansiedade e redobra os temores da mãe e o sentimento de
culpabilidade quando a criança fica doente (BOLTANSKI: 1984,81). É bem provável que
essas normas contraditórias provoquem um sentimento de culpa nas mães que não desejam
17
amamentar. "As mães sentem, com freqüência, uma necessidade psicológica premente de
encontrar razões pelas quais são responsáveis, por algum descuido, das enfermidades de
seus filhos" (COE: 1973,178).
No caso da difusão de conhecimentos médicos para as classes subalternas
um grande fator limitante é a barreira lingüística. O vocabulário médico é quase
completamente inacessível para a sua subcultura. Em muitos casos, os conhecimentos
médicos não passam às classes subalternas antes da intermediação dos curandeiros,
farmacêuticos e outros profissionais informais, já parcialmente descontextualizados e
reinterpretados. O conjunto de conhecimentos médicos que compõe a higiene parece
difundir-se mais facilmente que outros, pois é menos sujeito ao monopólio da prática das
instituições e agentes médicos.
O médico limita a difusão dos conhecimentos sobre puericultura, pois não
explica suas regras para as classes subalternas, tanto porque acha que sejam incapazes de
compreender o seu discurso, como porque o conhecimento do doente acerca do saber
médico retira da prática aquele aspecto mágico e pode minar a relação de confiança cega
que muitos doentes depositam no médico. "Se por acaso o médico encontra e percebe
resistências por parte da mãe, nunca é através de uma explicação do que constitui o
princípio de eficiência do remédio prescrito ou da regra enunciada que ele procura eliminar
essas objeções, mas através do enunciado de sanções que decorrerão automaticamente da
desobediência, da transgressão da norma" (BOLTANSKI: 1979,45-46). As mães são
incentivadas a obedecer às prescrições médicas sem conhecer o saber pasteuriano que as
fundamenta e dá sentido. Os dogmas assim captados funcionam como um poder religioso,
proporcionando uma educação sanitária autoritária. As representações sobre o aleitamento
serão calcadas em saberes arcaicos pois o médico, transmitindo apenas informações
parceladas e não fazendo nada para favorecer a comunicação entre ele e a mãe das classes
populares, condena-a a reconstruir um discurso fragmentado, incoerente, em migalhas. A
mãe utiliza-se do discurso médico para construir outro que se baseia em categorias de
classificação mais simples, tais como forte/fraco, gordo/magro, salgado/insosso e outras
categorias espaciais e de substância (BOLTANSKI: 1979,84). São categorias antigas
derivadas da medicina hipocrática e mágica, submersas no senso comum. Assim, a mãe
pode explicar que desmamou o seu filho porque o seu leite se tornou muito salgado e podia
prejudicá-lo, ou que assim o fez porque o seu leite está fraco. Pode, ainda, querer
amamentá-lo porque o seu leite está gordo e forte. A esse respeito é comum, em muitas
regiões do Brasil, a associação do colostro como leite "salgado", que aparece como motivo
18
para a interrupção do aleitamento.
Boltanski considera o curandeiro como um intermediário na difusão da
medicina para a classe subalterna. Assim, a folkmedicina transmite e difunde conhecimentos
originados da medicina oficial do século passado, como se atesta pelas leituras de muitas
obras médicas do século XIX, práticas estas, que hoje se chamam populares (BOLTANSKI:
1984,60).
Para Coe, a folkmedicina moderna, diferentemente da primitiva, tende a
mudar segundo melhora a apreciação por parte dos profanos, das conclusões da medicina
profissional. Porém, ela pode se negar a esse contato devido a um alto grau de solidariedade
baseado em razões étnicas, à perpetuação de crenças e práticas de folk, ao pouco contato
com os médicos, a barreiras subculturais etc. Entretanto, "a folkmedicina moderna tende a
ser uma versão 'filtrada' da medicina científica especializada" (COE: 1973,178).
Tendo em vista as dificuldades na comunicação e as barreiras postas à
difusão dos conhecimentos médicos, algumas hipóteses podem ser levantadas: muitas mães
podem não ferver as mamadeiras porque consideram isto um ritual desnecessário. As
mulheres das classes populares podem mostrar-se receptivas aos conselhos sem, no entanto,
assimilá-los e colocá-los corretamente em prática. A categoria micróbio é usada nas classes
populares no singular e possui um caráter mágico, daí a falta de percepção cultural do
significado e da importância da assepsia (BOLTANKI: 1984,107). Não possuem o
conhecimento racional difundido pelas instituições escolar e médica, baseado em conceitos
e mecanismos de pensamento diversos do saber que possuem: o saber "empírico", ou
"irracional" ou o não saber, a "ignorância". A difusão das regras de puericultura será
incompleta, pois não se difundem as categorias de pensamento "modernas" e "científicas".
As classes subalternas podem mudar as práticas, mas desenvolverão novas interpretações
sobre tais práticas mais adequadas à sua subcultura. "Os determinantes sociais não
informam jamais o corpo de maneira imediata, através de uma ação que se exerceria diretamente sobre a ordem biológica, sem a mediação da ordem cultural que os retraduz e os
transforma em regras, em obrigações, em proibições, em repulsas ou desejos, em gostos e
aversões" (BOLTANSKI: 1979,119).
Boltanski descreve que, na França, para as mulheres das classes subalternas,
durante a amamentação a mãe deve evitar os alimentos "fortes" e escolher os alimentos
"nutridores" e "suaves". Para as classes dominantes, a mãe deve escolher alimentos
saudáveis, isto é, que não engordem. Já para as classes subalternas, as mulheres que não
amamentam por medo de que os seios se deformem são consideradas como mulheres que
19
falham no seu dever de fêmea e perdem, assim, a sua feminilidade. (BOLTANSKI: 1984,
92-94). No Brasil também se percebem diferenças de comportamento entre as subculturas:
as classes subalternas preferem fazer uso do leite de vaca "in natura" e as classes
dominantes utilizam, mais freqüentemente, os leites industrializados (ARRUDA &
GONDIN: 1970,20). A utilização dos leites naturais e a pouca aceitação dos leites
industrializados ou de produtos e medicamentos químicos como vimos, pode ser encontrada
nas práticas de medicina popular. Percebe-se, com estes exemplos, que os conhecimentos,
atitudes e práticas com respeito à amamentação ao seio são diferentes conforme as classes
sociais.
Boltanski observa, ainda, que o desempenho das regras de puericultura exige
certas condições materiais e certo tipo de atitude diante da vida que não existem
completamente nas classes populares. Seus membros possuem uma representação da doença
como um acontecimento súbito, o que dificulta a adoção de atitudes diante da medicina
preventiva, tais como levar a criança ao médico regularmente sem que ela esteja doente.
Nas classes superiores vigora uma moral "ascética", que supõe certa
liberdade em relação às condições materiais de vida não encontradas nas classes populares,
que, ao invés de vigiar constantemente a criança, a deixam mais solta, tanto pela falta de
tempo em exercer tais tarefas, ocupadas na luta pela sobrevivência ou em outras tarefas
domésticas mais importantes, como por acharem ridículo e desnecessário tal desvelo em
relação à infância.
Apesar de reconhecermos que a maioria das invenções culturais estejam
acontecendo nas classes superiores, não concordamos inteiramente com Boltanski quando
ele afirma que, numa sociedade hierarquizada, o monopólio da invenção e criação pertence
às classes superiores e, então, tais saberes se difundem de alto a baixo na escala social,
nunca ao contrário, produzindo as mudanças nas demais classes. Nem as diferenças entre as
classes sociais se reduzem a diferenças de "mais ou menos", pois há um ponto em que tais
diferenças deixam de ser apenas quantitativas e se tornam, também, qualitativas, nem um
esquema estrutural descreve completamente as desigualdades sociais. As classes
dominantes têm, geralmente, maiores condições de fazer com que as suas invenções se
espalhem pelo restante da sociedade, pois possuem maior poder de verbalização, dominam
os meios de comunicação, têm maior prestígio ligado aos status sociais superiores etc. Isso
faz com que os seus produtos culturais sejam mais facilmente imitados pelos membros das
demais classes.
A cultura subalterna não resulta unicamente de invenções reinterpretadas da
20
cultura hegemônica. Na cultura subalterna existem também produtos culturais que nascem e
sobrevivem nela como alternativas2. Poucos valores subalternos chegam de fato a
universais, por causa da dominação cultural. Satriani, discutindo o folclore, classifica os
saberes culturais subalternos em dois níveis: contestação da cultura dominante com rebelião
ou aceitação do status quo e aceitação da cultura hegemônica. A aceitação da cultura
hegemônica se dá em três categorias: produtos da cultura hegemônica — partilhados pela
cultura popular, passados sucessivamente à cultura popular e elaborados para a cultura
subalterna e a ela impostos (SATRIANI: 1986,107).
As relações entre as subculturas das classes sociais são interpretadas como
um fenômeno constante de aculturação. No contato entre duas culturas diferentes, há uma
acomodação mútua de valores, difundindo-se produtos culturais em uma ou nas duas
direções, podendo predominar, algumas vezes, em um sentido. Aculturação não é a simples
transferência de elementos de uma cultura a outra, mas um processo contínuo de interação
entre grupos de cultura diferente. Não se pode reduzir a realidade complexa da dinâmica
intercultural a alguns esquemas mecanicistas apressados (SATRIANI: 1986, 69-70).
Os antropólogos têm usado a amamentação como indicador inverso de
aculturação. Nesse ponto de vista, sociedades que amamentam menos sofreram ou estão
sofrendo aculturação e a mamadeira se torna um símbolo de posição social (BADER: 1983,
377).
O surgimento da sociedade de classes é um fenômeno recente na história
humana. Antes do capitalismo, apesar de os membros das diversas camadas sociais levarem
formas de vida sensivelmente diversas, eram "socialmente vizinhos", o que tornava possível
que alguns comportamentos, expressões, crenças ou produtos culturais fossem, em geral,
comuns a todos. Havia mais elementos universais, compartilhados por todos, porque as
sociedades eram mais simples. Então, apesar de socialmente muito distantes, estavam, na
verdade, culturalmente próximos. As sociedades "modernas" não compartilham senão o
núcleo da cultura. O desenvolvimento econômico e tecnológico fez com que surgissem
muitas especialidades, sendo totalmente impossível, hoje, alguém dominar uma
porcentagem muito grande dos traços de sua cultura.
Observamos, atualmente, que decorre um intervalo muito menor entre o uso
2
Segundo Linton, os traços culturais podem ser: universais, quando compartilhados por todos os seus
membros; especialidades, quando são vivenciados por poucas categorias de indivíduos e são decorrentes da
divisão do trabalho; alternativas, quando forem propriedades de certos indivíduos, representando,
geralmente, traços desintegrados e novos em mutação; e peculiaridades individuais, quando pertencem aos
indivíduos através da invenção, podendo tornar-se alternativas ou universais, a depender da aceitação e da
importância da descoberta para o grupo (LINTON: 1981,264).
21
de um objeto por uma classe e o uso do mesmo objeto por parte da outra, quando
comparamos com épocas passadas. Os meios de comunicação de massa facilitam o
processo de difusão e integração. A urbanização, multiplicando os contatos, estimula
positivamente a aquisição de novos valores e percepções socioculturais.
O processo de urbanização possui um efeito-demonstração extraordinário.
Assim, pessoas de classes distintas estão geográfica e socialmente mais próximas. As
relações entre as pessoas não são mais de dominação/subordinação, rígidas e praticamente
intransponíveis. A multiplicação de contatos e os meios de comunicação de massa vêm
diminuindo a distância no tempo entre a subcultura das classes hegemônicas e subalternas.
Tal processo não ocorre, todavia, sem contradições. Ao mesmo tempo em que tais
progressos podem provocar aquilo que se chama de dominação cultural, tornam possível o
conhecimento mais amplo de traços da subcultura da classe subalterna.
Satriani separa os produtos culturais em: produtos de cultura nascida diversa
e produtos de cultura tornada diversa. A categoria dos produtos de cultura tornada diversa
engloba produtos anteriormente comuns a ambas as classes que, dada a maior velocidade de
transformação cultural que ocorre nas classes hegemônicas, foram abandonadas por estas e
sobrevivem nas classes subalternas; além destas duas categorias, poderíamos acrescentar os
produtos de cultura comuns — partilhados por ambas as classes. (SATRIANI: 1986,115).
Um produto cultural pode ter nascido diverso em qualquer grupo, camada ou
classe social, quer seja dominante ou subordinada. Pode ser que, no decorrer da vida em
sociedade, um produto cultural que tinha nascido diverso tenha se tornado comum, adotado
pelos outros grupos ou classes sociais e mantido pelo grupo social que o criou. Outros
produtos culturais poderiam ter sido comuns e a dinâmica social transformou-os em
produtos tornados diversos, ou seja, adotados apenas por um ou mais dos grupos originais e
abandonados pelos demais.
Os saberes de puericultura nascida diversa são, em geral, desconhecidos ou
não reconhecidos como tais na sua origem pela cultura hegemônica. "Dispomos de poucos
documentos (ou nenhum) da vida popular de qualquer época, enquanto são abundantes para
o mesmo período, os documentos da vida 'privilegiada'. Isto se deve ao fato de a seleção
historiográfica ter sido sempre realizada, no fundo, por critérios retirados da cultura
hegemônica e de só nos nossos dias estarmos assistindo a um interesse preciso pela
documentação em torno das classes subalternas, vistas não mais como pano de fundo de
uma história reconstruída através de suas linhas hegemônicas" (SATRIANI: 1986,111-112).
22
CAPÍTULO II — O ALEITAMENTO MATERNO ENTRE OS INDÍGENAS
BRASILEIROS, ESPECIALMENTE ENTRE OS TUPINAMBÁ:
Inicialmente, para se compreender melhor os valores expressos na prática
quase universal do aleitamento entre os indígenas brasileiros, vamos retomar um pouco dos
relatos dos viajantes, para que se possa apreender de que modo os indígenas viam e
cuidavam dos seus filhos.
Os dados descritivos serão, na sua maior parte, referentes aos tupinambá,
devido à maior facilidade de se obter dados sobre este grupo indígena, habitante de diversos
pontos do litoral brasileiro, principalmente Rio de Janeiro, Bahia, Maranhão e Pará, nos
séculos XVI, XVII e anteriores; as tupinambá possuíam uma sólida unidade lingüística e
cultural, apesar de constituírem "grupos tribais distintos espacialmente separados e
solidamente diferenciados... Doutro lado, localizavam-se nas áreas em que os contatos com
os brancos foram mais intensos e regulares desde o início da colonização" (FERNANDES:
1963,15-17).
Pero Vaz de Caminha relata na carta ao rei de Portugal, por ocasião da
chegada dos portugueses ao Brasil, que as indígenas andavam "com um menino ou menina
ao colo, atado com um pano (não sei de que) aos peitos" e Hans Staden, em 1557, descreve,
ainda melhor, este hábito de carregar os filhos em tipóias, bastante difundido entre os
índios: "carregam seus filhos às costas envolvidos em panos de algodão, e assim com eles
trabalham. As crianças aí dormem, e andam contentes por mais que elas se abaixem ou se
movam". . . (apud ROCHA: 1947,13)
Os registros de várias fontes no que diz respeito à duração do aleitamento
natural entre os indígenas variam bastante. Segundo Cardim, "as mulheres dão de mamar à
criança de ordinário ano e meio sem lhe darem de comer outra coisa" (apud ROCHA:
1947,18-19); às vezes até os sete anos, para Gilberto Freyre (FREYRE: 1978,120). "A
criança sugava o seio materno por dois ou três anos, ou até oito anos, segundo escreveu
Gandavo" (apud SANTOS FILHO: 1977,114). Para o frei Vicente do Salvador, "as mães
dão de mamar aos filhos sete ou oito anos, se tantos estão sem tornar a parir, e todo este
tempo os trazem ao colo, ora elas, ora os maridos, principalmente quando vão às
roças..." (SALVADOR: 1982,81). Herbert Baldus observou que as mães tapirapé dão, sendo
possível, leite materno por dois, três ou mais anos aos seus filhos (BALDUS: 1970,277). E
Fernão Cardim, referindo-se aos tupinambá, narra: "uma criança que já, sem a guarda dos
adultos, brinca correndo com outras crianças se sacia ainda nos seios maternos" (apud
23
BALDUS: 1970,283).
Ornellas cita a ausência do hábito de chupar os dedos entre os índios e diz
que a amamentação se inicia logo após o nascimento, sem guardar horário e "sem a
preocupação de alternar os seios que a criança só larga quando se sacia" (ORNELLAS:
1978,191-192; BARBOSA: 1969,20-21)3.
Segundo os autores citados, raramente, os índios davam aos seus filhos
outros alimentos que não o leite materno, pelo menos na fase de peitan. Claude d'Abbeville
conta que era costume oferecer papas de manipoy (mandioca) junto com o leite materno
(D'ABBEVILLE: 1975, 224). Thevet escreve que "o alimento do recém-nascido é o leite
materno. Entretanto, poucos dias depois já lhe dão alguns alimentos mais pesados, como
farinhas mastigadas ou certas frutas" (THEVET: 1978,138). Ramón Pardal descreve que "os
tupis-guaranis davam aos prematuros e no desmame, água com mel de abelhas ou ainda a
'gordura do tambu', espécie de fino óleo extraído da larva de um coleóptero, o Rhincophorus
palmarum, diluído também com água morna e filtrada" (apud ROCHA: 1947,30).
Léry disse que se davam farinhas mastigadas e carnes tenras junto com o
leite materno. E complementa: "o curumim-mirim era deixado ao seio até que por si mesmo
o abandonava acostumando-se pouco a pouco a comer carnes, como as crianças maiores e
os adultos" (apud ROCHA: 1947,30), "mas não raro voltava de vez em vez a sugar o seio
materno", segundo Yves d'Evreux (apud ROCHA: 1947,26).
O padre Colbacchini descreve o costume dos bororós: "a mãe amamenta
sempre o menino, só em caso de moléstia grave ou morte da genitora confiam-no a uma
parenta mais próxima que esteja nas condições de poder preencher o ofício materno... Tal é
o escrúpulo em tirar ao menino o seio da própria mãe que se dá o caso de morrer ela tendo
no peito a criança sugando em vão no seio da morta o alimento da vida" (apud
MONCORVO FILHO: 1926,26).
Claude d'Abbeville descreve que "quanto às mães, é impossível dizer a que
ponto amam seus filhos apaixonadamente. Jamais os abandonam e trazem-nos sempre em
sua companhia" (D'ABBEVILLE: 1975,224).
Yves d'Evreux escreveu em 1613 que a infância dos indígenas estava
3
Neste artigo, Barbosa descreve uma visita que fez ao Parque Nacional do Xingu, em 1967. Observou vários
grupos lingüísticos: tupi, caiabi, caribé, aruac e jê. Pela convivência de diversas culturas, os costumes já não
são os originais. Nota que os pais matam os gêmeos por acreditarem que eles trazem a infelicidade para a
tribo. Conta que não usavam nada semelhante a chupeta. Além disso, refere alguns costumes, provavelmente
adquiridos por influência da aculturação: o pagamento a uma mulher índia que serve de ama-de-leite no
caso da mãe não poder amamentar e a aplicação de tapas e palmadas nos filhos como medida disciplinar
(BARBOSA: 19-25,1969).
24
dividida em dois períodos: peitan (desde o nascimento até o início da deambulação) e
curimim-mirim (da marcha aos 7-8 anos). O peitan significava menino (ou menina) saído
do ventre de sua mãe. Estes eram completamente dependentes da mãe nos afagos e
cuidados. Tinham "por único alimento o leite de sua mãe e grãos de milho assados,
mastigados por ela até ficarem reduzidos a farinha, amassados com saliva em forma de
caldo, e postos em sua boquinha como costumam fazer os pássaros com a sua prole, isto é,
passando de boca para boca... Quando estava um pouco mais crescido, o menino ria e
brincava no colo da mãe... A mãe depositava a comida mastigada no côncavo de sua mão e
ele próprio devia dirigi-la à boca... A mãe, por sua vez, não estimulava o apetite da criança.
Limitava-se a atender às solicitações da criança: deixava-a comer enquanto tivesse fome e
dava-lhe os seios quando ela pedia leite, por meio de gestos" (apud FERNANDES:
1963,267).
A segunda fase infantil era chamada de kunumy-miry para os meninos (ia até
7 a 8 anos) e kugnatin-miry (até 7 anos) para as meninas, segundo Yves d'Evreux e se
iniciava quando as crianças principiavam a caminhar sozinhas. Aqui, "tinham a liberdade
de mamar enquanto quisessem. Aos poucos, porém, habituavam-se a comer as comidas
grosseiras como os grandes e os adultos". A menina "reside com a sua mãe, mama mais um
ano do que os rapazes" (apud FERNANDES: 1963,268-269).
Os índios tinham por costume sacrificar e devorar os filhos dos inimigos com
mulher contrária ou da própria tribo. Isto acontecia porque os tupinambá achavam que só os
homens eram os agentes da reprodução. Cardim explica, em 1584, a concepção exclusiva da
paternidade: "para o índio, o homem é o portador dos ovos, que ele, para dizê-lo bem e
claramente, põe dentro da mãe e que esta choca durante a gravidez..." (apud ROCHA:
1947,20). Porém, enquanto não chegasse o momento do sacrifício, a criança "inimiga" era
amamentada pela mãe, embora mais tarde fosse entregue pela mesma para o sacrifício.
Anchieta explica porque se enterravam vivos os filhos das mulheres que
tivessem relações sexuais com mais de um homem após o reconhecimento social do seu
estado de gravidez: é que o "menino ficava mestiço de duas sementes" (apud ROCHA:
1947,23).
Um costume que mostrava o condicionamento social das relações afetivas
entre pais e filhos era o choco ou couvade. Tudo funcionava na representação cultural como
se o pai tivesse se desdobrado em dois. Von den Steinen narra que "o pai é ovo, criança é
pai pequeno... O filho é uma multiplicação do pai, o qual se duplicou" (apud ROCHA:
1947,20-21). O pai jejuava e ficava de resguardo, como se o filho tivesse realmente saído de
25
suas entranhas. A maioria das interpretações assevera que este comportamento masculino
era uma "conseqüência das obrigações que o conceito de concepção atribuía ao
homem" (FERNANDES: 1963,173). Segundo Gilberto Freyre "parece, com efeito, haver na
couvade muito daquele desejo que Faithful salienta no homem introvertido de obter pela
identificação com a mulher a alegria da maternidade"; realiza, então, uma interpretação
sexual da couvade pelo critério da bissexualidade (FREYRE: 1978,117)4.
Já o resguardo da mãe era apenas fisiológico e durava de dois a três dias,
quando retornava às suas atividades rotineiras. A índia repousa apenas dois a três dias após
o parto e, em seguida, leva o pequenino e carrega-o no colo indo para a horta ou para fazer
serviço doméstico (D'ABBEVILLE: 1975,224).
As relações sexuais eram interditadas desde a gravidez até que a criança
andasse sem o auxílio de adultos ou tivesse pelo menos um ano de idade (FERNANDES:
1963, 241-242). Outros referem que esta proibição, no caso dos índios tapirapé, prosseguia
até a época do desmame (BALDUS: 1970,277). A mulher tornava-se tabu em virtude da
maternidade e isto era, provavelmente, uma forma de controle sobre a conduta sexual
feminina ou, talvez, tivesse finalidades contraceptivas.
Na sociedade tupinambá, havia um equipamento social para lidar com o
corpo. E, no que diz respeito à criança, envolvia, desde o parto, uma participação
predominante da mãe; porém o pai também tomava parte por ocasião dos ritos de
nascimento. Os casos de doenças eram algumas vezes resolvidos pelos feiticeiros.
Vale ressaltar, ainda, a ausência de citações de desnutrição em crianças nos
relatos dos viajantes e nas crônicas dos jesuítas. Por outro lado, há indicações de que a
mortalidade infantil era baixa (apud ROCHA: 1947,32), até a convivência com os brancos,
quando esta aumentou, devido à introdução de novas doenças desconhecidas dos índios.
O aleitamento materno era muito valorizado culturalmente e só em casos
extremos de doença grave, morte ou nos casos interditados pela cultura não se observava o
aleitamento. Isto ocorria quando enterravam vivos os "mestiços de duas sementes", ou nos
casos dos "filhos dos inimigos" com mulher da tribo.
A sociedade tupinambá harmonizava perfeitamente o duplo papel da mulher
enquanto mãe nutriz e trabalhadora. A typoya servia para o transporte da criança e, enquanto
a mãe trabalhava, podia, perfeitamente, entregar-se à maternagem e à amamentação. Enfim,
a reprodutora conciliava-se com a produtora de bens e serviços. Além disso, as mães,
4
A este respeito, convém notar a semelhança deste comportamento de maternagem com a maior
identificação de uma nova geração de pais com seus filhos, aquilo que se chama de "casal grávido" do século
XX.
26
"muitas vezes, além da criança que carregam assim dependurada, levam um outro pela mão,
e mais dois ou três maiorzinhos as acompanham" (D'ABBEVILLE: 1975,224).
Assim escreveu d'Abbeville, em 1614: Não fazem como as mães de nosso
país, que mal nascem os filhos os entregam às amas e mesmo os mandam para fora, a fim de
não se aborrecerem com eles. Nisso não as imitariam as selvagens por nada no mundo, pois
querem que seus filhos sejam alimentados com seu próprio leite" (D'ABBEVILLE: 1975,
224).
27
CAPÍTULO III — O ALEITAMENTO ATÉ O SÉCULO XIX:
1. A SOCIEDADE COLONIAL, SUA CONSTITUIÇÃO DEMOGRÁFICA E A
SITUAÇÃO DO ALEITAMENTO:
O objetivo do presente item é fornecer noções sumárias de nossa história
econômica, descrevendo-se como se deu a colonização, o povoamento e a formação social
do Brasil para podermos relacionar, convenientemente, tais aspectos com o aleitamento.
Após o descobrimento, a primeira atividade econômica realizada em solo
brasileiro foi a exploração do pau-brasil, nas florestas perto do litoral. Os aventureiros
brancos europeus realizavam esta empreitada utilizando a mão-de-obra indígena. Tal
empresa teve duração curta. Nesta época, quase não havia mulheres e crianças nestas
expedições. Desse modo, as primeiras povoações brasileiras nasceram constituídas de
população branca masculina e mulheres nativas.
As descrições da sociedade colonial que se seguem são, na quase totalidade,
referentes ao Nordeste brasileiro, retratando o modo de viver das famílias rurais mais ricas e
o seu relacionamento com os escravos. Em outro ponto deste capítulo estudar-se-á a cidade
do Rio de Janeiro. Tais regiões representavam os pontos dominantes do desenvolvimento
brasileiro nas suas respectivas épocas. Além do mais, os registros escritos mais abundantes
em relação ao aleitamento referem-se às mulheres brancas da classe dominante destas
regiões. No período, a presença feminina foi predominante nestes locais. Uma exceção
constitui a atividade mineradora, que, apesar de ter se constituído em um importante pólo de
atração econômica, contou com pouca presença feminina. As demais áreas de interesse
eram pólos economicamente periféricos, tais como a pecuária e a agricultura de subsistência, que ocorriam em vários locais esparsos do território brasileiro. Contamos, porém,
com poucos registros sobre a amamentação dos homens livres na ordem escravocrata e, do
que se pode deduzir, o hábito do aleitamento materno deveria ser bastante difundido,
constituindo exceções a alimentação artificial e o abandono infantil. E, devido à inexistência
de hierarquias sociais e ao padrão familiar da atividade econômica nestas regiões de
mulheres livres, devia ser pouco freqüente ou inexistente a prática de alimentação dos filhos
por amas-de-leite.
É perfeitamente possível supor-se, a se acreditar na difusão cultural, que as
mulheres indígenas, transformadas em parceiras sexuais ou mesmo esposas dos primeiros
colonizadores, comportar-se-iam, em relação à amamentação, como se comportavam suas
28
mães e avós. Este hábito deveria ser comum em cidades onde a mulher indígena constituía
maioria absoluta, como São Paulo.
Entretanto, na sociedade colonial a difusão de elementos culturais passa a
ocorrer da Europa e África para o Brasil, de onde procederam os contingentes de população
branca e negra. Em virtude da aculturação e da precariedade das informações históricas,
ficou um pouco difícil reconstruir os caminhos da difusão dos saberes e práticas sobre a
amamentação neste período da vida brasileira.
A chegada da mulher e criança brancas no Brasil ocorreu com o início da
exploração econômica do açúcar no Nordeste, que vieram acompanhando os primeiros
colonos, na segunda metade do século XVI. O tráfico negreiro teve início neste período,
substituindo-se a escravidão indígena pela negra. A transferência forçada de população da
África para o Brasil se dava em péssimas condições de higiene e alimentação, o que se
traduzia em uma excessiva mortalidade nos navios. A maioria dos escravos eram homens
jovens mas também chegavam mulheres para os serviços domésticos e algumas crianças.
"Não se sabe ao certo se os africanos vinham acompanhados de seus familiares, apesar de
algumas ilustrações do Valongo mostrarem mulheres amamentando crianças, possivelmente
seus filhos" (MOTT: 1979,59). Com o trabalho excessivo e a onipotência do patrão branco,
a taxa de natalidade nos escravos negros era baixa, a mortalidade infantil excessiva. Nesta
época, o escravo era relativamente barato, em relação a outros momentos históricos, ainda
que podendo ser relativamente caro em termos da capacidade aquisitiva da população
branca. O interesse imediato no negro forte e produtivo predominava. Havia pouco interesse
na reprodução da população negra, pois representava um investimento longo, pela relativa
abundância a preços "baixos" desta mão-de-obra na fase produtiva. Somente atividades
economicamente muito rentáveis, como a cana de açúcar, podiam empregar mão-de-obra
escrava. Os colonos é que, talvez, fossem imediatistas e tomassem suas decisões em curto
prazo. Isso poderia explicar o pouco interesse que, nas fases de prosperidade econômica,
deviam dar à preservação do escravo. Porém, com as crises econômicas da cana e a
diminuição de sua rentabilidade, deve ter aumentado o interesse na preservação da
mercadoria "escravo".
Além do baixo crescimento vegetativo pela baixa fertilidade das escravas
submetidas a trabalhos pesados, da separação forçada dos sexos, a população predominante
dentre os negros era a masculina. A maioria das crianças eram africanas, poucas nasciam ou
sobreviviam no Brasil. Como é perfeitamente compreensível, não se conseguiu recolher
maiores informações sobre o aleitamento da criança escrava nesta época. Do que se pode
29
deduzir dos relatos históricos, esta prática deveria ser disseminada entre as africanas, sendo
dificultada basicamente pela rudeza da escravidão nesses primeiros momentos de
exploração canavieira. As negras eram barbaramente separadas de seus filhos, conduzidas
para o árduo trabalho nas lavouras e/ou engenhos. Provavelmente não havia entre as
escravas o costume de entregar seus filhos para serem amamentados por outra mulher. O
sistema das amas-de-leite nasce mais tarde, sob influência de costumes europeus.
Apesar de, como diz Gilberto Freyre, "as pesquisas em torno da imigração de
escravos negros para o Brasil terem se tornado extremamente difíceis, em torno de certos
pontos de interesse histórico e antropológico, depois que o iminente baiano, Conselheiro Rui
Barbosa, ministro do Governo Provisório após a proclamação da República de 89, por
motivos ostensivamente de ordem econômica — ... — mandou queimar os arquivos da escravidão" (FREYRE: 1978,300-301), sabemos que dois grandes contingentes culturais
negros predominaram no Brasil: os bantos e os sudaneses. Segundo Nina Rodrigues, na
Bahia predominaram sudaneses e no Rio e em Pernambuco negros austrais do grupo banto.
Os escravos minas ou sudaneses, vindos do norte africano, das regiões da Costa da África,
sofreram forte influência da cultura islâmica, dominando algumas técnicas de produção
mais avançadas. Os bantos, de Angola, eram mais acomodados, e ainda não conheciam
outras atividades além da agricultura extensiva. Ambos os grupos culturais deixaram a sua
influência decisiva na constituição da família brasileira (VIANA FILHO: 1988).
Como não podia deixar de ser, "a escravidão desenraizou o negro do seu
meio social e de família... Dentro de tal ambiente, no contato de forças tão dissolventes... o
negro nos aparece no Brasil, através de toda nossa vida colonial e da primeira fase de nossa
vida independente, deformado pela escravidão" (FREYRE: 1978,315). Seus costumes
tradicionais sofreram uma influência desagregadora. Fora de seu espaço social, a sua cultura
sofreu agressões e transformações, recriando-se uma nova cultura em confronto com a
outra. Poucos, esparsos e incompletos registros sobre a amamentação na raça negra ficaram,
deixando-nos um retrato insuficiente de suas manifestações.
O regime de exploração do açúcar se dava em grandes extensões territoriais,
os latifúndios, exclusivamente baseado no trabalho escravo e na monocultura da cana, com
produção dirigida quase somente para a exportação (FURTADO: 1985). O centro da vida
econômica era o engenho, dividido em casa grande e senzala, em cujo ambiente se
desenvolveu a tradição patriarcal. O trabalho livre, em pequenas propriedades familiares,
era praticamente ausente nesta fase.
A partir desta época, começou a ocorrer a miscigenação entre o branco e a
30
negra, condicionada, segundo Freyre, "de um lado pelo sistema de produção econômica —
a monocultura latifundiária; do outro pela escassez de mulheres brancas entre os
conquistadores" (FREYRE: 1978,XXV).
Em relação à historiografia colonial, ainda se faz necessária a revisão de
vários estereótipos relativos à vida familiar de outrora. Existem idéias preconceituosas que
opõem a austeridade moral da família dos senhores à promiscuidade do restante da
população constituída por escravos e homens livres pobres. Apesar de Gilberto Freyre ter
mostrado que a família dos senhores não era tão austera como se pensava, este manteve a
noção de promiscuidade para o conjunto dos escravos. Este autor possuía uma visão
bastante idílica a respeito das relações entre brancos e negros. Entretanto, em nosso
trabalho, o citaremos freqüentemente por constituir um autor importante no estudo do
Nordeste Colonial, que escreveu algumas páginas sobre as amas-de-leite e a amamentação.
"Os viajantes foram responsáveis por uma série de representações, que se
incorporam à historiografia do século XIX... Algumas das mais conhecidas são: a reclusão
da mulher brasileira, considerar mulher de 'condição' unicamente a branca rica, a brandura
do regime de trabalho escravo no Brasil, a escravidão como instituição civilizadora, a
hospitalidade e a indolência do brasileiro, a imoralidade dos negros que depravava as
crianças a seu cargo" (LEITE: 1984,31).
A Família Colonial
A família brasileira branca, de modo geral, vivia ao abrigo da casa grande,
"num relativo isolamento social, cabendo ao homem o relacionamento com o mundo
exterior, enquanto as mulheres permaneciam em casa coordenando as atividades domésticas. As escravas amamentavam e cuidavam das crianças" (LOYOLA: 1983,40). Tanto
que, "no Brasil Colônia a família passou a ser sinônimo de organização familiar
latifundiária... A família escrava foi destruída pela violência física e a dos homens livres
pobres pela corrupção, pelo favor e pelo clientelismo" (COSTA: 1983,37).
Sendo este o setor dominante economicamente à época, a família era uma
realidade quase exclusivamente rural e as famílias urbanas tendiam a copiar os seus padrões
culturais e modelos de organização social. "A população permanente dos primeiros centros
urbanos compunha-se de escassos funcionários públicos, pequenos comerciantes,
religiosos, militares e oficiais mecânicos". A cidade era modelada seguindo-se o exemplo
do engenho ou da fazenda. "No curso do tempo quase todas as famílias urbanas
31
assimilaram este comportamento. Passaram a desprezar a rua, inclusive porque a
freqüentavam muito pouco. Fora das grandes festas cívicas e religiosas permaneciam
enclausuradas, transpondo para o meio citadino a reserva do viver rural" (COSTA:
1983,38-39).
A família latifundiária, protótipo da família colonial, era patriarcal. "O desejo
correto era o desejo do pai; o interesse justo era o da manutenção do patrimônio... Na
Colônia, onde quer que se encontre uma família constituída e funcionante ela será senhorial,
mesmo sem terra, mesmo sem propriedades" (COSTA: 1983,47). O efeito-demonstração
partia do meio rural para o ambiente urbano. A cidade era um prolongamento do modo de
vida rural.
Achamos que não se pode dizer que a família colonial vivia um isolamento
social, mas a vida social é que acontecia na família. "A casa brasileira até o século XIX era
um misto de unidade de produção e consumo" (COSTA: 1983,83). Havia clara distinção
entre os papéis sociais de homem e mulher: ao homem, a sociabilidade da rua; à mulher, o
controle gerencial da empresa doméstica. Havia um desprezo dos homens pelo lazer
doméstico e indiferenciação entre lazer e trabalho caseiro feminino (COSTA: 1983,86).
As mulheres conviviam com os escravos. Casavam-se cedo, em torno dos 14
anos, e se deformavam com os primeiros partos. A maternidade era muito precoce e tinham
muitos filhos. O casamento era, na maioria das vezes, um jogo de interesses. Havia
mulheres abastadas, escravas, libertas e assalariadas. Eram comuns relações sexuais dos
homens com escravas, gerando filhos bastardos, conhecidos como "mulatos", estes muitas
vezes transformados em escravos. "Para o Conde de Suzannet, a imoralidade dos brasileiros
é favorecida pela escravidão e o casamento é repelido pela maioria, como um laço
incômodo e um encargo inútil" (apud LEITE: 1984,43).
O escravo era incorporado à paisagem doméstica, os filhos viviam em íntimo
contato com estes, de quem aprendiam muitos hábitos. As crianças recebiam uma educação
bastante benevolente, sendo, muitas vezes, satisfeitas em todos os seus caprichos. Segundo
Agassiz & Agassiz, tais carinhos eram corruptores das crianças, que cresciam na vadiagem
e na má-criação, no convívio dos negros, sendo perniciosos esses contatos com a grosseria e
o vício. "Que a baixeza habitual e os vícios dos pretos sejam ou não efeitos da escravidão,
inegável é que existem" (AGASSIZ & AGASSIZ: 1975,279).
Nesta época, como na Europa na descrição de Ariès, não havia sentimento de
infância. A criança era semi-anônima e, apesar da mortalidade infantil alta, acreditava-se
que a criança ao morrer seria transformada em anjo, o que diminuía a dor de sua morte. A
32
criança vivia misturada aos adultos e escravos.
A sociedade brasileira já nasceu diferenciada entre senhores de engenho e
escravos, entre brancos e negros. Apesar da convivência doméstica entre os escravos da casa
e a família, havia um código rígido de hierarquia a ser obedecido. A mistura representava
serviço: os escravos estavam na casa para servir aos senhores. E, apesar de Freyre, que nos
fala do abrandamento das relações entre senhores e escravos, desse relativo amálgama e
densidade social entre brancos e negros, existiam códigos sociais que disciplinavam as
relações entre as raças. Assim, ao mesmo tempo em que existiam festas religiosas coletivas,
havia igrejas para brancos e para negros.
Apesar do desprezo pela rua, a família colonial não possuía o desejo de
intimidade, donde a pobreza decorativa dos ambientes interiores. Não podia haver
intimidade com a presença quase constante dos escravos executando serviços domésticos.
"Não havia a menor preocupação da família em afetar um esmero qualquer, um sentimento
qualquer de pudor diante do escravo, cuja natureza era ideologicamente próxima à de um
bem material ou à de um animal" (COSTA: 1983,93). A casa dependia do escravo para
funcionar. "Essa população, estranha ao núcleo familiar, infiltrava-se continuamente na
casa, responsabilizando-se, muitas vezes, por tarefas diretamente ligadas à intimidade física
e emocional dos indivíduos, como as de higiene e amamentação do recém-nascido". O
escravo era um obstáculo à intimidade (COSTA: 1983,94).
O escravo era apontado como o principal obstáculo à formação de uma
família brasileira sadia. O leite escravo, na percepção médica, transmitia doenças e as
disposições hereditárias negativas da raça negra. O contato da criança com o escravo era
percebido como uma das principais causas da mortalidade infantil.
A Família Escrava
São poucos os relatos sobre a família escrava nos documentos históricos.
Segundo Mott, era comum a separação entre mãe e filho, a dissolução de famílias e a venda
de filhos mulatos e escravos pelo pai... O relacionamento entre os sexos, a vida familiar, a
moradia dos escravos eram regulamentados pelo proprietário... O proprietário, em geral, não
encorajava o casamento entre os escravos. O negro era considerado um ser intermediário
entre os homens e os animais, sem condição ou necessidade de casar-se (MOTT: 1979,64).
Quando se vendiam escravos, raramente se tomavam em consideração os
laços de parentesco. Alguns senhores facilitavam o casamento entre escravos para prendê-
33
los à fazenda, e como garantia de boa conduta. Outros davam alforria às negras que
tivessem seis filhos e concediam licença às mães para amamentar. Além disso, em alguns
casos, as escravas não trabalhavam na lavoura por dois anos, sendo deslocadas para os
serviços domésticos e após o parto tinham melhor alimentação e local reservado.
Para Rugendas, "as relações entre escravos do sexo feminino e do sexo
masculino tornam impossível a severa observância da moral ou a perseverança
conscienciosa na fidelidade conjugal" (RUGENDAS: 1979,262). Os casamentos legítimos
entre os escravos não eram tolerados pelos senhores, pois não poderiam ser desfeitos e
prejudicariam a sua venda em separado. Os negros da fazenda, casados ou não, habitavam
compartimentos alinhados em filas ou por grupos, os quais, à noite, eram fechados pelo
feitor. Dormiam debaixo da chave como presidiários, para prevenir-se as fugas e a
sexualidade.
O escravo, como objeto de propriedade, não tinha direito à sua prole. Ela
pertencia ao senhor. A escrava era vista como reprodutora. Como mercadorias, os escravos
não tinham estabilidade familiar: os filhos podiam ser separados dos pais e a mulher do
marido, para serem vendidos cada um em direção diversa.
"A escravidão resultou numa instabilidade familiar muito grande. O seu
reflexo nos relatos talvez possa ser avaliado pela quase total ausência de dados sobre a
relação entre o pai escravo e o filho e entre irmãos escravos. A figura da mãe é mais
constante, porém só nos primeiros anos de vida da criança, enquanto esta dependia do seu
cuidado. A mulher negra é vista pelos viajantes como sendo boa mãe e amorosa de seus
filhos carnais" (MOTT: 1979,65).
A visão negra da maternidade
Sobre os negros, a escravidão abafou qualquer registro escrito mais
interessante sobre a questão da maternidade. Assim, podemos tentar uma aproximação
sobre o que os escravos pensavam do assunto baseados em relatos e dados indiretos. Há
alguns escassos escritos que nos indicam que a maternidade era apreciada socialmente,
sendo a amamentação uma regra universal, quase sem exceções, no continente africano.
Aqui, porém, as negras quase não podiam demonstrar o seu amor aos filhos, o prestígio
social da mãe que amamenta e a valoração da natalidade.
Segundo relato de Walsh (1828-1829), "para livrar os filhos, os irmãos e a si
próprios da escravidão, os escravos não raro recorriam à fuga, ao suicídio e ao assassinato
34
(...) Este horror à escravidão é tão grande, que eles não só se suicidam como também matam
seus filhos para escapar dela. As negras são conhecidas como sendo ótimas mães (...) mas
este mesmo amor freqüentemente as leva a cometer infanticídio. Várias delas, sobretudo as
negras minas, tem a maior aversão a ter filhos e provocam aborto, precavendo-se assim,
contra o desgosto de dar vida a escravos" (apud MOTT: 1979,62-63).
Parece que o infanticídio e o aborto eram reações à situação de escravidão,
não sendo traços naturais de sua cultura. Assim, o aborto e o infanticídio constituíam formas
de resistência da escrava à negação de sua maternidade (MAGALHÃES & GIACOMINI:
1983,82). A negra, mesmo que quisesse amamentar, muitas vezes se via forçada a não fazêlo, premida pela sua situação de escrava.
A criança negra
Algumas crianças negras chegavam a bordo dos navios, porém muito poucas
nasceram no Brasil. "As facilidades em se adquirir o escravo faziam com que se desse
pouca atenção à reprodução natural. (...). A impossibilidade, por falta de capital, de adquirir
um escravo, parece ter levado a um maior cuidado com as crianças nascidas na casa. Para
aqueles que possuíam um capital maior e precisavam de um escravo como força de trabalho
imediata ou dentro do menor prazo possível, o investimento na mãe, pelo afastamento do
trabalho por certo tempo, ou no filho, até que estivesse em idade de produzir, era talvez,
visto como sendo oneroso" (MOTT: 1979,65-66).
O cuidado com a prole escrava deve ter aumentado quando o preço do
escravo sofreu um acréscimo após a abolição do tráfico, na época da mineração e depois,
com a expansão cafeeira. Há, nos livros de viajantes, relatos de fazendas de criar escravos.
Segundo Ewbank, em uma fazenda que visitou no Rio de Janeiro, encontrou,
principalmente, mulheres e crianças. Segundo ele, "seus donos achavam mais rendoso criar
negros do que plantar café" (EWBANK: 1976,276). O capital crescia, alimentado pela
extraordinária fertilidade das negras. Imbert condenava o hábito, que considerava pernicioso,
das escravas oferecerem aos filhos alimentos grosseiros, tirados de sua própria comida. A
sua preocupação era porque a mortalidade nas senzalas diminuía o capital do senhor (apud
FREYRE: 1978,362). A mortalidade infantil nas senzalas chegou a ser considerável.
Segundo Maria Graham, menos de metade dos negros nascidos na propriedade chegavam
aos dez anos de idade (apud FREYRE: 1978,404).
Porém, ainda que amasse o seu filho e desejasse amamentá-lo, a escrava
35
negra era, muitas vezes, separada de sua cria, quer para retornar logo ao trabalho na lavoura
da cana ou nos afazeres domésticos, quer para servir de ama-de-leite da criança branca.
As crianças, brancas e negras, livres e escravas, nasciam em casa. As
parteiras eram preferidas aos médicos que, na ocasião, eram poucos e atendiam apenas às
doenças dos adultos. Algumas fazendas possuíam enfermarias para os escravos, que se
destinavam igualmente às escravas que davam à luz.
Outras crianças nasciam nas senzalas, no chão ou em esteiras de junco e
eram, aí mesmo, amamentadas. Logo cedo, após 2 a 3 dias do parto, a escrava retornava ao
trabalho. Conforme Saint-Hilaire era "inútil dar maridos às negras porquanto não seria
possível criar seus filhos. Logo após o parto essas escravas eram obrigadas a trabalhar nas
plantações de cana, sob o sol abrasador, e, quando após afastadas de seus filhos durante
parte do dia, era-lhes permitido voltar para junto deles elas levavam-lhes um alimento
defeituoso" (apud MOTT: 1979,60). Outras vezes, as mães levavam os filhos amarrados às
costas, por meio de faixas, para o trabalho. Assim, não se separavam deles e podiam
acalentá-los, conciliando-se a produção com a reprodução. Segundo Schlichthorst "nada
mais comum do que uma negra que carrega o filho às costas, amamentá-lo, dando-lhe o
peito por cima do ombro ou por baixo do braço" (apud MOTT: 1979,60). Este costume do
enfaixamento era bastante semelhante ao descrito nas populações indígenas do litoral
brasileiro.
Apesar disso, a mortalidade dos filhos escravos, mesmo os de proprietários
com escravas negras, era grande. A alta mortalidade seria devida ao excesso de trabalho
durante a gravidez e após o parto, à má alimentação da mãe, do filho e às precárias
condições de higiene nas senzalas (MOTT: 1979,65). Ou ao abandono da criança negra,
desleixo forçado, consubstanciado nas regras da escravidão. A mãe negra demonstrava
pouco apego ao seu filho, talvez porque este não lhe pertencesse e lhe pudesse ser
arrebatado, a qualquer hora, como um objeto.
Outra questão, abordada por Gilberto Freyre, é a da sífilis nas escravas.
Assim, o negro se sifilizou no Brasil, ou melhor, foram os senhores das casas-grandes que
contaminaram de lues as negras das senzalas. "É igualmente de supor que muita mãe negra,
ama-de-leite, tenha sido contaminada pelo menino do peito, alastrando-se também por esse
meio, da casa-grande à senzala, a mancha da sífilis" (FREYRE: 1978,317). Freyre afirma:
"o negro foi patogênico, mas a serviço do branco; como parte irresponsável de um sistema
articulado por outros" (FREYRE: 1978,321).
Perdigão Malheiros, no seu ensaio "A Escravidão no Brasil, narra que "houve
36
senhoras de tal modo interessadas no bem-estar dos escravos que levavam aos seus próprios
seios molequinhos, filhos de negras falecidas em conseqüência de parto, alimentando-os do
seu leite de brancas finas" (apud FREYRE: 1978,451). Obviamente, isto parecia ser um
comportamento muito raro, se não for, inclusive, uma informação incorreta ou mentirosa.
A ama-de-leite escrava no Nordeste
O costume de amamentar as crianças através das amas-de-leite remonta à
antigüidade (WICKES: 1953,154). Sabe-se que os egípcios mandavam suas escravas
amamentar os seus filhos. O código de Hamurabi na Babilônia, 2250 A.C., rezava que se
uma ama deixasse morrer, por negligência, o lactente que lhe fora confiado para criar, teria
um dos seios amputados (GESTEIRA:1943,1) . Nas civilizações grega e romana, este
mesmo costume, de amamentação por amas, era observado. Na Grécia, o abandono de
crianças fracas ou indesejadas era comum e aceitável (DAVIDSON & DURHAN:
1953,76-78). A amamentação era tratada com destaque na mitologia grega. Segundo a
lenda, todos os deuses eram criados aos peitos. A via láctea teria se originado do jorro de
leite esparzido no céu pelo seio de Juno, mordido, com demasiada força por Hércules, filho
adulterino do seu marido Zeus com a princesa Alcmena. Juno não suportava Hércules mas
um dia, avistando uma criança abandonada resolveu, a conselho de Minerva, dar-lhe os
seios, sem saber de quem se tratava.
Badinter, estudando a França nos séculos XVII e XVIII, relata que era
costume das francesas criar seus filhos por amas. Este hábito iniciou-se nas mulheres das
classes mais ricas, na zona urbana, mas aos poucos tornou-se generalizado nas cidades. As
mais ricas contratavam as amas a domicílio e as classes populares mandavam seus filhos
para os campos, para serem amamentados por camponesas, o que era mais barato. Esta
prática foi sempre associada a um aumento na mortalidade infantil (BADINTER: 1985, 65).
No Brasil, ao que tudo indica, o costume de amamentação do branco pela
escrava negra foi importado da Europa. Segundo Freyre, "... de Portugal transmitira-se ao
Brasil o costume das mães ricas não amamentarem seus filhos, confiando-as ao peito de
saloias5 ou escravas" (FREYRE: 1978,359). Inicialmente, as próprias escravas nos engenhos
amamentavam os filhos dos senhores. Nos primórdios da colonização as índias cunhãs
serviam de amas às famílias brancas (FREYRE: 1978,146).
Segundo Gilberto Freyre, "a tradição brasileira não admite dúvida: para ama5
saloias são camponesas das cercanias de Lisboa.
37
de-leite não há como a negra" (FREYRE: 1978,361). Para este autor, a razão principal do
costume de recorrer às escravas negras para a amamentação encontra-se-ia em seu "maior
vigor", decorrente de suas melhores condições eugênicas. Mas, na apropriação do seu
potencial leiteiro, seria a possibilidade de seleção, decorrente da própria disponibilidade
característica da situação de escrava, e não o potencial racial das negras, que, seguramente,
explica que se tenha produzido a idéia de sua superioridade enquanto ama (MAGALHÃES
& GIACOMINI: 1983,75). Freyre estabelece uma visão harmônica de mútua ajuda entre a
escrava ama-de-leite, eugenicamente mais bem dotada e as franzinas mães de quinze anos
(FREYRE: 1978,360). A escrava, chamada da senzala à casa grande mudava o seu lugar na
família, sendo não mais o de escrava, mas de pessoa da casa (FREYRE: 1978,352). Assim
reforça sua teoria sobre a "doçura nas relações de senhores com escravos domésticos" no
Brasil. Mas, perguntam Magalhães e Giacomini: não estaria esse discurso encobrindo uma
violência, "a negação da maternidade da negra, decorrente da apropriação de sua capacidade
de amamentação" (MAGALHÃES & GIACOMINI: 1983,76)?
"A estória da ama-de-leite escrava, da 'embaixadora da senzala na casagrande', revela-se a história de mais uma faceta da expropriação da senzala pela casagrande, cujas conseqüências inevitáveis foram a negação da maternidade da escrava é a
mortandade de seus filhos" (MAGALHÃES & GIACOMINI: 1983,81-82). Para que a
escrava se transformasse em mãe preta da criança branca, foi-lhe bloqueada a possibilidade
de ser mãe de seu filho preto. A proliferação de nhonhôs implicava o abandono e a morte
dos moleques.
Desta forma, ao incorporar a negra ao ciclo reprodutivo da família branca, a
escravidão reafirmava a impossibilidade para os escravos de constituírem seu próprio
espaço reprodutivo.
O abandono infantil no Rio de Janeiro
Venancio, em seu trabalho "A infância abandonada no Brasil Colonial: o caso
do Rio de Janeiro no século XVIII" nos descreve como ocorria o abandono de crianças
entre as classes pobres, no Rio, entre 1700 e 1800. Utilizando os registros de batismos,
aplicados na época para praticamente todo o conjunto da população, chega a algumas
conclusões muito interessantes. Na sua análise, divide o Rio em duas regiões: a cidade e o
recôncavo. Na cidade, cuja população estava envolvida no comércio de alimentos, em
atividades artesanais e na exportação de ouro, açúcar, madeira e algodão, a ilegitimidade
38
dos nascimentos variava entre 20 e 25% e o abandono ia a cifras da ordem de 20%. No
recôncavo, onde se produzia açúcar e gêneros de subsistência, a ilegitimidade variava entre
10 e 15% e os enjeitados ou "expostos" chegavam a apenas 2 a 4%.
Para grande parte dos homens livres deste século, à família fundada no
casamento religioso não era a regra mas esta se baseava, na maioria dos casos, em
concubinatos estáveis, que implicavam em deveres e compromissos muito próximos aos da
família legítima. Porém, grande número de crianças vivia em teto alheio ao de origem. Na
área rural, o grupo doméstico sancionado pelas leis da Igreja ocorria em 80% da população
livre. Porém, no meio urbano, cerca de 50% das crianças livres traziam a marca da
bastardia e do abandono.
A concentração de crianças abandonadas nas vilas e cidades devia ser uma
realidade em outras regiões. Desde o século XVII, através do Código Filipino, as Câmaras
Municipais foram encarregadas do cuidado dos expostos e de distribuí-los entre famílias de
lavradores. "No século XVIII, com o crescimento da população livre e pobre, tornou-se
comum os pais abandonarem filhos 'ao desamparo pelas ruas e lugares úmidos' das
paragens cariocas. Em termos práticos, as duas principais medidas para se impedir essa
forma velada de infanticídio foram a criação do Recolhimento de Meninos Órfãos em 1734
e, em 1738, a fundação da Roda de Expostos na Santa Casa de Misericórdia do Rio de
Janeiro,
estabelecimentos
construídos
com
esmolas
e
legados
dos
benfeitores" (VENANCIO: 1986/87,229).
Em 1775, um alvará estipulou a passagem da jurisdição dos enjeitados para
os Juízes de Órfãos. A roda extinguiu os abandonos nas ruas e terrenos baldios. Segundo
Venancio, o abandono de recém-nascidos negros devia ser raro, pois o escravo enjeitado era
considerado livre pelas leis portuguesas e, além do mais, a criança negra livre abandonada
corria o risco de ser vendida como escrava ou reescravizada pela família adotiva
(VENANCIO: 1986/87,230).
Venancio transcreve algumas razões apontadas na época para o abandono
infantil: a proteção da honra e do patrimônio familiar, ameaçados pelas uniões clandestinas;
a pobreza dos pais e a perversidade, esse sentimento social que considera a criação dos
filhos como um peso. Observa que, no caso das famílias abastadas, "os laços entre mãe e
filho nem sempre eram rompidos com o abandono, pois, além de procurar destinar a criança
a famílias de posses, a mãe definia ainda o padrinho, quiçá o próprio pai..." E descarta a
falta de amor materno como causa dos abandonos: "a preocupação e o afeto maternal das
mulheres que eram levadas por motivos sociais ou morais a abandonar os filhos pode ser
39
percebido nos registros que indicam o cuidado com as roupinhas que acompanhavam alguns
expostos..." (VENANCIO: 1986/87,231-232).
Este trabalho nos oferece um panorama dos abandonos e podemos tirar a
conclusão de que estes eram mais freqüentes do que faz supor a leitura das obras dos
médicos higienistas, que estudaremos adiante. Oferece-nos, ainda, um registro significativo
do abandono entre as mulheres livres, que atingia grandes proporções. O comportamento de
enviar crianças para serem criadas por homens livres em áreas rurais era também
razoavelmente comum, pelo menos no século XVIII.
Quanto à sua tese de considerar o abandono dos escravos na roda como pouco
freqüente, suas afirmações são contraditórias com as obras dos higienistas, que informaram
ser esse abandono mais freqüente que o suposto por Venancio, pelo menos no século XIX.
Por outro lado, não podemos negar a tese da falta do amor materno nos abandonos apenas
pela presença de roupas acompanhando os expostos. Verificamos que o comportamento de
infanticídio que pressupunha esses abandonos era freqüente nesta época, sendo reprovado
publicamente mas admitido veladamente pela sociedade. Achamos que, se as mães
realmente apresentassem esse condicionamento social de amar seus filhos, provavelmente
não os abandonariam, mesmo nos casos da mais absoluta pobreza.
A ama negra da criança branca no Rio de Janeiro
No Rio de Janeiro, após a chegada da família real de D. João VI ao Brasil,
novos contatos com populações estrangeiras transformaram os hábitos, estimularam
largamente as necessidades, alterando a mediocridade da vida colonial (PRADO JÚNIOR:
1987, 133-137). Esse processo, acelerando a urbanização do Rio de Janeiro, provocou
maiores solicitações de amas-de-leite. Esta aspiração nova difundiu-se pelas camadas
urbanas, ocorrendo, nesta época, anúncios para aluguel de amas-de-leite em jornais. Estas
novas camadas urbanas, constituídas de empregados do governo (civis e militares), do
comércio, assalariados nas primeiras fábricas, funcionários das empresas estrangeiras
concessionárias de serviços públicos, copiaram esse modelo europeu, remodelando suas
atitudes. No Brasil, somente se observou a contratação de amas-de-leite a domicílio,
mulheres livres ou escravas alugadas. Entre nós não aconteceu mandar as mães seus filhos
para serem amamentados longe, nos campos, pois eram escassas as mulheres livres. Em
alguns casos, as crianças da roda eram enviadas para núcleos rurais próximos à cidade do
Rio de Janeiro. A estrutura agrária era escravocrata e, com a decadência da atividade
40
agrícola, muitos escravos vieram para as cidades, vendidos ou mesmo acompanhando seus
donos. Os senhores vislumbraram uma nova fonte de renda: alugar a nutriz escrava negra,
cujo leite, relativamente abundante, faria face a esta nova demanda social que se formava.
Outra possível explicação para a menor disseminação da recusa ao
aleitamento no Brasil, em comparação com outros países europeus, seria a relativa demora
na transmissão dos hábitos de uma camada social a outra. Por outro lado, pela exigüidade
do nosso mercado interno, pela estrutura arcaica de necessidades e pela economia voltada
para a exportação, era reduzida a classe dos artesãos que, além da elite imperial, poderiam
pagar pelo aleitamento mercenário. Sendo em maior número as mulheres livres
desempregadas nas cidades, estas ofereciam seu leite em troca de uma remuneração. Assim,
deveria haver uma inibição da demanda por amas-de-leite, devido à reduzida estrutura de
necessidades e ao estreito poder de compra e potencial de consumo, ou uma oferta elástica
pela abundância de leite das mulheres escravas e livres. Estes fatores talvez expliquem
porque não ocorreu uma maior difusão do aleitamento mercenário entre nós. Colônia
atrasada e pobre, era lenta a incorporação de novas necessidades, os costumes se
modificavam após longo tempo.
No século XIX, muitas crianças negras foram expostas nas rodas de
enjeitados. Os proprietários expunham os filhos recém-nascidos de suas escravas para
alugá-las como amas-de-leite. "Os jornais do século XIX estão cheios de anúncios de
aluguel de escravas amas-de-leite, frisando não terem filhos (ORLANDI: 1985,61). O preço
de aluguel de uma ama escrava sem filhos era alto e muitas famílias brancas não aceitavam
receber a negra com o seu filho, que teria que dividir o seu leite com o filho do senhor a
quem fora contratada para amamentar.
Algumas senhoras expunham os filhos bastardos de seus maridos com
escravas negras para encobrir as transgressões sexuais destes ou mesmo para fazer
escarnecer à mãe negra, muitas vezes amada pelo senhor. "A roda também era utilizada
pelas próprias escravas com a finalidade de livrar seus filhos da escravidão" (ORLANDI:
1985,62). "A roda recebia crianças de qualquer cor e preservava o anonimato dos pais. A
partir do alvará de 31 de janeiro de 1775, as crianças escravas, colocadas na roda, eram
consideradas livres. Este alvará, no entanto, foi letra morta (...)" (MOTT: 1979,63).
No trabalho de Machado et al. há uma citação de Souza Lobo que mostra
como se realizava o comércio de amas escravas, fonte de rendimento de seus senhores: "a
mulher escrava, estando prestes a dar à luz, é enviada para certas maternidades, e a parteira
se encarrega de fazer desaparecer o filho, mediante certa quantia!!!" (apud MACHADO et
41
al. : 1978,358). Tais crianças iam para a roda. Outra citação é bastante informativa, de
Olinda Cardozo: "a mulher que possui os sentimentos da maternidade e a quem a bárbara lei
da escravidão lhe impôs o ignominioso ferrete é coagida a abandonar seu filho, para receber
em seu regaço o filho estranho a quem tem de vender as carícias que a natureza lhe deu para
transmitir ao fruto de suas entranhas e de seus amores" (apud MACHADO et al. : 978,
357-358).
Muitos pais, sem escrúpulos, entregavam seus filhos que sabiam sifilíticos
para serem amamentados por amas sãs. Alguns médicos enviavam heredosifilíticos
manifestos para serem aleitados por "crioulas bem tintas e robustas, baseando-se no errôneo
preconceito do povo de que estas gozam de imunidade para a sífilis e até mesmo de
propriedades curativas" (COELHO: 1902,39). É certo também que muitas amas houvessem
transmitido através do leite, às vezes sem o saber, sífilis às crianças brancas. Talvez, nesse
ponto, os médicos percebendo e criticando as amas disseminando doenças, criaram, mais
tarde, no início do século XX, o Instituto para exame das amas-de-leite, numa forma de
higienizar os brancos, livrando-os da ameaça das negras "patogênicas".
A seguir, reproduziremos as discussões feitas por Magalhães & Giacomini no
artigo "a escrava ama-de-leite: anjo ou demônio?" Após, tentaremos aprofundar um pouco o
tema.
Nos anúncios de jornais pode-se perceber que era sistemática a separação
entre a ama e seu filho, inclusive no período imediatamente após o parto. Em outros, a
inclusão ou exclusão do filho da escrava ficava a cargo do provável comprador ou locatário.
A possibilidade de ama e filho viverem sob o mesmo teto parece ter estado intimamente
ligada ao destino reservado à "mercadoria escrava leiteira". Outros anúncios deixavam
perceber o menor valor da escrava "com cria". Como se pode observar nas seguintes
transcrições de anúncios:
Aluga-se uma preta para ama-de-leite parida há 7 dias, com muito e bom
leite (Jornal do Commercio, 15-8-1850).
Aluga-se uma optima ama sem cria (Jornal do Commercio, 1-2-1850).
Vende-se uma preta, moça, com bom leite, com o filho ou sem elle, que tem
dous mezes (Jornal do Commercio, 8-8-1850).
Vende-se, muito em conta, com um filho de um anno, muito bonito e gordo,
uma preta (Jornal do Commercio, 29-8-1850). (apud MAGALHÃES & GIACOMINI:
1983,77-78).
42
As crianças seriam de pouca ou nenhuma utilidade aos senhores que
alugavam escravas para o serviço doméstico, além de representarem um custo suplementar.
Quando a escrava era alugada como ama-de-leite, o senhor era constrangido a aceitar que a
ama partilhasse leite e atenção entre nhonhô e moleque. De qualquer forma, mesmo nestes
casos, a escrava era compelida a privilegiar o filho do senhor em detrimento de sua própria
criança. Outras vezes, os senhores alugavam, com antecedência, a escrava com sua criança,
para não deixar secar o leite e, uma vez nascido o branco, era aquela levada para a roda. A
amamentação da criança escrava servia à preservação da "mercadoria escrava-leiteira".
Havia, ainda, um rígido controle sobre a sexualidade da ama: "é conveniente
que a ama, tanto quanto possível, não consinta as aproximações de seu marido, porque os
exemplos de prenhez não são raros". Aconselhava-se não contratar ama grávida mas, se ela
concebesse durante este mister, seria bom não despedi-la enquanto a criança passasse bem
(URCULU: 1882,49).
Os médicos analisavam que as amas se incubiam com má vontade do seu
ofício, devido à tirania do senhor que as obrigava a esquecer e abandonar seu filho legítimo,
para cuidar daquele que provavelmente continuaria sua opressão no futuro. As amas eram
percebidas como imorais, licenciosas, sem decoro e brio. Nos relatos médicos, observava-se
a resistência e a vingança das negras a esta situação: muitas castigavam as crianças com
beliscões, palmadas ou, às vezes, lhes negavam o leite, deixando-os com fome. Muitos
carinhos eram fingidos pelas escravas, com medo de castigos ou pela esperança de, assim
procedendo, obterem a alforria. Outras, segundo Urculu, demonstravam orgulho de ser mãe
de leite do filho de brancos, numa "espécie de vingança inconsciente que a escrava exerce
sobre o livre" (URCULU: 1882,52-53). Apesar disso, a vigilância sobre a ama era
necessária para evitarem-se tais inconvenientes e revoltas. Segundo alguns autores
consultados, outras escravas se adaptavam à condição de amas, talvez para verem
amenizada sua situação de opressão.
Numa sociedade cuja ideologia dominante atribuía à maternidade o papel de
função social básica da mulher, a escrava transformada em ama-de-leite conhecia, na
negação de sua maternidade, a negação de sua condição de mulher. Por paradoxal que
pareça, foi sua fisiologia feminina — capacidade de lactação — que se contrapôs à
realização de sua potencialidade materna. "Mãe preta": folclore dos brancos, miséria das
negras (MAGALHÃES & GIACOMINI: 1983,81-82).
Outrossim, passo a passo com esse lado bondoso, mistificado da mãe negra
43
da criança branca, florescia todo um discurso onde os escravos seriam devassos e
corruptores da família branca. Este ponto será melhor aprofundado no item em que se
analisa o discurso médico sobre a amamentação.
Não se tem, no Brasil, estatísticas sobre o percentual de crianças
amamentadas por amas-de-leite. Pela quantidade de anúncios em jornais e pela presença
sempre constante do tema no discurso médico, deduz-se que tal prática devia ser bem
disseminada. Em Paris, de 1885 a 1910, a percentagem de crianças amamentadas por amasde-leite foi de 32,7%, isto é, quase um terço de todos os bebês (VILLA: 1985,7). É de se
supor que, no Brasil, esta cifra tenha sido menor, pois aqui não se mandavam as crianças
para as casas das amas, pela inexistência, entre nós, de um campesinato, pois o Brasil já
nasceu sob a égide do capitalismo mercantil.
Freyre, referindo-se ao Nordeste colonial afirmou que o leite era mamado em
peito de negra às vezes até depois da idade da mama (FREYRE: 1978,374).
A mãe branca recusa o seio
A escrava era, efetivamente, um elemento nutridor incorporado à paisagem
doméstica. Sem a sua presença ficariam abalados os costumes de amamentação do branco
pela negra, da ama em substituição à mãe. A mulher imperial das camadas dominantes do
Rio de Janeiro, na tentativa de equiparar-se às suas rivais francesas e européias, ancorou-se
na exploração da mulher negra, sobrando-lhe tempo mais livre, talvez para a administração
doméstica, para o ócio ou para a vida mundana e as festas da corte. De qualquer forma,
recusando-se a amamentar o seu filho, a mulher branca revelava, nesta atitude, uma
desconsideração da infância, certo descaso da mãe em relação a seu filho. Assim, se uma
das mais importantes causas da mortalidade infantil das crianças brancas devia-se, segundo
os médicos, ao costume de serem entregues a amas-de-leite escravas, a mãe seria, com a sua
negligência, retratada na recusa do seio ao fruto de suas entranhas, no mínimo cúmplice, se
não culpada da morte do seu próprio filho, segundo o discurso médico à época.
Tentaremos oferecer algumas possíveis explicações para o comportamento de
desmame freqüente no Brasil do século passado, principalmente entre as mulheres da classe
dominante. Quais seriam as causas da recusa ao aleitamento?
Para muitos médicos a causa da recusa ao aleitamento estaria em depravações
e vícios morais. Para outros, seria apenas uma imitação de costumes europeus.
Badinter nos coloca, no seu livro, algumas hipóteses para reflexão. Para ela, o
44
filho poderia constituir uma dificuldade para a mulher trabalhar e viver, sendo mais barato
contratar-se uma ama. No caso das esposas de comerciantes e artesãos, a produção familiar
tornaria necessário o trabalho feminino. Os valores culturais seriam determinantes, e o
comportamento traduzia a indiferença social em relação à criança, pois a "moda" não era a
maternidade. O amor materno não tinha valor social e moral. A ternura era ridícula e o
abandono poderia não trazer culpa nem ameaça para a mãe. Levanta ainda a hipótese de que
na classe dominante poderiam estar influindo os desejos e ambições de liberdade da mulher.
Segundo ela, as mulheres preciosas, que preferiam os bailes e divertimentos a amamentação
dos filhos, procuravam um novo espaço social de liberdade e reconhecimento.
Segundo esta autora, algumas mães não queriam sacrificar seu lugar social
para criar filhos. Consideravam o aleitamento fisicamente mau para a mãe, podendo
prejudicar sua estética e beleza física. Além disso, o aleitamento era percebido como causa
de enfraquecimento da mãe, provocando a fraqueza de sua constituição. A amamentação
não era considerada uma tarefa nobre para uma dama.
A não amamentação poderia não ser censurada com tanto empenho pela
sociedade e as mulheres, à época, talvez discorressem mais livremente, com desculpas
várias e praticamente sem "censura social ou internalizada" sobre as causas do desmame.
Como para as mulheres da aristocracia e da corte portuguesa que viveram no
Brasil no começo do século a amamentação não era uma atitude elegante e atrapalhava sua
vida social (festas, bailes, espetáculos), as mulheres da classe subalterna poderiam copiar
esse valor para se distinguir, imitando seus costumes, já que não podiam ter vida mundana.
Gilberto Freyre considera um "absurdo atribuir-se à moda a aparente falta de
ternura materna da parte das grandes senhoras". Segundo ele, "o que houve, entre nós, foi
impossibilidade física das mães de atenderem a esse primeiro dever da maternidade. Já
vimos que se casavam todas antes do tempo; algumas fisicamente incapacitadas de serem
mães em toda a plenitude. Casadas, sucediam-se nelas os partos. Um filho atrás do outro. . .
todos deixando as mães uns mulambos de gente . . . Pois essa multiplicação de gente se fazia
às custas do sacrifício das mulheres, verdadeiras mártires em que o esforço de gerar, consumindo primeiro a mocidade, logo consumia a vida" (FREYRE: 1978,360). Assim, atribui
a motivos físicos, a gravidez na adolescência, a falta de amamentação da mãe branca. No
que ele concorda com Imbert que, em seu Guia Medica, afirma: as mães ainda muito jovens
não podem "suportar as fadigas de uma amamentação prolongada sem grave detrimento de
sua saúde bem como dos filhos" (apud FREYRE: 1978, 361). A recusa social seria, então,
nada mais que incapacidade física de amamentar pela baixa idade ou pelo desgaste dos
45
corpos devido aos partos próximos e repetidos. Tal hipótese carece de confirmação prática,
pois as mães jovens podem amamentar tão bem quanto as demais. Esta poderia ser uma
explicação socialmente aceita para a recusa da amamentação que as mulheres davam no
período colonial.
Achamos que a explicação do desgaste reprodutivo não se mostra
convincente pois, se assim o fosse, tanto as negras quanto as brancas o sofreriam, e ainda
mais as negras pela opressão; além do mais, ambas não praticavam a anticoncepção. A não
ser que se acredite, como Imbert, que o clima quente proporcionava às negras um poder de
amamentação que esta zona recusa às mulheres brancas. Segundo o discurso médico atual,
os motivos que entravam a produção da prolactina são raramente físicos e predominantemente emocionais e sociais. O que é comum, na história das idéias sobre o aleitamento, é
que o discurso atribua a recusa a causas físicas, quando esta é condicionada por concepções
culturais e sociais. Assim, se a sociedade não permite crítica à figura da mãe, ao instinto
maternal sacralizado como atributo inerente à raça humana, o desleixo pode não aparecer no
discurso como motivo, mas como conseqüência social de um impedimento físico.
Mas também não se pode culpar as mães, responsabilizá-las por atitudes
socialmente aceitas e constituídas. Nem sempre se pode atribuir consciência aos sujeitos
históricos. Há que se examinar outras hipóteses para esta recusa.
Costa observa que talvez circulasse no Brasil a idéia de que as relações
sexuais "corrompiam" o leite. "O recurso às amas-de-leite escravas, neste caso, teria
significado a tentativa de proteger a vida dos filhos sem sacrificar a vida sexual do casal".
Segundo este autor, "o mais provável, porém, é que as mães ignorassem que a
amamentação materna fosse vital à sobrevivência dos filhos. E complementa sua idéia
afirmando que foi só a partir do momento em que a vida da criança de elite passou a ter
importância econômico-política, que lhe foi dada no séc. XIX, que o aleitamento materno
veio a ter essa conotação, ganhando foros de problema nacional" (COSTA: 1983,256).
No entanto, como vimos em itens anteriores, a preocupação com a infância e
o aleitamento precedeu, em algumas décadas, o nascimento do discurso demográfico.
Perguntamos: como as mães poderiam ignorar que a amamentação estivesse ligada à
mortandade das crianças? Não seriam a recusa ao aleitamento e o abandono da infância
formas funcionais de infanticídio àquela época, permitidos e não censurados pela
sociedade?
46
2. O NASCIMENTO DA POLÍCIA MÉDICA, HIGIENE E PUERICULTURA
COMO
INSTRUMENTOS
DE
REGULAÇÃO
DO
CORPO
—
MEDICALIZAÇÃO E APROPRIAÇÃO MÉDICA DA INFÂNCIA:
"No Brasil colonial os doentes se tratavam com curandeiros, cirurgiões
práticos, pagés, ou, mais freqüentemente, recorriam a medicações caseiras e deixavam que a
doença seguisse o seu curso" (NOVAES: 1979,34). Os cuidados das crianças e das
mulheres ficavam, geralmente, a cargo da família e das parteiras tradicionais ou comadres.
Com a maior complexidade social surgiram grupos especiais para assumir a
tarefa dos cuidados com o corpo infantil. "Até a metade do século XVIII a medicina não
tinha interesse nas crianças e nas mulheres. Simples máquinas de reprodução estas últimas
tinham sua própria medicina que era desprezada pela faculdade e cuja lembrança foi
guardada pela tradição através da expressão 'remédio de comadre'. O parto, as doenças das
parturientes, as doenças infantis eram coisas de comadres, corporação assimilável às
domésticas e às nutrizes que compartilhavam seu saber e o colocavam em
prática" (DONZELOT: 1986,24).
Através desta citação, percebe-se que mulheres especializadas naturalmente
pela prática surgiram como detentoras de um saber sobre o corpo infantil. A especialização
deste saber engendrou a formação de instrumentos ou aparelhos culturais de regulação do
corpo. As concepções e práticas mágicas predominavam. A medicina se confundia nessa
mescla de grupos possuidores do saber sobre o somático. Havia uma delimitação do campo
de atuação profissional por grupos de sexo e idade, o que proporcionava um equilíbrio de
atribuições e abrangência entre os diversos aparelhos.
Contudo, como diz muito bem Gilberto Freyre, "os médicos e curandeiros
nunca estiveram muito distanciados uns dos outros, antes da segunda metade do século
XIX... As comadres, além de partejarem, curavam doenças ginecológicas, por meio de
bruxedos, rezas, benzeduras". As receitas dos médicos pouco se distanciavam das dos
curandeiros africanos ou caboclos. "Uma medicina que pela voz de seus doutores mais
ortodoxos receita aos doentes tamanhas imundícies dificilmente pode firmar pretensões de
superior à arte de curar dos africanos e ameríndios. Porque a verdade é que destes tão
desdenhados curandeiros absorveu a mal-agradecida uma série de conhecimentos e
processos valiosíssimos: o quinino, a cocaína, a ipecacuanha. No Brasil colonial parece-nos
justo concluir terem médicos, comadres, curandeiros e escravos sangradores contribuído
quase por igual para a grande mortalidade, principalmente infantil e de mães, que por
47
épocas sucessivas reduziu quase de 50% a produção humana nas casas-grandes e nas
senzalas". Além da alta mortalidade no Nordeste colonial, a mortalidade infantil também foi
grande entre as populações indígenas do século XVI, pelos contatos com os brancos, pelos
quais adquiriram muitas doenças (FREYRE: 1978,362-364).
Os relatos e estudos costumam "esquecer" as tradições herdadas dos povos
indígenas e africanos. Para Freyre, a higiene infantil européia foi se acomodando às outras,
aos poucos, à custa de muitos sacrifícios de vida (FREYRE: 1978,365). É inegável que a
maior liberdade da criança dos panos grossos e dos agasalhos pesados era superior no clima
tropical e este traço a higiene européia tardou em aprender e adotar e quando o fez,
camuflou as suas origens.
No Brasil, em fins do séc. XVIII, "o número de médicos era pequeno,
dominando na medicina a concepção da doença em função de miasmas: as medidas
terapêuticas previstas diziam respeito ao uso de vesicatórios, suadores, sangria, purgas e
ventosas..." (LOYOLA: 1983,40). O médico atendia basicamente às famílias da elite. Mais
tarde, em 1832, ocorreu a criação de 2 escolas de medicina, no Rio e na Bahia; os médicos,
a partir daí, passaram a ser em maior número.
Este panorama se modificou com o advento da revolução pasteuriana e com o
nascimento da clínica, que se autoatribuiu o adjetivo de "científica". A sociedade passou a
viver a ilusão positiva da desvinculação entre os fatos e os valores sobre os fatos; porém,
essa representação de ciência predominou e a sua aura de autoridade e saber lhe conferiu,
paulatinamente, o monopólio do discurso e da intervenção sobre o corpo e a doença. A
medicina estendeu a sua área de abrangência também sobre a mulher e a criança e se
difundiu das classes dominantes às subalternas. O dispositivo médico se institucionalizou e
as demais concepções e práticas não oficiais passaram a ser combatidas e percebidas como
clandestinas e ilegais. Para Rago, as condenações médicas a práticas populares podem nos
interessar, por revelarem algumas das práticas populares da época (RAGO: 1985,128).
A medicina oficial aparecendo como detentora de um saber sobre o objetoinfância, agora redefinido e valorizado pela sociedade, penetrou nas casas através dos
higienistas e estabeleceu novas regras e modelos de comportamentos sociais adequados. A
medicina surgiu como um elemento de controle sobre o corpo, disciplinando-o,
higienizando-o para o novo espaço histórico engendrado por novas formas de produção
social. As formas culturais anteriores a essa "revolução de pensamento" passaram a ser
simbolizadas como "primitivas", "irracionais" e "pré-lógicas". Assistiu-se à emergência da
"civilização", do "racionalismo" e da "lógica". Os antigos modelos de pensar, agir e sentir
48
passaram a ser percebidos como obsoletos e foram recalcados para espaços de inadequação.
Apareceram novas modalidades de viver e reagir, retratadas como superiores. As aspirações
humanas de liberdade, felicidade e amor foram convertidas para essas formas redefinidas,
que se tornaram desejadas pelas pessoas, com promessas de progresso, alegria e bem-estar.
Para que a medicina pudesse conseguir o seu intento, "a aliança privilegiada
entre o médico e a mãe terá por função reproduzir a distância, de origem hospitalar, entre o
homem de saber e o nível de execução dos preceitos, atribuído à mulher... O médico, graças
à mãe, derrota a hegemonia tenaz da medicina popular das comadres e, em compensação,
concede à mulher burguesa, através da importância maior das funções maternas, um novo
poder na esfera doméstica", abalando a autoridade paterna (DONZELOT: 1986,23-25).
O Estado brasileiro sempre encontrou na família um dos mais fortes
obstáculos à sua consolidação. Por exemplo, a solução para os problemas de saneamento e
doenças provocadas pela urbanização do Rio de Janeiro, após a chegada da família real,
esbarrou nos hábitos tradicionais e familiares que resistiam à mudança. A reconversão das
famílias ao Estado pela higiene tornou-se uma tarefa urgente dos médicos (COSTA:
1983,30-31).
O século XIX assistiu ao nascimento da puericultura. A sua difusão "não se
deu de forma espontânea nem por acaso: foi o resultado de um projeto mais amplo, mais
ambicioso: regular todos os atos da vida, inclusive os mais íntimos e os mais privados, os
que se realizam no seio do lar" (BOLTANSKI: 1984,15). Até 1890, a puericultura residia
em um estado pré-científico do saber. As regras, os exemplos, as explicações se sucediam
uma a uma, e não havia uma teoria de conjunto. Os médicos ofereciam conselhos baseados
na tradição. A linguagem que empregavam era metafórica, cheia de imagens. Havia várias
soluções possíveis.
Para a puericultura, hábitos tradicionais tinham que ser desenraizados. Os
novos modelos lograram um relativo êxito e muitos desses valores "burgueses" estão hoje
introjetados nos cidadãos. As pessoas passaram a desejar esses modelos que, ao invés de
serem transmitidos pela força, eram difundidos culturalmente, criando desejos e estimulando
o consumo daquelas novas idéias e práticas. Mas "as normas elaboradas pela puericultura só
podem ser incorporadas pelas classes inferiores após uma série de reinterpretações que as
tornam mais próximas às suas condições de vida" (NOVAES: 1979, 11-12).
Muitas regras de puericultura, ainda que invocassem saberes "racionais" e
"científicos", estavam tão revestidas de caráter arbitrário como os outros conhecimentos
que pretendiam combater. Isso pode ser exemplificado pela regularidade dos horários de
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amamentação, que talvez visasse o uso racional do tempo e tivesse intenção moral.
O grande tema da puericultura desta época era a alimentação em geral e,
particularmente, o aleitamento materno e artificial. O aprofundamento deste tema será
realizado no item discurso médico sobre o aleitamento.
Não se pode afirmar que os atores sociais desse processo planejassem os
movimentos de pensamento e suas reflexões na prática concreta. Segundo Canguilhem, "a
consciência das conseqüências possíveis deste saber não pode estar nele contida, já que elas
são socialmente determinadas" (apud NOVAES: 1979, 14). Só a história poderá determinar
o que será difundido das classes formadoras de opinião para as classes populares. "Não há
uma relação direta, constante, ao longo da história, entre um conhecimento e sua prática (ou
seja, a sua realização social), ou entre o conhecimento médico, como um todo e o tipo de
prática que lhe é contemporâneo" (NOVAES: 1979,14).
No restante deste capítulo, estudaremos o discurso médico sobre a infância e
o aleitamento e sua articulação com a realidade social. A puericultura chegou ao Brasil em
nível de idéias, encontradas em diversas teses, principalmente da Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro, ainda na segunda metade do século XIX. Nas primeiras teses deste século, a
preocupação era, principalmente, com a higiene pública. Vamos percebendo, no desenrolar
do tempo, o surgimento da preocupação com a infância nas obras médicas, apesar do
descaso com que a sociedade permanecia tratando as crianças.
3. ANÁLISE DO DISCURSO MÉDICO SOBRE O ALEITAMENTO:
A tese pioneira
Em 1838, Agostinho José Ferreira Bretas escreveu a primeira tese médica
sobre o aleitamento materno no Brasil, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, com o
título: "A utilidade do alleitamento maternal e os inconvenientes que resultão do despreso
deste dever". A partir desta, várias outras teses foram publicadas sobre o assunto.
Descrever-se-á, com pormenores, a tese de Bretas por se tratar de um
documento histórico encontrado em poucas bibliotecas e por ser o primeiro registro escrito
mais sistematizado sobre a questão no Brasil.
Bretas afirma que, em tempos antigos, "o aleitamento dos filhos era uma
obrigação natural, um dever sagrado, a que todas as mães se prestavam gostosas. As
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fadigas, os desassossegos inerentes à maternidade, longe de as desgostarem de seus deveres,
os tornavam mais deliciosos" (BRETAS: 1838,5). As mulheres teriam sido desnaturalizadas
pela força do homem e influência do hábito. Elogia os povos de costumes ainda puros, onde
as mães amamentavam os seus filhos. E pergunta: por que as mães confiam o aleitamento
de seus filhos a escravas, "quando as próprias feras nos ensinam com seus exemplos a não
violarmos as leis da natureza?!" (BRETAS: 1838,6). Por que há uma insuficiência do
instinto maternal nas classes abastadas? E ameaça com o aforisma: "não é impunemente que
se violam as leis naturais" (BRETAS: 1838,6).
Prossegue confirmando não existir no Brasil o costume de se degradarem os
filhos do teto paternal para se confiarem a casa e ama estranhas. Porém, segundo o autor, o
aleitamento realizado a domicílio, é mais universal que na Europa, pois lá "se limita às
classes abastadas, aqui se estende a pessoas de menos que medíocre fortuna" (BRETAS:
1838,7). E coloca duas razões para explicar este hábito: se "alguma falsa idéia de honra, da
vaidade de parecer rico, ou se da facilidade de encontrar amas, produzida pela existência de
escravas" (BRETAS: 1838,7). Em sua opinião, as mulheres que se dispensam deste dever
natural sofrem de uma série de inconvenientes físicos, como o seguinte: "o estímulo
simpático, que, durante a gestação, se estabelece entre o útero, e os peitos, determinando
nestes o desenvolvimento das glândulas mamárias, faz com que os líquidos, que, durante a
prenhez, se dirigiam ao útero, se encaminhem para os seios, a fim de que a secreção do leite
possa ter lugar" (BRETAS: 1838,8); e prossegue: se a mulher não oferecer os peitos ao
filho, os líquidos sobrecarregarão o organismo, produzindo a metrite, a peritonite, a flebite,
o ingurgitamento, e o cancro do útero, as flores brancas etc. Esta era a teoria das metástases
lácteas.
Reafirma que o aleitamento não prejudica a beleza e que, ao contrário, a
amamentação dá aos seios uma rigidez elástica, evitando a sua flacidez. A recusa ao
aleitamento tem ainda, segundo ele, outro grave inconveniente: o afrouxamento dos laços
familiares, o que causa a depravação. Cita Rousseau no Émile: "o atrativo da vida
doméstica é o melhor contraveneno dos maus costumes" (BRETAS: 1838,11). O
aleitamento é considerado imprescindível para que os homens se tornem bons pais e bons
maridos.
Diz que "a vantagem, que sobre os europeus temos de se não desterrarem do
teto paternal os meninos, logo que nascem, ...são compensados pelas qualidades de suas
amas, que são superiores às nossas" (BRETAS: 1838,10). Afirma que a mãe não deve
partilhar os seus direitos de mãe com outra, pois corre o risco de sofrer ingratidão do seu
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filho, que poderá amar a mãe adotiva mais que à mãe de fato.
A seguir, cita uma passagem de um teatro romano, onde uma mulher,
perguntada sobre se sua filha amamentaria o filho, exclama: "seria o mesmo que dar-lhe a
morte, se depois das dores do parto, ela tivesse ainda de suportar as fadigas, e os aborrecimentos do aleitamento". Ao que retruca o personagem Favorino: "não é senão meia
maternidade dar à luz a um ser inocente, e rejeitá-lo depois para longe de si." O artista
prossegue, condenando as "mulheres execráveis, monstros horrendos, que, com receios de
que a abundância de leite prejudicasse a beleza de seus peitos, lançarão mão de todos os
meios para esgotar, e fazer secar até a última gota desta fonte sagrada..." e considera um
atentado recorrer a certas drogas para provocar um aborto e pergunta se não é outro
atentado, "bem que menor, quando ele tem adquirido sua perfeição, quando o tendes dado à
luz, recusar-lhe com crueldade o alimento, que lhe é destinado..." Argumenta que os seios
não servem somente de enfeite. (BRETAS: 1838,12-13).
Recoloca, então uma teoria muito difundida à época: de que com o leite se
transmite a pureza dos costumes e a força da constituição. Assim, uma criança amamentada
por mercenária ou escrava tornar-se-ia, no imaginário social, degenerada, bebendo-lhe os
vícios do caráter e os germens das suas enfermidades. Considera que, se a mãe não
amamenta, rompe-se a afeição e se apaga a chama sagrada do amor maternal.
Indica as qualidades que, segundo o pensamento médico da época, se
requeriam em uma mulher para que ela pudesse exercer as árduas funções de ama: em
relação às condições físicas, "a ama deverá ter 20 a 30 anos de idade; parida o mais
recentemente possível; a glândula mamária deverá ser convenientemente desenvolvida; mas
deve-se ter em vista que a quantidade de leite segregado nem sempre se achando na razão
direta do volume dos seios; ...o mamelão deverá ser desenvolvido, quanto baste, para que
possa ser apanhado pela boca do menino, e nela conservado; o leite deverá ser de uma cor
um pouco azulada, sabor ligeiramente açucarado"; a ama "deverá ter bons dentes, boca
fresca, gengivas de cor rosada natural, sem escoriações, bom hálito; temperamento antes
sangüíneo que linfático; constituição forte, e sadia. Pelo que toca às qualidades morais,
deverá ser de um caráter doce, habitualmente alegre, carinhosa, impassível à toda prova, de
maneira a pô-la à salvo de agitações, que possam excitar paixões desordenadas" (BRETAS:
1838,16-17). Argumenta que é dificílimo, senão impossível, encontrar-se uma ama que
reúna todas estas qualidades. Recomenda o exame médico das amas, principalmente para o
diagnóstico da sífilis.
Enfim, condena a ama negra: "as escravas africanas, que entre nós existem, e
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a quem pela maior parte se confia o aleitamento dos meninos, são muitas vezes tiradas
dentre povos de costumes bárbaros, supersticiosos, estúpidos, de pouco espírito, vingativos,
etc, etc.; e pelo que diz respeito ao físico, alguns destes muitas vezes têm suas constituições
profundamente alteradas, já por causa da natureza da sua alimentação, já por causa de seus
hábitos de vida" (BRETAS: 1838,18). Reprova as escravas africanas, considerando que não
há ninguém mais impróprio para amamentar crianças. Narra o hábito de enfaixamento da
criança, feito pelas escravas que, constrangendo-lhe os membros, impedem a livre
circulação do sangue, produzindo hérnias, congestões de cérebro, ruptura de vasos e um
gênio facilmente irritável.
Censura os hábitos da escrava, que considerava estúpida, de introduzir
"grossos bolos alimentares no débil estômago da criança, ou levando-lhe o peito à boca"
para aplacar-lhe o choro que nem sempre significa fome. (BRETAS: 1838,20). As negras,
na sua opinião, são preguiçosas, indolentes e, em alguns casos, malignas. E conta casos de
asfixia de bebês que dormiram com os seios da ama mergulhados em sua boca, de unção do
seio com pimenta antes da amamentação do filho do senhor e de embriaguez da criança,
com cachaça, "a fim de se entregar ao deboche" (BRETAS: 1838,22).
Achava um perigo moral a criação das crianças pelas amas: "os meninos não
reconhecendo por modelo de suas ações, senão as daquelas pessoas, que deles cuidam,
desde de seus mais tenros anos, e que com eles mais em contato vivem, torna-se evidente,
qual a influência, que sobre o seu moral deverá exercer o caráter da ama" (BRETAS:
1838,23). Segundo o autor, as amas plantam no coração puro da criança os germens de todos
os vícios, contando ridículas histórias de lobisomens, bruxas, mulas-sem-cabeça, almas
perdidas etc. Acha que tudo isso conduz à devassidão dos costumes.
Por outro lado, julga que o senhor fica com as mãos atadas, pois se infligir
penas às escravas por causa de seus delitos poderá alterar as qualidades do alimento do
menino. Além disso, pensa que o menino, já afeito à escrava e ouvindo-lhe os reclamos, não
poderá deixar de indignar-se contra seus próprios pais.
Afirma que "quando porém as riquezas fizeram aparecer o luxo, e este não
advertindo mais aos homens seus deveres naturais, foi então que se viu a educação dos
meninos abandonada às escravas" (BRETAS: 1838,26). Justifica o não aleitamento das
senhoras da alta sociedade, afirmando que a sua constituição, alterada pelos bailes noturnos,
as tornam débeis, não podendo oferecer à criança um alimento restaurativo.
Conclui recomendando às mães que amamentam: fazer exercícios, evitar tudo
quanto possa excitar paixões (porquanto estas, em sua opinião, poderão alterar as
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qualidades do leite, e mesmo chegar a suspendê-lo); fugir de espetáculos públicos como
bailes; "...fugir de ler tragédias, comédias, ou quaisquer outros objetos que choquem
fortemente a economia, e excitem afecções vivas. Não deverá logo depois dos prazeres
conjugais oferecer os seios à criança; pois que todo o organismo tendo sofrido perturbação,
o leite não oferecerá as qualidades convenientes" (BRETAS: 1838,28).
Do aleitamento materno
O aleitamento, comparado pelos médicos ao sacerdócio, é, segundo eles, um
prazer divino, missão nobre e complemento da maternidade (VIANNA: 1869,31); na
opinião dos mesmos, além de um dever trabalhoso, não deixa de ser, também, um
manancial de delícias. Para Meirelles, "são as privações que o aleitamento lhes impõe, que
fazem essas mulheres desnaturadas renunciar aos mais doces sentimentos da
maternidade" (MEIRELLES: 1847,10). A amamentação, no pensamento dos higienistas, ao
mesmo tempo que oferece prazer causa dor. Este tema do sofrimento ao qual se segue uma
recompensa é encontrado com muita insistência e, provavelmente, tem uma origem
religiosa. Assim, a mãe santa se doa ao filho tal como Cristo aos homens. Em troca, ela
recebe, como prêmio pelo seu esforço e dedicação, o amor dos filhos e o reconhecimento da
sociedade. A maternidade, sendo percebida como a vivência do mal e do bem; aquela que
amamentar será considerada socialmente a mãe verdadeira. Do contrário, será censurada e
estará passível de receber as penas pelo seu deslize social. As mães que não amamentam são,
segundo os médicos, surdas à voz da natureza.
A razão surge, no pensamento higienista, como causa do abuso da liberdade:
"só a mulher, dotada de uma razão tão esclarecida, de tanta sensibilidade e ternura, é o único
ser que abusa da sua liberdade" (MEIRELLES: 1847,12). No discurso médico, a mulher é
mãe, pois a realização da mulher se dá pela vivência da maternidade, onde o aleitamento é
condição sine qua non para uma boa maternidade. O desejo de não amamentar, fruto da
razão, é censurado. Percebemos, aqui, as contradições do discurso higienista: ao mesmo
tempo em que os médicos percebem o aleitamento como um fenômeno natural, portanto
biológico, identificam na razão, apanágio social, o motivo de sua negação. Obviamente,
onde há razão não pode haver instinto nem natureza.
Outros distinguem nas mães duas espécies de amor: o amor de instinto, que
nunca falta e por ele uma mãe ama a seu filho como a si própria; e o amor de razão, pelo
qual uma mãe comprime suas próprias emoções para não despertar as de seu filho, a
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vaidade não tem parte alguma neste sentimento (URCULU: 1882,41-42). Reconhecem que
as mães amam mais os filhos que amamentam. Perguntamos: isso não seria porque o amor
de razão é o único que existe e precisa de contato e afeição para se desenvolver?
Os médicos imaginam existir uma relação entre o grau de civilização e a
degradação social: "...quanto mais civilizado é um povo, quanto melhores meios de
progresso, quanto mais culta e judiciosa é sua higiene maior número de mães recusa aleitar"
(URCULU: 1882,37). Para Ferreira, "nas classes elevadas, nos grandes centros, a mulher
começa a considerar a amamentação como um fardo, uma sujeição de que se deve
desembaraçar" (FERREIRA: 1920).
Segundo Meirelles, "com o leite se transmitem não só as moléstias, mas ainda
o caráter e o moral das amas" (MEIRELLES: 1847,15). Este outro motivo é universal na
percepção discursiva. Fornece o fundo "científico" que justificará uma série de punições,
ameaças e conseqüências para aquelas mães que se recusarem a amamentar seus filhos. A
primeira punição é biológica, fornecida pela teoria das metástases lácteas, descrita no item
anterior. Na opinião dos médicos, as ameaças são inúmeras e se baseiam na advertência das
conseqüências que poderão advir da não amamentação: o desprezo, a indiferença e o
abandono do filho podem levar à sua morte; acham que a mãe tem a missão de conferir
estabilidade à família e a recusa em amamentar é a primeira depravação moral, da qual,
segundo Rousseau, nascem todos os outros vícios que conduzem à desagregação da família.
(BRETAS: 1838,10). Interrogam: "quanto não sois responsáveis, ó mães, perante a natureza
e a sociedade, vós que podeis transmitir com vosso leite nobres e excelentes virtudes e dar à
sociedade homens fortes, capazes de suportar todos os trabalhos?!" Lembrai-vos que nosso
futuro, costumes, paixões, gostos, prazeres e até nossa felicidade dependem de
vós" (MEIRELLES: 1847,16). Os médicos achavam que com o leite se transmitem as
virtudes; desse modo, se a criança fosse amamentada por amas escravas beberia todos os
seus vícios e doenças; isso comprometeria o futuro da nação e da família. Outros médicos,
porém, começavam a duvidar da veracidade deste discurso: "há uma idéia geralmente
espalhada, e que nos vem desde a mais remota antigüidade, que a maior parte dos médicos
tem acolhido sem exame. Atribuem ao leite uma influência notável sobre a constituição, e o
caráter das crianças" (NEVES: 1874,25). A mãe é também convocada pelos higienistas a
prodigalizar à criança uma vigilância contínua, em sacrifício dos seus momentos íntimos e
do prazer conjugal.
Deste discurso higienista, da responsabilidade materna sobre o futuro dos
filhos, nasce a culpa da mulher por todos os insucessos familiares. Além disso, se o
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aleitamento é um dever sagrado, a sua recusa constitui um pecado, também sujeito à
punição dos céus, segundo a percepção higienista. As causas da negação do aleitamento,
apesar deste abuso e desleixo estar presente "desde o primeiro até o último degrau da escala
social!!..." (MEIRELLES: 1847,12); são visualizadas, pelos médicos, em transgressões
morais: "...as mulheres enervadas pelo luxo e pela grandeza; e levadas pelo egoísmo e
avidez dos falsos prazeres da sociedade, têm postergado e até sufocado em seu coração,
quase completamente, os sentimentos do amor materno!" (MEIRELLES: 1847,11-12)
Da culpa atribuída surge nas mulheres a mea-culpa internalizada. Da
responsabilidade pelo futuro deriva a culpa pela morte do filho: "morra seu filho, embora;
mas desfrute ela todos os prazeres" (MEIRELLES: 1847,12). A mãe que não vigia o filho,
que não o amamenta, é considerada pelos higienistas culpada por tudo o que lhe vier a
acontecer. A morte do filho é usada como chantagem para convencer as mães reticentes a
amamentar seus filhos. Para o discurso médico, a falta de amamentação produz gerações
fracas, doentias e disformes.
O hábito de não amamentar tinha relação, algumas vezes, com a morte das
crianças. Porém, traduzir tal morte como culpa das mães constitui-se numa representação de
culpabilidade que a sociedade ou os médicos lhes atribuíam. Achamos que não se pode
considerar na análise sociológica os sujeitos como tendo inteira responsabilidade nos
processos sociais. Nem mesmo individualizando-se os atos e suas conseqüências como
queria fazer crer o discurso médico, podemos afirmar que a culpa realmente pertencia às
mães. Era, de fato, uma culpa socialmente imputada, tanto que não era passível de
responsabilização criminal. Os sujeitos, embora sejam partícipes das relações sociais, têm
maior ou menor consciência dos processos sociais nos quais estão inseridos. O discurso
tinha a intenção de encerrar a mãe no interior do domicilio, limitando-a às tarefas
domésticas e reprodutivas. E, para conseguir-se tal intento social, essas representações
culturais poderiam ter um grande poder de persuasão, muitas vezes mais fortes que a barra
dos tribunais e mais eficazes que a punição. Pretendia prevenir prejuízos morais, ao invés de
puni-los apenas depois que aconteçam. Porém, tal intenção não obteve completo sucesso.
Para os moralistas, poetas, naturalistas, filósofos e médicos, o aleitamento
natural é o melhor modo de alimentação dos recém-nascidos, quando é possível. As
principais razões que interditam a mulher de amamentar são, na opinião dos médicos da
época, as diáteses escrofulosas, cancerosas e outras, a constituição física ou a conformação
imperfeita das mamas e mamilos, a alienação mental e a epilepsia.
Para Costa, os médicos forneciam diversas razões sociais para justificar a
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necessidade do aleitamento materno, dentre as quais a de que "a mãe deveria
compulsoriamente amamentar porque essa tarefa, além de proteger a vida dos filhos,
regulava a vida da mulher... O primeiro objetivo disciplinar da amamentação materna era o
uso higiênico do tempo livre da mulher na casa... A segunda causa da detenção doméstica
da mulher através da amamentação estava ligada à concorrência com o homem... O
terceiro motivo da ênfase posta na obrigação de aleitar prendia-se à coesão do núcleo
familiar" (COSTA: 1983, 258-261).
Para Coelho, devido à moda e ao egoísmo dos pais na classe rica e à
ignorância, indiferença e miséria na classe pobre, as mães tendem a abandonar o salutar
regime do aleitamento materno sob fúteis pretextos (COELHO: 1902,23).
A tese de Zamith, de 1869, é cheia de descrições sobre os caracteres
fisiológicos da lactação e de prescrições de regras de amamentação. Podemos considerá-la
como um dos primeiros tratados sobre higiene do aleitamento. Nota-se a tremenda influência que o pensamento da medicina francesa exercia sobre os médicos da época. As
teses são, muitas vezes, transcrições de livros franceses, adaptadas às condições vigentes no
Brasil. Na tese de Zamith, embora o autor não recomende explicitamente, percebe-se uma
preocupação com a fixação de horários de amamentação. A regularização de horários para
amamentar e a suspensão recomendada da mamada noturna não serviam como meios para
reduzir o possível fardo das mães? Segundo Neves, tudo isso, "...além de trazer muitas
conveniências para a mãe, regulariza as refeições da criança" (NEVES: 1874,18). Outros
médicos observam que a regularização de horários previne perturbações intestinais e é
positiva para a educação da criança.
Para alguns autores, a criança tem a marca do pecado original e, se a mãe
amamenta sob livre demanda, ela se submete aos caprichos e vontades infantis. Isto pode
corromper o espírito do lactente, já impuro. Novamente se percebe as imagens religiosas
traduzidas "cientificamente".
Além da regulamentação dos horários, novas regras surgiram, disciplinando o
contato mãe/criança: os higienistas aconselhavam dar sempre os dois seios a cada mamada,
de preferência em decúbito lateral para não obstruir as narinas do lactente. Condenavam o
uso de chupetas.
Mais tarde, aparece o processo de pesagem diferencial, que consistia em
pesar a criança antes e depois de mamar; a diferença dos pesos representaria o peso do leite
que a criança ingeriu. Este método francês, de Natalis Guillot, teve uma grande importância
na pediatria, para verificar-se a suficiência do leite.
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Há, no discurso médico, uma preocupação com o sono da mãe que, sendo
reparador e tranqüilo, prevenirá afecções morais. Um dos autores aconselha o leite de vaca
quando a criança não tiver aumentado suficientemente de peso ou para permitir à mãe um
sono sem perturbações. Estabelece regras para a alimentação da mãe, aconselha uma calma
moral para prevenir as perturbações do leite e relações sexuais menos freqüentes durante o
aleitamento. Sobre as relações sexuais, "devem ser evitadas, sempre que for possível, para
não dar lugar à concepção" (REIS JÚNIOR: 1874,11). Provavelmente, este interdito não
tinha, como nas sociedades primitivas, finalidade anticoncepcional latente; os médicos
estavam apenas preocupados com a redução do volume do leite que sobrevém com a
gravidez.
Há recomendações para iniciar o aleitamento de 2 a 6 horas após o parto e
condenações à administração de água com açúcar e purgativo neste período; o colostro é
considerado, por Vianna, o alimento ideal nesta fase, além de ser laxativo e corresponder à
fraqueza nutritiva do recém-nascido (VIANNA: 1869,21-24). Sobre a alimentação da mãe,
os higienistas recomendam: "a mãe deve abster-se de toda a alimentação flatulenta, salgada,
apimentada, adubada e ácida, assim como bebidas alcoólicas e excitantes, visto como podem
não só produzir nas crianças eólicas, vômitos e diarréias, mas também ocasionar convulsões
perigosas e mesmo a morte" (NEVES: 1874,19). Aconselham que a mãe deve "respirar um
ar puro, fazer exercícios moderados e não se conservar em repouso absoluto, como
aconselhavam os parteiros antigos", numa clara condenação ao "resguardo" (MOURA:
1874,9).
Zamith, citando Caseaux, médico francês, observa que há um grande número
de mulheres que não pode por si só levar adiante o aleitamento de seu filho, devido à
insuficiência qualitativa e quantitativa do leite. Reconhece que "as indicações que se
apresentam quando o leite da mãe é insuficiente, são conforme um grande número de
condições, estranhas à questão médica puramente..." (apud ZAMITH :1869,22). Depois, a
agalactia surge como contra-indicação "científica" do aleitamento (REIS JÚNIOR: 1874,
17). Os médicos reconhecem que "certas mulheres não podem aleitar porque sua secreção
láctea é insuficiente ou nula e seus recursos não lhes permitem tomar uma nutriz... Os casos
de agalactia (ausência de secreção láctea) são excessivamente raros, agalactia absoluta não
existe" (MACHADO: 1911,88). Distribuições de leite esterilizado eram feitas às mães que
não podiam nutrir ou que não tinham leite suficiente.
Na opinião de Zamith, "algumas senhoras são tão pouco escrupulosas, que
entregam seus filhos às amas e se retiram para um cômodo separado da casa e só tornam a
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vê-los à noite. Mães que não gostam de ouvir o choro de seus filhos, porque querem descansar das fadigas dos bailes e dos teatros" (ZAMITH: 1869,31).
Ao lado do incentivo e da condenação moral ao aleitamento mercenário, os
médicos relatam as dificuldades que acontecem no desempenho desta "missão". Meirelles
não recomenda o aleitamento naquelas "cuja constituição e mau estado de saúde não lhes
permitem aleitar seus filhos; estas são dignas de desculpa e até de elogio" (MEIRELLES:
1847,19). Para este autor, as mulheres de constituição frágil são muito encontradas nas
grandes cidades e nas classes ricas, além das primíparas e jovens. Contra-indica o
aleitamento para as mulheres que desenvolvem "trabalhos sedentários, que exigem grande
aplicação e pouco exercício", considerando esta uma causa "física" (MEIRELLES:
1847,24); e o desaconselha nas "causas morais, tais como os arrebatamentos violentos da
alma, os acessos de cólera, os pensamentos tristes, os cuidados, as aflições, o ódio e o amor
excessivo, que assaltando freqüentemente o coração da mulher, alteram as qualidades do
leite" (MEIRELLES: 1847, 24). Também reconhece que as famílias ricas costumam
inventar causas para justificar a necessidade do aleitamento mercenário (MOURA:
1874,16). Outro autor julga que as operárias, que passam o dia inteiro nas fábricas onde
ganham os meios de subsistência, não podem interromper os trabalhos para aleitarem os
filhos (BORBA JÚNIOR: 1913,40). Alguns médicos recomendam o leite de vaca como
complemento para os casos de hipogalactia, e como substituto para os filhos de operárias
(FERREIRA: 1920). Moura considera que muitos motivos de renegação do amor materno
são inconfessáveis, frívolos e indecentes (MOURA: 1874, 25-26).
Alguns médicos julgavam que as regras alteravam a composição do leite e
poderiam provocar cólicas, diarréia e anemia; por isso, achavam que o aleitamento deveria
ser suspenso neste período. Outros não viam nenhum inconveniente na sua continuação, a
não ser que se notasse prejuízos na criança.
É muito comum a recomendação médica de que as mulheres que amamentam
devam fugir das "impressões morais vivas" (VIANNA: 1869,25). O conhecimento deste
fato, de que as emoções alteram o leite, tem seu correspondente hoje no discurso médico
pró-aleitamento, que recomenda o relaxamento psicológico como necessário para a
liberação do hormônio ocitocina pela neurohipófise.
Apesar de todo o incentivo que os médicos davam ao aleitamento e das
condenações que faziam às mulheres que não amamentavam, estão também presentes no
discurso, justificativas e condescendências para as que não amamentam. O médico deverá
aconselhar a mulher "para aleitar o seu filho, aconselhá-la somente, não insistir, e nem
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contrariá-la, pois nós sabemos que o aleitamento feito contra a vontade é sempre
prejudicial" (NEVES: 1874,12). O desmame será permitido "cientificamente" quando
houver um motivo justo, higienicamente regulamentado pelo exame de amas (MOURA,
1874,25).
Em todas estas citações, percebe-se, na realidade, a existência de dois
discursos médicos: um moral e outro higiênico, que se interpenetram na construção deste
saber em movimento. O estilo das obras é, por vezes, literário, assumindo conotações
românticas e sentimentais. As teses eram muito mais relatos valorativos das condições da
época e do pensamento higienista do que trabalhos propriamente científicos.
Em relação ao aleitamento, entendemos que a sociedade estabelece uma
regra, uma norma passível de sanções. Essa norma não será obedecida por todos nem seria
possível aplicar punições a todas as pessoas que a infringissem. Portanto, há um caminho
permitido de regras e motivos para as que não se enquadrarem nessa norma. Existem, então,
a norma e a antinomia, o moral e o imoral para prevenir o surgimento do anormal ou do
amoral. A norma serve para mostrar o modelo do desejável e a antinorma é o seu molde
negativo. As exceções servem para reforçar a regra. A ausência de norma ou o novo
indesejável têm de ser prevenidos pela sociedade, para diminuir as possibilidades de
conflitos de valores muito antagônicos e inconciliáveis. Assim agem os mecanismos de
controle social. Em nosso ponto de vista, se amamentar for a regra em uma determinada
sociedade, numa dada época, não amamentar dentro de um modelo pré-estabelecido é a antiregra, cuja existência e condenação servem de reforço à regra e previnem o aparecimento de
discursos e práticas socialmente inadequadas ao momento histórico.
Consideramos que os indivíduos participantes de sua cultura, conhecem o
desejado e o indesejado. As infrações são permitidas dentro de certas normas, para adequar
os desejos individuais ao coletivo social. Quando uma conduta não desejada que pode trazer
alguma ameaça à sociedade — como o abandono da criança ou a recusa ao aleitamento
considerada como causa da alta mortalidade infantil — se torna muito difundida, a
sociedade procura novos motivos para tornar esse comportamento necessário novamente
desejado, apesar de ser julgado inconveniente pelos seus membros. A sociedade não
poderia puni-lo pois está muito disseminado. Assim, surgiu a construção cultural de um
novo discurso de motivos elaborado pelos médicos, filósofos, moralistas e administradores.
Para contrabalançar o que talvez estivesse sendo vivido como um fardo se ofereceram
novos estímulos socialmente desejados para estimular a amamentação. Cremos que, em
parte, foi um processo como esse que ocorreu na modificação do discurso médico sobre o
60
aleitamento na segunda metade do século passado.
Do aleitamento artificial
Os médicos, tendo de lidar com a recusa social ou impossibilidade física do
aleitamento, buscam leites substitutos ao da mãe. A necessidade de outros alimentos era
socialmente sentida antes da descoberta dos processos de pasteurização do leite de vaca e da
industrialização do leite em pó. Foi justamente esta necessidade que constituiu, talvez, a
principal motivação para que o desenvolvimento de novas tecnologias pudesse satisfazê-la
ou aliviá-la de algum modo.
Há relatos arqueológicos sobre os primórdios da alimentação com
mamadeira, feita através de vasilhas de barro, encontradas em túmulos de crianças romanas
que morreram na época da lactação. Alguns destes recipientes dos séculos I a V A.C. foram
datados com a ajuda de moedas encontradas junto a estes. Wickes narra que em tribos
primitivas era comum a prática de oferecer açúcar ao recém-nascido na primeira semana de
vida, pois havia interdito cultural em relação ao colostro (WICKES: 1853,151-155). Outras
notas históricas em relação à alimentação artificial podem ser encontradas nos trabalhos de
Duncum(1947) e Tubbs(1947). Neste último trabalho, o autor mostra desenhos de
recipientes usados na alimentação das crianças, os precursores das modernas mamadeiras,
demonstrando que, desde épocas remotas, a necessidade de alimentação artificial da criança
já era sentida e desejada pela sociedade.
Segundo um dos autores consultados, nas classes pobres o aleitamento
artificial era muito utilizado, pois seus recursos pecuniários não permitiam a contratação de
amas (CASTILHO: 1882, 19).
Havia consenso entre os médicos que o leite que melhor substituía o de
mulher era o da jumenta, pois tem uma composição mais aproximada. Porém, era difícil
dispor-se deste leite, daí se utilizar mais comumente dos leites de vaca e de cabra. A tese de
Vianna descreve, no seu primeiro capítulo, noções sobre o leite e nos permite avaliar o
estágio a que chegaram os conhecimentos médicos referentes à composição química do leite
da mulher comparado ao dos animais, bem como das variações na constituição do leite
humano em condições fisiológicas e patológicas. Descreve, além disso, a evolução da
mamadeira.
As explicações hoje fornecidas pelas mulheres quando perguntadas sobre os
motivos do desmame são encontradas nas teses do período. Assim, o leite poderia ser fraco
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ou insuficiente e havia casos de "secreção leitosa que a princípio era abundante e rica, em
pouco tempo principia a minguar, e mais tarde faltar, ou mesmo desaparecer inteira e
completamente" (VIANNA: 1869,31). Tal fato é hoje verbalizado como "o leite secou". A
propósito, Gussler & Briesemeister, comentam sobre a síndrome do leite insuficiente como
um fenômeno biocultural ou transcultural (GUSSLER & BRIESEMEISTER: 1980). Não
teria o discurso médico, originado da França, introduzido estas explicações "científicas"
que, posteriormente, teriam se popularizado?
A introdução de alimentos de desmame pode ser percebida na citação
seguinte: "Ordinariamente as nossas mães (pelo menos nas províncias do Norte) recorrem a
papas diferentes para suprir o aleitamento, em cuja confecção entram o leite de vaca e o
polvilho, ou a aratura, ou a farinha de mandioca bem pulverizada" (VIANNA: 1869,32). Tal
hábito, do "engrossado", provavelmente tem origem indígena, das papas de manipoy
(mandioca), descritas por D'Abbeville. Os médicos higienistas condenam os mingaus e a
unção do seio com pimentas ou outras substâncias amargas, para forçar o lactente ao
desmame.
A alimentação artificial só deverá ser empregada, segundo os médicos, em
casos de extrema necessidade, na impossibilidade da natural ou quando não se dispuser de
amas. Comentam a falsificação do leite nas cidades, problemas de conservação e
adulteração, falta de higiene nas cocheiras, a tuberculose do gado e lamentam a destruição
da vida causada, segundo eles, pela mamadeira. Os meios de falsificação mais usados
consistiam na subtração da nata e adição de água e amido (VIANNA: 1869,26). Outra
fraude era usada para conservação do leite por mais tempo, através do acréscimo de formol.
Todos estes processos, além de adulterarem o leite, aumentavam o risco de introdução de
germes durante a manipulação. Outro processo usado era a administração de cloreto de
sódio à vaca para aumentar a produção de leite (BORBA JÚNIOR: 1913,17).
Moura cita Jules Guerin que não considerava o aleitamento artificial como a
causa da alta mortalidade mas sim as condições sociais nas quais este ocorre, como a
péssima situação higiênica nas rodas, a alimentação prematura e a péssima qualidade do
leite empregado. Assim, este autor achava que, ao invés de condenar, precipitadamente, o
aleitamento artificial, "devemos antes melhorar as suas condições, lembrando-nos que em
muitos casos será ele o único de que poderemos lançar mão" (apud MOURA: 1874,12-13).
Alerta, ainda, para o problema da higiene das mamadeiras. Nota-se, nas obras do período, a
preocupação com o aperfeiçoamento dos processos de conservação do leite.
O aleitamento por animal era um hábito reservado para casos especiais, nos
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quais a mãe não podia amamentar e não se conseguia uma ama. Para os médicos, a cabra
era o animal indicado "porque a forma e o volume de suas tetas, que a criança pode
facilmente tomar, a abundância e as qualidades de seu leite, a facilidade com que ele
procura dar de mamar à criança, e a espécie de afeição que muitas vezes contrai este animal
pela criança, e enfim a sua docilidade, explicam bastante a preferência que se lhe
dá" (ZAMITH: 1869,20). Porém, aconselhavam a observação de alguns cuidados: preferir
uma cabra nova, já domesticada e que tenha tido o filho há pouco tempo, que não tenha
chifres e de cor branca; cuidar da higiene do animal, alimentá-lo adequadamente e não
maltratá-lo por pancadas. Tampouco convém que esteja sempre preso para não aborrecê-lo,
o que poderia alterar o leite. Acreditava-se que a cor da cabra influía na natureza do leite. A
cabra era usada, ainda, para "aplicar medicamentos aos meninos, dando-os ao animal, e este
transmitindo ao menino no seu leite" (VIANNA: 1869,33). Para um dos autores, "só será
permitida esta prática quando a necessidade de amamentar por este modo aparecer depois
dos seis meses ou mais de idade da criança" (NEVES: 1874,23). Acreditava-se que as
crianças amamentadas com leite de cabra tornavam-se nervosas e arteiras. O aleitamento
por animal era considerado raridade já em 1874.
Segundo as recomendações médicas, o leite de vaca deveria ser diluído com
água a 2/3 no primeiro mês, à metade no segundo, ao quarto nos dois meses seguintes e
depois deveria ser oferecido puro. Os médicos aconselham o preparo recente do leite de
vaca, poucos minutos antes de sua administração, para evitar-se a fermentação. Indicavam
adoçá-lo e dá-lo morno e, somente após o quarto ou quinto mês é que se deveria, em sua
opinião, oferecer sopas de féculas, papas e caldos de miolo de pão. Os higienistas
consideravam que o aleitamento deveria ir até 12, 16 ou 18 meses e relacionavam o
desmame com o processo de erupção dos dentes, principalmente dos caninos. Segundo eles,
os alimentos sólidos só deveriam ser administrados quando já existissem os primeiros
molares.
O aleitamento misto é visto como um recurso que satisfaz, ao mesmo tempo,
os desejos da mãe e as necessidades do filho. A percepção de que o trabalho materno
dificulta a amamentação é encontrada: "o aleitamento misto é muito usado na classe pobre a
qual é obrigada a empregá-lo, a fim de que as mães, durante o longo período do aleitamento
possam entregar-se ao trabalho" (MOURA: 1874,16). Para outros, permite, ainda, que a
mulher se entregue aos deveres domésticos (REIS JÚNIOR: 1874,23).
O uso de mamadeiras é relatado como sendo facilitador para a criança tomar
o peito (REIS JÚNIOR: 1874,21). Hoje, ao contrário, o discurso médico considera que a
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sucção na mamadeira, ocorrendo de forma diferente, e exigindo menos esforço da criança,
contribui para o desmame. Ambos os argumentos são, na sua devida época, considerados
como "científicos". Como sabemos, os médicos geralmente requisitam o argumento da
autoridade, para fazer crer uma representação cultural como uma "verdade absoluta". Ou
seja, muitas vezes, ao invés de ciência, se produz e transmite mitos. Mitos algo aparentados
com a ideologia 6.
A partir do fim do século passado, perde-se um pouco no discurso a relação
entre erupção dos dentes e desmame. Os sólidos — papas, sopinhas, caldos e mingaus —
passam a ser recomendados cada vez mais precocemente. Nesta época inicia-se, também, o
emprego do leite condensado na alimentação de recém-nascidos. Difunde-se o emprego da
água açucarada nos intervalos das mamadas (REIS JÚNIOR: 1874,24-29).
Do aleitamento mercenário
O aleitamento mercenário, apesar da condenação médica, é um hábito muito
difundido. Na opinião de Neves, as crianças "sugam no leite mercenário o germe da
corrupção" (NEVES: 1874, 11). Vianna lamenta que "há certos senhores que têm o costume
de mandar pôr os filhos de suas escravas na roda para que obtenham melhor aluguel. Nestes
casos o aluguel rendia o dobro ou o triplo" (VIANNA: 1869,49). Zamith entende que este
fato, que parece à primeira vista de pouca importância, influi sobremaneira no moral da
escrava, de modo que ela, com a lembrança do filho, nunca poderá nutrir bem outra criança.
Considera a existência de algumas escravas que, "apesar de terem consigo o seu filho,
maltratam a criança que têm obrigação de criar, porque foram alugadas ou servem contra a
vontade. E, não obstante toda a vigilância que as mães empregam, elas não cuidam das
crianças como devem" (ZAMITH: 1869,30). O autor não está aqui preocupado com o filho
da escrava mas quer evitar o sofrimento da escrava para que o leite se mantenha perfeito
para ser oferecido ao filho dos brancos. Outros, no entanto, consideram o aleitamento
mercenário imoral, "porque a especulação não treme em arrancar dos braços de uma mulher
cativa, mas que não deixa de ser mãe, o desgraçado filho..." (MOURA: 1874,29).
Um tema freqüente no discurso médico é o da escolha da ama, que tem um
tratamento estereotipado. Na escolha da ama, os médicos insistem na avaliação de suas
6
Mito — não considerado como uma simples ficção alegórica, mas, sim, "uma representação de estrutura
imaginativa (não imaginária) com apreensão de valores". E, ainda, "expressão pretensamente racional de
uma representação dinâmica do mundo; está voltado para o futuro e constitui um apelo à ação" (BIROU:
1982,257).
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qualidades físicas e morais. Criticam a visão popular da ama que seleciona, sem a
intervenção médica, a mulher "que tenha bastante leite e os peitos grandes, levada por uma
falsa idéia, que muitas vezes é nociva à criança, de que a quantidade do leite é relativa ao
volume que os peitos apresentam" (MEIRELLES: 1847,17). Insistem na necessidade de
exames médicos para a escolha "científica" e "higiênica" da ama. Alertam para os perigos e
privações que, segundo eles, sofre a criança da insensibilidade, negligência e imprevidência
das amas. Meirelles relata a história de uma criança que, por descuido, foi abandonada por
sua ama sozinha em uma cocheira, levando um coice de animal e vindo a falecer
(MEIRELLES: 1847, 18). As amas são percebidas como ignorantes e malvadas.
Não havia, à época, polícia médica regulamentada para o exame de amas, a tal
ponto que as mulheres que quisessem receber uma criança do hospício (roda) para aleitar,
bastariam
apresentar
um
"atestado
do
inspetor
ou
do
subdelegado
do
seu
quarteirão" (ZAMITH :1869, 29). E mesmo as famílias ricas aceitam as amas em suas casas
sem se preocuparem com o exame médico. Os médicos consideravam um absurdo que tudo
se passasse "como se indivíduos dessa ordem tivessem as habilitações precisas para poder
julgar do estado sanitário de alguém" (VIANNA: 1869,44).
O Sr. José Pereira Rego, presidente da junta central de higiene, quis fundar
um escritório de amas no Brasil, sem sucesso. Tal estabelecimento ficaria responsável pela
realização obrigatória dos exames e de mandar inspetores para vigiar as amas contratadas a
domicílio (VIANNA: 1869,48).
Só mais tarde, no início do século XX, ocorreu a criação do gabinete de
exames de amas-de-leite mercenárias. De 1901 a 1908, de 918 nutrizes examinadas, 476
foram rejeitadas. A alta taxa de rejeição, de 52%, deveu-se, na maioria, ao corrimento
genital, tuberculose, afecções uterinas e insuficiência láctea ou leite magro (MACHADO:
1911,102-103). Porém, tal instituição teve muito pouco impacto a nível sanitário, pois foi
procurada por um número muito restrito de pessoas e já em uma época em que declinava a
amamentação mercenária.
Apesar da enorme distância entre as intenções médicas e as práticas sociais,
um autor descreve técnicas usando instrumentos como o lactômetro e o lactoscópio para se
verificar a riqueza ou pobreza do leite. Achava que "a melhor prova do bom leite é o estado
da própria criança da ama, no entanto é preciso estar bem certo que a criança apresentada é
da ama e não de outra pessoa, e, além disso, que ela seja alimentada exclusivamente do leite
de sua mãe" (ZAMITH: 1869,26). Os médicos eram, muitas vezes, iludidos pela astúcia e
sagacidade das amas, pois os donos de escravas, para facilitar o seu aluguel como amas,
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tinham interesse em dissimular a realidade, ludibriando os locatários.
Para Zamith, a idade do leite7 deve ser de 5 a 6 meses, a ama deve ser
multípara pois tem mais experiência, com idade entre 20 e 34 anos, evitando-se mulheres
com hálito fétido, as raquíticas, escrofulosas, sifilíticas ou tuberculosas, preferindo-se
aquelas com bons dentes e gengivas. Acredita que "os bons dentes estão muitas vezes
ligados a uma boa constituição" (ZAMITH: 1869,28). Para Vianna, a idade ideal do leite é
de menos de 2 meses mas "aquela que é chamada para tomar a seu cargo o papel de
criadeira, tem necessidade de desmamar seu filho, e nessa época não o poderá fazer por
certo, porém seis meses depois". Assim, deve-se preferir "aquela cujo leite seja o mais
novo, isto é, o da mais recentemente parida" (VIANNA: 1869,35). Os médicos
recomendam que a mulher só deve ser ama quando seu filho tiver completado pelo menos 6
meses de vida. Em sua opinião, em termos morais, a ama deve ser de bons costumes, de um
gênio dócil, não irascível, cuidadosa e inteligente, que não tenha o vício da embriaguez, de
fisionomia agradável e alegre, devendo exercer esta missão de muito boa vontade e, se o
fizer contrariada, nunca poderá ser boa ama. Para Meirelles, "não é só com as boas
qualidades da ama em si com que se tem de lutar, é também com as outras qualidades como
uma pessoa estranha que vem para o interior de uma família" (MEIRELLES: 1847,32).
Neste período, a percepção do escravo como estranho não existia nas famílias brasileiras.
Para Meirelles, a escrava deveria ter boa aparência. "A pele fina, sem o
menor sinal de erupções; peito largo e bem conformado, as mamas nem muito volumosas,
nem muito pequenas, destacadas do peito, sem cicatrizes ou endurecimentos granulosos... as
amas de constituição sangüínea são as mais fortes para suportar as fadigas do aleitamento...
uma mulher de constituição fraca ou linfática que quisesse aleitar o seu ou o filho de outra
mulher, acarretaria certamente a si e a ele grandes inconvenientes..." (MEIRELLES:
1847,29). Segundo este autor, a ama deve ter uma boa alimentação. Quanto ao tamanho e
forma das mamas, Neves considera que "o volume médio das mamas é considerado o tipo
mais vantajoso. As mamas que se devem preferir são as hemisféricas" (NEVES: 1874, 30).
No ponto de vista de Meirelles, no que diz respeito à moral, a ama deve ter
uma "fisionomia risonha, um olhar meigo, um sorriso agradável e, sobretudo um gênio
dócil, afável, complacente e um som de voz harmonioso: ela deve enfim ser isenta de
paixões" (MEIRELLES: 1847,30).
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idade do leite — expressão muito utilizada nas obras médicas do século passado para designar a idade ideal
que o filho da ama-de-leite deveria ter para que se pudesse escolher a nutriz mais adequada para amamentar
outra criança. A idade do leite correspondia à idade do filho da ama.
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Os médicos são unânimes em reconhecer que não há ama perfeita e "como é
quase impossível acharmos reunidas em uma ama todas as condições que temos indicado;
devemos ao menos preferir aquela que apresente as qualidades mais essenciais e que às
formas regulares do corpo, ajunte a mais perfeita harmonia em suas faculdades
morais" (MEIRELLES: 1847,30).
Havia, no Rio de Janeiro, amas livres que, segundo Reis Júnior, eram
"constituídas por mulheres, naturais das diversas ilhas de Portugal, e vulgarmente
denominadas ilhoas: estas, além de crassamente ignorantes, são de uma voracidade a toda
prova" (REIS JÚNIOR: 1874,32). Porém, estas, raramente, eram encontradas.
A roda de expostos ou hospício de menores era uma instituição destinada a
acolher, reservadamente, os produtos de ligações amorosas consideradas clandestinas, "...
os
deserdados
do
amor
maternal,
os
filhos
da
miséria
e
as
vítimas
da
ganância" (CASTILHO: 1882, 38). A condenação a esta instituição é geral no discurso mas
os médicos reconhecem que, apesar dos seus inconvenientes, é um mal necessário para
evitar o infanticídio. Pois, se não houvesse quem recolhesse estas crianças, estas seriam
lançadas nas praias, nas praças ou nos adros da igrejas. "Não poderemos, portanto, duvidar
de sua utilidade, considerando que ela minora a sorte horrorosa que esperaria um grande
número de crianças... intermediária valiosa, que sempre obsta a uma morte iminente,
arrancando uma consciência ao remorso" (CASTILHO: 1882,38). Os médicos reclamam
das péssimas condições higiênicas vigentes neste ambiente. Insistem na necessidade de
higienização das amas; vociferam contra a situação que permite às amas, mesmo tendo seu
estado de saúde alterado, se apresentarem à roda e receberem uma criança para amamentar
a domicílio bastando, para isso, apresentar os documentos do inspetor e delegado.
O aleitamento a domicílio pela ama no Brasil só acontecia no caso de
crianças da roda. Segundo Orlandi, a Câmara Municipal e a Misericórdia da Bahia
adotavam o sistema de "colocação familiar" dos enjeitados em casas particulares, antes da
criação da roda dos expostos. Este sistema "consistia em pagar uma ama-de-leite durante 3
anos para fornecer leite, alimentação e roupa, e cuidar da criança" (ORLANDI: 1985,75).
Para Vianna, estas amas, "paupérrimas, ...tomam a seu cargo criar esses infelizes entes
pelos pais ao hospício abandonados, não vendo neles senão a fonte do lucro e da
especulação... são às vezes levados ...mal vestidos, mal alimentados, até ao domicílio de sua
mãe adotiva, aí, coitados encontram quase sempre um casebre velho, sem paredes ou elas já
em
completo
estado
de
ruínas,
mal
coberto,
habitado
por
uma
família
numerosíssima..." (VIANNA: 1869,44). Além disso, acha que, dificilmente, estas crianças
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serão amamentadas ao seio e encontrarão, quando muito, a mamadeira ou outra alimentação
grosseira imprópria aos seus fracos recursos digestivos. Além disso, narra que podem ser
vítimas de acidentes pelo descuido das amas. E, ainda, se adoecem, as amas "entendem-se
com alguma comadre ou mesinheira que, ou na boa fé de sua ignorância, ou pela
especulação de lhe vir algum lucro, administra-lhes os seus cozimentos e xaropes, julgando
assim curar os males que tanto afetam nessa idade, e a morte torna-se certa por falta de
recursos médicos..." (VIANNA: 1869,45-46). A remuneração das amas a domicílio era
muito baixa.
Maria Graham conta que a primeira vez que foi à Roda dos Expostos achou
sete crianças com duas amas. Pelo mapa, percebeu que, em treze anos, tinham entrado perto
de 12.000 e vingaram apenas 1.000. "Dentro de pouco mais de nove anos foram recebidas
10.000 crianças: estas eram dadas a criar fora, e de muitas nunca mais houve notícia. Não
talvez porque todas tenham morrido, mas porque a tentação de conservar uma criança
mulata como escrava deve, ao que parece, garantir o cuidado com sua vida, mas as brancas
nem ao menos têm esta possibilidade de salvação. Além disso, as pensões pagas para a
alimentação de cada uma eram, a princípio, tão pequenas, que as pessoas pobres, que as
recebiam, dificilmente podiam proporcionar-lhes meios de subsistência". Narra, ainda, que
muitas crianças mortas eram colocadas na roda para terem um enterro decente (apud
LEITE: 1984,49-50).
Moura descreve a existência de casas de aluguel de amas, às quais os
senhores recorriam quando necessitassem. Outras nutrizes saíam da casa dos seus senhores
ou parteiras (MOURA: 1874,37).
Há relatos de casos de rapto do filho da escrava nas maternidades, para
colocá-lo na roda. As casas de maternidades são condenadas pelos médicos, pois, segundo
eles, ocultam a prostituição. Os higienistas descrevem que os proprietários de escravas
pagam às maternidades pelo parto e combinam com estas, casas o recebimento da escrava
sem o seu filho. O filho da escrava vai para a roda e a ama escrava será alugada. Consideram
que a mortalidade nas maternidades é auxiliada pelo "artifício das parteiras, proprietárias de
tais casas". No relato de Castilho, mediante pensões estabelecidas em seus regulamentos
internos, tais casas recebem mulheres para preparar-lhes o aborto. Para ele, é necessário
"estancar esta fonte de infanticídio e de exportação de crianças para a roda... uma instituição
de tal ordem é a nosso ver um instante convite para o crime" (CASTILHO: 1882,40-41). O
senhor colocava os recém-nascidos na roda para especular com o leite de suas negras.
Para outro autor consultado, "o aleitamento artificial, a alimentação
68
prematura e a alimentação insuficiente são as principais causas da mortalidade, produzida
pela indústria das amas... A alimentação prematura, resultante da ignorância, do hábito ou
da cobiça das amas, que querendo ter maior lucro recebem cinco e mais crianças; e por fim,
não podendo amamentar a todas criam como podem" (ZAMITH: 1869,33).
Em resumo, são três os perigos da amamentação mercenária no discurso
médico: "pelo lado físico a transmissão de graves enfermidades; pelo lado moral a
inoculação de vícios e hábitos repugnantes, e em relação à família a perda dos direitos
maternais e da gratidão filial" (MOURA: 1874,28).
No século passado, havia uma teoria muito difundida sobre o leite e na qual
muitas pessoas acreditavam: de que o caráter da mulher que amamenta é transmitido com o
leite. Gesteira, a este respeito, relata uma história folclórica, da "ferocidade de Calígula por
ter tido por ama-de-leite uma mulher má, e que além de tudo untava de sangue os seios e
lhos apresentava" (GESTEIRA: 1943). Assim, no discurso higienista, as mulheres
"nervosas, coléricas, taciturnas, as que não podem dominar o império das paixões
deprimentes fariam melhor escolhendo uma ama de caráter oposto, porque sabemos que os
infantes copiam o moral de seus progenitores. Por este meio se alteraria seu caráter
provavelmente semelhante ao materno, administrando-lhe uma seiva diferente" (URCULU:
1882,39).
Outra teoria, encontrada nas obras médicas do século XIX, considerava que
as emoções e as perturbações emocionais seriam capazes de alterar o leite. Assim, "o leite
secretado sobre a impressão de uma paixão forte torna-se seroso e pobre, determinando nas
crianças irritações intestinais, fortes e violentas eólicas, febre, diarréias, que as levam
muitas vezes ao túmulo". Para Vianna é como se fosse um veneno sutil. Narra o fato da
morte de uma criança vítima de convulsões, após a mulher discutir com a vizinha e
amamentar, em seguida, a criança (VIANNA: 1869,39-40).
Um discurso muito insistente, ao lado da condenação higiênica da escrava
para ama-de-leite, é o reconhecimento das regalias que uma escrava desfrutava nesta
condição. Para os higienistas, "a família deverá tratar a ama com agrado, procurar fazer as
suas vontades a fim de que ela faça o mesmo à criança, quando a ama é escrava e recebe
maus tratos de seus senhores, as inocentes crianças, muitas vezes, são as vítimas de seus
desesperos" (MOURA: 1874,24). Na percepção de muitos agentes sociais, a ama-de-leite
era uma profissão desejada pois, acreditando-se nas alterações do leite por sobressaltos e
emoções, tudo se fazia para agradar a ama e mantê-la sossegada; era poupada dos trabalhos
pesados, recebia um enxoval novo. Alguns autores consideram isso uma maneira da negra
69
amenizar um pouco as condições da escravidão. O luxo da ama muitas vezes exprimia a
prosperidade da casa e era sinal de status. Segundo Expilly, a ama tinha uma "existência
dourada durante a qual os papéis se invertem, pois as brancas obedecem e as negras
comandam" (apud LEITE: 1984,91-92).
Este retrato amenizante das condições da escravidão da ama-de-leite encobre,
como já vimos anteriormente, a negação da sua condição de mulher, a impossibilidade da
vivência da sua maternidade, pois, muitas vezes, a ama era separada de seu filho. Este
tratamento "manso" à ama apenas encobria esta forma brutal de exploração do corpo
feminino.
Os médicos consideravam que as amas nunca podiam sentir pela criança esse
instinto poderoso que a natureza, segundo eles, havia inspirado às mães. Desaprovam o
"comércio de leite humano, o aluguel do seio a quem mais der, sem afeição, sem
moralidade, sem orientação científica, tendo unicamente por mira o interesse monetário...
as amas são recrutadas nas classes inferiores da sociedade entre as infelizes mercadoras do
amor clandestino, íngreme estrada onde, não raro, são presas fáceis das afecções venéreas
ou sifilíticas" (COELHO: 1902,36-38).
4.
O
ABANDONO
INFANTIL,
AS
RODAS
DE
EXPOSTOS
E
A
MORTALIDADE INFANTIL:
As práticas sexuais "ilícitas" desaguavam em filhos ilegítimos que eram
normalmente abandonados. "As crianças expostas pereciam nas ruas, nos adros das igrejas,
nas praias sem que a fé se movesse, a esperança se apiedasse e a caridade as tutelasse". As
crianças eram, muitas vezes, devoradas pelos cães (MONCORVO FILHO: 1926,32-34).
Muitas famílias recusavam-se a assumir o cuidado dos filhos, que era mercantilizado pela
contratação de nutrizes mercenárias. Alguns setores sociais filantrópicos, já mostrando uma
preocupação com os destinos da infância, resolveram intervir no problema, criando a
instituição da roda de enjeitados. "A preocupação em unir respeito à vida e respeito à honra
familiar provocou,..., a invenção de um dispositivo técnico engenhoso: a roda. Trata-se de
um cilindro cuja superfície lateral é aberta em um dos lados e que gira em torno do eixo da
altura. O lado fechado fica voltado para a rua. Uma campainha exterior é colocada nas
proximidades. Se uma mulher deseja expor um recém-nascido, ela avisa a pessoa de plantão
acionando a campainha. Imediatamente, o cilindro, girando em torno de si mesmo,
70
apresenta para fora o seu lado aberto, recebe o recém-nascido e, continuando o movimento,
leva-o para o interior do hospício. Dessa forma o doador não é visto por nenhum servente
da casa" (DONZELOT: 1986,30).
No Brasil, além de exercer esta função purgadora dos desvios sexuais, a roda
funcionou organicamente ligada à indústria das nutrizes. O patrão, dono da escrava a ser
alugada como ama-de-leite, colocava o seu filho negro na roda para elevar o preço do seu
aluguel. Escravas também colocavam os seus filhos na roda para livrá-los da escravidão.
Os médicos criticavam a falta de higiene nestes estabelecimentos e
condenavam o Estado pelo seu desmazelo. "A mortalidade na Casa dos Expostos era
grande, não só pelos precários cuidados fornecidos às crianças, como também pela falta de
higiene e as péssimas instalações" (ORLANDI: 1985,61). Uma das primeiras rodas
brasileiras foi fundada em 1738 por Romão de Mattos Duarte, na Santa Casa de
Misericórdia do Rio de Janeiro. As cifras de mortalidade variaram de 43,9% entre 1861 e
1874 (ORLANDI: 1985,61) até 70 a 90% (MONCORVO FILHO: 1926,36). Muitas outras
rodas existiram em várias cidades brasileiras como Cabo Frio, Salvador, Recife, Campos e
Porto Alegre.
Havia uma separação entre o sexual e o familiar, o que levava a disfunções
para a família, com a existência de filhos adulterinos e moças de má reputação, e para o
Estado, com o desperdício de forças vivas. Havendo escândalos entre famílias importantes,
colocava-se o filho na roda para preservar-se a honra das moças solteiras. Muitos expostos
eram recolhidos pelos avôs, batizados e criados como "afilhados".
A roda, com o tempo, foi se tornando disfuncional para a sociedade:
afrouxou os vínculos entre pais e filhos, aumentou a proporção de filhos legítimos entre os
abandonados, estimulou as uniões ilegítimas e a indústria de amas. Homens e mulheres
passaram a contar com um apoio seguro às suas transgressões sexuais. Muitas crianças eram
entregues à roda já mortas e algumas mães expunham seus filhos na roda para recebê-los de
volta como nutrizes, mediante salário pago para amamentá-los a domicílio. Esta última
prática, muito difundida na França, foi pouco freqüente no Brasil.
A mortalidade nas rodas ascendeu a partir de 1808 com a chegada da família
real ao Brasil. A cidade recebeu aristocratas e comerciantes estrangeiros, bem como
diplomatas e famílias de fazendeiros. A vinda de mulheres européias, habituadas a entregar
seus filhos a amas mercenárias, estimulou o aluguel de amas pretas. Estas mulheres
aristocratas podiam dispor de tempo livre para bailes, festas e saraus, dedicadas à "vida
mundana da corte" (ORLANDI: 1985,63).
71
Cerqueira considerava a roda um fato em si lastimável e, ainda, "agravado
por um abuso autorizado pelo segredo das rodas — o abandono de filhos legítimos, que não
é menos triste nem menos criminoso que o infanticídio e que constitui um verdadeiro
assassinato moral, tanto mais odioso, quanto aqui se exerce sobre um ser incapaz de reagir e
por aqueles mesmos que lhe devem todo afeto e proteção". Recomendava a substituição das
rodas por asilos (CERQUEIRA: 1882).
Para outro autor estudado, "as rodas constituem uma verdadeira afronta às
leis sociais e humanas e perpetuam um matadouro de inocentes sob o pretexto de valer a
desonra ou de amparar o crime" (MONCORVO FILHO: 1926,44-45).
As rodas foram fechadas no início do século e outras instituições mais
funcionais foram criadas para proteger a infância. Deixa, no passado, o registro da primeira
preocupação social com a vida infantil. A sociedade começava a despertar para o
sentimento da infância.
Um tema insistente na época, em relação com o aleitamento materno, era a
questão da mortalidade infantil. Os médicos consideravam a promiscuidade, a depravação
dos costumes, enfim, os modos de vida das classes populares, percebidas na representação
burguesa do imaginário social como bárbaras, ignorantes, sujeitas à natureza e à tradição,
como fatores que gerariam ambientes insalubres. Os médicos atribuíam à persistência de
hábitos seculares no cuidado com os filhos, refletidos no abandono, na recusa à
amamentação pela mãe, na contratação de amas, na colocação das crianças nos hospícios ou
rodas de expostos, a causa chave da mortalidade infantil. O modo de alimentação era
criticado asperamente pelos médicos como o responsável pelas perdas infantis. A
mortalidade infantil, na sua percepção, tinha uma etiologia familiar.
A preocupação dos médicos com a mortalidade infantil está exposta em
algumas teses, onde descrevem as suas taxas e causas. O que chama a atenção é que as
crianças tinham uma mortalidade excessiva há pelo menos algumas décadas antes da
percepção social do assunto. Para isto podem ter concorrido dois fatos: o surgimento do
sentimento de infância ou o nascimento de uma nova ciência, a estatística, a qual ajudou a
provocar "nos administradores, nos médicos e no público, uma tomada de consciência da
mortalidade infantil e de sua importância" (BOLTANSKI: 1984,55).
Segundo um médico daquele período, "uma guerra mais tremenda que a do
Paraguai, fere-se anualmente e sem tréguas em nossos lares, dizimando vidas destinadas ao
engrandecimento da pátria... É mister que se procure por todos os meios ao alcance da
higiene e da terapêutica, tapar esta voragem onde se precipitam tantas vidas, apenas
72
desabrochadas; ..." (MACHADO: 1911,14). A mortalidade infantil, no Rio de Janeiro,
variava de 190/mil em 1903 a 160/mil em 1909, sendo mais alta que a de Buenos Aires, 88/
mil, e de Roma, 140/mil, e mais baixa que a de Bombaim, 405/mil. Tal cifra deveria ser
mais alta, pois a natimortalidade incluía as crianças que, respirando, falecessem antes do
registro no cartório civil. De qualquer modo, a mortalidade geral vinha baixando no Rio de
Janeiro, principalmente com a melhoria do saneamento básico. Segundo Cerqueira, esta
cifra era de 226/mil em 1875, maior que a dos países europeus, apesar de não haver no
Brasil, tanto quanto na Europa, a miséria e a extrema condensação populacional
(CERQUEIRA: 1882).
Porém, para Teixeira, a mortalidade no Rio era menor que nas cidades
européias. Assim, no Rio, a mortalidade nos menores de 1 ano era de 18,1% nos fins do
século XIX e, na França, era de 22,6%. A mortalidade urbana era maior que a rural. Para ele,
isto se explicava pela prática disseminada em Paris, de se enviar 20 a 25 mil crianças para
serem criadas por amas mercenárias nos campos. "O aleitamento mercenário, que entre nós
é ordinariamente feito em casa dos pais das crianças, não está muito espalhado pelo preço
exagerado porque se alugam as amas" (TEIXEIRA: 1876). Esta maior mortalidade na
Europa estava, provavelmente, relacionada com a expansão do capitalismo e a migração
rural-urbana que a acompanhou, com a aglomeração nas cidades e as péssimas condições de
saneamento.
As causas da mortalidade eram atribuídas, pelos médicos higienistas, também
ao sistema econômico da escravidão e aos costumes sociais dele decorrentes: à
ilegitimidade, à falta de educação física, moral e intelectual das mães e à infração às leis de
higiene pelos vícios contraídos em nossos hábitos e costumes. Um dos autores considera
que "o problema da educação da mulher geralmente falando, é de importância capital
referente ao nosso futuro, porquanto é talvez a única responsável pelos desastres que
possam sobrevir no assunto que compete à geração da nossa raça, e o número considerável
de perdas na infância, que nos servem de testemunho cotidianamente, devemos por ela
responsabilizar" (MACHADO: 1911,48). Outras causas da mortalidade, na percepção
médica, eram a ignorância das mães e o analfabetismo, a desproporção da idade dos
cônjuges e a elevada freqüência de nascimentos ilícitos.
Nas obras dos médicos higienistas, o modo de alimentação, que resulta no
desmame feito sem cautelas, oferecendo-se à criança alimentos cuja digestibilidade e
quantidade não estão em relação às suas forças digestivas, era o grande contribuinte dessas
mortes. Não se conhecia a importância da fervura do leite e a alimentação artificial sem a
73
pasteurização era praticamente mortal à época. As mães que se recusavam a amamentar seus
filhos, delegando esta tarefa às amas mercenárias ou instituindo o aleitamento artificial,
apareciam na percepção cultural e ideológica dos médicos higienistas como os bodes
expiatórios desta situação socialmente produzida.
O povo era percebido pelos médicos como ignorante, com sangue de raças
"inferior" nas veias, não sabendo ter o comportamento moral necessário para uma boa
saúde, em conseqüência de uma educação errada ou de uma falta de educação (NOVAES:
1979,57-58).
Os médicos relatavam que o aleitamento artificial ocorria principalmente no
meio proletário, onde a obrigação dos empregos prejudicava os deveres verdadeiramente
maternais. A industrialização incipiente usava a mão-de-obra feminina, principalmente no
setor têxtil, pagando uma remuneração mais baixa que aos homens. É importante ressaltar
que poucas mulheres casadas trabalhavam fora do lar, se bem que houvesse muitos filhos
ilegítimos.
Os médicos relacionavam outras causas para a mortalidade infantil: o clima,
as temperaturas elevadas e a falta de higiene nas habitações. Os alojamentos operários
considerados, por eles, insalubres, superpovoados, sombrios, úmidos, mal arejados e sujos
levavam, na sua opinião, à promiscuidade, à depravação dos costumes, corrompendo a
moral dos futuros cidadãos da pátria. As doenças que ceifavam as vidas infantis eram
principalmente as diarréias e as broncopneumonias.
Gama analisava as causas da mortalidade em Recife: "as condições de
higiene precárias do mucambo, a condição econômica do seu morador, e sua ignorância,
digamos, a falta de instrução rudimentar no mais amplo sentido, são, ao nosso ver as causas
mais influentes da mortalidade infantil". Condenava o regime de diluir-se o leite com
mingaus de mandioca (GAMA: 1938).
Também em São Paulo, as causas de mortalidade eram percebidas pelos
higienistas como relacionadas com o aleitamento artificial contaminado. Segundo eles, nas
classes operárias era comum a alimentação prematura com alimentos grosseiros e substâncias indigestas. Em sua opinião, a solução era praticar a higiene, não realizada por falta
de instrução ou ignorância das mães (PASCARELLI: 1926).
Os remédios para esta situação eram vistos pelos higienistas na família e,
principalmente, nas mães. E a solução passava pela medicalização da sociedade. "O médico
de família passou a exercer influência considerável sobre a mulher. A mulher passava a ser
uma aliada do médico para uma atuação deste nas modificações de alguns costumes
74
familiares... Mas foi através da criança que o médico conseguiu atuar mais eficientemente
junto das famílias... Com a complexidade, as famílias começavam a se sentir incapazes de
decidirem sozinhas e de protegerem a saúde e a vida das crianças e dos adultos, e o médico
tornava-se imprescindível para resolver os inúmeros problemas familiares" (ORLANDI:
1985,58). Pereira explica este processo do surgimento de novas especialidades, que levou à
medicalização de alguns setores da vida social, considerando que "a especialização
profissional foi um fator significativo no avanço da ciência. Seguindo a tendência da divisão
técnica do trabalho em todos os ramos da atividade humana, ela atingiu igualmente aqueles
que se dedicavam e se dedicam a fazer ciência" (PEREIRA: 1983,66). Desse modo, os
indivíduos passaram a delegar a outrem a responsabilidade sobre a sua saúde provavelmente
porque consideraram os novos saberes e práticas médicas mais eficientes.
Os médicos sugeriram uma série de medidas no sentido de atenuar-se a
mortalidade infantil: construção de maternidades, creches e habitações operárias condignas;
criação de legislação social e caixas de socorro a gestantes e operárias, garantindo-lhes
licença remunerada de metade do salário habitual após o parto. Comentavam que "esta
medida facilita evidentemente o aleitamento natural, porquanto a mãe não é obrigada a
abandonar o filho para ganhar o pão" (MACHADO: 1911,12). Além disso, aconselhavam a
criação de consultórios de puericultura, fiscalização do leite pelo serviço de higiene pública,
distribuição de leite preparado para as crianças de mama, consultórios para exame e
atestação de amas-de-leite. O casamento era também percebido, por eles, como meio de
atenuação da mortalidade infantil e da ilegitimidade. Na sua percepção, a ligação estável
entre homem e mulher contribui para, através do sentimento de família e da intimidade,
frutificar o amor materno, aumentando-se, assim, a população do país.
A mulher tipo ideal surgiu como o modelo higiênico da filha exemplar,
esposa dedicada e mãe amantíssima. Alguns médicos achavam que "para ser mãe não é
bastante ter o filho, é preciso amamentá-lo" e comparavam as mulheres que se recusam
amamentar àquelas que se fazem abortar (MACHADO: 1911,75-76).
O soneto seguinte, de Bastos Tigre, nos fornece uma indicação de como era
socialmente idealizada a figura da mãe nutriz:
MATER NUTRIX
Mãe, ao teu filho dá teu farto seio!
Com o teu leite é a tua alma que lhe dás!
75
Seja, Mãe, teu orgulho e teu enleio
Dar-lhe o pão que em ti própria amassarás!
Não lhe sabe tão bem o leite alheio
Que em suas gotas sangue alheio traz.
- Linfa que escorre do materno veio –
Só teu leite o teu filho satisfaz!
Tiveste a glória da Maternidade,
Prêmio, benção divina do Senhor.
Sê Mãe em toda a pompa e majestade!
Como a planta dá vida à própria flor,
Sê a "Ama" de teu filho que, em verdade,
"Ama" é do verbo "amar"... provém do "amor" (apud GESTEIRA:
1943,77-78).
Aliada do médico, a mãe era vista como o principal elemento de regeneração
do homem, que teimava ainda em permanecer na rua e nos cabarés.
O governo, retratando o abandono social, não se preocupava com a criança.
As iniciativas particulares, de filantropia, nasceram e se desenvolveram, culminando, em
1919, com a criação do Instituto de Proteção à Infância do Rio de Janeiro pelo Dr.
Moncorvo Filho. Hospitais e maternidades foram construídos a partir da iniciativa dos
filantropos.
A filantropia nasceu como a "economia social", que consistia na "direção da
vida dos pobres com o objetivo de diminuir o custo social de sua reprodução, de obter um
número desejável de trabalhadores com um mínimo de gastos públicos" (DONZELOT:
1986,22).
A percepção médica sobre a mortalidade começava a ser auxiliada pelo
instrumental estatístico. Assim, os médicos consideravam que as crianças "que são nutridas
por meio de preparações artificiais apresentam, em geral, uma mortalidade muito superior à
das crianças alimentadas por leite de vaca" (MACHADO: 1911,17). "As perturbações
digestivas são mais raras nas crianças nutridas ao seio materno, que nas amamentadas por
amas mercenárias" (MACHADO: 1911,78). Machado citava, ainda, a estatística do dr.
76
Pinard que mostrou que as crianças alimentadas ao seio por nutrizes à distância tinham uma
mortalidade de 71,5%; as alimentadas artificialmente à distância morriam em 63% das
vezes; as alimentadas com leite artificial às vistas da família sucumbiam em 32% dos casos
e as amamentadas pelas mães tinham uma mortalidade de apenas 15%.
Os médicos recomendavam o aleitamento artificial apenas nos casos em que
a necessidade do desmame surgia após os 4 a 5 meses. Para as crianças menores, nos casos
de impossibilidade do aleitamento, aconselhavam o uso da amamentação mercenária. O
aleitamento mercenário era considerado, por eles, um mal necessário e o artificial era o
gênero de alimentação de maior responsabilidade nas cifras mortuárias.
Uma das preocupações dos médicos era com a importância econômica da
vida infantil. Assim, achavam "mais remunerador, socialmente falando, salvar-se a vida de
uma criança que prolongar-se a de um velho ou mesmo de curar um adulto" (MACHADO:
1911,19).
No discurso médico, a alimentação defeituosa, os alojamentos insalubres e a
falta de cuidados à criança são os fatores que mais influem na mortalidade infantil. As altas
taxas de mortalidade, segundo os higienistas, eram devidas ao abandono das crianças, mas a
causa direta estava relacionada com a falta do aleitamento materno. O uso de amas ou da
alimentação artificial não levou à solução do problema. O abandono das crianças continuou
freqüente até o início do século XX. Foi só após as mudanças nas concepções sobre a
criança, que culminaram com sua revalorização social, aliadas à melhoria das condições
sociais e aos avanços tecnológicos, que o abandono e a mortalidade infantil se reduzem.
5. ALEITAMENTO, NATALIDADE E RIQUEZA NACIONAL:
Uma das preocupações dos médicos higienistas em relação ao aleitamento
materno era a questão do despovoamento, como vimos no item anterior. A elite intelectual
era francamente natalista, o que se explicava devido à escassez de braços provocada com o
fim da escravidão formal e também pela grandeza do território brasileiro que necessitava
ser povoado e colonizado. A população numerosa era associada com a riqueza, a
prosperidade, o progresso e o desenvolvimento.
As práticas familiares que culminavam na recusa ao aleitamento, no aluguel
de amas escravas, no abandono infantil nas rodas e na excessiva mortalidade infantil
poderiam gerar uma redução na mão-de-obra para o capitalismo agrário exportador. Porém,
77
ao lado desta ameaça surgia outra, a prática social de anticoncepção, que começava a
ocorrer na população brasileira dos grandes centros urbanos, em fins do século XIX.
O aleitamento materno deveria ser estimulado, pois era considerado um
poderoso meio de sobrevivência infantil. No imaginário coletivo, só uma sociedade com
crianças sadias e robustas poderia ter adultos fortes para, através do trabalho, contribuírem
para a geração da riqueza do Estado-nação emergente.
As concepções e valores sobre a reprodução humana estão intimamente
relacionados com as idéias sobre o aleitamento e estão, de alguma forma, associados às
relações sociais e econômicas existentes na sociedade em um dado momento. Ao lado do
estímulo à amamentação como meio de reduzir-se a mortalidade infantil, caminhavam os
incentivos à natalidade e as condenações à sua redução voluntária pelos indivíduos. Vamos
analisar, a seguir, como os médicos do início deste século encaravam a questão da
reprodução, da maternidade e o papel da mulher na vida social.
A maternidade era socialmente desejada e estimulada pela maior parte das
mulheres. A mulher estéril era visualizada como infeliz. Para a sociedade, a mulher só se
tornava mulher de fato se vivenciasse a experiência da maternidade.
Costa achava que o instinto da procriação é natural e, por isso, deve ser livre.
Entendia que o direito de gerar ou proibir o nascimento de um filho não pode ficar a cargo
do arbítrio individual, pois pertence à sociedade e procriar não se constitui em um direito
mas em um dever. A restrição voluntária da natalidade é considerada, na sua opinião, um
crime, uma atitude imoral e maléfica à sociedade do ponto de vista econômico, e leva ao
enfraquecimento da nação. Interpretava que "a questão da despopulação, como todos os
problemas sociais, tem a sua fonte produtora, a sua raiz, em uma causa moral" (COSTA:
1913,13).
A necessidade e o desejo de anticoncepção surgiram nas classes ricas e
elevadas, sendo percebidas por alguns médicos como ligadas ao individualismo e ao
egoísmo. Costa condenava que a pretensão de "inutilizar-se um direito para se criar um
prazer, destruir-se uma função para satisfazer uma vaidade" (COSTA: 1913,10). Para ele, a
tirania genital, a tara orgânica que levam à restrição da natalidade, podem conduzir ao
desaparecimento da espécie e da raça.
A utilização de meios artificiais para a redução da natalidade, mesmo o coito
interrompido, são vistos por Costa como homicídios criminosos. A única prática de
anticoncepção permitida pela "religião" e pela "ciência" é a abstenção sexual. Para a Igreja
o ato sexual só tem sentido se visar à procriação.
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Costa discordava dos malthusianistas, que percebiam na "gravidez um
obstáculo ao exercício das profissões e ocupações domésticas e comerciais" (COSTA:
1913,19). Estes apelavam para a liberdade de consciência do ser humano e viam na
anticoncepção um ato de prudência econômica fundado na razão. Segundo eles, as mulheres
têm experimentado um aumento dos encargos pelo aumento progressivo dos filhos.
Porém, os natalistas consideravam que as mulheres queriam apelar para a
redução das gravidezes para satisfazer à vaidade, ao luxo e ao prazer. Isto, no seu
entendimento, favorece o vício e destrói a família. A esterilização cirúrgica era
veementemente condenada.
O Dr. João Costa, na sua tese "A restrição da natalidade", afirma que a
anticoncepção se refletiu na diminuição do número de nascimentos na Europa, a partir de
1870. No Brasil, não se notou até 1913 uma diminuição nas estatísticas de natalidade,
apesar da propaganda anticoncepcional estar presente, principalmente no Rio de Janeiro,
em anúncios de jornais, onde as parteiras profissionais ofereciam seus serviços a clientes:
"Dra. E. de C. Parteira diplomada, com prática dos hospitais de Paris.
Especialista eu moléstias do útero, ovários... Evita a gravidez, sem dor, faz conceber por
processos garantidos, etc..." (COSTA: 1913, 44).
Nota-se nos anúncios que existia a preocupação de se manter o segredo
profissional. Estas práticas não eram permitidas abertamente e ocorriam à margem, às
escondidas. Materiais como camisas-de-vênus, esponjas, óvulos vaginais eram vendidos
com reserva e sigilo por farmacêuticos e parteiras.
Algumas poucas mulheres das classes mais instruídas começavam a ocupar
espaços nas profissões de administração, comércio, advogadas, artistas e comediantes. Estas
mulheres, percebendo as limitações impostas ao exercício profissional e mesmo à sua
liberdade e afirmação pessoal pela gravidez e pelo cuidado com os filhos, tarefas estas
talvez vivenciadas como encargos pesados e ainda consideradas exclusivas da mulher,
recebiam com satisfação as novas práticas de anticoncepção. Já havia, na época, um
movimento de emancipação feminina (COSTA: 1913,49). Tais mulheres eram condenadas
no discurso natalista pois, desejosas de sua independência e desejando o alívio das tarefas
reprodutivas, não hesitavam em aderir a estas práticas anticoncepcionais que surgiam.
Ademais, algumas mulheres imaginavam que a gravidez comprometia a sua beleza.
Para os natalistas, a liberdade das mulheres retarda os seus casamentos,
diminuindo a natalidade. E rebatiam as reivindicações femininas pela igualdade de direito
entre os sexos: para eles, a missão da mulher não se confunde com a do homem, pois ela é a
79
responsável pela maternidade, pela vida da família, do lar e da educação dos filhos; a
mulher, anjo de doçura e de bondade, deve permanecer estranha às cenas da vida pública,
nas quais dominam quase sempre a intriga e a mentira. Na opinião de Costa, a razão faz a
mulher perder o seu feminismo (COSTA: 1913,67-68).
Porém, para as mulheres que participavam deste movimento de idéias, as
funções de mãe eram consideradas como um empecilho à sua emancipação. Não percebiam
que o impedimento não estava na maternidade em si, mas nas condições sociais dadas em
que a maternidade ocorria quando, pela divisão sexual do trabalho vigente na sociedade,
além da geração biológica, a reprodução social dos filhos também era, culturalmente, um
encargo pesado, aceito e executado pelas mulheres. Assim, a reprodução humana era
percebida como óbice à sua liberdade e ingresso no mundo da produção social de valores de
troca — pois há muito as mulheres já estavam engajadas na produção doméstica de valores
de uso, pouco valorizada pela sociedade.
Aparentemente, as mulheres perderam esta batalha inicial pois, posta a
contradição entre as tarefas reprodutivas e o mundo da produção, à primeira vista
inconciliáveis, foram incentivadas a permanecer no interior do lar, cuidando dos filhos e do
futuro da nação, deixando os homens cuidando do presente.
Ocorreu, no entanto, uma reacomodação de valores. As mulheres mais
instruídas e conscientes de seus direitos estavam saturadas e se recusavam a exercer tão
somente a missão de mãe e nutriz, inclusive porque estas tarefas eram exaustivas e não lhes
davam em troca nenhuma recompensa social. Assim sendo, experimentou-se uma
revalorização social da mulher no lar, que passou a ser notada, elogiada e estimulada nestas
funções, até então desconsideradas. Transformou-se, na percepção feminina, o fardo em
desejo.
Outras causas apontadas por Costa como fatores de diminuição da natalidade
são o celibato masculino, a organização defeituosa da família e as más condições do
matrimônio. Condenava o casamento realizado pelo interesse pecuniário dos pais, sem o
amor entre os cônjuges. Para ele, o matrimônio tem o fim procriativo e não se pode usá-lo
para a satisfação do prazer bestial da carne, pois isto pode levar à dissolução do lar, à
prostituição na família, ao adultério e ao divórcio.
A redução da natalidade surgiu como necessidade e desejo nas classes
elevadas. A contaminação pelo luxo, pela coquetterie, pelos prazeres mundanos, além da
carestia e das dificuldades econômicas foram visualizadas por Costa como motivos da
anticoncepção. Apesar de reconhecer que a redução do número de filhos melhora o bem-
80
estar econômico da família e a sua capacidade individual de consumo, condenava o "dogma
autoritário" de se querer restringir a natalidade nos pobres para combater a miséria
(COSTA: 1913,95).
Na época, as mulheres começavam a ingressar como força de trabalho nas
fábricas, recebendo salários mais baixos que os homens, em péssimas condições de higiene,
exploradas e sem regulamentação legal do seu ofício. A sua inserção na produção era
percebida, por algumas delas, como um obstáculo à maternidade, à criação dos filhos e à
sua dedicação ao lar. Assim, Costa entendia que "elas ou restringem as suas funções e
aniquilam os seus instintos maternos, ou então descuidam-se das suas obrigações e
esquecem os seus deveres" (COSTA: 1913,86). A mulher operária era obrigada a deixar o
filho em casa, isolado, ou a entregá-lo aos cuidados de uma conhecida, pois não havia nos
estabelecimentos fabris, abrigos para as crianças.
Os médicos rejeitavam terminantemente o livre-arbítrio das mulheres no
sentido de querer ou não a procriação. É interessante que, hoje, o mesmo argumento é
utilizado para reforçar as campanhas de controle de natalidade e planejamento familiar. Os
indivíduos voltam a ter o direito de decidirem quantos filhos desejam ter, auxiliados agora
por meios tecnológicos mais complexos. As mulheres, pretensamente livres para esta
decisão em nível de discurso, permanecem na prática atreladas a outros valores que surgem
na esfera cultural. O desejo de ser mãe é transformado na escolha da "oportunidade
consciente da maternidade". Tal desejo, existente no imaginário social, não seria outra
forma disfarçada de arbítrio? O direito de não ter filhos não se transformaria no dever de
não tê-los? Além do mais, o cuidado com os filhos, que talvez seja vivido como um fardo,
em quase nada foi aliviado, pois esta tarefa continua restrita ao mundo feminino. A
sociedade permanece avessa à divisão das tarefas domésticas entre homem e mulher e à
socialização da atenção à infância.
Os remédios para evitar-se a restrição da natalidade eram vários, segundo
Costa. Devia-se instituir a proteção legal à mulher grávida e à primeira infância, instalandose casas de maternidade e creches nos locais de trabalho e regulamentando-se as condições
de trabalho feminino nas fábricas. Em sua opinião, a sociedade e os poderes públicos eram
os culpados pela pouca importância que se dava à criança que nascia e por transformar a
maternidade das mães pobres em "um tormento, uma verdadeira morte em vida" (COSTA:
1913,124). Conclamava à fundação de institutos de proteção à infância.
O Estado foi, pouco a pouco, percebendo a necessidade de fornecer uma
assistência financeira às mães pobres para amparar e financiar os nascimentos: surgiram
81
assim o salário-família e as sociedades protetoras da infância.
Outra necessidade que viam os médicos higienistas daquele tempo era de se
proteger legalmente a mãe solteira para que se evitasse o abandono, o aborto ou o
infanticídio dos filhos ilegítimos. Achavam que se devesse, ainda, punir o aborto criminoso,
prática comum em clínicas de médicos e parteiras, propagandeadas em anúncios de jornais e
ocultadas pelo segredo profissional. O aborto só era medicamente permitido para salvar-se a
vida da mãe.
Percebe-se, nos autores estudados, a preocupação com a melhoria das
habitações para tornar o lar e a vida íntima agradáveis ao operário e para que este evite a
taberna e a rua. Costa acusa o materialismo pela restrição da natalidade: os indivíduos não
mais obedecem à lei divina expressa no livro bíblico do gênesis: "crescei-vos e multiplicaivos". Além disso, o amor conjugal é, para ele, indispensável para a felicidade dos esposos e
para o estímulo à natalidade.
As representações de alguns agentes sociais consideravam que o operário no
lar higienizado poderia desenvolver o amor conjugal e procriar. E, depois do nascimento dos
filhos, nesse ambiente normatizado da vida privada, floresceria o amor materno. A mãe
amamentaria o seu filho e com isto se diminuiria a mortalidade infantil. Os indivíduos
seriam felizes e a nação tornar-se-ia próspera e rica no imaginário burguês do capitalismo
brasileiro no início do século XX.
82
CAPÍTULO IV — O ABANDONO DO ALEITAMENTO
1. A SOCIEDADE URBANO-INDUSTRIAL — O URBANISMO COMO MODO
DE VIDA E SUA RELAÇÃO COM O ALEITAMENTO:
No início do século, a sociedade brasileira começou a apresentar novas
transformações que se concretizaram na passagem da economia agrário-exportadora para a
sociedade urbano-industrial. O café ainda dominava o cenário econômico e as cidades
começavam a se organizar, mas constituíam, ainda, apêndices do setor rural. Foi nas
décadas de 20 e 30, com a crise do café, que os capitais agrários se dirigiram para financiar
a acumulação industrial, principalmente em torno da cidade de São Paulo, que se tornou o
pólo dominante da economia. A industrialização trouxe como seu corolário dois processos
que vamos analisar a seguir: a urbanização e a consolidação do modo de produção
capitalista, que vai destruindo, pouco a pouco, as antigas relações de produção. "A ascensão
da burguesia e a imposição da sua hegemonia supõem a instituição de um novo imaginário
social, de novas formas de percepção cultural e de uma nova sensibilidade" (RAGO:
1985,169).
Na análise do processo de urbanização e industrialização da sociedade
brasileira, devemos entender que cada cidade teve causas diversas para a explicação do seu
crescimento. Não é nosso objetivo estudar tais processos, pois eles fogem ao âmbito deste
trabalho. Pretendemos, tão somente, traçar as características gerais e as transformações que
acompanham o processo de constituição do urbanismo.
É muito comum se dizer que o fenômeno da urbanização esteja, de alguma
forma, relacionado com o abandono do aleitamento natural, porém há sociedades que,
mesmo sofrendo os processos de industrialização e urbanização, permanecem amamentando
as suas crianças. Se bem que tal processo possa ter certa influência, devemos também atentar
para o fato de que, na década de 80, estamos percebendo o retorno ao aleitamento natural
exatamente entre as mulheres mais ricas e instruídas dos grandes centros urbanos, como, por
exemplo, a cidade de São Paulo. Nesse caso, a evolução das mentalidades sobre o
aleitamento poderia guardar uma evolução relativamente autônoma em relação aos
processos sociais mais amplos, não estando ligada, necessariamente, ao fenômeno da
urbanização. Por outro lado, é de se supor que as transformações urbanas, alterando diversos
setores da vida social, tendem a se refletir de modo desfavorável sobre a amamentação.
Analisaremos, a seguir, essas mudanças.
83
Embora a cidade seja o local característico do urbanismo e centro de
irradiação de idéias e práticas associadas ao modo de vida urbano, tal modo de vida não se
confina às cidades e atinge outros núcleos populacionais, como os rurais. Este processo tem
sido descrito como a "urbanização do campo". A cidade passou a ser o pólo mais dinâmico
da vida econômica, política e cultural, colocando sob a sua órbita de influência, a maioria
da população do país. A difusão do modo de vida urbano se faz mais fácil e rapidamente
pela proximidade geográfica, pelos transportes e meios de comunicação de massa.
Apesar de dominante, o modo de vida urbano não eliminou completamente
os modos de associação e relações humanas anteriores, mais tipicamente "rurais", de
culturas tradicionais ou de folk8, que se acham ainda presentes e atuantes no intercâmbio
social.
Wirth define a cidade como um "núcleo relativamente grande, denso e
permanente de indivíduos socialmente heterogêneos" (WIRTH: 1967,104). A presença de
um grande número de pessoas no mesmo espaço, leva à maior variabilidade individual,
provoca a ausência de um conhecimento pessoal íntimo, segmenta as relações humanas que
se tornam anônimas, superficiais e transitórias. A densidade de população envolve
diversificação e especialização, coincidência de contato físico estreito e relações sociais
distantes, um padrão complexo de segregação e a predominância do controle social formal.
"A heterogeneidade tende a quebrar estruturas sociais rígidas e a produzir maior mobilidade,
instabilidade e insegurança, e a filiação dos indivíduos a uma variedade de grupos sociais
opostos e tangenciais com um alto grau de renovação de seus componentes. O nexo
pecuniário tende a deslocar as relações sociais, e as instituições tendem a atender às
necessidades das massas em vez do indivíduo" (WIRTH: 1967, 122).
Passo a passo com uma relativa despersonalização do indivíduo, o ambiente
urbano produziu uma influência niveladora, ajustando as facilidades e instituições às
necessidades da média das pessoas, promovendo, em certa medida, uma socialização da
oferta de serviços coletivos e do consumo, constituindo aquilo que se chamou de "era da
sociedade de massas". E, "embora a sociedade tenha derrubado as rígidas linhas de casta da
sociedade pré-industrial, aguçou e diferenciou grupos de renda e status" (WIRTH:
1967,118).
O modo de vida urbano se caracteriza pela substituição de contatos primários
8
cultura de folk — é pequena, homogênea, isolada; economicamente auto-suficiente e de tecnologia simples;
com divisão do trabalho e escrita rudimentares; comportamento padronizado, em bases emocionais;
tradicional, espontânea, não crítica e com forte senso de solidariedade grupal; mudança social e cultural
lenta (LAKATOS: 1986,358).
84
por secundários, pelo enfraquecimento dos laços de parentesco, pelo declínio do significado
social da família, pelo desaparecimento da vizinhança e pela corrosão da base tradicional da
solidariedade social. Hoje, "a cidade não conduz ao tipo tradicional de vida familiar,
inclusive a educação das crianças e a manutenção do lar como local em torno do qual giram
as atividades vitais. A transferência de atividades industriais, educacionais e de recreação
para instituições especializadas fora do lar, privou a família de algumas de suas funções
históricas mais características" (WIRTH: 1967,118).
A cidade passou a ser um centro de difusão do novo estilo de vida urbana. Os
indivíduos sofreram um processo de ressocialização e mudança de valores tradicionais,
alterando-se os padrões de constituição da família, a sociabilidade baseada na parentela e na
vizinhança cedeu lugar a relações mais individualizadas e de caráter impessoal. O indivíduo
passou a gozar na cidade de uma maior liberdade de controles pessoais e emocionais de
grupos íntimos. As pessoas que vieram dos núcleos agrários sofreram uma desorganização
dos seus valores tradicionais e, inadaptados ao novo ambiente de vida, passaram a
experimentar um processo de aculturação com a sobrevivência de valores "tradicionais" e
"modernos" agregados ou integrados. As pessoas precisavam se adaptar ao desempenho de
novos status e "papéis", agora multiplicados e segmentados. Com a desorganização
cultural, fenômeno de ocorrência normal nas transformações sociais, surgiu, no discurso
ideológico, o antagonismo entre o velho e o novo, o arcaico e o moderno. As comunicações
enfatizaram a adoção de hábitos novos mais compatíveis com as recentes formas de viver.
As pessoas das classes dominadas desejavam incorporar hábitos e valores próprios das
classes dominantes. Surgiram as técnicas de marketing e propaganda, inaugurando a era da
sociedade de consumo de massa.
O novo local de vida das pessoas passou a ser a cidade com um estilo de vida
novo e em constante transformação. A urbanização foi responsável pela generalização de
"novas" necessidades, promovendo a aspiração por um novo padrão de vida quantitativa e
qualitativamente mais elevado, incluindo o consumo de bens "materiais" e "não-materiais".
(PEREIRA: 1979,59-70). O efeito-demonstração, a rápida circulação de idéias, a multiplicação de contatos e os meios de comunicação de massa favorecendo a divulgação de
informações, gerou um aumento na demanda por bens e serviços (CEPAL: 1979,42-43). É
possível que tais transformações tenham contribuído para um decréscimo na prevalência do
aleitamento e para a assimilação de valores novos como a alimentação com mamadeira, tida
como mais "moderna" e "urbana".
Observamos o aparecimento de novas redes de solidariedade, não mais
85
baseadas no parentesco nem em grupos locais, mas em áreas de interesse, fornecidas através
de instituições coletivas e do relacionamento mais orgânico e menos mecânico dos
indivíduos. O desaparecimento das antigas redes de solidariedade, que as mulheres
procuravam como apoio, criou obstáculos ao aleitamento. No ambiente urbano, muitas
mulheres poderiam ter se sentido "perdidas". As instituições coletivas de apoio à maternidade e amamentação não se desenvolveram no mesmo ritmo do desaparecimento dos
padrões de solidariedade baseados na família. Esta demora na adaptação das instituições aos
progressos da base material da sociedade que acompanhou a urbanização foi, sem dúvida,
um dos fatores responsáveis pelo não-aleitamento.
Antes, o contato de pessoas vindas do meio rural com os citadinos antigos
(tidos, normalmente, como mais ricos, poderosos, instruídos, modernos etc) poderia ter
induzido, nas mães dessa procedência, o aleitamento artificial. Hoje, diferentemente, as
idéias provindas do meio médico, a respeito do aleitamento materno vão atingir essas mães
menos informadas através das camadas socioculturais consideradas como superiores pelo
comum da população.
No próximo item veremos como se alteraram os padrões de constituição da
família e o papel de mãe, acompanhando as transformações urbano-industriais.
2. A FAMÍLIA NUCLEAR VOLTADA PARA A INTIMIDADE — A CRIANÇA
E A MULHER COMO CENTROS — O AMOR MATERNO:
A ressocialização de um operariado, em grande parte oriundo da zona rural,
ou urbana, mas ainda inadaptado às novas condições socioeconômicas, exigiu a imposição
do modelo imaginário de família criado pela sociedade burguesa. Neste período, nasceu a
polícia médica, que tinha por objetivo integrar a população ao novo aparelho de produção
capitalista. As cidades insalubres precisavam ser controladas no seu desenvolvimento
urbano. A medicina funcionou como um poderoso mecanismo de controle social,
medicalizando a família através da puericultura. A família foi redefinida. Passou-se da
família extensa à família nuclear. Construiu-se um modelo imaginário de mulher, voltada
para a intimidade do lar. A criança passou a ser objeto de cuidados e a freqüentar a escola.
Despertou-se nas famílias o sentimento de "intimidade".
A educação punitiva e repressiva foi substituída pela idéia de uma educação
preventiva. Com o nascimento das cidades industriais não se podia resolver os problemas de
86
desordem pela repressão, pois a economia liberal necessitava conservar e formar população.
Por outro lado, os antigos vínculos de escravidão já não atrelavam mais os indivíduos à
nova ordem social. Foi necessário despertar nos indivíduos o desejo pela mudança, convencê-los pela persuasão, afrouxar os controles e torná-los mais suaves e eficazes. O modelo
higiênico nasceu fruto da síntese e da contribuição de diversos segmentos sociais, dentre os
quais se destacaram os médicos. Se as normas higiênicas em relação à criação, ao trabalho e
à educação das crianças surtiram efeito é porque elas ofereciam a estas e, correlativamente
às mulheres, a possibilidade de uma autonomia maior... (DONZELOT: 1986,55-58). Ao
mesmo tempo em que se tutelou a família em alguns pontos, se ofereceu a esta maiores
possibilidades de autonomia. Quando a autonomia seguir o rumo traçado pela sociedade a
família viverá em seu isolamento e não será interpelada pelos poderes. Quando surgirem
crises poderá consultar os especialistas e, quando o seu comportamento chegar ao extremo
da desordem, só aí ela sofrerá interferências punitivas.
A família necessitava expulsar os estranhos (amas-de-leite, criados,
domésticos e parentes mais distantes) para que pudesse se voltar para o lar. A moradia
higiênica, aconchegante, o "lar... doce lar", surgiu em torno da criança que necessitava ser
preservada e requeria cuidados médicos. Reforçou-se o modelo de feminilidade da esposa,
dona de casa e mãe de família. Estimulou-se a mulher a realizar, predominantemente,
tarefas no espaço da vida doméstica e a exercer a função considerada sagrada da
maternidade. Segundo Rago, o "modelo de mulher simbolizado pela mãe devotada e inteira
sacrifício, implicando sua completa desvalorização profissional, política e intelectual...
parte do pressuposto de que a mulher não é nada, de que deve esquecer-se deliberadamente
de si mesma e realizar-se através dos êxitos dos filhos e do marido" (RAGO: 1985,65). No
entanto, algumas contradições ocorreram entre os intentos 'burgueses e a prática social. As
mulheres passaram a integrar uma pequena parcela da força de trabalho industrial e do setor
de serviços como professoras primárias, enfermeiras, datilógrafas, telefonistas, costureiras,
o que lhes desviava tempo e atenção do lar. Para Margareth Rago, pouco a pouco, esses
valores foram sendo introjetados pelas mulheres que passaram a sentir o "anátema do
pecado, o sentimento de culpa diante do abandono do lar, dos filhos e do marido... o
movimento operário, por sua vez, liderado por homens, embora a classe operária do começo
do século fosse constituída em grande parte por mulheres e crianças, atuou no sentido de
fortalecer a intenção disciplinadora de deslocamento da mulher da esfera pública do
trabalho e da vida social para o espaço privado do lar" (RAGO: 1985,63). A respeito desta
colocação de Rago, não podemos descartar a possibilidade de um grande número de
87
mulheres daquela época, e hoje ainda, desejarem, culturalmente, serem dispensadas do
trabalho fora do lar. Por este ponto de vista, a luta do movimento operário pretendia que se
pagasse um salário justo ao homem para deixar a mulher em casa, cuidando da família, o
que poderia corresponder aos desejos de ambos. Se isto for uma visão socialmente
predominante no período, não se pode atribuir este sentido conspiratório do movimento
operário em relação às mulheres.
Na opinião de Jurandir Costa, tradicionalmente presa ao serviço do marido,
da casa e da propriedade familiar, a mulher viu-se, repentinamente, elevada à categoria de
mediadora entre os filhos e o Estado, a criadora das riquezas nacionais (COSTA: 1983,73).
Assistiu-se de um lado, à emancipação feminina do poder patriarcal e de outro à colonização
da mulher pelo poder médico (COSTA: 1983,255).
A família "íntima" e o indivíduo "psicologizado", com capacidade de
introspecção, privacidade familiar e conforto doméstico progrediram juntos, no mesmo
compasso (COSTA: 1983,98). Surgiu o indivíduo, de personalidade própria, da antiga
anomia familiar onde as pessoas tinham papéis sociais apenas derivados dos seus status de
sexo, idade e classe social. A família passou a ser um centro de afeto e comunicações
sociais, antes diluídas em um ambiente mais denso, que proibia o isolamento e a intimidade
familiar. Não havia quase momentos de solidão.
Os médicos condenavam a "criminosa leviandade com que é costume se
tratarem as coisas da criança" (URCULU: 1882,3). A sociedade da época fazia muito pouco
caso da infância.
Anteriormente, a criança era assumida pela coletividade e tinha pouca
valorização social. O nascimento de uma nova visão da infância acompanhou a idéia de que
os encargos de criação dos filhos seriam tarefas femininas. A mulher passou a arcar com esta
nova responsabilidade social, às vezes em detrimento de si mesma.
O sentimento de infância é uma expressão particular do sentimento mais
geral de família. Os progressos do sentimento de família seguiram os progressos da vida
privada, da intimidade doméstica e da destruição da antiga sociabilidade. Uma parte das
energias da família e, principalmente, da mulher, passaram a ser consumidas na promoção
da criança.
Para alguns, o desperdício de crianças, o infanticídio que existia nos séculos
passados era uma forma social de controle da natalidade excessiva. Por outro lado, esta
prática poderia ter uma justificativa social, pois havia uma ambigüidade sobre a vida da
criança, como existe hoje a ambigüidade sobre a vida do feto. A propósito, não poderíamos
88
creditar à persistência deste sentimento a indiferença demográfica, provavelmente ainda
existente no Nordeste brasileiro e o costume de enterrar-se as crianças no quintal como
animais ou anjinhos9?
Ariès pergunta se a queda da mortalidade infantil, que se observou a partir do
fim do século passado, não seria um componente da constelação de fatores responsáveis
pela valorização da infância. Apesar da relativa alteração na percepção da infância, o
descaso com que os poderes públicos tratam a vida da criança, a escassez de investimentos e
as soluções paliativas que se dão à questão da mortalidade infantil até hoje, mostram que a
sociedade valoriza mais a criança da elite. A criança dos guetos e favelas continua tendo
menor valor social. Seria isto também um reflexo da "indiferença demográfica", que pode
ser resultante de altas taxas de natalidade e mortalidade infantil?
Ariès percebe uma ligação entre o sentimento de família, infância e o
sentimento de classe. Para ele, "chegou um momento em que a burguesia não suportou mais
a pressão da multidão, nem o contato com o povo. Ela cindiu: retirou-se da vasta sociedade
polimorfa para se organizar à parte, num meio homogêneo, entre suas famílias fechadas, em
habitações previstas para a intimidade, em bairros novos, protegidos contra toda
contaminação popular. A justaposição das desigualdades, outrora natural, tornou-se-lhe
intolerável... o sentimento de família, o sentimento de classe... surgem portanto como as
manifestações da mesma intolerância diante da diversidade, de uma mesma preocupação de
uniformidade" (ARIÈS: 1981,279).
"No Brasil, as famílias burguesas vão, cada vez mais, se preocupando com os
filhos, a ponto de os pais se tornarem angustiados e ansiosos ante qualquer sinal de doença
nas crianças" (ORLANDI: 1985,117).
Rago descreve a imagem feminina constituída pelo imaginário operário
anarquista: "romântica, sensível, ingênua e explorada, a figura da mulher é associada à idéia
da flor frágil e desamparada, vítima do capitalismo vil, corruptor e assassino, "máquina
inconsciente" destinada a trabalhar e a procriar, ao contrário do homem, dotado de razão,
símbolo da força e da coragem" (RAGO: 1985,66).
O trabalho era percebido, por alguns setores sociais, como a antítese do lar,
9
A existência do sentimento de fatalidade e negligência no Nordeste brasileiro vem sendo estudado e tem
gerado controvérsias. A propósito, Nations & Rebhun, através de entrevistas intensivas e observações,
chegaram à conclusão de que a não obtenção de cuidados médicos por parte das mães se deve a barreiras
geográficas e burocráticas e ao precário acesso aos serviços de saúde e não a atitudes fatalistas ou de
desleixo. Consideram que os sentimentos maternos em relação à morte infantil constituem uma resposta
cultural de adaptação à mortalidade excessiva e traduzem crenças e padrões culturais baseados em um
sistema folk católico de ética. Esses valores dirigem as decisões das mães sobre os sistemas de classificação
utilizados e os cuidados oferecidos à criança doente (NATIONS & REBHUN: 1988,159).
89
local onde a mulher se corrompe e onde se destrói a família. A mulher continuou sendo
comparada à ingenuidade da criança, infantilizada, precisando de proteção. A imagem da
mãe-sacrifício e da criança-inocência completavam-se numa mesma construção simbólica.
O redirecionamento da mulher trabalhadora de volta ao lar e a imagem
feminina de criadora e reprodutora foram idéias praticamente consensuais na sociedade da
época. Pensava-se que a mulher precisava ser protegida da brutalidade da máquina e a
criança necessitava de cuidados. Vê-se que muitos aspectos da moral burguesa foram
introjetados na consciência operária. Embora fatores estruturais, como a concorrência da
mulher no emprego fabril com o homem, possam ser cogitados como motivadores deste
comportamento,
é
na
superestrutura
ideológica
e
na
cultura
que
residem,
predominantemente, as causas dessa desvalorização feminina. Essa trajetória familiarista
"não detém a entrada das mulheres na força de trabalho, mas a organiza em moldes que
introduzem na carreira feminina o princípio de uma promoção que passa pela aquisição de
uma competência doméstica. O trabalho industrial das jovens, das mulheres solteiras e das
esposas pobres é reconhecido como uma necessidade ocasional e não como um destino
normal" (DONZELOT: 1986,42). A mulher se orienta para profissões administrativas,
assistenciais e educativas que correspondem melhor à sua vocação "natural". O trabalho
doméstico da mulher substitui o dote. Diminui-se uma despesa social com um acréscimo de
trabalho não remunerado.
Não concordamos com a tese que advoga que o capitalismo teria engendrado,
para seu uso, a forma de família que lhe convinha, ao atribuir às mulheres o trabalho
doméstico. Como se isso fosse uma novidade histórica e como se a família constituísse uma
forma social definitiva. "Nenhuma prática social concreta não é jamais a pura expressão ou
manifestação de uma prática social única... Partir, mais de uma vez, das relações sociais é,
de início, romper com os pontos de vista unilaterais, a partir dos quais a família é apenas um
instrumento do capital e, como tal, patrulhada pelos aparelhos estatais, constituída, definitivamente, para a necessidades da produção e por elas incessantemente reproduzida. Assim, a
única dinâmica seria a sua submissão progressiva aos dispositivos que o modo de produção
capitalista desenvolve para colocá-la sob seu controle" (COMBES & HAICAULT:
1986,32-34) .
Como as mulheres reagiram a estas tentativas de atribuir à mulher o papel
preponderante de mãe e dona de casa? Algumas combateram mas foram silenciadas pelo
discurso dominante. Outras se resignaram ou até concordaram com seu novo papel. E
algumas resistiram, talvez, na recusa ao casamento, à maternidade, à amamentação ou pela
90
prática do aborto.
Passo a passo com esta tentativa de redirecionamento da mulher para o
interior do lar, assistiu-se a uma mudança de comportamento social em relação à infância e
à maternidade. As mortes infantis eram atribuídas pelos médicos ao modo de alimentação e
ao descuido em relação à criança. A imagem da criança como pecadora, derivada da idéia
religiosa do pecado original foi desaparecendo para dar lugar à imagem da criança como ser
inocente e puro, necessitando de proteção. Muitos pais eram frios em relação à criança para
não alimentar a sua malignidade natural. Imaginava-se que a ternura poderia estragar e
viciar a criança. A amamentação voluptuosa era considerada pelos médicos um prazer
ilícito que a mãe se proporcionava e que causava a perda moral da criança. A sociedade,
que antes considerava a criança como um estorvo, passou a sentir pena dela, e a sua morte
prematura, começou a ser notada e vivenciada com o choro e a dor.
Acompanhando estas mudanças, surgiu na literatura médica do início do
século a preocupação com o carinho à criança. É o que se deduz de Icard: "o fato de ser mãe
se traduz por três atos: no primeiro nutris vosso filho com vosso sangue, no segundo com
vosso leite, no terceiro com vossos afetos" (apud BORBA JÚNIOR: 1913,36).
Boltanski percebe que a representação de infância presente hoje nas classes
populares é aquilo que Ariès chamava de "paparicação" e que era vivenciada pelas classes
superiores no século XVII. Este sentimento pressupõe a criança como um animalzinho,
intermediário entre o ser e o não ser. Porém, a representação da infância nas classes
superiores, na década de 80, já considera a criança como um ser completo, com sentimentos
e uma personalidade .
A divisão do trabalho passou a atribuir a tarefa de maternagem quase
inteiramente à mãe e surgiu a imagem social do amor materno perfeito que tudo suporta em
benefício do seu filho, com caráter ascético, de devoção e doação. Novamente se percebe
que os valores culturais permanecem impregnados de imagens religiosas, apesar da
secularização aparente dos costumes.
Surgiu o discurso ideológico do aleitamento materno como um instinto
natural, inato, biológico. A sociedade passou a não admitir o abandono da criança pela
mãe, expulsou a ama-de-leite das residências, incentivou o aleitamento materno e decretou
a imutabilidade do sentimento maternal.
Badinter contesta a tese do amor materno como um instinto no seu livro e
relativiza o sentimento maternal. Percebe que este sentimento varia segundo a cultura,
ambições e frustrações da mãe. É um sentimento humano como outro qualquer e, por isso,
91
incerto e frágil. Considera que uma mulher tem o direito de não querer procriar, de não
amamentar e até mesmo de não querer criar o seu filho, de não amar o seu filho.
Exemplifica sua tese, mostrando sociedades primitivas, nas quais se encontravam pais
maternais e mães cruéis, para ilustrar a flutuação deste comportamento. Percebe que é em
função das necessidades e dos valores dominantes de uma dada sociedade que se
determinam os papéis do pai, da mãe e do filho. E pergunta: "não teremos, com excessiva
freqüência, tendência a confundir determinismo social e imperativo biológico?" Prossegue,
argumentando: "os valores de uma sociedade são por vezes tão imperiosos que têm um peso
incalculável sobre os nossos desejos... a diferença entre a fêmea e a mulher reside
exatamente nesse 'mais ou menos' de sujeição aos determinismos. Essa originalidade é
própria do ser humano e a natureza não sofre tal contingência... o amor, a moral, os valores
morais e religiosos condicionam a mulher a cumprir o papel de mãe" (BADINTER:
1985,16-17).
Algumas mulheres da época percebiam a maternidade e a criadagem como
empecilhos à sua liberdade e emancipação. Os homens, para não perderem o seu poder,
tentaram reconduzir a mulher ao seu papel de mãe (BADINTER: 1985,100). A libertação ao
papel de esposa e mãe era visto, por algumas mulheres, como o modelo estereotipado de
mulheres liberadas à época, modelo esse que é hoje, o da liberada sexualmente.
No discurso de remodelação de valores, a maternidade deixou de ser um
dever para se tornar uma atividade nobre e invejável. Ofereceram-se recompensas ao
casamento e à maternidade: "uma relação mais sólida entre os membros da família, o amor
do marido, a mulher elevada à condição de figura central de seu território. De outro lado as
punições: sentimento de culpa, frustração, os castigos da natureza contrariada, os perigos
físicos da não-procriação ou da retenção do leite..." (RAGO: 1985,80). A amamentação
passou a ser uma atividade valorizada, as mulheres foram consideradas como responsáveis
pelo futuro da nação e pela felicidade da família. O aleitamento passou a ser visto como um
grande prazer para a mulher e um fator indispensável para a felicidade dos filhos. Mais ou
menos, as mulheres acabaram aceitando algum sacrifício em detrimento de si mesmas, para
o bem da prole. A libertação da criança se fez, em parte, com a alienação da mulher-mãe. A
mãe precisa, agora, estar sempre em casa para vigiar os filhos. A falta de amor materno
passou a ser considerado um crime imperdoável. A mulher com esta transformação
amplificou o seu poder em detrimento da autoridade paterna. Segundo Badinter, a
propaganda não convenceu todas as mulheres mas lhes fez sentir responsabilidades e culpa
quando não podiam assumir seus deveres. Na sua opinião, as que se recusaram a obedecer
92
aos novos imperativos, sentiram-se obrigadas a trapacear e a simular (BADINTER:
1985,235).
Para Donzelot, "o advento da família moderna centrado no primado do
educacional não é, portanto, efeito da lenta propagação de um mesmo modelo familiar
através de todas as camadas sociais, segundo a lógica de sua maior ou menor resistência à
modernidade". Há duas linhas distintas: a família burguesa se retrai para o interior e expulsa
os serviçais e a família popular se amolda a partir de uma redução de cada um de seus
membros aos outros, numa relação circular de vigilância, contra as tentações do exterior, o
cabaré, a rua (DONZELOT: 1986,46-47). Para a burguesia o perigo estava dentro de casa e
para o trabalhador o perigo estava fora. Porém, ambos os modelos convergem para a
intimidade.
3. A CONSOLIDAÇÃO DA PUERICULTURA:
Neste item, vamos nos deter na análise da puericultura, analisar o seu
discurso emergente e descrever as funções que passou a desempenhar na sociedade. Vamos
considerar as articulações da puericultura com a realidade social, estudando suas
motivações e temas fundamentais.
A constituição da puericultura, enquanto objeto de preocupação médica,
surgiu no bojo de uma série de mudanças socioculturais proporcionadas pelo advento do
capitalismo, que trouxe consigo a urbanização e a industrialização. Para Rosen, ocorreu
uma reorientação da medicina no sentido de um novo modo de articulação com as
estratégias políticas e econômicas da nova estrutura de produção que se consolidaria (apud
NOVAES: 1979,19).
A expansão do modo de produção capitalista trouxe consigo várias
mudanças: a nova ordem social capitalista aprofundou a divisão social do trabalho e elevou
o nível das forças produtivas a alturas nunca anteriormente atingidas. Tornou os indivíduos
mais interdependentes, exercendo atividades complementares, estimulou e desenvolveu o
desejo de cooperação. A produção individualizada de bens e serviços foi cedendo lugar,
paulatinamente, à produção coletiva, fazendo surgir, cada vez mais, as especializações.
Cada parcela da cultura passou a se constituir em um saber autônomo, muitas vezes
codificado através de estatutos científicos. Por causa de tais transformações, a medicina
incorporou como seu objeto de saber e atuação a mulher e a criança. "A conquista desse
93
mercado pela medicina implicava, portanto, uma destruição do império das comadres, uma
longa luta contra suas práticas consideradas inúteis e perniciosas" (DONZELOT: 1986,24).
Novos valores surgiram, outros foram redefinidos, nasceram novas
modalidades de controle social. Dentre as mudanças culturais, pode-se destacar a
constituição da família nuclear moderna, o sentimento da infância, a redefinição dos papéis
masculino e feminino na sociedade e o sentimento de classe. Nasceram as representações
simbólicas da criança como "reizinho da família", da mulher como "rainha do lar", do
homem como "provedor material" e dos criados como "estranhos". Estas fantasias e
imagens culturais foram, pouco a pouco, se internalizando no imaginário coletivo e tomando
as formas de "realidade".
No Brasil, as condições para a emergência da puericultura foram dadas com o
nascimento das indústrias, o crescimento das camadas médias urbanas, a abolição da
escravatura e a chegada de uma grande massa de imigrantes (NOVAES: 1979,41). Novaes
discute que a puericultura chegou ao Brasil antes da consolidação do capitalismo burguês e
da formação do proletariado, sem representar uma necessidade sentida pela sociedade.
Considera que "na história brasileira, muitas idéias estiveram 'fora do lugar'. Isto é,
chegaram as idéias mas não a forma de organizar a produção econômica que lhes dá
sentido" (NOVAES: 1979,50-52).
A puericultura chegou, em parte, devido à imitação da puericultura francesa,
e também porque o Brasil já começava a se industrializar e a tomar consciência da
necessidade de proteger sua força de trabalho (L0Y0LA: 1983,41).
A puericultura surge, como idéia, ainda durante o Império mas se consolida
enquanto prática social já durante a República. Foi só em 1890 que a puericultura se
transformou em um saber autônomo, com um corpo coerente de conhecimentos teóricos e de
regras práticas. Os conselhos se transformaram em ordens. Foi necessário "substituir as
maneiras de agir habituais regidas pelo costume, transmitidas pela tradição, por regras, por
maneiras
de
agir
obrigatórias
que
se
libertassem
da
arbitrariedade
indivi-
dual" (BOLTANSKI: 1984,22). A partir desse instante, passou a existir no discurso médico
apenas uma lei legítima para cuidar do bebê. Todas as demais práticas não mais pertenciam
à medicina oficial. A puericultura nascente era autoritária, dogmática e pretensamente
racional.
A mudança no tom da puericultura, onde, ao lado de conclusões mais
"científicas", o exagero de razões morais foi deixando lugar ao estabelecimento de regras
curtas, concisas, para serem cumpridas sem questionamentos, é notada nas obras médicas
94
do fim do século passado e início deste. Esta fase poderia ser denominada de fase de
transição da puericultura.
Para Donzelot, a transformação do conselho em ordem se deveu ao fato de
que, "após Lavoisier, a concepção maquinística do corpo não se sustenta mais: com ela
desaparece a congruência perfeita entre doutrina médica e moral educativa. Os médicos não
dispõem mais de um discurso homogêneo, mas sim, de um saber em pleno movimento e são
levados a separar taticamente o registro dos preceitos sobre a higiene do registro da difusão
de um saber" (DONZELOT: 1986,22).
A puericultura não conhece a relatividade do normal. Para ela o normal é
constante e ahistórico. O saber médico determina os padrões de normalidade e tenta ditar as
atitudes dos sujeitos em relação ao próprio corpo, incluindo juízos de valor moral. Isso temse observado historicamente, inclusive até os dias atuais, embora tal situação tenha se
modificado um pouco.
A puericultura, em sua "missão civilizadora", de domesticar os "novos
bárbaros", vindos do campo para trabalhar nas cidades, tem, como condição para sua
eficácia enquanto discurso ideológico, que negar as diferenças sociais e insistir na
normatização. Tal intento só pode ser obtido através de um discurso autoritário e fechado às
críticas.
Há uma conotação ideológica na puericultura porque "toma uma situação que
é efeito e a transforma em causa: pensa as más condições de saúde como conseqüência de
uma falta de informação das pessoas e não como reflexo de uma situação de vida em que a
má saúde e a ignorância fazem parte de uma única condição de inferioridade
social" (NOVAES: 1979,11). "Não é propriamente o que é ensinado que tem uma natureza
ideológica. Todavia, transparece a ideologia na forma em que o ensino é feito e, principalmente, na função que lhe é atribuída pela sociedade. Ambas são instrumentos de
legitimação das diferenças, exatamente por pensarem a igualdade" (NOVAES: 1979,31-32).
Para Boltanski, as regras de puericultura, apesar de negativas e apresentadas
como proibições, são menos condicionantes do que parecem, pois se prestam a
reinterpretações muito diversas e podem se integrar perfeitamente à subcultura das classes
subalternas.
Percebe-se a mudança no tom das obras de puericultura no Brasil quase
concomitantemente à sua emergência na França. No nível do saber acadêmico, os reflexos
da puericultura francesa se fizeram notar logo nas obras dos médicos brasileiros. Os
médicos tornaram-se menos tolerantes com a amamentação mercenária, ordenaram a
95
esterilização das mamadeiras e instituíram horários regulares de amamentação e pesagem
periódica da criança.
Porém, os médicos não lograram de todo o êxito no seu intento. Boltanski
observa que, na França, a adesão às regras de puericultura foi maior na classe alta e média e
menor na classe baixa. É verdade que muitas das ordens emitidas foram obedecidas e
muitos dos valores difundidos nas obras médicas se popularizaram.
O Dr. Moncorvo Filho, um dos pioneiros da puericultura brasileira, definia a
higiene como "a parte da medicina que cuida da saúde das pessoas, estabelecendo as regras
do modo de viver com cuidados imprescindíveis, sobre a habitação, a alimentação, o vestir,
o dormir, a educação etc" (apud RAGO: 1985,117). Uma das preocupações dos
puericultores era "praticar a eugenia e contribuir para o melhoramento da raça" (FORTES:
1936).
É indiscutível que a puericultura, aumentando os conhecimentos sobre o
corpo infantil, forneceu noções que ajudaram na manutenção da saúde da infância. Por
outro lado, paralelamente ao seu benefício técnico, trazia, traduzido "cientificamente", um
poderoso instrumento de regulamentação e controle social. Apesar do seu objeto ser,
aparentemente, a criança, a sua intervenção era mais abrangente, incluindo o próprio modo
de vida familiar. A discussão dos principais problemas enfrentados à época, a alta taxa de
mortalidade e o abandono infantil, conduzia a um diagnóstico familiar da crise. A família
necessitava cuidar da sua própria infância desamparada. Para tanto necessitava
redimensionar o seu modo de vida.
"A preocupação médica com a preservação da infância, no Brasil, esteve
presente desde meados do século XIX e intensificou-se nas primeiras décadas do século
XX, momento de constituição do mercado de trabalho livre'". Porém, "a criança foi
percebida pelo olhar disciplinar, atento e intransigente, como elemento de integração, de
socialização e de fixação indireta das famílias pobres, e isto antes mesmo de afirmar-se
como necessidade econômica e produtiva da nação" (RAGO: 1985,118). O desperdício de
vidas talvez passasse a ser percebido com maior intensidade nos fins do século XIX, devido
ao extremo grau de disfuncionalidade a que chegou o comportamento social em relação à
criança. Isto poderia ameaçar o equilíbrio social e a sobrevivência da espécie. A percepção
do desvio surgiu antes do discurso demográfico que notou o despovoamento e identificou
nas práticas familiares, no abandono e recusa ao aleitamento, suas principais causas. A
demografia surgia também, com preocupações econômicas. Uma delas era com uma
escassez futura de braços a que tais práticas levariam, se não se interviesse nos modelos de
96
comportamento dos indivíduos e se não se estimulasse a natalidade. Havia, ainda, ao mesmo
tempo, uma preocupação política: "dar assistência médica e proteção à infância significava
evitar a formação de espíritos descontentes, desajustados e rebeldes" (RAGO: 1985, 121).
Ao lado de orientadores da família, os médicos ocupavam outro lugar social:
o de conselheiros da ação governamental ou mesmo de membros do aparelho de Estado.
Fundaram instituições sanitárias, de assistência e proteção à infância desamparada,
maternidades e algumas creches. A legislação foi acompanhando a mudança de
mentalidades e criou as bases para a solidificação do Estado burguês moderno. "A ordem
médica vai produzir uma norma familiar capaz de formar cidadãos individualizados,
domesticados e colocados à disposição da cidade, do Estado, da pátria" (COSTA: 1983,48).
A lei, repressiva, foi substituída pela norma, que busca atuar pelo convencimento, através
dos saberes "racionais" e científicos e das práticas traduzidas em técnicas físicas de controle
corporal e regras de ação prática. O dispositivo médico é uma instituição normativa de
disciplinarização do cotidiano dos indivíduos (COSTA: 1983, 50-51).
Os serviços de puericultura surgem no Brasil em meados de 1910, muito
embora, como se disse atrás, suas idéias já circulassem nos meios médicos quase
simultaneamente com o seu surgimento na França. Os principais propósitos dos
puericultores na proteção à infância eram:
1-instruir
as mães sobre a maneira de criar os filhos, através de
regulamentação e regras;
2-vigiar as crianças e o seu desenvolvimento;
3-indicar e proporcionar os alimentos que elas necessitam para serem
administrados de acordo com os preceitos de higiene.
Segundo Moncorvo Filho, de 1500 até o século XVII não se notava no Brasil
preocupação com a infância. Em 1882 fundou-se a cadeira de moléstias das crianças.
Porém, só a partir de 1889 é que se percebe o nascimento da filantropia, a propaganda da
higiene infantil saiu da universidade e se iniciaram cursos para mulheres na Policlínica
Geral do Rio de Janeiro, fundada em 1881. Surgiu o interesse geral pela criança como fato
social. Mas o Estado ainda não intervia neste caso (MONCORVO FILHO: 1926,15-16). As
medidas empreendidas ficavam a cargo de médicos filantropos e instituições beneficentes
como as Santas Casas de Misericórdia. Só mais tarde, em 1940, com a criação do
Departamento Nacional da Criança, o Estado assumiu para si o encargo com a criança.
Nas duas primeiras décadas do século XX criaram-se creches, maternidades,
jardins de infância em resposta às pressões populares resultantes das condições de vida
97
precárias que se instalaram com a industrialização. A intensidade dos movimentos operários
provocou as primeiras respostas oficiais de proteção à criança, através de medidas
legislativas de proteção ao trabalho infantil.
Na época vigorava o liberalismo econômico e o Estado não tinha o poder de
vigiar as indústrias e regulamentar o trabalho das mulheres e dos menores. Os médicos
clamavam pela intervenção do Estado. A filantropia, que havia nascido para fazer face às
desordens e problemas sociais passou a dar lugar a uma maior atuação do Estado na área
social, através de medidas legislativas e novas instituições assistenciais públicas. A caridade
privada cedeu lugar ao assistencialismo público. Uma medida que exemplifica a atuação do
Estado foi o decreto 4983, de 1925, que, em seu artigo 361, não reconheceu a indústria de
amas-de-leite e estabeleceu proteção ao filho da ama, que deveria ter no mínimo 4 meses de
idade antes que a mãe pudesse empregar-se nessa função, além de exigir exames médicos
periódicos para garantir um estado de saúde razoável para a mulher (NOVAES:
1979,82-84).
As preocupações sociais em relação aos problemas sociais eram discutidas,
entre outros grupos sociais, pelos médicos. O modelo filantrópico havia atingido o seu
limite de intervenção e, como os problemas sociais se avolumavam, nasceu a necessidade
de uma maior atuação do Estado nesta área, surgindo, na década de 20, o que se
convencionou chamar de "políticas sociais públicas". Muitos médicos passaram a dirigir as
ações sanitárias englobadas como tarefa do Estado moderno. Consideramos um absurdo
querer atribuir ao sistema capitalista um grau de racionalidade que nenhum sistema possui,
considerando que os agentes sociais dominantes tinham um plano histórico perfeito e
acabado. Nem se poderia considerar que os médicos representavam os interesses do Estado
capitalista em formar mão-de-obra, pois as suas preocupações diziam respeito a problemas
muito mais imediatos e menos relacionados com as condições globais do sistema em que
estavam inseridos. A nova ordem social foi criada, dialeticamente, pelos sujeitos sociais,
dominantes e subordinados, que dela participaram.
Tem sido razoavelmente comum, em algumas interpretações dos processos
sociais, a atribuição de uma completa funcionalidade às intenções dos sujeitos históricos.
Tudo funcionaria como se as funções manifestas dos agentes se realizassem em benefício
dos mesmos e do sistema, e que não pudessem, também, se tornar disfuncionais. Achamos
que nem sempre as intenções dos agentes se realizam e que, muitas vezes, funções
consideradas por estes como funcionais acabam tendo um resultado completamente diverso
do imaginado. As decisões individuais geralmente não obedecem a uma visão global,
98
estando calcadas mais no interesse imediato.
"Pode-se conceber a história como um processo racional, mas não no sentido
de atribuir aos homens que a fizeram um plano coerente, como se em sua ação fossem
sempre movidos pela vontade de alcançar fins definidos a médio e a longo
prazo" (PEREIRA: 1984,17). Os sujeitos fazem história geralmente através de ações e
reações ditadas pelo momento vivido. As alternativas criadas pelas ações humanas são, na
maior parte das vezes, limitadas, porque a organização socioeconômica sob a qual vivem
tende a fazê-los agir de modo a reproduzir o mesmo estado de coisas (PEREIRA: 1984,18).
É bem verdade que, mais tarde, o desenvolvimento capitalista engendrou a
formação da classe dos homens públicos que planejam pensando no desenvolvimento do
sistema como um todo. Apesar de suas decisões, tomadas geralmente a nível
macroeconômico, não estarem ligadas necessariamente ao seu interesse imediato como
empresários ou consumidores, estão sujeitos às mesmas limitações, pois todas as
conseqüências das ações humanas não podem ser previstas nem sempre se obtém êxito na
tentativa de controle das conseqüências disfuncionais através da mudança social dirigida.
Estudaremos, em capítulo posterior, o nascimento do planejamento e dos programas de
incentivo ao aleitamento materno.
A análise das políticas públicas de saúde em relação à saúde infantil fogem ao
objeto deste trabalho. Oferecemos apenas alguns exemplos para ilustrar as mudanças nas
percepções sociais de atenção à infância.
4. PROGRESSOS NA ESTERILIZAÇÃO — O ALEITAMENTO ARTIFICIAL
COMO ALTERNATIVA VIÁVEL — O DISCURSO MÉDICO ADAPTADO
ÀS NOVAS CIRCUNSTÂNCIAS:
Poderíamos dividir o discurso médico sobre o aleitamento em 4 fases, de
acordo com as valorizações e exceções a nível da prática médica sobre a amamentação. Não
podemos afirmar que tais posições fossem generalizadas, porém temos certeza que
representavam as idéias dominantes na elite médica das respectivas épocas. Desse modo,
tivemos uma primeira fase, que percorreu todo o século passado, na qual os médicos
estimulavam a alimentação natural, mas eram complacentes com a amamentação
mercenária, apesar da condenação presente no discurso. A segunda fase se deu entre os fins
do século XIX e o início do século XX, até a Segunda Guerra. Nesta, a puericultura tinham
99
mensagens rígidas de amamentação e praticamente não admitia exceções, apesar do
comportamento social continuar refletindo um decréscimo no aleitamento. A terceira fase
foi da Segunda Guerra até a década de 70, na qual os médicos estimulavam o desmame e a
utilização dos leites artificiais e praticamente renegaram o aleitamento materno a segundo
plano. A corporação sucumbiu aos benefícios da ciência e da técnica, numa aliança
poderosa com as multinacionais de alimentos. A última fase é a que estamos assistindo
atualmente, a partir da década de 80, na qual os médicos voltam a estimular o aleitamento.
As exceções a esta prática diminuem e começa a se questionar a existência da hipogalactia.
É visível que as regras de alimentação variaram muito desde a época colonial
até nossos dias. No século passado, até a idade de 10 a 15 meses as crianças, segundo os
médicos, deviam tomar apenas leite de peito, preferentemente da sua mãe. As exceções
médicas à prática do aleitamento eram físicas (agalactia, doenças, fraqueza da constituição,
vícios de conformação dos seios) e morais (o leite secretado sobre a influência de emoções
e impressões morais vivas podia prejudicar a criança). Os médicos, apesar da condenação,
toleravam a existência de amas-de-leite.
O leite de vaca fresco era, então, o mais utilizado para a alimentação artificial.
Porém, estava sujeito à deterioração e contaminação, o que o tornava impróprio à
alimentação infantil.
"Os descobrimentos de Pasteur provocaram uma verdadeira revolução na
questão da lactância artificial; o uso do leite esterilizado livrou este tipo de alimentação de
grande parte de seus perigos" (BOLTANSKI: 1984,37). A pasteurização consiste na
elevação da temperatura do leite até 75 a 80 graus centígrados, seguindo-se um resfriamento
brusco para livrá-lo dos germes.
Pouco a pouco, se nota a chegada dos leites e alimentos infantis
industrializados. Em 1882, Cerqueira cita o leite condensado, geralmente desnatado e a
farinha láctea, artigos que podiam ser obtidos do estrangeiro, por importação. O leite
condensado surgiu para abreviar o problema da deterioração rápida do leite de vaca.
Apareceram os bicos de mamadeira maleáveis, o que facilitou a administração do leite. Mas
o leite condensado e desnatado, se por um lado afastou o problema da contaminação, não é
um alimento adequado para o bebê, pois a ausência de gordura não promove o
desenvolvimento satisfatório da criança. Além disso, o excesso de açúcar pode provocar
danos no lactente. Os médicos alertavam: "E não se deixem as mães seduzir pela grande
variedade de meios que, além da natureza lhes oferece a indústria para a alimentação de seus
filhos" (CERQUEIRA: 1882). O aleitamento por ama era considerado, ainda, superior ao
100
artificial.
A mamadeira foi utilizada inicialmente para facilitar o desmame sendo,
depois, paulatinamente incorporada mais cedo na alimentação. O aleitamento artificial era
um grande incômodo, tantos os cuidados necessários para tal fim. As mamadeiras eram
disfuncionais, difíceis de retirarem-se os coágulos na lavagem.
No início do século, as exceções à amamentação diminuíram, o que mostra
um novo interesse dos médicos no seu incentivo. Somente as mulheres doentes ou com seios
defeituosos, segundo os higienistas, não podiam amamentar. A mortalidade infantil era alta
para as crianças alimentadas com mamadeira e a perda de vidas se tornara, provavelmente,
um prejuízo que a sociedade não podia mais tolerar. Ao que tudo indica, esta revalorização
do aleitamento nas obras médicas não se fez acompanhar de um incremento no aleitamento
materno. O surgimento dos galactagogos, substâncias destinadas a estimular a secreção
láctea, como o lactagol ou a galega officinalis, mostrava a importância dada ao estímulo do
aleitamento materno e refletia, também, as dificuldades encontradas pelas mulheres na
amamentação. Podemos considerar esta fase como um período de transição em que diminuiu
a prática da amamentação mercenária, porém o hábito do aleitamento artificial tinha uma
difusão ainda muito restrita.
Nos primeiros anos do século XX, começou a aparecer, na literatura médica,
a preocupação com o tema da hipogalactia. A diminuição ou ausência de secreção láctea
surgiu como uma dificuldade ao aleitamento, até então inusitada ou encontrada apenas nas
damas da alta sociedade. Esta "nova doença" talvez traduzisse a expressão orgânica de uma
nova prática sociocultural, o desmame precoce, que surgiu paralelamente ao aparecimento
do leite esterilizado. Os médicos passaram a indicar o aleitamento artificial como solução
para os casos de "hipogalactia". Modificou-se, também, a percepção médica sobre a
mamadeira. No século anterior, imaginava-se que, com a mamadeira se conservasse o
instinto de mamar. Porém, já se notava que, a alimentação com mamadeira, reduzindo a
sucção ao seio, pode provocar a diminuição da secreção láctea.
Apesar disto, grande número de médicos pensava que o poder de amamentar
diminuiu nas mulheres (BALREIRA: 1911,12). Para Balreira, a hipogalactia é um
fenômeno passageiro que resulta da violação das regras da amamentação. Outros achavam
que a herança é que traz a perda da secreção láctea. Para Fortes foi o exame do leite, para
ver se era fraco, que gerou a crença do leite insuficiente (FORTES: 1936).
Segundo Orlandi, o fim da escravidão e a entrada das mulheres no trabalho
industrial foram alguns dos fatores responsáveis pela diminuição das nutrizes mercenárias.
101
Achamos que o fator trabalho não deve ter sido muito importante, pois apenas uma parcela
mínima das mulheres exercia atividades remuneradas fora do domicílio. Cremos que o
grande motivo para a redução no hábito de amamentação por amas tenha sido o
aparecimento da alimentação artificial segura, que passou a ser um meio mais prático e mais
econômico de se alimentar a criança, quando não se observasse o aleitamento natural. Para
Orlandi, o desenvolvimento dos leites artificiais serviu a duas finalidades: "por um lado,
liberava a mulher para o trabalho, onde ela ganhava menos que o homem e, por outro,
colaborava com o incentivo do consumo para o desenvolvimento da nova indústria que
surgia" (ORLANDI: 1985, 108).
Nas obras médicas do período, as descrições de desnutrição ou atrepsia, do
grego athrépsis, ficaram mais freqüentes; com a industrialização, a formação do
proletariado e a absorção da mulher na força de trabalho, os trabalhadores passaram a fazer
uso muito mais freqüente do leite de vaca e do leite condensado, apesar de ser pequeno o
número de mulheres que trabalhavam fora. Segundo um dos autores consultados, em países
industriais, as mulheres, pelas dificuldades da vida, foram compelidas a trocar o lar pela
fábrica, forçando o médico ao refúgio da alimentação artificial (FORTES: 1936). As
relações entre aleitamento artificial, contaminação e desnutrição começaram a se fazer
presentes no discurso médico: "a disenteria conta entre as causas de ordem higiênica, a
alimentação viciosa, o abuso dos frutos, os alimentos grosseiros, o uso da água impura...
verdadeiro flagelo da classe pobre, a atrepsia é a conseqüência de uma alimentação
insuficiente ou indigesta que a criança não podendo assimilar, expele-a pelos vômitos ou
pelas evacuações e logo recusa os alimentos" (COELHO: 1902,13-14). Junto com a
desnutrição apareceram o raquitismo e o escorbuto, visualizados, também, como
conseqüências da má alimentação. Nota-se que a sociedade da época, apesar da condenação
médica, passou a fazer uso cada vez mais precoce e freqüente da água açucarada e chás nos
intervalos das mamadas e de farinhas e sólidos.
Para os médicos desse tempo, a negligência, os hábitos viciosos e os
preconceitos nocivos contribuíam para as mazelas infantis. Condenavam a administração de
água açucarada que, além de não nutrir, podia provocar vômitos e introduzir no tubo digestivo germes, às vezes patogênicos. O costume de dar xaropes de chicória, ruibarbo ou óleo
de amêndoas para a expulsão do mecônio, a conselho das aparadeiras e o de dar sopas, pão,
caldo de carne, papas de farinha, massas indigestas, feijão, arroz e até as frutas, antes dos
primeiros dentes era desaconselhado pelos médicos. Segundo eles, a mulher peca por
"ignorância dos preceitos da higiene, ou por não atender aos conselhos que lhe fornece a
102
ciência" (COELHO: 1902, 11-13).
Na época, as benzedeiras costumavam esfregar óleo de azeite na espinha da
criança, junto com rezas para aliviar a desnutrição, popularmente conhecida como "mal de
espinha ou do espinhaço" (FORTES: 1936).
Coelho cita e contesta a afirmação de um médico europeu, Bunge: para este,
"há um número considerável de mulheres cuja secreção láctea é insuficiente ou nula. Se a
opinião de Bunge prevalecesse, serviria de pretexto para muitas mães desanimarem ou
esquivarem-se do aleitamento, desde que houvesse a menor dificuldade" (COELHO:
1902,33-34). E não teria mesmo ocorrido este fenômeno?
As transformações na percepção médica sobre o aleitamento artificial foram
se sucedendo: "É procurando realizar todas estas condições de temperatura, de assepsia pela
esterilização e de composição pelo adicionamento de certas substâncias, que se tem feito do
aleitamento artificial um método de alimentação muitas vezes superior à ama
mercenária" (COELHO: 1902,47-48). Porém, as regras higiênicas de preparo exigiam
tempo, perseverança, e atenção e eram, ainda, muito trabalhosas, além do que tinha que se
observar a diluição com água. Coelho afirmava: É preciso que o "alimento artificial seja de
fácil preparo, de módico preço e cômoda aquisição, por isso que os que mais precisam de
lançar mão de tais recursos alimentícios são, em geral, pobres e pertencem às classes
operárias, dispondo, via de regra, de escasso tempo" (COELHO: 1902,48).
Em 1901, Variot inventou a mamadeira graduada que facilitava a preparação
do leite. Mas ainda se usava muito as mamadeiras de tubo longo que acumulavam mais
facilmente leite azedo e micróbios.
Outros leites ensaiados para a alimentação infantil foram o leite
desengordurado e o leitelho. O leitelho é o leite pasteurizado e centrifugado, sem gordura, a
que se juntam bacilos lácticos. Nenhum foi bem sucedido.
Para Pereira, o fracasso das mães era devido às preocupações com o
aleitamento. Segundo ele, o leite desaparece primeiro no pensamento das mães, para depois
desaparecer nos seios. Para este autor, o leite condensado devia ser usado apenas em
viagens, por alguns dias, pela facilidade de manipulação. Condenava os produtos industriais
usados na alimentação infantil e exortava as mães a não se deixarem levar por anúncios,
pois, segundo ele, o leite materno não tem substitutos (PEREIRA: 1919).
A administração precoce de mingaus e caldos faz mal, segundo os médicos,
porque a criança ainda não tem dentes e o seu aparelho digestivo não está suficientemente
desenvolvido. O leite de vaca demora 2 a 3 horas para ser digerido, o que explica a fome
103
mais espaçada que a criança sente quando assim alimentada. Condenava-se o uso de chás de
erva-doce ou camomila e a administração de purgantes e lavagens, hábitos outrora
cotidianos nas prescrições da medicina oficial do início do século XIX.
Mirisola comentava que a diminuição evidente da secreção láctea desde os
primeiros meses nas mulheres de nossos grandes centros de progresso trouxe a necessidade
muito precoce de se estabelecer regimes mistos de alimentação. Considerava que a
instalação do aleitamento misto não é causa da redução do aleitamento natural mas surgiu
para sanar as dificuldades deste; na sua opinião, o aleitamento misto surgiu como
conseqüência da diminuição da secreção láctea (MIRISOLA: 1931).
Apesar do discurso rígido sobre as normas de puericultura, os médicos
apresentavam muitas contradições. Porém, já não cabia o meio termo ou a contemporização
de opiniões. Havia regras certas e erradas. Um exemplo destas regras inflexíveis pode ser
visto em Amarante, que ensinava: o aleitamento deve ser iniciado após 24 horas de jejum
absoluto; a mãe deve oferecer o seio 3 a 4 vezes no segundo dia e, a partir do terceiro dia, de
3 em 3 horas, às 6,9,12,15,18 e 21 horas, além de uma mamada noturna no primeiro mês; o
aleitamento à noite deve cessar no segundo mês pois causa superaiimentação da criança e
fadiga materna; a mamada deve ter a duração de 10 minutos, nem mais, nem menos;
qualquer que seja o aleitamento, dar água 3 a 4 vezes ao dia; no sexto mês iniciar o desmame
com mingaus de leite e féculas (araruta, maizena etc); a partir daí, em cada mês, substituir
uma mamada por mingau; aos 9 meses oferecer uma refeição de sal; o desmame estará
completado aos 12 meses (AMARANTE: 1927,133-138).
Foi só como o surgimento do leite em pó que se abreviaram, imensamente, os
óbices à alimentação artificial. Obteve-se um alimento de preparação rápida e fácil, que não
se deteriora com facilidade, e que está, aparentemente, "livre" dos perigos de contaminação
microbiana. As mulheres passaram a fazer uso cada vez mais freqüente deste produto que
lhes abreviou tempo e trabalho na criação dos filhos. Os médicos passaram a perceber nos
leites "maternizados" o substituto ideal para o leite materno nos casos de hipogalactia. A
corporação médica passou da condenação à aceitação e mesmo ao estímulo da alimentação
artificial.
Desde o início do século, os centros de saúde começaram a oferecer cursos de
puericultura para as mães. Estes cursos ensinavam as técnicas de alimentação artificial e
preparo de mamadeiras. Fundaram-se as Gotas de Leite e lactários para treinar pessoal e as
mães no preparo das mamadeiras, concomitantemente à distribuição de leite artificial às
mães pobres.
104
Os médicos voltaram a valorizar a pesagem diferencial: "a balança, que é a
bússola da criança, principalmente no primeiro ano de vida, decidirá se se deve abandonar o
seio ou lançar mão da alimentação artificial" (FORTES: 1936). A ansiedade da mãe, neste
caso, poderia contribuir para um mau resultado do teste e para o desmame subseqüente.
Nesta fase, ao mesmo tempo em que consideravam que não havia produto sucedâneo do
leite materno, admitiam a alimentação artificial quando houvesse motivo justificado. O leite
em pó passou a ser preferido pelos médicos ao leite fresco, porque era difícil obter-se um
leite de vaca controlado e certificado. Pensavam que o leite em pó resolveu completamente o
problema do leite e que se podia, com grande facilidade e com resultados brilhantes,
alimentar artificialmente lactentes desde os primeiros dias de vida sem o temor de diarréias
ou infecções (FORTES: 1936).
Os médicos não renunciaram à superioridade do aleitamento materno mas
passaram a estimular, veladamente, a alimentação artificial. Nesta fase, o único
inconveniente do leite em pó ainda era o seu preço. Acreditavam que, com o uso do leite em
pó afastava-se o perigo das grandes diluições, praticadas comumente com o uso do leite de
vaca. Julgavam que, se as mães seguissem à risca os preceitos indicados na lata,
diminuiriam os casos de subalimentação, e mesmo de infecções, provocadas por leite
contaminado. Fortes enumerava as vantagens do leite em pó: "apresenta constituição
química fixa,... a sua pureza e a ausência de germes produtores de doenças, tornam-no um
leite ideal para a alimentação do lactente" (FORTES: 1936).
Após a Segunda Guerra Mundial, o panorama se modificou completamente: o
leite condensado e o leite em pó, já fabricados no Brasil, se difundiram mais amplamente
com a ampliação do mercado consumidor. A Nestlé iniciou suas atividades no Rio de
Janeiro em 1912, comercializando leite condensado e farinha láctea produzidos na Suíça
(GOLDENBERG: 1988,108); implantou-se no Brasil em 1921, comprando uma das
fábricas de leite condensado existentes no país, em Araras, SP e, em 1928, iniciou a fabricação dos leites em pó com as marcas Lactogeno e Ninho (FREDERICQ: 1982,109-122). A
fabricação em larga escala do leite em pó proporcionou novas opções de alimentos
substitutos ao leite materno. Aumentaram as exceções ao aleitamento por parte do discurso
médico. Para Boltanski, "o número e a natureza das exceções a este 'dever sagrado'
constituem excelentes índices da importância concedida pelos médicos ao aleitamento
materno (BOLTANSKI: 1984,68). Os médicos esqueceram os conhecimentos do passado e
passaram, cada vez mais, a estimular, discretamente, o desmame. Seu saber se transfigurou e
se adaptou às novas circunstâncias. Muitos segmentos sociais passaram a acreditar, de fato,
105
que é possível se substituir o leite materno por meios artificiais, sem qualquer prejuízo para
a criança. O decréscimo da amamentação ao seio iniciou-se no Brasil na década de 40 e
chegou ao seu apogeu na década de 70.
Os médicos e autoridades da área da saúde passaram a utilizar-se da
estatística para analisar os problemas ligados à amamentação. Este instrumental se
incorporou cada vez mais e surgiram os estudos de prevalência da alimentação ao seio.
Começou a se estudar associações estatísticas entre mortalidade e aleitamento. Segundo o
Serviço de Higiene Infantil de 1933: "No Rio de Janeiro morrem por dia umas 20 crianças
de 1 ano. Destas, 1 ou 2 quando muito estariam sendo criadas ao peito. As outras todas
eram alimentadas com mamadeira" (FORTES: 1936).
A aceitação da alimentação artificial pela sociedade prosseguia: em agosto
de 1942 fundou-se a LBA (Legião Brasileira de Assistência, que instalou postos de
puericultura e lactários para prestação de assistência médica e distribuição de leite para
crianças até os 2 anos de idade.
Os médicos passaram a desaconselhar as mamadas noturnas, tidas como
inúteis, pois achavam que as seis diárias bastam para alimentar a criança que, assim, se
habitua a dormir à noite. Estas mamadas, segundo os pediatras, teriam o inconveniente de
perturbar o repouso da nutriz, concorrendo para fatigá-la, sendo aconselhável suprimi-las o
mais tardar no fim do primeiro mês (GESTEIRA: 1943,87).
A partir da década de 40 começou a se fazer sentir, com maior intensidade,
as influências da puericultura americana sobre a pediatria brasileira. Muitas mulheres, com
ansiedade, perderam a sua autoconfiança e começaram a "fracassar" no aleitamento. Os
médicos passaram a recomendar suco de laranja nos primeiros meses e água entre as
mamadas. Com o correr do tempo, começaram a aconselhar alimentos sólidos cada vez mais
cedo, chegando à conclusão de que o bebê os aceitava bem e progredia satisfatoriamente.
Viam duas vantagens em começá-los no primeiro semestre de vida: os bebês se habituam
mais facilmente nesta época que mais tarde; Além disso, afirmavam que os alimentos
sólidos fornecem várias substâncias raras no leite, particularmente o ferro. Modernamente,
os médicos começaram a prescrever os primeiros alimentos sólidos entre o 1º. e o 4º. mês de
vida. As carnes eram oferecidas entre o 2º. e o 6º. mês, esmagadas, para serem deglutidas
facilmente, mesmo antes do bebê ter dentes (SPOCK: 1960).
A citação deste autor americano se deve à grande divulgação que o seu livro
"Meu filho, meu tesouro — como criar seus filhos com bom senso e carinho" teve e ainda
tem no Brasil, influenciando gerações de médicos e de mães. Um livro brasileiro que
106
encontrou e ainda encontra grande aceitação pelas mães é o do Dr. Rinaldo de Lamare, "A
vida do bebê". Também aconselhava, na época, a introdução mais precoce de sólidos e
líquidos (LAMARE: 1955). Em suas últimas edições, na década de 80, este autor demonstra
ênfase no estímulo à amamentação.
Apesar de continuar válido, como em outros tempos, o conceito de que o leite
materno é o melhor alimento para as crianças nos primeiros meses, já não era tão grande a
preocupação dos médicos neste sentido. Isto porque os leites industrializados supriam,
segundo eles, com eficiência apreciável, a falta do leite materno, tornando desnecessário o
recurso às amas-de-leite ou a bancos de leite. A amamentação era vista como impraticável
em muitos casos, devido a vários fatores, como o modo de viver agitado, exigindo a
participação cada vez maior da mulher na tarefa de manutenção da família, o excesso de
comodismo e o menosprezo de certos deveres maternais e a desnutrição das mães
(ARRUDA & GONDIN: 1970,17). Para muitos médicos dessa época, a desnutrição reduz a
capacidade das mães em amamentar.
Com a mudança na percepção médica sobre a alimentação da criança, a
mulher pôde, desde então, escolher o tipo de aleitamento preferido. O aleitamento artificial
passou a se constituir em uma alternativa viável. Veio ao encontro dos interesses femininos,
liberando as mulheres dos encargos da maternidade, sem pôr em perigo a saúde dos filhos
(BADINTER: 1985,235). Veio ao encontro dos interesses do capital multinacional que havia
penetrado no Brasil e encontrou nesse mercado latente, perspectivas animadoras de
expansão e lucro. E veio, também, ao encontro do interesse médico que passou a deter o
saber sobre um produto novo, sua autoridade pôde reinar, soberanamente, através do ensino
da preparação e manipulação do leite em pó, saber então desconhecido dos leigos, parteiras e
curandeiros.
Citando Jelliffe, D.B., Martins Filho comenta que foi somente no último
século que as práticas de maior racionalização da produção agrícola e do processamento
industrial dos alimentos, condicionados pelo desenvolvimento tecnológico, bem como a
melhoria da higiene ambiental e a obtenção de melhores níveis socioeconômicos por
algumas populações, permitiram a expansão da alimentação artificial dos bebês (MARTINS
FILHO: 1976,11).
107
5. A DISSEMINAÇÃO DO LEITE EM PÓ E AS PROMOÇÕES COMERCIAIS
DAS INDÚSTRIAS — O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES DE SAÚDE NO
DECRÉSCIMO DA AMAMENTAÇÃO:
Junto a estas modificações tecnológicas que permitiram o melhor
aproveitamento do leite de vaca, implantou-se nas maternidades o sistema de berçários,
regularizando e dificultando o contato da mãe com o filho, obstaculizando o aleitamento. O
sistema de berçários diminuiu a necessidade de enfermeiras e os custos de funcionamento
hospitalar. As crianças alimentadas com leite em pó ficam saciadas mais rapidamente e têm
um tempo de digestão maior, dormem mais, o que causa uma maior tranqüilidade à equipe
de saúde. Aparenta ser uma tecnologia muito mais cômoda, que reduz bastante o trabalho
dos profissionais de saúde. A utilização cada vez maior dos hospitais para o parto provocou
um aumento da alimentação artificial. A mudança de atitudes sociais levou à medicalização
do parto e à diminuição da amamentação.
O sistema de berçários surgiu sob a alegação de que prevenia infecções. É
curioso observar que hoje se propugna pela sua extinção pelo mesmo motivo pelo qual antes
se desejava sua implantação, isto é, pela redução das infecções hospitalares que este sistema
agora facilitaria.
Muitos profissionais de saúde ajudaram a divulgar os produtos industriais e
através da sua prática chegavam mesmo a incentivar o seu uso. As rotinas hospitalares
podem ter desencorajado a amamentação e esta pode ser uma das razões pelas quais as
mulheres das zonas urbanas passaram a amamentar menos. Era comum a separação
mãe/criança após o parto, os familiares e o pai não podiam mais oferecer assistência e apoio
à mãe neste momento, já que o parto passou a se dar em hospitais, nos quais a frieza das
relações interpessoais constituía a regra. Esta falta de apoio psicológico e emocional pode
explicar muito da dor e da insegurança que as mulheres modernas enfrentam por ocasião do
parto. Surgiram as injeções hormonais para secar o leite e evitar as dores e mastites
provocadas pela supressão do aleitamento natural. O uso de analgesia e episiotomias na
rotina do parto, além do oferecimento precoce de mamadeira, do adiamento do início da
amamentação e da instituição de horários fixos para amamentação foram outros fatores de
desestímulo.
Comumente, a mamadeira de leite artificial era introduzida, em muitos
hospitais, logo no primeiro dia de vida da criança dentro dos berçários, sendo generalizado
o uso da água glicosada. O pré-natal ajudava, sendo provável que ainda ajude, em muitos
108
casos, no desencorajamento da amamentação: não se examinavam as mamas, não se
ensinava fisiologia do parto e lactação, não se orientava sobre legislação trabalhista. Os
hospitais, por sua vez, não desenvolviam práticas educativas, senão esporadicamente. O
puericultor, muitas vezes, era o primeiro a introduzir a mamadeira, à primeira dificuldade do
aleitamento. A mudança de atitudes da sociedade em relação à alimentação das crianças
chegou a tal ponto que quando o médico não aconselhava o leite artificial, a própria mãe
insinuava o seu uso. Sem dúvida, isto pode ser creditado à inabilidade de muitos pediatras
em lidar com problemas relacionados à amamentação, talvez, em parte, porque durante o
ensino médico, maior carga horária era e em muitos casos ainda é dedicada à alimentação
artificial e preparação de mamadeiras do que ao aleitamento natural. O ensino de dietética
infantil, em muitas faculdades de medicina, foi desleixado e os alunos passaram a aprender
como fazer "mingaus" e "papinhas".
Os médicos passaram a aconselhar, teoricamente, o aleitamento exclusivo até
os 6 a 7 meses e o desmame completo, segundo eles, deve ocorrer no mais tardar aos 11 ou
12 meses, porém na prática quase todos prescreviam os leites artificiais logo no primeiro
mês de vida da criança. Estes consideravam que a administração exclusiva prolongada de
leite materno pode causar anemia ferropriva, avitaminoses e deficiência de sais minerais.
Recomendavam a primeira mamada após 8 a 12 horas do parto e um intervalo de 3 horas
entre as mesmas.
Iniciaram-se os estudos sobre o metabolismo do leite e nutrição em geral.
"Este deslocamento da ênfase para o metabolismo trouxe, como conseqüência, a introdução
precoce da alimentação mista, destinada a suprir as deficiências nutritivas provocadas por
uma dieta constituída exclusivamente de leite. Tal prática é hoje apontada como uma das
causas do desmame precoce. A administração de substâncias complementares, vitamina C
(suco de frutas cruas) e sais (caldo de carne e legumes) é considerada essencial, a partir do 2º.
e 6º. mês, respectivamente" (LOYOLA: 1983,42).
O leite mais utilizado para a alimentação infantil passou a ser o leite
maternizado. O leite desnatado, usado para a fabricação dos leites "maternizados", é um
subproduto da fabricação da manteiga. De cada 2 quilos de leite desnatado se fazem pelo
menos 5 de leite "maternizado". O leite "maternizado é um leite de vaca desnatado ou semidesnatado, diluído ao terço, aumentado em lactose e adicionado de óleos vegetais e
vitaminas. No entanto, esta mistura barata é um ótimo negócio, pois, é vendida pelo triplo
do preço do leite integral" (BARBOSA FILHO: 1977,120).
Acompanhando a mudança de mentalidades que passou a ver na alimentação
109
artificial uma alternativa viável, a propaganda sobre substitutos do leite materno pode ser
encontrada desde o início do século em revistas médicas especializadas e revistas para o
público em geral. Em 1916, na revista A Cigarra no. 44 aparece a propaganda do leite
condensado marca Águia, ao lado de uma criança robusta. Mas, nesta época, o que
predomina são os anúncios de estimulantes da lactação, como Lactífero, Galactogeno,
Vinho Biogalênico e a cerveja Guiness. É a partir de 1922 que se observa um crescimento da
propaganda de leite em pó, com as marcas Allemburys, Mellin e Edelweiss
(GOLDENBERG & TUDISCO: 1983,76-77).
Nas revistas de circulação médica a propaganda é ainda mais incisiva e
numerosa, evidenciando a importância e a especificidade desse canal de informação nas
estratégias publicitárias. Em 1926, se anuncia o leite maltado Horlick's. E, logo após, as
marcas de sucedem e os anúncios tornam-se ainda mais sistemáticos: Lactogeno, Pelargon
e, mais recentemente, Nanon e Nestogeno.
Nesta época, surgem as revistas de assuntos tipicamente femininos, onde a
maternidade é difundida como a melhor das carreiras. Estas revistas veiculam regras de
puericultura, ensinando a melhor maneira de cuidar das crianças, valorizando o leite em pó
na alimentação infantil. As companhias anunciam seus produtos nas páginas destas revistas,
que passam a ter grande penetração no meio popular.
Na década de 40, os leites em pó são apresentados como de fácil
digestibilidade, "preventivos dos distúrbios gastrointestinais", isentos de contaminação e
que guardam as propriedades do leite fresco. Devem ser usados como complementos ou
substitutos do leite materno, nos casos de sua "falta ou insuficiência".
As indústrias produtoras de leite em pó, dentre as quais se destaca a Nestlé,
passaram a utilizar-se de estratégias mais sofisticadas de marketing e propaganda no sentido
de divulgar os seus produtos. O papel da mídia eletrônica (rádio e TV) foi mais restrito nas
estratégias de promoção do leite em pó do que a promoção direta aos médicos e
consumidores ou através de revistas (GOLDENBERG: 1988,138).
Os esquemas promocionais incluíam distribuição de amostras de leite e
mamadeiras grátis às mães por enfermeiras da companhia em maternidades. Na realidade,
estas "enfermeiras" eram vendedoras com uniformes de enfermeiras que faziam visitas
domiciliares e freqüentavam clínicas e maternidades. Na visão das companhias estas
enfermeiras teriam uma função educacional, de dar conselhos nutricionais e instruções às
mães e não apenas vender os seus produtos. Mas, na verdade, encorajavam as mães a
alimentar
seus
filhos
com
mamadeira,
mesmo
que
estivessem
amamentando
110
satisfatoriamente e não houvesse qualquer necessidade de suplemento. Os médicos e
profissionais de saúde foram utilizados pelas companhias em suas estratégias promocionais.
Os médicos passaram a receber informações sobre a alimentação infantil das companhias de
leite, que iniciam a promoção de cursos, conferências, congressos médicos, financiando
passagens aéreas, hospedagem e brindando os profissionais que passaram a defender seus
interesses com viagens de férias para a família. A indústria se utilizou dos médicos, usando
de sua autoridade e aprovação aos seus produtos para fazer a sua divulgação. O saber
médico tornou-se um intermediário na difusão da sua ideologia. Os médicos aproveitaram a
indústria pelo seu apoio financeiro à reciclagem profissional. As verdades "científicas" dos
professores passaram a ser associadas às fórmulas de leite. O médico absorveu a idéia de
que o leite materno necessita ser complementado, quando o leite não for suficiente e passou
a indicar o leite em pó para as mães cada vez mais freqüentemente.
"A veiculação da idéia de que o leite materno é substituível e de que pode ou
deve ser complementado, paralelamente ao desenvolvimento do conceito de incapacidade
das mães em amamentar no mundo moderno, favoreceu um comportamento intervencionista
dos profissionais da área da saúde em favor do aleitamento artificial, sem que disso
tivessem consciência" (GOLDENBERG & TUDISCO: 1983,79).
Fredericq analisa as estratégias da Nestlé: "este tipo de atuação resulta numa
influência direta na formação dos pediatras brasileiros e num importante controle das
informações que podem chegar até eles... A produção escrita da pediatria brasileira é quase
totalmente controlada pela empresa. Esta aproveita seu controle para difundir sua ideologia
ou para, pelo menos, impedir que seja questionada... tenta apropriar-se do conhecimento
médico, influenciando os temas de ensino nas universidades, as pesquisas e os encontros
científicos. De outro lado, aproveita-se do poder médico, para melhor chegar aos
consumidores "(FREDERICQ: 1982,155). Assim, as suas mensagens têm a aprovação da
autoridade médica. Barbosa Filho observa que foi devido a esta ligação da indústria com os
médicos, durante vários anos o aleitamento materno foi um tema marginal nos congressos
médicos, não que não tivesse importância, mas para não constranger os industriais que,
"generosamente", os financiavam (BARBOSA FILHO: 1977,121).
Em nossa opinião, a maior ligação das indústrias com os médicos ocorre
devido ao próprio desenvolvimento das forças produtivas que acompanha o avanço do
capitalismo. Surgem novos saberes que não podem mais ser patrimônio comum de todos
pela sua enorme diversidade. A especialização da sociedade e a interdependência estrutural
dos seus membros, levando-os a um relacionamento mais orgânico, são parte do
111
aprofundamento das relações sociais deste modo de produção dominante. E, logicamente, a
indústria se utiliza das informações mais "evoluídas" sobre o aleitamento que são
propriedade do pessoal e das instituições de saúde.
Ao médico cabe o domínio da prescrição sobre o aleitamento artificial em
contraposição ao aleitamento natural, o qual é considerado como tarefa e problema da mãe.
Tudo se passa "como se o progresso científico tivesse alcançado dispor de recursos que
substituiriam a natureza em igualdade de condições e até com vantagens" (GOLDENBERG:
1988,142-126).
A indústria financiou, também, cartazes para os centros de saúde com figuras
de bebês bem nutridos, limpos, com roupas brancas, mamadeiras e leite em pó. Para as mães
pobres, embora o resto pudesse estar fora do seu alcance, a mamadeira não estava, pois a
recebiam gratuitamente junto com uma lata de leite em pó (MULLER: 1981,22). A
estratégia do brinde foi muito utilizada pelas companhias até criar um mercado. As
companhias também vendiam os seus produtos com descontos especiais. Outras modalidades de promoção utilizavam a imprensa, rádio, televisão. Muitos hospitais receberam
doações de leite em pó das companhias.
Os serviços de saúde constituíram importantes canais institucionais de
propaganda. Os Centros de Saúde distribuíam leite em pó em quantidade limitada. Isto
ocorria tanto pela falta do produto como devido a uma política de se evitar o paternalismo.
Na opinião de Goldenberg & Tudisco, "combinava-se um programa eminentemente
assistencial com o desenvolvimento de um mercado junto à população de baixa renda, que
teria
de
adquirir
leite
em
pó
para
complementar
as
necessidades
requeridas" (GOLDENBERG & TUDISCO: 1983,79). Apesar da tentativa, o paternalismo
não foi evitado. O Estado, "ao invés de elevar o consumo da população trabalhadora das
riquezas por ela mesma produzidas, adota uma política paternalista e caridosa de dar
alimentos" (BLAY: 1983, 130).
Goldenberg & Tudisco, em afirmação anterior, colocam no mesmo nível a
tentativa de alguns segmentos do setor saúde de evitar o paternalismo com os interesses
empresariais de desenvolver um mercado junto à população de baixa renda. A nosso ver, é
provável que tenha ocorrido neste episódio uma coincidência e não uma congruência
planejada entre os interesses dos dois setores sociais envolvidos. Achamos que a finalidade
dos programas de suplementação é, realmente, a melhoria da desnutrição infantil. O
benefício à indústria é uma conseqüência lógica da venda de seus produtos. A interpretação
de que o programa de leite existe apenas em função da necessidade de lucro das indústrias é
112
ingênua. Os setores de saúde do aparelho de Estado pautam, geralmente, suas ações visando
resolver determinados problemas sanitários e não visando atender à necessidade de
obtenção de lucros das indústrias. É como se os sanitaristas ou os burocratas da saúde não
tivessem objetivos próprios e fossem meros subservientes do capitalismo. O sistema
econômico é a somatória da ação de vários agentes que buscam determinados objetivos
próprios que são, na maioria das vezes, imediatistas. As ações desencadeadas poderão ou
não alcançar os fins almejados mas isso vai depender do desenrolar da história. É um
absurdo pretender atribuir completa identidade entre meios e fins nas ações dos diversos
segmentos sociais, como se estes se comportassem de forma integrada, o que quase nunca
acontece.
A distribuição de leite em pó pelos Centros de Saúde foi uma tentativa de
abreviar os problemas de nutrição da criança e mortalidade infantil. Esta prática também se
constituiu em um desestímulo ao aleitamento e tornou-se disfuncional pois, distribuindo-se
leite em pó para crianças menores de 6 meses, aumentava-se os riscos de contaminação e,
ao invés de diminuir, aumentava-se a desnutrição. Além do mais, a distribuição do leite era
realizada aleatoriamente e, na maioria das vezes, distribuída sob a influência de barganhas
políticas e por pessoas desligadas da área da saúde. Depois, proibiu-se a distribuição dos
produtos para menores de 6 meses mas as distorções na distribuição persistem: continuam a
receber leite crianças que não precisam dele. A distribuição deveria ser feita apenas através
de canais que privilegiassem indicações baseadas no peso.
Alguns autores consideram que a distribuição do leite em pó pode ter
resolvido os problemas de mercado e lucro que as multinacionais de alimentos enfrentavam
com a redução da natalidade na Europa e Estados Unidos, mas não resolveu os problemas
das crianças. A respeito desta afirmação, vamos refletir sobre a citação seguinte de Singer:
"grupos empresariais 'capitalistas', monopólicos ou não, nacionais ou estrangeiros, operaram
alguma vez em função das necessidades da população? Pelo que sabemos eles operam em
função de suas próprias necessidades de lucros. Ensina a economia convencional (ou
vulgar) que, com determinada organização dos mercados, é possível que a procura do autointeresse leve as empresas a satisfazer também as necessidades da população. E a
experiência ensina que o desenvolvimento do capitalismo, ao excluir a possibilidade de os
mercados se organizarem de modo ideal (concorrência perfeita), acaba por condicionar a
própria manifestação das necessidades da população às necessidades das grandes empresas"
(SINGER: 1985,68).
No próximo item discutiremos as prováveis causas do declínio da
113
amamentação.
6. RAZÕES DO DECLÍNIO DO ALEITAMENTO:
As explicações que se buscam para o declínio da amamentação são variadas.
Uma das hipóteses, que vamos comentar a seguir, considera que as mudanças sejam
provocadas pelo efeito-demonstração10, interpretação retirada da ciência econômica.
Segundo esta análise, as mudanças começariam pelas mulheres mais ricas e com maior
nível de escolaridade e passariam a acontecer depois nos grupos urbanos pobres e por fim
no meio rural, tradicionalmente mais resistente à mudança. O centro das mudanças
culturais seria a cidade e todos os demais grupos imitariam a elite urbana. O desmame
precoce seria um corolário do desenvolvimento, da urbanização e da industrialização.
A urbanização, a adoção do modo de vida "civilizado", na verdade, em
grande parte, "americanizado", teria provocado mudanças nas atitudes das mulheres em
relação ao aleitamento materno. O aleitamento, visto como capaz de deformar o seio,
poderia reduzir a atração sexual. O seio teria passado a ser muito mais um símbolo sexual e
cosmético do que um órgão nutridor. Estas mudanças acompanhariam as novas maneiras de
percepção do corpo que acontecem com a revolução sexual e que atingem principalmente as
classes dominantes. As populações migrantes recém chegadas aos centros urbanos
sofreriam uma relativa desorganização cultural. Esta população, de hábitos tradicionais, que
vivia no meio rural com base na economia de subsistência, pouco integrada ao mercado,
rapidamente aprofunda a sua incorporação à economia de mercado. A aculturação e
adaptação ao novo ambiente se dariam pela incorporação de valores da classe dominante,
considerados avançados em relação aos seus antigos valores, percebidos como atrasados.
O processo de aculturação que ocorre entre as camadas sociais incentiva o
aparecimento de novas necessidades, como a da mamadeira e a do leite em pó. Para
Fredericq, as camadas mais propensas às mudanças são os migrantes rurais, recém chegados
à cidade, que perderam as referências culturais de seu viver tradicional e buscam novos
10
Efeito-demonstração designa o fato de que o consumo das camadas dominantes provoca, pela
demonstração, um efeito de imitação nas camadas subordinadas. Deste modo, as camadas subordinadas têm
tendência a querer consumir os mesmos bens que as camadas dominantes. O consumo destas últimas provoca
um efeito-demonstração nos grupos de fraco rendimento, que são induzidos a imitar o comportamento dos
consumidores mais ricos... Esta análise foi generalizada às trocas internacionais. Contactando com a
economia mundial, as classes mais ricas dos países subdesenvolvidos aspiram ao nível e modo de vida dos
americanos e europeus (BIROU: 1982, 133-134).
114
modelos de vida, mais adequados à nova realidade que estão enfrentando. "O rompimento
de seus laços socioculturais de origem provoca um 'vazio ideológico', que os torna uma
presa fácil para qualquer tipo de mensagem publicitária... Quanto mais baixa a classe social,
tanto menos crítica sua atitude frente à mensagem publicitária, pelo seu menor conhecimento das técnicas de persuasão utilizadas" (FREDERICQ: 1982, 150-151).
Não concordamos com Fredericq quando esta considera os migrantes rurais
como presas fáceis para as mensagens publicitárias, pelo "vazio ideológico". Analisamos, no
item sobre urbanismo, que os migrantes rurais possuem, ao mesmo tempo, referências
tradicionais e urbanas que convivem de maneira mais ou menos desintegrada. A sua
incorporação ao modo de vida urbano pressupõe sua ressocialização. A absorção de novos
valores por este grupo social se dá pelo efeito-demonstração, como estudamos anteriormente. Achamos que seja falsa a afirmativa de que tenham uma atitude menos crítica à
publicidade, pois tais grupos, ao contrário, demoram mais tempo para modificar seu
comportamento quando comparados às classes mais afluentes. Entre as causas desta demora
cultural para a assimilação de novos valores poderiam ser citadas a dificuldade de
comunicação com os demais e a resistência à mudança, pelo apego aos seus valores
tradicionais. Além do mais, é duvidoso que o conhecimento pelos indivíduos dos meios de
persuasão utilizados pela propaganda, que atuam, geralmente, de modo inconsciente,
contribua para que estes escapem da sua influência, ou possam atenuar, voluntariamente, os
seus efeitos.
Fredericq considera que as mães das classes populares são levadas, também
através da propaganda, a imitar os costumes das classes dominantes, desvalorizando o leite
materno e adotando novos métodos de alimentação que exigem a sua integração no
mercado capitalista. Em sua opinião, a Nestlé participa ativamente da difusão de regras de
uma puericultura moderna mais adaptada à sociedade de consumo (FREDERICQ:
1982,157). Entendemos que a imitação das classes dominantes pelas classes subalternas
não ocorre somente pela propaganda, mas também porque se trata de um comportamento
de camada social de prestígio. Além do mais, há muito tempo, as mães das classes
subordinadas utilizavam outros recipientes que não a mamadeira e alimentavam
artificialmente seus filhos.
Fredericq continua expondo suas opiniões, considerando que os alimentos
infantis para o bebê vêm preencher uma função social importante, permitindo a alimentação
da criança sem a presença física da mãe, favorecendo a integração da mulher no processo de
produção capitalista. A valorização do "moderno" exige a adoção de novos hábitos de
115
consumo e promove um crescimento da oferta dos produtos relativamente supérfluos, como
o leite em pó. "A mamadeira de leite em pó é um ótimo símbolo do modern way of life:
mais 'moderna', 'higiênica', 'científica' — e mais cara — que o aleitamento tradicional. Este,
por sua vez é desprestigiado e reservado às mulheres 'caipiras' (FREDERICQ: 1982,151).
Observamos, em relação a estas colocações de Fredericq, que o aleitamento materno não
ficou apenas reservado às mulheres caipiras.
Alguns autores concordam que, quanto maior a incorporação das várias
classes sociais no mundo do consumo, maior é a taxa de abandono do aleitamento natural.
Para Fredericq, o número de consultas pré-natais pode ser usado como um indicador do
grau de integração das mulheres no consumo capitalista.
Outra causa apontada por aqueles que vêem o decréscimo do aleitamento
enquanto resultado da urbanização é o stress: o ritmo agitado da vida na cidade facilitaria o
aparecimento do nervosismo e inibiria o reflexo de lactação.
Outra hipótese considera que o abandono ou diminuição da lactância natural
surgiu como uma necessidade imposta à mulher pela modificação de suas condições de vida
que passou a ocorrer com a urbanização e a industrialização. Desapareceu a estrutura
familiar tradicional e as mulheres ingressaram na força de trabalho sem contar com ajuda
social para a reprodução e criação dos seus filhos. A amamentação por mamadeira forneceria
às mulheres certo grau de liberdade, pois elas não precisariam estar fisicamente presentes
para alimentar os seus filhos. Isto se daria com particular intensidade nos grupos urbanos
pobres, que não teriam acesso ao consumo de bens que diminuem o trabalho doméstico
como fraldas descartáveis, lavadoras automáticas, freezers etc. Além disso, muitas práticas
tradicionais continuariam ocorrendo, como por exemplo, a não colaboração do homem nas
tarefas domésticas. O suporte social para permitir a harmonização do trabalho com a
amamentação não estaria suficientemente desenvolvido: poucas creches, legislação social
atrasada que não concede licença-maternidade prolongada, horários regulamentados para
aleitamento e que não pune severamente as empresas que coloquem restrições à contratação
de mulheres, devido à gravidez ou possibilidade de sua ocorrência. Somente quando um
país ou grupo de população alcançasse certo nível de bem estar social, construísse um
equipamento coletivo de apoio à reprodução humana e se adaptasse ao novo estilo de vida é
que iria se tornar mais fácil a prática da lactância natural.
Esse processo ocorreria com maior intensidade em países nos quais seja
grande a participação feminina na força de trabalho. No Brasil, a participação da mão-deobra no setor secundário é baixa. No censo de 1960, a população brasileira era de
116
70.967.185 pessoas, das quais apenas 341.590 estavam empregadas diretamente na
produção. Na explicação do decréscimo do aleitamento o trabalho é um dos fatores
explicativos mas não é, certamente, o mais importante, como veremos no sétimo capítulo.
Para os defensores desta tese, os hábitos tradicionais estão se modificando.
As mulheres estão abandonando o aleitamento, não necessariamente por opção, mas talvez
forçadas pelas circunstâncias de suas vidas que as obrigam a deixar as suas crianças por
longos períodos de tempo. Apenas as mulheres ricas ou aquelas que vivem em sociedades
que oferecem um suporte social permanecem aptas a amamentar. De acordo com esta
hipótese, um programa de estímulo ao aleitamento só teria êxito se examinasse as
circunstâncias e condições da vida feminina como um todo.
Uma das hipóteses aventadas para explicar a baixa prevalência do
aleitamento é que o cotidiano da mulher em nossa sociedade, fatigante, causador de stress e
ansiedade, seria desfavorável à amamentação. As tarefas domésticas e reprodutivas, o
emprego, são atividades pesadas, que requerem uma grande carga de trabalho e esforço
físico, e que recaem, geralmente, apenas sobre a pessoa da mulher. A insegurança material,
a instabilidade no emprego ou a ocorrência de desemprego da mulher e/ou do companheiro
durante a gestação são fatores que podem interferir no equilíbrio emocional da nutriz.
Morse, por sua vez, lança mão de quatro teorias básicas para explicar a
alimentação infantil no terceiro mundo: na primeira atribui a manutenção do aleitamento
artificial pela influência da propaganda, pelo consumismo e imitação de países
desenvolvidos; sua segunda teoria é mais voltada para o social, com o aleitamento materno
indicando estabilidade e o artificial mostrando estresse, desorganização e desequilíbrio da
sociedade; na terceira teoria explica o desmame como uma adaptação saudável da mãe às
suas necessidades familiares e sociais: na quarta teoria refere-se aos aspectos biológicos do
desmame, isto é, o leite seria insuficiente para a demanda da criança (MORSE: 1982).
Manciaux nos oferece outro quadro explicativo para a tendência de declínio
da amamentação. Os hábitos antigos e tradicionais passaram a sofrer a influência de uma
série de acontecimentos sociais: "modernização" dos serviços médicos, indiferença dos
profissionais de saúde, modificação das estruturas sociais (urbanização, família nuclear) e
condições socioeconômicas, mudanças psicológicas, imitação dos grupos de referência,
progresso nos substitutos do leite materno e propaganda da alimentação por mamadeira
(MANCIAUX: 1982,36).
Orlandi, por sua vez, fornece os seguintes motivos para o abandono do
aleitamento: a industrialização, principalmente através da entrada da mulher na força de
117
trabalho; publicidade comercial; grandes progressos obtidos na fabricação dos leites
artificiais; indiferença dos profissionais de saúde em relação ao aleitamento materno;
modificações da estrutura familiar no contexto da moderna vida urbana — a família
patriarcal ampliada cede lugar à família nuclear; imitação das classes ricas e busca de
status; preocupações estéticas de deformação do seio e busca do aleitamento artificial para
facilitar a adoção de métodos anticoncepcionais eficazes (ORLANDI: 1985,123-125).
Para alguns, a propaganda de leites infantis modificados para bebês
desencorajou o aleitamento. Outros consideram este fator apenas um dos aspectos do
problema, e talvez secundário. O principal fator estaria ligado, nesse caso, à falta de
estrutura social nas cidades. Assim, não teria sido a introdução do leite em pó
industrializado que levou ao declínio do aleitamento, mas isso teria acelerado o processo
(VIS & HENNART: 1978).
Vamos analisar, a seguir, as opiniões dos que explicam o decréscimo do
aleitamento como um fator decorrente, em grande parte, das promoções comerciais das
indústrias. Para estes, as companhias produtoras de leite em pó, vendo minguar os seus
lucros no Primeiro Mundo devido à redução da natalidade, foram buscar os mercados do
Terceiro Mundo. A sua instalação se deu com a utilização de campanhas promocionais
consideradas por alguns, agressivas, imorais e pouco éticas.
Para os defensores da tese que considera a propaganda como um dos
principais fatores explicativos do desmame precoce, os anúncios, não éticos, usam técnicas
de persuasão e motivação baseadas no prestígio e mobilidade social ascendente (JELLIFFE
& JELLIFFE: 1977,249-250). A mamadeira teria sido incorporada como símbolo de novos
status e papéis sociais.
Em nosso ponto de vista, o marketing do leite em pó explica apenas
parcialmente o uso aumentado destes produtos. Para Manderson, outros fatores sociais e
culturais estão envolvidos, dentre os quais, mudanças nas idéias sobre o peso ideal para a
mãe e o bebê, sobre alimentação e cuidados com a criança. A criança gorda passou a ser
mais valorizada, assim como a mulher magra. Novos modelos de feminilidade e
maternidade se desenvolveram (MANDERSON: 1952,597-598).
Outra modalidade explicativa, além de incorporar os efeitos da propaganda e
das promoções comerciais de alimentos infantis para bebês, analisa o decréscimo na
amamentação como um produto da extensão do modo de produção capitalista e como um
dos efeitos deletérios, a nível mundial, do imperialismo cultural e da dependência.
Na análise sociológica são muitos os processos que se desenvolvem
118
simultaneamente e que têm relação com uma determinada prática social. Creditar o
fenômeno do desmame ao capitalismo ou à propaganda não constitui senão um aspecto do
processo. Mudanças profundas nas percepções sociais sobre a criança, sobre os cuidados
com o corpo infantil, nas representações sobre o papel da mulher na sociedade e a sua
emancipação, as contradições entre o trabalho feminino e a vida reprodutiva da mulher, são
todos fatores intrinsecamente responsáveis por esse processo.
Na busca de uma sociologia das relações sociais, não se pode hipertrofiar as
análises economicistas e perceber o micro-universo pessoal e familiar como um mero
desdobramento dos processos mais amplos que acontecem na estrutura, principalmente
econômica, da sociedade. As idéias e as percepções culturais sobre o aleitamento variam,
não apenas em função das transformações econômicas, mas também da "disponibilidade de
meios do aparelho cultural".
Um exemplo que comprova a pouca consistência de tais interpretações pode
ser dado a seguir: em muitas nações desenvolvidas as mães estão voltando, cada vez mais, a
amamentar os seus filhos, embora tais países permaneçam capitalistas e as indústrias
continuem querendo encontrar mercado para os seus produtos. Acontece que, agora, a
percepção social sobre os leites industrializados para bebês mudou e a indústria encontra
menos compradores para os seus produtos e está se adaptando à nova situação, deslocando os
seus investimentos para outros setores. No sexto capítulo aprofundamos, um pouco, a
discussão acerca dos determinantes socioculturais da amamentação, relativizando o papel da
propaganda e do imperialismo cultural na modificação deste comportamento.
Na explicação das causas do declínio, pretendemos deixar claro as principais
instâncias de difusão que ajudaram na disseminação da nova mentalidade de estímulo à
alimentação artificial, que provocou um declínio no aleitamento. Já analisamos que as
novas idéias sobre alimentação infantil surgiram nas classes dominantes a partir das
descobertas tecnológicas que tornaram disponíveis novos substitutos do leite materno, mais
seguros e práticos. A propaganda deve ser analisada, a nosso ver, como um dos elementos do
processo de difusão de elementos culturais na sociedade de consumo, relativizada em seus
efeitos, sem deixar de ser considerada um mecanismo poderoso através do qual atua o
efeito-demonstração.
Outro processo que ajudou na difusão dos leites artificiais foi a extensão do
atendimento médico às classes subalternas, à mulher e à criança que passou a ocorrer desde
os fins do século passado, pois, até então, a medicina só cuidava das doenças dos adultos da
elite. As instituições de saúde participaram dessa dinâmica, criando e incorporando novas
119
idéias acerca da alimentação infantil. O seu papel como elemento de difusão passou a ser
importante na explicação das flutuações do aleitamento.
Como fator limitante desse processo de difusão, apontaríamos a barreira
lingüística entre os médicos e profissionais de saúde e as classes subalternas. Por outro lado,
nas últimas décadas, a extensão da escolaridade a membros das classes subalternas,
difundindo uma nova forma de racionalidade mais abstrata e novos padrões de pensamento
e a tomada de consciência do problema, por parte daqueles profissionais, aproximou o
entendimento entre as subculturas baseadas em classes, facilitando a aquisição de novos
comportamentos, entre os quais, os relativos à amamentação.
A difusão entre as subculturas das classes dominantes e subalternas passou a
ocorrer com maior rapidez, especialmente após a urbanização da sociedade brasileira,
devido aos fatores analisados anteriormente como, por exemplo, a aceleração das mudanças
sociais e do próprio processo de difusão.
Como veículo de difusão na moderna sociedade de massas, não poderíamos
deixar de considerar os meios de comunicação de massa. No caso do decréscimo do
aleitamento, a televisão, como já vimos, talvez tenha desempenhado um papel menos
importante do que outros meios de divulgação. E não poderíamos deixar de considerar a
modalidade de difusão mais comum, baseada nos contatos pessoais, que, tendo um papel
quase que exclusivo como elemento modificador de comportamentos sociais nas sociedades
agrárias e pré-industriais, teve sua importância reduzida pelo surgimento de novos canais
tecnológicos de comunicação.
Tal é a nossa visão sobre o processo de difusão dos saberes e práticas sobre
aleitamento na moderna sociedade de consumo de massas. Consideramos os indivíduos, as
instituições, os meios de comunicação e a propaganda como instâncias da difusão de
elementos culturais. A urbanização e o aumento da escolaridade são visualizados como
processos facilitadores das mudanças sociais.
Sem esquecer outros, poderíamos apontar alguns fatores de alguma forma
associados ao declínio da amamentação: o trabalho feminino; a falta de compatibilização
entre os papéis da mulher na produção e na reprodução; a atual divisão sexual do trabalho
que sobrecarrega a mulher; a mudança nos padrões familiares tradicionais que provocou
uma redução no apoio familiar à maternidade; o escasso desenvolvimento dos serviços
coletivos de apoio à reprodução humana e, talvez, as mudanças de valores e do
comportamento social em relação à sexualidade e reprodução humana. Alguns destes temas
são analisados com maior profundidade no sétimo capítulo.
120
7. O DISCURSO DAS MÃES SOBRE O ALEITAMENTO:
E as mães? Quais as razões por elas apontadas para explicar o desmame? Um
trabalho realizado em 1964 nos mostra alguns destes motivos: não tinham leite ou o leite
secou, tinham pouco leite, o leite era fraco e não sustentava a criança, o leite era salgado.
Além destes, outros aparecem, como gravidez, doença da mãe, trabalho materno fora do lar,
mãe se sente fraca, a criança não quis mamar, conselho médico, defeito das mamas, a
criança chorava muito, recusou o seio, não se deu bem com o leite, estava prematura ou
doente (ALVIM: 1964,250-252). Tais alegações ainda permanecem. Para poucas mães a
amamentação é trabalhosa (ARRUDA & GONDIN: 1970,18). Por outro lado, quando
perguntadas sobre as razões pelas quais amamentam, respondem: conveniência, por ser o
melhor leite para as crianças, por gostarem de amamentar, por ser o leite materno
propriedade dos filhos e não das mães, por ser obrigação de toda mãe, porque a criança
aceita etc. O que chama a atenção é que algumas mães consideram a amamentação materna
melhor para a criança ainda que, na prática, desmamem cedo os filhos.
Spindel pergunta: não seria o tempo pretendido de amamentação um tempo
socialmente idealizado e o tempo praticado o efetivamente desejado? E comenta: "o
aleitamento materno, embora um fato biológico, é um ato social e, como tal, regido por
valores que controlam a performance socialmente esperada. O desempenho de um ato social
pode merecer, objetiva ou subjetivamente, prêmios ou punições, conforme o grau de
aproximação ou afastamento dos padrões socialmente estabelecidos... Como o 'pretender' é
um projeção no tempo do 'querer', este deverá responder aos valores e padrões vigentes para
cada época e em cada sociedade" (SPINDEL: 1984,64-65).
O trabalho de Berquó, realizado em 1981, em São Paulo, quase 20 anos
depois, mostra que as mães alegam, praticamente, os mesmos motivos para amamentar ou
não. Dentre estes, destacam-se o leite fraco ou insuficiente e a recusa da criança quando se
trata do desmame. No discurso, a mulher delega a responsabilidade pelo não aleitamento
para o leite ou para o bebê. Estes motivos, tão presentes no discurso feminino, não devem
corresponder à realidade, pois são muito raras as causas médicas que impossibilitam a
amamentação. Há, seguramente, uma inconsistência entre o discurso feminino e a verdade
biológica do evento lactação. As respostas das mulheres retratam uma forma socialmente
aceita sobretudo para o fato de não quererem amamentar, de modo a não ferir a sua autoestima (CUKIER: 1984,42). As mulheres dificilmente reconhecem o fracasso no seu papel
de mães, o que inclui a prática da amamentação. Provavelmente, as convenções sociais são
121
tão fortes e proibitivas que as mulheres não deixam transparecer, nem para si mesmas, que
não quiseram amamentar. Há mães que, não querendo amamentar, lançam mão de
argumentos aparentemente irrefutáveis, pois, em nossa sociedade, não há espaço para que a
mãe exponha a sua incapacidade emocional de amamentar, sem que isto seja visto como
uma forma de desafeto (VILLA: 1985,52-53).
O discurso das mães se refere principalmente ao desmame. Em relação ao
fato, as respostas são prontas e estereotipadas, adaptadas ao que seja socialmente aceito e às
expectativas do meio cultural. Dificilmente as mulheres assumem que não amamentam por
decisão pessoal. Para Spindel, as não-respostas devem ser encaradas como uma forma,
consciente ou inconsciente, de defesa e transferência de responsabilidade a fatores aleatórios à vontade feminina (SPINDEL: 1984,68). O seu discurso é um escudo de defesa das
punições que possa merecer por não ser uma boa mãe, pois um dos definidores sociais de
boa mãe é ser boa nutriz (SPINDEL: 1984, 70).
Quando as mulheres são interrogadas sobre o porquê das outras mulheres
pararem de amamentar os seus filhos mais cedo que o desejável, surgem respostas
diferentes e talvez mais próximas da verdade: o aleitamento é percebido como algo
inconveniente, fisicamente cansativo e prejudicial à estética do seio feminino (SJOLIN:
1977,507). Outras consideram o trabalho fora do lar como fator importante no desmame,
embora raramente mencionem este motivo quando a pergunta é dirigida a elas próprias
(SJOLIN: 1979,157). Parece que as mães não podem admitir para si mesmas tais razões,
sem experimentar uma sensação de fracasso, culpa ou angústia.
Outra causa alegada pelas mulheres para explicar o desmame é a necessidade
de anticoncepção. Muitas mulheres passam a fazer uso das pílulas anticoncepcionais que
reduzem a secreção do leite, sobrevindo o desmame. As mulheres que usam anticoncepcionais hormonais amamentam menos. Isto pode estar vinculado à sua situação social, pois
seu uso é mais freqüente no meio urbano, entre as mães de mais alta escolaridade e renda.
É interessante observar que os motivos e razões utilizadas na propaganda
coincidem com as razões alegadas no discurso das mães sobre o desmame. Assim, as mães
apontam o leite fraco ou insuficiente como motivo para a suspensão do aleitamento. A
propaganda visualiza o leite em pó como um alimento que deixará o bebê forte e com saúde
"quando o leite materno não for suficiente". Para Fredericq, "todo o esquema de propaganda
das empresas de leite em pó é montado em cima dessa inibição psicológica do reflexo
natural de lactação" (FREDERICQ: 1982,149). Segundo Campbell, a propaganda manipula
122
o reflexo de ejeção11, biopsíquico, provocando uma dependência dos substitutos do leite
materno (CAMPBELL: 1984,556).
A introdução precoce da mamadeira rompe o ciclo fisiológico da lactação,
podendo impedir ou dificultar a apojadura — descida do leite. A mãe tende a comparar o
colostro com outro tipo de leite, concluindo que seu leite é de má qualidade. "A mãe introduz
a mamadeira nos primeiros dias de vida do bebê por não confiar na qualidade de seu leite.
Posteriormente, este procedimento acarreta a diminuição da estimulação que, por sua vez,
leva à diminuição da produção láctea. Esta seqüência de eventos faz com que a mãe passe a
alegar como motivo do desmame a quantidade insuficiente de leite" (GOLDENBERG et al. :
1983,75).
É curioso ilustrar este exemplo da articulação dialética entre o pensamento
latente no público e o reforço a esse pensamento produzido pela propaganda, que resulta
em um impacto cada vez maior sobre a mentalidade dos consumidores, trazendo à tona
idéias pouco difundidas que vão se tornando cada vez mais conhecidas e divulgadas. A
divulgação reafirma o conhecimento anterior que se torna cada vez mais difundido, e assim
por diante.
Rea & Cukier realizaram um estudo sobre razões de desmame e introdução
da mamadeira, utilizando entrevistas únicas e múltiplas. Quando se compara a "entrevista
única" com as "entrevistas múltiplas", caem as proporções de respostas tipo: doença ou
choro do bebê e razões de ordem conceitual como "leite materno tem de ser complementado"
e "amamentar exclusivamente não basta". Em compensação, aumentam as respostas tipo:
"tive que trabalhar fora de casa", "nervoso" ou "falta de paciência". Não se alteram as
razões "leite fraco ou insuficiente", "influência de terceiros" e "a mãe não quer amamentar".
Notam as autoras que, ao se permitir à mãe que reveja seu discurso em várias entrevistas, ela
passa a responsabilizar mais a si própria (ato de vontade) do que ao bebê ou ao seu próprio
corpo (REA & CUKIER: 1988,188). Consideram ser difícil obter das mães respostas
completas e confiáveis em um estudo transversal. É de se notar, porém, em um estudo de
seguimento como este, a grande possibilidade de intervenção do observador. As mulheres
podem adaptar suas respostas às expectativas dos entrevistadores.
Na realidade, em geral, não se estudam as razões do desmame, mas o discurso
feminino sobre estas razões. Esse discurso é dinâmico e está sujeito a mudanças
11
A lactação, enquanto evento biológico é controlada por dois hormônios: a prolactina, secretada pela
hipófise anterior, é responsável pela produção do leite e a ocitocina, secretada pela neurohipófise ou hipófise
posterior, promove a ejeção láctea. Este último hormônio, a ocitocina é secretado em resposta à sucção e é
sensível às reações emocionais, sendo responsável pelo let down reflex.
123
consideráveis. As razões de desmame são diferentes quando os trabalhos são conduzidos em
áreas rurais ou urbanas, ou conforme a idade em que o desmame ocorreu. "Sob esse
enfoque, não se compreende a ação humana independentemente do significado que lhe é
atribuído pelo autor, mas também não se identifica essa ação com a interpretação que o ator
social lhe atribui" (MINAYO: 1989,9).
Parece que as razões que levam ao desmame são complexas e resultam da
somatória de "pequenas" razões, algumas delas ligadas a motivações femininas, outras
ligadas a processos sociais mais amplos que estudamos no decorrer deste trabalho. Na
percepção feminina, refletida no seu discurso que tende a expressar o que seja socialmente
aceito, a mamadeira é introduzida por conveniência, nervosismo ou ansiedade da mãe, em
virtude do trabalho fora do lar ou porque encontra dificuldades em continuar (o que
poderíamos chamar de "crises de lactação") etc. E o desmame é percebido como resultado
de um evento final como: o "leite secou", ou o "bebê não quis mamar". Tais razões que
aparecem no discurso feminino perpassam as diferentes culturas, como notaram Gussler &
Briesemeister, considerando a síndrome do leite insuficiente como um fenômeno
transcultural. De qualquer modo, o discurso só relata o evento perceptível final, que causou
diretamente o desmame e tais razões são, geralmente, as mesmas em todas as mulheres.
Porém, as motivações culturais embutidas que podem levar ao desmame não se encontram
presentes no discurso de motivos e são, provavelmente, diferentes para cada cultura.
De qualquer forma, não entendemos correta a tentativa de querer estudar o
discurso feminino sobre o desmame através da atribuição de áreas de "responsabilidade" da
mãe, do bebê, de terceiros ou a razões de força "maior". A mulher pode, inclusive, perceber o
desmame como tendo ocorrido por sua "responsabilidade", mas os indivíduos não têm total
responsabilidade sobre os processos sociais. Agem condicionados por valores e
expectativas socialmente condicionadas.
Por isso mesmo, achamos que tais razões devem ser buscadas estudando-se os
processos e as relações sociais, como as dificuldades que a mulher enfrenta no cotidiano, no
trabalho, no apoio social à criação dos filhos ou as pressões materiais que a forçam a
trabalhar para garantir a sobrevivência da família etc. A percepção dos indivíduos de tais
processos sociais mais amplos é muito variada e, geralmente, vaga e inconsistente. Em
assim sendo, tais razões não podem aparecer no discurso feminino. No estudo do discurso,
analisa-se a aparência do fenômeno, ou seja, como ele é visualizado pelas mulheres de
diferentes níveis sociais. Porém, a essência desse processo só poderá ser revelada através de
estudos sócio-antropológicos mais amplos.
124
Em outras palavras, não se pode tomar os motivos discursivos das mães
como as verdadeiras causas do desmame. Sendo o aleitamento um processo social, que tem
historicidade, a explicação linear dos fatos não pode caber como interpretação. O estudo do
sociologicamente visível, isto é, a aparência expressa no discurso dos sujeitos, é apenas a
primeira aproximação ao estudo da essência dos fatos, do sociologicamente invisível.
Cukier experimenta algo nessa direção, fazendo uma abordagem indireta das
razões do desmame. Desloca a pergunta da mãe, através do inventário de atitudes. Procede à
narração de 24 estórias curtas sobre o aleitamento, solicitando da mãe uma escolha entre
três alternativas. Tenta, assim, apreender outros motivos não percebidos ou verbalizados
pelo discurso feminino. Encontra como razões mais freqüentes: ansiedade pessoal e sentimento de culpa interna pelo desconforto e nervosismo frente ao choro do bebê, por não
corresponder à sua expectativa própria ou à social, ou devido à baixa auto-estima;
conformismo e passividade (faz parte dos ossos do ofício do papel social de mãe). Conclui
que "as mulheres... se referem ao aleitamento natural enquanto uma tarefa obrigatória da
mulher e à qual ela deve se submeter porque é o que se espera dela; ainda que esta tarefa lhe
cause conflitos internos e alta ansiedade relacionada, sobretudo, com a saúde do bebê e com
uma forte expectativa interna de ser uma boa nutriz e, portanto, boa mãe" (CUKIER:
1984,50). Sem dúvida, este é um modo criativo de enfrentar o problema do discurso
feminino não refletir as razões verdadeiras de desmame, as quais, sendo freqüentemente
contrárias às expectativas e aos valores socioculturais, são, em geral, racionalizadas pelas
mulheres.
Outras causas que surgem são a influência da opinião do médico, a falta de
auxílio externo (marido), contexto emocional e familiar adverso e o fato do aleitamento
natural tolher a liberdade de tempo e ação da mulher. Para algumas mulheres, o aleitamento
é considerado uma tarefa fatigante ainda que um dever da mãe e uma experiência de vida
ansiogênica. Pode, ainda, estar relacionado à depressão, decepção e rejeição do bebê. Mas,
no discurso, algumas mães confessam que devem se conformar com este destino porque é
melhor para os seus filhos. Parece que o aleitamento é percebido como um fardo mais em
Recife e pelas mulheres pobres de São Paulo. As mães mais ricas de São Paulo consideram
a amamentação agradável e que eleva a auto-estima feminina (CUKIER: 1984, 54), ainda
que para muitas outras desta mesma classe, o aleitamento cansa, enfraquece e causa
emagrecimento ou deforma os seios.
Nota-se a ambivalência de sentimentos em relação ao aleitamento: o dever
ansiogênico, pode ser, simultaneamente, o desejo gratificante. Assim, nos revela Cukier:
125
"uma mulher pode, num momento, ficar muito satisfeita se observa que seu bebê dorme
tranqüilo e saciado e, num outro, ficar muito ansiosa e descontente se ele chora e parece não
estar bem (CUKIER: 1984,59). Neste caso, o aleitamento é vivido, simultaneamente, como
fardo e desejo prazeroso. Percebe-se a persistência de expectativas socioculturais
contraditórias no interior dos sujeitos. Os mecanismos reguladores da amamentação
arcaicos e modernos podem estar coexistindo nas mulheres. Para um determinado tempo
social, corresponde um papel cultural de mãe e nutriz e certo modelo regulador. É que,
anteriormente, o aleitamento era um dever do papel de mãe. Hoje foi redefinido, emergindo
um novo saber regulador: o aleitamento brota como um desejo do interior das
personalidades. A vivência da contradição persiste no discurso: amamentar pode continuar
sendo, em nossa sociedade, um obstáculo à realização feminina em muitos aspectos. Mas o
desejo feminino também passa a decidir sobre a maternidade, sua oportunidade e os encargos
reprodutivos resultantes.
Este novo mecanismo regulador, do desejo autônomo e consciente, surge no
discurso das mulheres, talvez porque lhes parece permitir uma maior liberdade. Mas para
que, talvez, as mulheres não se tornem prisioneiras de uma nova trama, a de desejar sempre
o desejo, precisam travar uma longa e árdua luta. Sem a modificação do papel idealizado de
mãe, sem uma maior socialização dos encargos reprodutivos e de criação dos filhos, a
sociedade poderá continuar exigindo comportamentos e atitudes pré-estabelecidos e
compatíveis com o papel de mãe definido há algumas décadas atrás: a mãe amorosa, capaz
de fazer tudo pelo filho, sem ajuda social externa. É claro que tais valores estão sofrendo
mudanças e, muitas mulheres de classe média estão vivenciando a maternidade com menos
fardo e com maior auxílio social e isto transparece no discurso de muitas delas, que estão
mais conscientes dessas mudanças.
Como a maioria delas, no entanto, ainda não se conscientizou, tem razão
Spindel, quando pergunta se elas não estariam assumindo uma culpa que não lhes cabe. E
analisa a hipótese do "sucesso" ou "insucesso" na prática do aleitamento ser, em grande
parte, "decorrente dos contextos sócio-políticos, econômicos, culturais e familiares nos quais
esta se insere, interferindo, objetiva ou subjetivamente, física ou emocionalmente, na sua
performance como mãe nutriz" (SPINDEL: 1984,69).
De fato, é provável que a má qualidade e a fraqueza do leite sejam causas
extremamente relativas e que podem traduzir antes uma insegurança da mãe frente à sua
própria capacidade de amamentação do que um fato cientificamente demonstrado. "As mães
entrevistadas parecem traduzir, com estas palavras, fortes pressões socioculturais,
126
econômicas ou emocionais, que inibem seu reflexo de liberação de leite" (FREDERICQ:
1982,148). O choro da criança passa a ser interpretado como sintoma de "leite insuficiente".
A mãe pode ficar ansiosa com o choro da criança e pensar que o seu leite não é suficiente. O
"leite fraco" pode representar o medo de que o leite não sustente a criança.
Como já salientamos, raramente há falha biológica na produção do leite. O
mais das vezes o que ocorre é uma interferência psicológica no reflexo de ejeção. Mesmo
as mulheres que desejam amamentar podem sucumbir fisiologicamente à ideologia
dominante que abala sua autoconfiança e seus valores sociais, fazendo-as verdadeiramente
incapazes de produzir leite suficiente, devido às sensíveis respostas hormonais
(CAMPBELL: 1984,563). Obviamente tais fatores não surgem no discurso das mães, ou só
surgem raramente. Quais mães saberiam que o reflexo de ejeção (let down reflex) governa o
fluxo de leite, que as reações emocionais, as tensões da vida urbana, o stress, o cansaço,
podem inibir a secreção láctea? Ou que, como bem observa Spindel, "o let down reflex é
estimulado positivamente com a sucção e, portanto, é diretamente ligado aos hábitos de
amamentação em cada sociedade (tempo de duração da mamada, espaçamento entre as
mamadas, rigidez horária etc)"? Ou, ainda, que "o hormônio é sensível a variações
emocionais, fadiga, stress, falta de motivação, situações que podem ser deslanchadas por
circunstâncias que fogem ao controle ou à vontade da nutriz" (SPINDEL: 1984,69)?
8. A MUDANÇA NAS PERCEPÇÕES SOBRE O ALEITAMENTO:
A partir da década de 70, os médicos e a opinião pública começam a acordar
para os problemas causados pelo declínio da amamentação. Inicia-se uma polêmica entre
diversos segmentos sociais e as indústrias produtoras de leite. Acusam-se as indústrias de
serem responsáveis, através da propaganda e de suas estratégias promocionais, pelo
desmame precoce e pelas mortes infantis em muitos locais sem saneamento básico.
Abrindo o debate, em 1974, Mike Muller, um jornalista, escreveu "O
Matador de Bebês" (The baby killer), uma investigação da War on Want, uma organização
internacional contra a pobreza no mundo, sobre a promoção e venda de leites em pó para
bebês no Terceiro Mundo, no auge desta campanha internacional contra as indústrias
produtoras de leite.
Assim nos fala Muller na introdução do seu relatório: "O objetivo deste
relatório não é provar que os leites infantis matam bebês. Em condições ótimas, com
127
preparação e higiene apropriadas, eles podem ser um alimento infantil perfeitamente
adequado. Porém, na maior parte do Terceiro Mundo, as condições estão longe de serem
ótimas. E em comunidades onde o nível de vida é baixo, a habitação é pobre e as mães não
têm acesso às facilidades básicas... os leites infantis podem ser assassinos". Prossegue
observando que não é seu objetivo "provar que a indústria de alimentos infantis é a única
responsável por essa tendência. A mudança social é um fenômeno complexo e a tendência
para a alimentação artificial é particularmente acentuada em comunidades urbanas
recentes" (MULLER: 1981,5).
Começa-se a admitir que, embora os leites industrializados tenham sanado as
dificuldades de utilização do leite in natura, se omite a possibilidade de sua contaminação
durante o preparo (GOLDENBERG & TUDISCO: 1983,77-78). Os médicos passam a
considerar que as condições de vida das populações pobres não permitem o preparo
higiênico do leite em pó, que será contaminado no processo de preparação. E
complementam: as mães não dispõem de geladeiras, fogões, água filtrada ou rede de
esgotos; têm poucos utensílios de cozinha e, algumas vezes, utilizam a lenha como
combustível; há que se acrescentar os custos dos combustíveis para a esterilização e o custo
das mamadeiras e bicos e, como o leite é caro, as mães são obrigadas a diluí-lo e
acrescentar farinha para engrossá-lo e render mais. Os médicos afirmam que isto provoca
uma redução na ingestão de proteínas que, ocorrendo continuadamente, poderá resultar em
desnutrição. As companhias se defendem alegando que os seus produtos são acompanhados
de folhetos ilustrativos ensinando como prepará-los. E os médicos rebatem: como isto
poderia funcionar em populações na maioria analfabetas? Alegam um desencontro entre os
meios disponíveis no equipamento cultural e os comportamentos necessários para o preparo
do leite.
Por sua vez, Muller observa que "o declínio na amamentação significa um
custo econômico muito grande para os países menos capacitados para desperdiçar recursos.
Divisas valiosas ou recursos internos de produção estão sendo desviados para a compra ou
produção de substitutos do leite materno" (MULLER: 1981,57). Milhões de cruzeiros são
gastos pelo fato da mulher não amamentar, sendo muito grande a perda econômica, pelo
desperdício de muitos litros de leite humano. O país tem ganhos econômicos importantes
quando as mães amamentam, por razões óbvias, principalmente quando o leite artificial é
importado.
Para a maior parte das mães no Terceiro Mundo, a mamadeira não seria uma
alternativa viável. Os gastos com a compra do leite em quantidade adequada consumiriam
128
de 30 a 47% do salário mínimo para alimentar-se apenas uma criança (MULLER: 1981,17).
Em vista disso, o Dr. Farquhar, pediatra da Universidade de Edimburgo considera que "a
alimentação com mamadeira de forma esclarecida, adequada e relativamente segura, deve
seguir, ou pelo menos, acompanhar, mas nunca preceder, a alfabetização, educação,
suprimento de água não contaminada, saneamento e um nível de vida que permita adquirir
alimentos para bebês em quantidade suficiente, equipamentos e meios para esterilizar"
(apud MULLER: 1981, 19).
Atento a estes problemas, o prof. Jelliffe cunhou a expressão "desnutrição
comerciogênica" para mostrar a desnutrição gerada pelo comércio não ético de alimentos
infantis para bebê.
As companhias de leite em pó se defendem dessas acusações, alegando que o
leite em pó evita as mortes das crianças cujas mães não podem amamentar e que a
mortalidade infantil tem decrescido mais nas áreas urbanas, onde é maior o consumo de
fórmulas. Os médicos discordam destas colocações alegando que, embora este fenômeno
possa coincidir em algum ponto, não se pode afirmar que foi o uso de fórmula que causou
um decréscimo na mortalidade. As empresas referem que a migração urbana provocou um
aumento da participação da mulher na força de trabalho, tornando necessário um substituto
para o leite materno e contestam a condenação à distribuição de amostras grátis, alegando
que isto constitui uma forma de filantropia.
A análise deste debate demonstra uma tomada de consciência de muitos
setores sociais acerca do problema do desmame precoce. A sociedade começava a acordar
para as conseqüências disfuncionais do abandono do aleitamento. Essas percepções
denotam o surgimento de uma nova preocupação com o assunto, que culminou, poucos anos
depois, com a retomada da amamentação.
129
CAPÍTULO V — A REDESCOBERTA DA AMAMENTAÇÃO
1. O FENÔMENO DA RETOMADA DO ALEITAMENTO:
Na década de 80 passa a se assistir no Brasil à mesma reviravolta do início do
século. Os médicos redescobrem o aleitamento, passam a condenar a administração de
alimentos sólidos, sucos ou leite de vaca antes do sexto mês de vida e iniciam uma campanha
na sociedade em defesa do aleitamento. A percepção da mortalidade infantil aumentada nas
classes subalternas, que passam a fazer uso da alimentação artificial, cada vez mais
freqüentemente, desde a década de 40, sem praticar os conhecimentos de higiene (lavagem
das mamadeiras, fervura e esterilização), é novamente o motivo que se percebe como
principal nesta reorientação. Mas agora, diferentemente do ocorrido no início do século, o
aleitamento não será visto tão somente como um meio de estímulo à sobrevivência e
aumento da natalidade mas, ao prolongar a amenorréia pós-gravídica, passa, também, a ser
visualizado como importante meio de redução da natalidade.
A sociedade desencadeia uma campanha pró-aleitamento. "Se bem que os
motivos da atual campanha a diferenciem daquelas promovidas nos séculos XVIII e XIX,
nunca deixou de haver interesses políticos envolvidos... o Estado passou a se infiltrar nas
relações mãe-filho. Essas relações familiares, que pareciam puramente emocionais e
afetivas, começaram a sofrer intervenção política em função dos interesses do Estado e de
certas classes sociais" (ORLANDI: 1985,114). "O problema, atualmente, é um pouco
diferente. Antes a disputa era seio materno x seio da ama-de-leite; agora é seio materno x
mamadeira de leite em pó" (ORLANDI: 1985,121). Embora as campanhas assumam formas
diferentes e utilizem argumentos diversos, muitas coisas são semelhantes. É sobre este
processo em curso que nos deteremos nos parágrafos subseqüentes.
Entretanto, independentemente das motivações, como já notamos mais de
uma vez, a freqüência da retomada do aleitamento segundo as classes sociais vai variar,
obedecendo, em nossa opinião, ao processo de difusão de elementos culturais. Assim,
enquanto nos anos 60 o aleitamento era extremamente raro nas classes dominantes, ainda
era relativamente freqüente nas classes subalternas urbanas e muito comum na área rural. Já
na década de 80, enquanto as classes dominantes redescobrem o aleitamento e voltam a
desejar a amamentação, as classes subalternas ainda estão absorvendo os resultados do
processo de difusão iniciado há 40 ou 50 anos atrás, de modo que nelas, agora, o desmame é
um processo muito freqüente. As mesmas motivações descobertas pelas mães ricas dos anos
130
60 para desmamar os seus filhos são encontradas hoje nas classes pobres: leite fraco, leite
secou, a criança largou o peito etc. Mas há uma reviravolta entre os médicos que passam a
apoiar a prática tradicional baseados em razões "científicas" bem fundadas. Cremos que, em
boa parte, tão "científicas" quanto aquelas que possuíam em relação à alimentação artificial.
Se agora bradam contra os preconceitos e ignorância das mães em relação ao aleitamento
materno, esquecem-se de que são preconceitos que, no passado, ajudaram a formular e
difundir no organismo social. Não percebem que faziam parte do saber médico de não
menos de 40 anos atrás. Ou seja, a "ignorância" atual das mães nada mais é do que a
"ignorância" dos seus antecessores médicos da geração precedente. Sejamos justos,
contudo, parece que há, hoje, um conhecimento científico realmente mais aprofundado. As
razões podem ser, de fato e parece que são, mais científicas do que ideológicas. De qualquer
modo, como assinala Loyola, "a atual campanha em favor da amamentação é a evidência
mais cabal desta contradição: toda a ciência médica e das áreas afins é mobilizada para
restaurar a naturalidade que a própria ciência desnaturalizou" (LOYOLA: 1983,46).
Para os médicos dos anos 80, o leite materno tem uma superioridade
incontestável, tanto do ponto de vista nutricional e imunológico, como quanto ao
estabelecimento de um contato mais intenso entre filho e mãe. Não há dúvida de que
constitui a fonte de proteínas mais simples, mais econômica e menos sujeita à
contaminação, sendo, além do mais, um poderoso método biológico para o controle da
natalidade. Também não há dúvida de que o desenvolvimento psíquico da criança é
facilitado por um contato íntimo e uma troca afetiva profunda entre mãe e filho e que essa
troca é estimulada pelo calor emocional e físico da amamentação, que é ou pode ser fonte
de prazer tanto para a criança como para a mãe que amamenta.
Os médicos contemporâneos consideram que o leite materno até os primeiros
4 a 6 meses de vida, pode suprir todas as necessidades nutricionais da criança; tem uma
composição bioquímica ideal e não imitável, é bacteriologicamente puro, protege contra
infecções bacterianas e virais e é mais cômodo de usar. Conseqüentemente, "as crianças
amamentadas são mais ativas e caminham mais cedo, alcançando, também, um maior
número de pontos nos testes de inteligência e desempenho" (MULLER: 1981, 50). O
aleitamento protege o recém-nascido contra as gastroenterites e as septicemias, proteção
esta que é máxima nos primeiros seis meses de vida, proporcional à quantidade de leite no
regime alimentar (MANCIAUX: 1982,39). A proteção é maior para as doenças mais graves
e independe do estado sócio-econômico para se manifestar.
Em contrapartida, hoje começam a surgir estudos mostrando que o leite
131
artificial está associado à maior incidência de obesidade, hipertensão e doenças
coronarianas na idade adulta. No caso do leite de vaca, ele é associado com doenças
alérgicas.
O surgimento das preocupações com a retomada do aleitamento acompanha
as mudanças que se dão no discurso e na prática das organizações internacionais sobre a
criança. Desse modo, na década de 80, surge a "revolução em prol da criança". Este
discurso afirma que as taxas de mortalidade infantil nos países em desenvolvimento podem
ser reduzidas em curto prazo, sem esperar pelo desenvolvimento econômico, através de
tecnologias apropriadas ou intervenções de baixo custo, como a vigilância do crescimento e
desenvolvimento infantis, a hidratação oral, melhores produtos para o desmame,
imunizações, suplementação alimentar, planejamento familiar, incluindo espaçamento entre
partos e aleitamento materno (GRANT: 1983,2-8). Tais medidas melhoram a razão
recursos/resultados, sendo mais eficientes. Todas estas mudanças seriam passíveis de
ocorrer a despeito da recessão econômica e da extrema desigualdade nas trocas comerciais e
no fluxo de capitais entre as nações.
Como podemos observar, o incentivo ao aleitamento materno tem se
englobado, sob influência de experiências realizadas em outros países, à revolução em prol
da infância. Hoje, o aleitamento faz parte das políticas públicas de saúde, visando-se
atenuar a mortalidade infantil, num esforço de mudança social dirigida. O aleitamento,
apesar de não ser a única medida incluída nos programas, está presente no discurso dos
organismos internacionais que influenciou as instituições nacionais do setor saúde.
A ação das instituições exemplifica o nascimento do Estado planificador,
onde opções políticas são mostradas como dotadas de racionalidade técnica. O desmame
tornou-se disfuncional, elevando a mortalidade infantil. O aleitamento materno, enquanto
questão social e política, faz parte do esforço planificador de intervenção na mortalidade
infantil sem a necessidade de alterações na estrutura socioeconômica e de distribuição de
renda. Insiste-se em medidas simples que podem resultar em melhoria na saúde, como o
retorno à amamentação, que podem ser realizadas pelos próprios indivíduos sem a
necessidade de maiores gastos do setor público. Incentivam-se soluções a nível comunitário
e o auto-cuidado de saúde pelos indivíduos.
A este respeito, a seguinte citação de Florestan Fernandes é muito
elucidativa. Em sua opinião, "a mudança social espontânea tende a ser substituída, em
várias esferas da vida, pela mudança provocada e dirigida" (FERNANDES: 1960,37). O
aleitamento materno é um exemplo dessas novas tentativas de controle sobre a direção e o
132
ritmo das mudanças. As suas causas, motivações, padrões de comportamento e meios de
intervenção para modificar a realidade têm sido estudados e empregados com este objetivo
por diversas instâncias sociais, dentre as quais se destacam setores do UNICEF, do
Ministério da Saúde e da Sociedade Brasileira de Pediatria, dentre outras. O uso da
propaganda, da educação dirigida e da promoção do aleitamento materno por alguns
círculos sociais é um exemplo da utilização crescente do planejamento na sociedade
contemporânea.
No discurso internacional, as mães pobres são responsabilizadas pela sua
ignorância sobre a amamentação e pelo desmame precoce. O aleitamento materno
transforma-se em "nova arma contra a desnutrição". O milagre do leite materno de uma mãe
desnutrida, cansada, responsável pela casa, por outros filhos e pelo sustento da família — é
que vai ser a nova solução salvadora". Blay discorda de alguns autores, segundo os quais a
amamentação ajuda até a adaptação da criança ao meio social, evitando, inclusive, a
marginalidade e condutas violentas (BLAY: 1983,130).
Hoje, os profissionais de saúde e a sociedade acordaram para os problemas
ligados ao decréscimo do aleitamento. O programa da Organização Mundial de Saúde sobre
a alimentação de lactentes, por exemplo, tem buscado fornecer apoio à lactância natural,
promover práticas apropriadas de desmame, tornar mais adequada a comercialização dos
sucedâneos do leite materno e proporcionar a melhora da saúde e da situação da mulher,
fazendo suas condições de vida mais propícias à amamentação. Assim, recomenda-se a
licença remunerada para a maternidade; maior segurança contratual durante a gestação e o
parto; instalação de creches e locais adequados para a amamentação no trabalho; intervalos
remunerados para o aleitamento; tecnologias para aliviar a carga de trabalho feminino;
mudança nos procedimentos hospitalares e educação comunitária sobre a gestação, lactação
e desmame.
Se bem que já em 1975 tenham se iniciado as preocupações governamentais
com o tema do aleitamento, através do programa de saúde Materno-Infantil, propondo-se o
estímulo à amamentação como forma de redução da morbimortalidade infantil, ainda se
superpõem, para o grupo de crianças de 0 a 6 meses, as ações de apoio ao aleitamento e a
distribuição de suplementação alimentar, com resultados contraditórios. De fato, pode se
dizer que ocorre um efeito antiamamentação no programa governamental de distribuição
gratuita do leite (REA: 1984,37). Se, de um lado ele é um instrumento gerador de demanda
aos Centros de Saúde, de outro ele favorece a predominância das funções de assistência
sobre as atividades educativas e preventivas.
133
Mais recentemente, em março de 1981, o Ministério da Saúde, através do
INAM (Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição) e com apoio do UNICEF, lançou o
Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno. O programa, ainda em curso,
pretendeu aumentar a prevalência e a duração do aleitamento até pelo menos 4 a 6 meses.
Sugeriu-se a necessidade de várias mudanças nas práticas dos serviços de saúde, dentre as
quais: educação sobre o tema nos ambulatórios médicos de pré-natal e puericultura, nas
comunidades e nos meios de comunicação de massa, com sua inclusão no currículo escolar
de 1º. ou 2º. graus12; formação dos profissionais de saúde em assuntos sobre aleitamento;
instituição do alojamento conjunto nos hospitais, cumprimento da legislação trabalhista de
proteção à mulher, instalação de creches e melhorias na licença-maternidade (visando, no
caso, conciliar a amamentação com a participação da mulher na força de trabalho).
Outras metas propostas foram: estímulo ao parto natural, evitando-se
cesarianas e anestesias desnecessárias; desestímulo ao uso de drogas, episiotomias e
modificação das rotinas hospitalares rígidas; início do aleitamento imediatamente após o
parto e baseado na livre-demanda; restrição ao uso de substitutos do leite materno; melhoria
na nutrição materna; incremento do apoio familiar e social à nutriz trabalhadora; intervalos
remunerados para a amamentação; uso de tecnologias para aliviar a carga de trabalho
feminino e maior estabilidade no emprego.
Outras medidas aconselhavam a utilização de alimentos de desmame
disponíveis na região, mais baratos, de alto valor nutritivo, de fácil preparo com as
facilidades domésticas disponíveis e suplementação alimentar para grávidas e nutrizes.
Além disso, procurou promover medidas legislativas, estabelecer bancos de leite, empregar
cartazes, manuais, audiovisuais e seminários para divulgação e estimular as motivações e
atitudes maternas.
É claro que o programa era de difícil implementação. Vários obstáculos
deveriam ser enfrentados e superados para que se pudesse, efetivamente, executá-lo. Um
desses pontos delicados, quase nunca realisticamente arrostados pelo discurso médico é o
representado pelo aumento da participação feminina no mercado de trabalho formal e
informal, já que contribui, provavelmente, para um decréscimo no aleitamento, embora seja
fundamental para a efetiva libertação da mulher da posição de subalternidade que
12
Em relação à utilização do currículo escolar para incluir mensagens sobre o aleitamento, devemos notar
que os médicos tendem a pensar que as escolas não têm objetivos próprios. S óbvio que as escolas não
podem deixar de lado os seus conteúdos específicos. Segundo alguns estudos, se as escolas fossem atender a
todos os encargos extra-educacionais teriam que multiplicar sua carga horária por 4, o que mostra o
absurdo de todas as tentativas de setores os mais diversos em usar os currículos escolares para atingir seus
objetivos em detrimentos dos da própria escola.
134
normalmente ela possui na sociedade brasileira. De qualquer modo, os médicos tinham
proposto que a legislação deve evitar a separação mãe-filho até 4 meses após o parto para
aumentar-se a duração do aleitamento. Apesar de tudo, muitas vezes, o médico, apesar de
saber que o leite materno é o melhor para a criança, acaba oferecendo conselhos confusos à
mãe e prescreve substitutos precocemente, levando à ansiedade materna.
O grupo alvo deste programa eram as mães, principalmente primíparas, com
renda de até 4 salários mínimos, que não dispusessem de água encanada e saneamento nem
de acesso aos serviços de saúde. Os organizadores pretendiam, ainda, estimular pesquisas
sobre prevalência, conhecimentos e atitudes maternas sobre aleitamento.
Uma campanha de divulgação durou 45 dias, veiculando mensagens de
estímulo ao aleitamento em todos os grandes jornais, 100 estações de televisão e 600 de
rádio, e também em extratos bancários, contas de eletricidade e volantes de loteria esportiva. Ao mesmo tempo, um milhão e meio de panfletos sobre a alimentação ao seio foram
distribuídos nos centros de saúde e mais de 140 grupos femininos, em seis Estados,
lançaram campanhas educacionais (GRANT: 1984,13).
Esta campanha, desencadeada em agosto de 1982, utilizou a mídia
eletrônica, mobilizando depoimentos de personalidades consagradas pelo público e teve
uma grande penetração na população-alvo. Um levantamento realizado em uma favela de
São Paulo, um ano após o encerramento da campanha, mostrou que 45% das entrevistadas
que integravam a amostra haviam sido atingidas pela referida campanha e destas, 83%
retinham informações sobre o conteúdo da mesma (GOLDENBERG: 1988,145).
Muller analisa em seu livro a preocupação da indústria de alimentos infantis
com a sua imagem. Assim, a divulgação dos estudos associando leites infantis com
desnutrição e morte, provavelmente teve um impacto muito grande e despertou na indústria
o desejo de cooperar. De fato, a indústria sofreu muitas pressões dos governos e
organizações internacionais e o debate culminou com a aprovação pela Organização
Mundial de Saúde, em 1981, do Código Internacional de Comercialização dos Substitutos
do Leite Materno. Este código, embora não seja uma lei, passou a ser acatado em grande
parte pela indústria, temerosa do maior impacto das acusações de matadoras de bebês sobre
a sua reputação e vendas. As empresas temiam também pelo boicote aos produtos da Nestlé
que os consumidores americanos começavam a fazer, devido à divulgação destas denúncias.
O código inclui um controle sobre os anúncios e desaconselha a propaganda
direta às mães e famílias, incluindo distribuição de cartazes, amostras grátis de leites ou
brindes de mamadeiras e promoções em maternidades. Aconselha-se a propaganda apenas a
135
título informativo para os profissionais de saúde. O código não proíbe o financiamento de
eventos médicos pelas indústrias, o que estabelece vínculos entre as companhias e os
pediatras, facilitando o trabalho de propaganda (JÁCOMO et al.: 1985,417-422). E também
não limita a venda de leites para uso infantil às farmácias.
Percebendo que as práticas promocionais das indústrias poderiam estar
reforçando nas mães a idéia de que as fórmulas de leite podem ser usadas em lugar do leite
materno sem prejuízo para a criança ou até mesmo com vantagens, em 20 de dezembro de
1988, o Conselho Nacional de Saúde, em sua resolução no. 5, aprova as "Normas para
comercialização de alimentos para lactentes". Estas se aplicam aos leites infantis, alimentos
infantis para bebê, mamadeiras e bicos. Veda a promoção comercial para o público em geral
destes produtos, incluindo: ofertas de amostras, brindes, presentes ou utensílios a gestantes,
mães e ao público em geral; contatos diretos ou indiretos do pessoal de comercialização, a
título profissional, com gestantes, mães e familiares; utilização de descontos, venda a preço
abaixo de custo ou prêmios ao consumidor destes produtos; recomenda que a promoção
comercial deve incluir, em caráter obrigatório, e com o mesmo destaque, uma advertência
de que não devem ser utilizados como alimentos para lactentes nos primeiros seis meses de
vida, salvo sob orientação dos serviços de saúde. Determina que nos rótulos dos leites
infantis devem constar: mensagem sobre a superioridade da amamentação, declaração de
que o produto só deve ser utilizado quando orientado por profissionais de saúde e
ilustrações para a correta preparação do produto, incluindo medidas de higiene a serem
observadas e a dosagem para diluição, quando for o caso (MINISTÉRIO DA SAÚDE:
1989).
As normas dispõem, ainda, que fica vedada a utilização nas embalagens de
fotos infantis, frases como "leite maternizado", "substituto do leite materno", "quando não
for possível a amamentação" ou outras que possam sugerir o produto como ideal para a
alimentação do lactente ou pôr em dúvida a capacidade das mães de amamentar seus filhos.
As informações dos fabricantes com relação a estes produtos poderão ser fornecidas
unicamente aos profissionais de saúde e deverão restringir-se aos aspectos científicos.
Amostras de produtos só poderão ser distribuídas aos profissionais de saúde e somente
durante o seu lançamento ou para pesquisa.
A campanha de retorno à amamentação vem surtindo efeitos. Badinter,
contudo, considera um "estranho fenômeno essa nova moda de amamentar ao seio,
exatamente quando a mortalidade infantil atinge o seu nível mais baixo e nunca houve
melhores substitutos para o leite materno!" E nos coloca algumas hipóteses explicativas
136
para este fato, para as motivações das mulheres para amamentar e indaga sobre as pressões
inconscientes de que são objeto. Sugere, por exemplo, que muitas mulheres que não foram
ou foram pouco amamentadas pelas suas mães, talvez estejam pensando que, amamentando,
dariam à criança uma possibilidade suplementar de equilíbrio e felicidade; ou, que
estimuladas pela ideologia dominante, elas estão podendo proporcionar a si mesmas, um
prazer que antes não ousavam reivindicar. Entende, ainda que outras podem amamentar
pelo sentimento de culpa por trabalharem fora e, antes de deixarem o filho aos cuidados de
outros, amamentam numa compensação da ausência futura; algumas mulheres também
podem agir um pouco mecanicamente, obedecendo à moda (BADINTER: 1985,343-344).
Ainda que seja difícil entender as motivações profundas dos seres humanos, parece-nos
que seria ingênuo ver nesta retomada do aleitamento um sinal do devotamento natural da
mãe pelo filho.
O que nos perguntamos é se realmente teria sido a campanha e a publicidade
dada aos conselhos dos pediatras que produziram esses efeitos? Considerando os padrões de
difusão e analisando a inter-relação entre o discurso médico e a elite urbana, observamos
que as mulheres urbanas mais ricas e instruídas estão mais próximas do discurso médico e
captam primeiro as suas mudanças. Parece que, desde o surgimento da puericultura, as
mudanças nas práticas sociais com relação ao aleitamento ocorrem paralelamente à
mudança do discurso médico. Ora o discurso médico muda antecedendo as mudanças
sociais, ora o discurso acompanha as mudanças que se fazem na elite urbana. Em uma
determinada fase as mudanças podem ter começado no discurso médico, mas, em outros
momentos, o discurso é que incorporou as mudanças sociais. Assim, o abandono do
aleitamento que passou a ocorrer com a inovação tecnológica na produção do leite,
precedeu a mudança no discurso médico em relação à amamentação. Mas parece que, mais
recentemente, por ocasião da retomada do aleitamento, o discurso das elites científicas,
médico e psi, mudou antes e estimulou as mudanças sociais.
Observamos uma relação dialética entre o discurso e a mudança nas práticas
sociais. O discurso é condicionado pela realidade mas esta se modifica em face dele. Tal
modificação induz a uma mudança no discurso e assim por diante. Além do mais, um dado
ramo da ciência tem a sua própria história e uma evolução bastante independente dos
demais. O fato é que umas idéias são mais aceitas, outras não, conforme as condições
sociais.
Em relação às instâncias da difusão, as mesmas observações feitas
anteriormente em relação ao declínio do aleitamento permanecem válidas atualmente.
137
Entretanto, observa-se o surgimento de novos discursos que passam a ser, também,
elementos envolvidos na descoberta ou no empréstimo tomado a partir de outros países e
culturas, de novos modelos e padrões de comportamento em relação ao aleitamento. Dentre
os quais poderíamos destacar os discursos psicanalítico, epidemiológico, antinatalista etc.
Vamos discutir, a seguir, algumas explicações para a retomada do
aleitamento. Vimos que o acesso aos serviços coletivos, como creches, escolas maternais
etc, se dá preferencialmente pelo grupo de pessoas mais ricas e instruídas. Isto não poderia
explicar, em parte, o aumento da prevalência do aleitamento nesses estratos sociais?
Para Manciaux, vários fatores devem ser arrolados na explicação da
retomada do aleitamento: medidas legislativas, reorientação na organização dos serviços de
saúde, treinamento de profissionais de saúde, educação, motivação e participação da
população com maior acesso às informações científicas (MANCIAUX: 1982,36).
Para Loyola, as novas preocupações com o aleitamento e formação do
homem sadio podem estar vinculadas às exigências atuais de mão-de-obra especializada e
de alta produtividade, que só uma nutrição adequada pode proporcionar (LOYOLA:
1983,46).
Para explicar a retomada do aleitamento elaboramos algumas hipóteses: 1)
numa
sociedade
relativamente
complexa
e
dinâmica,
o
processo
de
socialização/ressocialização nunca está completo; 2) como as partes dessa sociedade são
interdependentes e como numa sociedade mais democrática (e capitalista também) as
relações entre os grupos e classes sociais tendem a ser menos de dominação/subordinação e
mais de igualdade ou de competitividade, o efeito-demonstração ocorre com mais
facilidade; 3) ele é facilitado, ainda, porque tais sociedades, relativamente modernizadas,
são bastante receptivas a comportamentos (e objetos) supostamente baseados na ciência e
na tecnologia (não podemos esquecer que a indicação do aleitamento parte dos pediatras e
que suas alegações têm um cunho inegavelmente racional e científico); 4) as sociedades de
que estamos falando tendem a ser bastante práticas no estabelecimento de relações entre
meios e fins; parece-nos, por exemplo, no caso do aleitamento, que dar o seio é muito mais
prático do que usar amas ou mamadeiras.
Entretanto, esse processo de mudança social é bastante complexo e teremos
oportunidade de, mais adiante, estudar alguns processos socioculturais e econômicos que,
em nosso entender, explicariam uma grande parcela das transformações ocorridas nesse
aspecto relevante da vida familiar em geral e da vida da mulher em particular. Antes,
porém, seguindo nossa linha de exposição que privilegia o estudo da difusão de elementos
138
culturais relativos ao aleitamento, pretendemos analisar as mudanças operadas na maneira
de pensar e de sentir de alguns grupos sociais significativos. Ou seja, pretendemos analisar
o seu discurso na relação que mantenham com a questão da amamentação.
2. O DISCURSO EPIDEMIOLOGICO:
Discutiremos, no presente item, as idéias de um novo discurso científico, a
epidemiologia, quando esta começa a tomar como objeto a questão do aleitamento. As
preocupações epidemiológicas com a amamentação haviam começado há bastante tempo,
provavelmente desde o nascimento desta disciplina, porém, só mais recentemente, com a
redescoberta da amamentação, a aplicação do saber epidemiológico se torna mais freqüente
na análise do assunto.
O discurso epidemiológico sobre o aleitamento não constitui um corpo
fechado mas um saber em pleno movimento. Traz, como novidade, a incorporação de
métodos estatísticos mais sofisticados e uma análise numérica do assunto mais aproximada,
com os inquéritos de prevalência. Inicia a análise da matéria incorporando variáveis tais
como situação social, escolaridade, renda familiar etc. Observa-se, mais recentemente, o
surgimento de estudos multidisciplinares sobre o aleitamento, englobando, além da
epidemiologia, saberes da sociologia, psicologia, demografia, dentre outras ciências.
Como enfatizamos na introdução deste trabalho, este discurso, ainda que não
esteja livre de juízos de valor, possui, sem dúvida, maior dose de cientificidade.
No discurso epidemiológico, no caso veiculado pela Organização Mundial
de Saúde, procura-se mostrar como teriam se processado as mudanças em relação à
amamentação. Nesta análise, leva-se em conta 3 grupos: população urbana de alta renda,
população urbana pobre e população rural. Assim, como se pode observar na figura 1, são
percebidas, por alguns epidemiologistas, 3 etapas na evolução das práticas de aleitamento:
na primeira etapa, todos os grupos teriam alta prevalência. Esta fase é chamada tradicional.
Na etapa 2, a população urbana de alta renda passaria a amamentar menos. Nas etapas 3 a 5,
observa-se-ia uma descida da prevalência que, tendo começado pelo grupo urbano mais
rico, passaria a ocorrer no grupo urbano pobre e na população rural. Ao final da fase 5, a
prevalência média do aleitamento seria muito baixa. Na etapa 6, o grupo urbano de alta
renda recomeçaria a amamentar, porém os outros grupos ainda permaneceriam em declive.
Na etapa 7, o grupo urbano de alta renda passaria a amamentar ainda mais, e já começaria a
139
ser seguido na volta à amamentação pelos outros dois grupos. Por fim, na etapa 8, todos os
grupos sociais se encontrariam na fase ascendente. Comparando-se a etapa 1, tradicional,
com a etapa 8, observar-se-ia que a prevalência média do aleitamento, apesar do aumento
recente, seria bem mais baixa na última do que na primeira fase (DINÂMICA: 1983,39).
Ainda segundo esta percepção, no mundo moderno encontrar-se-iam
populações percorrendo muitas destas etapas. Na Ásia e África, as prevalências de
amamentação são altas, maiores na Ásia do que na África. No discurso epidemiológico
percebe-se a diminuição de prevalência nos grupos urbanos e nas mães de maior renda e
escolaridade. Na América Latina as prevalências são baixas em todos os grupos e observase, a partir do início da década de 80, um retorno à amamentação nas camadas mais ricas e
instruídas dos centros urbanos mais populosos. Na figura 2, observa-se a duração média do
aleitamento em meses para alguns países da Ásia, África e América, incluídos no World
Fertility Survey. Outro estudo mundial sobre a prevalência do aleitamento foi realizado pela
Organização Mundial de Saúde (WHO: 1981). Nos países desenvolvidos, observa-se
também um retorno à amamentação. Nos Estados Unidos, as mães mais ricas e instruídas
recomeçaram a amamentar no fim da década de 70 e a Suécia na década de 80 atingiu a
140
etapa 8, quando todos os grupos se encontravam na fase ascendente.
A grande aplicação do saber epidemiológico no estudo do aleitamento se dá
através dos estudos de prevalência. Alguns desses trabalhos serão analisados aqui a título de
ilustração. Os epidemiologistas encontram dificuldades na comparação entre esses estudos,
pois abordam populações completamente diferentes, não comparáveis entre si e estão
incluídas na definição de desmame tanto a cessação completa como parcial do aleitamento.
Além do mais, as pesquisas focalizam geralmente amostras não representativas, baseadas
em hospitais, clínicas ou pequenas comunidades.
A maioria dos trabalhos pergunta à mãe quando ocorreu o desmame; esta
pergunta está sujeita a lapsos de memória, pois esta pode não se recordar perfeitamente da
época em que o desmame efetivamente aconteceu. As mães tendem a arrendondar as suas
respostas para intervalos de meio ano. Os resultados podem, ainda, ser influenciados por
morte da criança ou por mães que ainda continuam amamentando na época da entrevista.
Há alguns métodos para evitar-se alguns destes fatores de tendenciosidade ou bias. Tais
métodos têm sido pouco usados nos inquéritos. Um deles, o current status method, ideal
para estudos transversais, pergunta se a mãe amamentou ou não a criança hoje e, analisando
141
crianças de diferentes idades, fornece, a cada intervalo, o percentual que permanece
amamentando.
O método das tábuas de vida é utilizado para melhorar alguns inconvenientes
dos estudos transversais ou retrospectivos; permite a análise da prevalência de crianças
amamentadas em cada uma das idades e o estudo da época do desmame em crianças não
amamentadas; fornece, ademais, boas estimativas com pequeno número de observações.
Uma vantagem desta técnica está em proporcionar estimativas não viciadas da freqüência
da amamentação, o que não ocorre com o estudo da época do desmame, que não leva em
conta as crianças ainda amamentadas (NOTZON: 1984,662-665). Outra vantagem adicional
das tábuas de vida é poder também levar em conta a história da amamentação das crianças
que morrem precocemente, utilizando as tábuas de vida de múltiplo decremento, onde tanto
o desmame quanto o óbito são considerados eventos terminais da tábua (MONTEIRO &
REA: 1988,58).
Utilizando-se as tábuas de vida para os dados colhidos transversalmente,
estes são analisados de forma longitudinal, produzindo "curvas de amamentação" mais
regulares e mais próximas das que seriam obtidas através de estudos prospectivos; no
cálculo da medida de tendência central — onde a mediana é mais apropriada, pois a
distribuição da idade do desmame geralmente não segue uma curva normal — utilizam-se
não apenas informações das crianças desmamadas, mas também daquelas ainda
amamentadas no momento da entrevista; além do mais, as crianças que nunca foram
amamentadas podem ser analisadas em conjunto com as demais (REA: 1981,89-90).
Outro desenho de estudo é o prospectivo, no qual se segue a criança durante
o tempo, anotando-se a época em que o desmame ocorreu. Este método é pouco usado por
ser caro.
Existem vários trabalhos que analisam os métodos utilizados no estudo da
prevalência do aleitamento, suas vantagens, desvantagens e dificuldades. Podemos citar os
seguintes: Holland (1987), Persson (1985), além de Notzon (1984).
Os dados sobre amamentação são escassos no Brasil. Inquéritos periódicos
sobre os padrões de amamentação têm sido raros, sendo a maioria realizada nas décadas de
70 e 80, através de informações obtidas de clientela dos serviços de saúde, porém existem
alguns estudos incluindo amostras representativas em algumas cidades brasileiras. Os dados
de alguns destes trabalhos encontram-se sumarizados na tabela 1.
A percentagem de bebês alimentados exclusivamente ao peito com 1 mês
de vida caiu, no Rio Grande do Sul, de 96% em 1940 para 40% em 1974 (SOUSA et al. :
142
1975,212). Em 1973, 53% das crianças foram desmamadas antes de 1 mês de vida, em
Recife (MATTHAI: 1983,226). Pelo PNAD, 1981, 15% das mulheres que deram à luz no
período de 12 meses, não amamentaram seus filhos. Entre as mulheres que haviam
suspenso a amamentação, o tempo mediano de amamentação foi de tão somente 1,97 meses
(SZWARCWALD & CASTILHO: 1989,139).
Os estudos de prevalência analisam o aleitamento segundo características
sociais (por exemplo, renda, escolaridade, local de residência), maternas (idade),
reprodutivas (paridade), práticas de amamentação (horário da primeira mamada, época de
introdução da mamadeira etc) e outras variáveis.
Yunes & Ronchezel utilizaram dados retrospectivos da pesquisa sobre a
reprodução humana no Distrito de São Paulo, realizada em 1965, entrevistando 2857
mulheres, das quais 2647 tiveram pelo menos um nascido vivo. Chegaram às seguintes
conclusões: as primíparas iniciaram a amamentação em maior percentual do que as
mulheres com 5 ou mais filhos (88,6% contra 87%), porém a duração média da
amamentação em semanas foi maior para as multíparas do que para as primíparas (34,8 e
30,2 semanas, respectivamente). Observaram uma tendência das mulheres das coortes mais
velhas amamentarem mais tempo do que as mais novas. A duração da amamentação foi
maior para as mulheres que não usaram contraceptivos. As mulheres menos instruídas, de
menor renda e de origem rural amamentaram mais (YUNES & RONCHEZEL:
1975,194-203).
143
TABELA 1 - PREVALÊNCIA DO ALEITAMENTO MATERNO SEGUNDO VÁRIOS
ESTUDOS REALIZADOS NO BRASIL
AUTOR
LOCAL
ANO
N
IDADE
PREVALÊNCIA DO ALEITAMENTO
TIPO DE
MATERNO EM MESES
1
3
6
AMOSTRAGEM
0
98
12
Sousa et al., 1975
Alvim,1964
RS
NE,CO,SE
40
64
—
715
—
—
96
51,3
68
6,1
—
lactários SS R 2
Procianoy, 1964
Pelotas
64
868
—
47,6
22,7
consultório-mães R 2
Yunes & Ronchenzel, S.Paulo
65
7003
—
88,3 +
79,8 # +
61,6 +
68
230
—
79,5
68/70
1029
0-4 a.
86,8
62,8
10,5
distrito
73/74
500
6 m-5 a.
74,4
44,2
27,6
domiciliar ER-R 1
73/74
816
0-2 a.
83,7
71,4
50
19,4
74
1100
0-3 a.
59,5
96
26,2
39,2
13
20
4,7
12
74
220
—
88,2
56,2
30*
20*
17*
puericultura SS R 2
75,1
63,6
50,3
núcleos rurais R 2
42,9 +
16,1 + mulheres 15-49a. R 1
1975
Arruda & Gondin, 1970
Fortaleza-
Santos, 1976
CE
Recife
Sigulem
&
Tudisco, S.Paulo
parturientes SS R 2
R1
1980
Ricco, 1975
Ribeirão
Sousa et al., 1975
Preto
RS
Bomfim et al., 1974
Rio
Rea, 1981
Janeiro
SP-rural
75
1005
0-5 a.
90,6 ++
Thomson, 1978
Londrina
75
406
0-2 a.
86,9
57,9
20,9
Martins Filho, 1976
Campinas
76
855
—
82,6
71,9
48,5
32,4
21,4
Hardy et al., 1982
Paulínia
77
610
0-2 a.
87,7
74
49
34
22
18
Recife
77/78
828
3 m-l a.
57
75,6
31
Coutinho, 1978
12
6,1
pediatria SS R 2
Berquó, 1984b
S.Paulo
81
298
0-8 m.
91,3
95
33 (31)
31
SS
S-R 1
74
11
88
58
31
12
SS
S-R 1
32
4
3
Berquó, 1984b
Victora et al., 1988
Monteiro & Rea, 1988
Martines et al., 1989
Recife
Pelotas
S.Paulo
Pelotas
de
81
82
84/85
85/86
300
4905
1016
406
0-8 m.
0-12 m.
0-59 m.
0-6 m.
dados sublinhados — aleitamento materno exclusivo
* dados aproximados de gráfico
+ percentuais calculados a partir das tabelas 1 e 2 do trabalho
++ com 1 semana de vida # com 3 semanas de vida
( ) entre 61 e 120 dias de vida
15,9
domiciliar L-R 1
clientela SS R 2
pediatria SS R 2
92
54
30
90
10
1
92,8
59*
34*
97
(54)
65
41
16
18,8
parturientes SS R 2
domiciliar L-R 1
domiciliar N-L-P 1
domiciliar L-R 1
domiciliar N-P 1
N — nascimentos; SS — serviços de saúde
P — prospectivo; R — retrospectivo
L — tábua de vida; S — current status method
ER — estratificação por renda per capita
1 — amostra representativa; 2 — amostra selecionada
Campos Júnior et al. , estudaram o município de Neves Paulista (SP),
entrevistando, retrospectivamente, 12 grupos homogêneos de 30 indivíduos, nascidos no
144
mesmo biênio, de 1957 a 1977. A duração média do aleitamento em meses foi menor
quanto maior a utilização dos serviços de saúde no período, medida pela freqüência do prénatal, parto hospitalar e realização de cesarianas. É provável que estes resultados revelem
tanto o desestímulo ao aleitamento praticado pelos serviços de saúde, quanto a maior
utilização destes serviços pela população mais rica, instruída e de origem
predominantemente urbana, que amamentava menos durante o período do seu estudo. As
mulheres das áreas urbanas tiveram uma média de aleitamento menor que as das áreas
rurais. Observou-se um declínio no aleitamento, cuja duração média cai de 10 meses em
1957/58 para 2 meses em 1977. Os dados deste trabalho estão representados na figura 3
(CAMPOS JÚNIOR et al.: 1978, 338-341).
Ricco, estudando a população de Ribeirão Preto, em 1973/74, observou
maiores medianas do aleitamento para a classe social baixa (3 meses e 10 dias), em relação
às classes alta e média (1 mês e 20 dias). No que se refere à idade materna, percebeu que as
mães com menos de 25 anos amamentaram mais nos seis primeiros meses, porém, após este
período, a situação se inverteu e as mães com 25 anos ou mais passaram a amamentar mais.
145
A duração mediana do aleitamento foi de 3 meses e meio para as mães menores de 25 anos
e de 1 mês e meio para as demais (RICCO: 1975,34-37).
Martins Filho, entrevistando parturientes de hospitais em Campinas, em
1976, observou que as mulheres de renda igual ou superior a 10 salários mínimos iniciaram
o aleitamento em maior proporção (86,1%) do que as de renda entre 3 e 9,9 salários
mínimos (77,1%), ou entre 1 e 2,9 salários mínimos (82,6%), ou ainda do que as mulheres
com renda abaixo de 1 salário mínimo (85,8%). No entanto, as medianas de duração do
aleitamento foram maiores quanto mais baixa era a renda. Assim, as mulheres de menor
renda amamentavam mais freqüentemente e durante maior tempo que as de renda mais alta.
Tais
diferenças
não
foram
estatisticamente
significativas
(MARTINS
FILHO:
1976,179-131). Notou, ainda, que as mães de nível superior amamentavam mais que as de
instrução secundária até os 3 meses. As medianas de duração do aleitamento materno foram
de 2 meses e 35 dias para as mulheres de escolaridade primária, de 1 mês e 2 dias para as de
instrução secundária e de 2 meses e 9 dias para aquelas que possuíam curso superior. Em
relação ã idade, notou que as mulheres mais velhas (maiores de 31 anos) amamentavam
mais do que as mais novas (MARTINS FILHO: 1976,186-190).
Coutinho, estudando crianças de clientela pediátrica em Recife, em 1977/78,
observou que as mães analfabetas iniciaram o aleitamento em maior percentual (85,9%) do
que as de instrução primária (77%). Entretanto, as de nível superior iniciaram em maior
proporção (73,3%) do que as de curso secundário (62,4%). Quando analisou as médias de
duração do aleitamento, encontrou números menores para as mais instruídas (COUTINHO:
1978,60-62).
Um dos estudos mais representativos sobre a prevalência do aleitamento no
Brasil, foi realizado por Berquó et al.(1984c), através do CEBRAP (Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento), de janeiro a março de 1981, com o apoio do INAN e do UNICEF,
em Recife e São Paulo. Este estudo é um "baseline" para se conhecer a situação da
amamentação, antes da deflagração de uma campanha nacional pró-aleitamento. Utiliza
uma amostra de usuários de serviços de saúde e de áreas faveladas. Os dados podem, no
entanto, subestimar a duração do aleitamento, pois incluem crianças de até 8 meses e, como
a amostra foi retirada de serviços de saúde, inclui uma população teoricamente mais doente.
Os principais resultados são mostrados na tabela 1 e na figura 4.
Comparando Recife e São Paulo, Spindel detecta diferenças na valorização
social do ato de amamentar nestas duas regiões. Considera que São Paulo, atualmente,
parece incorporar os padrões de aleitamento atualmente vigentes no mundo desenvolvido.
146
Em Recife, "provavelmente os padrões ora em vigor estão refletindo um comportamento
importado de São Paulo, não o atualmente em adoção, mas o definido há 20 ou 30 anos
passados" (SPINDEL: 1984,84).
Berquó, utilizando a técnica das dicotomias de Morgan e Sonquist e a
regressão linear múltipla, observou que, na explicação das variações na duração do
aleitamento, as práticas de amamentação (horário da primeira mamada, intervalos entre
mamadas, idade na introdução da mamadeira), a experiência e o conhecimento sobre
amamentação foram as variáveis mais importantes, seguidas pelas variáveis demográficas e
reprodutivas (idade da mãe, número de filhos, tipo de parto, uso de anticoncepcionais e
espaçamento
entre
partos).
Foi
relativamente
pequeno
o
papel
das
variáveis
socioeconômicas e de comunicação na explicação das variações individuais. As variáveis
mais importantes relacionadas com o desmame foram: época de introdução da mamadeira,
duração do aleitamento do penúltimo filho, informação sobre aleitamento, escolaridade da
mãe e número de filhos (apud INAN-UNICEF: 1981, 24-25).
Victora et al. , estudando crianças em Pelotas, em 1982, observaram que a
147
proporção de crianças que iniciaram suas vidas amamentadas ao seio foi maior entre as
famílias de renda alta (97%), do que entre as mais pobres (89%). Esta tendência se manteve
aos três e seis meses de idade, mas aos nove meses todos os grupos de renda apresentavam
prevalências similares de amamentação. Aos doze meses um padrão diferente foi
observado: as crianças de famílias de menor renda foram amamentadas em maior proporção
(21%) do que as dos grupos de renda mais elevada (12%). Neste trabalho, analisaram,
ainda, que as crianças com maior peso ao nascer foram mais amamentadas que as de baixo
peso (VICTORA et al.: 1988,118-122).
Monteiro et al. encontraram aumento na duração do aleitamento em todos os
grupos de renda, em São Paulo, em 1984/ 85, comparando com 1973/74. Porém, tal
incremento tendeu a ser maior nos grupos de alta renda. Em virtude disto, a relação inversa
entre renda e amamentação, observada em 1973/74 — quando os grupos de maior renda
iniciavam amamentando menos e apresentavam uma duração menor do aleitamento — não
ocorreu em 1984/85 (MONTEIRO et al.: 1987,965). Notaram que a baixa performance de
aleitamento nos grupos de baixa renda sugere que os programas de estímulo à amamentação
devem ser reavaliados. Achamos que esse efeito mais retardado nestes grupos pode não se
explicar apenas por uma falha nos programas mas pela demora cultural de adaptação aos
novos padrões de comportamento social. Monteiro observou que as mães mais ricas e de
maior escolaridade estão retornando ao aleitamento. Vale a pena notar que tais mães são,
geralmente, as que mais trabalham fora. São Paulo parece ser o primeiro grande
conglomerado urbano do terceiro mundo onde uma evidente reversão da tendência
declinante da amamentação foi claramente documentada.
Das 298 crianças analisadas por Berquó em São Paulo, em 1981, com idades
entre zero e oito meses (idade média 3,6 meses), 37,9% ainda estavam sendo amamentadas
por ocasião da entrevista, das quais 15,8% recebiam aleitamento exclusivo. Das 112
crianças estudadas em 1984/85, na mesma faixa de idade (média de idade 4 meses), 49,1%
ainda eram amamentadas e 25,9% estavam sendo alimentadas exclusivamente ao seio. Isso
sugere um aumento tanto do aleitamento misto quanto do exclusivo. Em São Paulo ocorre
uma reversão na tendência ao desmame precoce, de efeitos modestos (MONTEIRO et al.:
1987,965-966).
Martines et al. , estudando prospectivamente crianças até os 6 meses de idade
em Pelotas, em 1985/86, realizaram uma análise de regressão logística e encontraram os
seguintes fatores associados a uma maior duração do aleitamento: sexo feminino, mães
negras, leite materno como primeiro alimento, leite materno iniciado nas primeiras 12 horas
148
de vida da criança, aleitamento realizado em livre demanda, maior freqüência da
amamentação nas 24 horas e não utilização da pílula anticoncepcional combinada. Outras
variáveis estavam relacionadas ao desmame precoce, quais sejam: sexo masculino,
introdução precoce do leite de vaca, relação peso/idade (as crianças de menor peso para a
idade foram desmamadas mais cedo) e falta de suporte familiar. A insatisfação com o
crescimento da criança foi a principal causa apontada pelas mães para o início da
suplementação e o fluxo inadequado de leite foi a razão mais indicada para explicar o
desmame completo. O mesmo autor não encontrou, de modo geral, associação entre as
seguintes variáveis e a duração do aleitamento: renda familiar, peso ao nascer, idade
gestacional e idade, escolaridade, paridade, trabalho e fumo maternos (MARTINES et al.:
1989,153-155).
Há muitas outras variáveis relacionadas nos estudos epidemiológicos com o
aleitamento: a introdução precoce da mamadeira e a ausência da mamada noturna, reduzem
o tempo de amamentação. Segundo alguns autores, um pequeno intervalo entre as gestações
prejudica a duração do aleitamento natural.
Estes trabalhos fornecem alguns dados para se tentar realizar uma análise
histórica do aleitamento nos diversos grupos sociais e segundo algumas características
pessoais. Na fase descendente do aleitamento materno, as mães de menor escolaridade, de
mais baixa renda, do meio rural, mais idosas e multíparas amamentavam mais os seus
filhos. Crianças primogênitas eram, na maioria das vezes, amamentadas mais e o
aleitamento do penúltimo filho poderia, em alguns casos, ser mais duradouro que o do
último. Assim, os primogênitos e os penúltimos filhos poderiam ser mais amamentados,
porque nasceram em anos passados, onde a freqüência da amamentação era maior como um
todo. As mães mais idosas ou multíparas provavelmente amamentavam mais, pois o seu
aprendizado e socialização se deram em uma época anterior, na qual o aleitamento era mais
valorizado. Muitas vezes se considera que as mães mais jovens amamentam menos por
terem menor experiência reprodutiva mas isto pode indicar apenas uma flutuação nos
valores sobre a amamentação. Este fato se deve, em nosso entender, à dinâmica do processo
de difusão de elementos culturais. A incorporação dos novos valores que levam ao
desmame e à maior utilização do leite industrializado se dá com mais facilidade nas mães
mais jovens, de maior renda e escolaridade. Tanto é que, na década de 80, o grupo de mães
mais novas, em alguns estudos, amamenta mais do que as mais idosas, porque podem estar
captando primeiro as mudanças sociais em direção à retomada do aleitamento. As mães
mais ricas, de maior escolaridade e mais jovens são mais sensíveis e absorvem com maior
149
rapidez as mudanças nas concepções sociais sobre a amamentação dos filhos.
Observa-se no Brasil o fenômeno da retomada do aleitamento. Ele se iniciou,
como já foi dito, nas mães de maior renda, mais instruídas, de zona urbana e nas mais
jovens. Quando analisamos os trabalhos epidemiológicos existentes, percebemos que o
início deste fenômeno já podia ser percebido na década de 70, em algumas cidades
brasileiras, quando se observava o percentual de mães que iniciavam o aleitamento.
Notava-se que as mulheres de curso superior ou de maior renda já iniciavam o aleitamento
em maior proporção que as demais, porém não mantinham a amamentação por um período
mais prolongado e assim, em média, amamentavam menos. Mas a situação já era diferente
de alguns anos atrás, quando este grupo de mães também iniciava o aleitamento em menor
percentual. Uma duração maior do aleitamento neste grupo e talvez nos demais, só ocorreu
na década de 80, passando a se refletir em uma maior prevalência do aleitamento materno.
Assim, em Pelotas, a prevalência aos 3 meses, que era de 54% em 1982, passou a ser de
65% em 85/86, analisando-se os dados de dois trabalhos comparáveis que usaram
metodologia semelhante. O que indica que, mais em algumas cidades, em maior ou em
menor grau, o Brasil está redescobrindo a amamentação.
3. O DISCURSO MÉDICO REATUALIZADO — MORTALIDADE INFANTIL,
DESNUTRIÇÃO E ALEITAMENTO:
Este item bem que poderia ser uma continuação do discurso epidemiológico.
Na realidade, são tênues e imprecisas as linhas de demarcação entre os dois discursos acima
referidos e, comumente, estes se misturam, emergindo um novo discurso interdisciplinar
que, desse modo, poderia ser chamado de discurso médico-epidemiológico. Entretanto,
preferimos manter o título discurso médico, no sentido de realizar comparações com o saber
médicos de outras épocas sobre a relação aleitamento e mortalidade infantil.
Os médicos analisam a relação, considerada de causa e efeito, entre o
desmame e a mortalidade infantil. Consideram que a desnutrição e a diarréia infecciosa são
mais freqüentes nas crianças que não são amamentadas ao seio ou nas que sejam
desmamadas precocemente. O nascimento de uma nova disciplina, a imunologia, passa a
fornecer novas explicações para estes fenômenos; o leite materno é rico em
imunoglobulinas, que protegem a criança das infecções, principalmente a Imunoglobulina
A; um fator existente no leite, o fator bífido, provoca a proliferação de uma microflora
150
intestinal inofensiva, criando um meio desfavorável para a instalação de bactérias
patogênicas; a lisozima, enzima antiinfecciosa e as células fagocitárias que combatem as
bactérias também estão presentes no leite; a lactoferrina é uma proteína carreadora do ferro,
presente no leite, que compete ativamente com as bactérias intestinais (especialmente
Escherichia coli), que precisam de ferro para se desenvolver.
A amamentação, segundo o discurso médico contemporâneo, evita o risco de
contaminação, quando se administra leite de vaca em locais sem água potável e instalações
higiênicas, e promove a ingestão adequada de nutrientes e um perfeito desenvolvimento da
criança (JELLIFFE & JELLIFFE: 1978). As mães são estimuladas pelos médicos e
instituições do setor saúde a amamentar os seus filhos para que estes sobrevivam.
O discurso dominante considera que, "onde não há outra escolha a não ser a
miséria, a opção por um substituto artificial para o leite materno é, na realidade, uma
alternativa entre saúde e doença" (MULLER: 1981,3). Porém, Muller reconhece, que para
as elites, "a alimentação com mamadeira pode ser apropriada, embora não isenta de riscos,
mas, para a maioria das mães, não é apenas inapropriada, mas também um risco definitivo
para a saúde" (MULLER: 1981,51).
Plank & Milanesi realizaram, em 1969 e 1970, uma pesquisa retrospectiva
no meio rural chileno, entrevistando 1712 mães que tinham dado à luz nos últimos cinco
anos. A mortalidade foi três vezes maior nas crianças alimentadas com mamadeira antes do
3º. mês (vide figura 5). Observaram que a mortalidade infantil foi maior para as famílias de
maior renda. Consideram que o excedente de renda que existia nestas famílias passou a ser
utilizado para o consumo de leite em pó, ao invés de ser aplicado em outros bens e serviços
mais necessários à melhoria das condições de vida. Para os autores, um maior contato com
os Serviços de Saúde e as melhores condições sanitárias estavam, também, relacionadas a
um aumento na mortalidade. Uma explicação possível para a mortalidade associada ao
consumo médico é que 66% das crianças desmamadas recebiam, parcialmente, suplemento
de leite em pó do Serviço Nacional de Saúde (PLANK & MILANESI: 1973,203-209). Seu
trabalho questionou os serviços de saúde como fonte de doença e ajudou a corroborar,
dentre os médicos, a visão de que a amamentação materna nas classes subalternas aumenta,
de fato, a sobrevivência infantil.
151
Percebe-se, no discurso médico que, talvez, nos grupos de maior nível
socioeconômico, a lactância materna não tenha uma importância tão vital como para
aqueles que vivem em condições desfavoráveis. O fato da mortalidade infantil ser menor em
países desenvolvidos, e entre os grupos sócio-econômicos mais elevados nos países em
desenvolvimento, onde a alimentação por mamadeira tem sido mais comum, sugere, para
alguns, que a substituição do seio pela mamadeira tem sido menos importante para a saúde
do lactente do que outros fatores, tais como medidas sanitárias, disponibilidade de serviços
de saúde e a instrução e renda da mãe (JOHNS HOPKINS UNIVERSITY: 1982,4).
Segundo alguns autores, embora se assinale a importância da amamentação na redução das
taxas de mortalidade infantil, esta tem baixado nas áreas urbanas, onde as mulheres
trabalham mais, e onde o desmame precoce é mais freqüente. Para o saber médico,
trabalhos conclusivos sobre esta relação devem ser realizados onde as razões para a
alimentação com mamadeira não sejam predominantemente problemas de saúde da mãe e
da criança. Tais pesquisas poderiam fornecer uma avaliação melhor do risco da alimentação
com mamadeira.
Em um trabalho, realizado em país desenvolvido, em crianças pertencentes a
152
famílias afluentes e de alto nível educacional, não houve diferenças na morbidade entre
crianças alimentadas natural e artificialmente. Não se encontrou nenhuma diferença
significativa entre os dois grupos, no que diz respeito ao ganho de peso, crescimento e
freqüência de consultas. O autor conclui: onde a higiene precária não é um fator, o leite
materno, por si só, parece não oferecer nenhuma vantagem sobre a alimentação artificial
(ADEBONOJO: 1972). Em outra pesquisa, realizada na Tailândia, a mortalidade infantil foi
mais elevada no campo, onde a amamentação era mais comum. Os autores sugerem que,
possivelmente, qualquer redução mais significativa no nível da mortalidade deve provir da
melhoria de condições não relacionadas com o aleitamento materno (KNODEL &
DEBAVALYA: 1980).
Outros trabalhos referem que a mortalidade infantil permanece alta em
muitas áreas rurais de miséria, apesar da amamentação ainda ser muito freqüente, o que
chama a atenção para outros fatores envolvidos na mortalidade infantil (POPKIN et al.:
1982,1092). Por outro lado, na Suécia, a mortalidade infantil caiu para menos de 2% na
década de 60, exatamente quando a duração média do aleitamento começou a mostrar um
declínio mais marcado e rápido (VAHLQUIST: 1975,11).
Vahlquist analisa que, há 50 anos atrás, na Europa, a morbimortalidade era
muito mais alta em crianças alimentadas artificialmente do que entre aquelas que recebiam
leite humano. Porém, após o surto de desenvolvimento que ocorreu na Europa, entre as
crianças criadas em condições favoráveis, não encontrou nenhuma diferença na mortalidade
destes grupos, registrando apenas pequenas diferenças em relação à morbidade
(VAHLQUIST: 1975, 12).
Outros autores pensam que, "em muitas partes do mundo, a saúde das
crianças está melhorando, apesar de uma redução no aleitamento. Assim, torna-se difícil
demonstrar que a alimentação artificial é completamente má". Se houver um substituto para
o leite materno, as mães podem ser liberadas para aumentar a sua renda através do trabalho
(DUGDALE: 1971,423). "Para as crianças de famílias pobres e ignorantes, a falência no
suprimento de leite materno pode ser uma sentença virtual de morte; em famílias educadas e
ricas, o tipo de alimentação é assunto de conveniência para a mãe, mais do que o bem-estar
da criança. Entre estes dois extremos existem famílias que detém alguns conhecimentos
sobre higiene infantil, mas sofrem de privação econômica. Neste grupo, em que o
aleitamento confere pouca ou nenhuma proteção à criança, o bem-estar econômico de toda a
família é mais importante" (DUGDALE: 1971,423). Neste grupo intermediário, o autor não
encontra vantagens do aleitamento materno sobre o artificial na ocorrência de distúrbios
153
respiratórios e gastrointestinais leves, analisando, retrospectivamente, 250 prontuários de
uma clínica na Malásia. Considera que a sua amostra é selecionada e está sujeita a erros de
recordação das mães. Afirma que suas conclusões são aplicadas à comunidade urbana, de
baixo nível sócio-econômico, por ele estudada.
Um problema que está presente nestes estudos que pretendem relacionar
desmame precoce e mortalidade infantil é a presença de fatores de tendenciosidade ou
"bias". Se uma criança morre por diarréia e não estiver sendo amamentada, foi o desmame
que provocou a diarréia e a morte, ou a criança foi desmamada justamente por estar doente?
Se outros estudos mostram que as crianças com baixo peso ao nascer são amamentadas
menos, e as crianças que desnutrem e morrem com mais freqüência são exatamente aquelas
mais leves, como se pode afirmar que o desmame esteja associado com a sua morte, se ela
pode não ter sido amamentada exatamente por nascer com baixo peso? Se não se tomar em
consideração o peso nestes estudos, pode-se ter um aumento de duas vezes na mortalidade
pós-neonatal em crianças não amamentadas ao seio, superestimando-se o "efeito protetor"
do leite materno (BARROS et al.: 1986,656).
A criança doente, de alto risco, tende a ser menos amamentada que uma
criança saudável. Qualquer problema de saúde da mãe ou do lactente aumenta a
probabilidade da criança ser nutrida artificialmente. Na comparação entre morbimortalidade
e modo de alimentação há que escolher-se populações comparáveis. Existem fatores
selecionadores dificilmente "controláveis", como valores culturais, pessoais ou familiares,
pressões sociais etc (MANCIAUX: 1982,33-39). Muitos destes fatores de confusão podem
ser medidos apenas imperfeitamente.
Habicht et al. , estudando os fatores de tendenciosidade, concluem que a
associação entre modo de alimentação e mortalidade infantil é causal, típica de países em
desenvolvimento, está relacionada com o grau e a duração do aleitamento, e é mais forte
nos primeiros meses de vida (HABICHT et al.: 1986,280). Porém, se não se controlar as
variáveis, uma associação pode ser sugerida, só que esta tem uma causalidade reversa: a
criança não foi amamentada ou mamou pouco porque adoeceu e morreu e não o contrário.
Assim, se superestima o efeito protetor do leite materno. Não se pode obter, geralmente,
uma perfeita comparabilidade entre os grupos alimentados com leite materno e leite de
vaca e o modelo estatístico, às vezes, não corresponde às verdadeiras relações existentes,
que escapam à sua análise numérica.
Butz et al. analisam o papel do saneamento e do suprimento de água na
relação entre desmame e mortalidade. "O aleitamento está mais fortemente associado com a
154
sobrevivência infantil em casas sem água encanada ou instalações sanitárias. Em residências
dotadas de água e esgotos, o aleitamento misto não teve efeito significativo e o aleitamento
artificial só foi estatisticamente significativo para a mortalidade entre o 8.e o 28º. dia de
vida. A presença de sistema de água e esgotos não foi importante na mortalidade de crianças
alimentadas exclusivamente ao seio até os seis meses (BUTZ et al. : 1984,516). Na sua
opinião, o declínio na amamentação é pernicioso à sobrevivência infantil em alguns locais
mas não em outros.
No entanto, outros médicos fornecem críticas a esta teoria. Para estes,
múltiplos fatores estão envolvidos na sobrevivência das crianças, dentre os quais: bom
estado nutricional da mãe, peso ao nascer adequado, condições sociais higiênicas, além do
modo com que se alimenta a criança.
O discurso médico, que anteriormente afirmava relação entre mortalidade
infantil e aleitamento, torna-se menos categórico e passa a admitir essa relação apenas em
locais pobres com deficiência de saneamento básico. Entretanto, alguns admitem a
provisoriedade dessa relação e questionam até mesmo a sua existência.
De qualquer modo, a maioria dos médicos considera o aleitamento natural
como o principal fator responsável pela sobrevivência da criança, chegando o discurso a
transferir esta responsabilidade para as mães, quando se sabe que a ausência desta prática é
de responsabilidade antes do contexto social do que das mães. Os indivíduos não têm inteira
responsabilidade sobre processos sociais dos quais fazem parte como criaturas. A resultante
social é um processo que deriva do somatório das vontades individuais e depende da
atividade política dos homens. A "concepção do desenvolvimento da formação
econômico-social como um processo histórico-natural exclui... a responsabilidade do
indivíduo por relações, das quais ele continua sendo, socialmente, criatura, por mais que,
subjetivamente, se considere acima delas" (MARX: 1987,6).
Os padrões da desnutrição mudaram com o desmame cada vez mais precoce.
Em populações que amamentam suas crianças, a desnutrição é mais tardia, ocorrendo a
partir do segundo ano de vida, na forma de kwashiorkor, na época em que cessa o
aleitamento e a família não dispõe de alimentos suficientes. Com o deslocamento para a
alimentação artificial com mamadeira, a desnutrição se torna mais freqüente e surge desde o
primeiro semestre de vida, sob a forma de marasmo. O kwashiorkor também acontece em
crianças no segundo ano de vida alimentadas apenas com leite de vaca, sem incluir-se
outros alimentos.
Para muitos médicos, a desnutrição, em nosso meio, não está relacionada
155
com a natureza do alimento. As dietas são adequadas em termos de qualidade, mesmo com
as diferenças culturais existentes. O que existe é um consumo insuficiente de alimentos, que
não estão disponíveis na quantidade adequada (MULLER: 1981,53).
Achamos que promover medidas de incentivo ao aleitamento materno como
forma isolada de sobrevivência infantil, sem que se proponham mudanças abrangentes na
estrutura social que realmente permitam melhores condições de vida, é apenas transferir o
problema para idades mais tardias onde, se a morte já deixa de ser uma conseqüência
completamente inevitável, a desnutrição e a doença são seqüelas previsíveis.
4. O DISCURSO PSICANALÍTICO:
Boltanski acha que, nos dias atuais, o argumento psicológico, novo,
predomina sobre o argumento médico e o aleitamento materno é considerado, nas classes
superiores, como um meio que a mãe tem de mostrar a sua afeição à criança; a necessidade
de dar à infância uma autonomia no meio familiar favorece, nesta percepção, o
desenvolvimento de sua personalidade e, agora, se recusa a deixar a criança dormir na cama
com os pais, pois isto pode ser mau para o seu psiquismo (BOLTANSKI: 1984,128). A
revalorização do aleitamento nas sociedades atuais não seria um prenúncio, um sintoma do
nascimento de uma nova representação da infância?
Em relação ao saber sobre o psíquico, existem vários discursos que variam
em suas premissas e modos de atuação social. Nota-se que alguns incorporam em maior
medida aspectos valorativos, outros demonstram maior predominância de aspectos científicos. No presente item, investigaremos apenas as concepções e práticas sobre o aleitamento
em relação ao discurso psicanalítico. As observações aqui expostas não podem ser
utilizadas em referência aos demais saberes sobre o psiquismo.
A psicanálise surge como um novo instrumento mais avançado de controle
social, ocupando o lugar do padre e dos médicos. Seus especialistas esperam a demanda do
sujeito e prometem a liberação das coerções, do peso dos costumes, do arbítrio das regras;
prometem desinibir a sexualidade, difundem a esperança de uma autonomia existencial. A
psicanálise evita a fatalidade do diagnóstico, valorizando a possibilidade familiar de
bonificação do comportamento da criança. "Não impõe nada, nem novas normas sociais,
nem antigas regras morais. Mas ao contrário, ela as deixa flutuar umas sobre as outras até
que encontrem um ponto de equilíbrio" (DONZELOT: 1986,190). A desadaptação que
156
existe entre a imagem (desejo do indivíduo) e a realidade são trabalhadas, para que mude
uma ou outra. Desaparecem as referências fixas e o desejo aparece como domínio legítimo
de intervenção, pelo menos tanto quanto de liberação. Não se regula mais o comportamento
mas o desejo é que aparece como alvo de regulação: é o que Donzelot chama de regulação
das imagens. É por isso que a psicanálise pôde convir ao mesmo tempo à busca de
autonomia e felicidade da família e permitir a resolução dos problemas de normalização
social. Modalidade de controle mais evoluída e mais frouxa, que se amolda às contingências
sociais nesta época de grandes transformações. A psicanálise fornece "mecanismos de
encaixe para os sujeitos, que passam a encontrar condições e instrumentos para conviver
com as diferenças e não para precisar negá-las ou reagir contra elas" (ALMEIDA:
1987,105).
Com o advento da psicanálise, a mulher viu-se pressionada a amamentar seus
filhos como forma de demonstrar seu amor por eles. No discurso psicanalítico, a falta de
amamentação pode quebrar a interação mãe-filho nos planos psicológico e emocional
(BETTIOL et al.: 1988,45-47).
Para Freud, a amamentação é um prazer físico e sexual para a mãe,
partilhado pelo bebê. Isto certamente para as mães vienenses de classe média do seu tempo.
Não, naturalmente, para as mães Mundugumor descritas por Margaret Mead e por nós
analisadas em capítulo anterior. Para a psicanálise, a amamentação é fundamental para o
desenvolvimento ulterior da criança. Dessa primeira relação bem sucedida (a
amamentação), depende o bom equilíbrio psíquico e moral da criança. O conceito de
felicidade (de bom) substituiu o de bem (BADINTER: 1985,58-59). O aleitamento ao seio é
visto como a primeira prova de amor da mãe pelo filho, pois engendra sentimentos de
prazer, físicos e espirituais.
Mélanie Klein exalta o aleitamento materno: "a experiência mostra que
crianças que não foram amamentadas no seio se desenvolvem com freqüência muito bem
(...) na psicanálise sempre se descobrirá, entre as pessoas que foram criadas assim, um
desejo profundo do seio que nunca foi satisfeito... Podemos dizer que, de um modo ou de
outro, seu desenvolvimento teria sido diferente e meihor se tivesse sido beneficiado por um
aleitamento bem sucedido. Por outro lado, minha experiência me faz concluir que as
crianças cujo desenvolvimento apresenta problemas embora tenham sido amamentadas ao
seio, estariam ainda pior sem isso" (apud BADINTER: 1985,311). Se assim for, e não
estamos convictos disso, as mulheres teriam sido colocadas em uma camisa de força
emotivamente envolvente e difícil de ser afrontada com argumentos.
157
Graças à teoria psicanalítica, os pais se considerarão cada vez mais
responsáveis pela felicidade e infelicidade dos filhos. A responsabilidade parental,
transformada em culpa, atingirá o seu apogeu no século XX (BADINTER: 1985,179). A
respeito, observamos que a teoria psicanalítica tem sido muito questionada pelos filósofos
da ciência. É que ela não prevê as possibilidades de sua refutação, que derrubariam as
hipóteses nas quais se alicerça. De modo geral, na Filosofia da Ciência, entende-se que uma
teoria de certo modo "irrefutável" não merece o qualificativo de "científica".
(HEGENBERG: 1965,16).
A mãe do século XX arcará, além das responsabilidades com a criação e
educação, com o inconsciente e os desejos dos filhos. Para Badinter, "graças à psicanálise, a
mãe será promovida a 'grande responsável' pela felicidade de seu rebento... esses encargos
sucessivos que sobre ela foram lançados fizeram-se acompanhar de uma promoção da
imagem da mãe", mas ao mesmo tempo de sua alienação (BADINTER: 1985,237-238).
O discurso psicanalítico contribuiu muito para tornar a mãe o personagem
central da família. "Quer se queira ou não, a psicanálise levou a pensar, durante muito
tempo, que uma criança afetivamente infeliz é filho ou filha de uma mãe má, mesmo que o
termo 'má' não tenha aqui nenhuma conotação moral" (BADINTER: 1985,295). A
representação negativa da mãe má reforçou a culpa das mulheres. Badinter pergunta: que
mãe aceita confessar-se "má" para seu filho? Para muitas mães, colocá-lo na creche pode
ser vivido como um abandono, uma confissão de egoísmo, e uma constatação de fracasso.
Muitas mulheres enfrentam um terrível sentimento de culpa se retornam ao trabalho após o
parto, sobretudo se o trabalho não for uma necessidade econômica para o casal.
A psicanálise, ao mesmo tempo em que aumentou a importância da mãe no
núcleo familiar, "medicalizou" o problema da mãe má. Na opinião de Badinter, "a angústia
e a culpa maternas nunca foram tão grandes como no nosso século, que se pretendia, no
entanto, liberador". Este pensamento deve ter deixado uma marca, real e pesada, no
inconsciente feminino. A psicanálise não soube convencer da independência do mal
psíquico em relação ao mal moral (BADINTER: 1985,296).
Para Badinter, Freud trata como naturais, comportamentos que são
socialmente construídos, provavelmente discrepantes segundo as classes sociais e os
indivíduos e mutáveis no tempo. A teoria analisa os fenômenos como se o modelo cultural
não tivesse nenhuma influência específica sobre o comportamento da menina. Ajuda a
difundir o modelo cultural do homem ativo e da mulher passiva (BADINTER: 1985,303).
A psicanálise condenava, também, a prática de amamentar os filhos através
158
de amas. São palavras de Françoise Dolto: "toda mãe, pobre ou rica, que confia seu filho a
uma mercenária, sujeita-a a um risco... As mudanças intempestivas da pessoa que
amamenta são traumatizantes... a criança é obrigada, a cada relação nutrícia e tutelar
sucessiva, a construir uma rede nova, mais precária, de comunicação inter-humana que cada
nova separação destrói... " (apud BADINTER: 1985,324).
Nota-se uma contradição entre a teoria e a vida real das mulheres. Kate
Millett percebe falhas nas teorias freudianas: negligência da hipótese social, postulados
teóricos indevidamente confundidos com verdades demonstradas (apud BADINTER:
1985,332). O adquirido era declarado inato.
5. ALEITAMENTO NATURAL COMO FÓRMULA DE CONTROLE DA
NATALIDADE:
Analisamos, anteriormente, o fato de que o aleitamento era visto por muitos
agentes sociais, no século passado e início deste, predominantemente como um meio de
estímulo à natalidade. Atualmente, predominam as idéias que consideram o aleitamento
como um fator capaz de ajudar na restrição da natalidade. As relações de significado
predominantes entre aleitamento e natalidade variam dependendo das percepções sociais dos
sujeitos históricos.
O discurso majoritário, nas duas últimas décadas, por ocasião da redescoberta
da amamentação, busca obter, pelo estímulo ao aleitamento, um controle dos nascimentos e
uma redução na natalidade. Vamos descrever neste item este discurso emergente e analisar
as suas premissas e fundamentos que são, em grande parte, ideológicos. Consideraremos,
também, o contra-discurso natalista que se opõe a estas idéias.
A partir deste ponto de vista, a amamentação contribui para o espaçamento
das gestações e para a redução da alta fertilidade. Descreve-se que, em algumas culturas
tradicionais, a mulher não tem relações sexuais com o marido antes do desmame completo,
embora estas normas estejam sofrendo modificações em muitos países, com a influência da
urbanização e da adoção de idéias ocidentais. O sexo com uma mulher grávida ou nutriz,
nessas culturas, é visto como prejudicial à criança, pois o sêmen pode provocar danos ao
feto no útero ou estragar o leite. Além do fator cultural, considera-se que o aleitamento
exerce um efeito fisiológico direto, retardando a ovulação e a menstruação. Os defensores
desta tese acreditam que este meio de restrição da natalidade não é seguro para uso
159
individual, mas contribui com uma redução de cerca de 20 % no número total de
nascimentos (BADER: 1983,381). Outros fundamentos deste discurso são: sobre uma base
mundial, a anticoncepção pelo aleitamento tem, provavelmente, uma taxa numericamente
maior de proteção contra a gravidez do que atualmente se consegue com os
anticoncepcionais mecânicos (JELLIFFE & JELLIFFE: 1975,558); a sua atuação
contraceptiva é maior quando a amamentação se dá livremente, sob demanda, sem horários
fixos, e quando a criança mama, inclusive, à noite; a quantidade de leite secretado e a
duração do efeito contraceptivo variam em função da freqüência, duração e intensidade da
sucção; o horário fixo é mais obedecido pelas mulheres urbanas e ricas; a sucção sem
horários definidos é mais freqüente nas crianças de mães pobres.
Outro efeito referido pelos partidários deste discurso é que a duração da
amenorréia pós-parto aumenta com a severidade da desnutrição materna (CAMPBELL:
1984,563).
Ainda segundo estas idéias, o impacto da amamentação na proteção contra a
gravidez é mínima, se sua duração for de até seis meses, e aumenta, significativamente,
somente após cerca de 10 meses. Mas a proteção dificilmente dura por mais de um ano e
meio, mesmo que a amamentação se prolongue até dois anos ou mais. Assim, o efeito do
aleitamento materno no aumento da esterilidade pós-parto é maior para as durações entre 10
e 20 meses (KENT: 1981,8).
Argumenta-se que "depois de 6 a 12 meses, ou tão logo a criança comece a
receber quantidade substancial de outros alimentos e a ser amamentada com menor
freqüência, a fertilidade pode retornar e é necessária a anticoncepção eficaz a fim de evitar
nova gravidez" (JOHNS HOPKINS UNIVERSITY: 1982,1). Após seis meses do parto, 20 a
30 % das mulheres já menstruam e necessitam de anticoncepção.
No discurso de restrição da natalidade, alerta-se que, quando a amamentação
for prolongada, o uso de contraceptivos nos primeiros meses do pós-parto constitui uma
dupla proteção desnecessária. Porém, em muitos países, as mães abandonam a prática do
aleitamento materno antes que os contraceptivos sejam usados em larga escala, o que pode
levar a um aumento da fecundidade (WHO/NRC MEETING: 1983,371). Para este discurso,
na ausência ou nos casos de uso ineficiente de anticonceptivos, a amamentação emerge
como a mais importante variável que governa a duração do intervalo intergestacional
(KENT: 1981,3). Na medida em que houver uma maior disponibilidade e utilização dos
contraceptivos e seu uso chegar aos 70%, o aleitamento deixará de ser um fator importante
na redução do número e aumento do intervalo entre as gestações (KENT: 1981,32).
160
A gravidez é visualizada como causa do desmame: um aumento na
probabilidade de concepção deve ser contada nos riscos de se iniciar suplementos para a
criança. Alguns autores consideram que uma gravidez indesejada, durante a amamentação,
é um risco comprovado e sério para a saúde da mãe e, finalmente, também para a saúde de
ambas as crianças. Muitas mulheres referem a gravidez como causa do desmame. Achamos
que isto pode refletir uma crença disseminada, desde o século passado, de que não se deva
amamentar quando grávida. Além disso, o aparecimento de uma gestação tem outras
determinações, além da biológica, que refletem os padrões reprodutivos e familiares, e a
situação social da mulher. Muitas famílias das classes populares consideram ideal ter muitos
filhos, sendo comum as gestações repetidas, com intervalos curtos entre as mesmas. Porém,
não se pode indicar a gravidez como causa significativa do desmame, porque, em muitas
situações culturais, as mães podem amamentar, mesmo quando gestantes. E gestações
sucessivas convivem, em sociedades tradicionais, com altos níveis de prevalência do
aleitamento. Em suma, é a própria condição sociocultural que permeia este nexo entre
gravidez e desmame. O discurso ideológico quer fazer crer que a gravidez provoca
desmame; não se questiona que, mesmo que esta relação exista na atual realidade históricoestrutural, isso não significa que ela seja perene ou ocorra sempre e em todas as sociedades.
Alguns defensores desta tese acreditam que, nas atuais condições sociais, no
entanto, o ciclo contínuo de gravidez e amamentação provoca um fardo muito grande sobre
a mulher: aborto, desnutrição, anemias, prolapso uterino, rupturas de períneo e aumento da
mortalidade materna. Isto poderia ser prevenido pela maior disponibilidade de informações
à mulher, planejamento familiar e maior acesso e qualidade dos serviços de atenção à saúde
da mulher (WHO: s.d.,11). Obter-se-ia um alívio na carga sobre a mulher, em benefício
dela própria, da sua saúde e esta poderia dedicar-se mais aos filhos remanescentes,
prolongando-se a amamentação. Cabe à mulher o direito de decidir quantos filhos deseja ter
e a maneira de amamentá-los.
A puericultura se insere na família e depois se incorpora no planejamento
estatal, nos programas de saúde materno-infantil e passa a intervir, através do planejamento
familiar, não só nas relações afetivas entre mães e filhos, mas nas relações sexuais,
disciplinando a procriação. Para Orlandi, "com o nome de planejamento familiar, se faz
mesmo é o controle da natalidade... empurra a 'solução' do problema para a medicina... o que
os dirigentes querem é transmitir a idéia de que a pobreza do país ocorre por culpa das
famílias pobres, que têm muitos filhos e não por sua própria culpa" (ORLANDI: 1985,19).
Para a tese antinatalista, o crescimento populacional é percebido tanto como
161
causa quanto conseqüência da pobreza, em locais com poucos recursos. Assim, uma
diminuição no número de pessoas, aumentaria a renda disponível para cada uma. Nem
sempre se atribui a pobreza à alta taxa de natalidade mas considera-se que um excesso de
crianças na sociedade moderna, em que o custo das mesmas é muito mais alto que nas
sociedades tradicionais, tende a afetar negativamente o crescimento econômico. A falta de
capital, tecnologia e know-how próprios seria uma explicação para a permanência no
subdesenvolvimento. Porém, para outros que vêem no controle da natalidade uma tentativa
de defesa dos países ricos perante a possível ameaça do grande crescimento populacional
nos países pobres, tais países não estão subdesenvolvidos por falta de recursos, pois estes
são drenados, em parte, para as nações ricas.
Analisaremos, a seguir, as idéias dos que discordam do controle da
natalidade. Para Navarro, não se analisa que as relações econômicas internacionais são
controladas pelos países desenvolvidos, que determinam o local e a oportunidade de utilização tecnológica. Nega-se a origem estrutural da pobreza. O controle da natalidade não
poderá resolver o problema da miséria (NAVARRO: 1984,161-162). "O tamanho da
população pode ou não ser um problema, dependendo da estrutura social, econômica e
política na qual a população está articulada" ('NAVARRO: 1984,170).
Para Garcia, "sob o nome de Medicina foram incorporados, em diferentes
períodos históricos, práticas e saberes que se encontravam alheios à concepção restrita dos
conceitos de saúde-doença... Na atualidade, os programas de controle de população são
incorporados à prática médica e, ainda que isto se justifique em termos de saúde, o tema
relaciona-se mais estreitamente com a instância política" (GARCÍA: 1983,98).
Em relação a esta citação de Garcia, queremos observar que alguns médicos
exageram a relação entre medicina e saúde. Desse modo, esses ideólogos não vêem relação
entre o controle de natalidade e a saúde, porque tendem a confundir saúde com medicina.
Pode ser que exista menos relação entre controle de natalidade e medicina do que supõem
os médicos mas, sem dúvida, há muita relação entre controle de natalidade e saúde.
Para Campbell, o aumento do interesse pela redução da natalidade nos países
do terceiro mundo se deve ao temor pelo potencial revolucionário e pela ameaça evidente à
sobrevivência da ordem capitalista. "O interesse recente pela promoção do aleitamento
pelas agências internacionais filantrópicas e de desenvolvimento, deve ser visto à luz deste
processo" (CAMPBELL: 1984,562). A lactação é um meio de controle de nascimentos a
nível populacional. Não depende da memória como as pílulas, e a sua promoção tem a
aparência de um humanitarismo desinteressado, beneficente e de uma preocupação
162
feminista. Segundo esta autora, os programas de planejamento familiar surgem, também, da
necessidade de se limitar a expansão do exército industrial de reserva na periferia, devido
ao desenvolvimento de tecnologias poupadoras de mão-de-obra. Devemos dizer aqui que
consideramos um equívoco os argumentos natalistas segundo os quais as pressões
populacionais poderiam se constituir em um fator que levaria a transformações políticas de
monta, pois o lúmpem sempre serviu aos interesses das classes conservadoras.
Ao mesmo tempo em que se assiste, a partir da década de 60, a uma
diminuição da ênfase na atenção à criança por parte do Estado brasileiro, inicia-se a
campanha antinatalista para evitar-se a explosão demográfica. Estas iniciativas começam
com o financiamento das fundações Ford e Rockefeller, e culminam com a criação da
Bemfam (Sociedade de Bem-Estar Familiar). Esta instituição atua por meio de clínicas
particulares que recebem benefícios do Estado para promover o controle da fertilidade. A
ajuda financeira internacional passa a depender, também, da existência de programas de
controle de natalidade no país.
A preocupação do Estado brasileiro com o problema da natalidade já vem de
longo tempo. Medidas visando proporcionar informações e serviços sobre anticoncepção
tardaram a vir por pressões contrárias dos meios militares e religiosos, avessos à
intervenção estatal na área. Assim, só em 1977, O Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social aprovou o planejamento familiar como parte do Programa Nacional de
Proteção Materno-Infantil e em 1983, no âmbito do Ministério da Saúde, formulou-se o
Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, que, entre outros fins, propôs a
implementação de métodos e técnicas de anticoncepção (PEREIRA: 1985,1772-1773).
Como reflexo do aumento vertiginoso das taxas de urbanização, das
mudanças de comportamento oriundas do próprio processo de urbanização, do aumento dos
níveis de inserção da mulher no mercado de trabalho e à maior difusão dos meios anticoncepcionais a quase todas as camadas de população, observa-se uma rápida redução nos
níveis de fecundidade no Brasil (M2DICI: 1989,76). A fecundidade da mulher brasileira
está, realmente, diminuindo. Em 1986, a taxa de fecundidade foi de 3,3, bem menor que a
do censo de 1980, variando de 2,5 no Sul a 5,1 no Nordeste. Cerca de 66% das mulheres em
idade fértil fazem uso de contraceptivos e este número chega a 75%, considerando-se
esterilização cirúrgica e uso de pílulas (RUTENBERG et al. : 1987).
Para Pereira, predominam no debate sobre o controle de natalidade posições
político-ideológicas racionalizadas com argumentos técnicos que vêm ao encontro de
valores sancionados positivamente em nossa sociedade, tais como proteção à saúde,
163
promoção do desenvolvimento etc. Em sua opinião, do ponto de vista estritamente
econômico, a explosão demográfica tem provocado, nos países subdesenvolvidos que, no
seu esforço de industrialização se utilizaram de técnicas de capital intensivo, poupadoras de
mão-de-obra, uma excessiva pressão sobre o emprego. Para ele, "não há uma relação
unívoca entre crescimento populacional (ou falta dele) e crescimento econômico e
desenvolvimento social. É a totalidade social, a interação do conjunto de variáveis,
representadas por condições sócio-políticas e econômicas, que transformará ou não o
crescimento populacional em alavanca do crescimento econômico" ou em sua
obstaculização (PEREIRA: 1985, 1780-1781). Dependendo da situação, medidas que
busquem aumentar o emprego pela utilização de tecnologias intensivas em trabalho ou
medidas de contracepção podem promover efeitos favoráveis no desenvolvimento
econômico. No entanto, considera que tais soluções não são fáceis pois, nos países
capitalistas, a decisão sobre a utilização de tecnologia é descentralizada, ficando a cargo
dos empresários e está, geralmente, baseada em fatores de difícil controle pelo Estado
(PEREIRA: 1985,1777).
Assim, provavelmente, as políticas de controle de população surtem pouco
efeito e são medidas apenas paliativas para minorar a questão social. Historicamente, a
mudança nos padrões de reprodução social tem sido espontânea, fruto do desenvolvimento
econômico-social. E, citando Kubat e Mourão, descreve que a preocupação com o número
de filhos "está diretamente relacionada ao domínio, por parte dos cônjuges, de outros
componentes do ambiente social. Quem não sabe se vai ter trabalho e alimento amanhã, não
planeja o nascimento dos filhos" (apud PEREIRA: 1985,1782). Segundo Pereira, a política
de restrição de natalidade é anódina sem a conseqüente realização de mudanças políticoeconômicas substantivas.
Se "a mulher participa mais decisivamente das atividades econômicas e se
depara com a possibilidade de realizar projetos de vida fora dos limites estreitos do
casamento e da maternidade, ela tende a diminuir o número de filhos" (PEREIRA:
1985,1780). Para Pereira, a mulher, com a ajuda de seu parceiro, tem todo o direito de
decidir, sem interferência de qualquer autoridade, se deseja ou não conceber, pois a
contracepção é um direito humano básico. "Nesse processo de transformação social, os
direitos humanos básicos passam a constituir um ponto de referência para todas as
sociedades nas quais estão avançando as concepções de justiça social e de liberdade de
decisão" (PEREIRA: 1985,1780).
164
6. A PUERICULTURA NOS DIAS ATUAIS:
Qual o papel da puericultura nos dias atuais? Que relações estabelece com a
sociedade e como esta se incorpora hoje na prática médica? Qual o comportamento atual
dos médicos em relação à amamentação e às práticas sociais sobre o corpo infantil?
Em relação a estas perguntas, observamos que, apesar das mudanças sociais
que enfatizam uma maior autonomia dos sujeitos em relação aos códigos, muitos médicos
continuam tendo uma atitude rígida, autoritária e paternalista, de cobrança do aleitamento
materno. As ações desenvolvidas nos programas de saúde não consultam a mulher, a
educação é reproduzida por frases como: não existe leite fraco, amamente até o sexto mês,
etc. Considera-se que as mães ignorantes fazem diluições incorretas de fórmula, farinha e
açúcar no preparo das mamadeiras. As práticas alimentares são condicionadas ao modelo
moral do "certo" e "errado", sem nenhuma consideração aos seus condicionantes culturais.
A mãe não tem espaço para narrar sua história e ansiedades. Não há um respeito e
valorização da liberdade de escolha da mãe em amamentar ou não, que se percebe na prática
dos especialistas psi. Embora mudando de conteúdo, a ideologia racional, dogmática e
moralizadora presente na puericultura permanece ativa no corpo médico. A persistência
dessa ideologia pode se dever a um "atraso ideológico da instituição médica em relação às
demais instâncias sociais ou é resultado de condicionamentos, de exigências próprias da
prática médica (...) A medicina (...) necessita para o seu exercício pleno e eficaz de um
receptor racional e adequado, da mesma forma que a economia capitalista exige dos
produtores
e
consumidores
uma
conduta
racionalizada,
padronizada
e
previsível" (BOLTANSKI: 1984,52).
Na análise dos fenômenos sociais, muitos médicos costumam "transportar"
os problemas sociais para a medicina, analisando-os como se estes estivessem dentro de
uma situação clínica, como a do relacionamento médico-paciente. Os médicos são
acostumados a ter que oferecer respostas claras, rápidas sem titubear, devido à própria
exigência da prática médica, que envolve a tomada rápida de decisões nem sempre
reconhecidas como as mais adequadas para o problema. Urge oferecer uma resposta, uma
intervenção, mesmo que esta não seja a ideal, mas que seja a melhor possível. Deste modo,
quando interrogados sobre outros aspectos da vida social, estes tendem a oferecer respostas,
geralmente parciais, em face de sua formação biológica, aos problemas sociais. Poderia
parecer inadequado confessar a ignorância, pois que foram treinados a responder
prontamente às diversas situações clínicas.
165
Em alguns países, como, por exemplo, nos Estados unidos, as regras de
puericultura perdem seu caráter autoritário, a mãe se torna "livre", com opções, a quem o
médico delega algumas responsabilidades. Isto é perceptível na leitura do livro do Dr.
Spock, muito divulgado no Brasil. Porém, entre nós, ainda não se observa, de modo geral,
uma mudança de atitude do corpo médico e, principalmente, dos pediatras, que têm ligação
mais íntima com os problemas da infância.
Tudo passa, então, a funcionar como se a moral fosse visualizada com os
olhos atentos da ciência. Ou melhor, transformam-se motivos morais em razões científicas.
A influência predominante na puericultura brasileira passa a ser americana, ao invés de
francesa ou alemã, como no século XIX e início deste século. O discurso, contudo,
permanece moralizador, nega-se a origem social dos problemas e insiste-se numa solução
através da educação.
No atual momento histórico, a puericultura perde muito de sua importância.
Passa a se incorporar à Pediatria e a se cingir ao âmbito da assistência médica. Para Novaes,
"a puericultura se difundiu de tal forma que, em certo sentido, até perdeu a especificidade
como um saber mais ou menos fechado, passando a fazer parte do conhecimento comum
(ainda que freqüentemente de forma truncada, imprecisa ou mesmo invertida) (NOVAES:
1979,128-129). As antigas funções de controle social passam a ser desempenhadas por
outros agentes sociais como, por exemplo, os psicólogos, os assistentes sociais etc. A lém
do mais, esses mecanismos de controle foram introjetados por muitos indivíduos, o que
talvez tenha tornado um pouco obsoleta sua existência exterior.
A puericultura é um conhecimento acabado que, para sobreviver enquanto
parte da prática médica, tornou-se mais técnica, mais clínica, e os seus aspectos mais
coletivos foram remetidos para o campo da saúde pública. A puericultura incorpora-se na
pediatria preventiva (NOVAES: 1979,135-136). Perde importância enquanto instância
ideológica. Passa a incorporar o "psiquismo" como um dos campos de sua atuação
profissional.
Novaes conclui: "a puericultura, nos dias atuais, perdeu o significado que
tinha no seu início, porque, de um lado a sociedade dispõe de meios mais eficazes de
realizar a sua missão civilizadora" para as classes inferiores, e neste processo populariza
alguns de seus conceitos, e por outro lado a prática médica não tem mais lugar para ela. O
que não impede que muitas das suas regras continuem sendo praticadas (a orientação
alimentar, a higiene infecciosa etc.), porém sem significado social e original" (NOVAES:
1979,140).
166
A transformação do papel social da puericultura é um bom exemplo de
como, no mundo social, as práticas e instituições poderão ser aceitas e continuadas por
razões diferentes daquelas que inicialmente lhes deram origem.
Outro ponto que gostaríamos de aprofundar se refere ao papel que
desempenha hoje a medicina em relação às práticas de amamentação. A investigação coloca
uma pergunta: quanto de cultural e ideológico existe nas afirmações e motivos
pretensamente "racionais" e "científicos" que os médicos apresentam sobre o aleitamento ao
longo do tempo, na tentativa de estabelecer regras sobre este comportamento? O que se nota
é que o discurso médico sobre a amamentação muda com bastante rapidez e que, o que é
"preconceito" hoje, passa a ser ciência amanhã; e o que foi "ciência" no passado, hoje é
encarado como "preconceito". O médico tende muito a acreditar em verdades ou teorias
absolutas e isto se deve à predominância da filosofia positivista na sua formação
profissional. Não se nota, ou se nota pouco, a provisoriedade da ciência e sua relação com
a época e com uma formação histórico-social específica. Se os fatores socioculturais predominam nos motivos e razões de amamentação, em alguns momentos da história, a ideologia
também busca oferecer justificativas para a amamentação ou para o desmame, justificando
tais atitudes contraditórias, ora como necessárias ora como irrelevantes, dependendo do
desenvolvimento das forças produtivas e dos interesses e motivações socioculturais. No
estudo da difusão do conhecimento médico em relação ao aleitamento percebe-se que
muitas das práticas sociais sobre o corpo e a amamentação, hoje dissolvidas no senso
comum e amplamente vivas nas classes populares, foram, no passado, produzidas e
praticadas pelos médicos e classes dominantes. Podemos citar, como exemplo, a crença
agora amplamente disseminada sobre "leite fraco", hoje rebatida pela maioria dos médicos.
Lembremos que, nas obras dos médicos higienistas do século passado, uma das causas
alegadas para justificarem a impossibilidade do aleitamento era a fraqueza da constituição.
Na verdade, "a medicina é muito esquecida dela própria: lutando contra os preconceitos
populares, a medicina muitas vezes luta, sem sempre o saber, contra o seu próprio
passado" (BOLTANSKI: 1984,62).
Pelas razões expostas, muitos médicos tratam as práticas populares em
relação à amamentação e ao corpo infantil como "preconceituosas". Raramente procuram
"pensar positivamente as práticas tradicionais das mães no cuidado com os filhos e explicálas em função de outra racionalidade. Ao contrário, o poder médico visa impor-se como o
único competente para determinar regras universais de conduta da população não apenas em
relação ao corpo, desautorizando todos os saberes antigos, fortemente enraizados nos meios
167
populares. Batalha que certamente não foi vencida" (RAGO: 1985,123). Ou seja, os
médicos não percebem que o comportamento das mães em relação ao aleitamento tem seus
motivos baseados em valores culturais socialmente compartilhados. Dito de outro modo, os
médicos, na sua atuação, percebem muitos comportamentos das mães em relação à
amamentação e à saúde dos filhos como frutos da ignorância e do acaso; ignoram as crenças
populares e emitem as suas prescrições sem buscar uma explicação racional do porquê das
discordâncias entre suas idéias e as praticas populares. No fundo, pretendem negar os outros
saberes para que a biomedicina surja como discurso e prática hegemônica. Entretanto, em
muitos casos, esta sua atitude dificulta a penetração da medicina nas camadas populares,
devido, entre outras razões, à barreira social de comunicação. Isto pode levar ao fracasso de
muitas ações sanitárias sobre o aleitamento baseadas em modificações de comportamento,
necessárias para se atingir uma melhoria nas condições de saúde.
Criticando tais posições, Boltanski indica que essas intenções de
desvalorização dos saberes populares em relação ao aleitamento só são verdadeiras a nível
ideológico, pois "as mães, independentemente do meio a que pertençam, dedicam uma
grande atenção ao cuidado de seus filhos; não há nenhum aspecto deste trabalho que possa
abandonar-se ao puro azar ou à imaginação... os que não se adéquam às regras de
puericultura legítima, não se deixam conduzir pela fantasia, mas observam outras regras e
se submetem a outras normas obrigatórias" (BOLTANSKI: 1984,59).
Infelizmente, poucos médicos percebem os condicionamentos socioculturais
da prática médica em relação ao aleitamento, o que tem levado, predominantemente, ao
estabelecimento de condutas baseadas em juízos morais. Entretanto, a puericultura modifica
a sua inserção e o seu papel social e já se percebe que alguns médicos começam a
incorporar novos padrões de regulação social, atualizando as práticas do dispositivo médico,
incorporando a representação do aleitamento como um "desejo" das mães.
168
CAPÍTULO VI — O ALEITAMENTO COMO PROCESSO SOCIOCULTURAL:
1. MUDANÇAS SOCIAIS E ALEITAMENTO:
É importante detectar, no processo de desenvolvimento dos saberes e práticas
sobre o aleitamento, atitudes e motivações psicossociais desfavoráveis à mudança social. As
alterações das percepções culturais sobre o aleitamento vão depender de uma fase prévia de
modificação mais ou menos rápida, mas sempre profunda, da herança cultural tradicional. O
maior apego de alguns grupos sociais a práticas conservadoras explica o menor ritmo de
mudança nesses segmentos. A prática do aleitamento deve se modificar com maior rapidez
do que as idéias e concepções sobre amamentação, pois as últimas dependem de alterações
mais profundas na subjetividade e valores dos indivíduos. A transformação social de valores
é, geralmente, mais lenta, pois as pessoas tendem a reproduzir padrões anteriormente
aprendidos, socialmente aprovados e compartilhados. As mudanças nos saberes e práticas
sobre aleitamento dependem de alterações nos mores (costumes)13 e folkways (usos)14 do
organismo social. As pessoas têm, geralmente, atitudes conservantistas que visam à
preservação do patrimônio cultural e moral e à defesa de valores tradicionalmente
consagrados. Elas podem ter medo das mudanças por ignorância, por temor de que elas não
se adaptem às suas necessidades, pelo hábito, tradição ou pelo "poder dos interesses
investidos", que Koenig considera o mais comum e mais poderoso obstáculo ao progresso
social. Este último nem sempre se baseia em lucro econômico (KOENIG: 1967,350). Um
exemplo desse obstáculo à mudança pode ser encontrado na resistência que as indústrias
produtoras de leite em pó ofereceram às restrições à propaganda e à disseminação da idéia
de que o aleitamento materno constitui a melhor forma de alimentação do recém-nascido.
O aleitamento, "por se tratar de um comportamento que historicamente tem
se apresentado com forte carga valorativa e controle social rígido, qualquer mudança nos
padrões desta prática deve exigir períodos de maturação mais longos, mediados por
alterações ao nível dos processos de evolução econômica e social... o 'tempo' necessário a
cada sociedade para incorporar novos valores e padrões de comportamento de aleitamento
13
mores — "padrões obrigatórios de comportamento social exterior que constituem os modos coletivos de
conduta, tidos como desejáveis pelo grupo, apesar de restringirem e limitarem o comportamento. São
moralmente impostos e considerados essenciais ao bem-estar do grupo. Quando se infringe um more há
desaprovação moral e até sanção vigorosa" (LAKATOS: 1986,365).
14
folkways — "padrões não obrigatórios de comportamento social exterior, que constituem os modos
coletivos de conduta, convencionais ou espontâneos, reconhecidos e aceitos pela sociedade; regem a maior
parte da vida cotidiana, mas não são impostos" (LAKATOS: 1986,361).
169
materno praticados por seus membros é tanto maior quanto menor for a sua complexidade
urbana" (SPINDEL: 1984,83).
A herança cultural resiste às adaptações às condições emergentes de vida.
Surge, nesse caso, um "dilema social", "um tipo de inconsistência estrutural e dinâmica que
nasce da oposição entre o comportamento social concreto e os valores morais básicos de
determinada ordem social" (FERNANDES: 1976,208). Freqüentemente, surgem novos
comportamentos percebidos por alguns ou pela maioria dos indivíduos como necessários,
que colidem com os valores morais que fundamentam a ordem social. No caso do
aleitamento, a sua revalorização é um fenômeno social novo. Este fenômeno foi provocado,
sobretudo, por novas descobertas científicas de que esta forma de alimentação do recémnascido é mais eficiente, ou mesmo por um retradução cultural de saberes antigos que
ficaram esquecidos ou abandonados e, também, pelas exigências das novas condições
materiais de vida.
Ainda que amamentar não se choque frontalmente com valores sociais
básicos, os indivíduos se acostumaram a desmamar as crianças diante de certas
circunstâncias. O retorno a esta prática passa por uma recodificação demorada das maneiras
de agir habituais. O redirecionamento social à amamentação esbarra em saberes e práticas
tradicionalmente aceitos mas, agora, percebidos como inadequados e obsoletos. A
capacidade de inovação do grupo determina o ritmo da mudança.
"De um lado surgiram tendências inconformistas na avaliação dos
comportamentos rotineiros e tradicionais, das instituições e dos valores 'sagrados' ou
intangíveis, que conformavam o presente pelo passado e impediam a renovação econômica,
cultural e social das condições de vida. De outro, está o surto de uma mentalidade prática,
que levou o homem a refletir sobre os elementos e as forças do meio social ambiente
segundo critérios utilitários de teor crescentemente racional" (FERNANDES: 1960, 20).
Na remodelação de valores e atitudes sobre o aleitamento, as instituições de
saúde e muitos profissionais da área apresentam resistências. Pretendem manter as rotinas
hospitalares que desestimulam a amamentação e as suas categorias de pensamento que
atingiram um estado de concordância recíproca com a clientela. Surgem conflitos entre
pacientes, que absorvem as novas aspirações de mudança e pretendem amamentar, e
médicos que desestimulam a sua prática e prescrevem o aleitamento artificial. Por outro
lado, há médicos que mudam a sua mentalidade e tratam de clientes conservadores, que
praticamente exigem dele a prescrição de fórmulas. A flutuação desses valores permanecerá
até atingir um nível de acomodação que proporcione a satisfação desejável a ambos, se o
170
conflito de opiniões não destruir a interação social.
Neste aspecto, algumas regiões distantes espacialmente dos pólos de
desenvolvimento mais dinâmicos do país, apresentam um retardo na assimilação cultural de
novos valores. Tal ocorre como no caso das classes sociais, em que há um tempo decorrido
para a difusão de novos comportamentos das classes dominantes para as populares. A
distância no espaço provoca uma distância de valores no tempo. Este retardo na assimilação
de novos modelos de comportamento é conhecido pelos sociólogos como demora cultural
ou cultural lag15. Ogburn observou que as transformações da cultura material ou tecnológica
são mais rápidas que as mudanças na cultura não-material e na capacidade de adaptação da
sociedade. A mudança das condições de vida precede a alteração nas concepções e valores
dos indivíduos, que se dá mais lentamente. Chamou este vazio que ocorre entre as
transformações sociais objetivas e a formação das subjetividades de demora cultural. As
pessoas e/ou as instituições desempenham papéis e/ou funções antigas que já não
correspondem às necessidades novas que surgiram e às expectativas sociais. Revela uma
discrepância entre os ritmos de mudança nos diferentes setores da vida social. Apesar disso,
"a sociedade precisa de novas invenções tecnológicas porque as necessidades humanas são
virtualmente ilimitadas. O homem não pode solucionar problemas sociais proibindo o
progresso material" (KOENIG: 1967,346). "O problema enfrentado pelo homem moderno é
o de adaptar suas maneiras de pensar e de comportar-se ao estado da tecnologia" (KOENIG:
1967,337).
Para Fernandes, "a sociedade brasileira ainda não atingiu uma estrutura e uma
organização que possibilitem a emergência de mecanismos de reintegração típicos da
comunidade urbana da era industrial", tal como expressas na hipótese da demora cultura de
Ogburn. Na sua opinião, estamos vivenciando "fases incipientes de desintegração da herança
tradicional. Por isso, o fulcro dinâmico de configuração do equilíbrio social não provém das
forças sociais conservadoras ou de coalizões de interesses que garantem influência prepotente
às forças conservantistas. Por exceção, a situação de algumas metrópoles não é essa" (FERNANDES: 1976,211). Desse modo, as resistências à mudança seriam muito intensas, o que
retardaria o ritmo das transformações socioculturais. A renovação não se daria com o
15
demora cultural — "diferença no ritmo de desenvolvimento entre segmentos de cultura ergológica e
tecnológica, de um lado, e outros segmentos de cultura não-material de outro lado. A demora cultural é um
fenômeno corriqueiro, por exemplo, em sociedades que se industrializaram com relativa rapidez, de maneira
que uma série de instituições como a família, a escola, o Estado, a Igreja, não conseguiram ajustar-se ao
novo tipo de organização econômica. As funções que estas instituições procuram desempenhar já não
correspondem às necessidades que surgiram e às expectativas sociais que se prendem à sua
existência" (WILLEMS: 1950,40).
171
dinamismo típico das sociedades urbano-industriais. Persistem padrões híbridos, nos quais
atitudes racionais correspondem a motivações irracionais. A confluência de atitudes e
motivações contraditórias contribui para retardar o ritmo da mudança social progressiva e
aumenta o período de desintegração transitória da vida social organizada. "Atitudes e
motivações irracionais valorizam a preservação de critérios obsoletos de comportamento, de
organização das instituições sociais e de intervenção na realidade" (FERNANDES:
1960,45-47). A instituição médica é uma das organizações sociais mais refratárias às
mudanças nos padrões não-materiais de funcionamento, apesar da rapidez com que tem
absorvido as novas tecnologias de diagnóstico e tratamento.
Já vimos que os ritmos de mudança cultural são mais rápidos nos estratos
privilegiados e que os costumes permanecem por um tempo mais longo nas classes
subalternas. Porém, se observa que os processos de criação, difusão e integração de novos
modelos estão ocorrendo com uma velocidade e intervalos cada vez menores do que no
passado; os meios de comunicação de massa, sem dúvida, desempenham um papel de
grande importância no processo.
Berquó analisa que, em São Paulo, as mães mais expostas aos meios de
comunicação de massa tiveram uma duração média do aleitamento de 57,1 dias e as menos
expostas de 26,5 dias. Em 1981, estes veículos começavam a apresentar mensagens de
estímulo ao aleitamento. Porém, na mesma época, em Recife, as mães mais expostas à
mídia amamentaram menos (BERQUÓ: 1984b, 32-35). Esta influência diversa da
propaganda em São Paulo e Recife nos ilustra, novamente, o cultural lag.
Nos tempos atuais, observa-se um aumento progressivo da eficácia das
normas, das instituições e das técnicas de controle social. Uma das prováveis causas desse
fenômeno é que, da mesma forma que a organização social da produção tende a atender às
necessidades do homem médio, este também tende a aumentar a sua cooperação na medida
em que suas necessidades forem sendo satisfeitas, o que, provavelmente, promove
mudanças cada vez mais rápidas. Algumas esferas da sociedade mudam mais rapidamente,
outras mais lentamente e o mais provável é que umas acabem se ajustando às outras. A
tendência é do predomínio de formas de racionalidade típicas da sociedade urbanoindustrial, de padrões secularizados.
172
2. ALEITAMENTO, PROPAGANDA E IMPERIALISMO:
Tem sido muito comum, no estudo do aleitamento, a interpretação que
considera a propaganda como um dos fatores explicativos mais importantes no processo.
Tal visão se desenvolveu a partir da crítica às promoções comerciais das indústrias no auge
do decréscimo da amamentação. Em nosso entender, preferimos considerar o processo de
difusão como elemento mais explicativo das flutuações dos valores sobre a amamentação e
considerar a propaganda como um dos elementos da difusão, talvez menos importante do
que usualmente considerado.
Considerando-se as instâncias da difusão na explicação dos comportamentos
em relação ao aleitamento, podemos observar que a propaganda teve um papel, sem dúvida,
importante por ocasião do decréscimo da amamentação. No entanto, esta não pode ser
incorporada como elemento explicativo do processo de flutuação dos saberes e práticas
sobre a amamentação em todos os momentos históricos. Desse modo, tal interpretação é, a
nosso ver, reducionista. De início, queremos frisar que discordamos de muitas destas
colocações, por serem insuficientes na explicação dos fatos e por incorporarem nexos de
natureza economicista e mecânica. No entanto, vamos dialogar com alguns defensores
dessas hipóteses, no sentido de clarear o entendimento do tema.
Para Goldenberg, na sociedade de consumo, a propaganda cria hábitos e
necessidades, orienta as aspirações dos consumidores e fornece motivos ao consumo dos
produtos, garantindo o escoamento da produção. Assim, em sua opinião, houve com a
transformação da sociedade artesanal em industrial, uma alteração: enquanto naquela a
produção se faz segundo as necessidades, nesta as necessidades se adaptam à produção.
Desse modo, em sua opinião, diante do leque de reais possíveis delineados pela história não
se pode subestimar o papel dos empresários no dimensionamento do mercado consumidor,
principalmente quando se trata de introduzir um novo hábito, em substituição a uma prática,
como a de aleitamento natural, que se desenvolveu como um produto do processo de
adaptação milenar da espécie. "Como espaço de articulação entre interesses econômicos
privados e os vários planos de organização das formações sociais, o marketing tem
resguardada sua autonomia de intervenção, numa realidade histórica que é muito mais do
que mero pano de fundo; isso equivale dizer que se o espectro de suas ações não
permitissem atribuir exclusividade na determinação do aleitamento artificial entre nós, isso
não o tornaria menos responsável pela ocorrência do fato" (GOLDENBERG: 1988,139).
Por sua vez, Satriani considera que o atual processo de produção dos bens de
173
consumo, para sobreviver, gera sempre novos produtos (SATRIANI: 1986,143). Para
Fredericq, a colocação de novos produtos no mercado provoca uma mudança de
comportamento dos consumidores (FREDERICQ: 1982,107). A falta de informações por
parte das mães e sua crescente integração no esquema de produção e de consumo capitalista
parecem ter levado a uma diminuição do aleitamento tradicional ao seio. A urbanização
promoveu a integração da sociedade brasileira ao consumo de novos produtos. Este
processo promoveu a desvalorização do leite materno enquanto alternativa alimentar. Nesse
sentido, na opinião da autora, as multinacionais conseguiram influenciar as mães e a
sociedade no sentido de favorecer seus negócios, entre os quais a produção de leite
artificial, e lucros.
As colocações de Fredericq acima expostas podem, de fato, em nossa
opinião, ilustrar, em parte, o processo de desmame e sua relação com o consumo crescente
de novos produtos industriais, que acompanha a integração de novos contingentes
populacionais à economia de mercado. No entanto, não concordamos com esta autora
quando ela entende que a acumulação de capital e os interesses de lucro influenciaram as
mães para o consumo. Em nossa opinião, as necessidades dos consumidores não são ditadas
apenas por motivações ideológicas nem somente as multinacionais provocam o surgimento
de novas necessidades. A extensão das necessidades e o modo de satisfazê-las são produtos
históricos e dependem das condições sociais e culturais e também do grau de
desenvolvimento das forças produtivas e da sofisticação tecnológica.
Uma pergunta a fazer é até que ponto a propaganda é capaz de modificar
hábitos dos consumidores. Normalmente, os médicos costumam superestimar os efeitos da
propaganda. Assim, tendem a imaginar que as pessoas fazem isto ou aquilo (por exemplo,
fumar) por causa da propaganda. Esta visão é pouco dialética, pois acredita exageradamente
nos efeitos da propaganda e na incapacidade de os homens pensarem. Observaremos que
hábitos e comportamentos sociais estão determinados por muitos condicionantes e não
apenas pela publicidade. De modo geral, a propaganda não faz "cabeças". Ela apenas
reforça tendências anteriormente existentes. As pessoas mudam as suas atitudes e
comportamentos, seu modo de pensar, de agir e de sentir, sobretudo em contatos face a face.
Além do mais, também tendem a ler e ouvir apenas os programas propagados pelos meios
de comunicação que vêm ao encontro de suas idéias. Encarar os seres humanos como massa
informe a ser moldada pelos meios de comunicação é uma idéia tola e absurda.
Em nosso entender, apesar do abandono da amamentação não se dever
inteiramente à publicidade das corporações, os efeitos da promoção têm importância
174
considerável no estímulo e velocidade de incorporação de novos hábitos. Isso destaca o
papel da publicidade no propósito de reforço a necessidades sentidas.
Nesse sentido, Mcluham observa que "a pressão contínua é de criar anúncios
cada vez mais à imagem dos motivos e desejos do público. A importância do produto é
inversamente proporcional ao aumento da participação do público" (MCLUHAN:
1969,255). A publicidade pretende harmonizar a produção com o consumo e homogeneizar
a vida social com o intuito de acelerar a troca de bens e serviços, seguindo e não criando
uma tendência. "Qualquer anúncio caro é criado e construído sobre os alicerces testados de
estereótipos públicos ou 'conjunto' de atitudes estabelecidas... qualquer anúncio aceitável é
a dramatização vigorosa de uma experiência comunal" (MCLUHAN: 1969,257). A
propaganda emerge ícones grupais utilizando imagens e símbolos. O texto é simplesmente
um jogo de palavras que distrai as faculdades críticas, enquanto as imagens vão atuando, de
forma hipnótica, sobre o inconsciente das pessoas. Para McLuhan, "os que protestam contra
os falsos e enganosos textos publicitários são os melhores aclamadores e aceleradores. As
pessoas altamente letradas não entendem a arte não verbal do pictórico". Tais pessoas nunca
atacam as mensagens dos anúncios pela sua incapacidade de discutir formas não verbais de
estruturação e significação (MCLUHAN: 1969,260-261).
A publicidade usa técnicas inconscientes extremamente efetivas de
persuasão. O produto é envolvido numa rede de evocações emocionais e simbólicas
fortemente carregadas, que reenviam ao inconsciente individual. A publicidade favorece,
ainda, a absorção espontânea dos valores sociais dominantes. "Como mensagem
tipicamente publicitária, evocam unicamente o que consideram ser essencial e negligenciam
(ocultam) o resto. Elas operam um tipo de metonímia, apresentando uma parte da realidade
como sendo o todo" (FREDERICQ: 1982,164).
Fredericq analisa as técnicas publicitárias utilizadas em anúncios da Nestlé,
nas quais os termos utilizados têm uma forte conotação afetiva. Por exemplo, a repetição
freqüente de duas palavras, Nestlé e vida, tem como objetivo a criação de um mecanismo
associativo inconsciente no público. A linguagem é a do inconsciente, tendo na família um
ponto de referência fundamental. Associa-se a alimentação artificial ao carinho, como se
este fosse transmitido pela mãe junto com o produto leite em pó.
Sem desconhecer as estratégias publicitárias, achamos que não se pode
atribuir à propaganda um papel que ela não possui. Esta não necessariamente cria ou incute
desejos nos consumidores. No caso dos substitutos do leite materno, o que geralmente fez
foi, percebendo a existência de uma necessidade social não satisfeita, encontrar a melhor
175
forma de colocar o produto no mercado. As atividades de marketing16 pressupõem o estudo
da possível aceitabilidade do produto pelos consumidores; não havendo tal aceitabilidade,
pouco adiantaria a sua veiculação em anúncios, pois a população não sentiria o desejo de
consumir um produto que não se conseguiu tornar necessário.
A publicidade17 atua, após as pesquisas de mercado como um estímulo ao
consumo de um produto, novo ou não, desejado ou não, e atua de maneira a que o consumo
se dirija a uma determinada forma ou a uma determinada marca do objeto. Outro papel
desempenhado pela propaganda é contribuir para a aprendizagem dos indivíduos jovens,
divulgando o produto para conhecimento público.
A propaganda tenta influenciar o consumidor na medida em que cria ou
estimula uma tendência ao consumo de um produto. Comumente, nas análises feitas em
torno da alimentação artificial, o papel da publicidade é exagerado nos seus efeitos e
superdimensionado enquanto causa de um determinado resultado social. É como se
houvesse uma correspondência biunívoca entre a tentativa da influência e a influência
efetiva através da incorporação do hábito difundido pela propaganda. Assim, da mesma
forma que é provável não haver uma liberdade completa do consumidor na escolha de um
produto, sem pressões de qualquer espécie, é também plausível que o consumidor não seja
simplesmente manipulado a consumir determinado produto instruído pela propaganda. Isto,
sim, constituiria uma interpretação ingênua, considerar-se o consumidor como uma presa
dos mecanismos publicitários, sem a mínima percepção de suas próprias necessidades. A
propaganda pode, habilmente, dirigir os desejos do consumidor, estimular o consumo de um
determinado produto, incentivar a compra de um bem supérfluo, ao invés de um bem mais
útil, mas quase nunca moldá-lo ou conformá-lo aos seus ditames.
16
O marketing envolve uma previsão racional de operações e um processo de ação que vão da determinação
do cliente, das suas necessidades e desejos, até a organização da rede de venda e à integração dos
programas de venda, passando pela adaptação do produto ao cliente, a organização dos planos e dos
programas de publicidade, a preparação direta dos vendedores... Os estudos de mercado têm como objetivo
saber o que as pessoas desejam ou querem comprar, o que lhes agrada, aquilo que necessitam ou
ambicionam. Teoricamente, conseguem que se fabrique o que se poderá vender, enquanto a publicidade
procura vender o que foi fabricado... O conceito de marketing implica a aceitação pela direção da empresa
que qualquer decisão seja tomada com base nas necessidades de consumo do consumidor, e não nas suas.
Significa que se teve em consideração a procura em vez da preocupação exclusiva da oferta" (BIROU:
1982,243).
17
A publicidade comercial tem por objetivo fazer conhecer, apreciar e desejar pelo público um produto, uma
mercadoria. A publicidade consiste em relacionar um bem de consumo com um valor que atrai o cliente ou
que este aprecia. Liga-se a compra do produto a um valor socialmente admitido como, por exemplo, a
procura da superioridade. Assim, "a imagem que aquele ou aquela que utiliza determinado produto é mais
inteligente, mais viril, mais feminino, mais desejável, mais astucioso, mais forte etc, do que os outros". A
publicidade estimula artificialmente o consumo, sendo uma característica de nossa sociedade terem os
produtos passado a fabricar os consumidores (BIROU: 1982,340).
176
Vejamos, a seguir, as opiniões daqueles que explicam a mudança dos hábitos
de amamentação por influência do imperialismo cultural. Bader tende a considerar que a
propaganda é um dos mecanismos do imperialismo cultural e da dependência para amoldar
os gastos do consumidor nos mercados exteriores às exigências de produção das metrópoles
(BADER: 1983,386). Em sua opinião, a dependência favorece a propagação do eixo de
"medicalização-consumo-lucro" e destrói as práticas habituais da população. Observa que o
marketing do leite em pó encontra-se associado à medicalização do cuidado à criança,
quando a alimentação infantil passa a interessar ao pessoal especializado da área da saúde.
Para Bader, a influência do imperialismo seria deletéria, promovendo a destruição da
autonomia regional, provocando um menor consumo de produtos locais, limitando o
desenvolvimento do mercado interno da nação dependente e a sua capacidade cultural e
técnica (BADER: 1983, 387). Dessa maneira, o consumo de produtos "supérfluos", como o
leite em pó, teria um efeito retardatário sobre o desenvolvimento econômico, já que
representaria uma má distribuição dos escassos recursos econômicos do ponto de vista do
bem estar da comunidade. Considera, ainda, que o comércio usa o efeito-demonstração
para, através da informação pelos meios de comunicação de massa, difundir padrões
ocidentais de consumo que passariam a ser imitados pelas pessoas dos países dependentes.
Observamos que este autor atribui ao imperialismo a conseqüência de fatos
que retratam apenas um processo histórico de transformação da economia de subsistência
em economia de mercado, que leva a uma maior integração dos consumidores. Embora haja
relações significativas entre dependência e marginalidade, o imperialismo não é a única e
talvez nem mesmo a principal fonte de determinação social, mas um entre vários fatores que
influem no processo de desenvolvimento (SINGER: 1985,90). Suas colocações são
simplistas e assumem, por vezes, aspectos valorativos. A interpretação tentada é, sem
dúvida, economicista, mecânica e evolucionista.
O processo histórico de desenvolvimento do modo de produção capitalista
seria, na percepção de alguns autores, o responsável pelo desvio para a alimentação com
mamadeira. Segundo esta interpretação, a ideologia liberal hoje busca retroceder esta
dinâmica que se tornou disfuncional, instituindo mecanismos de regulação necessários para
a sobrevivência do sistema a longo prazo. A promoção do aleitamento surge, então, como
uma decorrência da necessidade de planejamento. Assim, a rendição da Nestlé aos termos
do código de comercialização de alimentos infantis deve ser colocada neste contexto global
dado pela recessão mundial e o terror das reações do terceiro mundo às medidas desumanas
de austeridade empreendidas para facilitar o pagamento das dívidas externas dos países
177
subdesenvolvidos. Até as medidas de promoção do aleitamento que soam como
progressistas, são resultado das necessidades do capital de inibir o potencial revolucionário
das altas taxas de fecundidade e de mortalidade infantil, ambas afetadas pelo aleitamento
materno (CAMPBELL: 1984,563-565).
Em nosso entender, o processo de desmame não pode ser reduzido a causas
econômicas. Não acreditamos que a redução do aleitamento materno provoque uma ameaça
à sobrevivência do sistema capitalista e que tenha sido por isso que se desenvolveu o
controle sobre a comercialização dos alimentos infantis para o bebê. O planejamento surgiu,
provavelmente, como uma necessidade de se proteger as vidas infantis. A redução na
fecundidade que pode ser obtida com o aleitamento materno e o pretendido "potencial
revolucionário" das altas taxas de natalidade foram discutidos em capítulo anterior.
Como foi exposto nos capítulos iniciais, a mercantilização da alimentação
infantil aconteceu antes do advento do capitalismo, desde a época em que o leite humano
foi utilizado como valor de troca, através do aluguel de amas-de-leite. Portanto, não se pode
creditar a mudança no modo de alimentação dos recém-nascidos em direção à mamadeira e
aos leites animal e artificial como um acompanhante do desenvolvimento do capitalismo
industrial.
Para Carolyn Campbell, "a degradação física e mental das mulheres, a sua
elevação nas sociedades capitalistas avançadas a consumidoras e objetos sexuais, e a sua
marginalização da produção social e reprodução, são responsáveis pela disseminação da
alimentação artificial. As mulheres internalizaram, e hormonalizaram, o papel que o
capitalismo lhes destinou". No seu ponto de vista, as mulheres passaram a alimentar seus
filhos com mamadeira porque este é o modo de alimentação que traz mais vantagens ao
capitalismo ou, em termos ideológicos, uma coisa 'moderna" a fazer (CAMPBELL:
1984,556-565).
Afirmações como esta, de Campbell, são bastante ingênuas e exageradas.
Qualquer investigação histórica objetiva mostra que as mulheres não se degradaram física e
mentalmente nem foram elevadas a objetos sexuais com o avanço do modo de produção
capitalista. As pessoas pensam e não são apenas autômatos que incorporam hábitos ditados
pelo capitalismo. As mulheres não estão marginalizadas nem da produção social nem da
reprodução mas, pelo contrário, participam de ambas. O sistema capitalista não tem a
racionalidade que se lhe quer atribuir. As mulheres estão tendo, sob este sistema, grandes
possibilidades de promoção e ascensão social, que não tinham nos modos de produção
anteriores, fixados na tradição e no imobilismo. Que a alimentação artificial proporcione
178
lucro às empresas produtoras de leite é uma coisa. Pretender que este modo de alimentação
traga mais vantagens ao capitalismo como um todo é, virtualmente, uma falácia. Não se
pode confundir interesses de um setor econômico com os interesses de todo o sistema. O
que acontece, geralmente, é que os setores empresariais tomam suas decisões visando o
lucro imediato, sem pensar nas conseqüências de suas decisões para o sistema como um
todo. Pensar que o sistema funcione como um corpo orgânico que toma suas decisões
prevendo suas conseqüências e visando sempre à sua reprodução não tem sentido. Não há
funcionalidade completa das leis de mercado, pois estas são, em si mesmas, contraditórias.
Tal modalidade de análise visualiza um capitalismo sem contradições entre meios e fins.
Sabemos que até há poucas décadas, o leite humano era o único alimento
disponível para crianças, dado o escasso nível de desenvolvimento das forças produtivas. A
única alternativa social que havia era o recurso à ama-de-leite. O aleitamento por animal ou
pelo leite de vaca não dava bons resultados. Segundo Campbell, com o desenvolvimento
capitalista tudo passa a ser objeto de troca, com exceção de alguns bens como o leite
materno. É prossegue em suas colocações: o leite materno, como um produto de
subsistência, está fora do controle do mercado capitalista. Os bens de subsistência são
substituídos por bens de consumo, incorporados ao mercado como produtos "desejados"
pelos consumidores. Sem a produção de novos bens e a sua distribuição via mercado, não se
realizam a mais-valia e o lucro. Para Campbell, o leite materno foi desvalorizado porque
não permitia a extração da mais-valia. "Para uma companhia como a Nestlé, que em muitos
países controla virtualmente o mercado de fórmulas infantis, só há um único competidor: a
mãe que amamenta" (CAMPBELL: 1984,552 -559).
É óbvio que o leite materno só possui valor de uso se a mãe amamenta o seu
filho mas não achamos correto ver no leite humano apenas este tipo de valor. A prática do
aluguel das amas-de-leite, estudada no terceiro capítulo, envolvia o valor de troca do leite
humano. A expansão das forças produtivas proporcionadas pelo capitalismo extinguiu esta
prática. O capitalismo é um sistema que se caracteriza por um processo contínuo de
mercantilização das pessoas, relações e coisas. Entretanto, nem tudo o que pode ser objeto
de troca é colocado no mercado. Por exemplo, vimos que, ao contrário, o leite humano foi
retirado do mercado após a consolidação do capitalismo. A substituição dos bens de
subsistência pelos bens de consumo mercantilizados é um processo normal com a passagem
da economia de subsistência para a economia de mercado e é praticamente irreversível, pois
as forças produtivas mais eficientes destroem os modos de produção anteriores ao
capitalismo. O leite materno não foi desvalorizado porque não permite a extração da mais-
179
valia, mais sim devido a motivos que, além de econômicos, são socioculturais e que
estudamos no decorrer deste trabalho.
Em nosso entender, a amamentação é um processo predominantemente
sociocultural, ainda que tenha, também, condicionantes biológicos e econômicos. Como
processo cultural, a nosso ver, obedece às leis de difusão definidas pelos etnólogos. Nesse
sentido, não concordamos com Goldenberg et al. , quando afirmam que com a
industrialização do leite, "a lactação, que era regida basicamente pelas leis biológicas,
passou a ser regida pelas leis de mercado, ...interferindo nos mecanismos primitivos de
conservação da espécie" (GOLDENBERG et al. : 1983, 75). Nesta colocação, as autoras
parecem perceber o aleitamento como um instinto primitivo, biológico que teria sido
desnaturalizado pelas leis de mercado.
Não entendemos que seja possível estudar-se esse processo tão complexo,
atribuindo-se as mudanças nele operadas quase que tão somente aos mecanismos de
mercado e/ou às influências e aos interesses do capital, especialmente multinacional. As
causas de tal processo, como estamos tentando mostrar neste trabalho, ligam-se a fatores
mais amplos. Em nossa opinião, a monocausalidade economicista, na explicação do
fenômeno ora em estudo, acaba contribuindo para o empobrecimento da análise.
3. O PROCESSO DE CRIAÇÃO/SATISFAÇÃO DE NECESSIDADES EM
RELAÇÃO À ALIMENTAÇÃO INFANTIL:
Outro processo a ser analisado é o de criação/satisfação de necessidades em
relação à alimentação infantil. Se a prática da mãe não amamentar o seu filho já existia na
história desde tempos remotos, foi o nascimento do leite artificial que gerou a necessidade
dele ou foi a necessidade sentida há séculos pelas mulheres que promoveu a pesquisa e
descoberta de novas tecnologias para o alívio da impossibilidade ou do possível fardo de
amamentar para uma parte delas?
Normalmente, na moderna sociedade de consumo, a necessidade de um
produto não existe antes de sua existência. Desse modo, depois de atendidas necessidades
primárias, é o surgimento do produto que faz com que dele se sinta necessidade. Um dos
casos mais evidentes aparece na análise da expansão da assistência médica e dos exames
complementares: o surgimento de novos procedimentos diagnósticos cria a necessidade de
realização dos novos exames. Da mesma forma, certos produtos são criados e, nem por isso,
180
apesar da propaganda, a população deles passa a ter necessidade.
Entretanto, no caso específico do leite em pó, achamos que este produto
surgiu para atender a uma necessidade preexistente, no que concordamos com Novaes,
quando esta afirma que "os leites industrializados certamente se desenvolvem porque há um
mercado consumidor para eles, na medida em que a urbanização, com tudo o que ela
significa, diminui a possibilidade de um certo número de mulheres amamentarem seus
filhos" (NOVAES: 1979,66).
A oferta industrial em resposta à demanda de substitutos do leite materno só
pôde existir após uma série sucessiva de desenvolvimentos tecnológicos. A tecnologia de
extração de água e condensação do leite se tornou disponível em 1871, a de manufatura de
latas, que permite conservar o produto por longos períodos sem deterioração, já antes, em
1839, tendo o leite em pó se tornado disponível para consumo em 1860, tudo isto na
Europa. O que merece atenção é que a alimentação com mamadeira precede o
desenvolvimento tecnológico dos leites condensado e em pó; Manderson informa que esta
forma de alimentação teve um aumento rápido com a introdução de mamadeiras novas e
dos bicos de borracha maleáveis, que facilitaram a sua utilização (MANDERSON:
1982,614). Outro ponto importante é que o uso de amas-de-leite era comum, muito tempo
antes das fórmulas comercializadas de leite se tornarem disponíveis. Poynter pergunta se a
crença de que as qualidades morais indesejáveis da ama-de-leite poderiam passar para o
bebê através de seu leite, não estaria relacionada com a busca e adoção de alimentos
alternativos à amamentação (POYNTER: 1947,254). Nesta época, os médicos já não
acreditavam na teoria dos fluidos, mas diziam que a transmissão de más qualidades da ama
para a criança não se dá pelo leite, mas por convívio íntimo e contágio moral (GESTEIRA:
1943,77).
Em nossa opinião, inicialmente existia uma necessidade não satisfeita de um
substituto para o leite materno. Isto pode ser exemplificado, historicamente, pois a
alimentação artificial não se iniciou com o leite em pó nem com a mamadeira. Como vimos
anteriormente, já existiam recipientes utilizados com esta finalidade desde a época grecoromana (TUBBS: 1947,255-256). Além disso, diversas tentativas foram feitas no sentido de
se livrar a amamentação artificial de seus perigos. Com o desenvolvimento tecnológico, isto
se tornou possível e surgiram alguns produtos visando à satisfação desta necessidade. Neste
ponto, o surgimento do produto reforçou a necessidade de um substituto que se tinha antes e
que não era exatamente a necessidade deste produto específico. Esta necessidade tende a
crescer à medida que for sendo satisfeita. Nesta fase, o marketing desenvolve sua função,
181
adequando o produto aos desejos dos consumidores e a publicidade passa a atuar,
divulgando o produto para conhecimento do público e reforçando a tendência ao seu
consumo anteriormente existente. A propaganda passa a dirigir a necessidade a uma
determinada forma ou a um determinado produto, atendendo, neste caso, a um desejo
latente, do consumidor. Normalmente, o consumidor tende a escolher aquele produto que
melhor satisfaça àquela necessidade, mas isto nem sempre acontece.
Como dissemos antes, a necessidade pelo consumo de substitutos do leite
materno, como uma necessidade cultural cresce na medida em que seja satisfeita. Surge
como produto da difusão de novos saberes e práticas e o processo circular de
criação/satisfação de necessidades provoca a extensão constante do mercado de bens e,
correlativamente, do consumo. A necessidade de consumidores é rara a não ser pela
referência a mercadorias bem determinadas. A difusão das necessidades culturais novas
requer, para sua satisfação, o consumo de um número sempre crescente de produtos e de
bens (BOLTANSKI: 1979,178-185).
Para Marx, "a extensão das chamadas necessidades imprescindíveis e o
modo de satisfazê-las são produtos históricos e dependem, por isso, de diversos fatores, em
grande parte do grau de civilização de um país" (MARX: 1987,191) e, poderíamos dizer,
complementando, do desenvolvimento das forças produtivas. Ora, sendo assim, em nosso
entender, não foi apenas a oferta do leite em pó que provocou a sua demanda. Oferta e
demanda de leite em pó se inter-relacionam mutuamente. Em não havendo demanda,
mesmo que haja oferta e uma propaganda ostensiva, não haverá consumo e o produto
deixará de ser fabricado na mesma quantidade ou qualidade de antes. A propósito, hoje, a
demanda pelo leite em pó como alimento para bebês se reduz drasticamente no primeiro
mundo, por ocasião da redescoberta da amamentação.
Ocorre, ainda, que a demanda por esta necessidade pode ser satisfeita através
de uma série de produtos e de diferentes maneiras e formas. Houve e sempre haverá, na
história das sociedades humanas, a demanda pela alimentação dos recém-nascidos. A
natureza dotou a mulher do leite humano para satisfazer esta necessidade. A sociedade
humana desenvolveu-se tecnologicamente e encontrou novas formas de satisfação desta
necessidade: através do leite de vaca in natura ou modificado para uso infantil. Dependendo
da época histórica e da disponibilidade de formas para satisfazer a esta necessidade, haverá
ou não possibilidade de escolha. Socialmente, uma forma tem tido a tendência de predominar em cada época determinada, transformando-se na maneira socialmente aceita e
percebida como adequada para alimentar-se o bebê.
182
A indústria de leite em pó não criou a necessidade de alimentação do recémnascido humano. O que esta realizou socialmente foi colocar à disposição das famílias uma
nova forma de alimentação do recém-nascido. Em sendo esta nova modalidade alimentar
socialmente desejada, os apelos publicitários surtiram efeito e houve um deslocamento em
direção à alimentação com mamadeira. Havia uma pressão sociocultural pela satisfação da
necessidade de alimentação da criança de outra forma. A mudança nas mentalidades
estimulou a produção do leite em pó.
Goldenberg considera, que "afirmar que a produção do leite em pó
constituiria uma decorrência da necessidade de atender a uma demanda existente implicaria
conceber com ingenuidade a função da arte de colocação de um produto no mercado, o
papel
estratégico
do
marketing
no
sentido
de
criar
a
necessidade
de
seu
consumo" (GOLDENBERG: 1988,148). É óbvio que a existência do leite em pó estimula o
seu consumo mas também achamos que o leite em pó surgiu para atender a uma demanda
pré-existente e, desse modo, veio atender a uma necessidade sentida.
183
CAPITULO VII — PROCESSOS SOCIAIS E ALEITAMENTO:
1. TRABALHO FEMININO E AMAMENTAÇÃO:
No presente item, vamos estudar o duplo papel feminino na produção e
reprodução e as condições sociais atuais, que promovem, em grande parte, uma contradição
entre a compatibilização das atividades produtivas e das tarefas reprodutivas, o que, sem
dúvida, tende a se refletir de maneira desfavorável sobre o aleitamento materno. Tentaremos
responder a diversas perguntas: qual o percentual de mulheres que efetivamente exerce
atividades remuneradas fora do domicílio? Em que medida existem serviços coletivos de
apoio à reprodução humana nos locais de trabalho?
Inicialmente, queremos frisar que as mulheres sempre trabalharam nas
sociedades tradicionais, geralmente rurais, e sempre amamentaram os seus filhos. Assim, o
trabalho feminino tem sido uma constante histórica. Não é o trabalho da mulher em si que
vai fazer com que a amamentação diminua, mas sim as condições sociais concretas em que
este se realiza, como por exemplo, trabalho fora do lar a grandes distâncias, com horários
policiados, sem creches, sem intervalos para amamentar etc.
Berquó, em relação ao trabalho feminino, observou que 40% das mães em
São Paulo e 24% em Recife trabalharam antes da gravidez e apenas 7% em Recife e 15%
em São Paulo usufruíram dos benefícios legais, inclusive licença-maternidade. Dentre as
mães que deixaram de amamentar, 17% estavam trabalhando no momento da entrevista em
Recife e 18% em São Paulo (apud INAN-UNICEF: 1981,5-7). "Aparentemente, as
mulheres aceitam o valor social de parar de trabalhar para cuidar dos filhos até um ano de
idade, prática esta reforçada pela falta de facilidades apropriadas para amamentar no
emprego. De certa forma, o ciclo reprodutivo da mulher parece determinar seu
comportamento em relação ao emprego" (apud INAN-UNICEF: 1981,15).
Não se pode afastar o trabalho materno como causa de desmame, somente
porque esta motivação não esteja presente no discurso dos sujeitos. Esta não se refere ao
trabalho em si, mas à citação, pelas mulheres, do motivo trabalho. A falta de condições para
amamentação durante a jornada de trabalho, o não cumprimento das leis trabalhistas, a falta
de creches são fatores, sem dúvida, importantes no desmame precoce. Aqui se expressa a
dualidade da situação: se, por um lado, a mulher precisa trabalhar por questão de
sobrevivência, por outro lado, o próprio trabalho limita as oportunidades e meios de
reprodução e cuidados com os filhos, incluindo a amamentação ao seio. A mulher pode ter
184
interiorizado o arquétipo tipo ideal feminino: mãe e dona de casa. Pode ser difícil e penoso
para a mulher assumir que desmamou uma criança devido ao trabalho, pois pode ter a
percepção de que o trabalho fora do lar não é tarefa socialmente adequada para uma mulher.
Além disso, uma mãe pode desmamar uma criança apenas para ficar livre para poder
procurar emprego. Neste caso, não existe o trabalho executado, mas o desejo de trabalhar
pode influenciar o desmame. Muitas mulheres têm real necessidade de trabalho remunerado
para completar o orçamento doméstico e tomam decisões que levam, inconscientemente, ao
desmame. O trabalho deve ser visto não só na ação concretamente realizada, mas no seu
signiificado individual, familiar e social, mesmo quando não traduzido empiricamente em
ação (SPINDEL: 1984,78-79). Mesmo que não se coloque a premência econômica, a
amamentação pode não ocupar um lugar de destaque enquanto valorização social e realização pessoal.
Há uma tendência das mães com atividade extra-domiciliar (trabalho e/ou
estudo) a amamentarem menos e por menos tempo. A mediana do desmame para as mães
com atividade fora de casa ficou em 2 meses e para as sem atividade em 4 meses e meio
(RICCO: 1975,50). Entretanto, Rea e Solimano, em 1981, estudando mulheres de baixa
renda de São Mateus, na Grande São Paulo, indicaram uma amamentação maior para as
mulheres que trabalhavam — amamentação durante 10 contra 8 semanas (apud INANUNICEF: 1981,15). A este respeito, Villa considera que "não se analisa as condições de
inserção da mulher no mercado de trabalho, na divisão social do trabalho, no contexto
familiar e, historicamente, como esta tem procurado se adaptar às mudanças ocorridas, as
quais se tornam até certo ponto conflitivas com a sua função de mãe nutriz" (VILLA:
1985,33). A mulher dispõe de pouca infra-estrutura para conciliar a maternidade e a
amamentação com as suas atividades profissionais. As creches ou não existem ou estão fora
das possibilidades de utilização pelas mães, pela sua localização, custo ou pela idade dos
seus filhos (SPINDEL: 1984,78). Mesmo com a existência de creches, o transporte pode ser
precário, a ponto de ser difícil para a mãe levar o filho ao trabalho.
O tipo de relação de trabalho da mulher também interfere, dificultando ou
facilitando o aleitamento: as mulheres assalariadas ou autônomas têm maiores dificuldades,
enquanto as empresárias e profissionais liberais têm facilidades. Para Spindel, "é nesta fase
da vida da mulher como reprodutora, que se apresentam os maiores obstáculos à sua
participação no mercado de trabalho. Do lado da oferta, os obstáculos são de ordem familiar
pois, em geral, não existem condições possíveis para que a mãe se ausente de casa, seja por
ser a única produtora de bens e serviços para a família e/ou por problemas ligados ao
185
cuidado dos filhos (...) Do lado da demanda, como já é sobejamente conhecido, demitem-se
mulheres grávidas e/ou quando estas se casam, além de se utilizar como critério de seleção
o fato de ter ou não filhos" (SPINDEL: 1984,77).
A amamentação limita a possibilidade da mulher se deslocar, sem levar a
criança e os empregos tendem a ser incompatíveis com a amamentação em caráter
exclusivo, que é exatamente o que os médicos estão pedindo às mães para que o façam, pelo
menos até os seis meses. A mulher liberada das tarefas domésticas, geralmente, amamenta
mais. A falta de apoio da sociedade e da família, e de informação adequada pode ser uma
das razões pelas quais as mulheres têm problemas em amamentar.
Relacionando o aleitamento com o trabalho feminino, Kent afirma que os
padrões de amamentação estão relacionados com normas culturais, incluindo a visão social
sobre como alimentar-se uma criança e o nível de desenvolvimento econômico, o qual
facilita a disseminação da informação da disponibilidade de substitutos do leite materno e
expande as oportunidades de trabalho para as mulheres (KENT: 1981,11-12). O
desenvolvimento econômico levaria à ruptura das normas tradicionais e à assimilação de
novos valores em formação.
Para Badinter, uma causa importante das dificuldades do trabalho feminino
foi o enclausuramento da mulher no papel de mãe, que não pôde mais ser evitado, sob pena
de condenação moral. Da mulher "normal" se exige dedicação e sacrifício. Algumas
submeteram-se silenciosamente, algumas tranqüilas, outras frustradas e infelizes
(BADINTER: 1985,238-239).
Não obstante, muitas mulheres reagiram a todas essas pressões. Algumas
voluntariamente, em razão de suas convicções feministas; outras, muito mais numerosas,
porque não tinham escolha, pois eram trabalhadoras duplas (mãe e dona de casa, além de
profissionais). Por não disporem dos "meios culturais para enfrentar essa pressão
ideológica, eram mais sensíveis ao discurso dominante, devem ter vivido com angústia uma
situação que insistiam em proclamar contraditória e em conservar intacta" (BADINTER:
1985,329).
Para Badinter, a mãe que trabalha passa a ser vista como egoísta: "o destino
da criança, a felicidade da família dependem muito mais de sua presença constante do que
do ganho produzido por seu trabalho fora de casa" (BADINTER: 1985,279).
A solução para eliminar os conflitos de papéis femininos entre o trabalho e a
maternidade é colocada, por alguns, na eliminação do trabalho feminino fora do lar.
Entretanto, na literatura dita feminista, aparentemente, assume-se a postura de que mesmo
186
as mães que dispõem de recurso para ficar no lar, preferem trabalhar e deixar o seu filho
com outrem, a sacrificar a sua realização profissional. O que parece certo é que a moderna
sociedade ocidental urbana, industrializada e afluente, não está conseguindo harmonizar
este duplo papel feminino na reprodução/produção.
A amamentação ao seio está relacionada com a eficiência pela qual a mulher
pode combinar os seus dois papéis de trabalhadora e de mãe. As sociedades tradicionais
geralmente conseguem desenvolver este duplo papel eficientemente. A criança acompanha
a mulher durante o seu trabalho. Com a modernização e industrialização, os padrões de
trabalho e maternidade estão se tornando menos integrados (MELDRUM & Dl
DOMENICO: 1982,1247). As unidades familiares de produção se esfacelam com o
desenvolvimento industrial. O lugar de trabalho passa a ser a fábrica, estabelecimentos
comerciais etc. A produção é expropriada do espaço reprodutivo. A casa, antes locas
produtivo e reprodutivo, compartilhado pelo homem e pela mulher, transforma-se,
predominantemente, em espaço feminino de reprodução humana. A produção é sexualizada,
na maior parte, em favor do homem e a reprodução é sexualizada como incumbência quase
que "exclusiva" da mulher. Para a mulher, muitas vezes compulsoriamente levada a
desempenhar o papel de mãe, sem ser este o seu desejo, vê na possibilidade de desmamar o
filho e oferecer o aleitamento artificial, uma maneira de ganhar a liberdade para trabalhar
ou realizar suas aspirações pessoais, deixando a criança com a vizinhança ou parentes.
No entanto, o capitalismo apenas introduziu a separação entre espaços e
tempos da produção e da reprodução. A sexualização da produção e da reprodução é
anterior ao advento do capitalismo (COMBES & HAICAULT: 1986,25-26).
A crescente introdução de mudanças tecnológicas tornou inevitável a
separação no espaço e no tempo das atividades ligadas à produção social. A separação entre
casa e trabalho designou à mulher as atividades caseiras. "Neste sentido, pode-se afirmar
que a introdução da máquina vem reforçar o conceito de que à mulher cabe a função de
administração do lar e socialização dos filhos" (MADEIRA & SINGER: 1975,5).
A participação da mulher em atividades não-domésticas, como já vimos, está
estreitamente relacionada às possibilidades que o sistema econômico oferece de conciliar
atividades produtivas e atividades não-produtivas, isto é, no lar (MADEIRA & SINGER:
1975,6).
Analisaremos, a seguir, a evolução do trabalho feminino no Brasil nas
últimas décadas. Madeira & Singer, considerando o desenvolvimento econômico como um
movimento em direção a ocupações cada vez mais especializadas fora do âmbito doméstico,
187
classificam a evolução do nível de participação da mulher na força de trabalho em três
fases. Na primeira, o nível de integração da mulher na força de trabalho é elevado: no início
da industrialização, o número de pessoas empregadas na agricultura é ainda grande e o
número de empresas manufatureiras e comerciais limitadas à esfera doméstica é bastante
significativa. Na segunda fase cai a taxa de participação da mulher em atividades
produtivas, devido à migração rural-urbana e à diminuição do pequeno comércio e
fabricação caseira, apesar do crescimento contínuo do emprego feminino no setor de
serviços. Numa terceira etapa, "a taxa de participação feminina em trabalhos fora da esfera
doméstica voltará a crescer em um estágio bem mais avançado de desenvolvimento,
exatamente pelo crescimento do emprego no setor de serviços... Nos primeiros momentos
do desenvolvimento, a taxa de participação da mulher é alta, porque grande parte da
produção desenvolve-se dentro dos limites domésticos, na terceira, porque o
desenvolvimento das forças produtivas já atingiu um nível capaz de liberar a mulher dos
trabalhos domésticos" (MADEIRA & SINGER: 1975,6).
A participação da mulher no trabalho agrícola é condicionada por mudanças
na estrutura da propriedade. Uma vez que o trabalho feminino na agricultura, em geral, é
combinado com tarefas domésticas, torna-se mais fácil o aproveitamento da mulher nas
pequenas propriedades. Ao longo de todo o período há uma transferência de mão-de-obra
feminina agrícola das grandes para as pequenas e médias propriedades. Nas grandes
propriedades, substitui-se, em parte, o trabalho feminino pelo masculino. A produção, cada
vez mais especializada e dirigida ao mercado, requer trabalho mais contínuo e técnicas mais
apuradas. Isto deve explicar a expulsão da mulher, que necessariamente combina atividades
domésticas e reprodutivas, sendo por isso menos adequada aos novos padrões de produção.
A participação da mulher na atividade agrícola produtiva não se reduz de 1920 a 1970.
Ocorre, no período, uma expansão da agricultura baseada nos minifúndios, especialmente
de subsistência, capaz de aproveitar a força de trabalho feminina à moda antiga, sem separar
no tempo e no espaço, as tarefas domésticas da produtivas (MADEIRA & SINGER:
1975,17-25).
A maior participação da mão-de-obra feminina no setor secundário se dava,
nas décadas de 20 e 30, em oficinas artesanais, dedicadas indistintamente à produção e
reparação de bens. É provável que em 1940, a maior parte do emprego no secundário já
fosse de caráter fabril, onde a participação feminina era reduzida, exceto no ramo de fiação
e tecelagem. A participação mais acentuada da mulher neste setor se dá nas atividades de
reparação mostrando que, também nas cidades, o desempenho da mulher na atividade
188
produtiva se faz de forma combinada com a execução de tarefas domésticas, tratando-se,
sobretudo de costureiras, bordadeiras etc, que trabalham em suas próprias casas. "À medida
que se dá a industrialização, a produção artesanal é substituída pela fabril, o que acarreta,
dadas as circunstâncias, a substituição do trabalho feminino pelo masculino, já que o
afastamento da mulher do lar encontrava obstáculos tanto objetivos (a necessidade de cuidar
das tarefas domésticas) como subjetivos (preconceitos contra o trabalho da mulher fora do
lar)". De 1940 a 1960 se torna reduzido o crescimento do número de mulheres trabalhando
no setor secundário diretamente ligado à produção. A partir de 1960, a indústria voltou a dar
oportunidade de participação à mulher em proporção bastante ampla, porém a mulher tende
a ser empregada na indústria mais em funções administrativas do que em funções
diretamente produtivas. Além disso, as tendências da mudança tecnológica na indústria
tendem a acelerar o emprego de pessoal administrativo em proporção maior que o pessoal
ligado à produção (MADEIRA & SINGER: 1975,25-30).
O setor terciário tende a absorver ' o excedente de mão-de-obra feminina que
deixa a agricultura. Devido à sua heterogeneidade, dentro deste setor vamos considerar 3
sub-setores, para a análise da participação da mão-de-obra feminina: serviços de produção
(comércio, finanças, transporte, comunicação), serviços de consumo individual (serviços
pessoais e profissões liberais) e serviços de consumo coletivo (administração pública e
atividades sociais: educação, saúde, previdência social etc). Nos serviços de produção, a
maioria das mulheres está engajada nos serviços de intermediação (comércio de
mercadorias, de valores etc), nos quais subsistem muitos pequenos estabelecimentos em que
mulheres trabalham, combinando sua atividade produtiva com as tarefas domésticas,
principalmente como comerciárias — balconistas (MADEIRA & SINGER: 1975,30-33).
Os serviços de consumo individual têm a maior parcela de sua mão-de-obra
constituída por mulheres, sendo a maioria empregadas domésticas. Isto demonstra certa
incapacidade da economia de aproveitar produtivamente a força de trabalho feminina
disponível. "A saída da agricultura elimina, para a mulher, a possibilidade de combinar
atividades produtivas e domésticas, que na cidade é muito menor que no campo. Devido a
isso, o mais provável é que certa proporção de mulheres que saiu da agricultura tenha
efetivamente deixado a força de trabalho, ao se ver impossibilitada de exercer atividades
produtivas dentro do lar". O mais provável é que o êxodo rural entre 1940 e 1950 tenha
produzido um volume considerável de desemprego oculto entre as mulheres, isto é, levou
um número considerável delas a se retirar da força de trabalho por falta de oportunidades,
inclusive no ramo de prestação de serviços, como empregadas domésticas (MADEIRA &
189
SINGER: 1975,33-35).
Entre 1950 e 1970 eleva-se a demanda por serviços domésticos. "A
urbanização tem levado a mulher brasileira a abandonar a atividade produtiva. Este
abandono tem tomado duas formas, ambas implicando na realização de tarefas domésticas
por parte da mulher: uma, o desemprego oculto, a outra, o emprego doméstico". A
passagem de uma para outra forma, que se intensifica nas décadas de 50 e 60, significa
apenas que a demanda pelos serviços de consumo individual tem crescido, como resultado
da prosperidade crescente de uma classe média urbana em rápida expansão (MADEIRA &
SINGER: 1975,36).
Muitas mulheres estão também inseridas nos serviços de consumo coletivo.
O trabalho neles exige maior qualificação e uma ruptura quase total com as tarefas
domésticas, promovendo uma maior integração da mulher na atividade produtiva social
com todas suas conseqüências econômicas e sociais. A demanda por força de trabalho
cresce neste setor mais do que em qualquer outro na economia e a participação feminina é
crescente, em proporções ainda modestas. A participação das mulheres neste setor se dá,
predominantemente, em ramos que constituem quase que uma extensão dos papéis
femininos tradicionais, como professoras, enfermeiras, assistentes sociais etc.
De uma maneira geral, decai a participação da mulher na força de trabalho
entre 1940 e 1950. Porém, de 1950 a 1970, os níveis de engajamento da mão-de-obra
feminina têm mostrado contínua ascensão, dando mostras de que tenderão a apresentar
crescimento. Apesar da integração da mulher na produção ainda se dar, predominantemente,
nos serviços domésticos e na agricultura de subsistência, que são tarefas associadas a status
inferiores, geralmente como auxiliar do homem, no seio da própria família ou de uma
família estranha, novas oportunidades de participação surgem, graças à expansão dos
serviços de consumo coletivo, das unidades fabris, das empresas comerciais e de crédito etc.
Isto tenderá a elevar o status econômico e social da mulher. Em 1970, um quarto da
população de mulheres economicamente ativas inseria-se nestes últimos setores
(MADEIRA & SINGER: 1975,37-41).
O trabalho feminino tem como característica predominante ser descontínuo,
freqüentemente em tempo parcial, concentrado nos setores tradicionais ou em pequenas
empresas familiares. É um trabalho marcado pela diversidade e pela intermitência de entradas e saídas no mercado, devido ao frágil equilíbrio entre atividades produtivas e funções
reprodutivas. A posição do trabalho da mulher, na divisão social e sexual do trabalho é
definida, prioritariamente, a partir da sua biologia, condicionando-a aos afazeres domésticos
190
e a uma inserção em posições subalternas na hierarquia produtiva. "Filha, esposa ou mãe: a
cada uma dessas etapas do ciclo vital corresponderão determinadas necessidades e
possibilidades de trabalho" (BRUSCHINI: 1985,1-4).
"As possibilidades que a mulher tem de responder às demandas do mercado
estão estreitamente condicionadas pela posição que ela ocupa na unidade familiar. Caso, por
exemplo, ela seja casada e tenha filhos pequenos, pode ser que permaneça no lar, onde sua
presença é mais necessária, se os recursos familiares não forem suficientes para arcar com
as despesas de apoio doméstico remunerado. Por outro lado, esses recursos, freqüentemente, são tão precários que os rendimentos obtidos pela mulher passam a ser vitais para a
sobrevivência da família. Nesse caso, a mulher será forçada a sair de casa para trabalhar,
qualquer que seja o arranjo improvisado para o cuidado das crianças" (BRUSCHINI:
1985,17). "Esta complexa articulação entre atividades produtivas e reprodutivas é percebida
como um arranjo do grupo doméstico como um todo" (BRUSCHINI: 1985,5).
"A inserção no mercado de trabalho atua num duplo sentido. Se, por um
lado, pode inibir a vontade dos casais em ter um número elevado de filhos, por outro, pode
bloquear a própria participação feminina na atividade econômica pela inexistência de
aparelhos sociais que liberem a mulher do cuidado sistemático com os filhos, tais como
creches, escolas maternais, jardins de infância etc, hoje inacessíveis à maioria da população
(MÉDICI: 1989,76). Há, portanto, uma atuação nos dois sentidos: a gravidez, em muitos
casos, inibe a inserção profissional da mulher e o trabalho feminino pode reduzir os níveis
de fecundidade.
Na zona urbana, a presença dos filhos restringe a participação feminina em
atividades produtivas fora do domicílio, em grande parte, pela inexistência de equipamentos
coletivos que assegurem a guarda da criança. Entretanto, nas classes de renda baixa, a
presença e o número de filhos não afeta substancialmente a participação feminina,
sugerindo que a premência econômica supera os empecilhos familiares (BRUSCHINI:
1985,28-30).
A revolução tecnológica, diversificando o mercado de trabalho, exigindo
menor força física, aumentando as atividades de vigilância e as que exigem flexibilidade
manual, está abrindo um maior espaço para o emprego feminino (BRUSCHINI: 1985,48).
Prova disto é a grande absorção da mulher na indústria eletro-eletrônica.
O incremento do trabalho feminino fora do lar, se não for acompanhado da
expansão dos benefícios sociais e do melhoramento da rede de apoios à reprodução e
criação dos filhos, deverá se refletir, provavelmente, em uma redução nos níveis de
191
amamentação, devido ao precário equilíbrio existente entre atividades produtivas e funções
reprodutivas para a mulher brasileira. Contudo, devido à pequena inserção feminina em
tarefas que não permitem a conciliação entre a produção e a reprodução, o fator trabalho
fora do lar tem, provavelmente, até o momento, uma importância reduzida.
Bruschini observa que o incremento da urbanização e do desenvolvimento
industrial promove uma ampliação do número de assalariados e empregadores e uma
redução do número de autônomos e de trabalhadores familiares não-remunerados
(BRUSCHINI: 1985, 80). Como conseqüência, a oferta de força de trabalho feminina para o
emprego doméstico se contrai, enquanto aumenta para os demais setores da economia. A
força de trabalho feminina continua concentrada no setor terciário, porém não ocupa apenas
funções do terciário primitivo mas também do terciário especializado. O movimento de fuga
de mão-de-obra do setor secundário e a terciarização da economia são fenômenos
generalizados, que ocorrem também com as funções masculinas, sendo o desenvolvimento
tecnológico uma de suas causas. A participação relativa do operariado na força de trabalho
diminui e aumenta o subproletariado — aqui no Brasil, talvez, devido à crise econômica.
Surge uma nova classe média, ligada ao setor especializado de serviços coletivos, que
alguns já denominam de setor quaternário.
Ocorre uma migração da mão-de-obra feminina, dentro do setor terciário, do
auto-consumo e da prestação de serviços individual, para os serviços coletivos,
acompanhando a mercantilização destes serviços, os quais encontram-se cada vez mais
disponíveis no mercado e cada vez menos na esfera do auto-consumo. Diminui a força de
trabalho feminina exercendo serviços não remunerados, conseqüência do progressivo
assalariamento e da monetarização das relações de troca (MÉDICI: 1989,83-89).
Achamos que o incremento do trabalho feminino fora do lar é um fenômeno
que vem ocorrendo com rapidez. O mercado permanece discriminatório. A automação
poderá oferecer novas oportunidades à mão-de-obra feminina. A socialização dos encargos
reprodutivos poderá facilitar a inserção feminina no mercado e incentivar a amamentação
ao seio, ao diminuir as responsabilidades que são atualmente percebidas como "tarefas"
femininas, que consomem tempo e energia das mulheres e não lhes deixam muito espaço
para exercer um equilíbrio entre a produção e a reprodução.
Em seguida, vamos analisar a legislação de proteção ao trabalho feminino. É
indiscutível que medidas legislativas podem ajudar a mulher no desempenho da
maternidade e da amamentação. Esta necessidade foi sentida desde o século passado,
quando José Bonifácio apresentou, em 1819, à Assembléia Constituinte, a primeira proposta
192
de lei brasileira de proteção à maternidade, que foi rejeitada. Sua emenda dizia: "a escrava
durante a prenhez e passado o terceiro mês de gravidez, não será obrigada aos serviços
violentos e aturados e no oitavo mês, só será ocupada em casa. Depois do parto terá um mês
de convalescença e, passados este, não trabalhará longe da cria" (apud VILLA:1985,37).
Em 1891, houve um decreto relativo ao trabalho de mulheres e menores nas
fábricas, que virou letra morta. Em 1923, o Decreto 16300 proibia o trabalho das operárias
no último mês de gravidez e no primeiro após o parto, obrigava a instalação de salas de
aleitamento materno nas fábricas que empregassem mulheres; dispunha, ainda, sobre os
serviços de amas, obrigando-as a exames médicos e impedindo-as de alugar seus serviços
até que seus filhos tivessem 7 meses (ORLANDI: 1985,85).
Para o antigo código civil, a mulher era um ser inferior, apenas colaboradora
do chefe da família. A atual constituição brasileira evoluiu um pouco, tornando a mulher
também chefe de família, em igualdade de condições com o homem. Atualmente, a
legislação que determina a proteção à maternidade é a Consolidação das Leis do Trabalho,
CLT. Esta legislação dispõe sobre a existência de locais para amamentação em
estabelecimentos que empreguem, pelo menos, 30 mulheres; proíbe as demissões em caso
de matrimônio ou gravidez; regulamenta as creches e a licença-maternidade de 4 semanas
antes e 8 semanas depois do parto; faculta, mediante atestado médico, o aumento dos
períodos de repouso antes e depois do parto em 2 semanas cada um; concede dois períodos
de amamentação de meia hora cada durante a jornada de trabalho, até que o filho complete
seis meses e dispõe sobre multas nos casos de infrações (apud MARTINS FILHO: 1984,
187-191).
Muitos dos dispositivos desta legislação não são cumpridos pelas empresas.
As multas são muito baixas. No entanto, a existência desta legislação e, mais recentemente,
a ampliação da licença-maternidade para 120 dias e a criação da licença-paternidade de 5
dias, mostram um novo interesse da sociedade na proteção à mulher trabalhadora. A
ampliação das garantias trabalhistas tende a melhorar o desempenho em relação ao
aleitamento das mulheres que desempenham funções remuneradas. A ampliação dos
serviços coletivos de apoio à reprodução poderá, sem dúvida, oferecer um novo suporte à
amamentação e promover uma maior socialização da reprodução humana, ainda, percebida
pela maior parte da sociedade, como uma tarefa predominantemente feminina.
193
2. ALEITAMENTO MATERNO, FEMINISMO E EMANCIPAÇÃO DA
MULHER:
Os movimentos de emancipação da mulher também discutem a questão do
aleitamento. Percebe-se a existência de posições antagônicas dentro do movimento
feminista a respeito da amamentação.
Alguns movimentos feministas, especialmente nos países desenvolvidos,
consideram a promoção do aleitamento materno como anti-feminista, como um movimento
que deseja circunscrever a mulher ao papel doméstico, como uma conspiração contra a
mulher. A mamadeira passou a ser vista como uma forma de facilitar a liberação da mulher.
Segundo Kent, a duração do aleitamento está relacionada com o estilo de
vida da mulher, especialmente os movimentos de emancipação feminina e a sua
participação em atividades fora do lar. Para esta autora, a duração do aleitamento, muito
mais que o seu início, parece estar relacionada com o nível de modernização e de
urbanização (KENT:1981,11) . A emancipação feminina, desse modo, teria colaborado na
redução na amamentação.
Para outros setores do movimento feminista não há incompatibilidade entre
aleitamento materno e libertação da mulher. Na opinião de Blay, "não é a emancipação da
mulher que a impede de amamentar, pois ao se emancipar e reivindicar o direito ao
exercício da plenitude de suas capacidades intelectuais e emocionais, a mulher reivindica
também o direito de ter filhos e de ter condições socialmente criadas para amamentá-los".
Observa que as decisões sobre o comportamento feminino são tomadas sempre de forma
autoritária, sem consulta às mulheres e estão vinculadas a projetos políticos mais amplos
(BLAY: 1983,129).
Blay prossegue em seus argumentos, considerando que os obstáculos ao
aleitamento, provavelmente, não estão na emancipação feminina mas, em parte, nas
desigualdades das condições de vida e trabalho, que impedem e obrigam a mulher a deixar
de amamentar. "O feminismo, ao lutar pela emancipação da mulher reconhece a
fundamental importância da amamentação e do contato com o recém-nascido e reivindica
condições concretas para que tal contato seja facilitado, através de serviços públicos
adequados, sobretudo aqueles que venham aliviar a sobrecarga do trabalho que a parturiente
tem em sua casa e para sua manutenção econômica... a luta pela emancipação feminina é
sinônimo de luta por igualdade entre todos, inclusive pelo direito da mulher decidir se quer
amamentar seu filho" (BLAY: 1983,131-132).
194
Muitos grupos de Amigas do Peito têm surgido no Brasil. Alguns ligados a
grupos feministas que associam o estímulo da amamentação à libertação da mulher. Desse
modo, lutar pelo direito de amamentar significa, nas palavras de uma adepta do movimento:
"lutar por uma relação melhor com nossos filhos; lutar por uma relação mais igual com os
nossos companheiros: não queremos 'voltar para casa' para amamentar e fazer todo o resto,
e sim amamentar, porque só nós o podemos fazer, e dividir o restante das tarefas
domésticas; lutar por um mercado de trabalho mais adequado: não se trata de nos livrarmos
de nossa condição de mulher para 'competirmos em condição de igualdade' com o homem,
daí a luta pelo cumprimento das leis relativas à licença-maternidade, horário para a
amamentação, creches em locais de trabalho etc" (apud ALMEIDA: 1987,103).
Apesar disto, muitas energias femininas na história foram utilizadas no
cuidado e amamentação das crianças. Segundo Helsing, a reprodução transformou-se na
espada de Dâmocles, pois a mulher nunca' sabia quando iria conceber novamente, o que
tornava difícil o planejamento de sua vida. Isto mudou com o controle dos nascimentos
(HELSING: 1975,290).
Apesar desta possibilidade de escolha da oportunidade da reprodução,
persiste na sociedade a divisão sexual do trabalho. A gravidez e a menstruação são
consideradas, por muitos, empecilhos para que a mulher assuma funções de poder e
responsabilidade. O nascimento de uma criança pode se tornar a tragédia da vida feminina,
pois a sociedade tem poderosos mecanismos embutidos para trazer a mulher de volta ao que
considera seu lugar próprio.
Assim, algumas mulheres, percebendo que a opressão básica está, em muitos
casos, conectada com o seu papel reprodutivo, rejeitam a maternidade e advogam que o
cuidado dos filhos deve pertencer a toda a sociedade e vêem com bons olhos o surgimento
dos bebês de proveta.
Porém, Helsing acha que a maternidade não pode ser usada contra a mulher
e esta não pode se deixar aprisionar no que chama de "gaiola de ouro", fazendo coisas
socialmente aceitas, às vezes, contra os seus desejos e possibilidades. Para ela, a mulher
deve lutar pela divisão das tarefas domésticas com o homem e a maternidade deve estar
conectada ao desejo feminino e não à expectativa social quase obrigatória da mulher tornarse mãe (HELSING: 1975,291-292).
195
3. FAMÍLIA, DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E AMAMENTAÇÃO:
Estudamos, anteriormente, os padrões familiares tradicionais, baseados em
uma hierarquia rígida e com papéis normatizados para pai e mãe. A sexualidade feminina
ficava, muitas vezes, restrita ao espaço do lar. O discurso dominante pretendia encerrar a
mulher no domicílio, cuidando dos filhos e marido, entregue à esfera reprodutiva mas
também produzindo valores de uso doméstico. A atividade reprodutiva foi revalorizada
socialmente e passou a constituir motivo de prêmio e reconhecimento. Ao homem se
pretendia destinar, primordialmente, a produção de valores de troca.
O pai perdeu grande parcela do poder que desfrutava anteriormente, sendo
transformado, primordialmente, em provedor material do lar. Para Badinter, o homem foi
despojado de sua paternidade, reduzido à função econômica, distanciado afetivamente de
seu filho. A divisão familiar do trabalho distingue os papéis materno e paterno
(BADINTER: 1985,294).
Com o desenvolvimento do capitalismo os valores de uso doméstico
passaram a ser mercantilizados. A mulher ingressa no mercado de trabalho e a família pode
também buscar no mercado serviços de que necessita, o que alivia um pouco a mulher dos
encargos do lar. O interior da casa, que teve sua importância enquanto locus de produção,
quando predominavam as atividades agrícolas, rurais e artesanais, perde, em parte, a sua
atração e importância. Com a urbanização, a produção desloca-se para fora da casa, para
outros lugares sociais. A mulher, culturalmente encarregada das tarefas reprodutivas que
perdiam em importância social, busca reaparecer em outros espaços e abdica de parte delas.
Atualmente, a sociedade brasileira vive a intensificação da industrialização,
da urbanização, da distribuição social do conhecimento e da quebra do poder integrador das
relações de parentesco. Outras mudanças velozes se observam no nível da família: o
impacto do aparecimento da pílula anticoncepcional sobre o processo de reorganização da
sexualidade feminina, a maior complementaridade de funções entre papéis de gênero, o
aumento gradativo do processo de nuclearização da família, o esmaecimento da autoridade
familiar geradora do descompasso entre a socialização primária e a vida adulta, a influência
da expansão das correntes feministas no processo de libertação da mulher, a intensa
proliferação das psicologias e a difusão maciça da psicanálise (ALMEIDA: 1987,13).
Assistimos, também, a uma socialização dos encargos reprodutivos, através
de novas instituições sociais como creches, maternidades e ao surgimento de novos
produtos para satisfazer a estas novas necessidades como fraldas descartáveis, leite em pó e
196
alimentos industrializados para o bebê. Além disso, os anticoncepcionais trouxeram para a
mulher a possibilidade de escolher a época que considere ideal para ter filhos. Na percepção
social, a maternidade se desloca do dever para o desejo. O aleitamento, no seu contraste
entre fardo e prazer, também passa à esfera do desejo. O discurso médico, normativo, perde
em importância para o discurso psi, menos normativo e com controles interiorizados. Do
dever exterior à personalidade se passa para o desejo que brota do interior do indivíduo.
Hoje, estamos assistindo a uma nova crise da família. Esta já não mais se
acomoda com tranqüilidade aos valores "burgueses" difundidos desde o século passado. As
mulheres questionam a divisão sexual do trabalho, se inserem cada vez mais na vida
produtiva não doméstica, advogam divisão das tarefas caseiras com o homem, com o
cuidado dos filhos etc. Mas estes fenômenos acontecem apenas em alguns estratos da classe
dominante e, talvez, em menor proporção, em outras camadas sociais.
Para Costa, as causas da desagregação familiar são conseqüências históricas
da educação higiênica (COSTA: 1983,15). Para Donzelot, ao contrário, a crise da família
não é "tanto como intrinsecamente contra a ordem social atual, mas sim, como uma
condição de possibilidade de sua emergência. Nem destruída nem piedosamente
conservada: a família é uma instância cuja heterogeneidade face às exigências sociais pode
ser reduzida ou funcionalizada através de um processo de flutuação das normas sociais e
dos valores familiares. Não considerar como falhas e afastamentos o que é de fato a
emergência de novas técnicas de regulação" (DONZELOT: 1986,13-14).
Algumas interpretações asseveram que a família e os indivíduos vêm
perdendo, pouco a pouco, a sua capacidade de autocuidado e auto-regulação. Novos
dispositivos de controle corporal surgem depois do poder médico: os psicólogos e
psicoterapeutas. Novas práticas sociais tornaram a mulher cada vez mais dependente dos
conselhos médicos no tocante à reprodução. Nesta percepção, a urbanização e o
afastamento da mulher jovem do seu ambiente tradicional pelas migrações e assimilação de
novos valores, deixaram as mulheres "órfãs de saber sobre práticas de aleitamento". As
pessoas perderam o apoio da família ampliada. Considera-se que as respostas passaram a
ser dadas pelos especialistas e os indivíduos sofreram a expropriação do seu saber-fazer
sobre a doença.
Estas mudanças, percebidas por alguns como deletérias, são decorrentes do
processo sociocultural de ampliação do modo de produção capitalista. A divisão do trabalho
leva, inevitavelmente, à especialização. Antigamente, os cuidados eram universais, o
estoque da cultura era mais restrito e podia ser apropriado pela maioria dos indivíduos. O
197
conhecimento era menos especializado. Hoje, as pessoas são mais interdependentes. Tal
visão, exposta no parágrafo anterior, é reacionária, pois se coloca contra o avanço das forças
produtivas. As pessoas não perderam o seu saber-fazer, ficando "órfãs de conhecimento".
As suas antigas maneiras de pensar, agir e sentir é que se tornaram relativamente
inadequadas para os novos tempos, pois novos saberes mais científicos e mais eficientes
surgiram com a especialização do conhecimento. Esses argumentos, em busca do retorno ao
naturalismo, são inconseqüentes, pois não se pode ignorar os enormes avanços científicos
e tecnológicos pelos quais está passando o mundo moderno.
O decréscimo no aleitamento acompanha, na sociedade capitalista, a
medicalização do corpo feminino. As parteiras foram, pouco a pouco, deslocadas da atenção
reprodutiva. Os homens mercantilizaram o parto. "A chamada ciência da moderna
ginecologia e a prática de nascimentos hospitalares contribuiu bastante para o declínio do
aleitamento, na medida em que o nascimento infantil passou a ser mercantilizado e
controlado geralmente em proveito dos médicos" (CAMPBELL: 1984,560). A operação
cesariana torna o nascimento mais conveniente e lucrativo para o médico, mais difícil e
perigoso para a mãe e a criança, além de perturbar o estabelecimento da alimentação ao seio.
Algumas opiniões consideram que o abuso tecnológico de anestesias,
medicações ou cirurgias durante o parto representa um controle sobre a mulher, roubandolhe a sua própria experiência feminina (WHO: s.d.,10). Segundo Labra, o saber-poder
médico e a religião alienam as mulheres do conhecimento sobre o seu corpo e o expropria
delas mesmas, fetichizando-o (LABRA: 1989,16-20). Para outros, "a privação dos savoirfaire característicos ao parto, à educação das crianças, aos cuidados cotidianos... —
transformados em serviços mercantis ou não mercantis — tornou as mulheres cada vez mais
dependentes da mercadoria capitalista e da hierarquia masculina, simultaneamente. Sabe-se
a esse respeito até que ponto o serviço de saúde é dominado por um sistema sócio-político
de tipo patriarcal, em seu funcionamento interno como em suas relações com a
clientela" (COMBES & HAICAULT: 1986,38).
As citações acima, trazem alguns aspectos ilustrativos sobre o papel
desempenhado pela medicina na atenção à mulher. Ao mesmo tempo em que o sistema
hospitalar de atenção ao parto parece ter diminuído os índices de mortalidade materna, fetal
e infantil, desenvolveu padrões sofisticados de procedimentos tecnológicos, muitas vezes
desnecessários e iatrogênicos. O processo de parto, como já dissemos em capítulo anterior,
foi desumanizado e submetido a uma rotina formal e rígida. O funcionamento patriarcal dos
serviços de saúde reflete condicionamentos socioculturais e leva a um predomínio dos
198
homens no sistema de hierarquia, mas isto vem sofrendo modificações. Quanto à
expropriação do saber-fazer, já analisamos nossa posição a respeito. Os indivíduos passam a
delegar responsabilidades sobre a sua saúde a profissionais que consideram mais
capacitados para fazê-lo. Entretanto, no Brasil, em áreas rurais e mesmo em muitos centros
urbanos, há vários aparelhos de regulação do corpo que convivem de forma mais ou menos
integrada, com funções justapostas: folkmedicina, medicina natural, biomedicina etc. Há um
padrão cultural de classificação de enfermidades baseado em sua complexidade e níveis de
resolutividade que delimita os campos de atuação destes diversos profissionais. Assim, os
indivíduos geralmente procuram práticas médicas de folk para determinadas doenças mais
simples e as atividades médicas "científicas" para distúrbios mais complexos. Os padrões de
utilização de tais serviços passam por um código social presente em cada grupo social
específico e depende, ainda, da escolha individual.
A prática ginecológica e pediátrica contribuiu para um decréscimo no
aleitamento não por causa de sua mercantilização, como pensa Campbell. Achamos que isto
tenha ocorrido como parte de todo um processo social que conduziu a este resultado e do
qual os médicos tomaram parte desestimulando a amamentação. A respeito da maior
dependência das pessoas da mercadoria capitalista, já comentamos que isto se deve à
progressiva integração de setores vinculados a modos de produção mais arcaicos à
economia de mercado. O capitalismo especializou determinados saberes e tornou os homens
mais interdependentes uns dos outros. Para Singer, "não há porque derramar lágrimas sobre
a desintegração de uma economia cujo equilíbrio social se baseava no atraso tecnológico, no
isolamento cultural e na preservação de sistemas de dominação fixados na tradição e no
imobilismo" (SINGER: 1985,77).
Acompanhando também as alterações na estrutura familiar, a fecundidade
diminui em muitos países do mundo. Não será esta queda, em parte, um reflexo desta nova
atitude de algumas mulheres que, devido ao peso das convenções sociais não conseguem
harmonizar a maternidade com a sua realização pessoal? Talvez essas mulheres percebam
que nas circunstâncias atuais a sua independência poderia significar um abandono das
crianças, pois a sociedade não lhes oferece meios de repartir os encargos reprodutivos com
outrem. Por sua vez, Badinter observa que a criança hoje começa a perder um pouco do
monopólio talvez exorbitante desfrutado em nossa sociedade, retornando a um lugar menos
privilegiado, melhor ou pior. Para Badinter, as mulheres tomam distância da maternidade e
surge entre os homens o desejo pela maternagem e o amor paterno nasce sob pressão
feminina (BADINTER: 1985,360-365).
199
As mulheres, engajadas simultaneamente no trabalho fora do lar, no manejo
da casa e cuidado dos filhos, precisariam de novas tecnologias que lhes aliviassem a carga
de trabalho e aumentasse a sua produtividade. Para um dos autores consultados, a educação
nutricional à mulher lhe proporcionaria mais conhecimentos sobre a maneira apropriada de
amamentar a criança e se alimentar durante a gravidez e a lactação. Para liberar-se a mulher
precisa-se de novas tecnologias, mas, também, da redefinição do poder na unidade
doméstica entre o homem e a mulher e na sociedade como um todo, entre as classes sociais
(NAVARRO: 1984,167).
A mudança dos padrões familiares provocou a passagem da família rural
ampliada para a família urbana de tipo nuclear, reduzindo os contatos entre as gerações de
pais e filhos. As mães jovens passaram a se guiar menos pela tradição e experiência familiar
tradicional. Spindel percebe que, comparando-se Recife com São Paulo, há diferenças nos
padrões de comportamento reprodutivo e no padrão ideal de família. Em Recife, as mães
são mais jovens, têm mais filhos e utilizam-se em menor proporção de meios
anticoncepcionais. Já em São Paulo, as mães têm menos filhos e praticam a anticoncepção
com maior freqüência (SPINDEL: 1984,80-82).
Hoje, a família conjugal predomina. A sociedade está absorvendo funções
que eram, anteriormente, atribuições familiares. A sociedade absorverá também o cuidado
dos filhos e a satisfação das necessidades sexuais ou a família permanecerá,
circunscrevendo-se às suas funções biológicas e de apoio emocional?
Os padrões de relações conjugais estão experimentando rápidas mudanças.
As relações sexuais acontecem com maior liberalidade e se alteram as percepções sociais
sobre o casamento. Se isso, por um lado, fornece às mulheres padrões novos de vivência
mais livre de sua sexualidade, por outro lado, em alguns casos, lhes retira os apoios
informais e familiares necessários ao bom desempenho do aleitamento em ambientes
tradicionais. Estas mudanças rápidas não estão dando tempo à jovem de incorporar práticas
anticonceptivas e, para muitas, a vivência sexual significa procriação precoce, promovendo
o crescimento da gravidez na adolescência. Os conflitos de valores entre a mãe, o pai e as
famílias trazem instabilidade psicológica a uma mulher jovem e inexperiente que, muitas
vezes, pode ter contribuído para o declínio na amamentação. Aqui novamente se ilustra o
fenômeno do cultural lag, quando os indivíduos e grupos sociais levam certo tempo para
adequar o seu comportamento às exigências da nova ordem tecnológica que modificou as
condições materiais de vida.
Em alguns casos, além destes fatores acima mencionados, preconceitos
200
culturais contribuem para a consideração de que o trabalho doméstico seja uma tarefa
feminina e que não deve ser dividido com o homem. Em muitas famílias as meninas
maiores assumem os cuidados dos irmãos menores, em prejuízo da sua escolaridade.
Com relação ao sexo, na amamentação, nos cuidados infantis e no uso dos
serviços de saúde, os meninos são favorecidos em relação às meninas (WHO: s.d.,12;
BERQUÓ: 1986,27).
A família brasileira se transforma rapidamente, torna-se mais complexa a
distinção entre o que é moderno e o que é arcaico numa sociedade em acelerado processo de
mudança social. Todas estas transformações produzem efeitos ao nível da estrutura das
subjetividades, que não se modernizam no mesmo ritmo e facilidade das mudanças sociais
(ALMEIDA: 1987,13).
A sociedade moderna está em crise, percebida pela desintegração social, pela
desorganização familiar e pelo enfraquecimento dos laços que prendem o indivíduo ao
grupo. Nestas situações, de mudança social e cultural aceleradas, de modificação das
relações entre o indivíduo e a sociedade, percebe-se uma gradativa perda do poder
organizador da família e das relações de parentesco. Para descrever esta situação, Almeida
emprega o conceito de anomia, de Durkheim, significando uma contestação aos meios
socialmente aceitos para realizar os modelos de conduta, promovendo uma ruptura do
equilíbrio no seio do organismo social, gerando desequilíbrios das sociedades que estão
passando de tradicionais a modernas (ALMEIDA: 1987,14).
4. CULTURA, SOCIEDADE E SEXUALIDADE — AS RAZÕES DA MATERNIDADE:
Segundo Ariès, "a atitude diante da sexualidade e, sem dúvida, a própria
sexualidade variam de acordo com o meio, e, por conseguinte, segundo as épocas e as
mentalidades" (ARIÈS: 1981, 129). Os valores e a vivência da sexualidade têm uma relação
íntima com a amamentação. Vamos analisar, rapidamente, como variaram tais percepções
na sociedade brasileira.
A mulher se cingia, no discurso burguês do século passado, a duas
representações: a santa assexuada mas mãe e a pecadora diabólica. Para a mãe, o aspecto
sexual só aparecia se associado à idéia de procriação. O discurso pretendia inibir a
sexualidade conjugal quando esta não visasse à procriação: a mulher, destinada à carreira da
201
maternidade, não podia procurar o prazer do coito. Seria, ainda, necessário enclausurar e
domesticar as práticas sexuais extraconjugais. Na opinião de Rago, em nome da luta contra
o "perigo venéreo" medicalizou-se a sexualidade feminina (RAGO: 1985,82-87).
Para Costa, porém, houve a promoção da sexualidade feminina pelos
médicos higienistas no século XIX como uma das formas de romper com as regras
instituintes do casamento de razão. A intenção do discurso era circunscrever a sexualidade
na família, conjugada com a proteção da infância. Os higienistas recomendavam evitar-se
relações sexuais durante a gravidez e a amamentação. A promoção da amamentação
pretendia colocar a sexualidade da mulher a serviço da família. Assim, mostrou-se o prazer
durante a amamentação, que passou a ser estimulada, para fortalecer a relação mãe-filho
(COSTA: 1983,262-263).
Para alguns, uma das intenções do discurso era estimular o gozo na
amamentação. Para outro autor, do século XX, o aleitamento prazeroso torna o dever de
amamentar menos árduo (ARRUDA & GONDIN: 1970,20).
Antigamente se pensava que as relações sexuais prejudicavam o leite e isto
era um dos motivos pelos quais os casais contratavam amas-de-leite. Hoje a propaganda diz
que o aleitamento estimula o prazer sexual (ORLANDI: 1985,130-131).
A difusão da psicanálise ajudou na redescoberta do prazer físico durante a
amamentação. Este prazer, antes reprimido, passou a ser estimulado, também como forma
de aumentar-se a prática da lactação.
O desenvolvimento e a maior disponibilidade e eficiência dos meios
anticoncepcionais trouxeram a possibilidade de escolha, oportunidade e planejamento da
maternidade e número de filhos. Este desenvolvimento científico-tecnológico, permitindo
maior controle da mulher sobre o seu próprio corpo, vem promovendo, em amplos
segmentos sociais, a dissociação entre sexualidade e procriação. Tudo isso veio
revolucionar a questão do aleitamento. Vivemos em uma época em que a mulher se insere
de maneira crescente na força de trabalho. A redução da fecundidade provocada pelas
mudanças sociais e pelo advento das pílulas anticoncepcionais permite que as mulheres
tenham um menor número de filhos que talvez possam passar a ser amamentados em maior
proporção. Isso talvez venha reduzir a carga reprodutiva sobre a mulher e facilitar a
conciliação entre a produção de bens e serviços e a reprodução humana.
Da mesma forma que variam as percepções sociais sobre a sexualidade
feminina, também variam as representações sobre a maternidade. Antigamente, a
maternidade não era objeto de valorização social. Além do mais, atrapalhava a vida social
202
das mulheres de classe abastada ou dificultava aspectos de sobrevivência nas classes
inferiores.
Para Badinter, a maternidade ainda é, atualmente, em muitos casos, vivida
como um sacerdócio. É uma experiência feliz, que implica também dores e sofrimentos, um
real sacrifício da mulher. É uma experiência complexa que inspira sentimentos
contraditórios, entre a felicidade e a tristeza, a satisfação e a frustração. "Toda felicidade
feminina é paga com um terrível sofrimento" (BADINTER: 1985,249-251).
"A dignificação da maternidade permitiu às mulheres exteriorizar um
aspecto essencial de sua personalidade, e a obter com isso, por acréscimo, uma consideração
que suas mães jamais haviam desfrutado". Em conseqüência, segundo Badinter, tornaram-se
escravas dos filhos, sentindo um mal estar inconsciente. "A pressão ideológica foi tal que
elas se sentiram obrigadas a serem mães sem desejá-lo realmente. Assim, viveram sua
maternidade sob o signo da culpa e da frustração" (BADINTER: 1985,255).
Na opinião de Badinter, o século XX criou a mãe masoquista: escolheu
salvar a criança e imolar a mãe. Para a mulher muitas vezes deve ter sido difícil encontrar o
equilíbrio entre a independência e o altruísmo. A mulher passa da responsabilidade à culpa.
A boa mãe é uma santa. "Os sofrimentos da maternidade são o tributo pago pelas mulheres
para ganhar o céu... Mas, contrariamente às verdadeiras vocações religiosas, que são livres e
voluntárias, a vocação materna é obrigatória" (BADINTER: 1985, 267-271).
Para H. Deutsch, ..."o aleitamento artificial, em moda depois da guerra,
representava uma contemporização, visando a conciliar os interesses pessoais da mulher e
os da mãe... esse meio termo acentuou o conflito. Isso porque de um lado, ofereciam-se às
mulheres oportunidades cada vez maiores de desenvolver seu ego fora da função
reprodutiva, ao mesmo tempo em que se exaltava cada vez mais a ideologia da maternidade
ativa" (apud BADINTER: 1985,314).
Para Badinter, "a maternidade não é sempre a preocupação primeira e
instintiva da mulher... quando são libertadas das imposições econômicas, mas têm ambições
pessoais, as mulheres nem sempre escolhem — longe disso — abandoná-las, ainda que por
apenas alguns anos, pelo bem da criança" (BADINTER: 1985,346). As respostas a
perguntas indiretas demonstram nas mulheres certo mal-estar em relação ao casamento e
um recuo na maternidade. Algumas consideram o filho como um fardo. "Em vez de
instinto, não seria melhor falar de uma fabulosa pressão social para que a mulher só possa
se realizar na maternidade? Como saber se o desejo legítimo da maternidade não é um
desejo em parte alienado, uma resposta às coerções sociais (penalização do celibato e da
203
não-maternidade, reconhecimento social da mulher enquanto mãe)? Como ter certeza de
que esse desejo de maternidade não é uma compensação de frustrações diversas?"
(BADINTER: 1985,355).
Badinter considera que a maternidade é uma pedra no caminho da liberação
feminina, lugar da sua alienação e escravidão. Faria parte de uma estratégia social que
visaria mobilizar as mulheres na maternidade para melhor imobilizá-las depois. Muitas
mulheres, em semelhança com as preciosas do século passado, não aceitam que o fato
biológico da gravidez as prive de sua liberdade. Considera que somente a dissociação entre
a procriação e a criação dos filhos como incumbência exclusiva das mulheres seja a única
condição de existir uma opção na maternidade, ao invés do desejo alienado percebido hoje
(BADINTER: 1985,356).
As opiniões de Badinter, considerando a alienação da mulher na maternidade
são representativas de grande parte do movimento feminista. Toma-se a posição de que, na
maior parte das vezes, as mulheres percebam a sua alienação e, geralmente, não se
considera que as mulheres poderiam ter vivido esse papel a elas destinado também com
satisfação e não somente com resignação e sacrifício. Como tais valores eram e, em parte,
ainda o são dominantes e socialmente compartilhados, é provável que muitas mulheres
tenham vivido esse papel sentindo-se bem e não aspirando por mudanças em sua situação.
Não estamos querendo insinuar que esta situação fosse boa, apenas que não podemos
ignorar o fato de que muitas mulheres poderiam achar tal estado de coisas bom e desejável e
não acharem que a maternidade ou a reprodução fossem a sua alienação ou representassem
obstáculos à sua emancipação. Ou que o aleitamento não fosse, também, um fardo ou
desejo, em parte, não alienado.
Os valores sociais sobre a maternidade são contraditórios: por um lado, a
maternidade é dignificada e valorizada; por outro, a sociedade oferece pouco suporte às
mulheres no desempenho do papel de mães.
Almeida realizou um trabalho, no Rio de Janeiro, entrevistando, em
profundidade, duas gerações de mães, de forma a captar as mudanças sofridas nas
representações sobre a maternidade nas décadas de 50 e 80. Percebe que houve mudanças
nas formas de controle e autoridade vigentes no interior da família de classe média
brasileira a partir das últimas três décadas.
Os valores das mães da década de 50 percebiam a maternidade como ligada
à abnegação, autonegação e autodoação. Havia papéis distintos para maridos e mulheres e
um código moral sistemático e definido. Geralmente, o pai era o provedor e a mulher estava
204
encarregada da manutenção do lar e do cuidado com os filhos. Percebiam-se diferenças
visíveis e uma hierarquia rígida baseada na autoridade. O filho e não o feto era a referência
central definidora da maternidade. A medicina estava ligada a esta concepção "tradicional"
da maternidade. Nota-se que os códigos básicos de procedimento partiam da família. O
médico era impessoal, mantendo com as clientes um relacionamento profissional e técnico,
havendo distâncias rígidas na interação entre o médico e a grávida/mãe. A amamentação era
"cumprida" segundo o esquema definido pelo pediatra através de um modelo normativo.
Não havia a dimensão psíquica da grávida/mãe, o parto estava vinculado ao nervosismo,
medo e dor. A preocupação com o parto, mais do que com a experiência da gravidez,
emergia como critério definidor da maternidade. Tudo se passava como se a gravidez fosse
"automática", "não-refletida", "não-consciente". O sexo feminino estava, na maior parte dos
casos, a serviço da reprodução e da família. Resumindo, no mapeamento da maternidade,
predominava o código em relação ao sujeito. Referências exteriores ditavam os padrões de
comportamento aos quais a mulher, quase sempre, se submetia (ALMEIDA: 1987,38-59).
Em seguida descreveremos as representações sobre a maternidade da geração
dos anos 80. Antes, gostaríamos de chamar a atenção de que a maior parte das entrevistadas
da geração dos anos 50 tinha curso ginasial ou normal e de que todas as mães dos anos 80
tinham curso superior. Esta diferença de escolaridade entre os grupos, além de refletir uma
mudança social mais global que foi o aumento médio da escolaridade, pode ser, em parte,
responsável por algumas diferenças de percepções entre os grupos. No entanto, apesar dos
grupos estudados não refletirem, completamente, o pensamento da geração dos anos 50 e
80, representam modelos que, mesmo não predominantes, podem representar espaços
alternativos de vivência da maternidade.
Para algumas mulheres da geração dos anos 80, o poder médico é visto como
"alienante" e "autoritário", em relação à autonomia da mulher frente ao processo de
gravidez e parto. Há uma crítica às cesarianas indiscriminadas, às anestesias durante o
parto e às consultas médicas "frias" e "comerciais". Combate-se a visão "tradicional" da
medicina, reagindo-se às vacinas, ao uso abusivo de antibióticos e à assepsia excessiva. No
tocante à família, percebem-se questionamentos da divisão sexual do exercício das tarefas
domésticas e a conquista de maior autonomia e deliberação por parte da mulher quanto às
questões relativas ao uso do corpo. As mulheres questionam o papel do marido e anseiam
pela sua participação e ajuda no cuidado do bebê. Os maridos passam a participar mais de
todo o processo de gravidez. Nota-se a tentativa de construção de uma nova visão de
paternidade, incluindo aquilo que poderíamos chamar de "casal grávido", que se relaciona
205
com a grande difusão do psicologismo na sociedade contemporânea.
Observam-se novas abordagens sobre a gravidez e o parto e mudanças na
relação médico-paciente, notando-se a emergência da vontade individual e o esmaecimento
das regras e padrões baseados na autoridade médica.
Os papéis de pai e mãe são negociados em função de diferenças pessoais na
base do impulso, desejo ou improviso. Nasce aquilo que se pode chamar de sentimento
"moderno" de maternidade, que inclui as ideologias do "natural" e a "alternativa",
empreendida pelos especialistas psi.
A família extensa é afastada da vivência da maternidade, pois há visões
contraditórias de mundo em relação ao cotidiano. A antiga rede familiar é, agora,
substituída pelos amigos, que oferecem suporte emocional e psíquico. Anteriormente, havia
uma expectativa social a cumprir, não havia consciência ou problematização dos conteúdos
ligados à vivência da gravidez, que agora são trabalhados pelos especialistas psi.
Não se observa mais a demarcação entre feto e filho, ou entre mulher/mãe ou
gravidez/parto, que agora são um continuum. Nos novos significados, predomina o sujeito
em relação ao código,
A amamentação passa a ser regulada não mais pelo médico, mas pelo
"desejo" da mulher. Na "opção" pela maternidade, percebe-se a "emergência do desejo" (o
filho como resultado do desejo). Em relação à amamentação, fica patente o conflito entre
as duas gerações de mães. Assim, às tentativas por parte das mães de fazerem valer suas
experiências em relação à amamentação, os profissionais contrapõem a necessidade de
reflexão e problematização por parte das filhas. O modelo materno dos anos 50 quer impor
conselhos e práticas específicas ligadas à amamentação, geralmente de desestímulo, como
sugerindo à mãe que seu leite está fraco (ALMEIDA: 1987,60-87).
Talvez, o retrato fornecido acima não represente, propriamente, as
percepções que as mães atuais estão tendo sobre a maternidade. O grupo dos anos 80
participava de grupos alternativos de vivência da gravidez. Eram grupos de preparação para
o parto, que realizavam exercícios, acompanhamento emocional e consultas médicas mais
informais, visando um parto mais tranqüilo e menos doloroso. Almeida analisa as ilusões e
os limites da "gravidez alternativa" os grupos alternativistas que sugerem a busca do
natural, construindo uma ideologia sobre a natureza, indicam "claramente um movimento
de resistência e oposição ao progresso e à modernização (uso intensivo da tecnologia
médica, quimismo) que, em última instância, são encarados... como entraves e barreiras à
emergência da verdadeira 'natureza' de cada um" (ALMEIDA: 1987,128).
206
Em seu trabalho, Almeida nota a contradição e o conflito entre visões de
mundo e conjunto de valores entre as duas gerações de mães e a presença paradoxal, no
mesmo sujeito, de "mapas" e percepções de mundo contraditórias. A análise das
subjetividades inclui, também, o que chama de "sociologicamente invisível" e pressupõe
investigar "as representações de mundo e de si próprio que o sujeito aparentemente
abandonou no processo de mudança social, mas que, na verdade, ficaram retidas como que
num estado potencial, inconsciente e capaz de produzir efeitos" (ALMEIDA: 1987,16).
Tal coexistência de "mapas" contraditórios, resultando numa situação de
tensão e conflito para os indivíduos, gera uma demanda de intervenções através de
terapêuticas diversas. Dessa forma, "os mapas internalizados durante o processo de
socialização primária que são rejeitados pelo sujeito, quando este adquire mapas mais
recentes através de socializações secundárias, não são erradicados ou integrados a estes,
mas sim deslocados para um nível mais inconsciente" (ALMEIDA: 1987,23). "No momento
em que se tornam mães, e procuram abraçar valores modernos, liberados e alternativos,
aqueles conteúdos, fortemente enraizados na primeira socialização familiar, entram em
contradição com os novos valores e, mantidos invisíveis do ponto de vista sociológico,
tornam-se os principais alvos a serem combatidos" (ALMEIDA: 1987,100). Há, portanto,
no nível da estrutura dos sujeitos, dois aspectos a analisar: o sociologicamente "visível" e o
"invisível", além dos demais pontos observáveis no plano da estrutura social.
Observam-se linhas de tensão entre a urbanização, modernização e
nuclearização da família e um descompasso entre a socialização primária e a vida adulta,
além do esmaecimento gradual do papel da família enquanto agente mediador das relações
entre os indivíduos. "A formação de uma demanda por orientação psicológica da gravidez e
da maternidade se inscreve dentro de um fenômeno mais abrangente de psicologização da
sociedade e revela historicamente uma mudança significativa nos regimes de controle e
autoridade no interior da família" (ALMEIDA: 1987,61). Observa-se que os sujeitos estão
"procurando operar com base em princípios pessoais, a partir de noções que devem ser
construídas pelo indivíduo, mediante seus desejos, impulsos e potencialidades, e não sobre
definições pré-estabelecidas, exteriores e fornecidas pela estrutura social" (ALMEIDA:
1987,79).
A reestruturação das subjetividades dentro das práticas alternativas está
compreendida num campo de relações rigorosamente disciplinares, produzindo, na
consciência dos sujeitos, a sensação de que estes estão ingressando em um novo universo
liberalizante. No entanto, surgem "novas autoridades" mais sutis e apoiadas em mecanismos
207
mais complexos. "A capacidade de optar e escolher livremente está atrelada, de forma
paradoxal, a uma imensa rede de mecanismos e estratégias disciplinares... que transforma
o "seguir a disciplina e as normas" num "desejo" do sujeito. É neste sentido que a noção de
escolha individual (por exemplo, da gravidez, do tipo de parto etc.), que aparece para as
gestantes como uma "liberação" em relação à norma e à autoridade (médica, familiar), pode
ser entendida como uma nova estratégia de facultar ao sujeito o "privilégio" de controlar-se
a si próprio e, ao mesmo tempo, sentir-se "liberado porque escolhe" (ALMEIDA:
1987,118-119).
Este novo processo de controle social internalizado não passa mais,
predominantemente, pela família. A fixidez de regras transforma-se em conselhos, que se
fazem objetos de desejo do próprio indivíduo, como se este estivesse optando. Uma nova
modalidade de controle social da família nasce. A família em crise está em processo de
reconstrução. A crise gera a busca de definição de novos papéis familiares em outras bases
e o surgimento de novos padrões de hierarquia. Nascerá uma nova família, com base no
igualitarismo, utilizando o discurso psicologizante? Em todo caso, a nova família parece
estar sendo mapeada a partir dos sujeitos, sem submissão visível.
208
CAPITULO VIII — AMAMENTAÇÃO: FARDO OU DESEJO?
Vimos, no decorrer deste trabalho, os saberes e práticas sobre amamentação,
sua variação ao longo do tempo e em grupos sociais específicos. O aleitamento é um
processo predominantemente sociocultural e a sua dinâmica reflete o processo de difusão de
elementos culturais, acompanhando o desenrolar das mudanças sociais.
As flutuações dos valores sobre o aleitamento foram exemplificadas em
diversas culturas e em diferentes fases da história brasileira. Percebemos que, recentemente,
as pessoas e instituições estão tendo um novo interesse na amamentação.
Loyola observa: "... a atual campanha a favor da amamentação está
transferindo às mães a solução dos problemas, cuja origem até o presente a puericultura
ajudou a camuflar. De fato, o que se propõe às mulheres por meio da amamentação é uma
tarefa considerável: erradicar do país a desnutrição e a desordem social, desenvolver o
planejamento familiar e melhorar, a longo prazo, a qualidade da força de trabalho, em
outras palavras, encobrir as contradições e assegurar a continuidade da estrutura social que
o desenvolvimento do país vem reproduzindo e ampliando" (LOYOLA: 1983,46).
Obviamente, não é pela amamentação que vamos resolver os graves
problemas de exploração econômica, desnutrição e mortalidade infantil. Com o aleitamento,
pode-se, quando muito, adiar o aparecimento da desnutrição, reduzir-se um pouco sua
ocorrência, gravidade e seqüelas, mas tudo isto não passa de uma solução paliativa.
Outros fatores precisam ser considerados na questão do aleitamento materno:
a participação do homem, do companheiro e o respaldo da sociedade para que a
amamentação se efetive, sem provocar nas mães que não amamentam o sentimento de
culpa. "...As campanhas pró-aleitamento deveriam cuidar de não ferir suscetibilidades
femininas... A maior parte dessas mulheres experimentam culpa ao fracassar nesta tarefa.
Do ponto de vista psicológico, este fracasso inicial pode produzir maiores dificuldades no
relacionamento futuro entre mãe e filho, tanto mais se for ostensivamente enfatizado como
um fracasso" (CUKIER: 1984,61).
"Uma campanha de incentivo ao aleitamento materno sem a concomitante
criação de condições para que isso se efetive vai apenas provocar um brutal sentimento de
culpa em mães impotentes para solucionar um problema do qual são mais que tudo vítimas"
(BLAY: 1983,131).
O aleitamento materno está dentro de um contexto histórico de busca de
emancipação feminina de um lado e influências ideológicas, sociais e políticas do outro. O
209
ponto de equilíbrio entre estes dois pontos determinará a ocorrência ou não do aleitamento
natural (BETTIOL et al.: 1988, 47-49).
As distintas facetas da vida das mulheres, o trabalho, a saúde, as
responsabilidades e os múltiplos papéis que desempenham, as induzem ou não a amamentar
os seus filhos. Seria necessária uma mudança nas condições de vida e trabalho das mulheres
para que as tarefas do aleitamento fossem facilitadas.
A organização molecular da família e a divisão sexual do trabalho ainda
consideram que as tarefas domésticas e o cuidado dos filhos são tarefas praticamente
exclusivas das mulheres, ajudadas às vezes por familiares. O homem permanece reticente à
sua participação nestas atividades. "Não se deve encarar a questão da amamentação apenas
como um problema da mulher, mas também do homem, no que diz respeito às
desigualdades das condições de vida que obrigam a mulher a deixar de amamentar o seu
filho, sem provocar nas mães impotentes um sentimento de culpa" (VILLA: 1985,72).
Os movimentos e organizações femininas têm um papel fundamental a
desempenhar, realizando pressões sociais e políticas para que ocorra uma mudança nas reais
condições de vida da mulher, geralmente desfavoráveis ao aleitamento.
Vimos ainda a existência de duas representações socioculturais sobre o
aleitamento. Em uma, a maternidade é vivida como uma imposição, um sacerdócio, uma
obrigação, um sacrifício e o aleitamento corresponderia a um fardo. Em outra, a
maternidade passa a ser desejada, estimulada, vivida com prazer e satisfação. Nesta, o dever
de amamentar transforma-se no direito de fazê-lo, aliviando o possível fardo da
maternidade, recriando a oportunidade e a emergência do desejo.
As novas formas do imaginário social conduzem a uma maior liberdade dos
sujeitos em relação às decisões que afetam o uso do seu corpo e faz avançar as concepções
de justiça social. Afrouxando-se os laços que prendem o indivíduo ao grupo, as normas
sociais podem flutuar com mais naturalidade. No entanto, na vida em sociedade, o
indivíduo tem suas concepções e valores ligados a modos coletivos de agir, pensar e sentir,
condicionados e determinados pela sua relação com as outras pessoas. Cada membro de
uma sociedade introjeta as mesmas normas sociais de vida em grupo. O sujeito se sente
mais ou menos constrangido a segui-las. Todas as ações estão normatizadas. Há regras,
modelos de conduta mais ou menos conhecidos pelos participantes das relações sociais. O
agir reciprocamente condicionado dos indivíduos na vida em sociedade mantém e
transforma seus valores.
Deste modo, a percepção de alguns grupos sociais que querem visualizar o
210
aleitamento como se este pudesse ser "de fato" um desejo da mulher tem um sentido apenas
relativo. O que se assiste é a emergência de novas normas e padrões em relação ao
aleitamento materno. As normas anteriores se baseavam em códigos externos, cujos
controles passavam pelos grupos tradicionais e pela família. No atual estágio de evolução
social, tal modalidade de controle não está sendo mais efetiva porque as condições materiais
de existência mudaram e mudaram também as percepções e valores sobre o aleitamento.
Um novo código regulador mais frouxo, mais baseado em características pessoais,
transforma apenas "aparentemente" o aleitamento em um desejo do indivíduo, da mesma
forma que as representações sociais anteriores viam "aparentemente" a amamentação como
um fardo para a mulher. Do mesmo modo que os indivíduos também podem desejar um
fardo, podem ser condicionados ao desejo. Também vimos que o aleitamento pode ser
vivido, e parece que assim o seja, muitas vezes, simultaneamente ou alternadamente, como
um fardo obrigatório e um desejo prazeroso. Tais representações culturais apenas indicam
as mudanças nas percepções sociais sobre o aleitamento materno que aconteceram na
sociedade brasileira ao longo do tempo, as quais estudamos no decorrer deste trabalho.
211
CONCLUSÕES:
Nos seres humanos, o ato de amamentar ao seio ou não, além de ser
biologicamente determinado, é social e culturalmente condicionado. Apresenta variações
entre as diversas sociedades humanas, nos estratos sociais e, em uma mesma sociedade,
flutua em diversos momentos históricos. Como um comportamento sociocultural, está
orientado por valores mas é o agir reciprocamente condicionado que mantém e transforma
esses valores que estão, por sua vez, codificados em mores e folkways. Sob essa ótica, os
saberes e práticas sobre o aleitamento, como elementos culturais, em nosso entender,
obedecem às leis de difusão definidas pelos etnólogos.
Os novos saberes sobre este assunto geralmente surgem nas camadas
dominantes que, dotadas de maior prestígio, tendem a ser mais facilmente imitadas pelas
demais camadas sociais, ainda que saberes das camadas subordinadas possam também se
disseminar para as demais. Através do efeito-demonstração, as camadas subordinadas
absorvem esses novos saberes emergentes, desenvolvendo para eles novas interpretações
mais adequadas às finalidades e expectativas de sua subcultura. Assim, de um complexo
cultural toma-se de empréstimo, geralmente, as partes mais concretas e objetivas (práticas
de aleitamento) recodificando-se, em maior ou menor medida, seus aspectos subjetivos
(saberes sobre aleitamento), conferindo-lhes significados novos.
Nas sociedades primitivas e tradicionais, as crenças e comportamentos eram,
na maior parte, elementos universais, compartilhados por todos, porque tais agrupamentos
eram mais simples. As mudanças sociais se davam de maneira geralmente mais demorada.
Com a maior complexidade social, o surgimento de novas hierarquias e,
depois, da sociedade de classes, os indivíduos nas sociedades urbano-industriais não
compartilham senão o núcleo da cultura. O desenvolvimento econômico e tecnológico
promoveu o surgimento de novas especialidades e cindiu os saberes sobre o corpo.
Apareceram subculturas baseadas em classes, grupos de ocupação etc, cada uma detendo
saberes em parte específicos sobre o aleitamento. Apesar disto, a multiplicação dos contatos
e os meios de comunicação de massa vêm diminuindo a distância no tempo entre a
subcultura das classes hegemônicas e subalternas. O processo de urbanização, rompendo
relações rígidas de dominação e subordinação possui um efeito-demonstração
extraordinário. As mudanças sociais passam a ocorrer de forma cada vez mais acelerada.
A evolução da mentalidades sobre o aleitamento, apesar de guardar uma
autonomia relativa em relação às transformações da base material da sociedade, sofre
212
influências de sua dinâmica. A cultura material se modifica mais rapidamente que outros
segmentos de cultura não-material, ocorrendo uma discrepância entre os ritmos de mudança
nos diferentes setores da vida social, caracterizando a "demora cultural". Um dos problemas
enfrentados pelo homem moderno é o de adaptar suas maneiras de pensar e de comportar-se
ao estado da tecnologia. A mudança nas condições materiais de vida exige, constantemente,
uma atualização nas concepções e valores dos grupos sociais. Tal demora traduz atitudes e
motivações psicossociais desfavoráveis ao desenvolvimento dos saberes e práticas sobre o
aleitamento. As pessoas têm, geralmente, atitudes conservantistas que visam à preservação
do patrimônio cultural e moral e à defesa de valores tradicionalmente consagrados, embora
em determinados momentos, regiões e grupos sociais possa haver bastante valorização da
mudança. Apesar disso, novos comportamentos sobre o aleitamento opõem-se,
constantemente, ainda que nem sempre frontalmente, aos hábitos e costumes da ordem
social.
Dois aspectos da vida social estão intimamente relacionados com o
aleitamento: o estado da tecnologia e as relações sociais de produção/reprodução. Os saberes
e práticas sobre o aleitamento estão condicionados ao grau de desenvolvimento científicotecnológico e ao padrão de relações sociais vigentes em cada sociedade. Da articulação
entre estes aspectos brotam os diferentes discursos sobre o aleitamento, em vários
segmentos sociais.
O desenvolvimento das forças produtivas, promovendo melhorias na
produtividade agrícola e proporcionando excedentes alimentares, provocou a diferenciação
campo/cidade e o surgimento de outras hierarquias entre os indivíduos. Assim, no período
colonial, a conquista de escravos e a existência de mulheres livres pobres traduziram as
condições sociais dadas para o aparecimento da prática de amamentação do recém-nascido
humano por amas-de-leite escravas ou livres, proporcionando a possibilidade de escolha
entre seio materno e seio da ama-de-leite. Mais tarde, o desenvolvimento científicotecnológico propiciou a descoberta da diluição do leite de vaca e a invenção dos processos
de pasteurização e fabricação do leite em pó. Provavelmente, a maior eficiência destas
técnicas e a extinção da escravidão levaram ao desaparecimento da amamentação por amas.
A escolha passou a ser entre seio e mamadeira.
O processo de criação/ satisfação de necessidades em relação à alimentação
infantil é ilimitado e depende, no mundo atual para a sua satisfação, em parte, das
descobertas tecnológicas e do uso dos mecanismos de marketing e propaganda.
Outro fator relacionado com o desenvolvimento das forças produtivas é o
213
estado do desenvolvimento científico e tecnológico dos meios anticoncepcionais, que
condicionam sua disponibilidade e eficiência e estão relacionados com a possibilidade de
escolha e oportunidade da maternidade.
Por outro lado, as condições sociais de produção/reprodução determinam,
em parte, o comportamento reprodutivo, a condição social da mulher e o tipo de suporte
familiar/social à amamentação e criação dos filhos. Tais processos estão relacionados com
os valores sociais em relação à maternidade, à sexualidade, à emergência de novos padrões
de família e aos movimentos de emancipação da mulher, dos quais dependem, também, as
condições socioculturais para a prática do aleitamento materno. A inserção da mulher no
trabalho está condicionada pelo seu comportamento reprodutivo e ambos se relacionam
com a possibilidade de amamentação.
O retorno ao hábito de amamentar é um fenômeno recente. Pode estar ligado
a uma maior racionalidade, na qual as sociedades se tornam mais receptivas a
comportamentos supostamente baseados na ciência e na tecnologia. Ou ao surto de
mentalidade prática no estabelecimento de novas relações entre meios e fins. Outro fator
que pode explicar estas transformações é que, na sociedade urbano-industrial, as mudanças
refletem a dinâmica do processo adaptativo de socialização/ressocialização, que nunca está
completo.
O aleitamento, em qualquer época e em qualquer sociedade é um
comportamento socialmente condicionado e regido, em parte, pela tradição. Nos dias atuais,
algumas instituições sociais e de planejamento tentam condicionar o aleitamento à mudança
social dirigida. Os aparelhos de regulação do corpo, dentre os quais se destacam a medicina
e a psicologia, participam desse novo momento de recodificação dos saberes e práticas
sobre a amamentação. O aleitamento materno, antes visto e vivido predominantemente
como um fardo, passa a ser alvo do desejo. As pessoas passam a se sentir livres porque
escolhem, mas são, na realidade, socialmente condicionadas ao desejo.
214
RESUMO:
Este trabalho tem por objetivo estudar os saberes e práticas associados ao
aleitamento materno na sociedade brasileira, incluindo os períodos colonial, imperial e
republicano. O estudo está baseado em teses médicas das Faculdades de Medicina do século
passado, documentos históricos acerca da vida familiar e social da época e em trabalhos
mais recentes escritos sobre o assunto. Vemos o aleitamento como um fenômeno
sociocultural e estudamos as suas mudanças através do tempo, no espaço e nos diversos
grupos sociais. Este comportamento reflete a dinâmica do processo de difusão de elementos
culturais e está condicionado pelas mudanças sociais.
Discutimos as transformações históricas do discurso médico sobre o
aleitamento e os tipos de alimentação infantil em diferentes culturas. Na sociedade
tupinambá quase todas as crianças eram amamentadas até os três anos de idade. No período
colonial, algumas mulheres brancas e ricas da região nordeste se recusavam a amamentar
suas crianças e as entregavam às escravas para que fossem amamentadas. Na cidade do Rio
de Janeiro, a prática da exposição e abandono de crianças se tornou muito comum nos
séculos XVIII e XIX, elevando a mortalidade infantil. A grande prevalência de crianças
ilegítimas levou à criação da instituição da "roda dos expostos" para proteção da honra
familiar. A negligência em relação à criança e o infanticídio se tornaram muito freqüentes,
ocorrendo um decréscimo no aleitamento materno. Amas-de-leite foram empregadas para
nutrir as crianças e nutrizes escravas foram alugadas como fonte de renda para o
proprietário.
Mais tarde, a invenção dos processos de pasteurização e a industrialização do
leite de vaca tornou a alimentação por mamadeira disponível e relativamente segura. A
prática da alimentação artificial foi disseminada. Alguns autores consideram as promoções
agressivas das indústrias de leite em pó como um grande fator responsável por esta
tendência e discutem o seu papel enquanto baby killers. Criticamos a visão que considera o
processo de desenvolvimento do modo capitalista de produção como o responsável pelo
desvio para a alimentação por mamadeira. O processo de lactação não é somente biológico
ou econômico. As diferentes visões acerca da maternidade, padrões de família, sexualidade,
as condições do trabalho da mulher, a habilidade social para combinar as duas diferentes
funções femininas na produção e reprodução, o processo de urbanização, o estilo de vida
moderno e as atividades de marketing são relacionadas com os hábitos de alimentação por
mamadeira.
215
As percepções médicas sobre aleitamento materno e saúde são analisadas
bem como as razões fornecidas pelas mães para interromper o aleitamento. O discurso
psicanalítico é estudado dentro do processo de "psicologização" do parto e dos cuidados
com a criança, no contexto da reprodução humana. O aleitamento materno e a sua relação
com o controle de nascimentos e o planejamento familiar são considerados. O papel dos
anúncios nos meios de comunicação de massa na criação das necessidades é discutido e
relativizado. A extensão das necessidades humanas e o modo de satisfazê-las são vistas
como produtos culturais que dependem de condições culturais, tecnológicas e sociais. As
promoções comerciais de leite em pó geralmente reforçam hábitos latentes desejados e não
dirigem o consumidor para a compra de um bem que ele não quer ou não deseja.
As representações socioculturais do aleitamento como "fardo" ou "desejo"
são apresentadas. Concluímos que o aleitamento não deve ser considerado sempre como um
fardo ou como um desejo, ainda que, algumas vezes, possa ser ambos simultaneamente.
216
SUMMARY:
The main objective of this research was to study the patterns and practices of
breast-feeding within the Brazilian society in the colonial, imperial and republic periods.
The study was based on thesis carried out in medical schools during the last century as well
as on historical documents about social and familiar life and more recent papers dealing
with this problem. We have seen that breast-feeding is a social and cultural phenomenon
and that it varies according to time, space and among different social groups. This behavior
reflects the dynamics of a process of diffusion of cultural elements and is conditioned by
social changes.
We discussed the historical transformations of the medical thought about this
issue and the types of children-feeding in different cultures. In the Tupinambá indian
society almost all children were breast-fed for a period of about three years. During the
colonial period, some of the white and richest women of the Northeastern region refused to
feed their infants and let them to be nourished by slave women. In the city of Rio de Janeiro
the practice of children abandon became very common in the 18th and 19th centuries,
causing an increase in the infant mortality rate. The high prevalence of illegitimate children
led to the creation of a institution to take care of exposed babies and to protect family honor.
The neglect of children and infanticide became very common and the practice of breastfeeding decreased. Wet nurses were employed to feed children and lactant slave women
were rented by their owners as a lucrative business.
Later on, the invention of the pasteurization process and the industrialization
of cow's milk turned bottle feeding available and relatively secure. The practice of artificial
feeding became widespread. Some authors considered aggressive promotions of powdered
milk industries as an important factor responsible for this trend and discussed its role as
"baby killers". We criticized the point of view that considers the process of the
development of the capitalist mode of production to be responsible for the shift to bottle
feeding. We consider lactation not only a biological or an economic process. The different
concepts about maternity, family patterns, sexuality, the conditions of women's work, the
social ability to carry out simultaneously the two different roles of women in production
and reproduction, the urbanization process, the modern way of life and marketing activities
were related to bottle feeding habits.
Medical ideas about breast-feeding and health were analyzed as well as the
reasons given by mothers to discontinue breast-feeding their babies. The psychoanalytic
217
thought is studied beyond the process of "psychologization" of childbirth and child care in
the context of human reproduction. The relations between breast-feeding, birth control and
family planning were considered. The role of mass media advertising in creating needs was
discussed and its relative importance was reduced. The extension of human needs and its
mode of satisfaction were viewed as social products that depend on cultural, technological
and social conditions. Commercial promotions of powdered milk generally reinforce latent
desired habits and don't drive the consumers in order to buy an undesired good.
The social and cultural representations about breast-feeding as a "burden" or
a "desire" were presented. Our conclusion is that breast-feeding should not be always
considered as a burden or a desire, even though sometimes it may be both simultaneously.
218
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