coletânea de obras para o vestibular da unioeste 2012/2013/2014

Transcrição

coletânea de obras para o vestibular da unioeste 2012/2013/2014
Colégio Estadual Tancredo Neves - EFMP – Francisco Beltrão-PR
COLÉGIO ESTADUAL TANCREDO NEVES –
EFM
RUA BARRA MANSA
COLETÂNEA DE OBRAS PARA
O VESTIBULAR DA UNIOESTE
2012/2013/2014
FRANCISCO BELTRÃO, MAIO DE 2011
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Colégio Estadual Tancredo Neves - EFMP – Francisco Beltrão-PR
GREGÓRIO DE MATOS GUERRA (1636-1695)
Poesia Religiosa
A oscilação da alma barroca entre o mundo terreno e a perspectiva da salvação eterna aguça-se
em Gregório de Matos Guerra. Até meados do século XVIII, nenhum homem de letras pode fugir a
uma educação contra-reformista, pois os jesuítas controlam todo o sistema de ensino. Desta forma,
ilustrar-se só será possível dentro dos preceitos da Companhia de Jesus, o que acontece com o futuro
poeta.
Por outro lado, Gregório é filho de senhores de engenho, quer dizer, dos verdadeiros senhores
da terra, dos que possuem todos os direitos, inclusive o de vida e morte e que, por isso, podem exercer
o estupro ou o simples domínio sexual sobre índias e escravas. Estão presentes nele, portanto, os
elementos contraditórios da época: a licenciosidade moral e a posterior consciência da infâmia,
seguida do arrependimento.
Na maior parte de seus poemas religiosos, o poeta se ajoelha diante de Deus, com um forte
sentimento de culpa por haver pecado, e promete redimir-se. Trata-se de uma imagem constante: o
homem ajoelhado, implorando perdão por seus erros, conforme podemos verificar no primeiro
quarteto do soneto Buscando a Cristo:
A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.
O exemplo mais conhecido de sua literatura sacra é o soneto A Jesus Cristo Nosso Senhor.
Numa curiosa dialética, o poeta apela para a infinita capacidade de Cristo em redimir os piores
pecadores, alegando que a ausência de perdão representaria o fim da glória divina. Trata-se, pois, de
um poema simultaneamente contrito e desafiador, humilde e presunçoso.
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido;
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja* um só gemido:
Que a mesma culpa que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história,
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
Lembra-te Deus, que és pó para humilhar-te,
E como o teu baixel sempre fraqueja
No dia de quarta - feira de cinzas
Nos mares da vaidade, onde peleja
Te põe à vista a terra, onde salvar-te.
Que és terna, homem, e em terra hás de tornar-te,
Te lembra hoje Deus por tua Igreja;
Alerta, alerta, pois, que o vento berra
De pó te faz espelho, em que te veja
Se assopra a vaidade e incha o pano,
A vil matéria, de que quis formar-te.
Na proa a terra tens, amaina e ferra.
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Todo o lenho mortal, baixel humano,
À Bahia
Se busca a salvação, tome hoje terra,
Que a terra de hoje é o porto soberano.
(baixel: barco ou navio)
Triste Bahia! Oh quão dessemelhante
Estás, e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vejo eu já, tu a mi abundante.
A ti tocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado
Tanto negócio, e tanto negociante.
Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sangaz Brichote.
Oh se quisera Deus, que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!
O poema À Bahia, crítica as autoridades da época, o governador, as mulheres de costumes
indecorosos, os ricos senhores de engenho, o clero, os comerciantes pouco honesto, os negros, os
mulatos os índios e os escravos... Devido a isso, Gregório de Matos foi apelidado o Boca do Inferno.
Em suas sátiras, o poeta ridiculariza que trabalha para sustentar o colonizador (“ Que is brasileiros são
bestas / e estarão a trabalhar/ toda a vida por manter / maganos de Portugal”), o colonizador, português
predatório, El- Rei (“Valha-nos Deus, o que custa / o que El-Rei nos dá de graça / Que anda a justiça
na praça / bastarda, vendida, injusta”), o clero e, numa postura moralista, os costumes da sociedade
baiana do século XVII (“ O demo a viver se exponha, / por mais que a fama a exalta, / numa cidade
onde falta/ verdade, honra, vergonha”).
Aos senhores governadores do mundo em seco
Da cidade da Bahia, e seus costumes
A cada canto um grande Conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha:
Não sabem governar sua cozinha,
“E querem governar o Mundo inteiro”
Em cada porta um bem freqüente olheiro
Da vida do Vizinho e da Vizinha,
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha
Para o levar á Praça ao Terreiro.
Muitos Mulatos desavergonhados,
Trazendo pelos pés aos Homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.
Expressões amorosas a uma dama a quem
queria - a Maria dos povos, sua futura esposa.
Discreta e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora,
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos e boca, o Sol e o dia:
Enquanto com gentil descortesia,
O Ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança brilhadora
Quando vem passear-te pela fria.
Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trata, a toda a ligeireza
E imprime em toda flor sua pisada.
Oh não aguardes que a madura idade
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te converta essa flor, essa beleza,
em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.
Aos afetos e lágrimas derramadas na ausência da dama a quem queria bem
Ardor em firme Coração nascido;
pranto por belos olhos derramado;
incêndio em mares de água disfarçado;
rio de neve em fogo convertido:
tu, que em um peito abrasas escondido;
tu, que em um rosto corres desatado;
quando fogo, em cristais aprisionado;
quando cristal, em chamas derretido.
se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!
Pois, para temperar a tirania,
como quis que aqui fosse a neve ardente,
permitiu parecesse a chama fria.
Gregório de Matos Guerra
Se és fogo, como passas brandamente,
Cláudio Manuel da Costa
XIV
Quem deixa o trato pastoril amado
Pela ingrata, civil correspondência,
Ou desconhece o rosto da violência,
Ou do retiro a paz não tem provado.
Que bem é ver nos campos transladado
No gênio do pastor, o da inocência!
E que mal é no trato, e na aparência
Ver sempre o cortesão dissimulado!
Ali respira amor sinceridade;
Aqui sempre a traição seu rosto encobre;
Um só trata a mentira, outro a verdade.
Ali não há fortuna, que soçobre;
Aqui quanto se observa, é variedade:
Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!
Cláudio Manuel da Costa
LXII
Torno a ver-vos, ó montes; o destino
Aqui me torna a pôr nestes oiteiros;
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros
Pelo traje da Côrte rico, e fino.
Aqui estou entre Almendro, entre Corino,
Os meus fiéis, meus doces companheiros,
Vendo correr os míseros vaqueiros
Atrás de seu cansado desatino.
Se o bem desta choupana pode tanto,
Que chega a ter mais preço, e mais valia,
Que da cidade o lisonjeiro encanto;
Aqui descanse a louca fantasia;
E o que té agora se tornava em pranto,
Se converta em afetos de alegria
.
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TOMÁS ANTONIO GONZAGA
Marília de Dirceu
PARTE I
Graças, Marília bela,
Lira I
Graças à minha Estrela!
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Os teus olhos espalham luz divina,
Que viva de guardar alheio gado;
A quem a luz do Sol em vão se atreve:
De tosco trato, d’ expressões grosseiro,
Papoula, ou rosa delicada, e fina,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado.
Te cobre as faces, que são cor de neve.
Tenho próprio casal, e nele assisto;
Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Teu lindo corpo bálsamos vapora.
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,
E mais as finas lãs, de que me visto.
Para glória de Amor igual tesouro.
Graças, Marília bela,
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Graças à minha Estrela!
Eu vi o meu semblante numa fonte,
Leve-me a sementeira muito embora
Dos anos inda não está cortado:
O rio sobre os campos levantado:
Os pastores, que habitam este monte,
Acabe, acabe a peste matadora,
Com tal destreza toco a sanfoninha,
Sem deixar uma rês, o nédio gado.
Que inveja até me tem o próprio Alceste:
Já destes bens, Marília, não preciso:
Ao som dela concerto a voz celeste;
Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;
Nem canto letra, que não seja minha,
Para viver feliz, Marília, basta
Graças, Marília bela,
Que os olhos movas, e me dês um riso.
Graças à minha Estrela!
Graças, Marília bela,
Mas tendo tantos dotes da ventura,
Graças à minha Estrela!
Só apreço lhes dou, gentil Pastora,
Irás a divertir-te na floresta,
Depois que teu afeto me segura,
Sustentada, Marília, no meu braço;
Que queres do que tenho ser senhora.
Ali descansarei a quente sesta,
É bom, minha Marília, é bom ser dono
Dormindo um leve sono em teu regaço:
De um rebanho, que cubra monte, e prado;
Enquanto a luta jogam os Pastores,
Porém, gentil Pastora, o teu agrado
E emparelhados correm nas campinas,
Vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono.
Toucarei teus cabelos de boninas,
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Nos troncos gravarei os teus louvores.
Na campa, rodeada de ciprestes,
Graças, Marília bela,
Lerão estas palavras os Pastores:
Graças à minha Estrela!
“Quem quiser ser feliz nos seus amores,
Depois de nos ferir a mão da morte,
Siga os exemplos, que nos deram estes.”
Ou seja neste monte, ou noutra serra,
Graças, Marília bela,
Nossos corpos terão, terão a sorte
Graças à minha Estrela!
De consumir os dois a mesma terra.
Lira II
Arqueadas sobrancelhas;
Pintam, Marília, os Poetas
A voz meiga, a vista honesta,
A um menino vendado,
E seus olhos são uns sóis.
Com uma aljava de setas,
Aqui vence Amor ao Céu,
Arco empunhado na mão;
Que no dia luminoso
Ligeiras asas nos ombros,
O Céu tem um Sol formoso,
O tenro corpo despido,
E o travesso Amor tem dois.
E de Amor, ou de Cupido
Na sua face mimosa,
São os nomes, que lhe dão.
Marília, estão misturadas
Porém eu, Marília, nego,
Purpúreas folhas de rosa,
Que assim seja Amor; pois ele
Brancas folhas de jasmim.
Nem é moço, nem é cego,
Dos rubins mais preciosos
Nem setas, nem asas tem.
Os seus beiços são formados;
Ora pois, eu vou formar-lhe
Os seus dentes delicados
Um retrato mais perfeito,
São pedaços de marfim.
Que ele já feriu meu peito;
Mal vi seu rosto perfeito
Por isso o conheço bem.
Dei logo um suspiro, e ele
Os seus compridos cabelos,
Conheceu haver-me feito
Que sobre as costas ondeiam,
Estrago no coração.
São que os de Apolo mais belos;
Punha em mim os olhos, quando
Mas de loura cor não são.
Entendia eu não olhava:
Têm a cor da negra noite;
Vendo o que via, baixava
E com o branco do rosto
A modesta vista ao chão.
Fazem, Marília, um composto
Chamei-lhe um dia formoso:
Da mais formosa união.
Ele, ouvindo os seus louvores,
Tem redonda, e lisa testa,
Com um gesto desdenhoso
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Se sorriu, e não falou.
Cobriu-se todo de pejo,
Pintei-lhe outra vez o estado,
E fugiu-me com a mão.
Em que estava esta alma posta;
Tu, Marília, agora vendo
Não me deu também resposta,
De Amor o lindo retrato,
Constrangeu-se, e suspirou.
Contigo estarás dizendo,
Conheço os sinais, e logo
Que é este o retrato teu.
Animado de esperança,
Sim, Marília, a cópia é tua,
Busco dar um desafogo
Que Cupido é Deus suposto:
Ao cansado coração.
Se há Cupido, é só teu rosto,
Pego em teus dedos nevados,
Que ele foi quem me venceu.
E querendo dar-lhe um beijo,
ÁLVARES DE AZEVEDO
Lembrança de Morrer
Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nenhuma lágrima
Em pálpebra demente.
E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro,
... Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade... é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.
Só levo uma saudade... é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!
De meu pai... de meus únicos amigos,
Pouco - bem poucos... e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.
Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!
Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.
Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta - sonhou - e amou na vida.
Sombras do vale, noites da montanha
Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!
Mas quando preludia ave d’aurora
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E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua pratear-me a lousa!
Gonçalves Dias
Canção do exílio
Minha terra tem primores,
Minha terra tem palmeiras,
Que tais não encontro eu cá;
Onde canta o Sabiá;
Em cismar –sozinho, à noite–
As aves, que aqui gorjeiam,
Mais prazer eu encontro lá;
Não gorjeiam como lá.
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Não permita Deus que eu morra,
Nossos bosques têm mais vida,
Sem que eu volte para lá;
Nossa vida mais amores.
Sem que disfrute os primores
Que não encontro por cá;
Em cismar, sozinho, à noite,
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Mais prazer eu encontro lá;
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
De Primeiros cantos (1847)
CASIMIRO DE ABREU
MEUS OITO ANOS
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
Oh! que saudades que tenho
— Respira a alma inocência
Da aurora da minha vida,
Como perfumes a flor;
Da minha infância querida
O mar é — lago sereno,
Que os anos não trazem mais!
O céu — um manto azulado,
Que amor, que sonhos, que flores,
O mundo — um sonho dourado,
Naquelas tardes fagueiras
A vida — um hino d'amor!
À sombra das bananeiras,
Que aurora, que sol, que vida,
Debaixo dos laranjais!
Que noites de melodia
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Naquela doce alegria,
Atrás das asas ligeiras
Naquele ingênuo folgar!
Das borboletas azuis!
O céu bordado d'estrelas,
Naqueles tempos ditosos
A terra de aromas cheia
Ia colher as pitangas,
As ondas beijando a areia
Trepava a tirar as mangas,
E a lua beijando o mar!
Brincava à beira do mar;
Oh! dias da minha infância!
Rezava às Ave-Marias,
Oh! meu céu de primavera!
Achava o céu sempre lindo.
Que doce a vida não era
Adormecia sorrindo
Nessa risonha manhã!
E despertava a cantar!
Em vez das mágoas de agora,
................................
Eu tinha nessas delícias
Oh! que saudades que tenho
De minha mãe as carícias
Da aurora da minha vida,
E beijos de minha irmã!
Da minha infância querida
Livre filho das montanhas,
Que os anos não trazem mais!
Eu ia bem satisfeito,
— Que amor, que sonhos, que flores,
Da camisa aberta o peito,
Naquelas tardes fagueiras
— Pés descalços, braços nus
À sombra das bananeiras
— Correndo pelas campinas
Debaixo dos laranjais!
A roda das cachoeiras,
CASTRO ALVES
Navio Negreiro
I
'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.
'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...
'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...
'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...
Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.
Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
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Pelas vagas sem fim boiando à toa!
..........................................................
Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!
Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!
Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.
II
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!
III
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus!
Que horror!
IV
O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
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Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
V
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...
Sem luz, sem ar, sem razão. . .
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...
Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.
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Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...
VI
Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!
OLAVO BILAC
A um poeta
Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha e teima, e lima , e sofre, e sua!
Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço: e trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua
Rica mas sóbria, como um templo grego
Não se mostre na fábrica o suplicio
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Do mestre. E natural, o efeito agrade
Sem lembrar os andaimes do edifício:
Porque a Beleza, gêmea da Verdade
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.
RAIMUNDO CORREIA
Anoitecer
Banzo
A Adelino Fontoura
Esbraseia o Ocidente na agonia
O sol... Aves em bandos destacados,
Por céus de oiro e de púrpura raiados
Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia...
Visões que na alma o céu do exílio incuba,
Mortais visões! Fuzila o azul infando...
Coleia, basilisco de ouro, ondeando
O Níger... Bramem leões de fulva juba...
Delineiam-se, além, da serrania
Os vértices de chama aureolados,
E em tudo, em torno, esbatem derramados
Uns tons suaves de melancolia...
Um mundo de vapores no ar flutua...
Como uma informe nódoa, avulta e cresce
A sombra à proporção que a luz recua...
A natureza apática esmaece...
Pouco a pouco, entre as árvores, a lua
Surge trêmula, trêmula... Anoitece.
Uivam chacais... Ressoa a fera tuba
Dos cafres, pelas grotas retumbando,
E a estrelada das árvores, que um bando
De paquidermes colossais derruba...
Como o guaraz nas rubras penhas dorme,
Dorme em nimbos de sangue o sol oculto...
Fuma o saibro africano incandescente...
Vai com a sombra crescendo o vulto enorme
Do baobá... E cresce na alma o vulto
De uma tristeza, imensa, imensamente...
ALPHONSUS DE GUIMARAENS
Ismália
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
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E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...
MÁRIO DE ANDRADE
Descobrimento
Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.
Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu.
VINICIUS DE MORAES
SONETO DE SEPARAÇÃO
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
(Antologia Poética)
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SONETO DE FIDELIDADE
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Vinicius de Moraes, "Antologia Poética", Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1960, pág. 96.
MANUEL BANDEIRA
POÉTICA
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
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De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
DESENCANTO
Eu faço versos como quem chora
De desalento , de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto
Meu verso é sangue , volúpia ardente
Tristeza esparsa , remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota à gota do coração.
E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca
Eu faço versos como quem morre.
Qualquer forma de amor vale a pena!!
Qualquer forma de amor vale amar!
ANDORINHA
Andorinha lá fora está dizendo:
- "Passei o dia à toa, à toa!"
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...
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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
ORION
“A primeira namorada, tão alta
que o beijo não alcançava,
o pescoço não alcançava.
nem mesmo a voz a alcançava.
Eram quilômetros de silêncio.
Luzia na janela do sobradão.”
(Carlos Drummond de Andrade. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar,
1973, p. 392.)
INSCRIÇÃO TUMULAR
O instante de corola o instante de vida
o instante de sentimento o instante de conclusão
o instante de memória
e muitos outros instantes sem razão e sem verso.
INFÂNCIA
A Abgar Renault
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras.
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
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olhando para mim:
- Psiu...Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro...que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
Carlos Drummond de Andrade
SINA
Nesta mínima cidade
os moços são disputados para ofício de marido.
Não há rapaz que não tenha
uma, duas, vinte noivas
bordando no pensamento
um enxoval de desejos,
outro enxoval de esperanças.
Depois de muito bordar
e de esperar na janela
maridos de vai-com-o-vento,
as moças, murchando o luar,
já traçam, de mãos paradas,
sobre roxas almofadas,
hirtas grades de convento.
(“Sina”. Boitempo)
JOSÉ
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
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Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse....
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
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para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?
ADÉLIA PRADO
COM LICENÇA POÉTICA
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
CLAREIRA
Seria tão bom, como já foi,
As comadres se visitarem nos domingos.
Os compadres fiquem na sala, cordiosos,
Pitando e rapando a goela. Os meninos
Farejando e mijando com os cachorros.
Houve esta vida, ou inventei?
Eu gosto de metafísica, só pra depois
Pegar meu bastidor e bordar ponto de cruz,
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Falar as falas certas: a de Lurdes casou,
A das Dores se forma, a vaca fez, aconteceu,
As santas missões vêm aí, vigiai e orai
Que a vida é breve.
Agora que o destino do mundo pende do meu palpite,
Quero um casal de compadres, molécula de sanidade,
Pra eu sobreviver.
BUCÓLICA NOSTÁLGICA
Ao entardecer no mato, a casa entre
bananeiras, pés de manjericão e cravo-santo,
aparece dourada. Dentro dela, agachados,
na porta da rua, sentados no fogão, ou aí mesmo,
rápidos como se fossem ao Êxodo, comem
feijão com arroz, taioba, ora-pro-nobis,
muitas vezes abóbora.
Depois, café na canequinha e pito.
O que um homem precisa pra falar,
entre enxada e sono: Louvado seja Deus!
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CONTOS
MACHADO DE ASSIS
CANTIGA DE ESPONSAIS
Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas
antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem que é uma missa cantada; podem
imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os
padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos
nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes,
os incensos, nada Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça
branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra com alma e devoção.
Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados.
É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele. Mestre Romão é o nome familiar; e dizer
familiar e público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. "Quem rege a missa é mestre
Romão" — equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: "Entra em cena o ator João Caetano";
— ou então: "0 ator Martinho cantará uma de suas melhores árias". Era o tempero certo, o chamariz
delicado e popular. Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar
circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra;
então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso
iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é
de José Mauríciot; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua.
Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da
luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e
aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a Rua da
Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho, pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste
momento
conversa
com
uma
vizinha.
— Mestre Romão lá vem, pai José — disse a vizinha.
- Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.
Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o
mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de
mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jucundas.
Casa sombria e nua. 0 mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes,
estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele...
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Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de
vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma
luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os
homens. Romão era destas. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e
missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta
era a causa única de tristeza de mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam
isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: - a causa da
melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia. Não é
que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe,
sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais
nada.
E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começado
três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e
três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela.
Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com inspiração. Ideou
então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pôde sair. Como um pássaro que
acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado,
assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada.
Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais. Teimou no
dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu, ele
releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar no papel a
sensação de felicidade extinta.
— Pai José — disse ele ao entrar —, sinto-me hoje adoentado.
— Sinhô comeu alguma coisa que fez mal...
— Não; já de manhã não estava bom. Vai à botica...
0 boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no dia seguinte mestre Romão não se sentia
melhor. E preciso dizer que ele padecia do coração: — moléstia grave e crônica. Pai José ficou
aterrado, quando viu que o incômodo não cedera ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o
médico.
— Para quê? - disse o mestre. — Isto passa.
0 dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal pôde dormir
duas horas. A vizinhança, apenas soube do incômodo, não quis outro motivo de palestra; os que
entretinham relações com o mestre foram visitá-lo. E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas
do tempo; um acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe
dava no gamão — outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o
final.
"Está acabado", pensava ele.
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Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso o que ele
lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras:
— Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas...
Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento. Logo que
ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado.
Releu essas notas arrancadas a custo, e não concluídas. E então teve uma idéia singular: — rematar a
obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra.
— Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão...
O princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que lhe caía bem no lugar, era a nota
derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que
dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois
casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre
Romão
sorriu
com
tristeza.
— Aqueles chegam — disse ele —, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...
Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao lá...
— Lá, lá, lá...
Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente.
Lá, dó... lá, mi... lá, si, dó, ré... ré... ré...
Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original , mas enfim
alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio,
repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros
tempos. Para completar a ilusão, deitava os olhos pela janela para o lados casadinhos. Estes
continuavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro; a diferença é que
se miravam agora, em vez de olhar para baixo: Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência,
tornava ao cravo; mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não soavam.
— Lá... lá... lá...
Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça
embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes
cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que
mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. 0 mestre ouviu-a com tristeza, abanou a
cabeça, e à noite expirou.
O texto foi extraído do livro "O alienista e outros contos", Editora Moderna - São Paulo,
1997, pág. 78.
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MISSA DO GALO
Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu
dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo,
preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.
A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras
núpcias, com uma de minhas primas A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem
quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia
tranqüilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns
passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às
dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao
teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo.
Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se,
saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em
ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez
por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas afinal, resignara-se,
acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.
Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os
esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes
lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com
as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio
rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de
ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.
Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar
em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A família
recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao
corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o
escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.
— Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de Conceição.
— Leio, D. Inácia.
Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio.
Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa
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dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D'Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco
estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer,
quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um
pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala
de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.
— Ainda não foi? perguntou ela.
— Não fui, parece que ainda não é meia-noite.
— Que paciência!
Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal
apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro
de aventuras. Fechei o livro, ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé.
Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:
— Não! qual! Acordei por acordar.
Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir;
pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma cousa em outro
espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e
mentisse para me não afligir ou aborrecer Já disse que ela era boa, muito boa.
— Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.
— Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem
medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.
— Quando ouvi os passos estranhei: mas a senhora apareceu logo.
— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.
— Justamente: é muito bonito.
— Gosta de romances?
— Gosto.
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— Já leu a Moreninha?
— Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
— Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem
lido?
Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar,
enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando
passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos
assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o
queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.
"Talvez esteja aborrecida", pensei eu.
E logo alto:
— D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...
— Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio, são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo
a noite, é capaz de não dormir de dia?
— Já tenho feito isso.
— Eu, não, perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de
passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.
— Que velha o que, D. Conceição?
Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as
atitudes tranqüilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns
passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que
trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como
quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava
algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a posição de algum objeto no
aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas idéias;
tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira
missa do galo na Corte, e não queria perdê-la.
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— É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.
— Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é
mais bonita que na roça. S. João não digo, nem Santo Antônio...
Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre
as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos
braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor.
A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a
impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia, contá-las
do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que
pensava das festas da roça e da cidade, e de outras cousas que me iam vindo à boca. Falava
emendando os assuntos, sem saber por que, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para
fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram
bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar
interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me:
— Mais baixo! mamãe pode acordar.
E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente,
não era preciso falar alto para ser ouvido: cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais;
ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou, trocou de
atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me e pude ver, a
furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e
cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho:
— Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve, se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava
no sono.
— Eu também sou assim.
— O quê? perguntou ela inclinando o corpo, para ouvir melhor.
Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti-lhe a palavra. Riu-se da coincidência;
também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.
— Há ocasiões em que sou como mamãe, acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à
toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada.
— Foi o que lhe aconteceu hoje.
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— Não, não, atalhou ela.
Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e
bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois
referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu
os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela
rnissa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra
matéria e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me:
— Mais baixo, mais baixo...
Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos,
cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para
ver rnelhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os
tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem
truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que em certa
ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados;
eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me
a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio
voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho,
que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede.
— Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.
Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava
"Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo
não me pareciam feios.
— São bonitos, disse eu.
— Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas.
Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.
— De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
— Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o
dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o
que eu penso, mas eu penso muita cousa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu
tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se
pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.
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A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que
cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal
moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções
de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de
Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos
negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram
nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.
Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os
grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.
— Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.
Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era
que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para
arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era
aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia
morrendo. Na rua, o silêncio era completo.
Chegamos a ficar por algum tempo, — não posso dizer quanto, — inteiramente calados. O rumor
único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de
sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente,
ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo! missa do galo!"
— Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é
que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.
— Já serão horas? perguntei.
— Naturalmente
— Missa do galo! — repetiram de fora, batendo.
— Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus até amanhã.
E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à
rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição
interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na
manhã seguinte, ao almoço falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a
curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse
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lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de
Janeiro em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas
nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.
A CARTOMANTE
Machado de Assis
Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a
mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869,
quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por
outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o
motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas,
disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as
cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que
não era verdade...
— Errou! Interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe
disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus
sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele
mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabêlo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou
maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muito cousa
misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante
adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e
ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos
vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco
da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e
logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo,
não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e
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ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi
andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o
estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a
repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos
Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção
de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda velha, olhando de passagem para a casa da
cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os
dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no
funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu
não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da
província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca
de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo;
falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si
que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos,
olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos,
Vilela vinte e nove e Camilo vente e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais
velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação
do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem
experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse
desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios
e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao
lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor
di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os
mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às
noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da
pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o
fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma
rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então
que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares;
mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela
primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o
homem, assim são as cousas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como uma serpente, foi-se acercando dele,
envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou
atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi
curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram
ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem
padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima
de Vilela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a
aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as
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visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão
frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram
inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de
diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a
verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que
o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais
duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas
despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas,
formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o
interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe
viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que lá aparecerem; se
alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco,
como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é
que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de
algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita
ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios
de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa
casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria
sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra,
fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da
véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado,
pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo
estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi
andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse
tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada
vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes;
podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente,
apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante
dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda peior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria
voz de Vilela. "Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas, assim, pela voz do outro,
tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A
comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo.
Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada
perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéa, vexado de si mesmo, e seguia, picando o
passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote
largo.
— Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar
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com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada
com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco
minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita
consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas,
quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada
do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo
das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições
antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que
não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de
ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu,
reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto,
fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a
voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do
drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de
um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe
uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro:
"Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?
Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e
subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu
nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a
curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três
pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali
subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma
salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes
sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de
maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um
baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não
de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com
grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as cartas e baralhou-as,
com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três
vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de
nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era
indispensável mais cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de
Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
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— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando
a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse mão da própria
sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas,
tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que
desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por
sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era
dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo.
Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque.
Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante alegre
com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua
estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras
joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e
reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também
que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o
plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavamlhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele,
a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro.
Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério
empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher,
as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao
longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com
os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que
haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a
água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa
estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e
apareceu-lhe Vilela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior.
Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e
ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
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SIMÕES LOPES NETO
NO MANANTIAL
Está vendo aquele umbu, lá embaixo, à direita do coxilhão?
Pois ali é a tapera do Mariano. Nunca vi pêssegos mais bonitos que os que amadurecem
naquele abandono; ainda hoje os marmeleiros carregam que é uma temeridade!
Mais para baixo, como umas três quadras, há uns olhos-d’água, minando as pedras, e logo
adiante uns coqueiros; depois pega um cordão de araçazeiros.
Diziam os antigos que ali encostado havia um lagoão mui fundo onde até jacaré se criava.
Eu, desde guri conheci o lagoão já tapado pelos capins, mas o lugar sempre respeitado como
um tremedal perigoso: até contavam de um mascate que aí atolou-se e sumiu-se com duas mulas
cargueiras e canastras e tudo...
Mais de uma rês magra ajudei a tirar de lá; iam à grama verde e atolavam-se logo, até a
papada.
Só cruzam ali por cima as perdizes e algum cusco leviano.
Com certeza que as raízes do pasto e dos aguapés foram trançando uma enrediça fechada, e o
barro e as folhas mortas foram-se amontoando e, pouco a pouco, capeando, fazendo a tampa do
sumidouro.
E depois nunca deram desgoto na ponta do lagoão, porque, se dessem, a água corria e não se
formaria o mundéu…
Mas, onde quero chegar: vou mostrar-lhe, lá, bem no meio do manantial, uma cousa que
vancê nunca pensou ver; é uma roseira, e sempre carregada de rosas...
Gente vivente não apanha as flores porque quem plantou a roseira foi um defunto... e era até
agouro um cristão enfeitar-se com uma rosa daquelas!...
Mas, mesmo ninguém poderia lá chegar; o manantial defende a roseira baguala: mal um firma
o pé na beirada, tudo aquilo treme e bufa e borbulha...
Uns carreteiros que acamparam na tapera do Mariano contaram que pela volta da meia-noite
viram sobre o manantial duas almas, uma, vestida de branco, outra, de mais escuro.., e ouviram uma
voz que chorava um choro mui suspirado e outra que soltava barbaridades...
Mas como era longe e eles estavam de cabelos em pé... - pois nem os cachorros acuavam, só
uivavam... uivavam... - não puderam dar uma relação mais clara do caso.
E o lugar ficou mal-assombrado.
Mas, onde quero chegar: foi assim, como lhe vou contar. Estes campos eram meio sem dono,
era uma pampa aberta, sem estrada nem divisa; apenas os trilhos do gado cruzando-se entre aguadas e
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querências.
A gadaria, não se pode dizer que era alçada: quase toda orelhana, isso sim,
Mas vivia-se bem, carne gorda sobrava, e potrada linda isso era ao cair do laço.
O Mariano apareceu aqui, diz que vindo de Cima da Sena, corrido dos bugres; uns, porque lhe
morrera a mulher da bexiga preta, outros ainda, à boca pequena, que não era por santo que ele mudara
de cancha.
Mas fosse como fosse, chegou e arranchou-se.
Trazia para o brigadeiro Machado uma carta que devia ser de gente pesada, porque o
brigadeiro tratou-o muito bem e decerto foi com o seu consentimento que ele aboletou-se aqui nos
pagos.
Tocava uma carreta de tolda, uma ponta de gado manso e uma quadrilha de ruanos.
De gente, ele, duas velhuscas, uma menina, uns pretos, campeiros e uma negra mina, chamada
mãe Tanásia.
A menina era filha dele; das velhas uma era a avó da criança, e a outra, irmã dessa, vinha a ser
tia-avó. Ele dava-se por genro da velha, mas não era: havia suspendido com a moça da casa, e depois
nunca se proporcionou ocasião de padre para fazer-se o casamento, e o tempo foi passando até que a
defunta morreu, ficando a inocente nesse paganismo de não ser filha de casal legítimo... por
sacramento. Mas davam-se bem, todos.
O paisano era trabalhador e entendido nas cousas; desde o torrão para os ranchos, e quinchar,
madeiras, cercados, lavouras, tudo passou pelas suas mãos. E tanto falquejava um linhote como
semeava uma quarta de tri¬go, e já capava um touro como amanonsiava um bagual.
Quando Maria Altina - era a menina, a filha dele - andava nos dezasseis anos, este
arranchamento era um paraíso: o arvoredo todo crescido e dando; lavouras, criação miúda, de tudo era
uma fartura; havia galpões, eira, currais, tafona.
O Mariano e as duas velhas traziam nas palminhas a pequena. Ela era o "ai-jesus!" de todos,
até dos negros.
Duma feita que a família foi ao povo, para um terço de muita fama que se rezou na casa do
brigadeiro Machado, a Maria Altina fez um fachadão entre a moçada; mas de todos ela tomou-se de
camote com um tal André, que era furriel e gauchito teso. Não entro nisto mais pelo miúdo porque não
vale a pena de falar nestes chicos pleitos de namoriscos e milongagens de crianças.
Mas segue-se é que na despedida da volta o furriel André deu-lhe uma rosa colorada, com um
pé de palmo¬.... e ela atravessou a flor no seu chapéu de palha, ali no mais, com toda a inocência, à
vista de todos.
Cá pra mim havia algum conchavo entre o brigadeiro e o Mariano, porque naquele soflagrante
da flor os dois piscaram os olhos um para o outro e riram-se à sorrelfa por debaixo do bigode.
Ah!... o furriel era afilhado e ordenança do galão-¬largo... e até diziam mais alguma cousa…
Vancê entende!...
A comitiva nessa noite pousou no caminho, e a menina deu jeito e arrumou a rosa numa botija
com água, para não murchar.
De manhãzita, marcharam; e de chegada em casa, o primeiro cuidado da pécora foi cortar a
rosa bem rente do cachimbo e plantar o galho numa terra peneirada e fresquinha.
E tais cuidados deu-lhe que a planta pegou, botando raízes firmes e espigando ramos e folhas;
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e quando vieram os primeiros botões, ela apanhou-os, fez um ramo todo cheiroso, amarrou-o com a
fita dos cabelos e foi prendê-lo no pé da cruz dum Nosso Senhor que estava na frente do oratório..,
como quem dá uma prenda, a modo de pagamento de promessa feita!...
Nesse entrementes, cousa arranjada pelo brigadeiro, o furriel pousou em casa do Mariano, de
passagem para um destacamento onde ia levar ofícios. Foi um alegrão para todos, mas para a Maria
Altina, nem se fala!...
Vancê pense... A paisaninha só teve alma e vida e coração para o moço... ele também estava
entregue, de rédea no chão.
Aquela visita trazia água no bico... era o trato de casamento.
Depois que o furriel se foi as velhas pegaram a fazer rendas de bilro e outros preparos do
aprontamento da noiva.
A roseira estava em todo o viço: recendia que era um gosto e bordava de vermelho o caniçado
da horta, que se via desde longe.
Mas, perto da pomba andava rondando o gavião.
Na Restinguinha, obra de um quarto de légua pra lá do Mariano, morava um tal Chico Triste,
que tinha filhos como rato, e o mais velho era já homem feito.
Este, que pro caso chamava-se Chicão, andava mui enrabichado pela Maria Altina.
Ele era um bruto, que só olhava, só queria a Maria Altina de carne e osso. Do mais não se lhe
dava; não queria saber se a menina era vergonhosa, ou trabalhadeira ou prendada.
Ele só olhava-me para as ancas, e os seios, e para a grossura dos braços; era, mal comparando,
como um pastor no faro de uma guincha...
A rapariga tinha-lhe quase tanto medo como raiva. Uma vez ele pediu-lhe uma muda da
roseira, e ela, sem negar, para não fazer desfeita, disse-lhe que tirasse o que quisesse.
- Mas eu quero é dada pela senhora!...
- Ah! não!… - Tire o senhor mesmo, a seu gosto...
- Não dá?... pois qualquer dia pico a facão toda essa porcaria!...
E levantou-se e saiu, todo apotrado.
Outras vezes trazia-lhe de presente ovos de perdiz, ou ninhadas de mulitas, que ela criava com
paciência e logo que podiam manter-se, largava para o campo. Uma ocasião trouxe-lhe um veadinho;
ela soltou-o; uns gatos viscachas, soltou-os também.
O Chicão que não via nunca os seus presentes, soube do caso e, por despique, apanhou uns
quantos filhotes de avestruz, e a tirões arrancou-lhes, ainda vivos, criatura! as pernas e as asas, e assim
arrebentados e estrebuchando, mandou-os à Maria Altina... a pobre desatou num pranto de choro, ao
ver a malvadez daquele judeu...
Assim estavam as cousas quando o furriel passou e logo depois correu a nova do casamento.
O Chicão espumou de raiva... Levava os cavalos a sofrenaços, os cachorros a arreador, os
irmãos a manotaços e até a mãe, com respostas duras.
Só respeitava o pai, o velho Chico, e assim mesmo porque este tinha marca na paleta, mas não
era tambeiro...
No dia véspera da barbaridade, houve na casa do Chico Triste um batizado feito por um padre
missioneiro que ia de caminho; a gente do Mariano foi convidada. Nessa noite comeram doces,
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tocaram viola, cantaram e até dançaram uma tirana e o anu.
Aí o Chicão cargoseou muito a Maria Altina.
A jantarola e o resto do festo iam ser no dia seguinte, que foi o do caso.
Vancê acredita?... Nesta manhã, desde cedo, os pica-paus choraram muito nas tronqueiras do
curral e nos palanques... e até furando no oitão da casa;... mais de um cachorro cavoucou o chão,
embaixo das carretas;… e a Maria Altina achou no quarto, entre a parede e a cabeceira da cama, uma
borboleta preta, das grandes, que ninguém tinha visto entrar...
Sol nado, o Mariano e uma das velhas foram para o riste, para dar um ajutório. Os campeiros,
como de costume, para os seus serviços, uns de campo, outros lenhar.
Na casa só ficaram, para irem mais tarde, a Maria Altina e a outra velha, que era a avó; e para
as duas, debaixo do umbu, dois mancarrões encilhados.
Ficou também a negra mina, que viu tudo e foi quem fez o conto.
A avó estava na cozinha frigindo uns beijus e a Maria Altina na varanda, apenas em saia,
arrematava um timãozinho novo.
Na cabeça, como gostava, trazia uma rosa fresca, e que ficava-lhe sempre a preceito no
negrume da cabeleira. E garganteava umas coplas que tinha aprendido na véspera, quando dançava a
tirana e se divertia. Umas coplas que eram assim… e me lembro, porque quem as botou para uma
outra foi mesmo este seu criado Matias!...
Quem canta pra tu ouvires...
E nem acabou o verso, porque estourou na cozinha um esconjuro e logo a voz da avó, sumida
e arroucada, gritando: bandido! bandido! - e depois um gemido ansiado, uns ais… e um baque surdo...
De pé, com o timãozinho numa mão e a agulha na outra, pálida como a cal da parede, o
coração parado, Maria Altina pregada no chão, de puro medo, ouviu... ouviu…, e aí no mais entrou e
veio a ela o Chicão..., o Chicão, entende vancê? - com uns olhos de bicho acuado, e um bafo de fogo
na boca...
E como chegou, atropelou-a, agarrou-a, apertou-a, abraçando-a pela cintura, metendo a perna
entre as dela, forcejando por derrubá-la, respirando duro, furioso, desembestado... mais mordendo que
beijando o pescoço amorenado... e garboso...
A rapariga gritou, empurrando-o num desespero, arranhando-lhe a cara, ladeando o corpo...
por fim atacou-lhe os dentes num braço.
Ele urrou com a dor e largou-a um momento; ela aproveitou o alce e disparou..., ele quis
pegá-la de novo, mas no mover-se enredou as esporas no timãozinho que caíra, e testavilhou
maneado…
A pobre, ao passar pela cozinha viu a avó estendida, com as roupas enrodilhadas, a cabeça
branca numa sangueira... e então desatinada, num pavor, correu para o umbu e foi o quanto pulou a
cavalo e já tocou, a toda, coxilha abaixo!...
Mas, logo, logo, mesmo sem se voltar, sentiu-se quase alcançada pelo Chicão, que também
montara e se lhe vinha em perseguição...
E os dois, à que te pego! à que te largo! se despencaram por aquele lançante, em direitura ao
manantial! E, ou por querer atalhar, ou porque perdesse a cabeça ou nem se lembrasse do perigo, a
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Maria Altina encostou o rebenque no matungo que, do lance que trazia costa abaixo, se foi, feito, ao
tremedal, onde se afundou até as orelhas e começou a patalear, num desespero!…
A campeirinha varejada no arranco, sumiu-se logo na fervura preta do lodaçal remexido a
patadas!... E como rastro, ficou em cima, boiando, a rosa do penteado.
E da mesma carreira, o cavalo do Chicão, que também vinha tocado à espora e relho,
chapulhou no pantanal, um pouco atrás do outro, cousa de braça e meia... e ali ficou, o corpo todo
sumido, procurando agüentar as ventas, as orelhas fora da água.
O Chicão, agora deslombando-se em esforços para sair da enrascada, não podia, porque bem
sentia as esporas enleadas nas raízes, e os cabrestilhos eram fortes…. - e parecia-lhe que tinha um pé
quebrado por uma patada do cavalo, que se despedaçava aos arrancos, sentindo-se chupado para o
fundo...
Depois desse estropício, tudo ficou como estava: tudo no sossego, o sol subindo sempre,
nuvens brancas correndo no céu, passarinhos cruzando para um lado e outro… os galos cantando lá
em cima… uns latidos, muito longe… pios de perdiz… algum inhé de sapo ali perto…
Parecia que nada se havia dado: se não fosse a rosa colorada boiando, lá, e o Chicão atolado
até o peito, mais pra cá.
O cavalo dele, com a cabeça alinhada, mal podia agüentar fora da água o focinho e
ressolhava, o pobre, puxando a respiração em assobios grossos, e o dono, todo salpicado de barro,
suava em cordas, cada vez mais ansiado, não podendo desprender-se das malditas esporas, que o
sujeitavam em cima do bagual, que ia se afundando… afundando… afundando… E a cada sacudida
feita naquele reduto todo o manantial bufava e borbulhava…
Com pouco mais o Chicão desceu ainda, atolado até os sovacos; o cavalo já se não via e nem
bulia, sufocado e morto, pesando entregue no mole do tremedal…
E as esporas… as malditas esporas, nem nada!…
Obrigado pela postura em que estava, ele olhava para o buraco que tinha engolido a Maria
Altina: sobre a água barrenta, escura, nadavam folhas secas, capins pisoteados, gravetos... e no meio
deles, limpa e fresca, boiava a rosa que se soltara dos cabelos da cobiçada no momento em que ela
entrava pela morte a dentro, dentro do lodaçal...
E o tempo foi passando, a tranqüito, sem pressa nem vagar.
Vancê lembra-se? ...
Como eu disse, havia ficado em casa, além das brancas, a tia mina, a mãe Tanásia que,
quando sentiu a desgraceira, ganhou no paiol, escondendo-se e daí pode bombear alguma cousa.
Quando viu as criaturas montarem e tocarem, como caça e caçador, a mãe Tanásia saiu da toca e
voltou à cozinha, dando com a nhanhã… morta, e logo viu que a sinhazinha fugira. E pensou em ir ao
Chico Triste, avisar o Mariano. O mais perto era ir pelos olhos-d’água, acima do manantial; desceu o
caminho; costeou pelas pedras e quando dobrava a estradinha frenteou com o Chicão...
A mãe Tanásia ficou estatelada…, e daí a pedaço em que olhou só, sem pensar nada foi que a
coitada falou.
- Eh! eh!… siô moço!… que é que suncê fez!...
E o desalmado gritou-lhe:
- Vai, bruaca velha, vai contar!...
- Ah! ah!... Deus perdoe!...
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E foi andando, estradinha afora, lomba acima, apurando o passo, um pouco renga.
Nesse meio tempo também chegavam à casa os campeiros; era hora de comer; repararam que
só estava amarrado um cavalo; a casa aberta, silenciosa; um espiou pela janela da cozinha…, e gritou
pelos outros, benzendo-se...
Lá estava a senhora, com a cabeça arrebentada a olho de machado…, o fogo apagado, a banha
coalhada, os beijus frios…, e mui a seu gosto, de papo para o ar, dormindo na saia da morta, uma gata
brasina e a sua ninhada.
Chamaram pela mãe Tanásia... gritaram... procuraram... e nada! Um deles, mais alarife,
propôs que fugissem... que era melhor ser carambola do que ser estaqueado... que por certo iam acusálos daquela maldade.
Porém outro mais precatado disse:
- Cala a boca, parceiro... Vamos é avisar sinhô velho...
E ficando uns de guarda, tocaram-se os outros, a meia rédea, para o Triste, onde, fulos de
medo, desovaram a novidade.
Que canhonaço, amigo! A gentama toda se alvorotou; o que era de mulheres abriu num
alarido, o que era homem apresilhou as armas, e já se saiu, muitos de em pêlo, cobrindo a marca dos
fletes, o Mariano na frente, como um louco.
Eu estava nessa arrancada. Chegamos como um pé-de-vento e conforme boleamos a perna,
vimos o mesmo que os negros contavam. E da Maria Altina, nada; da mãe Tanásia, nada. Apenas no
chão da varanda novelos desparramados, a mesa arredada, o timãozinho novo com um rasgão grande...
Nisto, um aspa-torta, gaúcho mui andado no mundo e mitrado, puxou-me pela manga da
japona e disse-me entre dentes:
O Chicão repontava a rapariga;… ele não estava em casa, nem veio conosco; ela não está…
Patrício... que lhe parece?…
Hom!... respondi eu, e fiquei-me com aquele zunido de varejeira no ouvido...
Mas o paisano tinha o estômago frio e foi passando língua;... daí a pouco todos faziam as
mesmas contas, até que um, mais golpeado, disse-o claro, ao Mariano!
O homem relanceou os olhos a ver talvez se descobria o Chicão... depois teve a modo uns
engulhos e depois ficou como entecado...
Pensaria mesmo que a filha tinha fugido com o querendão?... Quem sabe lá!... Que o rapaz
rondava, isso ele e todos sabiam e que ela não fazia caso do derreti¬mento, isso também se sabia:
agora, como dum momento para o outro os dois se tinham combinado, isso é que era!...
Mas ao mesmo tempo perguntava-se — quem matou a velha e por quê?...
E quando estávamos neste balanço ouvimos então a gritaria das mulheres, que tinham vindo
de a pé, encontrando no caminho a mãe Tanásia.
Em antes de chegarem, já os cuscos, ponteiros, tinham começado a acuar, por debaixo dos
araçazeiros; as crianças, curiosas e mais ligeiras, tinham corrido pensando ser algum bicho… e
recuaram assustadas, fazendo cara-volta, umas chorando, outras sem fala, apenas apontando para o
manantial...
E quando a ranchada das damas chegou perto e viu… viu o Chicão atolado; o Chicão atolado,
e logo adiante, no barro revolvido, a rosa cobrada boiando; a rosa boiando, porque a moça estava no
fundo, afogada, porque... porque... por causa do Chicão?... por me¬do dele, que queria abusar dela?...
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quando as senhoras-donas, todas caladas, viram aquele condenado, e uma, mais animosa, gritou-lhe cachorro desavergonhado! - foi que a mãe dele, jungindo as lágrimas para não saltarem, perguntou:
- Chicão, meu filho, que é isto?...
- Atolado…. as esporas;… um laço!...
- Filho!... que desgraça! E a Maria Altina?...
- Aí!… embaixo da rosa...
Foi neste ponto que rompeu o alarido, os choros, os chamados que ouvimos lá em cima, nas
casas, e descemos logo. O Mariano vinha com os olhos raiados de sangue e batendo os dentes, como
porco queixada...
E quando paramos todos e vimos o jeito daquele rufião maldito, ainda um lembrou, alto:
- Vamos laçar o homem, e puxar cá pra fora!...
O Mariano porém, gritou:
- Espera!... e voltando-se para o atolado, indagou:
- Por que mataste a velha?...
- Não!
- Viste a Maria Altina?
- Não!
- Que esburacado é esse, aí na tua frente?
- Não sei!
- E aquela rosa... também não sabes?...
- Pois sei, sim! É dela... e a velha, também, fui eu... e agora?...
- Vou rebentar-te a cabeça...
- Arrebenta! Se não fossem as esporas!...
Então o Mariano sacou a pistola do cinto e trovejou... e errou! Secundou o tiro e a bala
quebrou o ombro do Chicão, que deu um urro e estorceu-se todo; quis firmar-se, porém o braço são
afundava-se no barro, acamando os capins já machucados; com esses tirões e arrancos o manantial
todo tremia e bufava, borbulhando...
O Mariano amartilhou a outra pistola; o Chicão berrou de lá:
- Mata! Eu não pude!... mas o furriel também não há-de!...
Mas nisto a mãe dele abraçou-se nos joelhos do Mariano, e o padre missioneiro levantou a
cruzinha do rosário, meteu o Nosso Senhor Crucificado na boca do cano da pistola... e o Mariano foi
baixando o braço... baixando, e calado varejou a arma para o lameiro...; mas de repente, como um
parelheiro largado de tronco, saltou pra diante e de vereda atirou-se no manantial... e meio de pé, meio
de gatinhas, caindo, bracejando, afundando-se, surdindo, todo ele numa plasta de barro reluzente,
alcançou o Chicão, e - por certo - firmando-se no corpo do cavalo morto, botou-se ao desgraçado, com
as duas mãos escorrendo lodo apertou-lhe o gasganete… e foi calcando, espremendo, empurrando para
trás…, para trás... até que num - vá! - aqueles abraçados escorregaram, cortou o ar uma perna, um pé
do Chicão, - livre da espora - e tudo sumiu-se na fervura que gorgolejou logo por cima!...
Imagine vancê, aquilo passando-se ali pertinho a meio laço de distância e ninguém podendo
remediar…
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Houve só uma palavra em todas as bocas; Jesus, Senhor!...
O manantial borbulhava por todas as costuras... Se fosse água limpa... Credo!...
D’espacito... d’espacito... o missionário foi estendendo o braço, como esperando que as almas
subissem... depois riscou uma cruz larga, na claridade do dia; e ajoelhando-se na beira daquela cova
balofa, de três defuntos de razão de morrer tão diferente e de morte tão a mesma, começou a rezar.
E logo no derredor a gentama também se foi arrodilhando... e todos com os olhos firmados no
manantial, e todos de mãos postas, todos empeçaram um - Salve-Rainha - que foi alteando e subindo
no descampado, tão penaroso, tão sentido, tão do coração, que até parece que amansou os próprios
bichos, porque, entrementes, nem um cachorro latiu, nem passarinho piou, nem cavalo se mexeu!...
Nas paradas da reza só se ouvia os soluços da mãe do Chicão e um leve guasqueio do vento
nas talas dos jerivás.
Acabada a devoção e marchando como uma procissão, fomos para a casa levando a outra
velhinha, a irmã da que lá estava, de cabeça esmigalhada. Velamos o corpo e na manhã seguinte
fizemos-lhe o enterro, também lá embaixo, na costa do manantial.
O missioneiro benzeu, e então fincamos uma cruz morruda, de cambará, para vigia às almas
dos quatro mortos.
Depois, cada qual tomou seu rumo.
Anos depois passei por aqui: cortava a alma olhar para o arranchamento. Os negros tinham
tomado a alforria por sua mão, e se foram a la cria!... Ficaram as duas mulheres, a mãe Tanásia e a sua
senhora velha, que, por caridade, o brigadeiro Machado mandou buscar pra casa dele.
O arranchamento ficou abandonado; e foi chovendo dentro; desabou um canto de parede; caiu
uma porta, os cachorros gaudérios já dormiam lá dentro. Debaixo dos caibros havia ninhos de
morcegos e no copiar pousavam as corujas; os ventos derrubaram os galpões, os andantes queimaram
as cercas, o gado fez paradeiro na quinta. O arranchamento alegre e farto foi desaparecendo… o feitio
da mão de gente foi-se gastando, tudo foi minguando; as carquejas e as embiras invadiram; o gravatá
lastrou; só o umbu foi guapeando, mas abichornado, como viúvo que se deu bem em casado...; foi
ficando tape¬ra... a tapera... que é sempre um lugar tristonho onde parece que a gente vê gente que
nunca viu… onde parece que até as árvores perguntam a quem chega: - onde está quem me plantou?...
onde está quem me plantou?... - Olhe! Veja vancê: ali embaixo... hem? ‘Stá vendo?... aqueles
coqueiros, o matinho de araçás?
Pois é ali o manantial, que virou sepultura naquele dia brabo em que desde manhã tanto
agouro apareceu, de desgraça: os pica-paus chorando... os cachorros cavoucando... a bruxa preta
entrada sem ninguém ver...
Sempre dói na alma, mexer nestas lembranças. E há quem não acredite!...
A cruz… onde já foi!... mas a roseira baguala, lá está! Roseira que nasceu do talo da rosa que
ficou boiando no lodaçal no dia daquele cardume de estropícios…
Vancê está vendo bem, agora?
Pois é... coloreando, sempre! Até parece que as raízes, lá no fundo do manantial, estão ainda
bebendo sangue vivo no coração da Maria Altina...
Vancê quer, paramos um nadinha. Com isto damos um alcezito aos mancarrões, e eu...
desaperto o coração!…
Ah! saudade!...
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MONTEIRO LOBATO
NEGRINHA
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos
ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da
cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de
crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar
certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de
balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o
tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e
da moral”, dizia o reverendo.
Ótima, a dona Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos,
não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim,
mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:
— Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a
boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões
de desespero.
— Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem
pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos
quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos
grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra
provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às
soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num
desvão da porta.
— Sentadinha aí, e bico, hein?
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.
— Braços cruzados, já, diabo!
Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio
batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo
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abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro,
feliz um instante.
Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.
Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo,
coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo,
cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo
houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se
logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista.
Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os
dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a
mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era
mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta...
A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora
senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca
se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia!
“Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de
relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”...
O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava
Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:
— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada
com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a
concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões:
do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A
esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo,
flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!
Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para
desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.
Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um
pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe
um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.
— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa.
Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.
— Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a
rufar as saias.
— Traga um ovo.
Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na
prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera
criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo
chegou a ponto, a boa senhora chamou:
— Venha cá!
Negrinha aproximou-se.
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— Abra a boca!
Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou
da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos
amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas
só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:
— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?
E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que
chegava.
— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária
— mas que trabalheira me dá!
— A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre.
— Sim, mas cansa...
— Quem dá aos pobres empresta a Deus.
A boa senhora suspirou resignadamente.
— Inda é o que vale...
Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas,
lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.
Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu
— alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente
para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo
tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo
mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e
veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.
Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos
ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”?
Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimento novo que se
vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.
— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.
— Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo,
vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem
por aí afora.
— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa
martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.
Chegaram as malas e logo:
— Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.
Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.
Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa
assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que
falava “mamã”... que dormia...
Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse
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brinquedo.
Mas compreendeu que era uma criança artificial.
— É feita?... — perguntou, extasiada.
E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a
arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura
de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.
As meninas admiraram-se daquilo.
— Nunca viu boneca?
— Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?
Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
— Como é boba! — disseram. — E você como se chama?
— Negrinha.
As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava,
disseram, apresentando-lhe a boneca:
— Pegue!
Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus!
Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria
para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente...
era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo
adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia
entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena.
Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força
irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi
mulher. Apiedou-se.
Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a
imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor
assomaram-lhe aos olhos.
Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas
palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:
— Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera
antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.
Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E
para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o
momento da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está
extinta a mulher.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão!
Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de
luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia
impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!
Assim foi — e essa consciência a matou.
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Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao
ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.
Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de
coração, amenizava-lhe a vida.
Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto
que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.
Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno,
envenenara-a.
Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão
boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação.
Desabrochara-se de alma.
Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto,
ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de
anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por
aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.
Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num
disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.
Mas, imóvel, sem rufar as asas.
Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...
E tudo se esvaiu em trevas.
Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma
miséria, trinta quilos mal pesados...
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das
meninas ricas.
— “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”
Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.
— “Como era boa para um cocre!...”
BUCÓLICA
Tanta chuva ontem!... O cedrão do pasto fendido pelo raio - e hoje, que manhã! A natureza
orvalhada tem a frescura de uma criancinha ao deixar o banho. Inda há rolos de cerração vadia nas
grotas. O sol já nado e ela com tanta preguiça de recolher os véus de neblina... A vegetação toda a
pingar orvalho, bisbilhante de gotas que caem e tremelicam, sorri como em êxtase. Há em cada
vergôntea folhinhas de esmeralda tenra brotadas durante a noite. A mão de quem passa não resiste:
colhe-as de alcance, porque é um gosto mordiscar-lhe a polpa macia.
Meu Deus! O que vai de aranhóis pela relva - nos galhinhos de joveva, nas flechas de capim, grandes e
pequeninos, todos mimosos de desenho, tecidos a fio de seda...
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Compraz-se a noite em agrumar neles milhões de diamantezinhos que a luz da manhã irisa.
Malmequeres por toda a parte - amarelos, brancos. E tanta flor sem nome...
- Flor à-toa, diz a gente roceira.
São, coitadinhas, a plebe humílima. A nobreza floral mora nos jardins, esplendendo cores de dança
serpentina sob formas luxuriosas de odaliscas. A duquesa Dália, sua majestade a Rosa, o samurai
Crisântemo - que fidalguia! Bem longe estão destas aqui, azuleguinhas, um pouco maiores do que uma
conta de rosário.
Não obstante, vejo nestas mais alma. Leio mil coisas na sua modéstia. Lutaram sem tréguas contra o
solo tramado de raízes concorrentes, contra as lagartas, contra os bichos que pastam. Que tenacidade,
que prodígio de economia não representam estas iscas de pétalas, e o perfume agreste que as oloriza, e
a cor - tentativa de azul - com que se enfeitam, as feiticeirinhas! São belas, sim - da sua beleza, a
beleza selvática das coisas que jamais sofreram a domesticação do homem.
As flores de jardim: escravas de harém... Adubo farto, terra livre, tutores para a haste, cuidados mil cuidados do homem para com a rês na ceva... As agrestes morrem livres no hastil materno; as fidalgas,
na guilhotina da tesoura. Fábula do lobo e do cão...
Que ar! A gente das cidades, afeita a sorver um indecoroso gás feito de pó em suspensão num misto de
mau azoto e pior oxigênio, ignora o prazer sadio que é sentir os pulmões borbulhantes deste fluido
vital em estado de virgindade. O oxigênio fresquinho foi elaborado naquele momento pela vegetação
viçosa. Respirá-lo é sorver vida à nascente.
Ali, o rio. Ingazeiros desgalhados pendem sobre ele as franças, cujas pontas lhe arrepiam o espelho
das águas.
Caem na corrente flores mortas. O movediço esquife condulas com mimo até a barulhenta corredeira
próxima; lá irritado, amarfanha-as, fá-las pedaços - e as coitadinhas viram babugem.
Margeia o rio a estrada, ora d'ocre amarelo, ora roxoterra; aqui, túnel sob a verdura picada no alto de
nesgões de luz; além, escampa. Nos barrancos há tocos de raízes decepadas pelo enxadão e covas de
formigueiros mortos onde as corruíras armam ninho.
Surgem casebres de palha.
Lá na aguada bate roupa uma mulher.
Rumor no mato... Sai dele, de lenha ao ombro, uma cabocla.
- Sirinh'Ana, bom dia! Que é do Luiz? - No eito, coitado.
- Sarou bem? - Chê que esperança! Melhorzinho. Panarício é uma festa!... Baitacas em bando,
bulhentas, a sumirem-se num capão d'anjico. Borboletas amarelas nos úmidos. Parece um debulho de
flores de ipê.
Uma preá que corta o caminho.
- Pega, Vinagre! Outra casinha, lá longe. E a toca do Urunduva, caboclo maleiteiro. Este diabo tem no
sítio a coisa mais bela da zona - a paineira grande. Dirijo-me para lá. Um carreirinho entre roças, a
pinguela, um valo a saltar... Ei-la! Que maravilha! Derreada de flores cor-de-rosa, parece uma só
imensa rosa crespa. Beija-flores como ali ninguém jamais viu tantos. Milheiros não digo - mas
centenas, uma centena pelo menos lá está zunindo. Chegam de longe todas as manhãs enquanto dura a
festa floral da paineira mãe. Voejam rápidos como o pensamento, ora librados no ar, sugando uma
corola, ora riscando curvas velocíssimas, em trabalhos de amor.
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Que lindo amor - alado, rutilante de pedrarias! Respiro um ar cheiroso, adocicado, e fico-me em
enlevo a ver as flores que caem regirantes. Se afia mais forte a brisa, despegam-se em bando e
recamam o chão. Devem ser assim as árvores do país das fadas...
O Urunduva? É ele mesmo. Amarelo, inchado a arrastar a perna...
- Então, meu velho, na mesma? - Melhorzinho. A quina sempre é remédio.
- Isso mesmo, quina, quina.
- É... mas está cara, patrão! Um vidrinho assim, três cruzados. Estou vendo que tenho de vender a
paineira.
- Não vê que o Chico Bastião dá dezoito mil réis por ela - e inda um capadinho de choro. Como este
ano carregou demais, vem paina p'r'arrobas. Ele quer aproveitar; derruba o...
Derruba!...
- Derruba e...
- Por que não colhe a paina com vara, homem de Deus? - Não vê que é mais fácil de derrubar...
- Derruba!...
Fujo dali com este horrível som a azoinar-me a cabeça.
Aquela maleita ambulante é "dona" da árvore. O Urunduva está classificado no gênero "Homo". Goza
de direitos. É rei da criação e dizem que feito à imagem e semelhança de Deus.
Roças de milho. A terra calcinada, com as cinzas escorridas pelo aguaceiro da véspera, inça-se de
tocos carbonizados, e árvores enegrecidas até meia altura, e paulama em carvão. Entremeio, covas de
milho já espontando folhinhas tenras.
- Derruba!...
Adiante, feijão. O terreno varrido, cor de sépia, pontilhado pelo verde das plantas recém-vindas,
lembra chita de velha: as velhas gostam de chitas escuras com pintas verdes.
É aqui o sítio da Maria Veva. Tem ruim fama esta mulher papuda. Má até ali, dizem.
O marido - coitado - um bobo que anda pelo cabresto - Pedro Suã. Ganhou este apelido desde o
célebre dia em que a mulher o surrou com um suã de porco. Lá vem ele, de espingardinha...
- Vai caçar? - Antes fosse. Vou cuidar do enterro.
- Enterro?...
- Pois morreu lá a menina, a Anica.
- Pobrezinha! De quê? - A gente sabe? Morreu de morte...
Estúpido! Sem querer, dirijo-me para a casa dele. Não gosto da Veva. É horrenda, beiço rachado, olhar
mau - e aquele papo! - Então, Nhá, morreu a menina? Soube-o inda agora pelo Suã...
- É.
Que resposta seca! - E de que morreu? - Deus é que sabe.
Peste! E como a atrevidaça me olha duro! Sinto-me mal em sua presença.
- Adeus, Sicorax! Para alguma coisa sirva a literatura...
Arrepio caminho, entristecido. A manhã vai alta, já crua de luz. O sol, estúpido; o azul, de irritar. Que
é dos aranhóis? Sumiram-se com o orvalho que os visibiliza. Estão agora invisíveis, a apanhar
insetinhos incautos que Nhá Veva Aranha devora. A paisagem perdeu o encanto da frescura e da
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bruma. Está um lugar comum. Não vejo flores nem pássaros. O excesso de luz dilui as flores, o calor
esconde as aves. Só um caracará resiste ao mormaço, empoleirado num tronco seco de peroba. Está de
tocaia aos pintos do Urunduva, o rapinante.
Um vulto... É mulher... Será a Inácia? Vem de trouxa à cabeça. É ela mesma, a preta agregada aos
Suãs.
- Então, rapariga? - Ai, seu moço, vou-me embora. Alguém há de ter dó da velha. Na casa da peste
papuda, nem mais um dia! Antes morrer de fome...
- Que coisa houve? - Não sabe que morreu a aleijadinha? Pois é, morreu.
Morreu, a pobre, só porque ontem esta sua negra foi no bairro do Libório e a chuva me prendeu lá. Se
eu pudesse adivinhar...
- Mas de que morreu a menina, criatura? - Sabe do que morreu? Morreu... de sede! Morreu, sim, eu
juro, um raio me parta pelo meio se a coitadinha não morreu...
Aqui soluços de choro cortaram-lhe a voz.
- ... de seeeede! Meu Deus do céu, o que a gente não vê neste mundo! A menina era entrevada e a mãe,
má como a irara. Dizia sempre: Pestinha, por que não morre? Boca à-toa, a comer, a comer. Estica o
cambito, diabo! Isto dizia a mãe - mãe, hein? A Inácia, entretanto, morava lá só para zelar da
aleijadinha. Era quem a vestia, e a lavava, e arrumava o pratinho daquele passarico enfermo. Sete anos
assim. Excelente negra! - Coisa de três dias 'garrou uma doencinha, dor de cabeça, febre. Dei chá de
hortelã; nada. Dei cidreira; nada.
Sempre a quentura da febre. Disse comigo: "Vou lá no bairro e trago uma dose." Fui, é longinho, três
quartos de légua. O curador me deu a dose, mas quem disse de poder voltar? Uma chuvarada... Pousei
no Libório. Hoje, manhãzinha, vim.
Entrei alegre, pensando: a coitadinha vai sarar. Eu que pisei na alcova, dou com a menina espichada na
esteira, fria. Anica! Anica! Quando vi bem que estava morta de verdade, ah, seu moço, berrei como
nunca na minha vida.
- "Nhá Veva, de que jeito morreu Anica, conte, conte!" Nhá Veva quieta, repuxando a boca. Uma
pedra! Caí em cima da menina, beijei, chorei. Nisto, uma cutucada era o Zico, aquele negrinho, sabe?
Olhei p'ra ele: fez jeito de me falar longe da taturana. Lá fora me contou tudo. A menina, des'que eu saí
piorou. Mas quietinha sempre. Noite alta, gemeu.
- "Cala a boca, peste!", gritou do outro quarto a mãe - mãe, veja! - "Quero água, nhá mãe." - "Cala a
boca, peste!" A menina calou. Mais tarde gemeu outra vez, baixinho.
- "Quero água! Quero água!" Ninguém se mexeu.
- "E tu, negrinho safado, por que não acudiu a menina?" - "Não vê! Eu conheço Nhá Veva!..." Seu
Pedro, aquele trapo, esse estava na pinga de todo dia. Ninguém na casa para chegar uma caneca d'água
à boca da doentinha. Ela, um chorinho ainda; depois, mais nada. De manhã...
Lágrimas escorriam a fio pela cara da preta e soluços de dor cortavam-lhe as palavras.
- De manhã foram encontrar a menina morta na cozinha, rente ao pote d'água. Arrastou-se até lá, o
anjinho que nem se mexer na cama podia - e morreu de sede diante da água!...
- Quem sabe se...
- Não bebeu, não! O pote, em cima da caixa, ficava alto, e a caneca estava tal e qual no lugarzinho do
costume.
Não bebeu, não! Morreu de sede, o anjo! Enxugou as lágrimas na manga.
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- Agora vou no Libório. Se ele me quiser, fico. Se não, sou bem capaz de me pinchar nesse rio. Este
mundo não paga a pena...
Sol a pino. Desânimo, lassidão infinita...
O mata-pau
Píncaros arriba e pirambeiras abaixo, a serra do Palmital escurece de mataria virgem, sombria e úmida,
tramada de taquaruçus, afestoada de taquaris, com grandes árvores velhas de cujos galhos pendem
cipós e escorrem barbas-depau e musgos..
Quem sobe da várzea, depois de transpostas as capoeiras da raiz, ao emboscar-se de chofre no frio
túnel vegetal que é ali a estrada, inevitavelmente espirra. E se é homem das cidades, pouco afeito aos
aspectos bravios do sertão, depois do espirro abre a boca, pasmado da paulama. Extasia-se ante a
graciosa copa dos samambaiuçus, ante as borboletas azuis, ante as orquídeas, os liquens, tudo.
Sofrea o animal sem o sentir mas não pára. Vai parar diante, na Volta Fria, onde um broto d'água
gelada, a fluir entremeio às pedras, o tenta a sorver um gole aparado em folha de caeté. Bebida a água,
e dito que nas cidades não há daquilo, leva-lhe a vista o soberbo mata-pau que domina o grotão.
- Que raio de árvore é esta? - pergunta ele ao capataz, pasmado mais uma vez.
E tem razão de parar, admirar e perguntar, porque é duvidoso existir naquelas sertanias exemplar mais
truculento da árvore assassina.
Eu, de mim, confesso, fiz as três coisas. O camarada respondeu à terceira; - Não vê que é um matapau.
- E que vem a ser o mata-pau? - Não vê que é uma árvore que mata outra. Começa, quer ver como? disse ele escabichando as frondes com o olhar agudo em procura dum exemplar típico. Está ali um! Onde? - perguntei, tonto.
- Aquele fiapinho de planta, ali no gancho daquele cedro - continuou o cicerone, apontando com dedo
e beiço uma parasita mesquinha grudada na forquilha de um galho, com dois filamentos escorridos
para o solo. - Começa assinzinho, meia dúzia de folhas piquiras; bota p'ra baixo esse fio de barbante na
tenção de pegar a terra. E vai indo, sempre naquilo, nem p'ra mais nem p'ra menos, até que o fio
alcança o chão. E vai então o fio vira raiz e pega a beber a sustância da terra. A parasita cria fôlego e
cresce que nem embaúva. O barbantinho engrossa todo dia, passa a cordel, passa a corda, passa a pau
de caibro e acaba virando tronco de árvore e matando a mãe, como este guampudo aqui - concluiu,
dando com o cabo do relho no meu mata-pau.
- Com efeito! - exclamei admirado. - E a árvore deixa? - Que é que há de fazer? Não desconfia de
nada, a boba. Quando vê no seu galho uma isca de quatro folhinhas, imagina que é parasita e não se
precata. O fio, pensa que é cipó. Só quando o malvado ganha alento e garra de engrossar, é que a
árvore sente a dor dos apertos na casca.
Mas é tarde. O poderoso daí por diante é o mata-pau. A árvore morre e deixa dentro dele a lenha
podre.
Era aquilo mesmo! O lenho gordo e viçoso da planta facinorosa envolvia um tronco morto, a desfazerse em carcoma. Viam-se por ele arriba, intervalados, os terríveis cíngulos estranguladores; inúteis
agora, desempenhada já a
missão constritora, jaziam frouxos e atrofiados.
Imaginação envenenada pela literatura, pensei logo nas serpentes de Laocoonte, na víbora aquecida no
seio do homem da fábula, nas filhas do rei Lear, em todas as figuras clássicas da ingratidão. Pensei e
calei, tanto o meu companheiro era criatura simples, pura dos vícios mentais que os livros inoculam.
Encavalgamos de novo e partimos.
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Não longe dali a serra complana-se em rechã e a mata mingua em capoeira rala, no meio da qual, em
terreiro descoivarado, entremostra-se uma tapera. Esverdece o melão-de-são-caetano por sobre o
derruído tapume do quintalejo, onde laranjeiras com erva-de-passarinho e uma ou outra planta
doméstica marasmam agoniadas pelo mato sufocante.
- Antigo sítio do Elesbão do Queixo d'Anta, explicou o camarada.
- Largado? - perguntei.
- Há que anos! Des'que mataram o homem ficou assim.
Bacorejou-me história como as quero.
- Mataram-no? Conte lá isso como foi.
O camarada contou a história que para aqui traslado com a possível fidelidade. O melhor dela
evaporou-se, a frescura, o correntio, a ingenuidade de um caso narrado por quem nunca aprendeu a
colocação dos pronomes e por isso mesmo narra melhor que quantos por aí sorvem literaturas inteiras,
e gramáticas, na ânsia de adquirir o estilo. Grandes folhetinistas andam por este mundo de Deus
perdidos na gente do campo, ingramaticalíssima, porém pitoresca no dizer como ninguém.
Elesbão morava com o pai no Queixo d'Anta, onde nascera. Quando a puberdade lhe engrossou a voz,
disse ao velho: - Meu pai, quero casar.
O pai olhou para o filho pensativamente; em seguida falou: - Passarinho cria pena é para voar. Se você
já é homem, case.
O rapaz pediu-lhe que pusesse em prova a sua virilidade.
O pai refletiu e disse: - Derrube o jataí da grotinha, sem tomar fôlego.
Elesbão afiou o machado, arregaçou as mangas e feriu o pau. Em toada de compasso, bateu firme a
manhã inteira.
À hora do almoço, o pan pan continuava sem esmorecimento. Só quando o sol aprumou no pino é que
a madeira gemeu o primeiro estalido.
- Está no chão - disse o pai, que se acercara do filho exausto mas vitorioso. - Pode casar. É homem.
Elesbão trazia d'olho uma menina das redondezas, filha do balaieiro João Poca, a Rosinha, bilro
sapiroquento de treze anos, feiosa como um rastolho.
- Meu pai, eu quero a Rosinha Poca.
- Case. Mas ouça o que digo. Os Pocas não são boa gente. Os machos ainda servem - o João é um
coitado, o Pedro não é má bisca; mas as saias nunca valeram nada. A mãe da Rosa é falada. Laranjeira
azeda não dá laranja-lima.
Você pense.
- Meu pai, o futuro é de Deus. Eu quero casar com a Rosinha.
- Pois case.
Deliberado com tal firmeza, Elesbão tratou de sitiar-se.
Arrendou a rechã da tapera, roçou, derrubou, queimou, plantou, armou a choça. Barreadas que foram
as paredes, pediu a menina e casou-se.
Rosa só o era no nome. No corpo, simples botão inverniço, desses que melam aos frios extemporâneos
de maio.
Olhos cozidos e nariz arrebitado, tal qual a mãe. Feia, mas da feiúra que o tempo às vezes conserta.
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Talvez se fiasse nisso o noivo.
Elesbão, rijo no trabalho, prosperou. Aos três anos de labuta era já sitiante de monjolo, escaroçador e
cevadeira, (1) com dois agregados no eito.
Prole, até esse tempo nenhuma; e isso entristecia a casa.
Mas resignavam-se já ao vazio da esterilidade quando certa noite soou choro de criança no terreiro.
Não se conta o terror de ambos - aquilo era na certa alma penada de criança morta pagã. Como,
entretanto, a pobre alma berrasse com pulmões muito da terra, e cada vez mais, Elesbão duvidou do
bruxedo e, acendendo uma braçada de palha, lançou-a fora pela janela. O terreiro clareou até longe e
eles viram, a pouca distância, uma criaturinha de gatas a berrar com desespero de quem é
absolutamente deste mundo.
- E não é que é uma criança de verdade? - exclamou ele, saído de um assombro e entrado noutro. - E
agora? - Pois é recolhê-la, disse Rosa, cujo instinto de mulher só via no caso um pobre enjeitadinho ao
léu, a reclamar conchego.
Recolheu-o Elesbão, depondo o chorincas no colo da esposa. Rosa o estreitou ao seio, acalmando-o,
ao mesmo tempo que "assentava" o marido.
- Se não aparecer a mãe, cria-se o aparecido. Faz tanta falta um chorinho por aqui...
No dia seguinte bateram nas vizinhanças em indagações, sem nada colherem explicativo do estranho
caso. Resolveram, pois, adotar o pequeno.
o pai de Elesbão, consultado, ponderou: - Não presta criar filho alheio.
Mas como o consulente armasse cara de vacilação, remendou logo a sua filosofia: - Também não é
caridade enjeitar um enjeitado - e ficou-se nisso.
Rosa conservou o pequeno e deu com ele criado à força de leite de cabra e caldinhos.
À medida, porém, que medrava, o menino punha a nu a má índole congenial. Não prometia boa coisa,
não.
- Eu avisei, recordou o velho, como Elesbão se queixasse um dia da ruim casta do recolhido.
- Meu pai disse também que não era caridade enjeitar um enjeitado...
- É verdade, é verdade... - confirmou o filósofo de péno-chão, e calou-se.
Manuel Aparecido era o nome do rapazinho. Como tivesse olhos gateados e cabelos louros de milho,
denunciadores de origem estrangeira, puseram-lhe os vizinhos a alcunha de Ruço.
Ganhou fama de madraço, e o era perfeito, inimigo de enxada e foice, só atento a negociatas,
barganhas, espertezas. Amado pela Rosa como filho, livrava-o ela da sanha do esposo escondendo suas
malandragens, porque Elesbão vivia ameaçando endireitá-lo a rabo de tatu.
Não endireitou coisa nenhuma. Com dezoito anos era o Ruço a peste do bairro, atarantador
dos pacíficos e traiçoeiro para com os escoradores.
- É ruim inteirado! - dizia o povo.
Por esse tempo navegava Rosa na casa dos trinta anos.
Como a não estragaram filhos, nem se estragou ela em grosseiros trabalhos de roça, valia muito mais
do que em menina. O tempo curou-lhe a sapiroca, e deu-lhe carnes a boa vida. De tal forma consertou
que todo o mundo gabava o arranjo.
- Ninguém perca a esperança. Olhem a mulher do Elesbão, aquela Poquinha sapiroquenta, como está
chibante!...
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A sua boniteza residia na saúde dos olhos e na gordura.
Na roça, gordura é sinônimo de beleza - gordura e "olhos azuis que nem uma conta"...
Além disso, Rosinha cuidava de si. Virou faceira. Sempre limpa, vestida de boas chitas da sua cor,
cabelos bem alisados para trás, torcidos em pericote lustroso à força de pomada de lima, não havia na
serra pimpona assim nem moça de fazenda com pai coronel.
Suas relações com o Ruço, maternais até ali, principiaram a mudar de rumo, como quer que espigasse
em homem o menino. Por fim degeneraram em namoro - medroso no começo, descarado ao cabo. A
má casta das Pocas, desmentida no decurso da primavera, reafirmava-se em plena sazão calmosa. O
verão das Pocas! Que forno...
Tudo transpira. Transpirou nas redondezas a feia maromba daqueles amores. Boas línguas, e más,
boquejavam o quase incesto.
Quem de nada nunca suspeitou foi o honradíssimo Elesbão; e como na porta dos seus ouvidos
paravam os rumores do mundo, a vida das três criaturas corria-lhes na toada mansa a que se dá o nome
de felicidade.
Foi quando caiu de cama o pai de Elesbão, doente de velhice.
Mandou chamar o filho e falou-lhe com voz de quem está com o pé na cova: - Meu filho, abra os olhos
com a Poca...
- Por que fala assim, meu pai? O velho ouvira o zunzum da má vida; vacilava, entretanto, em abrir os
olhos ao empulhado. Correu a mão trêmula pela cabeça do filho, afagou-a e morreu sem mais palavra.
Sempre fora amigo de reticências, o bom velho.
Elesbão regressou ao sítio com aquele aviso a verrumarlhe os miolos. Passou dias de cara amarrada,
acastelando hipóteses.
Vendo o marido assim demudado, casmurro, de prazenteiro que era, Rosa caiu em guarda.
Chamou de banda o Ruço e disse-lhe: - Lesbão, des'que morreu o pai, anda amode que ervado. Mas
não é sentimento, não. Ele desconfia... As vezes pega de olhar para mim dum jeito esquisito, que até
me gela o coração...
Manuel segurou o queixo e refletiu. Continuar naquela vida era arriscado. Ir-se, pior; nada possuía de
seu e trabalhar para outrem não era com ele. Se Elesbão morresse...
Não se sabe se houve concerto entre os amásios. Mas Elesbão morreu. E como! Certa vez, de volta da
vila próxima ali pelo escurecer, caiu de borco na Volta Fria, barbaramente foiçado na nuca.
Descobriram-lhe o cadáver pela manhã, bem rente ao mata-pau.
A justiça, coitadinha, apalpou daqui e dali, numa cegueira... Desconfiou do Ruço - mas cadê provas?
Era o Ruço mais fino que o delegado, o promotor, o juiz - mais até que o vigário da vila, um padre
gozador da fama de enxergar através das paredes...
A viúva chorou como mamoeiro lanhado - fosse de sentimento, de remorso ou para iludir aos outros.
Talvez sem cálculo nenhum pelos três motivos.
Manuel permaneceu na casa. Viviam como filho e mãe, dizia ela; como marido e mulher, resmungava
o povo.
O sítio, porém, entrou logo a desmedrar. Comiam do plantado, sem lembrança de meter na
terra novas sementes.
O moço ambicionava vender as benfeitorias para mergulhar no Oeste, e como Rosa relutasse deu de
maltratá-la.
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Estes amores serôdios são como a vide: mais judiam deles, mais reviçam. Às brutalidades do
Ruço respondia a viúva com redobros de carinho. Seu peito maduro, onde o estio no fim anunciava o
inverno próximo, chamejava em fogo bravo, desses que roncam nas retranças dos taquaruçuzais. E
isso vingava Elesbão, esse amor sem jeito, sem conta, sem medida, duas vezes criminoso sobre
sacrílego e, o que era pior, aborrecido pelo facínora, já farto.
- Coroca! Sapicuá de defunto! Cangalha velha! Não havia insulto com o pião do veneno plantado na
nota da velhice que lhe não desfechasse, o monstro.
Rosa depereceu a galope. Adeus, gordura! Boniteza outoniça, adeus! Saias a ruflar tesas de goma,
pericote luzidio recendente a lima, quando mais? - O Ruço dá cabo dela, como deu cabo do marido - e
é bem-feito.
Voz do povo...
Um dia o Ruço ameaçou de largá-la, se não vendesse tudo, já e já; e a pobre mulher deu ao
bandido essa derradeira prova de amor. Vendeu por uma bagatela o que restava acumulado pelo
esforço do defunto - a moenda, o monjolo, a casa, o canavial em soca. E combinaram para o outro dia
o ambicionado mergulho na terra roxa.
Nessa noite Rosa despertou sufocada por violenta fumaceira. A casa ardia. Saltou como louca
da enxerga e berrou pelo Ruço.
MÁRIO DE ANDRADE
O PERU DE NATAL
O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes,
foi de conseqüências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes,
nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem
graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser
desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos
faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma
estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase
dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.
Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já
estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter
sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto
mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que
resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada
pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho
que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.
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Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das
minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra
o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma
reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia
Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada
de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de "louco".
"É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da
parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se
convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa
fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me
deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de
que não posso me queixar um nada.
Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai,
castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto
discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a
gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas "loucuras":
— Bom, no Natal, quero comer peru.
Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que
morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.
— Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa
vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo...
— Meu filho, não fale assim...
— Pois falo, pronto!
E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de
bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido,
coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas
mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha
aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de
parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces.
Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces
e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que
não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos,
no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no
arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade
ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.
Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas
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farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado
só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como
aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita,
mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do
Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que
com meus "gostos", já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente
francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.
Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de
fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam
imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra
cima de mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas
desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:
— É louco mesmo!...
Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu
o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:assim que me lembrara de que finalmente ia fazer
mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar
minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos
dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda
disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento
aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que
sempre
a
tinham
entorpecido
numa
quase
pobreza
sem
razão.
— Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!
Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de
comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo.
Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo,
amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa
de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do
peru
ficou
inteiramente
reduzido
a
fatias
amplas.
— Eu que sirvo!
"É louco, mesmo" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os
grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto
mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da "casca", cheio de
gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço
angustiado
com
que
todos
aspiravam
pela
sua
parte
no
peru:
— Se lembre de seus manos, Juca!
Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga
maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia
sofrer!
O
prato
ficou
sublime.
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— Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!
Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo
percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que
jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo
muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e
chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível.
É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua
figura
cinzenta,
vinha
pra
sempre
estragar
nosso
Natal,
fiquei
danado.
Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um
tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando
ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante
dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma
incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno
do
Jesusinho
nascido.
Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na
luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos,
muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa,
insuportavelmente
obstruidora.
— Só falta seu pai...
Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta
entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou
hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei
aparentemente
o
partido
de
meu
pai.
Fingi,
triste:
— É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai
lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós
todos reunidos em família.
E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e
virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai
fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca
poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável,
uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação
suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.
Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever «felicidade gustativa», mas não
era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros
parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no
recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo,
mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou
exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.
Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah,
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que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!
A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois vieram umas uvas leves e
uns doces, que lá na minha terra levam o nome de "bem-casados". Mas nem mesmo este nome
perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa,
em culto puro de contemplação.
Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos
iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a
Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti,
falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazêla sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...
LYGIA FAGUNDES TELLES
ANTES DO BAILE VERDE
Da coletânea Antes do baile verde
O Rancho Azul e Branco desfilava com seus passistas vestidos à Luís XV e sua portaestandarte de peruca prateada em forma de pirâmide, os cachos desabados na testa, a cauda do vestido
de cetim arrastando-se enxovalhada pelo asfalto. O negro do bumbo fez uma profunda reverência
diante das duas mulheres, debruçadas na janela e prosseguiu com seu chapéu de três bicos, fazendo
flutuar a capa encharcada de suor.
– Ele gostou de você – disse a jovem, voltando-se para a mulher que ainda aplaudia. – O cumprimento
foi na sua direção, viu que chique?
A preta deu uma risadinha.
– Meu homem é mil vezes mais bonito, pelo menos na minha opinião. E já deve estar chegando, ficou
de me pegar às dez na esquina. Se me atraso, ele começa a encher a caveira e pronto, não sai mais
nada.
A jovem tomou-a pelo braço e arrastou-a até a mesa de cabeceira. O quarto estava revolvido como se
um ladrão tivesse passado por ali e despejado caixas e gavetas.
– Estou atrasadíssima, Lu! Essa fantasia é fogo... Tenha paciência, mas você vai me ajudar um
pouquinho.
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– Mas você ainda não acabou?
Sentando-se na cama, a jovem abriu sobre os joelhos o saiote verde. Usava biquíni e meias rendadas
também verdes.
– Acabei o que, falta pregar tudo isso ainda, olha aí... Fui inventar um raio de pierrete dificílima!
A preta aproximou-se, alisando com as mãos o quimono de seda brilhante. Espetado na carapinha
trazia um crisântemo de papel-crepom vermelho. Sentou-se ao lado da moça.
– O Raimundo já deve estar chegando, ele fica uma onça se me atraso. A gente vai ver os ranchos, hoje
quero ver todos.
– Tem tempo, sossega – atalhou a jovem. Afastou os cabelos que lhe caíam nos olhos. Levantou o
abajur que tombou na mesinha. – Não sei como fui me atrasar desse jeito.
– Mas não posso perder o desfile, viu, Tatisa? Tudo, menos perder o desfile!
– E quem está dizendo que você vai perder?
A mulher enfiou o dedo no pote de cola e baixou-se de leve nas lantejoulas do pires. Em seguida,
levou o dedo até o saiote e ali deixou as lantejoulas formando uma constelação desordenada. Colheu
uma lantejoula que escapara e delicadamente tocou com ela na cola. Depositou-a no saiote, fixando-a
com pequenos movimentos circulares.
– Mas se tiver que pregar as lantejoulas em todo o saiote...
– Já começou a queixação? Achei que dava tempo e agora não posso largar a coisa pela metade, vê se
entende! Você ajudando vai num instante, já me pintei, olha aí, que tal minha cara? Você nem disse
nada, sua bruxa! Hein?... Que tal?
A mulher sorriu.
– Ficou bonito, Tatisa. Com o cabelo assim verde, você está parecendo uma alcachofra, tão gozado.
Não gosto é desse verde na unha, fica esquisito.
Num movimento brusco, a jovem levantou a cabeça para respirar melhor. Passou o dorso da mão na
face afogueada.
– Mas as unhas é que dão a nota, sua tonta. É um baile verde, as fantasias têm que ser verdes, tudo
verde. Mas não precisa ficar me olhando, vamos, não pare, pode falar, mas vá trabalhando. Falta mais
da metade, Lu!
– Estou sem óculos, não enxergo direito sem os óculos.
– Não faz mal – disse a jovem, limpando no lençol o excesso de cola que lhe escorreu pelo dedo. – Vá
grudando de qualquer jeito que lá dentro ninguém vai reparar, vai ter gente à beca. O que está me
endoidando é este calor, não agüento mais, tenho a impressão de que estou me derretendo, você não
sente? Calor bárbaro!
A mulher tentou prender o crisântemo que resvalara para o pescoço. Franziu a testa e baixou o tom de
voz.
– Estive lá.
– E daí?
– Ele está morrendo.
Um carro passou na rua, buzinando freneticamente. Alguns meninos puseram-se a cantar aos gritos, o
compasso marcado pelas batidas numa frigideira: A coroa do rei não é de ouro nem de prata...
– Parece que estou num forno – gemeu a jovem, dilatando as narinas porejadas de suor. –Se soubesse,
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teria inventado uma fantasia mais leve.
– Mais leve do que isso? Você está quase nua, Tatisa. Eu ia com a minha havaiana, mas só porque
aparece um pedaço da coxa o Raimundo implica. Imagine você então...
Com a ponta da unha, Tatisa colheu uma lantejoula que se enredara na renda da meia. Deixou-a cair na
pequena constelação que ia armando na barra do saiote e ficou raspando pensativamente um pingo
ressequido de cola que lhe caíra no joelho. Vagava o olhar pelos objetos, sem fixar-se em nenhum.
Falou num tom sombrio:
– Você acha, Lu?
– Acha o quê?
– Que ele está morrendo?
– Ah, está sim. Conheço bem isso, já vi um monte de gente morrer, agora já sei como é. Ele não passa
desta noite.
– Mas você já se enganou uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que estava nas últimas... E no dia
seguinte ele já pedia leite, radiante.
– Radiante? – espantou-se a empregada. Fechou num muxoxo os lábios pintados de vermelho-violeta.
– E depois, eu não disse não senhora que ele ia morrer, eu disse que ele estava ruim, foi o que eu disse.
Mas hoje é diferente, Tatisa. Espiei da porta, nem precisei entrar para ver que ele está morrendo.
– Mas quando fui lá ele estava dormindo tal calmo, Lu.
– Aquilo não é sono. É outra coisa.
Afastando bruscamente o saiote aberto nos joelhos, a jovem levantou-se. Foi até a mesa, pegou a
garrafa de uísque e procurou um copo em meio da desordem dos frascos e caixas. Achou-o debaixo da
esponja de arminho. Soprou o fundo cheio de pó-de-arroz e bebeu em largos goles, apertando os
maxilares. Respirou de boca aberta. Dirigiu-se à preta.
– Quer?
– Tomei muita cerveja, se mistura dá ânsia.
A jovem despejou mais uísque no copo.
– Minha pintura não está derretendo? Veja se o verde dos olhos não borrou... Nunca transpirei tanto,
sinto o sangue ferver.
– Você está bebendo demais. E nessa correria... Também não sei por que essa invenção de saiote
bordado, as lantejoulas vão se desgrudar todas no aperto. E o pior é que não posso caprichar, com o
pensamento no Raimundo lá na esquina...
– Você é chata, não, Lu? Mil vezes fica repetindo a mesma coisa, taque-taque-taque-taque! Esse cara
não pode esperar um pouco?
A mulher não respondeu. Ouvia com expressão deliciada a música de um bloco que passava já
longínquo. Cantarolou em falsete: Acabou chorando... acabou chorando...
– No outro carnaval entrei num bloco de sujos e me diverti à grande. Meu sapato até desmanchou de
tanto que dancei.
– E eu na cama, podre de gripe, lembra? Neste quero me esbaldar.
– E seu pai?
Lentamente a jovem foi limpando no lenço as pontas dos dedos esbranquiçados de cola. Tomou um
gole de uísque. Voltou a afundar o dedo no pote.
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– Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer? Quer que eu cubra a cabeça com
cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está querendo? – Ficou olhando para a ponta do
dedo coberto de lantejoulas. Foi deixando no saiote o dedal cintilante. – Que é que eu posso fazer?
Não sou Deus, sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu?
– Não estou dizendo que você é culpada, Tatisa. Não tenho nada com isso, ele é seu pai, não meu. Faça
o que bem entender.
– Mas você começa a dizer que ele está morrendo!
– Pois está mesmo.
– Está nada! Também espiei, ele está dormindo, ninguém morre dormindo daquele jeito.
– Então não está.
A jovem foi até a janela e ofereceu a face ao céu roxo. Na calçada, um bando de meninos brincava
com bisnagas de plástico em formato de banana, esguichando água um na cara do outro.
Interromperam a brincadeira para vaiar um homem que passou vestido de mulher, pisando para fora
nos sapatos de saltos altíssimos. “Minha lindura, vem comigo, minha lindura!” – gritou o moleque
maior, correndo atrás do homem. Ela assistia à cena com indiferença. Puxou com força as meias presas
aos elásticos do biquíni.
– Estou transpirando feito um cavalo. Juro que, se não tivesse me pintado, metia-me agora num
chuveiro, besteira a gente se pintar antes.
– E eu não agüento mais de sede – resmungou a empregada, arregaçando as mangas do quimono. – Ai!
uma cerveja bem geladinha. Gosto mesmo é de cerveja, mas o Raimundo prefere cachaça. No ano
passado, ele ficou de porre os três dias, fui sozinha no desfile. Tinha um carro que foi o mais bonito de
todos, representava um mar. Você precisava ver aquele monte de sereias enroladas em pérolas. Tinha
pescador, tinha pirata, tinha polvo, tinha tudo! Bem lá em cima, dentro de uma concha abrindo e
fechando a rainha do mar coberta de jóias...
–Você já se enganou uma vez – atalhou a jovem. – Ele não pode estar morrendo, não pode. Também
estive lá antes de você, ele estava dormindo tão sossegado. E hoje cedo até me reconheceu, ficou me
olhando, me olhando e depois sorriu. Você está bem, papai?, perguntei e ele não respondeu, mas vi que
entendeu perfeitamente o que eu disse.
– Ele se fez de forte, coitado.
– De forte, como?
– Sabe que você tem os seu baile, não quer atrapalhar.
– Ih, como é difícil conversar com gente ignorante – explodiu a jovem, atirando no chão as roupas
amontoadas na cama. Revistou os bolsos de uma calça comprida. – Você pegou meu cigarro?
– Tenho minha marca, não preciso dos seus.
– Escuta, Luzinha, escuta – começou ela, ajeitando a flor na carapinha da mulher. – Eu não estou
inventando, tenho certeza de que ainda hoje cedo ele me reconheceu. Acho que nessa hora sentiu
alguma dor, porque uma lágrima foi escorrendo daquele lado paralisado. Nunca vi ele chorar daquele
lado, nunca. Chorou só daquele lado, uma lágrima tão escura...
– Ele estava se despedindo.
– Lá vem você de novo, merda! Pare de bancar o corvo, até parece que você quer que seja hoje. Por
que tem que repetir isso, por quê?
– Você mesma pergunta e não quer que eu responda. Não vou mentir, Tatisa.
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A jovem espiou debaixo da cama. Puxou um pé de sapato. Agachou-se mais, roçando os cabelos
verdes no chão. Levantou-se, olhou em redor. E foi-se ajoelhando devagarinho diante da preta.
Apanhou o pote de cola.
– E se você desse um pulo lá só para ver?
– Mas você quer ou não que eu acabe isto? – a mulher gemeu exasperada, abrindo e fechando os dedos
ressequidos de cola. – O Raimundo tem ódio de esperar, hoje ainda apanho!
A jovem levantou-se. Fungou, andando rápida num andar de bicho na jaula. Chutou um sapato que
encontrou no caminho.
– Aquele médico miserável. Tudo culpa daquela bicha. Eu bem que disse que não podia ficar com ele
aqui em casa, eu disse que não sei tratar de doente, não tenho jeito, não posso! Se você fosse boazinha,
você me ajudava, mas você não passa de uma egoísta, uma chata que não quer saber de nada. Sua
egoísta!
-Mas, Tatisa, ele não é meu pai, não tenho nada com isso, até que tenho ajudado muito, sim senhora,
como não? Todos esses meses quem é que tem agüentado o tranco? Não me queixo, porque ele é
muito bom, coitado. Mas tenha a santa paciência, hoje não! Até que estou fazendo muito aqui plantada
quando devia estar na rua.
Com um gesto fatigado, a jovem abriu a porta do armário. Olhou-se no espelho. Beliscou a cintura.
(...).
JOÃO GUIMARÃES ROSA
FAMIGERADO
Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava
em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.
Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta,
equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo.
Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo. Sei o que é
influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto
pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.
Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada.
Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso,
que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar
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onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos
dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que,
o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer
fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade.
Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes.
Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do
bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance.
Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância
em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.
Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a
descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei:
respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendose calma; a fala de gente de mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada
alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de
repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:
"Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."
Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziuse, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior
valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O
chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se:
estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que
usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito
pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar,
na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas
tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para
cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem
a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.
— "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra..."
Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de
carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se
serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de
mim a palmo! Continuava:
— "Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz
meio estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não
estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado..."
Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava
com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as
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feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia
esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.
O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos,
inseqüentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as
mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me
iludir, ele enigmava: E, pá:
— "Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... fazmegerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?
Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu,
imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria
que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito
intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele
se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?
— "Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra
mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..."
Se sério, se era. Transiu-se-me.
— "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que
aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o
padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me
faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
— Famigerado?
— "Sim senhor..." — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de
foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. —
Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por
socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
— "Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho..."
Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.
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— Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável"...
— "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É
caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?"
— Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...
— "Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"
— Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito...
— "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"
Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
— Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser
famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!...
— "Ah, bem!..." — soltou, exultante.
Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se,
outro. Satisfez aqueles três: — "Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição..."
— e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse:
— "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!" Seja que de novo, por um mero,
se torvava? Disse: — "Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora,
sei não..." Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — "A gente tem cada cisma de dúvida
boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca..." Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra
vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o
trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.
APELO
Dalton Trevisan
Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti
falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom
ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
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Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de
jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o
canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite
eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.
Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade,
Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na
camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora,
conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.
RUBEM FONSECA
PASSEIO NOTURNO I
Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas,
contratos. Minha mulher via as letras e números, eu esperava apenas. Você não pára de trabalhar,
aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha
mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar? A copeira servia à francesa, meus
filhos tinham crescido, eu e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela
estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha
me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tinhamos conta bancária conjunta.
Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que
graça você acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que
ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu. Os carros
dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu. Tirei os carros dos
dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a
porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques salientes do
meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei
a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô
aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade
que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei
numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não
fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre
acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse
menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de
papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia
árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de
perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o
som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das
duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo
os dois ossos, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das
árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem
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quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia
ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio. Examinei o
carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca.
Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas. A família
estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada
no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um
dia terrível na companhia.
(CONTOS REUNIDOS, São Paulo, Cia. das Letras, 1ª edição)
DALTON TREVISAN
BALADA DAS MOCINHAS DO PASSEIO
Balada das Mocinhas do Passeio
quem são elas
em tão grande número
de onde vêm?
de que subterrâneos porões cavernas?
são os derrelitos do Dilúvio Universal?
você chega corre parte
mas não as mocinhas do Passeio Público
não chegam nem parte
estão sempre lá
incansáveis caminham
pra cá pra lá
sempre estiveram
pra lá pra cá
estarão para sempre
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minissaias coxas varicosas
foto na hora
botinhas altas de sola furada
algodão-doce pipoca
boquinhas em coração de carmim
antes ventosas de medusas vulgívagas
psiu! oi tesão! vamo?
atração maior do Passeio
não é a gaiola do mico-leão-dourado
o aquário do peixe-elétrico
as cobras catatônicas o iguana pré-histórico
o pelicano papudo de asas entrevadas
tipo o albatroz no barquinho de Baudelaire
não é o viveiro de aves canoras
epa! Um casal intruso de arapongas
desde quando a-ra-pon-ga trina e gorjeia?
o espetáculo do Passeio
não são as araras bêbadas aos berros
nem o velho cedro florido de garças-brancas
a grande festa do Passeio
são as mocinhas pra cá pra lá
na ronda sempiterna do amor
uma só delas
vale um circo inteiro em desfile
com a anãzinha das piruetas no cavalo pimpão
a engolidora de espada de fogo
a elefanta graciosa no chapeuzinho de flores
a trapezista do duplo salto mortal
sem rede!
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discutem gentilmente o preço
uma rapidinha quanto é?
como se vendem fácil
as damas peripatéticas do Passeio Público
ao sol ao frio à chuva ao granizo
com fome com febre com tosse
estão sempre lá
à caça dos clientes furtivos
mais duradouras
que o carvalho e o plátano seculares
lá estão sempre
as famosas mocinhas do Passeio
nem tão mocinhas
são trágicas são doentes são tristes
quem pode querer tais centopeias do horror
como esperar que alguém as cobice
derradeiros objetos do desejo?
medonhas aberrações teratológicas
galinhas de duas cabeças
treponemas pálidas
íbis sagradas de carapinha negra
aracnídeas hotentotes
gárgulas banguelas gargalhantes?
aí é que se engana
são desejadas sim cobiçadas sim disputadas sim
essas últimas mulheres da Terra
não fossem elas
o que seria dos últimos homens da Terra?
esses hominhos desesperados
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sempre com sede com febre com tosse
sobretudo famélicos de um naco de carne
arre danação maldita da carne
urra salvação da carne da vida
são feiticeiras Circes
das verdes águas podres do Rio Belém?
são górgonas grotescas?
pudera com tais clientes
mequetrefes bandalhos escrotos
que não fazem amor
estripam curram vampirizam
são elas blasfêmia abominação escândalo
dos falsos profetas
das mil igrejas de Curitiba
veros cafetões do dízimo?
elas são na verdade o sal da terra
são irmãs de caridade
são madonas aidéticas
são santinhas do Menino Jesus
onde tocam saram os carbúnculos malignos
não as despreze nem condene
doces ninfetas putativas do Passeio
mais fácil uma delas
passar pelo buraco da agulha
que eu e você entrarmos no Reino do Céu
ó bravas piranhas guerreiras
elas serão as sobreviventes
à sétima trombeta do Juízo Final
ao dragão e à besta do Apocalipse
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no dia seguinte ao Armagedom
restarão na Terra
as baratas e elas
você chega corre passa
elas não passarão
pra cá pra lá
psiu! oi tesão! vamo?
pra lá pra cá
para todo o sempre
as minhas as tuas as nossas
putinhas imortais do Passeio Público.
(Dalton Trevisan. Poema retirado do livro Rita Ritinha Ritona.)
LUIZ VILELA (FALTA)
Rua da amargura
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