Amamentação: fardo ou desejo: estudo histórico-social dos
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Amamentação: fardo ou desejo: estudo histórico-social dos
ii FACULDADE DE MEDICINA DE RIBEIRÃO PRETO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO DEPARTAMENTO DE MEDICINA SOCIAL ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: MEDICINA PREVENTIVA AMAMENTAÇÃO: FARDO OU DESEJO? ESTUDO HISTÓRICO-SOCIAL DOS SABERES E PRÁTICAS SOBRE ALEITAMENTO NA SOCIEDADE BRASILEIRA Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da U.S.P., j u n t o ao Departamento de Medicina Social, para obtenção do grau de Mestre. Aluno: ANTÔNIO AUGUSTO MOURA DA SILVA Orientador: PROF. DR. JOSÉ CARLOS DE MEDEIROS PEREIRA RIBEIRÃO PRETO(SP) 1990 iii AGRADECIMENTOS Ao Prof. José Carlos de Medeiros Pereira, pelo estímulo, orientação e sugestões oferecidas ao longo deste trabalho. Dos inúmeros diálogos sobre o tema brotaram idéias e ensinamentos fundamentais para esta dissertação. Ao Prof. Marco Antônio Barbieri, pelo incentivo constante na busca de respostas para os desafios da prática pediátrica. À Profa. Ana Maria Canesqui, cujas sugestões contribuíram para aperfeiçoar este trabalho. Ao Prof. Juan Stuardo Yazlle Rocha, coordenador da pós-graduação, pelo interesse demonstrado, sem o qual não teria a oportunidade de realizar o Mestrado em Ribeirão Preto. Aos amigos de Pós-Graduação, especialmente Eugênia Rodrigues, Ari Ott, Márcia Mitiko Azuma e César Xavier, pelos momentos compartilhados na busca do saber. À Patrícia, amiga e companheira, pelo apoio e alegria com que vivenciamos este momento de nossas vidas. Aos meus pais, irmãos e familiares pelos momentos subtraídos ao convívio. À José e Margarida Beleza, pelo apoio, sem o qual não teria sido possível minha vinda a Ribeirão Preto. Aos professores e funcionários do Departamento de Medicina Social da USP, Ribeirão Preto, especialmente Afonso Diniz Costa Passos, Rogério, Paulina, Célia, Aírton, Solange e Adriana. Aos professores e funcionários do Departamento de Pediatria e Puericultura da USP, Ribeirão Preto, especialmente Heloísa Bettiol. Aos professores e funcionários do Departamento de Medicina III da Universidade Federal do Maranhão, especialmente Maria Nazareth Neiva, Antônio Nilo, iv Maria José Guimarães e Alice Adélia Brandão, pela amizade e colaboração durante a ausência. À Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela ajuda financeira. v SUMÁRIO INTRODUÇÃO.........................................................................................................................................1 CAPÍTULO I — ANTROPOLOGIA CULTURAL DO ALEITAMENTO..............................14 CAPÍTULO II — O ALEITAMENTO MATERNO ENTRE OS INDÍGENAS BRASILEIROS, ESPECIALMENTE ENTRE OS TUPINAMBÁ...............................22 CAPÍTULO III — O ALEITAMENTO ATÉ O SÉCULO XIX...............................................27 1. A sociedade colonial, sua constituição demográfica e a situação do aleitamento....27 A família colonial...............................................................................................30 A família escrava................................................................................................32 A visão negra da maternidade............................................................................33 A criança negra...................................................................................................34 A ama-de-leite escrava no Nordeste...................................................................36 O abandono infantil no Rio de Janeiro...............................................................37 A ama negra da criança branca no Rio de Janeiro..............................................39 A mãe branca recusa o seio.................................................................................43 2. O nascimento da polícia médica, higiene e puericultura como instrumentos de regulação do corpo — radicalização e apropriação médica da infância...................46 3. Análise do discurso médico sobre o aleitamento........................................................49 A tese pioneira....................................................................................................49 Do aleitamento materno......................................................................................53 Do aleitamento artificial.....................................................................................60 Do aleitamento mercenário.................................................................................63 vi 4. O abandono infantil, as rodas de expostos e a mortalidade infantil...........................69 5. Aleitamento, natalidade e riqueza nacional................................................................76 CAPÍTULO IV — O ABANDONO DO ALEITAMENTO......................................................82 1. A sociedade urbano-industrial — o urbanismo como modo de vida e sua relação com o aleitamento....................................................................................................82 2. A família nuclear voltada para a intimidade — a criança e a mulher como centros — o amor materno...................................................................................................85 3.A consolidação 4.Progressos da puericultura....................................................................................92 na esterilização — o aleitamento artificial como alternativa viável — o discurso médico adaptado às novas circunstâncias.........................................................98 5. A disseminação do leite em pó e as promoções comerciais das indústrias — o papel das instituições de saúde no decréscimo da amamentação....................................107 6.Razões do declínio do aleitamento.............................................................................113 7.O discurso das mães sobre o aleitamento...................................................................120 8.A mudança nas percepções sobre o aleitamento........................................................126 CAPÍTULO V — A REDESCOBERTA DA AMAMENTAÇÃO..........................................129 1. O fenômeno da retomada do aleitamento.............................................................129 2. O discurso epidemiológico....................................................................................138 3. O discurso médico reatualizado - mortalidade infantil, desnutrição e aleitamento............................................................................................................149 4. O discurso psicanalítico.........................................................................................155 5.Aleitamento natural como fórmula de controle da natalidade...................................158 6.A puericultura nos dias atuais....................................................................................164 vii CAPÍTULO VI — O ALEITAMENTO COMO PROCESSO SOCIOCULTURAL..............168 1.Mudanças sociais e aleitamento.................................................................................168 2.Aleitamento, 3.O processo propaganda e imperialismo....................................................................172 de criação/satisfação de necessidades em relação à alimentação infantil................................................................................................................................179 CAPÍTULO VII — PROCESSOS SOCIAIS E ALEITAMENTO..........................................183 1.Trabalho feminino e amamentação.............................................................................183 2.Aleitamento materno, feminismo e emancipação da mulher............................................193 3.Família, divisão sexual do trabalho e amamentação..................................................195 4.Cultura, sociedade e sexualidade — as razões da maternidade.................................200 CAPÍTULO VIII — AMAMENTAÇÃO: FARDO OU DESEJO?................................................208 CONCLUSÕES........................................................................................................................................................................211 RESUMO..................................................................................................................................214 SUMMARY..............................................................................................................................216 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................218 1 INTRODUÇÃO: O aleitamento materno está na ordem do dia. Médicos, sobretudo pediatras, psicólogos, artistas, setores governamentais e algumas organizações sociais envolvidas empreendem uma vasta campanha nos meios de comunicação, enfatizando os benefícios da amamentação para a criança. É como se, de repente, a sociedade se redescobrisse, percebesse um erro e desse uma volta atrás, criando uma nova moda. Diversas vantagens são propaladas e as mulheres das classes dominantes, especialmente as mais instruídas, começam a seguir esses conselhos. Como se pode explicar essa mudança de comportamento tão recente em nossa sociedade urbano-industrial? Em alguns recantos do Brasil, muitas mulheres, embora considerem a amamentação como a melhor opção para a criança, relutam em alimentar os filhos com seu leite. Há mais ou menos uns 40 ou 50 anos houve a difusão da produção e consumo do leite de vaca pasteurizado e em pó. Assim, foi fácil atribuir à indústria, à difusão dos meios de propaganda e marketing o abandono do aleitamento. Como se a indústria moldasse os indivíduos que, massificados e robotizados, perdiam a sua identidade cultural e a contingência da escolha! Para muitos, o aleitamento é fenômeno biológico, natural, guiado pelo instinto e pelas leis hormonais. Se este assim o fosse, completamente, como explicar as flutuações históricas que este comportamento apresenta no decorrer do tempo nas várias sociedades e culturas e, num mesmo momento, em diferentes camadas sociais? Considerando o Brasil, vemos que a civilização indígena amamentava amplamente os seus filhos e não tinha o hábito de desmamá-los precocemente. No entanto, já na sociedade colonial e nos tempos do Império, as mulheres brancas e mais ricas, tinham o costume de entregar o seu filho aos cuidados de uma ama-de-leite, geralmente negra, para que o criasse e amamentasse. Este costume, talvez imitado das européias, no início não sofria sanções sociais, pois que era encarado como sendo de bom tom e decente. No século XIX é farta a literatura dos médicos higienistas condenando as mulheres que, segundo eles, negando a natureza, descumprindo os seus deveres de mãe, recusavam-se a amamentar os seus filhos. O que observamos historicamente é que a prática de amamentação do recémnascido humano pela ama-de-leite surge, como prática social mais disseminada, a partir do momento em que a sociedade se estratifica e surgem novas hierarquias entre os indivíduos. 2 Antes, não havia praticamente escolha: a criança era amamentada por sua mãe ou por uma pessoa do seu círculo de relações pessoais. Este hábito surge no Brasil a partir da divisão entre senhores e escravos e, mais tarde, sofre mercantilização, como muitas outras práticas sociais, através do aluguel de amas pelos senhores ou quando a própria ama oferecia seus serviços em troca de uma remuneração. Assim, o aleitamento pelas amas surge antes do advento do capitalismo, com a mercantilização das relações, quando se transforma em aleitamento mercenário. Mais tarde, o desenvolvimento científico tornou possível a alimentação da criança com o leite de vaca diluído, com poucos riscos à saúde da criança. Só depois, com a descoberta de novas tecnologias, como a pasteurização do leite e a produção em larga escala do leite em pó, é que a alimentação artificial tornou-se amplamente disponível a praticamente todas as camadas sociais. Pouco a pouco, a alimentação com mamadeira transformou-se em hábito bastante difundido na sociedade brasileira. No século XX, nos acostumamos a ver na vocação de mãe um dever sagrado, natural e inquestionável. Assim, não podemos explicar a recusa do aleitamento pelas mulheres, em alguns casos, como um sintoma de uma rejeição mesmo que "inconsciente" do seu filho. Da mesma forma, nos negamos a perceber que muitas mães talvez não amamentem por não estarem dispostas a carregar o que podem estar vivenciando como um fardo, de se anularem para dar vida a outrem, ainda que saído de suas próprias entranhas. Não que todo filho constitua-se em um fardo. Em uma sociedade, que entrega à mãe o cuidado absoluto do filho, em que o pai mostra-se reticente a colaborar na maternagem, em que a mulher abdica de sua realização profissional, às vezes pela premência econômica de produzir valores de uso doméstico sem remuneração ou reconhecimento, no sentido de equilibrar a unidade familiar, a amamentação pode parecer, de fato, um fardo. Nesse caso, o decréscimo na prevalência do aleitamento não seria um sintoma desse possível fardo? Nos seres humanos, o ato de amamentar ao seio ou não, antes de ser biologicamente determinado, é social e culturalmente condicionado. Daí as variações que apresenta nas várias sociedades humanas ou, na mesma sociedade, em diversos momentos históricos. Um ato socialmente determinado não pode ser livre e consciente, ainda que assim pareça ao agente. A determinação sociocultural, nos seres humanos, tende a se sobrepor à determinação biológica. De modo geral, só superamos a determinação quando dela tomamos consciência. A tomada de consciência da determinação social de uma atitude só acontece, geralmente, com um pequeno número de pessoas e tal processo é insuficiente para se explicar um comportamento coletivo. 3 Assim, não podemos explicar o aleitamento ou a sua recusa como uma atitude livre e consciente dos seres humanos, a não ser em poucos casos. O hábito do aleitamento não parece ser uma questão de desejo individual, voluntário, através do qual o ser humano, embora preso às sanções do seu grupo social, encontra espaço para manifestar a sua liberdade. No entanto, a amamentação não é um instinto natural e biológico. No decorrer do trabalho, analisamos os saberes e práticas sobre o aleitamento como elementos culturais que obedecem, a nosso ver, às leis de difusão definidas pelos etnólogos. Desse modo, buscamos localizar o nascimento de novos saberes em diversos discursos ao longo do tempo, como o discurso médico, o psicanalítico, o discurso das mães, o discurso natalista ou antinatalista etc. Em seguida, tentamos esboçar os principais caminhos percorridos no processo de difusão, desde a apresentação até a aceitação do traço cultural, discutindo, nesse processo, o empréstimo de novos elementos pelas subculturas baseadas em camadas ou classes sociais. E, por fim, pretendemos estabelecer os principais canais da difusão dos saberes sobre lactação no passado e na sociedade de massas. Encontramos duas tendências predominantes: primeiro, a redefinição dos padrões de aleitamento a partir da inter-relação entre o discurso médico e as práticas sociais da elite, durante todo o século passado. Em segundo lugar, a modificação das percepções sobre a amamentação passou a se dar na articulação entre os diversos saberes científicos e o comportamento no meio urbano, a partir do século XX. Por outro lado, em todos os momentos históricos, a codificação de novos saberes começou, predominantemente, a partir das camadas dominantes e, a partir delas, se difundiu para as demais camadas sociais. Cabe, nesse ponto, algumas considerações sobre o sentido em que foram empregados os termos discurso e saber. Entendemos discurso como a maneira de pensar característica de algum grupo, inclusive científico. Esta percepção engloba a existência de certo número de juízos valorativos. Entendemos que a própria "ciência constitui, ela própria, um modo valorativo de ver a realidade, ao privilegiar uma forma de obtenção de conhecimento e não outras" (PEREIRA: 1983,69). Entretanto, em determinados discursos analisados como, por exemplo, no epidemiológico, percebe-se uma maior dose de cientificidade. O termo saber foi empregado praticamente como sinônimo de discurso, referindo-se mais ao estoque de conhecimento, científico ou não, possuído por um grupo social. O aleitamento também está, em nossa opinião, condicionado pelas mudanças sociais imperantes na sociedade brasileira e relacionado com diversos processos sociais em curso. O retardo na difusão dos conhecimentos ao longo das classes sociais é interpretado 4 como fruto do descompasso existente entre os ritmos de mudança entre os segmentos da cultura tecnológica e não-material, caracterizando a "demora cultural". Observamos que, nas duas últimas décadas, o aleitamento se incorporou na prática de diversas instituições sociais, num esforço de mudança social dirigida. No trabalho, procuramos caracterizar que, em alguns momentos históricos, predominam determinadas representações socioculturais sobre o aleitamento. Pudemos observar que é muito usado o termo "fardo", para designar um conjunto de representações que o aleitamento materno possuía no século passado e nos primeiros anos deste, e que coincide, em parte, com a percepção da maternidade como uma imposição à mulher e do papel de mãe como a vivência de um sacrifício. Nos últimos anos, assiste-se ao nascimento do "desejo" como representação sociocultural, a partir da difusão das "psicologias" na sociedade contemporânea, acompanhando uma mudança no papel de mãe, que passa a ser visto como uma possibilidade de realização e prazer para a mulher. Assim, a escolha dos termos para designar tais percepções de significado não representam termos antitéticos, mas constituem a maneira mais utilizada na literatura para verbalizar a rede de relações sociais envolvidas na vivência do aleitamento. O aleitamento é um comportamento social, mutável conforme as épocas e os costumes. Hábito preso aos determinantes sociais, às idéias e manifestações da cultura. A prática da amamentação depende de concepções e valores assimilados no processo de socialização, além do equilíbrio biológico e perfeito funcionamento das funções hormonais. Se o aleitamento fosse um ato natural, ele permaneceria imutável nos sujeitos. Se ele se modifica, não se pode traduzir tal mudança como um erro ou uma imperfeição da natureza. Cada sociedade, em determinada fase de sua história, cria percepções e construções culturais sobre o aleitamento, que se traduzem em saberes próprios. E, ainda, dependendo da complexidade da formação econômico-social, cada agrupamento social ou classe social constrói referências também específicas sobre a amamentação. A análise do aleitamento reside no estudo dessas concepções que formam os saberes, sobretudo no caso de sociedades mais complexas e, em geral, mais estratificadas. Esses valores nem sempre são percebidos pelos sujeitos que, às vezes, os internalizam sem disso tomarem "consciência". E também, às vezes, não se refletem, imediatamente, na sua prática histórica do momento. "A compreensão do destino social de um saber implica descobrir as razões de sua oportunidade, encontrar o vínculo existente entre suas propriedades discursivas e os problemas instituições" (DONZELOT: 1988,124). colocados pelo funcionamento das 5 Essa percepção é dinâmica no corpo social, está sujeita a mudanças que ora modificam o corpo dos saberes, ora alteram o curso de suas práticas. Assim, analisemos um exemplo. Um determinado corpo de conhecimentos se consolida como um saber específico no âmbito da medicina e, pouco a pouco, se difunde na sociedade, inicialmente nas classes dominantes e depois, ao longo do tempo, chega às classes subordinadas. Se a velocidade de difusão desse saber for muito lenta, antes que tais concepções se propaguem a todas as camadas sociais — o que nem sempre acontece devido a vários fatores, dentre os quais a resistência cultural — um novo saber poderá já se estar formando e se difundindo. Tais acontecimentos, dada a diversidade social dos saberes, complica a análise da matéria. O saber sobre o aleitamento não forma um assunto completo, acabado, hermético e sem relação com os demais saberes de uma sociedade. Pelo contrário, as concepções sobre o aleitamento são parte de um corpo de conhecimentos mais geral, que abrange uma infinidade de setores da vida humana. Assim, a maneira como a sociedade pensa a família, a criança, os papéis culturais materno e paterno, o cuidado com os filhos, a doença e as práticas de regulação do corpo (dentre as quais se inclui a medicina ocidental) e as concepções de maternidade traz uma relação estreita e indissociável com os saberes e práticas acerca da amamentação ao seio. Numa sociedade que não valoriza a criança, onde a mãe culturalmente não exerce o papel de vigilância e criação do filho, na qual a maternidade seja encarada como um fardo impeditivo à realização da mulher na vida e no trabalho, provavelmente as mães não amamentem elas próprias os filhos, se dispuserem de meios materiais, tecnológicos ou de nutrizes substitutas. Nesse caso, a sociedade não pode até mesmo praticar o abandono infantil, o infanticídio ou o aborto, no sentido de aliviar a mulher do peso da maternidade? Tais concepções são saberes culturalmente construídos que se interpenetram. A história do aleitamento na sociedade brasileira é a história desses saberes e das práticas sociais que os acompanham e da difusão dos mesmos no interior do organismo social. Nem sempre é fácil ou possível perceber, no desenrolar da prática, as idéias e valores que a formam, lhe dão consistência e a tornam possível. Tais conteúdos, muitas vezes, não são percebidos e/ou verbalizados pelo sujeito. Pode vigorar uma moral que constrói uma norma universal passível de sanções, mas que tolera as transgressões a ela dentro de certos limites. Não amamentar pode constituir uma transgressão a uma regra. O discurso do sujeito sobre o aleitamento, que se constitui no objeto de sua prática, poderá ser camuflado, "consciente" ou "inconscientemente', para evitar desacordos ou reprovações. Sendo o seu corpo que amamenta objeto de uma vigilância, o reconhecimento, por exemplo, 6 da amamentação como desagradável, poderá trazer culpa ou sofrimento para a mulher. Esta se defende ocultando o seu saber ou, às vezes, não admite nem para si mesma que tem um saber discordante da moral vigente sobre o aleitamento. Como a sociedade tolera a transgressão justificada, ela transfere o discurso dos motivos, que seriam contra a norma, para uma norma reinterpretada conforme convenções e justificativas socialmente aceitas. Assim, mesmo que a norma seja amamentar, geralmente a sociedade permite a não amamentação, seguindo-se um determinado modelo de conduta padronizado e com explicações estereotipadas — pois tais explicações são também socialmente aprendidas e condicionadas. Não há uma relação necessária entre o modo de produção dominante numa dada formação histórico-social e as concepções e práticas sobre o aleitamento. Nem existe, mecânica e obrigatoriamente, associação entre classes sociais e saberes sobre o aleitamento. Se assim o for, as classes sociais podem ter, em um instante, saberes convergentes e noutro, saberes divergentes sobre a amamentação ao seio. A construção de um saber sobre o aleitamento pode perpassar a desigualdade social e a divisão da sociedade em classes. “A análise do fenômeno superestrutural não pode, de modo algum, ignorar os nexos com o plano infra-estrutural, mas estou firmemente convencido de que um discurso sobre um setor cultural específico que deseje ser realmente rigoroso e, conseqüentemente, eficaz, requer uma peculiaridade de instrumentos de investigação e de que não é possível superar a dificuldade específica que a análise daquele determinado fenômeno do mundo popular coloca, remetendo-o de modo genérico, quando não absolutamente automático, à infra-estrutura ou à divisão da sociedade em classes” (SATRIANI: 1986,11-12). Não se pode negar que as concepções culturais estejam ligadas às condições de vida, mas muitas crenças e valores permanecem mesmo depois que tais condições tenham sido modificadas. Numa mesma estrutura socioeconômica as idéias sobre o aleitamento podem variar e serem antagônicas, se tomarmos uma fase em relação à outra. É que as concepções sobre o aleitamento são parte de um saber superestrutural mais amplo sobre o corpo humano. O saber sobre o aleitamento não é específico e pode ser continuamente redefinido em função da ideologia dos outros saberes mais amplos. Tem relação com os outros saberes nas é, por sua vez, dotado de autonomia ou especificidade relativa dentro da superestrutura. As idéias sobre a amamentação ao seio tendem a ser semelhantes nas sociedades mais simples, em que não há quase diferenciação social e onde se observa uniformidade na maneira de pensar, agir e sentir. Nas sociedades mais complexas, como as 7 capitalistas, há cada vez mais heterogeneidade. Por outro lado, há uma facilitação dos contatos sociais, o que promove um afrouxamento das relações de dominação e subordinação, que se tornam mais tênues, ocorrendo uma maior difusão sociocultural. Apesar de haver diferentes saberes culturais, a universalização da educação escolar pode fazer com que esses saberes de classe tendam à uniformidade. Boltanski interpreta a difusão da puericultura de uma forma diferente: "Vê-se que a regra formulada em 1900 não se impõe senão hoje à maioria das mulheres dos meios populares que ignoram ainda o abandono destas técnicas pelos médicos, ainda que os membros das classes superiores se recusem por um instante a abandonar uma regra em afinidade com o seu etos de classe e as quais estão habituados a pôr em prática há muito tempo. Assim, a análise estatística pode trazer a ilusão de uma identidade de condutas entre os membros de duas classes diferentes, pois ela fixa um momento, uma fotografia de duas evoluções em sentido inverso e que se reencontram antes de divergir de novo" (BOLTANSKI: 1984,137-138). Assim, à medida em que avançar o desenvolvimento capitalista, as concepções e práticas sobre o aleitamento poderão tender a se assemelhar nas diferentes camadas sociais. O estudo da mudança das concepções e práticas sobre amamentação em uma sociedade ao longo do tempo compreende a historicidade desse conhecimento. Conhecimento que ora surge como resultado das transformações sociais, ora se antecipa a estas com o fim de prevenir dissensões. O aleitamento é uma questão fundamentalmente socioantropológica. Guarda relação essencial com o homem e sua cultura. Está ligada ao biológico, mas não se amarra mecanicamente a ele. Goza de autonomia relativa em face das transformações econômicas, mas também pode sofrer influências dessas mudanças. Enfim, saber antropologicamente necessário, socialmente contingente e mutável. O ato de amamentar está orientado por valores, mas é o agir reciprocamente condicionado que mantém ou transforma esses modelos. As normas sociais e as regras de conduta compartilhadas constrangem o sujeito a se adequar às convenções sociais, o que este geralmente faz de maneira inconsciente. A história dos saberes se inscreve no que a tradição francesa denomina de história das mentalidades. Constitui uma crítica da razão política: rompendo com essa leitura política, ela mostra a existência de um regime de transformação própria do sentimento, dos costumes, da organização do cotidiano (DONZELOT: 1986,11). História que não se constitui apenas na arquitetura de um projeto de dominação de una classe social perante a outra. Mas que procura, na análise social dos saberes, entender porque um se 8 tornou dominante sobre o outro. Vamos assumir a hipótese de que um saber muitas vezes predomine historicamente não por representar a vitória de um projeto de classe dominante mas justamente por permitir a autonomização do poder, a fragmentação do repressivo, por distender as vontades e, como resultado, promover a coesão do corpo social. A história percebida como submissão dos dominados aos dominantes é, de certo modo, ahistórica. “Embora esta modalidade de análise apreenda o conflito, o dissolve na derrota dos humilhados. Como se o resultado social das ações fosse arquitetado e previsto, como se os sujeitos planejassem a história e esta fosse a repetição mecânica de suas vontades. Nesse ponto de vista, não se nega objetividade à história, mas reduz-se-lhe ao consciente dos sujeitos, hipotrofiando-se seus aspectos objetivos. Na realidade, o sistema social é um conjunto de forças e tendências, frequentemente contraditórias, onde muitas instituições e mecanismos psicossociais ou culturais, embora sendo funcionais ao sistema, são criados sem finalidade consciente” (SATRIANI: 1986, 93). De outra forma, a história é visualizada como fatos que se impõem ao sujeito. Estruturalmente, os eventos seguiriam uma relação linear de causa e efeito que poderia ser antecipadamente prevista. Porém, a história é sempre produto de reações e concessões mútuas. Esta é resultado de um embate que deixa feridos e vitoriosos dos dois lados. Vitória muitas vezes do consenso sobre o conflito. Não que a luta desapareça mas esta se transfigura. O perene domina a mudança por um instante e se institucionaliza. A história se faz trégua. A amamentação diz respeito ao corpo dos indivíduos. Corpo esse articulado com a realidade social, constantemente em transformação. Os cuidados com o corpo feminino, antes tarefas delegadas à família ou às comadres, são hoje atribuições da instituição médica. Segundo Foucault, o capitalismo vem, pouco a pouco, socializando o corpo dos indivíduos. “O controle da sociedade não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia mas começa no corpo com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica” (FOUCAULT: 1984, 80). É no espaço histórico desse corpo em processo de socialização que vamos penetrar para o entendimento biopolítico do aleitamento materno. Para a análise das articulações desse corpo com a realidade social se faz necessário estudar alguns aspectos desta em cada momento para clarear a compreensão do problema. Assim, dividimos, didaticamente, o processo em duas etapas. Na primeira, 9 realizamos o estudo histórico-social do aleitamento materno na sociedade brasileira. No primeiro capítulo, realizamos um esboço de interpretação antropológica do aleitamento; no segundo, abordamos a cultura indígena, principalmente a tupinambá e a sua visão sobre amamentação; no terceiro, analisamos o aleitamento até o século XIX, onde descrevemos a amamentação mercenária, o nascimento da polícia médica e as rodas de expostos; no quarto, estudamos o abandono do aleitamento, os processos de urbanização e industrialização e a alimentação artificial com leite de vaca; e, no quinto capitulo, discutimos a redescoberta do aleitamento a partir dos finais da década de 70. Na segunda etapa do trabalho, rompemos com o tratamento histórico do tema e analisamos, no sexto capítulo, o aleitamento enquanto processo sociocultural; vemos as mudanças sociais, discutimos determinadas interpretações que analisam a propaganda ou o imperialismo cultural como fatores determinantes da lactação e estudamos o processo de criação/satisfação de necessidades em relação à alimentação infantil; no sétimo capítulo, analisamos alguns processos sociais e sua relação com o aleitamento. Nesta parte, levantamos algumas hipóteses, pretendendo apontar linhas de investigação para outros trabalhos. E, no capítulo final, discutimos as representações sociais do aleitamento enquanto fardo e desejo. Em cada etapa histórica avaliamos a formação econômico-social; os saberes sociais sobre a família, a criança, a maternidade; as práticas sociais de regulação do corpo — as parteiras tradicionais, os médicos, os curandeiros, os psicólogos; os papéis sociais de pai e mãe; a articulação social do corpo que amamenta enquanto espaço de produção de bens e serviços e de reprodução humana; e a divisão social e sexual do trabalho. Tais aspectos vão influir, diretamente, tanto nas concepções como nas práticas que uma sociedade tem do aleitamento em cada período histórico. Como Leite, sentiu-se a "necessidade de apresentar quadros sociais mais amplos, onde se insere a vida feminina" (LEITE: 1984,68). Para tanto, foi necessário ampliar um pouco o objeto do trabalho e dissecar, na anatomia social, esse corpo dissolvido também em outros sabores e práticas. E depois, interpretar, dinamicamente, o corpo, referindo-o à totalidade dos saberes que formam o social, integrando-o na unidade de seus múltiplos enraizamentos e determinações. O projeto, então, era este. Para tanto, fomos buscar em diversas fontes historiográficas dispersas o material necessário para análise. Consultamos manuais de puericultura, teses médicas sobre o aleitamento e higiene infantil produzidas nas Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia desde o século passado, relatos de viajantes 10 estrangeiros sobre o Brasil, jornais, artigos publicados em revistas científicas, documentos oficiais das organizações de saúde nacionais (Ministério e Secretarias Estaduais de Saúde, Instituto de Alimentação e Nutrição), e internacionais (Organização Mundial da Saúde, Organização Panamericana de Saúde, Fundo das Nações Unidas para a Infância — UNICEF), publicações da Sociedade Brasileira de Pediatria, resumos de congressos médicos, teses de Mestrado, Doutorado e Livre-Docência, livros publicados sobre o assunto, mensagens publicitárias das indústrias de leite em pó em revistas de circulação médica e cartilhas populares sobre puericultura escritas para as mães. Optou-se por não consultar obras de filantropos, moralistas ou filósofos do século XIX, a literatura, a iconografia de Debret e Rugendas ou as mensagens veiculadas nos meios de comunicação de massa (rádio, televisão, revistas) e também não foram realizadas entrevistas pessoais. Sobre as teses de puericultura, Orlandi acrescenta que "não tiveram divulgação popular e circularam em âmbito restrito, mas refletem as idéias e pensamentos de grande número de médicos daquela época, daí sua importância" (ORLANDI: 1985,172). E afirma, ainda, que "os livros de puericultura prestam inestimáveis informações sobre a vida e a história da infância de um país" (ORLANDI: 1985.113). Leite porém acha que "as teses e anais das Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro ... são recortes horizontais, ainda muito necessitados de elaboração, para uma utilização adequada" (LEITE: 1984,18-19). No entanto, é muito provável que muitas das concepções difundidas naquelas teses tenham se popularizado. Com base nessas observações, cabe aqui algumas considerações metodológicas sobre os cuidados que se deve ter em um trabalho de reconstrução histórica. Na leitura dos textos não se pode tomar a informação como sendo verdadeira mas separar o puramente ideológico dos relatos que apresentam maior dose de cientificidade. Nem todos os escritos são reais, representando antes a maneira que a pessoa se utiliza para convencer o leitor, incutir-lhe o seu pensamento. Torna-se necessário tentar separar, no discurso, o juízo de valor do juízo de fato, embora isso não seja de todo possível. A literatura de viagem, "se é uma documentação importante no registro de dados exteriores da vida cotidiana, torna-se precária ou, pelo menos, vulnerável, quando tenta interpretar as relações e as instituições sociais" (LEITE: 1984,22). Desse modo, "entre os cientistas sociais contemporâneos, como se verificou, na falta de outra documentação, seu testemunho vem sendo aceito, quase sempre sem parâmetros críticos e sem levar em conta a historicidade das obras" (LEITE: 1984,33). Nesta literatura, percebem-se "estereótipos culturais e os preconceitos de classe, raça e sexo que mediavam a sua 11 percepção" (LEITE: 1984,34). Novaes alerta para um problema comum a todo trabalho historiográfico: o material de análise "reflete a opinião de uma parte da sociedade da época, ou seja, aquela que tem autoridade (científica, técnica e política) suficiente para fazê-la registrada e conservada. No caso da puericultura, pode-se ouvir a voz dos médicos e dos administradores, mas não a voz das pessoas que foram objeto de sua prática" (NOVAES: 1979,5). Pelo exposto, podemos observar que as fontes primárias existem em quantidade razoável, apesar da falta ou desconhecimento de relatos sobre a amamentação pela mãe negra do seu filho. É quase certo que a história deixou poucos registros do pensamento das mulheres das classes subordinadas e, principalmente, das concepções e valores que as escravas negras possuíam sobre o aleitamento materno. Sobre esses pontos reina um silêncio histórico quase que absoluto, abafado pela escravidão. A sociedade patriarcal e, após ela, o predomínio do homem na sociedade pós-colonial dificultou ou impediu a exteriorização escrita do pensamento das mulheres por elas mesmas. Resta a dúvida se na literatura, na iconografia ou, talvez, nos diários familiares do século passado se possa encontrar alguma luz para descortinar este assunto. Ou, talvez, recolher o depoimento de mulheres idosas, negras e brancas, que viveram ou ainda registrem algum traço de memória histórica daquele período. Tarefa esta muito difícil, em virtude da ressocialização e dos novos valores que estas mulheres absorveram. Ainda assim, desse modo talvez se possa coletar apenas as informações mais concretas, que digam respeito a práticas de aleitamento. Hoje as mulheres começam a externar os seus pensamentos e a serem ouvidas. Neste trabalho tentamos esboçar apenas uma síntese do discurso social, predominantemente médico, burguês, masculino e branco sobre a amamentação. Falta, a posteriori, emendar as lacunas que existem neste início de pesquisa sobre a matéria. Desvelar as percepções culturais sobre o aleitamento das mulheres, das operárias, das domésticas etc. Alguns aspectos da análise foram apenas descortinados neste trabalho. Como, por exemplo, a relação entre os controles sociais — entendidos como o conjunto dos meios e processos pelos quais um grupo ou uma unidade social leva os seus membros a adotarem comportamentos, normas, regras de conduta, até mesmo costumes, conforme ao que o grupo considera socialmente bom — e a amamentação. Até que ponto o encerramento da mulher em casa para amamentar não constituiu amarras e grilhões sobre a sua 12 personalidade? Ou, como se traduziam na prática os controles sobre o aleitamento? Atuavam por persuasão ou por constrangimento? No século passado e, até recentemente, o discurso "científico" preponderante sobre o aleitamento era o médico. Já agora parece emergir um novo saber regulador dominante, o discurso psi1, menos "fechado", descaracterizado externamente de juízos morais, mais indulgente e, talvez, menos repressivo, enfatizando o livre arbítrio das mulheres. Até que ponto ele representa uma forma de controle mais eficaz e coercitivo, apesar de aparentemente mais frouxo? Ou constitui-se de valores mais coerentes com o momento histórico de democratização dos saberes e socialização dos corpos, enfim, estágio mais avançado de evolução social? Distensão do repressivo em nome do educativo? Em todo trabalho de reconstrução histórica se enfrenta muitas dificuldades que gostaria de deixar relatadas. É impressionante o profundo descaso com que a sociedade e as autoridades tratam as bibliotecas públicas e a nossa memória histórica. Livros cheios de traças, desorganizados, sujos, úmidos. Recintos de leitura com lâmpadas queimadas, deixando entrar até mesmo a água da chuva. Livros preciosos e raros amontoados a um canto. As explicações: funcionários insuficientes, falta de verbas. Retrato grotesco de um país que não pensa, que não trata a si mesmo com seriedade. Segundo Linton, "o observador tem demasiado em comum com seu objeto. Haverá sempre alguma ligação emocional e esta ligação será a mais forte possível quando alguém estiver estudando os fenômenos de sua própria sociedade e cultura" (LINTON: 1981,12). Assim, "como sempre viveu aquela realidade social e tem uma história pessoal engrenada à história e aos costumes do grupo social de que faz parte, o habitante, afora alguns observadores mais lúcidos, freqüentemente dá por suposto, toma como natural, uma situação ou relações sociais que, para o estrangeiro, aparecem com maior nitidez, por comparação com as suas maneiras de viver o cotidiano... as contradições do sistema social, que se diluem para quase todos os habitantes, integrados nele" (LEITE: 1984,19). O grande desafio é perceber o objeto externamente embora estando dentro dele. O que nem sempre é factível nem o será de todo, pois "tanto os indivíduos como os grupos e também os pesquisadores são dialeticamente autores e frutos do seu tempo” (MINAYO: 1989, 22). Há uma relação indissolúvel entre o sujeito e o objeto da investigação, o pesquisador "tende a importar para o objeto os princípios de sua relação com a realidade, incluindo-se aí as relevâncias” (MINAYO: 1989, 6). Embora haja ideologia na ciência, predominam nesta os 1 psi — termo genérico empregado para englobar as psicologias, incluindo aqui todas as ciências que tenham por objeto o estudo da dimensão psíquica do homem. Assim, de maneira geral, discurso psi representa o discurso sobre o psiquismo. 13 elementos científicos (PEREIRA: 1963,11) e constitui tarefa do pesquisador "descontaminar", o mais possível, a ciência das representações ideológicas. Reconhecer esse fato permite esclarecer as limitações de todo trabalho intelectual e projetá-lo no horizonte do possível. É condição de honestidade deixá-lo aberto para o futuro, incompleto, factível de refutabilidade. Citando Popper: uma pesquisa será sempre provisória, estará sempre sujeita a ser demonstrada como falsa; permanecerá apenas provisoriamente verdadeira, não descartada do rol das obras aproveitáveis (POPPER: 1972,41-44). 14 CAPÍTULO I — ANTROPOLOGIA CULTURAL DO ALEITAMENTO: Segundo Linton, "o homem se distanciou tanto de seu começo animal, que praticamente tudo quanto ele faz é modelado pela cultura. Até atividades elementares e vitais como a amamentação e o cuidado das criançinhas, são controladas por padrões culturais e não pelo instinto. A prova são as extensas variações destas atividades, que verificamos em sociedades diferentes. Assim em algumas sociedades as criançinhas são amamentadas sempre que pelo choro manifestam vontade de mamar; em outras são amamentadas segundo um horário. Em algumas, são amamentadas por qualquer mulher que casualmente estiver à mão, em outras apenas pelas mães. Em algumas, o processo de amamentação permite vagares e é acompanhado de muitas carícias e com um máximo de prazer sensual para a mãe e o filho. Em outras, é apressado e perfunctório, encarado pela mãe como interrupção de suas outras atividades, apressando-se a criança para que acabe o mais depressa possível. Em alguns grupos o desmame se faz em idade muito tenra; em outros a amamentação prossegue durante anos" (LINTON: 1981,445-446). Quanto às técnicas para cuidar das criancinhas, existe ainda maior variedade cultural. Em algumas sociedades ou épocas, a criança será o centro de atenção da família, noutras será um aborrecimento, recebendo poucos cuidados, geralmente limitados à satisfação de suas necessidades físicas. A respeito das diferenças culturais em relação ao tratamento dispensado às crianças, Margaret Mead estudou os Mundugumor, grupo da Nova Guiné, no qual a criança era percebida como um aborrecimento. Escreveu que o menino nasce em um mundo hostil e violento. "As mulheres Mundugumor aleitam os filhos em pé, segurando a criança com uma das mãos em posição que força o braço da mãe e prende os braços da criança. Nada há do prazer sensual e divertido que sente a mãe Arapesh ao alimentar o filho. Tampouco tem a criança permissão de prolongar sua comida por qualquer carinho brincalhão em seu próprio corpo ou no da mãe. É firmemente mantida no desempenho de sua tarefa principal, de absorver alimento bastante para que cesse de chorar e consinta em ser recolocada na cesta. No momento em que pára de mamar, mesmo que seja por um instante, é devolvida à sua prisão. Por isso, as crianças desenvolvem uma bem definida e propositada atitude de luta, segurando firmemente no bico do seio e sugando seu leite tão rápida e vigorosamente quanto possível. Muitas vezes se engasgam por engolir muito depressa; o engasgo aborrece a mãe e enfurece a criança, convertendo a situação do aleitamento mais caracterizada pelo ódio do que pela afeição e segurança" (MEAD: 1969,194). 15 No Brasil, os Yanomani são um grupo também agressivo. "As mulheres Yanomano são maltratadas desde a infância. Quando o irmãozinho de uma menina bate nela, ela é castigada se lhe bater também. Meninos, entretanto, jamais são castigados" (HARRIS: 1978,75). "Os Yanomano sempre matam uma grande porcentagem dos bebês femininos, não só por negligência seletiva, mas através de atos específicos de assassinato... Os homens exigem que seu primeiro filho seja homem. As mulheres matam as filhas até que possam apresentar um bebê masculino. A seguir crianças de ambos os sexos podem ser assassinadas. As mulheres matam os filhos estrangulando-os com cipós, firmando-se nas duas extremidades de um pau colocado na garganta da criança, batendo-lhe com a cabeça contra uma árvore, ou simplesmente abandonando o recém-nascido na floresta" (HARRIS: 1978,82). As sociedades são inconscientes das influências gerais que sua cultura exerce sobre seus membros. Assim, tendemos a explicar as diferenças de organização da personalidade numa base de qualidades inatas (LINTON: 1981,457). Ao contrário, "os hábitos de amamentação... , assim como a valorização deste ato biológico são historicamente definidos através de padrões e normas vigentes na sociedade e controlados, direta ou indiretamente, por instituições, pela classe social, pelo grupo ou pela família" (BERQUÓ: 1984a,6-7). Em nosso trabalho, consideraremos, para efeito de exposição, as diferenças de valores sobre o aleitamento nas classes sociais como subculturas distintas. Para Boltanski, muitos dos saberes sobre puericultura que as classes subalternas possuem hoje são herdados da medicina oficial de outras épocas (BOLTANSKI: 1979,26). Isso pode ser exemplificado com o seguinte fato: a valorização popular que ainda hoje é dada à dentição, para justificar diarréias ou episódios febris, pode ser uma "memória" desta medicina mais antiga (NOVAES: 1979,64). Neste ponto se percebe que o que era antes um credo médico, hoje é uma crença popular. No Brasil, muitos saberes e práticas sobre o aleitamento podem também ter tido origem na difusão de conhecimentos da medicina indígena ou da medicina africana. Tais práticas, provavelmente, devem ter ficado restritas a algumas subculturas, devido ao predomínio da medicina européia. No entanto, talvez, nestas últimas décadas, pela influência dos meios de comunicação e pela maior secularização dos costumes, o conhecimento sobre o que se poderia denominar visão negra das coisas expandiu-se. O saber construído sobre o aleitamento no século passado pode estar residindo, com certas modificações, na subcultura das classes subalternas. A transmissão das regras de 16 puericultura dos médicos às classes subalternas ocorre como a transmissão dos traços culturais de uma sociedade a outra, seguindo as leis de difusão definidas pelos etnólogos (BOLTANSKI: 1979,31). "Os elementos culturais, em parte devido à dificuldade de comunicação, nunca se transferem completamente de uma cultura para a outra... tende-se a tomar só o centro desse complexo, as partes mais concretas e tangíveis e que, portanto podem ser mais facilmente imitadas... a sociedade receptora desenvolve para ele novas interpretações, moldando-o para servir a novas finalidades." (LINTON: 1981, 331). A forma de um traço cultural — os padrões objetivos e exteriores de um padrão de comportamento — é transmitida com maior facilidade, apenas com ligeiras modificações. O significado, subjetivo, desta forma sofre, no entanto, profundas reinterpretações. "Uma cultura receptora liga aos elementos ou complexos tomados de empréstimo, significados novos e estes podem ter pouca relação com os significados encerrados nos mesmos elementos quando em seu ambiente original", e estes novos significados podem servir a fins também completamente diversos (LINTON: 1981, 388). Os ensinamentos médicos, devido à facilidade de comunicação, passam inicialmente às classes dominantes que compartilham com os médicos o mesmo etos de classe e sofreram ambos a mesma influência racionalizadora da escola. O saber médico e o saber das classes dominantes sobre a saúde são contemporâneos. A difusão deste saber para as classes subalternas demanda um tempo maior, quase nunca é transferido completamente e sofre uma transfiguração de significados no novo ambiente cultural, a tal ponto que se torna tremendamente difícil a percepção da origem destes saberes. O processo de difusão de um elemento cultural envolve três etapas: apresentação, aceitação e integração. Após a apresentação, se a cultura receptora aceitar o novo elemento, este sofrerá reinterpretações e, por fim, será integrado ao novo ambiente. A aptidão à descontextualização do traço, o tempo de contato entre as subculturas e a comunicabilidade intrínseca do elemento cultural determinam a sua apresentação. O grupo receptor julgará a utilidade, a compatibilidade do traço com seus valores culturais e, dependendo da moda e do interesse social, poderá adotá-lo. Conflitos subjetivos devem existir nas classes médias pela persistência de valores contraditórios no interior dos sujeitos. As mães oscilam entre as normas transmitidas do exterior, pelos puericultores, e as regras familiares arcaicas e tradicionais. Esta situação é geradora de ansiedade e redobra os temores da mãe e o sentimento de culpabilidade quando a criança fica doente (BOLTANSKI: 1984,81). É bem provável que essas normas contraditórias provoquem um sentimento de culpa nas mães que não desejam 17 amamentar. "As mães sentem, com freqüência, uma necessidade psicológica premente de encontrar razões pelas quais são responsáveis, por algum descuido, das enfermidades de seus filhos" (COE: 1973,178). No caso da difusão de conhecimentos médicos para as classes subalternas um grande fator limitante é a barreira lingüística. O vocabulário médico é quase completamente inacessível para a sua subcultura. Em muitos casos, os conhecimentos médicos não passam às classes subalternas antes da intermediação dos curandeiros, farmacêuticos e outros profissionais informais, já parcialmente descontextualizados e reinterpretados. O conjunto de conhecimentos médicos que compõe a higiene parece difundir-se mais facilmente que outros, pois é menos sujeito ao monopólio da prática das instituições e agentes médicos. O médico limita a difusão dos conhecimentos sobre puericultura, pois não explica suas regras para as classes subalternas, tanto porque acha que sejam incapazes de compreender o seu discurso, como porque o conhecimento do doente acerca do saber médico retira da prática aquele aspecto mágico e pode minar a relação de confiança cega que muitos doentes depositam no médico. "Se por acaso o médico encontra e percebe resistências por parte da mãe, nunca é através de uma explicação do que constitui o princípio de eficiência do remédio prescrito ou da regra enunciada que ele procura eliminar essas objeções, mas através do enunciado de sanções que decorrerão automaticamente da desobediência, da transgressão da norma" (BOLTANSKI: 1979,45-46). As mães são incentivadas a obedecer às prescrições médicas sem conhecer o saber pasteuriano que as fundamenta e dá sentido. Os dogmas assim captados funcionam como um poder religioso, proporcionando uma educação sanitária autoritária. As representações sobre o aleitamento serão calcadas em saberes arcaicos pois o médico, transmitindo apenas informações parceladas e não fazendo nada para favorecer a comunicação entre ele e a mãe das classes populares, condena-a a reconstruir um discurso fragmentado, incoerente, em migalhas. A mãe utiliza-se do discurso médico para construir outro que se baseia em categorias de classificação mais simples, tais como forte/fraco, gordo/magro, salgado/insosso e outras categorias espaciais e de substância (BOLTANSKI: 1979,84). São categorias antigas derivadas da medicina hipocrática e mágica, submersas no senso comum. Assim, a mãe pode explicar que desmamou o seu filho porque o seu leite se tornou muito salgado e podia prejudicá-lo, ou que assim o fez porque o seu leite está fraco. Pode, ainda, querer amamentá-lo porque o seu leite está gordo e forte. A esse respeito é comum, em muitas regiões do Brasil, a associação do colostro como leite "salgado", que aparece como motivo 18 para a interrupção do aleitamento. Boltanski considera o curandeiro como um intermediário na difusão da medicina para a classe subalterna. Assim, a folkmedicina transmite e difunde conhecimentos originados da medicina oficial do século passado, como se atesta pelas leituras de muitas obras médicas do século XIX, práticas estas, que hoje se chamam populares (BOLTANSKI: 1984,60). Para Coe, a folkmedicina moderna, diferentemente da primitiva, tende a mudar segundo melhora a apreciação por parte dos profanos, das conclusões da medicina profissional. Porém, ela pode se negar a esse contato devido a um alto grau de solidariedade baseado em razões étnicas, à perpetuação de crenças e práticas de folk, ao pouco contato com os médicos, a barreiras subculturais etc. Entretanto, "a folkmedicina moderna tende a ser uma versão 'filtrada' da medicina científica especializada" (COE: 1973,178). Tendo em vista as dificuldades na comunicação e as barreiras postas à difusão dos conhecimentos médicos, algumas hipóteses podem ser levantadas: muitas mães podem não ferver as mamadeiras porque consideram isto um ritual desnecessário. As mulheres das classes populares podem mostrar-se receptivas aos conselhos sem, no entanto, assimilá-los e colocá-los corretamente em prática. A categoria micróbio é usada nas classes populares no singular e possui um caráter mágico, daí a falta de percepção cultural do significado e da importância da assepsia (BOLTANKI: 1984,107). Não possuem o conhecimento racional difundido pelas instituições escolar e médica, baseado em conceitos e mecanismos de pensamento diversos do saber que possuem: o saber "empírico", ou "irracional" ou o não saber, a "ignorância". A difusão das regras de puericultura será incompleta, pois não se difundem as categorias de pensamento "modernas" e "científicas". As classes subalternas podem mudar as práticas, mas desenvolverão novas interpretações sobre tais práticas mais adequadas à sua subcultura. "Os determinantes sociais não informam jamais o corpo de maneira imediata, através de uma ação que se exerceria diretamente sobre a ordem biológica, sem a mediação da ordem cultural que os retraduz e os transforma em regras, em obrigações, em proibições, em repulsas ou desejos, em gostos e aversões" (BOLTANSKI: 1979,119). Boltanski descreve que, na França, para as mulheres das classes subalternas, durante a amamentação a mãe deve evitar os alimentos "fortes" e escolher os alimentos "nutridores" e "suaves". Para as classes dominantes, a mãe deve escolher alimentos saudáveis, isto é, que não engordem. Já para as classes subalternas, as mulheres que não amamentam por medo de que os seios se deformem são consideradas como mulheres que 19 falham no seu dever de fêmea e perdem, assim, a sua feminilidade. (BOLTANSKI: 1984, 92-94). No Brasil também se percebem diferenças de comportamento entre as subculturas: as classes subalternas preferem fazer uso do leite de vaca "in natura" e as classes dominantes utilizam, mais freqüentemente, os leites industrializados (ARRUDA & GONDIN: 1970,20). A utilização dos leites naturais e a pouca aceitação dos leites industrializados ou de produtos e medicamentos químicos como vimos, pode ser encontrada nas práticas de medicina popular. Percebe-se, com estes exemplos, que os conhecimentos, atitudes e práticas com respeito à amamentação ao seio são diferentes conforme as classes sociais. Boltanski observa, ainda, que o desempenho das regras de puericultura exige certas condições materiais e certo tipo de atitude diante da vida que não existem completamente nas classes populares. Seus membros possuem uma representação da doença como um acontecimento súbito, o que dificulta a adoção de atitudes diante da medicina preventiva, tais como levar a criança ao médico regularmente sem que ela esteja doente. Nas classes superiores vigora uma moral "ascética", que supõe certa liberdade em relação às condições materiais de vida não encontradas nas classes populares, que, ao invés de vigiar constantemente a criança, a deixam mais solta, tanto pela falta de tempo em exercer tais tarefas, ocupadas na luta pela sobrevivência ou em outras tarefas domésticas mais importantes, como por acharem ridículo e desnecessário tal desvelo em relação à infância. Apesar de reconhecermos que a maioria das invenções culturais estejam acontecendo nas classes superiores, não concordamos inteiramente com Boltanski quando ele afirma que, numa sociedade hierarquizada, o monopólio da invenção e criação pertence às classes superiores e, então, tais saberes se difundem de alto a baixo na escala social, nunca ao contrário, produzindo as mudanças nas demais classes. Nem as diferenças entre as classes sociais se reduzem a diferenças de "mais ou menos", pois há um ponto em que tais diferenças deixam de ser apenas quantitativas e se tornam, também, qualitativas, nem um esquema estrutural descreve completamente as desigualdades sociais. As classes dominantes têm, geralmente, maiores condições de fazer com que as suas invenções se espalhem pelo restante da sociedade, pois possuem maior poder de verbalização, dominam os meios de comunicação, têm maior prestígio ligado aos status sociais superiores etc. Isso faz com que os seus produtos culturais sejam mais facilmente imitados pelos membros das demais classes. A cultura subalterna não resulta unicamente de invenções reinterpretadas da 20 cultura hegemônica. Na cultura subalterna existem também produtos culturais que nascem e sobrevivem nela como alternativas2. Poucos valores subalternos chegam de fato a universais, por causa da dominação cultural. Satriani, discutindo o folclore, classifica os saberes culturais subalternos em dois níveis: contestação da cultura dominante com rebelião ou aceitação do status quo e aceitação da cultura hegemônica. A aceitação da cultura hegemônica se dá em três categorias: produtos da cultura hegemônica — partilhados pela cultura popular, passados sucessivamente à cultura popular e elaborados para a cultura subalterna e a ela impostos (SATRIANI: 1986,107). As relações entre as subculturas das classes sociais são interpretadas como um fenômeno constante de aculturação. No contato entre duas culturas diferentes, há uma acomodação mútua de valores, difundindo-se produtos culturais em uma ou nas duas direções, podendo predominar, algumas vezes, em um sentido. Aculturação não é a simples transferência de elementos de uma cultura a outra, mas um processo contínuo de interação entre grupos de cultura diferente. Não se pode reduzir a realidade complexa da dinâmica intercultural a alguns esquemas mecanicistas apressados (SATRIANI: 1986, 69-70). Os antropólogos têm usado a amamentação como indicador inverso de aculturação. Nesse ponto de vista, sociedades que amamentam menos sofreram ou estão sofrendo aculturação e a mamadeira se torna um símbolo de posição social (BADER: 1983, 377). O surgimento da sociedade de classes é um fenômeno recente na história humana. Antes do capitalismo, apesar de os membros das diversas camadas sociais levarem formas de vida sensivelmente diversas, eram "socialmente vizinhos", o que tornava possível que alguns comportamentos, expressões, crenças ou produtos culturais fossem, em geral, comuns a todos. Havia mais elementos universais, compartilhados por todos, porque as sociedades eram mais simples. Então, apesar de socialmente muito distantes, estavam, na verdade, culturalmente próximos. As sociedades "modernas" não compartilham senão o núcleo da cultura. O desenvolvimento econômico e tecnológico fez com que surgissem muitas especialidades, sendo totalmente impossível, hoje, alguém dominar uma porcentagem muito grande dos traços de sua cultura. Observamos, atualmente, que decorre um intervalo muito menor entre o uso 2 Segundo Linton, os traços culturais podem ser: universais, quando compartilhados por todos os seus membros; especialidades, quando são vivenciados por poucas categorias de indivíduos e são decorrentes da divisão do trabalho; alternativas, quando forem propriedades de certos indivíduos, representando, geralmente, traços desintegrados e novos em mutação; e peculiaridades individuais, quando pertencem aos indivíduos através da invenção, podendo tornar-se alternativas ou universais, a depender da aceitação e da importância da descoberta para o grupo (LINTON: 1981,264). 21 de um objeto por uma classe e o uso do mesmo objeto por parte da outra, quando comparamos com épocas passadas. Os meios de comunicação de massa facilitam o processo de difusão e integração. A urbanização, multiplicando os contatos, estimula positivamente a aquisição de novos valores e percepções socioculturais. O processo de urbanização possui um efeito-demonstração extraordinário. Assim, pessoas de classes distintas estão geográfica e socialmente mais próximas. As relações entre as pessoas não são mais de dominação/subordinação, rígidas e praticamente intransponíveis. A multiplicação de contatos e os meios de comunicação de massa vêm diminuindo a distância no tempo entre a subcultura das classes hegemônicas e subalternas. Tal processo não ocorre, todavia, sem contradições. Ao mesmo tempo em que tais progressos podem provocar aquilo que se chama de dominação cultural, tornam possível o conhecimento mais amplo de traços da subcultura da classe subalterna. Satriani separa os produtos culturais em: produtos de cultura nascida diversa e produtos de cultura tornada diversa. A categoria dos produtos de cultura tornada diversa engloba produtos anteriormente comuns a ambas as classes que, dada a maior velocidade de transformação cultural que ocorre nas classes hegemônicas, foram abandonadas por estas e sobrevivem nas classes subalternas; além destas duas categorias, poderíamos acrescentar os produtos de cultura comuns — partilhados por ambas as classes. (SATRIANI: 1986,115). Um produto cultural pode ter nascido diverso em qualquer grupo, camada ou classe social, quer seja dominante ou subordinada. Pode ser que, no decorrer da vida em sociedade, um produto cultural que tinha nascido diverso tenha se tornado comum, adotado pelos outros grupos ou classes sociais e mantido pelo grupo social que o criou. Outros produtos culturais poderiam ter sido comuns e a dinâmica social transformou-os em produtos tornados diversos, ou seja, adotados apenas por um ou mais dos grupos originais e abandonados pelos demais. Os saberes de puericultura nascida diversa são, em geral, desconhecidos ou não reconhecidos como tais na sua origem pela cultura hegemônica. "Dispomos de poucos documentos (ou nenhum) da vida popular de qualquer época, enquanto são abundantes para o mesmo período, os documentos da vida 'privilegiada'. Isto se deve ao fato de a seleção historiográfica ter sido sempre realizada, no fundo, por critérios retirados da cultura hegemônica e de só nos nossos dias estarmos assistindo a um interesse preciso pela documentação em torno das classes subalternas, vistas não mais como pano de fundo de uma história reconstruída através de suas linhas hegemônicas" (SATRIANI: 1986,111-112). 22 CAPÍTULO II — O ALEITAMENTO MATERNO ENTRE OS INDÍGENAS BRASILEIROS, ESPECIALMENTE ENTRE OS TUPINAMBÁ: Inicialmente, para se compreender melhor os valores expressos na prática quase universal do aleitamento entre os indígenas brasileiros, vamos retomar um pouco dos relatos dos viajantes, para que se possa apreender de que modo os indígenas viam e cuidavam dos seus filhos. Os dados descritivos serão, na sua maior parte, referentes aos tupinambá, devido à maior facilidade de se obter dados sobre este grupo indígena, habitante de diversos pontos do litoral brasileiro, principalmente Rio de Janeiro, Bahia, Maranhão e Pará, nos séculos XVI, XVII e anteriores; as tupinambá possuíam uma sólida unidade lingüística e cultural, apesar de constituírem "grupos tribais distintos espacialmente separados e solidamente diferenciados... Doutro lado, localizavam-se nas áreas em que os contatos com os brancos foram mais intensos e regulares desde o início da colonização" (FERNANDES: 1963,15-17). Pero Vaz de Caminha relata na carta ao rei de Portugal, por ocasião da chegada dos portugueses ao Brasil, que as indígenas andavam "com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de que) aos peitos" e Hans Staden, em 1557, descreve, ainda melhor, este hábito de carregar os filhos em tipóias, bastante difundido entre os índios: "carregam seus filhos às costas envolvidos em panos de algodão, e assim com eles trabalham. As crianças aí dormem, e andam contentes por mais que elas se abaixem ou se movam". . . (apud ROCHA: 1947,13) Os registros de várias fontes no que diz respeito à duração do aleitamento natural entre os indígenas variam bastante. Segundo Cardim, "as mulheres dão de mamar à criança de ordinário ano e meio sem lhe darem de comer outra coisa" (apud ROCHA: 1947,18-19); às vezes até os sete anos, para Gilberto Freyre (FREYRE: 1978,120). "A criança sugava o seio materno por dois ou três anos, ou até oito anos, segundo escreveu Gandavo" (apud SANTOS FILHO: 1977,114). Para o frei Vicente do Salvador, "as mães dão de mamar aos filhos sete ou oito anos, se tantos estão sem tornar a parir, e todo este tempo os trazem ao colo, ora elas, ora os maridos, principalmente quando vão às roças..." (SALVADOR: 1982,81). Herbert Baldus observou que as mães tapirapé dão, sendo possível, leite materno por dois, três ou mais anos aos seus filhos (BALDUS: 1970,277). E Fernão Cardim, referindo-se aos tupinambá, narra: "uma criança que já, sem a guarda dos adultos, brinca correndo com outras crianças se sacia ainda nos seios maternos" (apud 23 BALDUS: 1970,283). Ornellas cita a ausência do hábito de chupar os dedos entre os índios e diz que a amamentação se inicia logo após o nascimento, sem guardar horário e "sem a preocupação de alternar os seios que a criança só larga quando se sacia" (ORNELLAS: 1978,191-192; BARBOSA: 1969,20-21)3. Segundo os autores citados, raramente, os índios davam aos seus filhos outros alimentos que não o leite materno, pelo menos na fase de peitan. Claude d'Abbeville conta que era costume oferecer papas de manipoy (mandioca) junto com o leite materno (D'ABBEVILLE: 1975, 224). Thevet escreve que "o alimento do recém-nascido é o leite materno. Entretanto, poucos dias depois já lhe dão alguns alimentos mais pesados, como farinhas mastigadas ou certas frutas" (THEVET: 1978,138). Ramón Pardal descreve que "os tupis-guaranis davam aos prematuros e no desmame, água com mel de abelhas ou ainda a 'gordura do tambu', espécie de fino óleo extraído da larva de um coleóptero, o Rhincophorus palmarum, diluído também com água morna e filtrada" (apud ROCHA: 1947,30). Léry disse que se davam farinhas mastigadas e carnes tenras junto com o leite materno. E complementa: "o curumim-mirim era deixado ao seio até que por si mesmo o abandonava acostumando-se pouco a pouco a comer carnes, como as crianças maiores e os adultos" (apud ROCHA: 1947,30), "mas não raro voltava de vez em vez a sugar o seio materno", segundo Yves d'Evreux (apud ROCHA: 1947,26). O padre Colbacchini descreve o costume dos bororós: "a mãe amamenta sempre o menino, só em caso de moléstia grave ou morte da genitora confiam-no a uma parenta mais próxima que esteja nas condições de poder preencher o ofício materno... Tal é o escrúpulo em tirar ao menino o seio da própria mãe que se dá o caso de morrer ela tendo no peito a criança sugando em vão no seio da morta o alimento da vida" (apud MONCORVO FILHO: 1926,26). Claude d'Abbeville descreve que "quanto às mães, é impossível dizer a que ponto amam seus filhos apaixonadamente. Jamais os abandonam e trazem-nos sempre em sua companhia" (D'ABBEVILLE: 1975,224). Yves d'Evreux escreveu em 1613 que a infância dos indígenas estava 3 Neste artigo, Barbosa descreve uma visita que fez ao Parque Nacional do Xingu, em 1967. Observou vários grupos lingüísticos: tupi, caiabi, caribé, aruac e jê. Pela convivência de diversas culturas, os costumes já não são os originais. Nota que os pais matam os gêmeos por acreditarem que eles trazem a infelicidade para a tribo. Conta que não usavam nada semelhante a chupeta. Além disso, refere alguns costumes, provavelmente adquiridos por influência da aculturação: o pagamento a uma mulher índia que serve de ama-de-leite no caso da mãe não poder amamentar e a aplicação de tapas e palmadas nos filhos como medida disciplinar (BARBOSA: 19-25,1969). 24 dividida em dois períodos: peitan (desde o nascimento até o início da deambulação) e curimim-mirim (da marcha aos 7-8 anos). O peitan significava menino (ou menina) saído do ventre de sua mãe. Estes eram completamente dependentes da mãe nos afagos e cuidados. Tinham "por único alimento o leite de sua mãe e grãos de milho assados, mastigados por ela até ficarem reduzidos a farinha, amassados com saliva em forma de caldo, e postos em sua boquinha como costumam fazer os pássaros com a sua prole, isto é, passando de boca para boca... Quando estava um pouco mais crescido, o menino ria e brincava no colo da mãe... A mãe depositava a comida mastigada no côncavo de sua mão e ele próprio devia dirigi-la à boca... A mãe, por sua vez, não estimulava o apetite da criança. Limitava-se a atender às solicitações da criança: deixava-a comer enquanto tivesse fome e dava-lhe os seios quando ela pedia leite, por meio de gestos" (apud FERNANDES: 1963,267). A segunda fase infantil era chamada de kunumy-miry para os meninos (ia até 7 a 8 anos) e kugnatin-miry (até 7 anos) para as meninas, segundo Yves d'Evreux e se iniciava quando as crianças principiavam a caminhar sozinhas. Aqui, "tinham a liberdade de mamar enquanto quisessem. Aos poucos, porém, habituavam-se a comer as comidas grosseiras como os grandes e os adultos". A menina "reside com a sua mãe, mama mais um ano do que os rapazes" (apud FERNANDES: 1963,268-269). Os índios tinham por costume sacrificar e devorar os filhos dos inimigos com mulher contrária ou da própria tribo. Isto acontecia porque os tupinambá achavam que só os homens eram os agentes da reprodução. Cardim explica, em 1584, a concepção exclusiva da paternidade: "para o índio, o homem é o portador dos ovos, que ele, para dizê-lo bem e claramente, põe dentro da mãe e que esta choca durante a gravidez..." (apud ROCHA: 1947,20). Porém, enquanto não chegasse o momento do sacrifício, a criança "inimiga" era amamentada pela mãe, embora mais tarde fosse entregue pela mesma para o sacrifício. Anchieta explica porque se enterravam vivos os filhos das mulheres que tivessem relações sexuais com mais de um homem após o reconhecimento social do seu estado de gravidez: é que o "menino ficava mestiço de duas sementes" (apud ROCHA: 1947,23). Um costume que mostrava o condicionamento social das relações afetivas entre pais e filhos era o choco ou couvade. Tudo funcionava na representação cultural como se o pai tivesse se desdobrado em dois. Von den Steinen narra que "o pai é ovo, criança é pai pequeno... O filho é uma multiplicação do pai, o qual se duplicou" (apud ROCHA: 1947,20-21). O pai jejuava e ficava de resguardo, como se o filho tivesse realmente saído de 25 suas entranhas. A maioria das interpretações assevera que este comportamento masculino era uma "conseqüência das obrigações que o conceito de concepção atribuía ao homem" (FERNANDES: 1963,173). Segundo Gilberto Freyre "parece, com efeito, haver na couvade muito daquele desejo que Faithful salienta no homem introvertido de obter pela identificação com a mulher a alegria da maternidade"; realiza, então, uma interpretação sexual da couvade pelo critério da bissexualidade (FREYRE: 1978,117)4. Já o resguardo da mãe era apenas fisiológico e durava de dois a três dias, quando retornava às suas atividades rotineiras. A índia repousa apenas dois a três dias após o parto e, em seguida, leva o pequenino e carrega-o no colo indo para a horta ou para fazer serviço doméstico (D'ABBEVILLE: 1975,224). As relações sexuais eram interditadas desde a gravidez até que a criança andasse sem o auxílio de adultos ou tivesse pelo menos um ano de idade (FERNANDES: 1963, 241-242). Outros referem que esta proibição, no caso dos índios tapirapé, prosseguia até a época do desmame (BALDUS: 1970,277). A mulher tornava-se tabu em virtude da maternidade e isto era, provavelmente, uma forma de controle sobre a conduta sexual feminina ou, talvez, tivesse finalidades contraceptivas. Na sociedade tupinambá, havia um equipamento social para lidar com o corpo. E, no que diz respeito à criança, envolvia, desde o parto, uma participação predominante da mãe; porém o pai também tomava parte por ocasião dos ritos de nascimento. Os casos de doenças eram algumas vezes resolvidos pelos feiticeiros. Vale ressaltar, ainda, a ausência de citações de desnutrição em crianças nos relatos dos viajantes e nas crônicas dos jesuítas. Por outro lado, há indicações de que a mortalidade infantil era baixa (apud ROCHA: 1947,32), até a convivência com os brancos, quando esta aumentou, devido à introdução de novas doenças desconhecidas dos índios. O aleitamento materno era muito valorizado culturalmente e só em casos extremos de doença grave, morte ou nos casos interditados pela cultura não se observava o aleitamento. Isto ocorria quando enterravam vivos os "mestiços de duas sementes", ou nos casos dos "filhos dos inimigos" com mulher da tribo. A sociedade tupinambá harmonizava perfeitamente o duplo papel da mulher enquanto mãe nutriz e trabalhadora. A typoya servia para o transporte da criança e, enquanto a mãe trabalhava, podia, perfeitamente, entregar-se à maternagem e à amamentação. Enfim, a reprodutora conciliava-se com a produtora de bens e serviços. Além disso, as mães, 4 A este respeito, convém notar a semelhança deste comportamento de maternagem com a maior identificação de uma nova geração de pais com seus filhos, aquilo que se chama de "casal grávido" do século XX. 26 "muitas vezes, além da criança que carregam assim dependurada, levam um outro pela mão, e mais dois ou três maiorzinhos as acompanham" (D'ABBEVILLE: 1975,224). Assim escreveu d'Abbeville, em 1614: Não fazem como as mães de nosso país, que mal nascem os filhos os entregam às amas e mesmo os mandam para fora, a fim de não se aborrecerem com eles. Nisso não as imitariam as selvagens por nada no mundo, pois querem que seus filhos sejam alimentados com seu próprio leite" (D'ABBEVILLE: 1975, 224). 27 CAPÍTULO III — O ALEITAMENTO ATÉ O SÉCULO XIX: 1. A SOCIEDADE COLONIAL, SUA CONSTITUIÇÃO DEMOGRÁFICA E A SITUAÇÃO DO ALEITAMENTO: O objetivo do presente item é fornecer noções sumárias de nossa história econômica, descrevendo-se como se deu a colonização, o povoamento e a formação social do Brasil para podermos relacionar, convenientemente, tais aspectos com o aleitamento. Após o descobrimento, a primeira atividade econômica realizada em solo brasileiro foi a exploração do pau-brasil, nas florestas perto do litoral. Os aventureiros brancos europeus realizavam esta empreitada utilizando a mão-de-obra indígena. Tal empresa teve duração curta. Nesta época, quase não havia mulheres e crianças nestas expedições. Desse modo, as primeiras povoações brasileiras nasceram constituídas de população branca masculina e mulheres nativas. As descrições da sociedade colonial que se seguem são, na quase totalidade, referentes ao Nordeste brasileiro, retratando o modo de viver das famílias rurais mais ricas e o seu relacionamento com os escravos. Em outro ponto deste capítulo estudar-se-á a cidade do Rio de Janeiro. Tais regiões representavam os pontos dominantes do desenvolvimento brasileiro nas suas respectivas épocas. Além do mais, os registros escritos mais abundantes em relação ao aleitamento referem-se às mulheres brancas da classe dominante destas regiões. No período, a presença feminina foi predominante nestes locais. Uma exceção constitui a atividade mineradora, que, apesar de ter se constituído em um importante pólo de atração econômica, contou com pouca presença feminina. As demais áreas de interesse eram pólos economicamente periféricos, tais como a pecuária e a agricultura de subsistência, que ocorriam em vários locais esparsos do território brasileiro. Contamos, porém, com poucos registros sobre a amamentação dos homens livres na ordem escravocrata e, do que se pode deduzir, o hábito do aleitamento materno deveria ser bastante difundido, constituindo exceções a alimentação artificial e o abandono infantil. E, devido à inexistência de hierarquias sociais e ao padrão familiar da atividade econômica nestas regiões de mulheres livres, devia ser pouco freqüente ou inexistente a prática de alimentação dos filhos por amas-de-leite. É perfeitamente possível supor-se, a se acreditar na difusão cultural, que as mulheres indígenas, transformadas em parceiras sexuais ou mesmo esposas dos primeiros colonizadores, comportar-se-iam, em relação à amamentação, como se comportavam suas 28 mães e avós. Este hábito deveria ser comum em cidades onde a mulher indígena constituía maioria absoluta, como São Paulo. Entretanto, na sociedade colonial a difusão de elementos culturais passa a ocorrer da Europa e África para o Brasil, de onde procederam os contingentes de população branca e negra. Em virtude da aculturação e da precariedade das informações históricas, ficou um pouco difícil reconstruir os caminhos da difusão dos saberes e práticas sobre a amamentação neste período da vida brasileira. A chegada da mulher e criança brancas no Brasil ocorreu com o início da exploração econômica do açúcar no Nordeste, que vieram acompanhando os primeiros colonos, na segunda metade do século XVI. O tráfico negreiro teve início neste período, substituindo-se a escravidão indígena pela negra. A transferência forçada de população da África para o Brasil se dava em péssimas condições de higiene e alimentação, o que se traduzia em uma excessiva mortalidade nos navios. A maioria dos escravos eram homens jovens mas também chegavam mulheres para os serviços domésticos e algumas crianças. "Não se sabe ao certo se os africanos vinham acompanhados de seus familiares, apesar de algumas ilustrações do Valongo mostrarem mulheres amamentando crianças, possivelmente seus filhos" (MOTT: 1979,59). Com o trabalho excessivo e a onipotência do patrão branco, a taxa de natalidade nos escravos negros era baixa, a mortalidade infantil excessiva. Nesta época, o escravo era relativamente barato, em relação a outros momentos históricos, ainda que podendo ser relativamente caro em termos da capacidade aquisitiva da população branca. O interesse imediato no negro forte e produtivo predominava. Havia pouco interesse na reprodução da população negra, pois representava um investimento longo, pela relativa abundância a preços "baixos" desta mão-de-obra na fase produtiva. Somente atividades economicamente muito rentáveis, como a cana de açúcar, podiam empregar mão-de-obra escrava. Os colonos é que, talvez, fossem imediatistas e tomassem suas decisões em curto prazo. Isso poderia explicar o pouco interesse que, nas fases de prosperidade econômica, deviam dar à preservação do escravo. Porém, com as crises econômicas da cana e a diminuição de sua rentabilidade, deve ter aumentado o interesse na preservação da mercadoria "escravo". Além do baixo crescimento vegetativo pela baixa fertilidade das escravas submetidas a trabalhos pesados, da separação forçada dos sexos, a população predominante dentre os negros era a masculina. A maioria das crianças eram africanas, poucas nasciam ou sobreviviam no Brasil. Como é perfeitamente compreensível, não se conseguiu recolher maiores informações sobre o aleitamento da criança escrava nesta época. Do que se pode 29 deduzir dos relatos históricos, esta prática deveria ser disseminada entre as africanas, sendo dificultada basicamente pela rudeza da escravidão nesses primeiros momentos de exploração canavieira. As negras eram barbaramente separadas de seus filhos, conduzidas para o árduo trabalho nas lavouras e/ou engenhos. Provavelmente não havia entre as escravas o costume de entregar seus filhos para serem amamentados por outra mulher. O sistema das amas-de-leite nasce mais tarde, sob influência de costumes europeus. Apesar de, como diz Gilberto Freyre, "as pesquisas em torno da imigração de escravos negros para o Brasil terem se tornado extremamente difíceis, em torno de certos pontos de interesse histórico e antropológico, depois que o iminente baiano, Conselheiro Rui Barbosa, ministro do Governo Provisório após a proclamação da República de 89, por motivos ostensivamente de ordem econômica — ... — mandou queimar os arquivos da escravidão" (FREYRE: 1978,300-301), sabemos que dois grandes contingentes culturais negros predominaram no Brasil: os bantos e os sudaneses. Segundo Nina Rodrigues, na Bahia predominaram sudaneses e no Rio e em Pernambuco negros austrais do grupo banto. Os escravos minas ou sudaneses, vindos do norte africano, das regiões da Costa da África, sofreram forte influência da cultura islâmica, dominando algumas técnicas de produção mais avançadas. Os bantos, de Angola, eram mais acomodados, e ainda não conheciam outras atividades além da agricultura extensiva. Ambos os grupos culturais deixaram a sua influência decisiva na constituição da família brasileira (VIANA FILHO: 1988). Como não podia deixar de ser, "a escravidão desenraizou o negro do seu meio social e de família... Dentro de tal ambiente, no contato de forças tão dissolventes... o negro nos aparece no Brasil, através de toda nossa vida colonial e da primeira fase de nossa vida independente, deformado pela escravidão" (FREYRE: 1978,315). Seus costumes tradicionais sofreram uma influência desagregadora. Fora de seu espaço social, a sua cultura sofreu agressões e transformações, recriando-se uma nova cultura em confronto com a outra. Poucos, esparsos e incompletos registros sobre a amamentação na raça negra ficaram, deixando-nos um retrato insuficiente de suas manifestações. O regime de exploração do açúcar se dava em grandes extensões territoriais, os latifúndios, exclusivamente baseado no trabalho escravo e na monocultura da cana, com produção dirigida quase somente para a exportação (FURTADO: 1985). O centro da vida econômica era o engenho, dividido em casa grande e senzala, em cujo ambiente se desenvolveu a tradição patriarcal. O trabalho livre, em pequenas propriedades familiares, era praticamente ausente nesta fase. A partir desta época, começou a ocorrer a miscigenação entre o branco e a 30 negra, condicionada, segundo Freyre, "de um lado pelo sistema de produção econômica — a monocultura latifundiária; do outro pela escassez de mulheres brancas entre os conquistadores" (FREYRE: 1978,XXV). Em relação à historiografia colonial, ainda se faz necessária a revisão de vários estereótipos relativos à vida familiar de outrora. Existem idéias preconceituosas que opõem a austeridade moral da família dos senhores à promiscuidade do restante da população constituída por escravos e homens livres pobres. Apesar de Gilberto Freyre ter mostrado que a família dos senhores não era tão austera como se pensava, este manteve a noção de promiscuidade para o conjunto dos escravos. Este autor possuía uma visão bastante idílica a respeito das relações entre brancos e negros. Entretanto, em nosso trabalho, o citaremos freqüentemente por constituir um autor importante no estudo do Nordeste Colonial, que escreveu algumas páginas sobre as amas-de-leite e a amamentação. "Os viajantes foram responsáveis por uma série de representações, que se incorporam à historiografia do século XIX... Algumas das mais conhecidas são: a reclusão da mulher brasileira, considerar mulher de 'condição' unicamente a branca rica, a brandura do regime de trabalho escravo no Brasil, a escravidão como instituição civilizadora, a hospitalidade e a indolência do brasileiro, a imoralidade dos negros que depravava as crianças a seu cargo" (LEITE: 1984,31). A Família Colonial A família brasileira branca, de modo geral, vivia ao abrigo da casa grande, "num relativo isolamento social, cabendo ao homem o relacionamento com o mundo exterior, enquanto as mulheres permaneciam em casa coordenando as atividades domésticas. As escravas amamentavam e cuidavam das crianças" (LOYOLA: 1983,40). Tanto que, "no Brasil Colônia a família passou a ser sinônimo de organização familiar latifundiária... A família escrava foi destruída pela violência física e a dos homens livres pobres pela corrupção, pelo favor e pelo clientelismo" (COSTA: 1983,37). Sendo este o setor dominante economicamente à época, a família era uma realidade quase exclusivamente rural e as famílias urbanas tendiam a copiar os seus padrões culturais e modelos de organização social. "A população permanente dos primeiros centros urbanos compunha-se de escassos funcionários públicos, pequenos comerciantes, religiosos, militares e oficiais mecânicos". A cidade era modelada seguindo-se o exemplo do engenho ou da fazenda. "No curso do tempo quase todas as famílias urbanas 31 assimilaram este comportamento. Passaram a desprezar a rua, inclusive porque a freqüentavam muito pouco. Fora das grandes festas cívicas e religiosas permaneciam enclausuradas, transpondo para o meio citadino a reserva do viver rural" (COSTA: 1983,38-39). A família latifundiária, protótipo da família colonial, era patriarcal. "O desejo correto era o desejo do pai; o interesse justo era o da manutenção do patrimônio... Na Colônia, onde quer que se encontre uma família constituída e funcionante ela será senhorial, mesmo sem terra, mesmo sem propriedades" (COSTA: 1983,47). O efeito-demonstração partia do meio rural para o ambiente urbano. A cidade era um prolongamento do modo de vida rural. Achamos que não se pode dizer que a família colonial vivia um isolamento social, mas a vida social é que acontecia na família. "A casa brasileira até o século XIX era um misto de unidade de produção e consumo" (COSTA: 1983,83). Havia clara distinção entre os papéis sociais de homem e mulher: ao homem, a sociabilidade da rua; à mulher, o controle gerencial da empresa doméstica. Havia um desprezo dos homens pelo lazer doméstico e indiferenciação entre lazer e trabalho caseiro feminino (COSTA: 1983,86). As mulheres conviviam com os escravos. Casavam-se cedo, em torno dos 14 anos, e se deformavam com os primeiros partos. A maternidade era muito precoce e tinham muitos filhos. O casamento era, na maioria das vezes, um jogo de interesses. Havia mulheres abastadas, escravas, libertas e assalariadas. Eram comuns relações sexuais dos homens com escravas, gerando filhos bastardos, conhecidos como "mulatos", estes muitas vezes transformados em escravos. "Para o Conde de Suzannet, a imoralidade dos brasileiros é favorecida pela escravidão e o casamento é repelido pela maioria, como um laço incômodo e um encargo inútil" (apud LEITE: 1984,43). O escravo era incorporado à paisagem doméstica, os filhos viviam em íntimo contato com estes, de quem aprendiam muitos hábitos. As crianças recebiam uma educação bastante benevolente, sendo, muitas vezes, satisfeitas em todos os seus caprichos. Segundo Agassiz & Agassiz, tais carinhos eram corruptores das crianças, que cresciam na vadiagem e na má-criação, no convívio dos negros, sendo perniciosos esses contatos com a grosseria e o vício. "Que a baixeza habitual e os vícios dos pretos sejam ou não efeitos da escravidão, inegável é que existem" (AGASSIZ & AGASSIZ: 1975,279). Nesta época, como na Europa na descrição de Ariès, não havia sentimento de infância. A criança era semi-anônima e, apesar da mortalidade infantil alta, acreditava-se que a criança ao morrer seria transformada em anjo, o que diminuía a dor de sua morte. A 32 criança vivia misturada aos adultos e escravos. A sociedade brasileira já nasceu diferenciada entre senhores de engenho e escravos, entre brancos e negros. Apesar da convivência doméstica entre os escravos da casa e a família, havia um código rígido de hierarquia a ser obedecido. A mistura representava serviço: os escravos estavam na casa para servir aos senhores. E, apesar de Freyre, que nos fala do abrandamento das relações entre senhores e escravos, desse relativo amálgama e densidade social entre brancos e negros, existiam códigos sociais que disciplinavam as relações entre as raças. Assim, ao mesmo tempo em que existiam festas religiosas coletivas, havia igrejas para brancos e para negros. Apesar do desprezo pela rua, a família colonial não possuía o desejo de intimidade, donde a pobreza decorativa dos ambientes interiores. Não podia haver intimidade com a presença quase constante dos escravos executando serviços domésticos. "Não havia a menor preocupação da família em afetar um esmero qualquer, um sentimento qualquer de pudor diante do escravo, cuja natureza era ideologicamente próxima à de um bem material ou à de um animal" (COSTA: 1983,93). A casa dependia do escravo para funcionar. "Essa população, estranha ao núcleo familiar, infiltrava-se continuamente na casa, responsabilizando-se, muitas vezes, por tarefas diretamente ligadas à intimidade física e emocional dos indivíduos, como as de higiene e amamentação do recém-nascido". O escravo era um obstáculo à intimidade (COSTA: 1983,94). O escravo era apontado como o principal obstáculo à formação de uma família brasileira sadia. O leite escravo, na percepção médica, transmitia doenças e as disposições hereditárias negativas da raça negra. O contato da criança com o escravo era percebido como uma das principais causas da mortalidade infantil. A Família Escrava São poucos os relatos sobre a família escrava nos documentos históricos. Segundo Mott, era comum a separação entre mãe e filho, a dissolução de famílias e a venda de filhos mulatos e escravos pelo pai... O relacionamento entre os sexos, a vida familiar, a moradia dos escravos eram regulamentados pelo proprietário... O proprietário, em geral, não encorajava o casamento entre os escravos. O negro era considerado um ser intermediário entre os homens e os animais, sem condição ou necessidade de casar-se (MOTT: 1979,64). Quando se vendiam escravos, raramente se tomavam em consideração os laços de parentesco. Alguns senhores facilitavam o casamento entre escravos para prendê- 33 los à fazenda, e como garantia de boa conduta. Outros davam alforria às negras que tivessem seis filhos e concediam licença às mães para amamentar. Além disso, em alguns casos, as escravas não trabalhavam na lavoura por dois anos, sendo deslocadas para os serviços domésticos e após o parto tinham melhor alimentação e local reservado. Para Rugendas, "as relações entre escravos do sexo feminino e do sexo masculino tornam impossível a severa observância da moral ou a perseverança conscienciosa na fidelidade conjugal" (RUGENDAS: 1979,262). Os casamentos legítimos entre os escravos não eram tolerados pelos senhores, pois não poderiam ser desfeitos e prejudicariam a sua venda em separado. Os negros da fazenda, casados ou não, habitavam compartimentos alinhados em filas ou por grupos, os quais, à noite, eram fechados pelo feitor. Dormiam debaixo da chave como presidiários, para prevenir-se as fugas e a sexualidade. O escravo, como objeto de propriedade, não tinha direito à sua prole. Ela pertencia ao senhor. A escrava era vista como reprodutora. Como mercadorias, os escravos não tinham estabilidade familiar: os filhos podiam ser separados dos pais e a mulher do marido, para serem vendidos cada um em direção diversa. "A escravidão resultou numa instabilidade familiar muito grande. O seu reflexo nos relatos talvez possa ser avaliado pela quase total ausência de dados sobre a relação entre o pai escravo e o filho e entre irmãos escravos. A figura da mãe é mais constante, porém só nos primeiros anos de vida da criança, enquanto esta dependia do seu cuidado. A mulher negra é vista pelos viajantes como sendo boa mãe e amorosa de seus filhos carnais" (MOTT: 1979,65). A visão negra da maternidade Sobre os negros, a escravidão abafou qualquer registro escrito mais interessante sobre a questão da maternidade. Assim, podemos tentar uma aproximação sobre o que os escravos pensavam do assunto baseados em relatos e dados indiretos. Há alguns escassos escritos que nos indicam que a maternidade era apreciada socialmente, sendo a amamentação uma regra universal, quase sem exceções, no continente africano. Aqui, porém, as negras quase não podiam demonstrar o seu amor aos filhos, o prestígio social da mãe que amamenta e a valoração da natalidade. Segundo relato de Walsh (1828-1829), "para livrar os filhos, os irmãos e a si próprios da escravidão, os escravos não raro recorriam à fuga, ao suicídio e ao assassinato 34 (...) Este horror à escravidão é tão grande, que eles não só se suicidam como também matam seus filhos para escapar dela. As negras são conhecidas como sendo ótimas mães (...) mas este mesmo amor freqüentemente as leva a cometer infanticídio. Várias delas, sobretudo as negras minas, tem a maior aversão a ter filhos e provocam aborto, precavendo-se assim, contra o desgosto de dar vida a escravos" (apud MOTT: 1979,62-63). Parece que o infanticídio e o aborto eram reações à situação de escravidão, não sendo traços naturais de sua cultura. Assim, o aborto e o infanticídio constituíam formas de resistência da escrava à negação de sua maternidade (MAGALHÃES & GIACOMINI: 1983,82). A negra, mesmo que quisesse amamentar, muitas vezes se via forçada a não fazêlo, premida pela sua situação de escrava. A criança negra Algumas crianças negras chegavam a bordo dos navios, porém muito poucas nasceram no Brasil. "As facilidades em se adquirir o escravo faziam com que se desse pouca atenção à reprodução natural. (...). A impossibilidade, por falta de capital, de adquirir um escravo, parece ter levado a um maior cuidado com as crianças nascidas na casa. Para aqueles que possuíam um capital maior e precisavam de um escravo como força de trabalho imediata ou dentro do menor prazo possível, o investimento na mãe, pelo afastamento do trabalho por certo tempo, ou no filho, até que estivesse em idade de produzir, era talvez, visto como sendo oneroso" (MOTT: 1979,65-66). O cuidado com a prole escrava deve ter aumentado quando o preço do escravo sofreu um acréscimo após a abolição do tráfico, na época da mineração e depois, com a expansão cafeeira. Há, nos livros de viajantes, relatos de fazendas de criar escravos. Segundo Ewbank, em uma fazenda que visitou no Rio de Janeiro, encontrou, principalmente, mulheres e crianças. Segundo ele, "seus donos achavam mais rendoso criar negros do que plantar café" (EWBANK: 1976,276). O capital crescia, alimentado pela extraordinária fertilidade das negras. Imbert condenava o hábito, que considerava pernicioso, das escravas oferecerem aos filhos alimentos grosseiros, tirados de sua própria comida. A sua preocupação era porque a mortalidade nas senzalas diminuía o capital do senhor (apud FREYRE: 1978,362). A mortalidade infantil nas senzalas chegou a ser considerável. Segundo Maria Graham, menos de metade dos negros nascidos na propriedade chegavam aos dez anos de idade (apud FREYRE: 1978,404). Porém, ainda que amasse o seu filho e desejasse amamentá-lo, a escrava 35 negra era, muitas vezes, separada de sua cria, quer para retornar logo ao trabalho na lavoura da cana ou nos afazeres domésticos, quer para servir de ama-de-leite da criança branca. As crianças, brancas e negras, livres e escravas, nasciam em casa. As parteiras eram preferidas aos médicos que, na ocasião, eram poucos e atendiam apenas às doenças dos adultos. Algumas fazendas possuíam enfermarias para os escravos, que se destinavam igualmente às escravas que davam à luz. Outras crianças nasciam nas senzalas, no chão ou em esteiras de junco e eram, aí mesmo, amamentadas. Logo cedo, após 2 a 3 dias do parto, a escrava retornava ao trabalho. Conforme Saint-Hilaire era "inútil dar maridos às negras porquanto não seria possível criar seus filhos. Logo após o parto essas escravas eram obrigadas a trabalhar nas plantações de cana, sob o sol abrasador, e, quando após afastadas de seus filhos durante parte do dia, era-lhes permitido voltar para junto deles elas levavam-lhes um alimento defeituoso" (apud MOTT: 1979,60). Outras vezes, as mães levavam os filhos amarrados às costas, por meio de faixas, para o trabalho. Assim, não se separavam deles e podiam acalentá-los, conciliando-se a produção com a reprodução. Segundo Schlichthorst "nada mais comum do que uma negra que carrega o filho às costas, amamentá-lo, dando-lhe o peito por cima do ombro ou por baixo do braço" (apud MOTT: 1979,60). Este costume do enfaixamento era bastante semelhante ao descrito nas populações indígenas do litoral brasileiro. Apesar disso, a mortalidade dos filhos escravos, mesmo os de proprietários com escravas negras, era grande. A alta mortalidade seria devida ao excesso de trabalho durante a gravidez e após o parto, à má alimentação da mãe, do filho e às precárias condições de higiene nas senzalas (MOTT: 1979,65). Ou ao abandono da criança negra, desleixo forçado, consubstanciado nas regras da escravidão. A mãe negra demonstrava pouco apego ao seu filho, talvez porque este não lhe pertencesse e lhe pudesse ser arrebatado, a qualquer hora, como um objeto. Outra questão, abordada por Gilberto Freyre, é a da sífilis nas escravas. Assim, o negro se sifilizou no Brasil, ou melhor, foram os senhores das casas-grandes que contaminaram de lues as negras das senzalas. "É igualmente de supor que muita mãe negra, ama-de-leite, tenha sido contaminada pelo menino do peito, alastrando-se também por esse meio, da casa-grande à senzala, a mancha da sífilis" (FREYRE: 1978,317). Freyre afirma: "o negro foi patogênico, mas a serviço do branco; como parte irresponsável de um sistema articulado por outros" (FREYRE: 1978,321). Perdigão Malheiros, no seu ensaio "A Escravidão no Brasil, narra que "houve 36 senhoras de tal modo interessadas no bem-estar dos escravos que levavam aos seus próprios seios molequinhos, filhos de negras falecidas em conseqüência de parto, alimentando-os do seu leite de brancas finas" (apud FREYRE: 1978,451). Obviamente, isto parecia ser um comportamento muito raro, se não for, inclusive, uma informação incorreta ou mentirosa. A ama-de-leite escrava no Nordeste O costume de amamentar as crianças através das amas-de-leite remonta à antigüidade (WICKES: 1953,154). Sabe-se que os egípcios mandavam suas escravas amamentar os seus filhos. O código de Hamurabi na Babilônia, 2250 A.C., rezava que se uma ama deixasse morrer, por negligência, o lactente que lhe fora confiado para criar, teria um dos seios amputados (GESTEIRA:1943,1) . Nas civilizações grega e romana, este mesmo costume, de amamentação por amas, era observado. Na Grécia, o abandono de crianças fracas ou indesejadas era comum e aceitável (DAVIDSON & DURHAN: 1953,76-78). A amamentação era tratada com destaque na mitologia grega. Segundo a lenda, todos os deuses eram criados aos peitos. A via láctea teria se originado do jorro de leite esparzido no céu pelo seio de Juno, mordido, com demasiada força por Hércules, filho adulterino do seu marido Zeus com a princesa Alcmena. Juno não suportava Hércules mas um dia, avistando uma criança abandonada resolveu, a conselho de Minerva, dar-lhe os seios, sem saber de quem se tratava. Badinter, estudando a França nos séculos XVII e XVIII, relata que era costume das francesas criar seus filhos por amas. Este hábito iniciou-se nas mulheres das classes mais ricas, na zona urbana, mas aos poucos tornou-se generalizado nas cidades. As mais ricas contratavam as amas a domicílio e as classes populares mandavam seus filhos para os campos, para serem amamentados por camponesas, o que era mais barato. Esta prática foi sempre associada a um aumento na mortalidade infantil (BADINTER: 1985, 65). No Brasil, ao que tudo indica, o costume de amamentação do branco pela escrava negra foi importado da Europa. Segundo Freyre, "... de Portugal transmitira-se ao Brasil o costume das mães ricas não amamentarem seus filhos, confiando-as ao peito de saloias5 ou escravas" (FREYRE: 1978,359). Inicialmente, as próprias escravas nos engenhos amamentavam os filhos dos senhores. Nos primórdios da colonização as índias cunhãs serviam de amas às famílias brancas (FREYRE: 1978,146). Segundo Gilberto Freyre, "a tradição brasileira não admite dúvida: para ama5 saloias são camponesas das cercanias de Lisboa. 37 de-leite não há como a negra" (FREYRE: 1978,361). Para este autor, a razão principal do costume de recorrer às escravas negras para a amamentação encontra-se-ia em seu "maior vigor", decorrente de suas melhores condições eugênicas. Mas, na apropriação do seu potencial leiteiro, seria a possibilidade de seleção, decorrente da própria disponibilidade característica da situação de escrava, e não o potencial racial das negras, que, seguramente, explica que se tenha produzido a idéia de sua superioridade enquanto ama (MAGALHÃES & GIACOMINI: 1983,75). Freyre estabelece uma visão harmônica de mútua ajuda entre a escrava ama-de-leite, eugenicamente mais bem dotada e as franzinas mães de quinze anos (FREYRE: 1978,360). A escrava, chamada da senzala à casa grande mudava o seu lugar na família, sendo não mais o de escrava, mas de pessoa da casa (FREYRE: 1978,352). Assim reforça sua teoria sobre a "doçura nas relações de senhores com escravos domésticos" no Brasil. Mas, perguntam Magalhães e Giacomini: não estaria esse discurso encobrindo uma violência, "a negação da maternidade da negra, decorrente da apropriação de sua capacidade de amamentação" (MAGALHÃES & GIACOMINI: 1983,76)? "A estória da ama-de-leite escrava, da 'embaixadora da senzala na casagrande', revela-se a história de mais uma faceta da expropriação da senzala pela casagrande, cujas conseqüências inevitáveis foram a negação da maternidade da escrava é a mortandade de seus filhos" (MAGALHÃES & GIACOMINI: 1983,81-82). Para que a escrava se transformasse em mãe preta da criança branca, foi-lhe bloqueada a possibilidade de ser mãe de seu filho preto. A proliferação de nhonhôs implicava o abandono e a morte dos moleques. Desta forma, ao incorporar a negra ao ciclo reprodutivo da família branca, a escravidão reafirmava a impossibilidade para os escravos de constituírem seu próprio espaço reprodutivo. O abandono infantil no Rio de Janeiro Venancio, em seu trabalho "A infância abandonada no Brasil Colonial: o caso do Rio de Janeiro no século XVIII" nos descreve como ocorria o abandono de crianças entre as classes pobres, no Rio, entre 1700 e 1800. Utilizando os registros de batismos, aplicados na época para praticamente todo o conjunto da população, chega a algumas conclusões muito interessantes. Na sua análise, divide o Rio em duas regiões: a cidade e o recôncavo. Na cidade, cuja população estava envolvida no comércio de alimentos, em atividades artesanais e na exportação de ouro, açúcar, madeira e algodão, a ilegitimidade 38 dos nascimentos variava entre 20 e 25% e o abandono ia a cifras da ordem de 20%. No recôncavo, onde se produzia açúcar e gêneros de subsistência, a ilegitimidade variava entre 10 e 15% e os enjeitados ou "expostos" chegavam a apenas 2 a 4%. Para grande parte dos homens livres deste século, à família fundada no casamento religioso não era a regra mas esta se baseava, na maioria dos casos, em concubinatos estáveis, que implicavam em deveres e compromissos muito próximos aos da família legítima. Porém, grande número de crianças vivia em teto alheio ao de origem. Na área rural, o grupo doméstico sancionado pelas leis da Igreja ocorria em 80% da população livre. Porém, no meio urbano, cerca de 50% das crianças livres traziam a marca da bastardia e do abandono. A concentração de crianças abandonadas nas vilas e cidades devia ser uma realidade em outras regiões. Desde o século XVII, através do Código Filipino, as Câmaras Municipais foram encarregadas do cuidado dos expostos e de distribuí-los entre famílias de lavradores. "No século XVIII, com o crescimento da população livre e pobre, tornou-se comum os pais abandonarem filhos 'ao desamparo pelas ruas e lugares úmidos' das paragens cariocas. Em termos práticos, as duas principais medidas para se impedir essa forma velada de infanticídio foram a criação do Recolhimento de Meninos Órfãos em 1734 e, em 1738, a fundação da Roda de Expostos na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, estabelecimentos construídos com esmolas e legados dos benfeitores" (VENANCIO: 1986/87,229). Em 1775, um alvará estipulou a passagem da jurisdição dos enjeitados para os Juízes de Órfãos. A roda extinguiu os abandonos nas ruas e terrenos baldios. Segundo Venancio, o abandono de recém-nascidos negros devia ser raro, pois o escravo enjeitado era considerado livre pelas leis portuguesas e, além do mais, a criança negra livre abandonada corria o risco de ser vendida como escrava ou reescravizada pela família adotiva (VENANCIO: 1986/87,230). Venancio transcreve algumas razões apontadas na época para o abandono infantil: a proteção da honra e do patrimônio familiar, ameaçados pelas uniões clandestinas; a pobreza dos pais e a perversidade, esse sentimento social que considera a criação dos filhos como um peso. Observa que, no caso das famílias abastadas, "os laços entre mãe e filho nem sempre eram rompidos com o abandono, pois, além de procurar destinar a criança a famílias de posses, a mãe definia ainda o padrinho, quiçá o próprio pai..." E descarta a falta de amor materno como causa dos abandonos: "a preocupação e o afeto maternal das mulheres que eram levadas por motivos sociais ou morais a abandonar os filhos pode ser 39 percebido nos registros que indicam o cuidado com as roupinhas que acompanhavam alguns expostos..." (VENANCIO: 1986/87,231-232). Este trabalho nos oferece um panorama dos abandonos e podemos tirar a conclusão de que estes eram mais freqüentes do que faz supor a leitura das obras dos médicos higienistas, que estudaremos adiante. Oferece-nos, ainda, um registro significativo do abandono entre as mulheres livres, que atingia grandes proporções. O comportamento de enviar crianças para serem criadas por homens livres em áreas rurais era também razoavelmente comum, pelo menos no século XVIII. Quanto à sua tese de considerar o abandono dos escravos na roda como pouco freqüente, suas afirmações são contraditórias com as obras dos higienistas, que informaram ser esse abandono mais freqüente que o suposto por Venancio, pelo menos no século XIX. Por outro lado, não podemos negar a tese da falta do amor materno nos abandonos apenas pela presença de roupas acompanhando os expostos. Verificamos que o comportamento de infanticídio que pressupunha esses abandonos era freqüente nesta época, sendo reprovado publicamente mas admitido veladamente pela sociedade. Achamos que, se as mães realmente apresentassem esse condicionamento social de amar seus filhos, provavelmente não os abandonariam, mesmo nos casos da mais absoluta pobreza. A ama negra da criança branca no Rio de Janeiro No Rio de Janeiro, após a chegada da família real de D. João VI ao Brasil, novos contatos com populações estrangeiras transformaram os hábitos, estimularam largamente as necessidades, alterando a mediocridade da vida colonial (PRADO JÚNIOR: 1987, 133-137). Esse processo, acelerando a urbanização do Rio de Janeiro, provocou maiores solicitações de amas-de-leite. Esta aspiração nova difundiu-se pelas camadas urbanas, ocorrendo, nesta época, anúncios para aluguel de amas-de-leite em jornais. Estas novas camadas urbanas, constituídas de empregados do governo (civis e militares), do comércio, assalariados nas primeiras fábricas, funcionários das empresas estrangeiras concessionárias de serviços públicos, copiaram esse modelo europeu, remodelando suas atitudes. No Brasil, somente se observou a contratação de amas-de-leite a domicílio, mulheres livres ou escravas alugadas. Entre nós não aconteceu mandar as mães seus filhos para serem amamentados longe, nos campos, pois eram escassas as mulheres livres. Em alguns casos, as crianças da roda eram enviadas para núcleos rurais próximos à cidade do Rio de Janeiro. A estrutura agrária era escravocrata e, com a decadência da atividade 40 agrícola, muitos escravos vieram para as cidades, vendidos ou mesmo acompanhando seus donos. Os senhores vislumbraram uma nova fonte de renda: alugar a nutriz escrava negra, cujo leite, relativamente abundante, faria face a esta nova demanda social que se formava. Outra possível explicação para a menor disseminação da recusa ao aleitamento no Brasil, em comparação com outros países europeus, seria a relativa demora na transmissão dos hábitos de uma camada social a outra. Por outro lado, pela exigüidade do nosso mercado interno, pela estrutura arcaica de necessidades e pela economia voltada para a exportação, era reduzida a classe dos artesãos que, além da elite imperial, poderiam pagar pelo aleitamento mercenário. Sendo em maior número as mulheres livres desempregadas nas cidades, estas ofereciam seu leite em troca de uma remuneração. Assim, deveria haver uma inibição da demanda por amas-de-leite, devido à reduzida estrutura de necessidades e ao estreito poder de compra e potencial de consumo, ou uma oferta elástica pela abundância de leite das mulheres escravas e livres. Estes fatores talvez expliquem porque não ocorreu uma maior difusão do aleitamento mercenário entre nós. Colônia atrasada e pobre, era lenta a incorporação de novas necessidades, os costumes se modificavam após longo tempo. No século XIX, muitas crianças negras foram expostas nas rodas de enjeitados. Os proprietários expunham os filhos recém-nascidos de suas escravas para alugá-las como amas-de-leite. "Os jornais do século XIX estão cheios de anúncios de aluguel de escravas amas-de-leite, frisando não terem filhos (ORLANDI: 1985,61). O preço de aluguel de uma ama escrava sem filhos era alto e muitas famílias brancas não aceitavam receber a negra com o seu filho, que teria que dividir o seu leite com o filho do senhor a quem fora contratada para amamentar. Algumas senhoras expunham os filhos bastardos de seus maridos com escravas negras para encobrir as transgressões sexuais destes ou mesmo para fazer escarnecer à mãe negra, muitas vezes amada pelo senhor. "A roda também era utilizada pelas próprias escravas com a finalidade de livrar seus filhos da escravidão" (ORLANDI: 1985,62). "A roda recebia crianças de qualquer cor e preservava o anonimato dos pais. A partir do alvará de 31 de janeiro de 1775, as crianças escravas, colocadas na roda, eram consideradas livres. Este alvará, no entanto, foi letra morta (...)" (MOTT: 1979,63). No trabalho de Machado et al. há uma citação de Souza Lobo que mostra como se realizava o comércio de amas escravas, fonte de rendimento de seus senhores: "a mulher escrava, estando prestes a dar à luz, é enviada para certas maternidades, e a parteira se encarrega de fazer desaparecer o filho, mediante certa quantia!!!" (apud MACHADO et 41 al. : 1978,358). Tais crianças iam para a roda. Outra citação é bastante informativa, de Olinda Cardozo: "a mulher que possui os sentimentos da maternidade e a quem a bárbara lei da escravidão lhe impôs o ignominioso ferrete é coagida a abandonar seu filho, para receber em seu regaço o filho estranho a quem tem de vender as carícias que a natureza lhe deu para transmitir ao fruto de suas entranhas e de seus amores" (apud MACHADO et al. : 978, 357-358). Muitos pais, sem escrúpulos, entregavam seus filhos que sabiam sifilíticos para serem amamentados por amas sãs. Alguns médicos enviavam heredosifilíticos manifestos para serem aleitados por "crioulas bem tintas e robustas, baseando-se no errôneo preconceito do povo de que estas gozam de imunidade para a sífilis e até mesmo de propriedades curativas" (COELHO: 1902,39). É certo também que muitas amas houvessem transmitido através do leite, às vezes sem o saber, sífilis às crianças brancas. Talvez, nesse ponto, os médicos percebendo e criticando as amas disseminando doenças, criaram, mais tarde, no início do século XX, o Instituto para exame das amas-de-leite, numa forma de higienizar os brancos, livrando-os da ameaça das negras "patogênicas". A seguir, reproduziremos as discussões feitas por Magalhães & Giacomini no artigo "a escrava ama-de-leite: anjo ou demônio?" Após, tentaremos aprofundar um pouco o tema. Nos anúncios de jornais pode-se perceber que era sistemática a separação entre a ama e seu filho, inclusive no período imediatamente após o parto. Em outros, a inclusão ou exclusão do filho da escrava ficava a cargo do provável comprador ou locatário. A possibilidade de ama e filho viverem sob o mesmo teto parece ter estado intimamente ligada ao destino reservado à "mercadoria escrava leiteira". Outros anúncios deixavam perceber o menor valor da escrava "com cria". Como se pode observar nas seguintes transcrições de anúncios: Aluga-se uma preta para ama-de-leite parida há 7 dias, com muito e bom leite (Jornal do Commercio, 15-8-1850). Aluga-se uma optima ama sem cria (Jornal do Commercio, 1-2-1850). Vende-se uma preta, moça, com bom leite, com o filho ou sem elle, que tem dous mezes (Jornal do Commercio, 8-8-1850). Vende-se, muito em conta, com um filho de um anno, muito bonito e gordo, uma preta (Jornal do Commercio, 29-8-1850). (apud MAGALHÃES & GIACOMINI: 1983,77-78). 42 As crianças seriam de pouca ou nenhuma utilidade aos senhores que alugavam escravas para o serviço doméstico, além de representarem um custo suplementar. Quando a escrava era alugada como ama-de-leite, o senhor era constrangido a aceitar que a ama partilhasse leite e atenção entre nhonhô e moleque. De qualquer forma, mesmo nestes casos, a escrava era compelida a privilegiar o filho do senhor em detrimento de sua própria criança. Outras vezes, os senhores alugavam, com antecedência, a escrava com sua criança, para não deixar secar o leite e, uma vez nascido o branco, era aquela levada para a roda. A amamentação da criança escrava servia à preservação da "mercadoria escrava-leiteira". Havia, ainda, um rígido controle sobre a sexualidade da ama: "é conveniente que a ama, tanto quanto possível, não consinta as aproximações de seu marido, porque os exemplos de prenhez não são raros". Aconselhava-se não contratar ama grávida mas, se ela concebesse durante este mister, seria bom não despedi-la enquanto a criança passasse bem (URCULU: 1882,49). Os médicos analisavam que as amas se incubiam com má vontade do seu ofício, devido à tirania do senhor que as obrigava a esquecer e abandonar seu filho legítimo, para cuidar daquele que provavelmente continuaria sua opressão no futuro. As amas eram percebidas como imorais, licenciosas, sem decoro e brio. Nos relatos médicos, observava-se a resistência e a vingança das negras a esta situação: muitas castigavam as crianças com beliscões, palmadas ou, às vezes, lhes negavam o leite, deixando-os com fome. Muitos carinhos eram fingidos pelas escravas, com medo de castigos ou pela esperança de, assim procedendo, obterem a alforria. Outras, segundo Urculu, demonstravam orgulho de ser mãe de leite do filho de brancos, numa "espécie de vingança inconsciente que a escrava exerce sobre o livre" (URCULU: 1882,52-53). Apesar disso, a vigilância sobre a ama era necessária para evitarem-se tais inconvenientes e revoltas. Segundo alguns autores consultados, outras escravas se adaptavam à condição de amas, talvez para verem amenizada sua situação de opressão. Numa sociedade cuja ideologia dominante atribuía à maternidade o papel de função social básica da mulher, a escrava transformada em ama-de-leite conhecia, na negação de sua maternidade, a negação de sua condição de mulher. Por paradoxal que pareça, foi sua fisiologia feminina — capacidade de lactação — que se contrapôs à realização de sua potencialidade materna. "Mãe preta": folclore dos brancos, miséria das negras (MAGALHÃES & GIACOMINI: 1983,81-82). Outrossim, passo a passo com esse lado bondoso, mistificado da mãe negra 43 da criança branca, florescia todo um discurso onde os escravos seriam devassos e corruptores da família branca. Este ponto será melhor aprofundado no item em que se analisa o discurso médico sobre a amamentação. Não se tem, no Brasil, estatísticas sobre o percentual de crianças amamentadas por amas-de-leite. Pela quantidade de anúncios em jornais e pela presença sempre constante do tema no discurso médico, deduz-se que tal prática devia ser bem disseminada. Em Paris, de 1885 a 1910, a percentagem de crianças amamentadas por amasde-leite foi de 32,7%, isto é, quase um terço de todos os bebês (VILLA: 1985,7). É de se supor que, no Brasil, esta cifra tenha sido menor, pois aqui não se mandavam as crianças para as casas das amas, pela inexistência, entre nós, de um campesinato, pois o Brasil já nasceu sob a égide do capitalismo mercantil. Freyre, referindo-se ao Nordeste colonial afirmou que o leite era mamado em peito de negra às vezes até depois da idade da mama (FREYRE: 1978,374). A mãe branca recusa o seio A escrava era, efetivamente, um elemento nutridor incorporado à paisagem doméstica. Sem a sua presença ficariam abalados os costumes de amamentação do branco pela negra, da ama em substituição à mãe. A mulher imperial das camadas dominantes do Rio de Janeiro, na tentativa de equiparar-se às suas rivais francesas e européias, ancorou-se na exploração da mulher negra, sobrando-lhe tempo mais livre, talvez para a administração doméstica, para o ócio ou para a vida mundana e as festas da corte. De qualquer forma, recusando-se a amamentar o seu filho, a mulher branca revelava, nesta atitude, uma desconsideração da infância, certo descaso da mãe em relação a seu filho. Assim, se uma das mais importantes causas da mortalidade infantil das crianças brancas devia-se, segundo os médicos, ao costume de serem entregues a amas-de-leite escravas, a mãe seria, com a sua negligência, retratada na recusa do seio ao fruto de suas entranhas, no mínimo cúmplice, se não culpada da morte do seu próprio filho, segundo o discurso médico à época. Tentaremos oferecer algumas possíveis explicações para o comportamento de desmame freqüente no Brasil do século passado, principalmente entre as mulheres da classe dominante. Quais seriam as causas da recusa ao aleitamento? Para muitos médicos a causa da recusa ao aleitamento estaria em depravações e vícios morais. Para outros, seria apenas uma imitação de costumes europeus. Badinter nos coloca, no seu livro, algumas hipóteses para reflexão. Para ela, o 44 filho poderia constituir uma dificuldade para a mulher trabalhar e viver, sendo mais barato contratar-se uma ama. No caso das esposas de comerciantes e artesãos, a produção familiar tornaria necessário o trabalho feminino. Os valores culturais seriam determinantes, e o comportamento traduzia a indiferença social em relação à criança, pois a "moda" não era a maternidade. O amor materno não tinha valor social e moral. A ternura era ridícula e o abandono poderia não trazer culpa nem ameaça para a mãe. Levanta ainda a hipótese de que na classe dominante poderiam estar influindo os desejos e ambições de liberdade da mulher. Segundo ela, as mulheres preciosas, que preferiam os bailes e divertimentos a amamentação dos filhos, procuravam um novo espaço social de liberdade e reconhecimento. Segundo esta autora, algumas mães não queriam sacrificar seu lugar social para criar filhos. Consideravam o aleitamento fisicamente mau para a mãe, podendo prejudicar sua estética e beleza física. Além disso, o aleitamento era percebido como causa de enfraquecimento da mãe, provocando a fraqueza de sua constituição. A amamentação não era considerada uma tarefa nobre para uma dama. A não amamentação poderia não ser censurada com tanto empenho pela sociedade e as mulheres, à época, talvez discorressem mais livremente, com desculpas várias e praticamente sem "censura social ou internalizada" sobre as causas do desmame. Como para as mulheres da aristocracia e da corte portuguesa que viveram no Brasil no começo do século a amamentação não era uma atitude elegante e atrapalhava sua vida social (festas, bailes, espetáculos), as mulheres da classe subalterna poderiam copiar esse valor para se distinguir, imitando seus costumes, já que não podiam ter vida mundana. Gilberto Freyre considera um "absurdo atribuir-se à moda a aparente falta de ternura materna da parte das grandes senhoras". Segundo ele, "o que houve, entre nós, foi impossibilidade física das mães de atenderem a esse primeiro dever da maternidade. Já vimos que se casavam todas antes do tempo; algumas fisicamente incapacitadas de serem mães em toda a plenitude. Casadas, sucediam-se nelas os partos. Um filho atrás do outro. . . todos deixando as mães uns mulambos de gente . . . Pois essa multiplicação de gente se fazia às custas do sacrifício das mulheres, verdadeiras mártires em que o esforço de gerar, consumindo primeiro a mocidade, logo consumia a vida" (FREYRE: 1978,360). Assim, atribui a motivos físicos, a gravidez na adolescência, a falta de amamentação da mãe branca. No que ele concorda com Imbert que, em seu Guia Medica, afirma: as mães ainda muito jovens não podem "suportar as fadigas de uma amamentação prolongada sem grave detrimento de sua saúde bem como dos filhos" (apud FREYRE: 1978, 361). A recusa social seria, então, nada mais que incapacidade física de amamentar pela baixa idade ou pelo desgaste dos 45 corpos devido aos partos próximos e repetidos. Tal hipótese carece de confirmação prática, pois as mães jovens podem amamentar tão bem quanto as demais. Esta poderia ser uma explicação socialmente aceita para a recusa da amamentação que as mulheres davam no período colonial. Achamos que a explicação do desgaste reprodutivo não se mostra convincente pois, se assim o fosse, tanto as negras quanto as brancas o sofreriam, e ainda mais as negras pela opressão; além do mais, ambas não praticavam a anticoncepção. A não ser que se acredite, como Imbert, que o clima quente proporcionava às negras um poder de amamentação que esta zona recusa às mulheres brancas. Segundo o discurso médico atual, os motivos que entravam a produção da prolactina são raramente físicos e predominantemente emocionais e sociais. O que é comum, na história das idéias sobre o aleitamento, é que o discurso atribua a recusa a causas físicas, quando esta é condicionada por concepções culturais e sociais. Assim, se a sociedade não permite crítica à figura da mãe, ao instinto maternal sacralizado como atributo inerente à raça humana, o desleixo pode não aparecer no discurso como motivo, mas como conseqüência social de um impedimento físico. Mas também não se pode culpar as mães, responsabilizá-las por atitudes socialmente aceitas e constituídas. Nem sempre se pode atribuir consciência aos sujeitos históricos. Há que se examinar outras hipóteses para esta recusa. Costa observa que talvez circulasse no Brasil a idéia de que as relações sexuais "corrompiam" o leite. "O recurso às amas-de-leite escravas, neste caso, teria significado a tentativa de proteger a vida dos filhos sem sacrificar a vida sexual do casal". Segundo este autor, "o mais provável, porém, é que as mães ignorassem que a amamentação materna fosse vital à sobrevivência dos filhos. E complementa sua idéia afirmando que foi só a partir do momento em que a vida da criança de elite passou a ter importância econômico-política, que lhe foi dada no séc. XIX, que o aleitamento materno veio a ter essa conotação, ganhando foros de problema nacional" (COSTA: 1983,256). No entanto, como vimos em itens anteriores, a preocupação com a infância e o aleitamento precedeu, em algumas décadas, o nascimento do discurso demográfico. Perguntamos: como as mães poderiam ignorar que a amamentação estivesse ligada à mortandade das crianças? Não seriam a recusa ao aleitamento e o abandono da infância formas funcionais de infanticídio àquela época, permitidos e não censurados pela sociedade? 46 2. O NASCIMENTO DA POLÍCIA MÉDICA, HIGIENE E PUERICULTURA COMO INSTRUMENTOS DE REGULAÇÃO DO CORPO — MEDICALIZAÇÃO E APROPRIAÇÃO MÉDICA DA INFÂNCIA: "No Brasil colonial os doentes se tratavam com curandeiros, cirurgiões práticos, pagés, ou, mais freqüentemente, recorriam a medicações caseiras e deixavam que a doença seguisse o seu curso" (NOVAES: 1979,34). Os cuidados das crianças e das mulheres ficavam, geralmente, a cargo da família e das parteiras tradicionais ou comadres. Com a maior complexidade social surgiram grupos especiais para assumir a tarefa dos cuidados com o corpo infantil. "Até a metade do século XVIII a medicina não tinha interesse nas crianças e nas mulheres. Simples máquinas de reprodução estas últimas tinham sua própria medicina que era desprezada pela faculdade e cuja lembrança foi guardada pela tradição através da expressão 'remédio de comadre'. O parto, as doenças das parturientes, as doenças infantis eram coisas de comadres, corporação assimilável às domésticas e às nutrizes que compartilhavam seu saber e o colocavam em prática" (DONZELOT: 1986,24). Através desta citação, percebe-se que mulheres especializadas naturalmente pela prática surgiram como detentoras de um saber sobre o corpo infantil. A especialização deste saber engendrou a formação de instrumentos ou aparelhos culturais de regulação do corpo. As concepções e práticas mágicas predominavam. A medicina se confundia nessa mescla de grupos possuidores do saber sobre o somático. Havia uma delimitação do campo de atuação profissional por grupos de sexo e idade, o que proporcionava um equilíbrio de atribuições e abrangência entre os diversos aparelhos. Contudo, como diz muito bem Gilberto Freyre, "os médicos e curandeiros nunca estiveram muito distanciados uns dos outros, antes da segunda metade do século XIX... As comadres, além de partejarem, curavam doenças ginecológicas, por meio de bruxedos, rezas, benzeduras". As receitas dos médicos pouco se distanciavam das dos curandeiros africanos ou caboclos. "Uma medicina que pela voz de seus doutores mais ortodoxos receita aos doentes tamanhas imundícies dificilmente pode firmar pretensões de superior à arte de curar dos africanos e ameríndios. Porque a verdade é que destes tão desdenhados curandeiros absorveu a mal-agradecida uma série de conhecimentos e processos valiosíssimos: o quinino, a cocaína, a ipecacuanha. No Brasil colonial parece-nos justo concluir terem médicos, comadres, curandeiros e escravos sangradores contribuído quase por igual para a grande mortalidade, principalmente infantil e de mães, que por 47 épocas sucessivas reduziu quase de 50% a produção humana nas casas-grandes e nas senzalas". Além da alta mortalidade no Nordeste colonial, a mortalidade infantil também foi grande entre as populações indígenas do século XVI, pelos contatos com os brancos, pelos quais adquiriram muitas doenças (FREYRE: 1978,362-364). Os relatos e estudos costumam "esquecer" as tradições herdadas dos povos indígenas e africanos. Para Freyre, a higiene infantil européia foi se acomodando às outras, aos poucos, à custa de muitos sacrifícios de vida (FREYRE: 1978,365). É inegável que a maior liberdade da criança dos panos grossos e dos agasalhos pesados era superior no clima tropical e este traço a higiene européia tardou em aprender e adotar e quando o fez, camuflou as suas origens. No Brasil, em fins do séc. XVIII, "o número de médicos era pequeno, dominando na medicina a concepção da doença em função de miasmas: as medidas terapêuticas previstas diziam respeito ao uso de vesicatórios, suadores, sangria, purgas e ventosas..." (LOYOLA: 1983,40). O médico atendia basicamente às famílias da elite. Mais tarde, em 1832, ocorreu a criação de 2 escolas de medicina, no Rio e na Bahia; os médicos, a partir daí, passaram a ser em maior número. Este panorama se modificou com o advento da revolução pasteuriana e com o nascimento da clínica, que se autoatribuiu o adjetivo de "científica". A sociedade passou a viver a ilusão positiva da desvinculação entre os fatos e os valores sobre os fatos; porém, essa representação de ciência predominou e a sua aura de autoridade e saber lhe conferiu, paulatinamente, o monopólio do discurso e da intervenção sobre o corpo e a doença. A medicina estendeu a sua área de abrangência também sobre a mulher e a criança e se difundiu das classes dominantes às subalternas. O dispositivo médico se institucionalizou e as demais concepções e práticas não oficiais passaram a ser combatidas e percebidas como clandestinas e ilegais. Para Rago, as condenações médicas a práticas populares podem nos interessar, por revelarem algumas das práticas populares da época (RAGO: 1985,128). A medicina oficial aparecendo como detentora de um saber sobre o objetoinfância, agora redefinido e valorizado pela sociedade, penetrou nas casas através dos higienistas e estabeleceu novas regras e modelos de comportamentos sociais adequados. A medicina surgiu como um elemento de controle sobre o corpo, disciplinando-o, higienizando-o para o novo espaço histórico engendrado por novas formas de produção social. As formas culturais anteriores a essa "revolução de pensamento" passaram a ser simbolizadas como "primitivas", "irracionais" e "pré-lógicas". Assistiu-se à emergência da "civilização", do "racionalismo" e da "lógica". Os antigos modelos de pensar, agir e sentir 48 passaram a ser percebidos como obsoletos e foram recalcados para espaços de inadequação. Apareceram novas modalidades de viver e reagir, retratadas como superiores. As aspirações humanas de liberdade, felicidade e amor foram convertidas para essas formas redefinidas, que se tornaram desejadas pelas pessoas, com promessas de progresso, alegria e bem-estar. Para que a medicina pudesse conseguir o seu intento, "a aliança privilegiada entre o médico e a mãe terá por função reproduzir a distância, de origem hospitalar, entre o homem de saber e o nível de execução dos preceitos, atribuído à mulher... O médico, graças à mãe, derrota a hegemonia tenaz da medicina popular das comadres e, em compensação, concede à mulher burguesa, através da importância maior das funções maternas, um novo poder na esfera doméstica", abalando a autoridade paterna (DONZELOT: 1986,23-25). O Estado brasileiro sempre encontrou na família um dos mais fortes obstáculos à sua consolidação. Por exemplo, a solução para os problemas de saneamento e doenças provocadas pela urbanização do Rio de Janeiro, após a chegada da família real, esbarrou nos hábitos tradicionais e familiares que resistiam à mudança. A reconversão das famílias ao Estado pela higiene tornou-se uma tarefa urgente dos médicos (COSTA: 1983,30-31). O século XIX assistiu ao nascimento da puericultura. A sua difusão "não se deu de forma espontânea nem por acaso: foi o resultado de um projeto mais amplo, mais ambicioso: regular todos os atos da vida, inclusive os mais íntimos e os mais privados, os que se realizam no seio do lar" (BOLTANSKI: 1984,15). Até 1890, a puericultura residia em um estado pré-científico do saber. As regras, os exemplos, as explicações se sucediam uma a uma, e não havia uma teoria de conjunto. Os médicos ofereciam conselhos baseados na tradição. A linguagem que empregavam era metafórica, cheia de imagens. Havia várias soluções possíveis. Para a puericultura, hábitos tradicionais tinham que ser desenraizados. Os novos modelos lograram um relativo êxito e muitos desses valores "burgueses" estão hoje introjetados nos cidadãos. As pessoas passaram a desejar esses modelos que, ao invés de serem transmitidos pela força, eram difundidos culturalmente, criando desejos e estimulando o consumo daquelas novas idéias e práticas. Mas "as normas elaboradas pela puericultura só podem ser incorporadas pelas classes inferiores após uma série de reinterpretações que as tornam mais próximas às suas condições de vida" (NOVAES: 1979, 11-12). Muitas regras de puericultura, ainda que invocassem saberes "racionais" e "científicos", estavam tão revestidas de caráter arbitrário como os outros conhecimentos que pretendiam combater. Isso pode ser exemplificado pela regularidade dos horários de 49 amamentação, que talvez visasse o uso racional do tempo e tivesse intenção moral. O grande tema da puericultura desta época era a alimentação em geral e, particularmente, o aleitamento materno e artificial. O aprofundamento deste tema será realizado no item discurso médico sobre o aleitamento. Não se pode afirmar que os atores sociais desse processo planejassem os movimentos de pensamento e suas reflexões na prática concreta. Segundo Canguilhem, "a consciência das conseqüências possíveis deste saber não pode estar nele contida, já que elas são socialmente determinadas" (apud NOVAES: 1979, 14). Só a história poderá determinar o que será difundido das classes formadoras de opinião para as classes populares. "Não há uma relação direta, constante, ao longo da história, entre um conhecimento e sua prática (ou seja, a sua realização social), ou entre o conhecimento médico, como um todo e o tipo de prática que lhe é contemporâneo" (NOVAES: 1979,14). No restante deste capítulo, estudaremos o discurso médico sobre a infância e o aleitamento e sua articulação com a realidade social. A puericultura chegou ao Brasil em nível de idéias, encontradas em diversas teses, principalmente da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, ainda na segunda metade do século XIX. Nas primeiras teses deste século, a preocupação era, principalmente, com a higiene pública. Vamos percebendo, no desenrolar do tempo, o surgimento da preocupação com a infância nas obras médicas, apesar do descaso com que a sociedade permanecia tratando as crianças. 3. ANÁLISE DO DISCURSO MÉDICO SOBRE O ALEITAMENTO: A tese pioneira Em 1838, Agostinho José Ferreira Bretas escreveu a primeira tese médica sobre o aleitamento materno no Brasil, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, com o título: "A utilidade do alleitamento maternal e os inconvenientes que resultão do despreso deste dever". A partir desta, várias outras teses foram publicadas sobre o assunto. Descrever-se-á, com pormenores, a tese de Bretas por se tratar de um documento histórico encontrado em poucas bibliotecas e por ser o primeiro registro escrito mais sistematizado sobre a questão no Brasil. Bretas afirma que, em tempos antigos, "o aleitamento dos filhos era uma obrigação natural, um dever sagrado, a que todas as mães se prestavam gostosas. As 50 fadigas, os desassossegos inerentes à maternidade, longe de as desgostarem de seus deveres, os tornavam mais deliciosos" (BRETAS: 1838,5). As mulheres teriam sido desnaturalizadas pela força do homem e influência do hábito. Elogia os povos de costumes ainda puros, onde as mães amamentavam os seus filhos. E pergunta: por que as mães confiam o aleitamento de seus filhos a escravas, "quando as próprias feras nos ensinam com seus exemplos a não violarmos as leis da natureza?!" (BRETAS: 1838,6). Por que há uma insuficiência do instinto maternal nas classes abastadas? E ameaça com o aforisma: "não é impunemente que se violam as leis naturais" (BRETAS: 1838,6). Prossegue confirmando não existir no Brasil o costume de se degradarem os filhos do teto paternal para se confiarem a casa e ama estranhas. Porém, segundo o autor, o aleitamento realizado a domicílio, é mais universal que na Europa, pois lá "se limita às classes abastadas, aqui se estende a pessoas de menos que medíocre fortuna" (BRETAS: 1838,7). E coloca duas razões para explicar este hábito: se "alguma falsa idéia de honra, da vaidade de parecer rico, ou se da facilidade de encontrar amas, produzida pela existência de escravas" (BRETAS: 1838,7). Em sua opinião, as mulheres que se dispensam deste dever natural sofrem de uma série de inconvenientes físicos, como o seguinte: "o estímulo simpático, que, durante a gestação, se estabelece entre o útero, e os peitos, determinando nestes o desenvolvimento das glândulas mamárias, faz com que os líquidos, que, durante a prenhez, se dirigiam ao útero, se encaminhem para os seios, a fim de que a secreção do leite possa ter lugar" (BRETAS: 1838,8); e prossegue: se a mulher não oferecer os peitos ao filho, os líquidos sobrecarregarão o organismo, produzindo a metrite, a peritonite, a flebite, o ingurgitamento, e o cancro do útero, as flores brancas etc. Esta era a teoria das metástases lácteas. Reafirma que o aleitamento não prejudica a beleza e que, ao contrário, a amamentação dá aos seios uma rigidez elástica, evitando a sua flacidez. A recusa ao aleitamento tem ainda, segundo ele, outro grave inconveniente: o afrouxamento dos laços familiares, o que causa a depravação. Cita Rousseau no Émile: "o atrativo da vida doméstica é o melhor contraveneno dos maus costumes" (BRETAS: 1838,11). O aleitamento é considerado imprescindível para que os homens se tornem bons pais e bons maridos. Diz que "a vantagem, que sobre os europeus temos de se não desterrarem do teto paternal os meninos, logo que nascem, ...são compensados pelas qualidades de suas amas, que são superiores às nossas" (BRETAS: 1838,10). Afirma que a mãe não deve partilhar os seus direitos de mãe com outra, pois corre o risco de sofrer ingratidão do seu 51 filho, que poderá amar a mãe adotiva mais que à mãe de fato. A seguir, cita uma passagem de um teatro romano, onde uma mulher, perguntada sobre se sua filha amamentaria o filho, exclama: "seria o mesmo que dar-lhe a morte, se depois das dores do parto, ela tivesse ainda de suportar as fadigas, e os aborrecimentos do aleitamento". Ao que retruca o personagem Favorino: "não é senão meia maternidade dar à luz a um ser inocente, e rejeitá-lo depois para longe de si." O artista prossegue, condenando as "mulheres execráveis, monstros horrendos, que, com receios de que a abundância de leite prejudicasse a beleza de seus peitos, lançarão mão de todos os meios para esgotar, e fazer secar até a última gota desta fonte sagrada..." e considera um atentado recorrer a certas drogas para provocar um aborto e pergunta se não é outro atentado, "bem que menor, quando ele tem adquirido sua perfeição, quando o tendes dado à luz, recusar-lhe com crueldade o alimento, que lhe é destinado..." Argumenta que os seios não servem somente de enfeite. (BRETAS: 1838,12-13). Recoloca, então uma teoria muito difundida à época: de que com o leite se transmite a pureza dos costumes e a força da constituição. Assim, uma criança amamentada por mercenária ou escrava tornar-se-ia, no imaginário social, degenerada, bebendo-lhe os vícios do caráter e os germens das suas enfermidades. Considera que, se a mãe não amamenta, rompe-se a afeição e se apaga a chama sagrada do amor maternal. Indica as qualidades que, segundo o pensamento médico da época, se requeriam em uma mulher para que ela pudesse exercer as árduas funções de ama: em relação às condições físicas, "a ama deverá ter 20 a 30 anos de idade; parida o mais recentemente possível; a glândula mamária deverá ser convenientemente desenvolvida; mas deve-se ter em vista que a quantidade de leite segregado nem sempre se achando na razão direta do volume dos seios; ...o mamelão deverá ser desenvolvido, quanto baste, para que possa ser apanhado pela boca do menino, e nela conservado; o leite deverá ser de uma cor um pouco azulada, sabor ligeiramente açucarado"; a ama "deverá ter bons dentes, boca fresca, gengivas de cor rosada natural, sem escoriações, bom hálito; temperamento antes sangüíneo que linfático; constituição forte, e sadia. Pelo que toca às qualidades morais, deverá ser de um caráter doce, habitualmente alegre, carinhosa, impassível à toda prova, de maneira a pô-la à salvo de agitações, que possam excitar paixões desordenadas" (BRETAS: 1838,16-17). Argumenta que é dificílimo, senão impossível, encontrar-se uma ama que reúna todas estas qualidades. Recomenda o exame médico das amas, principalmente para o diagnóstico da sífilis. Enfim, condena a ama negra: "as escravas africanas, que entre nós existem, e 52 a quem pela maior parte se confia o aleitamento dos meninos, são muitas vezes tiradas dentre povos de costumes bárbaros, supersticiosos, estúpidos, de pouco espírito, vingativos, etc, etc.; e pelo que diz respeito ao físico, alguns destes muitas vezes têm suas constituições profundamente alteradas, já por causa da natureza da sua alimentação, já por causa de seus hábitos de vida" (BRETAS: 1838,18). Reprova as escravas africanas, considerando que não há ninguém mais impróprio para amamentar crianças. Narra o hábito de enfaixamento da criança, feito pelas escravas que, constrangendo-lhe os membros, impedem a livre circulação do sangue, produzindo hérnias, congestões de cérebro, ruptura de vasos e um gênio facilmente irritável. Censura os hábitos da escrava, que considerava estúpida, de introduzir "grossos bolos alimentares no débil estômago da criança, ou levando-lhe o peito à boca" para aplacar-lhe o choro que nem sempre significa fome. (BRETAS: 1838,20). As negras, na sua opinião, são preguiçosas, indolentes e, em alguns casos, malignas. E conta casos de asfixia de bebês que dormiram com os seios da ama mergulhados em sua boca, de unção do seio com pimenta antes da amamentação do filho do senhor e de embriaguez da criança, com cachaça, "a fim de se entregar ao deboche" (BRETAS: 1838,22). Achava um perigo moral a criação das crianças pelas amas: "os meninos não reconhecendo por modelo de suas ações, senão as daquelas pessoas, que deles cuidam, desde de seus mais tenros anos, e que com eles mais em contato vivem, torna-se evidente, qual a influência, que sobre o seu moral deverá exercer o caráter da ama" (BRETAS: 1838,23). Segundo o autor, as amas plantam no coração puro da criança os germens de todos os vícios, contando ridículas histórias de lobisomens, bruxas, mulas-sem-cabeça, almas perdidas etc. Acha que tudo isso conduz à devassidão dos costumes. Por outro lado, julga que o senhor fica com as mãos atadas, pois se infligir penas às escravas por causa de seus delitos poderá alterar as qualidades do alimento do menino. Além disso, pensa que o menino, já afeito à escrava e ouvindo-lhe os reclamos, não poderá deixar de indignar-se contra seus próprios pais. Afirma que "quando porém as riquezas fizeram aparecer o luxo, e este não advertindo mais aos homens seus deveres naturais, foi então que se viu a educação dos meninos abandonada às escravas" (BRETAS: 1838,26). Justifica o não aleitamento das senhoras da alta sociedade, afirmando que a sua constituição, alterada pelos bailes noturnos, as tornam débeis, não podendo oferecer à criança um alimento restaurativo. Conclui recomendando às mães que amamentam: fazer exercícios, evitar tudo quanto possa excitar paixões (porquanto estas, em sua opinião, poderão alterar as 53 qualidades do leite, e mesmo chegar a suspendê-lo); fugir de espetáculos públicos como bailes; "...fugir de ler tragédias, comédias, ou quaisquer outros objetos que choquem fortemente a economia, e excitem afecções vivas. Não deverá logo depois dos prazeres conjugais oferecer os seios à criança; pois que todo o organismo tendo sofrido perturbação, o leite não oferecerá as qualidades convenientes" (BRETAS: 1838,28). Do aleitamento materno O aleitamento, comparado pelos médicos ao sacerdócio, é, segundo eles, um prazer divino, missão nobre e complemento da maternidade (VIANNA: 1869,31); na opinião dos mesmos, além de um dever trabalhoso, não deixa de ser, também, um manancial de delícias. Para Meirelles, "são as privações que o aleitamento lhes impõe, que fazem essas mulheres desnaturadas renunciar aos mais doces sentimentos da maternidade" (MEIRELLES: 1847,10). A amamentação, no pensamento dos higienistas, ao mesmo tempo que oferece prazer causa dor. Este tema do sofrimento ao qual se segue uma recompensa é encontrado com muita insistência e, provavelmente, tem uma origem religiosa. Assim, a mãe santa se doa ao filho tal como Cristo aos homens. Em troca, ela recebe, como prêmio pelo seu esforço e dedicação, o amor dos filhos e o reconhecimento da sociedade. A maternidade, sendo percebida como a vivência do mal e do bem; aquela que amamentar será considerada socialmente a mãe verdadeira. Do contrário, será censurada e estará passível de receber as penas pelo seu deslize social. As mães que não amamentam são, segundo os médicos, surdas à voz da natureza. A razão surge, no pensamento higienista, como causa do abuso da liberdade: "só a mulher, dotada de uma razão tão esclarecida, de tanta sensibilidade e ternura, é o único ser que abusa da sua liberdade" (MEIRELLES: 1847,12). No discurso médico, a mulher é mãe, pois a realização da mulher se dá pela vivência da maternidade, onde o aleitamento é condição sine qua non para uma boa maternidade. O desejo de não amamentar, fruto da razão, é censurado. Percebemos, aqui, as contradições do discurso higienista: ao mesmo tempo em que os médicos percebem o aleitamento como um fenômeno natural, portanto biológico, identificam na razão, apanágio social, o motivo de sua negação. Obviamente, onde há razão não pode haver instinto nem natureza. Outros distinguem nas mães duas espécies de amor: o amor de instinto, que nunca falta e por ele uma mãe ama a seu filho como a si própria; e o amor de razão, pelo qual uma mãe comprime suas próprias emoções para não despertar as de seu filho, a 54 vaidade não tem parte alguma neste sentimento (URCULU: 1882,41-42). Reconhecem que as mães amam mais os filhos que amamentam. Perguntamos: isso não seria porque o amor de razão é o único que existe e precisa de contato e afeição para se desenvolver? Os médicos imaginam existir uma relação entre o grau de civilização e a degradação social: "...quanto mais civilizado é um povo, quanto melhores meios de progresso, quanto mais culta e judiciosa é sua higiene maior número de mães recusa aleitar" (URCULU: 1882,37). Para Ferreira, "nas classes elevadas, nos grandes centros, a mulher começa a considerar a amamentação como um fardo, uma sujeição de que se deve desembaraçar" (FERREIRA: 1920). Segundo Meirelles, "com o leite se transmitem não só as moléstias, mas ainda o caráter e o moral das amas" (MEIRELLES: 1847,15). Este outro motivo é universal na percepção discursiva. Fornece o fundo "científico" que justificará uma série de punições, ameaças e conseqüências para aquelas mães que se recusarem a amamentar seus filhos. A primeira punição é biológica, fornecida pela teoria das metástases lácteas, descrita no item anterior. Na opinião dos médicos, as ameaças são inúmeras e se baseiam na advertência das conseqüências que poderão advir da não amamentação: o desprezo, a indiferença e o abandono do filho podem levar à sua morte; acham que a mãe tem a missão de conferir estabilidade à família e a recusa em amamentar é a primeira depravação moral, da qual, segundo Rousseau, nascem todos os outros vícios que conduzem à desagregação da família. (BRETAS: 1838,10). Interrogam: "quanto não sois responsáveis, ó mães, perante a natureza e a sociedade, vós que podeis transmitir com vosso leite nobres e excelentes virtudes e dar à sociedade homens fortes, capazes de suportar todos os trabalhos?!" Lembrai-vos que nosso futuro, costumes, paixões, gostos, prazeres e até nossa felicidade dependem de vós" (MEIRELLES: 1847,16). Os médicos achavam que com o leite se transmitem as virtudes; desse modo, se a criança fosse amamentada por amas escravas beberia todos os seus vícios e doenças; isso comprometeria o futuro da nação e da família. Outros médicos, porém, começavam a duvidar da veracidade deste discurso: "há uma idéia geralmente espalhada, e que nos vem desde a mais remota antigüidade, que a maior parte dos médicos tem acolhido sem exame. Atribuem ao leite uma influência notável sobre a constituição, e o caráter das crianças" (NEVES: 1874,25). A mãe é também convocada pelos higienistas a prodigalizar à criança uma vigilância contínua, em sacrifício dos seus momentos íntimos e do prazer conjugal. Deste discurso higienista, da responsabilidade materna sobre o futuro dos filhos, nasce a culpa da mulher por todos os insucessos familiares. Além disso, se o 55 aleitamento é um dever sagrado, a sua recusa constitui um pecado, também sujeito à punição dos céus, segundo a percepção higienista. As causas da negação do aleitamento, apesar deste abuso e desleixo estar presente "desde o primeiro até o último degrau da escala social!!..." (MEIRELLES: 1847,12); são visualizadas, pelos médicos, em transgressões morais: "...as mulheres enervadas pelo luxo e pela grandeza; e levadas pelo egoísmo e avidez dos falsos prazeres da sociedade, têm postergado e até sufocado em seu coração, quase completamente, os sentimentos do amor materno!" (MEIRELLES: 1847,11-12) Da culpa atribuída surge nas mulheres a mea-culpa internalizada. Da responsabilidade pelo futuro deriva a culpa pela morte do filho: "morra seu filho, embora; mas desfrute ela todos os prazeres" (MEIRELLES: 1847,12). A mãe que não vigia o filho, que não o amamenta, é considerada pelos higienistas culpada por tudo o que lhe vier a acontecer. A morte do filho é usada como chantagem para convencer as mães reticentes a amamentar seus filhos. Para o discurso médico, a falta de amamentação produz gerações fracas, doentias e disformes. O hábito de não amamentar tinha relação, algumas vezes, com a morte das crianças. Porém, traduzir tal morte como culpa das mães constitui-se numa representação de culpabilidade que a sociedade ou os médicos lhes atribuíam. Achamos que não se pode considerar na análise sociológica os sujeitos como tendo inteira responsabilidade nos processos sociais. Nem mesmo individualizando-se os atos e suas conseqüências como queria fazer crer o discurso médico, podemos afirmar que a culpa realmente pertencia às mães. Era, de fato, uma culpa socialmente imputada, tanto que não era passível de responsabilização criminal. Os sujeitos, embora sejam partícipes das relações sociais, têm maior ou menor consciência dos processos sociais nos quais estão inseridos. O discurso tinha a intenção de encerrar a mãe no interior do domicilio, limitando-a às tarefas domésticas e reprodutivas. E, para conseguir-se tal intento social, essas representações culturais poderiam ter um grande poder de persuasão, muitas vezes mais fortes que a barra dos tribunais e mais eficazes que a punição. Pretendia prevenir prejuízos morais, ao invés de puni-los apenas depois que aconteçam. Porém, tal intenção não obteve completo sucesso. Para os moralistas, poetas, naturalistas, filósofos e médicos, o aleitamento natural é o melhor modo de alimentação dos recém-nascidos, quando é possível. As principais razões que interditam a mulher de amamentar são, na opinião dos médicos da época, as diáteses escrofulosas, cancerosas e outras, a constituição física ou a conformação imperfeita das mamas e mamilos, a alienação mental e a epilepsia. Para Costa, os médicos forneciam diversas razões sociais para justificar a 56 necessidade do aleitamento materno, dentre as quais a de que "a mãe deveria compulsoriamente amamentar porque essa tarefa, além de proteger a vida dos filhos, regulava a vida da mulher... O primeiro objetivo disciplinar da amamentação materna era o uso higiênico do tempo livre da mulher na casa... A segunda causa da detenção doméstica da mulher através da amamentação estava ligada à concorrência com o homem... O terceiro motivo da ênfase posta na obrigação de aleitar prendia-se à coesão do núcleo familiar" (COSTA: 1983, 258-261). Para Coelho, devido à moda e ao egoísmo dos pais na classe rica e à ignorância, indiferença e miséria na classe pobre, as mães tendem a abandonar o salutar regime do aleitamento materno sob fúteis pretextos (COELHO: 1902,23). A tese de Zamith, de 1869, é cheia de descrições sobre os caracteres fisiológicos da lactação e de prescrições de regras de amamentação. Podemos considerá-la como um dos primeiros tratados sobre higiene do aleitamento. Nota-se a tremenda influência que o pensamento da medicina francesa exercia sobre os médicos da época. As teses são, muitas vezes, transcrições de livros franceses, adaptadas às condições vigentes no Brasil. Na tese de Zamith, embora o autor não recomende explicitamente, percebe-se uma preocupação com a fixação de horários de amamentação. A regularização de horários para amamentar e a suspensão recomendada da mamada noturna não serviam como meios para reduzir o possível fardo das mães? Segundo Neves, tudo isso, "...além de trazer muitas conveniências para a mãe, regulariza as refeições da criança" (NEVES: 1874,18). Outros médicos observam que a regularização de horários previne perturbações intestinais e é positiva para a educação da criança. Para alguns autores, a criança tem a marca do pecado original e, se a mãe amamenta sob livre demanda, ela se submete aos caprichos e vontades infantis. Isto pode corromper o espírito do lactente, já impuro. Novamente se percebe as imagens religiosas traduzidas "cientificamente". Além da regulamentação dos horários, novas regras surgiram, disciplinando o contato mãe/criança: os higienistas aconselhavam dar sempre os dois seios a cada mamada, de preferência em decúbito lateral para não obstruir as narinas do lactente. Condenavam o uso de chupetas. Mais tarde, aparece o processo de pesagem diferencial, que consistia em pesar a criança antes e depois de mamar; a diferença dos pesos representaria o peso do leite que a criança ingeriu. Este método francês, de Natalis Guillot, teve uma grande importância na pediatria, para verificar-se a suficiência do leite. 57 Há, no discurso médico, uma preocupação com o sono da mãe que, sendo reparador e tranqüilo, prevenirá afecções morais. Um dos autores aconselha o leite de vaca quando a criança não tiver aumentado suficientemente de peso ou para permitir à mãe um sono sem perturbações. Estabelece regras para a alimentação da mãe, aconselha uma calma moral para prevenir as perturbações do leite e relações sexuais menos freqüentes durante o aleitamento. Sobre as relações sexuais, "devem ser evitadas, sempre que for possível, para não dar lugar à concepção" (REIS JÚNIOR: 1874,11). Provavelmente, este interdito não tinha, como nas sociedades primitivas, finalidade anticoncepcional latente; os médicos estavam apenas preocupados com a redução do volume do leite que sobrevém com a gravidez. Há recomendações para iniciar o aleitamento de 2 a 6 horas após o parto e condenações à administração de água com açúcar e purgativo neste período; o colostro é considerado, por Vianna, o alimento ideal nesta fase, além de ser laxativo e corresponder à fraqueza nutritiva do recém-nascido (VIANNA: 1869,21-24). Sobre a alimentação da mãe, os higienistas recomendam: "a mãe deve abster-se de toda a alimentação flatulenta, salgada, apimentada, adubada e ácida, assim como bebidas alcoólicas e excitantes, visto como podem não só produzir nas crianças eólicas, vômitos e diarréias, mas também ocasionar convulsões perigosas e mesmo a morte" (NEVES: 1874,19). Aconselham que a mãe deve "respirar um ar puro, fazer exercícios moderados e não se conservar em repouso absoluto, como aconselhavam os parteiros antigos", numa clara condenação ao "resguardo" (MOURA: 1874,9). Zamith, citando Caseaux, médico francês, observa que há um grande número de mulheres que não pode por si só levar adiante o aleitamento de seu filho, devido à insuficiência qualitativa e quantitativa do leite. Reconhece que "as indicações que se apresentam quando o leite da mãe é insuficiente, são conforme um grande número de condições, estranhas à questão médica puramente..." (apud ZAMITH :1869,22). Depois, a agalactia surge como contra-indicação "científica" do aleitamento (REIS JÚNIOR: 1874, 17). Os médicos reconhecem que "certas mulheres não podem aleitar porque sua secreção láctea é insuficiente ou nula e seus recursos não lhes permitem tomar uma nutriz... Os casos de agalactia (ausência de secreção láctea) são excessivamente raros, agalactia absoluta não existe" (MACHADO: 1911,88). Distribuições de leite esterilizado eram feitas às mães que não podiam nutrir ou que não tinham leite suficiente. Na opinião de Zamith, "algumas senhoras são tão pouco escrupulosas, que entregam seus filhos às amas e se retiram para um cômodo separado da casa e só tornam a 58 vê-los à noite. Mães que não gostam de ouvir o choro de seus filhos, porque querem descansar das fadigas dos bailes e dos teatros" (ZAMITH: 1869,31). Ao lado do incentivo e da condenação moral ao aleitamento mercenário, os médicos relatam as dificuldades que acontecem no desempenho desta "missão". Meirelles não recomenda o aleitamento naquelas "cuja constituição e mau estado de saúde não lhes permitem aleitar seus filhos; estas são dignas de desculpa e até de elogio" (MEIRELLES: 1847,19). Para este autor, as mulheres de constituição frágil são muito encontradas nas grandes cidades e nas classes ricas, além das primíparas e jovens. Contra-indica o aleitamento para as mulheres que desenvolvem "trabalhos sedentários, que exigem grande aplicação e pouco exercício", considerando esta uma causa "física" (MEIRELLES: 1847,24); e o desaconselha nas "causas morais, tais como os arrebatamentos violentos da alma, os acessos de cólera, os pensamentos tristes, os cuidados, as aflições, o ódio e o amor excessivo, que assaltando freqüentemente o coração da mulher, alteram as qualidades do leite" (MEIRELLES: 1847, 24). Também reconhece que as famílias ricas costumam inventar causas para justificar a necessidade do aleitamento mercenário (MOURA: 1874,16). Outro autor julga que as operárias, que passam o dia inteiro nas fábricas onde ganham os meios de subsistência, não podem interromper os trabalhos para aleitarem os filhos (BORBA JÚNIOR: 1913,40). Alguns médicos recomendam o leite de vaca como complemento para os casos de hipogalactia, e como substituto para os filhos de operárias (FERREIRA: 1920). Moura considera que muitos motivos de renegação do amor materno são inconfessáveis, frívolos e indecentes (MOURA: 1874, 25-26). Alguns médicos julgavam que as regras alteravam a composição do leite e poderiam provocar cólicas, diarréia e anemia; por isso, achavam que o aleitamento deveria ser suspenso neste período. Outros não viam nenhum inconveniente na sua continuação, a não ser que se notasse prejuízos na criança. É muito comum a recomendação médica de que as mulheres que amamentam devam fugir das "impressões morais vivas" (VIANNA: 1869,25). O conhecimento deste fato, de que as emoções alteram o leite, tem seu correspondente hoje no discurso médico pró-aleitamento, que recomenda o relaxamento psicológico como necessário para a liberação do hormônio ocitocina pela neurohipófise. Apesar de todo o incentivo que os médicos davam ao aleitamento e das condenações que faziam às mulheres que não amamentavam, estão também presentes no discurso, justificativas e condescendências para as que não amamentam. O médico deverá aconselhar a mulher "para aleitar o seu filho, aconselhá-la somente, não insistir, e nem 59 contrariá-la, pois nós sabemos que o aleitamento feito contra a vontade é sempre prejudicial" (NEVES: 1874,12). O desmame será permitido "cientificamente" quando houver um motivo justo, higienicamente regulamentado pelo exame de amas (MOURA, 1874,25). Em todas estas citações, percebe-se, na realidade, a existência de dois discursos médicos: um moral e outro higiênico, que se interpenetram na construção deste saber em movimento. O estilo das obras é, por vezes, literário, assumindo conotações românticas e sentimentais. As teses eram muito mais relatos valorativos das condições da época e do pensamento higienista do que trabalhos propriamente científicos. Em relação ao aleitamento, entendemos que a sociedade estabelece uma regra, uma norma passível de sanções. Essa norma não será obedecida por todos nem seria possível aplicar punições a todas as pessoas que a infringissem. Portanto, há um caminho permitido de regras e motivos para as que não se enquadrarem nessa norma. Existem, então, a norma e a antinomia, o moral e o imoral para prevenir o surgimento do anormal ou do amoral. A norma serve para mostrar o modelo do desejável e a antinorma é o seu molde negativo. As exceções servem para reforçar a regra. A ausência de norma ou o novo indesejável têm de ser prevenidos pela sociedade, para diminuir as possibilidades de conflitos de valores muito antagônicos e inconciliáveis. Assim agem os mecanismos de controle social. Em nosso ponto de vista, se amamentar for a regra em uma determinada sociedade, numa dada época, não amamentar dentro de um modelo pré-estabelecido é a antiregra, cuja existência e condenação servem de reforço à regra e previnem o aparecimento de discursos e práticas socialmente inadequadas ao momento histórico. Consideramos que os indivíduos participantes de sua cultura, conhecem o desejado e o indesejado. As infrações são permitidas dentro de certas normas, para adequar os desejos individuais ao coletivo social. Quando uma conduta não desejada que pode trazer alguma ameaça à sociedade — como o abandono da criança ou a recusa ao aleitamento considerada como causa da alta mortalidade infantil — se torna muito difundida, a sociedade procura novos motivos para tornar esse comportamento necessário novamente desejado, apesar de ser julgado inconveniente pelos seus membros. A sociedade não poderia puni-lo pois está muito disseminado. Assim, surgiu a construção cultural de um novo discurso de motivos elaborado pelos médicos, filósofos, moralistas e administradores. Para contrabalançar o que talvez estivesse sendo vivido como um fardo se ofereceram novos estímulos socialmente desejados para estimular a amamentação. Cremos que, em parte, foi um processo como esse que ocorreu na modificação do discurso médico sobre o 60 aleitamento na segunda metade do século passado. Do aleitamento artificial Os médicos, tendo de lidar com a recusa social ou impossibilidade física do aleitamento, buscam leites substitutos ao da mãe. A necessidade de outros alimentos era socialmente sentida antes da descoberta dos processos de pasteurização do leite de vaca e da industrialização do leite em pó. Foi justamente esta necessidade que constituiu, talvez, a principal motivação para que o desenvolvimento de novas tecnologias pudesse satisfazê-la ou aliviá-la de algum modo. Há relatos arqueológicos sobre os primórdios da alimentação com mamadeira, feita através de vasilhas de barro, encontradas em túmulos de crianças romanas que morreram na época da lactação. Alguns destes recipientes dos séculos I a V A.C. foram datados com a ajuda de moedas encontradas junto a estes. Wickes narra que em tribos primitivas era comum a prática de oferecer açúcar ao recém-nascido na primeira semana de vida, pois havia interdito cultural em relação ao colostro (WICKES: 1853,151-155). Outras notas históricas em relação à alimentação artificial podem ser encontradas nos trabalhos de Duncum(1947) e Tubbs(1947). Neste último trabalho, o autor mostra desenhos de recipientes usados na alimentação das crianças, os precursores das modernas mamadeiras, demonstrando que, desde épocas remotas, a necessidade de alimentação artificial da criança já era sentida e desejada pela sociedade. Segundo um dos autores consultados, nas classes pobres o aleitamento artificial era muito utilizado, pois seus recursos pecuniários não permitiam a contratação de amas (CASTILHO: 1882, 19). Havia consenso entre os médicos que o leite que melhor substituía o de mulher era o da jumenta, pois tem uma composição mais aproximada. Porém, era difícil dispor-se deste leite, daí se utilizar mais comumente dos leites de vaca e de cabra. A tese de Vianna descreve, no seu primeiro capítulo, noções sobre o leite e nos permite avaliar o estágio a que chegaram os conhecimentos médicos referentes à composição química do leite da mulher comparado ao dos animais, bem como das variações na constituição do leite humano em condições fisiológicas e patológicas. Descreve, além disso, a evolução da mamadeira. As explicações hoje fornecidas pelas mulheres quando perguntadas sobre os motivos do desmame são encontradas nas teses do período. Assim, o leite poderia ser fraco 61 ou insuficiente e havia casos de "secreção leitosa que a princípio era abundante e rica, em pouco tempo principia a minguar, e mais tarde faltar, ou mesmo desaparecer inteira e completamente" (VIANNA: 1869,31). Tal fato é hoje verbalizado como "o leite secou". A propósito, Gussler & Briesemeister, comentam sobre a síndrome do leite insuficiente como um fenômeno biocultural ou transcultural (GUSSLER & BRIESEMEISTER: 1980). Não teria o discurso médico, originado da França, introduzido estas explicações "científicas" que, posteriormente, teriam se popularizado? A introdução de alimentos de desmame pode ser percebida na citação seguinte: "Ordinariamente as nossas mães (pelo menos nas províncias do Norte) recorrem a papas diferentes para suprir o aleitamento, em cuja confecção entram o leite de vaca e o polvilho, ou a aratura, ou a farinha de mandioca bem pulverizada" (VIANNA: 1869,32). Tal hábito, do "engrossado", provavelmente tem origem indígena, das papas de manipoy (mandioca), descritas por D'Abbeville. Os médicos higienistas condenam os mingaus e a unção do seio com pimentas ou outras substâncias amargas, para forçar o lactente ao desmame. A alimentação artificial só deverá ser empregada, segundo os médicos, em casos de extrema necessidade, na impossibilidade da natural ou quando não se dispuser de amas. Comentam a falsificação do leite nas cidades, problemas de conservação e adulteração, falta de higiene nas cocheiras, a tuberculose do gado e lamentam a destruição da vida causada, segundo eles, pela mamadeira. Os meios de falsificação mais usados consistiam na subtração da nata e adição de água e amido (VIANNA: 1869,26). Outra fraude era usada para conservação do leite por mais tempo, através do acréscimo de formol. Todos estes processos, além de adulterarem o leite, aumentavam o risco de introdução de germes durante a manipulação. Outro processo usado era a administração de cloreto de sódio à vaca para aumentar a produção de leite (BORBA JÚNIOR: 1913,17). Moura cita Jules Guerin que não considerava o aleitamento artificial como a causa da alta mortalidade mas sim as condições sociais nas quais este ocorre, como a péssima situação higiênica nas rodas, a alimentação prematura e a péssima qualidade do leite empregado. Assim, este autor achava que, ao invés de condenar, precipitadamente, o aleitamento artificial, "devemos antes melhorar as suas condições, lembrando-nos que em muitos casos será ele o único de que poderemos lançar mão" (apud MOURA: 1874,12-13). Alerta, ainda, para o problema da higiene das mamadeiras. Nota-se, nas obras do período, a preocupação com o aperfeiçoamento dos processos de conservação do leite. O aleitamento por animal era um hábito reservado para casos especiais, nos 62 quais a mãe não podia amamentar e não se conseguia uma ama. Para os médicos, a cabra era o animal indicado "porque a forma e o volume de suas tetas, que a criança pode facilmente tomar, a abundância e as qualidades de seu leite, a facilidade com que ele procura dar de mamar à criança, e a espécie de afeição que muitas vezes contrai este animal pela criança, e enfim a sua docilidade, explicam bastante a preferência que se lhe dá" (ZAMITH: 1869,20). Porém, aconselhavam a observação de alguns cuidados: preferir uma cabra nova, já domesticada e que tenha tido o filho há pouco tempo, que não tenha chifres e de cor branca; cuidar da higiene do animal, alimentá-lo adequadamente e não maltratá-lo por pancadas. Tampouco convém que esteja sempre preso para não aborrecê-lo, o que poderia alterar o leite. Acreditava-se que a cor da cabra influía na natureza do leite. A cabra era usada, ainda, para "aplicar medicamentos aos meninos, dando-os ao animal, e este transmitindo ao menino no seu leite" (VIANNA: 1869,33). Para um dos autores, "só será permitida esta prática quando a necessidade de amamentar por este modo aparecer depois dos seis meses ou mais de idade da criança" (NEVES: 1874,23). Acreditava-se que as crianças amamentadas com leite de cabra tornavam-se nervosas e arteiras. O aleitamento por animal era considerado raridade já em 1874. Segundo as recomendações médicas, o leite de vaca deveria ser diluído com água a 2/3 no primeiro mês, à metade no segundo, ao quarto nos dois meses seguintes e depois deveria ser oferecido puro. Os médicos aconselham o preparo recente do leite de vaca, poucos minutos antes de sua administração, para evitar-se a fermentação. Indicavam adoçá-lo e dá-lo morno e, somente após o quarto ou quinto mês é que se deveria, em sua opinião, oferecer sopas de féculas, papas e caldos de miolo de pão. Os higienistas consideravam que o aleitamento deveria ir até 12, 16 ou 18 meses e relacionavam o desmame com o processo de erupção dos dentes, principalmente dos caninos. Segundo eles, os alimentos sólidos só deveriam ser administrados quando já existissem os primeiros molares. O aleitamento misto é visto como um recurso que satisfaz, ao mesmo tempo, os desejos da mãe e as necessidades do filho. A percepção de que o trabalho materno dificulta a amamentação é encontrada: "o aleitamento misto é muito usado na classe pobre a qual é obrigada a empregá-lo, a fim de que as mães, durante o longo período do aleitamento possam entregar-se ao trabalho" (MOURA: 1874,16). Para outros, permite, ainda, que a mulher se entregue aos deveres domésticos (REIS JÚNIOR: 1874,23). O uso de mamadeiras é relatado como sendo facilitador para a criança tomar o peito (REIS JÚNIOR: 1874,21). Hoje, ao contrário, o discurso médico considera que a 63 sucção na mamadeira, ocorrendo de forma diferente, e exigindo menos esforço da criança, contribui para o desmame. Ambos os argumentos são, na sua devida época, considerados como "científicos". Como sabemos, os médicos geralmente requisitam o argumento da autoridade, para fazer crer uma representação cultural como uma "verdade absoluta". Ou seja, muitas vezes, ao invés de ciência, se produz e transmite mitos. Mitos algo aparentados com a ideologia 6. A partir do fim do século passado, perde-se um pouco no discurso a relação entre erupção dos dentes e desmame. Os sólidos — papas, sopinhas, caldos e mingaus — passam a ser recomendados cada vez mais precocemente. Nesta época inicia-se, também, o emprego do leite condensado na alimentação de recém-nascidos. Difunde-se o emprego da água açucarada nos intervalos das mamadas (REIS JÚNIOR: 1874,24-29). Do aleitamento mercenário O aleitamento mercenário, apesar da condenação médica, é um hábito muito difundido. Na opinião de Neves, as crianças "sugam no leite mercenário o germe da corrupção" (NEVES: 1874, 11). Vianna lamenta que "há certos senhores que têm o costume de mandar pôr os filhos de suas escravas na roda para que obtenham melhor aluguel. Nestes casos o aluguel rendia o dobro ou o triplo" (VIANNA: 1869,49). Zamith entende que este fato, que parece à primeira vista de pouca importância, influi sobremaneira no moral da escrava, de modo que ela, com a lembrança do filho, nunca poderá nutrir bem outra criança. Considera a existência de algumas escravas que, "apesar de terem consigo o seu filho, maltratam a criança que têm obrigação de criar, porque foram alugadas ou servem contra a vontade. E, não obstante toda a vigilância que as mães empregam, elas não cuidam das crianças como devem" (ZAMITH: 1869,30). O autor não está aqui preocupado com o filho da escrava mas quer evitar o sofrimento da escrava para que o leite se mantenha perfeito para ser oferecido ao filho dos brancos. Outros, no entanto, consideram o aleitamento mercenário imoral, "porque a especulação não treme em arrancar dos braços de uma mulher cativa, mas que não deixa de ser mãe, o desgraçado filho..." (MOURA: 1874,29). Um tema freqüente no discurso médico é o da escolha da ama, que tem um tratamento estereotipado. Na escolha da ama, os médicos insistem na avaliação de suas 6 Mito — não considerado como uma simples ficção alegórica, mas, sim, "uma representação de estrutura imaginativa (não imaginária) com apreensão de valores". E, ainda, "expressão pretensamente racional de uma representação dinâmica do mundo; está voltado para o futuro e constitui um apelo à ação" (BIROU: 1982,257). 64 qualidades físicas e morais. Criticam a visão popular da ama que seleciona, sem a intervenção médica, a mulher "que tenha bastante leite e os peitos grandes, levada por uma falsa idéia, que muitas vezes é nociva à criança, de que a quantidade do leite é relativa ao volume que os peitos apresentam" (MEIRELLES: 1847,17). Insistem na necessidade de exames médicos para a escolha "científica" e "higiênica" da ama. Alertam para os perigos e privações que, segundo eles, sofre a criança da insensibilidade, negligência e imprevidência das amas. Meirelles relata a história de uma criança que, por descuido, foi abandonada por sua ama sozinha em uma cocheira, levando um coice de animal e vindo a falecer (MEIRELLES: 1847, 18). As amas são percebidas como ignorantes e malvadas. Não havia, à época, polícia médica regulamentada para o exame de amas, a tal ponto que as mulheres que quisessem receber uma criança do hospício (roda) para aleitar, bastariam apresentar um "atestado do inspetor ou do subdelegado do seu quarteirão" (ZAMITH :1869, 29). E mesmo as famílias ricas aceitam as amas em suas casas sem se preocuparem com o exame médico. Os médicos consideravam um absurdo que tudo se passasse "como se indivíduos dessa ordem tivessem as habilitações precisas para poder julgar do estado sanitário de alguém" (VIANNA: 1869,44). O Sr. José Pereira Rego, presidente da junta central de higiene, quis fundar um escritório de amas no Brasil, sem sucesso. Tal estabelecimento ficaria responsável pela realização obrigatória dos exames e de mandar inspetores para vigiar as amas contratadas a domicílio (VIANNA: 1869,48). Só mais tarde, no início do século XX, ocorreu a criação do gabinete de exames de amas-de-leite mercenárias. De 1901 a 1908, de 918 nutrizes examinadas, 476 foram rejeitadas. A alta taxa de rejeição, de 52%, deveu-se, na maioria, ao corrimento genital, tuberculose, afecções uterinas e insuficiência láctea ou leite magro (MACHADO: 1911,102-103). Porém, tal instituição teve muito pouco impacto a nível sanitário, pois foi procurada por um número muito restrito de pessoas e já em uma época em que declinava a amamentação mercenária. Apesar da enorme distância entre as intenções médicas e as práticas sociais, um autor descreve técnicas usando instrumentos como o lactômetro e o lactoscópio para se verificar a riqueza ou pobreza do leite. Achava que "a melhor prova do bom leite é o estado da própria criança da ama, no entanto é preciso estar bem certo que a criança apresentada é da ama e não de outra pessoa, e, além disso, que ela seja alimentada exclusivamente do leite de sua mãe" (ZAMITH: 1869,26). Os médicos eram, muitas vezes, iludidos pela astúcia e sagacidade das amas, pois os donos de escravas, para facilitar o seu aluguel como amas, 65 tinham interesse em dissimular a realidade, ludibriando os locatários. Para Zamith, a idade do leite7 deve ser de 5 a 6 meses, a ama deve ser multípara pois tem mais experiência, com idade entre 20 e 34 anos, evitando-se mulheres com hálito fétido, as raquíticas, escrofulosas, sifilíticas ou tuberculosas, preferindo-se aquelas com bons dentes e gengivas. Acredita que "os bons dentes estão muitas vezes ligados a uma boa constituição" (ZAMITH: 1869,28). Para Vianna, a idade ideal do leite é de menos de 2 meses mas "aquela que é chamada para tomar a seu cargo o papel de criadeira, tem necessidade de desmamar seu filho, e nessa época não o poderá fazer por certo, porém seis meses depois". Assim, deve-se preferir "aquela cujo leite seja o mais novo, isto é, o da mais recentemente parida" (VIANNA: 1869,35). Os médicos recomendam que a mulher só deve ser ama quando seu filho tiver completado pelo menos 6 meses de vida. Em sua opinião, em termos morais, a ama deve ser de bons costumes, de um gênio dócil, não irascível, cuidadosa e inteligente, que não tenha o vício da embriaguez, de fisionomia agradável e alegre, devendo exercer esta missão de muito boa vontade e, se o fizer contrariada, nunca poderá ser boa ama. Para Meirelles, "não é só com as boas qualidades da ama em si com que se tem de lutar, é também com as outras qualidades como uma pessoa estranha que vem para o interior de uma família" (MEIRELLES: 1847,32). Neste período, a percepção do escravo como estranho não existia nas famílias brasileiras. Para Meirelles, a escrava deveria ter boa aparência. "A pele fina, sem o menor sinal de erupções; peito largo e bem conformado, as mamas nem muito volumosas, nem muito pequenas, destacadas do peito, sem cicatrizes ou endurecimentos granulosos... as amas de constituição sangüínea são as mais fortes para suportar as fadigas do aleitamento... uma mulher de constituição fraca ou linfática que quisesse aleitar o seu ou o filho de outra mulher, acarretaria certamente a si e a ele grandes inconvenientes..." (MEIRELLES: 1847,29). Segundo este autor, a ama deve ter uma boa alimentação. Quanto ao tamanho e forma das mamas, Neves considera que "o volume médio das mamas é considerado o tipo mais vantajoso. As mamas que se devem preferir são as hemisféricas" (NEVES: 1874, 30). No ponto de vista de Meirelles, no que diz respeito à moral, a ama deve ter uma "fisionomia risonha, um olhar meigo, um sorriso agradável e, sobretudo um gênio dócil, afável, complacente e um som de voz harmonioso: ela deve enfim ser isenta de paixões" (MEIRELLES: 1847,30). 7 idade do leite — expressão muito utilizada nas obras médicas do século passado para designar a idade ideal que o filho da ama-de-leite deveria ter para que se pudesse escolher a nutriz mais adequada para amamentar outra criança. A idade do leite correspondia à idade do filho da ama. 66 Os médicos são unânimes em reconhecer que não há ama perfeita e "como é quase impossível acharmos reunidas em uma ama todas as condições que temos indicado; devemos ao menos preferir aquela que apresente as qualidades mais essenciais e que às formas regulares do corpo, ajunte a mais perfeita harmonia em suas faculdades morais" (MEIRELLES: 1847,30). Havia, no Rio de Janeiro, amas livres que, segundo Reis Júnior, eram "constituídas por mulheres, naturais das diversas ilhas de Portugal, e vulgarmente denominadas ilhoas: estas, além de crassamente ignorantes, são de uma voracidade a toda prova" (REIS JÚNIOR: 1874,32). Porém, estas, raramente, eram encontradas. A roda de expostos ou hospício de menores era uma instituição destinada a acolher, reservadamente, os produtos de ligações amorosas consideradas clandestinas, "... os deserdados do amor maternal, os filhos da miséria e as vítimas da ganância" (CASTILHO: 1882, 38). A condenação a esta instituição é geral no discurso mas os médicos reconhecem que, apesar dos seus inconvenientes, é um mal necessário para evitar o infanticídio. Pois, se não houvesse quem recolhesse estas crianças, estas seriam lançadas nas praias, nas praças ou nos adros da igrejas. "Não poderemos, portanto, duvidar de sua utilidade, considerando que ela minora a sorte horrorosa que esperaria um grande número de crianças... intermediária valiosa, que sempre obsta a uma morte iminente, arrancando uma consciência ao remorso" (CASTILHO: 1882,38). Os médicos reclamam das péssimas condições higiênicas vigentes neste ambiente. Insistem na necessidade de higienização das amas; vociferam contra a situação que permite às amas, mesmo tendo seu estado de saúde alterado, se apresentarem à roda e receberem uma criança para amamentar a domicílio bastando, para isso, apresentar os documentos do inspetor e delegado. O aleitamento a domicílio pela ama no Brasil só acontecia no caso de crianças da roda. Segundo Orlandi, a Câmara Municipal e a Misericórdia da Bahia adotavam o sistema de "colocação familiar" dos enjeitados em casas particulares, antes da criação da roda dos expostos. Este sistema "consistia em pagar uma ama-de-leite durante 3 anos para fornecer leite, alimentação e roupa, e cuidar da criança" (ORLANDI: 1985,75). Para Vianna, estas amas, "paupérrimas, ...tomam a seu cargo criar esses infelizes entes pelos pais ao hospício abandonados, não vendo neles senão a fonte do lucro e da especulação... são às vezes levados ...mal vestidos, mal alimentados, até ao domicílio de sua mãe adotiva, aí, coitados encontram quase sempre um casebre velho, sem paredes ou elas já em completo estado de ruínas, mal coberto, habitado por uma família numerosíssima..." (VIANNA: 1869,44). Além disso, acha que, dificilmente, estas crianças 67 serão amamentadas ao seio e encontrarão, quando muito, a mamadeira ou outra alimentação grosseira imprópria aos seus fracos recursos digestivos. Além disso, narra que podem ser vítimas de acidentes pelo descuido das amas. E, ainda, se adoecem, as amas "entendem-se com alguma comadre ou mesinheira que, ou na boa fé de sua ignorância, ou pela especulação de lhe vir algum lucro, administra-lhes os seus cozimentos e xaropes, julgando assim curar os males que tanto afetam nessa idade, e a morte torna-se certa por falta de recursos médicos..." (VIANNA: 1869,45-46). A remuneração das amas a domicílio era muito baixa. Maria Graham conta que a primeira vez que foi à Roda dos Expostos achou sete crianças com duas amas. Pelo mapa, percebeu que, em treze anos, tinham entrado perto de 12.000 e vingaram apenas 1.000. "Dentro de pouco mais de nove anos foram recebidas 10.000 crianças: estas eram dadas a criar fora, e de muitas nunca mais houve notícia. Não talvez porque todas tenham morrido, mas porque a tentação de conservar uma criança mulata como escrava deve, ao que parece, garantir o cuidado com sua vida, mas as brancas nem ao menos têm esta possibilidade de salvação. Além disso, as pensões pagas para a alimentação de cada uma eram, a princípio, tão pequenas, que as pessoas pobres, que as recebiam, dificilmente podiam proporcionar-lhes meios de subsistência". Narra, ainda, que muitas crianças mortas eram colocadas na roda para terem um enterro decente (apud LEITE: 1984,49-50). Moura descreve a existência de casas de aluguel de amas, às quais os senhores recorriam quando necessitassem. Outras nutrizes saíam da casa dos seus senhores ou parteiras (MOURA: 1874,37). Há relatos de casos de rapto do filho da escrava nas maternidades, para colocá-lo na roda. As casas de maternidades são condenadas pelos médicos, pois, segundo eles, ocultam a prostituição. Os higienistas descrevem que os proprietários de escravas pagam às maternidades pelo parto e combinam com estas, casas o recebimento da escrava sem o seu filho. O filho da escrava vai para a roda e a ama escrava será alugada. Consideram que a mortalidade nas maternidades é auxiliada pelo "artifício das parteiras, proprietárias de tais casas". No relato de Castilho, mediante pensões estabelecidas em seus regulamentos internos, tais casas recebem mulheres para preparar-lhes o aborto. Para ele, é necessário "estancar esta fonte de infanticídio e de exportação de crianças para a roda... uma instituição de tal ordem é a nosso ver um instante convite para o crime" (CASTILHO: 1882,40-41). O senhor colocava os recém-nascidos na roda para especular com o leite de suas negras. Para outro autor consultado, "o aleitamento artificial, a alimentação 68 prematura e a alimentação insuficiente são as principais causas da mortalidade, produzida pela indústria das amas... A alimentação prematura, resultante da ignorância, do hábito ou da cobiça das amas, que querendo ter maior lucro recebem cinco e mais crianças; e por fim, não podendo amamentar a todas criam como podem" (ZAMITH: 1869,33). Em resumo, são três os perigos da amamentação mercenária no discurso médico: "pelo lado físico a transmissão de graves enfermidades; pelo lado moral a inoculação de vícios e hábitos repugnantes, e em relação à família a perda dos direitos maternais e da gratidão filial" (MOURA: 1874,28). No século passado, havia uma teoria muito difundida sobre o leite e na qual muitas pessoas acreditavam: de que o caráter da mulher que amamenta é transmitido com o leite. Gesteira, a este respeito, relata uma história folclórica, da "ferocidade de Calígula por ter tido por ama-de-leite uma mulher má, e que além de tudo untava de sangue os seios e lhos apresentava" (GESTEIRA: 1943). Assim, no discurso higienista, as mulheres "nervosas, coléricas, taciturnas, as que não podem dominar o império das paixões deprimentes fariam melhor escolhendo uma ama de caráter oposto, porque sabemos que os infantes copiam o moral de seus progenitores. Por este meio se alteraria seu caráter provavelmente semelhante ao materno, administrando-lhe uma seiva diferente" (URCULU: 1882,39). Outra teoria, encontrada nas obras médicas do século XIX, considerava que as emoções e as perturbações emocionais seriam capazes de alterar o leite. Assim, "o leite secretado sobre a impressão de uma paixão forte torna-se seroso e pobre, determinando nas crianças irritações intestinais, fortes e violentas eólicas, febre, diarréias, que as levam muitas vezes ao túmulo". Para Vianna é como se fosse um veneno sutil. Narra o fato da morte de uma criança vítima de convulsões, após a mulher discutir com a vizinha e amamentar, em seguida, a criança (VIANNA: 1869,39-40). Um discurso muito insistente, ao lado da condenação higiênica da escrava para ama-de-leite, é o reconhecimento das regalias que uma escrava desfrutava nesta condição. Para os higienistas, "a família deverá tratar a ama com agrado, procurar fazer as suas vontades a fim de que ela faça o mesmo à criança, quando a ama é escrava e recebe maus tratos de seus senhores, as inocentes crianças, muitas vezes, são as vítimas de seus desesperos" (MOURA: 1874,24). Na percepção de muitos agentes sociais, a ama-de-leite era uma profissão desejada pois, acreditando-se nas alterações do leite por sobressaltos e emoções, tudo se fazia para agradar a ama e mantê-la sossegada; era poupada dos trabalhos pesados, recebia um enxoval novo. Alguns autores consideram isso uma maneira da negra 69 amenizar um pouco as condições da escravidão. O luxo da ama muitas vezes exprimia a prosperidade da casa e era sinal de status. Segundo Expilly, a ama tinha uma "existência dourada durante a qual os papéis se invertem, pois as brancas obedecem e as negras comandam" (apud LEITE: 1984,91-92). Este retrato amenizante das condições da escravidão da ama-de-leite encobre, como já vimos anteriormente, a negação da sua condição de mulher, a impossibilidade da vivência da sua maternidade, pois, muitas vezes, a ama era separada de seu filho. Este tratamento "manso" à ama apenas encobria esta forma brutal de exploração do corpo feminino. Os médicos consideravam que as amas nunca podiam sentir pela criança esse instinto poderoso que a natureza, segundo eles, havia inspirado às mães. Desaprovam o "comércio de leite humano, o aluguel do seio a quem mais der, sem afeição, sem moralidade, sem orientação científica, tendo unicamente por mira o interesse monetário... as amas são recrutadas nas classes inferiores da sociedade entre as infelizes mercadoras do amor clandestino, íngreme estrada onde, não raro, são presas fáceis das afecções venéreas ou sifilíticas" (COELHO: 1902,36-38). 4. O ABANDONO INFANTIL, AS RODAS DE EXPOSTOS E A MORTALIDADE INFANTIL: As práticas sexuais "ilícitas" desaguavam em filhos ilegítimos que eram normalmente abandonados. "As crianças expostas pereciam nas ruas, nos adros das igrejas, nas praias sem que a fé se movesse, a esperança se apiedasse e a caridade as tutelasse". As crianças eram, muitas vezes, devoradas pelos cães (MONCORVO FILHO: 1926,32-34). Muitas famílias recusavam-se a assumir o cuidado dos filhos, que era mercantilizado pela contratação de nutrizes mercenárias. Alguns setores sociais filantrópicos, já mostrando uma preocupação com os destinos da infância, resolveram intervir no problema, criando a instituição da roda de enjeitados. "A preocupação em unir respeito à vida e respeito à honra familiar provocou,..., a invenção de um dispositivo técnico engenhoso: a roda. Trata-se de um cilindro cuja superfície lateral é aberta em um dos lados e que gira em torno do eixo da altura. O lado fechado fica voltado para a rua. Uma campainha exterior é colocada nas proximidades. Se uma mulher deseja expor um recém-nascido, ela avisa a pessoa de plantão acionando a campainha. Imediatamente, o cilindro, girando em torno de si mesmo, 70 apresenta para fora o seu lado aberto, recebe o recém-nascido e, continuando o movimento, leva-o para o interior do hospício. Dessa forma o doador não é visto por nenhum servente da casa" (DONZELOT: 1986,30). No Brasil, além de exercer esta função purgadora dos desvios sexuais, a roda funcionou organicamente ligada à indústria das nutrizes. O patrão, dono da escrava a ser alugada como ama-de-leite, colocava o seu filho negro na roda para elevar o preço do seu aluguel. Escravas também colocavam os seus filhos na roda para livrá-los da escravidão. Os médicos criticavam a falta de higiene nestes estabelecimentos e condenavam o Estado pelo seu desmazelo. "A mortalidade na Casa dos Expostos era grande, não só pelos precários cuidados fornecidos às crianças, como também pela falta de higiene e as péssimas instalações" (ORLANDI: 1985,61). Uma das primeiras rodas brasileiras foi fundada em 1738 por Romão de Mattos Duarte, na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. As cifras de mortalidade variaram de 43,9% entre 1861 e 1874 (ORLANDI: 1985,61) até 70 a 90% (MONCORVO FILHO: 1926,36). Muitas outras rodas existiram em várias cidades brasileiras como Cabo Frio, Salvador, Recife, Campos e Porto Alegre. Havia uma separação entre o sexual e o familiar, o que levava a disfunções para a família, com a existência de filhos adulterinos e moças de má reputação, e para o Estado, com o desperdício de forças vivas. Havendo escândalos entre famílias importantes, colocava-se o filho na roda para preservar-se a honra das moças solteiras. Muitos expostos eram recolhidos pelos avôs, batizados e criados como "afilhados". A roda, com o tempo, foi se tornando disfuncional para a sociedade: afrouxou os vínculos entre pais e filhos, aumentou a proporção de filhos legítimos entre os abandonados, estimulou as uniões ilegítimas e a indústria de amas. Homens e mulheres passaram a contar com um apoio seguro às suas transgressões sexuais. Muitas crianças eram entregues à roda já mortas e algumas mães expunham seus filhos na roda para recebê-los de volta como nutrizes, mediante salário pago para amamentá-los a domicílio. Esta última prática, muito difundida na França, foi pouco freqüente no Brasil. A mortalidade nas rodas ascendeu a partir de 1808 com a chegada da família real ao Brasil. A cidade recebeu aristocratas e comerciantes estrangeiros, bem como diplomatas e famílias de fazendeiros. A vinda de mulheres européias, habituadas a entregar seus filhos a amas mercenárias, estimulou o aluguel de amas pretas. Estas mulheres aristocratas podiam dispor de tempo livre para bailes, festas e saraus, dedicadas à "vida mundana da corte" (ORLANDI: 1985,63). 71 Cerqueira considerava a roda um fato em si lastimável e, ainda, "agravado por um abuso autorizado pelo segredo das rodas — o abandono de filhos legítimos, que não é menos triste nem menos criminoso que o infanticídio e que constitui um verdadeiro assassinato moral, tanto mais odioso, quanto aqui se exerce sobre um ser incapaz de reagir e por aqueles mesmos que lhe devem todo afeto e proteção". Recomendava a substituição das rodas por asilos (CERQUEIRA: 1882). Para outro autor estudado, "as rodas constituem uma verdadeira afronta às leis sociais e humanas e perpetuam um matadouro de inocentes sob o pretexto de valer a desonra ou de amparar o crime" (MONCORVO FILHO: 1926,44-45). As rodas foram fechadas no início do século e outras instituições mais funcionais foram criadas para proteger a infância. Deixa, no passado, o registro da primeira preocupação social com a vida infantil. A sociedade começava a despertar para o sentimento da infância. Um tema insistente na época, em relação com o aleitamento materno, era a questão da mortalidade infantil. Os médicos consideravam a promiscuidade, a depravação dos costumes, enfim, os modos de vida das classes populares, percebidas na representação burguesa do imaginário social como bárbaras, ignorantes, sujeitas à natureza e à tradição, como fatores que gerariam ambientes insalubres. Os médicos atribuíam à persistência de hábitos seculares no cuidado com os filhos, refletidos no abandono, na recusa à amamentação pela mãe, na contratação de amas, na colocação das crianças nos hospícios ou rodas de expostos, a causa chave da mortalidade infantil. O modo de alimentação era criticado asperamente pelos médicos como o responsável pelas perdas infantis. A mortalidade infantil, na sua percepção, tinha uma etiologia familiar. A preocupação dos médicos com a mortalidade infantil está exposta em algumas teses, onde descrevem as suas taxas e causas. O que chama a atenção é que as crianças tinham uma mortalidade excessiva há pelo menos algumas décadas antes da percepção social do assunto. Para isto podem ter concorrido dois fatos: o surgimento do sentimento de infância ou o nascimento de uma nova ciência, a estatística, a qual ajudou a provocar "nos administradores, nos médicos e no público, uma tomada de consciência da mortalidade infantil e de sua importância" (BOLTANSKI: 1984,55). Segundo um médico daquele período, "uma guerra mais tremenda que a do Paraguai, fere-se anualmente e sem tréguas em nossos lares, dizimando vidas destinadas ao engrandecimento da pátria... É mister que se procure por todos os meios ao alcance da higiene e da terapêutica, tapar esta voragem onde se precipitam tantas vidas, apenas 72 desabrochadas; ..." (MACHADO: 1911,14). A mortalidade infantil, no Rio de Janeiro, variava de 190/mil em 1903 a 160/mil em 1909, sendo mais alta que a de Buenos Aires, 88/ mil, e de Roma, 140/mil, e mais baixa que a de Bombaim, 405/mil. Tal cifra deveria ser mais alta, pois a natimortalidade incluía as crianças que, respirando, falecessem antes do registro no cartório civil. De qualquer modo, a mortalidade geral vinha baixando no Rio de Janeiro, principalmente com a melhoria do saneamento básico. Segundo Cerqueira, esta cifra era de 226/mil em 1875, maior que a dos países europeus, apesar de não haver no Brasil, tanto quanto na Europa, a miséria e a extrema condensação populacional (CERQUEIRA: 1882). Porém, para Teixeira, a mortalidade no Rio era menor que nas cidades européias. Assim, no Rio, a mortalidade nos menores de 1 ano era de 18,1% nos fins do século XIX e, na França, era de 22,6%. A mortalidade urbana era maior que a rural. Para ele, isto se explicava pela prática disseminada em Paris, de se enviar 20 a 25 mil crianças para serem criadas por amas mercenárias nos campos. "O aleitamento mercenário, que entre nós é ordinariamente feito em casa dos pais das crianças, não está muito espalhado pelo preço exagerado porque se alugam as amas" (TEIXEIRA: 1876). Esta maior mortalidade na Europa estava, provavelmente, relacionada com a expansão do capitalismo e a migração rural-urbana que a acompanhou, com a aglomeração nas cidades e as péssimas condições de saneamento. As causas da mortalidade eram atribuídas, pelos médicos higienistas, também ao sistema econômico da escravidão e aos costumes sociais dele decorrentes: à ilegitimidade, à falta de educação física, moral e intelectual das mães e à infração às leis de higiene pelos vícios contraídos em nossos hábitos e costumes. Um dos autores considera que "o problema da educação da mulher geralmente falando, é de importância capital referente ao nosso futuro, porquanto é talvez a única responsável pelos desastres que possam sobrevir no assunto que compete à geração da nossa raça, e o número considerável de perdas na infância, que nos servem de testemunho cotidianamente, devemos por ela responsabilizar" (MACHADO: 1911,48). Outras causas da mortalidade, na percepção médica, eram a ignorância das mães e o analfabetismo, a desproporção da idade dos cônjuges e a elevada freqüência de nascimentos ilícitos. Nas obras dos médicos higienistas, o modo de alimentação, que resulta no desmame feito sem cautelas, oferecendo-se à criança alimentos cuja digestibilidade e quantidade não estão em relação às suas forças digestivas, era o grande contribuinte dessas mortes. Não se conhecia a importância da fervura do leite e a alimentação artificial sem a 73 pasteurização era praticamente mortal à época. As mães que se recusavam a amamentar seus filhos, delegando esta tarefa às amas mercenárias ou instituindo o aleitamento artificial, apareciam na percepção cultural e ideológica dos médicos higienistas como os bodes expiatórios desta situação socialmente produzida. O povo era percebido pelos médicos como ignorante, com sangue de raças "inferior" nas veias, não sabendo ter o comportamento moral necessário para uma boa saúde, em conseqüência de uma educação errada ou de uma falta de educação (NOVAES: 1979,57-58). Os médicos relatavam que o aleitamento artificial ocorria principalmente no meio proletário, onde a obrigação dos empregos prejudicava os deveres verdadeiramente maternais. A industrialização incipiente usava a mão-de-obra feminina, principalmente no setor têxtil, pagando uma remuneração mais baixa que aos homens. É importante ressaltar que poucas mulheres casadas trabalhavam fora do lar, se bem que houvesse muitos filhos ilegítimos. Os médicos relacionavam outras causas para a mortalidade infantil: o clima, as temperaturas elevadas e a falta de higiene nas habitações. Os alojamentos operários considerados, por eles, insalubres, superpovoados, sombrios, úmidos, mal arejados e sujos levavam, na sua opinião, à promiscuidade, à depravação dos costumes, corrompendo a moral dos futuros cidadãos da pátria. As doenças que ceifavam as vidas infantis eram principalmente as diarréias e as broncopneumonias. Gama analisava as causas da mortalidade em Recife: "as condições de higiene precárias do mucambo, a condição econômica do seu morador, e sua ignorância, digamos, a falta de instrução rudimentar no mais amplo sentido, são, ao nosso ver as causas mais influentes da mortalidade infantil". Condenava o regime de diluir-se o leite com mingaus de mandioca (GAMA: 1938). Também em São Paulo, as causas de mortalidade eram percebidas pelos higienistas como relacionadas com o aleitamento artificial contaminado. Segundo eles, nas classes operárias era comum a alimentação prematura com alimentos grosseiros e substâncias indigestas. Em sua opinião, a solução era praticar a higiene, não realizada por falta de instrução ou ignorância das mães (PASCARELLI: 1926). Os remédios para esta situação eram vistos pelos higienistas na família e, principalmente, nas mães. E a solução passava pela medicalização da sociedade. "O médico de família passou a exercer influência considerável sobre a mulher. A mulher passava a ser uma aliada do médico para uma atuação deste nas modificações de alguns costumes 74 familiares... Mas foi através da criança que o médico conseguiu atuar mais eficientemente junto das famílias... Com a complexidade, as famílias começavam a se sentir incapazes de decidirem sozinhas e de protegerem a saúde e a vida das crianças e dos adultos, e o médico tornava-se imprescindível para resolver os inúmeros problemas familiares" (ORLANDI: 1985,58). Pereira explica este processo do surgimento de novas especialidades, que levou à medicalização de alguns setores da vida social, considerando que "a especialização profissional foi um fator significativo no avanço da ciência. Seguindo a tendência da divisão técnica do trabalho em todos os ramos da atividade humana, ela atingiu igualmente aqueles que se dedicavam e se dedicam a fazer ciência" (PEREIRA: 1983,66). Desse modo, os indivíduos passaram a delegar a outrem a responsabilidade sobre a sua saúde provavelmente porque consideraram os novos saberes e práticas médicas mais eficientes. Os médicos sugeriram uma série de medidas no sentido de atenuar-se a mortalidade infantil: construção de maternidades, creches e habitações operárias condignas; criação de legislação social e caixas de socorro a gestantes e operárias, garantindo-lhes licença remunerada de metade do salário habitual após o parto. Comentavam que "esta medida facilita evidentemente o aleitamento natural, porquanto a mãe não é obrigada a abandonar o filho para ganhar o pão" (MACHADO: 1911,12). Além disso, aconselhavam a criação de consultórios de puericultura, fiscalização do leite pelo serviço de higiene pública, distribuição de leite preparado para as crianças de mama, consultórios para exame e atestação de amas-de-leite. O casamento era também percebido, por eles, como meio de atenuação da mortalidade infantil e da ilegitimidade. Na sua percepção, a ligação estável entre homem e mulher contribui para, através do sentimento de família e da intimidade, frutificar o amor materno, aumentando-se, assim, a população do país. A mulher tipo ideal surgiu como o modelo higiênico da filha exemplar, esposa dedicada e mãe amantíssima. Alguns médicos achavam que "para ser mãe não é bastante ter o filho, é preciso amamentá-lo" e comparavam as mulheres que se recusam amamentar àquelas que se fazem abortar (MACHADO: 1911,75-76). O soneto seguinte, de Bastos Tigre, nos fornece uma indicação de como era socialmente idealizada a figura da mãe nutriz: MATER NUTRIX Mãe, ao teu filho dá teu farto seio! Com o teu leite é a tua alma que lhe dás! 75 Seja, Mãe, teu orgulho e teu enleio Dar-lhe o pão que em ti própria amassarás! Não lhe sabe tão bem o leite alheio Que em suas gotas sangue alheio traz. - Linfa que escorre do materno veio – Só teu leite o teu filho satisfaz! Tiveste a glória da Maternidade, Prêmio, benção divina do Senhor. Sê Mãe em toda a pompa e majestade! Como a planta dá vida à própria flor, Sê a "Ama" de teu filho que, em verdade, "Ama" é do verbo "amar"... provém do "amor" (apud GESTEIRA: 1943,77-78). Aliada do médico, a mãe era vista como o principal elemento de regeneração do homem, que teimava ainda em permanecer na rua e nos cabarés. O governo, retratando o abandono social, não se preocupava com a criança. As iniciativas particulares, de filantropia, nasceram e se desenvolveram, culminando, em 1919, com a criação do Instituto de Proteção à Infância do Rio de Janeiro pelo Dr. Moncorvo Filho. Hospitais e maternidades foram construídos a partir da iniciativa dos filantropos. A filantropia nasceu como a "economia social", que consistia na "direção da vida dos pobres com o objetivo de diminuir o custo social de sua reprodução, de obter um número desejável de trabalhadores com um mínimo de gastos públicos" (DONZELOT: 1986,22). A percepção médica sobre a mortalidade começava a ser auxiliada pelo instrumental estatístico. Assim, os médicos consideravam que as crianças "que são nutridas por meio de preparações artificiais apresentam, em geral, uma mortalidade muito superior à das crianças alimentadas por leite de vaca" (MACHADO: 1911,17). "As perturbações digestivas são mais raras nas crianças nutridas ao seio materno, que nas amamentadas por amas mercenárias" (MACHADO: 1911,78). Machado citava, ainda, a estatística do dr. 76 Pinard que mostrou que as crianças alimentadas ao seio por nutrizes à distância tinham uma mortalidade de 71,5%; as alimentadas artificialmente à distância morriam em 63% das vezes; as alimentadas com leite artificial às vistas da família sucumbiam em 32% dos casos e as amamentadas pelas mães tinham uma mortalidade de apenas 15%. Os médicos recomendavam o aleitamento artificial apenas nos casos em que a necessidade do desmame surgia após os 4 a 5 meses. Para as crianças menores, nos casos de impossibilidade do aleitamento, aconselhavam o uso da amamentação mercenária. O aleitamento mercenário era considerado, por eles, um mal necessário e o artificial era o gênero de alimentação de maior responsabilidade nas cifras mortuárias. Uma das preocupações dos médicos era com a importância econômica da vida infantil. Assim, achavam "mais remunerador, socialmente falando, salvar-se a vida de uma criança que prolongar-se a de um velho ou mesmo de curar um adulto" (MACHADO: 1911,19). No discurso médico, a alimentação defeituosa, os alojamentos insalubres e a falta de cuidados à criança são os fatores que mais influem na mortalidade infantil. As altas taxas de mortalidade, segundo os higienistas, eram devidas ao abandono das crianças, mas a causa direta estava relacionada com a falta do aleitamento materno. O uso de amas ou da alimentação artificial não levou à solução do problema. O abandono das crianças continuou freqüente até o início do século XX. Foi só após as mudanças nas concepções sobre a criança, que culminaram com sua revalorização social, aliadas à melhoria das condições sociais e aos avanços tecnológicos, que o abandono e a mortalidade infantil se reduzem. 5. ALEITAMENTO, NATALIDADE E RIQUEZA NACIONAL: Uma das preocupações dos médicos higienistas em relação ao aleitamento materno era a questão do despovoamento, como vimos no item anterior. A elite intelectual era francamente natalista, o que se explicava devido à escassez de braços provocada com o fim da escravidão formal e também pela grandeza do território brasileiro que necessitava ser povoado e colonizado. A população numerosa era associada com a riqueza, a prosperidade, o progresso e o desenvolvimento. As práticas familiares que culminavam na recusa ao aleitamento, no aluguel de amas escravas, no abandono infantil nas rodas e na excessiva mortalidade infantil poderiam gerar uma redução na mão-de-obra para o capitalismo agrário exportador. Porém, 77 ao lado desta ameaça surgia outra, a prática social de anticoncepção, que começava a ocorrer na população brasileira dos grandes centros urbanos, em fins do século XIX. O aleitamento materno deveria ser estimulado, pois era considerado um poderoso meio de sobrevivência infantil. No imaginário coletivo, só uma sociedade com crianças sadias e robustas poderia ter adultos fortes para, através do trabalho, contribuírem para a geração da riqueza do Estado-nação emergente. As concepções e valores sobre a reprodução humana estão intimamente relacionados com as idéias sobre o aleitamento e estão, de alguma forma, associados às relações sociais e econômicas existentes na sociedade em um dado momento. Ao lado do estímulo à amamentação como meio de reduzir-se a mortalidade infantil, caminhavam os incentivos à natalidade e as condenações à sua redução voluntária pelos indivíduos. Vamos analisar, a seguir, como os médicos do início deste século encaravam a questão da reprodução, da maternidade e o papel da mulher na vida social. A maternidade era socialmente desejada e estimulada pela maior parte das mulheres. A mulher estéril era visualizada como infeliz. Para a sociedade, a mulher só se tornava mulher de fato se vivenciasse a experiência da maternidade. Costa achava que o instinto da procriação é natural e, por isso, deve ser livre. Entendia que o direito de gerar ou proibir o nascimento de um filho não pode ficar a cargo do arbítrio individual, pois pertence à sociedade e procriar não se constitui em um direito mas em um dever. A restrição voluntária da natalidade é considerada, na sua opinião, um crime, uma atitude imoral e maléfica à sociedade do ponto de vista econômico, e leva ao enfraquecimento da nação. Interpretava que "a questão da despopulação, como todos os problemas sociais, tem a sua fonte produtora, a sua raiz, em uma causa moral" (COSTA: 1913,13). A necessidade e o desejo de anticoncepção surgiram nas classes ricas e elevadas, sendo percebidas por alguns médicos como ligadas ao individualismo e ao egoísmo. Costa condenava que a pretensão de "inutilizar-se um direito para se criar um prazer, destruir-se uma função para satisfazer uma vaidade" (COSTA: 1913,10). Para ele, a tirania genital, a tara orgânica que levam à restrição da natalidade, podem conduzir ao desaparecimento da espécie e da raça. A utilização de meios artificiais para a redução da natalidade, mesmo o coito interrompido, são vistos por Costa como homicídios criminosos. A única prática de anticoncepção permitida pela "religião" e pela "ciência" é a abstenção sexual. Para a Igreja o ato sexual só tem sentido se visar à procriação. 78 Costa discordava dos malthusianistas, que percebiam na "gravidez um obstáculo ao exercício das profissões e ocupações domésticas e comerciais" (COSTA: 1913,19). Estes apelavam para a liberdade de consciência do ser humano e viam na anticoncepção um ato de prudência econômica fundado na razão. Segundo eles, as mulheres têm experimentado um aumento dos encargos pelo aumento progressivo dos filhos. Porém, os natalistas consideravam que as mulheres queriam apelar para a redução das gravidezes para satisfazer à vaidade, ao luxo e ao prazer. Isto, no seu entendimento, favorece o vício e destrói a família. A esterilização cirúrgica era veementemente condenada. O Dr. João Costa, na sua tese "A restrição da natalidade", afirma que a anticoncepção se refletiu na diminuição do número de nascimentos na Europa, a partir de 1870. No Brasil, não se notou até 1913 uma diminuição nas estatísticas de natalidade, apesar da propaganda anticoncepcional estar presente, principalmente no Rio de Janeiro, em anúncios de jornais, onde as parteiras profissionais ofereciam seus serviços a clientes: "Dra. E. de C. Parteira diplomada, com prática dos hospitais de Paris. Especialista eu moléstias do útero, ovários... Evita a gravidez, sem dor, faz conceber por processos garantidos, etc..." (COSTA: 1913, 44). Nota-se nos anúncios que existia a preocupação de se manter o segredo profissional. Estas práticas não eram permitidas abertamente e ocorriam à margem, às escondidas. Materiais como camisas-de-vênus, esponjas, óvulos vaginais eram vendidos com reserva e sigilo por farmacêuticos e parteiras. Algumas poucas mulheres das classes mais instruídas começavam a ocupar espaços nas profissões de administração, comércio, advogadas, artistas e comediantes. Estas mulheres, percebendo as limitações impostas ao exercício profissional e mesmo à sua liberdade e afirmação pessoal pela gravidez e pelo cuidado com os filhos, tarefas estas talvez vivenciadas como encargos pesados e ainda consideradas exclusivas da mulher, recebiam com satisfação as novas práticas de anticoncepção. Já havia, na época, um movimento de emancipação feminina (COSTA: 1913,49). Tais mulheres eram condenadas no discurso natalista pois, desejosas de sua independência e desejando o alívio das tarefas reprodutivas, não hesitavam em aderir a estas práticas anticoncepcionais que surgiam. Ademais, algumas mulheres imaginavam que a gravidez comprometia a sua beleza. Para os natalistas, a liberdade das mulheres retarda os seus casamentos, diminuindo a natalidade. E rebatiam as reivindicações femininas pela igualdade de direito entre os sexos: para eles, a missão da mulher não se confunde com a do homem, pois ela é a 79 responsável pela maternidade, pela vida da família, do lar e da educação dos filhos; a mulher, anjo de doçura e de bondade, deve permanecer estranha às cenas da vida pública, nas quais dominam quase sempre a intriga e a mentira. Na opinião de Costa, a razão faz a mulher perder o seu feminismo (COSTA: 1913,67-68). Porém, para as mulheres que participavam deste movimento de idéias, as funções de mãe eram consideradas como um empecilho à sua emancipação. Não percebiam que o impedimento não estava na maternidade em si, mas nas condições sociais dadas em que a maternidade ocorria quando, pela divisão sexual do trabalho vigente na sociedade, além da geração biológica, a reprodução social dos filhos também era, culturalmente, um encargo pesado, aceito e executado pelas mulheres. Assim, a reprodução humana era percebida como óbice à sua liberdade e ingresso no mundo da produção social de valores de troca — pois há muito as mulheres já estavam engajadas na produção doméstica de valores de uso, pouco valorizada pela sociedade. Aparentemente, as mulheres perderam esta batalha inicial pois, posta a contradição entre as tarefas reprodutivas e o mundo da produção, à primeira vista inconciliáveis, foram incentivadas a permanecer no interior do lar, cuidando dos filhos e do futuro da nação, deixando os homens cuidando do presente. Ocorreu, no entanto, uma reacomodação de valores. As mulheres mais instruídas e conscientes de seus direitos estavam saturadas e se recusavam a exercer tão somente a missão de mãe e nutriz, inclusive porque estas tarefas eram exaustivas e não lhes davam em troca nenhuma recompensa social. Assim sendo, experimentou-se uma revalorização social da mulher no lar, que passou a ser notada, elogiada e estimulada nestas funções, até então desconsideradas. Transformou-se, na percepção feminina, o fardo em desejo. Outras causas apontadas por Costa como fatores de diminuição da natalidade são o celibato masculino, a organização defeituosa da família e as más condições do matrimônio. Condenava o casamento realizado pelo interesse pecuniário dos pais, sem o amor entre os cônjuges. Para ele, o matrimônio tem o fim procriativo e não se pode usá-lo para a satisfação do prazer bestial da carne, pois isto pode levar à dissolução do lar, à prostituição na família, ao adultério e ao divórcio. A redução da natalidade surgiu como necessidade e desejo nas classes elevadas. A contaminação pelo luxo, pela coquetterie, pelos prazeres mundanos, além da carestia e das dificuldades econômicas foram visualizadas por Costa como motivos da anticoncepção. Apesar de reconhecer que a redução do número de filhos melhora o bem- 80 estar econômico da família e a sua capacidade individual de consumo, condenava o "dogma autoritário" de se querer restringir a natalidade nos pobres para combater a miséria (COSTA: 1913,95). Na época, as mulheres começavam a ingressar como força de trabalho nas fábricas, recebendo salários mais baixos que os homens, em péssimas condições de higiene, exploradas e sem regulamentação legal do seu ofício. A sua inserção na produção era percebida, por algumas delas, como um obstáculo à maternidade, à criação dos filhos e à sua dedicação ao lar. Assim, Costa entendia que "elas ou restringem as suas funções e aniquilam os seus instintos maternos, ou então descuidam-se das suas obrigações e esquecem os seus deveres" (COSTA: 1913,86). A mulher operária era obrigada a deixar o filho em casa, isolado, ou a entregá-lo aos cuidados de uma conhecida, pois não havia nos estabelecimentos fabris, abrigos para as crianças. Os médicos rejeitavam terminantemente o livre-arbítrio das mulheres no sentido de querer ou não a procriação. É interessante que, hoje, o mesmo argumento é utilizado para reforçar as campanhas de controle de natalidade e planejamento familiar. Os indivíduos voltam a ter o direito de decidirem quantos filhos desejam ter, auxiliados agora por meios tecnológicos mais complexos. As mulheres, pretensamente livres para esta decisão em nível de discurso, permanecem na prática atreladas a outros valores que surgem na esfera cultural. O desejo de ser mãe é transformado na escolha da "oportunidade consciente da maternidade". Tal desejo, existente no imaginário social, não seria outra forma disfarçada de arbítrio? O direito de não ter filhos não se transformaria no dever de não tê-los? Além do mais, o cuidado com os filhos, que talvez seja vivido como um fardo, em quase nada foi aliviado, pois esta tarefa continua restrita ao mundo feminino. A sociedade permanece avessa à divisão das tarefas domésticas entre homem e mulher e à socialização da atenção à infância. Os remédios para evitar-se a restrição da natalidade eram vários, segundo Costa. Devia-se instituir a proteção legal à mulher grávida e à primeira infância, instalandose casas de maternidade e creches nos locais de trabalho e regulamentando-se as condições de trabalho feminino nas fábricas. Em sua opinião, a sociedade e os poderes públicos eram os culpados pela pouca importância que se dava à criança que nascia e por transformar a maternidade das mães pobres em "um tormento, uma verdadeira morte em vida" (COSTA: 1913,124). Conclamava à fundação de institutos de proteção à infância. O Estado foi, pouco a pouco, percebendo a necessidade de fornecer uma assistência financeira às mães pobres para amparar e financiar os nascimentos: surgiram 81 assim o salário-família e as sociedades protetoras da infância. Outra necessidade que viam os médicos higienistas daquele tempo era de se proteger legalmente a mãe solteira para que se evitasse o abandono, o aborto ou o infanticídio dos filhos ilegítimos. Achavam que se devesse, ainda, punir o aborto criminoso, prática comum em clínicas de médicos e parteiras, propagandeadas em anúncios de jornais e ocultadas pelo segredo profissional. O aborto só era medicamente permitido para salvar-se a vida da mãe. Percebe-se, nos autores estudados, a preocupação com a melhoria das habitações para tornar o lar e a vida íntima agradáveis ao operário e para que este evite a taberna e a rua. Costa acusa o materialismo pela restrição da natalidade: os indivíduos não mais obedecem à lei divina expressa no livro bíblico do gênesis: "crescei-vos e multiplicaivos". Além disso, o amor conjugal é, para ele, indispensável para a felicidade dos esposos e para o estímulo à natalidade. As representações de alguns agentes sociais consideravam que o operário no lar higienizado poderia desenvolver o amor conjugal e procriar. E, depois do nascimento dos filhos, nesse ambiente normatizado da vida privada, floresceria o amor materno. A mãe amamentaria o seu filho e com isto se diminuiria a mortalidade infantil. Os indivíduos seriam felizes e a nação tornar-se-ia próspera e rica no imaginário burguês do capitalismo brasileiro no início do século XX. 82 CAPÍTULO IV — O ABANDONO DO ALEITAMENTO 1. A SOCIEDADE URBANO-INDUSTRIAL — O URBANISMO COMO MODO DE VIDA E SUA RELAÇÃO COM O ALEITAMENTO: No início do século, a sociedade brasileira começou a apresentar novas transformações que se concretizaram na passagem da economia agrário-exportadora para a sociedade urbano-industrial. O café ainda dominava o cenário econômico e as cidades começavam a se organizar, mas constituíam, ainda, apêndices do setor rural. Foi nas décadas de 20 e 30, com a crise do café, que os capitais agrários se dirigiram para financiar a acumulação industrial, principalmente em torno da cidade de São Paulo, que se tornou o pólo dominante da economia. A industrialização trouxe como seu corolário dois processos que vamos analisar a seguir: a urbanização e a consolidação do modo de produção capitalista, que vai destruindo, pouco a pouco, as antigas relações de produção. "A ascensão da burguesia e a imposição da sua hegemonia supõem a instituição de um novo imaginário social, de novas formas de percepção cultural e de uma nova sensibilidade" (RAGO: 1985,169). Na análise do processo de urbanização e industrialização da sociedade brasileira, devemos entender que cada cidade teve causas diversas para a explicação do seu crescimento. Não é nosso objetivo estudar tais processos, pois eles fogem ao âmbito deste trabalho. Pretendemos, tão somente, traçar as características gerais e as transformações que acompanham o processo de constituição do urbanismo. É muito comum se dizer que o fenômeno da urbanização esteja, de alguma forma, relacionado com o abandono do aleitamento natural, porém há sociedades que, mesmo sofrendo os processos de industrialização e urbanização, permanecem amamentando as suas crianças. Se bem que tal processo possa ter certa influência, devemos também atentar para o fato de que, na década de 80, estamos percebendo o retorno ao aleitamento natural exatamente entre as mulheres mais ricas e instruídas dos grandes centros urbanos, como, por exemplo, a cidade de São Paulo. Nesse caso, a evolução das mentalidades sobre o aleitamento poderia guardar uma evolução relativamente autônoma em relação aos processos sociais mais amplos, não estando ligada, necessariamente, ao fenômeno da urbanização. Por outro lado, é de se supor que as transformações urbanas, alterando diversos setores da vida social, tendem a se refletir de modo desfavorável sobre a amamentação. Analisaremos, a seguir, essas mudanças. 83 Embora a cidade seja o local característico do urbanismo e centro de irradiação de idéias e práticas associadas ao modo de vida urbano, tal modo de vida não se confina às cidades e atinge outros núcleos populacionais, como os rurais. Este processo tem sido descrito como a "urbanização do campo". A cidade passou a ser o pólo mais dinâmico da vida econômica, política e cultural, colocando sob a sua órbita de influência, a maioria da população do país. A difusão do modo de vida urbano se faz mais fácil e rapidamente pela proximidade geográfica, pelos transportes e meios de comunicação de massa. Apesar de dominante, o modo de vida urbano não eliminou completamente os modos de associação e relações humanas anteriores, mais tipicamente "rurais", de culturas tradicionais ou de folk8, que se acham ainda presentes e atuantes no intercâmbio social. Wirth define a cidade como um "núcleo relativamente grande, denso e permanente de indivíduos socialmente heterogêneos" (WIRTH: 1967,104). A presença de um grande número de pessoas no mesmo espaço, leva à maior variabilidade individual, provoca a ausência de um conhecimento pessoal íntimo, segmenta as relações humanas que se tornam anônimas, superficiais e transitórias. A densidade de população envolve diversificação e especialização, coincidência de contato físico estreito e relações sociais distantes, um padrão complexo de segregação e a predominância do controle social formal. "A heterogeneidade tende a quebrar estruturas sociais rígidas e a produzir maior mobilidade, instabilidade e insegurança, e a filiação dos indivíduos a uma variedade de grupos sociais opostos e tangenciais com um alto grau de renovação de seus componentes. O nexo pecuniário tende a deslocar as relações sociais, e as instituições tendem a atender às necessidades das massas em vez do indivíduo" (WIRTH: 1967, 122). Passo a passo com uma relativa despersonalização do indivíduo, o ambiente urbano produziu uma influência niveladora, ajustando as facilidades e instituições às necessidades da média das pessoas, promovendo, em certa medida, uma socialização da oferta de serviços coletivos e do consumo, constituindo aquilo que se chamou de "era da sociedade de massas". E, "embora a sociedade tenha derrubado as rígidas linhas de casta da sociedade pré-industrial, aguçou e diferenciou grupos de renda e status" (WIRTH: 1967,118). O modo de vida urbano se caracteriza pela substituição de contatos primários 8 cultura de folk — é pequena, homogênea, isolada; economicamente auto-suficiente e de tecnologia simples; com divisão do trabalho e escrita rudimentares; comportamento padronizado, em bases emocionais; tradicional, espontânea, não crítica e com forte senso de solidariedade grupal; mudança social e cultural lenta (LAKATOS: 1986,358). 84 por secundários, pelo enfraquecimento dos laços de parentesco, pelo declínio do significado social da família, pelo desaparecimento da vizinhança e pela corrosão da base tradicional da solidariedade social. Hoje, "a cidade não conduz ao tipo tradicional de vida familiar, inclusive a educação das crianças e a manutenção do lar como local em torno do qual giram as atividades vitais. A transferência de atividades industriais, educacionais e de recreação para instituições especializadas fora do lar, privou a família de algumas de suas funções históricas mais características" (WIRTH: 1967,118). A cidade passou a ser um centro de difusão do novo estilo de vida urbana. Os indivíduos sofreram um processo de ressocialização e mudança de valores tradicionais, alterando-se os padrões de constituição da família, a sociabilidade baseada na parentela e na vizinhança cedeu lugar a relações mais individualizadas e de caráter impessoal. O indivíduo passou a gozar na cidade de uma maior liberdade de controles pessoais e emocionais de grupos íntimos. As pessoas que vieram dos núcleos agrários sofreram uma desorganização dos seus valores tradicionais e, inadaptados ao novo ambiente de vida, passaram a experimentar um processo de aculturação com a sobrevivência de valores "tradicionais" e "modernos" agregados ou integrados. As pessoas precisavam se adaptar ao desempenho de novos status e "papéis", agora multiplicados e segmentados. Com a desorganização cultural, fenômeno de ocorrência normal nas transformações sociais, surgiu, no discurso ideológico, o antagonismo entre o velho e o novo, o arcaico e o moderno. As comunicações enfatizaram a adoção de hábitos novos mais compatíveis com as recentes formas de viver. As pessoas das classes dominadas desejavam incorporar hábitos e valores próprios das classes dominantes. Surgiram as técnicas de marketing e propaganda, inaugurando a era da sociedade de consumo de massa. O novo local de vida das pessoas passou a ser a cidade com um estilo de vida novo e em constante transformação. A urbanização foi responsável pela generalização de "novas" necessidades, promovendo a aspiração por um novo padrão de vida quantitativa e qualitativamente mais elevado, incluindo o consumo de bens "materiais" e "não-materiais". (PEREIRA: 1979,59-70). O efeito-demonstração, a rápida circulação de idéias, a multiplicação de contatos e os meios de comunicação de massa favorecendo a divulgação de informações, gerou um aumento na demanda por bens e serviços (CEPAL: 1979,42-43). É possível que tais transformações tenham contribuído para um decréscimo na prevalência do aleitamento e para a assimilação de valores novos como a alimentação com mamadeira, tida como mais "moderna" e "urbana". Observamos o aparecimento de novas redes de solidariedade, não mais 85 baseadas no parentesco nem em grupos locais, mas em áreas de interesse, fornecidas através de instituições coletivas e do relacionamento mais orgânico e menos mecânico dos indivíduos. O desaparecimento das antigas redes de solidariedade, que as mulheres procuravam como apoio, criou obstáculos ao aleitamento. No ambiente urbano, muitas mulheres poderiam ter se sentido "perdidas". As instituições coletivas de apoio à maternidade e amamentação não se desenvolveram no mesmo ritmo do desaparecimento dos padrões de solidariedade baseados na família. Esta demora na adaptação das instituições aos progressos da base material da sociedade que acompanhou a urbanização foi, sem dúvida, um dos fatores responsáveis pelo não-aleitamento. Antes, o contato de pessoas vindas do meio rural com os citadinos antigos (tidos, normalmente, como mais ricos, poderosos, instruídos, modernos etc) poderia ter induzido, nas mães dessa procedência, o aleitamento artificial. Hoje, diferentemente, as idéias provindas do meio médico, a respeito do aleitamento materno vão atingir essas mães menos informadas através das camadas socioculturais consideradas como superiores pelo comum da população. No próximo item veremos como se alteraram os padrões de constituição da família e o papel de mãe, acompanhando as transformações urbano-industriais. 2. A FAMÍLIA NUCLEAR VOLTADA PARA A INTIMIDADE — A CRIANÇA E A MULHER COMO CENTROS — O AMOR MATERNO: A ressocialização de um operariado, em grande parte oriundo da zona rural, ou urbana, mas ainda inadaptado às novas condições socioeconômicas, exigiu a imposição do modelo imaginário de família criado pela sociedade burguesa. Neste período, nasceu a polícia médica, que tinha por objetivo integrar a população ao novo aparelho de produção capitalista. As cidades insalubres precisavam ser controladas no seu desenvolvimento urbano. A medicina funcionou como um poderoso mecanismo de controle social, medicalizando a família através da puericultura. A família foi redefinida. Passou-se da família extensa à família nuclear. Construiu-se um modelo imaginário de mulher, voltada para a intimidade do lar. A criança passou a ser objeto de cuidados e a freqüentar a escola. Despertou-se nas famílias o sentimento de "intimidade". A educação punitiva e repressiva foi substituída pela idéia de uma educação preventiva. Com o nascimento das cidades industriais não se podia resolver os problemas de 86 desordem pela repressão, pois a economia liberal necessitava conservar e formar população. Por outro lado, os antigos vínculos de escravidão já não atrelavam mais os indivíduos à nova ordem social. Foi necessário despertar nos indivíduos o desejo pela mudança, convencê-los pela persuasão, afrouxar os controles e torná-los mais suaves e eficazes. O modelo higiênico nasceu fruto da síntese e da contribuição de diversos segmentos sociais, dentre os quais se destacaram os médicos. Se as normas higiênicas em relação à criação, ao trabalho e à educação das crianças surtiram efeito é porque elas ofereciam a estas e, correlativamente às mulheres, a possibilidade de uma autonomia maior... (DONZELOT: 1986,55-58). Ao mesmo tempo em que se tutelou a família em alguns pontos, se ofereceu a esta maiores possibilidades de autonomia. Quando a autonomia seguir o rumo traçado pela sociedade a família viverá em seu isolamento e não será interpelada pelos poderes. Quando surgirem crises poderá consultar os especialistas e, quando o seu comportamento chegar ao extremo da desordem, só aí ela sofrerá interferências punitivas. A família necessitava expulsar os estranhos (amas-de-leite, criados, domésticos e parentes mais distantes) para que pudesse se voltar para o lar. A moradia higiênica, aconchegante, o "lar... doce lar", surgiu em torno da criança que necessitava ser preservada e requeria cuidados médicos. Reforçou-se o modelo de feminilidade da esposa, dona de casa e mãe de família. Estimulou-se a mulher a realizar, predominantemente, tarefas no espaço da vida doméstica e a exercer a função considerada sagrada da maternidade. Segundo Rago, o "modelo de mulher simbolizado pela mãe devotada e inteira sacrifício, implicando sua completa desvalorização profissional, política e intelectual... parte do pressuposto de que a mulher não é nada, de que deve esquecer-se deliberadamente de si mesma e realizar-se através dos êxitos dos filhos e do marido" (RAGO: 1985,65). No entanto, algumas contradições ocorreram entre os intentos 'burgueses e a prática social. As mulheres passaram a integrar uma pequena parcela da força de trabalho industrial e do setor de serviços como professoras primárias, enfermeiras, datilógrafas, telefonistas, costureiras, o que lhes desviava tempo e atenção do lar. Para Margareth Rago, pouco a pouco, esses valores foram sendo introjetados pelas mulheres que passaram a sentir o "anátema do pecado, o sentimento de culpa diante do abandono do lar, dos filhos e do marido... o movimento operário, por sua vez, liderado por homens, embora a classe operária do começo do século fosse constituída em grande parte por mulheres e crianças, atuou no sentido de fortalecer a intenção disciplinadora de deslocamento da mulher da esfera pública do trabalho e da vida social para o espaço privado do lar" (RAGO: 1985,63). A respeito desta colocação de Rago, não podemos descartar a possibilidade de um grande número de 87 mulheres daquela época, e hoje ainda, desejarem, culturalmente, serem dispensadas do trabalho fora do lar. Por este ponto de vista, a luta do movimento operário pretendia que se pagasse um salário justo ao homem para deixar a mulher em casa, cuidando da família, o que poderia corresponder aos desejos de ambos. Se isto for uma visão socialmente predominante no período, não se pode atribuir este sentido conspiratório do movimento operário em relação às mulheres. Na opinião de Jurandir Costa, tradicionalmente presa ao serviço do marido, da casa e da propriedade familiar, a mulher viu-se, repentinamente, elevada à categoria de mediadora entre os filhos e o Estado, a criadora das riquezas nacionais (COSTA: 1983,73). Assistiu-se de um lado, à emancipação feminina do poder patriarcal e de outro à colonização da mulher pelo poder médico (COSTA: 1983,255). A família "íntima" e o indivíduo "psicologizado", com capacidade de introspecção, privacidade familiar e conforto doméstico progrediram juntos, no mesmo compasso (COSTA: 1983,98). Surgiu o indivíduo, de personalidade própria, da antiga anomia familiar onde as pessoas tinham papéis sociais apenas derivados dos seus status de sexo, idade e classe social. A família passou a ser um centro de afeto e comunicações sociais, antes diluídas em um ambiente mais denso, que proibia o isolamento e a intimidade familiar. Não havia quase momentos de solidão. Os médicos condenavam a "criminosa leviandade com que é costume se tratarem as coisas da criança" (URCULU: 1882,3). A sociedade da época fazia muito pouco caso da infância. Anteriormente, a criança era assumida pela coletividade e tinha pouca valorização social. O nascimento de uma nova visão da infância acompanhou a idéia de que os encargos de criação dos filhos seriam tarefas femininas. A mulher passou a arcar com esta nova responsabilidade social, às vezes em detrimento de si mesma. O sentimento de infância é uma expressão particular do sentimento mais geral de família. Os progressos do sentimento de família seguiram os progressos da vida privada, da intimidade doméstica e da destruição da antiga sociabilidade. Uma parte das energias da família e, principalmente, da mulher, passaram a ser consumidas na promoção da criança. Para alguns, o desperdício de crianças, o infanticídio que existia nos séculos passados era uma forma social de controle da natalidade excessiva. Por outro lado, esta prática poderia ter uma justificativa social, pois havia uma ambigüidade sobre a vida da criança, como existe hoje a ambigüidade sobre a vida do feto. A propósito, não poderíamos 88 creditar à persistência deste sentimento a indiferença demográfica, provavelmente ainda existente no Nordeste brasileiro e o costume de enterrar-se as crianças no quintal como animais ou anjinhos9? Ariès pergunta se a queda da mortalidade infantil, que se observou a partir do fim do século passado, não seria um componente da constelação de fatores responsáveis pela valorização da infância. Apesar da relativa alteração na percepção da infância, o descaso com que os poderes públicos tratam a vida da criança, a escassez de investimentos e as soluções paliativas que se dão à questão da mortalidade infantil até hoje, mostram que a sociedade valoriza mais a criança da elite. A criança dos guetos e favelas continua tendo menor valor social. Seria isto também um reflexo da "indiferença demográfica", que pode ser resultante de altas taxas de natalidade e mortalidade infantil? Ariès percebe uma ligação entre o sentimento de família, infância e o sentimento de classe. Para ele, "chegou um momento em que a burguesia não suportou mais a pressão da multidão, nem o contato com o povo. Ela cindiu: retirou-se da vasta sociedade polimorfa para se organizar à parte, num meio homogêneo, entre suas famílias fechadas, em habitações previstas para a intimidade, em bairros novos, protegidos contra toda contaminação popular. A justaposição das desigualdades, outrora natural, tornou-se-lhe intolerável... o sentimento de família, o sentimento de classe... surgem portanto como as manifestações da mesma intolerância diante da diversidade, de uma mesma preocupação de uniformidade" (ARIÈS: 1981,279). "No Brasil, as famílias burguesas vão, cada vez mais, se preocupando com os filhos, a ponto de os pais se tornarem angustiados e ansiosos ante qualquer sinal de doença nas crianças" (ORLANDI: 1985,117). Rago descreve a imagem feminina constituída pelo imaginário operário anarquista: "romântica, sensível, ingênua e explorada, a figura da mulher é associada à idéia da flor frágil e desamparada, vítima do capitalismo vil, corruptor e assassino, "máquina inconsciente" destinada a trabalhar e a procriar, ao contrário do homem, dotado de razão, símbolo da força e da coragem" (RAGO: 1985,66). O trabalho era percebido, por alguns setores sociais, como a antítese do lar, 9 A existência do sentimento de fatalidade e negligência no Nordeste brasileiro vem sendo estudado e tem gerado controvérsias. A propósito, Nations & Rebhun, através de entrevistas intensivas e observações, chegaram à conclusão de que a não obtenção de cuidados médicos por parte das mães se deve a barreiras geográficas e burocráticas e ao precário acesso aos serviços de saúde e não a atitudes fatalistas ou de desleixo. Consideram que os sentimentos maternos em relação à morte infantil constituem uma resposta cultural de adaptação à mortalidade excessiva e traduzem crenças e padrões culturais baseados em um sistema folk católico de ética. Esses valores dirigem as decisões das mães sobre os sistemas de classificação utilizados e os cuidados oferecidos à criança doente (NATIONS & REBHUN: 1988,159). 89 local onde a mulher se corrompe e onde se destrói a família. A mulher continuou sendo comparada à ingenuidade da criança, infantilizada, precisando de proteção. A imagem da mãe-sacrifício e da criança-inocência completavam-se numa mesma construção simbólica. O redirecionamento da mulher trabalhadora de volta ao lar e a imagem feminina de criadora e reprodutora foram idéias praticamente consensuais na sociedade da época. Pensava-se que a mulher precisava ser protegida da brutalidade da máquina e a criança necessitava de cuidados. Vê-se que muitos aspectos da moral burguesa foram introjetados na consciência operária. Embora fatores estruturais, como a concorrência da mulher no emprego fabril com o homem, possam ser cogitados como motivadores deste comportamento, é na superestrutura ideológica e na cultura que residem, predominantemente, as causas dessa desvalorização feminina. Essa trajetória familiarista "não detém a entrada das mulheres na força de trabalho, mas a organiza em moldes que introduzem na carreira feminina o princípio de uma promoção que passa pela aquisição de uma competência doméstica. O trabalho industrial das jovens, das mulheres solteiras e das esposas pobres é reconhecido como uma necessidade ocasional e não como um destino normal" (DONZELOT: 1986,42). A mulher se orienta para profissões administrativas, assistenciais e educativas que correspondem melhor à sua vocação "natural". O trabalho doméstico da mulher substitui o dote. Diminui-se uma despesa social com um acréscimo de trabalho não remunerado. Não concordamos com a tese que advoga que o capitalismo teria engendrado, para seu uso, a forma de família que lhe convinha, ao atribuir às mulheres o trabalho doméstico. Como se isso fosse uma novidade histórica e como se a família constituísse uma forma social definitiva. "Nenhuma prática social concreta não é jamais a pura expressão ou manifestação de uma prática social única... Partir, mais de uma vez, das relações sociais é, de início, romper com os pontos de vista unilaterais, a partir dos quais a família é apenas um instrumento do capital e, como tal, patrulhada pelos aparelhos estatais, constituída, definitivamente, para a necessidades da produção e por elas incessantemente reproduzida. Assim, a única dinâmica seria a sua submissão progressiva aos dispositivos que o modo de produção capitalista desenvolve para colocá-la sob seu controle" (COMBES & HAICAULT: 1986,32-34) . Como as mulheres reagiram a estas tentativas de atribuir à mulher o papel preponderante de mãe e dona de casa? Algumas combateram mas foram silenciadas pelo discurso dominante. Outras se resignaram ou até concordaram com seu novo papel. E algumas resistiram, talvez, na recusa ao casamento, à maternidade, à amamentação ou pela 90 prática do aborto. Passo a passo com esta tentativa de redirecionamento da mulher para o interior do lar, assistiu-se a uma mudança de comportamento social em relação à infância e à maternidade. As mortes infantis eram atribuídas pelos médicos ao modo de alimentação e ao descuido em relação à criança. A imagem da criança como pecadora, derivada da idéia religiosa do pecado original foi desaparecendo para dar lugar à imagem da criança como ser inocente e puro, necessitando de proteção. Muitos pais eram frios em relação à criança para não alimentar a sua malignidade natural. Imaginava-se que a ternura poderia estragar e viciar a criança. A amamentação voluptuosa era considerada pelos médicos um prazer ilícito que a mãe se proporcionava e que causava a perda moral da criança. A sociedade, que antes considerava a criança como um estorvo, passou a sentir pena dela, e a sua morte prematura, começou a ser notada e vivenciada com o choro e a dor. Acompanhando estas mudanças, surgiu na literatura médica do início do século a preocupação com o carinho à criança. É o que se deduz de Icard: "o fato de ser mãe se traduz por três atos: no primeiro nutris vosso filho com vosso sangue, no segundo com vosso leite, no terceiro com vossos afetos" (apud BORBA JÚNIOR: 1913,36). Boltanski percebe que a representação de infância presente hoje nas classes populares é aquilo que Ariès chamava de "paparicação" e que era vivenciada pelas classes superiores no século XVII. Este sentimento pressupõe a criança como um animalzinho, intermediário entre o ser e o não ser. Porém, a representação da infância nas classes superiores, na década de 80, já considera a criança como um ser completo, com sentimentos e uma personalidade . A divisão do trabalho passou a atribuir a tarefa de maternagem quase inteiramente à mãe e surgiu a imagem social do amor materno perfeito que tudo suporta em benefício do seu filho, com caráter ascético, de devoção e doação. Novamente se percebe que os valores culturais permanecem impregnados de imagens religiosas, apesar da secularização aparente dos costumes. Surgiu o discurso ideológico do aleitamento materno como um instinto natural, inato, biológico. A sociedade passou a não admitir o abandono da criança pela mãe, expulsou a ama-de-leite das residências, incentivou o aleitamento materno e decretou a imutabilidade do sentimento maternal. Badinter contesta a tese do amor materno como um instinto no seu livro e relativiza o sentimento maternal. Percebe que este sentimento varia segundo a cultura, ambições e frustrações da mãe. É um sentimento humano como outro qualquer e, por isso, 91 incerto e frágil. Considera que uma mulher tem o direito de não querer procriar, de não amamentar e até mesmo de não querer criar o seu filho, de não amar o seu filho. Exemplifica sua tese, mostrando sociedades primitivas, nas quais se encontravam pais maternais e mães cruéis, para ilustrar a flutuação deste comportamento. Percebe que é em função das necessidades e dos valores dominantes de uma dada sociedade que se determinam os papéis do pai, da mãe e do filho. E pergunta: "não teremos, com excessiva freqüência, tendência a confundir determinismo social e imperativo biológico?" Prossegue, argumentando: "os valores de uma sociedade são por vezes tão imperiosos que têm um peso incalculável sobre os nossos desejos... a diferença entre a fêmea e a mulher reside exatamente nesse 'mais ou menos' de sujeição aos determinismos. Essa originalidade é própria do ser humano e a natureza não sofre tal contingência... o amor, a moral, os valores morais e religiosos condicionam a mulher a cumprir o papel de mãe" (BADINTER: 1985,16-17). Algumas mulheres da época percebiam a maternidade e a criadagem como empecilhos à sua liberdade e emancipação. Os homens, para não perderem o seu poder, tentaram reconduzir a mulher ao seu papel de mãe (BADINTER: 1985,100). A libertação ao papel de esposa e mãe era visto, por algumas mulheres, como o modelo estereotipado de mulheres liberadas à época, modelo esse que é hoje, o da liberada sexualmente. No discurso de remodelação de valores, a maternidade deixou de ser um dever para se tornar uma atividade nobre e invejável. Ofereceram-se recompensas ao casamento e à maternidade: "uma relação mais sólida entre os membros da família, o amor do marido, a mulher elevada à condição de figura central de seu território. De outro lado as punições: sentimento de culpa, frustração, os castigos da natureza contrariada, os perigos físicos da não-procriação ou da retenção do leite..." (RAGO: 1985,80). A amamentação passou a ser uma atividade valorizada, as mulheres foram consideradas como responsáveis pelo futuro da nação e pela felicidade da família. O aleitamento passou a ser visto como um grande prazer para a mulher e um fator indispensável para a felicidade dos filhos. Mais ou menos, as mulheres acabaram aceitando algum sacrifício em detrimento de si mesmas, para o bem da prole. A libertação da criança se fez, em parte, com a alienação da mulher-mãe. A mãe precisa, agora, estar sempre em casa para vigiar os filhos. A falta de amor materno passou a ser considerado um crime imperdoável. A mulher com esta transformação amplificou o seu poder em detrimento da autoridade paterna. Segundo Badinter, a propaganda não convenceu todas as mulheres mas lhes fez sentir responsabilidades e culpa quando não podiam assumir seus deveres. Na sua opinião, as que se recusaram a obedecer 92 aos novos imperativos, sentiram-se obrigadas a trapacear e a simular (BADINTER: 1985,235). Para Donzelot, "o advento da família moderna centrado no primado do educacional não é, portanto, efeito da lenta propagação de um mesmo modelo familiar através de todas as camadas sociais, segundo a lógica de sua maior ou menor resistência à modernidade". Há duas linhas distintas: a família burguesa se retrai para o interior e expulsa os serviçais e a família popular se amolda a partir de uma redução de cada um de seus membros aos outros, numa relação circular de vigilância, contra as tentações do exterior, o cabaré, a rua (DONZELOT: 1986,46-47). Para a burguesia o perigo estava dentro de casa e para o trabalhador o perigo estava fora. Porém, ambos os modelos convergem para a intimidade. 3. A CONSOLIDAÇÃO DA PUERICULTURA: Neste item, vamos nos deter na análise da puericultura, analisar o seu discurso emergente e descrever as funções que passou a desempenhar na sociedade. Vamos considerar as articulações da puericultura com a realidade social, estudando suas motivações e temas fundamentais. A constituição da puericultura, enquanto objeto de preocupação médica, surgiu no bojo de uma série de mudanças socioculturais proporcionadas pelo advento do capitalismo, que trouxe consigo a urbanização e a industrialização. Para Rosen, ocorreu uma reorientação da medicina no sentido de um novo modo de articulação com as estratégias políticas e econômicas da nova estrutura de produção que se consolidaria (apud NOVAES: 1979,19). A expansão do modo de produção capitalista trouxe consigo várias mudanças: a nova ordem social capitalista aprofundou a divisão social do trabalho e elevou o nível das forças produtivas a alturas nunca anteriormente atingidas. Tornou os indivíduos mais interdependentes, exercendo atividades complementares, estimulou e desenvolveu o desejo de cooperação. A produção individualizada de bens e serviços foi cedendo lugar, paulatinamente, à produção coletiva, fazendo surgir, cada vez mais, as especializações. Cada parcela da cultura passou a se constituir em um saber autônomo, muitas vezes codificado através de estatutos científicos. Por causa de tais transformações, a medicina incorporou como seu objeto de saber e atuação a mulher e a criança. "A conquista desse 93 mercado pela medicina implicava, portanto, uma destruição do império das comadres, uma longa luta contra suas práticas consideradas inúteis e perniciosas" (DONZELOT: 1986,24). Novos valores surgiram, outros foram redefinidos, nasceram novas modalidades de controle social. Dentre as mudanças culturais, pode-se destacar a constituição da família nuclear moderna, o sentimento da infância, a redefinição dos papéis masculino e feminino na sociedade e o sentimento de classe. Nasceram as representações simbólicas da criança como "reizinho da família", da mulher como "rainha do lar", do homem como "provedor material" e dos criados como "estranhos". Estas fantasias e imagens culturais foram, pouco a pouco, se internalizando no imaginário coletivo e tomando as formas de "realidade". No Brasil, as condições para a emergência da puericultura foram dadas com o nascimento das indústrias, o crescimento das camadas médias urbanas, a abolição da escravatura e a chegada de uma grande massa de imigrantes (NOVAES: 1979,41). Novaes discute que a puericultura chegou ao Brasil antes da consolidação do capitalismo burguês e da formação do proletariado, sem representar uma necessidade sentida pela sociedade. Considera que "na história brasileira, muitas idéias estiveram 'fora do lugar'. Isto é, chegaram as idéias mas não a forma de organizar a produção econômica que lhes dá sentido" (NOVAES: 1979,50-52). A puericultura chegou, em parte, devido à imitação da puericultura francesa, e também porque o Brasil já começava a se industrializar e a tomar consciência da necessidade de proteger sua força de trabalho (L0Y0LA: 1983,41). A puericultura surge, como idéia, ainda durante o Império mas se consolida enquanto prática social já durante a República. Foi só em 1890 que a puericultura se transformou em um saber autônomo, com um corpo coerente de conhecimentos teóricos e de regras práticas. Os conselhos se transformaram em ordens. Foi necessário "substituir as maneiras de agir habituais regidas pelo costume, transmitidas pela tradição, por regras, por maneiras de agir obrigatórias que se libertassem da arbitrariedade indivi- dual" (BOLTANSKI: 1984,22). A partir desse instante, passou a existir no discurso médico apenas uma lei legítima para cuidar do bebê. Todas as demais práticas não mais pertenciam à medicina oficial. A puericultura nascente era autoritária, dogmática e pretensamente racional. A mudança no tom da puericultura, onde, ao lado de conclusões mais "científicas", o exagero de razões morais foi deixando lugar ao estabelecimento de regras curtas, concisas, para serem cumpridas sem questionamentos, é notada nas obras médicas 94 do fim do século passado e início deste. Esta fase poderia ser denominada de fase de transição da puericultura. Para Donzelot, a transformação do conselho em ordem se deveu ao fato de que, "após Lavoisier, a concepção maquinística do corpo não se sustenta mais: com ela desaparece a congruência perfeita entre doutrina médica e moral educativa. Os médicos não dispõem mais de um discurso homogêneo, mas sim, de um saber em pleno movimento e são levados a separar taticamente o registro dos preceitos sobre a higiene do registro da difusão de um saber" (DONZELOT: 1986,22). A puericultura não conhece a relatividade do normal. Para ela o normal é constante e ahistórico. O saber médico determina os padrões de normalidade e tenta ditar as atitudes dos sujeitos em relação ao próprio corpo, incluindo juízos de valor moral. Isso temse observado historicamente, inclusive até os dias atuais, embora tal situação tenha se modificado um pouco. A puericultura, em sua "missão civilizadora", de domesticar os "novos bárbaros", vindos do campo para trabalhar nas cidades, tem, como condição para sua eficácia enquanto discurso ideológico, que negar as diferenças sociais e insistir na normatização. Tal intento só pode ser obtido através de um discurso autoritário e fechado às críticas. Há uma conotação ideológica na puericultura porque "toma uma situação que é efeito e a transforma em causa: pensa as más condições de saúde como conseqüência de uma falta de informação das pessoas e não como reflexo de uma situação de vida em que a má saúde e a ignorância fazem parte de uma única condição de inferioridade social" (NOVAES: 1979,11). "Não é propriamente o que é ensinado que tem uma natureza ideológica. Todavia, transparece a ideologia na forma em que o ensino é feito e, principalmente, na função que lhe é atribuída pela sociedade. Ambas são instrumentos de legitimação das diferenças, exatamente por pensarem a igualdade" (NOVAES: 1979,31-32). Para Boltanski, as regras de puericultura, apesar de negativas e apresentadas como proibições, são menos condicionantes do que parecem, pois se prestam a reinterpretações muito diversas e podem se integrar perfeitamente à subcultura das classes subalternas. Percebe-se a mudança no tom das obras de puericultura no Brasil quase concomitantemente à sua emergência na França. No nível do saber acadêmico, os reflexos da puericultura francesa se fizeram notar logo nas obras dos médicos brasileiros. Os médicos tornaram-se menos tolerantes com a amamentação mercenária, ordenaram a 95 esterilização das mamadeiras e instituíram horários regulares de amamentação e pesagem periódica da criança. Porém, os médicos não lograram de todo o êxito no seu intento. Boltanski observa que, na França, a adesão às regras de puericultura foi maior na classe alta e média e menor na classe baixa. É verdade que muitas das ordens emitidas foram obedecidas e muitos dos valores difundidos nas obras médicas se popularizaram. O Dr. Moncorvo Filho, um dos pioneiros da puericultura brasileira, definia a higiene como "a parte da medicina que cuida da saúde das pessoas, estabelecendo as regras do modo de viver com cuidados imprescindíveis, sobre a habitação, a alimentação, o vestir, o dormir, a educação etc" (apud RAGO: 1985,117). Uma das preocupações dos puericultores era "praticar a eugenia e contribuir para o melhoramento da raça" (FORTES: 1936). É indiscutível que a puericultura, aumentando os conhecimentos sobre o corpo infantil, forneceu noções que ajudaram na manutenção da saúde da infância. Por outro lado, paralelamente ao seu benefício técnico, trazia, traduzido "cientificamente", um poderoso instrumento de regulamentação e controle social. Apesar do seu objeto ser, aparentemente, a criança, a sua intervenção era mais abrangente, incluindo o próprio modo de vida familiar. A discussão dos principais problemas enfrentados à época, a alta taxa de mortalidade e o abandono infantil, conduzia a um diagnóstico familiar da crise. A família necessitava cuidar da sua própria infância desamparada. Para tanto necessitava redimensionar o seu modo de vida. "A preocupação médica com a preservação da infância, no Brasil, esteve presente desde meados do século XIX e intensificou-se nas primeiras décadas do século XX, momento de constituição do mercado de trabalho livre'". Porém, "a criança foi percebida pelo olhar disciplinar, atento e intransigente, como elemento de integração, de socialização e de fixação indireta das famílias pobres, e isto antes mesmo de afirmar-se como necessidade econômica e produtiva da nação" (RAGO: 1985,118). O desperdício de vidas talvez passasse a ser percebido com maior intensidade nos fins do século XIX, devido ao extremo grau de disfuncionalidade a que chegou o comportamento social em relação à criança. Isto poderia ameaçar o equilíbrio social e a sobrevivência da espécie. A percepção do desvio surgiu antes do discurso demográfico que notou o despovoamento e identificou nas práticas familiares, no abandono e recusa ao aleitamento, suas principais causas. A demografia surgia também, com preocupações econômicas. Uma delas era com uma escassez futura de braços a que tais práticas levariam, se não se interviesse nos modelos de 96 comportamento dos indivíduos e se não se estimulasse a natalidade. Havia, ainda, ao mesmo tempo, uma preocupação política: "dar assistência médica e proteção à infância significava evitar a formação de espíritos descontentes, desajustados e rebeldes" (RAGO: 1985, 121). Ao lado de orientadores da família, os médicos ocupavam outro lugar social: o de conselheiros da ação governamental ou mesmo de membros do aparelho de Estado. Fundaram instituições sanitárias, de assistência e proteção à infância desamparada, maternidades e algumas creches. A legislação foi acompanhando a mudança de mentalidades e criou as bases para a solidificação do Estado burguês moderno. "A ordem médica vai produzir uma norma familiar capaz de formar cidadãos individualizados, domesticados e colocados à disposição da cidade, do Estado, da pátria" (COSTA: 1983,48). A lei, repressiva, foi substituída pela norma, que busca atuar pelo convencimento, através dos saberes "racionais" e científicos e das práticas traduzidas em técnicas físicas de controle corporal e regras de ação prática. O dispositivo médico é uma instituição normativa de disciplinarização do cotidiano dos indivíduos (COSTA: 1983, 50-51). Os serviços de puericultura surgem no Brasil em meados de 1910, muito embora, como se disse atrás, suas idéias já circulassem nos meios médicos quase simultaneamente com o seu surgimento na França. Os principais propósitos dos puericultores na proteção à infância eram: 1-instruir as mães sobre a maneira de criar os filhos, através de regulamentação e regras; 2-vigiar as crianças e o seu desenvolvimento; 3-indicar e proporcionar os alimentos que elas necessitam para serem administrados de acordo com os preceitos de higiene. Segundo Moncorvo Filho, de 1500 até o século XVII não se notava no Brasil preocupação com a infância. Em 1882 fundou-se a cadeira de moléstias das crianças. Porém, só a partir de 1889 é que se percebe o nascimento da filantropia, a propaganda da higiene infantil saiu da universidade e se iniciaram cursos para mulheres na Policlínica Geral do Rio de Janeiro, fundada em 1881. Surgiu o interesse geral pela criança como fato social. Mas o Estado ainda não intervia neste caso (MONCORVO FILHO: 1926,15-16). As medidas empreendidas ficavam a cargo de médicos filantropos e instituições beneficentes como as Santas Casas de Misericórdia. Só mais tarde, em 1940, com a criação do Departamento Nacional da Criança, o Estado assumiu para si o encargo com a criança. Nas duas primeiras décadas do século XX criaram-se creches, maternidades, jardins de infância em resposta às pressões populares resultantes das condições de vida 97 precárias que se instalaram com a industrialização. A intensidade dos movimentos operários provocou as primeiras respostas oficiais de proteção à criança, através de medidas legislativas de proteção ao trabalho infantil. Na época vigorava o liberalismo econômico e o Estado não tinha o poder de vigiar as indústrias e regulamentar o trabalho das mulheres e dos menores. Os médicos clamavam pela intervenção do Estado. A filantropia, que havia nascido para fazer face às desordens e problemas sociais passou a dar lugar a uma maior atuação do Estado na área social, através de medidas legislativas e novas instituições assistenciais públicas. A caridade privada cedeu lugar ao assistencialismo público. Uma medida que exemplifica a atuação do Estado foi o decreto 4983, de 1925, que, em seu artigo 361, não reconheceu a indústria de amas-de-leite e estabeleceu proteção ao filho da ama, que deveria ter no mínimo 4 meses de idade antes que a mãe pudesse empregar-se nessa função, além de exigir exames médicos periódicos para garantir um estado de saúde razoável para a mulher (NOVAES: 1979,82-84). As preocupações sociais em relação aos problemas sociais eram discutidas, entre outros grupos sociais, pelos médicos. O modelo filantrópico havia atingido o seu limite de intervenção e, como os problemas sociais se avolumavam, nasceu a necessidade de uma maior atuação do Estado nesta área, surgindo, na década de 20, o que se convencionou chamar de "políticas sociais públicas". Muitos médicos passaram a dirigir as ações sanitárias englobadas como tarefa do Estado moderno. Consideramos um absurdo querer atribuir ao sistema capitalista um grau de racionalidade que nenhum sistema possui, considerando que os agentes sociais dominantes tinham um plano histórico perfeito e acabado. Nem se poderia considerar que os médicos representavam os interesses do Estado capitalista em formar mão-de-obra, pois as suas preocupações diziam respeito a problemas muito mais imediatos e menos relacionados com as condições globais do sistema em que estavam inseridos. A nova ordem social foi criada, dialeticamente, pelos sujeitos sociais, dominantes e subordinados, que dela participaram. Tem sido razoavelmente comum, em algumas interpretações dos processos sociais, a atribuição de uma completa funcionalidade às intenções dos sujeitos históricos. Tudo funcionaria como se as funções manifestas dos agentes se realizassem em benefício dos mesmos e do sistema, e que não pudessem, também, se tornar disfuncionais. Achamos que nem sempre as intenções dos agentes se realizam e que, muitas vezes, funções consideradas por estes como funcionais acabam tendo um resultado completamente diverso do imaginado. As decisões individuais geralmente não obedecem a uma visão global, 98 estando calcadas mais no interesse imediato. "Pode-se conceber a história como um processo racional, mas não no sentido de atribuir aos homens que a fizeram um plano coerente, como se em sua ação fossem sempre movidos pela vontade de alcançar fins definidos a médio e a longo prazo" (PEREIRA: 1984,17). Os sujeitos fazem história geralmente através de ações e reações ditadas pelo momento vivido. As alternativas criadas pelas ações humanas são, na maior parte das vezes, limitadas, porque a organização socioeconômica sob a qual vivem tende a fazê-los agir de modo a reproduzir o mesmo estado de coisas (PEREIRA: 1984,18). É bem verdade que, mais tarde, o desenvolvimento capitalista engendrou a formação da classe dos homens públicos que planejam pensando no desenvolvimento do sistema como um todo. Apesar de suas decisões, tomadas geralmente a nível macroeconômico, não estarem ligadas necessariamente ao seu interesse imediato como empresários ou consumidores, estão sujeitos às mesmas limitações, pois todas as conseqüências das ações humanas não podem ser previstas nem sempre se obtém êxito na tentativa de controle das conseqüências disfuncionais através da mudança social dirigida. Estudaremos, em capítulo posterior, o nascimento do planejamento e dos programas de incentivo ao aleitamento materno. A análise das políticas públicas de saúde em relação à saúde infantil fogem ao objeto deste trabalho. Oferecemos apenas alguns exemplos para ilustrar as mudanças nas percepções sociais de atenção à infância. 4. PROGRESSOS NA ESTERILIZAÇÃO — O ALEITAMENTO ARTIFICIAL COMO ALTERNATIVA VIÁVEL — O DISCURSO MÉDICO ADAPTADO ÀS NOVAS CIRCUNSTÂNCIAS: Poderíamos dividir o discurso médico sobre o aleitamento em 4 fases, de acordo com as valorizações e exceções a nível da prática médica sobre a amamentação. Não podemos afirmar que tais posições fossem generalizadas, porém temos certeza que representavam as idéias dominantes na elite médica das respectivas épocas. Desse modo, tivemos uma primeira fase, que percorreu todo o século passado, na qual os médicos estimulavam a alimentação natural, mas eram complacentes com a amamentação mercenária, apesar da condenação presente no discurso. A segunda fase se deu entre os fins do século XIX e o início do século XX, até a Segunda Guerra. Nesta, a puericultura tinham 99 mensagens rígidas de amamentação e praticamente não admitia exceções, apesar do comportamento social continuar refletindo um decréscimo no aleitamento. A terceira fase foi da Segunda Guerra até a década de 70, na qual os médicos estimulavam o desmame e a utilização dos leites artificiais e praticamente renegaram o aleitamento materno a segundo plano. A corporação sucumbiu aos benefícios da ciência e da técnica, numa aliança poderosa com as multinacionais de alimentos. A última fase é a que estamos assistindo atualmente, a partir da década de 80, na qual os médicos voltam a estimular o aleitamento. As exceções a esta prática diminuem e começa a se questionar a existência da hipogalactia. É visível que as regras de alimentação variaram muito desde a época colonial até nossos dias. No século passado, até a idade de 10 a 15 meses as crianças, segundo os médicos, deviam tomar apenas leite de peito, preferentemente da sua mãe. As exceções médicas à prática do aleitamento eram físicas (agalactia, doenças, fraqueza da constituição, vícios de conformação dos seios) e morais (o leite secretado sobre a influência de emoções e impressões morais vivas podia prejudicar a criança). Os médicos, apesar da condenação, toleravam a existência de amas-de-leite. O leite de vaca fresco era, então, o mais utilizado para a alimentação artificial. Porém, estava sujeito à deterioração e contaminação, o que o tornava impróprio à alimentação infantil. "Os descobrimentos de Pasteur provocaram uma verdadeira revolução na questão da lactância artificial; o uso do leite esterilizado livrou este tipo de alimentação de grande parte de seus perigos" (BOLTANSKI: 1984,37). A pasteurização consiste na elevação da temperatura do leite até 75 a 80 graus centígrados, seguindo-se um resfriamento brusco para livrá-lo dos germes. Pouco a pouco, se nota a chegada dos leites e alimentos infantis industrializados. Em 1882, Cerqueira cita o leite condensado, geralmente desnatado e a farinha láctea, artigos que podiam ser obtidos do estrangeiro, por importação. O leite condensado surgiu para abreviar o problema da deterioração rápida do leite de vaca. Apareceram os bicos de mamadeira maleáveis, o que facilitou a administração do leite. Mas o leite condensado e desnatado, se por um lado afastou o problema da contaminação, não é um alimento adequado para o bebê, pois a ausência de gordura não promove o desenvolvimento satisfatório da criança. Além disso, o excesso de açúcar pode provocar danos no lactente. Os médicos alertavam: "E não se deixem as mães seduzir pela grande variedade de meios que, além da natureza lhes oferece a indústria para a alimentação de seus filhos" (CERQUEIRA: 1882). O aleitamento por ama era considerado, ainda, superior ao 100 artificial. A mamadeira foi utilizada inicialmente para facilitar o desmame sendo, depois, paulatinamente incorporada mais cedo na alimentação. O aleitamento artificial era um grande incômodo, tantos os cuidados necessários para tal fim. As mamadeiras eram disfuncionais, difíceis de retirarem-se os coágulos na lavagem. No início do século, as exceções à amamentação diminuíram, o que mostra um novo interesse dos médicos no seu incentivo. Somente as mulheres doentes ou com seios defeituosos, segundo os higienistas, não podiam amamentar. A mortalidade infantil era alta para as crianças alimentadas com mamadeira e a perda de vidas se tornara, provavelmente, um prejuízo que a sociedade não podia mais tolerar. Ao que tudo indica, esta revalorização do aleitamento nas obras médicas não se fez acompanhar de um incremento no aleitamento materno. O surgimento dos galactagogos, substâncias destinadas a estimular a secreção láctea, como o lactagol ou a galega officinalis, mostrava a importância dada ao estímulo do aleitamento materno e refletia, também, as dificuldades encontradas pelas mulheres na amamentação. Podemos considerar esta fase como um período de transição em que diminuiu a prática da amamentação mercenária, porém o hábito do aleitamento artificial tinha uma difusão ainda muito restrita. Nos primeiros anos do século XX, começou a aparecer, na literatura médica, a preocupação com o tema da hipogalactia. A diminuição ou ausência de secreção láctea surgiu como uma dificuldade ao aleitamento, até então inusitada ou encontrada apenas nas damas da alta sociedade. Esta "nova doença" talvez traduzisse a expressão orgânica de uma nova prática sociocultural, o desmame precoce, que surgiu paralelamente ao aparecimento do leite esterilizado. Os médicos passaram a indicar o aleitamento artificial como solução para os casos de "hipogalactia". Modificou-se, também, a percepção médica sobre a mamadeira. No século anterior, imaginava-se que, com a mamadeira se conservasse o instinto de mamar. Porém, já se notava que, a alimentação com mamadeira, reduzindo a sucção ao seio, pode provocar a diminuição da secreção láctea. Apesar disto, grande número de médicos pensava que o poder de amamentar diminuiu nas mulheres (BALREIRA: 1911,12). Para Balreira, a hipogalactia é um fenômeno passageiro que resulta da violação das regras da amamentação. Outros achavam que a herança é que traz a perda da secreção láctea. Para Fortes foi o exame do leite, para ver se era fraco, que gerou a crença do leite insuficiente (FORTES: 1936). Segundo Orlandi, o fim da escravidão e a entrada das mulheres no trabalho industrial foram alguns dos fatores responsáveis pela diminuição das nutrizes mercenárias. 101 Achamos que o fator trabalho não deve ter sido muito importante, pois apenas uma parcela mínima das mulheres exercia atividades remuneradas fora do domicílio. Cremos que o grande motivo para a redução no hábito de amamentação por amas tenha sido o aparecimento da alimentação artificial segura, que passou a ser um meio mais prático e mais econômico de se alimentar a criança, quando não se observasse o aleitamento natural. Para Orlandi, o desenvolvimento dos leites artificiais serviu a duas finalidades: "por um lado, liberava a mulher para o trabalho, onde ela ganhava menos que o homem e, por outro, colaborava com o incentivo do consumo para o desenvolvimento da nova indústria que surgia" (ORLANDI: 1985, 108). Nas obras médicas do período, as descrições de desnutrição ou atrepsia, do grego athrépsis, ficaram mais freqüentes; com a industrialização, a formação do proletariado e a absorção da mulher na força de trabalho, os trabalhadores passaram a fazer uso muito mais freqüente do leite de vaca e do leite condensado, apesar de ser pequeno o número de mulheres que trabalhavam fora. Segundo um dos autores consultados, em países industriais, as mulheres, pelas dificuldades da vida, foram compelidas a trocar o lar pela fábrica, forçando o médico ao refúgio da alimentação artificial (FORTES: 1936). As relações entre aleitamento artificial, contaminação e desnutrição começaram a se fazer presentes no discurso médico: "a disenteria conta entre as causas de ordem higiênica, a alimentação viciosa, o abuso dos frutos, os alimentos grosseiros, o uso da água impura... verdadeiro flagelo da classe pobre, a atrepsia é a conseqüência de uma alimentação insuficiente ou indigesta que a criança não podendo assimilar, expele-a pelos vômitos ou pelas evacuações e logo recusa os alimentos" (COELHO: 1902,13-14). Junto com a desnutrição apareceram o raquitismo e o escorbuto, visualizados, também, como conseqüências da má alimentação. Nota-se que a sociedade da época, apesar da condenação médica, passou a fazer uso cada vez mais precoce e freqüente da água açucarada e chás nos intervalos das mamadas e de farinhas e sólidos. Para os médicos desse tempo, a negligência, os hábitos viciosos e os preconceitos nocivos contribuíam para as mazelas infantis. Condenavam a administração de água açucarada que, além de não nutrir, podia provocar vômitos e introduzir no tubo digestivo germes, às vezes patogênicos. O costume de dar xaropes de chicória, ruibarbo ou óleo de amêndoas para a expulsão do mecônio, a conselho das aparadeiras e o de dar sopas, pão, caldo de carne, papas de farinha, massas indigestas, feijão, arroz e até as frutas, antes dos primeiros dentes era desaconselhado pelos médicos. Segundo eles, a mulher peca por "ignorância dos preceitos da higiene, ou por não atender aos conselhos que lhe fornece a 102 ciência" (COELHO: 1902, 11-13). Na época, as benzedeiras costumavam esfregar óleo de azeite na espinha da criança, junto com rezas para aliviar a desnutrição, popularmente conhecida como "mal de espinha ou do espinhaço" (FORTES: 1936). Coelho cita e contesta a afirmação de um médico europeu, Bunge: para este, "há um número considerável de mulheres cuja secreção láctea é insuficiente ou nula. Se a opinião de Bunge prevalecesse, serviria de pretexto para muitas mães desanimarem ou esquivarem-se do aleitamento, desde que houvesse a menor dificuldade" (COELHO: 1902,33-34). E não teria mesmo ocorrido este fenômeno? As transformações na percepção médica sobre o aleitamento artificial foram se sucedendo: "É procurando realizar todas estas condições de temperatura, de assepsia pela esterilização e de composição pelo adicionamento de certas substâncias, que se tem feito do aleitamento artificial um método de alimentação muitas vezes superior à ama mercenária" (COELHO: 1902,47-48). Porém, as regras higiênicas de preparo exigiam tempo, perseverança, e atenção e eram, ainda, muito trabalhosas, além do que tinha que se observar a diluição com água. Coelho afirmava: É preciso que o "alimento artificial seja de fácil preparo, de módico preço e cômoda aquisição, por isso que os que mais precisam de lançar mão de tais recursos alimentícios são, em geral, pobres e pertencem às classes operárias, dispondo, via de regra, de escasso tempo" (COELHO: 1902,48). Em 1901, Variot inventou a mamadeira graduada que facilitava a preparação do leite. Mas ainda se usava muito as mamadeiras de tubo longo que acumulavam mais facilmente leite azedo e micróbios. Outros leites ensaiados para a alimentação infantil foram o leite desengordurado e o leitelho. O leitelho é o leite pasteurizado e centrifugado, sem gordura, a que se juntam bacilos lácticos. Nenhum foi bem sucedido. Para Pereira, o fracasso das mães era devido às preocupações com o aleitamento. Segundo ele, o leite desaparece primeiro no pensamento das mães, para depois desaparecer nos seios. Para este autor, o leite condensado devia ser usado apenas em viagens, por alguns dias, pela facilidade de manipulação. Condenava os produtos industriais usados na alimentação infantil e exortava as mães a não se deixarem levar por anúncios, pois, segundo ele, o leite materno não tem substitutos (PEREIRA: 1919). A administração precoce de mingaus e caldos faz mal, segundo os médicos, porque a criança ainda não tem dentes e o seu aparelho digestivo não está suficientemente desenvolvido. O leite de vaca demora 2 a 3 horas para ser digerido, o que explica a fome 103 mais espaçada que a criança sente quando assim alimentada. Condenava-se o uso de chás de erva-doce ou camomila e a administração de purgantes e lavagens, hábitos outrora cotidianos nas prescrições da medicina oficial do início do século XIX. Mirisola comentava que a diminuição evidente da secreção láctea desde os primeiros meses nas mulheres de nossos grandes centros de progresso trouxe a necessidade muito precoce de se estabelecer regimes mistos de alimentação. Considerava que a instalação do aleitamento misto não é causa da redução do aleitamento natural mas surgiu para sanar as dificuldades deste; na sua opinião, o aleitamento misto surgiu como conseqüência da diminuição da secreção láctea (MIRISOLA: 1931). Apesar do discurso rígido sobre as normas de puericultura, os médicos apresentavam muitas contradições. Porém, já não cabia o meio termo ou a contemporização de opiniões. Havia regras certas e erradas. Um exemplo destas regras inflexíveis pode ser visto em Amarante, que ensinava: o aleitamento deve ser iniciado após 24 horas de jejum absoluto; a mãe deve oferecer o seio 3 a 4 vezes no segundo dia e, a partir do terceiro dia, de 3 em 3 horas, às 6,9,12,15,18 e 21 horas, além de uma mamada noturna no primeiro mês; o aleitamento à noite deve cessar no segundo mês pois causa superaiimentação da criança e fadiga materna; a mamada deve ter a duração de 10 minutos, nem mais, nem menos; qualquer que seja o aleitamento, dar água 3 a 4 vezes ao dia; no sexto mês iniciar o desmame com mingaus de leite e féculas (araruta, maizena etc); a partir daí, em cada mês, substituir uma mamada por mingau; aos 9 meses oferecer uma refeição de sal; o desmame estará completado aos 12 meses (AMARANTE: 1927,133-138). Foi só como o surgimento do leite em pó que se abreviaram, imensamente, os óbices à alimentação artificial. Obteve-se um alimento de preparação rápida e fácil, que não se deteriora com facilidade, e que está, aparentemente, "livre" dos perigos de contaminação microbiana. As mulheres passaram a fazer uso cada vez mais freqüente deste produto que lhes abreviou tempo e trabalho na criação dos filhos. Os médicos passaram a perceber nos leites "maternizados" o substituto ideal para o leite materno nos casos de hipogalactia. A corporação médica passou da condenação à aceitação e mesmo ao estímulo da alimentação artificial. Desde o início do século, os centros de saúde começaram a oferecer cursos de puericultura para as mães. Estes cursos ensinavam as técnicas de alimentação artificial e preparo de mamadeiras. Fundaram-se as Gotas de Leite e lactários para treinar pessoal e as mães no preparo das mamadeiras, concomitantemente à distribuição de leite artificial às mães pobres. 104 Os médicos voltaram a valorizar a pesagem diferencial: "a balança, que é a bússola da criança, principalmente no primeiro ano de vida, decidirá se se deve abandonar o seio ou lançar mão da alimentação artificial" (FORTES: 1936). A ansiedade da mãe, neste caso, poderia contribuir para um mau resultado do teste e para o desmame subseqüente. Nesta fase, ao mesmo tempo em que consideravam que não havia produto sucedâneo do leite materno, admitiam a alimentação artificial quando houvesse motivo justificado. O leite em pó passou a ser preferido pelos médicos ao leite fresco, porque era difícil obter-se um leite de vaca controlado e certificado. Pensavam que o leite em pó resolveu completamente o problema do leite e que se podia, com grande facilidade e com resultados brilhantes, alimentar artificialmente lactentes desde os primeiros dias de vida sem o temor de diarréias ou infecções (FORTES: 1936). Os médicos não renunciaram à superioridade do aleitamento materno mas passaram a estimular, veladamente, a alimentação artificial. Nesta fase, o único inconveniente do leite em pó ainda era o seu preço. Acreditavam que, com o uso do leite em pó afastava-se o perigo das grandes diluições, praticadas comumente com o uso do leite de vaca. Julgavam que, se as mães seguissem à risca os preceitos indicados na lata, diminuiriam os casos de subalimentação, e mesmo de infecções, provocadas por leite contaminado. Fortes enumerava as vantagens do leite em pó: "apresenta constituição química fixa,... a sua pureza e a ausência de germes produtores de doenças, tornam-no um leite ideal para a alimentação do lactente" (FORTES: 1936). Após a Segunda Guerra Mundial, o panorama se modificou completamente: o leite condensado e o leite em pó, já fabricados no Brasil, se difundiram mais amplamente com a ampliação do mercado consumidor. A Nestlé iniciou suas atividades no Rio de Janeiro em 1912, comercializando leite condensado e farinha láctea produzidos na Suíça (GOLDENBERG: 1988,108); implantou-se no Brasil em 1921, comprando uma das fábricas de leite condensado existentes no país, em Araras, SP e, em 1928, iniciou a fabricação dos leites em pó com as marcas Lactogeno e Ninho (FREDERICQ: 1982,109-122). A fabricação em larga escala do leite em pó proporcionou novas opções de alimentos substitutos ao leite materno. Aumentaram as exceções ao aleitamento por parte do discurso médico. Para Boltanski, "o número e a natureza das exceções a este 'dever sagrado' constituem excelentes índices da importância concedida pelos médicos ao aleitamento materno (BOLTANSKI: 1984,68). Os médicos esqueceram os conhecimentos do passado e passaram, cada vez mais, a estimular, discretamente, o desmame. Seu saber se transfigurou e se adaptou às novas circunstâncias. Muitos segmentos sociais passaram a acreditar, de fato, 105 que é possível se substituir o leite materno por meios artificiais, sem qualquer prejuízo para a criança. O decréscimo da amamentação ao seio iniciou-se no Brasil na década de 40 e chegou ao seu apogeu na década de 70. Os médicos e autoridades da área da saúde passaram a utilizar-se da estatística para analisar os problemas ligados à amamentação. Este instrumental se incorporou cada vez mais e surgiram os estudos de prevalência da alimentação ao seio. Começou a se estudar associações estatísticas entre mortalidade e aleitamento. Segundo o Serviço de Higiene Infantil de 1933: "No Rio de Janeiro morrem por dia umas 20 crianças de 1 ano. Destas, 1 ou 2 quando muito estariam sendo criadas ao peito. As outras todas eram alimentadas com mamadeira" (FORTES: 1936). A aceitação da alimentação artificial pela sociedade prosseguia: em agosto de 1942 fundou-se a LBA (Legião Brasileira de Assistência, que instalou postos de puericultura e lactários para prestação de assistência médica e distribuição de leite para crianças até os 2 anos de idade. Os médicos passaram a desaconselhar as mamadas noturnas, tidas como inúteis, pois achavam que as seis diárias bastam para alimentar a criança que, assim, se habitua a dormir à noite. Estas mamadas, segundo os pediatras, teriam o inconveniente de perturbar o repouso da nutriz, concorrendo para fatigá-la, sendo aconselhável suprimi-las o mais tardar no fim do primeiro mês (GESTEIRA: 1943,87). A partir da década de 40 começou a se fazer sentir, com maior intensidade, as influências da puericultura americana sobre a pediatria brasileira. Muitas mulheres, com ansiedade, perderam a sua autoconfiança e começaram a "fracassar" no aleitamento. Os médicos passaram a recomendar suco de laranja nos primeiros meses e água entre as mamadas. Com o correr do tempo, começaram a aconselhar alimentos sólidos cada vez mais cedo, chegando à conclusão de que o bebê os aceitava bem e progredia satisfatoriamente. Viam duas vantagens em começá-los no primeiro semestre de vida: os bebês se habituam mais facilmente nesta época que mais tarde; Além disso, afirmavam que os alimentos sólidos fornecem várias substâncias raras no leite, particularmente o ferro. Modernamente, os médicos começaram a prescrever os primeiros alimentos sólidos entre o 1º. e o 4º. mês de vida. As carnes eram oferecidas entre o 2º. e o 6º. mês, esmagadas, para serem deglutidas facilmente, mesmo antes do bebê ter dentes (SPOCK: 1960). A citação deste autor americano se deve à grande divulgação que o seu livro "Meu filho, meu tesouro — como criar seus filhos com bom senso e carinho" teve e ainda tem no Brasil, influenciando gerações de médicos e de mães. Um livro brasileiro que 106 encontrou e ainda encontra grande aceitação pelas mães é o do Dr. Rinaldo de Lamare, "A vida do bebê". Também aconselhava, na época, a introdução mais precoce de sólidos e líquidos (LAMARE: 1955). Em suas últimas edições, na década de 80, este autor demonstra ênfase no estímulo à amamentação. Apesar de continuar válido, como em outros tempos, o conceito de que o leite materno é o melhor alimento para as crianças nos primeiros meses, já não era tão grande a preocupação dos médicos neste sentido. Isto porque os leites industrializados supriam, segundo eles, com eficiência apreciável, a falta do leite materno, tornando desnecessário o recurso às amas-de-leite ou a bancos de leite. A amamentação era vista como impraticável em muitos casos, devido a vários fatores, como o modo de viver agitado, exigindo a participação cada vez maior da mulher na tarefa de manutenção da família, o excesso de comodismo e o menosprezo de certos deveres maternais e a desnutrição das mães (ARRUDA & GONDIN: 1970,17). Para muitos médicos dessa época, a desnutrição reduz a capacidade das mães em amamentar. Com a mudança na percepção médica sobre a alimentação da criança, a mulher pôde, desde então, escolher o tipo de aleitamento preferido. O aleitamento artificial passou a se constituir em uma alternativa viável. Veio ao encontro dos interesses femininos, liberando as mulheres dos encargos da maternidade, sem pôr em perigo a saúde dos filhos (BADINTER: 1985,235). Veio ao encontro dos interesses do capital multinacional que havia penetrado no Brasil e encontrou nesse mercado latente, perspectivas animadoras de expansão e lucro. E veio, também, ao encontro do interesse médico que passou a deter o saber sobre um produto novo, sua autoridade pôde reinar, soberanamente, através do ensino da preparação e manipulação do leite em pó, saber então desconhecido dos leigos, parteiras e curandeiros. Citando Jelliffe, D.B., Martins Filho comenta que foi somente no último século que as práticas de maior racionalização da produção agrícola e do processamento industrial dos alimentos, condicionados pelo desenvolvimento tecnológico, bem como a melhoria da higiene ambiental e a obtenção de melhores níveis socioeconômicos por algumas populações, permitiram a expansão da alimentação artificial dos bebês (MARTINS FILHO: 1976,11). 107 5. A DISSEMINAÇÃO DO LEITE EM PÓ E AS PROMOÇÕES COMERCIAIS DAS INDÚSTRIAS — O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES DE SAÚDE NO DECRÉSCIMO DA AMAMENTAÇÃO: Junto a estas modificações tecnológicas que permitiram o melhor aproveitamento do leite de vaca, implantou-se nas maternidades o sistema de berçários, regularizando e dificultando o contato da mãe com o filho, obstaculizando o aleitamento. O sistema de berçários diminuiu a necessidade de enfermeiras e os custos de funcionamento hospitalar. As crianças alimentadas com leite em pó ficam saciadas mais rapidamente e têm um tempo de digestão maior, dormem mais, o que causa uma maior tranqüilidade à equipe de saúde. Aparenta ser uma tecnologia muito mais cômoda, que reduz bastante o trabalho dos profissionais de saúde. A utilização cada vez maior dos hospitais para o parto provocou um aumento da alimentação artificial. A mudança de atitudes sociais levou à medicalização do parto e à diminuição da amamentação. O sistema de berçários surgiu sob a alegação de que prevenia infecções. É curioso observar que hoje se propugna pela sua extinção pelo mesmo motivo pelo qual antes se desejava sua implantação, isto é, pela redução das infecções hospitalares que este sistema agora facilitaria. Muitos profissionais de saúde ajudaram a divulgar os produtos industriais e através da sua prática chegavam mesmo a incentivar o seu uso. As rotinas hospitalares podem ter desencorajado a amamentação e esta pode ser uma das razões pelas quais as mulheres das zonas urbanas passaram a amamentar menos. Era comum a separação mãe/criança após o parto, os familiares e o pai não podiam mais oferecer assistência e apoio à mãe neste momento, já que o parto passou a se dar em hospitais, nos quais a frieza das relações interpessoais constituía a regra. Esta falta de apoio psicológico e emocional pode explicar muito da dor e da insegurança que as mulheres modernas enfrentam por ocasião do parto. Surgiram as injeções hormonais para secar o leite e evitar as dores e mastites provocadas pela supressão do aleitamento natural. O uso de analgesia e episiotomias na rotina do parto, além do oferecimento precoce de mamadeira, do adiamento do início da amamentação e da instituição de horários fixos para amamentação foram outros fatores de desestímulo. Comumente, a mamadeira de leite artificial era introduzida, em muitos hospitais, logo no primeiro dia de vida da criança dentro dos berçários, sendo generalizado o uso da água glicosada. O pré-natal ajudava, sendo provável que ainda ajude, em muitos 108 casos, no desencorajamento da amamentação: não se examinavam as mamas, não se ensinava fisiologia do parto e lactação, não se orientava sobre legislação trabalhista. Os hospitais, por sua vez, não desenvolviam práticas educativas, senão esporadicamente. O puericultor, muitas vezes, era o primeiro a introduzir a mamadeira, à primeira dificuldade do aleitamento. A mudança de atitudes da sociedade em relação à alimentação das crianças chegou a tal ponto que quando o médico não aconselhava o leite artificial, a própria mãe insinuava o seu uso. Sem dúvida, isto pode ser creditado à inabilidade de muitos pediatras em lidar com problemas relacionados à amamentação, talvez, em parte, porque durante o ensino médico, maior carga horária era e em muitos casos ainda é dedicada à alimentação artificial e preparação de mamadeiras do que ao aleitamento natural. O ensino de dietética infantil, em muitas faculdades de medicina, foi desleixado e os alunos passaram a aprender como fazer "mingaus" e "papinhas". Os médicos passaram a aconselhar, teoricamente, o aleitamento exclusivo até os 6 a 7 meses e o desmame completo, segundo eles, deve ocorrer no mais tardar aos 11 ou 12 meses, porém na prática quase todos prescreviam os leites artificiais logo no primeiro mês de vida da criança. Estes consideravam que a administração exclusiva prolongada de leite materno pode causar anemia ferropriva, avitaminoses e deficiência de sais minerais. Recomendavam a primeira mamada após 8 a 12 horas do parto e um intervalo de 3 horas entre as mesmas. Iniciaram-se os estudos sobre o metabolismo do leite e nutrição em geral. "Este deslocamento da ênfase para o metabolismo trouxe, como conseqüência, a introdução precoce da alimentação mista, destinada a suprir as deficiências nutritivas provocadas por uma dieta constituída exclusivamente de leite. Tal prática é hoje apontada como uma das causas do desmame precoce. A administração de substâncias complementares, vitamina C (suco de frutas cruas) e sais (caldo de carne e legumes) é considerada essencial, a partir do 2º. e 6º. mês, respectivamente" (LOYOLA: 1983,42). O leite mais utilizado para a alimentação infantil passou a ser o leite maternizado. O leite desnatado, usado para a fabricação dos leites "maternizados", é um subproduto da fabricação da manteiga. De cada 2 quilos de leite desnatado se fazem pelo menos 5 de leite "maternizado". O leite "maternizado é um leite de vaca desnatado ou semidesnatado, diluído ao terço, aumentado em lactose e adicionado de óleos vegetais e vitaminas. No entanto, esta mistura barata é um ótimo negócio, pois, é vendida pelo triplo do preço do leite integral" (BARBOSA FILHO: 1977,120). Acompanhando a mudança de mentalidades que passou a ver na alimentação 109 artificial uma alternativa viável, a propaganda sobre substitutos do leite materno pode ser encontrada desde o início do século em revistas médicas especializadas e revistas para o público em geral. Em 1916, na revista A Cigarra no. 44 aparece a propaganda do leite condensado marca Águia, ao lado de uma criança robusta. Mas, nesta época, o que predomina são os anúncios de estimulantes da lactação, como Lactífero, Galactogeno, Vinho Biogalênico e a cerveja Guiness. É a partir de 1922 que se observa um crescimento da propaganda de leite em pó, com as marcas Allemburys, Mellin e Edelweiss (GOLDENBERG & TUDISCO: 1983,76-77). Nas revistas de circulação médica a propaganda é ainda mais incisiva e numerosa, evidenciando a importância e a especificidade desse canal de informação nas estratégias publicitárias. Em 1926, se anuncia o leite maltado Horlick's. E, logo após, as marcas de sucedem e os anúncios tornam-se ainda mais sistemáticos: Lactogeno, Pelargon e, mais recentemente, Nanon e Nestogeno. Nesta época, surgem as revistas de assuntos tipicamente femininos, onde a maternidade é difundida como a melhor das carreiras. Estas revistas veiculam regras de puericultura, ensinando a melhor maneira de cuidar das crianças, valorizando o leite em pó na alimentação infantil. As companhias anunciam seus produtos nas páginas destas revistas, que passam a ter grande penetração no meio popular. Na década de 40, os leites em pó são apresentados como de fácil digestibilidade, "preventivos dos distúrbios gastrointestinais", isentos de contaminação e que guardam as propriedades do leite fresco. Devem ser usados como complementos ou substitutos do leite materno, nos casos de sua "falta ou insuficiência". As indústrias produtoras de leite em pó, dentre as quais se destaca a Nestlé, passaram a utilizar-se de estratégias mais sofisticadas de marketing e propaganda no sentido de divulgar os seus produtos. O papel da mídia eletrônica (rádio e TV) foi mais restrito nas estratégias de promoção do leite em pó do que a promoção direta aos médicos e consumidores ou através de revistas (GOLDENBERG: 1988,138). Os esquemas promocionais incluíam distribuição de amostras de leite e mamadeiras grátis às mães por enfermeiras da companhia em maternidades. Na realidade, estas "enfermeiras" eram vendedoras com uniformes de enfermeiras que faziam visitas domiciliares e freqüentavam clínicas e maternidades. Na visão das companhias estas enfermeiras teriam uma função educacional, de dar conselhos nutricionais e instruções às mães e não apenas vender os seus produtos. Mas, na verdade, encorajavam as mães a alimentar seus filhos com mamadeira, mesmo que estivessem amamentando 110 satisfatoriamente e não houvesse qualquer necessidade de suplemento. Os médicos e profissionais de saúde foram utilizados pelas companhias em suas estratégias promocionais. Os médicos passaram a receber informações sobre a alimentação infantil das companhias de leite, que iniciam a promoção de cursos, conferências, congressos médicos, financiando passagens aéreas, hospedagem e brindando os profissionais que passaram a defender seus interesses com viagens de férias para a família. A indústria se utilizou dos médicos, usando de sua autoridade e aprovação aos seus produtos para fazer a sua divulgação. O saber médico tornou-se um intermediário na difusão da sua ideologia. Os médicos aproveitaram a indústria pelo seu apoio financeiro à reciclagem profissional. As verdades "científicas" dos professores passaram a ser associadas às fórmulas de leite. O médico absorveu a idéia de que o leite materno necessita ser complementado, quando o leite não for suficiente e passou a indicar o leite em pó para as mães cada vez mais freqüentemente. "A veiculação da idéia de que o leite materno é substituível e de que pode ou deve ser complementado, paralelamente ao desenvolvimento do conceito de incapacidade das mães em amamentar no mundo moderno, favoreceu um comportamento intervencionista dos profissionais da área da saúde em favor do aleitamento artificial, sem que disso tivessem consciência" (GOLDENBERG & TUDISCO: 1983,79). Fredericq analisa as estratégias da Nestlé: "este tipo de atuação resulta numa influência direta na formação dos pediatras brasileiros e num importante controle das informações que podem chegar até eles... A produção escrita da pediatria brasileira é quase totalmente controlada pela empresa. Esta aproveita seu controle para difundir sua ideologia ou para, pelo menos, impedir que seja questionada... tenta apropriar-se do conhecimento médico, influenciando os temas de ensino nas universidades, as pesquisas e os encontros científicos. De outro lado, aproveita-se do poder médico, para melhor chegar aos consumidores "(FREDERICQ: 1982,155). Assim, as suas mensagens têm a aprovação da autoridade médica. Barbosa Filho observa que foi devido a esta ligação da indústria com os médicos, durante vários anos o aleitamento materno foi um tema marginal nos congressos médicos, não que não tivesse importância, mas para não constranger os industriais que, "generosamente", os financiavam (BARBOSA FILHO: 1977,121). Em nossa opinião, a maior ligação das indústrias com os médicos ocorre devido ao próprio desenvolvimento das forças produtivas que acompanha o avanço do capitalismo. Surgem novos saberes que não podem mais ser patrimônio comum de todos pela sua enorme diversidade. A especialização da sociedade e a interdependência estrutural dos seus membros, levando-os a um relacionamento mais orgânico, são parte do 111 aprofundamento das relações sociais deste modo de produção dominante. E, logicamente, a indústria se utiliza das informações mais "evoluídas" sobre o aleitamento que são propriedade do pessoal e das instituições de saúde. Ao médico cabe o domínio da prescrição sobre o aleitamento artificial em contraposição ao aleitamento natural, o qual é considerado como tarefa e problema da mãe. Tudo se passa "como se o progresso científico tivesse alcançado dispor de recursos que substituiriam a natureza em igualdade de condições e até com vantagens" (GOLDENBERG: 1988,142-126). A indústria financiou, também, cartazes para os centros de saúde com figuras de bebês bem nutridos, limpos, com roupas brancas, mamadeiras e leite em pó. Para as mães pobres, embora o resto pudesse estar fora do seu alcance, a mamadeira não estava, pois a recebiam gratuitamente junto com uma lata de leite em pó (MULLER: 1981,22). A estratégia do brinde foi muito utilizada pelas companhias até criar um mercado. As companhias também vendiam os seus produtos com descontos especiais. Outras modalidades de promoção utilizavam a imprensa, rádio, televisão. Muitos hospitais receberam doações de leite em pó das companhias. Os serviços de saúde constituíram importantes canais institucionais de propaganda. Os Centros de Saúde distribuíam leite em pó em quantidade limitada. Isto ocorria tanto pela falta do produto como devido a uma política de se evitar o paternalismo. Na opinião de Goldenberg & Tudisco, "combinava-se um programa eminentemente assistencial com o desenvolvimento de um mercado junto à população de baixa renda, que teria de adquirir leite em pó para complementar as necessidades requeridas" (GOLDENBERG & TUDISCO: 1983,79). Apesar da tentativa, o paternalismo não foi evitado. O Estado, "ao invés de elevar o consumo da população trabalhadora das riquezas por ela mesma produzidas, adota uma política paternalista e caridosa de dar alimentos" (BLAY: 1983, 130). Goldenberg & Tudisco, em afirmação anterior, colocam no mesmo nível a tentativa de alguns segmentos do setor saúde de evitar o paternalismo com os interesses empresariais de desenvolver um mercado junto à população de baixa renda. A nosso ver, é provável que tenha ocorrido neste episódio uma coincidência e não uma congruência planejada entre os interesses dos dois setores sociais envolvidos. Achamos que a finalidade dos programas de suplementação é, realmente, a melhoria da desnutrição infantil. O benefício à indústria é uma conseqüência lógica da venda de seus produtos. A interpretação de que o programa de leite existe apenas em função da necessidade de lucro das indústrias é 112 ingênua. Os setores de saúde do aparelho de Estado pautam, geralmente, suas ações visando resolver determinados problemas sanitários e não visando atender à necessidade de obtenção de lucros das indústrias. É como se os sanitaristas ou os burocratas da saúde não tivessem objetivos próprios e fossem meros subservientes do capitalismo. O sistema econômico é a somatória da ação de vários agentes que buscam determinados objetivos próprios que são, na maioria das vezes, imediatistas. As ações desencadeadas poderão ou não alcançar os fins almejados mas isso vai depender do desenrolar da história. É um absurdo pretender atribuir completa identidade entre meios e fins nas ações dos diversos segmentos sociais, como se estes se comportassem de forma integrada, o que quase nunca acontece. A distribuição de leite em pó pelos Centros de Saúde foi uma tentativa de abreviar os problemas de nutrição da criança e mortalidade infantil. Esta prática também se constituiu em um desestímulo ao aleitamento e tornou-se disfuncional pois, distribuindo-se leite em pó para crianças menores de 6 meses, aumentava-se os riscos de contaminação e, ao invés de diminuir, aumentava-se a desnutrição. Além do mais, a distribuição do leite era realizada aleatoriamente e, na maioria das vezes, distribuída sob a influência de barganhas políticas e por pessoas desligadas da área da saúde. Depois, proibiu-se a distribuição dos produtos para menores de 6 meses mas as distorções na distribuição persistem: continuam a receber leite crianças que não precisam dele. A distribuição deveria ser feita apenas através de canais que privilegiassem indicações baseadas no peso. Alguns autores consideram que a distribuição do leite em pó pode ter resolvido os problemas de mercado e lucro que as multinacionais de alimentos enfrentavam com a redução da natalidade na Europa e Estados Unidos, mas não resolveu os problemas das crianças. A respeito desta afirmação, vamos refletir sobre a citação seguinte de Singer: "grupos empresariais 'capitalistas', monopólicos ou não, nacionais ou estrangeiros, operaram alguma vez em função das necessidades da população? Pelo que sabemos eles operam em função de suas próprias necessidades de lucros. Ensina a economia convencional (ou vulgar) que, com determinada organização dos mercados, é possível que a procura do autointeresse leve as empresas a satisfazer também as necessidades da população. E a experiência ensina que o desenvolvimento do capitalismo, ao excluir a possibilidade de os mercados se organizarem de modo ideal (concorrência perfeita), acaba por condicionar a própria manifestação das necessidades da população às necessidades das grandes empresas" (SINGER: 1985,68). No próximo item discutiremos as prováveis causas do declínio da 113 amamentação. 6. RAZÕES DO DECLÍNIO DO ALEITAMENTO: As explicações que se buscam para o declínio da amamentação são variadas. Uma das hipóteses, que vamos comentar a seguir, considera que as mudanças sejam provocadas pelo efeito-demonstração10, interpretação retirada da ciência econômica. Segundo esta análise, as mudanças começariam pelas mulheres mais ricas e com maior nível de escolaridade e passariam a acontecer depois nos grupos urbanos pobres e por fim no meio rural, tradicionalmente mais resistente à mudança. O centro das mudanças culturais seria a cidade e todos os demais grupos imitariam a elite urbana. O desmame precoce seria um corolário do desenvolvimento, da urbanização e da industrialização. A urbanização, a adoção do modo de vida "civilizado", na verdade, em grande parte, "americanizado", teria provocado mudanças nas atitudes das mulheres em relação ao aleitamento materno. O aleitamento, visto como capaz de deformar o seio, poderia reduzir a atração sexual. O seio teria passado a ser muito mais um símbolo sexual e cosmético do que um órgão nutridor. Estas mudanças acompanhariam as novas maneiras de percepção do corpo que acontecem com a revolução sexual e que atingem principalmente as classes dominantes. As populações migrantes recém chegadas aos centros urbanos sofreriam uma relativa desorganização cultural. Esta população, de hábitos tradicionais, que vivia no meio rural com base na economia de subsistência, pouco integrada ao mercado, rapidamente aprofunda a sua incorporação à economia de mercado. A aculturação e adaptação ao novo ambiente se dariam pela incorporação de valores da classe dominante, considerados avançados em relação aos seus antigos valores, percebidos como atrasados. O processo de aculturação que ocorre entre as camadas sociais incentiva o aparecimento de novas necessidades, como a da mamadeira e a do leite em pó. Para Fredericq, as camadas mais propensas às mudanças são os migrantes rurais, recém chegados à cidade, que perderam as referências culturais de seu viver tradicional e buscam novos 10 Efeito-demonstração designa o fato de que o consumo das camadas dominantes provoca, pela demonstração, um efeito de imitação nas camadas subordinadas. Deste modo, as camadas subordinadas têm tendência a querer consumir os mesmos bens que as camadas dominantes. O consumo destas últimas provoca um efeito-demonstração nos grupos de fraco rendimento, que são induzidos a imitar o comportamento dos consumidores mais ricos... Esta análise foi generalizada às trocas internacionais. Contactando com a economia mundial, as classes mais ricas dos países subdesenvolvidos aspiram ao nível e modo de vida dos americanos e europeus (BIROU: 1982, 133-134). 114 modelos de vida, mais adequados à nova realidade que estão enfrentando. "O rompimento de seus laços socioculturais de origem provoca um 'vazio ideológico', que os torna uma presa fácil para qualquer tipo de mensagem publicitária... Quanto mais baixa a classe social, tanto menos crítica sua atitude frente à mensagem publicitária, pelo seu menor conhecimento das técnicas de persuasão utilizadas" (FREDERICQ: 1982, 150-151). Não concordamos com Fredericq quando esta considera os migrantes rurais como presas fáceis para as mensagens publicitárias, pelo "vazio ideológico". Analisamos, no item sobre urbanismo, que os migrantes rurais possuem, ao mesmo tempo, referências tradicionais e urbanas que convivem de maneira mais ou menos desintegrada. A sua incorporação ao modo de vida urbano pressupõe sua ressocialização. A absorção de novos valores por este grupo social se dá pelo efeito-demonstração, como estudamos anteriormente. Achamos que seja falsa a afirmativa de que tenham uma atitude menos crítica à publicidade, pois tais grupos, ao contrário, demoram mais tempo para modificar seu comportamento quando comparados às classes mais afluentes. Entre as causas desta demora cultural para a assimilação de novos valores poderiam ser citadas a dificuldade de comunicação com os demais e a resistência à mudança, pelo apego aos seus valores tradicionais. Além do mais, é duvidoso que o conhecimento pelos indivíduos dos meios de persuasão utilizados pela propaganda, que atuam, geralmente, de modo inconsciente, contribua para que estes escapem da sua influência, ou possam atenuar, voluntariamente, os seus efeitos. Fredericq considera que as mães das classes populares são levadas, também através da propaganda, a imitar os costumes das classes dominantes, desvalorizando o leite materno e adotando novos métodos de alimentação que exigem a sua integração no mercado capitalista. Em sua opinião, a Nestlé participa ativamente da difusão de regras de uma puericultura moderna mais adaptada à sociedade de consumo (FREDERICQ: 1982,157). Entendemos que a imitação das classes dominantes pelas classes subalternas não ocorre somente pela propaganda, mas também porque se trata de um comportamento de camada social de prestígio. Além do mais, há muito tempo, as mães das classes subordinadas utilizavam outros recipientes que não a mamadeira e alimentavam artificialmente seus filhos. Fredericq continua expondo suas opiniões, considerando que os alimentos infantis para o bebê vêm preencher uma função social importante, permitindo a alimentação da criança sem a presença física da mãe, favorecendo a integração da mulher no processo de produção capitalista. A valorização do "moderno" exige a adoção de novos hábitos de 115 consumo e promove um crescimento da oferta dos produtos relativamente supérfluos, como o leite em pó. "A mamadeira de leite em pó é um ótimo símbolo do modern way of life: mais 'moderna', 'higiênica', 'científica' — e mais cara — que o aleitamento tradicional. Este, por sua vez é desprestigiado e reservado às mulheres 'caipiras' (FREDERICQ: 1982,151). Observamos, em relação a estas colocações de Fredericq, que o aleitamento materno não ficou apenas reservado às mulheres caipiras. Alguns autores concordam que, quanto maior a incorporação das várias classes sociais no mundo do consumo, maior é a taxa de abandono do aleitamento natural. Para Fredericq, o número de consultas pré-natais pode ser usado como um indicador do grau de integração das mulheres no consumo capitalista. Outra causa apontada por aqueles que vêem o decréscimo do aleitamento enquanto resultado da urbanização é o stress: o ritmo agitado da vida na cidade facilitaria o aparecimento do nervosismo e inibiria o reflexo de lactação. Outra hipótese considera que o abandono ou diminuição da lactância natural surgiu como uma necessidade imposta à mulher pela modificação de suas condições de vida que passou a ocorrer com a urbanização e a industrialização. Desapareceu a estrutura familiar tradicional e as mulheres ingressaram na força de trabalho sem contar com ajuda social para a reprodução e criação dos seus filhos. A amamentação por mamadeira forneceria às mulheres certo grau de liberdade, pois elas não precisariam estar fisicamente presentes para alimentar os seus filhos. Isto se daria com particular intensidade nos grupos urbanos pobres, que não teriam acesso ao consumo de bens que diminuem o trabalho doméstico como fraldas descartáveis, lavadoras automáticas, freezers etc. Além disso, muitas práticas tradicionais continuariam ocorrendo, como por exemplo, a não colaboração do homem nas tarefas domésticas. O suporte social para permitir a harmonização do trabalho com a amamentação não estaria suficientemente desenvolvido: poucas creches, legislação social atrasada que não concede licença-maternidade prolongada, horários regulamentados para aleitamento e que não pune severamente as empresas que coloquem restrições à contratação de mulheres, devido à gravidez ou possibilidade de sua ocorrência. Somente quando um país ou grupo de população alcançasse certo nível de bem estar social, construísse um equipamento coletivo de apoio à reprodução humana e se adaptasse ao novo estilo de vida é que iria se tornar mais fácil a prática da lactância natural. Esse processo ocorreria com maior intensidade em países nos quais seja grande a participação feminina na força de trabalho. No Brasil, a participação da mão-deobra no setor secundário é baixa. No censo de 1960, a população brasileira era de 116 70.967.185 pessoas, das quais apenas 341.590 estavam empregadas diretamente na produção. Na explicação do decréscimo do aleitamento o trabalho é um dos fatores explicativos mas não é, certamente, o mais importante, como veremos no sétimo capítulo. Para os defensores desta tese, os hábitos tradicionais estão se modificando. As mulheres estão abandonando o aleitamento, não necessariamente por opção, mas talvez forçadas pelas circunstâncias de suas vidas que as obrigam a deixar as suas crianças por longos períodos de tempo. Apenas as mulheres ricas ou aquelas que vivem em sociedades que oferecem um suporte social permanecem aptas a amamentar. De acordo com esta hipótese, um programa de estímulo ao aleitamento só teria êxito se examinasse as circunstâncias e condições da vida feminina como um todo. Uma das hipóteses aventadas para explicar a baixa prevalência do aleitamento é que o cotidiano da mulher em nossa sociedade, fatigante, causador de stress e ansiedade, seria desfavorável à amamentação. As tarefas domésticas e reprodutivas, o emprego, são atividades pesadas, que requerem uma grande carga de trabalho e esforço físico, e que recaem, geralmente, apenas sobre a pessoa da mulher. A insegurança material, a instabilidade no emprego ou a ocorrência de desemprego da mulher e/ou do companheiro durante a gestação são fatores que podem interferir no equilíbrio emocional da nutriz. Morse, por sua vez, lança mão de quatro teorias básicas para explicar a alimentação infantil no terceiro mundo: na primeira atribui a manutenção do aleitamento artificial pela influência da propaganda, pelo consumismo e imitação de países desenvolvidos; sua segunda teoria é mais voltada para o social, com o aleitamento materno indicando estabilidade e o artificial mostrando estresse, desorganização e desequilíbrio da sociedade; na terceira teoria explica o desmame como uma adaptação saudável da mãe às suas necessidades familiares e sociais: na quarta teoria refere-se aos aspectos biológicos do desmame, isto é, o leite seria insuficiente para a demanda da criança (MORSE: 1982). Manciaux nos oferece outro quadro explicativo para a tendência de declínio da amamentação. Os hábitos antigos e tradicionais passaram a sofrer a influência de uma série de acontecimentos sociais: "modernização" dos serviços médicos, indiferença dos profissionais de saúde, modificação das estruturas sociais (urbanização, família nuclear) e condições socioeconômicas, mudanças psicológicas, imitação dos grupos de referência, progresso nos substitutos do leite materno e propaganda da alimentação por mamadeira (MANCIAUX: 1982,36). Orlandi, por sua vez, fornece os seguintes motivos para o abandono do aleitamento: a industrialização, principalmente através da entrada da mulher na força de 117 trabalho; publicidade comercial; grandes progressos obtidos na fabricação dos leites artificiais; indiferença dos profissionais de saúde em relação ao aleitamento materno; modificações da estrutura familiar no contexto da moderna vida urbana — a família patriarcal ampliada cede lugar à família nuclear; imitação das classes ricas e busca de status; preocupações estéticas de deformação do seio e busca do aleitamento artificial para facilitar a adoção de métodos anticoncepcionais eficazes (ORLANDI: 1985,123-125). Para alguns, a propaganda de leites infantis modificados para bebês desencorajou o aleitamento. Outros consideram este fator apenas um dos aspectos do problema, e talvez secundário. O principal fator estaria ligado, nesse caso, à falta de estrutura social nas cidades. Assim, não teria sido a introdução do leite em pó industrializado que levou ao declínio do aleitamento, mas isso teria acelerado o processo (VIS & HENNART: 1978). Vamos analisar, a seguir, as opiniões dos que explicam o decréscimo do aleitamento como um fator decorrente, em grande parte, das promoções comerciais das indústrias. Para estes, as companhias produtoras de leite em pó, vendo minguar os seus lucros no Primeiro Mundo devido à redução da natalidade, foram buscar os mercados do Terceiro Mundo. A sua instalação se deu com a utilização de campanhas promocionais consideradas por alguns, agressivas, imorais e pouco éticas. Para os defensores da tese que considera a propaganda como um dos principais fatores explicativos do desmame precoce, os anúncios, não éticos, usam técnicas de persuasão e motivação baseadas no prestígio e mobilidade social ascendente (JELLIFFE & JELLIFFE: 1977,249-250). A mamadeira teria sido incorporada como símbolo de novos status e papéis sociais. Em nosso ponto de vista, o marketing do leite em pó explica apenas parcialmente o uso aumentado destes produtos. Para Manderson, outros fatores sociais e culturais estão envolvidos, dentre os quais, mudanças nas idéias sobre o peso ideal para a mãe e o bebê, sobre alimentação e cuidados com a criança. A criança gorda passou a ser mais valorizada, assim como a mulher magra. Novos modelos de feminilidade e maternidade se desenvolveram (MANDERSON: 1952,597-598). Outra modalidade explicativa, além de incorporar os efeitos da propaganda e das promoções comerciais de alimentos infantis para bebês, analisa o decréscimo na amamentação como um produto da extensão do modo de produção capitalista e como um dos efeitos deletérios, a nível mundial, do imperialismo cultural e da dependência. Na análise sociológica são muitos os processos que se desenvolvem 118 simultaneamente e que têm relação com uma determinada prática social. Creditar o fenômeno do desmame ao capitalismo ou à propaganda não constitui senão um aspecto do processo. Mudanças profundas nas percepções sociais sobre a criança, sobre os cuidados com o corpo infantil, nas representações sobre o papel da mulher na sociedade e a sua emancipação, as contradições entre o trabalho feminino e a vida reprodutiva da mulher, são todos fatores intrinsecamente responsáveis por esse processo. Na busca de uma sociologia das relações sociais, não se pode hipertrofiar as análises economicistas e perceber o micro-universo pessoal e familiar como um mero desdobramento dos processos mais amplos que acontecem na estrutura, principalmente econômica, da sociedade. As idéias e as percepções culturais sobre o aleitamento variam, não apenas em função das transformações econômicas, mas também da "disponibilidade de meios do aparelho cultural". Um exemplo que comprova a pouca consistência de tais interpretações pode ser dado a seguir: em muitas nações desenvolvidas as mães estão voltando, cada vez mais, a amamentar os seus filhos, embora tais países permaneçam capitalistas e as indústrias continuem querendo encontrar mercado para os seus produtos. Acontece que, agora, a percepção social sobre os leites industrializados para bebês mudou e a indústria encontra menos compradores para os seus produtos e está se adaptando à nova situação, deslocando os seus investimentos para outros setores. No sexto capítulo aprofundamos, um pouco, a discussão acerca dos determinantes socioculturais da amamentação, relativizando o papel da propaganda e do imperialismo cultural na modificação deste comportamento. Na explicação das causas do declínio, pretendemos deixar claro as principais instâncias de difusão que ajudaram na disseminação da nova mentalidade de estímulo à alimentação artificial, que provocou um declínio no aleitamento. Já analisamos que as novas idéias sobre alimentação infantil surgiram nas classes dominantes a partir das descobertas tecnológicas que tornaram disponíveis novos substitutos do leite materno, mais seguros e práticos. A propaganda deve ser analisada, a nosso ver, como um dos elementos do processo de difusão de elementos culturais na sociedade de consumo, relativizada em seus efeitos, sem deixar de ser considerada um mecanismo poderoso através do qual atua o efeito-demonstração. Outro processo que ajudou na difusão dos leites artificiais foi a extensão do atendimento médico às classes subalternas, à mulher e à criança que passou a ocorrer desde os fins do século passado, pois, até então, a medicina só cuidava das doenças dos adultos da elite. As instituições de saúde participaram dessa dinâmica, criando e incorporando novas 119 idéias acerca da alimentação infantil. O seu papel como elemento de difusão passou a ser importante na explicação das flutuações do aleitamento. Como fator limitante desse processo de difusão, apontaríamos a barreira lingüística entre os médicos e profissionais de saúde e as classes subalternas. Por outro lado, nas últimas décadas, a extensão da escolaridade a membros das classes subalternas, difundindo uma nova forma de racionalidade mais abstrata e novos padrões de pensamento e a tomada de consciência do problema, por parte daqueles profissionais, aproximou o entendimento entre as subculturas baseadas em classes, facilitando a aquisição de novos comportamentos, entre os quais, os relativos à amamentação. A difusão entre as subculturas das classes dominantes e subalternas passou a ocorrer com maior rapidez, especialmente após a urbanização da sociedade brasileira, devido aos fatores analisados anteriormente como, por exemplo, a aceleração das mudanças sociais e do próprio processo de difusão. Como veículo de difusão na moderna sociedade de massas, não poderíamos deixar de considerar os meios de comunicação de massa. No caso do decréscimo do aleitamento, a televisão, como já vimos, talvez tenha desempenhado um papel menos importante do que outros meios de divulgação. E não poderíamos deixar de considerar a modalidade de difusão mais comum, baseada nos contatos pessoais, que, tendo um papel quase que exclusivo como elemento modificador de comportamentos sociais nas sociedades agrárias e pré-industriais, teve sua importância reduzida pelo surgimento de novos canais tecnológicos de comunicação. Tal é a nossa visão sobre o processo de difusão dos saberes e práticas sobre aleitamento na moderna sociedade de consumo de massas. Consideramos os indivíduos, as instituições, os meios de comunicação e a propaganda como instâncias da difusão de elementos culturais. A urbanização e o aumento da escolaridade são visualizados como processos facilitadores das mudanças sociais. Sem esquecer outros, poderíamos apontar alguns fatores de alguma forma associados ao declínio da amamentação: o trabalho feminino; a falta de compatibilização entre os papéis da mulher na produção e na reprodução; a atual divisão sexual do trabalho que sobrecarrega a mulher; a mudança nos padrões familiares tradicionais que provocou uma redução no apoio familiar à maternidade; o escasso desenvolvimento dos serviços coletivos de apoio à reprodução humana e, talvez, as mudanças de valores e do comportamento social em relação à sexualidade e reprodução humana. Alguns destes temas são analisados com maior profundidade no sétimo capítulo. 120 7. O DISCURSO DAS MÃES SOBRE O ALEITAMENTO: E as mães? Quais as razões por elas apontadas para explicar o desmame? Um trabalho realizado em 1964 nos mostra alguns destes motivos: não tinham leite ou o leite secou, tinham pouco leite, o leite era fraco e não sustentava a criança, o leite era salgado. Além destes, outros aparecem, como gravidez, doença da mãe, trabalho materno fora do lar, mãe se sente fraca, a criança não quis mamar, conselho médico, defeito das mamas, a criança chorava muito, recusou o seio, não se deu bem com o leite, estava prematura ou doente (ALVIM: 1964,250-252). Tais alegações ainda permanecem. Para poucas mães a amamentação é trabalhosa (ARRUDA & GONDIN: 1970,18). Por outro lado, quando perguntadas sobre as razões pelas quais amamentam, respondem: conveniência, por ser o melhor leite para as crianças, por gostarem de amamentar, por ser o leite materno propriedade dos filhos e não das mães, por ser obrigação de toda mãe, porque a criança aceita etc. O que chama a atenção é que algumas mães consideram a amamentação materna melhor para a criança ainda que, na prática, desmamem cedo os filhos. Spindel pergunta: não seria o tempo pretendido de amamentação um tempo socialmente idealizado e o tempo praticado o efetivamente desejado? E comenta: "o aleitamento materno, embora um fato biológico, é um ato social e, como tal, regido por valores que controlam a performance socialmente esperada. O desempenho de um ato social pode merecer, objetiva ou subjetivamente, prêmios ou punições, conforme o grau de aproximação ou afastamento dos padrões socialmente estabelecidos... Como o 'pretender' é um projeção no tempo do 'querer', este deverá responder aos valores e padrões vigentes para cada época e em cada sociedade" (SPINDEL: 1984,64-65). O trabalho de Berquó, realizado em 1981, em São Paulo, quase 20 anos depois, mostra que as mães alegam, praticamente, os mesmos motivos para amamentar ou não. Dentre estes, destacam-se o leite fraco ou insuficiente e a recusa da criança quando se trata do desmame. No discurso, a mulher delega a responsabilidade pelo não aleitamento para o leite ou para o bebê. Estes motivos, tão presentes no discurso feminino, não devem corresponder à realidade, pois são muito raras as causas médicas que impossibilitam a amamentação. Há, seguramente, uma inconsistência entre o discurso feminino e a verdade biológica do evento lactação. As respostas das mulheres retratam uma forma socialmente aceita sobretudo para o fato de não quererem amamentar, de modo a não ferir a sua autoestima (CUKIER: 1984,42). As mulheres dificilmente reconhecem o fracasso no seu papel de mães, o que inclui a prática da amamentação. Provavelmente, as convenções sociais são 121 tão fortes e proibitivas que as mulheres não deixam transparecer, nem para si mesmas, que não quiseram amamentar. Há mães que, não querendo amamentar, lançam mão de argumentos aparentemente irrefutáveis, pois, em nossa sociedade, não há espaço para que a mãe exponha a sua incapacidade emocional de amamentar, sem que isto seja visto como uma forma de desafeto (VILLA: 1985,52-53). O discurso das mães se refere principalmente ao desmame. Em relação ao fato, as respostas são prontas e estereotipadas, adaptadas ao que seja socialmente aceito e às expectativas do meio cultural. Dificilmente as mulheres assumem que não amamentam por decisão pessoal. Para Spindel, as não-respostas devem ser encaradas como uma forma, consciente ou inconsciente, de defesa e transferência de responsabilidade a fatores aleatórios à vontade feminina (SPINDEL: 1984,68). O seu discurso é um escudo de defesa das punições que possa merecer por não ser uma boa mãe, pois um dos definidores sociais de boa mãe é ser boa nutriz (SPINDEL: 1984, 70). Quando as mulheres são interrogadas sobre o porquê das outras mulheres pararem de amamentar os seus filhos mais cedo que o desejável, surgem respostas diferentes e talvez mais próximas da verdade: o aleitamento é percebido como algo inconveniente, fisicamente cansativo e prejudicial à estética do seio feminino (SJOLIN: 1977,507). Outras consideram o trabalho fora do lar como fator importante no desmame, embora raramente mencionem este motivo quando a pergunta é dirigida a elas próprias (SJOLIN: 1979,157). Parece que as mães não podem admitir para si mesmas tais razões, sem experimentar uma sensação de fracasso, culpa ou angústia. Outra causa alegada pelas mulheres para explicar o desmame é a necessidade de anticoncepção. Muitas mulheres passam a fazer uso das pílulas anticoncepcionais que reduzem a secreção do leite, sobrevindo o desmame. As mulheres que usam anticoncepcionais hormonais amamentam menos. Isto pode estar vinculado à sua situação social, pois seu uso é mais freqüente no meio urbano, entre as mães de mais alta escolaridade e renda. É interessante observar que os motivos e razões utilizadas na propaganda coincidem com as razões alegadas no discurso das mães sobre o desmame. Assim, as mães apontam o leite fraco ou insuficiente como motivo para a suspensão do aleitamento. A propaganda visualiza o leite em pó como um alimento que deixará o bebê forte e com saúde "quando o leite materno não for suficiente". Para Fredericq, "todo o esquema de propaganda das empresas de leite em pó é montado em cima dessa inibição psicológica do reflexo natural de lactação" (FREDERICQ: 1982,149). Segundo Campbell, a propaganda manipula 122 o reflexo de ejeção11, biopsíquico, provocando uma dependência dos substitutos do leite materno (CAMPBELL: 1984,556). A introdução precoce da mamadeira rompe o ciclo fisiológico da lactação, podendo impedir ou dificultar a apojadura — descida do leite. A mãe tende a comparar o colostro com outro tipo de leite, concluindo que seu leite é de má qualidade. "A mãe introduz a mamadeira nos primeiros dias de vida do bebê por não confiar na qualidade de seu leite. Posteriormente, este procedimento acarreta a diminuição da estimulação que, por sua vez, leva à diminuição da produção láctea. Esta seqüência de eventos faz com que a mãe passe a alegar como motivo do desmame a quantidade insuficiente de leite" (GOLDENBERG et al. : 1983,75). É curioso ilustrar este exemplo da articulação dialética entre o pensamento latente no público e o reforço a esse pensamento produzido pela propaganda, que resulta em um impacto cada vez maior sobre a mentalidade dos consumidores, trazendo à tona idéias pouco difundidas que vão se tornando cada vez mais conhecidas e divulgadas. A divulgação reafirma o conhecimento anterior que se torna cada vez mais difundido, e assim por diante. Rea & Cukier realizaram um estudo sobre razões de desmame e introdução da mamadeira, utilizando entrevistas únicas e múltiplas. Quando se compara a "entrevista única" com as "entrevistas múltiplas", caem as proporções de respostas tipo: doença ou choro do bebê e razões de ordem conceitual como "leite materno tem de ser complementado" e "amamentar exclusivamente não basta". Em compensação, aumentam as respostas tipo: "tive que trabalhar fora de casa", "nervoso" ou "falta de paciência". Não se alteram as razões "leite fraco ou insuficiente", "influência de terceiros" e "a mãe não quer amamentar". Notam as autoras que, ao se permitir à mãe que reveja seu discurso em várias entrevistas, ela passa a responsabilizar mais a si própria (ato de vontade) do que ao bebê ou ao seu próprio corpo (REA & CUKIER: 1988,188). Consideram ser difícil obter das mães respostas completas e confiáveis em um estudo transversal. É de se notar, porém, em um estudo de seguimento como este, a grande possibilidade de intervenção do observador. As mulheres podem adaptar suas respostas às expectativas dos entrevistadores. Na realidade, em geral, não se estudam as razões do desmame, mas o discurso feminino sobre estas razões. Esse discurso é dinâmico e está sujeito a mudanças 11 A lactação, enquanto evento biológico é controlada por dois hormônios: a prolactina, secretada pela hipófise anterior, é responsável pela produção do leite e a ocitocina, secretada pela neurohipófise ou hipófise posterior, promove a ejeção láctea. Este último hormônio, a ocitocina é secretado em resposta à sucção e é sensível às reações emocionais, sendo responsável pelo let down reflex. 123 consideráveis. As razões de desmame são diferentes quando os trabalhos são conduzidos em áreas rurais ou urbanas, ou conforme a idade em que o desmame ocorreu. "Sob esse enfoque, não se compreende a ação humana independentemente do significado que lhe é atribuído pelo autor, mas também não se identifica essa ação com a interpretação que o ator social lhe atribui" (MINAYO: 1989,9). Parece que as razões que levam ao desmame são complexas e resultam da somatória de "pequenas" razões, algumas delas ligadas a motivações femininas, outras ligadas a processos sociais mais amplos que estudamos no decorrer deste trabalho. Na percepção feminina, refletida no seu discurso que tende a expressar o que seja socialmente aceito, a mamadeira é introduzida por conveniência, nervosismo ou ansiedade da mãe, em virtude do trabalho fora do lar ou porque encontra dificuldades em continuar (o que poderíamos chamar de "crises de lactação") etc. E o desmame é percebido como resultado de um evento final como: o "leite secou", ou o "bebê não quis mamar". Tais razões que aparecem no discurso feminino perpassam as diferentes culturas, como notaram Gussler & Briesemeister, considerando a síndrome do leite insuficiente como um fenômeno transcultural. De qualquer modo, o discurso só relata o evento perceptível final, que causou diretamente o desmame e tais razões são, geralmente, as mesmas em todas as mulheres. Porém, as motivações culturais embutidas que podem levar ao desmame não se encontram presentes no discurso de motivos e são, provavelmente, diferentes para cada cultura. De qualquer forma, não entendemos correta a tentativa de querer estudar o discurso feminino sobre o desmame através da atribuição de áreas de "responsabilidade" da mãe, do bebê, de terceiros ou a razões de força "maior". A mulher pode, inclusive, perceber o desmame como tendo ocorrido por sua "responsabilidade", mas os indivíduos não têm total responsabilidade sobre os processos sociais. Agem condicionados por valores e expectativas socialmente condicionadas. Por isso mesmo, achamos que tais razões devem ser buscadas estudando-se os processos e as relações sociais, como as dificuldades que a mulher enfrenta no cotidiano, no trabalho, no apoio social à criação dos filhos ou as pressões materiais que a forçam a trabalhar para garantir a sobrevivência da família etc. A percepção dos indivíduos de tais processos sociais mais amplos é muito variada e, geralmente, vaga e inconsistente. Em assim sendo, tais razões não podem aparecer no discurso feminino. No estudo do discurso, analisa-se a aparência do fenômeno, ou seja, como ele é visualizado pelas mulheres de diferentes níveis sociais. Porém, a essência desse processo só poderá ser revelada através de estudos sócio-antropológicos mais amplos. 124 Em outras palavras, não se pode tomar os motivos discursivos das mães como as verdadeiras causas do desmame. Sendo o aleitamento um processo social, que tem historicidade, a explicação linear dos fatos não pode caber como interpretação. O estudo do sociologicamente visível, isto é, a aparência expressa no discurso dos sujeitos, é apenas a primeira aproximação ao estudo da essência dos fatos, do sociologicamente invisível. Cukier experimenta algo nessa direção, fazendo uma abordagem indireta das razões do desmame. Desloca a pergunta da mãe, através do inventário de atitudes. Procede à narração de 24 estórias curtas sobre o aleitamento, solicitando da mãe uma escolha entre três alternativas. Tenta, assim, apreender outros motivos não percebidos ou verbalizados pelo discurso feminino. Encontra como razões mais freqüentes: ansiedade pessoal e sentimento de culpa interna pelo desconforto e nervosismo frente ao choro do bebê, por não corresponder à sua expectativa própria ou à social, ou devido à baixa auto-estima; conformismo e passividade (faz parte dos ossos do ofício do papel social de mãe). Conclui que "as mulheres... se referem ao aleitamento natural enquanto uma tarefa obrigatória da mulher e à qual ela deve se submeter porque é o que se espera dela; ainda que esta tarefa lhe cause conflitos internos e alta ansiedade relacionada, sobretudo, com a saúde do bebê e com uma forte expectativa interna de ser uma boa nutriz e, portanto, boa mãe" (CUKIER: 1984,50). Sem dúvida, este é um modo criativo de enfrentar o problema do discurso feminino não refletir as razões verdadeiras de desmame, as quais, sendo freqüentemente contrárias às expectativas e aos valores socioculturais, são, em geral, racionalizadas pelas mulheres. Outras causas que surgem são a influência da opinião do médico, a falta de auxílio externo (marido), contexto emocional e familiar adverso e o fato do aleitamento natural tolher a liberdade de tempo e ação da mulher. Para algumas mulheres, o aleitamento é considerado uma tarefa fatigante ainda que um dever da mãe e uma experiência de vida ansiogênica. Pode, ainda, estar relacionado à depressão, decepção e rejeição do bebê. Mas, no discurso, algumas mães confessam que devem se conformar com este destino porque é melhor para os seus filhos. Parece que o aleitamento é percebido como um fardo mais em Recife e pelas mulheres pobres de São Paulo. As mães mais ricas de São Paulo consideram a amamentação agradável e que eleva a auto-estima feminina (CUKIER: 1984, 54), ainda que para muitas outras desta mesma classe, o aleitamento cansa, enfraquece e causa emagrecimento ou deforma os seios. Nota-se a ambivalência de sentimentos em relação ao aleitamento: o dever ansiogênico, pode ser, simultaneamente, o desejo gratificante. Assim, nos revela Cukier: 125 "uma mulher pode, num momento, ficar muito satisfeita se observa que seu bebê dorme tranqüilo e saciado e, num outro, ficar muito ansiosa e descontente se ele chora e parece não estar bem (CUKIER: 1984,59). Neste caso, o aleitamento é vivido, simultaneamente, como fardo e desejo prazeroso. Percebe-se a persistência de expectativas socioculturais contraditórias no interior dos sujeitos. Os mecanismos reguladores da amamentação arcaicos e modernos podem estar coexistindo nas mulheres. Para um determinado tempo social, corresponde um papel cultural de mãe e nutriz e certo modelo regulador. É que, anteriormente, o aleitamento era um dever do papel de mãe. Hoje foi redefinido, emergindo um novo saber regulador: o aleitamento brota como um desejo do interior das personalidades. A vivência da contradição persiste no discurso: amamentar pode continuar sendo, em nossa sociedade, um obstáculo à realização feminina em muitos aspectos. Mas o desejo feminino também passa a decidir sobre a maternidade, sua oportunidade e os encargos reprodutivos resultantes. Este novo mecanismo regulador, do desejo autônomo e consciente, surge no discurso das mulheres, talvez porque lhes parece permitir uma maior liberdade. Mas para que, talvez, as mulheres não se tornem prisioneiras de uma nova trama, a de desejar sempre o desejo, precisam travar uma longa e árdua luta. Sem a modificação do papel idealizado de mãe, sem uma maior socialização dos encargos reprodutivos e de criação dos filhos, a sociedade poderá continuar exigindo comportamentos e atitudes pré-estabelecidos e compatíveis com o papel de mãe definido há algumas décadas atrás: a mãe amorosa, capaz de fazer tudo pelo filho, sem ajuda social externa. É claro que tais valores estão sofrendo mudanças e, muitas mulheres de classe média estão vivenciando a maternidade com menos fardo e com maior auxílio social e isto transparece no discurso de muitas delas, que estão mais conscientes dessas mudanças. Como a maioria delas, no entanto, ainda não se conscientizou, tem razão Spindel, quando pergunta se elas não estariam assumindo uma culpa que não lhes cabe. E analisa a hipótese do "sucesso" ou "insucesso" na prática do aleitamento ser, em grande parte, "decorrente dos contextos sócio-políticos, econômicos, culturais e familiares nos quais esta se insere, interferindo, objetiva ou subjetivamente, física ou emocionalmente, na sua performance como mãe nutriz" (SPINDEL: 1984,69). De fato, é provável que a má qualidade e a fraqueza do leite sejam causas extremamente relativas e que podem traduzir antes uma insegurança da mãe frente à sua própria capacidade de amamentação do que um fato cientificamente demonstrado. "As mães entrevistadas parecem traduzir, com estas palavras, fortes pressões socioculturais, 126 econômicas ou emocionais, que inibem seu reflexo de liberação de leite" (FREDERICQ: 1982,148). O choro da criança passa a ser interpretado como sintoma de "leite insuficiente". A mãe pode ficar ansiosa com o choro da criança e pensar que o seu leite não é suficiente. O "leite fraco" pode representar o medo de que o leite não sustente a criança. Como já salientamos, raramente há falha biológica na produção do leite. O mais das vezes o que ocorre é uma interferência psicológica no reflexo de ejeção. Mesmo as mulheres que desejam amamentar podem sucumbir fisiologicamente à ideologia dominante que abala sua autoconfiança e seus valores sociais, fazendo-as verdadeiramente incapazes de produzir leite suficiente, devido às sensíveis respostas hormonais (CAMPBELL: 1984,563). Obviamente tais fatores não surgem no discurso das mães, ou só surgem raramente. Quais mães saberiam que o reflexo de ejeção (let down reflex) governa o fluxo de leite, que as reações emocionais, as tensões da vida urbana, o stress, o cansaço, podem inibir a secreção láctea? Ou que, como bem observa Spindel, "o let down reflex é estimulado positivamente com a sucção e, portanto, é diretamente ligado aos hábitos de amamentação em cada sociedade (tempo de duração da mamada, espaçamento entre as mamadas, rigidez horária etc)"? Ou, ainda, que "o hormônio é sensível a variações emocionais, fadiga, stress, falta de motivação, situações que podem ser deslanchadas por circunstâncias que fogem ao controle ou à vontade da nutriz" (SPINDEL: 1984,69)? 8. A MUDANÇA NAS PERCEPÇÕES SOBRE O ALEITAMENTO: A partir da década de 70, os médicos e a opinião pública começam a acordar para os problemas causados pelo declínio da amamentação. Inicia-se uma polêmica entre diversos segmentos sociais e as indústrias produtoras de leite. Acusam-se as indústrias de serem responsáveis, através da propaganda e de suas estratégias promocionais, pelo desmame precoce e pelas mortes infantis em muitos locais sem saneamento básico. Abrindo o debate, em 1974, Mike Muller, um jornalista, escreveu "O Matador de Bebês" (The baby killer), uma investigação da War on Want, uma organização internacional contra a pobreza no mundo, sobre a promoção e venda de leites em pó para bebês no Terceiro Mundo, no auge desta campanha internacional contra as indústrias produtoras de leite. Assim nos fala Muller na introdução do seu relatório: "O objetivo deste relatório não é provar que os leites infantis matam bebês. Em condições ótimas, com 127 preparação e higiene apropriadas, eles podem ser um alimento infantil perfeitamente adequado. Porém, na maior parte do Terceiro Mundo, as condições estão longe de serem ótimas. E em comunidades onde o nível de vida é baixo, a habitação é pobre e as mães não têm acesso às facilidades básicas... os leites infantis podem ser assassinos". Prossegue observando que não é seu objetivo "provar que a indústria de alimentos infantis é a única responsável por essa tendência. A mudança social é um fenômeno complexo e a tendência para a alimentação artificial é particularmente acentuada em comunidades urbanas recentes" (MULLER: 1981,5). Começa-se a admitir que, embora os leites industrializados tenham sanado as dificuldades de utilização do leite in natura, se omite a possibilidade de sua contaminação durante o preparo (GOLDENBERG & TUDISCO: 1983,77-78). Os médicos passam a considerar que as condições de vida das populações pobres não permitem o preparo higiênico do leite em pó, que será contaminado no processo de preparação. E complementam: as mães não dispõem de geladeiras, fogões, água filtrada ou rede de esgotos; têm poucos utensílios de cozinha e, algumas vezes, utilizam a lenha como combustível; há que se acrescentar os custos dos combustíveis para a esterilização e o custo das mamadeiras e bicos e, como o leite é caro, as mães são obrigadas a diluí-lo e acrescentar farinha para engrossá-lo e render mais. Os médicos afirmam que isto provoca uma redução na ingestão de proteínas que, ocorrendo continuadamente, poderá resultar em desnutrição. As companhias se defendem alegando que os seus produtos são acompanhados de folhetos ilustrativos ensinando como prepará-los. E os médicos rebatem: como isto poderia funcionar em populações na maioria analfabetas? Alegam um desencontro entre os meios disponíveis no equipamento cultural e os comportamentos necessários para o preparo do leite. Por sua vez, Muller observa que "o declínio na amamentação significa um custo econômico muito grande para os países menos capacitados para desperdiçar recursos. Divisas valiosas ou recursos internos de produção estão sendo desviados para a compra ou produção de substitutos do leite materno" (MULLER: 1981,57). Milhões de cruzeiros são gastos pelo fato da mulher não amamentar, sendo muito grande a perda econômica, pelo desperdício de muitos litros de leite humano. O país tem ganhos econômicos importantes quando as mães amamentam, por razões óbvias, principalmente quando o leite artificial é importado. Para a maior parte das mães no Terceiro Mundo, a mamadeira não seria uma alternativa viável. Os gastos com a compra do leite em quantidade adequada consumiriam 128 de 30 a 47% do salário mínimo para alimentar-se apenas uma criança (MULLER: 1981,17). Em vista disso, o Dr. Farquhar, pediatra da Universidade de Edimburgo considera que "a alimentação com mamadeira de forma esclarecida, adequada e relativamente segura, deve seguir, ou pelo menos, acompanhar, mas nunca preceder, a alfabetização, educação, suprimento de água não contaminada, saneamento e um nível de vida que permita adquirir alimentos para bebês em quantidade suficiente, equipamentos e meios para esterilizar" (apud MULLER: 1981, 19). Atento a estes problemas, o prof. Jelliffe cunhou a expressão "desnutrição comerciogênica" para mostrar a desnutrição gerada pelo comércio não ético de alimentos infantis para bebê. As companhias de leite em pó se defendem dessas acusações, alegando que o leite em pó evita as mortes das crianças cujas mães não podem amamentar e que a mortalidade infantil tem decrescido mais nas áreas urbanas, onde é maior o consumo de fórmulas. Os médicos discordam destas colocações alegando que, embora este fenômeno possa coincidir em algum ponto, não se pode afirmar que foi o uso de fórmula que causou um decréscimo na mortalidade. As empresas referem que a migração urbana provocou um aumento da participação da mulher na força de trabalho, tornando necessário um substituto para o leite materno e contestam a condenação à distribuição de amostras grátis, alegando que isto constitui uma forma de filantropia. A análise deste debate demonstra uma tomada de consciência de muitos setores sociais acerca do problema do desmame precoce. A sociedade começava a acordar para as conseqüências disfuncionais do abandono do aleitamento. Essas percepções denotam o surgimento de uma nova preocupação com o assunto, que culminou, poucos anos depois, com a retomada da amamentação. 129 CAPÍTULO V — A REDESCOBERTA DA AMAMENTAÇÃO 1. O FENÔMENO DA RETOMADA DO ALEITAMENTO: Na década de 80 passa a se assistir no Brasil à mesma reviravolta do início do século. Os médicos redescobrem o aleitamento, passam a condenar a administração de alimentos sólidos, sucos ou leite de vaca antes do sexto mês de vida e iniciam uma campanha na sociedade em defesa do aleitamento. A percepção da mortalidade infantil aumentada nas classes subalternas, que passam a fazer uso da alimentação artificial, cada vez mais freqüentemente, desde a década de 40, sem praticar os conhecimentos de higiene (lavagem das mamadeiras, fervura e esterilização), é novamente o motivo que se percebe como principal nesta reorientação. Mas agora, diferentemente do ocorrido no início do século, o aleitamento não será visto tão somente como um meio de estímulo à sobrevivência e aumento da natalidade mas, ao prolongar a amenorréia pós-gravídica, passa, também, a ser visualizado como importante meio de redução da natalidade. A sociedade desencadeia uma campanha pró-aleitamento. "Se bem que os motivos da atual campanha a diferenciem daquelas promovidas nos séculos XVIII e XIX, nunca deixou de haver interesses políticos envolvidos... o Estado passou a se infiltrar nas relações mãe-filho. Essas relações familiares, que pareciam puramente emocionais e afetivas, começaram a sofrer intervenção política em função dos interesses do Estado e de certas classes sociais" (ORLANDI: 1985,114). "O problema, atualmente, é um pouco diferente. Antes a disputa era seio materno x seio da ama-de-leite; agora é seio materno x mamadeira de leite em pó" (ORLANDI: 1985,121). Embora as campanhas assumam formas diferentes e utilizem argumentos diversos, muitas coisas são semelhantes. É sobre este processo em curso que nos deteremos nos parágrafos subseqüentes. Entretanto, independentemente das motivações, como já notamos mais de uma vez, a freqüência da retomada do aleitamento segundo as classes sociais vai variar, obedecendo, em nossa opinião, ao processo de difusão de elementos culturais. Assim, enquanto nos anos 60 o aleitamento era extremamente raro nas classes dominantes, ainda era relativamente freqüente nas classes subalternas urbanas e muito comum na área rural. Já na década de 80, enquanto as classes dominantes redescobrem o aleitamento e voltam a desejar a amamentação, as classes subalternas ainda estão absorvendo os resultados do processo de difusão iniciado há 40 ou 50 anos atrás, de modo que nelas, agora, o desmame é um processo muito freqüente. As mesmas motivações descobertas pelas mães ricas dos anos 130 60 para desmamar os seus filhos são encontradas hoje nas classes pobres: leite fraco, leite secou, a criança largou o peito etc. Mas há uma reviravolta entre os médicos que passam a apoiar a prática tradicional baseados em razões "científicas" bem fundadas. Cremos que, em boa parte, tão "científicas" quanto aquelas que possuíam em relação à alimentação artificial. Se agora bradam contra os preconceitos e ignorância das mães em relação ao aleitamento materno, esquecem-se de que são preconceitos que, no passado, ajudaram a formular e difundir no organismo social. Não percebem que faziam parte do saber médico de não menos de 40 anos atrás. Ou seja, a "ignorância" atual das mães nada mais é do que a "ignorância" dos seus antecessores médicos da geração precedente. Sejamos justos, contudo, parece que há, hoje, um conhecimento científico realmente mais aprofundado. As razões podem ser, de fato e parece que são, mais científicas do que ideológicas. De qualquer modo, como assinala Loyola, "a atual campanha em favor da amamentação é a evidência mais cabal desta contradição: toda a ciência médica e das áreas afins é mobilizada para restaurar a naturalidade que a própria ciência desnaturalizou" (LOYOLA: 1983,46). Para os médicos dos anos 80, o leite materno tem uma superioridade incontestável, tanto do ponto de vista nutricional e imunológico, como quanto ao estabelecimento de um contato mais intenso entre filho e mãe. Não há dúvida de que constitui a fonte de proteínas mais simples, mais econômica e menos sujeita à contaminação, sendo, além do mais, um poderoso método biológico para o controle da natalidade. Também não há dúvida de que o desenvolvimento psíquico da criança é facilitado por um contato íntimo e uma troca afetiva profunda entre mãe e filho e que essa troca é estimulada pelo calor emocional e físico da amamentação, que é ou pode ser fonte de prazer tanto para a criança como para a mãe que amamenta. Os médicos contemporâneos consideram que o leite materno até os primeiros 4 a 6 meses de vida, pode suprir todas as necessidades nutricionais da criança; tem uma composição bioquímica ideal e não imitável, é bacteriologicamente puro, protege contra infecções bacterianas e virais e é mais cômodo de usar. Conseqüentemente, "as crianças amamentadas são mais ativas e caminham mais cedo, alcançando, também, um maior número de pontos nos testes de inteligência e desempenho" (MULLER: 1981, 50). O aleitamento protege o recém-nascido contra as gastroenterites e as septicemias, proteção esta que é máxima nos primeiros seis meses de vida, proporcional à quantidade de leite no regime alimentar (MANCIAUX: 1982,39). A proteção é maior para as doenças mais graves e independe do estado sócio-econômico para se manifestar. Em contrapartida, hoje começam a surgir estudos mostrando que o leite 131 artificial está associado à maior incidência de obesidade, hipertensão e doenças coronarianas na idade adulta. No caso do leite de vaca, ele é associado com doenças alérgicas. O surgimento das preocupações com a retomada do aleitamento acompanha as mudanças que se dão no discurso e na prática das organizações internacionais sobre a criança. Desse modo, na década de 80, surge a "revolução em prol da criança". Este discurso afirma que as taxas de mortalidade infantil nos países em desenvolvimento podem ser reduzidas em curto prazo, sem esperar pelo desenvolvimento econômico, através de tecnologias apropriadas ou intervenções de baixo custo, como a vigilância do crescimento e desenvolvimento infantis, a hidratação oral, melhores produtos para o desmame, imunizações, suplementação alimentar, planejamento familiar, incluindo espaçamento entre partos e aleitamento materno (GRANT: 1983,2-8). Tais medidas melhoram a razão recursos/resultados, sendo mais eficientes. Todas estas mudanças seriam passíveis de ocorrer a despeito da recessão econômica e da extrema desigualdade nas trocas comerciais e no fluxo de capitais entre as nações. Como podemos observar, o incentivo ao aleitamento materno tem se englobado, sob influência de experiências realizadas em outros países, à revolução em prol da infância. Hoje, o aleitamento faz parte das políticas públicas de saúde, visando-se atenuar a mortalidade infantil, num esforço de mudança social dirigida. O aleitamento, apesar de não ser a única medida incluída nos programas, está presente no discurso dos organismos internacionais que influenciou as instituições nacionais do setor saúde. A ação das instituições exemplifica o nascimento do Estado planificador, onde opções políticas são mostradas como dotadas de racionalidade técnica. O desmame tornou-se disfuncional, elevando a mortalidade infantil. O aleitamento materno, enquanto questão social e política, faz parte do esforço planificador de intervenção na mortalidade infantil sem a necessidade de alterações na estrutura socioeconômica e de distribuição de renda. Insiste-se em medidas simples que podem resultar em melhoria na saúde, como o retorno à amamentação, que podem ser realizadas pelos próprios indivíduos sem a necessidade de maiores gastos do setor público. Incentivam-se soluções a nível comunitário e o auto-cuidado de saúde pelos indivíduos. A este respeito, a seguinte citação de Florestan Fernandes é muito elucidativa. Em sua opinião, "a mudança social espontânea tende a ser substituída, em várias esferas da vida, pela mudança provocada e dirigida" (FERNANDES: 1960,37). O aleitamento materno é um exemplo dessas novas tentativas de controle sobre a direção e o 132 ritmo das mudanças. As suas causas, motivações, padrões de comportamento e meios de intervenção para modificar a realidade têm sido estudados e empregados com este objetivo por diversas instâncias sociais, dentre as quais se destacam setores do UNICEF, do Ministério da Saúde e da Sociedade Brasileira de Pediatria, dentre outras. O uso da propaganda, da educação dirigida e da promoção do aleitamento materno por alguns círculos sociais é um exemplo da utilização crescente do planejamento na sociedade contemporânea. No discurso internacional, as mães pobres são responsabilizadas pela sua ignorância sobre a amamentação e pelo desmame precoce. O aleitamento materno transforma-se em "nova arma contra a desnutrição". O milagre do leite materno de uma mãe desnutrida, cansada, responsável pela casa, por outros filhos e pelo sustento da família — é que vai ser a nova solução salvadora". Blay discorda de alguns autores, segundo os quais a amamentação ajuda até a adaptação da criança ao meio social, evitando, inclusive, a marginalidade e condutas violentas (BLAY: 1983,130). Hoje, os profissionais de saúde e a sociedade acordaram para os problemas ligados ao decréscimo do aleitamento. O programa da Organização Mundial de Saúde sobre a alimentação de lactentes, por exemplo, tem buscado fornecer apoio à lactância natural, promover práticas apropriadas de desmame, tornar mais adequada a comercialização dos sucedâneos do leite materno e proporcionar a melhora da saúde e da situação da mulher, fazendo suas condições de vida mais propícias à amamentação. Assim, recomenda-se a licença remunerada para a maternidade; maior segurança contratual durante a gestação e o parto; instalação de creches e locais adequados para a amamentação no trabalho; intervalos remunerados para o aleitamento; tecnologias para aliviar a carga de trabalho feminino; mudança nos procedimentos hospitalares e educação comunitária sobre a gestação, lactação e desmame. Se bem que já em 1975 tenham se iniciado as preocupações governamentais com o tema do aleitamento, através do programa de saúde Materno-Infantil, propondo-se o estímulo à amamentação como forma de redução da morbimortalidade infantil, ainda se superpõem, para o grupo de crianças de 0 a 6 meses, as ações de apoio ao aleitamento e a distribuição de suplementação alimentar, com resultados contraditórios. De fato, pode se dizer que ocorre um efeito antiamamentação no programa governamental de distribuição gratuita do leite (REA: 1984,37). Se, de um lado ele é um instrumento gerador de demanda aos Centros de Saúde, de outro ele favorece a predominância das funções de assistência sobre as atividades educativas e preventivas. 133 Mais recentemente, em março de 1981, o Ministério da Saúde, através do INAM (Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição) e com apoio do UNICEF, lançou o Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno. O programa, ainda em curso, pretendeu aumentar a prevalência e a duração do aleitamento até pelo menos 4 a 6 meses. Sugeriu-se a necessidade de várias mudanças nas práticas dos serviços de saúde, dentre as quais: educação sobre o tema nos ambulatórios médicos de pré-natal e puericultura, nas comunidades e nos meios de comunicação de massa, com sua inclusão no currículo escolar de 1º. ou 2º. graus12; formação dos profissionais de saúde em assuntos sobre aleitamento; instituição do alojamento conjunto nos hospitais, cumprimento da legislação trabalhista de proteção à mulher, instalação de creches e melhorias na licença-maternidade (visando, no caso, conciliar a amamentação com a participação da mulher na força de trabalho). Outras metas propostas foram: estímulo ao parto natural, evitando-se cesarianas e anestesias desnecessárias; desestímulo ao uso de drogas, episiotomias e modificação das rotinas hospitalares rígidas; início do aleitamento imediatamente após o parto e baseado na livre-demanda; restrição ao uso de substitutos do leite materno; melhoria na nutrição materna; incremento do apoio familiar e social à nutriz trabalhadora; intervalos remunerados para a amamentação; uso de tecnologias para aliviar a carga de trabalho feminino e maior estabilidade no emprego. Outras medidas aconselhavam a utilização de alimentos de desmame disponíveis na região, mais baratos, de alto valor nutritivo, de fácil preparo com as facilidades domésticas disponíveis e suplementação alimentar para grávidas e nutrizes. Além disso, procurou promover medidas legislativas, estabelecer bancos de leite, empregar cartazes, manuais, audiovisuais e seminários para divulgação e estimular as motivações e atitudes maternas. É claro que o programa era de difícil implementação. Vários obstáculos deveriam ser enfrentados e superados para que se pudesse, efetivamente, executá-lo. Um desses pontos delicados, quase nunca realisticamente arrostados pelo discurso médico é o representado pelo aumento da participação feminina no mercado de trabalho formal e informal, já que contribui, provavelmente, para um decréscimo no aleitamento, embora seja fundamental para a efetiva libertação da mulher da posição de subalternidade que 12 Em relação à utilização do currículo escolar para incluir mensagens sobre o aleitamento, devemos notar que os médicos tendem a pensar que as escolas não têm objetivos próprios. S óbvio que as escolas não podem deixar de lado os seus conteúdos específicos. Segundo alguns estudos, se as escolas fossem atender a todos os encargos extra-educacionais teriam que multiplicar sua carga horária por 4, o que mostra o absurdo de todas as tentativas de setores os mais diversos em usar os currículos escolares para atingir seus objetivos em detrimentos dos da própria escola. 134 normalmente ela possui na sociedade brasileira. De qualquer modo, os médicos tinham proposto que a legislação deve evitar a separação mãe-filho até 4 meses após o parto para aumentar-se a duração do aleitamento. Apesar de tudo, muitas vezes, o médico, apesar de saber que o leite materno é o melhor para a criança, acaba oferecendo conselhos confusos à mãe e prescreve substitutos precocemente, levando à ansiedade materna. O grupo alvo deste programa eram as mães, principalmente primíparas, com renda de até 4 salários mínimos, que não dispusessem de água encanada e saneamento nem de acesso aos serviços de saúde. Os organizadores pretendiam, ainda, estimular pesquisas sobre prevalência, conhecimentos e atitudes maternas sobre aleitamento. Uma campanha de divulgação durou 45 dias, veiculando mensagens de estímulo ao aleitamento em todos os grandes jornais, 100 estações de televisão e 600 de rádio, e também em extratos bancários, contas de eletricidade e volantes de loteria esportiva. Ao mesmo tempo, um milhão e meio de panfletos sobre a alimentação ao seio foram distribuídos nos centros de saúde e mais de 140 grupos femininos, em seis Estados, lançaram campanhas educacionais (GRANT: 1984,13). Esta campanha, desencadeada em agosto de 1982, utilizou a mídia eletrônica, mobilizando depoimentos de personalidades consagradas pelo público e teve uma grande penetração na população-alvo. Um levantamento realizado em uma favela de São Paulo, um ano após o encerramento da campanha, mostrou que 45% das entrevistadas que integravam a amostra haviam sido atingidas pela referida campanha e destas, 83% retinham informações sobre o conteúdo da mesma (GOLDENBERG: 1988,145). Muller analisa em seu livro a preocupação da indústria de alimentos infantis com a sua imagem. Assim, a divulgação dos estudos associando leites infantis com desnutrição e morte, provavelmente teve um impacto muito grande e despertou na indústria o desejo de cooperar. De fato, a indústria sofreu muitas pressões dos governos e organizações internacionais e o debate culminou com a aprovação pela Organização Mundial de Saúde, em 1981, do Código Internacional de Comercialização dos Substitutos do Leite Materno. Este código, embora não seja uma lei, passou a ser acatado em grande parte pela indústria, temerosa do maior impacto das acusações de matadoras de bebês sobre a sua reputação e vendas. As empresas temiam também pelo boicote aos produtos da Nestlé que os consumidores americanos começavam a fazer, devido à divulgação destas denúncias. O código inclui um controle sobre os anúncios e desaconselha a propaganda direta às mães e famílias, incluindo distribuição de cartazes, amostras grátis de leites ou brindes de mamadeiras e promoções em maternidades. Aconselha-se a propaganda apenas a 135 título informativo para os profissionais de saúde. O código não proíbe o financiamento de eventos médicos pelas indústrias, o que estabelece vínculos entre as companhias e os pediatras, facilitando o trabalho de propaganda (JÁCOMO et al.: 1985,417-422). E também não limita a venda de leites para uso infantil às farmácias. Percebendo que as práticas promocionais das indústrias poderiam estar reforçando nas mães a idéia de que as fórmulas de leite podem ser usadas em lugar do leite materno sem prejuízo para a criança ou até mesmo com vantagens, em 20 de dezembro de 1988, o Conselho Nacional de Saúde, em sua resolução no. 5, aprova as "Normas para comercialização de alimentos para lactentes". Estas se aplicam aos leites infantis, alimentos infantis para bebê, mamadeiras e bicos. Veda a promoção comercial para o público em geral destes produtos, incluindo: ofertas de amostras, brindes, presentes ou utensílios a gestantes, mães e ao público em geral; contatos diretos ou indiretos do pessoal de comercialização, a título profissional, com gestantes, mães e familiares; utilização de descontos, venda a preço abaixo de custo ou prêmios ao consumidor destes produtos; recomenda que a promoção comercial deve incluir, em caráter obrigatório, e com o mesmo destaque, uma advertência de que não devem ser utilizados como alimentos para lactentes nos primeiros seis meses de vida, salvo sob orientação dos serviços de saúde. Determina que nos rótulos dos leites infantis devem constar: mensagem sobre a superioridade da amamentação, declaração de que o produto só deve ser utilizado quando orientado por profissionais de saúde e ilustrações para a correta preparação do produto, incluindo medidas de higiene a serem observadas e a dosagem para diluição, quando for o caso (MINISTÉRIO DA SAÚDE: 1989). As normas dispõem, ainda, que fica vedada a utilização nas embalagens de fotos infantis, frases como "leite maternizado", "substituto do leite materno", "quando não for possível a amamentação" ou outras que possam sugerir o produto como ideal para a alimentação do lactente ou pôr em dúvida a capacidade das mães de amamentar seus filhos. As informações dos fabricantes com relação a estes produtos poderão ser fornecidas unicamente aos profissionais de saúde e deverão restringir-se aos aspectos científicos. Amostras de produtos só poderão ser distribuídas aos profissionais de saúde e somente durante o seu lançamento ou para pesquisa. A campanha de retorno à amamentação vem surtindo efeitos. Badinter, contudo, considera um "estranho fenômeno essa nova moda de amamentar ao seio, exatamente quando a mortalidade infantil atinge o seu nível mais baixo e nunca houve melhores substitutos para o leite materno!" E nos coloca algumas hipóteses explicativas 136 para este fato, para as motivações das mulheres para amamentar e indaga sobre as pressões inconscientes de que são objeto. Sugere, por exemplo, que muitas mulheres que não foram ou foram pouco amamentadas pelas suas mães, talvez estejam pensando que, amamentando, dariam à criança uma possibilidade suplementar de equilíbrio e felicidade; ou, que estimuladas pela ideologia dominante, elas estão podendo proporcionar a si mesmas, um prazer que antes não ousavam reivindicar. Entende, ainda que outras podem amamentar pelo sentimento de culpa por trabalharem fora e, antes de deixarem o filho aos cuidados de outros, amamentam numa compensação da ausência futura; algumas mulheres também podem agir um pouco mecanicamente, obedecendo à moda (BADINTER: 1985,343-344). Ainda que seja difícil entender as motivações profundas dos seres humanos, parece-nos que seria ingênuo ver nesta retomada do aleitamento um sinal do devotamento natural da mãe pelo filho. O que nos perguntamos é se realmente teria sido a campanha e a publicidade dada aos conselhos dos pediatras que produziram esses efeitos? Considerando os padrões de difusão e analisando a inter-relação entre o discurso médico e a elite urbana, observamos que as mulheres urbanas mais ricas e instruídas estão mais próximas do discurso médico e captam primeiro as suas mudanças. Parece que, desde o surgimento da puericultura, as mudanças nas práticas sociais com relação ao aleitamento ocorrem paralelamente à mudança do discurso médico. Ora o discurso médico muda antecedendo as mudanças sociais, ora o discurso acompanha as mudanças que se fazem na elite urbana. Em uma determinada fase as mudanças podem ter começado no discurso médico, mas, em outros momentos, o discurso é que incorporou as mudanças sociais. Assim, o abandono do aleitamento que passou a ocorrer com a inovação tecnológica na produção do leite, precedeu a mudança no discurso médico em relação à amamentação. Mas parece que, mais recentemente, por ocasião da retomada do aleitamento, o discurso das elites científicas, médico e psi, mudou antes e estimulou as mudanças sociais. Observamos uma relação dialética entre o discurso e a mudança nas práticas sociais. O discurso é condicionado pela realidade mas esta se modifica em face dele. Tal modificação induz a uma mudança no discurso e assim por diante. Além do mais, um dado ramo da ciência tem a sua própria história e uma evolução bastante independente dos demais. O fato é que umas idéias são mais aceitas, outras não, conforme as condições sociais. Em relação às instâncias da difusão, as mesmas observações feitas anteriormente em relação ao declínio do aleitamento permanecem válidas atualmente. 137 Entretanto, observa-se o surgimento de novos discursos que passam a ser, também, elementos envolvidos na descoberta ou no empréstimo tomado a partir de outros países e culturas, de novos modelos e padrões de comportamento em relação ao aleitamento. Dentre os quais poderíamos destacar os discursos psicanalítico, epidemiológico, antinatalista etc. Vamos discutir, a seguir, algumas explicações para a retomada do aleitamento. Vimos que o acesso aos serviços coletivos, como creches, escolas maternais etc, se dá preferencialmente pelo grupo de pessoas mais ricas e instruídas. Isto não poderia explicar, em parte, o aumento da prevalência do aleitamento nesses estratos sociais? Para Manciaux, vários fatores devem ser arrolados na explicação da retomada do aleitamento: medidas legislativas, reorientação na organização dos serviços de saúde, treinamento de profissionais de saúde, educação, motivação e participação da população com maior acesso às informações científicas (MANCIAUX: 1982,36). Para Loyola, as novas preocupações com o aleitamento e formação do homem sadio podem estar vinculadas às exigências atuais de mão-de-obra especializada e de alta produtividade, que só uma nutrição adequada pode proporcionar (LOYOLA: 1983,46). Para explicar a retomada do aleitamento elaboramos algumas hipóteses: 1) numa sociedade relativamente complexa e dinâmica, o processo de socialização/ressocialização nunca está completo; 2) como as partes dessa sociedade são interdependentes e como numa sociedade mais democrática (e capitalista também) as relações entre os grupos e classes sociais tendem a ser menos de dominação/subordinação e mais de igualdade ou de competitividade, o efeito-demonstração ocorre com mais facilidade; 3) ele é facilitado, ainda, porque tais sociedades, relativamente modernizadas, são bastante receptivas a comportamentos (e objetos) supostamente baseados na ciência e na tecnologia (não podemos esquecer que a indicação do aleitamento parte dos pediatras e que suas alegações têm um cunho inegavelmente racional e científico); 4) as sociedades de que estamos falando tendem a ser bastante práticas no estabelecimento de relações entre meios e fins; parece-nos, por exemplo, no caso do aleitamento, que dar o seio é muito mais prático do que usar amas ou mamadeiras. Entretanto, esse processo de mudança social é bastante complexo e teremos oportunidade de, mais adiante, estudar alguns processos socioculturais e econômicos que, em nosso entender, explicariam uma grande parcela das transformações ocorridas nesse aspecto relevante da vida familiar em geral e da vida da mulher em particular. Antes, porém, seguindo nossa linha de exposição que privilegia o estudo da difusão de elementos 138 culturais relativos ao aleitamento, pretendemos analisar as mudanças operadas na maneira de pensar e de sentir de alguns grupos sociais significativos. Ou seja, pretendemos analisar o seu discurso na relação que mantenham com a questão da amamentação. 2. O DISCURSO EPIDEMIOLOGICO: Discutiremos, no presente item, as idéias de um novo discurso científico, a epidemiologia, quando esta começa a tomar como objeto a questão do aleitamento. As preocupações epidemiológicas com a amamentação haviam começado há bastante tempo, provavelmente desde o nascimento desta disciplina, porém, só mais recentemente, com a redescoberta da amamentação, a aplicação do saber epidemiológico se torna mais freqüente na análise do assunto. O discurso epidemiológico sobre o aleitamento não constitui um corpo fechado mas um saber em pleno movimento. Traz, como novidade, a incorporação de métodos estatísticos mais sofisticados e uma análise numérica do assunto mais aproximada, com os inquéritos de prevalência. Inicia a análise da matéria incorporando variáveis tais como situação social, escolaridade, renda familiar etc. Observa-se, mais recentemente, o surgimento de estudos multidisciplinares sobre o aleitamento, englobando, além da epidemiologia, saberes da sociologia, psicologia, demografia, dentre outras ciências. Como enfatizamos na introdução deste trabalho, este discurso, ainda que não esteja livre de juízos de valor, possui, sem dúvida, maior dose de cientificidade. No discurso epidemiológico, no caso veiculado pela Organização Mundial de Saúde, procura-se mostrar como teriam se processado as mudanças em relação à amamentação. Nesta análise, leva-se em conta 3 grupos: população urbana de alta renda, população urbana pobre e população rural. Assim, como se pode observar na figura 1, são percebidas, por alguns epidemiologistas, 3 etapas na evolução das práticas de aleitamento: na primeira etapa, todos os grupos teriam alta prevalência. Esta fase é chamada tradicional. Na etapa 2, a população urbana de alta renda passaria a amamentar menos. Nas etapas 3 a 5, observa-se-ia uma descida da prevalência que, tendo começado pelo grupo urbano mais rico, passaria a ocorrer no grupo urbano pobre e na população rural. Ao final da fase 5, a prevalência média do aleitamento seria muito baixa. Na etapa 6, o grupo urbano de alta renda recomeçaria a amamentar, porém os outros grupos ainda permaneceriam em declive. Na etapa 7, o grupo urbano de alta renda passaria a amamentar ainda mais, e já começaria a 139 ser seguido na volta à amamentação pelos outros dois grupos. Por fim, na etapa 8, todos os grupos sociais se encontrariam na fase ascendente. Comparando-se a etapa 1, tradicional, com a etapa 8, observar-se-ia que a prevalência média do aleitamento, apesar do aumento recente, seria bem mais baixa na última do que na primeira fase (DINÂMICA: 1983,39). Ainda segundo esta percepção, no mundo moderno encontrar-se-iam populações percorrendo muitas destas etapas. Na Ásia e África, as prevalências de amamentação são altas, maiores na Ásia do que na África. No discurso epidemiológico percebe-se a diminuição de prevalência nos grupos urbanos e nas mães de maior renda e escolaridade. Na América Latina as prevalências são baixas em todos os grupos e observase, a partir do início da década de 80, um retorno à amamentação nas camadas mais ricas e instruídas dos centros urbanos mais populosos. Na figura 2, observa-se a duração média do aleitamento em meses para alguns países da Ásia, África e América, incluídos no World Fertility Survey. Outro estudo mundial sobre a prevalência do aleitamento foi realizado pela Organização Mundial de Saúde (WHO: 1981). Nos países desenvolvidos, observa-se também um retorno à amamentação. Nos Estados Unidos, as mães mais ricas e instruídas recomeçaram a amamentar no fim da década de 70 e a Suécia na década de 80 atingiu a 140 etapa 8, quando todos os grupos se encontravam na fase ascendente. A grande aplicação do saber epidemiológico no estudo do aleitamento se dá através dos estudos de prevalência. Alguns desses trabalhos serão analisados aqui a título de ilustração. Os epidemiologistas encontram dificuldades na comparação entre esses estudos, pois abordam populações completamente diferentes, não comparáveis entre si e estão incluídas na definição de desmame tanto a cessação completa como parcial do aleitamento. Além do mais, as pesquisas focalizam geralmente amostras não representativas, baseadas em hospitais, clínicas ou pequenas comunidades. A maioria dos trabalhos pergunta à mãe quando ocorreu o desmame; esta pergunta está sujeita a lapsos de memória, pois esta pode não se recordar perfeitamente da época em que o desmame efetivamente aconteceu. As mães tendem a arrendondar as suas respostas para intervalos de meio ano. Os resultados podem, ainda, ser influenciados por morte da criança ou por mães que ainda continuam amamentando na época da entrevista. Há alguns métodos para evitar-se alguns destes fatores de tendenciosidade ou bias. Tais métodos têm sido pouco usados nos inquéritos. Um deles, o current status method, ideal para estudos transversais, pergunta se a mãe amamentou ou não a criança hoje e, analisando 141 crianças de diferentes idades, fornece, a cada intervalo, o percentual que permanece amamentando. O método das tábuas de vida é utilizado para melhorar alguns inconvenientes dos estudos transversais ou retrospectivos; permite a análise da prevalência de crianças amamentadas em cada uma das idades e o estudo da época do desmame em crianças não amamentadas; fornece, ademais, boas estimativas com pequeno número de observações. Uma vantagem desta técnica está em proporcionar estimativas não viciadas da freqüência da amamentação, o que não ocorre com o estudo da época do desmame, que não leva em conta as crianças ainda amamentadas (NOTZON: 1984,662-665). Outra vantagem adicional das tábuas de vida é poder também levar em conta a história da amamentação das crianças que morrem precocemente, utilizando as tábuas de vida de múltiplo decremento, onde tanto o desmame quanto o óbito são considerados eventos terminais da tábua (MONTEIRO & REA: 1988,58). Utilizando-se as tábuas de vida para os dados colhidos transversalmente, estes são analisados de forma longitudinal, produzindo "curvas de amamentação" mais regulares e mais próximas das que seriam obtidas através de estudos prospectivos; no cálculo da medida de tendência central — onde a mediana é mais apropriada, pois a distribuição da idade do desmame geralmente não segue uma curva normal — utilizam-se não apenas informações das crianças desmamadas, mas também daquelas ainda amamentadas no momento da entrevista; além do mais, as crianças que nunca foram amamentadas podem ser analisadas em conjunto com as demais (REA: 1981,89-90). Outro desenho de estudo é o prospectivo, no qual se segue a criança durante o tempo, anotando-se a época em que o desmame ocorreu. Este método é pouco usado por ser caro. Existem vários trabalhos que analisam os métodos utilizados no estudo da prevalência do aleitamento, suas vantagens, desvantagens e dificuldades. Podemos citar os seguintes: Holland (1987), Persson (1985), além de Notzon (1984). Os dados sobre amamentação são escassos no Brasil. Inquéritos periódicos sobre os padrões de amamentação têm sido raros, sendo a maioria realizada nas décadas de 70 e 80, através de informações obtidas de clientela dos serviços de saúde, porém existem alguns estudos incluindo amostras representativas em algumas cidades brasileiras. Os dados de alguns destes trabalhos encontram-se sumarizados na tabela 1. A percentagem de bebês alimentados exclusivamente ao peito com 1 mês de vida caiu, no Rio Grande do Sul, de 96% em 1940 para 40% em 1974 (SOUSA et al. : 142 1975,212). Em 1973, 53% das crianças foram desmamadas antes de 1 mês de vida, em Recife (MATTHAI: 1983,226). Pelo PNAD, 1981, 15% das mulheres que deram à luz no período de 12 meses, não amamentaram seus filhos. Entre as mulheres que haviam suspenso a amamentação, o tempo mediano de amamentação foi de tão somente 1,97 meses (SZWARCWALD & CASTILHO: 1989,139). Os estudos de prevalência analisam o aleitamento segundo características sociais (por exemplo, renda, escolaridade, local de residência), maternas (idade), reprodutivas (paridade), práticas de amamentação (horário da primeira mamada, época de introdução da mamadeira etc) e outras variáveis. Yunes & Ronchezel utilizaram dados retrospectivos da pesquisa sobre a reprodução humana no Distrito de São Paulo, realizada em 1965, entrevistando 2857 mulheres, das quais 2647 tiveram pelo menos um nascido vivo. Chegaram às seguintes conclusões: as primíparas iniciaram a amamentação em maior percentual do que as mulheres com 5 ou mais filhos (88,6% contra 87%), porém a duração média da amamentação em semanas foi maior para as multíparas do que para as primíparas (34,8 e 30,2 semanas, respectivamente). Observaram uma tendência das mulheres das coortes mais velhas amamentarem mais tempo do que as mais novas. A duração da amamentação foi maior para as mulheres que não usaram contraceptivos. As mulheres menos instruídas, de menor renda e de origem rural amamentaram mais (YUNES & RONCHEZEL: 1975,194-203). 143 TABELA 1 - PREVALÊNCIA DO ALEITAMENTO MATERNO SEGUNDO VÁRIOS ESTUDOS REALIZADOS NO BRASIL AUTOR LOCAL ANO N IDADE PREVALÊNCIA DO ALEITAMENTO TIPO DE MATERNO EM MESES 1 3 6 AMOSTRAGEM 0 98 12 Sousa et al., 1975 Alvim,1964 RS NE,CO,SE 40 64 — 715 — — 96 51,3 68 6,1 — lactários SS R 2 Procianoy, 1964 Pelotas 64 868 — 47,6 22,7 consultório-mães R 2 Yunes & Ronchenzel, S.Paulo 65 7003 — 88,3 + 79,8 # + 61,6 + 68 230 — 79,5 68/70 1029 0-4 a. 86,8 62,8 10,5 distrito 73/74 500 6 m-5 a. 74,4 44,2 27,6 domiciliar ER-R 1 73/74 816 0-2 a. 83,7 71,4 50 19,4 74 1100 0-3 a. 59,5 96 26,2 39,2 13 20 4,7 12 74 220 — 88,2 56,2 30* 20* 17* puericultura SS R 2 75,1 63,6 50,3 núcleos rurais R 2 42,9 + 16,1 + mulheres 15-49a. R 1 1975 Arruda & Gondin, 1970 Fortaleza- Santos, 1976 CE Recife Sigulem & Tudisco, S.Paulo parturientes SS R 2 R1 1980 Ricco, 1975 Ribeirão Sousa et al., 1975 Preto RS Bomfim et al., 1974 Rio Rea, 1981 Janeiro SP-rural 75 1005 0-5 a. 90,6 ++ Thomson, 1978 Londrina 75 406 0-2 a. 86,9 57,9 20,9 Martins Filho, 1976 Campinas 76 855 — 82,6 71,9 48,5 32,4 21,4 Hardy et al., 1982 Paulínia 77 610 0-2 a. 87,7 74 49 34 22 18 Recife 77/78 828 3 m-l a. 57 75,6 31 Coutinho, 1978 12 6,1 pediatria SS R 2 Berquó, 1984b S.Paulo 81 298 0-8 m. 91,3 95 33 (31) 31 SS S-R 1 74 11 88 58 31 12 SS S-R 1 32 4 3 Berquó, 1984b Victora et al., 1988 Monteiro & Rea, 1988 Martines et al., 1989 Recife Pelotas S.Paulo Pelotas de 81 82 84/85 85/86 300 4905 1016 406 0-8 m. 0-12 m. 0-59 m. 0-6 m. dados sublinhados — aleitamento materno exclusivo * dados aproximados de gráfico + percentuais calculados a partir das tabelas 1 e 2 do trabalho ++ com 1 semana de vida # com 3 semanas de vida ( ) entre 61 e 120 dias de vida 15,9 domiciliar L-R 1 clientela SS R 2 pediatria SS R 2 92 54 30 90 10 1 92,8 59* 34* 97 (54) 65 41 16 18,8 parturientes SS R 2 domiciliar L-R 1 domiciliar N-L-P 1 domiciliar L-R 1 domiciliar N-P 1 N — nascimentos; SS — serviços de saúde P — prospectivo; R — retrospectivo L — tábua de vida; S — current status method ER — estratificação por renda per capita 1 — amostra representativa; 2 — amostra selecionada Campos Júnior et al. , estudaram o município de Neves Paulista (SP), entrevistando, retrospectivamente, 12 grupos homogêneos de 30 indivíduos, nascidos no 144 mesmo biênio, de 1957 a 1977. A duração média do aleitamento em meses foi menor quanto maior a utilização dos serviços de saúde no período, medida pela freqüência do prénatal, parto hospitalar e realização de cesarianas. É provável que estes resultados revelem tanto o desestímulo ao aleitamento praticado pelos serviços de saúde, quanto a maior utilização destes serviços pela população mais rica, instruída e de origem predominantemente urbana, que amamentava menos durante o período do seu estudo. As mulheres das áreas urbanas tiveram uma média de aleitamento menor que as das áreas rurais. Observou-se um declínio no aleitamento, cuja duração média cai de 10 meses em 1957/58 para 2 meses em 1977. Os dados deste trabalho estão representados na figura 3 (CAMPOS JÚNIOR et al.: 1978, 338-341). Ricco, estudando a população de Ribeirão Preto, em 1973/74, observou maiores medianas do aleitamento para a classe social baixa (3 meses e 10 dias), em relação às classes alta e média (1 mês e 20 dias). No que se refere à idade materna, percebeu que as mães com menos de 25 anos amamentaram mais nos seis primeiros meses, porém, após este período, a situação se inverteu e as mães com 25 anos ou mais passaram a amamentar mais. 145 A duração mediana do aleitamento foi de 3 meses e meio para as mães menores de 25 anos e de 1 mês e meio para as demais (RICCO: 1975,34-37). Martins Filho, entrevistando parturientes de hospitais em Campinas, em 1976, observou que as mulheres de renda igual ou superior a 10 salários mínimos iniciaram o aleitamento em maior proporção (86,1%) do que as de renda entre 3 e 9,9 salários mínimos (77,1%), ou entre 1 e 2,9 salários mínimos (82,6%), ou ainda do que as mulheres com renda abaixo de 1 salário mínimo (85,8%). No entanto, as medianas de duração do aleitamento foram maiores quanto mais baixa era a renda. Assim, as mulheres de menor renda amamentavam mais freqüentemente e durante maior tempo que as de renda mais alta. Tais diferenças não foram estatisticamente significativas (MARTINS FILHO: 1976,179-131). Notou, ainda, que as mães de nível superior amamentavam mais que as de instrução secundária até os 3 meses. As medianas de duração do aleitamento materno foram de 2 meses e 35 dias para as mulheres de escolaridade primária, de 1 mês e 2 dias para as de instrução secundária e de 2 meses e 9 dias para aquelas que possuíam curso superior. Em relação ã idade, notou que as mulheres mais velhas (maiores de 31 anos) amamentavam mais do que as mais novas (MARTINS FILHO: 1976,186-190). Coutinho, estudando crianças de clientela pediátrica em Recife, em 1977/78, observou que as mães analfabetas iniciaram o aleitamento em maior percentual (85,9%) do que as de instrução primária (77%). Entretanto, as de nível superior iniciaram em maior proporção (73,3%) do que as de curso secundário (62,4%). Quando analisou as médias de duração do aleitamento, encontrou números menores para as mais instruídas (COUTINHO: 1978,60-62). Um dos estudos mais representativos sobre a prevalência do aleitamento no Brasil, foi realizado por Berquó et al.(1984c), através do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), de janeiro a março de 1981, com o apoio do INAN e do UNICEF, em Recife e São Paulo. Este estudo é um "baseline" para se conhecer a situação da amamentação, antes da deflagração de uma campanha nacional pró-aleitamento. Utiliza uma amostra de usuários de serviços de saúde e de áreas faveladas. Os dados podem, no entanto, subestimar a duração do aleitamento, pois incluem crianças de até 8 meses e, como a amostra foi retirada de serviços de saúde, inclui uma população teoricamente mais doente. Os principais resultados são mostrados na tabela 1 e na figura 4. Comparando Recife e São Paulo, Spindel detecta diferenças na valorização social do ato de amamentar nestas duas regiões. Considera que São Paulo, atualmente, parece incorporar os padrões de aleitamento atualmente vigentes no mundo desenvolvido. 146 Em Recife, "provavelmente os padrões ora em vigor estão refletindo um comportamento importado de São Paulo, não o atualmente em adoção, mas o definido há 20 ou 30 anos passados" (SPINDEL: 1984,84). Berquó, utilizando a técnica das dicotomias de Morgan e Sonquist e a regressão linear múltipla, observou que, na explicação das variações na duração do aleitamento, as práticas de amamentação (horário da primeira mamada, intervalos entre mamadas, idade na introdução da mamadeira), a experiência e o conhecimento sobre amamentação foram as variáveis mais importantes, seguidas pelas variáveis demográficas e reprodutivas (idade da mãe, número de filhos, tipo de parto, uso de anticoncepcionais e espaçamento entre partos). Foi relativamente pequeno o papel das variáveis socioeconômicas e de comunicação na explicação das variações individuais. As variáveis mais importantes relacionadas com o desmame foram: época de introdução da mamadeira, duração do aleitamento do penúltimo filho, informação sobre aleitamento, escolaridade da mãe e número de filhos (apud INAN-UNICEF: 1981, 24-25). Victora et al. , estudando crianças em Pelotas, em 1982, observaram que a 147 proporção de crianças que iniciaram suas vidas amamentadas ao seio foi maior entre as famílias de renda alta (97%), do que entre as mais pobres (89%). Esta tendência se manteve aos três e seis meses de idade, mas aos nove meses todos os grupos de renda apresentavam prevalências similares de amamentação. Aos doze meses um padrão diferente foi observado: as crianças de famílias de menor renda foram amamentadas em maior proporção (21%) do que as dos grupos de renda mais elevada (12%). Neste trabalho, analisaram, ainda, que as crianças com maior peso ao nascer foram mais amamentadas que as de baixo peso (VICTORA et al.: 1988,118-122). Monteiro et al. encontraram aumento na duração do aleitamento em todos os grupos de renda, em São Paulo, em 1984/ 85, comparando com 1973/74. Porém, tal incremento tendeu a ser maior nos grupos de alta renda. Em virtude disto, a relação inversa entre renda e amamentação, observada em 1973/74 — quando os grupos de maior renda iniciavam amamentando menos e apresentavam uma duração menor do aleitamento — não ocorreu em 1984/85 (MONTEIRO et al.: 1987,965). Notaram que a baixa performance de aleitamento nos grupos de baixa renda sugere que os programas de estímulo à amamentação devem ser reavaliados. Achamos que esse efeito mais retardado nestes grupos pode não se explicar apenas por uma falha nos programas mas pela demora cultural de adaptação aos novos padrões de comportamento social. Monteiro observou que as mães mais ricas e de maior escolaridade estão retornando ao aleitamento. Vale a pena notar que tais mães são, geralmente, as que mais trabalham fora. São Paulo parece ser o primeiro grande conglomerado urbano do terceiro mundo onde uma evidente reversão da tendência declinante da amamentação foi claramente documentada. Das 298 crianças analisadas por Berquó em São Paulo, em 1981, com idades entre zero e oito meses (idade média 3,6 meses), 37,9% ainda estavam sendo amamentadas por ocasião da entrevista, das quais 15,8% recebiam aleitamento exclusivo. Das 112 crianças estudadas em 1984/85, na mesma faixa de idade (média de idade 4 meses), 49,1% ainda eram amamentadas e 25,9% estavam sendo alimentadas exclusivamente ao seio. Isso sugere um aumento tanto do aleitamento misto quanto do exclusivo. Em São Paulo ocorre uma reversão na tendência ao desmame precoce, de efeitos modestos (MONTEIRO et al.: 1987,965-966). Martines et al. , estudando prospectivamente crianças até os 6 meses de idade em Pelotas, em 1985/86, realizaram uma análise de regressão logística e encontraram os seguintes fatores associados a uma maior duração do aleitamento: sexo feminino, mães negras, leite materno como primeiro alimento, leite materno iniciado nas primeiras 12 horas 148 de vida da criança, aleitamento realizado em livre demanda, maior freqüência da amamentação nas 24 horas e não utilização da pílula anticoncepcional combinada. Outras variáveis estavam relacionadas ao desmame precoce, quais sejam: sexo masculino, introdução precoce do leite de vaca, relação peso/idade (as crianças de menor peso para a idade foram desmamadas mais cedo) e falta de suporte familiar. A insatisfação com o crescimento da criança foi a principal causa apontada pelas mães para o início da suplementação e o fluxo inadequado de leite foi a razão mais indicada para explicar o desmame completo. O mesmo autor não encontrou, de modo geral, associação entre as seguintes variáveis e a duração do aleitamento: renda familiar, peso ao nascer, idade gestacional e idade, escolaridade, paridade, trabalho e fumo maternos (MARTINES et al.: 1989,153-155). Há muitas outras variáveis relacionadas nos estudos epidemiológicos com o aleitamento: a introdução precoce da mamadeira e a ausência da mamada noturna, reduzem o tempo de amamentação. Segundo alguns autores, um pequeno intervalo entre as gestações prejudica a duração do aleitamento natural. Estes trabalhos fornecem alguns dados para se tentar realizar uma análise histórica do aleitamento nos diversos grupos sociais e segundo algumas características pessoais. Na fase descendente do aleitamento materno, as mães de menor escolaridade, de mais baixa renda, do meio rural, mais idosas e multíparas amamentavam mais os seus filhos. Crianças primogênitas eram, na maioria das vezes, amamentadas mais e o aleitamento do penúltimo filho poderia, em alguns casos, ser mais duradouro que o do último. Assim, os primogênitos e os penúltimos filhos poderiam ser mais amamentados, porque nasceram em anos passados, onde a freqüência da amamentação era maior como um todo. As mães mais idosas ou multíparas provavelmente amamentavam mais, pois o seu aprendizado e socialização se deram em uma época anterior, na qual o aleitamento era mais valorizado. Muitas vezes se considera que as mães mais jovens amamentam menos por terem menor experiência reprodutiva mas isto pode indicar apenas uma flutuação nos valores sobre a amamentação. Este fato se deve, em nosso entender, à dinâmica do processo de difusão de elementos culturais. A incorporação dos novos valores que levam ao desmame e à maior utilização do leite industrializado se dá com mais facilidade nas mães mais jovens, de maior renda e escolaridade. Tanto é que, na década de 80, o grupo de mães mais novas, em alguns estudos, amamenta mais do que as mais idosas, porque podem estar captando primeiro as mudanças sociais em direção à retomada do aleitamento. As mães mais ricas, de maior escolaridade e mais jovens são mais sensíveis e absorvem com maior 149 rapidez as mudanças nas concepções sociais sobre a amamentação dos filhos. Observa-se no Brasil o fenômeno da retomada do aleitamento. Ele se iniciou, como já foi dito, nas mães de maior renda, mais instruídas, de zona urbana e nas mais jovens. Quando analisamos os trabalhos epidemiológicos existentes, percebemos que o início deste fenômeno já podia ser percebido na década de 70, em algumas cidades brasileiras, quando se observava o percentual de mães que iniciavam o aleitamento. Notava-se que as mulheres de curso superior ou de maior renda já iniciavam o aleitamento em maior proporção que as demais, porém não mantinham a amamentação por um período mais prolongado e assim, em média, amamentavam menos. Mas a situação já era diferente de alguns anos atrás, quando este grupo de mães também iniciava o aleitamento em menor percentual. Uma duração maior do aleitamento neste grupo e talvez nos demais, só ocorreu na década de 80, passando a se refletir em uma maior prevalência do aleitamento materno. Assim, em Pelotas, a prevalência aos 3 meses, que era de 54% em 1982, passou a ser de 65% em 85/86, analisando-se os dados de dois trabalhos comparáveis que usaram metodologia semelhante. O que indica que, mais em algumas cidades, em maior ou em menor grau, o Brasil está redescobrindo a amamentação. 3. O DISCURSO MÉDICO REATUALIZADO — MORTALIDADE INFANTIL, DESNUTRIÇÃO E ALEITAMENTO: Este item bem que poderia ser uma continuação do discurso epidemiológico. Na realidade, são tênues e imprecisas as linhas de demarcação entre os dois discursos acima referidos e, comumente, estes se misturam, emergindo um novo discurso interdisciplinar que, desse modo, poderia ser chamado de discurso médico-epidemiológico. Entretanto, preferimos manter o título discurso médico, no sentido de realizar comparações com o saber médicos de outras épocas sobre a relação aleitamento e mortalidade infantil. Os médicos analisam a relação, considerada de causa e efeito, entre o desmame e a mortalidade infantil. Consideram que a desnutrição e a diarréia infecciosa são mais freqüentes nas crianças que não são amamentadas ao seio ou nas que sejam desmamadas precocemente. O nascimento de uma nova disciplina, a imunologia, passa a fornecer novas explicações para estes fenômenos; o leite materno é rico em imunoglobulinas, que protegem a criança das infecções, principalmente a Imunoglobulina A; um fator existente no leite, o fator bífido, provoca a proliferação de uma microflora 150 intestinal inofensiva, criando um meio desfavorável para a instalação de bactérias patogênicas; a lisozima, enzima antiinfecciosa e as células fagocitárias que combatem as bactérias também estão presentes no leite; a lactoferrina é uma proteína carreadora do ferro, presente no leite, que compete ativamente com as bactérias intestinais (especialmente Escherichia coli), que precisam de ferro para se desenvolver. A amamentação, segundo o discurso médico contemporâneo, evita o risco de contaminação, quando se administra leite de vaca em locais sem água potável e instalações higiênicas, e promove a ingestão adequada de nutrientes e um perfeito desenvolvimento da criança (JELLIFFE & JELLIFFE: 1978). As mães são estimuladas pelos médicos e instituições do setor saúde a amamentar os seus filhos para que estes sobrevivam. O discurso dominante considera que, "onde não há outra escolha a não ser a miséria, a opção por um substituto artificial para o leite materno é, na realidade, uma alternativa entre saúde e doença" (MULLER: 1981,3). Porém, Muller reconhece, que para as elites, "a alimentação com mamadeira pode ser apropriada, embora não isenta de riscos, mas, para a maioria das mães, não é apenas inapropriada, mas também um risco definitivo para a saúde" (MULLER: 1981,51). Plank & Milanesi realizaram, em 1969 e 1970, uma pesquisa retrospectiva no meio rural chileno, entrevistando 1712 mães que tinham dado à luz nos últimos cinco anos. A mortalidade foi três vezes maior nas crianças alimentadas com mamadeira antes do 3º. mês (vide figura 5). Observaram que a mortalidade infantil foi maior para as famílias de maior renda. Consideram que o excedente de renda que existia nestas famílias passou a ser utilizado para o consumo de leite em pó, ao invés de ser aplicado em outros bens e serviços mais necessários à melhoria das condições de vida. Para os autores, um maior contato com os Serviços de Saúde e as melhores condições sanitárias estavam, também, relacionadas a um aumento na mortalidade. Uma explicação possível para a mortalidade associada ao consumo médico é que 66% das crianças desmamadas recebiam, parcialmente, suplemento de leite em pó do Serviço Nacional de Saúde (PLANK & MILANESI: 1973,203-209). Seu trabalho questionou os serviços de saúde como fonte de doença e ajudou a corroborar, dentre os médicos, a visão de que a amamentação materna nas classes subalternas aumenta, de fato, a sobrevivência infantil. 151 Percebe-se, no discurso médico que, talvez, nos grupos de maior nível socioeconômico, a lactância materna não tenha uma importância tão vital como para aqueles que vivem em condições desfavoráveis. O fato da mortalidade infantil ser menor em países desenvolvidos, e entre os grupos sócio-econômicos mais elevados nos países em desenvolvimento, onde a alimentação por mamadeira tem sido mais comum, sugere, para alguns, que a substituição do seio pela mamadeira tem sido menos importante para a saúde do lactente do que outros fatores, tais como medidas sanitárias, disponibilidade de serviços de saúde e a instrução e renda da mãe (JOHNS HOPKINS UNIVERSITY: 1982,4). Segundo alguns autores, embora se assinale a importância da amamentação na redução das taxas de mortalidade infantil, esta tem baixado nas áreas urbanas, onde as mulheres trabalham mais, e onde o desmame precoce é mais freqüente. Para o saber médico, trabalhos conclusivos sobre esta relação devem ser realizados onde as razões para a alimentação com mamadeira não sejam predominantemente problemas de saúde da mãe e da criança. Tais pesquisas poderiam fornecer uma avaliação melhor do risco da alimentação com mamadeira. Em um trabalho, realizado em país desenvolvido, em crianças pertencentes a 152 famílias afluentes e de alto nível educacional, não houve diferenças na morbidade entre crianças alimentadas natural e artificialmente. Não se encontrou nenhuma diferença significativa entre os dois grupos, no que diz respeito ao ganho de peso, crescimento e freqüência de consultas. O autor conclui: onde a higiene precária não é um fator, o leite materno, por si só, parece não oferecer nenhuma vantagem sobre a alimentação artificial (ADEBONOJO: 1972). Em outra pesquisa, realizada na Tailândia, a mortalidade infantil foi mais elevada no campo, onde a amamentação era mais comum. Os autores sugerem que, possivelmente, qualquer redução mais significativa no nível da mortalidade deve provir da melhoria de condições não relacionadas com o aleitamento materno (KNODEL & DEBAVALYA: 1980). Outros trabalhos referem que a mortalidade infantil permanece alta em muitas áreas rurais de miséria, apesar da amamentação ainda ser muito freqüente, o que chama a atenção para outros fatores envolvidos na mortalidade infantil (POPKIN et al.: 1982,1092). Por outro lado, na Suécia, a mortalidade infantil caiu para menos de 2% na década de 60, exatamente quando a duração média do aleitamento começou a mostrar um declínio mais marcado e rápido (VAHLQUIST: 1975,11). Vahlquist analisa que, há 50 anos atrás, na Europa, a morbimortalidade era muito mais alta em crianças alimentadas artificialmente do que entre aquelas que recebiam leite humano. Porém, após o surto de desenvolvimento que ocorreu na Europa, entre as crianças criadas em condições favoráveis, não encontrou nenhuma diferença na mortalidade destes grupos, registrando apenas pequenas diferenças em relação à morbidade (VAHLQUIST: 1975, 12). Outros autores pensam que, "em muitas partes do mundo, a saúde das crianças está melhorando, apesar de uma redução no aleitamento. Assim, torna-se difícil demonstrar que a alimentação artificial é completamente má". Se houver um substituto para o leite materno, as mães podem ser liberadas para aumentar a sua renda através do trabalho (DUGDALE: 1971,423). "Para as crianças de famílias pobres e ignorantes, a falência no suprimento de leite materno pode ser uma sentença virtual de morte; em famílias educadas e ricas, o tipo de alimentação é assunto de conveniência para a mãe, mais do que o bem-estar da criança. Entre estes dois extremos existem famílias que detém alguns conhecimentos sobre higiene infantil, mas sofrem de privação econômica. Neste grupo, em que o aleitamento confere pouca ou nenhuma proteção à criança, o bem-estar econômico de toda a família é mais importante" (DUGDALE: 1971,423). Neste grupo intermediário, o autor não encontra vantagens do aleitamento materno sobre o artificial na ocorrência de distúrbios 153 respiratórios e gastrointestinais leves, analisando, retrospectivamente, 250 prontuários de uma clínica na Malásia. Considera que a sua amostra é selecionada e está sujeita a erros de recordação das mães. Afirma que suas conclusões são aplicadas à comunidade urbana, de baixo nível sócio-econômico, por ele estudada. Um problema que está presente nestes estudos que pretendem relacionar desmame precoce e mortalidade infantil é a presença de fatores de tendenciosidade ou "bias". Se uma criança morre por diarréia e não estiver sendo amamentada, foi o desmame que provocou a diarréia e a morte, ou a criança foi desmamada justamente por estar doente? Se outros estudos mostram que as crianças com baixo peso ao nascer são amamentadas menos, e as crianças que desnutrem e morrem com mais freqüência são exatamente aquelas mais leves, como se pode afirmar que o desmame esteja associado com a sua morte, se ela pode não ter sido amamentada exatamente por nascer com baixo peso? Se não se tomar em consideração o peso nestes estudos, pode-se ter um aumento de duas vezes na mortalidade pós-neonatal em crianças não amamentadas ao seio, superestimando-se o "efeito protetor" do leite materno (BARROS et al.: 1986,656). A criança doente, de alto risco, tende a ser menos amamentada que uma criança saudável. Qualquer problema de saúde da mãe ou do lactente aumenta a probabilidade da criança ser nutrida artificialmente. Na comparação entre morbimortalidade e modo de alimentação há que escolher-se populações comparáveis. Existem fatores selecionadores dificilmente "controláveis", como valores culturais, pessoais ou familiares, pressões sociais etc (MANCIAUX: 1982,33-39). Muitos destes fatores de confusão podem ser medidos apenas imperfeitamente. Habicht et al. , estudando os fatores de tendenciosidade, concluem que a associação entre modo de alimentação e mortalidade infantil é causal, típica de países em desenvolvimento, está relacionada com o grau e a duração do aleitamento, e é mais forte nos primeiros meses de vida (HABICHT et al.: 1986,280). Porém, se não se controlar as variáveis, uma associação pode ser sugerida, só que esta tem uma causalidade reversa: a criança não foi amamentada ou mamou pouco porque adoeceu e morreu e não o contrário. Assim, se superestima o efeito protetor do leite materno. Não se pode obter, geralmente, uma perfeita comparabilidade entre os grupos alimentados com leite materno e leite de vaca e o modelo estatístico, às vezes, não corresponde às verdadeiras relações existentes, que escapam à sua análise numérica. Butz et al. analisam o papel do saneamento e do suprimento de água na relação entre desmame e mortalidade. "O aleitamento está mais fortemente associado com a 154 sobrevivência infantil em casas sem água encanada ou instalações sanitárias. Em residências dotadas de água e esgotos, o aleitamento misto não teve efeito significativo e o aleitamento artificial só foi estatisticamente significativo para a mortalidade entre o 8.e o 28º. dia de vida. A presença de sistema de água e esgotos não foi importante na mortalidade de crianças alimentadas exclusivamente ao seio até os seis meses (BUTZ et al. : 1984,516). Na sua opinião, o declínio na amamentação é pernicioso à sobrevivência infantil em alguns locais mas não em outros. No entanto, outros médicos fornecem críticas a esta teoria. Para estes, múltiplos fatores estão envolvidos na sobrevivência das crianças, dentre os quais: bom estado nutricional da mãe, peso ao nascer adequado, condições sociais higiênicas, além do modo com que se alimenta a criança. O discurso médico, que anteriormente afirmava relação entre mortalidade infantil e aleitamento, torna-se menos categórico e passa a admitir essa relação apenas em locais pobres com deficiência de saneamento básico. Entretanto, alguns admitem a provisoriedade dessa relação e questionam até mesmo a sua existência. De qualquer modo, a maioria dos médicos considera o aleitamento natural como o principal fator responsável pela sobrevivência da criança, chegando o discurso a transferir esta responsabilidade para as mães, quando se sabe que a ausência desta prática é de responsabilidade antes do contexto social do que das mães. Os indivíduos não têm inteira responsabilidade sobre processos sociais dos quais fazem parte como criaturas. A resultante social é um processo que deriva do somatório das vontades individuais e depende da atividade política dos homens. A "concepção do desenvolvimento da formação econômico-social como um processo histórico-natural exclui... a responsabilidade do indivíduo por relações, das quais ele continua sendo, socialmente, criatura, por mais que, subjetivamente, se considere acima delas" (MARX: 1987,6). Os padrões da desnutrição mudaram com o desmame cada vez mais precoce. Em populações que amamentam suas crianças, a desnutrição é mais tardia, ocorrendo a partir do segundo ano de vida, na forma de kwashiorkor, na época em que cessa o aleitamento e a família não dispõe de alimentos suficientes. Com o deslocamento para a alimentação artificial com mamadeira, a desnutrição se torna mais freqüente e surge desde o primeiro semestre de vida, sob a forma de marasmo. O kwashiorkor também acontece em crianças no segundo ano de vida alimentadas apenas com leite de vaca, sem incluir-se outros alimentos. Para muitos médicos, a desnutrição, em nosso meio, não está relacionada 155 com a natureza do alimento. As dietas são adequadas em termos de qualidade, mesmo com as diferenças culturais existentes. O que existe é um consumo insuficiente de alimentos, que não estão disponíveis na quantidade adequada (MULLER: 1981,53). Achamos que promover medidas de incentivo ao aleitamento materno como forma isolada de sobrevivência infantil, sem que se proponham mudanças abrangentes na estrutura social que realmente permitam melhores condições de vida, é apenas transferir o problema para idades mais tardias onde, se a morte já deixa de ser uma conseqüência completamente inevitável, a desnutrição e a doença são seqüelas previsíveis. 4. O DISCURSO PSICANALÍTICO: Boltanski acha que, nos dias atuais, o argumento psicológico, novo, predomina sobre o argumento médico e o aleitamento materno é considerado, nas classes superiores, como um meio que a mãe tem de mostrar a sua afeição à criança; a necessidade de dar à infância uma autonomia no meio familiar favorece, nesta percepção, o desenvolvimento de sua personalidade e, agora, se recusa a deixar a criança dormir na cama com os pais, pois isto pode ser mau para o seu psiquismo (BOLTANSKI: 1984,128). A revalorização do aleitamento nas sociedades atuais não seria um prenúncio, um sintoma do nascimento de uma nova representação da infância? Em relação ao saber sobre o psíquico, existem vários discursos que variam em suas premissas e modos de atuação social. Nota-se que alguns incorporam em maior medida aspectos valorativos, outros demonstram maior predominância de aspectos científicos. No presente item, investigaremos apenas as concepções e práticas sobre o aleitamento em relação ao discurso psicanalítico. As observações aqui expostas não podem ser utilizadas em referência aos demais saberes sobre o psiquismo. A psicanálise surge como um novo instrumento mais avançado de controle social, ocupando o lugar do padre e dos médicos. Seus especialistas esperam a demanda do sujeito e prometem a liberação das coerções, do peso dos costumes, do arbítrio das regras; prometem desinibir a sexualidade, difundem a esperança de uma autonomia existencial. A psicanálise evita a fatalidade do diagnóstico, valorizando a possibilidade familiar de bonificação do comportamento da criança. "Não impõe nada, nem novas normas sociais, nem antigas regras morais. Mas ao contrário, ela as deixa flutuar umas sobre as outras até que encontrem um ponto de equilíbrio" (DONZELOT: 1986,190). A desadaptação que 156 existe entre a imagem (desejo do indivíduo) e a realidade são trabalhadas, para que mude uma ou outra. Desaparecem as referências fixas e o desejo aparece como domínio legítimo de intervenção, pelo menos tanto quanto de liberação. Não se regula mais o comportamento mas o desejo é que aparece como alvo de regulação: é o que Donzelot chama de regulação das imagens. É por isso que a psicanálise pôde convir ao mesmo tempo à busca de autonomia e felicidade da família e permitir a resolução dos problemas de normalização social. Modalidade de controle mais evoluída e mais frouxa, que se amolda às contingências sociais nesta época de grandes transformações. A psicanálise fornece "mecanismos de encaixe para os sujeitos, que passam a encontrar condições e instrumentos para conviver com as diferenças e não para precisar negá-las ou reagir contra elas" (ALMEIDA: 1987,105). Com o advento da psicanálise, a mulher viu-se pressionada a amamentar seus filhos como forma de demonstrar seu amor por eles. No discurso psicanalítico, a falta de amamentação pode quebrar a interação mãe-filho nos planos psicológico e emocional (BETTIOL et al.: 1988,45-47). Para Freud, a amamentação é um prazer físico e sexual para a mãe, partilhado pelo bebê. Isto certamente para as mães vienenses de classe média do seu tempo. Não, naturalmente, para as mães Mundugumor descritas por Margaret Mead e por nós analisadas em capítulo anterior. Para a psicanálise, a amamentação é fundamental para o desenvolvimento ulterior da criança. Dessa primeira relação bem sucedida (a amamentação), depende o bom equilíbrio psíquico e moral da criança. O conceito de felicidade (de bom) substituiu o de bem (BADINTER: 1985,58-59). O aleitamento ao seio é visto como a primeira prova de amor da mãe pelo filho, pois engendra sentimentos de prazer, físicos e espirituais. Mélanie Klein exalta o aleitamento materno: "a experiência mostra que crianças que não foram amamentadas no seio se desenvolvem com freqüência muito bem (...) na psicanálise sempre se descobrirá, entre as pessoas que foram criadas assim, um desejo profundo do seio que nunca foi satisfeito... Podemos dizer que, de um modo ou de outro, seu desenvolvimento teria sido diferente e meihor se tivesse sido beneficiado por um aleitamento bem sucedido. Por outro lado, minha experiência me faz concluir que as crianças cujo desenvolvimento apresenta problemas embora tenham sido amamentadas ao seio, estariam ainda pior sem isso" (apud BADINTER: 1985,311). Se assim for, e não estamos convictos disso, as mulheres teriam sido colocadas em uma camisa de força emotivamente envolvente e difícil de ser afrontada com argumentos. 157 Graças à teoria psicanalítica, os pais se considerarão cada vez mais responsáveis pela felicidade e infelicidade dos filhos. A responsabilidade parental, transformada em culpa, atingirá o seu apogeu no século XX (BADINTER: 1985,179). A respeito, observamos que a teoria psicanalítica tem sido muito questionada pelos filósofos da ciência. É que ela não prevê as possibilidades de sua refutação, que derrubariam as hipóteses nas quais se alicerça. De modo geral, na Filosofia da Ciência, entende-se que uma teoria de certo modo "irrefutável" não merece o qualificativo de "científica". (HEGENBERG: 1965,16). A mãe do século XX arcará, além das responsabilidades com a criação e educação, com o inconsciente e os desejos dos filhos. Para Badinter, "graças à psicanálise, a mãe será promovida a 'grande responsável' pela felicidade de seu rebento... esses encargos sucessivos que sobre ela foram lançados fizeram-se acompanhar de uma promoção da imagem da mãe", mas ao mesmo tempo de sua alienação (BADINTER: 1985,237-238). O discurso psicanalítico contribuiu muito para tornar a mãe o personagem central da família. "Quer se queira ou não, a psicanálise levou a pensar, durante muito tempo, que uma criança afetivamente infeliz é filho ou filha de uma mãe má, mesmo que o termo 'má' não tenha aqui nenhuma conotação moral" (BADINTER: 1985,295). A representação negativa da mãe má reforçou a culpa das mulheres. Badinter pergunta: que mãe aceita confessar-se "má" para seu filho? Para muitas mães, colocá-lo na creche pode ser vivido como um abandono, uma confissão de egoísmo, e uma constatação de fracasso. Muitas mulheres enfrentam um terrível sentimento de culpa se retornam ao trabalho após o parto, sobretudo se o trabalho não for uma necessidade econômica para o casal. A psicanálise, ao mesmo tempo em que aumentou a importância da mãe no núcleo familiar, "medicalizou" o problema da mãe má. Na opinião de Badinter, "a angústia e a culpa maternas nunca foram tão grandes como no nosso século, que se pretendia, no entanto, liberador". Este pensamento deve ter deixado uma marca, real e pesada, no inconsciente feminino. A psicanálise não soube convencer da independência do mal psíquico em relação ao mal moral (BADINTER: 1985,296). Para Badinter, Freud trata como naturais, comportamentos que são socialmente construídos, provavelmente discrepantes segundo as classes sociais e os indivíduos e mutáveis no tempo. A teoria analisa os fenômenos como se o modelo cultural não tivesse nenhuma influência específica sobre o comportamento da menina. Ajuda a difundir o modelo cultural do homem ativo e da mulher passiva (BADINTER: 1985,303). A psicanálise condenava, também, a prática de amamentar os filhos através 158 de amas. São palavras de Françoise Dolto: "toda mãe, pobre ou rica, que confia seu filho a uma mercenária, sujeita-a a um risco... As mudanças intempestivas da pessoa que amamenta são traumatizantes... a criança é obrigada, a cada relação nutrícia e tutelar sucessiva, a construir uma rede nova, mais precária, de comunicação inter-humana que cada nova separação destrói... " (apud BADINTER: 1985,324). Nota-se uma contradição entre a teoria e a vida real das mulheres. Kate Millett percebe falhas nas teorias freudianas: negligência da hipótese social, postulados teóricos indevidamente confundidos com verdades demonstradas (apud BADINTER: 1985,332). O adquirido era declarado inato. 5. ALEITAMENTO NATURAL COMO FÓRMULA DE CONTROLE DA NATALIDADE: Analisamos, anteriormente, o fato de que o aleitamento era visto por muitos agentes sociais, no século passado e início deste, predominantemente como um meio de estímulo à natalidade. Atualmente, predominam as idéias que consideram o aleitamento como um fator capaz de ajudar na restrição da natalidade. As relações de significado predominantes entre aleitamento e natalidade variam dependendo das percepções sociais dos sujeitos históricos. O discurso majoritário, nas duas últimas décadas, por ocasião da redescoberta da amamentação, busca obter, pelo estímulo ao aleitamento, um controle dos nascimentos e uma redução na natalidade. Vamos descrever neste item este discurso emergente e analisar as suas premissas e fundamentos que são, em grande parte, ideológicos. Consideraremos, também, o contra-discurso natalista que se opõe a estas idéias. A partir deste ponto de vista, a amamentação contribui para o espaçamento das gestações e para a redução da alta fertilidade. Descreve-se que, em algumas culturas tradicionais, a mulher não tem relações sexuais com o marido antes do desmame completo, embora estas normas estejam sofrendo modificações em muitos países, com a influência da urbanização e da adoção de idéias ocidentais. O sexo com uma mulher grávida ou nutriz, nessas culturas, é visto como prejudicial à criança, pois o sêmen pode provocar danos ao feto no útero ou estragar o leite. Além do fator cultural, considera-se que o aleitamento exerce um efeito fisiológico direto, retardando a ovulação e a menstruação. Os defensores desta tese acreditam que este meio de restrição da natalidade não é seguro para uso 159 individual, mas contribui com uma redução de cerca de 20 % no número total de nascimentos (BADER: 1983,381). Outros fundamentos deste discurso são: sobre uma base mundial, a anticoncepção pelo aleitamento tem, provavelmente, uma taxa numericamente maior de proteção contra a gravidez do que atualmente se consegue com os anticoncepcionais mecânicos (JELLIFFE & JELLIFFE: 1975,558); a sua atuação contraceptiva é maior quando a amamentação se dá livremente, sob demanda, sem horários fixos, e quando a criança mama, inclusive, à noite; a quantidade de leite secretado e a duração do efeito contraceptivo variam em função da freqüência, duração e intensidade da sucção; o horário fixo é mais obedecido pelas mulheres urbanas e ricas; a sucção sem horários definidos é mais freqüente nas crianças de mães pobres. Outro efeito referido pelos partidários deste discurso é que a duração da amenorréia pós-parto aumenta com a severidade da desnutrição materna (CAMPBELL: 1984,563). Ainda segundo estas idéias, o impacto da amamentação na proteção contra a gravidez é mínima, se sua duração for de até seis meses, e aumenta, significativamente, somente após cerca de 10 meses. Mas a proteção dificilmente dura por mais de um ano e meio, mesmo que a amamentação se prolongue até dois anos ou mais. Assim, o efeito do aleitamento materno no aumento da esterilidade pós-parto é maior para as durações entre 10 e 20 meses (KENT: 1981,8). Argumenta-se que "depois de 6 a 12 meses, ou tão logo a criança comece a receber quantidade substancial de outros alimentos e a ser amamentada com menor freqüência, a fertilidade pode retornar e é necessária a anticoncepção eficaz a fim de evitar nova gravidez" (JOHNS HOPKINS UNIVERSITY: 1982,1). Após seis meses do parto, 20 a 30 % das mulheres já menstruam e necessitam de anticoncepção. No discurso de restrição da natalidade, alerta-se que, quando a amamentação for prolongada, o uso de contraceptivos nos primeiros meses do pós-parto constitui uma dupla proteção desnecessária. Porém, em muitos países, as mães abandonam a prática do aleitamento materno antes que os contraceptivos sejam usados em larga escala, o que pode levar a um aumento da fecundidade (WHO/NRC MEETING: 1983,371). Para este discurso, na ausência ou nos casos de uso ineficiente de anticonceptivos, a amamentação emerge como a mais importante variável que governa a duração do intervalo intergestacional (KENT: 1981,3). Na medida em que houver uma maior disponibilidade e utilização dos contraceptivos e seu uso chegar aos 70%, o aleitamento deixará de ser um fator importante na redução do número e aumento do intervalo entre as gestações (KENT: 1981,32). 160 A gravidez é visualizada como causa do desmame: um aumento na probabilidade de concepção deve ser contada nos riscos de se iniciar suplementos para a criança. Alguns autores consideram que uma gravidez indesejada, durante a amamentação, é um risco comprovado e sério para a saúde da mãe e, finalmente, também para a saúde de ambas as crianças. Muitas mulheres referem a gravidez como causa do desmame. Achamos que isto pode refletir uma crença disseminada, desde o século passado, de que não se deva amamentar quando grávida. Além disso, o aparecimento de uma gestação tem outras determinações, além da biológica, que refletem os padrões reprodutivos e familiares, e a situação social da mulher. Muitas famílias das classes populares consideram ideal ter muitos filhos, sendo comum as gestações repetidas, com intervalos curtos entre as mesmas. Porém, não se pode indicar a gravidez como causa significativa do desmame, porque, em muitas situações culturais, as mães podem amamentar, mesmo quando gestantes. E gestações sucessivas convivem, em sociedades tradicionais, com altos níveis de prevalência do aleitamento. Em suma, é a própria condição sociocultural que permeia este nexo entre gravidez e desmame. O discurso ideológico quer fazer crer que a gravidez provoca desmame; não se questiona que, mesmo que esta relação exista na atual realidade históricoestrutural, isso não significa que ela seja perene ou ocorra sempre e em todas as sociedades. Alguns defensores desta tese acreditam que, nas atuais condições sociais, no entanto, o ciclo contínuo de gravidez e amamentação provoca um fardo muito grande sobre a mulher: aborto, desnutrição, anemias, prolapso uterino, rupturas de períneo e aumento da mortalidade materna. Isto poderia ser prevenido pela maior disponibilidade de informações à mulher, planejamento familiar e maior acesso e qualidade dos serviços de atenção à saúde da mulher (WHO: s.d.,11). Obter-se-ia um alívio na carga sobre a mulher, em benefício dela própria, da sua saúde e esta poderia dedicar-se mais aos filhos remanescentes, prolongando-se a amamentação. Cabe à mulher o direito de decidir quantos filhos deseja ter e a maneira de amamentá-los. A puericultura se insere na família e depois se incorpora no planejamento estatal, nos programas de saúde materno-infantil e passa a intervir, através do planejamento familiar, não só nas relações afetivas entre mães e filhos, mas nas relações sexuais, disciplinando a procriação. Para Orlandi, "com o nome de planejamento familiar, se faz mesmo é o controle da natalidade... empurra a 'solução' do problema para a medicina... o que os dirigentes querem é transmitir a idéia de que a pobreza do país ocorre por culpa das famílias pobres, que têm muitos filhos e não por sua própria culpa" (ORLANDI: 1985,19). Para a tese antinatalista, o crescimento populacional é percebido tanto como 161 causa quanto conseqüência da pobreza, em locais com poucos recursos. Assim, uma diminuição no número de pessoas, aumentaria a renda disponível para cada uma. Nem sempre se atribui a pobreza à alta taxa de natalidade mas considera-se que um excesso de crianças na sociedade moderna, em que o custo das mesmas é muito mais alto que nas sociedades tradicionais, tende a afetar negativamente o crescimento econômico. A falta de capital, tecnologia e know-how próprios seria uma explicação para a permanência no subdesenvolvimento. Porém, para outros que vêem no controle da natalidade uma tentativa de defesa dos países ricos perante a possível ameaça do grande crescimento populacional nos países pobres, tais países não estão subdesenvolvidos por falta de recursos, pois estes são drenados, em parte, para as nações ricas. Analisaremos, a seguir, as idéias dos que discordam do controle da natalidade. Para Navarro, não se analisa que as relações econômicas internacionais são controladas pelos países desenvolvidos, que determinam o local e a oportunidade de utilização tecnológica. Nega-se a origem estrutural da pobreza. O controle da natalidade não poderá resolver o problema da miséria (NAVARRO: 1984,161-162). "O tamanho da população pode ou não ser um problema, dependendo da estrutura social, econômica e política na qual a população está articulada" ('NAVARRO: 1984,170). Para Garcia, "sob o nome de Medicina foram incorporados, em diferentes períodos históricos, práticas e saberes que se encontravam alheios à concepção restrita dos conceitos de saúde-doença... Na atualidade, os programas de controle de população são incorporados à prática médica e, ainda que isto se justifique em termos de saúde, o tema relaciona-se mais estreitamente com a instância política" (GARCÍA: 1983,98). Em relação a esta citação de Garcia, queremos observar que alguns médicos exageram a relação entre medicina e saúde. Desse modo, esses ideólogos não vêem relação entre o controle de natalidade e a saúde, porque tendem a confundir saúde com medicina. Pode ser que exista menos relação entre controle de natalidade e medicina do que supõem os médicos mas, sem dúvida, há muita relação entre controle de natalidade e saúde. Para Campbell, o aumento do interesse pela redução da natalidade nos países do terceiro mundo se deve ao temor pelo potencial revolucionário e pela ameaça evidente à sobrevivência da ordem capitalista. "O interesse recente pela promoção do aleitamento pelas agências internacionais filantrópicas e de desenvolvimento, deve ser visto à luz deste processo" (CAMPBELL: 1984,562). A lactação é um meio de controle de nascimentos a nível populacional. Não depende da memória como as pílulas, e a sua promoção tem a aparência de um humanitarismo desinteressado, beneficente e de uma preocupação 162 feminista. Segundo esta autora, os programas de planejamento familiar surgem, também, da necessidade de se limitar a expansão do exército industrial de reserva na periferia, devido ao desenvolvimento de tecnologias poupadoras de mão-de-obra. Devemos dizer aqui que consideramos um equívoco os argumentos natalistas segundo os quais as pressões populacionais poderiam se constituir em um fator que levaria a transformações políticas de monta, pois o lúmpem sempre serviu aos interesses das classes conservadoras. Ao mesmo tempo em que se assiste, a partir da década de 60, a uma diminuição da ênfase na atenção à criança por parte do Estado brasileiro, inicia-se a campanha antinatalista para evitar-se a explosão demográfica. Estas iniciativas começam com o financiamento das fundações Ford e Rockefeller, e culminam com a criação da Bemfam (Sociedade de Bem-Estar Familiar). Esta instituição atua por meio de clínicas particulares que recebem benefícios do Estado para promover o controle da fertilidade. A ajuda financeira internacional passa a depender, também, da existência de programas de controle de natalidade no país. A preocupação do Estado brasileiro com o problema da natalidade já vem de longo tempo. Medidas visando proporcionar informações e serviços sobre anticoncepção tardaram a vir por pressões contrárias dos meios militares e religiosos, avessos à intervenção estatal na área. Assim, só em 1977, O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social aprovou o planejamento familiar como parte do Programa Nacional de Proteção Materno-Infantil e em 1983, no âmbito do Ministério da Saúde, formulou-se o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, que, entre outros fins, propôs a implementação de métodos e técnicas de anticoncepção (PEREIRA: 1985,1772-1773). Como reflexo do aumento vertiginoso das taxas de urbanização, das mudanças de comportamento oriundas do próprio processo de urbanização, do aumento dos níveis de inserção da mulher no mercado de trabalho e à maior difusão dos meios anticoncepcionais a quase todas as camadas de população, observa-se uma rápida redução nos níveis de fecundidade no Brasil (M2DICI: 1989,76). A fecundidade da mulher brasileira está, realmente, diminuindo. Em 1986, a taxa de fecundidade foi de 3,3, bem menor que a do censo de 1980, variando de 2,5 no Sul a 5,1 no Nordeste. Cerca de 66% das mulheres em idade fértil fazem uso de contraceptivos e este número chega a 75%, considerando-se esterilização cirúrgica e uso de pílulas (RUTENBERG et al. : 1987). Para Pereira, predominam no debate sobre o controle de natalidade posições político-ideológicas racionalizadas com argumentos técnicos que vêm ao encontro de valores sancionados positivamente em nossa sociedade, tais como proteção à saúde, 163 promoção do desenvolvimento etc. Em sua opinião, do ponto de vista estritamente econômico, a explosão demográfica tem provocado, nos países subdesenvolvidos que, no seu esforço de industrialização se utilizaram de técnicas de capital intensivo, poupadoras de mão-de-obra, uma excessiva pressão sobre o emprego. Para ele, "não há uma relação unívoca entre crescimento populacional (ou falta dele) e crescimento econômico e desenvolvimento social. É a totalidade social, a interação do conjunto de variáveis, representadas por condições sócio-políticas e econômicas, que transformará ou não o crescimento populacional em alavanca do crescimento econômico" ou em sua obstaculização (PEREIRA: 1985, 1780-1781). Dependendo da situação, medidas que busquem aumentar o emprego pela utilização de tecnologias intensivas em trabalho ou medidas de contracepção podem promover efeitos favoráveis no desenvolvimento econômico. No entanto, considera que tais soluções não são fáceis pois, nos países capitalistas, a decisão sobre a utilização de tecnologia é descentralizada, ficando a cargo dos empresários e está, geralmente, baseada em fatores de difícil controle pelo Estado (PEREIRA: 1985,1777). Assim, provavelmente, as políticas de controle de população surtem pouco efeito e são medidas apenas paliativas para minorar a questão social. Historicamente, a mudança nos padrões de reprodução social tem sido espontânea, fruto do desenvolvimento econômico-social. E, citando Kubat e Mourão, descreve que a preocupação com o número de filhos "está diretamente relacionada ao domínio, por parte dos cônjuges, de outros componentes do ambiente social. Quem não sabe se vai ter trabalho e alimento amanhã, não planeja o nascimento dos filhos" (apud PEREIRA: 1985,1782). Segundo Pereira, a política de restrição de natalidade é anódina sem a conseqüente realização de mudanças políticoeconômicas substantivas. Se "a mulher participa mais decisivamente das atividades econômicas e se depara com a possibilidade de realizar projetos de vida fora dos limites estreitos do casamento e da maternidade, ela tende a diminuir o número de filhos" (PEREIRA: 1985,1780). Para Pereira, a mulher, com a ajuda de seu parceiro, tem todo o direito de decidir, sem interferência de qualquer autoridade, se deseja ou não conceber, pois a contracepção é um direito humano básico. "Nesse processo de transformação social, os direitos humanos básicos passam a constituir um ponto de referência para todas as sociedades nas quais estão avançando as concepções de justiça social e de liberdade de decisão" (PEREIRA: 1985,1780). 164 6. A PUERICULTURA NOS DIAS ATUAIS: Qual o papel da puericultura nos dias atuais? Que relações estabelece com a sociedade e como esta se incorpora hoje na prática médica? Qual o comportamento atual dos médicos em relação à amamentação e às práticas sociais sobre o corpo infantil? Em relação a estas perguntas, observamos que, apesar das mudanças sociais que enfatizam uma maior autonomia dos sujeitos em relação aos códigos, muitos médicos continuam tendo uma atitude rígida, autoritária e paternalista, de cobrança do aleitamento materno. As ações desenvolvidas nos programas de saúde não consultam a mulher, a educação é reproduzida por frases como: não existe leite fraco, amamente até o sexto mês, etc. Considera-se que as mães ignorantes fazem diluições incorretas de fórmula, farinha e açúcar no preparo das mamadeiras. As práticas alimentares são condicionadas ao modelo moral do "certo" e "errado", sem nenhuma consideração aos seus condicionantes culturais. A mãe não tem espaço para narrar sua história e ansiedades. Não há um respeito e valorização da liberdade de escolha da mãe em amamentar ou não, que se percebe na prática dos especialistas psi. Embora mudando de conteúdo, a ideologia racional, dogmática e moralizadora presente na puericultura permanece ativa no corpo médico. A persistência dessa ideologia pode se dever a um "atraso ideológico da instituição médica em relação às demais instâncias sociais ou é resultado de condicionamentos, de exigências próprias da prática médica (...) A medicina (...) necessita para o seu exercício pleno e eficaz de um receptor racional e adequado, da mesma forma que a economia capitalista exige dos produtores e consumidores uma conduta racionalizada, padronizada e previsível" (BOLTANSKI: 1984,52). Na análise dos fenômenos sociais, muitos médicos costumam "transportar" os problemas sociais para a medicina, analisando-os como se estes estivessem dentro de uma situação clínica, como a do relacionamento médico-paciente. Os médicos são acostumados a ter que oferecer respostas claras, rápidas sem titubear, devido à própria exigência da prática médica, que envolve a tomada rápida de decisões nem sempre reconhecidas como as mais adequadas para o problema. Urge oferecer uma resposta, uma intervenção, mesmo que esta não seja a ideal, mas que seja a melhor possível. Deste modo, quando interrogados sobre outros aspectos da vida social, estes tendem a oferecer respostas, geralmente parciais, em face de sua formação biológica, aos problemas sociais. Poderia parecer inadequado confessar a ignorância, pois que foram treinados a responder prontamente às diversas situações clínicas. 165 Em alguns países, como, por exemplo, nos Estados unidos, as regras de puericultura perdem seu caráter autoritário, a mãe se torna "livre", com opções, a quem o médico delega algumas responsabilidades. Isto é perceptível na leitura do livro do Dr. Spock, muito divulgado no Brasil. Porém, entre nós, ainda não se observa, de modo geral, uma mudança de atitude do corpo médico e, principalmente, dos pediatras, que têm ligação mais íntima com os problemas da infância. Tudo passa, então, a funcionar como se a moral fosse visualizada com os olhos atentos da ciência. Ou melhor, transformam-se motivos morais em razões científicas. A influência predominante na puericultura brasileira passa a ser americana, ao invés de francesa ou alemã, como no século XIX e início deste século. O discurso, contudo, permanece moralizador, nega-se a origem social dos problemas e insiste-se numa solução através da educação. No atual momento histórico, a puericultura perde muito de sua importância. Passa a se incorporar à Pediatria e a se cingir ao âmbito da assistência médica. Para Novaes, "a puericultura se difundiu de tal forma que, em certo sentido, até perdeu a especificidade como um saber mais ou menos fechado, passando a fazer parte do conhecimento comum (ainda que freqüentemente de forma truncada, imprecisa ou mesmo invertida) (NOVAES: 1979,128-129). As antigas funções de controle social passam a ser desempenhadas por outros agentes sociais como, por exemplo, os psicólogos, os assistentes sociais etc. A lém do mais, esses mecanismos de controle foram introjetados por muitos indivíduos, o que talvez tenha tornado um pouco obsoleta sua existência exterior. A puericultura é um conhecimento acabado que, para sobreviver enquanto parte da prática médica, tornou-se mais técnica, mais clínica, e os seus aspectos mais coletivos foram remetidos para o campo da saúde pública. A puericultura incorpora-se na pediatria preventiva (NOVAES: 1979,135-136). Perde importância enquanto instância ideológica. Passa a incorporar o "psiquismo" como um dos campos de sua atuação profissional. Novaes conclui: "a puericultura, nos dias atuais, perdeu o significado que tinha no seu início, porque, de um lado a sociedade dispõe de meios mais eficazes de realizar a sua missão civilizadora" para as classes inferiores, e neste processo populariza alguns de seus conceitos, e por outro lado a prática médica não tem mais lugar para ela. O que não impede que muitas das suas regras continuem sendo praticadas (a orientação alimentar, a higiene infecciosa etc.), porém sem significado social e original" (NOVAES: 1979,140). 166 A transformação do papel social da puericultura é um bom exemplo de como, no mundo social, as práticas e instituições poderão ser aceitas e continuadas por razões diferentes daquelas que inicialmente lhes deram origem. Outro ponto que gostaríamos de aprofundar se refere ao papel que desempenha hoje a medicina em relação às práticas de amamentação. A investigação coloca uma pergunta: quanto de cultural e ideológico existe nas afirmações e motivos pretensamente "racionais" e "científicos" que os médicos apresentam sobre o aleitamento ao longo do tempo, na tentativa de estabelecer regras sobre este comportamento? O que se nota é que o discurso médico sobre a amamentação muda com bastante rapidez e que, o que é "preconceito" hoje, passa a ser ciência amanhã; e o que foi "ciência" no passado, hoje é encarado como "preconceito". O médico tende muito a acreditar em verdades ou teorias absolutas e isto se deve à predominância da filosofia positivista na sua formação profissional. Não se nota, ou se nota pouco, a provisoriedade da ciência e sua relação com a época e com uma formação histórico-social específica. Se os fatores socioculturais predominam nos motivos e razões de amamentação, em alguns momentos da história, a ideologia também busca oferecer justificativas para a amamentação ou para o desmame, justificando tais atitudes contraditórias, ora como necessárias ora como irrelevantes, dependendo do desenvolvimento das forças produtivas e dos interesses e motivações socioculturais. No estudo da difusão do conhecimento médico em relação ao aleitamento percebe-se que muitas das práticas sociais sobre o corpo e a amamentação, hoje dissolvidas no senso comum e amplamente vivas nas classes populares, foram, no passado, produzidas e praticadas pelos médicos e classes dominantes. Podemos citar, como exemplo, a crença agora amplamente disseminada sobre "leite fraco", hoje rebatida pela maioria dos médicos. Lembremos que, nas obras dos médicos higienistas do século passado, uma das causas alegadas para justificarem a impossibilidade do aleitamento era a fraqueza da constituição. Na verdade, "a medicina é muito esquecida dela própria: lutando contra os preconceitos populares, a medicina muitas vezes luta, sem sempre o saber, contra o seu próprio passado" (BOLTANSKI: 1984,62). Pelas razões expostas, muitos médicos tratam as práticas populares em relação à amamentação e ao corpo infantil como "preconceituosas". Raramente procuram "pensar positivamente as práticas tradicionais das mães no cuidado com os filhos e explicálas em função de outra racionalidade. Ao contrário, o poder médico visa impor-se como o único competente para determinar regras universais de conduta da população não apenas em relação ao corpo, desautorizando todos os saberes antigos, fortemente enraizados nos meios 167 populares. Batalha que certamente não foi vencida" (RAGO: 1985,123). Ou seja, os médicos não percebem que o comportamento das mães em relação ao aleitamento tem seus motivos baseados em valores culturais socialmente compartilhados. Dito de outro modo, os médicos, na sua atuação, percebem muitos comportamentos das mães em relação à amamentação e à saúde dos filhos como frutos da ignorância e do acaso; ignoram as crenças populares e emitem as suas prescrições sem buscar uma explicação racional do porquê das discordâncias entre suas idéias e as praticas populares. No fundo, pretendem negar os outros saberes para que a biomedicina surja como discurso e prática hegemônica. Entretanto, em muitos casos, esta sua atitude dificulta a penetração da medicina nas camadas populares, devido, entre outras razões, à barreira social de comunicação. Isto pode levar ao fracasso de muitas ações sanitárias sobre o aleitamento baseadas em modificações de comportamento, necessárias para se atingir uma melhoria nas condições de saúde. Criticando tais posições, Boltanski indica que essas intenções de desvalorização dos saberes populares em relação ao aleitamento só são verdadeiras a nível ideológico, pois "as mães, independentemente do meio a que pertençam, dedicam uma grande atenção ao cuidado de seus filhos; não há nenhum aspecto deste trabalho que possa abandonar-se ao puro azar ou à imaginação... os que não se adéquam às regras de puericultura legítima, não se deixam conduzir pela fantasia, mas observam outras regras e se submetem a outras normas obrigatórias" (BOLTANSKI: 1984,59). Infelizmente, poucos médicos percebem os condicionamentos socioculturais da prática médica em relação ao aleitamento, o que tem levado, predominantemente, ao estabelecimento de condutas baseadas em juízos morais. Entretanto, a puericultura modifica a sua inserção e o seu papel social e já se percebe que alguns médicos começam a incorporar novos padrões de regulação social, atualizando as práticas do dispositivo médico, incorporando a representação do aleitamento como um "desejo" das mães. 168 CAPÍTULO VI — O ALEITAMENTO COMO PROCESSO SOCIOCULTURAL: 1. MUDANÇAS SOCIAIS E ALEITAMENTO: É importante detectar, no processo de desenvolvimento dos saberes e práticas sobre o aleitamento, atitudes e motivações psicossociais desfavoráveis à mudança social. As alterações das percepções culturais sobre o aleitamento vão depender de uma fase prévia de modificação mais ou menos rápida, mas sempre profunda, da herança cultural tradicional. O maior apego de alguns grupos sociais a práticas conservadoras explica o menor ritmo de mudança nesses segmentos. A prática do aleitamento deve se modificar com maior rapidez do que as idéias e concepções sobre amamentação, pois as últimas dependem de alterações mais profundas na subjetividade e valores dos indivíduos. A transformação social de valores é, geralmente, mais lenta, pois as pessoas tendem a reproduzir padrões anteriormente aprendidos, socialmente aprovados e compartilhados. As mudanças nos saberes e práticas sobre aleitamento dependem de alterações nos mores (costumes)13 e folkways (usos)14 do organismo social. As pessoas têm, geralmente, atitudes conservantistas que visam à preservação do patrimônio cultural e moral e à defesa de valores tradicionalmente consagrados. Elas podem ter medo das mudanças por ignorância, por temor de que elas não se adaptem às suas necessidades, pelo hábito, tradição ou pelo "poder dos interesses investidos", que Koenig considera o mais comum e mais poderoso obstáculo ao progresso social. Este último nem sempre se baseia em lucro econômico (KOENIG: 1967,350). Um exemplo desse obstáculo à mudança pode ser encontrado na resistência que as indústrias produtoras de leite em pó ofereceram às restrições à propaganda e à disseminação da idéia de que o aleitamento materno constitui a melhor forma de alimentação do recém-nascido. O aleitamento, "por se tratar de um comportamento que historicamente tem se apresentado com forte carga valorativa e controle social rígido, qualquer mudança nos padrões desta prática deve exigir períodos de maturação mais longos, mediados por alterações ao nível dos processos de evolução econômica e social... o 'tempo' necessário a cada sociedade para incorporar novos valores e padrões de comportamento de aleitamento 13 mores — "padrões obrigatórios de comportamento social exterior que constituem os modos coletivos de conduta, tidos como desejáveis pelo grupo, apesar de restringirem e limitarem o comportamento. São moralmente impostos e considerados essenciais ao bem-estar do grupo. Quando se infringe um more há desaprovação moral e até sanção vigorosa" (LAKATOS: 1986,365). 14 folkways — "padrões não obrigatórios de comportamento social exterior, que constituem os modos coletivos de conduta, convencionais ou espontâneos, reconhecidos e aceitos pela sociedade; regem a maior parte da vida cotidiana, mas não são impostos" (LAKATOS: 1986,361). 169 materno praticados por seus membros é tanto maior quanto menor for a sua complexidade urbana" (SPINDEL: 1984,83). A herança cultural resiste às adaptações às condições emergentes de vida. Surge, nesse caso, um "dilema social", "um tipo de inconsistência estrutural e dinâmica que nasce da oposição entre o comportamento social concreto e os valores morais básicos de determinada ordem social" (FERNANDES: 1976,208). Freqüentemente, surgem novos comportamentos percebidos por alguns ou pela maioria dos indivíduos como necessários, que colidem com os valores morais que fundamentam a ordem social. No caso do aleitamento, a sua revalorização é um fenômeno social novo. Este fenômeno foi provocado, sobretudo, por novas descobertas científicas de que esta forma de alimentação do recémnascido é mais eficiente, ou mesmo por um retradução cultural de saberes antigos que ficaram esquecidos ou abandonados e, também, pelas exigências das novas condições materiais de vida. Ainda que amamentar não se choque frontalmente com valores sociais básicos, os indivíduos se acostumaram a desmamar as crianças diante de certas circunstâncias. O retorno a esta prática passa por uma recodificação demorada das maneiras de agir habituais. O redirecionamento social à amamentação esbarra em saberes e práticas tradicionalmente aceitos mas, agora, percebidos como inadequados e obsoletos. A capacidade de inovação do grupo determina o ritmo da mudança. "De um lado surgiram tendências inconformistas na avaliação dos comportamentos rotineiros e tradicionais, das instituições e dos valores 'sagrados' ou intangíveis, que conformavam o presente pelo passado e impediam a renovação econômica, cultural e social das condições de vida. De outro, está o surto de uma mentalidade prática, que levou o homem a refletir sobre os elementos e as forças do meio social ambiente segundo critérios utilitários de teor crescentemente racional" (FERNANDES: 1960, 20). Na remodelação de valores e atitudes sobre o aleitamento, as instituições de saúde e muitos profissionais da área apresentam resistências. Pretendem manter as rotinas hospitalares que desestimulam a amamentação e as suas categorias de pensamento que atingiram um estado de concordância recíproca com a clientela. Surgem conflitos entre pacientes, que absorvem as novas aspirações de mudança e pretendem amamentar, e médicos que desestimulam a sua prática e prescrevem o aleitamento artificial. Por outro lado, há médicos que mudam a sua mentalidade e tratam de clientes conservadores, que praticamente exigem dele a prescrição de fórmulas. A flutuação desses valores permanecerá até atingir um nível de acomodação que proporcione a satisfação desejável a ambos, se o 170 conflito de opiniões não destruir a interação social. Neste aspecto, algumas regiões distantes espacialmente dos pólos de desenvolvimento mais dinâmicos do país, apresentam um retardo na assimilação cultural de novos valores. Tal ocorre como no caso das classes sociais, em que há um tempo decorrido para a difusão de novos comportamentos das classes dominantes para as populares. A distância no espaço provoca uma distância de valores no tempo. Este retardo na assimilação de novos modelos de comportamento é conhecido pelos sociólogos como demora cultural ou cultural lag15. Ogburn observou que as transformações da cultura material ou tecnológica são mais rápidas que as mudanças na cultura não-material e na capacidade de adaptação da sociedade. A mudança das condições de vida precede a alteração nas concepções e valores dos indivíduos, que se dá mais lentamente. Chamou este vazio que ocorre entre as transformações sociais objetivas e a formação das subjetividades de demora cultural. As pessoas e/ou as instituições desempenham papéis e/ou funções antigas que já não correspondem às necessidades novas que surgiram e às expectativas sociais. Revela uma discrepância entre os ritmos de mudança nos diferentes setores da vida social. Apesar disso, "a sociedade precisa de novas invenções tecnológicas porque as necessidades humanas são virtualmente ilimitadas. O homem não pode solucionar problemas sociais proibindo o progresso material" (KOENIG: 1967,346). "O problema enfrentado pelo homem moderno é o de adaptar suas maneiras de pensar e de comportar-se ao estado da tecnologia" (KOENIG: 1967,337). Para Fernandes, "a sociedade brasileira ainda não atingiu uma estrutura e uma organização que possibilitem a emergência de mecanismos de reintegração típicos da comunidade urbana da era industrial", tal como expressas na hipótese da demora cultura de Ogburn. Na sua opinião, estamos vivenciando "fases incipientes de desintegração da herança tradicional. Por isso, o fulcro dinâmico de configuração do equilíbrio social não provém das forças sociais conservadoras ou de coalizões de interesses que garantem influência prepotente às forças conservantistas. Por exceção, a situação de algumas metrópoles não é essa" (FERNANDES: 1976,211). Desse modo, as resistências à mudança seriam muito intensas, o que retardaria o ritmo das transformações socioculturais. A renovação não se daria com o 15 demora cultural — "diferença no ritmo de desenvolvimento entre segmentos de cultura ergológica e tecnológica, de um lado, e outros segmentos de cultura não-material de outro lado. A demora cultural é um fenômeno corriqueiro, por exemplo, em sociedades que se industrializaram com relativa rapidez, de maneira que uma série de instituições como a família, a escola, o Estado, a Igreja, não conseguiram ajustar-se ao novo tipo de organização econômica. As funções que estas instituições procuram desempenhar já não correspondem às necessidades que surgiram e às expectativas sociais que se prendem à sua existência" (WILLEMS: 1950,40). 171 dinamismo típico das sociedades urbano-industriais. Persistem padrões híbridos, nos quais atitudes racionais correspondem a motivações irracionais. A confluência de atitudes e motivações contraditórias contribui para retardar o ritmo da mudança social progressiva e aumenta o período de desintegração transitória da vida social organizada. "Atitudes e motivações irracionais valorizam a preservação de critérios obsoletos de comportamento, de organização das instituições sociais e de intervenção na realidade" (FERNANDES: 1960,45-47). A instituição médica é uma das organizações sociais mais refratárias às mudanças nos padrões não-materiais de funcionamento, apesar da rapidez com que tem absorvido as novas tecnologias de diagnóstico e tratamento. Já vimos que os ritmos de mudança cultural são mais rápidos nos estratos privilegiados e que os costumes permanecem por um tempo mais longo nas classes subalternas. Porém, se observa que os processos de criação, difusão e integração de novos modelos estão ocorrendo com uma velocidade e intervalos cada vez menores do que no passado; os meios de comunicação de massa, sem dúvida, desempenham um papel de grande importância no processo. Berquó analisa que, em São Paulo, as mães mais expostas aos meios de comunicação de massa tiveram uma duração média do aleitamento de 57,1 dias e as menos expostas de 26,5 dias. Em 1981, estes veículos começavam a apresentar mensagens de estímulo ao aleitamento. Porém, na mesma época, em Recife, as mães mais expostas à mídia amamentaram menos (BERQUÓ: 1984b, 32-35). Esta influência diversa da propaganda em São Paulo e Recife nos ilustra, novamente, o cultural lag. Nos tempos atuais, observa-se um aumento progressivo da eficácia das normas, das instituições e das técnicas de controle social. Uma das prováveis causas desse fenômeno é que, da mesma forma que a organização social da produção tende a atender às necessidades do homem médio, este também tende a aumentar a sua cooperação na medida em que suas necessidades forem sendo satisfeitas, o que, provavelmente, promove mudanças cada vez mais rápidas. Algumas esferas da sociedade mudam mais rapidamente, outras mais lentamente e o mais provável é que umas acabem se ajustando às outras. A tendência é do predomínio de formas de racionalidade típicas da sociedade urbanoindustrial, de padrões secularizados. 172 2. ALEITAMENTO, PROPAGANDA E IMPERIALISMO: Tem sido muito comum, no estudo do aleitamento, a interpretação que considera a propaganda como um dos fatores explicativos mais importantes no processo. Tal visão se desenvolveu a partir da crítica às promoções comerciais das indústrias no auge do decréscimo da amamentação. Em nosso entender, preferimos considerar o processo de difusão como elemento mais explicativo das flutuações dos valores sobre a amamentação e considerar a propaganda como um dos elementos da difusão, talvez menos importante do que usualmente considerado. Considerando-se as instâncias da difusão na explicação dos comportamentos em relação ao aleitamento, podemos observar que a propaganda teve um papel, sem dúvida, importante por ocasião do decréscimo da amamentação. No entanto, esta não pode ser incorporada como elemento explicativo do processo de flutuação dos saberes e práticas sobre a amamentação em todos os momentos históricos. Desse modo, tal interpretação é, a nosso ver, reducionista. De início, queremos frisar que discordamos de muitas destas colocações, por serem insuficientes na explicação dos fatos e por incorporarem nexos de natureza economicista e mecânica. No entanto, vamos dialogar com alguns defensores dessas hipóteses, no sentido de clarear o entendimento do tema. Para Goldenberg, na sociedade de consumo, a propaganda cria hábitos e necessidades, orienta as aspirações dos consumidores e fornece motivos ao consumo dos produtos, garantindo o escoamento da produção. Assim, em sua opinião, houve com a transformação da sociedade artesanal em industrial, uma alteração: enquanto naquela a produção se faz segundo as necessidades, nesta as necessidades se adaptam à produção. Desse modo, em sua opinião, diante do leque de reais possíveis delineados pela história não se pode subestimar o papel dos empresários no dimensionamento do mercado consumidor, principalmente quando se trata de introduzir um novo hábito, em substituição a uma prática, como a de aleitamento natural, que se desenvolveu como um produto do processo de adaptação milenar da espécie. "Como espaço de articulação entre interesses econômicos privados e os vários planos de organização das formações sociais, o marketing tem resguardada sua autonomia de intervenção, numa realidade histórica que é muito mais do que mero pano de fundo; isso equivale dizer que se o espectro de suas ações não permitissem atribuir exclusividade na determinação do aleitamento artificial entre nós, isso não o tornaria menos responsável pela ocorrência do fato" (GOLDENBERG: 1988,139). Por sua vez, Satriani considera que o atual processo de produção dos bens de 173 consumo, para sobreviver, gera sempre novos produtos (SATRIANI: 1986,143). Para Fredericq, a colocação de novos produtos no mercado provoca uma mudança de comportamento dos consumidores (FREDERICQ: 1982,107). A falta de informações por parte das mães e sua crescente integração no esquema de produção e de consumo capitalista parecem ter levado a uma diminuição do aleitamento tradicional ao seio. A urbanização promoveu a integração da sociedade brasileira ao consumo de novos produtos. Este processo promoveu a desvalorização do leite materno enquanto alternativa alimentar. Nesse sentido, na opinião da autora, as multinacionais conseguiram influenciar as mães e a sociedade no sentido de favorecer seus negócios, entre os quais a produção de leite artificial, e lucros. As colocações de Fredericq acima expostas podem, de fato, em nossa opinião, ilustrar, em parte, o processo de desmame e sua relação com o consumo crescente de novos produtos industriais, que acompanha a integração de novos contingentes populacionais à economia de mercado. No entanto, não concordamos com esta autora quando ela entende que a acumulação de capital e os interesses de lucro influenciaram as mães para o consumo. Em nossa opinião, as necessidades dos consumidores não são ditadas apenas por motivações ideológicas nem somente as multinacionais provocam o surgimento de novas necessidades. A extensão das necessidades e o modo de satisfazê-las são produtos históricos e dependem das condições sociais e culturais e também do grau de desenvolvimento das forças produtivas e da sofisticação tecnológica. Uma pergunta a fazer é até que ponto a propaganda é capaz de modificar hábitos dos consumidores. Normalmente, os médicos costumam superestimar os efeitos da propaganda. Assim, tendem a imaginar que as pessoas fazem isto ou aquilo (por exemplo, fumar) por causa da propaganda. Esta visão é pouco dialética, pois acredita exageradamente nos efeitos da propaganda e na incapacidade de os homens pensarem. Observaremos que hábitos e comportamentos sociais estão determinados por muitos condicionantes e não apenas pela publicidade. De modo geral, a propaganda não faz "cabeças". Ela apenas reforça tendências anteriormente existentes. As pessoas mudam as suas atitudes e comportamentos, seu modo de pensar, de agir e de sentir, sobretudo em contatos face a face. Além do mais, também tendem a ler e ouvir apenas os programas propagados pelos meios de comunicação que vêm ao encontro de suas idéias. Encarar os seres humanos como massa informe a ser moldada pelos meios de comunicação é uma idéia tola e absurda. Em nosso entender, apesar do abandono da amamentação não se dever inteiramente à publicidade das corporações, os efeitos da promoção têm importância 174 considerável no estímulo e velocidade de incorporação de novos hábitos. Isso destaca o papel da publicidade no propósito de reforço a necessidades sentidas. Nesse sentido, Mcluham observa que "a pressão contínua é de criar anúncios cada vez mais à imagem dos motivos e desejos do público. A importância do produto é inversamente proporcional ao aumento da participação do público" (MCLUHAN: 1969,255). A publicidade pretende harmonizar a produção com o consumo e homogeneizar a vida social com o intuito de acelerar a troca de bens e serviços, seguindo e não criando uma tendência. "Qualquer anúncio caro é criado e construído sobre os alicerces testados de estereótipos públicos ou 'conjunto' de atitudes estabelecidas... qualquer anúncio aceitável é a dramatização vigorosa de uma experiência comunal" (MCLUHAN: 1969,257). A propaganda emerge ícones grupais utilizando imagens e símbolos. O texto é simplesmente um jogo de palavras que distrai as faculdades críticas, enquanto as imagens vão atuando, de forma hipnótica, sobre o inconsciente das pessoas. Para McLuhan, "os que protestam contra os falsos e enganosos textos publicitários são os melhores aclamadores e aceleradores. As pessoas altamente letradas não entendem a arte não verbal do pictórico". Tais pessoas nunca atacam as mensagens dos anúncios pela sua incapacidade de discutir formas não verbais de estruturação e significação (MCLUHAN: 1969,260-261). A publicidade usa técnicas inconscientes extremamente efetivas de persuasão. O produto é envolvido numa rede de evocações emocionais e simbólicas fortemente carregadas, que reenviam ao inconsciente individual. A publicidade favorece, ainda, a absorção espontânea dos valores sociais dominantes. "Como mensagem tipicamente publicitária, evocam unicamente o que consideram ser essencial e negligenciam (ocultam) o resto. Elas operam um tipo de metonímia, apresentando uma parte da realidade como sendo o todo" (FREDERICQ: 1982,164). Fredericq analisa as técnicas publicitárias utilizadas em anúncios da Nestlé, nas quais os termos utilizados têm uma forte conotação afetiva. Por exemplo, a repetição freqüente de duas palavras, Nestlé e vida, tem como objetivo a criação de um mecanismo associativo inconsciente no público. A linguagem é a do inconsciente, tendo na família um ponto de referência fundamental. Associa-se a alimentação artificial ao carinho, como se este fosse transmitido pela mãe junto com o produto leite em pó. Sem desconhecer as estratégias publicitárias, achamos que não se pode atribuir à propaganda um papel que ela não possui. Esta não necessariamente cria ou incute desejos nos consumidores. No caso dos substitutos do leite materno, o que geralmente fez foi, percebendo a existência de uma necessidade social não satisfeita, encontrar a melhor 175 forma de colocar o produto no mercado. As atividades de marketing16 pressupõem o estudo da possível aceitabilidade do produto pelos consumidores; não havendo tal aceitabilidade, pouco adiantaria a sua veiculação em anúncios, pois a população não sentiria o desejo de consumir um produto que não se conseguiu tornar necessário. A publicidade17 atua, após as pesquisas de mercado como um estímulo ao consumo de um produto, novo ou não, desejado ou não, e atua de maneira a que o consumo se dirija a uma determinada forma ou a uma determinada marca do objeto. Outro papel desempenhado pela propaganda é contribuir para a aprendizagem dos indivíduos jovens, divulgando o produto para conhecimento público. A propaganda tenta influenciar o consumidor na medida em que cria ou estimula uma tendência ao consumo de um produto. Comumente, nas análises feitas em torno da alimentação artificial, o papel da publicidade é exagerado nos seus efeitos e superdimensionado enquanto causa de um determinado resultado social. É como se houvesse uma correspondência biunívoca entre a tentativa da influência e a influência efetiva através da incorporação do hábito difundido pela propaganda. Assim, da mesma forma que é provável não haver uma liberdade completa do consumidor na escolha de um produto, sem pressões de qualquer espécie, é também plausível que o consumidor não seja simplesmente manipulado a consumir determinado produto instruído pela propaganda. Isto, sim, constituiria uma interpretação ingênua, considerar-se o consumidor como uma presa dos mecanismos publicitários, sem a mínima percepção de suas próprias necessidades. A propaganda pode, habilmente, dirigir os desejos do consumidor, estimular o consumo de um determinado produto, incentivar a compra de um bem supérfluo, ao invés de um bem mais útil, mas quase nunca moldá-lo ou conformá-lo aos seus ditames. 16 O marketing envolve uma previsão racional de operações e um processo de ação que vão da determinação do cliente, das suas necessidades e desejos, até a organização da rede de venda e à integração dos programas de venda, passando pela adaptação do produto ao cliente, a organização dos planos e dos programas de publicidade, a preparação direta dos vendedores... Os estudos de mercado têm como objetivo saber o que as pessoas desejam ou querem comprar, o que lhes agrada, aquilo que necessitam ou ambicionam. Teoricamente, conseguem que se fabrique o que se poderá vender, enquanto a publicidade procura vender o que foi fabricado... O conceito de marketing implica a aceitação pela direção da empresa que qualquer decisão seja tomada com base nas necessidades de consumo do consumidor, e não nas suas. Significa que se teve em consideração a procura em vez da preocupação exclusiva da oferta" (BIROU: 1982,243). 17 A publicidade comercial tem por objetivo fazer conhecer, apreciar e desejar pelo público um produto, uma mercadoria. A publicidade consiste em relacionar um bem de consumo com um valor que atrai o cliente ou que este aprecia. Liga-se a compra do produto a um valor socialmente admitido como, por exemplo, a procura da superioridade. Assim, "a imagem que aquele ou aquela que utiliza determinado produto é mais inteligente, mais viril, mais feminino, mais desejável, mais astucioso, mais forte etc, do que os outros". A publicidade estimula artificialmente o consumo, sendo uma característica de nossa sociedade terem os produtos passado a fabricar os consumidores (BIROU: 1982,340). 176 Vejamos, a seguir, as opiniões daqueles que explicam a mudança dos hábitos de amamentação por influência do imperialismo cultural. Bader tende a considerar que a propaganda é um dos mecanismos do imperialismo cultural e da dependência para amoldar os gastos do consumidor nos mercados exteriores às exigências de produção das metrópoles (BADER: 1983,386). Em sua opinião, a dependência favorece a propagação do eixo de "medicalização-consumo-lucro" e destrói as práticas habituais da população. Observa que o marketing do leite em pó encontra-se associado à medicalização do cuidado à criança, quando a alimentação infantil passa a interessar ao pessoal especializado da área da saúde. Para Bader, a influência do imperialismo seria deletéria, promovendo a destruição da autonomia regional, provocando um menor consumo de produtos locais, limitando o desenvolvimento do mercado interno da nação dependente e a sua capacidade cultural e técnica (BADER: 1983, 387). Dessa maneira, o consumo de produtos "supérfluos", como o leite em pó, teria um efeito retardatário sobre o desenvolvimento econômico, já que representaria uma má distribuição dos escassos recursos econômicos do ponto de vista do bem estar da comunidade. Considera, ainda, que o comércio usa o efeito-demonstração para, através da informação pelos meios de comunicação de massa, difundir padrões ocidentais de consumo que passariam a ser imitados pelas pessoas dos países dependentes. Observamos que este autor atribui ao imperialismo a conseqüência de fatos que retratam apenas um processo histórico de transformação da economia de subsistência em economia de mercado, que leva a uma maior integração dos consumidores. Embora haja relações significativas entre dependência e marginalidade, o imperialismo não é a única e talvez nem mesmo a principal fonte de determinação social, mas um entre vários fatores que influem no processo de desenvolvimento (SINGER: 1985,90). Suas colocações são simplistas e assumem, por vezes, aspectos valorativos. A interpretação tentada é, sem dúvida, economicista, mecânica e evolucionista. O processo histórico de desenvolvimento do modo de produção capitalista seria, na percepção de alguns autores, o responsável pelo desvio para a alimentação com mamadeira. Segundo esta interpretação, a ideologia liberal hoje busca retroceder esta dinâmica que se tornou disfuncional, instituindo mecanismos de regulação necessários para a sobrevivência do sistema a longo prazo. A promoção do aleitamento surge, então, como uma decorrência da necessidade de planejamento. Assim, a rendição da Nestlé aos termos do código de comercialização de alimentos infantis deve ser colocada neste contexto global dado pela recessão mundial e o terror das reações do terceiro mundo às medidas desumanas de austeridade empreendidas para facilitar o pagamento das dívidas externas dos países 177 subdesenvolvidos. Até as medidas de promoção do aleitamento que soam como progressistas, são resultado das necessidades do capital de inibir o potencial revolucionário das altas taxas de fecundidade e de mortalidade infantil, ambas afetadas pelo aleitamento materno (CAMPBELL: 1984,563-565). Em nosso entender, o processo de desmame não pode ser reduzido a causas econômicas. Não acreditamos que a redução do aleitamento materno provoque uma ameaça à sobrevivência do sistema capitalista e que tenha sido por isso que se desenvolveu o controle sobre a comercialização dos alimentos infantis para o bebê. O planejamento surgiu, provavelmente, como uma necessidade de se proteger as vidas infantis. A redução na fecundidade que pode ser obtida com o aleitamento materno e o pretendido "potencial revolucionário" das altas taxas de natalidade foram discutidos em capítulo anterior. Como foi exposto nos capítulos iniciais, a mercantilização da alimentação infantil aconteceu antes do advento do capitalismo, desde a época em que o leite humano foi utilizado como valor de troca, através do aluguel de amas-de-leite. Portanto, não se pode creditar a mudança no modo de alimentação dos recém-nascidos em direção à mamadeira e aos leites animal e artificial como um acompanhante do desenvolvimento do capitalismo industrial. Para Carolyn Campbell, "a degradação física e mental das mulheres, a sua elevação nas sociedades capitalistas avançadas a consumidoras e objetos sexuais, e a sua marginalização da produção social e reprodução, são responsáveis pela disseminação da alimentação artificial. As mulheres internalizaram, e hormonalizaram, o papel que o capitalismo lhes destinou". No seu ponto de vista, as mulheres passaram a alimentar seus filhos com mamadeira porque este é o modo de alimentação que traz mais vantagens ao capitalismo ou, em termos ideológicos, uma coisa 'moderna" a fazer (CAMPBELL: 1984,556-565). Afirmações como esta, de Campbell, são bastante ingênuas e exageradas. Qualquer investigação histórica objetiva mostra que as mulheres não se degradaram física e mentalmente nem foram elevadas a objetos sexuais com o avanço do modo de produção capitalista. As pessoas pensam e não são apenas autômatos que incorporam hábitos ditados pelo capitalismo. As mulheres não estão marginalizadas nem da produção social nem da reprodução mas, pelo contrário, participam de ambas. O sistema capitalista não tem a racionalidade que se lhe quer atribuir. As mulheres estão tendo, sob este sistema, grandes possibilidades de promoção e ascensão social, que não tinham nos modos de produção anteriores, fixados na tradição e no imobilismo. Que a alimentação artificial proporcione 178 lucro às empresas produtoras de leite é uma coisa. Pretender que este modo de alimentação traga mais vantagens ao capitalismo como um todo é, virtualmente, uma falácia. Não se pode confundir interesses de um setor econômico com os interesses de todo o sistema. O que acontece, geralmente, é que os setores empresariais tomam suas decisões visando o lucro imediato, sem pensar nas conseqüências de suas decisões para o sistema como um todo. Pensar que o sistema funcione como um corpo orgânico que toma suas decisões prevendo suas conseqüências e visando sempre à sua reprodução não tem sentido. Não há funcionalidade completa das leis de mercado, pois estas são, em si mesmas, contraditórias. Tal modalidade de análise visualiza um capitalismo sem contradições entre meios e fins. Sabemos que até há poucas décadas, o leite humano era o único alimento disponível para crianças, dado o escasso nível de desenvolvimento das forças produtivas. A única alternativa social que havia era o recurso à ama-de-leite. O aleitamento por animal ou pelo leite de vaca não dava bons resultados. Segundo Campbell, com o desenvolvimento capitalista tudo passa a ser objeto de troca, com exceção de alguns bens como o leite materno. É prossegue em suas colocações: o leite materno, como um produto de subsistência, está fora do controle do mercado capitalista. Os bens de subsistência são substituídos por bens de consumo, incorporados ao mercado como produtos "desejados" pelos consumidores. Sem a produção de novos bens e a sua distribuição via mercado, não se realizam a mais-valia e o lucro. Para Campbell, o leite materno foi desvalorizado porque não permitia a extração da mais-valia. "Para uma companhia como a Nestlé, que em muitos países controla virtualmente o mercado de fórmulas infantis, só há um único competidor: a mãe que amamenta" (CAMPBELL: 1984,552 -559). É óbvio que o leite materno só possui valor de uso se a mãe amamenta o seu filho mas não achamos correto ver no leite humano apenas este tipo de valor. A prática do aluguel das amas-de-leite, estudada no terceiro capítulo, envolvia o valor de troca do leite humano. A expansão das forças produtivas proporcionadas pelo capitalismo extinguiu esta prática. O capitalismo é um sistema que se caracteriza por um processo contínuo de mercantilização das pessoas, relações e coisas. Entretanto, nem tudo o que pode ser objeto de troca é colocado no mercado. Por exemplo, vimos que, ao contrário, o leite humano foi retirado do mercado após a consolidação do capitalismo. A substituição dos bens de subsistência pelos bens de consumo mercantilizados é um processo normal com a passagem da economia de subsistência para a economia de mercado e é praticamente irreversível, pois as forças produtivas mais eficientes destroem os modos de produção anteriores ao capitalismo. O leite materno não foi desvalorizado porque não permite a extração da mais- 179 valia, mais sim devido a motivos que, além de econômicos, são socioculturais e que estudamos no decorrer deste trabalho. Em nosso entender, a amamentação é um processo predominantemente sociocultural, ainda que tenha, também, condicionantes biológicos e econômicos. Como processo cultural, a nosso ver, obedece às leis de difusão definidas pelos etnólogos. Nesse sentido, não concordamos com Goldenberg et al. , quando afirmam que com a industrialização do leite, "a lactação, que era regida basicamente pelas leis biológicas, passou a ser regida pelas leis de mercado, ...interferindo nos mecanismos primitivos de conservação da espécie" (GOLDENBERG et al. : 1983, 75). Nesta colocação, as autoras parecem perceber o aleitamento como um instinto primitivo, biológico que teria sido desnaturalizado pelas leis de mercado. Não entendemos que seja possível estudar-se esse processo tão complexo, atribuindo-se as mudanças nele operadas quase que tão somente aos mecanismos de mercado e/ou às influências e aos interesses do capital, especialmente multinacional. As causas de tal processo, como estamos tentando mostrar neste trabalho, ligam-se a fatores mais amplos. Em nossa opinião, a monocausalidade economicista, na explicação do fenômeno ora em estudo, acaba contribuindo para o empobrecimento da análise. 3. O PROCESSO DE CRIAÇÃO/SATISFAÇÃO DE NECESSIDADES EM RELAÇÃO À ALIMENTAÇÃO INFANTIL: Outro processo a ser analisado é o de criação/satisfação de necessidades em relação à alimentação infantil. Se a prática da mãe não amamentar o seu filho já existia na história desde tempos remotos, foi o nascimento do leite artificial que gerou a necessidade dele ou foi a necessidade sentida há séculos pelas mulheres que promoveu a pesquisa e descoberta de novas tecnologias para o alívio da impossibilidade ou do possível fardo de amamentar para uma parte delas? Normalmente, na moderna sociedade de consumo, a necessidade de um produto não existe antes de sua existência. Desse modo, depois de atendidas necessidades primárias, é o surgimento do produto que faz com que dele se sinta necessidade. Um dos casos mais evidentes aparece na análise da expansão da assistência médica e dos exames complementares: o surgimento de novos procedimentos diagnósticos cria a necessidade de realização dos novos exames. Da mesma forma, certos produtos são criados e, nem por isso, 180 apesar da propaganda, a população deles passa a ter necessidade. Entretanto, no caso específico do leite em pó, achamos que este produto surgiu para atender a uma necessidade preexistente, no que concordamos com Novaes, quando esta afirma que "os leites industrializados certamente se desenvolvem porque há um mercado consumidor para eles, na medida em que a urbanização, com tudo o que ela significa, diminui a possibilidade de um certo número de mulheres amamentarem seus filhos" (NOVAES: 1979,66). A oferta industrial em resposta à demanda de substitutos do leite materno só pôde existir após uma série sucessiva de desenvolvimentos tecnológicos. A tecnologia de extração de água e condensação do leite se tornou disponível em 1871, a de manufatura de latas, que permite conservar o produto por longos períodos sem deterioração, já antes, em 1839, tendo o leite em pó se tornado disponível para consumo em 1860, tudo isto na Europa. O que merece atenção é que a alimentação com mamadeira precede o desenvolvimento tecnológico dos leites condensado e em pó; Manderson informa que esta forma de alimentação teve um aumento rápido com a introdução de mamadeiras novas e dos bicos de borracha maleáveis, que facilitaram a sua utilização (MANDERSON: 1982,614). Outro ponto importante é que o uso de amas-de-leite era comum, muito tempo antes das fórmulas comercializadas de leite se tornarem disponíveis. Poynter pergunta se a crença de que as qualidades morais indesejáveis da ama-de-leite poderiam passar para o bebê através de seu leite, não estaria relacionada com a busca e adoção de alimentos alternativos à amamentação (POYNTER: 1947,254). Nesta época, os médicos já não acreditavam na teoria dos fluidos, mas diziam que a transmissão de más qualidades da ama para a criança não se dá pelo leite, mas por convívio íntimo e contágio moral (GESTEIRA: 1943,77). Em nossa opinião, inicialmente existia uma necessidade não satisfeita de um substituto para o leite materno. Isto pode ser exemplificado, historicamente, pois a alimentação artificial não se iniciou com o leite em pó nem com a mamadeira. Como vimos anteriormente, já existiam recipientes utilizados com esta finalidade desde a época grecoromana (TUBBS: 1947,255-256). Além disso, diversas tentativas foram feitas no sentido de se livrar a amamentação artificial de seus perigos. Com o desenvolvimento tecnológico, isto se tornou possível e surgiram alguns produtos visando à satisfação desta necessidade. Neste ponto, o surgimento do produto reforçou a necessidade de um substituto que se tinha antes e que não era exatamente a necessidade deste produto específico. Esta necessidade tende a crescer à medida que for sendo satisfeita. Nesta fase, o marketing desenvolve sua função, 181 adequando o produto aos desejos dos consumidores e a publicidade passa a atuar, divulgando o produto para conhecimento do público e reforçando a tendência ao seu consumo anteriormente existente. A propaganda passa a dirigir a necessidade a uma determinada forma ou a um determinado produto, atendendo, neste caso, a um desejo latente, do consumidor. Normalmente, o consumidor tende a escolher aquele produto que melhor satisfaça àquela necessidade, mas isto nem sempre acontece. Como dissemos antes, a necessidade pelo consumo de substitutos do leite materno, como uma necessidade cultural cresce na medida em que seja satisfeita. Surge como produto da difusão de novos saberes e práticas e o processo circular de criação/satisfação de necessidades provoca a extensão constante do mercado de bens e, correlativamente, do consumo. A necessidade de consumidores é rara a não ser pela referência a mercadorias bem determinadas. A difusão das necessidades culturais novas requer, para sua satisfação, o consumo de um número sempre crescente de produtos e de bens (BOLTANSKI: 1979,178-185). Para Marx, "a extensão das chamadas necessidades imprescindíveis e o modo de satisfazê-las são produtos históricos e dependem, por isso, de diversos fatores, em grande parte do grau de civilização de um país" (MARX: 1987,191) e, poderíamos dizer, complementando, do desenvolvimento das forças produtivas. Ora, sendo assim, em nosso entender, não foi apenas a oferta do leite em pó que provocou a sua demanda. Oferta e demanda de leite em pó se inter-relacionam mutuamente. Em não havendo demanda, mesmo que haja oferta e uma propaganda ostensiva, não haverá consumo e o produto deixará de ser fabricado na mesma quantidade ou qualidade de antes. A propósito, hoje, a demanda pelo leite em pó como alimento para bebês se reduz drasticamente no primeiro mundo, por ocasião da redescoberta da amamentação. Ocorre, ainda, que a demanda por esta necessidade pode ser satisfeita através de uma série de produtos e de diferentes maneiras e formas. Houve e sempre haverá, na história das sociedades humanas, a demanda pela alimentação dos recém-nascidos. A natureza dotou a mulher do leite humano para satisfazer esta necessidade. A sociedade humana desenvolveu-se tecnologicamente e encontrou novas formas de satisfação desta necessidade: através do leite de vaca in natura ou modificado para uso infantil. Dependendo da época histórica e da disponibilidade de formas para satisfazer a esta necessidade, haverá ou não possibilidade de escolha. Socialmente, uma forma tem tido a tendência de predominar em cada época determinada, transformando-se na maneira socialmente aceita e percebida como adequada para alimentar-se o bebê. 182 A indústria de leite em pó não criou a necessidade de alimentação do recémnascido humano. O que esta realizou socialmente foi colocar à disposição das famílias uma nova forma de alimentação do recém-nascido. Em sendo esta nova modalidade alimentar socialmente desejada, os apelos publicitários surtiram efeito e houve um deslocamento em direção à alimentação com mamadeira. Havia uma pressão sociocultural pela satisfação da necessidade de alimentação da criança de outra forma. A mudança nas mentalidades estimulou a produção do leite em pó. Goldenberg considera, que "afirmar que a produção do leite em pó constituiria uma decorrência da necessidade de atender a uma demanda existente implicaria conceber com ingenuidade a função da arte de colocação de um produto no mercado, o papel estratégico do marketing no sentido de criar a necessidade de seu consumo" (GOLDENBERG: 1988,148). É óbvio que a existência do leite em pó estimula o seu consumo mas também achamos que o leite em pó surgiu para atender a uma demanda pré-existente e, desse modo, veio atender a uma necessidade sentida. 183 CAPITULO VII — PROCESSOS SOCIAIS E ALEITAMENTO: 1. TRABALHO FEMININO E AMAMENTAÇÃO: No presente item, vamos estudar o duplo papel feminino na produção e reprodução e as condições sociais atuais, que promovem, em grande parte, uma contradição entre a compatibilização das atividades produtivas e das tarefas reprodutivas, o que, sem dúvida, tende a se refletir de maneira desfavorável sobre o aleitamento materno. Tentaremos responder a diversas perguntas: qual o percentual de mulheres que efetivamente exerce atividades remuneradas fora do domicílio? Em que medida existem serviços coletivos de apoio à reprodução humana nos locais de trabalho? Inicialmente, queremos frisar que as mulheres sempre trabalharam nas sociedades tradicionais, geralmente rurais, e sempre amamentaram os seus filhos. Assim, o trabalho feminino tem sido uma constante histórica. Não é o trabalho da mulher em si que vai fazer com que a amamentação diminua, mas sim as condições sociais concretas em que este se realiza, como por exemplo, trabalho fora do lar a grandes distâncias, com horários policiados, sem creches, sem intervalos para amamentar etc. Berquó, em relação ao trabalho feminino, observou que 40% das mães em São Paulo e 24% em Recife trabalharam antes da gravidez e apenas 7% em Recife e 15% em São Paulo usufruíram dos benefícios legais, inclusive licença-maternidade. Dentre as mães que deixaram de amamentar, 17% estavam trabalhando no momento da entrevista em Recife e 18% em São Paulo (apud INAN-UNICEF: 1981,5-7). "Aparentemente, as mulheres aceitam o valor social de parar de trabalhar para cuidar dos filhos até um ano de idade, prática esta reforçada pela falta de facilidades apropriadas para amamentar no emprego. De certa forma, o ciclo reprodutivo da mulher parece determinar seu comportamento em relação ao emprego" (apud INAN-UNICEF: 1981,15). Não se pode afastar o trabalho materno como causa de desmame, somente porque esta motivação não esteja presente no discurso dos sujeitos. Esta não se refere ao trabalho em si, mas à citação, pelas mulheres, do motivo trabalho. A falta de condições para amamentação durante a jornada de trabalho, o não cumprimento das leis trabalhistas, a falta de creches são fatores, sem dúvida, importantes no desmame precoce. Aqui se expressa a dualidade da situação: se, por um lado, a mulher precisa trabalhar por questão de sobrevivência, por outro lado, o próprio trabalho limita as oportunidades e meios de reprodução e cuidados com os filhos, incluindo a amamentação ao seio. A mulher pode ter 184 interiorizado o arquétipo tipo ideal feminino: mãe e dona de casa. Pode ser difícil e penoso para a mulher assumir que desmamou uma criança devido ao trabalho, pois pode ter a percepção de que o trabalho fora do lar não é tarefa socialmente adequada para uma mulher. Além disso, uma mãe pode desmamar uma criança apenas para ficar livre para poder procurar emprego. Neste caso, não existe o trabalho executado, mas o desejo de trabalhar pode influenciar o desmame. Muitas mulheres têm real necessidade de trabalho remunerado para completar o orçamento doméstico e tomam decisões que levam, inconscientemente, ao desmame. O trabalho deve ser visto não só na ação concretamente realizada, mas no seu signiificado individual, familiar e social, mesmo quando não traduzido empiricamente em ação (SPINDEL: 1984,78-79). Mesmo que não se coloque a premência econômica, a amamentação pode não ocupar um lugar de destaque enquanto valorização social e realização pessoal. Há uma tendência das mães com atividade extra-domiciliar (trabalho e/ou estudo) a amamentarem menos e por menos tempo. A mediana do desmame para as mães com atividade fora de casa ficou em 2 meses e para as sem atividade em 4 meses e meio (RICCO: 1975,50). Entretanto, Rea e Solimano, em 1981, estudando mulheres de baixa renda de São Mateus, na Grande São Paulo, indicaram uma amamentação maior para as mulheres que trabalhavam — amamentação durante 10 contra 8 semanas (apud INANUNICEF: 1981,15). A este respeito, Villa considera que "não se analisa as condições de inserção da mulher no mercado de trabalho, na divisão social do trabalho, no contexto familiar e, historicamente, como esta tem procurado se adaptar às mudanças ocorridas, as quais se tornam até certo ponto conflitivas com a sua função de mãe nutriz" (VILLA: 1985,33). A mulher dispõe de pouca infra-estrutura para conciliar a maternidade e a amamentação com as suas atividades profissionais. As creches ou não existem ou estão fora das possibilidades de utilização pelas mães, pela sua localização, custo ou pela idade dos seus filhos (SPINDEL: 1984,78). Mesmo com a existência de creches, o transporte pode ser precário, a ponto de ser difícil para a mãe levar o filho ao trabalho. O tipo de relação de trabalho da mulher também interfere, dificultando ou facilitando o aleitamento: as mulheres assalariadas ou autônomas têm maiores dificuldades, enquanto as empresárias e profissionais liberais têm facilidades. Para Spindel, "é nesta fase da vida da mulher como reprodutora, que se apresentam os maiores obstáculos à sua participação no mercado de trabalho. Do lado da oferta, os obstáculos são de ordem familiar pois, em geral, não existem condições possíveis para que a mãe se ausente de casa, seja por ser a única produtora de bens e serviços para a família e/ou por problemas ligados ao 185 cuidado dos filhos (...) Do lado da demanda, como já é sobejamente conhecido, demitem-se mulheres grávidas e/ou quando estas se casam, além de se utilizar como critério de seleção o fato de ter ou não filhos" (SPINDEL: 1984,77). A amamentação limita a possibilidade da mulher se deslocar, sem levar a criança e os empregos tendem a ser incompatíveis com a amamentação em caráter exclusivo, que é exatamente o que os médicos estão pedindo às mães para que o façam, pelo menos até os seis meses. A mulher liberada das tarefas domésticas, geralmente, amamenta mais. A falta de apoio da sociedade e da família, e de informação adequada pode ser uma das razões pelas quais as mulheres têm problemas em amamentar. Relacionando o aleitamento com o trabalho feminino, Kent afirma que os padrões de amamentação estão relacionados com normas culturais, incluindo a visão social sobre como alimentar-se uma criança e o nível de desenvolvimento econômico, o qual facilita a disseminação da informação da disponibilidade de substitutos do leite materno e expande as oportunidades de trabalho para as mulheres (KENT: 1981,11-12). O desenvolvimento econômico levaria à ruptura das normas tradicionais e à assimilação de novos valores em formação. Para Badinter, uma causa importante das dificuldades do trabalho feminino foi o enclausuramento da mulher no papel de mãe, que não pôde mais ser evitado, sob pena de condenação moral. Da mulher "normal" se exige dedicação e sacrifício. Algumas submeteram-se silenciosamente, algumas tranqüilas, outras frustradas e infelizes (BADINTER: 1985,238-239). Não obstante, muitas mulheres reagiram a todas essas pressões. Algumas voluntariamente, em razão de suas convicções feministas; outras, muito mais numerosas, porque não tinham escolha, pois eram trabalhadoras duplas (mãe e dona de casa, além de profissionais). Por não disporem dos "meios culturais para enfrentar essa pressão ideológica, eram mais sensíveis ao discurso dominante, devem ter vivido com angústia uma situação que insistiam em proclamar contraditória e em conservar intacta" (BADINTER: 1985,329). Para Badinter, a mãe que trabalha passa a ser vista como egoísta: "o destino da criança, a felicidade da família dependem muito mais de sua presença constante do que do ganho produzido por seu trabalho fora de casa" (BADINTER: 1985,279). A solução para eliminar os conflitos de papéis femininos entre o trabalho e a maternidade é colocada, por alguns, na eliminação do trabalho feminino fora do lar. Entretanto, na literatura dita feminista, aparentemente, assume-se a postura de que mesmo 186 as mães que dispõem de recurso para ficar no lar, preferem trabalhar e deixar o seu filho com outrem, a sacrificar a sua realização profissional. O que parece certo é que a moderna sociedade ocidental urbana, industrializada e afluente, não está conseguindo harmonizar este duplo papel feminino na reprodução/produção. A amamentação ao seio está relacionada com a eficiência pela qual a mulher pode combinar os seus dois papéis de trabalhadora e de mãe. As sociedades tradicionais geralmente conseguem desenvolver este duplo papel eficientemente. A criança acompanha a mulher durante o seu trabalho. Com a modernização e industrialização, os padrões de trabalho e maternidade estão se tornando menos integrados (MELDRUM & Dl DOMENICO: 1982,1247). As unidades familiares de produção se esfacelam com o desenvolvimento industrial. O lugar de trabalho passa a ser a fábrica, estabelecimentos comerciais etc. A produção é expropriada do espaço reprodutivo. A casa, antes locas produtivo e reprodutivo, compartilhado pelo homem e pela mulher, transforma-se, predominantemente, em espaço feminino de reprodução humana. A produção é sexualizada, na maior parte, em favor do homem e a reprodução é sexualizada como incumbência quase que "exclusiva" da mulher. Para a mulher, muitas vezes compulsoriamente levada a desempenhar o papel de mãe, sem ser este o seu desejo, vê na possibilidade de desmamar o filho e oferecer o aleitamento artificial, uma maneira de ganhar a liberdade para trabalhar ou realizar suas aspirações pessoais, deixando a criança com a vizinhança ou parentes. No entanto, o capitalismo apenas introduziu a separação entre espaços e tempos da produção e da reprodução. A sexualização da produção e da reprodução é anterior ao advento do capitalismo (COMBES & HAICAULT: 1986,25-26). A crescente introdução de mudanças tecnológicas tornou inevitável a separação no espaço e no tempo das atividades ligadas à produção social. A separação entre casa e trabalho designou à mulher as atividades caseiras. "Neste sentido, pode-se afirmar que a introdução da máquina vem reforçar o conceito de que à mulher cabe a função de administração do lar e socialização dos filhos" (MADEIRA & SINGER: 1975,5). A participação da mulher em atividades não-domésticas, como já vimos, está estreitamente relacionada às possibilidades que o sistema econômico oferece de conciliar atividades produtivas e atividades não-produtivas, isto é, no lar (MADEIRA & SINGER: 1975,6). Analisaremos, a seguir, a evolução do trabalho feminino no Brasil nas últimas décadas. Madeira & Singer, considerando o desenvolvimento econômico como um movimento em direção a ocupações cada vez mais especializadas fora do âmbito doméstico, 187 classificam a evolução do nível de participação da mulher na força de trabalho em três fases. Na primeira, o nível de integração da mulher na força de trabalho é elevado: no início da industrialização, o número de pessoas empregadas na agricultura é ainda grande e o número de empresas manufatureiras e comerciais limitadas à esfera doméstica é bastante significativa. Na segunda fase cai a taxa de participação da mulher em atividades produtivas, devido à migração rural-urbana e à diminuição do pequeno comércio e fabricação caseira, apesar do crescimento contínuo do emprego feminino no setor de serviços. Numa terceira etapa, "a taxa de participação feminina em trabalhos fora da esfera doméstica voltará a crescer em um estágio bem mais avançado de desenvolvimento, exatamente pelo crescimento do emprego no setor de serviços... Nos primeiros momentos do desenvolvimento, a taxa de participação da mulher é alta, porque grande parte da produção desenvolve-se dentro dos limites domésticos, na terceira, porque o desenvolvimento das forças produtivas já atingiu um nível capaz de liberar a mulher dos trabalhos domésticos" (MADEIRA & SINGER: 1975,6). A participação da mulher no trabalho agrícola é condicionada por mudanças na estrutura da propriedade. Uma vez que o trabalho feminino na agricultura, em geral, é combinado com tarefas domésticas, torna-se mais fácil o aproveitamento da mulher nas pequenas propriedades. Ao longo de todo o período há uma transferência de mão-de-obra feminina agrícola das grandes para as pequenas e médias propriedades. Nas grandes propriedades, substitui-se, em parte, o trabalho feminino pelo masculino. A produção, cada vez mais especializada e dirigida ao mercado, requer trabalho mais contínuo e técnicas mais apuradas. Isto deve explicar a expulsão da mulher, que necessariamente combina atividades domésticas e reprodutivas, sendo por isso menos adequada aos novos padrões de produção. A participação da mulher na atividade agrícola produtiva não se reduz de 1920 a 1970. Ocorre, no período, uma expansão da agricultura baseada nos minifúndios, especialmente de subsistência, capaz de aproveitar a força de trabalho feminina à moda antiga, sem separar no tempo e no espaço, as tarefas domésticas da produtivas (MADEIRA & SINGER: 1975,17-25). A maior participação da mão-de-obra feminina no setor secundário se dava, nas décadas de 20 e 30, em oficinas artesanais, dedicadas indistintamente à produção e reparação de bens. É provável que em 1940, a maior parte do emprego no secundário já fosse de caráter fabril, onde a participação feminina era reduzida, exceto no ramo de fiação e tecelagem. A participação mais acentuada da mulher neste setor se dá nas atividades de reparação mostrando que, também nas cidades, o desempenho da mulher na atividade 188 produtiva se faz de forma combinada com a execução de tarefas domésticas, tratando-se, sobretudo de costureiras, bordadeiras etc, que trabalham em suas próprias casas. "À medida que se dá a industrialização, a produção artesanal é substituída pela fabril, o que acarreta, dadas as circunstâncias, a substituição do trabalho feminino pelo masculino, já que o afastamento da mulher do lar encontrava obstáculos tanto objetivos (a necessidade de cuidar das tarefas domésticas) como subjetivos (preconceitos contra o trabalho da mulher fora do lar)". De 1940 a 1960 se torna reduzido o crescimento do número de mulheres trabalhando no setor secundário diretamente ligado à produção. A partir de 1960, a indústria voltou a dar oportunidade de participação à mulher em proporção bastante ampla, porém a mulher tende a ser empregada na indústria mais em funções administrativas do que em funções diretamente produtivas. Além disso, as tendências da mudança tecnológica na indústria tendem a acelerar o emprego de pessoal administrativo em proporção maior que o pessoal ligado à produção (MADEIRA & SINGER: 1975,25-30). O setor terciário tende a absorver ' o excedente de mão-de-obra feminina que deixa a agricultura. Devido à sua heterogeneidade, dentro deste setor vamos considerar 3 sub-setores, para a análise da participação da mão-de-obra feminina: serviços de produção (comércio, finanças, transporte, comunicação), serviços de consumo individual (serviços pessoais e profissões liberais) e serviços de consumo coletivo (administração pública e atividades sociais: educação, saúde, previdência social etc). Nos serviços de produção, a maioria das mulheres está engajada nos serviços de intermediação (comércio de mercadorias, de valores etc), nos quais subsistem muitos pequenos estabelecimentos em que mulheres trabalham, combinando sua atividade produtiva com as tarefas domésticas, principalmente como comerciárias — balconistas (MADEIRA & SINGER: 1975,30-33). Os serviços de consumo individual têm a maior parcela de sua mão-de-obra constituída por mulheres, sendo a maioria empregadas domésticas. Isto demonstra certa incapacidade da economia de aproveitar produtivamente a força de trabalho feminina disponível. "A saída da agricultura elimina, para a mulher, a possibilidade de combinar atividades produtivas e domésticas, que na cidade é muito menor que no campo. Devido a isso, o mais provável é que certa proporção de mulheres que saiu da agricultura tenha efetivamente deixado a força de trabalho, ao se ver impossibilitada de exercer atividades produtivas dentro do lar". O mais provável é que o êxodo rural entre 1940 e 1950 tenha produzido um volume considerável de desemprego oculto entre as mulheres, isto é, levou um número considerável delas a se retirar da força de trabalho por falta de oportunidades, inclusive no ramo de prestação de serviços, como empregadas domésticas (MADEIRA & 189 SINGER: 1975,33-35). Entre 1950 e 1970 eleva-se a demanda por serviços domésticos. "A urbanização tem levado a mulher brasileira a abandonar a atividade produtiva. Este abandono tem tomado duas formas, ambas implicando na realização de tarefas domésticas por parte da mulher: uma, o desemprego oculto, a outra, o emprego doméstico". A passagem de uma para outra forma, que se intensifica nas décadas de 50 e 60, significa apenas que a demanda pelos serviços de consumo individual tem crescido, como resultado da prosperidade crescente de uma classe média urbana em rápida expansão (MADEIRA & SINGER: 1975,36). Muitas mulheres estão também inseridas nos serviços de consumo coletivo. O trabalho neles exige maior qualificação e uma ruptura quase total com as tarefas domésticas, promovendo uma maior integração da mulher na atividade produtiva social com todas suas conseqüências econômicas e sociais. A demanda por força de trabalho cresce neste setor mais do que em qualquer outro na economia e a participação feminina é crescente, em proporções ainda modestas. A participação das mulheres neste setor se dá, predominantemente, em ramos que constituem quase que uma extensão dos papéis femininos tradicionais, como professoras, enfermeiras, assistentes sociais etc. De uma maneira geral, decai a participação da mulher na força de trabalho entre 1940 e 1950. Porém, de 1950 a 1970, os níveis de engajamento da mão-de-obra feminina têm mostrado contínua ascensão, dando mostras de que tenderão a apresentar crescimento. Apesar da integração da mulher na produção ainda se dar, predominantemente, nos serviços domésticos e na agricultura de subsistência, que são tarefas associadas a status inferiores, geralmente como auxiliar do homem, no seio da própria família ou de uma família estranha, novas oportunidades de participação surgem, graças à expansão dos serviços de consumo coletivo, das unidades fabris, das empresas comerciais e de crédito etc. Isto tenderá a elevar o status econômico e social da mulher. Em 1970, um quarto da população de mulheres economicamente ativas inseria-se nestes últimos setores (MADEIRA & SINGER: 1975,37-41). O trabalho feminino tem como característica predominante ser descontínuo, freqüentemente em tempo parcial, concentrado nos setores tradicionais ou em pequenas empresas familiares. É um trabalho marcado pela diversidade e pela intermitência de entradas e saídas no mercado, devido ao frágil equilíbrio entre atividades produtivas e funções reprodutivas. A posição do trabalho da mulher, na divisão social e sexual do trabalho é definida, prioritariamente, a partir da sua biologia, condicionando-a aos afazeres domésticos 190 e a uma inserção em posições subalternas na hierarquia produtiva. "Filha, esposa ou mãe: a cada uma dessas etapas do ciclo vital corresponderão determinadas necessidades e possibilidades de trabalho" (BRUSCHINI: 1985,1-4). "As possibilidades que a mulher tem de responder às demandas do mercado estão estreitamente condicionadas pela posição que ela ocupa na unidade familiar. Caso, por exemplo, ela seja casada e tenha filhos pequenos, pode ser que permaneça no lar, onde sua presença é mais necessária, se os recursos familiares não forem suficientes para arcar com as despesas de apoio doméstico remunerado. Por outro lado, esses recursos, freqüentemente, são tão precários que os rendimentos obtidos pela mulher passam a ser vitais para a sobrevivência da família. Nesse caso, a mulher será forçada a sair de casa para trabalhar, qualquer que seja o arranjo improvisado para o cuidado das crianças" (BRUSCHINI: 1985,17). "Esta complexa articulação entre atividades produtivas e reprodutivas é percebida como um arranjo do grupo doméstico como um todo" (BRUSCHINI: 1985,5). "A inserção no mercado de trabalho atua num duplo sentido. Se, por um lado, pode inibir a vontade dos casais em ter um número elevado de filhos, por outro, pode bloquear a própria participação feminina na atividade econômica pela inexistência de aparelhos sociais que liberem a mulher do cuidado sistemático com os filhos, tais como creches, escolas maternais, jardins de infância etc, hoje inacessíveis à maioria da população (MÉDICI: 1989,76). Há, portanto, uma atuação nos dois sentidos: a gravidez, em muitos casos, inibe a inserção profissional da mulher e o trabalho feminino pode reduzir os níveis de fecundidade. Na zona urbana, a presença dos filhos restringe a participação feminina em atividades produtivas fora do domicílio, em grande parte, pela inexistência de equipamentos coletivos que assegurem a guarda da criança. Entretanto, nas classes de renda baixa, a presença e o número de filhos não afeta substancialmente a participação feminina, sugerindo que a premência econômica supera os empecilhos familiares (BRUSCHINI: 1985,28-30). A revolução tecnológica, diversificando o mercado de trabalho, exigindo menor força física, aumentando as atividades de vigilância e as que exigem flexibilidade manual, está abrindo um maior espaço para o emprego feminino (BRUSCHINI: 1985,48). Prova disto é a grande absorção da mulher na indústria eletro-eletrônica. O incremento do trabalho feminino fora do lar, se não for acompanhado da expansão dos benefícios sociais e do melhoramento da rede de apoios à reprodução e criação dos filhos, deverá se refletir, provavelmente, em uma redução nos níveis de 191 amamentação, devido ao precário equilíbrio existente entre atividades produtivas e funções reprodutivas para a mulher brasileira. Contudo, devido à pequena inserção feminina em tarefas que não permitem a conciliação entre a produção e a reprodução, o fator trabalho fora do lar tem, provavelmente, até o momento, uma importância reduzida. Bruschini observa que o incremento da urbanização e do desenvolvimento industrial promove uma ampliação do número de assalariados e empregadores e uma redução do número de autônomos e de trabalhadores familiares não-remunerados (BRUSCHINI: 1985, 80). Como conseqüência, a oferta de força de trabalho feminina para o emprego doméstico se contrai, enquanto aumenta para os demais setores da economia. A força de trabalho feminina continua concentrada no setor terciário, porém não ocupa apenas funções do terciário primitivo mas também do terciário especializado. O movimento de fuga de mão-de-obra do setor secundário e a terciarização da economia são fenômenos generalizados, que ocorrem também com as funções masculinas, sendo o desenvolvimento tecnológico uma de suas causas. A participação relativa do operariado na força de trabalho diminui e aumenta o subproletariado — aqui no Brasil, talvez, devido à crise econômica. Surge uma nova classe média, ligada ao setor especializado de serviços coletivos, que alguns já denominam de setor quaternário. Ocorre uma migração da mão-de-obra feminina, dentro do setor terciário, do auto-consumo e da prestação de serviços individual, para os serviços coletivos, acompanhando a mercantilização destes serviços, os quais encontram-se cada vez mais disponíveis no mercado e cada vez menos na esfera do auto-consumo. Diminui a força de trabalho feminina exercendo serviços não remunerados, conseqüência do progressivo assalariamento e da monetarização das relações de troca (MÉDICI: 1989,83-89). Achamos que o incremento do trabalho feminino fora do lar é um fenômeno que vem ocorrendo com rapidez. O mercado permanece discriminatório. A automação poderá oferecer novas oportunidades à mão-de-obra feminina. A socialização dos encargos reprodutivos poderá facilitar a inserção feminina no mercado e incentivar a amamentação ao seio, ao diminuir as responsabilidades que são atualmente percebidas como "tarefas" femininas, que consomem tempo e energia das mulheres e não lhes deixam muito espaço para exercer um equilíbrio entre a produção e a reprodução. Em seguida, vamos analisar a legislação de proteção ao trabalho feminino. É indiscutível que medidas legislativas podem ajudar a mulher no desempenho da maternidade e da amamentação. Esta necessidade foi sentida desde o século passado, quando José Bonifácio apresentou, em 1819, à Assembléia Constituinte, a primeira proposta 192 de lei brasileira de proteção à maternidade, que foi rejeitada. Sua emenda dizia: "a escrava durante a prenhez e passado o terceiro mês de gravidez, não será obrigada aos serviços violentos e aturados e no oitavo mês, só será ocupada em casa. Depois do parto terá um mês de convalescença e, passados este, não trabalhará longe da cria" (apud VILLA:1985,37). Em 1891, houve um decreto relativo ao trabalho de mulheres e menores nas fábricas, que virou letra morta. Em 1923, o Decreto 16300 proibia o trabalho das operárias no último mês de gravidez e no primeiro após o parto, obrigava a instalação de salas de aleitamento materno nas fábricas que empregassem mulheres; dispunha, ainda, sobre os serviços de amas, obrigando-as a exames médicos e impedindo-as de alugar seus serviços até que seus filhos tivessem 7 meses (ORLANDI: 1985,85). Para o antigo código civil, a mulher era um ser inferior, apenas colaboradora do chefe da família. A atual constituição brasileira evoluiu um pouco, tornando a mulher também chefe de família, em igualdade de condições com o homem. Atualmente, a legislação que determina a proteção à maternidade é a Consolidação das Leis do Trabalho, CLT. Esta legislação dispõe sobre a existência de locais para amamentação em estabelecimentos que empreguem, pelo menos, 30 mulheres; proíbe as demissões em caso de matrimônio ou gravidez; regulamenta as creches e a licença-maternidade de 4 semanas antes e 8 semanas depois do parto; faculta, mediante atestado médico, o aumento dos períodos de repouso antes e depois do parto em 2 semanas cada um; concede dois períodos de amamentação de meia hora cada durante a jornada de trabalho, até que o filho complete seis meses e dispõe sobre multas nos casos de infrações (apud MARTINS FILHO: 1984, 187-191). Muitos dos dispositivos desta legislação não são cumpridos pelas empresas. As multas são muito baixas. No entanto, a existência desta legislação e, mais recentemente, a ampliação da licença-maternidade para 120 dias e a criação da licença-paternidade de 5 dias, mostram um novo interesse da sociedade na proteção à mulher trabalhadora. A ampliação das garantias trabalhistas tende a melhorar o desempenho em relação ao aleitamento das mulheres que desempenham funções remuneradas. A ampliação dos serviços coletivos de apoio à reprodução poderá, sem dúvida, oferecer um novo suporte à amamentação e promover uma maior socialização da reprodução humana, ainda, percebida pela maior parte da sociedade, como uma tarefa predominantemente feminina. 193 2. ALEITAMENTO MATERNO, FEMINISMO E EMANCIPAÇÃO DA MULHER: Os movimentos de emancipação da mulher também discutem a questão do aleitamento. Percebe-se a existência de posições antagônicas dentro do movimento feminista a respeito da amamentação. Alguns movimentos feministas, especialmente nos países desenvolvidos, consideram a promoção do aleitamento materno como anti-feminista, como um movimento que deseja circunscrever a mulher ao papel doméstico, como uma conspiração contra a mulher. A mamadeira passou a ser vista como uma forma de facilitar a liberação da mulher. Segundo Kent, a duração do aleitamento está relacionada com o estilo de vida da mulher, especialmente os movimentos de emancipação feminina e a sua participação em atividades fora do lar. Para esta autora, a duração do aleitamento, muito mais que o seu início, parece estar relacionada com o nível de modernização e de urbanização (KENT:1981,11) . A emancipação feminina, desse modo, teria colaborado na redução na amamentação. Para outros setores do movimento feminista não há incompatibilidade entre aleitamento materno e libertação da mulher. Na opinião de Blay, "não é a emancipação da mulher que a impede de amamentar, pois ao se emancipar e reivindicar o direito ao exercício da plenitude de suas capacidades intelectuais e emocionais, a mulher reivindica também o direito de ter filhos e de ter condições socialmente criadas para amamentá-los". Observa que as decisões sobre o comportamento feminino são tomadas sempre de forma autoritária, sem consulta às mulheres e estão vinculadas a projetos políticos mais amplos (BLAY: 1983,129). Blay prossegue em seus argumentos, considerando que os obstáculos ao aleitamento, provavelmente, não estão na emancipação feminina mas, em parte, nas desigualdades das condições de vida e trabalho, que impedem e obrigam a mulher a deixar de amamentar. "O feminismo, ao lutar pela emancipação da mulher reconhece a fundamental importância da amamentação e do contato com o recém-nascido e reivindica condições concretas para que tal contato seja facilitado, através de serviços públicos adequados, sobretudo aqueles que venham aliviar a sobrecarga do trabalho que a parturiente tem em sua casa e para sua manutenção econômica... a luta pela emancipação feminina é sinônimo de luta por igualdade entre todos, inclusive pelo direito da mulher decidir se quer amamentar seu filho" (BLAY: 1983,131-132). 194 Muitos grupos de Amigas do Peito têm surgido no Brasil. Alguns ligados a grupos feministas que associam o estímulo da amamentação à libertação da mulher. Desse modo, lutar pelo direito de amamentar significa, nas palavras de uma adepta do movimento: "lutar por uma relação melhor com nossos filhos; lutar por uma relação mais igual com os nossos companheiros: não queremos 'voltar para casa' para amamentar e fazer todo o resto, e sim amamentar, porque só nós o podemos fazer, e dividir o restante das tarefas domésticas; lutar por um mercado de trabalho mais adequado: não se trata de nos livrarmos de nossa condição de mulher para 'competirmos em condição de igualdade' com o homem, daí a luta pelo cumprimento das leis relativas à licença-maternidade, horário para a amamentação, creches em locais de trabalho etc" (apud ALMEIDA: 1987,103). Apesar disto, muitas energias femininas na história foram utilizadas no cuidado e amamentação das crianças. Segundo Helsing, a reprodução transformou-se na espada de Dâmocles, pois a mulher nunca' sabia quando iria conceber novamente, o que tornava difícil o planejamento de sua vida. Isto mudou com o controle dos nascimentos (HELSING: 1975,290). Apesar desta possibilidade de escolha da oportunidade da reprodução, persiste na sociedade a divisão sexual do trabalho. A gravidez e a menstruação são consideradas, por muitos, empecilhos para que a mulher assuma funções de poder e responsabilidade. O nascimento de uma criança pode se tornar a tragédia da vida feminina, pois a sociedade tem poderosos mecanismos embutidos para trazer a mulher de volta ao que considera seu lugar próprio. Assim, algumas mulheres, percebendo que a opressão básica está, em muitos casos, conectada com o seu papel reprodutivo, rejeitam a maternidade e advogam que o cuidado dos filhos deve pertencer a toda a sociedade e vêem com bons olhos o surgimento dos bebês de proveta. Porém, Helsing acha que a maternidade não pode ser usada contra a mulher e esta não pode se deixar aprisionar no que chama de "gaiola de ouro", fazendo coisas socialmente aceitas, às vezes, contra os seus desejos e possibilidades. Para ela, a mulher deve lutar pela divisão das tarefas domésticas com o homem e a maternidade deve estar conectada ao desejo feminino e não à expectativa social quase obrigatória da mulher tornarse mãe (HELSING: 1975,291-292). 195 3. FAMÍLIA, DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E AMAMENTAÇÃO: Estudamos, anteriormente, os padrões familiares tradicionais, baseados em uma hierarquia rígida e com papéis normatizados para pai e mãe. A sexualidade feminina ficava, muitas vezes, restrita ao espaço do lar. O discurso dominante pretendia encerrar a mulher no domicílio, cuidando dos filhos e marido, entregue à esfera reprodutiva mas também produzindo valores de uso doméstico. A atividade reprodutiva foi revalorizada socialmente e passou a constituir motivo de prêmio e reconhecimento. Ao homem se pretendia destinar, primordialmente, a produção de valores de troca. O pai perdeu grande parcela do poder que desfrutava anteriormente, sendo transformado, primordialmente, em provedor material do lar. Para Badinter, o homem foi despojado de sua paternidade, reduzido à função econômica, distanciado afetivamente de seu filho. A divisão familiar do trabalho distingue os papéis materno e paterno (BADINTER: 1985,294). Com o desenvolvimento do capitalismo os valores de uso doméstico passaram a ser mercantilizados. A mulher ingressa no mercado de trabalho e a família pode também buscar no mercado serviços de que necessita, o que alivia um pouco a mulher dos encargos do lar. O interior da casa, que teve sua importância enquanto locus de produção, quando predominavam as atividades agrícolas, rurais e artesanais, perde, em parte, a sua atração e importância. Com a urbanização, a produção desloca-se para fora da casa, para outros lugares sociais. A mulher, culturalmente encarregada das tarefas reprodutivas que perdiam em importância social, busca reaparecer em outros espaços e abdica de parte delas. Atualmente, a sociedade brasileira vive a intensificação da industrialização, da urbanização, da distribuição social do conhecimento e da quebra do poder integrador das relações de parentesco. Outras mudanças velozes se observam no nível da família: o impacto do aparecimento da pílula anticoncepcional sobre o processo de reorganização da sexualidade feminina, a maior complementaridade de funções entre papéis de gênero, o aumento gradativo do processo de nuclearização da família, o esmaecimento da autoridade familiar geradora do descompasso entre a socialização primária e a vida adulta, a influência da expansão das correntes feministas no processo de libertação da mulher, a intensa proliferação das psicologias e a difusão maciça da psicanálise (ALMEIDA: 1987,13). Assistimos, também, a uma socialização dos encargos reprodutivos, através de novas instituições sociais como creches, maternidades e ao surgimento de novos produtos para satisfazer a estas novas necessidades como fraldas descartáveis, leite em pó e 196 alimentos industrializados para o bebê. Além disso, os anticoncepcionais trouxeram para a mulher a possibilidade de escolher a época que considere ideal para ter filhos. Na percepção social, a maternidade se desloca do dever para o desejo. O aleitamento, no seu contraste entre fardo e prazer, também passa à esfera do desejo. O discurso médico, normativo, perde em importância para o discurso psi, menos normativo e com controles interiorizados. Do dever exterior à personalidade se passa para o desejo que brota do interior do indivíduo. Hoje, estamos assistindo a uma nova crise da família. Esta já não mais se acomoda com tranqüilidade aos valores "burgueses" difundidos desde o século passado. As mulheres questionam a divisão sexual do trabalho, se inserem cada vez mais na vida produtiva não doméstica, advogam divisão das tarefas caseiras com o homem, com o cuidado dos filhos etc. Mas estes fenômenos acontecem apenas em alguns estratos da classe dominante e, talvez, em menor proporção, em outras camadas sociais. Para Costa, as causas da desagregação familiar são conseqüências históricas da educação higiênica (COSTA: 1983,15). Para Donzelot, ao contrário, a crise da família não é "tanto como intrinsecamente contra a ordem social atual, mas sim, como uma condição de possibilidade de sua emergência. Nem destruída nem piedosamente conservada: a família é uma instância cuja heterogeneidade face às exigências sociais pode ser reduzida ou funcionalizada através de um processo de flutuação das normas sociais e dos valores familiares. Não considerar como falhas e afastamentos o que é de fato a emergência de novas técnicas de regulação" (DONZELOT: 1986,13-14). Algumas interpretações asseveram que a família e os indivíduos vêm perdendo, pouco a pouco, a sua capacidade de autocuidado e auto-regulação. Novos dispositivos de controle corporal surgem depois do poder médico: os psicólogos e psicoterapeutas. Novas práticas sociais tornaram a mulher cada vez mais dependente dos conselhos médicos no tocante à reprodução. Nesta percepção, a urbanização e o afastamento da mulher jovem do seu ambiente tradicional pelas migrações e assimilação de novos valores, deixaram as mulheres "órfãs de saber sobre práticas de aleitamento". As pessoas perderam o apoio da família ampliada. Considera-se que as respostas passaram a ser dadas pelos especialistas e os indivíduos sofreram a expropriação do seu saber-fazer sobre a doença. Estas mudanças, percebidas por alguns como deletérias, são decorrentes do processo sociocultural de ampliação do modo de produção capitalista. A divisão do trabalho leva, inevitavelmente, à especialização. Antigamente, os cuidados eram universais, o estoque da cultura era mais restrito e podia ser apropriado pela maioria dos indivíduos. O 197 conhecimento era menos especializado. Hoje, as pessoas são mais interdependentes. Tal visão, exposta no parágrafo anterior, é reacionária, pois se coloca contra o avanço das forças produtivas. As pessoas não perderam o seu saber-fazer, ficando "órfãs de conhecimento". As suas antigas maneiras de pensar, agir e sentir é que se tornaram relativamente inadequadas para os novos tempos, pois novos saberes mais científicos e mais eficientes surgiram com a especialização do conhecimento. Esses argumentos, em busca do retorno ao naturalismo, são inconseqüentes, pois não se pode ignorar os enormes avanços científicos e tecnológicos pelos quais está passando o mundo moderno. O decréscimo no aleitamento acompanha, na sociedade capitalista, a medicalização do corpo feminino. As parteiras foram, pouco a pouco, deslocadas da atenção reprodutiva. Os homens mercantilizaram o parto. "A chamada ciência da moderna ginecologia e a prática de nascimentos hospitalares contribuiu bastante para o declínio do aleitamento, na medida em que o nascimento infantil passou a ser mercantilizado e controlado geralmente em proveito dos médicos" (CAMPBELL: 1984,560). A operação cesariana torna o nascimento mais conveniente e lucrativo para o médico, mais difícil e perigoso para a mãe e a criança, além de perturbar o estabelecimento da alimentação ao seio. Algumas opiniões consideram que o abuso tecnológico de anestesias, medicações ou cirurgias durante o parto representa um controle sobre a mulher, roubandolhe a sua própria experiência feminina (WHO: s.d.,10). Segundo Labra, o saber-poder médico e a religião alienam as mulheres do conhecimento sobre o seu corpo e o expropria delas mesmas, fetichizando-o (LABRA: 1989,16-20). Para outros, "a privação dos savoirfaire característicos ao parto, à educação das crianças, aos cuidados cotidianos... — transformados em serviços mercantis ou não mercantis — tornou as mulheres cada vez mais dependentes da mercadoria capitalista e da hierarquia masculina, simultaneamente. Sabe-se a esse respeito até que ponto o serviço de saúde é dominado por um sistema sócio-político de tipo patriarcal, em seu funcionamento interno como em suas relações com a clientela" (COMBES & HAICAULT: 1986,38). As citações acima, trazem alguns aspectos ilustrativos sobre o papel desempenhado pela medicina na atenção à mulher. Ao mesmo tempo em que o sistema hospitalar de atenção ao parto parece ter diminuído os índices de mortalidade materna, fetal e infantil, desenvolveu padrões sofisticados de procedimentos tecnológicos, muitas vezes desnecessários e iatrogênicos. O processo de parto, como já dissemos em capítulo anterior, foi desumanizado e submetido a uma rotina formal e rígida. O funcionamento patriarcal dos serviços de saúde reflete condicionamentos socioculturais e leva a um predomínio dos 198 homens no sistema de hierarquia, mas isto vem sofrendo modificações. Quanto à expropriação do saber-fazer, já analisamos nossa posição a respeito. Os indivíduos passam a delegar responsabilidades sobre a sua saúde a profissionais que consideram mais capacitados para fazê-lo. Entretanto, no Brasil, em áreas rurais e mesmo em muitos centros urbanos, há vários aparelhos de regulação do corpo que convivem de forma mais ou menos integrada, com funções justapostas: folkmedicina, medicina natural, biomedicina etc. Há um padrão cultural de classificação de enfermidades baseado em sua complexidade e níveis de resolutividade que delimita os campos de atuação destes diversos profissionais. Assim, os indivíduos geralmente procuram práticas médicas de folk para determinadas doenças mais simples e as atividades médicas "científicas" para distúrbios mais complexos. Os padrões de utilização de tais serviços passam por um código social presente em cada grupo social específico e depende, ainda, da escolha individual. A prática ginecológica e pediátrica contribuiu para um decréscimo no aleitamento não por causa de sua mercantilização, como pensa Campbell. Achamos que isto tenha ocorrido como parte de todo um processo social que conduziu a este resultado e do qual os médicos tomaram parte desestimulando a amamentação. A respeito da maior dependência das pessoas da mercadoria capitalista, já comentamos que isto se deve à progressiva integração de setores vinculados a modos de produção mais arcaicos à economia de mercado. O capitalismo especializou determinados saberes e tornou os homens mais interdependentes uns dos outros. Para Singer, "não há porque derramar lágrimas sobre a desintegração de uma economia cujo equilíbrio social se baseava no atraso tecnológico, no isolamento cultural e na preservação de sistemas de dominação fixados na tradição e no imobilismo" (SINGER: 1985,77). Acompanhando também as alterações na estrutura familiar, a fecundidade diminui em muitos países do mundo. Não será esta queda, em parte, um reflexo desta nova atitude de algumas mulheres que, devido ao peso das convenções sociais não conseguem harmonizar a maternidade com a sua realização pessoal? Talvez essas mulheres percebam que nas circunstâncias atuais a sua independência poderia significar um abandono das crianças, pois a sociedade não lhes oferece meios de repartir os encargos reprodutivos com outrem. Por sua vez, Badinter observa que a criança hoje começa a perder um pouco do monopólio talvez exorbitante desfrutado em nossa sociedade, retornando a um lugar menos privilegiado, melhor ou pior. Para Badinter, as mulheres tomam distância da maternidade e surge entre os homens o desejo pela maternagem e o amor paterno nasce sob pressão feminina (BADINTER: 1985,360-365). 199 As mulheres, engajadas simultaneamente no trabalho fora do lar, no manejo da casa e cuidado dos filhos, precisariam de novas tecnologias que lhes aliviassem a carga de trabalho e aumentasse a sua produtividade. Para um dos autores consultados, a educação nutricional à mulher lhe proporcionaria mais conhecimentos sobre a maneira apropriada de amamentar a criança e se alimentar durante a gravidez e a lactação. Para liberar-se a mulher precisa-se de novas tecnologias, mas, também, da redefinição do poder na unidade doméstica entre o homem e a mulher e na sociedade como um todo, entre as classes sociais (NAVARRO: 1984,167). A mudança dos padrões familiares provocou a passagem da família rural ampliada para a família urbana de tipo nuclear, reduzindo os contatos entre as gerações de pais e filhos. As mães jovens passaram a se guiar menos pela tradição e experiência familiar tradicional. Spindel percebe que, comparando-se Recife com São Paulo, há diferenças nos padrões de comportamento reprodutivo e no padrão ideal de família. Em Recife, as mães são mais jovens, têm mais filhos e utilizam-se em menor proporção de meios anticoncepcionais. Já em São Paulo, as mães têm menos filhos e praticam a anticoncepção com maior freqüência (SPINDEL: 1984,80-82). Hoje, a família conjugal predomina. A sociedade está absorvendo funções que eram, anteriormente, atribuições familiares. A sociedade absorverá também o cuidado dos filhos e a satisfação das necessidades sexuais ou a família permanecerá, circunscrevendo-se às suas funções biológicas e de apoio emocional? Os padrões de relações conjugais estão experimentando rápidas mudanças. As relações sexuais acontecem com maior liberalidade e se alteram as percepções sociais sobre o casamento. Se isso, por um lado, fornece às mulheres padrões novos de vivência mais livre de sua sexualidade, por outro lado, em alguns casos, lhes retira os apoios informais e familiares necessários ao bom desempenho do aleitamento em ambientes tradicionais. Estas mudanças rápidas não estão dando tempo à jovem de incorporar práticas anticonceptivas e, para muitas, a vivência sexual significa procriação precoce, promovendo o crescimento da gravidez na adolescência. Os conflitos de valores entre a mãe, o pai e as famílias trazem instabilidade psicológica a uma mulher jovem e inexperiente que, muitas vezes, pode ter contribuído para o declínio na amamentação. Aqui novamente se ilustra o fenômeno do cultural lag, quando os indivíduos e grupos sociais levam certo tempo para adequar o seu comportamento às exigências da nova ordem tecnológica que modificou as condições materiais de vida. Em alguns casos, além destes fatores acima mencionados, preconceitos 200 culturais contribuem para a consideração de que o trabalho doméstico seja uma tarefa feminina e que não deve ser dividido com o homem. Em muitas famílias as meninas maiores assumem os cuidados dos irmãos menores, em prejuízo da sua escolaridade. Com relação ao sexo, na amamentação, nos cuidados infantis e no uso dos serviços de saúde, os meninos são favorecidos em relação às meninas (WHO: s.d.,12; BERQUÓ: 1986,27). A família brasileira se transforma rapidamente, torna-se mais complexa a distinção entre o que é moderno e o que é arcaico numa sociedade em acelerado processo de mudança social. Todas estas transformações produzem efeitos ao nível da estrutura das subjetividades, que não se modernizam no mesmo ritmo e facilidade das mudanças sociais (ALMEIDA: 1987,13). A sociedade moderna está em crise, percebida pela desintegração social, pela desorganização familiar e pelo enfraquecimento dos laços que prendem o indivíduo ao grupo. Nestas situações, de mudança social e cultural aceleradas, de modificação das relações entre o indivíduo e a sociedade, percebe-se uma gradativa perda do poder organizador da família e das relações de parentesco. Para descrever esta situação, Almeida emprega o conceito de anomia, de Durkheim, significando uma contestação aos meios socialmente aceitos para realizar os modelos de conduta, promovendo uma ruptura do equilíbrio no seio do organismo social, gerando desequilíbrios das sociedades que estão passando de tradicionais a modernas (ALMEIDA: 1987,14). 4. CULTURA, SOCIEDADE E SEXUALIDADE — AS RAZÕES DA MATERNIDADE: Segundo Ariès, "a atitude diante da sexualidade e, sem dúvida, a própria sexualidade variam de acordo com o meio, e, por conseguinte, segundo as épocas e as mentalidades" (ARIÈS: 1981, 129). Os valores e a vivência da sexualidade têm uma relação íntima com a amamentação. Vamos analisar, rapidamente, como variaram tais percepções na sociedade brasileira. A mulher se cingia, no discurso burguês do século passado, a duas representações: a santa assexuada mas mãe e a pecadora diabólica. Para a mãe, o aspecto sexual só aparecia se associado à idéia de procriação. O discurso pretendia inibir a sexualidade conjugal quando esta não visasse à procriação: a mulher, destinada à carreira da 201 maternidade, não podia procurar o prazer do coito. Seria, ainda, necessário enclausurar e domesticar as práticas sexuais extraconjugais. Na opinião de Rago, em nome da luta contra o "perigo venéreo" medicalizou-se a sexualidade feminina (RAGO: 1985,82-87). Para Costa, porém, houve a promoção da sexualidade feminina pelos médicos higienistas no século XIX como uma das formas de romper com as regras instituintes do casamento de razão. A intenção do discurso era circunscrever a sexualidade na família, conjugada com a proteção da infância. Os higienistas recomendavam evitar-se relações sexuais durante a gravidez e a amamentação. A promoção da amamentação pretendia colocar a sexualidade da mulher a serviço da família. Assim, mostrou-se o prazer durante a amamentação, que passou a ser estimulada, para fortalecer a relação mãe-filho (COSTA: 1983,262-263). Para alguns, uma das intenções do discurso era estimular o gozo na amamentação. Para outro autor, do século XX, o aleitamento prazeroso torna o dever de amamentar menos árduo (ARRUDA & GONDIN: 1970,20). Antigamente se pensava que as relações sexuais prejudicavam o leite e isto era um dos motivos pelos quais os casais contratavam amas-de-leite. Hoje a propaganda diz que o aleitamento estimula o prazer sexual (ORLANDI: 1985,130-131). A difusão da psicanálise ajudou na redescoberta do prazer físico durante a amamentação. Este prazer, antes reprimido, passou a ser estimulado, também como forma de aumentar-se a prática da lactação. O desenvolvimento e a maior disponibilidade e eficiência dos meios anticoncepcionais trouxeram a possibilidade de escolha, oportunidade e planejamento da maternidade e número de filhos. Este desenvolvimento científico-tecnológico, permitindo maior controle da mulher sobre o seu próprio corpo, vem promovendo, em amplos segmentos sociais, a dissociação entre sexualidade e procriação. Tudo isso veio revolucionar a questão do aleitamento. Vivemos em uma época em que a mulher se insere de maneira crescente na força de trabalho. A redução da fecundidade provocada pelas mudanças sociais e pelo advento das pílulas anticoncepcionais permite que as mulheres tenham um menor número de filhos que talvez possam passar a ser amamentados em maior proporção. Isso talvez venha reduzir a carga reprodutiva sobre a mulher e facilitar a conciliação entre a produção de bens e serviços e a reprodução humana. Da mesma forma que variam as percepções sociais sobre a sexualidade feminina, também variam as representações sobre a maternidade. Antigamente, a maternidade não era objeto de valorização social. Além do mais, atrapalhava a vida social 202 das mulheres de classe abastada ou dificultava aspectos de sobrevivência nas classes inferiores. Para Badinter, a maternidade ainda é, atualmente, em muitos casos, vivida como um sacerdócio. É uma experiência feliz, que implica também dores e sofrimentos, um real sacrifício da mulher. É uma experiência complexa que inspira sentimentos contraditórios, entre a felicidade e a tristeza, a satisfação e a frustração. "Toda felicidade feminina é paga com um terrível sofrimento" (BADINTER: 1985,249-251). "A dignificação da maternidade permitiu às mulheres exteriorizar um aspecto essencial de sua personalidade, e a obter com isso, por acréscimo, uma consideração que suas mães jamais haviam desfrutado". Em conseqüência, segundo Badinter, tornaram-se escravas dos filhos, sentindo um mal estar inconsciente. "A pressão ideológica foi tal que elas se sentiram obrigadas a serem mães sem desejá-lo realmente. Assim, viveram sua maternidade sob o signo da culpa e da frustração" (BADINTER: 1985,255). Na opinião de Badinter, o século XX criou a mãe masoquista: escolheu salvar a criança e imolar a mãe. Para a mulher muitas vezes deve ter sido difícil encontrar o equilíbrio entre a independência e o altruísmo. A mulher passa da responsabilidade à culpa. A boa mãe é uma santa. "Os sofrimentos da maternidade são o tributo pago pelas mulheres para ganhar o céu... Mas, contrariamente às verdadeiras vocações religiosas, que são livres e voluntárias, a vocação materna é obrigatória" (BADINTER: 1985, 267-271). Para H. Deutsch, ..."o aleitamento artificial, em moda depois da guerra, representava uma contemporização, visando a conciliar os interesses pessoais da mulher e os da mãe... esse meio termo acentuou o conflito. Isso porque de um lado, ofereciam-se às mulheres oportunidades cada vez maiores de desenvolver seu ego fora da função reprodutiva, ao mesmo tempo em que se exaltava cada vez mais a ideologia da maternidade ativa" (apud BADINTER: 1985,314). Para Badinter, "a maternidade não é sempre a preocupação primeira e instintiva da mulher... quando são libertadas das imposições econômicas, mas têm ambições pessoais, as mulheres nem sempre escolhem — longe disso — abandoná-las, ainda que por apenas alguns anos, pelo bem da criança" (BADINTER: 1985,346). As respostas a perguntas indiretas demonstram nas mulheres certo mal-estar em relação ao casamento e um recuo na maternidade. Algumas consideram o filho como um fardo. "Em vez de instinto, não seria melhor falar de uma fabulosa pressão social para que a mulher só possa se realizar na maternidade? Como saber se o desejo legítimo da maternidade não é um desejo em parte alienado, uma resposta às coerções sociais (penalização do celibato e da 203 não-maternidade, reconhecimento social da mulher enquanto mãe)? Como ter certeza de que esse desejo de maternidade não é uma compensação de frustrações diversas?" (BADINTER: 1985,355). Badinter considera que a maternidade é uma pedra no caminho da liberação feminina, lugar da sua alienação e escravidão. Faria parte de uma estratégia social que visaria mobilizar as mulheres na maternidade para melhor imobilizá-las depois. Muitas mulheres, em semelhança com as preciosas do século passado, não aceitam que o fato biológico da gravidez as prive de sua liberdade. Considera que somente a dissociação entre a procriação e a criação dos filhos como incumbência exclusiva das mulheres seja a única condição de existir uma opção na maternidade, ao invés do desejo alienado percebido hoje (BADINTER: 1985,356). As opiniões de Badinter, considerando a alienação da mulher na maternidade são representativas de grande parte do movimento feminista. Toma-se a posição de que, na maior parte das vezes, as mulheres percebam a sua alienação e, geralmente, não se considera que as mulheres poderiam ter vivido esse papel a elas destinado também com satisfação e não somente com resignação e sacrifício. Como tais valores eram e, em parte, ainda o são dominantes e socialmente compartilhados, é provável que muitas mulheres tenham vivido esse papel sentindo-se bem e não aspirando por mudanças em sua situação. Não estamos querendo insinuar que esta situação fosse boa, apenas que não podemos ignorar o fato de que muitas mulheres poderiam achar tal estado de coisas bom e desejável e não acharem que a maternidade ou a reprodução fossem a sua alienação ou representassem obstáculos à sua emancipação. Ou que o aleitamento não fosse, também, um fardo ou desejo, em parte, não alienado. Os valores sociais sobre a maternidade são contraditórios: por um lado, a maternidade é dignificada e valorizada; por outro, a sociedade oferece pouco suporte às mulheres no desempenho do papel de mães. Almeida realizou um trabalho, no Rio de Janeiro, entrevistando, em profundidade, duas gerações de mães, de forma a captar as mudanças sofridas nas representações sobre a maternidade nas décadas de 50 e 80. Percebe que houve mudanças nas formas de controle e autoridade vigentes no interior da família de classe média brasileira a partir das últimas três décadas. Os valores das mães da década de 50 percebiam a maternidade como ligada à abnegação, autonegação e autodoação. Havia papéis distintos para maridos e mulheres e um código moral sistemático e definido. Geralmente, o pai era o provedor e a mulher estava 204 encarregada da manutenção do lar e do cuidado com os filhos. Percebiam-se diferenças visíveis e uma hierarquia rígida baseada na autoridade. O filho e não o feto era a referência central definidora da maternidade. A medicina estava ligada a esta concepção "tradicional" da maternidade. Nota-se que os códigos básicos de procedimento partiam da família. O médico era impessoal, mantendo com as clientes um relacionamento profissional e técnico, havendo distâncias rígidas na interação entre o médico e a grávida/mãe. A amamentação era "cumprida" segundo o esquema definido pelo pediatra através de um modelo normativo. Não havia a dimensão psíquica da grávida/mãe, o parto estava vinculado ao nervosismo, medo e dor. A preocupação com o parto, mais do que com a experiência da gravidez, emergia como critério definidor da maternidade. Tudo se passava como se a gravidez fosse "automática", "não-refletida", "não-consciente". O sexo feminino estava, na maior parte dos casos, a serviço da reprodução e da família. Resumindo, no mapeamento da maternidade, predominava o código em relação ao sujeito. Referências exteriores ditavam os padrões de comportamento aos quais a mulher, quase sempre, se submetia (ALMEIDA: 1987,38-59). Em seguida descreveremos as representações sobre a maternidade da geração dos anos 80. Antes, gostaríamos de chamar a atenção de que a maior parte das entrevistadas da geração dos anos 50 tinha curso ginasial ou normal e de que todas as mães dos anos 80 tinham curso superior. Esta diferença de escolaridade entre os grupos, além de refletir uma mudança social mais global que foi o aumento médio da escolaridade, pode ser, em parte, responsável por algumas diferenças de percepções entre os grupos. No entanto, apesar dos grupos estudados não refletirem, completamente, o pensamento da geração dos anos 50 e 80, representam modelos que, mesmo não predominantes, podem representar espaços alternativos de vivência da maternidade. Para algumas mulheres da geração dos anos 80, o poder médico é visto como "alienante" e "autoritário", em relação à autonomia da mulher frente ao processo de gravidez e parto. Há uma crítica às cesarianas indiscriminadas, às anestesias durante o parto e às consultas médicas "frias" e "comerciais". Combate-se a visão "tradicional" da medicina, reagindo-se às vacinas, ao uso abusivo de antibióticos e à assepsia excessiva. No tocante à família, percebem-se questionamentos da divisão sexual do exercício das tarefas domésticas e a conquista de maior autonomia e deliberação por parte da mulher quanto às questões relativas ao uso do corpo. As mulheres questionam o papel do marido e anseiam pela sua participação e ajuda no cuidado do bebê. Os maridos passam a participar mais de todo o processo de gravidez. Nota-se a tentativa de construção de uma nova visão de paternidade, incluindo aquilo que poderíamos chamar de "casal grávido", que se relaciona 205 com a grande difusão do psicologismo na sociedade contemporânea. Observam-se novas abordagens sobre a gravidez e o parto e mudanças na relação médico-paciente, notando-se a emergência da vontade individual e o esmaecimento das regras e padrões baseados na autoridade médica. Os papéis de pai e mãe são negociados em função de diferenças pessoais na base do impulso, desejo ou improviso. Nasce aquilo que se pode chamar de sentimento "moderno" de maternidade, que inclui as ideologias do "natural" e a "alternativa", empreendida pelos especialistas psi. A família extensa é afastada da vivência da maternidade, pois há visões contraditórias de mundo em relação ao cotidiano. A antiga rede familiar é, agora, substituída pelos amigos, que oferecem suporte emocional e psíquico. Anteriormente, havia uma expectativa social a cumprir, não havia consciência ou problematização dos conteúdos ligados à vivência da gravidez, que agora são trabalhados pelos especialistas psi. Não se observa mais a demarcação entre feto e filho, ou entre mulher/mãe ou gravidez/parto, que agora são um continuum. Nos novos significados, predomina o sujeito em relação ao código, A amamentação passa a ser regulada não mais pelo médico, mas pelo "desejo" da mulher. Na "opção" pela maternidade, percebe-se a "emergência do desejo" (o filho como resultado do desejo). Em relação à amamentação, fica patente o conflito entre as duas gerações de mães. Assim, às tentativas por parte das mães de fazerem valer suas experiências em relação à amamentação, os profissionais contrapõem a necessidade de reflexão e problematização por parte das filhas. O modelo materno dos anos 50 quer impor conselhos e práticas específicas ligadas à amamentação, geralmente de desestímulo, como sugerindo à mãe que seu leite está fraco (ALMEIDA: 1987,60-87). Talvez, o retrato fornecido acima não represente, propriamente, as percepções que as mães atuais estão tendo sobre a maternidade. O grupo dos anos 80 participava de grupos alternativos de vivência da gravidez. Eram grupos de preparação para o parto, que realizavam exercícios, acompanhamento emocional e consultas médicas mais informais, visando um parto mais tranqüilo e menos doloroso. Almeida analisa as ilusões e os limites da "gravidez alternativa" os grupos alternativistas que sugerem a busca do natural, construindo uma ideologia sobre a natureza, indicam "claramente um movimento de resistência e oposição ao progresso e à modernização (uso intensivo da tecnologia médica, quimismo) que, em última instância, são encarados... como entraves e barreiras à emergência da verdadeira 'natureza' de cada um" (ALMEIDA: 1987,128). 206 Em seu trabalho, Almeida nota a contradição e o conflito entre visões de mundo e conjunto de valores entre as duas gerações de mães e a presença paradoxal, no mesmo sujeito, de "mapas" e percepções de mundo contraditórias. A análise das subjetividades inclui, também, o que chama de "sociologicamente invisível" e pressupõe investigar "as representações de mundo e de si próprio que o sujeito aparentemente abandonou no processo de mudança social, mas que, na verdade, ficaram retidas como que num estado potencial, inconsciente e capaz de produzir efeitos" (ALMEIDA: 1987,16). Tal coexistência de "mapas" contraditórios, resultando numa situação de tensão e conflito para os indivíduos, gera uma demanda de intervenções através de terapêuticas diversas. Dessa forma, "os mapas internalizados durante o processo de socialização primária que são rejeitados pelo sujeito, quando este adquire mapas mais recentes através de socializações secundárias, não são erradicados ou integrados a estes, mas sim deslocados para um nível mais inconsciente" (ALMEIDA: 1987,23). "No momento em que se tornam mães, e procuram abraçar valores modernos, liberados e alternativos, aqueles conteúdos, fortemente enraizados na primeira socialização familiar, entram em contradição com os novos valores e, mantidos invisíveis do ponto de vista sociológico, tornam-se os principais alvos a serem combatidos" (ALMEIDA: 1987,100). Há, portanto, no nível da estrutura dos sujeitos, dois aspectos a analisar: o sociologicamente "visível" e o "invisível", além dos demais pontos observáveis no plano da estrutura social. Observam-se linhas de tensão entre a urbanização, modernização e nuclearização da família e um descompasso entre a socialização primária e a vida adulta, além do esmaecimento gradual do papel da família enquanto agente mediador das relações entre os indivíduos. "A formação de uma demanda por orientação psicológica da gravidez e da maternidade se inscreve dentro de um fenômeno mais abrangente de psicologização da sociedade e revela historicamente uma mudança significativa nos regimes de controle e autoridade no interior da família" (ALMEIDA: 1987,61). Observa-se que os sujeitos estão "procurando operar com base em princípios pessoais, a partir de noções que devem ser construídas pelo indivíduo, mediante seus desejos, impulsos e potencialidades, e não sobre definições pré-estabelecidas, exteriores e fornecidas pela estrutura social" (ALMEIDA: 1987,79). A reestruturação das subjetividades dentro das práticas alternativas está compreendida num campo de relações rigorosamente disciplinares, produzindo, na consciência dos sujeitos, a sensação de que estes estão ingressando em um novo universo liberalizante. No entanto, surgem "novas autoridades" mais sutis e apoiadas em mecanismos 207 mais complexos. "A capacidade de optar e escolher livremente está atrelada, de forma paradoxal, a uma imensa rede de mecanismos e estratégias disciplinares... que transforma o "seguir a disciplina e as normas" num "desejo" do sujeito. É neste sentido que a noção de escolha individual (por exemplo, da gravidez, do tipo de parto etc.), que aparece para as gestantes como uma "liberação" em relação à norma e à autoridade (médica, familiar), pode ser entendida como uma nova estratégia de facultar ao sujeito o "privilégio" de controlar-se a si próprio e, ao mesmo tempo, sentir-se "liberado porque escolhe" (ALMEIDA: 1987,118-119). Este novo processo de controle social internalizado não passa mais, predominantemente, pela família. A fixidez de regras transforma-se em conselhos, que se fazem objetos de desejo do próprio indivíduo, como se este estivesse optando. Uma nova modalidade de controle social da família nasce. A família em crise está em processo de reconstrução. A crise gera a busca de definição de novos papéis familiares em outras bases e o surgimento de novos padrões de hierarquia. Nascerá uma nova família, com base no igualitarismo, utilizando o discurso psicologizante? Em todo caso, a nova família parece estar sendo mapeada a partir dos sujeitos, sem submissão visível. 208 CAPITULO VIII — AMAMENTAÇÃO: FARDO OU DESEJO? Vimos, no decorrer deste trabalho, os saberes e práticas sobre amamentação, sua variação ao longo do tempo e em grupos sociais específicos. O aleitamento é um processo predominantemente sociocultural e a sua dinâmica reflete o processo de difusão de elementos culturais, acompanhando o desenrolar das mudanças sociais. As flutuações dos valores sobre o aleitamento foram exemplificadas em diversas culturas e em diferentes fases da história brasileira. Percebemos que, recentemente, as pessoas e instituições estão tendo um novo interesse na amamentação. Loyola observa: "... a atual campanha a favor da amamentação está transferindo às mães a solução dos problemas, cuja origem até o presente a puericultura ajudou a camuflar. De fato, o que se propõe às mulheres por meio da amamentação é uma tarefa considerável: erradicar do país a desnutrição e a desordem social, desenvolver o planejamento familiar e melhorar, a longo prazo, a qualidade da força de trabalho, em outras palavras, encobrir as contradições e assegurar a continuidade da estrutura social que o desenvolvimento do país vem reproduzindo e ampliando" (LOYOLA: 1983,46). Obviamente, não é pela amamentação que vamos resolver os graves problemas de exploração econômica, desnutrição e mortalidade infantil. Com o aleitamento, pode-se, quando muito, adiar o aparecimento da desnutrição, reduzir-se um pouco sua ocorrência, gravidade e seqüelas, mas tudo isto não passa de uma solução paliativa. Outros fatores precisam ser considerados na questão do aleitamento materno: a participação do homem, do companheiro e o respaldo da sociedade para que a amamentação se efetive, sem provocar nas mães que não amamentam o sentimento de culpa. "...As campanhas pró-aleitamento deveriam cuidar de não ferir suscetibilidades femininas... A maior parte dessas mulheres experimentam culpa ao fracassar nesta tarefa. Do ponto de vista psicológico, este fracasso inicial pode produzir maiores dificuldades no relacionamento futuro entre mãe e filho, tanto mais se for ostensivamente enfatizado como um fracasso" (CUKIER: 1984,61). "Uma campanha de incentivo ao aleitamento materno sem a concomitante criação de condições para que isso se efetive vai apenas provocar um brutal sentimento de culpa em mães impotentes para solucionar um problema do qual são mais que tudo vítimas" (BLAY: 1983,131). O aleitamento materno está dentro de um contexto histórico de busca de emancipação feminina de um lado e influências ideológicas, sociais e políticas do outro. O 209 ponto de equilíbrio entre estes dois pontos determinará a ocorrência ou não do aleitamento natural (BETTIOL et al.: 1988, 47-49). As distintas facetas da vida das mulheres, o trabalho, a saúde, as responsabilidades e os múltiplos papéis que desempenham, as induzem ou não a amamentar os seus filhos. Seria necessária uma mudança nas condições de vida e trabalho das mulheres para que as tarefas do aleitamento fossem facilitadas. A organização molecular da família e a divisão sexual do trabalho ainda consideram que as tarefas domésticas e o cuidado dos filhos são tarefas praticamente exclusivas das mulheres, ajudadas às vezes por familiares. O homem permanece reticente à sua participação nestas atividades. "Não se deve encarar a questão da amamentação apenas como um problema da mulher, mas também do homem, no que diz respeito às desigualdades das condições de vida que obrigam a mulher a deixar de amamentar o seu filho, sem provocar nas mães impotentes um sentimento de culpa" (VILLA: 1985,72). Os movimentos e organizações femininas têm um papel fundamental a desempenhar, realizando pressões sociais e políticas para que ocorra uma mudança nas reais condições de vida da mulher, geralmente desfavoráveis ao aleitamento. Vimos ainda a existência de duas representações socioculturais sobre o aleitamento. Em uma, a maternidade é vivida como uma imposição, um sacerdócio, uma obrigação, um sacrifício e o aleitamento corresponderia a um fardo. Em outra, a maternidade passa a ser desejada, estimulada, vivida com prazer e satisfação. Nesta, o dever de amamentar transforma-se no direito de fazê-lo, aliviando o possível fardo da maternidade, recriando a oportunidade e a emergência do desejo. As novas formas do imaginário social conduzem a uma maior liberdade dos sujeitos em relação às decisões que afetam o uso do seu corpo e faz avançar as concepções de justiça social. Afrouxando-se os laços que prendem o indivíduo ao grupo, as normas sociais podem flutuar com mais naturalidade. No entanto, na vida em sociedade, o indivíduo tem suas concepções e valores ligados a modos coletivos de agir, pensar e sentir, condicionados e determinados pela sua relação com as outras pessoas. Cada membro de uma sociedade introjeta as mesmas normas sociais de vida em grupo. O sujeito se sente mais ou menos constrangido a segui-las. Todas as ações estão normatizadas. Há regras, modelos de conduta mais ou menos conhecidos pelos participantes das relações sociais. O agir reciprocamente condicionado dos indivíduos na vida em sociedade mantém e transforma seus valores. Deste modo, a percepção de alguns grupos sociais que querem visualizar o 210 aleitamento como se este pudesse ser "de fato" um desejo da mulher tem um sentido apenas relativo. O que se assiste é a emergência de novas normas e padrões em relação ao aleitamento materno. As normas anteriores se baseavam em códigos externos, cujos controles passavam pelos grupos tradicionais e pela família. No atual estágio de evolução social, tal modalidade de controle não está sendo mais efetiva porque as condições materiais de existência mudaram e mudaram também as percepções e valores sobre o aleitamento. Um novo código regulador mais frouxo, mais baseado em características pessoais, transforma apenas "aparentemente" o aleitamento em um desejo do indivíduo, da mesma forma que as representações sociais anteriores viam "aparentemente" a amamentação como um fardo para a mulher. Do mesmo modo que os indivíduos também podem desejar um fardo, podem ser condicionados ao desejo. Também vimos que o aleitamento pode ser vivido, e parece que assim o seja, muitas vezes, simultaneamente ou alternadamente, como um fardo obrigatório e um desejo prazeroso. Tais representações culturais apenas indicam as mudanças nas percepções sociais sobre o aleitamento materno que aconteceram na sociedade brasileira ao longo do tempo, as quais estudamos no decorrer deste trabalho. 211 CONCLUSÕES: Nos seres humanos, o ato de amamentar ao seio ou não, além de ser biologicamente determinado, é social e culturalmente condicionado. Apresenta variações entre as diversas sociedades humanas, nos estratos sociais e, em uma mesma sociedade, flutua em diversos momentos históricos. Como um comportamento sociocultural, está orientado por valores mas é o agir reciprocamente condicionado que mantém e transforma esses valores que estão, por sua vez, codificados em mores e folkways. Sob essa ótica, os saberes e práticas sobre o aleitamento, como elementos culturais, em nosso entender, obedecem às leis de difusão definidas pelos etnólogos. Os novos saberes sobre este assunto geralmente surgem nas camadas dominantes que, dotadas de maior prestígio, tendem a ser mais facilmente imitadas pelas demais camadas sociais, ainda que saberes das camadas subordinadas possam também se disseminar para as demais. Através do efeito-demonstração, as camadas subordinadas absorvem esses novos saberes emergentes, desenvolvendo para eles novas interpretações mais adequadas às finalidades e expectativas de sua subcultura. Assim, de um complexo cultural toma-se de empréstimo, geralmente, as partes mais concretas e objetivas (práticas de aleitamento) recodificando-se, em maior ou menor medida, seus aspectos subjetivos (saberes sobre aleitamento), conferindo-lhes significados novos. Nas sociedades primitivas e tradicionais, as crenças e comportamentos eram, na maior parte, elementos universais, compartilhados por todos, porque tais agrupamentos eram mais simples. As mudanças sociais se davam de maneira geralmente mais demorada. Com a maior complexidade social, o surgimento de novas hierarquias e, depois, da sociedade de classes, os indivíduos nas sociedades urbano-industriais não compartilham senão o núcleo da cultura. O desenvolvimento econômico e tecnológico promoveu o surgimento de novas especialidades e cindiu os saberes sobre o corpo. Apareceram subculturas baseadas em classes, grupos de ocupação etc, cada uma detendo saberes em parte específicos sobre o aleitamento. Apesar disto, a multiplicação dos contatos e os meios de comunicação de massa vêm diminuindo a distância no tempo entre a subcultura das classes hegemônicas e subalternas. O processo de urbanização, rompendo relações rígidas de dominação e subordinação possui um efeito-demonstração extraordinário. As mudanças sociais passam a ocorrer de forma cada vez mais acelerada. A evolução da mentalidades sobre o aleitamento, apesar de guardar uma autonomia relativa em relação às transformações da base material da sociedade, sofre 212 influências de sua dinâmica. A cultura material se modifica mais rapidamente que outros segmentos de cultura não-material, ocorrendo uma discrepância entre os ritmos de mudança nos diferentes setores da vida social, caracterizando a "demora cultural". Um dos problemas enfrentados pelo homem moderno é o de adaptar suas maneiras de pensar e de comportar-se ao estado da tecnologia. A mudança nas condições materiais de vida exige, constantemente, uma atualização nas concepções e valores dos grupos sociais. Tal demora traduz atitudes e motivações psicossociais desfavoráveis ao desenvolvimento dos saberes e práticas sobre o aleitamento. As pessoas têm, geralmente, atitudes conservantistas que visam à preservação do patrimônio cultural e moral e à defesa de valores tradicionalmente consagrados, embora em determinados momentos, regiões e grupos sociais possa haver bastante valorização da mudança. Apesar disso, novos comportamentos sobre o aleitamento opõem-se, constantemente, ainda que nem sempre frontalmente, aos hábitos e costumes da ordem social. Dois aspectos da vida social estão intimamente relacionados com o aleitamento: o estado da tecnologia e as relações sociais de produção/reprodução. Os saberes e práticas sobre o aleitamento estão condicionados ao grau de desenvolvimento científicotecnológico e ao padrão de relações sociais vigentes em cada sociedade. Da articulação entre estes aspectos brotam os diferentes discursos sobre o aleitamento, em vários segmentos sociais. O desenvolvimento das forças produtivas, promovendo melhorias na produtividade agrícola e proporcionando excedentes alimentares, provocou a diferenciação campo/cidade e o surgimento de outras hierarquias entre os indivíduos. Assim, no período colonial, a conquista de escravos e a existência de mulheres livres pobres traduziram as condições sociais dadas para o aparecimento da prática de amamentação do recém-nascido humano por amas-de-leite escravas ou livres, proporcionando a possibilidade de escolha entre seio materno e seio da ama-de-leite. Mais tarde, o desenvolvimento científicotecnológico propiciou a descoberta da diluição do leite de vaca e a invenção dos processos de pasteurização e fabricação do leite em pó. Provavelmente, a maior eficiência destas técnicas e a extinção da escravidão levaram ao desaparecimento da amamentação por amas. A escolha passou a ser entre seio e mamadeira. O processo de criação/ satisfação de necessidades em relação à alimentação infantil é ilimitado e depende, no mundo atual para a sua satisfação, em parte, das descobertas tecnológicas e do uso dos mecanismos de marketing e propaganda. Outro fator relacionado com o desenvolvimento das forças produtivas é o 213 estado do desenvolvimento científico e tecnológico dos meios anticoncepcionais, que condicionam sua disponibilidade e eficiência e estão relacionados com a possibilidade de escolha e oportunidade da maternidade. Por outro lado, as condições sociais de produção/reprodução determinam, em parte, o comportamento reprodutivo, a condição social da mulher e o tipo de suporte familiar/social à amamentação e criação dos filhos. Tais processos estão relacionados com os valores sociais em relação à maternidade, à sexualidade, à emergência de novos padrões de família e aos movimentos de emancipação da mulher, dos quais dependem, também, as condições socioculturais para a prática do aleitamento materno. A inserção da mulher no trabalho está condicionada pelo seu comportamento reprodutivo e ambos se relacionam com a possibilidade de amamentação. O retorno ao hábito de amamentar é um fenômeno recente. Pode estar ligado a uma maior racionalidade, na qual as sociedades se tornam mais receptivas a comportamentos supostamente baseados na ciência e na tecnologia. Ou ao surto de mentalidade prática no estabelecimento de novas relações entre meios e fins. Outro fator que pode explicar estas transformações é que, na sociedade urbano-industrial, as mudanças refletem a dinâmica do processo adaptativo de socialização/ressocialização, que nunca está completo. O aleitamento, em qualquer época e em qualquer sociedade é um comportamento socialmente condicionado e regido, em parte, pela tradição. Nos dias atuais, algumas instituições sociais e de planejamento tentam condicionar o aleitamento à mudança social dirigida. Os aparelhos de regulação do corpo, dentre os quais se destacam a medicina e a psicologia, participam desse novo momento de recodificação dos saberes e práticas sobre a amamentação. O aleitamento materno, antes visto e vivido predominantemente como um fardo, passa a ser alvo do desejo. As pessoas passam a se sentir livres porque escolhem, mas são, na realidade, socialmente condicionadas ao desejo. 214 RESUMO: Este trabalho tem por objetivo estudar os saberes e práticas associados ao aleitamento materno na sociedade brasileira, incluindo os períodos colonial, imperial e republicano. O estudo está baseado em teses médicas das Faculdades de Medicina do século passado, documentos históricos acerca da vida familiar e social da época e em trabalhos mais recentes escritos sobre o assunto. Vemos o aleitamento como um fenômeno sociocultural e estudamos as suas mudanças através do tempo, no espaço e nos diversos grupos sociais. Este comportamento reflete a dinâmica do processo de difusão de elementos culturais e está condicionado pelas mudanças sociais. Discutimos as transformações históricas do discurso médico sobre o aleitamento e os tipos de alimentação infantil em diferentes culturas. Na sociedade tupinambá quase todas as crianças eram amamentadas até os três anos de idade. No período colonial, algumas mulheres brancas e ricas da região nordeste se recusavam a amamentar suas crianças e as entregavam às escravas para que fossem amamentadas. Na cidade do Rio de Janeiro, a prática da exposição e abandono de crianças se tornou muito comum nos séculos XVIII e XIX, elevando a mortalidade infantil. A grande prevalência de crianças ilegítimas levou à criação da instituição da "roda dos expostos" para proteção da honra familiar. A negligência em relação à criança e o infanticídio se tornaram muito freqüentes, ocorrendo um decréscimo no aleitamento materno. Amas-de-leite foram empregadas para nutrir as crianças e nutrizes escravas foram alugadas como fonte de renda para o proprietário. Mais tarde, a invenção dos processos de pasteurização e a industrialização do leite de vaca tornou a alimentação por mamadeira disponível e relativamente segura. A prática da alimentação artificial foi disseminada. Alguns autores consideram as promoções agressivas das indústrias de leite em pó como um grande fator responsável por esta tendência e discutem o seu papel enquanto baby killers. Criticamos a visão que considera o processo de desenvolvimento do modo capitalista de produção como o responsável pelo desvio para a alimentação por mamadeira. O processo de lactação não é somente biológico ou econômico. As diferentes visões acerca da maternidade, padrões de família, sexualidade, as condições do trabalho da mulher, a habilidade social para combinar as duas diferentes funções femininas na produção e reprodução, o processo de urbanização, o estilo de vida moderno e as atividades de marketing são relacionadas com os hábitos de alimentação por mamadeira. 215 As percepções médicas sobre aleitamento materno e saúde são analisadas bem como as razões fornecidas pelas mães para interromper o aleitamento. O discurso psicanalítico é estudado dentro do processo de "psicologização" do parto e dos cuidados com a criança, no contexto da reprodução humana. O aleitamento materno e a sua relação com o controle de nascimentos e o planejamento familiar são considerados. O papel dos anúncios nos meios de comunicação de massa na criação das necessidades é discutido e relativizado. A extensão das necessidades humanas e o modo de satisfazê-las são vistas como produtos culturais que dependem de condições culturais, tecnológicas e sociais. As promoções comerciais de leite em pó geralmente reforçam hábitos latentes desejados e não dirigem o consumidor para a compra de um bem que ele não quer ou não deseja. As representações socioculturais do aleitamento como "fardo" ou "desejo" são apresentadas. Concluímos que o aleitamento não deve ser considerado sempre como um fardo ou como um desejo, ainda que, algumas vezes, possa ser ambos simultaneamente. 216 SUMMARY: The main objective of this research was to study the patterns and practices of breast-feeding within the Brazilian society in the colonial, imperial and republic periods. The study was based on thesis carried out in medical schools during the last century as well as on historical documents about social and familiar life and more recent papers dealing with this problem. We have seen that breast-feeding is a social and cultural phenomenon and that it varies according to time, space and among different social groups. This behavior reflects the dynamics of a process of diffusion of cultural elements and is conditioned by social changes. We discussed the historical transformations of the medical thought about this issue and the types of children-feeding in different cultures. In the Tupinambá indian society almost all children were breast-fed for a period of about three years. During the colonial period, some of the white and richest women of the Northeastern region refused to feed their infants and let them to be nourished by slave women. In the city of Rio de Janeiro the practice of children abandon became very common in the 18th and 19th centuries, causing an increase in the infant mortality rate. The high prevalence of illegitimate children led to the creation of a institution to take care of exposed babies and to protect family honor. The neglect of children and infanticide became very common and the practice of breastfeeding decreased. Wet nurses were employed to feed children and lactant slave women were rented by their owners as a lucrative business. Later on, the invention of the pasteurization process and the industrialization of cow's milk turned bottle feeding available and relatively secure. The practice of artificial feeding became widespread. Some authors considered aggressive promotions of powdered milk industries as an important factor responsible for this trend and discussed its role as "baby killers". We criticized the point of view that considers the process of the development of the capitalist mode of production to be responsible for the shift to bottle feeding. We consider lactation not only a biological or an economic process. The different concepts about maternity, family patterns, sexuality, the conditions of women's work, the social ability to carry out simultaneously the two different roles of women in production and reproduction, the urbanization process, the modern way of life and marketing activities were related to bottle feeding habits. Medical ideas about breast-feeding and health were analyzed as well as the reasons given by mothers to discontinue breast-feeding their babies. The psychoanalytic 217 thought is studied beyond the process of "psychologization" of childbirth and child care in the context of human reproduction. The relations between breast-feeding, birth control and family planning were considered. The role of mass media advertising in creating needs was discussed and its relative importance was reduced. The extension of human needs and its mode of satisfaction were viewed as social products that depend on cultural, technological and social conditions. Commercial promotions of powdered milk generally reinforce latent desired habits and don't drive the consumers in order to buy an undesired good. The social and cultural representations about breast-feeding as a "burden" or a "desire" were presented. Our conclusion is that breast-feeding should not be always considered as a burden or a desire, even though sometimes it may be both simultaneously. 218 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ADEBONOJO, Festus O. Artificial vs. breast-feeding. Relation to infant mortalily in a middle class American Community. Clin. Pediat. (Phila..), 11:25-29,1972. AGASSIZ, Luiz & AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil: 1865-1866. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1975. 323p. 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