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Associativismo civil e saúde: uma revisão de literatura Zeno Carlos Tesser Jr. Luana do Rocio Taborda Márcia Inês Schaefer Douglas F. Kovaleski Resumo: Este estudo aborda uma revisão da literatura sobre o sobre o conceito de associativismo, buscando relacionar suas correntes e concepções com o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Pretende trazer subsídios para compreender como as investidas neoliberais tem prejudicado, ao longo dos últimos anos, o fortalecimento do SUS. Foram investigados 58 textos nas bases de dados Scielo e BVS utilizando os termos “associativismo” e “associativismo e saúde”. Para analisar as associações relatadas nos textos encontrados, buscamos agrupá-las em 13 categorias: desportivo/cultural, cultura política, gênero, instituições participativas, migrações, políticas públicas, empresarial/patronal, juvenil, negro, rural, religioso/voluntario, profissional e de redes. As principais características do SUS são apresentadas, tecendo considerações sobre a sua articulação com a democracia, sociedade civil e associativismo. Discutem-se as implicações que as características encontradas na produção escrita sobre o tema indicam para as políticas sociais e para o SUS. Palavras-chave: Associativismo, Saúde Pública, Capital Social, Sociedade Civil, Democracia associativa. Introdução O Sistema Único de Saúde (SUS) constitui o modelo de ações públicas e serviços de saúde no Brasil. Formulado para no sentido da "saúde como direito de todos e dever do Estado", conforme inscrito na Constituição Federal de 1988 (artigo 196). Foi implantado no início da década de 1990, após a promulgação da Lei Orgânica da Saúde (lei n. 8.080 de19 de setembro de 1990, complementada pela lei n. 8.142, de 28 de dezembro 1990). A lei 8.080 no Art. 2 coloca que "a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício". É importante ressaltar que a saúde é entendida, nessa lei, no seu conceito ampliado. Isso significa dizer que, no Brasil, os níveis de saúde devem se expressar conforme a organização social e econômica do País, sendo influenciada por determinantes e condicionantes, como, "a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio 1 ambiente, o trabalho, a atividade física, o transporte, o lazer, e acesso a bens de serviço". As ações em saúde devem ainda garantir condições de bem-estar físico, mental e social às pessoas e à coletividade. Na década de 1970, enquanto o Brasil estava sob o Regime Militar, vários setores da sociedade começaram a se organizar para fazer críticas ao modelo de saúde vigente. Mas foi a partir de 1985, engajados com o movimento de redemocratização, que esses grupos formados por setores acadêmicos e da sociedade civil ganharam força e, reunidos em 1986 na VIII Conferência Nacional de Saúde, chegaram ao consenso de que era necessária uma mudança jurídico-institucional nas políticas de saúde que adotasse um novo conceito de saúde (MENICUCCI, 2014). Ainda nessa Conferência, a saúde passou a ser entendida como um direito social, tendo que ser garantida pelo Estado por meio de condições dignas de vida, sendo direito do cidadão o acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde (BRASIL, 1986). Com vistas a uma tentativa de organização de um sistema de saúde menos excludente, evidencia-se a necessidade de intensificar o movimento de mobilização popular a fim de incluir a saúde como uma questão prioritária nas políticas públicas, o que caracterizou o Movimento da Reforma Sanitária (BRASIL, 1986). Particularmente, a Lei nº 8.142/90 dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS, preconizando as Conferências e os Conselhos de Saúde (BRASIL, 1990). Essas instâncias de atuação garantem três ideias principais: 1) controle social; 2) gestão participativa; 3) democratização (por meio da ruptura com padrões tradicionais de comportamento político da sociedade brasileira) (NORONHA, 2008). Entretanto, o que temos assistido nos 26 anos de regulamentação do SUS é que há uma enorme diferença entre o SUS legal e o SUS real. Aquele momento político da redemocratização, vivido pelos brasileiros, marcado pela queda do regime militar e instauração de uma constituição cidadã, era extremamente fértil para os movimentos sociais de esquerda. Essa atmosfera profícua para o pensamento crítico, no entanto, foi duramente interrompida por seguidos governos neoliberais que espremeram o espaço de organização popular. Essa contextualização ligeira ajuda-nos a entender por onde vão os descaminhos da implantação do SUS, projeto de Saúde Coletiva que tinha como uma de 2 suas propostas primeiras, a moratória da dívida externa brasileira (Relatório da VIII Conferência Nacional de Saúde, 1986). Logicamente, a consolidação de um Sistema Único de Saúde provido de capacidade para atender a todos (universal), em todas as suas necessidades (integral) e equitativo (atento para a diminuição das iniquidades em saúde), não é uma tarefa cartorial que se realiza a partir de um ato burocrático ou jurídico. Para tal transformação nos padrões do serviço público de saúde é necessária intensa mobilização social, embate político e uma ampla disputa ideológica. No intuito de pensar politicamente a organização coletiva da sociedade, este estudo propõe-se a apresentar brevemente a teoria do associativismo como perspectiva abrangente de olhar para as formas de organização comunitária e ação coletiva, para posteriormente fazer uma revisão de literatura sobre o tema do associativismo na sua relação com a saúde e as políticas públicas. Associativismo enquanto conceito: Práticas e Definições As ações coletivas são um fenômeno social que se expressa de distintas formas, nos diversificados contextos sociais, sendo observada sua existência em todas as sociedades. O estudo acerca do associativismo não é recente, havendo diversas percepções em torno de sua definição conceitual, finalidades e efeitos na sociedade. No campo da Sociologia Política, uma pluralidade de pensadores sociais já problematizaram (e continuam problematizando) o associativismo civil e seus efeitos, podendo serem positivos ou negativos para o desenvolvimento da democracia. Há uma dificuldade na definição da categoria teórica de associativismo, uma vez que o campo associativo é bastante amplo e heterogêneo, com dissidências entre teóricos quanto ao que consideram como associações. Lüchmann (2015) aponta estas distinções segundo as diferentes perspectivas teóricas: A teoria do capital social de Putnam (1995; 1996), por exemplo, e seguindo uma tradição tocquevilleana, contempla, majoritariamente, as associações “face-a-face”, ou as associações secundárias, a exemplo de clubes de futebol, corais, grupos de escoteiros, associações comunitárias, etc. Teóricos da democracia associativa como Cohen e Rogers (1995) privilegiam, em sua análise, as grandes associações – sindicatos, federações, etc. – que representam amplos setores sociais e mobilizam estruturas e recursos que extrapolam a dimensão local. No caso dos estudos sobre os movimentos sociais, o foco recai 3 para aqueles grupos e associações que contestam a ordem social. Para a teoria da sociedade civil habermasiana, a vinculação entre as associações e o mundo da vida desqualifica organizações que estão mais diretamente inseridos nos campos político e econômico, a exemplo dos partidos e sindicatos. (LÜCHMANN, 2015 p. 32) Segundo Warren (2001, apud LÜCHMANN, 2015 p. 33) duas características são centrais na definição de associativismo para Tocqueville “a existência de uma relativa igualdade social dos indivíduos, e o caráter de voluntariedade na constituição de relações consensuadas que alteram a sensibilidade ética dos seus membros.” Tocqueville (1977) coloca as associações como um poderoso meio de ação, de forma que as associações civis são tão importantes quanto as associações políticas, ou talvez até mais importantes. Para o autor, em uma democracia, para que os homens sejam civilizados, se faz necessário que a arte de se associar seja desenvolvida e aperfeiçoada no mesmo grau em que cresce a igualdade de condições. Para ele, “nos países democráticos, a ciência da associação é a ciência mãe; o progresso de todas as outras depende dos progressos daquela” (TOCQUEVILLE, 1977, p. 394). Desde Tocqueville, muitos autores se dedicaram a entender a relevância das associações, em relação ao “papel das associações na promoção de ideais democráticos como participação, igualdade, justiça, legitimidade, deliberação e eficiência” (LÜCHMANN, 2012, p. 59). Mesmo não sendo possível aqui fazer um balanço mais extenso do debate teórico sobre as teorias do associativismo e a definição do que são ou deixam de ser consideradas associações, além das relações entre associativismo e democracia, ou sobre as relações entre capital social e o meio associativo, algumas considerações podem ser feitas. Primeiramente, quanto à acepção do que define as associações. De fato, este conceito está longe de possuir uma definição precisa, principalmente pela grande multiplicidade de práticas associativas existentes, mas algumas características podem ser levantadas levando-se em consideração as referências trazidas por diversos autores (LÜCHMANN, 2015). Sobre as teorias do associativismo, vimos que Tocqueville (1997) foi um dos primeiros teóricos a colocar a importância das associações para a democracia. Por outro lado, o contrário se faz tão importante quanto: a democracia é muito importante para proporcionar o direito de associação, de forma que se trata de uma relação de mão dupla, segundo Warren (2001). O associativismo é assim sempre 4 relacionado às práticas democráticas, sendo considerado como essencial para o seu desenvolvimento, por promover relações igualitárias e voluntárias (WARREN, 2001). No caso do Brasil, o contexto associativo coloca-se como muito pluralizado, e possuindo historicamente um crescimento mais exasperado após o período de redemocratização, tendo seu pico de crescimento na década de 1990. Já sobre o conceito de capital social, vemos que o mesmo “refere-se a características de organização social como redes, normas e confiança social que facilitam a coordenação e a cooperação para o benefício mútuo” (Putnam, 1995, p. 67). Em uma conceituação mais completa, Putnam e Goss (2003) qualificam capital social como: (...) as redes sociais e as normas de reciprocidade que lhes estão associados, porque, como o capital físico e humano (ferramentas e conhecimento), criam valor, individual e coletivamente, podemos “investir” na construção de uma rede de relacionamentos. No entanto, as redes sociais não são meros “bens de investimento”, já que muitas vezes criam valor para o consumo direto (PUTNAM; GOSS. 2003, p. 14.). Para os autores da democracia associativa, as associações são importantes “remédios democráticos (i) no sentido de superação do individualismo; (ii) da democratização dos mecanismos de representação e/ou (iii) de uma atuação política mais diretamente voltada para a resolução dos problemas sociais, promovendo maior eficiência governamental” (Idem, 2014, p. 163). Corroborando com o já apontado, Putnam (1996, apud LÜCHMANN, 2014) realizou estudos que enfatizam a importância das associações para o desenvolvimento de virtudes democráticas, tais como a cooperação, o espírito público, a comunicação e a confiança. Em uma concepção bastante conhecida e utilizada internacionalmente, o que pode ser considerado como associações é designado no “Handbook on non-profit institutions in the system of national accounts”, organizado pela Divisão de Estatística da Organização das Nações Unidas - ONU, em parceria com a Universidade John Hopkins, em 2003. Segundo o Handbook, configuram associações as organizações que apresentem, necessariamente, as seguintes características: (I) Organizations, that is, institutionalized to some extent; (II) Private, that is, institutionally separate from government; (III) Non-profit-distributing, that is, not returning profits generated to their owners or directors; 5 (IV) Self-governing, that is, able to control their own activities; (V) Voluntary, that is, non-compulsory and involving some meaningful degree of voluntary participation. (HANDBOOK, 2003, p. 16) Todavia, em se tratando do que se configura como associação a nível nacional, temos que, juridicamente, três são as figuras correspondentes de acordo com o Art. 53 do novo Código Civil regido pela Lei no 10.406, “constituem-se pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos (...) associações, fundações e organizações religiosas.” (IBGE, 2012, p. 16) Ainda, em se falando sobre associativismo e suas definições, é de fundamental importância (e está relacionado de forma direta) o debate sobre o conceito de sociedade civil, motivador de muitos estudos e debates. Conceito este que tem tido um papel central nos debates a nível global sobre as pré-condições para a democratização, e a importância de uma sociedade civil ativa e forte para com a consolidação da democracia (PUTNAM, 1995). Em face da pluralidade de noções para o que se considera como sociedade civil, se procura evidenciar aqui a forma mais comum de definição, como trazido por Avritzer (2012, p. 385) “o conceito de sociedade civil na América Latina surgiu como um conceito tripartite adaptado às formas de diferenciação entre o mercado, o Estado e a sociedade que se consolidou na região ao longo do século XX.” 1 Salienta-se o entendimento de que o debate sobre a sociedade civil possui um histórico de longa data, não sendo possível desconsiderar todos os debates e discussões entorno do conceito e suas definições. Balanço da literatura sobre associativismo O fenômeno das associações está presente em muitos países, mostrando-se de importância estratégica para o desenvolvimento das instituições democráticas em diferentes níveis. Esse repertório organizativo apresenta-se de formas distintas (associações comunitárias, empresariais, religiosas, docentes, movimentos sociais, redes), desde interesses locais, como o bem estar de uma comunidade, até redes de solidariedade e cooperação transnacionais, atuando na esfera dos direitos humanos, ambientais, sociais, dentre outros. 1 Não cabendo à proposta deste texto trazer uma discussão mais aprofundada entorno do conceito de sociedade civil, indicamos os trabalhos centrais para uma leitura mais aprofundada sobre o conceito: ver Habermas (1997) e Arato e Cohen (1992). Discussão em âmbito nacional ver Avritzer (2003, 2012), Burgos (2015). 6 O presente estudo tem como objetivo a elaboração de uma revisão bibliográfica sobre o fenômeno do associativismo civil e suas interfaces com a saúde coletiva. Para fins metodológicos, a pesquisa bibliográfica foi delimitada na consulta de duas bases de dados: Scielo (Scientific Electronic Library Online) e BVS (Biblioteca Virtual em Saúde). Foram estabelecidos como critérios de busca as seguintes palavras-chave: “associativismo” e “associativismo e saúde”. Considerando que, até o momento, ainda há poucos estudos sobre associativismo no Brasil, não foi delimitada data de publicação. Entretanto, apesar de o associativismo ser um campo pouco explorado - principalmente quando pensamos em pesquisas empíricas - notou-se durante a revisão uma intensa variedade de combinações no uso do termo com diversas outras temáticas, e dentre elas, está o nosso interesse central representado pela área da saúde coletiva. A pesquisa realizada pelos termos “associativismo” e “associativismo e saúde” justifica o fato de a maioria dos resultados serem de artigos em português, principalmente originários de países como Brasil (a maior parte) e Portugal. Os 59 textos resultantes da busca e utilizados para esse trabalho diferenciam-se por serem, em sua maioria artigos, que somam 51, mas também duas teses, duas dissertações , duas resenhas e um livro. Devido às buscas terem sido feitas em língua portuguesa, foram selecionados 51 textos publicados no Brasil e 7 em Portugal. Desses textos, o mais antigo é do ano de 1993 e o mais atual é 2015. O ano com o maior número de publicações foi 2010, com 8 trabalhos. Os anos de 2014 e 2015, com 5 trabalhos cada, foram os segundos que mais tiveram trabalhos analisados. Os textos separados para essa revisão foram publicados em 51 revistas diferentes. A “Revista Brasileira de Ciências Sociais”, com três textos, foi a que mais contribuiu. Outras sete revistas contribuíram com dois textos cada uma. As 41 revistas restantes forneceram um artigo cada uma. No que se refere às temáticas abordadas nos artigos, foi confeccionado o quadro abaixo. Alguns artigos tratavam de mais de uma temática. 7 Quadro 1 - Temáticas encontradas na literatura analisada Temáticas abordadas N Associativismo Desportivo/Cultural 5 Associativismo e Cultura Política 2 Associativismo e Gênero 4 Associativismo e Instituições Participativas 7 (conselhos de políticas) Associativismo e Migrações 2 Associativismo e Políticas Públicas 4 Associativismo Empresarial/Patronal 3 Associativismo Juvenil 4 Associativismo Negro 2 Associativismo Rural 7 Associativismo Voluntário ou Comunitário 3 ou Religioso Movimentos Sociais 2 Associativismo Profissional 8 Redes 4 Teóricos (de debate conceitual) 8 * Em alguns textos, mais de uma temática foi abordada, dado que o N final é superior ao número de textos analisados. Na série de artigos que abordam o associativismo do mundo do trabalho, o associativismo docente, o associativismo médico e o associativismo de profissionais de 8 transporte urbano de passageiros foram abordados. Os artigos que tratam do associativismo rural destacam o papel das associações de produtores rurais como, por exemplo, no incentivo à agroecologia e no fortalecimento de elos comunitários em assentamentos. Artigos que trabalham com o associativismo patronal/empresarial, tratam tanto de casos do meio rural - como a articulação de pequenos empreendedores agroindustriais em prol de projeto de desenvolvimento local; quanto de casos urbanos como as associações empresariais voltadas para a questão social. O associativismo desportivo/cultural trata de clubes sociais, grupos de dança de rua, time de futsal etc, associações estas que visam a promoção de lazer. Já os artigos que trabalham com a temática do associativismo e gênero, abordam experiências associativas de mulheres nos campos esportivo e político. Sobre o associativismo negro, os artigos destacam a atuação de sociedades de negros em prol da abolição da escravidão e reivindicação dos direitos dos cidadãos negros no Brasil. Já o associativismo religioso é abordado no caso da construção de hospitais, ocasionada por ações caritativas de leigos e religiosos católicos. Na temática associativismo e instituições participativas, são abordadas as relações das associações com instituições como conselhos gestores de políticas públicas, fóruns de debates, comitês de bacias hidrográficas e orçamento participativo. De acordo com este quadro, tem-se um associativismo pluralizado, atuando em múltiplas e amplas frentes, com distintos fins, objetivos, interesses e formas de atuação. Esta expressiva variedade de lócus e finalidades associativas demonstra a complexidade de se pensar o associativismo, apontando justamente para as diferentes perspectivas teóricas que buscam analisar as associações. Nosso estudo buscou visualizar como diferentes experiências associativas vem sendo analisadas em termos conceituais, assunto do próximo tópico. Em se tratando da questão central desta pesquisa, o balanço da literatura existente sobre associativismo encontrada nas bases pesquisadas, trazemos abaixo um quadro sistematizando os resultados encontrados em relação aos diferentes conceitos e formas de utilização dos mesmos nos textos analisados. Como já evidenciado anteriormente, foi realizada uma subdivisão em quatro categorias principais, e cada qual em subcategorias, no intuito de compilar a utilização ou não do conceito de 9 associativismo enquanto categoria teórica, deixando evidenciado o que cada autor estava considerando como associativismo. Através de uma leitura e analise minuciosa dos 59 artigos selecionados, verificando o referencial bibliográfico utilizado, o objeto de pesquisa, os conceitos e linguagem e a forma como foram expostos, defendidos e criticados, chegamos enfim ao quadro 1, apresentado abaixo. Quadro 2 Conceitos de Associativismo encontrados na Literatura analisada Matriz Teórica Categoria N* Capital Social Solidariedade 10 Cooperação 12 Ação Coletiva 11 Confiança 4 Identidade Cultural 9 46 Movimentos Sociais Movimentos Reivindicatórios 11 Novos Movimentos 1 Sociais 12 Sociedade Civil Associações e Estado 14 Associações e Mercado 6 20 Democracia Associativa Desenvolvimento de virtudes 12 democráticas Espírito Cívico ou cultura cívica 4 10 Instituições Participativas Crítica à democracia associativa 4 2 22 Sem Conceitualização 4 * Em muitos textos, a abordagem trazia mais que uma conceitualização, dado que o N final é superior ao número de textos analisados. O levantamento teórico da produção escrita sobre associativismo nas bases utilizadas evidenciou algumas características bem marcantes: a) O termo associativismo é utilizado com pouca frequência pelos pesquisadores do campo do marxismo. As abordagens que estudam as práticas políticas coletivas sob um referencial marxiano encontram-se no grupo dos movimentos sociais e da democracia associativa, perfazendo ainda assim 36 estudos que utilizam de maneira central ou tangencial o aporte marxista. Fato que demonstra o peso considerável dessa vertente ao se pensar na organização coletiva. b) O tema da democracia é tema transversal ao associativismo e um valor que pauta em todas, ou quase todas as associações. Neste aspecto, há que se relativizar essa pretensa positividade com que é abordado o tema do associativismo, pois há um conjunto de organizações coletivas que não primam pela democracia. Pode-se considerar que o caráter democrático das associações é, para estes autores, um claro divisor de águas sobre o assunto. c) Há que se considerar ainda um claro ascenso do capital social, sob o aporte de Robert Putnam, como perspectiva teórica do associativismo. Neste caso é fácil compreender dos motivos dessa opção teórica, pois essa perspectiva tem um caráter abrangente, bastante descritivo e valoriza um leque extenso de organizações coletivas independente da intencionalidade desse coletivo. Perspectiva criticada pelos marxistas, pois não observa a sociedade a partir da luta de classes. d) Outro aspecto importante que decorre desse estudo é a exígua produção de artigos científicos sobre organizações comunitárias, conselhos de saúde e movimentos sociais que lutem pela saúde pública e pela consolidação do SUS. Achado que é parcialmente 11 fidedigno à realidade dos movimentos sociais de esquerda, pois é esse campo que defende o SUS. O parcialmente fidedigno pode ser melhor compreendido a partir da constatação do distanciamento induzido pela políticas neoliberais que as universidades e, por consequência, a produção acadêmica atravessam. Dito de outro modo, se os movimentos sociais estão enfraquecidos, a universidade brasileira está tomada pelo colonialismo acadêmico. Considerações finais A discussão realizada nesse escrito sobre associativismo remete à compreensão anterior que é a de sociedade civil. Compreensão que justifica a maioria dos achados nessa revisão e uma preparação ideológica proposital, engendrada pela academia em prol da consolidação de um modo de pensar as políticas públicas. A compreensão hegemônica a partir dos anos 90 tem como referência a reinterpretação brasileira da perspectiva elaborada por Jean Cohen e Andrew Arato num longo processo de elaboração que conclui no seu influente estudo Civil Society and political Theory (1992). O movimento teórico reinterpretativo de Arato e Cohen, envolve, segundo Burgos (2014), duas posições sobre o pensamento de Gramsci e Habermas. Primeiro, quanto ao entendimento de que há uma divisão gramsciana tripartite entre sociedade civil, Estado e mercado. Os mesmos autores afirmam que basearam seu conceito de sociedade civil no desenvolvimento de uma teoria social dualista, por Habermas, que diferencia o sistema do mundo da vida, ou seja, Estado e mercado. Essa configuração da sociedade civil, enquanto ente apartado do Estado, caiu como uma luva para a ascensão da política neoliberal, em meados da década de 1980. Esta propunha um Estado mínimo para as políticas sociais e voltado prioritariamente para que as grandes corporações obtenham fatias maiores de rendimentos e poder. Esse modo de pensar coloca o Estado como um fardo para a sociedade, administrado por corruptos e funcionários públicos ineficientes. Esse processo de consciência se fez necessário para fazer a transição do Estado de bem-estar social e para isso, essa leitura amplamente adotada no Brasil, sob o manto de “terceiro setor”, cumpriu e cumpre papel decisivo. 12 O terceiro setor, na interpretação hegemônica, deste final de século XX e início de século XXI, no Brasil, traz o mercado como aliado, mas mantém a devida distância do Estado, apagando, dessa forma o componente político da sociedade civil. O processo de despolitização proposto pela perspectiva do terceiro setor desvaloriza sumariamente os partidos políticos, os sindicatos, os movimentos sociais e a disputa pelo poder político. Perspectiva bem-vinda para a criação de um ambiente cultural favorável à consolidação do neoliberalismo. Referências Bibliográficas: AVRITZER, L. Sem Pena nem glória: o debate da sociedade civil nos anos 1990. Revista Novos Estudos. São Paulo: Cebrap, n.66, p.91 - 110, 2003. AVRITZER, L. 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