revista de estudos orientais - Letras Orientais

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revista de estudos orientais - Letras Orientais
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS
UNIVERSIDADE DE SÃO P
AULO
PAULO
Reitor: Prof. Dr. Flávio Fava de Moraes
Vice-Reitora: Profa Dra Myriam Krasilchik
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS
Diretor: Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira
Vice-Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert
DEP
ART
AMENTO DE LÍNGUAS ORIENT
AIS
DEPART
ARTAMENTO
ORIENTAIS
Chefe: Profa Dra Aida Ramezá Hanania
Vice-Chefe: Prof. Dr. Alexander Chung Yuan Yang
Endereço para correspondência
Comissão Editorial
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Departamento de Línguas
Orientais – FFLCH/USP
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Cid. Universitária
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© Copyright 1997 dos autores. Direitos de publicação da Universidade de São Paulo.
março /1997
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS
Revista do Departamento de Línguas Orientais da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Nº 1
Humanitas Publicações FFLCH/USP
São Paulo, 1997
DIREÇÃO EDITORIAL
· Aida Ramezá Hanania (DLO – curso de Árabe)
· Arlete Orlando Cavaliere (DLO – curso de Russo)
· Chaké Ekizian Costa (DLO – curso de Armênio)
· Jaffa Rifka Berezin (DLO – curso de Hebraico)
· Madalena Natsuko Hashimoto (DLO – curso de Japonês)
· Mário Bruno Sproviero (DLO – curso de Chinês)
CONSELHO EDITORIAL
· Alexander Chung Yuan Yang (USP)
· Alexandre Jebit (Academia de Diplomacia-M.R. Ext. Moscou)
· Ana Szpiczkowski (USP)
· Antonio Kandir (UNICAMP)
· Boris Schnaiderman (USP)
· Franz Shumann (Univ. Califórnia)
· Haquira Osakabe (UNICAMP)
· Helmi Nasr (USP)
· Homero Freitas de Andrade (USP)
· Kate Windmüller ( Edit. Rev. Judaica)
· Lídia Massumi Fukasawa (USP)
· Milton Hatoum (Univ. Amazonas)
· Richard Hovannisian (Univ. Califórnia)
· Roshdi Rashed (CNRS – Paris)
· Sakae Murakami Giroux (Univ. Strasbourg)
· Saul Sosnowski (Univ. Maryland)
· Sun Chia Chin (Univ. Normal de Taiwan)
· Yessai Ohanes Kerouzian (USP)
SUMÁRIO
EDITORIAL ....................................................................................................... 7
A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE ......................................................... 9
Luiz Jean Lauand
O MITO DO ORIENTE ANTIGO – O MITO BÍBLICO ........................ 25
Ruth Leftel
A LITERATURA QUE STÁLIN PROIBIU ................................................ 33
Homero Freitas de Andrade
A EDUCAÇÃO NO JUDAÍSMO ...................................................................... 55
Ana Szpiczkowski
HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS NAS NARRATIVAS SETSUWA
DO SÉCULO XII ..................................................................................... 63
Luiza Nana Yoshida
HASSAN MASSOUDY E A ARTE DA CALIGRAFIA ÁRABE ............. 73
Aida Ramezá Hanania
UM POETA DA CENA RUSSA MEYERHOLD E O TEATRO
RUSSO DE VANGUARDA ..................................................................... 93
Arlete O. Cavaliere
A IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DE GOGHTEN PARA
A CULTURA ARMÊNIA .................................................................... 105
Yêda de Moraes Camargo
FORMAS E FORMATOS NAS ARTES PLÁSTICAS DO JAPÃO .. 123
Madalena N. Hashimoto Cordado
AS MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS ARMÊNIAS ............................ 141
Chaké Ekizian Costa
ÁRABE-PORTUGUÊS - ASPECTOS CONTRASTIVOS NO
PLANO FONOLÓGICO: ALGUMAS IMPLICAÇÕES
PEDAGÓGICAS .......................................................................................
149
Safa Alferd Abou Chahla Jubran
A MÚSICA POPULAR ISRAELENSE - UM PRODUTO
PLURICULTURAl ................................................................................... 173
Eliana Rosa Langer
SOBRE A POSIÇÃO DO ARMÊNIO DENTRO DO INDO-EUROPEU ... 177
Sandra Maria Silva Palomo
EDITORIAL
O Departamento de Línguas Orientais da FFLCH-USP concretiza,
com a publicação da Revista de Estudos Orientais, uma aspiração tão
antiga quanto legítima de seus docentes e pesquisadores, qual seja, a de
apresentar, em veículo próprio, uma produção alicerçada no propósito de
dar a conhecer – por meio de suas múltiplas culturas – o Oriente, tão presente e, ao mesmo tempo, tão desconhecido em nosso meio.
Não estivéssemos no Brasil e particularmente em São Paulo – cidade, como poucas, forjada pelo encontro de diferentes raças, povos e culturas – é imponente o fato de estarmos hoje diante de uma pluralidade cultural
obrigatoriamente em contacto, fruto do formidável processo de aproximação mundial levado a efeito, de modo inapelável, pela revolução da tecnologia.
A pesquisa e a reflexão acadêmicas revelam-se imprescindíveis para
a mediatização das várias culturas, caracterizando-se, por isso, como importantes agentes catalizadores do multiculturalismo vigente.
Nessa linha de considerações, a Revista de Estudos Orientais
pretende contribuir com trabalhos que resgatem e elucidem o patrimônio
cultural oriental, com vistas a uma real integração Oriente/Ocidente, onde
pontifique a mútua compreensão e um agudo senso de complementaridade
de visões de mundo, eliminando-se o distorsivo enfoque “exoticizante”que
freqüentemente acompanha a interpretação da milenar realidade oriental.
O presente número publica artigos motivados pelo Curso de Difusão
Cultural “O Oriente e suas Culturas”, ministrado pelo D.L.O. no segundo semestre de 1996 e norteado pelos mesmos objetivos que inspiram a
REO.
Incidindo em diversas temáticas – Arte, Ciência, Teatro, Literatura,
História... – os textos aqui reunidos refletem o perfil das áreas que compõem o Departamento e incluem os diversos Orientes: Próximo, Médio e
Extremo.
Esperando contar sempre com os leitores e colaboradores para que a
Revista de Estudos Orientais tenha bom êxito e vida longa, desejo agradecer – e profundamente – em nome da Direção Editorial, o apoio fundamental para esta realização, da parte do Prof. Dr. Francis Henrik Aubert,
digno Vice-Diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da USP que, com seu dinamismo intelectual e ampla visão humanística,
soube reconhecer a importância dos Estudos Orientais na Universidade de
São Paulo e, muito particularmente, no âmbito da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, concedendo ao Departamento de Línguas Orientais, espaço devido na HumanitasPublicações, que vem dirigindo com
extrema competência.
São Paulo, novembro de 1996
Profa. Dra. Aida Ramezá Hanania
Chefe do Departamento de Línguas Orientais
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 9-23, MARÇO, 1997
A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE
1
Luiz Jean Lauand
1. A CIÊNCIA
E SEU CONTEXTO CUL
TURAL
CULTURAL
Neste estudo, analisaremos a Álgebra como ciência árabe. Comecemos por antecipar alguns tópicos de discussão sobre que significado pode
ter falar em ciência desta ou daquela nação ou cultura – para além do mero
fato de indicar o estágio de desenvolvimento ou a produção dos cientistas de
uma nacionalidade, como quando se diz: “a Física russa está bastante adiantada e é detentora de diversos Prêmios Nobel” ou “só a Medicina americana consegue fazer esse tipo de transplante” etc.
Ordinariamente tendemos a pensar que o conhecimento científico
independe de latitudes e culturas: uma fórmula química ou um teorema de
Geometria são os mesmos em latim ou em chinês e, sendo a comunicação o
único problema – assim se pensa, à primeira vista –, bastaria uma boa tradução dos termos próprios de cada disciplina2 e tudo estaria resolvido.
Na verdade, sabemos que as coisas não são tão simples e não é
preciso muito esforço para lembrar que a evolução da ciência está repleta
de interferências histórico-culturais, condicionando o surgimento de uma
disciplina, o reconhecimento de um resultado ou a adoção de um procedimento científico...
É conhecido, por exemplo, o fato de que espíritos tão inovadores como
Galileu ou Descartes apegaram-se ao “dogma científico” do horror ao vácuo3; só Pascal – na mesma época e após muita relutância – superou esse
erro. Descartes, em seu Princípios da Filosofia – mesmo tratado que
1
2
3
Originalmente, conferência “Cultura Árabe e Cultura Ocidental”, proferida em 28-8-96 no
curso de difusão cultural do DLO-FFLCHUSP “O Oriente e suas Culturas”.
Traduzindo, digamos – por exemplo, em Matemática –, conjunto por set ou ensemble.
Para o episódio do “horror ao vácuo”, ver PIEPER, Josef “A tese de Pascal: Teologia e
Física – uma introdução ao Préface pour le traité du vide” Cuadernos de Cultura y Ciencia,
Madrid – S. Paulo, Univ. Autónoma de Madrid/DLOFFLCHUSP, 1996, N. 2, pp.29 e ss.
-9-
LAUAND, Luiz Jean. A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE.
começa afirmando ser necessário duvidar radicalmente de tudo o que possa
apresentar a mais ínfima incerteza –, toma como uma intuição irrefutável da
razão a idéia tradicional de que a natureza tem horror ao vácuo...
Esses condicionamentos são de diversas ordens. Assim, ao dizer que
a Geometria (geo-metria, em grego) é uma ciência grega ou que a Álgebra
(al-jabr) é uma ciência árabe4, estamos afirmando algo mais do que a “casualidade” de terem sido gregos ou árabes seus fundadores ou promotores.
Aproximamo-nos do sentido da expressão “ciência árabe” quando
pensamos em casos paralelos. Diz-se, por exemplo, que a caligrafia é uma
“arte árabe”, mas não se diz que a pintura ou o teatro sejam “artes árabes”.
Nesses casos, não estamos aqui interessados no fato de haver muitos e
talentosos calígrafos árabes (ou no da correspondente escassez de pintores), mas numa “conexão de sentido” entre a arte caligráfica e fatores como:
a atitude árabe perante a escrita (e sua relação, digamos, com o modo como
o Alcorão considera os ayyat, os sinais de Deus); a desconfiança semita
em relação à imagem; a língua e a religião; etc.5
No caso da Álgebra, não foi por mero acaso que ela surgiu no califato
abássida (“ao contrário dos Omíadas, os Abássidas pretendem aplicar rigorosamente a Lei religiosa à vida quotidiana”6, no seio da “Casa da Sabedoria” (Bayt al-Hikma) de Bagdad, promovida pelo califa Al-Ma’amun7, uma
ciência nascida em língua árabe e criada por Al-Khwarizmi, pioneiro da
ciência árabe e “antagonista da ciência grega”8.
Certamente, o que a moderna matemática entende por Álgebra pode
parecer uma fria e objetiva axiomática – constitutiva de uma sintaxe de
estruturas operatórias e destituída de qualquer alcance semântico –, mas
4
5
6
7
8
Ao longo deste trabalho, estaremos nos referindo principalmente aos casos paradigmáticos
de Os Elementos de Euclides e da Álgebra, tal como fundada por Al-Khwarizmi.
Uma análise desses fatores condicionantes da arte árabe da caligrafia encontra-se em
HANANIA, Aida R. A Caligrafia como Expressão Cultural – A Arte de Hassan Massoudy,
tese de Livre-Docência, FFLCH-USP, 1995.
ANAWATI, M-M e GARDET, Louis Introduction a la Théologie Musulmane, Paris, Vrin,
1981, p. 44.
Não é de todo alheio a nosso tema, o fato de que esse califa fez de uma particular doutrina
teológica, a mu’atazilita, a teologia oficial do Império.
E, como indicaremos, não são casuais as definições euclidianas de razão e proporção (e os
limites impostos a esses conceitos nos Elementos) nem tampouco a reação dos matemáticos árabes a essas definições.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 9-23, MARÇO, 1997
essa Álgebra de hoje é o resultado da evolução – em desenvolvimento contínuo – da velha al-jabr, forjada por um contexto cultural em que não são
alheios, elementos que vão desde as estruturas gramaticais do árabe à teologia muçulmana da época...
2. A L- JABR
E AL - MUQABALAH
Muhammad Ibn Musa Al-Khwarizmi foi membro da “Casa da Sabedoria”, a importante academia científica de Bagdad, que alcançou seu esplendor
sob Al-Ma’amun (califa de 813 a 833). A ele, Al-Khwarizmi dedicou seu AlKitab al-muhtasar fy hisab al-jabr wa al-muqabalah (“Livro breve para o
cálculo da jabr e da muqabalah”), o livro fundador da Álgebra.
Comecemos por observar que as palavras que nomeiam a nova ciência, al-jabr e al-muqabalah, embora empregadas por Al-Khwarizmi em
sentido técnico, eram (e ainda são) termos da linguagem corrente árabe.
O radical trilítere j-b-r9 está associado aos seguintes significados:
- Força: por exemplo, o anjo Gabriel, Jibryl, é, literalmente, forçade-Deus. No Alcorão (59, 23), Al-Jabar – o forte, aquele que faz valer sua
vontade – é um dos 99 nomes de Deus.
- Força que compele, que obriga: neste sentido, o Alcorão diversas
vezes (11, 59; 14, 15; 28, 19; 40, 35; etc.) emprega o radical j-b-r para
“tiranizar”, “tirano” etc.. Não por acaso, a corrente teológica muçulmana
que nega o livre-arbítrio do homem em favor de um inevitável destino prédeterminado foi denominada jabariyah. E também o serviço militar compulsório é ijbary...
- Restabelecer: pôr (ou repor) algo em seu devido lugar, restabelecer
uma normalidade. Daí que tajbir seja ortopedia e jibarah, redução, no
sentido médico: reconduzir (talvez forçando-o por tala, gesso etc.) o osso a
seu devido lugar: na Espanha, no tempo em que os barbeiros acumulavam
funções, podia-se ver a placa “Algebrista y Sangrador” em barbearias10
“Álgebra” no sentido de “ortopedia” vigorou, por muito tempo, também na
língua portuguesa11.
9
10
11
Como se sabe, o radical consonantal é, em árabe, o que é semanticamente decisivo: as
vogais, a prefixação etc. só fazem uma determinação periférica de sentido.
KLINE, Morris. Mathematical Thought from Ancient to Modern Times, New York, Oxford
University Press, 1972, p. 192.
Cfr. por exemplo NIMER, Michel. Influências Orientais na Língua Portuguesa, São
Paulo, s.c.p., 1943, vol. I, verbete Álgebra.
- 11 -
LAUAND, Luiz Jean. A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE.
Por que Al-Khwarizmi escolhe a palavra jabr para o procedimento
fundamental de sua nova ciência? Precisamente porque - analogamente à
ortopedia – a Álgebra é “forçar cada termo a ocupar seu devido lugar”. Já
no começo de seu Kitab, Al-Khwarizmi distingue seis formas de equação,
às quais toda equação dada pode ser reduzida (e, portanto, canonicamente
resolvida). Em notação de hoje:
1. ax2 = bx
2. ax2 = c
3. ax = c
4. ax2 + bx = c
5. ax2 + c = bx
6. bx + c = ax2
Al-jabr é a operação que soma um mesmo fator (afetado do sinal +)
a ambos os membros de uma equação para eliminar um fator afetado com
o sinal -.
Já a operação que elimina termos iguais ou semelhantes de ambos os
lados da equação é al-muqabalah (que, por sua vez, deriva do radical q-bl, cujo significado aponta para: estar frente a frente – daí a qiblah na mesquita indicar a direção de Meca –; cara a cara – daí também que qabila
seja também beijar – ; confrontar; equiparar –”toma lá, dá cá” - etc.).
Seja, então, um problema em que os dados podem ser postos sob a
forma:
2x2 + 100 - 20x = 58.
Al-Khwarizmi procede do seguinte modo:
2x2 + 100 = 58 + 20x (por al-jabr).
Divide por 2 e reduz os termos semelhantes:
x2 + 21 = 10x (por al-muqabalah).
E o problema já está canonicamente equacionado.
Feita esta digressão técnica, passemos a analisar (em alguns casos não
será possível superar a mera alusão indicativa...) as relações e conexões de
sentido que se dão entre a Álgebra e alguns aspectos da cultura árabe.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 9-23, MARÇO, 1997
3. A Á LGEBRA
NOS QUADROS DO
ISLAM:
O RELIGIOSO E
O TEMPORAL
Comecemos pelos fundamentos das necessidades práticas da sociedade.
Em seu estudo “L’Islam et l’épanouissement des sciences
exactes”12, Roshdi Rashed, para mostrar a conexão entre Alcorão, ciência
e vida prática, exemplifica precisamente com a Álgebra: ‘ilm al-fara’id
(ciência da partilha, da herança). Os próprios juristas referem-se à Álgebra
como hisab al-fara’id, o cálculo da herança, segundo a lei corânica.
E aí temos já um primeiro condicionamento histórico-cultural, próprio
do Islam, no qual o caso da herança é emblemático. Trata-se da sólida união
que se dá no Islam entre a ordem religiosa e a temporal.
Por coincidência, o mesmo problema da herança (que para o muçulmano está sob a legislação direta de Allah) é proposto a Cristo. Cristo, que
declara – algo impensável na visão muçulmana – “A César o que é de
César; a Deus o que é de Deus”, recusa-se a estabelecer concretamente os
termos da herança.
Trata-se de um episódio evangélico aparentemente intranscendente: “um
da multidão” aproxima-se de Cristo e lhe faz um pedido: que Jesus use Sua
autoridade para convencer seu irmão a repartir com ele a herança (Lc 12, 13).
Para surpresa daquele homem (e contrariando a mentalidade antiga
e a oriental, que uniam o poder religioso a questões temporais...), Cristo
recusa-se terminantemente a intervir nessa questão: “Homem, quem me
estabeleceu juiz ou árbitro de vossa partilha?” (Lc 12, 14).
O máximo a que Cristo chega é a uma condenação genérica da cobiça, contando a esses irmãos a parábola do homem rico cujos campos haviam produzido abundante fruto e com o célebre convite à contemplação dos
lírios: “Olhai os lírios do campo...”.
Bem diferentes são as coisas no mundo muçulmano. Roger Garaudy,
no capítulo “Fé e Política” mostra como a tawhid (unidade, dogma central
islâmico) muçulmana se projeta sobre a política, o direito e a economia:
“Deus é o único proprietário e ele é o único legislador. Tal é o princípio de
base do Islam em sua visão de unidade (tawhid)”13.
12
13
In Quatre conférences publiques organisées par l’Unesco, UNESCO, 1981, p. 152.
GARAUDY, Roger Promessas do Islam, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p. 70.
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LAUAND, Luiz Jean. A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE.
Garaudy tem razão ao afirmar que não se dá no Islam (não há sacerdotes), uma teocracia clerical de tipo ocidental, mas é inegável, também, que a
visão muçulmana tem favorecido uma forte e arraigada teocracia própria e
não por acaso o chefe político se intitula ayyatullah, “sinal de Deus”14.
Seja como for, o fato é que, na questão da herança, o Alcorão (4, 11
e ss.) diz concretamente: “Allah vos ordena o seguinte no que diz respeito a
vossos filhos: que a porção do varão equivalha à de duas mulheres. Se estas
são mais de duas15, corresponder-lhes-ão dois terços da herança. Se é filha
única, a metade. A cada um dos pais corresponderá um sexto da herança,
se deixa filhos; mas se não tem filhos e lhe herdam só os pais, um sexto é
para a mãe. Etc., etc. (...)”.
E conclui: “De vossos ascendentes ou descendentes, não sabeis quais
vos são os mais úteis. Isto compete a Allah. Allah é onisciente, sábio”.
Contrastemos com o cristianismo. Naturalmente, para um cristão, o
mundo é criação de Deus e obra de sua Inteligência: o mundo foi criado pelo
Verbum e, portanto, conhecer o mundo é conhecer sinais de Deus. E mais:
cada criatura é porque é criada inteligentemente por Deus, participa do ser
de Deus. O Deus cristão é Emmanuel, Deus conosco, e pela Encarnação, a
eternidade de Deus ingressa na temporalidade e Cristo en-cabeça, re-capitula (como diz o Catecismo da Igreja Católica) toda a realidade criada.
Daí que a Igreja defenda tenazmente a lei moral, lei natural da dignidade do ser do homem, que lhe foi conferida pelo ato criador do Verbum.
Mas, precisamente por essa mesma concepção teológica, o cristão pode
afirmar a mais decidida autonomia das realidades temporais: porque o mundo
é obra do Verbum, a realidade temporal tem sua verdade própria, suas leis
próprias, naturais, descartando o clericalismo16.
Esta é mesmo a doutrina oficial da Igreja, que rejeita definitivamente
tanto o clericalismo quanto o laicismo que pretende afastar Deus da realidade
social. Assim, na mesma passagem (4, 36) em que a Lumen Gentium17 afirma:
“nenhuma atividade humana pode ser subtraída ao domínio de Deus”, ajunta:
14
15
16
17
Embora Garaudy, acostumado – pelo seu passado marxista – à distinção entre o socialismo
ideal e o “socialismo realmente existente”, uma e outra vez recorra à “distinção entre o
ensino corânico e a prática dos países muçulmanos...” (p. 70).
E se só há filhas...
Tratamos mais amplamente do tema em Tomás de Aquino hoje, Curitiba-S. Paulo, PUCPR - GRD, 1993.
Sugestivemnte no capítulo IV, dedicado aos leigos – a cuja iniciativa e responsabilidade de
cristãos compete a santificação da ordem temporal.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 9-23, MARÇO, 1997
“é preciso reconhecer que a cidade terrena, a quem são confiados os cuidados temporais, se rege por princípios próprios”. E a Gaudium et Spes (1, 3,
36): “Se por autonomia das realidades terrestres entendemos que as coisas
criadas e as mesmas sociedades gozam de leis e valores próprios, a serem
conhecidos, usados e ordenados gradativamente pelo homem, é absolutamente necessário exigi-la. Isto não é só reivindicado pelos homens de nosso
tempo, mas está também de acordo com a vontade do Criador. Pela própria
condição da criação, todas as coisas são dotadas de fundamento próprio,
verdade, bondade, leis e ordem específicas. O homem deve respeitar tudo
isto, reconhecendo os métodos próprios de cada ciência e arte”18.
Em extremo sentido contrário, um Ayyatulah Khomeini19 pôde afirmar: “Costuma-se dizer que a religião deve ser separada da política e que as
autoridades religiosas não se devem imiscuir nos assuntos de Estado. (...)
Tais afirmações só emanam dos ateus: são ditadas e espalhadas pelos imperialistas. A política estava separada da religião no tempo do Profeta? (Que
Deus o abençoe, a Ele e aos seus fiéis)” (p. 27). “O Islam tem preceitos
para tudo o que diz respeito ao homem e à sociedade. Esses preceitos procedem do Todo-Poderoso e são transmitidos pelo seu Profeta e Mensageiro. (...) Não existe assunto sobre o qual o Islam não haja emitido seu juízo”
(p. 19). “A instauração de uma ordem política secular equivale a entravar o
progresso da ordem islâmica. Todo poder secular, seja qual for a forma pela
qual se manifesta, é forçosamente um poder ateu, obra de Satanás. É nosso
dever exterminá-lo e combater seus efeitos. (...) Não temos outra solução
senão derrubar todos os governos que não repousam nos puros princípios
islâmicos, sendo, portanto, corruptos e corruptores (...) É esse o dever, não
só dos iranianos, mas de todos os muçulmanos do mundo.” (p. 23)
O Islam, ao contrário do cristianismo, afirma uma absoluta
transcendência de Deus (transcendência acentuada pela doutrina
mu’atazilita) e uma revelação ditada20, “descida” (em árabe, o verbo nazala,
que se aplica à revelação divina, significa também “descer”). A revelação
de Allah e sua tawhid estão sinalizadas21 no mundo.
E o princípio da unidade não se aplica só à política, mas alcança
também as ciências.
18
19
20
21
Cf. também Apostolicam Actositatem (II, 7).
Em seus Princípios políticos, filosóficos, sociais e religiosos, Rio de Janeiro, Record, 1980.
E não meramente inspirada ao hagiógrafo, como no cristianismo.
Ayyat, em árabe, significa não só sinal, mas também versículo do Alcorão.
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LAUAND, Luiz Jean. A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE.
Em primeiro lugar, as ciências estão a serviço da fé22, também de um
modo prático: uma sociedade sob a forte e urgente necessidade de obedecer à lei do Altíssimo, precisa operacionalizar as soluções dos graves problemas de partilha. A Álgebra surge como uma ciência voltada para a resolução desse problema suscitado pelo Alcorão23 Cabe, nesse sentido, uma
simples – porém, sugestiva – observação: a Álgebra de Al-Khwarizmi é
inteiramente retórica e não emprega símbolos. Note-se que os números
simples são designados por dirham, que é uma unidade monetária; a incógnita é designada pela palavra árabe xay’, coisa, e, se é de ordem quadrada,
mal (riqueza, bens, fortuna).
Além disso, de um modo intrínseco: “o princípio da tawhid, o ponto
capital da experiência islâmica de Deus, exclui a separação entre ciência e
fé. Tudo, na natureza, sendo ‘sinal’ da presença divina, o conhecimento da
natureza torna-se (...) um acesso à proximidade de Deus. (...) A sabedoria
da fé integra todas as ciências num conjunto orgânico, pois todas têm um
objetivo no mundo que, em sua totalidade, é uma ‘teofania’, uma revelação
dos ‘sinais de Deus’. O universo é um ‘ícone’ no qual o Um se revela
através do múltiplo por mil símbolos”24.
22
23
24
“Deus, em sua misericórdia infinita, confiou o Alcorão a Seu profeta, para que o homem
possa decifrar a natureza e, desta forma, transcendê-la. O estudo do Alcorão é uma iniciação ao estudo da natureza. O estudo da natureza é uma procura de Deus. Os fenômenos
naturais são cifras que significam Deus. O Alcorão fornece os testes de verificação para os
esforços decifradores da pesquisa da natureza. O homem pode comparar a natureza ao
Alcorão, porque sua mente participa do espírito divino. A origem divina da mente humana
é vivenciada justamente por sua capacidade de adequação do Alcorão à natureza. Por sua
capacidade algébrica e decifradora, a mente humana tem a estrutura da mente divina”
(FLUSSER, Vilém “A mesquita e a escrita”, Revista de Estudos Árabes, DLO-FFLCHUSP,
v. 1, n. 2, 1993, p. 33.
Este é um fato tão notório, que é destacado por todos os historiadores da matemática árabe.
Citaremos aqui apenas três dos mais conhecidos: YOUSCHKEWITCH, Adolf P. Les
mathématiques arabes (VIII- XV siécles), Paris, Vrin-CNRS, 1976. DAHAN-DALMEDICO,
A. - PEIFFER, J. Une histoire des mathématiques, Paris, Seuil, 1988. WAERDEN, B. L.
van der A History of Algebra – From al-Khwarizmi to Emmi Noether, New York, Springer
Verlag, 1985. Note-se que precisamente a parte sobre problemas práticos de herança, a
parte III do Kitab..., que ocupa mais da metade do livro de Al-Khwarizmi, é omitida nas
traduções latinas de Roberto de Chester – feita em Segóvia em 1145 – e de Gerardo de
Cremona – falecido em 1187 –, em Toledo.
GARAUDY, op. cit. pp. 81, 84-85.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 9-23, MARÇO, 1997
Nesse sentido, um importante instrumento de ligação entre as ciências é precisamente a Álgebra. Referindo-se à época em que surge a Álgebra de Al-Khwarizmi, Roshdi Rashed diz: “O começo do século IX é um
grande momento de expansão da matemática helenística em língua árabe.
Ora, é precisamente nesse período e nesse meio (o da “Casa da Sabedoria”
de Bagdad) que Muhammad Ibn Musa al-Khwarizmi redige um livro com
assunto e estilo novos. De fato, é nessas páginas que surge, pela primeira
vez, a Álgebra como disciplina matemática distinta e independente. Tal
surgimento – e já os contemporâneos se apercebem disso – foi de importância crucial, tanto pelo estilo dessa matemática, como pela ontologia de seu
objeto (grifo nosso) e, mais ainda, pela riqueza de possibilidades que com
ela se abrem. O estilo é, ao mesmo tempo, algorítmico e demonstrativo e,
com essa álgebra, imediatamente já se deixa entrever a imensa potencialidade
que impregnará a Matemática a partir do séc. IX: a aplicação das disciplinas matemáticas umas às outras”25.
4. A ÁLGEBRA NOS QUADROS DO SISTEMA LÍNGUA/PENSAMENTO
ÁRABE
Neste tópico resumiremos algumas características do sistema língua/
pensamento, no sentido que essa expressão tem em Lohmann26 e as relações entre seus dois pólos: língua e pensamento. Essa análise permitir-nosá uma melhor compreensão de aspectos da Álgebra como ciência árabe e
de sua evolução (em contraposição à Geometria, ciência grega).
Uma primeira observação sobre as relações entre língua e forma de
pensamento é a de que “o que nos interessa não são as línguas em si, mas as
línguas enquanto pré-determinam uma certa concepção de mundo para o
falante, ou como diz Heidegger, eine Erschlossenheit des Daseins”27. Em
25
26
27
“Modernidade Clássica e Ciência Árabe”, Revista de Estudos Árabes, DLO-FFLCHUSP, v. 1,
n. 1, 1993, p. 9.
LOHMANNN, Johannes. “Santo Tomás e os Árabes - Estruturas lingüísticas e formas de
pensamento”. Revista de Estudos Árabes, Centro de Estudos Árabes/FFLCHUSP, São
Paulo, Ano III, n. 5-6, pp. 33-51. Tit. orig.: “Saint Thomas et les Arabes (Structures
linguistiques et formes de pensée)”, Revue Philosophique de Louvain, t. 74, fév. 1976, pp.
30-44. Trad.: Ana Lúcia Carvalho Fujikura e Helena Meidani.
Art. cit. p. 38. Mesmo reconhecendo uma certa radicalização na posição de Lohmann, não
resta dúvida de que há – senão uma determinação – pelo menos um forte condicionamento
- 17 -
LAUAND, Luiz Jean. A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE.
outras palavras, o alcance do pensamento condiciona-se pela linguagem.
Não só pelo maior ou menor número e profundidade de conceitos e potencial expressivo dos vocábulos, mas também (e principalmente) pelas estruturas peculiares de cada língua ou famílias de línguas.
Assim, cabe falar num sistema língua/pensamento, que, no caso do
grego, é justamente designado por logos e, no caso do árabe, por ma’na.
“O conceito de ma’na, ‘intencionalidade’28, é tão característico da forma
árabe de pensamento, como o é a noção específica do termo grego logos,
em sua concepção original, para a forma de pensamento do grego clássico.
E, além do mais, justamente por essas duas noções, ou, por assim dizer, sob
os auspícios dessas duas noções, é que estas duas formas de pensamento,
encarnadas, cada uma em uma língua determinada – o grego clássico e o
árabe clássico – exprimiram-se como tais em uma filosofia”29 E, poderíamos complementar: exprimiram-se também em Álgebra e Geometria.
Pois o sistema grego, logos, busca estabelecer uma exata correspondência entre pensamento e realidade. Correspondência biunívoca já
programaticamente estabelecida por Parmênides quando afirma: Tò gàr
auto noein estin te kaì einai (“Na verdade, pensar e ser são, ao mesmo
tempo, a mesma coisa”). Tal pretensão de pensamento é possibilitada por
diversos fatos de linguagem. Destacaremos dois para efeito de contraste com
o árabe.
1) Ao contrário do árabe, no centro semântico do sistema grego, “encontra-se o verbo esti (ser), que, segundo Aristóteles, está implicitamente
contido em qualquer outro verbo”30 O verbo ser, característica central do
sistema logos (e de todo o indo-europeu), permitiria o enlace exato entre a
realidade em si mesma e o pensamento: pelo verbo ser o pensamento homologa o real.
Um exemplo ajudar-nos-á a compreender essa relação. Seja o caso
de especialistas em segurança contra incêndio que homologam um determinado edifício. Eles dispõem de um logos, um corpo de normas técnicas
racionalmente estabelecidas e, inspecionando um prédio, verificam se a realidade (a presença de tantos extintores de incêndio, tais e tais mangueiras,
28
29
30
do pensamento pelas estruturas da língua. Talvez fosse melhor falar em interação dialética,
na medida em que também o pensamento influencia a formação da língua.
No sentido técnico-filosófico de intentio, apresentado por Lohmann.
Art. cit. p. 35-36.
Art. cit. p. 35.
- 18 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 9-23, MARÇO, 1997
portas corta-fogo, saídas de emergência etc.) daquele edifício está no mesmo logos (homo-logação) da norma. Do mesmo modo, para o sistema grego, o pensamento está em homologia com a realidade.
2) A língua grega flexiona temas (enquanto a árabe flexiona a própria
raiz de uma palavra). No exemplo tradicional das gramáticas elementares
de latim (e, obviamente, o mesmo se dá com o grego), o radical ros de rosa
permanece fixo, pois uma rosa é uma rosa; qualquer outro fator (seu relacionamento com o mundo exterior, com o pensamento humano ou com qualidades que são nela): da cor da rosa (genitivo) ao mosquito nela pousado
(ablativo), é refletido pelas desinências rosam, rosarum, rosae etc. O árabe,
por sua vez, não tem radicais fixos: o radical trilítere é intra-flexionado:
SaLaM; iSLaM; SaLyM; muSLiM etc. (correspondente à ousía, à
substantia).
Lohmann interpreta este fato do seguinte modo: “O árabe, como o
semítico em geral, de um lado, e o grego, de outro, estabelecem relações com
o mundo: um, principalmente pelo ouvido e o outro, pelo olho. Tal fato levou o
falante semítico a uma preponderância da religião, enquanto o grego tornouse o inventor da teoria. Daí decorre (ou procede...?) uma diferença análoga
das respectivas línguas, quanto a seu tipo de expressão. Cada um desses dois
tipos caracteriza-se por um procedimento gramatical específico: flexão de
raízes no semítico e flexão de temas no indo-europeu antigo” 31.
A omnipresença do verbo ser e a flexão de temas, como agudamente
indica Lohmann, favorecem um sistema logos (“ocular”, “especular”) de
correspondência exata entre pensamento e realidade que, como veremos, é
característica também da Geometria grega.
Já o árabe tende ao sistema ma’na – pensamento “auricular”, “pensamento confundente”32 – pela ausência da amarra do verbo ser como verbo de ligação, pela indeterminação semântica de seus radicais trilíteres etc.
Configura-se,assim, uma despretensão de atingir a ousía, a substantia.
Tal posicionamento é confirmado pela religião e, particularmente, pela
doutrina mu’atazilita, que é o pensamento teológico imposto oficialmente
por Al-Ma’amun em Bagdad, à época de Al-Khwarizmi. Pode-se aplicar à
Álgebra as considerações de Lohmann sobre as “distorções” na recepção
da filosofia grega pelos árabes e, particularmente, por Averróes: “(Um as31
32
Art. cit., p. 36.
No sentido “técnico” que Ortega y Gasset e Julian Marías dão à expressão.
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LAUAND, Luiz Jean. A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE.
pecto) que se deve conhecer para se compreender a intenção do Comentador
(subjacente à sua interpretação de Aristóteles) é a noção de essentia (como
tradução da palavra árabe dhat). Dhat – conceito profundamente arraigado no aristotelismo árabe na especulação teológica islâmica do século IX da
nossa era, em Bagdad – é a essência de Deus, em oposição aos atributos,
por cuja mediação, fala-se de Deus no Alcorão. A essência de Deus, segundo a doutrina mu’tazilita – teologia oficial de Bagdad na primeira metade do século IX – é absolutamente transcendente em oposição a esses
atributos. Essa transcendência absoluta de Deus – expressa pela noção
dhat e traduzida em latim por essentia –, em oposição a todas as noções
descritivas (sifat, em árabe), transformou-se em S. Tomás (e, de certa
maneira, já no Comentador, considerado uma autoridade por S. Tomás) em
uma transcendência da coisa real com relação ao intelecto humano –
transcendência que conduziu, em seguida e enfim, ao Ding an sich de Kant”.
Junte-se a estas considerações, o critério – certamente não casual da seleção de fontes de Al-Khwarizmi. Solomon Gandz, o moderno editor
de Al-Khwarizmi, considera essencial, no fundador da Álgebra, seu caráter
oriental, não-grego e mesmo anti-grego. Vale a pena transcrever sua introdução ao capítulo “Mensuração” do Kitab:
Al-Khwarizmi, o antagonista da influência grega
Na universidade de Bagdad, fundada por Al-Ma’amun (813-33), a
chamada Bayt al-Hikma, onde Al-Khwarizmi trabalhou sob o patrocínio do Califa, floresceu também um velho colega seu, chamado AlHajjaj ibn Yusuf ibn Matar. Este homem era o líder da corrente a favor
da recepção da ciência grega pelos árabes. Dedicou toda sua vida a
traduzir para o árabe as obras gregas. Já no califato de Harun alRashid (786-809), Al-Hajjaj tinha traduzido Os Elementos de Euclides.
Quando Al-Ma’amun tornou-se califa, Al-Hajjaj tentou obter seu favor para uma segunda edição de sua tradução de Euclides. Posteriormente (829-830), traduziu o Almagesto. Ora, Al-Khwarizmi nunca
menciona seu colega nem tampouco suas obras. Euclides e sua Geometria, embora disponíveis pela boa tradução do colega, são totalmente ignorados por Al-Khwarizmi, quando ele escreve sobre Geometria. E mais, no “Prefácio” de sua Álgebra, Al-Khwarizmi claramente enfatiza seu objetivo de escrever um tratado popular que, ao contrário da matemática teórica grega, sirva a fins práticos do povo em
seus negócios de heranças e legados, em seus assuntos jurídicos,
comerciais, de exploração da terra e de escavação de canais. Al- 20 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 9-23, MARÇO, 1997
Khwarizmi aparece não como um discípulo dos gregos, mas muito
pelo contrário, como o adversário de Al-Hajjaj e da escola grega. Ele
é o representante das ciências populares nativas. Na Academia de
Bagdad, Al-Khwarizmi representa, antes, uma reação contrária à introdução da matemática grega. Sua Álgebra causa uma impressão de
protesto contra a tradução de Euclides e contra toda a tendência de
acolhimento das ciências gregas”33.
5. Á RABE
X
GREGO:
OS CONCEITOS MA
TEMÁTICOS DE
MATEMÁTICOS
RAZÃO E PROPORÇÃO
A geometria grega é o modelo acabado do sistema grego34, de uma “língua
de visão”, em correspondência, tanto quanto possível, bijetora com o real.
Esse “tanto quanto possível” impõe seus limites: na matemática grega, não encontraremos o número zero (o zero não tem correspondentelogos com o real) e é conhecido o escândalo histórico produzido pela descoberta da incomensurabilidade de grandezas (o número irracional – para
os gregos a-logos! –, entra em contradição com o próprio sistema de pensamento grego). E, de um modo positivo, Euclides35 afirma que o um é a
realidade e a unidade é aquilo pelo que cada uma das coisas que são é
chamada de um!
Já o árabe é diferente. Seu sistema língua/pensamento não é logos,
mas ma’na: prevalece não a pretensão de a linguagem acompanhar pari
passu o ente, mas o sentido mental (intentio, ma’na), independentemente
da correspondência-logos com o real. Daí que a ciência árabe, por excelência, seja a Álgebra (com zero e números negativos). E o irracional, na
incomensurabilidade geométrica, é aceito com total naturalidade pelo árabe.
Descreveremos neste tópico, sucintamente, a superação do sistema
logos no caso paradigmático da conceituação matemática de razão e pro33
34
35
Cit. por WAERDEN, B. L. op. cit., pp. 14-15.
Já a geometria contemporânea, ligada à moderna concepção de sistemas axiomáticos,
aproximar-se-ia de uma outra forma de pensamento (derivada do sistema logos, mas já
independente) – também discutida por Lohmann no artigo citado –, paradigmatizado pelo
inglês falado nos dias de hoje.
Livro VII, definição 1. Citaremos pela edição de HEATH, Thomas L. The Thirteen books
of Euclid’s Elements, translated from the text of Heiberg with Intr. and Comm. New York,
Dover, 2nd. ed., s.d., vol. I-III.
- 21 -
LAUAND, Luiz Jean. A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE.
porção36 Essa superação tem um importante marco inicial no matemático e
poeta Omar Khayyam37, que abre caminho para os números irracionais.
Para analisar os conceitos de razão e proporção nos Elementos, comecemos pela observação de Heath: “É digno de nota, o fato de que a teoria
das proporções recebe duplo tratamento em Euclides: refere-se a grandezas
em geral, no livro V, e só ao caso particular de números, no livro VII”38.
Para Heath, Euclides teria seguido a tradição: reproduzindo a antiga
teoria de proporções (anterior à crise dos incomensuráveis) e também a
nova, atribuída a Eudoxo (a do livro V). Esta definição (V, def. 5) reza:
“Diz-se que magnitudes estão na mesma razão – a primeira para a segunda
e a terceira para a quarta – quando: para quaisquer equimúltiplos que sejam
tomados da primeira e da terceira comparados a quaisquer equimúltiplos
que sejam tomados da segunda e da quarta, os primeiros equimúltiplos coincidem em superar (igualar ou inferar) os segundos equimúltiplos respectivamente tomados na ordem correspondente”.
Vuillemin observa que esta teoria permite eludir o problema dos irracionais39. Subtrai-se o conceito de razão ao âmbito da medida (e evita,
portanto, o escândalo dos incomensuráveis). E é precisamente essa definição de razão que será objeto de crítica por parte de Omar Khayyam: para
ele, Euclides não teria atinado com o verdadeiro significado de razão, que
se encontra no processo de medida de uma grandeza por outra40.
36
37
38
39
40
Para um estudo da recepção do conceito euclidiano de razão entre os árabes, veja-se
PLOOIJ, E. B. Al-Djajjâni – Commentary on Ratio in Euclid’s conception of Ratio as
criticized by arabian commentators, Rotterdam, Uitgeuerij W.J. van Hengel, 1950.
Omar Khayyam está tão distante do ideal grego de homologação do real e tão imerso nos
amthal do sistema ma’na, que numa das Rubayyat – a de número XCIV (cito pela edição
Les Quatrains d’Omar Khayyam, trad. intr. et notes de Charles Grolleau, Paris, Champ
Libre, 1980) – chega a escrever: “Para falar claramente e sem parábolas: / Nós somos as
peças do jogo, jogado pelo Céu / Que brinca conosco no tabuleiro da existência / E depois
voltamos, um a um, para a caixa do Nada”.
Op. cit. v. II, p. 113.
VUILLEMIN, Jules. De la Logique a la Théologie, Paris, Flammarion, 1967, pp. 12 e ss.
Como observa Dirk J. Struik em “Omar Khayyam Mathematician” The Mathematicas
Teacher, April 1958: “Omar is here on the road to the extension of the number concept
which leads to the notion of the real number”.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 9-23, MARÇO, 1997
Assim, Omar Khayyam define A:B = C:D
Todos os múltiplos da primeira são retirados da segunda, até que se
tenha um resto menor do que a primeira e, igualmente, todos os múltiplos da terceira são retirados da quarta, até que se tenha um resto
menor do que a terceira. E o número de múltiplos da primeira na
segunda é igual ao número de múltiplos da terceira na quarta. E mais:
extraímos da primeira, todos os múltiplos do resto da segunda, até
obter um novo resto menor que o resto da segunda e igualmente,
extraímos da terceira, todos os múltiplos do resto da quarta, até obter
um novo resto menor que o resto da quarta. E o número de múltiplos
do resto da segunda é igual ao número de múltiplos do resto da
quarta. Etc. E, assim, ad infinitum. Então, a razão entre a primeira e a
segunda é necessariamente a que se dá entre a terceira e a quarta.
Esta é que é a verdadeira proporcionalidade a modo geométrico.41
Este processo – já mencionado por Aristóteles – é o que os gregos
chamam de antanairesis ou antiphayresis. A quantidade menor, digamos
B, é subtraída de A, com resto R1. E assim, R1 = A - q1B. A seguir, R1 é
subtraído – tanto quanto possível – de B:
R2 = B - q2R1, e assim por diante...
Após afirmar a excelência da antiphayresis, Omar Khayyam levanta a questão decisiva para o estabelecimento dos números irracionais: se a
razão deve ser entendida como um tipo de número.
Desprendidos do compromisso grego de correspondência pensamento/realidade, autores árabes como Nasir ad-Din at-Tusi não verão inconveniente em considerar todas as razões (e os limites das antiphayresis) como
números.
Um tal acolhimento só é possível no sistema ma’na...
41
Cit. por WAERDEN, B. L. van der. A History of Algebra – From al-Khwarizmi to Emmi
Noether, New York, Springer Verlag, 1985, p. 30.
- 23 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 25-32, MARÇO, 1997
O MITO DO ORIENTE ANTIGO – O MITO
BÍBLICO
Ruth Leftel
Um mito é uma estória sobre o universo, que é considerada sagrada.Os
gregos denominavam mitos as estórias sobre os feitos dos deuses na antigüidade. (gr.mythos: “a coisa falada”, “palavra”, “narrativa”). Estórias assim são encontradas, não apenas na literatura grega antiga, mas também na
literatura de outros povos da antigüidade, como os do Oriente Antigo e também na tradição de povos primitivos da nossa época. Podemos, então, dizer
que os mitos são um fenômeno humano geral.
Estas estórias formam a base sacra da continuidade de instituições,
costumes e cultos antigos e da sobrevivência de crenças antigas, ou da
aprovação e ratificação de modificações nas mesmas. Tais estórias lidam
com um número de temas reduzido, como: a origem dos deuses (ou seu
nascimento), seus amores e acasalamentos, suas guerras, seus atos de
heroísmo e suas criações1
Os mitos podem ser classificados, de acordo com o tema narrado,
como: cosmogônico, quando relata como foi criado o mundo; teogônico,
quando narra a origem de alguma divindade; antropogônico, quando relata
a origem do homem e escatológico, quando conta sobre o fim do mundo, ou
ainda mitos sobre o paraíso, sobre o dilúvio, sobre heróis etc... Os feitos dos
deuses narrados nos mitos são, via de regra, semelhantes aos feitos dos
homens.
As aventuras dos deuses e os outros assuntos relatados nos mitos,
ocorrem sempre na “antigüidade”2, num passado remoto e obscuro; época
1
2
O mito é geralmente recitado, durante uma representação dramática do evento que ele
narra. Ex: “Enuma EliŠ”, o mito acádico da criação do mundo, era recitado no festival
babilônico do Ano Novo, quando tinham que agradar ao seu deus principal Marduk, recordando como este criou o universo e o homem. Por intermédio do ritual, o homem tornase contemporâneo do evento mítico e participa dos atos de criação dos deuses.
Na antigüidade dos que narram o mito. Esta está confusa e mais ainda o que ocorre antes de
adorarem o deus principal da época do relato do mito. Ex: os mitos do Oriente Antigo
contam que em épocas antigas, antes de dominar o deus que domina em seus dias, havia duas
ou três gerações de deuses antigos que dominavam uns após outros. Não há explicação de
quantos estes eram, quando dominaram e como eram. Justamente estas estórias que tratam
do tema principal dos mitos (a descoberta da origem dos deuses), são características dos
mitos e estão nas bases de religiões e culturas.
- 25 -
LEFTEL, Ruth. O MITO DO ORIENTE ANTIGO – O MITO BÍBLICO.
na qual o mundo foi tomando a forma atual. Em outras palavras, o mito
narra sobre a origem das coisas que preenchem o espaço do mundo.
Os deuses estão envoltos numa bruma de medo e afastados da vida
diária do homem que acredita em sua existência. Por intermédio de sua
estória concreta, o narrador do mito penetra pela bruma de medo e revela
um pouco da “verdade”; isto é, expressa sua fé sua visão e a da sociedade,
no meio da qual vive.3
Poderíamos dizer que o mito está no lugar da teologia e da ciência
racional atual. Não tem, é claro, a precisão destas, mas é “superior” em
relação a elas, em sua força de criar símbolos que podem ser compreendidos de várias formas.
Os estudiosos do Velho Testamento começaram a usar o termo mito
no final do século XVIII, quando surgiram dúvidas quanto à veracidade
literal de algumas das estórias da Bíblia e principalmente, na época, quanto
à questão da estória da criação do mundo e da estória do paraíso. Os pesquisadores de então alegaram que as estórias da Bíblia, expressam uma
verdade filosófica que vestiu roupagens míticas (como a estória do paraíso),
ou são estórias baseadas num núcleo de verdade histórica, envolto em roupagens míticas (como as estórias sobre os patriarcas).
O mito é, na opinião dos pesquisadores do final do século XVIII, a
maneira de pensar da humanidade na época de sua “infância” e as narrativas bíblicas utilizam-se dessa forma de expressão, por não ter o narrador
bíblico meios de expressar a verdade de outra forma.
A pesquisa bíblica da metade do século XIX em diante não estuda
mais a questão da veracidade literal dessas estórias bíblicas e a discussão
sobre o mito dá-se em outras linhas:
a) corrente que opina que não existe mito na Bíblia. No seu modo de
ver, não há como separar mito de politeísmo (a divinização das forças da
natureza e a crença de que o homem pode “forçar” a vontade divina), pois
3
Os pesquisadores modernos acreditam que nenhuma destas estórias pode ser o produto da
memória humana, nem (em nenhum sentido moderno da palavra) relatos científicos sobre
a origem e a constituição do mundo físico. O homem do Oriente Antigo no segundo milênio
a.C (quando boa parte dos mitos é elaborada), apesar de seus indubitáveis dons intelectuais
e espirituais, não fundamentava seus pontos de vista sobre o universo e suas leis, no uso
crítico de informações empíricas. Ele ainda não havia descoberto os princípios e os métodos da pesquisa disciplinada, da observação crítica ou da experimentação analítica. “Seu
pensamento provavelmente era imaginativo e a expressão de suas idéias era concreta,
pictórica, emocional e poética”. Em Sarna, Nahum: understanding gênesis. The Heritage of
Biblical Israel; 1966; First Schocken paperback edition; U.S.A; pág.3.
- 26 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 25-32, MARÇO, 1997
o politeísmo é do pensamento mítico que é completamente diferente do
pensamento bíblico. Por isso, acreditam que, se temos, no Velho Testamento, semelhanças ou resquícios de estórias, cuja origem provém do mito, elas
não têm mais nenhum significado mítico, pois a Bíblia anulou este significado, quando aboliu o pensamento mítico.4
b) esta escola alega que se o mito é um pensamento simbólico, podese concluir que a contradição entre o politeísmo e o monoteísmo não atinge
o fenômeno do mito em si e grande parte da Bíblia pode ser denominada
mito.5 Esta escola opina que, certamente, não há muita semelhança entre o
modo de pensar dos homens do período bíblico e o modo de pensar da
ciência moderna.
Para distinguir entre o mito politeísta e o mito bíblico, denominam o
mito bíblico de “mito da história” ou “mito monoteísta”, ou seja, acreditam
que na Bíblia encontramos, pela primeira vez, o mito ligado a uma crença
que não se fundamenta mais nas estórias dos feitos dos deuses e sim na
compreensão de Deus, a partir da Sua revelação e ações na história e na
natureza6.
Os relatos bíblicos que têm os mais surpreendentes paralelos com os
mitos do Oriente antigo são os da criação do mundo e do dilúvio. Antes de
traçarmos estes paralelos, devemos levar em consideração (quanto ao relato da criação) a ordem da criação nos capítulos 1 e 2 de Gênesis que são
aparentemente semelhantes, mas provêm de regiões e períodos diferentes,
como veremos adiante.
Em gênesis 1 e 2:3, quando Deus vai criar o céu e a terra, não há
nada além do caos e do vazio. A face do abismo, sobre a qual pairava seu
espírito, estava envolta em escuridão. Por isso, no primeiro dia da criação,
Deus ordenou: “haja luz” e houve luz. No segundo dia, fez o firmamento,
para separar entre as águas de cima (do firmamento) e as águas de baixo e
o chamou de céu 7. No terceiro dia, juntou num mesmo lugar as águas de
baixo e possibilitou o aparecimento da terra e depois de denominar a parte
seca de terra 8 e a reunião das águas de mar, ordenou à terra para fazer
brotar ervas e árvores. No quarto dia, criou o sol, a lua e as estrelas. No
4
5
6
7
8
Representantes desta corrente são Y.Koifmann e H.Frankfort.
O principal representante desta corrente é Martin Buber.
O Deus bíblico não tem mito, isto é, não há estórias sobre eventos de Sua vida.
Em todo o Oriente Antigo, acreditava-se que havia uma abóbada celeste que “segurava” as
águas de cima, para não inundarem a terra.
Em Hebraico: YabaŠa = continente, provem do radical ybŠ=seco.
- 27 -
LEFTEL, Ruth. O MITO DO ORIENTE ANTIGO – O MITO BÍBLICO.
quinto dia, criou os animais da água, os peixes e as aves. No sexto dia, criou
os animais da terra, os répteis e o homem e no sétimo dia, satisfeito com sua
obra, parou e descansou.
Já segundo Gênesis 2:4 - 23, após criar o céu e a terra, Deus fez com
que um vapor umedecesse a terra seca, para que pudessem brotar ervas e
pastos; Em seguida, plantou um jardim em Éden e ali colocou um homem
chamado Adão e fez crescer do solo, árvores; depois criou todos os animais, as aves e os répteis e por fim, a mulher.
Durante muitos séculos, teólogos judeus e cristãos acreditaram que
estes relatos sobre a origem do mundo em Gênesis não somente foram
inspirados por Deus, mas também que nada tinham de outras escrituras 9.
Esta opinião foi abandonada por todos, menos pelos fundamentalistas.
Desde 1876 foram descobertas em escavações e publicadas algumas versões da epopéia acádica (dos assírios e dos Babilônios) da criação. Hoje supõe-se que a mais longa delas, denominada “Enuma EliŠ” 10,
foi composta na primeira metade do segundo milênio a.C.11.
Esta epopéia sobreviveu quase intacta em sete tabuinhas cuneiformes
que contêm 156 linhas aproximadamente, por tabuinha. Ela começa relatando12 que “quando nas alturas, antes de o céu ter recebido seu nome”, Apsu,
o procriador, e a mãe Tiamat, misturaram-se caoticamente e produziram
muitos monstros parecidos com dragões. Muito tempo passou, e surgiu uma
nova geração mais jovem de deuses. Estes eram muito barulhentos e raivosos, Apsu e Tiamat planejaram matá-los. O plano perverso foi impedido por
um destes deuses, o sábio Ea, deus da terra e da água que desafiou e matou
Apsu. Tiamat casou-se imediatamente com seu próprio filho Kingu, deu à
luz monstros e criou-os e preparou-se para vingar-se de Ea. Os aliados de
Ea pediram a seu filho Marduk para liderá-los na batalha. Este aceitou,
estipulando sua soberania sobre o universo após vencê-la .
Após uma batalha feroz, Marduk capturou Tiamat em sua rede, arrancou-lhe as entranhas, rompeu sua cabeça e cravou seu corpo de flechas.
Então partiu Tiamat ao meio, como se fosse um marisco e utilizou uma
metade para criar o firmamento, para impedir que as águas de cima inundassem a terra e a outra metade serviu-lhe de base para a terra e o mar.
9
10
11
12
Escritos sagrados de outros povos.
Enuma EliŠ: em acádico = quando nas alturas; são as duas primeiras palavras com as quais
começa a epopéia .
Esta cosmologia é a mais importante para o tema que estamos abordando, pois foi preservada quase intacta e pertence ao mesmo Oriente Antigo, do qual Israel fazia parte.
Resumimos a epopéia, pois ela é muito longa.
- 28 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 25-32, MARÇO, 1997
Assim começa a obra da criação, fixando Marduk os luzeiros do céu,
cada um em seu lugar. Esta atividade está descrita na quinta tabuinha que,
infelizmente, está fragmentada, mas do que segue, parece que os deuses
reclamam que agora que cada um tem seu lugar e sua função no universo,
passariam a ter um trabalho interminável. Então, Marduk decide criar o
homem para liberar os deuses do trabalho servil e isto ele faz, moldando um
ser humano do sangue de Kingu, o qual havia condenado à morte, como
instigador da rebelião de Tiamat.
A epopéia termina com uma descrição de um grande banquete, oferecido pelos deuses a Marduk, no qual eles recitam um hino de louvor ao
mesmo que confirma seu domínio para toda a eternidade.
Este mito era solenemente recitado e dramaticamente apresentado,
durante as festividades que comemoravam o Ano Novo na primavera, o
ponto máximo do calendário religioso babilônico. Era certamente o mito que
sustentava a civilização babilônica e reforçava suas normas sociais e sua
estrutura organizacional.
Vejamos agora, porque temos dois relatos sobre a criação em Gênesis
e o que estes têm em comum com o mito da criação dos babilônios.
O primeiro relato da criação em Gênesis 1 e 2:3, foi composto em
Jerusalém, provavelmente pouco após o regresso do exílio da Babilônia13.
Nele, Deus é denominado “Elohim”.
O segundo relato, em Gênesis 2:4-22, também foi composto no Reinado de Judá e é possível que sua origem seja edomita e anterior ao exílio
(como ficará mais claro adiante). Neste, Deus é denominado “Yahvéh
Elohim”. Originalmente, Deus seria denominado neste último “Yahvéh” e
teria sido acrescentado “Elohim”, para identificar o Deus de Gên.1 com o
Deus de Gen. 2 e para dar às duas versões uma aparente uniformidade.
Porém, o redator não conseguiu eliminar detalhes contraditórios na ordem
da criação, como já descrevemos antes.
Estas contradições deixaram sempre perplexos estudiosos judeus e
cristãos (antes da descoberta dos mitos acádicos da criação a partir de
1876) que tentaram explicá-las de várias formas.
O plano de sete dias do primeiro relato (Gên.1), proporciona a “carta
constitucional mítica” para a observância do sábado, pelo homem, já que
Deus descansou no sétimo dia, abençoou-o e santificou-o 14. Para dar um
exemplo, acrescentaríamos que alguns dos primeiros comentaristas rabínicos
13
14
O exílio à Babilônia e a destruição do Primeiro Templo ocorre em 586 a.C, logo a composição deste primeiro capítulo de Gênesis dá-se no final do séc.VI a.C.
Isto aparece explicitamente numa versão dos 10 mandamentos em Êxodo 20:8-11.
- 29 -
LEFTEL, Ruth. O MITO DO ORIENTE ANTIGO – O MITO BÍBLICO.
observam que os elementos principais foram criados nos primeiros três dias
e enfeitados nos outros três dias e que se pode discernir uma estreita simetria entre o primeiro e o quarto dias, o segundo e o quinto e entre o terceiro
e o sexto dias:
1º dia
criação da luz
e sua separação da
escuridão
2º dia
criação do céu
e separação entre as
águas de cima e as de
baixo
3º dia
criação da terra seca
e das florestas e pastos
4º dia
→
criação dos astros
para separar o dia da noite
e uma estação da outra.
5º dia
criação das aves que voam
→ no céu e dos peixes que nadam
nas águas de baixo
6º dia
criação dos animais,
→
dos répteis e do homem que
se movimentam pela terra.
Este plano e outros semelhantes demonstram o desejo dos estudiosos
de atribuir a Deus um pensamento sistemático na criação. Porém, estes
trabalhos não seriam necessários, se lhes houvesse ocorrido que a ordem da
criação vinculava-se à ordem dos deuses planetários na semana babilônica15
e que Deus proclama, inequivocamente, a absoluta subordinação de toda a
criação a Ele, que pode fazer uso das forças da natureza, para realizar suas
poderosas ações na história 16. Diferentemente de “Enuma EliŠ” na Babilônia,
a criação em Gênesis é, em primeiro lugar, a recordação do evento que
inicia o processo histórico e que assegura que há um propósito divino, por
trás da criação que tem seus próprios planos, além da perspectiva humana.
Explicando melhor, o que temos na 5ª tabuinha fragmentária de “Enuma
EliŠ”, sobre os planetas na semana babilônica, podemos distinguir que Nergal,
15
16
Em conseqüência dos 7 planetas (divindades) da semana babilônica, temos os 7 braços da
Menorá (o candelabro sagrado judaico). Tanto o profeta Zacarias, em sua visão (4:10)
quanto Flávio Josefo em Guerras dos Hebreus (cap.5), fazem esta identificação do candelabro sagrado com os 7 planetas.
Deus reclama todos esses poderes planetários para si mesmo.
- 30 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 25-32, MARÇO, 1997
um deus pastoral, ocupava o terceiro dia na semana babilônica, assim como
no primeiro relato da criação, em Gênesis, temos a criação dos pastos e das
ervas no terceiro dia; enquanto Nabu, deus dos astros, ocupava o quarto dia
na semana babilônica, tal como em Gênesis (1º relato), Deus criou os astros
no quarto dia.
O segundo relato da criação (Gên.2) é mais vago do que o primeiro,
revela menos sobre o universo anterior à criação e sua estrutura é totalmente diferente de Gên.1. Na realidade, entende-se dele que a obra da criação
foi realizada em um dia apenas. Sua introdução recorda várias cosmogonias
do Oriente Antigo, ao descrever o universo anterior à criação, em função
das diversas coisas que ainda não existiam. “Ainda não havia árvores sobre
a terra, os pastos e as ervas ainda não haviam brotado, porque Deus ainda
não enviara a chuva e não existia nenhum homem para lavrar a terra”
(Gên.2:5) . Então, veio o grande dia no qual “Deus criou a genealogia do céu
e da terra: um vapor subiu da terra e regou-a”17 (Gên.2:6), podendo criar a
partir dela o homem 18. Depois, plantou um jardim a leste de Éden e ordenou
ao homem que o cultivasse e cuidasse dele (Gên.2:6-9,15).
Gênesis 1, como descrevemos, é parecido com as cosmogonias
babilônicas que começam com o aparecimento da terra a partir de um caos
aquoso primitivo e todas são metafóricas sobre como a terra seca emerge
anualmente das inundações invernais do Tigre e do Eufrates. Desta forma,
a criação é representada, como a primeira aparição do mundo, após o caos
aquoso primitivo: uma estação primaveral, na qual (após as inundações)
acasalam-se as aves e os animais e brotam os pastos.
Gênesis 2 já reflete condições geográficas e climáticas encontradas
em Canaã (O Reino de Judá). O universo anterior à criação está abrasado
pelo sol; está seco e árido como no final de um verão prolongado. Quando
finalmente, aproxima-se o Outono, aparece o primeiro sinal da chuva: um
vapor matutino, branco e denso que sobe dos vales 19. A criação, tal como é
descrita em Gên.2, teve lugar, segundo a visão da época, num dia de Outono
assim.
A versão babilônica (Gên.1) que estabeleceu a primavera como a
estação da criação, foi adotada no exílio da Babilônia e o primeiro dia do
mês de “Nisan” 20 seria o dia da comemoração do Ano Novo Judaico.
17
18
19
20
do original Hebraico “ed” = vapor.
“Adamá”: em Hebr.= terra, a partir do que foi moldado: “Adam” (em Hebr.= homem.). A
palavra Adam que significa ser humano, foi colocada como o nome do primeiro homem.
Este vapor é o indício, na região, da proximidade das chuvas outonais. Uma vez molhada a
terra, Deus pode moldar com ela o homem, segundo o cap.2.
Provém do acádico “Nisan” = botão (de flor).
- 31 -
LEFTEL, Ruth. O MITO DO ORIENTE ANTIGO – O MITO BÍBLICO.
Porém, a versão Outonal (de Canaã) exigia que o primeiro dia do mês de
“TiŠrei” 21 fosse observado como o dia do Ano Novo e este prevaleceu.
A versão bíblica da criação deve muito às cosmogonias do Oriente
Antigo, mas, simultaneamente, estes assuntos usados foram transformados,
para serem o veículo de transmissão de idéias completamente novas.
Para respaldar o que afirmamos, gostaríamos de analisar adiante o
mito acádico do “Dilúvio” 22 e compará-lo ao seu análogo no relato bíblico,
pois é a estória em Gênesis que tem o mais óbvio paralelo mesopotâmico e
é a que revela o caráter do Deus de Israel e suas exigências éticas para
com o homem, diferenciando o relato significativamente (mesmo que quase
“apenas” neste sentido) dos seus análogos mesopotâmicos, o que procuraremos fazer em breve oportunidade.
21
22
Provém do radical acádico “Seru” = começo (começar)
O mito acádico do dilúvio encontra-se na epopéia de “GilgameŠ” que é a mais detalhada e
mais completa de todas as estórias sobre o dilúvio da Mesopotâmia.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 33-53, MARÇO,1997
A LITERA
TURA QUE STÁLIN PROIBIU
LITERATURA
Homero Freitas de Andrade
Eram os tempos da NEP1. Exaurida ao fim da guerra civil que se
abatera sobre todo o território russo durante os últimos três anos (19181921), minguando ainda mais as já historicamente precárias condições de
sobrevivência do povo, agravadas também pelo comunismo de guerra instituído logo depois de Outubro, a Rússia encontrava-se num beco sem saída.
Nas grandes cidades, alimento e moradia eram os problemas cruciais. A
fome consumia a jovem República. Em agosto, por não ter como seguir a
receita do médico, que lhe tinha recomendado uma dieta à base de açúcar,
milho, leite e limão, o poeta A.Blok morrera de inanição em Petrogrado.
Quase um ano depois, seria a vez de Velimír Khlébnikov, o grande inspirador
do cubo-futurismo, partir desta, faminto e doente em Moscou. Como eles,
milhares de pessoas.
A miséria generalizada, no entanto, era solo propício para apressar a
transformação da sociedade. Concentrando esforços na tentativa de recuperar as fontes econômicas do País e captar recursos externos para acelerar o processo de industrialização e implementar as reformas básicas defendidas pelo Partido, Lênin acabara de proclamar, contra a vontade dos
camaradas mais ortodoxos, uma espécie de retorno à economia capitalista
que, se não serviria para tirar a Rússia do atoleiro em que se achava, contribuiu de modo positivo para o desafogo das tensões populares na medida em
que criava a ilusão de um renascimento sócio-econômico cultural e do
restabelecimento da normalidade do cotidiano.
Como se apresentava o panorama da recém-nascida literatura russosoviética à essa época? Já em l9l8, começara a faltar papel para impressão,
as editoras particulares tinham sido proibidas de funcionar e as estatais,
recém-fundadas, publicavam sobretudo obras de instrução básica e propaganda. Durante a guerra civil, privada de seus meios de difusão convencionais, a literatura chegou a ser divulgada em manuscritos. Remanescentes
do cubo-futurismo, liderados por Maiakóvski, adaptavam os programas da
escola às palavras de ordem do Partido e preconizavam uma arte dirigida à
massa, funcional e utilitária, destituída do ranço estético dos padrões consagrados em prosa e verso pela tradição positivista do século XIX, que fosse
1
Sigla soviética de Nova Política Econômica (Yjdfz "rjyjvbxtcrfz Gjkbnbrf).
- 33 -
ANDRADE, Homero Freitas de. A LITERATURA QUE STÁLIN PROIBIU.
capaz de erigir-se num dos pilares da construção da nova cultura. Representantes do imagismo, do biocosmismo e de outros temporões do futurismo engalfinhavam-se em público entre si, e com os poetas da Proletkult 2 ,
que os acusavam de praticar uma arte decadente e burguesa, ao mesmo
tempo em que reivindicavam o posto de legítimos representantes da verdadeira arte proletária.
Por toda parte haviam surgido “cafés poéticos” onde os artistas da
palavra apresentavam-se em recitais. Papel semelhante era desempenhado
por diversas entidades públicas, como a própria Proletkult, os sovietes municipais, as seções de literatura do Comissariado do Povo para a Instrução,
a Casa do Jornalista, o Palácio de Belas Artes, a União dos Escritores e
inúmeras associações ditas de escritores proletários, que promoviam debates, leituras e tertúlias, cujo tema era a literatura contemporânea e seus
rumos e funções na nova ordem. Sobre o tablado os escritores transformavam-se em atores-leitores de suas obras enquanto que, afastados das páginas dos livros, os leitores tornavam-se espectadores-ouvintes: a literatura
escrita, para sobreviver, recorria agora à transmissão oral.
Por outro lado, a intelligentsia3, que se mantivera fiel às próprias
tradições humanísticas e liberais herdadas do século XIX e por isso mesmo
aclamara em sua maioria a insurreição popular e o fim do absolutismo em
1905, cindira-se depois de Outubro. Tsvetáieva, Guíppius, V.Ivánov, Búnin,
Kuprín, A.Tolstói e outros autores emigraram, formando nichos de literatura
russa em Paris, Berlim, Xangai, e reduzindo drasticamente os quadros de
escritores que já publicavam antes da Revolução e que tinham permanecido na terra natal. No capítulo de sua Storia della Letteratura Russa
Contemporanea, em que estuda as origens da literatura russo-soviética,
Ettore Lo Gatto ressalta que “embora tivessem restado outros escritores da
mesma geração ou da mais jovem, porém ativa antes da Revolução, como
Blok, Gumilióv, Akhmátova, Mandelstam e Pasternak entre os poetas,
Veressáiev, Serguéiev-Tsénski e outros dentre os prosadores, que tudo levava a crer fossem continuar a tradição a que pertenciam, os velhos qua2
3
Abreviatura soviética de Cultura Proletária (Ghjktnfhcrfz Rekmnehf), organização fundada pelo revolucionário marxista A.A.Bogdánov e pelos críticos A.Lunatchárski e
V.L.Poliánski, antes ainda da Revolução de 1917. Agrupava escritores e artistas ditos
proletários e promovia espetáculos, debates, além de editar um grande número de jornais e
revistas. Tinha como proposta dirigir o front cultural revolucionário, pretensão esta
condenada por Lênin. Opunha-se às vanguardas literárias e artísticas russas e perdurou até
1932.
A palavra era empregada na Rússia do século XIX para designar a elite intelectual de
oposição ao tzarismo.
- 34 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 33-53, MARÇO,1997
dros literários pareciam como que esvaziados tanto de nomes como de significado, sobretudo os poéticos, que se tornaram ainda mais vazios em 1921
com a morte de Blok, o fuzilamento de Gumilióv e a evidente não-correspondência de uma Akhmátova, de um Mandelstam e de um Pasternak às
exigências da nova atmosfera”4.
Em linhas gerais, a literatura que se produziu desde a Revolução de
Outubro até o início da década de vinte caracteriza-se antes de tudo por
exaltar os fatos de 1917 e seus desdobramentos. A literatura inspirava-se
diretamente na história contemporânea, mas apresentava desta uma visão
um tanto idealizada. Escritores e críticos da época identificaram aí uma
espécie de romantismo revolucionário, distante daquele realismo crítico que
se tornara modelar na tradição literária russa e difícil de ser classificado
dada a diversidade de suas nuances. Grosso modo, a realidade revolucionária passou a ser retratada de modo realista em literatura quando os escritores, servindo-se de procedimentos comuns ao jornalismo e à publicística,
começaram a produzir obras que, embora ainda conferissem contornos idealizados ao novo homem em formação, tinham como fundo, ou mesmo como
tema central, os acontecimentos relativos à guerra civil. Falava-se de uma
literatura do fato real (literatura fakta) que, se não chegou a constituir uma
escola literária devidamente programada, imprimiu fortes marcas na produção de vários escritores a partir de então.
Sobreviver da própria produção literária, nessa época, estava fora de
cogitação. Todos precisavam trabalhar, colaborar para a reestruturação
social e econômica do País, muitas vezes em atividades não diretamente
ligadas ao métier. Os escritores do proletariado, os simpatizantes, os “brancos” enrustidos, todos, além dos contos, novelas, crônicas, artigos e reportagens que publicavam nos inúmeros periódicos que começaram a circular,
também desempenhavam funções meramente burocráticas nos vários departamentos dos Comissariado do Povo para a Instrução5.
No início de abril de 1922, os principais órgãos da imprensa diária do
País investiam contra a visão apocalíptica em relação aos acontecimentos
sócio-econômicos e culturais da Rússia no momento e previam o crescimento da economia e a consequente melhoria dos padrões de vida da popu4
5
Op.cit., p.357 (traduzido do original em italiano).
No artigo “Eu temo” (^Z ,j.cm^), Zamiátin ironizava:”Em nossos dias, Gógol correria ao
departamento de teatro com uma pasta; na Vsemírnaia Literatura (Literatura Mundial),
Turguéniev, sem dúvida, traduziria Balzac e Flaubert; Herzen faria conferências na frota do
Báltico; Tchékhov trabalharia no Comissariado do Povo para a Saúde. Do contrário, para
viver... Gógol seria obrigado a escrever mensalmente uns quatro O inspetor geral, Turguéniev
uns três Pais e filhos a cada dois meses, Tchékhov uma centena de contos por mês.”
- 35 -
ANDRADE, Homero Freitas de. A LITERATURA QUE STÁLIN PROIBIU.
lação através da implantação definitiva do programa da NEP, referendado
no XI Congresso do Partido, em 27 de março do mesmo ano. Na imprensa
“nanica” pululavam feuilletons e artigos a respeito do tema. A maioria
saudando o advento da política salvadora da pátria. Algumas vozes destoantes e pessimistas ficavam por conta de membros mais ortodoxos do Partido, que não viam nas medidas grande eficácia senão o perigo de novas
insurreições de caráter contra-revolucionário, além de um desvio de rumo
da Revolução. Os escritores da Proletkult polemizavam, proclamavam a
abolição total dos valores do passado “capitalista” – o que para eles significava a abolição de todo o passado.
Por outro lado, a vida e as experiências pessoais adquiridas durante
os anos da Revolução e da guerra civil tinham ensinado aos escritores formados nos ideais da intelligentsia do século XIX que não havia como
transpor esse abismo que se criava entre presente e passado. O importante
era não permitir, nessa ânsia avassaladora de destruição de todas as ligações com o passado, que o presente fosse tragado pelo abismo e o homem
russo perdesse sua verdadeira identidade cultural, transformando-se pura e
simplesmente num clone da espécie homo sovieticus. Daí o intenso confronto em suas obras entre o velho e o novo, o russo e o soviético. Daí
também a explicitação de que não se mudam usos e costumes por decreto,
nem se abate a tiros de fuzil a diversidade de pensamentos, sem que isso
implique a possibilidade de um processo que leve à mediocrização do indivíduo e ao depauperamento das forças intelectuais do povo.
Através da leitura dos grandes mestres da literatura do século XIX,
pertencentes à intelligentsia russa, esses escritores puderam assimilar o
axioma da indivisibilidade do ser humano em público e privado. Apreenderam decerto que todos os escritores “estavam num palco como testemunhas, de modo que o menor lapso de sua parte, uma mentira, um engano, um
ato de auto-indulgência, a falta de zelo pela verdade, constituía um crime
hediondo”; e que “falar em público, seja como poeta, romancista, historiador
ou em qualquer outra condição pública, implicaria aceitar plena responsabilidade pela condução e liderança do povo. Se era esta a vocação, a pessoa
estaria obrigada por um juramento hipocrático a dizer a verdade e jamais
traí-la, dedicando-se desprendidamente a seu objetivo”6.
A literatura agora tornava-se um negócio cada vez mais difícil para o
escritor que pretendesse sobreviver isoladamente, livre do domínio das
corporações de artistas proletários. Por outro lado, aumentava a ingerência
do Partido na literatura e nas artes em geral. Em Literatura e revolução
6
Isaiah Berlin, Pensadores russos, cit., p.138.
- 36 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 33-53, MARÇO,1997
(1923), Trótski falava sobre o novo papel social do escritor nesse “período
de reconstrução”. Distinguia a importância dos escritores engajados no processo revolucionário para a educação das massas e ressaltava o trabalho
dos artistas aos quais denominava popúttchiki (companheiros de jornada),
isto é, aqueles que em suas obras demonstravam simpatia pelas questões do
proletariado e certa proximidade ideológica com a Revolução de Outubro.
“A designação, – anota Boris Schnaiderman em seu A poética de
Maiakóvski 7 – foi aplicada ora a um, ora a outro grupo. Consideravam-se
popúttchiki sobretudo os “Irmãos de Serapião” (nome tirado de uma obra
de E.T.A. Hoffmann), que desejavam uma arte desvinculada das exigências ideológicas, e que foram depois atacados como inimigos em potencial; o
agrupamento Perevál (Desfiladeiro, Passagem), que afirmava a sinceridade e o intuitivismo da criação literária autêntica; e alguns escritores que não
pertenciam a qualquer dos agrupamentos existentes.”
Embora desde o início os grupos que se consideravam a vanguarda do
proletariado acusassem os popúttchiki de serem nacionalistas no plano político, burgueses no social e espiritualmente místicos, além de notórios inimigos da
classe e da causa operária, a noção de “companheiro de jornada” iria ampliarse de tal modo que, com o passar do tempo, todo e qualquer escritor, acusado e
acusador, cabia em seus limites. Desde um Maiakóvski até um Bulgákov8.
Por volta de 1924, as garras da censura passaram a cravar-se indistintamente no arco-íris das ideologias, tentando uniformizar e orientar a produção de literatura. Stálin firmava-se no poder e o próprio Trótski, defensor
dos escritores popúttchiki, já começara a cair em desgraça. Acelerava-se
o processo rumo à unidade ideológica no discurso literário. Boatos insistentes sobre a detenção para averiguações de escritores e intelectuais voltavam a circular em Moscou. Delações, perseguições. O controle burocrático
e policial sobre o cotidiano dificultava a vida dos artistas ainda renitentes,
forçando-os a ingressar nas fileiras do exército das artes do proletariado. O
“branco” arrependido A.Tolstói, ou nas palavras do escritor e dramaturgo
Mikhail Bulgákov, “o bufão porco e imoral”9, declarava para quem quisesse
ouvir que não era mais Alekséi Tolstói, mas o correspondente operário Potáp
Miérdov. O “vermelho” convicto D.Biédni reforçava sua origem humilde e
proletária diante de uma platéia de soldados entusiasmados: “Minha mãe
era uma puta...”10
7
8
9
10
Op.cit., p.210.
Cf. Lo Gatto, “Il problema del ‘compagno di strada’”, in Storia della letteratura russa
contemporanea, op.cit., p.409 e seguintes.
Anotação de 23/XII/1924, Diari inediti, op.cit., p.46.
Id.ib. anterior.
- 37 -
ANDRADE, Homero Freitas de. A LITERATURA QUE STÁLIN PROIBIU.
Essa ambiência e as polêmicas que suscitava nos meios literários
eram registradas por Bulgákov em 26 de dezembro: “Acabei de voltar de
um sarau na casa de Angárski, o diretor de Niédra. As mesmas coisas que
são ditas por toda parte. Falatórios sobre a censura, ataques contra ela,
`discursos sobre a verdade do escritor’ e `a mentira’. Estavam lá Veressáiev,
K..., Nikándrov, Záitsev (P.N.), Liachkó e Lvóv-Rogatchévski. Não pude
deixar de intrometer-me algumas vezes com observações sobre como se
tornou difícil trabalhar agora, com ataques à censura e outras coisas que
seria melhor evitar.
“Liachkó, escritor proletário, que nutre uma profunda antipatia (o instinto) por minha pessoa, replicou-me com uma irritação indisfarçável:
“– Não entendo de que `verdade’ está falando o továrisch Bulgákov.
Afinal (...) por que deveria ser necessário exprimir tudo? Temos que ser
`seletivos’, etc.
“Quando afirmei que a época atual é uma época de velhacos, retrucou-me com ódio:
“– O senhor está falando bobagem...
“Não consegui dar uma resposta a essa frase familiar porque na hora
levantamos da mesa. Não se escapa desses grosseirões.”11
Nesses primeiros anos pós-revolucionários, a sátira, que Górki defendera como um gênero necessário para o aprimoramento da literatura
nascente, fora a arma literária utilizada por Bulgákov contra a confusão do
período da NEP, contra o burocratismo que comandava o novo estilo de
vida. Os fatos do cotidiano eram o material por excelência para sua prática
publicística e ficcional. Não se limitava a descrever as situações geradas a
partir de um determinado fato, mas procurava expressar em seus textos a
sensação do homem comum ante o acontecido, reconstruir a ambiência do
momento histórico, recriando a linguagem das ruas, os modismos e os novos
ícones da cultura soviética. Ridicularizou o discurso oficial e sua reprodução
automática na fala do homo sovieticus. Manifestou suas próprias impressões, vestindo a persona do narrador. Com a mesma virulência do comunista Maiakóvski, mas como um sofredor saudosista da intelligentsia, que
sente na pele as novas contradições desse período nebuloso da história da
URSS, combateu com humor ferino a mentalidade pequeno-burguesa renascente, a barbarização dos costumes, o banditismo, a trapaça, a especulação dos novos empresários e comerciantes, desnudando em seus escritos
os contrastes entre a aparência e a essência do fenômeno NEP. E as más
línguas da crítica oficial não lhe davam sossego, como também não davam
11
Anotação de 26/XII/1924, Diari inediti, op.cit., p.47.
- 38 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 33-53, MARÇO,1997
aos demais popúttchiki que não se apressavam em seguir as diretrizes
traçadas pelo Partido.
Uma resolução do Comitê Central do Partido, exarada na I Conferência Panunionista dos Escritores Proletários em 1925, conclamava à luta
contra todas as manifestações de ideologias burguesas em literatura. A resolução não coibia a atividade dos popúttchiki, decerto porque isso implicava um empobrecimento das qualidades artísticas da literatura em formação. Mas a recém-nascida RAPP (Rússkaia Associátsia Proletárskikh
Pissátelei – Associação Russa dos Escritores Proletários), que reunia
sob a mesma sigla todos os agrupamentos de escritores do proletariado
antes dispersos, viu na medida a possibilidade de aumentar a pressão sobre
aqueles que não pertenciam a seus quadros. Para eles criou-se o rótulo
persecutório de escritor neo-burguês. Sob ataque cerrado, popúttchiki e
independentes, de vanguarda ou não, começavam a perder seus espaços.
Uns aderiam, outros silenciavam ou eram silenciados aos poucos. A censura contribuía para aparar as diferenças e promover a “seleção natural” dos
escritores.
Depois da expulsão de Trótski das fileiras do Partido em 1927, da
entrada em vigor do I Plano Quinquenal que pôs fim à NEP no ano seguinte,
e do início do processo de coletivização e de liquidação dos kulaki12 em
1929, as campanhas deflagradas pelos escritores proletários contra os
popúttchki atingiram seu auge. A NEP havia propiciado o renascimento
da vida urbana depois das agruras da guerra civil, mas, a partir das centenas
de aventureiros, especuladores, traficantes e contrabandistas, surgidos na
Rússia durante o período, gerara também os népmani13, que, “recobrindose de etiquetas soviéticas e diluindo grotescamente as teses do comunismo,
contaminavam com sua mesquinhez todos os aspectos da cultura e da
vida”14. Colaborara ainda para a difusão dos modos vulgares e do gosto
artístico equívoco e rasteiro desses novos ricos. “Nos palcos apareceram
melodramas melífluos como os velhos filmes de Bauer, comédias adocicadas que pretendiam divulgar a ideologia soviética com os ultrapassados esquemas do teatro de boulevard.”15
Numa conferência proferida no final de 1927 em Tbilíssi, Maiakóvski
já alertara sobre os prejuízos que representavam para a sociedade de massas as novas modas ditadas pela NEP. “O orador citou exemplos que qualificavam a nova burguesia. Uma moça que trabalhava na fábrica envene12
13
14
15
Plural de rekfr (kulák), termo pejorativo para camponês rico.
Empresário do período da NEP.
Angelo Maria Ripellino, Maiakóvski e o teatro de vanguarda, op.cit., p.163.
Id.ib., pp.163-164.
- 39 -
ANDRADE, Homero Freitas de. A LITERATURA QUE STÁLIN PROIBIU.
nou-se por ter perdido o único saiote de seda, sem o qual não concebia a
própria existência. O operário Bória lê livros franceses, e descontente com
seu nome faz-se chamar Bob. O poeta Moltchanóv numa epístola em versos anuncia à amada que quer substituí-la por outra que tem o peito duro e
uma bela jaqueta’. A casa editora de músicas divulga romanças como Mas
o coração anseia pelo partido. Tais exemplos são testemunho de que os
filisteus estão se infiltrando no ambiente literário e operário.”16 Havia portanto que se retomar os rumos propostos pela Revolução, etc., etc.
O cerco fora se fechando. Sitiadas, a arte apolítica – incluindo-se aí
algumas manifestações remanescentes dos movimentos de vanguarda ocorridos nas duas primeiras décadas do século, – a arte pseudo-comunista dos assim
chamados néo-burgueses e aquela contrária aos interesses do regime começavam a render-se ao controle estatal sob o fogo cerrado da crítica, ou sucumbiam
às perseguições da polícia política. Por enquanto, oferecia-se a derradeira oportunidade às ovelhas tresmalhadas de se integrarem ao rebanho.
Já em seu número de setembro de 1929, a revista Jizn Iskússtva
estampava que “Bulgákovs e Zamiátins convivem pacificamente na União
dos Escritores ao lado dos verdadeiros artistas soviéticos da palavra”17.
Zamiátin acabara de publicar em Paris o romance fantástico Nós, que pintava um quadro terrível do futuro da URSS, e vinha sofrendo o
bombardeamento da crítica. Em outubro, ele se desligava da União Panrussa de Escritores através de carta publicada na Literatúrnaia Gazeta (7/
10/1929), alegando que a entidade colaborava na perseguição de seus membros. Em sinal de solidariedade ao amigo e de protesto contra sua própria
situação, alguns popúttchiki também pediram seu desligamento. Para esses escritores o gesto correspondia praticamente a uma tentativa de suicídio. Afastados dos quadros da literatura oficial, seriam mais rapidamente
engolidos pelo silêncio.
Para ilustrar o desespero que se abatera sobre os popúttchiki renitentes e para se formar uma idéia mais clara de sua situação no contexto da
época é interessante transcrever na íntegra a carta que Bulgákov dirigiu em
1930 às instâncias superiores, no caso o maioral do Partido e “paizinho” de
todas as Rússias, Ióssif Vissariónovitch Stálin18:
“1. Após todas minhas obras terem sido proibidas, começaram a ecoar vozes entre muitos cidadãos dos quais sou conhecido como escritor, que
me dão sempre o mesmo conselho:
16
17
18
Id.ib., p.170. Resumo publicado originalmente no jornal Pfhz Djcnjrf (Alvorada do
Oriente), Tíflis (Tbilissi), 13/XII/1927.
Cf. M. Tchudakóva, op.cit., p.323.
Traduzida a partir do texto publicado em KU_Ljcmt (LG-Dossiê)5, cit., p.12.
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Escrever uma ‘peça comunista’ (cito entre aspas) e, além disso, dirigir ao Governo da URSS uma carta de arrependimento, contendo a negação de opiniões precedentes manifestadas por mim nas obras literárias, e
assegurando que doravante hei de trabalhar como um escritor popúttchiki,
fiel à idéia do comunismo.
Objetivo: escapar à perseguição, à miséria e à morte inevitável ao final.
Não dei ouvidos a esse conselho. É pouco provável que lograsse
aparecer num aspecto favorável aos olhos do Governo da URSS, tendo
escrito uma carta mentirosa, o que por si representa um podão político sórdido e, ainda por cima, ingênuo. Nem mesmo ia tentar escrever uma peça
comunista, sabendo naturalmente que não conseguiria.
Amadurecido em mim o desejo de acabar com meus tormentos de escritor, vejo-me obrigado a dirigir ao Governo da URSS uma carta verdadeira.
“2. Após uma análise de meus álbuns de recortes, descobri que durante esses dez anos de produção literária foram publicadas na imprensa da
URSS 301 referências à minha pessoa. Delas, 3 eram elogiosas e 298 hostis
e ofensivas.
As últimas 298 representam por si uma imagem especular de minha
vida de escritor.
O herói de minha peça Os dias dos Turbín, Alekséi Turbín, foi chamado em versos na imprensa de “FILHO DE UMA CADELA”, e o autor
da peça apresentado como “Possesso de uma VELHICE CANINA”. Escreviam sobre mim como um “FAXINEIRO literário” que cata as sobras de
comida depois que “uma dúzia de convidados já SE REFESTELOU”.
Escreviam assim:
“MICHKA Bulgákov, meu compadre, o ESCRITOR, DESCULPE
A EXPRESSÃO, vasculha o LIXO INFECTO... Pergunto: o que significa
isso, maninho, que cara amarrada é essa?...Sou pessoa delicada, agarre-o e
além disso BATA NA NUCA DELE COM UM TACHO... Nós, sem os
Turbín, somos para o pequeno-burguês semelhantes a um SUTIÃ PARA
CACHORRO, desnecessários... Foi encontrado, O FILHO DE UMA CADELA, FOI ENCONTRADO TURBÍN, QUE ELE NÃO ENCONTRE
NEM O PÚBLICO NEM O SUCESSO...” (Jizn Iskússtva, no44, 1927).
Escreviam “Sobre Bulgákov, o qual foi e continuará sendo um REBENTO NÉO-BURGUÊS, que espirra sua baba venenosa, mas inócua,
sobre a classe trabalhadora e seus ideais comunistas” (Komsomólskaia
Pravda, l4/X/1926).
Informavam que me agrada uma “ATMOSFERA DE CASAMENTO CANINO em torno da esposa ruiva de um certo amigo”(A.Lunatchárski,
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Izvéstia, 8/X/1926), e que minha peça Os dias dos Turbín “FEDE”
(estenograma da conferência junto ao Aguitprop, maio de 1927), etc., etc...
Apresso-me a informar que não cito absolutamente para me queixar
de uma crítica ou para armar qualquer polêmica que seja. Meu objetivo é
muito mais sério.
Eu provo com os documentos em mãos que, no decorrer dos anos de
meu trabalho literário, toda a imprensa da URSS e juntamente com ela todas as instâncias encarregadas do controle de repertórios têm comprovado
com unanimidade e com uma sanha extraordinária que as obras de Mikhail
Bulgákov não podem existir na URSS.
E eu declaro que a imprensa da URSS tem toda a razão.
“3. Como ponto de partida desta carta utilizarei meu libelo A ilha
púrpura.
A crítica da URSS em geral, sem exceções, acolheu a peça com a
declaração de que ela é “uma nulidade, inócua, deplorável” e que representa um “pasquim contra a revolução”.
Mas a unanimidade geral foi rompida de modo inesperado e absolutamente surpreendente.
No no12 do Boletim do Repertório (1928) apareceu uma resenha de
P.Novítski, onde se informava que A ilha púrpura “consiste numa paródia
interessante e espirituosa”, na qual “ergue-se a sombra funesta do Grande
Inquisidor, que cultiva os CHAVÕES DRAMATÚRGICOS
BAJULADORES-RIDÍCULOS SERVIS, que anula a personalidade do ator
e do escritor”, que A ilha púrpura aborda “a força sinistra e sombria que
forma HILOTAS, ADULADORES E ENCOMIASTAS...”
Afirmou-se que “se tal força sombria existe, A INDIGNAÇÃO E O
ESPÍRITO MORDAZ DO CÉLEBRE DRAMATURGO DA BURGUESIA FORAM JUSTIFICADOS.”
Se é lícito perguntar, onde está a verdade?
O que é A ilha púrpura afinal? – “Uma peça inócua e deplorável”
ou esse tal “libelo espirituoso”?
A verdade está na resenha de Novítski. Não me proponho a julgar
até que ponto minha peça é espirituosa, mas reconheço que nela ergue-se
realmente uma sombra funesta, a sombra do Comitê Central de Repertórios. É ele que forma hilotas, encomiastas e aterrorizados “obsequiadores”. É
ele que mata a idéia criadora. Ele vem destruindo a dramaturgia soviética e
acabará por aniquilá-la.
Eu não cochichava esses pensamentos pelos cantos. Eu os inseri
num libelo dramatúrgico que levei à cena. A imprensa soviética, intercedendo em prol do Comitê Central de Repertórios, publicou que A ilha púrpura
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é um pasquim contra a revolução. Trata-se de uma fofoca desprezível. Na
peça não há um pasquim contra a revolução por vários motivos, dos quais por
falta de espaço assinalo apenas um: um pasquim contra a revolução, devido à
extraordinária grandiosidade desta, é IMPOSSÍVEL de ser escrito. Um libelo
não é um pasquim, e o Comitê Central de Repertórios não é a revolução.
Porém, quando a imprensa alemã escreve que A ilha púrpura “é o
primeiro apelo à liberdade de imprensa na URSS” (Molodáia Gvárdia
(Jovem Guarda), no 1, 1929), ela está escrevendo a verdade. Isso eu reconheço. Lutar contra a censura, qualquer que seja ela e decorrente de qualquer espécie de poder, é meu dever de escritor, assim como apelar à liberdade de imprensa. Sou admirador fervoroso dessa liberdade e creio que se
um escritor cismasse em demonstrar que não precisa dela, ele seria comparável a um peixe afirmando em público que não precisa de água.
“4. Este é um dos traços de minha criação, e sozinho ele basta perfeitamente para que minhas obras não existam na URSS. Mas ao primeiro
traço ligam-se todos os demais que se destacam em minhas novelas satíricas: as cores sombrias e místicas (eu sou um ESCRITOR MÍSTICO) com
que são apresentadas inúmeras monstruosidades de nosso modo de vida, o
veneno de que se impregna minha língua, o ceticismo profundo em relação
ao processo revolucionário desencadeado neste meu atrasado País, e a
contraposição a ele da preferida Grande Evolução, e o mais importante: a
representação de terríveis traços de meu povo, daqueles traços que bem
antes da revolução faziam sofrer profundamente meu mestre M.E.SaltikóvSchedrín.
Inútil dizer que a imprensa da URSS também não pensou seriamente
em mencionar isso, ocupada com informações pouco convincentes a propósito de que na sátira de M.Bulgákov reside a “CALÚNIA”.
Somente uma única vez, no começo de minha carreira, observaram
com laivos de altivo espanto:
“M.Bulgákov DESEJA ser o satírico de nossa época” (Knigonócha
(O livreiro ambulante), no 6, 1925).
Infelizmente e em vão o verbo “desejar” é empregado no tempo presente. Deve-se passá-lo para o mais-que-perfeito: M.Bulgákov DESEJARA SER UM SATÍRICO, e justamente num tempo em que toda sátira
autêntica (aquela que penetra em zonas proibidas) é absolutamente inadmissível na URSS.
Não tocou a mim a honra de manifestar na imprensa esse pensamento criminal. Foi expresso com extrema clareza no artigo de V.Blium
(Literatúrnaia Gazeta, n o 6), e o pensamento desse artigo cabe
magnificamente bem numa única fórmula:
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TODO E QUALQUER SATÍRICO NA URSS ATENTA CONTRA
O REGIME SOVIÉTICO.
Será que sou admissível na URSS?
“5. E, finalmente, os últimos traços estão nas peças proibidas Os dias
dos Turbín, A corrida e no romance O Exército Branco: a imagem recorrente da intelligentsia como a melhor camada em nosso País. De modo
particular, a representação da comunidade da intelligentsia aristocrática,
que por caprichos de um destino histórico inexorável, durante os anos de
guerra civil, atirou-se para o acampamento do Exército Branco, nas melhores tradições de Guerra e paz. Tal representação é perfeitamente natural
para um escritor intimamente ligado a intelligentsia.
Porém esse gênero de representação faz com que na URSS seu
autor seja colocado em pé de igualdade com seus heróis, ele recebe – apesar de seus grandes esforços em PERMANECER IMPAVIDAMENTE
ACIMA DE VERMELHOS E BRANCOS – um atestado de inimigo Branco
e, tendo recebido, como todo mundo sabe, pode considerar-se um homem
acabado na URSS.
“6. Meu retrato literário está completo e não deixa de ser também um
retrato político. Não posso dizer de que natureza é o crime que se pode
encontrar nele, mas peço um único favor: não procurem nada além de seus
contornos. Ele está perfeita e conscienciosamente delineado.
“7. Atualmente estou destruído.
Essa destruição foi recebida com muita alegria pela opinião pública
soviética e classificada como um “ÊXITO”.
R.Pikel, constatando minha destruição (Izvéstia, 15/X/1929), manifestou um pensamento liberal:
“Não pretendemos dizer com isso que o nome de Bulgákov foi riscado do rol dos dramaturgos soviéticos”.
E deu esperanças ao escritor degolado, dizendo que se referia “às
suas obras dramatúrgicas anteriores”.
No entanto, a vida, na figura do Comitê Central de Repertórios, demonstrou que o liberalismo de R.Pikel carecia de qualquer fundamento.
Em l8 de março de 1930, recebi do Comitê Central de Repertórios
um papel informando laconicamente que, não uma das anteriores, mas minha nova peça A servidão dos hipócritas (Molière) NÃO FORA LIBERADA PARA EXIBIÇÃO.
Serei breve: por duas linhas de um papel foram enterrados o trabalho
em bibliotecas, minha fantasia, uma peça que recebeu de qualificados especialistas em teatro inúmeras referências quanto a ser uma peça brilhante.
R.Pikel equivocava-se. Não só minhas peças anteriores foram condenadas, mas as atuais e todas as futuras. E eu pessoalmente, com minhas
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próprias mãos, atirei no fogo o rascunho de um romance sobre o diabo,
outro de uma comédia e o início do segundo romance O teatro.
Não há esperança para minhas obras.
“8. Peço ao Governo Soviético levar em consideração que não sou
um político, mas um literato, e que destinei toda minha produção à cena
soviética.
Peço a atenção para duas referências sobre minha pessoa, aparecidas
na imprensa da URSS.
Partem ambas de inimigos intransigentes de minhas obras, e por isso
são muito valiosas.
Em 1925, escreveram:
“Surge um escritor QUE NÃO COMBINA NEM COM AS CORES DOS COMPANHEIROS DE JORNADA” (L.Averbakh, Izvéstia,
20/IX/1925).
“Seu talento é tão evidente quanto o reacionarismo social de sua obra”
(R.Pikel, Izvéstia, 15/IX/1929).
Peço levar em consideração que para mim a impossibilidade de escrever equivale a ser enterrado vivo.
“9. PEÇO AO GOVERNO DA URSS ORDENAR EM CARÁTER DE URGÊNCIA QUE EU DEIXE O PAÍS EM COMPANHIA
DE MINHA MULHER LIUBÓV EVGUÉNIEVNA BULGÁKOVA.
“10. Apelo ao senso humanitário do poder soviético e peço para
mim, escritor que não pode ser útil em sua terra natal, a generosidade de
deixar-me em liberdade.
“11. Se o que escrevi não convence muito e me condenarem ao silêncio vitalício na URSS, peço ao Governo Soviético que me ofereça um trabalho no ramo teatral e me empregue como diretor titular num teatro.
Eu, justamente, de modo preciso e específico venho solicitar UMA
ORDEM CATEGÓRICA, UM EMPREGO, porque todas as minhas tentativas de encontrar trabalho neste único domínio em que posso ser útil à
URSS, como especialista de excepcional qualidade, redundaram num fiasco
absoluto. Meu nome tornou-se a tal ponto odioso que minhas propostas de
trabalho, apesar de meu conhecimento virtuosístico da cena ser bem conhecido em Moscou de uma imensa quantidade de atores e diretores, assim
como de administradores de teatro, causaram PAVOR.
Proponho à URSS, sem qualquer sombra de sabotagem, um especialista em direção e ator da maior probidade, que se encarregará de encenar
qualquer peça, das shakespearianas àquelas da atualidade.
Peço que me nomeiem auxiliar de direção no I Teatro de Arte de
Moscou – a melhor escola, dirigida pelos mestres K.S.Stanislávski e
V.I.Nemiróvitch-Dántchenko.
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Se não for designado diretor, solicito que o seja como figurante efetivo.
Se figurante efetivo não for possível, solicito que o seja como operário de palco.
Se isso também não for possível, peço ao Governo Soviético que faça
de mim como achar necessário, mas que faça alguma coisa, porque a mim,
dramaturgo de 5 peças, conhecido na URSS e no Exterior, restam no PRESENTE MOMENTO a miséria, a rua e a ruína.
Moscou, 28 de março de 1930
M.Bulgákov.”
Ao enviar essa carta simultaneamente aos maiorais Stálin, Molotóv,
Kagánovitch, Kalínin, Iágoda, Búbnov e F.Kon, Mikhail Bulgákov sentira-se
mais aliviado num primeiro momento. Sua derradeira sorte fora lançada.
Depois, o suspense criado em torno de uma resposta (haveria uma?) afundou-o num estado semelhante ao de um doente desenganado pelos médicos. O Governo poderia desvirtuar o conteúdo da carta e usá-la como uma
espécie de confissão de culpa, mandar detê-lo na calada da noite e montar
alguma farsa quanto a seu desaparecimento. Poderia ainda não tomar conhecimento de suas reivindicações, deixando ao tempo e aos “verdugos” da
imprensa a tarefa de resolver a questão. E daí também não haveria saída
para ele. Se agora até o próprio Maiakóvski, após a estréia de Os banhos,
tinha se tornado a vítima mais recente das campanhas difamatórias promovidas pelos críticos “obsequiadores” do Comitê Central de Repertórios...19
Na melhor das hipóteses iriam arranjar-lhe uma colocação qualquer longe
da capital e em desacordo com seus talentos profissionais e artísticos, o que
equivaleria a continuar como um enterrado vivo.
A situação era trágica e prenunciava um desfecho correspondente.
Por muito menos outros dissidentes do regime já haviam sido eliminados.
Porém, um fato gravíssimo, trágico mesmo, pode ter sido o responsável pela
salvação do escritor. Na manhã do dia 14 de abril, após violenta discussão,
a atriz do MKhAT Verónika V.Polónskaia, mulher do também ator
M.M.Iánchin, e que à época mantinha um caso amoroso com Maiakóvski,
preparava-se para sair do estúdio do Poeta num prédio da praça Lubianka.
Foi quando, segundo relato da própria atriz20, “ouviu-se o estampido de um
tiro. Minhas pernas amoleceram, gritei e fiquei desesperada naquele corredor; não conseguia forçar-me a voltar para o estúdio.
“Tenho mesmo a impressão de que muito tempo se passou antes que
me decidisse a fazê-lo. Aparentemente, porém, devo ter entrado logo depois, já que ainda se via, no quarto, a nuvem de fumaça do tiro.
19
20
Cf. “Intervenção no debate sobre Os banhos realizado na Casa da Imprensa em Moscou”,
in A poética de Maiakóvski através de sua prosa, op.cit., pp.257-259.
In Djghjcs Kbnthfnehs (Questões de Literatura)5, 1987, cit., pp.152-198.
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“Vladímir Vladímirovitch estava estendido sobre o tapete de braços
abertos. Em seu peito havia uma minúscula mancha de sangue.
“Lembro que me atirei sobre ele, repetindo sem parar:
“ – Que foi que você fez? Que foi que você fez?
“Ele estava de olhos abertos, olhava fixamente para mim e tentava
levantar a cabeça.
“Parecia querer dizer algo, mas seus olhos já estavam sem vida.
“Seu rosto e seu pescoço estavam vermelhos, mais vermelhos do que
de hábito. Daí sua cabeça tombou novamente e ele começou a empalidecer
cada vez mais.”
Comoção geral. Bandeiras vermelhas a meio pau. Durante as cerimônias oficiais em grande estilo, boatos de que o Poeta não se matara somente por motivos passionais. Perplexidade. Parecia haver mais que isso.
Maiakóvski fora corpo e alma de uma revolução, empenhara sua palavra e
sua vida nos objetivos dessa revolução que ademais perdia seus contornos;
sua força literária e ideológica antes inabalável começava a ser posta em
dúvida; depois de Os banhos a crítica não lhe dava sossego e o Comitê
Central de Repertórios chegara a apontar na peça elementos daquela criação “neo-burguesa” que ele próprio tanto combatera; o público recebera
com indiferença a exposição-aniversário em homenagem aos 20 anos da
produção artística do poeta oficial da Grande Revolução de Outubro...
Enfim, “Maiakóvski foi destruído pela destruição do futuro, daquele
futuro para o qual se lançara desde os tempos do futurismo. Ele, que
esbofeteara o filisteísmo burguês pré-revolucionário, viu-se rodeado, depois
da Revolução, por um filisteísmo agigantado, que já não se deixava esbofetear
e contratacava com uma agressividade cruel. Ele, que não fizera distinção
entre ‘vanguarda’ artística e vanguarda revolucionária, viu-se esmagado
por uma ‘nova’ cultura retrógrada, que a Revolução tornara invencivelmente
forte. Ele, que buscava amor e liberdade, encontrou crescente desamor e
falta de liberdade. E solidão.”21
Porém, no dia seguinte aos funerais de Maiakóvski, aos quais comparecera em companhia de Katáiev, Ilf e Oliécha, como sempre fazia depois
do almoço, Mikhail Bulgákov deitou-se para fazer a sesta, quando o telefone tocou. Liuba, sua mulher, foi atender: era do Kremlin, Stálin queria falar
com Bulgákov. “M.A. não acreditou, pensou tratar-se de um trote (eram
comuns na época) e, nervoso, irritado, agarrou o fone e ouviu:
“– Mikhail Afanássevitch Bulgákov?
“– Sim, sim.
21
V.Strada, “Perchè Majakovskji non poteva invecchiare”, in URSS/Russia, op.cit., p.154.
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“– Agora o camarada Stálin vai falar com o senhor.
“– O quê? Stálin? Stálin?
“E no mesmo instante ouviu uma voz com um nítido sotaque georgiano:
“– Pronto, é Stálin falando. Boa tarde, camarada Bulgákov.
“– Boa tarde, Ióssif Vissariónovitch.
“– Nós recebemos sua carta. Li com os camaradas. O senhor vai
obter uma resposta favorável... Será que realmente devemos deixá-lo partir
para o estrangeiro? Nós o aborrecemos tanto assim?
“M.A. disse que não esperava absolutamente por essa pergunta (assim como não esperava o telefonema), que ficara desconcertado e demorara a responder:
“– Pensei muito nos últimos tempos se um escritor russo poderia
viver fora de sua terra. E me parece que não.
“– O senhor tem razão. Também penso assim. Onde quer trabalhar?
No Teatro de Arte?
“– Sim, eu gostaria. Mas falei sobre isso e me recusaram.
“– Entre com um requerimento. Acho que vão concordar. Precisamos nos encontrar para uma conversa...
“– Sim, sim, Ióssif Vissariónovitch, preciso muito conversar com o
senhor!
“– Sim, é preciso arranjar tempo e teremos um encontro, sem falta. E
agora desejo-lhe felicidades.”22
Esse encontro nunca aconteceria. Mas quais teriam sido as razões
que levaram Stálin a ligar para Bulgákov e depois arranjar-lhe a colocação
desejada? O que representaria para a vida do escritor essa guinada em sua
relação com o poder soviético? Quais seriam os novos limites de seu horizonte? No ensaio “Bulgákov e il suo rè Stalin”23, V.Strada apresenta a respeito algumas pistas interessantes: “Para Bulgákov esse embate com Stálin
foi duplamente fatal: sua vida foi salva, mas na salvação que lhe fora conferida
pelo tirano ele viu uma espécie de intervenção imperscrutável que a força
do mal fazia, operando involuntariamente o bem. A essa interpretação devia
induzi-lo também seu amor por Molière, do qual escrevera uma biografia e
em cuja vida via quase uma cópia da sua (...). Como Molière, ele, Bulgákov,
tinha sido a vítima das intrigas dos carolas (marxistas, para ele) e somente o
soberano (Luís XIV no caso de Molière e Stálin, no caso dele) tivera o
22
23
De acordo com relato do escritor a Eliena Serguéievna na noite de 18/IV/1930; cf. ^Bp
gjplys[ lytdybrjd^ (“Dos últimos diários”), in Lytdybr Tktys <ekufrjdjq (Diário
de Eliena Bulgákova), op.cit., pp.299-300.
In URSS/Russia, op.cit., pp.154-159. A citação traduzida encontra-se à p.157 do original
em italiano.
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poder de conceder algum sorvo de vida, uma vida amarga, mas também
sempre suficiente não para simplesmente sobreviver, mas para criar e viver
no futuro. No grande mecanismo da tirania, pululante de servos cegos pela
covardia e pela ideologia, dois seres apenas são livres: o artista e o soberano. O último pode excepcionalmente transformar o próprio poder de opressivo em liberador, quando concede ao artista, isento da ideologia do domínio,
ser soberano a seu modo, isto é, testemunha verdadeira de um mundo de
mentira. Mas Stálin não era Luís XIV e sua intervenção salvadora, afora a
particular admiração por Os dias dos Turbín, era ditada, muito provavelmente, por considerações bem práticas, como a inoportunidade política de
permitir um novo suicídio literário depois daquele recentíssimo ( de 14 de
abril) de Maiakóvski que sacudira a opinião pública soviética”.
Memórias, reminiscências, biografias entravam agora na crista da
onda e faziam parte da estratégia propagandística do Partido, que começava a introduzir o culto da personalidade no cotidiano da cultura soviética. A
par dessa intenção não declarada, havia, de um lado, o objetivo educacional
que visava a massificação do conhecimento (sobretudo no que se refere a
biografados estrangeiros) e, de outro, a necessidade de se elaborar documentos que pudessem servir de fonte aos historiadores do mundo soviético
(caso das obras que retratavam – e por vezes forjavam – a vida dos heróis
da Revolução). Da Itália, Górki comandava para uma editora estatal soviética a coleção Vidas Ilustres. A iniciativa parecia alvissareira especialmente para aqueles escritores caídos no ostracismo e que viam nela uma possibilidade de voltar a publicar. Entretanto, mesmo nesse gênero não escapavam da perseguição sistemática que a censura movia contra eles, e para
serem publicados deviam seguir à risca as orientações partidárias.
Tem-se em Bulgákov, novamente, um exemplo de como as coisas se
passavam nesse âmbito. Impedido de publicar sua obra de ficção, o escritor
escrevera uma biografia de Molière. Tão logo o editor leu o material, escreveu a Bulgákov, criticando o trabalho e comunicando que remetera o manuscrito da obra, acompanhado de seu parecer, a Górki, em Sorrento. O
editor atacava sobretudo o narrador inventado por Bulgákov, o qual não
mantinha com seus aforismos e frases de espírito o distanciamento desejável em relação aos fatos narrados; que não era um “narrador marxista”,
pois abordava e interpretava os materiais históricos e biográficos de seu
próprio (e portanto discutível) ponto de vista; que não deixava claro a que
classe ou grupo social “servia” o teatro de Molière; que se permitia ambigüidades narrativas que resultavam em inequívocas alusões à realidade soviética, etc., etc.; para concluir, dizendo que o narrador escolhido devia ter
sido um “historiador soviético sério”. Górki, por sua vez, respondia ao editor:
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ANDRADE, Homero Freitas de. A LITERATURA QUE STÁLIN PROIBIU.
“Concordo plenamente com sua bem fundamentada avaliação do trabalho
de M.A.Bulgákov. É preciso não só completá-lo com materiais históricos,
bem como conferir-lhe uma dimensão social – deve-se mudar seu estilo
‘brincalhão’. Neste aspecto, não se trata de um trabalho sério e o Sr. aponta
isso corretamente – a obra será violentamente condenada”24. Dito e feito: a
obra não foi publicada, uma vez que o autor recusou-se a modificá-la25.
Em maio de 1934, o Governo aboliu todas as associações de escritores proletários ou não, e criara uma nova e única União de Escritores, visando estabelecer um controle mais efetivo e rigoroso (!) sobre a produção
literária nacional, as polêmicas e dissidências de escritores. Era o penúltimo
passo rumo à implantação da estética oficial do assim chamado “realismo
socialista”. O I Congresso da União dos Escritores Soviéticos, realizado em
agosto de 1934, dezessete anos após a Revolução de Outubro, representou
não só um balanço do que se produzira desde então, como também o golpe
fatal desferido contra a literatura que teimava em sobreviver a contrapelo
das orientações do Partido.
Se, em linhas gerais, numa primeira fase (1917-1927) a literatura russo-soviética em formação fora incitada a “despertar as massas” para a
Revolução, e numa segunda (1928-1934) a priorizar a temática da formação do novo homem, o homo sovieticus, nessa terceira, que ora se iniciava, ela deveria exaltar a superioridade da estrutura social soviética. Para
isso, havia que se enxergar as coisas através dos olhos do Partido e constatar a realidade socialista que ele vinha criando.
A espinha dorsal das discussões desse I Congresso foi o tal “realismo
socialista”, o realismo do Partido, como único método a ser aplicado para o
desenvolvimento dessa nova etapa da política cultural, que previa “a criação
de obras de alto valor artístico, impregnadas da luta heróica do proletariado
mundial e da grandeza da vitória do socialismo, que refletem a grande sabedoria e heroismo do Partido Comunista...”26, como rezava no estatuto da
própria União. Estava encerrada, portanto, a etapa mais criativa da literatura soviética enquanto tal. A ênfase nos conteúdos propostos em detrimento
da experimentação formal, como se forma e conteúdo pudessem viver
dissociados, levaria à produção, com raras exceções, de obras literárias
anódinas, distantes daqueles padrões de excelência artística aos quais a
literatura russa se habituara desde Púchkin.
24
25
26
Carta de 28/IV/1933. Cf. M. Tchudakóva, op.cit., pp.373-374.
A vida do Senhor de Molière seria publicada apenas em 1962, durante o período do governo
Khruschóv, vinte e um anos após a morte do escritor.
Citado a partir de “Il primo Congresso degli scrittori sovietici”, in Storia della letteratura
russa contemporanea, cit., p.538.
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Doravante, estava definitivamente proibida a liberdade de expressão e
de criação na URSS. Não haveria mais escritores na verdadeira acepção da
palavra, mas burocratas da literatura. Aos contraventores e dissidentes,
falaciosamente tratados como “inimigos do povo”, o “pai supremo da família
soviética”, o “sol da Rússia” responderia com a escuridão das masmorras e a
morte. A partir de meados de 1936 foram instituídos os processos políticos de
triste memória, conhecidos posteriormente como “processos de Moscou”, que
durante mais de dois anos mergulhariam a URSS no terror desenfreado e
culminariam com o início do grande expurgo em 1938. O objetivo era varrer
da face da URSS os elementos perniciosos à construção da sociedade do
“socialismo real” e eliminar a mais leve oposição ao poder de Stálin.
Dois anos antes, para ocupar em larga escala os quadros dirigentes
com pessoal de sua confiança e fortalecer a nomenclatura stalinista, o ditador precisara promover a limpeza desses quadros, formados ainda, em sua
maioria, pela velha guarda leninista. Em 1929, ele conseguira expulsar Trótski
para o Exterior. Mas como aniquilar os velhos bolcheviques, destituí-los dos
cargos que ocupavam, se tinham posto toda sua vida a serviço da Revolução? Fora necessário, antes de mais nada, desencadear uma campanha
difamatória capaz de destruir a autoridade moral de que gozavam. Transformar esses revolucionários de longa data em criminosos traidores dos
ideais de que eram os mais ferrenhos defensores. Mistificação. O assassínio de Kírov, secretário do Partido em Leningrado, (a mando do próprio
Stálin, segundo Khruschóv) em 1934, tinha sido o estopim. Responsabilizados,
os velhos leninistas foram sendo presos, torturados nos porões da Lubianka
ou da prisão de Lefórtovo, e, antes de morrer, obrigados a se retratar de
crimes especialmente inventados para a ocasião. A cada “confissão”, arrancada por métodos de tortura que teriam feito inveja a Okhrana dos
tempos do tzar, surgiam novos nomes. Prisões em cascata.
“Inimigos do povo” passaram a ser caçados em todos os setores da
vida nacional: no Governo, exército, administração pública, universidades,
imprensa, meios artísticos e científicos, e no próprio Partido. A exemplo do
que já ocorrera, ainda que em escala menor, logo após a guerra civil e nos
estertores da NEP, a delação tornava-se novamente a principal arma de
combate à dissidência. Os olhos e ouvidos da onipresente polícia política
estavam mais do que nunca atentos ao menor gesto, à menor palavra em
desacordo com a ideologia dominante. Ninguém estava livre das detenções,
deportações e execuções sumárias. Não raro, os acusadores do início tornar-se-iam os futuros acusados nesses processos.
Primeiro, em agosto de 1936, as vítimas escolhidas tinham sido acusadas de um crime de alta traição: pertencerem ao “centro terrorista Trótski- 51 -
ANDRADE, Homero Freitas de. A LITERATURA QUE STÁLIN PROIBIU.
Zinoviév”. Em janeiro de 1937, o expurgo concentrou-se ainda sobre remanescentes do trotskismo. Em janeiro de 1938, os acusados “reconheceriam”
suas culpas como agentes de Hitler e de Trótski, como sabotadores, espiões, terroristas e partidários da restauração do capitalismo na URSS.
Escritores e artistas famosos desapareciam da noite para o dia sem
que ninguém ousasse protestar. Seus nomes eram simplesmente riscados
do panteão das artes soviéticas, suas obras sumiam de circulação junto com
eles. Judeus como Mandelstam27, Bábel, Meyerhold (dissidentes ou não),
fiéis guardiães da ortodoxia comunista como Angaróv, os críticos Averbakh
e Pikel, o publicista Koltsóv e outros, dramaturgos e escritores alinhados
com o regime, como Pilniák, Kirchon, Afinoguénov, A. Efros, caíam indistintamente em desgraça. Ao mesmo tempo, os não perseguidos eram agraciados com a Ordem de Lênin, ou elevados à condição de artistas do povo
soviético, além de gozarem de outras benesses outorgadas pelo poder. E
apenas o acaso talvez explique o fato de autores como Bulgákov, Pasternak,
Akhmátova, Tsvetáieva, A.Tolstói e outros poucos terem escapado aos rigores da repressão cega, ainda que depois, e em épocas diferentes, fossem
condenados ao ostracismo. Somente após a morte de Stálin e depois de
Khruschóv ter “denunciado” os crimes do ditador, iniciaram-se lentamente
os processos de reabilitação de alguns dos escritores condenados pelo
stalinismo.
27
Já nessa época, Nadiéjda Mandelstam memorizava toda a obra poética do marido. O mesmo
fazia uma amiga íntima de A.Akhmátova, a cada novo poema que ela escrevia, antes de
queimá-lo num cinzeiro.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 33-53, MARÇO,1997
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- 53 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 55-61, MARÇO,1997
A EDUCAÇÃO NO JUDAÍSMO
Ana Szpiczkowski
Para se falar de educação no judaísmo, é importante entendê-la dentro de um contexto mais amplo, que envolve a concepção de mundo, a inserção do homem nele e a compreensão que se tem do homem enquanto agente. A educação, ao longo dos tempos, tem sido percebida sob diferentes
prismas, dependendo da cultura à qual está vinculada, e isso porque cada
povo possui princípios norteadores relacionados ao seu desenvolvimento
educacional.
O povo judeu tem seu modo próprio de encarar a educação, a começar por sua definição.
Embora na língua hebraica seja feita uma distinção entre educação Hinukh – e ensino – Limud, demonstrando uma diferença conceitual entre
ambos, é preciso salientar que há, no judaísmo, uma preocupação constante
com a transmissão dos conhecimentos e valores, partindo de um princípio
básico, que é o da associação da prática à teoria, baseada nos preceitos
apontados na Bíblia.
Considerando-se que um dos preceitos básicos do judaísmo consiste
em ensinar e estudar a Bíblia, essa transmissão de valores inicia-se ainda
em casa, quando a criança é pequena, e estende-se aos mestres, quando o
educando já se encontra em idade escolar. Por sinal, essa idéia é encontrada em Deuteronômio (6:7), no versículo: “E as intimarás a teus filhos”.
Também Maimônides, no seu 11o mandamento refere-se a “Ensinar e estudar a sabedoria da Torá”, numa referência explícita à presença da Torá
durante toda a vida da pessoa, uma vez que é atribuída aos idosos, a sabedoria adquirida pelo estudo iniciado ainda na infância e continuado no decorrer
da vida . Nessa concepção, as meditações de um nonagenário têm por objeto a mesma Torá que a criança de cinco anos começa a estudar.
Também em um dos tratados do Talmud (Lei oral) o Pirkei Avot
(Ética dos Pais), é possível encontrar uma alusão à questão do amadurecimento para o estudo, isto é, que considera o nível de desenvolvimento do
estudioso, estabelecido pela faixa etária. Assim, a máxima: “Aos cinco anos
é tempo de começar o estudo da Escritura; aos dez anos, o da Mischná:
aos treze anos, o dos Mandamentos; aos quinze, o do Talmud; aos dezoito anos é tempo de casar; aos vinte, é tempo de perseguir o trabalho; aos trinta, plenitude da força física; aos quarenta, do entendimen- 55 -
SZPICZKOWSKI, Ana. A EDUCAÇÃO NO JUDAÍSMO.
to; aos cinqüenta, do conselho; aos sessenta começa a velhice; aos
setenta, as cãs; aos oitenta, se houver vigor; aos noventa começa o
encurvamento; aos cem é como se estivesse morto, passado e extinto
do mundo” (Avot:5:21(22)), nos permite entender que a idade do estudante deve ser considerada, por suas características intelectuais e emocionais, para um melhor aproveitamento e desenvolvimento. Também a experiência dos mais velhos é considerada essencial para o aprimoramento das
novas gerações e para a longevidade dos conhecimentos. Por sinal, o 209o
mandamento de Maimônides “Honrar os eruditos e os idosos”, também
ressalva a importância de se deferir idosos e eruditos, porque a educação se
recebe e se transmite por herança, como é possível encontrar em
Deuteronômio, “Moisés nos deu também a lei por herança da congregação de Jacó” (33:4).
Cabe ao pai começar a ensinar a Torá ao filho, desde quando ele
inicia as suas primeiras palavras, por meio da repetição de alguns versículos
bíblicos, como vemos em:“Quando a criança começa a falar, seu pai lhe
ensinará a Torá e a fará repetir o Schmá,”(Tratado de Sucá, na ordem de
Moed, 42-a)
Toda cidade deverá ter obrigatoriamente um professor, cuja importância é equivalente à de um médico, de uma sinagoga e de um tribunal
rabínico, para que não haja a interrupção de estudos, por motivo algum, sob
pena de ser colocada no ostracismo. Assim, aos seis ou sete anos, a criança
continua sua educação com um professor remunerado.
O professor ou mestre é, muitas vezes, tratado pelo título de Talmid
Hakham – (discípulo do Sábio), associado ao estudioso litúrgico, que se
ocupa do estudo e do ensino da Torá, e que nunca acaba de aprender. Isto
porque o dever do judeu consiste não somente em estudar, mas também em
transmitir seus conhecimentos à geração seguinte.
Os Eruditos – Talmidei Hakhamim (discípulos dos Sábios) – constituem a elite na cultura judaica e representam um ideal que os outros tentam atingir.
Os Sábios são eternos estudantes, pois o mestre considera a si mesmo como um aluno, como um Talmid Hakham. Trata-se de um grupo
aberto, que sempre encoraja os outros a ingressarem em suas fileiras, desde
que demonstrem capacidade escolástica. Devem ser capazes de estudar e
entender a Bíblia, o que requer alto grau de capacidade intelectual, e ser
dotado de qualidades espirituais e humanitárias para uma conduta moral e
observância estrita dos preceitos. O erudito simboliza não só o homem que
estuda a Bíblia, mas a sua própria personificação. Seus conhecimentos devem ser profundos em Bíblia, Mischná e Talmud (Lei Oral), assim como
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 55-61, MARÇO,1997
nos vários métodos de aprendizagem, baseados principalmente na Guemará
(Lei Oral). Necessitam ter familiaridade com certa quantidade de material
básico, capacidade de analisar todos os métodos de estudo, capacidade especial para lidar com problemas talmúdicos e entendê-los no contexto.
O Talmud é o pilar central da cultura judaica. É impossível abordar a
exegese bíblica ou a filosofia judaica ou esotérica sem o conhecimento do
Talmud, material de base para tudo. Possui importância sócio-histórica,
pois nenhuma comunidade judaica poderia sobreviver por muito tempo, se
perdesse a capacidade de estudar o Talmud, uma vez que ele constitui a
espinha dorsal do multiforme conhecimento judaico e, ainda, da legislação –
as normas legais a serem seguidas.
Seu estudo representa o cumprimento do Talmud Torá e pressupõe
diferentes respostas, exigindo agilidade e flexibilidade mental de seus
interlocutores.
A função da escola consiste em desenvolver as noções básicas que a
criança adquiriu na infância, em casa, numa busca de integração harmoniosa entre lar e escola e que favoreça o desenvolvimento educacional do
aluno.
Há alguns tipos de instituições educacionais judaicas:
Heder: responsável pela iniciação da criança aos três anos de idade,
muitas vezes marcada por uma festa ou jejum por parte dos pais. Os recémnascidos são, muitas vezes, levados por suas mães à casa de estudos, para
ouvir palavras da Torá desde a mais tenra idade.
Beit-Ha-Midrasch: casa de estudos – instituição aberta a todos os
membros da comunidade judaica sem distinção, ricos ou pobres, eruditos ou
ignorantes, que serve, também, como casa de orações.
O estudo da Bíblia permite ao judeu aprender a rezar. Enquanto a
oração é a expressão dos sentimentos perante Deus, as palavras da Bíblia
dirigem-se à inteligência, à mente. A combinação entre estudo e oração é
que permite a sobrevivência do povo de Israel, fato comprovado nas épocas
de exílio, quando a Casa de Estudo era seu único refúgio. A função exercida
pelo Beit-Ha-Midrasch justifica a idéia de que a sua construção deveria
ser o primeiro dever de todas as comunidades judaicas.
Yeschivá – escola superior onde se reúnem os professores com
seus discípulos para estudarem a Lei, utilizando uma metodologia específica
que favorece o debate e as contestações.
Os métodos de estudo empregados na Yeschivá não se limitam à
memorização mecânica, embora em alguns casos ela possa também ser
utilizada. Eles requerem participação ativa e envolvimento emocional e intelectual dos estudantes, numa busca incessante da verdade por meio de
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SZPICZKOWSKI, Ana. A EDUCAÇÃO NO JUDAÍSMO.
questionamentos, sugestões, refutações, análise e crítica. E isso implica,
certamente, um estudo grupal, onde cada um dos seus participantes traz
suas contribuições, quer seja através de perguntas, quer seja pelas hipóteses levantadas, em busca de soluções e respostas, na medida em que no
Talmud as discussões não são conclusivas. A aquisição de conhecimento
não é vista como processo individual, isolado, mas dá-se, sempre, em conjunto com o outro, em um processo de busca e crescimento, que favorece o
desenvolvimento do raciocínio lógico de alunos e professores.
O Pilpul, nome dado ao raciocínio dialético do Talmud, é utilizado
como método de estudo e consiste na busca de evidências para comprovação de idéias. Ele exige a erudição quantitativa, para que os envolvidos no
estudo possam participar efetivamente dessa busca, a partir de um repertório já existente, como caminho para o crescimento.
A Havruta, por sua vez, consiste na parceria durante o estudo, e é
amplamente utilizada nas Yeschivot (escolas superiores). Trata-se de um
método de estudo que estimula a troca de opiniões, o questionamento, a
consciência do outro, a revelação de diferenças e análise racional dos argumentos apresentados. Por sinal, no Pirkei Avot (3:6) encontramos palavras
que destacam a importância do estudo em grupo e, em último caso, o estudo
individual, como vemos a seguir:
“Rabi Haláfta ben Dossa de Kfar Hananyá diz: Quando dez homens estão reunidos e ocupados com a Torá, o espírito divino pousa entre eles, pois foi dito: Deus está na assembléia do Eterno
(Salmos,82:1). E em caso de cinco (também), pois foi dito: E estabeleceu o seu ajuntamento na terra (Amós, 9:6). E em caso de três
(também), pois foi dito: No meio (de Juízes) julga Deus (Salmos,82:1).
E em caso de dois (também), pois foi dito: Então os que temem ao
Eterno falavam uns aos outros e o Senhor atentava e ouvia
(Mal.,3:16). E em caso mesmo de um (também), pois foi dito: Em
todo lugar que eu fizer invocar o Meu nome, virei a ti e te abençoarei” (Êx., 20:24).
É possível extrair daqui o conceito de Minián, nome dado ao número
mínimo de dez homens necessários para legitimar as orações coletivas, cuja
força atrai o espírito divino.
Considero importante ressaltar a questão do respeito atribuído ao aluno na concepção judaica. Primeiramente, cabe explicar que o estudo do
Talmud imprime um ritmo peculiar ao texto e a seus comentários, fato que
promove a participação do sentido auditivo das pessoas e conduz à fixação
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 55-61, MARÇO,1997
do conhecimento. Este fato demonstra que existe uma preocupação com a
maneira de facilitar a apreensão do conteúdo por parte dos estudantes, além
de que a questão da consideração pela faixa etária representa uma visão
desenvolvimentista e humanista de educação.
Isso também pode ser observado pela maneira como são encarados
aqueles que têm maiores dificuldades para a aprendizagem. Encontramos
em Avot (5:7) a seguinte máxima que vem corroborar tal idéia:
“Sete são os atributos do néscio (Golem) e sete os do sábio (Hakham):
o sábio não fala diante de quem é maior do que ele em sabedoria (e
idade) e não interrompe as palavras do seu próximo; não é afoito
em responder, pergunta segundo o assunto e responde de acordo
com a regra; fala primeiro sobre o primeiro e por último sobre o
último; do que não ouviu, ele diz “não ouvi”, e confessa a verdade.
O contrário disso é atribuído ao néscio.”.
A Bíblia possui uma só palavra para designar o Sábio. Por outro lado,
dispõe de vários termos para caracterizar o homem que não possui sabedoria; por exemplo, Shote – idiota, tonto, Sakhal – imbecil, Evil – tolo,
bobo, estúpido, Kessil – estúpido, tolo etc. Esta máxima, entretanto, emprega somente o termo Golem – para designar o conceito oposto a Hakham.
Para captar exatamente o sentido do termo Golem é preciso se
reportar ao tratado de Kelim (utensílios), onde se encontra o termo Golamei
Kelim, que significa utensílios de metal inacabados, isto é,que ainda não
adquiriram sua forma definitiva. Assim, os sábios relacionam a Golem não
o aluno estúpido e incapaz, mas aquele que, apesar de deter muitos conhecimentos, não sabe ainda comportar-se como um sábio, isto é, submeter-se
à disciplina da Torá e colocar em prática os conhecimentos adquiridos. É
preciso realizar prolongados esforços de autodisciplina para converter-se
em um Hakham. Aquele que não consegue atingir esse grau de perfeição
é chamado Golem, quer dizer, criatura inacabada, e não ignorante.
A questão da assiduidade no estudo é levantada por constituir ele
uma segunda natureza para o povo judeu, como podemos observar, mais
uma vez, em Avot:
“Há quatro tipos entre os que se sentam perante mestres: esponja,
funil, filtro e peneira. Esponja é aquele que absorve tudo; funil, o
que recebe de um lado e deixa escapar de outro; filtro, o que deixa
sair o vinho e retém a borra; peneira, o que deixa sair o farelo e
retém a farinha”. (5:15).
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SZPICZKOWSKI, Ana. A EDUCAÇÃO NO JUDAÍSMO.
“Sentar diante de mestres” implica a participação ativa de alunos e
professores em um debate que só se esgota quando todas as dúvidas estiverem esclarecidas.
Essa participação pode dar-se de quatro modos distintos, conforme
consta nessa máxima. Falando do tipo que se assemelha a uma esponja, os
Sábios não se referiam ao indivíduo que absorve tudo, sem discernimento,
mas àquele que, por sua imensa curiosidade, absorve avidamente tudo o que
emana da boca do Sábio, seu mestre. Quando apontam para o segundo tipo,
o funil, associam este objeto à sua capacidade de absorção, superior à sua
capacidade de restituição, o que significa que o aluno que se assemelha ao
funil restitui com dificuldade os conhecimentos absorvidos. A terceira categoria de alunos é comparada ao filtro, que retém os sedimentos e deixa
passar o vinho, do mesmo modo que o bom aluno deve “sedimentar” o que
aprendeu e transmitir aos seus próprios alunos um vinho claro, quer dizer, os
conhecimentos, de acordo com sua capacidade de compreender. Por último, a comparação com a peneira, que serve para reter o melhor da farinha,
corresponde ao aluno que é capaz de conservar o núcleo dos ensinamentos
e desfazer-se dos desperdícios.
Para finalizar, convém lembrar que o estudo da Torá e a prática de
seus preceitos é, portanto, o único caminho a ser percorrido para o crescimento individual e grupal, em busca do aperfeiçoamento. A educação no
Judaísmo preocupa-se com a formação do homem como um todo, onde os
estudos contínuos, independentemente do papel exercido pelo homem na
sociedade, levam ao aprimoramento do seu caráter e de seu “modus vivendi”.
O reconhecimento da vivência e experiência dos eruditos como fonte
da qual emanam conhecimentos, ao mesmo tempo em que se renova com a
experiência e questionamentos da juventude, permite a transmissão do judaísmo de geração a geração e a sua continuidade no decorrer dos séculos.
Há uma máxima no Pirkei Avot que, no meu entender, concentra o
pensamento educacional judaico, e por isso, gostaria de citar aqui, para uma
futura e oportuna reflexão:
“Que a honra do teu discípulo seja tão querida para ti como a tua
própria, e a honra do teu companheiro como a reverência pelo teu
mestre, e a reverência pelo teu mestre como a reverência pelos
Céus”. (4:12).
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 55-61, MARÇO,1997
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 63-72, MARÇO,1997
HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS NAS
NARRA
TIV
AS SETSUW
A DO SÉCULO XII
NARRATIV
TIVAS
SETSUWA
Luiza Nana Yoshida
Na literatura clássica japonesa, existe um gênero narrativo, setsuwa,
que denominaremos “narrativa setsuwa”, por não haver termo correspondente em nossa língua.
Setsuwa são narrativas breves, reunidas em coletâneas denominadas setsuwashû (coletânea de narrativas setsuwa). Nihon Ryôiki (Relatos
Milagrosos do Japão) é considerada a primeira coletânea de narrativas
setsuwa e foi organizada, por volta de 822, por um monge budista chamado
Keikai.
As coletâneas de narrativas setsuwa podem ser classificadas em
dois grandes grupos, conforme o tema abordado pelas narrativas que as
compõem: budista e/ou secular. Embora as narrativas setsuwa possam ser
incluídas nos dois temas gerais acima citados, não existe qualquer restrição
com relação ao assunto, aos personagens ou ao espaço. Trata-se de narrativas que, estabelecidas como ocorridas no passado, são narradas como
fatos verídicos ou que se acredita serem verídicos.
A obra que escolhemos como objeto de estudo é denominada Konjaku
Monogatarishû. Trata-se de uma coletânea que comporta, no total, mais
de mil narrativas, distribuídas em trinta e um tomos (os tomos VIII, XVIII e
XXI encontram-se desaparecidos), divididos da seguinte maneira:
a) tomos I a V – narrativas budistas da Índia
b) tomos VI a X – narrativas da China6 – 9 (budistas)
10 (secular)
c) tomos XI a XXXI – narrativas do Japão 11 – 20 (budistas)
22 – 31 (secular)
O autor é desconhecido e, embora não se conheça a data exata da
sua conclusão, baseados nos fatos comprovados pelas pesquisas, os especialistas estabelecem-na como uma obra do século XII.
O título da coletânea é composto por cinco ideogramas com o seguinte significado:
KON – lê-se também ima e possui o sentido de “agora”, “presente”;
JAKU – lê-se também mukashi e possui o sentido de “antigamente”, “outrora”;
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YOSHIDA, Luiza Nana. HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS NAS NARRATIVAS SETSUWA DO SÉCULO XII.
MONO – isoladamente, tem o sentido de, “coisa”, “fato”;
KATARI – isoladamente, pode ter o sentido de “palavra”, “narrativa”;
MONOGATARI – juntos têm o sentido de “narrativa”; SHÛ e indica “reunião”, “coletânea”.
Daí, traduzirmos Konjaku Monogatarishû por “Coletânea de Narrativas de Hoje e de Outrora”. O título possui estreita relação com a expressão Imawa mukashi, “O agora é passado”, (expressão largamente utilizada pelas narrativas antigas) e que, em combinação com a expressão
final tonan katari tsutaetarutoya, “conta-se que assim foi dito”, constitui
uma forma fixa de Konjaku Monogatarishû.
Da obra Konjaku Monogatarishû , destacaremos o tomo XXVII que
reúne quarenta e cinco narrativas extraordinárias.Cabe colocar que, em todas
as narrativas, temos presentes seres sobrenaturais assim divididos:
1) espírito humano – 13 narrativas
2) ogro – 13 narrativas
3) raposa – 12 narrativas
4) javali – 3 narrativas
5) espíritos de objetos (água, vasilha de cobre) – 2 narrativas
6) outros (coisa, divindade da montanha) – 2 narrativas
O tomo XXVII que descreve, portanto, as multifacetas do encontro
homem/seres sobrenaturais constitui um repositório de narrativas extraordinárias que implicam essencialmente a derrota (morte) ou vitória de um ou
de outro.
Nesse sentido, as narrativas divididas conforme os seres sobrenaturais apresentam a seguinte tendência:
a) vitória do ser sobrenatural (1) (2)
b) derrota do ser sobrenatural (3) (4)
c) narrativas que não implicam obrigatoriamente uma derrota/vitória
de um dos lados (5) (6)
Para o desenvolvimento do trabalho destacaremos duas narrativas,
uma enfocando a vitória do ente sobrenatural e a outra, a sua derrota.
XXVII/8 Sobre o ogro que, tomando a forma de um homem, devora
uma jovem, na Praça dos Pinheiros
O agora é passado, na época do imperador Kôkô, três jovens
passavam pela Praça dos Pinheiros, no Saguão das Artes Militares, a
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 63-72, MARÇO,1997
caminho da residência imperial. Sendo noite do dia 17 de agosto, a
lua refletia intensa claridade.
Foi então que, sob um pinheiro, surgiu um homem. Deteve uma
das jovens que por lá passava e, debaixo do pinheiro, tomou-lhe a
mão e passaram a conversar. As duas outras jovens aguardavam-na,
presumindo que a conversa fosse breve e que logo ela estaria de volta,
mas nada de voltar. Não ouviam nem mesmo as vozes, e estranhando
sobre o que teria acontecido, aproximaram-se do local, mas não havia
qualquer sinal dos dois. Procuraram com mais atenção, pensando onde
teriam ido, quando avistaram pernas e braços femininos espalhados
pelo chão. Ao depararem-se com tal cena, as duas jovens fugiram
apavoradas, correram para o posto dos guardas palacianos e relataram o ocorrido. Os guardas, também assustados, dirigiram-se ao local, onde não encontraram nenhum cadáver, restando apenas as pernas e os braços da jovem. O local ficou lotado com a multidão que alí
se aglomerou ao saber da notícia. “Foi o ogro que, transformando-se
num ser humano, devorou essa jovem”, diziam.
A mulher não deve se aproximar, então, quando interpelada por
um homem desconhecido, num local ermo como esse. Deve tomar muito
cuidado. Conta-se que assim foi dito.
A época enfocada pela narrativa remonta aos tempos do 58º imperador Kôkô (830 - 887) que reinou no período de 884 a 887. O imperador
Kôkô, cuja entronização ocorreu quando ele já estava com mais de 50 anos,
foi uma espécie de imperador-títere do clã Fujiwara, que inicia sua ascensão política em meados do século IX e detém o poder político por cerca de
dois séculos, monopolizando o cargo de sesshô kanpaku (Regente Conselheiro), encarregado de cuidar dos documentos oficiais, mesmo antes de
chegar às mãos do imperador, controlar as ordens emitidas pelo imperador ,
chegando a interferir até mesmo nas nomeações de funcionários. A narrativa remete-nos, assim, a um tempo do passado, mas um passado estabelecido numa realidade histórica, na medida em que é referente a um imperador histórico.
O acontecimento, então, ocorre no interior do palácio imperial, quando três jovens dirigiam-se para a direção da residência imperial, numa noite
de lua cheia (do dia 17). Sabe-se que, desde antigamente, a lua cheia possui
um significado bastante especial dentro da cultura japonesa, onde a cerimônia denominada chûshûkangetsu, “Contemplação da Lua”, faz parte do
calendário de eventos anuais da Corte. Cabe lembrar também que, além
desse significado ritualístico, a lua cheia constituía uma fonte de iluminação
natural de suma importância.
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YOSHIDA, Luiza Nana. HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS NAS NARRATIVAS SETSUWA DO SÉCULO XII.
No segundo parágrafo, um homem, que surge “sob um pinheiro”,
interpela uma das jovens. Cremos não haver dúvida de que fosse um homem, pois, como vimos, tratava-se de uma noite clara de lua cheia. O que
acontece entre o momento da interpelação e o momento em que as duas
jovens vão à procura da companheira que demorava para voltar, fica envolto num completo mistério. Como por encanto, o homem desaparece e, da
jovem, só restam seus membros espalhados pelo chão. Podemos dizer que
nas histórias extraordinárias do tomo XXVII que envolvem o ogro, de modo
geral, não existe a descrição do modo como as suas vítimas são mortas, mas
apenas do pós-morte, quando a pessoa já aparece morta ou descobrem-se
partes do seu corpo e/ou seus pertences.
O mesmo acontece nas histórias extraordinárias do tomo XXVII, onde
não existe qualquer testemunha que tenha visto a figura do ogro, que aparece metamorfoseado em homem ou mulher, objetos, ou nem mesmo possui
uma forma definida. Mas a ele são atribuídos os desaparecimentos e as
mortes misteriosas.
A narrativa 7/tomo XX, intitulada Sobre o fato de a imperatriz
Somedono ter sido violada por um tengu (embora no título tenhamos tengu,
um ente sobrenatural alado e com corpo de homem, na narrativa em si, encontramos o ogro), onde existe a descrição da figura do ogro que é a reencarnação
do monge que se apaixona pela imperatriz e, impedido de concretizar o seu
amor, renasce como um ogro. Ele é descrito da seguinte maneira:
Era uma figura seminua, com o cabelo escorrido como o de uma
criança. Tinha mais de dois metros de altura e a pele escura como que
pintada de laca. Os olhos eram enormes e assustadores, lembrando
duas tigelas metálicas. Na gigantesca boca aberta, viam-se dentes afiados, tais como espadas, onde se destacavam as presas. Vestia-se com
uma sunga vermelha e, na cintura, trazia um maço.
Trata-se de uma descrição que lembra a figura dos ogros retratados
nas narrativas ilustradas em rolo (emakimono), e que podem ser encontradas em outras coletâneas de narrativas setsuwa com algumas variantes
como a cor da pele, a quantidade de olhos como no trecho a seguir:
...viu um grupo de ogros com aparências diversas: os de corpo
vermelho usavam sungas azuis e os de cor preta usavam sungas vermelhas; havia uns com um só olho, outros sem boca. Eram seres monstruosos, indescritíveis ...
(3/I Sobre o calombo que foi retirado pelo ogro)
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 63-72, MARÇO,1997
De qualquer forma, os ogros do tomo XVII aparecem diante do homem metamorfoseado no próprio ser humano ou em outro objeto qualquer,
conforme o seu objetivo ou a necessidade do momento. O que chama a
atenção no que se refere ao espaço em que surge o ogro é que, na maioria
dos casos, ele surge na capital Heiankyô, ou em suas imediações, o que
significa que o ogro encontra-se bem mais perto do que se imagina, não se
intimidando a aparecer no interior do próprio palácio imperial.
Dessa forma, podemos concluir que as histórias extraordinárias que
envolvem o ogro enfatizam o seu aspecto apavorante, pois que ligado à
morte, transformando-o numa espécie de monstro que atemoriza e inibe as
pessoas a tomar determinadas atitudes (“não falar com desconhecidos”)
ou freqüentar determinados lugares (“lugar ermo”, “lugar desconhecido”).
É interessante lembrarmos a colocação de Akiko Baba1 que, em seu estudo
sobre o ogro, observa que as pessoas não temiam a morte, mas temiam os
ogros. Na narrativa 18/XXIX Sobre o ladrão que vê cadáveres no Portal
Raseimon, por exemplo, um ladrão que vê um vulto entre os cadáveres
espalhados no Portal Raseimon apavora-se, não com o fato de encontrar-se
no meio de inúmeros cadáveres, mas diante da possibilidade de estar perante um ogro.
Ressalte-se que o fato de o ogro aparecer freqüentemente na outrora
próspera Heiankyô, não deixa de ser o reflexo de sua decadência. Heiankyô,
construída em 794, sob os moldes da capital Chang-An, da Dinastia Tang
(618 - 960), foi a capital do Japão até 1869, quando o centro do governo
japonês foi transferido para Tóquio (antigamente denominada Edo). Podese dizer que, Heiankyô, construída para ser o símbolo do poder centralizado
na figura do imperador, foi em sua época áurea, não só o centro político,
mas o berço de uma rica e requintada cultura promovida pela alta nobreza
japonesa.
Konjaku Monogatarishû foi compilada no século XII, ou seja, no
final da época Heian (794 - 1185), quando a capital já não apresentava o
esplendor de seus dias de glória. Assim, as histórias extraordinárias aqui presentes não poderiam deixar de fazer alusão ao lado sombrio que, certamente,
a capital possuía, escondido por trás da opulenta e luxuosa existência.
Prosseguindo, passaremos às considerações da segunda narrativa.
38/XXVII Sobre o fato de a raposa, metamorfoseada numa jovem, encontrar-se com Harima no Yasutaka
1
BABA, Akiko. Onino Kenkyû (Pesquisa sobre o Ogro). Tóquio, San’ichi Shobô, 1975, p. 64.
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YOSHIDA, Luiza Nana. HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS NAS NARRATIVAS SETSUWA DO SÉCULO XII.
O agora é passado, havia um guarda palaciano chamado Harima
no Yasutaka. Era filho de Sadamasa, um oficial da guarda palaciana.
Servia como segurança a Fujiwara no Kaneie e, certa vez, quando
ainda jovem, o senhor encontrava-se no palácio imperial, Yasutaka
também o aguardava ali, e como a sua casa ficava em Nishinokyô, a
oeste da capital, pensou em ir até lá. Não encontrando nenhum de
seus homens, saiu desacompanhado, passando por Uchinotôri, em
direção a sua casa. Encontrava-se justamente perto do vigésimo dia
do nono mês e a lua emitia intenso brilho. Já alta noite, quando se
aproximou da Praça dos Pinheiros, caminhava à sua frente, uma
jovenzinha, trajando uma vestimenta denominada akome sobreposta,
a de baixo em tom violeta escuro e textura bastante lustrosa e a de
cima, um belo brocado de seda num violeta mais suave. Iluminada pela
luz do luar, tanto seu aspecto, quanto seus cabelos, eram de uma beleza indescritível. Yasutaka, que usava um tipo de calçado com cano
curto, alcançou-a, com passos ruidosos e, ao ficar lado a lado, olhoua, mas a jovenzinha não se deixava ver, escondendo o seu rosto com
um leque onde se via uma pintura. O fato de alguns fios de cabelo
estarem caídos desalinhadamente sobre a sua testa e rosto era de uma
graciosidade sem par.
Quando Yasutaka aproximou-se, a fim de lhe tomar as mãos,
sentiu o perfume do incenso que a sua roupa exalava. “Tão tarde da
noite, quem sois e onde ides?”, indagou Yasutaka. “Vou até Nishinokyô
a chamado de uma certa pessoa”, respondeu a jovenzinha. “Ao invés
de irdes à casa dessa pessoa, vinde comigo para a minha casa”, propôs Yasutaka, ao que respondeu a jovenzinha, com toda graciosidade:
“Nem mesmo sei quem sois!” Assim conversando, adentraram o Portal
Inbumon. Foi então, que Yasutaka pensou: “Ouvi dizer que em
Burakuin, existe uma raposa que vive a ludibriar os homens. Não seria esta mulher a tal raposa? Vou pregar-lhe um susto, para testá-la. O
fato de ela não mostrar nem um pouco o rosto é estranho!” Assim,
tomando a manga de sua roupa, disse-lhe: “Ficai aqui um instante.
Tenho algo para vos dizer.” A jovenzinha escondeu-se por trás do
leque, mostrando-se envergonhada. Diante disso, Yasutaka, gritando:
“Sou na verdade um salteador. Passai suas vestes!”, desatou a faixa
do seu kariginu , desvestiu um dos ombros, desembainhou uma longa
adaga gélida e encostou-a na jovenzinha. E dizendo, “Corto-vos a
garganta! Passai-me as vestes!”, segurou-a pelos cabelos e encostoua na coluna, com a adaga encostada em seu pescoço. No mesmo instante, a jovenzinha soltou uma urina com um cheiro extremamente de- 68 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 63-72, MARÇO,1997
sagradável. Quando Yasutaka afrouxou o seu braço, devido ao susto,
a jovenzinha tomou imediatamente a forma de uma raposa, saiu correndo pelo portal, regougando e fugiu para o norte, pela avenida Ômiya.
Yasutaka , irritado e desconsolado pensou: “Não a matei, pensando
que talvez pudesse ser de fato um ser humano. Ah, se soubesse, eu a
teria matado com certeza!”, mas nada mais podia fazer.
Depois desse dia, dirigiu-se várias vezes a Uchinodôri, tanto de
dia, quanto de noite, mas nunca mais encontrou a raposa que, pelo
jeito, aprendera, de vez, a lição. A raposa viu a morte de perto, por ter
se transformado numa bela jovem e tentado ludibriar Yasutaka. Assim
sendo, as pessoas, quando se encontram sozinhas em ermos descampados, não devem se dirigir levianamente às pessoas, mesmo tratandose de uma linda mulher. Essa história mostra que Yasutaka não foi
ludibriado, devido à sua sensatez. Conta-se que assim foi dito.
Embora o local do encontro com o ser sobrenatural (Praça dos Pinheiros, nos recintos do Palácio Imperial) e a noite de lua clara sejam iguais
à situação apresentada no história anterior, a presente narrativa trata do
fracasso de um ser sobrenatural em ludibriar o homem ( = vitória do homem
sobre a raposa).
Segundo a crença japonesa, a raposa é tida como a mensageira da
divindade Inari, ligada às festividades de plantação e colheita do arroz. Por
outro lado, existe a crença de que a raposa pode tomar o corpo do homem
ou ainda transformar-se no próprio homem ou objetos , para ludibriar os
seres humanos. Na sua transformação em seres humanos, a tendência geral é a de transformar-se em jovens mulheres, como no caso do tomo XXVII.
No primeiro parágrafo da narrativa em questão, encontramos o personagem, Harima no Yasutaka, apresentado como um guarda do Konoefu,
Quartel-General da Segurança do Palácio, filho de Sadamasa, um oficial da
guarda palaciana. Embora o nome de Sadamasa conste nos registros históricos, nada há sobre Yasutaka. De qualquer forma, a narrativa refere-se à
época em que Yasutaka, ainda jovem, servia a Fujiwara no Kaneie (929 990), um poderoso político do século X. Durante a permanência de Kaneie
na residência imperial, Yasutaka resolve ir até à própria casa que ficava no
lado oeste de Heiankyô. Alta noite, sai desacompanhado já que não consegue encontrar seus subordinados. Iluminado pela luz do luar, vê à sua frente
a figura de uma jovenzinha, quando alcança a Praça dos Pinheiros, localizada na parte oeste da residência imperial, onde havia uma área deserta. Trata-se de uma cena que vai causar ao leitor um estranhamento, na medida
em que temos uma jovenzinha, longe de casa, às altas horas da noite.
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YOSHIDA, Luiza Nana. HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS NAS NARRATIVAS SETSUWA DO SÉCULO XII.
A jovenzinha é descrita como bela e bem trajada. Encontra-se trajada com a veste casual própria da sua faixa etária denominada akome sobreposta, sendo a de baixo em “tom violeta escuro e textura bastante lustrosa e a de cima, um belo brocado de seda num violeta mais suave.”
Desde que no século VII (603), o Príncipe Shôtoku instituiu os “doze
graus burocráticos”, medida que visava acabar com a hereditariedade dos
cargos e selecionar os funcionários, conforme a capacidade individual, os
quais eram diferenciados pela cor de seu kanmuri (um adorno da cabeça)
e suas vestes, a cor violeta mantém a tradição de ser uma cor nobre e fina,
pois era a cor atribuída ao grau superior.
Lembrando o trecho da obra Makurano Sôshi (O Livro de Cabeceira), escrita pela dama da Corte Sei Shônagon, nos fins do século X, onde,
por vários momentos, ela explana sobre o que considera ideal, temos com
relação à cor:
O séquito do Senhor Regente Conselheiro, a sua peregrinação
ao santuário Kasuga. Tecido cor de violeta. Tudo que tiver a cor violeta é magnífico. Seja flor, seja linha, seja papel. ( 92 Coisas magníficas)
Quanto à beleza da jovem, a narrativa segue os moldes das narrativas clássicas da época Heian, quando se enfatizava, não tanto a beleza
física em si, mas o conjunto harmônico que incluía, entre outras coisas, o
pendor literário (conhecimento da poesia clássica waka) e musical, domínio das regras de etiqueta. Uma das partes físicas mais destacadas referese ao cabelo, que deveria ser longo (normalmente alcançando o chão), negro e liso. Na presente narrativa, embora não se detalhe sobre o cabelo da
jovenzinha, o fato de “alguns fios de cabelo estarem caídos desalinhadamente
sobre a sua testa e rosto” é tido como algo indescritivelmente gracioso.
Dessa forma, o primeiro parágrafo apresenta as circunstâncias do
encontro entre Yasutaka e a bela jovenzinha.
No segundo parágrafo, onde temos a aproximação entre Yasutaka e
a jovenzinha, encontramos mais um elemento de sedução que vem reforçar
o fascínio da jovenzinha: o perfume de sua roupa. Cabe lembrar que, nos
tempos antigos, havia o costume de se perfumar as roupas com o incenso.
Normalmente, queimava-se o incenso num defumador que era coberto com
uma espécie de cesto, sobre o qual se estendia a roupa para que ficasse
perfumada com o aroma do incenso. Os incensos preparados com resinas
vegetais eram, muitas vezes, combinados uns com os outros para a aquisição de diversas fragrâncias prontamente reconhecidas por aquele que fosse conhecedor do kodô (“caminho da fragrância”).
Desse modo, o encontro que parecia caminhar para um final feliz, vai
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 63-72, MARÇO,1997
no parágrafo seguinte, tomar rumo inesperado, coerentemente com o fato
de que, tratando-se de encontro entre um homem e um ser sobrenatural, a
união seria impossível. Ao lembrar-se do boato que corria sobre a existência de uma raposa, no interior do palácio imperial, Yasutaka, como um guarda palaciano, coloca-se, imediatamente, na posição de defesa e consegue
desmascarar a raposa, fingindo ser um salteador, muito freqüente na época
de decadência de Heiankyô e muito temido pela população. A raposa desmascarada e derrotada bate em retirada e desaparece para sempre.
Diferentemente da narrativa anterior, encontramos, aqui, a vitória do
homem sobre o ente sobrenatural. A vitória é atribuída essencialmente à
sensatez de Yasutaka que não se deixou ludibriar pelos encantos da jovenzinha
( = raposa).
Assim, podemos dizer que, embora exista uma determinada tendência de este ou aquele ser sobrenatural mostrar-se mais ou menos destrutivo
que o outro, percebemos também nesse tomo XXVII, a mesma coerência
encontrada na obra Konjaku Monogatarishû como um todo, no que se
refere à preocupação de não enfocar apenas um dos aspectos de um fato,
mas destacar o seu caráter multiforme. Acreditamos que não foi ato gratuito o compilador realizar uma exaustiva classificação que, de certo modo,
busca apresentar ao homem a totalidade daquilo que se conhece ou daquilo
que se comenta pelo mundo afora. As narrativas extraordinárias do tomo
XXVII são uma parte desse imenso universo, onde o homem ora sai ileso,
ora pode até perder a própria vida. Cada narrativa enfoca um aspecto da
vida, sobre o qual o leitor é levado a refletir, a questionar ou até mesmo a
divagar.
Como uma obra surgida numa época de intensa transformação social, política e cultural (declínio da nobreza e ascensão da classe guerreira), a
multiplicidade de Konjaku Monogatarishû seja talvez a expressão mais
nítida da conscientização de que o mundo não se resume somente na capital
Heiankyô e seus habitantes. Há o Japão e também a China e a Índia; há o
imperador e os nobres, e também o lenhador, o salteador, o assassino. Há o
homem e também o animal; há as divindades e também os seres sobrenaturais; há o mundo em que vivemos e também o paraíso budista... É o homem
descobrindo o mundo e a si próprio.
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YOSHIDA, Luiza Nana. HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS NAS NARRATIVAS SETSUWA DO SÉCULO XII.
BIBLIOGRAFIA
BABA, Akiko. Onino Kenkyû (Pesquisa sobre o Ogro).Tóquio, San’ichi Shobô, 1975.
INAGAKI, Yasukazu. “Konjaku Monogatarishûno Onino Yôsô” (“Aspectos do Ogro de
Konjaku Monogatarishû”). Kinjô Kokubun (Periódico sobre Literatura Japonesa da
Universidade Kinjô), vol. 59. Nagoya, Kinjô Gakuin Gakkai, 1983, pp. 1 - 16.
IWASAKI, Takeo. “Konjaku Monogatarishûni okeru Onino Ikkôsatsu” (“Considerações
sobre o Ogro de Konjaku Monogatarishû”). Nihon Bungaku 6 (Literatura Japonesa 6),
vol. 38. Tóquio, Nihon Bungaku Kyôkai, 1989, pp. 72 - 76.
KOBAYASHI, Kazuomi. “Konjaku Monogatarino Reikaitan”( Histórias Sobrenaturais de
Konjaku Monogatari”). Teikyô Daigaku Bungakubu Kiyô (Boletim do Departamento de
Letras da Universidade Teikyô), vol. 12. Tóquio, Teikyô Daigaku Bungakubu, 1980, pp.
215 - 246.
ÔOKA, Makoto. Nihonno Iro (As Cores do Japão). Tóquio, Asahi Shinbunsha, 1976.
SAHARA, Sakumi. “Konjaku Monogatarishûni okeru Reikitanno Kôzô” (“A Estrutura das
Narrativas Sobrenaturais do Konjaku Monogatarishû”). Komazawa Tandai Kokubun
(Periódico de Literatura Japonesa da Universidade Komazawa), vol. 19. Tóquio,
Komazawa Tandai Bungakubu, 1989, pp. 1 - 21.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 73-91, MARÇO,1997
HASSAN MASSOUDY E A ARTE DA
CALIGRAFIA ÁRABE 1
Aida Ramezá Hanania
Emblemática de um povo que viu no signo sua forma maior de manifestação estética, a arte de Hassan Massoudy enraíza-se na tradição árabe,
buscando incessantemente a universalidade que caracteriza a pintura contemporânea.
Ao mirar a obra de Massoudy, a sensação primeira é a de surpreendente perplexidade, como se de antiga cepa, surgisse ramo novo e vigoroso,
independente em seu desenvolvimento, mas inegavelmente alimentado pela
seiva ancestral (P.1).
Suas composições revelam a atitude milenar do calígrafo árabe, ao
mesmo tempo que o situam no patamar do mais atual dos pintores
abstracionistas. O aparente paradoxo, na verdade, dá-se pela síntese harmoniosa realizada pelo artista; síntese que atualiza o antigo e redimensiona
o novo, inscrevendo a caligrafia numa continuidade secular.
Perenidade e modernidade caminham juntas pela arte de Massoudy,
a provar que nada será mais novo que o passado, quando sensivelmente
reinterpretado pela ótica do presente.
Hassan Massoudy busca incessantemente um equilíbrio entre a fidelidade à herança do passado e à pesquisa de caminhos novos. Por isso,
volta-se de modo irremediável ao futuro, mas com a mesma intensidade
com que o faz em relação ao passado.
Àqueles que o acusam de excessiva preocupação modernista, o próprio artista confessou certa vez: “Estou com a caligrafia, mas, ao mesmo
tempo, contra ela. Tento sempre me colocar numa posição crítica em
relação ao que foi feito no passado”2. E, em outro momento, constata:
“Eu diria até que é querendo-me moderno que permaneço fiel a meu
passado” 3.
1
2
3
O presente artigo retoma, com ligeiras modificações, tema abordado na tese de livredocência A Caligrafia como Expressão Cultural – A Arte de Hassan Massoudy, apresentada por mim ao Departamento de Línguas Orientais em maio de 1995.
Ao longo do texto, indicaremos, entre parêntesis, as pranchas pertinentes, contidas no
Anexo que finaliza o artigo.
em entrevista a Alain Gorius, “Rencontre Avec Hassan Massoudy – Calligraphe et Peintre”
Vision, nº 24, Paris, 1.992, p. 24.
Hassan Massoudy, Le Chemin d’un Calligraphe, Paris,Phébus, 1.991, p. 9.
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HANANIA, Aida Ramezá. HASSAN MASSOUDY E A ARTE DA CALIGRAFIA ÁRABE.
Por vezes, aparentemente, Massoudy insurge-se contra a forma disciplinada, descobrindo pelo arrojo do gesto e por seu envolvimento emocional, uma forma nova, única, que pode provir do destaque de uma única letra
ou de uma palavra, às vezes incompreensível no emaranhado dos traços.
Entretanto, letra e palavra procedem sempre de uma frase que não-raro se
constitui no pedestal do signo total, da peça artística, em estilo
tradicionalíssimo (inúmeras vezes representado pelo kufi), desnudando-lhe
um sentido e satisfazendo, assim, um princípio que é essencial para o calígrafo
árabe, o da função social da arte, definida fundamentalmente pela convicção de que “os mestres do cálamo, por toda parte, sempre devem permanecer como servidores do verbo”4. Aliás, como bem lembra Aziza, “os
artistas árabes opõem-se de maneira absoluta à doutrina da arte pela
arte”, postura que, acredita, “parece ter suas raízes nos princípios básicos que regem o universo mental muçulmano (...) As conquistas políticas do Profeta que viu o triunfo de sua doutrina – continua o autor –
levaram o Islão a um pensamento cheio de positividade histórica. Donde
a constante preocupação de utilidade (grifo nosso) que não só os artistas, mas também os pensadores sempre reivindicaram para legitimar
suas produções. Esta preocupação, os artistas plásticos mantém
inalterada no seio de seu ato criador”5.
Dividido entre o Oriente e o Ocidente, Massoudy não se afasta de
suas raízes fundas no deserto.6 Estas permanecem vivas e prevalecem
freqüentemente em sua concepção de mundo, de vida e sobretudo na justificativa de sua arte: “O ato de caligrafar consiste em dar um sentido
mais alto, senão mais puro às palavras da tribo”7.
Para Massoudy, que realiza a transgressão fundamental do artista,
qual seja, a de utilizar a seiva sagrada para sua criação profana (como se
sacralizando-a...), há sempre a associação da arte com um conteúdo útil
que possa operar uma mudança no interior dos homens. Nesse sentido,
4
5
6
7
idem, ibidem, p. 12.
M. Aziza - L’Image.et l’Islam, Paris, Albin Michel, 1.978, p.97-98.
Fato de que tem absoluta consciência ao afirmar que “ninguém escapa a seu destino. O
Beduíno, de algum modo, continua alerta dentro de mim” - Hassan Massoudy, Le Chemin...
op. cit., p. 17.
Hassan Massoudy, Le Chemin... op. cit. Desde remoto tempo pré-islâmico, o signo, a
escrita, notadamente a palavra que lhe dá origem é o distintivo da tribo árabe. Recorde-se
a função do poeta que enaltecia sua gente, salientando-lhe os feitos e cantando-lhe os
heróis por meio de seu poema. Com o advento do Islão, o signo colocou-se, como se sabe,
a serviço da fé, mas sempre e ainda hoje, não se dissocia do homem em sua dimensão
individual e social.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 73-91, MARÇO,1997
transmite-nos mensagens de paz, liberdade e dignidade (palavras muito
recorrentes em sua obra), coragem, força, amor, integração, aproximação, encontro, solidariedade, convocando para tanto, autores do Oriente
e do Ocidente, da antigüidade e da modernidade. É o próprio artista quem
esclarece:
“Quis promover a evolução da Caligrafia, mas sem ruptura. Por
exemplo, se realizo gestualidade sem conteúdo, isto é uma ruptura.
Então anoto (...) frases que me tocam, poemas, provérbios que me
agradem. Com freqüência, o que escolho é solene (...) como o foram
as frases de outrora, lapidares, fortes. De toda maneira, quando
trabalho com uma frase, é porque adiro a ela”8.
A Caligrafia enquanto escrita deve resultar em uma informação contida nas palavras; e, como arte, deve promover uma estética resultante de
seu ordenamento. Habitualmente, a informação pode ser ofuscada pelos
efeitos estéticos mas, ainda assim, a Caligrafia é uma linguagem.
A primeira percepção, ao olhar uma caligrafia é, sem dúvida, a do
aspecto plástico; depois, ocorre a do sentido. Refazendo o percurso da Arte
Caligráfica Árabe, observamos que o processo de apreciação vem se repetindo através dos séculos. Observamos também que a rigidez formal e o
conteúdo hierático coexiste hoje com a concepção e escolha individual do
artista que se vale – do ponto de vista formal – da grande flexibilidade da
letra árabe: para estirá-la ou encurtá-la, atingindo ritmos visuais inéditos
que, sugerindo ora tensão, ora calma, violência ou paz, combinam-se com a
mensagem conceitual almejada. Entretanto, o objetivo de valorização e de
engrandecimento da palavra permanece inalterado ao longo do tempo.
Guardadas as devidas proporções, parece-nos oportuna, aqui, a aproximação que faz Massoudy: “A Caligrafia inscreve-se na mesma prática
esotérica da linguagem que os mestres sufis ilustrarão na poesia. Não
se tratava de esconder a verdade aos olhos do ignorante mas, antes,
de aumentar a carga de verdade contida numa sentença, de fazer dizer à frase mais do que diria em uma leitura ordinária, de acrescentar
ao sentido manifesto a aura de um sentido mais elevado – e de incitar
o adepto a elevar-se à mesma altura”9.
8
9
Cf. entrevista a Jocelyne Laabi, – “Hassan Massoudy Calligraphe – La Main Fertile”,
Kalima, Maroc, Mars, 1988.
Hassan Massoudy, Le Chemin... op. cit., p. 12.
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HANANIA, Aida Ramezá. HASSAN MASSOUDY E A ARTE DA CALIGRAFIA ÁRABE.
Como bem define Lilas Voglimacci10, “a densidade de uma obra é
a mais importante das noções”.
Quanto mais diversificados forem os níveis de percepção que proporciona, tanto maior a densidade da Caligrafia, da obra completa, do signo
resultante do equilíbrio de forma e espaço, do ritmo, da constatação do sentido (básico e subjacente) das palavras.
Sobre a interpretação dos níveis, a partir dos quais se pode analisar
uma obra de arte caligráfica, o próprio artista convoca-nos a atenção para o
fato de que “a significação de um texto é uma coisa, sua caligrafia é
outra; às vezes, as duas estão intimamente ligadas. A Caligrafia não é
só a fixação de um texto, mas também uma composição abstrata que
exprime uma concepção de mundo”11.
A composição está, pois, intimamente ligada ao saber e ao interior do
artista. Espiritualista, o artista árabe busca a essência do que quer transmitir, a totalidade de uma expressão única, de um mundo particular também
único. É compreensível, a partir dessa relação fundamental, que o artista
acompanhe sua época, que a interprete e avalie seu próprio envolvimento
com a visão que ela proporciona.
“Porque o calígrafo habita sua arte – diz Massoudy – ele se implica em sua gestualidade. Voa com a leveza de uma letra ou carrega o
peso de outra. A expressão, para ele, pode ser um grande momento de
liberdade. Ele urra o que tem a dizer e libera suas palavras”12.
Nesse sentido, o signo abstrato propõe a ampla realização, porque
convida o espectador da obra de arte a dar uma resposta, a liberar suas
emoções e sentimentos. Não se apóia na figuração do real que pré-estabelece uma resposta.
“A imagem de Miquelângelo ou da televisão – intervém Massoudy
– é perfeita, mas, num dado momento, ela nos satura; é preciso procurar a evasão, o sonho 13 num mundo que não se explica por inteiro,
onde se deve fabricar e liberar as imagens”14.
10
11
12
13
14
Cahier Parl’ Image - (4), caderno-base de exposição de Hassan Massoudy e Djamel Farès.
Hassan Massoudy, Calligraphe, Paris, Flammarion, 1.986, p. 27.
idem, ibidem, p. 101.
A profunda convicção do Oriente de que “a vida é um sonho” (cf. Gabriel Bounoure)
explicita, de certo modo, a afirmação de Massoudy e vê-se corroborada por Pierre Robin:
“O sonho é em poucas palavras, sinal de alerta, despertar, desprendimento do sono de
nossa existência larvar; escape, talvez, ou ao menos, esperança de um escape para a
verdadeira vida” – cf. Hanania, Aida R. – “Sonho e realidade no teatro de Georges Schehadé”
- Revista de Estudos Árabes, Ano II, nº 3, op. cit., p. 56.
Cf. entrevista concedida a Alain Gorius, op. cit., p.25.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 73-91, MARÇO,1997
Em honra à majestade do signo, Hassan Massoudy promove a leveza
e a imponência, atingindo a simplicidade e a gravidade, as mesmas características que no deserto – invadido permanentemente pela ausência e pela
solidão – consagraram o signo abstrato como única e preciosa referência do
mundo. Perfeita, ademais, porque não submetida à ilusão do sensível.
“O artista muçulmano (...) sabe que a fidelidade à percepção dos
sentidos confunde-se de certa forma com a traição dos sentidos (...)
O sonho do calígrafo árabe é revelar, além da significação aparente, o ser secreto da palavra”15.
Estas afirmações de Massoudy, que recendem a um certo platonismo,
levam-nos a examinar o conceito de arte abstrata para o árabe, explicitandoo, quando possível, pelo contraponto com o conceito ocidental16.
Ao contrário da arte abstrata ocidental que se inicia, praticamente,
com o século XX, a Caligrafia é cultivada pelo árabe, desde os albores de
sua história. Extremamente abstrata, realiza-se em três dimensões: fonética, semântica e plástica (onde é grande sua autonomia). Como expressão
de uma lei, manifestou unidade na multiplicidade.
Quanto à arte ocidental, tem Kandinsky como pioneiro e cujo preceito básico é o “poder da emoção” que legitima a criação do artista. Não mais
a figura, a representação do real. Fascinado com as possibilidades que oferece a música à revelação do universo, busca na pintura, o que poderia
aproximá-lo desta relação e encontra na cor e na forma, os requisitos principais, os meios mais adequados à “necessidade interior”, os mais legítimos
quanto à manifestação pictórica de uma emoção; expressando-se,pois, em
dimensão exclusivamente plástica17.
Apesar dos matizes que ganha a arte abstrata em sua evolução até
nossos dias, o princípio básico (seja, o afastamento da realidade objetiva
para se atingir o máximo nível de emoção e de espiritualismo, isto é, de
realidade subjetiva) na manifestação artística, continua a ser crucial.
Dora Vallier estabelece, com muita propriedade e simplicidade, a condição que dá origem à arte abstrata: “D’un côté le peintre, de l’autre la
réalité. Entre eux, pour les unir, la perception. Or, l’art abstrait commence
à partir du moment où ce lien est brisé”18.
15
16
17
18
Hassan Massoudy, Le Chemin... op. cit., p. 11 e 12.
Como para nós, este é um assunto meramente subsidiário, recolhemos aqui, para esse
efeito, apenas alguns pressupostos básicos de autores conhecidos nesse campo.
cf. Kandinsky – Du Spirituel dans L’Art, Paris, Danoël, 1.954.
L’Art Abstrait, Paris, Pluriel, 1.980, p. 281.
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HANANIA, Aida Ramezá. HASSAN MASSOUDY E A ARTE DA CALIGRAFIA ÁRABE.
E em outro momento, explica: “(...) c’est la réalité qui régit la
perception. Seulement, celle-ci se trouve modifiée dans la mesure où
elle n’accepte plus le réel tel quel, mais le transpose”19.
A relação realidade/ruptura é como que o eixo da arte abstrata, impondo, naturalmente, para que ela se concretize, que o abandono da realidade seja o escopo inicial do artista e não um ponto de chegada, onde a composição artística proporia meramente um modo de transformar a realidade
ou de escondê-la.
Há uma diferença básica entre a abstração para o árabe muçulmano
e para o ocidental, embora, aparentemente, os meios de representá-la formalmente possam ser os mesmos. Com relação à arte árabe, deve-se ter
em conta que a criação plástica apóia-se numa estruturação gráfica e em
precisa codificação: “Com os signos que a inspiram, o artista abstrato
árabe não estabelece a mesma relação que o artista estrangeiro, para
quem o significado não coincide com o significante”20.
Encarada do ponto de vista ocidental, a mensagem artística árabe
adquire relevo puramente visual. Aziza alude, para exemplificar, à conhecida incursão que Paul Klee (1914) e antes dele, o próprio Kandinsky (1905)
fizeram à Tunísia. Embevecidos com a arte islâmica, integraram seus signos
“exóticos” e fascinantes a seu universo plástico, prescindindo totalmente da
dimensão semântica das composições. O mesmo deu-se com Soulages que
se encantou com as letras: ha, áin e alef e articulou todo um quadro com
esse motivo21.
Na mesma linha de observação, um depoimento contemporâneo sobre a arte de Massoudy salienta o impacto plástico que surpreende por sua
suficiência:
“Quand on regarde les oeuvres de Hassan Massoudy, il n’importe
plus de comprendre le sens des mots, on en reçoit la totalité (...)
Chaque mot choisi est une référence au lexique de l’humanité”22.
Do ponto de vista árabe, a obra de arte – e, no caso, a Caligrafia –
assenta-se na realidade, na medida em que o calígrafo tem a exprimir um
conteúdo. Realidade que se interpõe como obstáculo entre o artista e o
cálamo, constituindo-se no elemento propulsor de uma composição sempre
única e original. É seu ponto de partida e também, o de chegada.
19
20
21
22
idem, ibidem, p. 281.
Cf. M. Aziza - L’Image... op. cit., p. 79.
idem, ibidem, p. 79.
idem, ibidem, p. 78.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 73-91, MARÇO,1997
Como diz Massoudy, “é preciso, às vezes, voltar as costas ao sentido, para reencontrá-lo mais longe, por caminhos que se ligam menos
à razão discursiva que às do imaginário. As caligrafias que me impressionam são aquelas onde o sentido parece, de início, ‘esquecido’, mas
ressurge (...) por alguma fonte inesperada. É que o calígrafo deve
freqüentemente destruir a frase que lhe é confiada, para reconstruí-la
à sua maneira. Mata-a, para ressuscitá-la: jogo de vida e de morte, em
que o verbo em seus disfarces e metamorfoses, confessa o segredo de
sua essência – que é indestrutibilidade, inalterabilidade”23.
Excetuando-se, pois, os elementos que compõem a visão plástica, o
percurso do artista árabe revela peculiaridades que o distanciam
conceitualmente da abstração ocidental. O artista árabe persegue a realidade verdadeira, ao abandonar a objetiva: aquela é uma realidade essencial
com raízes fundas na filosofia platônica, a quem muito deve o árabe em
termos da formação de sua mentalidade. É Massoudy quem expõe, de modo
amplo, esta noção fundamental:
“Para um muçulmano, o mundo das imagens confunde-se com o da
ilusão: as imagens ditas ‘reais’ não são mais que o reflexo enganoso de uma Realidade maiúscula que escapa necessariamente à armadilha das aparências; afinal de contas, a idéia que guardamos
em nós da realidade tem mais verdade que a aparência contingente
que nossos sentidos nos liberam dessa mesma realidade. Segundo
esta visão, a palavra portadora da idéia, encarna a realidade mais
do que a simboliza. Sem querer levar mais adiante o paradoxo, eu
diria que a figura pintada não é senão o ‘signo’ de uma realidade
que ultrapassa a representação e que, ao contrário, o signo
caligrafado, encarregado de traduzir abstratamente as figuras do
mundo toma lugar, por sua vez, entre as figuras do mundo e por esta
razão, adquire autonomia, vontade, carne”24. (P.2)
Curiosamente, o fulcro do processo criativo é o mesmo, tanto para o
oriental como para o ocidental abstracionista: a emoção. Emoção contida,
transformada em apelo de Deus entre os antigos calígrafos. Emoção
descontraída e invocadora da plena e individualíssima realização do signo,
entre os modernos.
23
24
Hassan Massoudy, Le Chemin..., op. cit, p. 138.
idem, ibidem.
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HANANIA, Aida Ramezá. HASSAN MASSOUDY E A ARTE DA CALIGRAFIA ÁRABE.
É extremamente oportuno o depoimento de Massoudy a esse respeito:
“Antigamente, no Oriente muçulmano, o conteúdo da caligrafia
era ditado pelo sentido religioso ou imposto pelo poder político.
Quando o trágico irrompia na escrita, o calígrafo não tinha que
intervir para exaltar as angústias e os tormentos. Sua arte detinhase no limiar das emoções individuais. Hoje eu me recuso a fugir ao
apelo destas emoções. O drama do mundo e o de meu país singularmente solicita, ao mesmo tempo, meu coração e meu cálamo”25.
(P.3)
Conhecer a trajetória de Hassan Massoudy, percorrendo os meandros de uma obra emersa do Oriente e modelada pelo Ocidente, é tão
instigante quanto obrigatório pelo relevo que apresenta entre nós uma arte
autêntica e atual como há um milênio (P.4); ousada e dinâmica como se
acabasse de nascer (P.5); atemporal, eterna, por atingir a sensibilidade pelo
humanismo de seu pensamento e pela magnificência de seu traço.
25
idem, ibidem, p. 17.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 73-91, MARÇO,1997
ANEXO
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HANANIA, Aida Ramezá. HASSAN MASSOUDY E A ARTE DA CALIGRAFIA ÁRABE.
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UM POET
A DA CENA RUSSA:
POETA
MEYERHOLD E O TEA
TRO RUSSO
TEATRO
DE V
ANGUARDA
VANGUARDA
Arlete O. Cavaliere
Até 1917, as tendências opostas do teatro russo estiveram representadas por dois homens: Konstantin Stanislávski, reconhecido universalmente como chefe da tendência realista e psicológica, e Vsévolod Meyerhold,
figura polêmica, muito discutido e desprezado pela maior parte dos críticos,
mas que impressionava o público e os profissionais de teatro como um grande inovador que se preocupava, sobretudo, em criar um “teatro do espetáculo”, onde a ênfase estava nos recursos externos, visuais e auditivos.
Meyerhold (1874-1942) iniciou sua carreira teatral como ator na Companhia criada por Nemiróvitch Dântchenko e Stanislávski em fins do século
XIX. O Teatro Popular de Arte de Moscou (a palavra “popular” desapareceu anos depois) tornou-se, como se sabe, o templo do naturalismo cênico e
do realismo psicológico e foi para Meyerhold uma grande escola. Mas mais
do que isso, teve importância fundamental para as inquietações estéticas de
Meyerhold que o levariam a um posterior rompimento com a Companhia de
Stanislávski e a busca de novas vias na criação teatral. Contaminado, certamente, pelas novas correntes estéticas dos inícios do século XX, afirma-se
logo como um antirrealista e passa a desafiar, não só através de sua prática
artística como encenador, mas também como teórico e pensador, o
academismo e o realismo-naturalismo na arte.
Vakhtangov, outro importante representante da vanguarda teatral russa,
assim explicava a diferença essencial entre Meyerhold e o mestre
Stanislávski : “Para Meyerhold, uma representação é teatral quando o
espectador não se esquece, nem por um segundo, que está no teatro e,
a todo momento, tem consciência de que o ator é um homem de seu
ofício que está desempenhando um papel. Stanislávski exige o contrário: que o espectador se esqueça que está no teatro, tornando-se
submerso na atmosfera na qual existem os protagonistas de uma obra.”
É claro que o movimento teatral da vanguarda russa acompanhava
as últimas tendências artísticas do Ocidente e as novas correntes estéticas
que desempenhavam um papel importante, sobretudo, para a renovação das
artes visuais em seu desafio ao academismo e ao naturalismo.
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CAVALIERE, Arlete O. UM POETA DA CENA RUSSA: MEYERHOLD E O TEATRO RUSSO DE VANGUARDA.
Desde o início do século, Serguiéi Diáguilev (1872-1929) veicula, através de uma revista chamada “Mir Iskustva”(O mundo da Arte), o novo
clima e as novas idéias de tendências artísticas como o impressionismo e,
logo depois, o cubismo francês e, em menor grau, o expressionismo alemão.
O grupo de “O mundo da Arte” iniciava, já nos inícios do século XX, uma
verdadeira cruzada contra uma estética pragmática, materialista e criticava
abertamente uma pintura que prestava maior atenção às mensagens sociais
do que à cor e à composição da obra.
Em todos os âmbitos das artes russas, cada vez mais se mesclavam
as últimas investigações européias com uma exploração apaixonada do passado nacional russo. Faziam-se, por exemplo, importantes descobertas acerca
do ícone russo. Esse interesse pelo passado artístico russo abriu novos horizontes à investigação estética e ao estudo aprofundado da arqueologia e da
história da arte russa que se fez sentir até o período pós-revolucionário.
Todo o teatro de vanguarda russo, especialmente aquele que explode
junto à Revolução de 1917, está orientado para uma concepção abstratizante
da arte que vinha impressa também na pintura e na literatura russas dos
inícios deste século.
A abstração teatral ocorreu tanto no texto dramático, quanto na linguagem cênica por ele modulada. Portanto, a ampla renovação que se verificava nos diversos campos artísticos era como que tragada pela cena soviética, numa perfeita simbiose de tendências que resultava numa profusão
de novas propostas e experiências teatrais, as mais inusitadas e revolucionárias, segundo uma nova concepção do fenômeno teatral. Maiakóvski já
havia escrito em 1913: “A grande transformação por nós iniciada em todos
os ramos da beleza em nome da arte do amanhã, a arte dos futuristas, não
vai parar, nem pode parar, diante da porta do teatro.”
De fato, não seria exagero afirmar que todo o teatro de vanguarda do
primeiro decênio inspira-se nas invenções pictóricas com as tintas e os ritmos do futurismo.
A primeira década da Revolução russa encontra-se, assim, sob o
signo do anti-realismo no teatro e todas as tendências novas concebidas no
período pré-revolucionário desenvolveram-se e intensificaram-se depois de
1917.
Na verdade, os artistas de vanguarda apresentam-se como representantes genuínos da nova era proletária, numa combinação de extremismo na
forma com uma acentuada propaganda política.
Os palcos da vanguarda exprimem com entusiasmo o ímpeto e o
fervor da revolução. Mas isto não significa que todos os diretores tivessem
necessariamente compromissos políticos. Grande parte desses inovadores
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 93-103, MARÇO,1997
(Taírov, Granóvski, Radlov e outros) adere ao regime soviético como forma
entusiasmada de experimentar novas possiblidades artísticas que poderiam
desencadear, nos palcos, o ritmo tempestuoso da revolução. Os seus achados cênicos, com seus sons e luzes, aliados àqueles enredos visuais nãoobjetivos e que se desenvolvem através de uma série de arabescos mímicos
na interpretação dos atores, pretendem, tão somente, infundir na cena soviética, o espírito do grande furacão de Outubro.
Entre os anos de 1917 e 1924, qualquer teoria nova, qualquer proposição excêntrica, qualquer tentativa por mais estranha que pudesse parecer,
encontrava sempre seguidores entusiastas. Em todas as correntes, havia
sempre uma clara tendência de destruição da velha estética, pois a vanguarda interpreta a vitória do proletariado como a derrubada definitiva do
realismo e do tradicionalismo com seu “individualismo egoísta e burguês”.
Sem dúvida, o grande liberalismo dos primeiros anos da Revolução
deve-se à falta de uma linha teórica precisa. Desde o começo, o Partido
considera a transformação cultural como o resultado lógico das transformações sociais e políticas. Mas há grandes divergências de opinião sobre este
problema e, particularmente, entre os artistas e intelectuais que professam
simpatia com relação ao novo regime e se consideram seus aliados e colaboradores.
A grande questão que se colocava era: como criar uma nova arte
soviética? o que significava uma “arte verdadeiramente popular” como um
dos resultados imediatos da Revolução?
A posição mais extremada foi adotada pelo grupo do Proletkult (Comitê Central das Organizações Culturais) que afirmava que o passado deveria ser totalmente desprezado, para que se pudesse criar uma cultura
nova para o proletariado triunfante. O fato é que não sabiam exatamente o
que oferecer como substituto do “velho” e, por isso, experimentavam diferentes direções.
No campo teatral, o Proletkult pretende substituir as velhas obras
burguesas por “espetáculos de massa” e para isso, contava com o apoio de
vários outros grupos de esquerda, inclusive do próprio Meyerhold que já era
conhecido por suas encenações simbolistas, mas cujo constante anseio de
inovação impelia-o sempre para novas experiências e para as imensas perspectivas que abria a Revolução.
Esse foi um dos fenômenos mais interessantes do período: o Proletkult
foi claramente “sociológico”, lutava por um teatro de agitação e propaganda, mas como desejava encontrar novas formas de conteúdo revolucionário,
seus caminhos se cruzaram com os da vanguarda.
Todas as tendências esquerdistas em arte, nascidas e formuladas no
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CAVALIERE, Arlete O. UM POETA DA CENA RUSSA: MEYERHOLD E O TEATRO RUSSO DE VANGUARDA.
período pré-revolucionário, receberam novo ímpeto da Revolução e floresceram, de modo espantoso, principalmente entre 1918 e 1923 e ainda depois. Os anos da NEP (Nova Política Econômica) entre 1922 e 1928 também
favoreceram a liberdade das artes, a experimentação e a excentricidade.
Somente no final da década de 20, quando uma nova ofensiva em
todos os terrenos marcou a consolidação e o endurecimento do governo, a
vanguarda foi combatida e finalmente destruída por métodos policiais.
Os grupos que mais influíram no Proletkult e em outras formações
revolucionárias durante a primeira década do regime soviético foram, sem
dúvida alguma, os cubistas, os cubo-futuristas, e por fim, os construtivistas.
Todo um período do teatro de vanguarda viveu sob o signo do
construtivismo. Se a maior parte dos cubo-futuristas e grupos afins se inclinavam fortemente para o elemento urbano, a civilização da velocidade e
das máquinas, exaltando o cinema como a forma artística mais sintonizada
com a precisão e a tecnologia moderna, os construtivistas retomam essas
idéias depois de 1918, radicalizando o objetivo de fazer uma arte que fosse
“filho harmonioso da cultura industrial”, compartilhando, assim, com as aspirações industriais da sociedade soviética nascente. A arte tornar-se-ia
construção de objetos, elaboração técnica de materiais, aproximando-se das
formas do artesanato, da experiência operária.
O construtivismo na Rússia tem sido considerado como um desenvolvimento conseqüente do cubo-futurismo e das tendências pictóricas de vanguarda, e seu triunfo no campo do teatro foi uma das suas mais importantes
contribuições.
Meyerhold figura também aqui como o diretor teatral que melhor
soube explorar as possibilidades da cena construtivista. Com efeito, não se
pode compreender uma certa fase do trabalho teatral de Meyerhold sem o
construtivismo. Da mesma forma que sem ambos não se pode pensar a
dramaturgia de Maiakóvski. A própria direção cinematográfica de Eisenstein
deve muito a essa espécie de cálculo algébrico com que os construtivistas
pretendiam estruturar suas obras de arte, seja literatura, pintura, arquitetura
ou escultura.
O centro de gravidade do construtivismo passa a ser a revista LEF,
“Liév Front Iskustv” (Frente Esquerda das Artes), fundada por Maiakóvski
em 1923. A LEF se propõe a tomar parte ativa no desenvolvimento da
sociedade soviética, criando novas formas para a arte inspiradas na técnica
e no industrialismo.
Meyerhold tinha sido nomeado em 1920 como chefe do Departamento Teatral do Comissariado de Educação e havia lançado o movimento
“Outubro Teatral” onde proclamara : “chegou o momento de fazer uma
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 93-103, MARÇO,1997
revolução no teatro e de refletir em cada representação a luta da classe
trabalhadora por sua emancipação.” Mas, era claro para ele, que somente
formas novas poderiam cumprir essa tarefa e a idéia foi aceita com entusiasmo por seus jovens discípulos. Sua principal preocupação, nesse momento, foi a de dar vida a um teatro diretamente empenhado nas polêmicas
políticas. Um teatro que refletisse as idéias do comunismo com o mesmo
realce dos comícios e cartazes. Mas é bom frisar que, como os cubo-futuristas, a tendência política de seu teatro nunca impediu a experimentação
formal, pois, para ele, os acontecimentos de Outubro certamente valorizariam as experiências mais inusitadas, sem reprimir a liberdade do artista na
escolha dos meios e nas invenções.
Assim, o diretor russo, ao deixar as sutilezas estéticas da era simbolista, passa de modo apaixonado às extravagâncias irreverentes dos futuristas e empreende no campo do espetáculo uma ação análoga à que Maiakóvski
desenvolve no âmbito literário. Na verdade, assim como Stanislávski encontrara nas peças de A.Tchékhov um terreno propício para suas investigações, também Meyerhold experimentou muitas de suas propostas teatrais
apoiado na dramaturgia de Maiakóvski.
O primeiro trabalho comum entre os dois marcou a história do teatro
soviético: “Mistério-Bufo”causou acesas polêmicas entre os críticos que,
diante da radicalidade tanto do texto, quanto da encenação, afirmavam que
o trabalho não era apropriado às massas operárias. Aliás, essa será a acusação que acompanhará tanto Meyerhold como Maiakóvski até seus últimos dias, assim como tantos outros artistas da vanguarda russa : o de serem
ininteligíveis paras as massas.
O fato é que essas “extravagâncias futurísticas” elevavam a linguagem do palco e a direção teatral a graus de experimentação jamais imaginados na cena soviética.
Os antigos telões pintados, o decorativismo excessivo e supérfluo
foram substituídos, no palco, por armações abstratas, andaimes, escadas
giratórias, encaixes, enfim, todo um aparato cênico que aludia ao triunfo da
máquina com suas engrenagens e dispositivos mecânicos, símbolo de um
tempo veloz e extravagante.
Meyerhold, servindo-se desse novo espaço, investiga também um novo
sistema para a interpretação do ator. Os tablados e andaimes da cena
construtivista servem de base para a exploração do virtuosismo cinético de
um novo ator. A teoria da “biomecânica” oferece, ao invés de “emoções
verdadeiras”, um conjunto de saltos, flexões, simulações, golpes, enfim, toda
uma linguagem corporal que pretende substituir o ator da intuição, do
“perejivánie” (da experiência interior) por um ator-ginasta, um ator-acroba- 97 -
CAVALIERE, Arlete O. UM POETA DA CENA RUSSA: MEYERHOLD E O TEATRO RUSSO DE VANGUARDA.
ta que, em última análise, simbolizaria, com seus dotes físicos, o homem
ideal da época.
A premissa de Meyerhold era que a verdade das relações e da conduta humana, a essência do homem se expressa não por palavras, mas por
gestos, passos, olhares, ações. Dizia: “A muda eloqüência do corpo pode
fazer milagres e a palavra não é mais que um bordado sobre o tecido
do movimento”.
A biomecânica de Meyerhold que coloca os atores, vestidos com
macacões de trabalho, girando por entre as peças daqueles dispositivos cênicos, aproxima, certamente, o teatro das cadências da produção e o ator,
numa exatidão extremada de movimentos, assume o aspecto de um operário diante das máquinas.
Mas a agilidade dos atores de Meyerhold impedia-os de caírem num
certo esquematismo de gestos como se fossem bonecos vazios. A esse
rigoroso abstratismo tanto da biomecânica quanto do construtivismo, juntava-se uma teatralidade repleta de humor “clownesco”, onde os atores, como
bufões da commedia dell’arte, pareciam improvisar truques, surpresas e
piruetas.
Na verdade, essa alegre comicidade repleta de brincadeiras que lembrava os teatros de feira com suas cambalhotas, perseguições e arlequinadas,
nunca desapareceu dos espetáculos de Meyerhold e sempre fez parte das
investigações estéticas do diretor, mesmo em muitos dos espetáculos anteriores à Revolução. Isso explica também o seu desejo, principalmente nos
anos que se seguiram à Revolução, de transferir o teatro a espaços abertos,
às praças públicas e chegar, enfim, a um espetáculo “extra-teatral”, isto é,
com a abolição da cena, do cenário e dos figurinos, os atores, a peça e sua
representação poderiam ser substituídos por um jogo livre de trabalhadores
que consagrariam uma parte de seu tempo livre a um jogo teatral improvisado no próprio local de trabalho e num cenário inventado por eles.
É claro que todas essas experiências provocaram aferradas discussões sobre o futuro da arte teatral e calorosos debates se realizaram então
contra ou a favor da nova direção teatral. Maiakóvski participou de numerosos debates, onde se colocava em defesa dos trabalhos de Meyerhold. E
o próprio encenador, muitas vezes, teria que ir a público fazer a defesa de
suas propostas estéticas.
É preciso imaginar também a atmosfera de excitação e aventura que
reinava durante aqueles anos pós-revolucionários. A miséria e a devastação que assolaram a Rússia com a gerra civil não impediam as centenas de
novas empresas teatrais e de grupos amadores que surgiram por todo o
território soviético. Até 1927, havia 24.000 círculos teatrais. As escolas dra- 98 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 93-103, MARÇO,1997
máticas estavam inundadas de alunos. Enquanto os clubes de trabalhadores
e camponeses promoviam o movimento amador, os grupos mais
intelectualizados das grandes cidades repetiam os lemas futuristas ou do
Proletkult, aclamavam Meyerhold como líder mais representativo do teatro
russo e faziam toda espécie de experimentos para encontrar a linguagem
teatral adequada à nova sociedade. O interesse pelo teatro parecia epidêmico. Os teatros atraíam enormes auditórios e o mesmo acontecia com os
grupos dramáticos e as plataformas cênicas improvisadas
É claro que a distribuição gratuita de entradas entre trabalhadores e
soldados era um fator importante, mas, certamente, isso se aliava ao desejo
de diversão naqueles duros tempos de fome e miséria, quando o teatro oferecia alguma forma de canalização de energias. Havia, sem dúvida, como
que uma explosão do instinto criador, um desejo de auto-expressão e a multiplicação de atividades artísticas, o que explica o aparecimento de grupos
de teatro nas fábricas, nas aldeias, no Exército e na Marinha Vermelha.
No entanto, dentro dessa febril atmosfera, quando nada parecia demasiado radical ou impossível e as artes se orientavam por uma livre experimentação de formas e estilos, forças hostis também se uniam como resistência a este amplo movimento. Aquela multidão popular e os auditórios
maciços levavam a determinados setores do Partido, a questão do repertório e do nível das representações teatrais. Os setores mais ortodoxos não
estavam tão interessados em encontrar uma nova forma artística revolucionária, mas, antes de tudo, em utilizar o teatro como plataforma política e
como meio de “ilustração” do povo. Por isso, estavam perfeitamente satisfeitos com o realismo e não lhes interessavam as inovações de Maiakósvski,
Taírov ou Meyerhold. O choque entre as diferentes tendências era inevitável, mas só se tornou agudo em fins da década de 20. Nos primeiros dez
anos da revolução, os mais frutíferos e coloridos, a vanguarda ocupou uma
posição dominante e seu chefe universalmente reconhecido foi, sem dúvida
alguma, Meyerhold que teve a liberdade para promover e realizar os projetos mais extravagantes.
Apesar da oposição a toda espécie de formalismos da vanguarda a
partir de 1923 e dos violentos ataques de certas facções da imprensa, a
posição de Meyerhold era muito forte. Além de possuir uma grande popularidade entre a juventude, contava também com importantes defensores dentro
do próprio governo, entre os quais o próprio Lunatchárski, o Comissário da
Instrução Pública.
Nos anos mais auspiciosos de sua diversificada carreira artística,
Meyerhold ocupou-se da montagem de clássicos da dramaturgia russa.
Respondia, assim, ao slogan “Voltar a Ostróvski!” que Lunatchárski havia
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CAVALIERE, Arlete O. UM POETA DA CENA RUSSA: MEYERHOLD E O TEATRO RUSSO DE VANGUARDA.
lançado com o objetivo de resolver o decantado problema do repertório a
ser levado por esse novo teatro que surgia.
Muitos diretores dispuseram-se a reelaborar as velhas comédias do
século XIX em tom moderno. E no entanto, não ocorria exatamente um
retorno aos clássicos, mas uma tentativa de aplicar também à dramaturgia
do passado os novos procedimentos artísticos da vanguarda, mostrando, sob
a ótica do presente, autores vinculados à tradição acadêmica dos teatros
imperiais.
Não só Meyerhold, mas também Eisenstein, Kózintzev e Trauberg
causaram muita indignação com seus espetáculos que eram classificados
como uma “deformação dos clássicos”, um “arbitrário” retalhamento e uma
decomposição das obras dramáticas de Ostróvski, Gógol e Griboiédov, mas
que resultavam em verdadeiras restaurações baseadas, muitas vezes, em
minuciosas pesquisas histórico-filológicas. Dissecavam-se os textos do século passado como se fossem objetos de um quadro cubista, desmontandoos em pedaços, como faziam os lingüistas do “Opoiaz”(Sociedade de Estudo da Linguagem Poética) em suas análises estruturais.
Apesar de terem sido tachadas de “deturpações sacrílegas dos clássicos”, essas reconstituições correspondiam ao gosto da época e estavam
em voga entre todos os diretores da vanguarda que, com aquelas bizarras
colagens, entremeadas de números circenses e expedientes do music-hall,
pretendiam fazer eco às circunstâncias da época.
Meyerhold projetava nessa época, por exemplo, realizar o que ele
denominava “Kinofikátsia tiatra”, isto é, adaptar o teatro à sintaxe do cinema. Foi o que ele empreendeu com a montagem de “Liés” (A Floresta) de
Ostróvski ou de “ Revizor” (O Inspetor Geral ) de Gógol, onde a habitual
subdivisão em atos longos foi substituída pela fragmentação do texto em
quadro/episódios que se sucediam com ritmo rápido e dinâmico, como que
imitando a linguagem cinematográfica. Além disso, entre os anos de 1922 e
1928, o interesse pelo Ocidente era ainda muito grande e os intercâmbios
culturais com a Europa e a América sintonizavam as artes com a tendência
“urbanista”. Meyerhold e toda a vanguarda inspiravam-se nesse chamado
“urbanismo” para, mesmo que fosse para retratar a desilusão moral e a
decadência da cultura burguesa, tingir seus espetáculos com os tons de um
certo americanismo, do fox-trot, do cinema e do romance policial que emprestavam à cena russa as imagens febris e sedutoras das metrópoles ocidentais com seus cabarés e suas figuras noturnas e misteriosas.
Em vários espetáculos, como por exemplo em “Óziero Liul”( O Lago
Liul)) de Faikó ou em “D.E.” (“Daióch Ievrópu” - Dê-nos a Europa),
Meyerhold exibirá vultos estranhos movimentando-se pelos tablados
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 93-103, MARÇO,1997
construtivistas com uma mímica convulsiva, ao som do “jazz” e dos sons
estridentes do “corrupto” Ocidente. Desfilavam, assim, diante do público
soviético, com uma rapidez cinematográfica, a moda e as danças da época,
o “charleston” e o smoking dos cavalheiros que simbolizavam uma Europa
em declínio, mas refinada e elegante.
A tudo isso deve-se acrescentar aquela comicidade “clownesca”,
achados e procedimentos da comédia popular que imprimiam aos espetáculos um clima audacioso e excêntrico.
Chegou-se até mesmo à criação de um movimento chamado
“excentrismo” (“ekstzentrism”), a partir da publicação em 1922 de um
almanaque com o mesmo nome, onde alguns diretores expunham as teses
de um credo teatral que transformaria a cena numa dinâmica fragmentação
desconexa e numa seqüência de “truques fulminantes”. Quanto ao ator, o
almanaque pregava um movimento mecanizado: “o ator não tem sapatos,
mas rodas, não tem máscara, mas um nariz que acende e as corcundas que
surgem de repente, as barrigas que incham, as perucas vermelhas que se
arrepiam na cabeça dos clowns são o fundamento do traje cênico moderno”.
Tudo isto nos leva diretamente ao campo futurístico e não há como
negar que o excentrismo provinha claramente das fórmulas de Marinetti.
Também Eisenstein, desligando-se cada vez mais do teatro “figurativo”,
chegava à sua “montagem de atrações” e à idéia futurista de criar um espetáculo não-objetivo, fundado na extravagância e no movimento puro. A idéia
de um espetáculo transformar-se numa montagem livre de atrações autônomas, escolhidas ao acaso, tinha, certamente, muito que ver com a idéia de
um teatro agressivo que irritasse o público e que já fora expressa pelo poeta
italiano em seus manifestos de 1915.
É oportuno lembrar que Eisenstein foi discípulo e profundo admirador
do mestre Meyerhold, tendo freqüentado, em 1922, os seus cursos de direção e assimilado então, a biomecânica e o construtivismo.
E, sem dúvida, ambos os diretores compartilhavam da proposta futurista de que o teatro deveria colaborar com a destruição das obras-primas
imortais, “plagiando-as, parodiando-as, apresentando-as de qualquer maneira, sem aparato e sem compunção, como um número qualquer de atração”.
Não é difícil perceber que todo o programa da vanguarda era animado por esse espírito irreverente e alegre que dava aos espetáculos a aparência de um caleidoscópio vertiginoso, onde as extravagâncias mais variadas
uniam-se como que ao acaso num jogo incessante de armadilhas, bufonadas,
canções de café-concerto, exercícios de prestidigitação e procedimentos
circenses. O que havia de comum entre esses diretores era uma espécie de
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CAVALIERE, Arlete O. UM POETA DA CENA RUSSA: MEYERHOLD E O TEATRO RUSSO DE VANGUARDA.
aversão polêmica por todos os aspectos da arte burguesa de orientação
psicológica e a proposta de substituir o teatro literário por um gênero de
espetáculo repleto de números extravagantes que sujeitassem o espectador
a uma ação sensorial ou psicofísica.
Ao mesmo tempo, como vimos, todas essas manifestações da vida e
da arte ocidental foram condenadas oficialmente como típicas da corrupção
e decadência capitalista e isso acabava por criar uma situação ambígua
cada vez que se representava a vida européia ou norte-americana no palco.
Em sua última fase, o humor e a sátira de Meyerhold dirigiam-se, cada
vez mais, no sentido de estigmatizar a estreiteza mental e a limitação próprias
do burocratismo que, então, se intensificava depois da morte de Lenin.
O entusiasmo e a alegria, tão típicos das criações de Meyerhold nos
anos revolucionários começavam a desaparecer. O mecanismo alegre do
“Outubro Teatral” parecia muito distante e um novo estado de ânimo iria se
refletir nos seus últimos espetáculos. Quase negando o dinamismo daquelas
figuras irreverentes dos trabalhos anteriores, surge agora, no palco, uma
fixidez alucinada. Como que aludindo à burocracia soviética e ao temor que
o regime agora inspirava em vários setores da sociedade soviética, os seus
espetáculos apresentavam uma atmosfera um tanto sombria, enigmática,
substituindo o alegre tumulto anterior por figuras, cujos movimentos indolentes, divididos por pausas longuíssimas numa espécie de pantomima em ritmo
retardado, lembravam personagens de Hoffman, imagens diabólicas e grotescas que pareciam saídas de um delírio. Certas cenas, por exemplo, de
seu espetáculo “O Inspetor Geral” de 1926, impregnadas de uma atmosfera
de alucinação, apresentavam os intérpretes como fantoches típicos do simbolismo, vultos misteriosos e assustadores que criavam a imagem demoníaca da loucura no caráter tragi-cômico daquele ajuntamento de autômatos e
sonâmbulos, em que se haviam transformado os heróis gogolianos.
Aquela vida fervilhante de outrora povoava-se, agora, de bonecos
estranhos, um tanto entorpecidos e que darão conformação também aos
personagens satíricos das últimas comédias de Maiakóvski. Em “O
Percevejo”de 1928 e “Os Banhos” de 1929, tanto o dramaturgo, quanto o
diretor, mostrariam que, após o entusiasmo retumbante dos primeiros anos,
só lhes restava oferecer ao público aquelas sátiras grotescas e um tanto
amargas que, ao mesmo tempo que soavam como um desafio polêmico ao
realismo e ao mau gosto que então começavam a se impor na cena soviética, marcavam o final de um rico período de experimentalismo nas artes que
parecia se evaporar agora junto às utopias das vanguardas.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 93-103, MARÇO,1997
BIBLIOGRAFIA
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1985.
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de Buenos Aires, 1965.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 105-122, MARÇO,1997
A IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DE
GOGHTEN P
ARA A CUL
TURA ARMÊNIA
PARA
CULTURA
Yêda de Moraes Camargo
As origens da literatura armênia perdem-se no tempo. É importante
observar que as criações literárias armênias, de que se tem informação,
foram transmitidas pela expressão oral, bem antes de Cristo. O que se sabe
é que, no milênio que antecedeu a cristianização (301 d.C.), existiu e floresceu uma criatividade literária em versos, transmitidas de geração a geração,
de teor mitológico, histórico- épico, dramático e, também, humorístico.
Foi nos Cantões de Goghten (ou Gogh), província de Siunik, da região
de Shirak, próximo da atual Erevan, que as famílias ali moradoras, por meio
de CANTOS, expressavam, transmitiam, propagavam os feitos dos heróis
da época, as façanhas dos reis; divulgavam o folclore e os mitos do paganismo cristão. Historicamente, ficaram conhecidos como os CANTOS DE
GOGHTEN. Essa província era famosa pelos seus campos férteis, produção vinícola e costumes alegres de seus habitantes. Estes, plantavam e colhiam os alimentos para sua sobrevivências embalados pelos cantos. Bardos
eram cantores ou trovadores que utilizavam um instrumento de corda –
bambir ou bandir – semelhante a violas.
É desconhecida a autoria desses cantos, assim como a época de elaboração.
De acordo com a divisão dos períodos históricos armênios, pode-se
inferir que, na época dos Cantos de Goghten, muitas escritas eram utilizadas.
Observe a divisão estabelecida:
1º) Pré- histórico: desde cerca do 5º milênio até o séc. X a.C.;
2º) Pré- armênio: do séc. X a VI d.C.;
3º) Armênio: do séc. VI a. C. ao séc. V d.C.
É exatamente no período armênio (3º) que a nação se utiliza desses
diversos tipos de escritas, as quais eram mal adaptadas à fonética do idioma
armênio e sujeitas a influências externas. Diante disto, revelam-se meios
inadequados para criar uma literatura de alcance nacional, tampouco para
transmitir algo em idioma genuíno dos antepassados.
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CAMARGO,Yêda de Moraes. A
IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DE GOGHTEN PARA A CULTURA ARMÊNIA.
Foi graças a alguns historiadores armênios medievais que preciosos
versos de poemas de um passado distante foram recolhidos, analisados e
preservados, obtendo uma coletânea de 24 cantos. Estes cantos são considerados vestígios literários da antigüidade, fragmentos poéticos de cunho
narrativo, transmitidos pelos trovadores (ashugh) e compilados, após alguns
séculos, por estudiosos.
Movsés Khorenatsi, tido como Pai da Historiografia Armênia, do séc.
V d.C., juntou os excertos, organizou-os, conservando a evocação aos mitos do passado e heróis da cultura armênia tão presentes na transmissão
oral, abrigados pela memória popular.
Outros estudiosos colaboraram intensamente: séc. IV- Agathângelo
(historiador); séc. VII – Hovanês Mamikonian (historiador); séc. X – Grigor
Makistros (gramático); séc.V – Faustos Biuzandatsi ( historiador); séc. VEliseu ( religioso); séc.VII – Sebeu (historiador); séc.VII – Anania Shirakatsi
( matemático- astrólogo- geógrafo).
Movsés de Khoren cita, uma única vez, o nome de um certo
“VRUYR”– homem sábio e poeta – como se supõe ser o autor desses
cantos, devido a ter sido responsável pelos negócios da corte de muitos de
seus amos (A.C.): o rei Artashes; a rainha Satenik; Artavazd I ( filho de
Satenik e Artashes, sucessor deste); Simbat- um velho general.
Os cantos foram classificados em 2 grupos, a saber: grupo A- transmitidos por título e enredo; grupo B- fragmentos em versos.
Os recolhedores referem-se aos cantos, pelo seu tom, como: TSUTSK
(exibição): alegre, executado por jovens de ambos os sexos e;
MRMUNTCHK: sepulcrais, recitativos em voz baixa, executado por virgens cantadoras e mulheres profissionais, carpideiras. As danças
complementavam.
Pode-se perceber, nos cantos, o registro da mentalidade e tradições
do povo armênio, seus costumes, suas crenças, assim como a evidência de
contatos com outros povos antigos, pelo teor mítico comum (gregos, persas,
hindus, assírios), o que lhes confere valor documental como fonte de informação histórica e cultural, ao lado dos aspectos lingüístico e literário.1
GRUPO A: Cantos transmitidos por títulos e enredo
1
“Krapai”: língua dos textos, em uso, aproximadamente, até o séc. X d.C., começando daí
em diante a transformar-se em “armênio moderno”, atravessando uma fase intermediária
(armênio médio). Atualmente, o clássico é reservado para os ofícios eclesiásticos.
Armênio moderno- Ashkarapar: língua do povo. A partir do séc. X, alcançando sua perfeição literária na segunda metade do séc. XIX.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 105-122, MARÇO,1997
CANTO DE HA
YK
HAYK
YK: Este canto, de acordo com SAPSEZIAN,
exalta o herói ancestral HAYK, descendente direto de Noé, que teria comandado vitoriosamente a chegada dos pioneiros armênios ao planalto do
Ararat. HAYK quer dizer armênios. Em termos geográficos, esta forma é
sinônimo de Hayastan ( hay + a + stan: lugar dos armênios).
É, portanto, um mito e tradicional fundador do povo armênio que,
dizem, chamaria a si mesmo de “hay”.
Esta lenda é a mais importante relativa à origem da nação, transmitida por bardos, em que a Assíria quer a submissão do povo armênio.
LENDA: “Hayk, descendente de Jafet, filho de Noé, revolta-se
contra o titã Bel, chefe e semi-deus da Assíria. Isto ocorre devido à
destruição da Torre de Babel. Bel invade as possessões armênias, onde
estavam estabelecidos familiares e descendentes de Hayk. Convida-os
à submissão, contudo, o grupo tribal não aceita tal imposição. Hayk
junta sua família, mais de 300 pessoas e os leva para a “Terra de
Ararat”, tomando posse da localidade. Aproveita a ocasião e distribui
terras aos familiares e descendentes, estendendo, portanto, a área de
sua jurisdição. Fundou cidades, entre elas, a noroeste, Haykashen e
denominou o país de Hayk.
Bel percebe a desobediência de Hayk e de seu povo e envia o
seu filho, com uma mensagem, intimando-o a obedecer suas ordens.
Hayk recusa-se. Então, Bel, juntando suas forças, marcha contra os
armênios. O reencontro deu-se junto ao Lago de Van lago de água
salgada onde houve uma luta épica entre dois exércitos de titãs. Hayk
era um excelente besteiro: ataca uma seta em Bel e esta atravessa o
peito dele.
Com a morte do comandante do exército assírio, os soldados
fogem.”
ANÁLISE: Esta lenda é a narração das origens do povo armênio e
de sua terra. Estes, vindos do continente europeu (Balcãs), nos fins do 2º
milênio a.C., permaneceram algum tempo nas fronteiras do desaparecido
Império Hitita e, no séc VI a.C., chegam às terras do Reino de Urartu. Aí,
mesclam-se com os autóctones urartus e hays, recebendo, nessa época, o
nome de Hayastan pelos seus habitantes e Armênia pelos estrangeiros.
Não se sabe pormenorizar quem foram os comandantes da migração dos
“armênios”. Pode ser que um deles tenha sido Hayk.
2) CANTO DE ARAM
ARAM: O príncipe Aram é filho de Harma,
neto de Hayk e seu sucessor, na época em que os armênios, vindos do
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CAMARGO,Yêda de Moraes. A
IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DE GOGHTEN PARA A CULTURA ARMÊNIA.
oeste, encontravam-se nos arredores da Capadócia. No séc. VI a.C., a
Armênia defendia suas fronteiras contra os medos ( ao sudeste) e assírios
(ao sul).
Era o 7º chefe da Armênia e como seu nome era “Aram”, levanta-se
a hipótese dele ser o 1º rei de Urartu, pois foi um Aram quem combateu
vitoriosamente contra Salmanasar II da Assíria (860- 825 a.C.).
Movsés de Khoren menciona acerca de Aram:“Dele narram-se muitas proezas em feitos de armas”; “nas lendas de avós”; “nos contos transmitidos pelos cantos bardos”; “contam-se os feitos de sua bravura”, etc.
Advém daí que Aram preferia morrer em defesa de sua pátria a vê-la
pisoteada pelos estrangeiros. Foi ele quem expandiu as fronteiras da Armênia
em todas as direções, obrigando todos os habitantes do país a estudar o
idioma armênio.
LENDA: “Aram luta contra os descendentes do gigante Titã, da
mitologia grega, em Cesaréia- na Capadócia. Luta, também, contra
Bra-Sham, descendentes dos gigantes e semi-deus da Assíria entre as
montanhas de Korduk e a planície da Assíria. Guerreia, também, contra “Payapis- o Gigante”, um tirano que dominava terras entre os mares
Pôntico e o Oceânico, expulsando-o para uma ilha no mar Asiático.”
ANÁLISE: Tanto o canto “1” quanto o canto “2” mostram vestígios
do folclore e da mitologia dos gregos e assírios que os urartu-armênios trouxeram para as suas lendas, no período de sua instituição em reino já consolidado na Terra de Ararat.
3) CANTO DE SEMÍRAMIS E DE ARA- O BELO
BELO:
Ara, no séc. VI, era filho e sucessor de Aram no trono da Armênia.
Semíramis era rainha da Assíria-Babilônia, mulher do rei Nino, um mito do
2º milênio a.C. Surge, no canto, também em outra época, em 823-810
a.C.,como mulher do rei assírio Shanshi-Adad V.
Esta é uma das lendas mais populares do folclore armênio.
LENDA: “Semíramis, adúltera, recebe informações sobre a beleza de Ara. Fica muito atraída e pretende seduzi-lo de qualquer forma.
Contudo, enquanto seu marido estivesse vivo, isso seria impossível.
Nino tinha intenção de exterminar todo o povo armênio com o objetivo
de vingar a morte de Bel, seu ancestral.
Após algum tempo, Nino desaparece. Não se tem dados sobre se
morreu ou se fugiu para a ilha de Creta. Agora, portanto, Semíramis
sente-se em liberdade. Envia emissários, com muitos presentes e pro- 108 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 105-122, MARÇO,1997
messas, à Armênia. O intuito era convidar o rei da Armênia, Ara, para
que fosse ao seu encontro, em Nínive, capital da Assíria. Caso ele concordasse, poderia, inclusive, apossar-se do trono da Assíria- Babilônia.
Em contrapartida, também poderia vir satisfazer os seus desejos e, em
seguida, regressar ao seu país com muita paz e presentes. Mas, as
propostas foram rejeitadas.
Semíramis fica furiosa e invade a Armênia, com todo o seu exército. Dá ordem ao general para atacar o acampamento das forças de
Ara, porém, deveria poupar a vida do rei. As tropas de Ara são derrotadas e ele, mortalmente ferido, cai no campo de batalha. O corpo de
Ara foi procurado, entretanto, só encontrado pelo exército assírio e
levado ao terraço do palácio real. Os armênios voltam a atacar a
Assíria, objetivando vingar a morte de seu rei.Semíramis, preocupada
com o ataque, transmite-lhes a mensagem de que deu ordens aos seus
deuses para que lambessem o corpo de Ara e, assim, restituir-lhe-iam a
vida. Embora sua feitiçaria não tenha vingado, o corpo do rei armênio
começou a entrar em decomposição e, às ocultas, foi enterrado.Com a
finalidade de apresentar uma solução ao povo armênio, prepara um
de seus pretendentes, disfarça-o como se fosse Ara e divulga a mensagem: “Os deuses, lambendo as feridas de Ara, restituíram-lhe a vida e,
portanto, Ara vivo, satisfez os seus desejos.”
Comprovado o reviver do rei, foram erguidas estátuas dos deuses, prestando-lhes homenagens e sacrifícios, já que o paganismo era
idolatrado, nessa ocasião. Os armênios viram-se convencidos, acreditaram na força dos deuses assírios e, assim, bateram em retirada das
terras assírias”.
ANÁLISE: Entre uma época e outra, lutas se sucederam. As guerras pela posse de terras eram freqüentes. Embora a lenda registre, nessa
época, lutas entre armênios e assírios, por motivos diversos, a Armênia expandia obras de grande envergadura, nos arredores do lago de Van. Foram
construídos palácios com jardins suspensos; canais com 80 km de extensão
– um aqueduto –; conjunto de templos com tesouraria e hospedaria, escavados nos rochedos; fortes e muralhas, com inscrições misteriosas. Incentivou-se a plantação de uva e pomares foram organizados.
Ainda existem, na Armênia atual, os canais, as cavernas, parte das
muralhas e das inscrições em cuneiforme.
4) CANTO DE SANA
SANATRUK
TRUK: Sanatruk é de filiação desTRUK
conhecida. A tradição atribui-lhe o martírio do apóstolo Tadeu e da própria
filha, Sandukht. Foi rei da Armênia entre os anos de 75 a 110. Contudo,
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CAMARGO,Yêda de Moraes. A
IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DE GOGHTEN PARA A CULTURA ARMÊNIA.
recebe expressões elogiosas por parte dos historiadores estrangeiros, quanto à sua ação militar, rigor na justiça, físico bem cuidado e seu comportamento levando-o à comparação do melhor grego ou romano.
Construiu a cidade de Nisibis, ao norte da Mesopotâmia, erguendo
sua estátua. Também foi esculpida, na mão dessa estátua, a única peça de
dinheiro que lhe sobrara do tesouro público.
LENDA: Num dia de tempestade e neve, quando criança de colo,
viajava com sua mãe e ama-de-leite, atravessando as passagens das
montanhas de Korduk (Corduena), no sul do país. Por três dias, a
ama-de-leite, com ele no colo, ficou enterrada sob a neve, até que
deuses enviam-lhe uma fera estranha, de cor branca, que os salva.
ANÁLISE: O historiador narra que a fera estranha era um cão branco que junto a homens do grupo de salvação estavam a sua busca, a mando
da corte.
AND
5) CANTO DE YERW
YERWAND
AND: A tradição literária expõe que,
nos séculos IV e III a.C., YERWAND foi rei (36 a.C.) ou governador (37 a.
C.) da Armênia. Ele construiu YERWANDASHAD e YERWANDAKERT
(= construção de YERWAND); e BAGARAN (= cidade dos deuses); parques de caça e diversões; obras de canalização.
LENDA: “ Sua mãe era uma mulher fortíssima e gigante. Ninguém ousava desposá-la. Mas ... dá a luz (em 40 a.C.), por uniões
ilícitas, a dois meninos: YERWAND e YERWAZ. YERWAND participa da
corte de Sanatruk e, após a sua morte, sucede-o. Indica seu irmãoYERWAZ- para o cargo de “Sumo Sacerdote”, em 41 a.C.
Em seu olhar havia uma excepcional força mágica. Quando de
mau humor, os seus funcionários diziam que seu olhar era tão forte
que vinha carregado com a força dos deuses e, mesmo cobertos os
rostos com tábuas de sílex, estas se rompiam somente com a intensidade da energia de seu olhar, sempre que desejasse punir alguém”.
6) CANTO DE MAM KUN: Mam Kun é de família chinesa e tornou-se ancestral da mais renomada família armênia:
MAMIKONIAN. Os MAMIKONIAN auxiliaram a Armênia, com dedicação e bravura, pois na condição de comandantes do exército, ocorrendo a vacância do trono, eles assumiam a direção da nação.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 105-122, MARÇO,1997
LENDA: “MAM KUN, chinês, ministro do rei Arbok, é incriminado
por Bel Tokh- irmão do rei. E, MAM KUN, com toda sua família, deixa
o país, refugiando-se na corte da Pérsia. A China solicita sua extradição. É acolhido na Pérsia e faz um juramento pelo Sol, salvaguardando sua vida. Sua extradição é autorizada. MAM KUN encontra asilo
junto ao rei Tridat III da Armênia, em fins do séc. III d.C. Demonstra
fidelidade e agradecimento ao rei da Armênia. Luta juntamente com a
Armênia e vence os atacantes. Um decreto real promove a família MAM
KUN à classe de nobreza, destinando-lhe o cargo de Ministro da Corte, recebendo vastas extensões de terras. A grafia de seu nome foi
alterada de MAM KUN para MAMKUNIAN e consagrado, mais tarde,
para MAMIKONIAN. Pouco se sabe a partir desse episódio, sabe-se
apenas que a família dos MAMIKONIAN permaneceu, até o séc. IX,
respeitada pelos feitos e foi consagrada pela tradição”.
GRUPO B:
AHAGN (Mitológico- nascimento do deus
1) CANTO DE V
VAHAGN
Vahagn)
Este canto é considerado o mais belo entre os demais, por suas figuras de linguagem e poeticidade. É dedicado ao deus do Fogo, do Sol e da
Força. A imaginação e o universo unem-se para homenagear Vahagn, haja
visto o momento culminante que é o seu nascimento, simbolizando-o como o
deus “protetor” da antiga Armênia, sendo invocado pelos reis armênios, em
tempos de guerra.
Vahagn é filho de Tigran I. Tem como irmãos Bab e Tiran.
Canta-se a lenda:
“Paria o céu,
paria a Terra,
paria o Mar purpúreo,
também o cálamo, no mar, paria
Saía fumaça do oco do cálamo,
Saíam chamas do oco do cálamo
e através das chamas
corria um menino louro;
tinha cabelos de fogo,
tinha barbas de chamas
e seus olhos eram sóis”.
ANÁLISE: Este poema trata do nascimento de Vahagn no qual participa toda a natureza, com dores de parto, analogamente a uma mulher
parturiente. A natureza funciona como mãe, personificada pela figura lite- 111 -
CAMARGO,Yêda de Moraes. A
IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DE GOGHTEN PARA A CULTURA ARMÊNIA.
rária ou poética do animismo: o céu, a terra, o mar, as plantas, elementos
naturais, adquirem atributos humanos. Em um outro sentido, o ser humano,
comparado às características do fogo, do sol, metaforicamente, ganha a
dimensão de um semi-deus, considerando-se a conexão do natural e do
sobrenatural. Observa-se, também, a presença do elemento pagão compondo o canto mítico.Vahagn, na história, é conhecido como herói; na religião
pagã, um semi-deus e na poesia, um personagem mítico. O povo pedia-lhe
amparo nos perigos. Em situações como o susto dos dragões (cobras, feras,
monstros), Vahagn lutava e sagrava-se campeão. Como semi-deus, cometia até “roubo”, que foi convertido em lenda, conhecida como “Via Láctea”:
“ Nas lendas de nossos avós, conta-se que num inverno dos mais duros,
Vahagn, um de nossos ancestrais, foi roubar palhas gramíneas dos currais
de Bar Sham, ancestral da Assíria. O fato consagrou-se, mais tarde, pelo
fenômeno celestial da Via Láctea.”
Entende-se que Vahagn, ao voltar da Assíria por via espacial, deixou
cair no caminho parte das palhas roubadas que, por estarem brancas, devido à neve, deixaram luminosas as pegadas de sua passagem.
Os elementos fundamentais do universo são bem pronunciados: o
céu, a terra e o mar. As dores do parto são interligadas a estes elementos,
marcando o nascimento do herói-redentor, aquele que conduz o combate
vitorioso contra as forças do mal (os Vishaps) e cuja potência é a do astrorei, cuja morada terrestre são os altos picos da Armênia.Assim se manifesta:
O céu com dores de parto
A terra com dores de parto
Também com dores de parto o mar purpúreo
com as mesmas dores agitam-se no mar as varas rubras
Varas que fumegam
Que se consomem em chamas
Chamas ardentes de onde surge fulgurante jovem
Cabeleira de fogo
Barbas incandescentes
Olhos de sol radiante.
ARDKES – O JO
2) CANTO DE V
VARDKES
JOVEM.
VEM. Filho de uma
das muitas “mulheres” da corte (séc. III- II a.C.); acredita-se que pertença
à nobreza armênia, talvez à linhagem real.
Seu nome aparece junto ao de Vagarsh (116- 140), quando se menciona sobre a construção de Vagarshavan ( cidadezinha de Vagarsh).
“O rei Vagarsh construiu muralhas em torno da renomada cidadezinha de Vardkes, sobre o rio Kasaga, cantada nas lendas. ” Assim:
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 105-122, MARÇO,1997
“Vardkes, o jovem,
da região de Touha,
deixando sua moradia,
rumou,
ao longo do rio Kasaga,
para a colina de Shresh,
perto da cidae de Artimed
às marges do rio Kasagh,
para pedir
a mão da filha
da corte do rei Yerwand.”
As localidades citadas- Touha, Kasaga, Shreshi, Artimed,
Vardkesavan- pertencem à atual República da Armênia. O que levou Vardkes
de Touha às margens do rio Kosagh, onde construiu uma cidadela –
Vardkesavan – era a vontade de morar perto do futuro sogro, rei Yerwand,
para pedir a mão de sua filha em casamento. Vardkesavan, mais tarde, com
fortes e muralhas, transforma-se em Vagarshshabad ( cidade de Vagarsh) e
conhecida como Cidade- Nova. Torna-se capital do país, substituindo
Artashad que fora quase que destruída totalmente.
3) CANTO DE TORK – O GIGANTE
GIGANTE. Foi um dos netos
do patriarca Hayk. Khorenatsi descreve-o: homem de aspecto horrendo e
gigantesco, grosseiro, com nariz chato, olhar astuto e maligno e de físico
forte e alto. Devido à sua feiura, recebeu o apelido de anguegh ( = não
bonito). Eis um fragmento do canto:
“Arranca blocos de sílex
maciços,
sem rachaduras,
quebra-os em fragmentos,
uns grandes
outros pequenos;
com as unhas os aplaina,
grava neles
figuras de águias.”
Inúmeras lendas e histórias foram a ele destinadas. No entanto,
Korenatsi, ao apresentar este canto, menciona: “Lendas e nada mais que
lendas. Mas para que indignar-se com isto? Deixe-se a gente falar; pois,
pela grandeza de sua força, o gigante merece essas lendas.”
ARTASHES
(Vitória sobre os alanos)
4) CANTO DE ART
ASHES I
Artashes I reinou nos anos 190 a 161 a.C. É o personagem de destaque da história armênia por diversos motivos: liberta o país das influências
greco-selêucida e persa-aquemênida; reconquista a soberania políticaterritorial do país; resgata regiões perdidas; impõe o uso de um mesmo idioma em todo o território de sua jurisdição; estimula a agricultura; incentiva,
ao mesmo tempo, a cultura grega; funda a cidade de Artashad, com templos, teatros, jardins, pomares, parque de caça e diversões.
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CAMARGO,Yêda de Moraes. A
IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DE GOGHTEN PARA A CULTURA ARMÊNIA.
Os seus feitos são revestidos de uma aura quase mitológica. É difícil
distingüir por essa literatura épica que apresenta raízes ainda mais profundas no tempo, adentrando por eras lendárias, o histórico do mítico.
O ditado popular que comprova tais feitos é:“Nos tempos de Artashes
não havia, na Armênia, um palmo de terra inculta, quer nos campos, quer
nas montanhas.”
Os cantos de 4 a 8 referem-se exclusivamente ao monarca; os de 9
a 15 à sua família e seus colaboradores.
Acredita-se que esta coletânea somente foi possível pela presença
na corte do inteligente poeta VRUYR- assessor do rei.
Canto: Apelo à paz
“Digo-te, nobre Artashes
que venceste
a valorosa nação dos alanos,
acede aos pedidos
da filha de olhos lindos,
dos alanos,
e liberta o jovem
Não convém a um povo valente,
mandar matar por vingança
os herdeiros da heróica nação
ou, mantendo-os em cativeiro,
tratá-los a par dos escravos,
gerando eterna inimizade
entre ambas as bravas nações’.
Alanos: povo eslavo que em bravas hordas invadiu a Gália(séc. V) e a Península Hispânica,
sendo aniquilado pelos visigodos.
ANÁLISE: Ocorre uma expedição dos alanos, ao norte da Armênia.
Artashes comanda as tropas e os expulsa além do rio Kura e os armênios
ficam na margem sul. Nesse combate, o filho do rei dos alanos é preso pelos
armênios. Pedem a paz a Artashes com a libertação do herdeiro alano;
contudo, o rei a recusa. Então, além-rio, mediante intérpretes, a irmã do
prisioneiro apela a Artashes, como no canto.
ASHES ( I ) (pedido de casamento)
ARTASHES
5) CANTO DE ART
“O que
o nobre Artashes pode oferecer,
por muitos mil milhares
e, mais ainda,
para compensar
a mão da nobre virgem,
filha dos alanos?”.
O rei Artashes ficou encantado com a inteligência e também com a
beleza da irmã do herdeiro preso.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 105-122, MARÇO,1997
Chama seu velho general, Simbat, e expressa-lhe o desejo de pedi-la
em casamento, garantindo aos alanos a paz e a libertação do herdeiro. Simbat
atravessa o rio, pede a mão da filha dos alanos, Satenik, ao seu rei e acordam a paz, tão desejada. Artashes recompensa em dinheiro e presentes os
futuros sogros.
ASHES ( I ) (casamento “à oriental”)
6) CANTO DE ART
ARTASHES
“Montou,
o valente rei Artashes
o seu fogoso corcel preto;
tirou a corrente
de couro vermelho,
de argolas douradas;
atravessou o rio,
impetuoso com águia nos céus,
e lançou: a corrente
de couro vermelho,
de argolas douradas,
sobre a filha dos alanos;
lançou-a por detrás,
magoando com força
as costas de delgada virgem,
e voltou rápido ao seu quartel”.
ANÁLISE: Artashes cumpre com o prometido: leva muito ouro, couro vermelho e laica. Munido da arma tradicional – as correntes – vai ao
acampamento dos alanos e conduz pessoalmente a noiva Satenik para a sua
casa.
Este fragmento registra tanto o momento histórico como o cultural.
A poesia lembra o estilo de novelas de cavalaria, sobressaltando a
valentia e o determinismo altivo e nobre do seu cavalo, conectando-os à
dignidade do seu montador.
A agressividade explicita como o herói conquista a princesa alana, a
dama inimiga, e dela se apropria: reflete a virilidade do personagem masculino, contrastando com a submissão do personagem feminino. A corrente de
couro representa a posse, o poder. As argolas de ouro são valorizadas pelas
mulheres orientais, pois é um metal precioso usado em noivado e casamento.
ASHES ( I ) (núpcias)
7) CANTO DE ART
ARTASHES
“ Chovia ouro
no casamento de Artashes;
chovia pérolas
nas núpcias de Satenik”.
ANÁLISE: O fragmento traduz o quanto havia de luxo e de pompa
no casamento real. Esse esbanjamento de certa forma é intencional e há
muito de cultural. Na época, em casamentos ou à chegada do casal no
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CAMARGO,Yêda de Moraes. A
IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DE GOGHTEN PARA A CULTURA ARMÊNIA.
templo, distribuíam moedas aos presentes, pérolas à chegada da rainha, na
porta de sua residência.
O luxo e a pompa dos casamentos reais, caracterizado pelo exagero
de uso das pedras preciosas, bem como da simbologia contida no ouro (poder) e pérolas (a relação com o puro, com a virgindade da mulher e até, a
respeito da quantidade numerosa de filhos como votos de felicidade desejados aos noivos).
ASHES ( I )
8) CANTO DE ART
ARTASHES
(tempos felizes:)
“Quem me daria a fumaça das chaminés, Nos tocávamos trombetas
a alvorada de Navasard,
e tambores,
o galopar dos veados,
segundo os costumes do
galopar dos veados.
nossos reis”.
ANÁLISE: Este excerto parece mais com um “adeus” do monarca,
em momentos de lembranças, àqueles que antecedem sua morte, motivados
por doença. A nação tributou-lhe um enterro solene, com muita pompa, em
carros reais. O féretro era todo de ouro; o trono e a cama eram de seda; o
manto estendido no corpo era recamado de muito ouro. Em sua cabeça,
fora colocada uma coroa dourada e, em seus pés, armas, também douradas.
Ao seu redor estavam seus filhos, familiares, oficiais de arma, chefes
de famílias, destacamentos das regiões e divisões do exército nacional, armados como em combate.À frente, marchavam os trombeiros com trombetas em bronze; atrás, virgens cantadoras de preto e carpideiras e, no final, a
multidão. No túmulo, ocorreram imolações suicidas de mulheres e servidores do monarca.
9) CANTO DE SA
TENIK (namoro)
SATENIK
“Satenik
a Primeira Dama,
almeja ardentemente
e procura,
com ervas mágicas,
escondidas no travesseiro,
seduzir Argavan”.
ANÁLISE: Satenik era primeira mulher de Artashes I e mãe do herdeiro, Artavazd I.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 105-122, MARÇO,1997
Este fragmento relaciona-se aos namoros de Satenik com os chamados “descendentes dos dragões”, ou seja, com os descendentes do rei
Astíages – da Média – que moravam próximos ao Ararat. Khorenatsi interpreta o nome “Astíages” como “dragão”, no idioma dos medos e, conseqüentemente, a expressão “descendentes dos dragões” é empregada pelos
familiares e descendentes do rei Astíages. Os medos eram elementos
perturbadores e tinham como chefe um certo Argavan. Era com este chefe
( o dragão) o idílio de Satenik.
Diz-se de uma conspiração, no “Templo dos Dragões”, contra a vida
do rei Artashes e, também, contra a vida do herdeiro Artavazd. A rainhamãe era cortejada e como elo entre armênios e medos, Satenik bem que
deveria servir de instrumento para uma dupla traição político-sentimental.
TENIK (conspiração- esclarecimento da
10) CANTO DE SA
SATENIK
trama)
“Certa vez
contra quem tramavam
Argavan deu um grande banquete no Templo dos Dragões”.
em homenagem ao rei Artashes,
ANÁLISE: Argavan -chefe medo- utilizando-se da rainha Satenik,
conspira contra a corte armênia. Os “descendentes dos dragões” preparam
uma pseudo-comemoração, destinada ao rei Artashes. Era uma trama que
envolvia jogo político e emocional.
AVAZD
11) CANTO DE ART
ARTA
“Os dragões
da corte de Astíages,
roubaram de seu berço
(infância)
o menino Artavazd,
colocando um gênio demoníaco
no seu lugar”.
ANÁLISE: Filho de Satenik e de Artashes I. Desde o dia de seu
nascimento, mostrou-se com gênio aventureiro. Como comandante do 4º
destacamento oriental, reprimiu os desordeiros, colonos medos, que conspiravam contra Artashes I e contra ele mesmo, Artavazd. Preservava a
raiva no peito contra os “descendentes dos dragões” desde que soube que
tal povo pretendia matá-lo quando era criança de colo.Sucedeu ao trono,
espalhando ciúmes e desordens na corte, por causa das mulheres. Os dragões medos conviviam com mulheres envolvidas por mil e uma feitiçarias.
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CAMARGO,Yêda de Moraes. A
IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DE GOGHTEN PARA A CULTURA ARMÊNIA.
AVAZD ( I ) (fundação de Marakert)
12) CANTO DE ART
ARTA
“Artavazd,
filho do nobre Artashes,
não encontrando lugar
para sua residência,
na hora da fundação
da cidade de Artashad,
foi para a região dos Medos
e construiu lá,
nas planícies de Sharour,
a cidade de Marakert“.
Artashes I escolheu um dos mais atraentes locais para a construção
da capital, Artashad: na confluência dos rios Arax e Medzamor, rodeado de
florestas de “cedro”. Ficava no sopé do monte Ararat, reduto dos colonos
medos ( os “descendentes dos dragões”), seus inimigos jurados. Em luta
com os armênios, todos foram eliminados, inclusive seu chefe Argavan.
Artavazd constrói, ali, a cidade Marakert. O nome Marakert está
ligado aos medos porque “medo” é “mar” e, portanto, Marakert quer dizer
“ construção ou cidade dos medos”. Assim, Artavazd demarca o triste fim
de um povoado, pela construção daquela cidade. Se pretendesse deixar um
marco seu, denominaria a cidade de Artakert.
AVAZD ( I )
13) CANTO DE ART
ARTA
“Na hora de partir,
levaste contigo todo o mundo;
como
(no enterro do pai)
poderei eu
sobre ruínas reinar?”.
ANÁLISE: Neste canto, Artavazd sente-se só, vazio no trono, pois
herdou a cidade em ruínas. Invoca ao pai a situação calamitosa da cidade,
apresentando-se “sem saída” para governar.
AVAZD ( I ) (resposta do pai)
14) CANTO DE ART
ARTA
“Quando cavalgares para caçar
nas veredas do soberbo monte Masis,
que te levem os bravos espíritos
para os abismos
do monte Massis;
aí fiques
sem ver a luz”.
ANÁLISE: Os bravos espíritos, mencionados neste fragmento, são
os maus gênios que, na crença popular, moravam nas grutas profundas do
monte Masis. Artashes I amaldiçoa, do túmulo, o filho, mostrando toda sua
indignação pela postura de Artavazd.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 105-122, MARÇO,1997
Este sofre um incidente, numa caça com javalis, próxima das planícies do monte Masis. Precipitou-se num abismo, perdendo-se ali, sem deixar
vestígio algum.
Segundo as gerações, Artavazd continua vivo, cativo numa gruta e
preso por cadeias. Dois de seus cães lambem dia e noite suas cadeias, com
o intuito de libertá-lo. Ao sair, será o fim do mundo. O estrondo das batidas
nas bigornas, pelos ferreiros, faz engrossarem as cadeias, evitando a chegada de tal dia.
neral)
T BAGRA
TUN (o velho ge15) CANTO DE SIMBA
SIMBAT
BAGRATUN
“A bravura condizia com seu porte; Cuidadoso por temperamento
condecoravam-no
para consigo e para com todos;
as virtudes de sua alma,
mais que todos se distinguindo
a nobreza de suas cãs.
pelo dom de
Qual drakontikon
vencer nos feitos de armas”.
brilhavam-lhe nos olhos
manchas de sangue entre ouro e pérolas.
Filho de Biurat, da família dos Bagratidas.
Simbat sempre serviu o trono com bravura e lealdade.
Drakontikon: bracelete em forma de serpente, ornado de pedras preciosas.
Em três momentos, apresenta-se como “salvador”: no reinado de
Sanatruk, é instrutor do herdeiro Artashes I, salvando-o do morticínio de
seus irmãos; quando Yerwand é derrotado e deixa o trono a Artashes, este
solicita ao grande general que peça a mão da filha dos alanos em casamento; a Armênia é atacada por romanos e Simbat salva a vida de Artavazd,
expulsando os romanos para além das fronteiras.
16) CANTO DE TIGRAN II- O GRANDE
“Loiro,
penugem e cabelos delicados,
Yerwandian Tigran mostrava
faces ardentes,
olhos azuis;
forte e viril a constituição;
nos festins, comedimento;
nos prazeres mundanos, moderação;
mestria na arte de falar,
inteligência e justiça,
ponderação em tudo,
para com todos,\
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CAMARGO,Yêda de Moraes. A
IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DE GOGHTEN PARA A CULTURA ARMÊNIA.
alta a estatura,
nobre o andar;
no comer e beber, sobriedade;
com venturosos
e com humildes”.
ANÁLISE: Tigran II reinou nos anos 95 a 55 a.C.: era o mais inteligente e valoroso dos reis da Armênia e o maior vulto de sua história. Todo
homem de verdade, com real coragem e inteligência, desejaria ser como
ele, contribuindo para a expansão das fronteiras do país. Seu império durou
tanto quanto sua vida: 85 anos. Há muitas moedas em ouro, prata e bronze
com a inscrição em grego: “Tigran-rei dos reis”.
Tigran II organiza as forças de defesa do país, destinando-as aos 3 filhos:
Artavazd, Zareh, Trian e ao velho general Simbat. Incentiva a cultura, tendo sábios gregos na corte; constrói a cidade- fortaleza de Tigranakert (= Tigranocerta),
cercada de muralhas, torres e fossos de água, deslocando para ali núcleos de
gregos e judeus, com a finalidade de incentivar a cultura e o comércio.
T III
17) CANTO DE TRIDA
TRIDAT
“Destemido
como o rei Tridat
que, no seu arrebatamento,
arrasou as barragens dos rios,
secando-lhes o leito,
e intrépido, lutou
com as ondas do mar”.
ANÁLISE: Tridat foi rei da Armênia nos anos 287 a 336 d.C. Foi em
301, em seu reinado, que o Cristianismo foi estabelecido como religião oficial de estado, com a colaboração de Gregório – o Iluminador – o apóstolo da
nova religião.O destino, por meio de fatalidades, aproximou o rei de Gregório.
“Anak, pai de Gregório e agente da Pérsia sassânida, matou o pai de Tridat.
Guardas da corte armênia recebem ordens para matar toda a família do
assassino. Apenas salva-se um filho, de nome Gregório, que é enviado a
Cesaréia para instruir-se no Cristianismo. Tridat, ainda criança, é levado
para Roma, recebe instrução militar e se sobressai pela sua bravura.Volta
ao trono do país. Demonstra sua fama guerreira e mão firme nas ações,
favorecendo o país em 40 anos de relativa paz e reconstrução.O temperamento de Tridat, sua forma de agir, sua bravura resplandece em metáforas
e retóricas que inibem, simbolicamente, até as reações da Natureza, ou
modificam-nas.
T MAMIKONIAN
18) CANTO DE SIMBA
SIMBAT
“Feras do Monte Varz
comeram cadáveres
O Urso, por esvaziar quanto comia,
morreu de fome.
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e ficaram gordas.
O castor comeu e engordou
como o Urso.
A Raposa ensoberbeceu-se
mais do que o Leão.
O Lobo estourou, de tão voraz.
Os Abutres, por serem sôfregos,
quedaram agachados
e não puderam erguer-se.
Os Ratos, por terem transportado
demais,
para os celeiros,
ficaram de pé esfolados”.
ANÁLISE: Nos séculos V a VI são travadas lutas guerrilheiras entre defensores armênios e atacantes persas.Hovan Mamikonian narra a
“Batalha de Taron” que são lendas populares, tratadas com humor que se
utiliza da fauna em lugar de personagens. Os comandantes dos armênios
são da família Mamikonian, grupo esperto em malícias guerrilheiras, culminando com a derrota dos persas. É em Varazablour (monte de Varaz) que
os cadáveres dos persas são empilhados. Após a vitória sobre os persas, os
armênios são recebidos com cantos e danças do povo, entre outras, a humorística canção, única no gênero.
CONCLUSÃO
A trajetória destes fragmentos de uma epopéia nacional sempre testemunhou a consciência de que um povo pode ter de si mesmo. Elaborada
por anônimos poetas de épocas diversas. As lendas voltam-se a mitos que
relatam as origens do povo armênio. Os heróis, no decorrer dos tempos,
consolidaram sua existência histórica: demonstrando a coletânea poética de
significância nacional; refletindo as mentalidades de diferentes povos, ligando o passado ao presente.
BIBLIOGRAFIA
AMIRALIAN, Sossi. A Literatura oral Armênia- Os Cantos de Goghten- apostila
ARTZROUNI, Ashot. História do Povo Armênio. São Paulo, Com. Igreja Católica Apostólica Armênia do Brasil, 1976, trad. original espanhol por Hagop Kechichian.
KEROUZIAN, Yessai Ohannes. Os documentos antigos da Poesia (Separata da Revista
Língua e Literatura nº 7). São Paulo, FFLCH, 1978.
PALOMO, Sandra M. S. O Oriental e o Ocidental no idioma Armênio. - apostila. Agosto/
1990.
SAPSEZIAN, Aharon. Literatura Armênia- uma introdução. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1994.
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CAMARGO,Yêda de Moraes. A
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SAPSEZIAN, Aharon. História da Armênia- Drama e Esperança de uma nação. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1988.
THOROSSIAN, H. História de la Literatura Armenia. Buenos Aires “Organización Juvenil
de la Iglesia Armenia”, 1959. trad. Jorge Sarafian.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p.123-139, MARÇO,1997
FORMAS E FORMA
TOS NAS ARTES
FORMATOS
PLÁSTICAS DO JAPÃO
Madalena N. Hashimoto Cordado
O presente trabalho visa deter-se em algumas especificidades formais das artes plásticas do Japão. Poderíamos nos debruçar sobre uma
infinidade de aspectos na longa história da arquitetura de templos, monastérios,
palácios, prédios governamentais, traçar a importância estética de suas invenções formais e seus modelos exteriores. Poderíamos nos debruçar sobre a não menos longa história das imagens tridimensionais búdicas, numa
análise estilística e de investigação filosófica das várias doutrinas introduzidas
no Japão através dos tempos e teríamos também um rico panorama de
formas e formatos. Ou, ainda, poderíamos tentar traçar na cerâmica dos
vários períodos, a pertinência entre a forma pura dos objetos e seu momento
histórico.
Elegemos, no entanto, enfocar aqui a arte bidimensional, a qual, também complexa em sua longa história, revela uma variedade muito grande
em suas formas, formatos e temas.
Descoberta apenas no ano 47 da era Shôwa (1973), a construção
mortuária (kôfun1) de Takamatsu revelou ao mundo um aspecto pouco conhecido na arte da pintura: a forma mural (hekiga). A cultura da época,
sofrendo grande afluxo cultural da China da dinastia T’ang, por meio de
mensageiros enviados especialmente à região continental hoje referente à
Coréia, é visível nos traços físicos e no vestuário das três mulheres retratadas de pé, os olhos fixos no observador.
É curioso observar que, embora se tratar de obra somente descoberta recentemente, seu estado de conservação não é dos melhores. Isso nos
indica uma primeira característica do tratamento da produção cultural japonesa: a cópia, ou reprodução de originais. Muitos dos templos que hoje se
apresentam a nós foram reconstruídos uma, duas ou mais vezes, devido a
destruição pelo fogo, terremoto ou simplesmente pelo tempo. Assim como a
arquitetura foi e ainda é reconstruída seguindo o mesmo projeto original,
1
Kôfun: grande tumba mortuária. A era dessas construções vai do século III ao VII, e
encontramos ainda hoje vários formatos e tamanhos: de chave, quadrado, retangular,
arredondado. Takamatsu encontra-se na província de Nara e tem 16 metros de extensão
por 5 de altura e formato arredondado.
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CORDADO, Madalena N Hashimoto. FORMAS
E FORMATOS NAS ARTES PLÁSTICAS DO
JAPÃO.
também as pinturas e gravuras foram e ainda são reproduzidas em diferentes épocas por diferentes motivos. Assim, a reprodução de xilogravuras de
Utamaro, por exemplo, ainda hoje é manualmente executada, e esses exemplares devem ser considerados como gravuras originais pois sua realização
ainda segue o mesmo procedimento de quando o pintor as idealizou, com a
ressalva de que se deve estar atento para a qualidade do atelier do impressor atual.
Ainda da antigüidade, temos uma obra do ano de 756, era Nara no
Japão, também de influência de padrões de beleza de T’ang (o estilo do
cabelo, a maquiagem pesada nos lábios vermelhos, o formato cheio arredondado do rosto, o vestuário): o biombo de seis divisões Torige Ritsujo
(136 x 56 cm cada divisão), onde seis beldades são representadas, três
delas de pé, as outras três recostadas em rochas. Indicações mostram que
havia penas de aves grudadas nas imagens, na região do vestuário, mostrando um curioso procedimento de colagem de elemento natural na pintura
bidimensional.
Entituladas comumente de “Beldade sob a Árvore”, o que notamos, e
que é importante para a nossa investigação, é que a beldade, a mulher bonita como pura existência, é um tema da mais remota antigüidade. A mulher,
não importa em qual classe social (ou casta, se preferirem) tenha nascido,se
for bonita terá sua reputação e futuro transformados, pois os deuses a
predestinaram para tal. O culto à beleza e à juventude pode ser rastreado
desde já na arte japonesa. A lendária Ono no Komachi, de beleza ímpar e
habilidade poética inigualável é, além de uma existência histórica, um arquétipo da cultura: se se somar à beleza natural o atributo do exercício da composição poética, teremos um ideal feminino que foi incansavelmente perseguido durante o período Edo (1615-1868), na figura das gueixas e mulheres
do mundo dos prazeres.
Compreender o desenvolvimento da arte visual no Japão é também,
como bem notou o estudioso Shûichi Katô2 em relação à literatura, estar
atento para o fato de que um estilo ou tema ou técnica, uma vez introduzido
e assimilado no Japão, é imorredouro; quando se pensa que determinada
vertente perdeu toda a vivacidade e se exploraram todas as suas possibilidades, eis que ela renasce como uma fênix, com uma nova disposição em
temas, formas e técnicas que foram uma vez já conhecidas e apreciadas.
Uma grande contribuição da arte japonesa para o mundo, e que, dadas a fragilidade de manuseio e a privacidade necessária para usufruí-la,
quase não são do conhecimento do grande público, são os rolos iluminados.
2
Shûichi Katô, em sua obra História da Literatura Japonesa.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p.123-139, MARÇO,1997
Originariamente um formato da China – todas as formas e formatos artísticos, técnicos, políticos e culturais como um todo da antigüidade ou foram
importados diretamente do continente, ou, se originados em outras terras, se
encontravam já transformados pela visão chinesa –, os emakimono serviram a vários propósitos. Existem rolos profanos de significação puramente
estética, tais como a ilustração de romances (Genji Monogatari Emaki, e
Makura no Sôshi), de narrações históricas ou folclóricas (Shigisan Engi,
Eshi no Sôshi), de obras poéticas (Shokunin Uta Awase) e de romances
militares (Heiji Monogatari Emaki). Existem rolos profanos de uso prático, particularmente documentários (Moko Shurai Ekotoba – Rolos da
Invasão dos Mongóis) e rolos de significação religiosa (ilustração de sutra,
rolos dos enfermos, histórias dos grandes patriarcas ou fundadores de novas religiões, histórias de templos).
Em realidade, estamos nos referindo, em última instância, a uma das
formas primeiras do livro: os rolos, primeiramente veículo para os ideogramas,
tornaram-se também veículo para desenhos e pinturas até que as imagens
dispensaram a presença do texto. Tanto assim que após o declínio desse
formato, o universo do qual se nutria anteriormente encontrou novo hospedeiro na forma do otogi-zôshi, livros quase tal qual os conhecemos no ocidente: folhas que se viram, imagens que ocupam um local e dimensão fixos.
Justamente uma das características inerentes dos rolos é a temporalidade
do desenrolar-se das imagens e a possibilidade de montagem e corte ao se
desenrolá-los mais, ou menos. Além da temporalidade real do observador a
contemplar o trabalho, como formato artístico a possibilidade de se relacionar diferentes cenas torna o rolo um meio narrativo por excelência onde
também a descrição e a visualização do tempo e do espaço através de uma
atividade física visível e tátil se perderam e se tornaram apenas virtuais com
a montagem das folhas costuradas em um livro. A técnica do manuseio dos
rolos, também, auxiliava no ritual de apreciação e fazia de sua fruição uma
experiência a mais. É verdade, no entanto, que a montagem em forma de
livro tornou a leitura mais rápida e o manuseio mais fácil.
Os rolos ilustrados do Romance de Genji revelam características que
se manterão quase que inalteradas durante muitos séculos na história da
pintura japonesa: a perspectiva “olho de pássaro” de cima para baixo com a
retirada do teto para se revelar os personagens em meio aos espaços
arquitetônicos dos palácios (fukinuki yatai) será utilizada com variações e
recriações desde então, ora mantendo-se o teto, ora se mostrando pontos
principais de toda uma cidade, ora iniciando-se com o vôo rasante e terminando com a elevação da vista. Assim também, a estilização da figura humana com seus ícones de beleza sofrerá ligeiras modificações. Se a beleza
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CORDADO, Madalena N Hashimoto. FORMAS
E FORMATOS NAS ARTES PLÁSTICAS DO
JAPÃO.
das damas da corte de Genji respondem ao cânone “olho puxado-nariz em
gancho”(hikime-kagibana) de síntese no traçado – e todas elas são iguais –, a exuberância das várias camadas de quimonos (e todo um complicado sistema de combinação de cores, motivos pictóricos nas sedas e acessórios necessários) e a sinuosa elegância do cabelo que se alonga até o chão
revelam de modo certo suas posições sociais. O vestuário evidencia também toda uma adequação simbólica às sutis mudanças sazonais, um dos
temas mais caros da poesia japonesa desde sua origem.
Obra de 1120-1140, supõe-se ter sido pintado por Fujiwara Takayoshi.
Dos supostos dez rolos contendo de oitenta a noventa cenas ilustrativas dos
cinqüenta e quatro capítulos da obra literária, hoje somente restam dezenove
cenas de treze capítulos, no Museu Tokugawa em Nagoya e no Museu
Gotô de Tóquio. A utilização de pigmentos sobrepostos de tonalidades fortes acrescidas de linhas de sumi é conhecida como técnica tsukuri-e (“pintura construída”). Akiyama bem analisou o uso simbólico da cor na criação
de atmosferas, numa tentativa de corresponder à narrativa de Murasaki
Shikibu3, no que chamou de onna-e: pintura de gosto feminino, ou melhor
dizendo, pintura do mundo feminino das damas da corte de Heian, imersas
em seus poemas, em seus quimonos de seda, em seus sonhos e amores4.
Dessa obra memorável podemos também observar o tema pessoas-entrequatro-paredes que vai ser uma constante futuramente, onde se mostram
alguns poucos detalhes dos objetos pessoais – a casa japonesa quase não
utiliza móveis – e certas relações entre os personagens retratados, onde a
noção de privacidade não encontra lugar.
Também de uma beleza notável e definidora de padrões estéticos
posteriores são os vinte e três rolos de caligrafia do Romance de Genji, onde
o papel foi ricamente decorado com motivos florais delicados, de nuvens, de
pássaros, de ervas, de ouro e prata, fragmentados, retalhados, esmigalhados
e colados, de sutil colorido e fluida caligrafia feminina em hiragana5. Posteriormente, no século XVI, quando do surgimento de editoração de livros,
Saga-bon, ou livros da região de Saga, o procedimento de tratamento de
colagens no papel de suporte para caligrafia será ricamente explorado.
3
4
5
Murasaki Shikibu (?973?-1014?), dama da corte da Imperatriz Shôshi e filha de Fujiwara no
Michinaga (966-1027).
Nunca é demasiado se enfatizar que o Romance de Genji foi a primeira grande obra literária
de fôlego produzida pelo Japão, e por uma mulher, e num silabário criado por elas e para elas.
Hiragana, silabário fonético japonês, invenção das damas da corte; chamado de onna-ji
(alfabeto das mulheres), opunha-se aos ideogramas (kanji, alfabeto da dinastia Kan) importados do continente, que eram ensinados aos homens. Entendemos aqui onde Akiyama se
inspirou para classificar o estilo pictórico dos rolos de onna-e.
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Os rolos que se dedicam a narrar a fundação de templos e/ou de seus
fundadores foram em geral encomendados pelos próprios templos e produzidos por monges pintores, formando um gênero em si: os engi, dentre os
quais os mais famosos são os de Kitano Tenjin Engi Emaki e o Shigisan
Engi Emaki. O primeiro narra a vida de Sugawara Michizane e a origem do
templo xintoísta de Kitano Tenjin, em Quioto, produzido na primeira metade
do século XIII. As Origens Miraculosas do Monte Shigi, do século XII,
narram como o monge Myôren reavivara a seita dois séculos antes. O primeiro rolo trata de como a tigela de arroz de Myôren se apodera do depósito
cheio de arroz de um homem rico. O segundo mostra como Myôren cura o
imperador Engi mandando-lhe uma deidade guardiã. No terceiro a irmã monja
de Myôren o procura e descobre seu paradeiro quando se encontra em
frente ao Grande Buda de Tôdaiji. Seus três rolos são muito ricos na
amostragem da vida do povo comum da época: os camponeses, alguns animais, os nobres, vários detalhes arquitetônicos e de vestuário do período
Heian tardio. O que é interessante é que, se no Romance de Genji as ilustrações eram cenas entremeadas de textos, aqui as imagens se desenrolam
sem interrupção, numa série engenhosa de composições, o que evidencia o
caráter fluido do formato emakimono, que alcançam , nos rolos que narram
a vida do monge Ippen6, uma criatividade sem par: ilustração totalmente
autônoma de qualquer texto. Outro aspecto interessante é que, se o Romance de Genji mostra a vida palaciana, os rolos de narrativas religiosas mostram a vida do povo comum.
Ainda de fins da era Heian (794-1185) os dezessete Rolos das Festividades do Ano (Nenjû Gyôji Emaki), vieram até nós através de cópia de
1662 de Sumiyoshi Gokei, já que os originais foram destruídos pelo fogo. O
importante desses rolos é que a temática, festividades sazonais, continuará
sendo um motivo perpétuo para os pintores do futuro, abrangendo descrições do povo comum, seus hábitos, moradias, costumes e particularidades.
Supõe-se que o pintor tenha sido Fujiwara Mitsunaga (ou Fujiwara Tokiwa,
segundo Akiyama), membro da corte, pela acuidade na descrição da nobreza da era Heian, em seus trajes e em sua arquitetura palaciana.
A produção de pintura budista também foi muito numerosa, tendo-se
utilizado vários formatos: pintura sobre madeira, sobre seda, sobre papel,
rolos verticais e horizontais, mandalas em tapeçaria e rolos verticais,
retratos.Destacamos pinturas vistas como objetos devocionais, sagrados, e
objetos encarados mais didaticamente.
6
Ippen Hijiri-e, 1299, doze rolos, tinta e pigmento sobre seda, Kankikôji, Quioto. Ippen
(1239-89) foi um monge itinerante que fundou a seita do Budismo da Terra Pura.
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CORDADO, Madalena N Hashimoto. FORMAS
E FORMATOS NAS ARTES PLÁSTICAS DO
JAPÃO.
Em suma, originando o chamado Yamato-e, “pinturas de estilo puramente Yamato, i.e., japonês”, o período Heian produziu sua primeira grande
obra literária narrativa Genji Monogatari, sua primeira grande coletânea
poética, Man’yôshû (Coletânea das Dez Mil Folhas) e engendrou seus mais
imorredouros temas: meisho-e (imagens de locais famosos), tsukinami-e (imagens de costumes e hábitos) e shiki-e (imagens das estações do ano). Em
termos de arte budista, temos os Retratos dos Sete Patriarcas da Seita Shingon,
datada de 805 pelo artista chinês Li Chen ou uma cópia japonesa de 824.
Uma obra muito curiosa do século XIII, do templo Kôsan-ji de Quioto,
é Chôjû Giga (Representação Satírica de Animais) onde, utilizando-se apenas do pincel para desenhar7 animais (macacos, lebres, sapos), fez-se uma
parábola humorística do mundo do sumô, da música, das competições de
arco-e-flexa, dos templos mesmos. Segundo especulações de Akiyama, como
os quatro rolos não contêm nenhum texto, não têm unidade temática ou
estilística, sendo, portanto, difícil atribuir-lhes se alguma intenção em particular, a obra poderia ser interpretada ou como uma sátira social que indica o
declínio da aristocracia ante o levante dos samurais – há uma cena onde
macacos vestidos de samurais atacam castelos –, ou como uma representação irônica do mundo clerical. De qualquer forma, ocupa um lugar ímpar na
produção dos rolos ilustrados e, pelo poder metafórico de suas imagens,
capta, até hoje, a atenção de um público mais atento.
Eventos históricos encontraram também um lugar privilegiado no formato: os rolos que versam sobre a rebelião de Heiji (1159), hoje no Museu
de Boston, mostram cenas onde as curvas violentas das chamas no incêndio
ao palácio Sanjô, do Imperador Goshirakawa, dominam a composição, transmitindo um impacto psicológico muito grande no público. A representação
do fogo em espirais, as cores fortes, a composição em ebulição fazem de
Heiji Monogatari Emaki uma obra-prima que prenuncia a era Kamakura,
quando os guerreiros militares se estabeleceram a norte de Honshû e fundaram a cidade de mesmo nome.
O chamado “realismo de Kamakura”, mais referente à escultura do
que à pintura, se bem que a esta também se lhe associe, encontrou expressão no rolo Gaki Zôshi (Rolo dos Demônios Famintos), onde se retrata os
sofrimentos da grande fome de 1230 a 1232. Sem espaço para os temas
líricos das estações do ano, ou sem interesse para idéias mais transcendentes de um budismo mais especulativo e transcendente, o rolo retrata corpos
humanos em luta contra a fome, sua decomposição física: é a vida no mundo de Shura, abreviação de Ashiyura, deus mau e belicoso. Libelo pungente
7
Estilo chamado hakubyô-ga (“representação branca, ou limpa”).
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contra o sofrimento, esses rolos podem ser associados também a uma nova
busca espiritual que culminou na introdução de um novo budismo, o da Terra
Pura, mais simples, de assimilação popular.
A era Kamakura, em sua busca por um novo equilíbrio social, encontrou nas novas seitas budistas Jôdo e Zen um certo alívio espiritual e uma
nova vertente de produção artística: a introdução do suibokuga (“pinturas
com tinta sumi e água”) pelos monges Zen por via das dinastias Song e
Yuan continentais do séculos XIV a XVI e das dinastias Ming e Ching
durante a era Edo. Num primeiro momento, as aguadas se concentraram
somente em temas religiosos, em retratos de observação dos patriarcas
fundadores (retratos de Shinran que introduziu o Jôdo Shinshû e Hôzen, que
iniciou o Jôdo, por exemplo, ou em retratos de imaginação de personagens
búdicos (várias aguadas ilustram o monge excêntrico zen Kazan, por exemplo), ou em visões alegóricas de ensinamentos religiosos.
Os retratos que almejavam retratar com fidelidade as individualidades foram chamado de nise-e, “pinturas semelhantes” e foram produzidas
durante o fim da era Heian e inícios de Kamakura (também na escultura);
alguns foram executados diretamente de observação, como o auto-retrato
de Shinran, e atraíram o interesse de muitos guerreiros que também se fizeram retratar. São imagens em corpo inteiro, estáticas, geralmente em seda
montadas em rolos verticais.
Shûichi Katô8 discute sobre as razões da individualidade nessa representação de retratos, chamando a atenção para o fato de que, na escultura,
a produção foi muito maior. Segundo ele, a instabilidade política com a mudança do poder político da nobreza de Heian para os guerreiros de Kamakura
fez com que o espírito grupal (os personagens retratados como “tipo”) se
perdesse, numa busca de novo equilíbrio e afirmação de cada indivíduo em
si; assim, as novas seitas budistas, que eram uma religião comunitária, começam a apelar mais para o indivíduo e sua salvação pessoal: a explicação
do “mecanismo de se purgar os males pessoais” da seita Jôdo Shinshû se
baseia apenas em apelar para Amida Butsu, no zen a iluminação se atinge
trilhando solitariamente o caminho da meditação.
A pintura aguada introduzida por esses monges zen que tratam diretamente de temas doutrinários tematizou a história da iluminação de determinados monges ou os procedimentos para tal. O monge Mokuan, por exemplo, produziu na metade do século XVI obras onde ilustra monges em meio
a atividades cotidianas, num tratamento delicado de pincéis à maneira do
pintor chinês Muxi. Rolos verticais tematizaram a doutrina Zen: o Shaka
8
No capítulo “Du Monde Réel à la Terre Pure”. In Japon - La Vie des Formes.
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CORDADO, Madalena N Hashimoto. FORMAS
E FORMATOS NAS ARTES PLÁSTICAS DO
JAPÃO.
descendo das Montanhas (obra do monge Gukei), a deusa Kannon vestida
de branco (Gukei); as atividades zen; Monge-Costurando-sob-o-sol-da-manhã (Kaô), Monge-Lendo-sob-a-luz-da-lua (Kaô), os-quatro-adormecidos
(Mokuan), e também, diferentemente da China, introduz temas não diretamente relacionados à doutrina zen, tais como bambu e pássaro (pelo monge
Kaô), ou orquídeas, bambus e rochas.
Em relação à pintura Yamato-e, a introdução da aguada passa também por esse primeiro momento de “estrangeirismo”. As montanhas retratadas são as montanhas da China, abruptas, contrastantes, ricas em minérios e texturas; os rios são os rios da China, caudalosos, como o atestam a
obra do monge Sôami, Shôsho Hakkei-zu, por volta de 1513, que se encontram em Daisen-in, templo em Quioto. Importa-se nessa época o tema das
“oito vistas famosas” (hakkei); ao monge Shûbun (ca.1423-1460) do templo de Shôkokuji é atribuído um par de biombos de seis divisões: As Oito
Vistas de Hsiao e Hsiang. É importante notar que as “vistas famosas” não
tinham o intuito de revelar apenas as peculiaridades topográficas, mas antes
revelar o aspecto búdico de sua essência; ou ser um caminho para a iluminação; ou ilustrar os locais onde os grandes monges encontraram a iluminação em peregrinações; ou ilustrar os locais onde os monges eremitas se
instalaram. O tema da morada do poeta ou eremita que se retira do convívio
social em meio a montanhas e pinheiros ou bambuzais vai ser um arquétipo
visual e poético dali em diante.
Não podemos deixar de citar aqui também a importância das pinturas-escrituras de fundo zen que produzem frutos e mais frutos: a caligrafia
reveladora que é a um tempo conceito e visualidade, como por exemplo a
pintura em rolo vertical do monge da seita Rinzai, Hakuin (1685-1768), do
ideograma mu (nada, o vazio, não, a inexistência).
As pintura a aguada introduzidas pelos monges zen encontraram na
representação das chamadas “paisagens”, ou mais apropriadamente, “montanhas-e-rios”, “praias-e-pinheiros” e “vistas famosas”, seu ponto criativo
mais nitidamente japonês: Sesshû estudou na China de Song em 1467-9,
perambulou por dez anos em sua terra natal até se fixar em Yamaguchi. Sua
obra prima, do ano de 1486, Sanzui Chôkan-zu, “Rolo Comprido de desenhos de montanhas-e-rios”, mede 39,7 cm de altura por 15,86 metros: tratase do rolo mais longo da pintura japonesa e retrata o tema das estações
sazonais numa descrição sem descanso, iniciando-se no verão até atingir o
inverno, mostrando, ao mesmo tempo, a adequação do homem às mudanças
do ambiente.
Uma outra obra-prima de Sesshû, Amahashi-no-date-zu, de 1502,
retrata uma das três vistas mais famosas do Japão e a perspectiva nos faz
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lembrar os olhos-de-pássaro que observavam o palácio de Genji. A preocupação em rotular, definir, mostrar a exatidão da representação – os locais
são “etiquetados” com seus nomes – nos mostra também que a idéia de que
a aguada não se presta a detalhes descritivos é uma generalização não
pertinente em nosso estudo. Por certo a “imagem sintética” da interioridade
essencial zen foi uma vertente muito difundida e ainda hoje é assim praticada, mas a apropriação das técnicas da aguada pelos pintores japoneses de
outras famílias, como por exemplo, a Kanô-ha e a Bunjinga (pintura dos
pintores literatos), transformou o meio: uma vez introduzido, o suibokuga
sofreu grandes transformações. As imagens singelas retratando monges
excêntricos em nada lembram os grandes biombos em quatro ou oito divisões produzidos durante a era seguinte. Kanô Masanobu, pintor oficial do
bakufu de Muromachi9, assim, ao juntar ao estilo Yamato-e as técnicas da
aguada, japonizou de forma diferentemente de Shûbun e Sesshû a “pintura
de Kan”, como era referida o suiboku da dinastia chinesa Kan.
A era Momoyama (1586-1615) foi a grande época de ouro da pintura
em grandes dimensões para decorar os grandes castelos construídos pelos
novos governantes, os samurais. A família Kanô10, fundada por Masanobu
(1434-1530) encontrou na segunda geração o inovador Motonobu (14761559) já referido e na terceira geração o prolífico Eitoku (1543-1590), pintor
oficial de Oda Nobunaga, que acrescentou ao estilo do pai as grandes dimensões e tratamentos diferenciados para a grandiosiodade e para a meticulosidade, num contraste eficaz de composições sintéticas e retumbantes,
bem ao gosto de seus patronos.
Na produção da família Kanô se destacam os grandes temas já nossos conhecidos, seja das estações-sazonais, de locais-famosos, de usos-ecostumes-do-povo. O que se lhes acrescenta, nesse momento, é, por um
lado, uma grandiosidade de concepção composicional e ao mesmo tempo,
sem ser incoerente, uma incansável meticulosidade na descrição de cada
área em detalhe, como por exemplo, quando Kanô Eitoku tematizou a “cidade-e-seus-arredores” (Rakuchû-rakugai-zu). As festividades do ano, suas
especificidades, o local onde elas ocorrem, o carater físico do povo que as
freqüentam e suas atividades, a estação quando ocorrem, são temas simul9
10
Bakufu é o nome que se dá ao sistema de organização militar que dominou a política em dois
períodos do Japão: Muromachi (1336-1573) e Tokugawa (1615-1868), este último mais
conhecido como era Edo.
O sistema piramidal de organizações profissionais, no Japão, é encontrado em todas as
áreas. Utilizo aqui o termo família, preterindo o anteriormente escolhido “escola” em
estudo sobre a organização e produção dos pintores Kanô publicado anteriomente, ressalvando que, por família, entendo também os discípulos “adotados” como filhos e/ou herdeiros.
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CORDADO, Madalena N Hashimoto. FORMAS
E FORMATOS NAS ARTES PLÁSTICAS DO
JAPÃO.
tâneos numa só composição que, logicamente, sé poderia ser de caráter
grandioso e muralístico e só poderia ter sido produzida por uma família bem
estabelecida e sólida, como era o caso da Kanô, já em sua terceira geração
servindo aos mesmos patronos. Em seu biombo de oito divisões Hinoki-zu
Byôbu, o ciprestre japonês é uma presença maciça com seus galhos em
direções variadas e as cores utilizadas, de pigmentos minerais, são fortes e
econômicas; na composição, sem espaço para os delicados pássaros-e-flores, notamos todo o vigor e o poder da imagem.
Cabe aqui, talvez, uma observação quanto à produção de biombos.
Quando vemos as imagens em reprodução, ou mesmo os próprios biombos
em exposição nos museus, os vemos geralmente dispostos em uma só linha,
como se fossem grandes páginas tridimensionais. Da mesma forma que os
rolos ganhavam uma dimensão a mais ao serem manuseados, os biombos,
utilitários para a separação dos espaços na casa japonesa têm, por natureza, a função de serem dobrados e manipulados, o que ocasiona a modificação da composição das imagens. Assim, os galhos do cipreste de Kanô
Eitoku literalmente podem se estender em direção a nossos olhos, criando
um jogo tridimensional riquíssimo.
Certamente esses aspectos tridimensionais na fisicalidade dos biombos não foram desprezados pela família Kanô, hajam vistas a duração e a
ramificação de sua organização, que chegou a possuir várias casas secundárias, entre as quais a de Quioto, chamada Kyô-Kanô, na figura dos discípulos Tan’yû, Sanraku e Sansetsu, que produzirão enormemente, principalmente biombos magníficos de pássaros-e-flores com fundos dourados delicados, ricamente detalhados e de um colorido multifacetado.
Mas grandes dimensões na pintura não significaram somente poderio
militar e cores fortes em fundo dourado; o trabalho de Hasegawa Tôhaku
(1539-1610) e sua família bem o demonstram: também na decoração11 de
portas corrediças e biombos, as grandes composições de Tôhaku que quase
não se utilizaram da cor e suas aguadas mais características falam de neblina-em-meio-a-pinheiros ou pinheiros-em-meio-a-neblina, de granizo-na-vegetação-do-alvorecer-nas-montanhas, num certo desdobramento das vistas
de Sesshû, mais preocupado, no entanto, com atmosferas do que com
acuidade toponímica descritiva. Trabalhou também no formato dos biombos
de fundos dourados com pigmentos fortes tematizando flores e árvores sazonais com uma delicadeza ímpar.
Assim, se a era Momoyama parece ter sido monopolizada pela família
Kanô e sua estética grandiosa, a presença da família Hasegawa, embora menos
espraiada e de menor longevidade, serve-se-lhe como contraponto estético.
11
O termo não tem qualquer conotação pejorativa.
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Uma obra curiosa, Nanban Byôbu, “Biombo dos bárbaros do sul”,
que porta o selo de Kanô Naizen, mostra os navios dos portugueses quando
de sua chegada à ilha de Kyûshû, atracando com seus pertences; vemos aí
comerciantes vestidos de gibão, padres de batina, negros escravos, cavalos
e cachorros. A obra, do século XVI-XVII, encontra-se no Tôshôdaiji, em
Nara, mas existem cinqüenta cópias no Japão e no exterior, o que mostra a
popularidade do tema. Nanban-ga, “pintura dos bárbaros do sul”, então,
será a denominação da arte produzida sob influência jesuítica portuguesa.
Consta, desse rol, imagens sacras de madonas e santos copiadas de modelos ocidentais. Após a proibição ao cristianismo nos anos de 1530, evidentemente, a produção escasseou.
Para percebermos a evolução na pintura japonesa, podemos seguir
aqui uma imagem, adaptada, do estudioso Sasaki Shôhei12: um jogo de biombos13, de quatro divisões cada, mostrando uma cidade, digamos, a capital
Quioto e seus arredores: nuvens douradas cobrem toda a superfície num
efeito bidimensional voluptuoso e por entre suas curvas vemos em descrições minúsculas ora o castelo Nijô com seus moradores e servidores, ora o
centro de comércio em Shijô-Kawaramachi, ora a festividade de Gion com
seus carros alegóricos e suas procissões coloridas, ora as montanhas de
Arashiyama com seu conjunto de templos, ora os templos nos ermos das
montanhas Hiei. Aproximemo-nos ainda mais e podemos observar apenas
uma dessas cenas, aumentada à dimensão de um biombo de seis divisões,
constando, por exemplo, uma apreciação de mudança de cores nas folhas
de bordo (momiji) em Takao14, sítio renomado em Quioto para tal atividade.
Aí encontramos mulheres conversando, crianças mamando, saquê sendo
servido em meio à montanha de outono, onde a presença da água, uma linha
sinuosa, não deve ser olvidada. O vestuário das mulheres é cuidadosamente
desenhado, o colorido forte e as linhas vigorosas. Aproximemo-nos ainda
mais, e vemos uma cena ainda mais aumentada à dimensão de um biombo
de seis divisões, desta vez retratando somente as personagens e suas atividades, ora tocando o shamisen, ora jogando go, ora compondo poemas, ora
dançando15. Sempre com um cuidado acuradíssimo nas estampas dos
12
13
14
15
A Pintura no Período Edo I, Coleção de revistas especializadas em artes plásticas do Japão
Nihon no Bijutsu, vol. 209.
Para perfeição da imagem, tomemos como exemplo “a-cidade-e-seus-arredores”, Rakuchûrakugai-zu Byôbu, de Kanô Eitoku.
Obra de Kanô Hidenori, segundo filho de Masanobu, no século XVI. Nota-se que, a par da
leveza e sinuosidade Yamato-e no desenho das águas e das folhas de bordo, as linhas fortes
e o colorido rico revelam uma influência da pintura da dinastia Kan.
Podemos muito bem imaginar Hikone Byôbu, da família Kanô, de ou Matsuura Byôbu,
autoria desconhecida. Ligada ao tema chinês dos “entretenimentos”, a representação de
cenas interiores mostra preferencialmente figuras femininas.
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CORDADO, Madalena N Hashimoto. FORMAS
E FORMATOS NAS ARTES PLÁSTICAS DO
JAPÃO.
quimonos de seda, nos penteados da moda. Nessa evolução da visão estratégica do olho-de-pássaro, de longe, para até onde a vista alcança, até a
nossa plena participação na cena pela aproximação em escala e tema, no
aqui-e-agora, de personagens conhecidos, de objetos cotidianos, de transitoriedade admitida, encontramos as “imagens do mundo flutuante”, ukiyo-e.
Os novos formatos engendrados no período Edo (1615-1868), contrariamente ao período Momoyama de grandes conquistas guerreiras e pinturas de grandes dimensões, foram a xilogravura, a produção em massa de
livros ilustrados e as pinturas de menores dimensões. Iniciador da família
Hishikawa, Moronobu se debruçou sobre a nova cultura que viu nascer na
cidade de Edo, atual Tóquio, tendo se concentrado nos novos modos-emodas, nas beldades dos quartéis do prazer de Yoshiwara16 e se dedicado a
mostrar a vida naquele “mundo-à-parte”, naquele “lugar-ruim”, com seus
freqüentadores, servidores, administradores e suas famosas yûjo17, inicialmente na pintura, depois nos álbuns xilográficos temáticos, depois nas estampas independentes, tendo sido também um prolífico ilustrador de livros,
eróticos e outrossim.
Compreendendo a linhagem da qual fazia parte, Hishikawa Moronobu
assinava seus trabalhos como Yamato-eshi, “pintor do estilo japonês”, em
oposição, primeiramente, à produção continental – referia-se, em primeira
instância, à produção da aguada de fundo zen. Os temas que trabalhou –
beldades, vistas e guias de Edo, personagens e freqüentadores de Yoshiwara,
cenas eróticas, além de temas históricos e versões do Romance de Genji –
vão ser utilizados até a exaustão nos próximos quase dois séculos que se lhe
seguem. O meio técnico que introduziu, a xilogravura, vai ser o meio por
excelência da imagem consumida pelos citadinos e, sofrendo um processo
de aperfeiçoamento e inovação constante, vai ser uma contribuição técnica
para a gravura internacional. Opôs-se também, em segundo lugar, aos pintores de inspiração Kanô, com toda sua eloqüência compositiva e brilho
retumbante.
Em termos de organização profissional, quando do advento do Ukiyoe, não mais podemos falar em família ou escola, mas sim em estilo ou meio
técnico. Deve-se, isso, também, ao fato do desenvolvimento das cidades
que originou uma população urbana e possibilitou o aparecimento dos machi16
17
Kuruwa, os quartéis do prazer foram assim definidos e delimitados durante o xogunato
Tokugawa com o intuito de melhor controlar as áreas de prostituição que resultaram em,
ironicamente, incorporar todo o sistema piramidal da sociedade como um todo, com a
criação de todo um sistema hierárquico na classificação das mulheres-entretenimento.
Yûjo, “mulher-entretenimento”, é o nome geral dado às mulheres que eram o centro dos
quartéis do prazer, treinadas para entreter e agradar.
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eshi, “pintor-da-cidade”, significando um profissional sem filiação familiar
definida que não a estética. Assim também os pintores-literatos (bunjin)
não se organizaram em pirâmides familiares, mas em grupos que se reuniam esporadicamente.
Embora tenha havido uma certa progressão na evolução do meio da
xilogravura, desde a estampa em branco-e-preto, iniciando-se pela aplicação de cores a mão (beni-e), depois aplicando-se essa cor através de uma
matriz beni-zuri-e), passando-se pela introdução de duas outras matrizes
para o vermelho e o verde (tanroku-e), depois adicionando-se mais matrizes até a plena coloração “em-forma-de-brocado” (nishiki-e), esse processo foi aperfeiçoado constantemente e as inovações não ficaram sendo
um segredo e monopólio de determinada família. Uma vez que Harunobu
utilizou pela primeira vez o método da “pintura-brocado”, tanto Utamaro
quanto os artistas posteriores puderam se utilizar da técnica. Na verdade, a
grande novidade em termos de organização social foi a divisão do processo
de construção da imagem. Para a estampa exposta na saída do teatro Kabuki,
ou na loja da cidade-baixa de Edo, um editor contratava um pintor e produzia a imagem contratando gravadores e impressores que trabalhavam em
conjunto.
Aliada à literatura ukiyo-zôshi, a produção de ilustração de livros foi
imensa e abrangeu uma vasta gama temática, muitas delas tradicionais,
trasvestidas, no entanto, de modernidade. Como foi notado anteriormente, o
livro substituiu o rolo. Todos os pintores de uma forma ou de outra dedicaram-se também à ilustração de livros, ligados ou não a textos e/ou temas
definidos. A produção de livros eróticos, note-se, foi enorme e tem sido
muito estudada recentemente.
Os artistas especializaram-se em determinados temas, embora a
maioria tenha produzido um pouco de cada. Moronobu é associado ao início
do Ukiyo-e, com suas pinturas de beldades e suas estampas em branco e
preto de cenas de Yoshiwara; Sugimura Jihei e Kiyonaga à representação
das mulheres de Yoshiwara em procissões e em seus recintos; Torii Kiyonobu
e Kiyonaga à representação de atores e cenas do teatro Kabuki; Okumura
Masanobu a vistas em perspectiva de teatros e a beldades de Yoshiwara;
Suzuki Harunobu a seus personagens esguios e assexuados liricamente envoltos em poemas nostálgicos; Kitagawa Utamaro a suas beldades dos quartéis do prazer e de outros sítios, em suas atividades cotidianas e suas cenas
eróticas; Tôshûsai Sharaku a seus bustos de atores de kabuki; Andô Hiroshige
e Katsushika Hokusai a suas vistas famosas de Edo, de Quioto, da estrada
Tôkaidô,do Monte Fuji, do Japão como um todo; Utagawa Toyokuni e
Toshiyoshi, com suas imagens doentias de mulheres pernósticas.
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CORDADO, Madalena N Hashimoto. FORMAS
E FORMATOS NAS ARTES PLÁSTICAS DO
JAPÃO.
É oportuno notar aqui que o período Edo, quando o Japão se fechou
ao contato com o exterior, com exceção dos comerciantes holandeses e
chineses confinados na ilha artificial de Deshima em Nagasaki, foi um período de grande maturação cultural que originou uma arte dita essencialmente japonesa, como são conhecidos o teatro kabuki e a pintura e gravura
Ukiyo-e. No entanto, Masanobu inventa as “gravuras-perspectiva” sob inspiração do método da perspectiva renascentista com um ponto de fuga e
Hokusai, tentando adequar esse método do-longe-e-do-perto à sua produção das Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji, adaptou-a com a adição de um
grande primeiríssimo plano. Curiosamente a perspectiva da estampa japonesa que influencia os pintores impressionistas europeus já era uma variação da perspectiva ocidental.
As novas técnicas têxteis e de tingimento vão ser extremamente apreciadas – o quimono adquire o patamar de obra artística, como atesta a produção do grupo conhecido como escola Rinpa18, composta por Tawaraya Sôtatsu
e Hon’ami Koetsu em Quioto e pelos irmãos Ôgata Kôrin e Kenzan em Edo.
A produção de leques, a pintura em cerâmica e objetos variados recobertos
com laca vão ser os novos formatos para esse novo tratamento plástico que
utilizou vastas cores planas obedecendo composições verticais ou horizontais
principalmente, e altamente geometrizadas. Os biombos produzidos por Sôtatsu
vão ser pura estilização sobre fundo dourado, de dançarinos no Bugaku-zu
Byôbu (desenho-de-dança-e-música estilo bugaku), de nobres da era Heian
em um espaço irreal no biombo Genji Monogatari Sekiya Miotsukushizu. O Biombo do Deus do Vento e do Deus do Relâmpago (Fûjin Raijin-zu
Byôbu) tem uma grande liberdade dos espaços vazios típica.
Mas é com Kôrin que se atinge o grau de estilização em seu grau
máximo, onde o aspecto decorativo é explorado com a maior sensibilidade.
As flores de íris, os pássaros, as esguias ervas, as minúsculas flores do
campo, as elegantes linhas sinuosas estilizando rios imaginários, as folhas de
bordo em profusão, serão elementos utilizados incansavelmente na decoração de leques, vasos e objetos de cerâmica, lacas, biombos, livros, inspirando de modo nítido a obra de Gustave Klimt, do Art Nouveau, de Maurice
Denis e dos nabis, de Bonnard e seus biombos.
Ainda em termos de formas e formatos, é interessante notar como a
produção cultural no período Edo foi rica e díspar esteticamente. Ao mesmo
tempo em que tivemos um grupo de pintores concentrados na representação de seu tempo presente e suas personagens, reais ou fictícias; ao mesmo
18
Rinpa, “ao-modo-de-Kôrin”, tambem conhecida como Sôtatsu-Kôrin-ha. Aqui também, a
ressalva ao termo “escola”.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p.123-139, MARÇO,1997
tempo em que tivemos um aprimoramento do que hoje denominamos design
ou desenho industrial nos objetos do cotidiano, tivemos também o desenvolvimento de um grupo de pintores amadores, cuja produção compunha-se de
imagem e poesia combinadas em rolo vertical utilizando a técnica da aguada
– note-se, portanto, mais uma forma de renascimento e inovação do suibokuga. Ikeno Taiga (1723-1776) foi seu mais ilustre representante, Yosa Buson
(1716-1783) o mais famoso como poeta. O tema do poeta eremita em sua
cabana, numa longínqua região montanhosa numa determinada estação do
ano vai se mostrar imorredouro. Tomioka Tessai (1836-1924) produziu imensamente nessa mesma linhagem: texto na parte superior da imagem, que
segue o formato-pilar, e ilustração em preto e branco abaixo.
Embora não tenha sido mencionado anteriormente, é evidente que a
produção de papel artesanal foi fundamental nesse processo todo de produção pictórica. A produção da pintura sobre seda, mais cara e de resultados
visuais mais sutis e delicados, não foi a regra. A adequação do papel, sua
variedade na combinação de fibras, tratamento, colorido, maneiras de fabricação, vão ser fundamentais no delineamento visual da imagem a lhe ser
trabalhada. O papel utilizado para caligrafia e aguada, pouco ou nada
encolado, se transforma, com a absorção da tinta sumi, numa superfície
aveludada e ricamente matizada.
Em termos de formatos, a abertura dos portos ao ocidente apresentou aos japoneses a pintura a óleo, juntamente com um certo realismo europeu. A presença de professores estrangeiros na Escola Técnica de Arte em
Tóquio foi sintomática, dentre os quais o italiano Fontanesi se encontra entre os mais renomados. Takeuchi Yûichi (1828-1894), inspirando-se no gênero natureza morta criou o seibutsu-ga, “pintura-de-coisas-calmas”, tendo utilizado como base o tratamento pictórico do Ukiyo-e, mas recobrindoo com a materialidade da tinta a óleo; seus peixes diferem dos de Utamaro
justamente na camada exata e densa da tinta que utiliza. Seguindo o naturalismo de Shiba Kôkan, por sua vez inspirado pela pintura que aprendera com
os “estudos holandeses” em Nagasaki, Takeuchi inicia uma vasta corrente
na arte contemporânea do Japão, a que se chama hoje mais simplesmente
de Yôga, “pintura ocidental”, em oposição a Nihonga, “pintura japonesa”,
ligada em suas origens a Yamato-e e reagindo contra a ocidentalização da
arte japonesa. Entre eles, destaca-se Kanô Hôgai (sim, ainda da família
Kanô), Ernest Fenellosa, professor de História da arte japonesa na Escola
de Artes de Tóquio; Hashimoto Gahô (1835-1908) e Yokoyama Taikan (18681958), Uemura Shôen (1875-1949), Hirota Tazu (1904~), Kayama Matazô
(1927~) e Higashi Kaii (1908~) encontram-se entre os mais famosos do
século XX.
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CORDADO, Madalena N Hashimoto. FORMAS
E FORMATOS NAS ARTES PLÁSTICAS DO
JAPÃO.
Asai Chû (1856-1907), aluno de Fontanesi, no entanto, foi o pintor de
Yôga mais representativo da era Meiji (1868-1912) que logrou transformar
a pintura a óleo em mais um formato japonês. Ao se centrar não na forma
exterior das novas técnicas ocidentais (claro-escuro, composição, textura,
pincelada), questionou-se sobre a substância da pintura ocidental e abriu
caminho para o trabalho de Okada Saburô (1868-1939) que produziu uma
pintura a óleo japonesa. Entende-se, por isso, não apenas a adequação
temática – por exemplo, mulheres japoneses vestidas com quimonos tocando instrumentos musicais japoneses –, mas o próprio tratamento da superfície. Opôs-se ao gaikô-shûgi “teoria-do-brilho-exterior” advocado por
Kuroda Seiki (1866-1924), seu professor, que viveu muitos anos em Paris e
foi o mais influente artista de sua geração.
Assim, se a abertura dos portos do Japão ao ocidente em 1868 influenciou a arte ocidental na composição, na exploração de novas temáticas e
novos pontos de vista, com a circulação das estampas ukiyo-e colecionadas
por Monet, Manet, van Gogh, Whistler, Boudin, para somente citar alguns,
sua influência também se fez sentir no Japão, como o atesta a introdução da
pintura a óleo.
A gravura de Munch, tentativa de recriação e adaptação dos métodos colorísticos japoneses, é uma prova no nível técnico do intenso intercâmbio visual de fins do século XIX. Assim também o movimento Shin
Hanga, “Nova Gravura”, onde os pintores japoneses tentaram se apoderar
do processo todo da gravura, eles mesmo cortando a matriz e imprimindo,
ou buscando novas formas de impressão, com resultados toscos no início,
mas abrindo novas qualidades plásticas.
O internacionalismo, especialmente após a II Guerra Mundial faz-se
sentir, naturalmente, em todos os aspectos artísticos: à xilogravura e gravura em metal, essa última introduzida por Shiba Kôkan no século XVIII,
somam-se a serigrafia, a litogravura, os processos foto-mecânicos e atualmente a videoarte e a arte por computador. Em termos formais, temas tradicionais como “vistas famosas”, “beldades” são ainda encontradas, principalmente em estilo Nihonga. Muitos artistas renderam-se às questões contemporâneas da arte surrealista, dadaísta, expressionista, construtivista, abstrata, conceitual, concreta, povera, geométrica, tachista, informal, metafórica, pós-moderna. Outros continuam tentando encontrar uma nova japonização
das formas e dos formatos contemporâneos. O trabalho de Munakata Shikô
(1904-1976) é um testemunho deste embate perene.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p.123-139, MARÇO,1997
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AS MANIFEST
AÇÕES ARTÍSTICAS
MANIFESTAÇÕES
ARMÊNIAS
Chaké Ekizian Costa
A arte armênia apresenta-se na atualidade como decorrência de duas
vertentes: alguns elementos deixados pelos invasores; outros trazidos pelo
fluxo migratório dos intelectuais e artistas, fazendo convergir para a arte
armênia elementos europeus que são colhidos, no início do século, tanto em
Moscou, como na Europa Latina. Nos primórdios de sua história, quando se
configura como um conjunto de estados conhecido como Confederação
Nairiana, a Armênia se revela como uma ponte, de travessia para o Oriente,
para os conquistadores romanos e gregos, persas e árabes. As cruzadas e
os mercadores europeus conhecem-na como corredor para as terras santas. Estas passagens e invasões, no território original, não só possibilitam o
fortalecimento do espírito dos armênios que têm se mostrado, no decorrer
de sua história, como um fênix que sobrevive às tragédias, como também o
enriquecimento de sua cultura, por essas influências, como por exemplo,
khatchkar1 que tem, originariamente, a função de fechar as criptas funerárias, apresentando-se trabalhada em ricas filigranas, a partir do século IX,
período da civilização árabe, na Armênia.
Ainda, conhecida como o primeiro país a adotar, no IV século, o Cristianismo como religião de Estado, a Armênia mostra como acervo igrejas
ornamentadas, em sua arquitetura, pela frontalidade de águias ou pelas
leoas aladas que se confrontam: são marcas mesopotâmicas, em todo território. A arquitetura aponta linhas para o gótico, ficando patente também a
produção das miniaturas que tomam configurações diferenciadas entre si,
indicando repertório que se estende em enfileiramentos e divisões islâmicos,
em composições mandálicas e na frontalidade da figuração bizantina.
Além das influências deixadas pelos estrangeiros e trazidas pelos
nativos, que não são excludentes entre si, há os aspectos históricos, que
também colaboram para a manifestação de uma arte contemporânea que
procura a diferenciação e a singularidade em múltiplas soluções pictóricas.
A obra de vários artistas modernos e contemporâneos nos fazem
constatar a afirmação de que há uma destacada produção plástica no país.O
processamento se manifesta pela reflexão de sua herança, ainda viva, e
sobre a necessidade de agarrar as rédeas da autonomia, no presente.
1
Estelas verticais em cruz.
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COSTA, Chaké Ekizian. AS
MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS ARMÊNIAS.
Martiros Sarian é um exemplo palpável desta premissa, pois ele apresenta, em sua obra, um processo construtivo narrando as marcas de sua longa
vida enquanto a registra visualmente. Isto o distingue como um artista experimental, arrojado e autônomo, em relação às informações sobre as vanguardas
modernistas européias. Biografa-se, inicialmente, habitante da Rússia, de uma
família de camponeses armênios, como atento documentarista que testemunha
toda a paisagem como beleza. Maravilha-se diante da visão do horizonte e da
austeridade e solidão da estepe, a se perder de vista, em casa de seus pais.
Sarian refere-se, em suas memórias, e os desenhos deste tempo o
confirmam, que se exercita muito, com qualquer material: lápis preto ou em
cores, papel colorido ou branco, em pedaços de papel somados agregados
ou não. Em 1898, ao voltar para o rio Sambek, na estepe de Azov,em seu lar
desenha tudo o que vê. Os desenhos são referentes aos objetos e instrumentos usados na casa: carroças e enxadas, foices para uso no trabalho do
campo, as pessoas e seu cão. Aí parece estabelecer uma via de interesse
que pontilha a trajetória da totalidade de sua obra: as pessoas armênias,
suas figuras, seus perfis, sua indumentária. É também aí que codifica, graficamente, seu afeto pelos animais que o acompanham em suas telas. A
sistemática verificação destas presenças parece refletir que Sarian recorre
à fauna, não somente por significar afetuosamente a lembrança de sua infância, mas ainda mais, porque parece ser observada convivendo com a
austeridade da vida rústica armênia, onde os domesticados e os selvagens
estão presentes. Aí que vê, como pintor agora, a paisagem panorâmica,
observando o ritmo minimalista da natureza, em sutis transformações, do
tempo contínuo e silencioso, para eclodir em formas e cores múltiplas. Sarian
recebe a luz da Armênia como elemento precioso e a cultiva como solução
nova e adequada para seu trabalho. Apega-se aos cenários da região; as
cores lhe dão alegria e os costumes o surpreendem; as moças com seus
olhos e cabelos negros dançam sobre o telhado das casas, com sapatos de
madeira e o habitual figurino. Esse encantamento eclode em 1902, quando o
repertório pictórico de Sarian se embebe de tais movimentos. A disponibilidade de Martiros abre-lhes horizontes de uma experiência armênia, que se
traduz nas constante modificações em sua arte: novos gestos, novos ângulos de visão, novas cores.
O monumental que Sarian experimenta na Armênia concretiza-se
em sua pintura, que caminha por metamorfoses do olhar; manifesta-se na
escolha do local para observação do objeto ou cena; as ondulações dos
montes da Transcaucásia possibilitam-lhe a observação de um plano elevado, ângulo que aparece em seus quadros, como em Makravank2, que docu2
1902, óleo sobre tela, 36x46cm., acervo do Museu M. Sarian, Erevan-Armênia.
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menta o empenho de Sarian em procurar novos referenciais. Há, nesta tela,
a denúncia de experiências com os novos ângulos do Cáucaso e a verificação de novos gestos.
Terminado o período escolar, afirma ter começado a sua fase mais
difícil. Refere-se ao desejo de encontrar uma linguagem que o introduza no
compromisso com a arte, que o leve a reconhecer as impressões deixadas
pela infância, que lhe permita expressar seus pensamentos sobre seu país, a
humanidade e o universo. Entende que os primeiros exercícios gráficos e
pictóricos são insuficientes para vivificar essas imagens. Nos últimos meses
da Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou pinta quadros que
retratam a natureza, os animais e o homem de maneira fantástica. Valorizando a imaginação, Sarian designa os trabalhos deste período, de Contos e Sonhos. Durante este processo de trabalho, concentra-se sobre o Cáucaso, a
Transcaucásia e, finalmente, a Armênia. Rememora as caravanas de camelos com guizos, os nômades de rosto bronzeado, descendo dos montes com
rebanhos de ovelhas, vacas, búfalos, cavalos, jumentos, cabras; os bazares, a
vida da população multicor; o passo leve das mulheres muçulmanas com véus
negros e rosados, em calças negras e tamancos de madeira, a espiar dos
telhados planos de casas quadradas; os olhos grandes, escuros e amendoados
das armênias. Assim é a cena com que sonha desde a infância.
C ONTOS
DE
F ADAS
E
S ONHOS S IMBOLIST
AS
IMBOLISTAS
O simbolismo da Europa espalhou-se pelas artes visuais e penetrou
na Rússia que o incorporou, nos caminhos vários e diferenciados de transformação da produção artística, no período pré-revolucionário.
Para compreendê-lo em Sarian, é preciso recorrer às fontes históricas armênias, que se localizam na poesia, cantada por bardos no século
XVI. As analogias aparecem quando se lê a Canção deliciosa de Grigor
Narekatsi3 e a Canção de Amor de Grigoris Akhtamartsi (séc. IX).Naapet
Kutchak, ashug4 que tem canções que traduzem a contemplação sutil, a
3
4
Grigor Narekatsi, in Kamenski, 44 . “Je suis une ville sans tours et sans portes./Je suis une
maison où il n’y a pas de feu l’hiver./Je suis une eau amère, et de ceus qui la boivent, / Je peux
étancher la soif./ Je suis un jardin desséché./Je suis un champ envahi par les mauvaises
herbes./ Je suis la terre préparée par Dieu,/Mais c’est le Diable qui la lbouré ce sol.” Xº siècle.
Sarafian, Jorge, Armenia atraves de sus poetas “Essas canciones son compuestas por los
ashugh, ( da palavra árabe ashik) bardos errantes, pero muchas veces, el pueblo mismo las
improvisa. Las mujeres tomam parte y una parte brillante en la creación de esas canciones.
Canciones contienen todos lo géneros: canción de amor, de cuna, coplas satíricas, oraciones,
motivos de danza, canciones de boda, de inmigrantes, cantos históricos nacionales y otras
glorificando la naturaleza, alabando los trabajos de la campiña, etc.
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COSTA, Chaké Ekizian. AS
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beleza do mundo, a celebração cavaleiresca ao amor, o erotismo e a alegria
de viver. Em uma das narrações líricas de Kutchak, o herói conta que sua
bem amada “bebe em uma taça azul, sentada sob a árvore e celebra as
delícias das carícias e do vinho com palavras armênias.”5 O intrometimento
no território da literatura registra alguns pequenos contos de fadas, atestando o envolvimento de Sarian com uma Armênia simbolista que ecoa, a que
ele vê e pinta.
LAGARTIXA6
Lagartixa, que gostas do beijo do sol. Enlangueces-te docemente nos seus raios e tens sonhos feitos de raios cerúleos, em que vês o
príncipe dos lagartos em cavernas de âmbar. Em traje versicolor, ele
deixa os seus palácios e, por entre flores multicolores, vai para uma
pedra branca a banhar-se nos raios dourados do sol.
Os seus escritos se espelham nos antecedentes poéticos da literatura
armênia. Mais do que nos escritos é em sua pintura que se pode localizar
signos, cuja ancestralidade está nas antigas miniaturas persas do século
XVI, que indicam abordagens que Sarian mantém com seus trabalhos. Parece ser fundamental, nesta incursão simbolista de Sarian, a apreciação do
pintor por estas miniaturas onde se mira, para em várias ocasiões, resolver
a atuação de seus personagens. É com o simbolismo que Sarian rompe com
as práticas pictóricas da Escola de Moscou. Não valoriza somente o aspecto imaginário e temático das miniaturas persas, mas também o seu visual.
Comparando-as à obra de Sarian entre 1901 e 1908, reconhecem-se as
marcas com que resgata esses documentos: as transparências violáceas e
azuladas da paisagens constroem a leveza que foge à realidade, dura e
acinzentada, como da rochosa paisagem armênia; o artista explicita recursos raros de composição, de localização inusitada de personagens, e de
ruptura conseqüente com as referências acadêmicas do claro-escuro. Vêse que as trocou pela transparência das aguadas da aquarela, encarregadas
das leves e etéreas paisagens. São cenas que não conseguimos colher em
nossas mãos porque nos escapam como vapores e são vulneráveis ao vento
que, a qualquer momento, pode dissipá-las. É em seu período simbolista, que
localiza os elementos das miniaturas islâmicas do século XVI, que se manifestam pincelagens que não permitindo reconhecimento imediato da figura
exigem um olhar de adivinhação, assombrado. Propõe-se aqui a possibilida5
6
Sarafian, J. op. cit.
Tradução Nóe Silva
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de de que o fantástico é reforçado, na obra de Sarian, quando se verificam
seus contos introduzindo na visualização do irreconhecível:
A PEDRA LUZ ( história fantástica)
Há uma pedra branca em um bosque sagrado e, sobre ela, uma
pedra-luz. A esse souto sagrado iam pessoas escutar as histórias fantásticas da terra, atentos ao estranho farfalhar das folhas e à pálida
luz da pedra. Ao caírem as trevas da noite, à pedra luminosa iam sacerdotes brancos e entregavam-se a danças loucas e mágicas. Ao caírem as trevas da noite, iam sacerdotes negros. Eles compreendiam aquela
luz. Ficavam simplesmente calados.
O homem representa uma partícula microscópica do Universo, o
Eu, encerrado nele, constitui o próprio Universo; somente por meio do
homem, a Natureza tomará consciência da sua grandeza e insignificância. Para cada pessoa existe uma beleza a ela peculiar, que ela
compreende e de que ela vive. O mundo é belo.
Na década de 30, Sarian ainda recorre aos índices islâmicos das miniaturas. São trabalhos que apontam o ritmo e a dinâmica da miniatura persa,
com seu colorido intenso e uniforme. A divisão da superfície da tela em
muitos e movimentados planos, de alto a baixo, é trabalhada por
enfileiramentos da mesma figura. Também não é de todo impossível que os
animais da miniatura armênia sejam igualmente referência para inúmeras
pinturas do artista, pois em seu trabalho insere no mesmo plano todos os
seres: animais e vegetais compartilham os mesmos momentos. Encontramos vicunhas, camelos, cachorros etc.
O percurso de Sarian no simbolismo pressupõe os registros gráficos
anteriores, realizados entre 1897 e 1902, desde que, estudando em Moscou,
de volta para Sambek em férias, descobre a Armênia. Estes desenhos são a
base observacional da elaboração dos personagens das aquarelas simbolistas, entre 1903-1908. Não sendo fortuito o sinal deixado por sua infância no
campo, prefere-se considerar que os registros observacionais são os principais indicativos da presença de animais na futura pintura de Martiros
Sergueievitch, que emenda pedaços de papéis vários, denotando uma atitude flexível e íntima com a arte visual, permitindo-lhe aceitar qualquer suporte para exercitar-se. Esses desenhos configuram-se como um arsenal de
recursos em que o artista conduz ao campo do imaginário, trazendo situações narrativas, muitas vezes fantásticas, onde não fica esclarecida a seqüência, mas situam o observador no simbolismo. Transforma-as em experiências que também lhe possibilitam refletir sobre a técnica: em algumas
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telas, a cor da aquarela é colocada a lápis após o esboço, cujos riscos se
evidenciam como contornos das casas, dos personagens e das figuras, muitas vezes, colaborando também com um outro plano: o da construção do espaço.
A aquarela, que permite fluidez e flexibilidade, contempla a mudança
mais importante de Sarian: o claro-escuro dá lugar ao cromatismo. A utilização das cores se multiplica e torna-se um recurso poderoso em sua obra,
pois ele as usa de maneira intensa, confrontando os contrastes e extrapolando
a realidade. Explicita-se assim, um processo que inicia esta construção:
neste período de Sarian, há o cruzamento de várias referências, que atuam
subvertendo a expectativa , desterritorializando o olhar, provocando um salto no olhar, que é lançado ao território visionário. Constata-se uma atitude
investigadora que surpreende pelos resultados que constrói na plasticidade
de sua obra. Na totalidade da obra de Sarian, explicita-se que são descritos
momentos de costume, da arquitetura e da paisagem armênia, assim como
ela está sendo sempre visualizada.
Outro nome pronunciado com grande respeito na Armênia é o de
Minas Avetissian. Durante quinze anos, Minas criou uma pintura fovista
armênia. Discípulo de Sarian, trabalhou uma temática urbana, que retrata o
rompimento dos laços seculares do modo de vida e a ansiedade que toma
conta das pessoas frente às mudanças contínuas nas relações homem/mulher, introduzindo em sua pintura uma condição dramática. A saturação
cromática na obra de Minas faz vibrar as formas, que, sem contorno, vivificam-se em sintonia de cores.
George Yakulov, nascido em Tiblissi, na Georgia, expressa-se primeiramente no teatro, como cenógrafo. Revoluciona os espetáculos de Diaghilev,
com seus cenários. Em suas viagens à China e à Itália, o pintor Yakulov
assimila a arte oriental e da alta renascença, manifestando-se por linhas
melodiosas e pela composição espacial. Espalhando suas figuras sobre um
mesmo plano e trabalhando meticulosamente toda a superfície da tela, o
artista consegue grande movimento em suas pinturas e as satura cromaticamente.
Na apresentação deste três pintores ficam explícitas as premissas
levantadas anteriormente: a arte armênia apresenta, modernamente, as vertentes herdadas dos povos antigos e outras aceitas pelo nomadismo intelectual dos artistas da atualidade armênia. Fica patente que não há o naturalismo, nem o realismo. Mantidos os legados, há uma fiel dedicação aos recursos que a própria Armênia lhes dá: a luminosidade, a cor e a liberdade de se
utilizar de um recurso plástico de forma pessoal e singular.
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CONTRASTIVOS NO PLANO
FONOLÓGICO: ALGUMAS
IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS
Safa Alferd Abou Chahla Jubran*
1. INTRODUÇÃO
Dado o caráter de artigo, pressupõem-se conhecidos:
a) os postulados estruturalistas no que se refere à língua, tais como:
a língua é um sistema, em que os elementos funcionam conforme leis e de
modo sincrônico; é um meio de comunicação, um fenômeno social.
b) os conceitos de língua, articulação, fonema, distinção, traço pertinente, comutação, neutralização e outros termos relacionados com a análise fonológica.
A descrição de ambas as línguas procurou submeter os elementos
de cada uma aos mesmos critérios e técnicas. Isto posto, selecionaram-se,
para fins de artigo, as características relevantes a respeito dos fonemas, de
seus traços pertinentes, dos alofones, da distribuição, da neutralização, da
sílaba e da base articulatória de cada língua.
2. SÍMBOLOS UTILIZADOS NA TRANSCRIÇÃO
a
a˘
i
i˘
u
u˘
ã
iÚ
2.1 vogais:
A
central, aberta, oral
F
central, aberta, oral, longa
å
anterior, fechada, oral
anterior, fechada, oral, longa w
posterior, fechada, oral
y
posterior, fechada, oral, longa.
central, semi-fechada, nasal p
anterior, fechada, nasal
b
posterior, aberta, oral
posterior, semi-fechada, oral
central, aberta, oral
2.2 semivogais
velar, oral
palatal, oral
2.3 consoantes
oclusiva, bilabial, surda, oral
oclusiva, bilabial, sonora, oral
- 149 -
JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS –
ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.
uÚ
posterior, fechada, nasal
t
e
anterior, semi-fechada, oral
t8
oÚ
posterior, semi-fechada, oral d
eÚ
anterior, semi-fechada, nasal d8
o
k
oclusiva, linguodental, sonora,
oral, não enfática
oclusiva, linguodental, surda, oral, enfática1
oclusiva, linguodental, sonora,oral, não
enfática
oclusiva, linguodental, sonora,
oral, enfática
oclusiva, velar, surda, oral
g
q
f
v
m
n
oclusiva, velar, sonora, oral
oclusiva, uvular, surda, oral
fricativa, labiodental, surda, oral
fricativa, labiodental, sonora,oral
oclusiva, bilabial, sonora, nasal
oclusiva, dental, sonora, nasal
nÚ
S
fricativa, palatal, sonora, nasal
fricativa, palatal, surda, oral
Z
fricativa, palatal, sonora, oral
T
fricativa, interdental, surda, oral
D
D8
fricativa, interdental, sonora, oral, não-enfática
fricativa, interdental, sonora, oral, enfática
h
fricativa, laríngea, surda, oral
˙
fricativa, faríngea, surda, aspirada
ƒÚ
fricativa, velar, sonora, oral

fricativa, faríngea, surda, oral
posterior, semi-fechada,
nasal
E anterior, semi-aberta, oral
ç posterior, semi-aberta, oral
Q anterior, semi-aberta, oral
ˆ central, fechada, oral
l lateral, alveolar, sonora, oral
l8 lateral, alveolar, sonora, oral,
enfática
… lateral, velar, sonora. oral
r vibrante simples, alveolar,
sonora, oral
r* vibrante múltipla, alveolar,
sonora, oral
r8 vibrante, alveolar, sonora,
oral.
“ vibrante múltipla, apicoalveolar, oral
s fricativa, alveolar, surda,
oral,
s8 fricativa, alveolar, surda,
oral, enfática
z fricativa, alveolar, sonora,
oral
z8 fricativa, alveolar, sonora,
oral, enfática
¥ lateral, palatal, sonora, oral
1
A ênfase é uma característica articulatória comum nas línguas semíticas. Consiste num
arredondamento da raiz da língua, ocasionando um deslocamento da laringe mediante a
dilatação da passagem. O fenômeno aparece na literatura com outros nomes, tais como:
Velarização ou faringalização enfática. Em árabe é um traço distintivo.
- 150 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p.149-171, MARÇO,1997
dZ africada
tS africada
x
÷
/
fricativa, velar, surda, oral
fricativa, faríngea, sonora, oral
oclusiva, laríngea, surda, oral
3. DESCRIÇÃO DO ÁRABE
3.1 S ISTEMA
VOCÁLICO
É composto de seis vogais: /a/, /i/, /u/, /a˘/, /i˘/ e /u˘/. Note-se
que o traço breve/longa é que diferencia os três primeiros elementos dos
três últimos; fato este estabelecido pela quantidade ou duração da vogal.
No que se refere à distribuição das vogais, todas podem ocorrer no meio ou
no final de sílabas e palavras, mas nunca no início dessas.
3.1.1 A LOFONES
/a/
[a]
[Q]
/a˘/
[a˘]
[Q˘]
/i/
[i]
[ˆ]
[e]
/i˘/ [i]
[ˆ˘]
/u/ [u]
[o]
ocorre sempre quando contígua às consoantes enfáticas, ex:
[s8aff] ‘classe’
ocorre sempre, exceto quando contígua às consoantes enfáticas, ex:[mQn] ‘quem’
ocorre sempre quando contígua às consoantes enfáticas, ex:
[t8a˘ra] ‘voar’
ocorre sempre, exceto quando contígua às consoantes enfáticas, ex: [lQ˘] ‘não’
ocorre sempre, exceto quando contígua às consoantes enfáticas, ex: [min] ‘de’
ocorre sempre, quando contígua às consoantes enfáticas, ex:
[d8ˆrs] ‘dente’
variante livre, em posição final da palavra.
ocorre sempre, exceto quando contígua às consoantes enfáticas, ex: [fi˘l] ‘de’
ocorre sempre, quando contígua às consoantes enfáticas, ex:
[s8ˆ:n] ‘China’
ocorre sempre.
variante livre, em posição final da palavra.
- 151 -
JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS –
ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.
3.1.2 N EUTRALIZAÇÃO
A neutralização vocálica em árabe é muito rara e inclui-se no campo
morfofonológico. Deixa de ser mencionada aqui, pela irrelevância a esta
descrição -por não ser uma característica puramente fonológica.
3.1.3 G RUPOS
VOCÁLICOS :
Existem em árabe seqüências vocálicas expressas por ditongos decrescentes e crescentes e tritongos. Os ditongos decrescentes restringemse a dois, /aw/ e /ay/, como em /nawm/ ‘sono’ e /zayt/ ‘azeite’, quanto aos
crescentes aparecem em número maior, como segue:
/wa/
/wu/
/wi/
/wa˘/
/wi˘/
/wu˘/
/ya/
/yu/
/yi/
/ya˘/
/yu˘/
/yi˘/
/walad/
/wuju˘h/
/wifa˘q/
/iwa˘r/
/takwi˘n/
/t8a˘wu˘s/
/yati˘m/
/yuqa˘lu/
/sayyid/
/baya˘n/
/buyu˘t/
/tamyi˘z/
‘menino’
‘rostos’
‘acordo’
‘diálogo’
‘formação’
‘pavão’
‘órfão’
‘diz-se’
‘senhor’
‘declaração’
‘casas’
‘diferenciação’
Embora raros, nota-se a ocorrência de alguns tritongos, como /yay/
em /yay asu/ ‘desesperar-se’ e /wa˘w/. Frise-se que o árabe não apresenta
hiatos.
3.2 SISTEMA CONSONANT
AL
CONSONANTAL
O árabe apresenta 27 fonemas consonantais. São eles: /b/, /f, /m/,
/n/, /t/, /d/, /t8/, /d8/, /T/, /D/, /D8/, /s/, /s8/, /z/, /S/, /Z/, /r/, /l/, /l8/, /h/, //,
/ƒ, /x/, /k/, /q/, ///, /÷/.
Note que /p/ e /v/ não existem em árabe, mas em contrapartida, registra-se a presença de vários fonemas não existentes em português, como
as enfáticas e as chamadas, genericamente, de guturais.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p.149-171, MARÇO,1997
3.2.1 A LOFONES
/t/ [t]
[th] (aspirada)2
/k/ [k]
[kh](aspirada)
/b/ [b]
[p]
/r/ [r]
[r8]
/Z/ [Z]
[g]
[dZ]
/D8/ [D8]
ocorre sempre, exceto nas situações descritas abaixo.
ocorre somente no começo da sílaba tônica e na
posição final do vocábulo: /tu˘t/ [thu˘th] ‘amora’.
ocorre sempre, exceto nas situações descritas abaixo.
ocorre somente no começo da sílaba tônica e na
posição final do vocábulo: [khQQf] ‘letra ‘; [sQmQkh]
‘peixe’.
ocorre sempre, exceto na situação descrita abaixo.
ocorre somente antes de consoantes surdas ex:
/abs/[Qps] ‘prisão’.
ocorre quando seguida de /i/.
ocorre quando seguida pelas vogais /a/ e /u/, ex:
/rabb/ [r8abb], /ruddu˘/ [r8uddu˘] respectivamente,
‘Senhor’ e ‘devolvem’; e quando próxima às enfáticas, ex: /d8araba/ [d8ar8aba] ‘bateu’.
ocorre sempre
variante regional, ocorre no falar do Cairo (Egito).
variante regional, ocorre em algumas regiões do Líbano, da Tunísia, do Marrocos e no Sul da Algéria.
variante regional, ocorre no Egito e em algumas regiões do Levante.
variante regional, ocorre em algumas regiões do Egito, da Síria e do Líbano.
[z8]
3.2.2 N EUTRALIZAÇÃO
Não ocorre a neutralização de consoantes em árabe.
3.2.3. G RUPOS
CONSONANT
AIS
CONSONANTAIS
Embora todas as consoantes árabes possam ocupar posição inicial
em sílabas ou palavras, jamais teremos encontros consonantais no início
dessas. Ao passo que, tanto no meio, quanto no final da palavra, todas as
consoantes podem formar grupos de duas, produzindo combinações diversas.
2
A Aspiração é um sopro em nível laríngeo; normalmente é surda.
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JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS –
ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.
Vale ressaltar, ainda, que as consoantes que constituem grupos mediais
serão sempre pertencentes a sílabas contíguas, enquanto aquelas que constituem grupos finais pertencerão à mesma sílaba3. Veja exemplos de ambas
as ocorrências:
/zr/
/s8r/
/m/
/kt/
/ƒf/
/k/
/rT/
/rZ/
/r//
/rq/
/bz/
/sb/
/mazra÷at/
/mas8s8rif/
/muSSmis/
kt
/makt
ktu˘b/
ƒf
/naƒf
ƒfuru/
k
/mak
kamat/
rT
/arT
rT/
rZ
/marZ
rZ/
r/
/mar/
r//
rq
/barq
rq/
bz
/xubz
bz/
sb
sb/
/kasb
‘fazenda’
‘banco’
‘ensolarado’
‘carta, escrito’
‘perdoamos’
‘tribunal’
‘arar’
‘campo’
‘sujeito’
‘relâmpago’
‘pão’
‘lucro’
Em termos distribuicionais, embora todas as consoantes possam ocorrer em todas as posições da palavra e participar de seqüências – exceto em
início de palavra e de sílaba – nota-se que algumas combinações não ocorrem no árabe padrão, tais como: grupos envolvendo /b/ e /f/ como /bf/,
/bm/, /fb/, /fm/, mas /fh/ pode ocorrer medialmente, como em /mafhuùm/. O
mesmo acontece com relação a grupos como /nr/, /nl/, /rl/ e /lr/. Os fonemas
/k/ e /q/, /Ä/ e /x/ não formam grupos consonantais entre si, e nem com /h/
, /ð/ e /Ö/.
3.3. GEMINAÇÃO
Em árabe, a geminação é relevante por distinguir signos. Teoricamente, todas as consoantes árabes podem sofrer redobro. Ressalte-se que
3
Esses grupos poderão tornar-se mediais se as palavras às quais pertencem forem marcadas
pelo caso. Lembramos que: -u(n), acrescentado a cada uma delas, representa a marca do
nominativo em árabe, kalbun e assim por diante, -a(n) e -i(n) marcam, respectivamente,
os dois casos acusativo e genitivo. a uso do (n) mostra que o nome em questão é indeterminado
ou indefinido. Note-se, no uso que omite a vogal do caso, o aparecimento de uma vogal
epentética, que separa os elementos do grupo consonantal, por exemplo: /kalb/ > /kal(i)b/
e /ðumq/ > /ðum(u)q/. Isto leva a crer que a ocorrência de grupos consonantais no final da
palavra é instável.
- 154 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p.149-171, MARÇO,1997
tal fenômeno distingue-se da consoante longa pela tensão: a consoante
geminada dá sempre a impressão de dualidade; a longa possui uma tensão
única. Os exemplos abaixo evidenciam a relevância do fenômeno:
/jama˘l/-/jamma˘l/
/kasara/-/kassara/
‘beleza’- ‘condutor de camelo’
‘quebrar’- ‘triturar’
Note-se que a geminada em árabe ocorre em contexto intervocálico;
as duas vogais que a ladeiam podem ser de natureza diferente, como em:
/muÖallim/ ‘professor’.
3.4. NA
TUREZA SILÁBICA
NATUREZA
São oito padrões silábicos, em árabe: CV, CVC, CVCC, V5V, CVV5,
V5VC, CVV5C e V5VV5, como em: /kataba/, /na˘r/, /÷ilm/, /yati˘m/, /na˘y/,
/xiyaùr/, /zayt/ e /yay/asu/;4 respectivamente, ‘escreveu, fogo, ciência, órfão, flauta, escolha, azeite e desesperar-se’.
3.5. BASE ARTICULA
TÓRIA
ARTICULATÓRIA
O conjunto de hábitos articulatórias que caracteriza cada língua molda-se nessa base. Ressalte-se que esse aspecto tem um papel significativo,
num processo de ensino/aprendizagem. Destarte, pode-se dizer que, no sistema fonético do árabe:
a) a base articulatória é tensa;
b) a zona de articulação gutural é importante;
c) o ponto de articulação das consoantes enfáticas é importante;
d) as fossas nasais não são solicitadas na articulação de vogais;
e) a distinção da duração das vogais é importante.
4. DESCRIÇÃO DO PORTUGUÊS
4.1 S ISTEMA
VOCÁLICO
São 12 os fonemas vocálicos em português, 7 orais e 5 nasais: /a/,
/e/, /i/, /E/, /o/, /ç/, /u/,/ã/, /e‚/, /iÚ/, /o‚/, /u‚/.
4
Em todos os padrões descritos acima, a vogal tanto pode ser breve ou longa, exceto nos
padrões: CVCC e CVV5C, em que somente a vogal breve pode ocupar o lugar de V.
- 155 -
JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS –
ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.
4.1.1. A LOFONES
/a/
[a]
[A]
[å]
[F]
em sílaba tônica diante de fonema oral.
em sílaba átona, diante de fonema oral.
em sílaba átona final (enunciado reduzido, mais fraco
de que o anterior)
Exemplo: /batata/ > [bAtatå]
diante de consoante nasal da sílaba seguinte, ex: [Fmu]
4.1.2 N EUTRALIZAÇÃO
E ARQUIFONEMA
Esse fenômeno ocorre em português, atingindo as seguintes vogais:
/e/ e /i/→ /I/, em posição átona final. Ex: /some‚tI/;
/o/ e /u/→ /U/, em posição átona final. Ex: /estadU/;
/E/ e /e/→ /E/, em posição átona. Ex: /lEvadU/;
/ç/ e /o/→/O/, em posição átona . Ex:/ZOgaR/.
4.1.3 G RUPOS
VOCÁLICOS
Existem em português ditongos – crescentes e decrescentes – e tritongos:
a) ditongos crescentes orais: /wa/, /we/, /wE/, /wi/, /wo/, /wç/, /ya/,
/ye/, /yE/, /yo/, /yç/ e /yu/, com flutuação de pronúncia.
b) ditongos decrescentes orais: /aw/, /Ew/, /ew/, /iw/, /ow/, /ay/,
/E, ey/, /çy/, /oy/, e /uy/.
c) ditongos crescentes nasais: /wã/, /we‚/, /wi‚/, /yã/, /ye‚/, /yõ/ e
/yu‚/.
d) ditongos decrescentes nasais: /ãw/, /ãy/, /o‚y/, /e‚y/ e /u‚y/.
e) tritongos orais: /way/, /wey/, /waw/, /wiw/ e /wow/.
f) tritongos nasais: /wãw/, /we‚y/ e /wõy/.
5. SISTEMA CONSONANT
AL
CONSONANTAL
São 19 fonemas consonantais:/b/, /p/, /t/, /d/, /k/, /g/, /f/,/v/, /m/,/n/,
/s/, /z/, /Z/, /S/, /l/, /r/, /r*/, /ñ/ e /¥/.
- 156 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p.149-171, MARÇO,1997
5.1 A LOFONES 5
/k/
[k]
[k1]
[k2]
[k3]
ocorre diante de uma vogal anterior, como em [k1ilU] e
[g1ia].
ocorre diante da vogal /a/, como em [k2arU].
ocorre diante de vogal posterior, como em [k3usta].
[g]
[g1]
[g2]
[g3]
ocorre diante de uma vogal anterior, como em [g1ia].
ocorre diante da vogal /a/, como em [g2alU].
ocorre diante de vogal posterior, como em [g3ula].
/d/
[d]
[dZ]
ocorre sempre exceto diante de /i, i‚, y/, como em [dadU].
ocorre diante de /i, i‚, y/, como em: [dZireytU].
/t/
[t]
[tS]
ocorre sempre exceto diante de /i, i‚, y/, como em [tasa].
ocorre diante de /i, i‚, y/, como em [tSira].
/l/
[l]
ocorre diante de vogal em posição inicial, como em
[lata].
ocorre após qualquer vogal, em posição final, como em
[a…tU].
/g/
[…]
5.2 NEUTRALIZAÇÃO
Ocorrem, em português, alguns casos de neutralização consonantal,
veja os exemplos:
/r/ e /r*/→ /{*/— em posição inicial ou final da sílaba, porém, nunca,
intervocálica. Ex.: /{*atU/ e /pasta{*/;
5
Deixamos de mencionar aqui as inúmeras variantes livres e regionais que existem em
português, por não serem características à descrição fonológica, registramos, contudo –por
serem mais freqüentes –, algumas variantes do /r*/: [x], [“] e [˙].
- 157 -
JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS –
ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.
/r*/ e /r/ → /R/ — em posição medial na sílaba, formando grupo com outra
consoante. Ex.: /pRatU/;
/s/ e /z/→/S/ — em posição final absoluta ou em final de sílaba interna
fechada. Ex.: /maS/ e /deStI/;
/l/ e /w/→ /W/— em posição final absoluta, ou em final da sílaba interna
fechada (posição pós-vocálica). Ex: /brasiW/ e /aWtU/.
5.3 GRUPOS CONSONANT
AIS
CONSONANTAIS
Ocorrem, em português, grupos consonantais iniciais formados de
uma oclusiva ou uma fricativa, mais uma lateral ou vibrante, como em:
/briza/ e /klima/.
No meio da palavra, existem grupos separados por sílabas contíguas,
como em: /kar-ta/, e outros pertencentes à mesma sílaba, com em: /li-vro/,
/pers-pikaS/.
No final de palavra e sílaba, raros são os grupos consonantais, conquanto existam, como em : /bisepS/ e /torakS/.
Note-se ainda o aparecimento, em nível de grafia, de alguns grupos;
referimo-nos aqueles que ocorrem separados por um [i] átono, como em
/afita/, ritimo/ e /adivogado/.
5.4 NA
TUREZA SILÁBICA
NATUREZA
20 padrões silábicos foram registrados no português: V, CV, VC,
CVC, CCV, CVCC, CCVC, V5V, VV5 , V5VV,VV5C, V5VC, CVV5, CV5V,
CVV5C, CV5VC, CCVV5, CV5VV5, CCVV5C, CV5VV5C, como em, respectivamente:/a/, /na/, /oS/, /for-na-da/, /kla-vI/, /perS-pi-kaS/, /treS/, /yo-yo/, /eySU/, /waw/, /aws-tra-lya/, /yo-yoS/, /kay/, /a-gwa/, /pawS/, /kwar-tU/, /KlawdyU/, /sa-gwãw/, /grawS/ e /kwayS/.
5.5 BASE DE ARTICULAÇÃO
A base de articulação do português apresenta as seguintes características:
a) mais ou menos tensa; as consoantes tendem a uma articulação
fraca;
b) a zona gutural não é importante; a zona palatal, sim;
c) as fossas nasais são solicitadas na articulação de vogais.
- 158 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p.149-171, MARÇO,1997
6. QUADRO CONTRASTIVO
Antes de estabelecer um quadro contrastivo que privilegiará as diferenças, registram-se as seguintes semelhanças:
a) fonemas existentes nas duas línguas: /a/, /i/, /u/, /b/, /f/, /m/,/n/, /t/,
/d/, /l/, /r/, /k/, /Z/, /z/, /S/, /w/ e /y/.
b) traços pertinentes: oclusiva, fricativa, lateral, vibrante, nasal; bilabial,
labiodental, linguodental, alveolar, palatal, velar; central, média, aberta, fechada, semi-fechada; surda, sonora e oral.
c) Padrões silábicos existentes nas duas línguas: CV, CVC, CVCC,
V5V, CVV5 , V5VC e CV5VV.
ÁRABE
PORTUGUÊS
a) INVENTÁRIO:
a) INVENTÁRIO:
Fonemas totais: 35
Fonemas totais: 33
27 consoantes, 6 vogais e 2 semivogais. 19 consoantes, 12, vogais e 2
semivogais
b) FONEMAS EXISTENTES EM ÁRABE E NÃO
b) FONEMAS EXISTENTES EM
EM PORTUGUÊS:
PORTUGUÊS E NÃO EM ÁRABE:
/ƒ/
/÷/
/d8/
/T/
/D/
/D8/
/h/
//
/x/
/s8/
/t8/
///
/q/
/ l8 /
/a˘/
/i˘/
/u˘/
/r*/
/p/
/g/
/v/
/ñ/
/¥/
/ã/
/e/
/E/
/o/
/ç/
/õ/
/i‚‚/
/u‚/
- 159 -
JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS –
ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.
c) TRAÇOS PERTINENTES EXISTENTES c) TRAÇOS PERTINENTES EXISTENTES
EM ÁRABE E NÃO EM PORTUGUÊS: a
EM PORTUGUÊS E NÃO EM ÁRABE:
duração da vogal é pertinente. _____________________.
_____________________.
é pertinente o traço nasal para
a vogal. são pertinentes os traços
_____________________.
semi-aberta e semi-fachada para a
distinção dos signos.
.
a ênfase é um traço pertinente.
.
a geminação é pertinente.
d) ALOFONES:
d) ALOFONES:
combinatórios
combinatórios
/t/: [t], [th].
/k/: [k], [k1], [k2], [k3].
/k/: [k], [kh].
/g/: [g], [g1], [g2], [g3].
/b/: [b], [p].
/d/: [d], [dZ].
/r/: [r]. [r8].
/t/: [t], [tS].
/a/: [a], [Q].
/l/:[l], […].
/a˘/: [a˘], [Q˘].
/a/: [a], [A], [å], [F].
/i˘/: [i˘], [ˆ˘].
Livres ou regionais: os mais
característicos
Livres ou regionais: os mais
característicos
/Z/: [Z], [g] e [dZ].
/D8/: [D8], [z8].
/i/: [i] e [e].
/u/: [u] e [o].
e) ARQUIFONEMA:
Não existente.
/r*/: [r*], [˙], [“] e [x].
e) ARQUIFONEMA:
/I/, /U/, /E/, /O/, /R/, /{*/, /S/, /W/.
f) DISTRIBUIÇÃO DOS FONEMAS
CONSONANTAIS:
f) DISTRIBUIÇÃO DOS FONEMAS
CONSONANTAIS:
Em palavras:
posição inicial: todas
posição medial: todas
posição final: todas
Em sílabas:
posição inicial: todas.
posição medial: nenhuma.
Em palavras:
em posição inicial: todas
em posição medial: todas
em posição final: /R/, /l/e /S/.
Em sílabas:
posição inicial: todas.
posição medial: nenhuma, exceto /l/
e /r/ como o segundo elemento de
- 160 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p.149-171, MARÇO,1997
um encontro consonantal.
posição final: /R/, /l/ e /S/.
posição final: todas.
g) DISTRIBUIÇÃO DOS FONEMAS
VOCÁLICOS:
g) DISTRIBUIÇÃO DOS FONEMAS
Em palavras:
posição inicial: nenhuma.
posição medial: todas.
posição final: todas.
Em sílabas:
posição inicial: nenhuma.
posição medial: todas.
posição final: todas.
Em palavras:
em posição inicial: todas.
em posição medial: todas.
em posição final: todas.
Em sílabas:
posição inicial: todas.
posição medial: todas.
posição final: todas.
h) GRUPOS CONSONANTAIS:
todas as consoantes podem
formar grupos.
h) GRUPOS CONSONANTAIS:
bom número de consoantes formar
grupos inseparáveis constituídos de
uma oclusiva ou fricativa seguidas
por uma lateral ou vibrante. Encontros com /rs/ e /ls/ são possíveis.
i) DISTRIBUIÇÃO DOS GRUPOS
CONSONANTAIS:
i) DISTRIBUIÇÃO DOS GRUPOS
CONSONANTAIS:
Em palavras:
posição inicial: nenhum.
Em palavras:
posição inicial: /bl/, /dl/, /kl/, /gl/,/pl/,
/vl/, e /br/, /dr/, /kr/, /gr/, /pr/ e /tr/
numa posição pré-vocálica. Além
disso observa-se a ocorrência, embora rara, de /pt/, /pn/, /ks/ e /ps/.
posição medial: alguns encontros
dênticos ao que ocorrem na posição anterior, além de /tl/ e /vr/, além
dos existentes em sílabas contínuas
posição final: /pS/, /kS/ como em
/bisipS/ e /torakS/.
VOCÁLICOS
posição medial: todas as
consoantes podem formar
grupos, porém sempre
separáveis.
posição final: todas as consoantes
podem formar grupos.
Em sílabas:
posição inicial: nenhum.
Em sílabas:
posição inicial: os mesmos que ocorrem na mesma posição em palavras.
- 161 -
JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS –
ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.
posição medial: nenhum.
posição final: todas as consoantes
podem formar grupos inseparáveis
em sílabas dentro de palavras não
marcadas pelo caso. Em caso
contrário, não existirão.
j) GRUPOS VOCÁLICOS:
Apenas ditongos orais.
posição medial: nenhum.
posição final: existem dois grupos
/rs/ e /ls/, como em /perspektiva/ e
/solstisyU/ que ocorrem numa posição pós-vocálica.
não existem.
3 tritongos nasais: /wãw/, /weây/e
/wõy/.
ocorrem hiatos.
k) DISTRIBUIÇÃO DOS GRUPOS
VOCÁLICOS:
j) GRUPOS VOCÁLICOS:
Existem ditongos e tritongos orais e
nasais
2 decrescentes: /aw/ e /ay/.
11ditongos,decrescentes orais:/aw/,
/Ew/, /ew/, /iw/, /ow/, /ay/, /Ey/,
/ey/, /çy/, /oy/, e /uy/. Podendo
acrescentar ainda /çw/e /uw/ que
ocorrem apenas com a vocalização
do /l/ pós-vocálico.
_________________.
5 ditongos decrescentes nasais/ãw/,
/ãy/, /õy/, /eÚy/ e /uÚy/.
12 crescentes: /wa/, /wa˘/, /wi/,
12 ditongos crescente orais: /wa/,
/wi˘/, /wu/, /wu˘/, /ya/, /ya˘/, /yi/,
/we/, /wE/, /wi/, /wo/, /wç/, /ya/,
/yi˘/, /yu/ e /yu˘/, sem flutuação
/ye/, /yE/, /yo/, /yç/ e /yu/, com
de pronúncia.
flutuação de pronúncia.
7 ditongos crescentes nasais:
_________________.
/wã/, /weÚ/, /wiÚ/, /yã/, /yeÚ/, /yõ/
e /yuÚ/.
existem 3 tritongos, embora raros: 5 tritongos orais: /way/, /wey/,
/yay/, /way/ e /wa˘w/
/waw/, /wiw/ e /wow/.
não ocorrem hiatos.
k) DISTRIBUIÇÃO DOS GRUPOS
VOCÁLICOS:
Em palavras:
posição inicial: os crescentes.
posição medial: ambos os tipos
podem ocorrer.
posição final: os decrescentes
e alguns crescentes, cuja vogal é
a breve.
Em palavras:
posição inicial: ocorrem vários.
posição medial: ocorrem vários.
posição final: ocorrem vários.
- 162 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p.149-171, MARÇO,1997
Em sílabas:
posição inicial: os crescentes.
posição medial: os decrescentes.
posição final: os decrescentes.
Em sílabas:
posição inicial: ocorrem.
posição medial: ocorrem.
posição final: ocorrem.
l) A SÍLABA
Padrões silábicos:8
Padrões existentes em árabe e
não em português: apenas um:
V5VV5 — não estamos considerando o caso da interjeição uau do
português.
l) A SÍLABA
Padrões silábicos: 20
Padrões existentes em português e
não em árabe:
V, VC, CCV, CCVC, VV5,VV5C,
CV5V, CV5VC, CCVV, CV5VV5,
CCVV5C e CV5VV5C.
As consoantes e a sílaba:
As consoantes e a sílaba:
Seqüência de consoantes iguais
Não são possíveis seqüências de
em sílabas contínuas são possíveis. duas consoantes iguais na mesma
sílaba nem mesmo em sílabas contínuas.
Os fonemas /m/ e /n/ são possíveis Os fonemas /m/ e /n/ não são possíem posições pós-vocálica.
veis numa posição pós-vocálica final. Ocorrem graficamente nessa
posição para indicar a nasalização
da vocal precedente.
Todas as consoantes podem travar Apenas /l/, /r*/ e /S/ podem travar a
a sílaba.
sílaba.
As vogais e a sílaba:
Não iniciam sílabas.
são influenciadas pela consoante
adjacente (principalmente pelas
enfáticas) provocando ocorrência
de alofones.
m) BASE DE ARTICULAÇÃO:
muito tensa.
nenhuma ação das fossas nasais
na articulação das vogais.
importância da zona gutural.
As vogais e a sílaba:
Iniciam sílabas.
não são influenciadas pela consoante adjacente. Nota-se o contrário,
como no caso da consoante /l/ que
se vocaliza quando antecedida por
vogal, numa posição final de palavra.
m) BASE DE ARTICULAÇÃO:
pouco tensa.
ação das fossas nasais na articulação das vogais.
extinção da zona gutural.
- 163 -
JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS –
importância do modo de articulação
das consoantes enfáticas.
ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.
importância da zona palatal.
7. ALGUMAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS
As implicações pedagógicas a serem mencionadas aqui não devem
ser entendidas como radicalmente prescritivas, pois não se pode desconsiderar
a ocorrência de outros fatores, igualmente importantes no processo de ensino/aprendizagem da língua árabe por alunos brasileiros. Frise-se que os dados registrados aqui foram resultados da análise contrastiva teórica, o que
acarreta a necessidade de serem testados; enquanto não se faça isso, ficam
no campo da predição.
Isto colocado, tais implicações levam em conta tanto a produção
quanto a emissão.
a) quanto à percepção:
O aluno de língua estrangeira configura-se como um mau ouvinte,
principalmente nos primeiros estágios da aprendizagem, uma vez que os
sons estrangeiros com que o aluno depara serão processados em termos
das unidades fonêmicas de sua língua nativa e não nas da língua alvo. Desta
forma, consideram-se difíceis todos os fonemas árabes que não encontram
equivalência na língua portuguesa (verifique o quadro contrastivo, item b).
b) quanto à emissão:
O contraste indica que, ao efetuar seqüências fonológicas, o aluno
brasileiro deve aprender 1) a produção da consoante geminada, 2) a articulação das consoantes enfáticas e que essas condicionam o modo de articulação das vogais adjacentes, aprender e exercitar a utilização da zona gutural, 3) a articulação dos fonemas laríngeos, faríngeos e o fonema uvular,
e a diferenciar, nos dois primeiros casos entre surda/sonora, 4) a articulação da oclusiva laríngea surda ///— a hamza do árabe — seguida por vogal, 5) a diferenciar entre o fonema laríngeo /h/ e faríngeo //; além de não
confundir esse último com [˙] — um dos alofone do /r*/ em português, 6) a
diferenciar entre /q/ e /k/; /ƒ/ e /x/— lembrando que apenas o /k/ existe em
português, 7) a aplicar o traço de duração das vogais longas, 8) a não
vocalizar o /l/ pós-vocálico, final de sílaba, 9) a não nasalizar as vogais
seguidas das consoantes nasais /m/ e /n/ (sílaba travada) e a empregar uma
tensão mais elevada.
Deve-se, contudo, registrar que os resultados colocados até o momento enfatizam as diferenças. Seria ingenuidade, porém, supor que apenas
estas são sinônimos de dificuldade e que as semelhanças não provocam
- 164 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p.149-171, MARÇO,1997
interferência no processo de ensino/ aprendizagem. Aproveitando os pressupostos de Jim Meyer6 a respeito da análise contrastiva, alguns aspectos
podem ser sublinhados como indicadores de transferência.
a) quanto à percepção:
Em princípio, os casos de proximidade fonética e de distribuição
diferente são considerados como os mais difíceis. Ressalta-se, porém, que
os dados observacionais é que definirão mais precisamente as ocorrências
e as dificuldades.
b) quanto à emissão:
Percebe-se que entre os fonemas árabes que não encontram equivalência em português – /T/, /D/, /ƒ/, //, /h/, /÷/, /q/, /x/, ///, /l8 /, /t8/, /d8/, /D8/,
/s8/ –, há alguns que parecem ser mais candidatos à interferência de que os
outros. Entre esses, todos os enfáticos, exceto /D8/ podem ser articulados
pelos estudantes brasileiros como /l/, /t/,/d/ e /s/, uma vez que a ênfase é o
único traço que diferencia os dois grupos – traço esse inexistente em português. No caso do /D8/, que não encontra em português nem o correlativo
não-enfático – /D/ – , a dificuldade de articulação tende a ser maior e a
interferência manifestar-se-ia na produção de /z/, como veremos mais adiante.
Se se analisar /T/ e /D/, fonemas cuja zona de articulação é a
interdental, percebe-se que o papel da língua durante a articulação desses
dois fonemas é o de pressionar os dentes incisivos. Não existindo essa zona
articulatória no português, a língua pode passar para o ponto de articulação
mais próximo, tocando, assim, os incisivos por trás, o que resulta na articulação do /s/ e do /z/ – as duas alveolares surda e sonora, respectivamente
– visto que a única diferença entre esse par e /T/ e /D/ do árabe estaria na
zona de articulação (alveolar/interdental). Disso decorre, também, a tendência de articular /D8/ com /z/ ou até como [z8], ou seja, uma realização
enfática do /z/, por não encontrar uma correlativa não-enfática em português, como no caso das outras consoantes enfáticas.
Com relação aos outros fonemas inexistentes em português, excetuando as enfáticas e o par interdental discutidos acima, pode-se dizer que as
dificuldades manifestam-se diferentemente nos dois níveis: parece que //,
/÷/, /q/ e /// apresentarão dificuldade maior no nível perceptual do que as
outras /ƒ/, /h/ e /x/.Essas, no entanto, além de não existirem em português,
6
Ver “Contrastive phonology: Particle, Wave, Field”. IRAL, v. XXV/3, 1987, p.214. Neste
artigo, o autor tenta mostrar que se se aplicar a teoria tagmêmica à análise contrastiva,
pode-se estar construindo uma base teórica mais sólida do contraste, o que levará de um lado
a uma compreensão melhor das diferenças e semelhanças entre fonemas da mesma língua,
e do outro a resultados mais completos ou pelo menos a conclusões menos limitados.
- 165 -
JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS –
ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.
mostrarão grande dificuldade em nível de produção, o que pode ser explicado pela proximidade fonética.
É preciso, também, aludir aos fonemas e traços existentes em português mas não em árabe, que a princípio não deveriam causar dificuldades e
muito menos interferências. Mas estudando melhor, por exemplo, o fato da
existência de vogais nasais em português e sua ausência em árabe, aventase que tal fato pode levar a algum tipo de interferência – se a análise for
feita em termos distribucionais. As vogais árabes correm o risco de ser
nasalizadas pelos estudantes brasileiros quando seguidos pelas consoantes
nasais /m/ e /n/, fonemas existentes em ambas as línguas, mas cuja distribuição apresenta-se diferentemente na sílaba – lembrando que, em português,
essas consoantes não travam sílabas como o fazem em árabe. Portanto, é
possível que ocorra uma nasalização de vogais árabes sucedidas por fonemas
nasais; tal ocorrência pode ser observada no exemplo seguinte:
/bayta˘n/ ‘duas casas’ > /baytã/.
Um fonema existente em português, mas não em árabe é o /r*/, que se
define como vibrante múltipla opondo-se a /r/, vibrante simples. O /r/
árabe divide com o /r/ português todos os traços exceto o simples, obviamente pela ausência de um outro múltiplo. Mas, se se analisar, em termos
distribucionais, o fato do aparecimento da geminada em árabe, que se dá
sempre em contexto intervocálico – o mesmo contexto em que aparece o /
r*/ em português – e pelas próprias características articulatórias da geminada,
que dão a impressão de uma ‘realização múltipla ou dupla’, presume-se que
tal característica distribucional dos dois erres pode levar a uma dificuldade
de percepção da geminada /rr/, e até a sua confusão, em termos
articulatórios, com o /r*/.
Fazem-se necessárias, portanto, algumas considerações a respeito
de determinados casos que a análise contrastiva pode indicar – inclusive
aos casos descritos acima –, tentando verificar suas implicações para o
processo comunicativo.
Com relação à ênfase:
Sabe-se que a ênfase é uma característica articulatória inexistente
em português. Dessa forma, numa fase inicial, trará ao aluno brasileiro dificuldades tanto de percepção quanto de articulação. Todavia, como a ênfase
é um traço pertinente em árabe e distingue signos, a intenção de se comunicar em língua árabe fará que o aluno brasileiro se esforce para sanar tal
dificuldade rapidamente.
Com relação à nasalização das vogais árabes:
O inverso do descrito acima deve ocorrer com relação à dificuldade
em ‘não-nasalizar’ as vogais árabes que antecedem os componentes nasais
(/m/ e/ /n/). Em árabe, o traço nasal não existe como traço pertinente ou
·
·
- 166 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p.149-171, MARÇO,1997
distintivo; o aluno brasileiro, ao pronunciar as vogais orais do árabe como
nasais, no referido contexto, não estaria criando um novo signo, no máximo,
estaria realizando uma pronúncia errônea. Vê-se que sanar tal tipo de dificuldade será mais demorado, uma vez que não oferece graves prejuízos à
comunicação. Observa-se, ainda, que /m/ e /n/ não representam dificuldades articulatórias para o aluno brasileiro, que os emitirá perfeitamente quando não estiverem em posição pós-vocálica.
Vale ressaltar que, neste caso, a interferência do sistema gráfico das
duas línguas pode ser responsável pela falha na nasalização das vogais
orais do árabe antes do elemento nasal. Sabemos que, numa posição pósvocálica final de sílaba, /m/ e /n/ não existem em português, e que seus
respectivos grafemas – m e n – funcionam como índices de nasalização da
vogal precedente. No árabe, tais elementos existem numa posição pósvocálica e as letras que as representam também. Disso, aventa-se que a
provável nasalização das vogais árabes seja decorrente de uma transferência em nível de sistema de escrita. Para ilustrar o fato, escolhemos os exemplos seguintes: o m na palavra portuguesa selim indica apenas a nasalização
da vogal /i/, transcrevendo-se fonologicamente /seli/; enquanto o m da palavra árabe sali˘m trava a sílaba e não afeta a vogal anterior, representandose assim: /sali˘m/. Note-se que nessa posição o /m/ existe em árabe, mas
não em português, o que leva a crer que o aluno brasileiro, ao ‘transferir’ a
nasalização para as vogais árabes pode articular a palavra do exemplo acima como /saliÚ/, o que constituirá uma pronúncia errônea, porém não prejudicial ao processo de comunicação.
Com relação à duração da vogal.
A duração da vogal em árabe é um traço pertinente, enquanto em
português não é pertinente, conquanto exista. Vimos que isto pode levar a
algumas confusões da parte do aluno brasileiro. Em português, as vogais
são longas onde a sílaba é tônica, enquanto o acento, em árabe, é condicionado essencialmente pelas vogais longas.7 Uma transferência de regras do
acento português pode ocorrer e ser aplicada aos vocábulos árabes, o que
na maioria dos casos causará prejuízo à comunicação, uma vez que o traço
de duração da vogal é pertinente em árabe.8 Essa previsão pode ser verificada
·
7
8
Palavras constituídas de duas ou três sílabas breves tem o acento na primeira sílaba.
Sendo o acento um traço supra-segmental, não entraremos um detalhes, pois a nossa
pesquisa estudou apenas o nível segmental. Entretanto, uma vez que esta questão envolve
– do lado árabe – um traço segmental (a duração da vogal), cremos oportuno fazer menção
a este tipo de transferência possível que a AC pode indicar, apesar de estar tratando – do
lado do português – de um fato supra-segmental.
- 167 -
JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS –
ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.
em casos deste tipo: no vocábulo português /ka»nal/, o acento cai na segunda sílaba, enquanto na palavra árabe /»jamal/ ‘camelo’, o acento cai na primeiro sílaba. Se o aluno brasileiro transferir as regras de acentuação características da língua portuguesa correrá o risco de produzir um outro signo
/jaÈmaùl/ ‘beleza’. Neste sentido, então, dizemos que esta transferência
pode prejudicar a comunicação.
as semelhanças
A introdução de um [i] átono para separar os elementos de um grupo
consonantal, como em /pineu/ também pode ser considerado um tipo de
semelhança que leva a dificuldades. Ocorre que grupos consonantais
inseparáveis em árabe existem apenas em final de palavra – e quando esta
não estiver marcada pelo caso – podendo ocorrer, às vezes, a inserção de
um [i] átono entre os dois elementos provocando assim a separação dos
dois elementos em sílabas contíguas. O aluno brasileiro, desta forma, pronuncia [kalib] em vez de /kalb/ ‘cão’.9 Nesse caso, a comunicação não será
prejudicada, uma vez que tal desvio não leva ao surgimento de um novo
signo na língua.
Contudo, a nosso ver, o caso mais importante que se destaca dentre as
dificuldades causadas por semelhança e decorrentes da proximidade fonética
é o caso do /r*/ do português e, mais especificamente, suas variantes livres10.
Os traços o velar do [x] e o aspirado do [˙], que também são
comuns a alguns fonemas do árabe que não existem em português como /x/
e /h/, acabam configurando, de certo modo, semelhanças que podem trazer
interferências. Disso decorre que fonemas árabes serão confundidos com
variantes portuguesas e, conseqüentemente, com o próprio fonema que acusa
tais variantes. Em resumo, o estudante brasileiro pode se deparar com o
seguinte problema: perceber o /r/ árabe da mesma forma como [˙] do português e /x/ e /h/ do árabe como variantes do /r*/ do português, pois a articulação ‘garganteada’ do [x] (variante do /r*/) é semelhante aos sons guturais
[x] e [h] do árabe.
Tal confusão representa uma interferência decorrente de semelhanças fonéticas parciais e comuns a fonemas, de uma lado e a variantes, do
outro. Cremos que esse exemplo pode servir de alerta para o ensino de
língua estrangeira em geral, uma vez que semelhanças entre fonemas ou
alofones também podem indicar dificuldades e que o processo de aprendizagem pode sofrer interferências provenientes dessas semelhanças.
·
9
10
A vogal pode também ser [u] se a primeira vogal da palavra for /u/, como em /qut8b / >
[qut8 u b] (pólo).
Ver nota 5
- 168 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p.149-171, MARÇO,1997
Outro fato envolvendo fonemas semelhantes deve ser mencionado.
Referimo-nos à expressão fonética e ao conteúdo fonológico desses
fonemas. Se analisarmos o fonema /t/, constatamos que sua expressão fonética é interlingüística em ambas as línguas. Todavia, a definição de /t/,
isto é, seu conteúdo fonológico, suas oposições frente aos demais fonemas
de cada um dos dois sistemas é intralingüístico, variando em cada uma
das línguas citadas.
Em árabe, que conhece oclusiva, linguodental, surdas e sonoras e ainda enfáticas e não enfáticas, o conteúdo fonológico do /t/ é a sua diferença
em relação à oclusiva, linguodental sonora /d/ e à oclusiva, linguodental surda,
enfática / t8/. Em português, que só conhece oclusiva, linguodental e surda,
/t/ não há outro conteúdo fonológico além de sua diferença em relação à
oclusiva, linguodental e sonora /d/. O mesmo ocorre com relação ao /d/ que,
em árabe, se opõe tanto ao /t/ quanto ao /d8/. Em português, /d/ opõe-se
apenas ao /t/.
Com relação às fricativas, temos, em árabe, o /s/ opondo-se ao /z/ e
ao /s8/, enquanto, em português, essa oposição se restringe ao /z/. Contudo
nota-se que o /l/, em português, tanto se opõe ao /r/ e /r*/ como também ao
/¥/; em árabe, o /l/ opõe-se ao / l8 / e /r/.
Presume-se, portanto, que esse fato deve ser levado em conta, por
estar envolvendo elementos com expressão fonética semelhante, porém
conteúdo fonológico diferente, o que pode servir também de alerta durante
o processo de ensino/aprendizagem da língua árabe por alunos brasileiros,
principalmente em termos articulatórios.
Parece que a maioria das dificuldades não reside na presença de um
elemento numa língua e sua ausência em outra, mas sim, na proximidade
fonética entre fonemas ou sons e na distribuição diferente de fonemas e
sons iguais nas duas línguas, como ainda, nas oposições que envolvem
esses fonemas em relação aos outros do mesmo sistema.
Deve-se, enfim, fazer algumas referências à parte que toca o docente no processo de ensino/aprendizagem. O primeiro ponto importante a ressaltar é o seguinte: deve-se ter consciência que o melhor meio de ensinar
um sistema fonético ou fonológico de uma língua estrangeira é fazê-lo através de contrastes. As pesquisas sobre este aspecto têm indicado eficiência
e resultados positivos. Dessa forma, considere-se importante que o docente
de língua árabe tome algumas atitudes durante o processo de ensino/aprendizagem:
· ensinar sempre os fonemas por meio do contraste entre os elementos das duas línguas e entre os elementos da mesma língua;
- 169 -
JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS –
ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.
· ensinar tais fonemas dentro de vocábulos ou ao menos na sílaba;
· fazer que o aluno ouça várias vezes a mesma pronúncia;
· fazer que o aluno repita várias vezes a mesma pronúncia até chegar
mais próximo da articulação desejada;
· mostrar ao aluno a diferença que há entre fatos interlingüísticos e
intralingüísticos (expressão fonética e conteúdo fonológico);
· insistir, sobretudo, no contraste enfático/não enfático;
· insistir, no caso das vogais, em pares contrastivos que evidenciem a
duração;
· fazer que os alunos repitam os fonemas dentro de sílabas ou pala
vras logo após o professor;
· fazer com que o aluno tenha acesso – quando possível – à fala
nativa;
· ter consciência de que não só as diferenças podem provocar dificuldades mas também as semelhanças.
C ONCLUSÃO
O contraste efetuado entre os traços fonológicos em nível segmental
pode indicar algumas áreas problemáticas no processo de ensino/aprendizagem da língua árabe por alunos brasileiros, além de alertar para certas
interferências que possam ocorrer, provocadas não só pelas diferenças, mas
também pelas ‘falsas semelhanças’ que se configuram através da distribuição diferente dos fonemas ‘comuns’ e pela proximidade fonética. O contraste, da forma que foi efetuado, pode – apesar de teórico – resultar em
algumas sugestões práticas que tanto possibilitariam a composição de um
modelo lingüístico-pedagógico para a melhoria do ensino dos aspectos fonético-fonológicos, quanto a elaboração de materiais didáticos que orientem a
atividade docente no processo, oferecendo bases mais firmes na utilização
de técnicas associativas e contrastivas.
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FLEISCH, Henri. L’Arabe classique: esquisse d’une structure linguistique. Beyrouth, Dar
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- 171 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 173-176, MARÇO,1997
A MÚSICA POPULAR ISRAELENSE – UM
PRODUTO PLURICUL
TURAL
PLURICULTURAL
Eliana Rosa Langer
A música não é um mero arranjo de sons baseados em intervalos
definidos. A música é, também, a linguagem do sentimento e também o
reflexo de experiências culturais.Todo povo possui canções que o acompanham ao longo de sua história, algumas das quais podem nos revelar eventos reais e situar-nos no tempo em que os mesmos se deram.
O povo judeu, em especial, tem uma ligação profunda com a música.
Esta tradição musical aparece nos diversos segmentos da mesma, passando
pela música litúrgica, seguindo pela clássica e alcançando a popular.
O canto litúrgico tem um papel muito importante na vida dos judeus
desde os tempos mais remotos, haja visto os instrumentos musicais descritos na Bíblia, utilizados nos serviços religiosos do Templo Sagrado. Esta
musicalidade religiosa é parte integrante do culto da sinagoga e estas liturgias
fazem parte da vida de todos os judeus, inclusive dos não religiosos, servindo-lhes de fator de integração e de identificação.
Todo músico traz consigo o espírito de seu tempo e de seu ambiente,
sendo o elemento mais importante de sua criação artística, a sua bagagem
cultural trazida do lar de seus pais. As primeiras gerações em Israel trouxeram consigo o peso da cultura que os havia nutrido, apreciavam seus valores
e procuravam dela extrair a substância. Nos anos que precederam o estabelecimento do Estado de Israel (1948) até o início do século, os meios de comunicação ainda não haviam se desenvolvido, portanto a cultura vinda com cada
imigrante era o ingrediente mais importante para a criação artística.
Os israelenses são conhecidos pelo seu grande amor à música. Dizse que basta colocar um violão nas mãos de um “sabra”1 ou oferecer-lhe
um “khalil”2 ou um acordeon, e fazer com que todos se sentem ao redor de
uma fogueira na praia ou no campo, ou numa sala elegante, ou num refeitório coletivo de um “kibutz”3 ou ainda num barzinho de Tel-Aviv, numa sextafeira à noite, para que o ambiente se encha de canções.
1
2
3
Pessoa nascida em Israel. É o figo da índia, fruta que possui espinhos por fora e é doce por
dentro, símbolo do temperamento do nativo israelense.
Flauta doce, instrumento muito popular em Israel.
Colônia agrícola coletiva, criada em Israel para a ocupação e cultivo do solo. É um tipo de
assentamento peculiar ao estado judeu.
- 173 -
LANGER, Eliana Rosa. A MÚSICA POPULAR ISRAELENSE - UM PRODUTO PLURICULTURAL.
A música desempenhou um papel muito importante na cultura israelense quando esta buscava uma identidade. Nos anos 20, a vida musical de
Israel apenas começava e havia indagações a respeito do rumo que deveria
tomar e das formas a serem adotadas, pois o povo que chegara ao país era
proveniente de locais bastante distintos com culturas muito diferentes.
Os artistas deveriam ser os porta-vozes da sociedade, expressando
seus sofrimentos, suas alegrias e seus costumes. Através de melodias judaicas, litúrgicas e os “nigunim”4, a identidade nacional seria expressada. A
música de Israel deveria ser a ponte entre as diversas culturas musicais que
ali chegaram e se amalgamaram. O povo judeu, ao retornar a seu país após
milênios de exílio, deveria desenvolver uma música que retratasse os países
da dispersão.
Inicialmente, procurou-se integrar os elementos da música do oriente
e do ocidente. Esta integração porém, deu-se de forma artificial. Músicos
que não haviam se formado na cultura oriental decidiram compor em língua
hebraica para conjugar sua composição com o oriente. Em outros casos,
músicos de origem oriental compunham música ocidental que, por sua vez,
era interpretada por cantores cuja origem étnica geralmente era oriental.
Tivemos também a unificação da música yemenita, trazida pelos judeus provenientes do Yêmen, com a de outros grupos étnicos com a intenção de formar um estilo israelense. O resultado foi uma canção yemenita de
influência européia, sendo que somente a pronúncia se manteve.
As técnicas modernas e uma linguagem de movimento integrado foram combinadas com temas e conteúdos tomados da vida yemenita e de
outros grupos étnicos: a bíblia, o deserto, o cultivo de terra e outros temas.
Porém, como já dissemos, a música é a linguagem do sentimento, e a
adoção de uma cultura musical no lugar de outra implica a adoção de uma
série de valores e símbolos e não apenas alguns retoques externos.
Hoje em dia, esta fusão de elementos orientais e ocidentais já faz
parte de forma espontânea da criação dos artistas. As melodias orientais, os
cantos litúrgicos sefaraditas, os “nigunim” da Europa Oriental deixaram de
ser algo exótico para o povo nascido e criado em Israel, não se constituindo
em fontes para serem citadas, tornando-se parte inseparável da experiência
do povo israelense.
Não podemos ignorar os motivos ideológicos que envolvem os laços
entre o passado do povo judeu e o seu retorno à língua ancestral, o qual, sem
dúvida, proporcionou a muitos compositores meios especiais de expressão.
4
Melodias judaicas tradicionais da Europa oriental.
- 174 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 173-176, MARÇO,1997
A canção hebraica, segundo Hirshfeld5, especialista em literatura
hebraica, é uma mistura de elementos de música popular e de música artística, pois seus compositores tinham uma formação clássica e eram ouvintes
e apreciadores de Bach, Beethoven e outros.
Para aqueles que não conhecem bem a história de Israel, o fato da
maioria das canções israelenses terem por tema a “ânsia pela paz e a tristeza pelas perdas advindas de guerras” poderá causar certa estranheza, porém, isto se deve à história de Israel se basear na luta pela existência. O
cotidiano do povo israelense, desde sua criação, tendo sido pautado por
crises, fez com que a música tenha sempre representado um refúgio para
sua alma.
Tais canções são conhecidas por cantos da “velha e boa terra de
Israel”. É a nostalgia que enche os corações, cantos entoados na juventude,
que retratam os esforços dos primeiros anos de colonização, como também
os amores da adolescência. Muitos deles retratam a terra e sua natureza, as
estações do ano, os campos, ovelhas com seus pastores e flautas.
É difícil definir o que caracteriza a canção israelense. Há quem distinga dois tipos:
1. “Canção hebraica” – que remete aos “cantos da velha e boa Israel”, cujas melodias são geralmente uma adaptação das melodias eslavas
trazidas pelos primeiros compositores do país. Através desta canção cantada em conjunto, revive-se a camaradagem dos tempos passados, e cultuase a fraternidade. A Bíblia, a qual ajudara na preservação da peculiaridade
do povo judeu por milênios, servia agora de fonte para o lirismo e para o uso
da língua hebraica, tornando-a carregada de sofrimento e santidade.
Uma vez que os judeus viviam realmente em Israel, eles alegravamse e entristeciam-se no país, amando-o. Surgiu então, a necessidade real de
cantar sobre assuntos seculares em um idioma cotidiano, o hebraico israelense. Durante a Guerra da Libertação (1948), cantava-se o heroísmo, o
amor à pátria, a memória de camaradas caídos. Enfatizava-se a melodia e a
mensagem do texto.
2. “Canção em hebraico” - que são as músicas cantadas em hebraico,
embora sejam adaptação de melodias e ritmos derivados da música popular
5
Ariel Hirshfeld, professor de literatura hebraica na Universidade Hebraica de Jerusalém.
Alusão à palestra proferida no Workshop sobre “As camadas lingüísticas na nova canção
hebraica: usando a música no ensino de hebraico”, o qual foi realizado na Universidade de
Jerusalém em julho de 1996.
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LANGER, Eliana Rosa. A MÚSICA POPULAR ISRAELENSE - UM PRODUTO PLURICULTURAL.
importada da cultura ocidental. Quando não havia melodias acessíveis de
imediato, eram tomadas por empréstimo melodias francesas. Mais tarde, à
medida que os meios de comunicação foram se desenvolvendo, os músicos
foram absorvendo as influências exteriores, os Beatles e a música americana. Os músicos utilizavam então, melodias já conhecidas e a elas juntaram
seu toque pessoal.
A canção hebraica tomou vários rumos divergentes. Quanto mais o
mundo se torna uma aldeia global, tanto maior é a variedade de estilos musicais adotados em Israel, sendo que quase todos esses estilos, uma vez
gravados neste país, possuem também elementos orientais.
Nos últimos vinte anos a noção de pluralismo cultural e musical progrediu, permitindo que diversos grupos culturais se expressem da maneira
que julgarem mais apropriada. Isto se dá tanto em meio aos grupos étnicos,
como em composições artísticas musicais. Pode-se dizer, portanto, que a
música contemporânea israelense soube perceber a brecha entre o oriente
e o ocidente criando uma ponte entre ambos, tornando possível uma
integração de todos os elementos das culturas musicais que se encontram
em Israel: oriente, ocidente, branco, negro, clássico, popular, antigo, moderno, secular e religioso.
BIBLIOGRAFIA
SHILOACH, A. Fontes Orientais na Música Israelense. In: Ariel, revista de artes e letras de
Israel, n0 88, Jerusalém, 1993.
LENTZ, D. A Canção Hebraica Popular In: Ariel, revista de artes e letras de Israel, n0 92,
Jerusalém, 1993.
ZIMMERMAN, A. B’ron yahad (cantando em conjunto), ensaios, pesquisa e notas sobre
o canto litúrgico e a música judaica. Tel-Aviv, Ed. Arquivo Central de Música Litúrgica,
1988.
Anotações provenientes de Workshop realizado em Julho de 1996 na Universidade Hebraica
de Jerusalém - “As Camadas Lingüísticas na Nova Canção Hebraica: utilizando a canção
no ensino de hebraico.”
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 177-183, MARÇO,1997
SOBRE A POSIÇÃO DO ARMÊNIO
DENTRO DO INDO-EUROPEU
Sandra Maria Silva Palomo
A língua armênia faz parte do grupo lingüístico indo-europeu. Constitui importante campo de estudo para a Lingüística Comparativa Indo-Européia e, também, importante campo de estudos lingüísticos-históricos, relacionados com a lingüística e história dos povos do Oriente Próximo e Médio.
O armênio é um ramo independente dentro da família das línguas
indo-européias e não possui derivados. Pertence ao grupo asiático dessa
família e configura-se como um tipo particular, entre o grego e o irânico. Em
várias tábuas genealógicas das línguas, o armênio é qualificado como “grupo isolado” dentro do grupo indo-europeu.
O problema da posição do armênio como um ramo especial na família indo-européia surge com os trabalhos do lingüista alemão H.Hübschmann.
Por muito tempo, tomou-se o armênio por um dialeto indo-irânico, devido ao
grande número de palavras e sufixos persas existentes no seu vocabulário.
Hübschmann foi o primeiro a ir contra esta opinião, demonstrando que o
armênio é um idioma independente e distinto.Suas teorias são aceitas pela
maioria dos lingüistas. Segundo elas, a base do armênio é indo-européia,
estando, do ponto de vista fonético, no centro do ramo europeu dessa família lingüística, entre o eslavo-lituano e o albanês; quanto ao vocabulário,
entretanto, oferece semelhanças com o grego.
A. Meillet considera que se deva colocar o armênio no grupo oriental
do indo-europeu, mas que está relativamente próximo do grupo ocidental.
Segundo este autor, o armênio preservou características do indo-europeu,
como os casos gramaticais e a flexão dos substantivos; por outro lado, reconhece em sua estrutura , tanto fonética quanto morfológica, forte influência
caucásica.
Para o professor Y.O.Kerouzian, a posição do armênio dentro da
família indo-européia é de um membro isolado, devido aos laços étnicos de
seu povo com o mundo ocidental e a sua integração definitiva no mundo
oriental do Oriente Próximo. Diz o autor que, pelo seu vocabulário, semelhanças fonéticas e pelas leis gramaticais (derivação e formação de palavras, sistema de declinação dos substantivos e de conjugação de verbos ), o
armênio apresenta afinidades com o sânscrito, o frígio, o urartur, o grego, o latim e o germano-báltico.
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PALOMO, Sandra Maria Silva. SOBRE A POSIÇÃO DO ARMÊNIO DENTRO DO INDO-EUROPEU.
Até hoje, há muitas discussões sobre a posição do armênio dentro do
indo-europeu. As causas do armênio ser considerado um idioma tão “particular” podem estar baseadas em fatos históricos, através dos quais é possível analisar as várias conexões lingüísticas entre ele e os diversos povos que
participaram de sua existência, através dos tempos.
Vários cientistas consideram que as particularidades do idioma provêm da localização geográfica da Armênia.
Até os anos setenta, a opinião geral, orientada pelos etnólogos ocidentais, colocava o berço dos indo-europeus fora da Ásia Menor. Estudos
modernos de pesquisadores armênios, georgianos e russos, realizados em
torno de algumas centenas de línguas, chegaram a localizar e estabelecer a
região do Cáucaso como o verdadeiro berço dos indo-europeus. Foi daí que
eles se dispersaram rumo ao Ocidente (continente europeu) e ao Oriente
(continente asiático-Índia). A Armênia constitui componente geográfico deste
berço; donde o caráter indo-europeu de sua língua e a afinidade desta com
o grego, o latim, o alemão, o inglês, o eslavônico e o longínquo sânscrito.
Mas a Armênia, além de sua vizinhança com o oeste da Anatólia, é fronteriça
também com o mundo iraniano, no leste e com o semítico, no sul. Deste
convívio resultou, no armênio, a formação de um conjunto vocabular “ paralelo”, não indo-europeu, e uma fonética abrangente.
O cientista soviético T.H.Toporov, em sua tese “O antigo armênio à
luz da reconstrução indo-européia,” considera paradoxal a situação do
armênio no grupo indo-europeu. Como ele, muitos pesquisadores vinculam
o interesse investigativo pelo idioma armênio à busca da protopátria dos
indo-europeus.
A gramática comparativa histórica das línguas indo-européias, e, por
conseguinte, a reconstrução da protolíngua, por muito tempo contentou-se
apenas em discutir no armênio os elementos indo-europeus e indicar suas
correspondências. Isto deixava obscuros e incompreensíveis muitos dados
manifestados nas várias teorias que explicavam a origem do armênio.
Tal incompreensão tem sua lógica e história. Durante longo período,
a indoeuropeística baseou-se no sânscrito, segundo o qual se definia o grau
de antigüidade de um ou outro fato lingüístico.
Mas quando, no século XX, descobriram e estudaram muitas línguas
mortas da Anatólia antiga, como o hitita e o lúvio, estas se revelaram mais
antigas que o sânscrito. Agora já se pode falar com certeza que o próprio
sânscrito mudou muito em comparação com a protolíngua indo-européia.
Por outro lado, o hitita e o lúvio fizeram os estudiosos ver o armênio de uma
maneira nova. É que foram descobertos no armênio, fenômenos, por sua
natureza, mais antigos que em qualquer outra língua indo-européia atual- 178 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 177-183, MARÇO,1997
mente existente e inclusive em algumas línguas mortas, como o próprio
sânscrito. Por exemplo, o sistema das consoantes conservou no armênio
muitas particularidades da protolíngua indo-européia. É interessante o grupo
de sons indo-europeus, chamados guturais, que se conservaram nos dialetos
armênios contemporâneos. Desse modo, o caráter exclusivamente arcaico
do armênio fica comprovado pelo fato de que nele o sistema de fonemas
antigos do indo-europeu permaneceu mais completamente e por mais tempo, sendo que o quadro inicial das oclusivas nem ao menos sofreu mudanças
fonológicas consideráveis.
Não menos interessante é o caso das vogais laringais. Ainda no século passado, as laringais, teoricamente, foram reconstruídas pelo lingüista
suíço Ferdinand Saussure. A teoria influiu enormemente na lingüística indoeuropéia, mas durante muito tempo não se confirmou nas línguas conhecidas. Só passados cinqüenta anos de sua publicação, essas vogais foram
descobertas no idioma hitita, então decifrado, e logo no armênio. É surpreendente que a língua armênia seja a única das línguas indo-européias vivas,
na qual estes sons ainda hoje existam.
Todos estes fatos demonstram a importância da compreensão de que
o armênio conservou em si uma profunda antigüidade. Por isso, não se parece tanto ao sânscrito e é visivelmente mais isolado na família das línguas
indo-européias. Pelo mesmo motivo, as pesquisas sobre o armênio adquiriram, na atualidade, uma significação particular.
T.Gramkrelidzé e V.Ivanov, co-autores da obra “Os indo-europeus e
seu idioma.”, em russo, publicada em 1980, pela Universidade de Tiflis,
citam provas convincentes de que os portadores da protolíngua indo-européia habitavam o norte da Ásia, precisamente entre as atuais regiões da
Turquia Oriental (região da antiga Armênia), norte da Síria, norte do Iraque,
noroeste do Irã, entre os lagos Van e Urmia, ou seja, parte do território do
qual a Armênia foi elemento geográfico.
Próximas à protopátria, permaneceram as tribos que falavam em dialetos anatólios ( hitita, lúvio, palayo) e também em língua protoarmênia. Já
nas inscrições hieroglíficas lúvias, há menção do homem do país de Hay, e
nos textos hititas cuneiformes, fala-se do país montanhoso “ Hayasa”. Ambas
as referências dizem respeito à região onde veio a se constituir o Estado
Armênio. Junto à protoarmênia integram, dentro da língua indo-européia,
num mesmo grupo dialetal, a protogrega e a protoiraniana.
Desta maneira, naquele passado remoto, o armênio estava ligado aos
antigos dialetos indo-europeus e é evidente que novas investigações de sua
história são muito importantes para resolver várias questões não aclaradas da
lingüística indo-européia, assim como as da própria história dos indo-europeus.
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PALOMO, Sandra Maria Silva. SOBRE A POSIÇÃO DO ARMÊNIO DENTRO DO INDO-EUROPEU.
O jovem cientista F.Cortland, em sua exposição sobre a origem da
declinação armênia, examinou quinze etapas do desenvolvimento das
desinências de caso da protolíngua indo-européia no armênio clássico. Demonstrou que , em alguns casos, o armênio serve de eslabão na reconstrução das desinências de caso de outras línguas protoindoeuropéias, tais como
a protogrega e a protoindoiraniana.
O estudo do idioma permite comprovar com quem se avizinhavam os
armênios no transcurso de sua história antiga. Além dos hititas, iranianos,
etc., entre os seus vizinhos figuravam também povos não indo-europeus,
hurritas eurartianos, o que é testemunhado pelos empréstimos destas línguas ao armênio. Por sinal, recentemente, vários empréstimos do urartiano
foram descobertos por G.B.Dzhahukian e apresentados em sua obra “Gramática Comparativa da Língua Armênia.”
No livro escrito por Gramkrelidzé, dedicado à busca da protopátria
dos indo-europeus, está apresentada uma espécie de enciclopédia da vida
dos indo-europeus, elaborada com base numa análise do vocabulário da
protolíngua, referente a três grupos nacionais importantes: meio de habitação, cultura material e espiritual e organização social, comentada com dados de outras ciências, tais como a arqueologia, antropologia, história, etc...
Existem entre estes dados, testemunhos materiais encontrados no território
da Armênia.
Percebe-se a necessidade urgente de que os cientistas estudem o
armênio em toda a trajetória de sua história, desde a comunidade indo-européia, data de V-IV milênios a.C.
Torna-se imprescindível, aqui, a referência a G.B.Tchahuguian, lingüista armênio, que tratou profundamente da questão sobre a posição do
armênio dentro do indo-europeu.
Segundo ele, ao falar sobre a posição do armênio, os indo-europeístas
confundem duas coisas: de um lado, o lugar do dialeto armênio primitivo no
indo-europeu primitivo, na época da unidade; de outro, o relacionamento do
armênio, na qualidade de língua separada e formada, numa de suas fases
determinadas ( geralmente a do armênio antigo clássico, dispondo de escrita
própria ), com outras línguas indo-européias.
No primeiro caso, precisam ser determinados os elementos arcaicos,
características dele no período da unidade; enquanto que, no segundo caso,
devem ser consideradas, junto com as características arcaicas, as novas
características, surgidas devido aos contatos do armênio no passado.
Por outro lado, ainda de acordo com Tchahuguian, não se pode
desconsiderar que o armênio não se tornou independente num prazo rápido,
mas permaneceu num complexo lingüístico, o ariano (indo-iraniano) - grego
- 180 -
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 177-183, MARÇO,1997
- armênio, e adquiriu características deste complexo, para depois entrar no
seu próprio processo de evolução.
Outra falha das pesquisas até agora, conforme Tchahuguian, é o fato
constante de não se levar em consideração as afinidades entre as línguas.
Entre os seus trabalhos, há um – sobre paralelismos fonológicos –
onde procura mostrar os graus de afinidade entre o armênio e quinze dialetos indo-europeus. As características consideradas por Tchahuguian dizem
respeito a consoantes, vogais e soantes, levando-se em conta fatos lingüísticos
referentes ao mais antigo e notório representante de cada grupo. De acordo
com a quantidade de características fonéticas e fonológicas gerais, os grupos lingüísticos envolvidos apresentam graus variados de afinidade com o
armênio, aqui apresentados do mais próximo ao mais distante:
1º)
2º)
3º)
4º)
5º)
6º)
7º)
8º)
9º)
10º)
11º)
12º)
13º)
14º)
15º)
grego
frígio
trácio
eslavônico
iraniano
báltico
céltico
germânico
hitita
tocário
ilírico
albanês
indiano
vêneto
itálico
Tal resultado difere dos apresentados por G.R.Solta, que desenvolveu estudo com o mesmo objetivo e com os mesmos dialetos, porém em
relação a paralelismos lexicais. Cumpre notar, também, que se reavaliarmos,
em cada grupo, as características que para Tchahuguian trouxeram dúvidas, teremos algumas diferenças como, por exemplo, a aproximação do
tocário e do ilírico e o distanciamento do céltico em relação ao armênio.
Além disso, o frígio ficaria em primeiro lugar e o grego, em segundo.
Esta breve exposição demonstra, sem dúvidas, que os estudos sobre
o idioma armênio devem continuar tratando de duas questões interessantíssimas, entre outras: 1) o papel dos dados lingüísticos armênios para os estudos indo-europeus e 2) a situação particular do armênio dentro do indoeuropeu.
- 181 -
PALOMO, Sandra Maria Silva. SOBRE A POSIÇÃO DO ARMÊNIO DENTRO DO INDO-EUROPEU.
BIBLIOGRAFIA
KEROUZIAN,Y.O. A Literatura Armênia nas primeiras décadas do século XX. In Yeeghishé
Tcharenz e a Moderna Literatura Armênia. Tese de livre docência apresentada ao Departamento de Lingüística e Línguas Orientais da FFLCH-USP. São Paulo, edição
mimeografada, 1972.
MEILLET,A. Esquisse d’une Grammaire Comparée de l’Arménien Classique. Vienne,
Imprimerie des pp. Mekhitaristes, 1936.
TCHAHUGUIAN,G.B. História da Língua Armênia : Período Pré- Escrita. Yerevan,
Publicação da Academia de Ciências da Armênia. ( em armênio ), 1987.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 177-183, MARÇO,1997
1. A Revista de Estudos Orientais
A REO publica matérias referentes à Cultura Oriental em múltiplos níveis
de análise, abrangendo seu relacionamento com a Cultura Ocidental.
2.
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3.
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laudas, com 30 linhas e 70 toques cada
3.2 O autor deve apresentar, junto com o artigo, as palavras-chave e o
abstract, ambos em português e inglês.
3.3 O autor deve encaminhar também breves referências curriculares
(titulação, instituição de origem, trabalhos publicados...).
- 183 -
Título
REVISTA
DE ESTUDOS ORIENTAIS Nº 1
Normalização Técnica
Margarida M. de Souza - SBD/FFLCH-USP
Editoração Eletrônica
Caligrafia da Capa
Walquir da Silva
Hassan Massoudy
Revisão
Arte-final e Capa
Secretaria Gráfica
Divulgação
dos Autores / Simone Zaccarias
Erbert Antão da Silva
Eliana Bento da Silva Amatuzzi Barros
Humanitas Livraria – FFLCH/USP
Formato
16 x 22 cm
Mancha
11,5 x 19 cm
Papel
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cartão branco 180 g/m2 (capa)
Impressão da capa
Impressão e Acabamento
Quadricomia
Seção Gráfica – FFLCH/USP
Número de páginas
184
Tiragem
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