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Transcrição

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L. C. Iuras
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Loucura Reversa trata-se de um conjunto de 50 crônicas escritas a partir de descobertas realizadas pelo autor, num período de
tratamento psicológico (metodologia de Carl Gustav Jung), em que
memórias e causas são resgatadas, ligando-as aos seus efeitos.
Carregados de sentimentos e de mensagens esotéricas,
os textos remetem ao crescimento do ser humano em toda a
amplitude desse sentido.
No trabalho de aproximadamente dois anos, o paciente,
também autor deste livro, entrou num processo de imersão no
seu inconsciente, revivendo e lapidando as memórias,
trazendo luz suas verdades.
No início dos trabalhos, recebi alguém numa armadura,
com cadeados, buscando sempre a chave, ou seja, a aprovação
que teria que vir necessariamente de fora.
Neste processo de an¡lise, baseado num conjunto de sintomas e sentimentos, buscou-se origens, primeiro falando, depois escrevendo, com o objetivo de resgatar as lembranças, tirar
lições e vivenciar transformações, porque só há transformação
quando há entendimento.
No decorrer das consultas, mergulhos rasos foram tentados, aprofundando-se aos poucos, evitando-se assim
grandes choques. Relembrando memórias, as histórias de
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Pref acio
L. C. IuraS
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Semanas se sucediam e de analisado o autor passou a
analisar os próprios fatos trazidos à tona, tornando-se aos poucos
seu próprio guia.
Mesmo com a enorme dependência da aprovação de um
pai que não mais existia nesta vida terrena, mesmo sentindo e
ressentindo tudo de novo nestas buscas, mergulhos e tempestades de lembrança, não houve desvios, o trabalho foi constante e
objetivo. A descoberta de que era maior do que se enxergava foi
o resultado.
Com esTa descoberta o paciente permitiu-se ser
simples, dançou quando teve vontade, cantou sem ter
vergonha, viveu por si mesmo, abriu os cadeados e despiu-se
da armadura!
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LouCuRa rEVERSA
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9
Recordações vamos sempre ter, mas lições...
Estive em contato com uma natureza grandiosa nesta
última semana, fazendo escalada, e fui buscar no passado uma
lembrança e um sentimento que estava quase esquecendo.
Tinha eu por volta de cinco anos e estava passeando de
carro com meu pai num Mercedes 51, preto, o verdadeiro calhambeque. Íamos, como sempre, em silêncio, por uma noite
clara, mas não muito quente ņ recordo-me de que sentia o frio
pelos ossos, e ele, de súbito, encostou o carro.
Não consigo precisar o local, mas era em São Paulo, lá pelos lados de São Mateus. Era logo após uma curva à esquerda; no
acostamento havia uma pedra enorme, uma rocha. Meu pai desceu do carro e começou a olhar em direção ao céu; eu desci também e imitei-o, como sempre fazia. Vi uma lua enorme, agora sei
que era lua cheia, e o céu estava estrelado, cintilante, poderia eu
dizer. A lua, ah a lua, essa estava linda! A primeira vez que via esse
astro com o verdadeiro tamanho e significado que tinha. Ficamos
alguns minutos contemplando-a e depois, do mesmo modo que
chegamos, partimos, em silêncio.
Aquela noite iluminou minha alma e, assim como os poetas, me apaixonei pela lua. Simbolicamente, algo que se pode
admirar e nunca tocar; eu andava e a olhava, contudo, ela nunca
ficava mais próxima, por mais que tentasse me aproximar dela.
Lua
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Talvez por isso meus simples brinquedos de infância,
como aquele distintivo de xerife e o pequeno revólver de plástico que vinham na maria-mole, eram tão importantes para mim.
Talvez, aquele carrinho de ferro, que uma tia me dera, usado,
todo descascado, que eu pintara com esmalte de unha tenha
sido meu melhor carrinho. Talvez por isso a tampinha do refrigerante Cuca, que era o maior artilheiro da história do meu
campeonato de tampinhas, ao desaparecer misteriosamente da
minha coleção, me deixou tão triste.
Coisas a se alcançar! Se fosse só esse meu legado seria
triste, não é? Mas não foi. Outras lições puderam ser tiradas no
silêncio.
Meu pai me levou ao pedalinho em Águas de Lindóia, fomos pescar na represa Billings. No terreno baldio da esquina, me
ensinou que a Maria-pretinha, frutinha silvestre, era deliciosa e
muito doce. (Voltei inúmeras vezes procurando no mato essa guloseima). Outra vez ele levou-nos, eu e minha irmã, a um descampado, próximo de nossa casa, para nos mostrar aquela plantinha
que fecha quando a gente encosta nela. E o que dizer de me ensinar a identificar morangos silvestres, enquanto pescávamos?
Posso confessar que muito tempo antes de meu filho nascer, aguardei a oportunidade de repetir aquela parada para olhar
a lua. Acho que farei só um pouquinho diferente do que meu pai
fez: vou abraçar meu filho e, enquanto olho a lua, apaixonado, vou
derramar lágrimas, como estou fazendo agora. Porque a vida é assim, deliciosamente imprevisível e apaixonante, como este emaranhado de sentimentos, que uma hora faz a felicidade inatingível
e, na maioria dos momentos, coloca-a ao alcance das mãos.
n
LouCuRa rEVERSA
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Minhas memórias não são lineares, às vezes, me vêm em
uma ordem que não faz sentido num primeiro momento, mas...
Essa aventura, em particular, aconteceu faz uns dez anos...
Noite de sexta para sábado, morávamos eu e a Cristiane em um apartamento no décimo quinto andar, no conjunto
São Francisco, na Luiz Latorre, Jundiaí. Fui me deitar mais tarde,
estava pouco antes assistindo TV, sozinho na sala. Como quase
sempre, a tempestade de ideias e o resumo do dia começaram
a pipocar sem controle na minha mente, pronunciando que o
sono demoraria muito a vir.
Coisa absurda, em poucos minutos escutei a escada de
alumínio que ficava na lavanderia cair. Pensei: deve ter ficado
encostada em algo e o vento a derrubou. Em seguida, ouvi a escada cair novamente. Confuso, chacoalhando minha esposa perguntei se teria ouvido, e ela, acordando, nem me dando muita
atenção, disse: ”A escada deve ter caído”. Eu, meio assustado,
mas sem perder o meu humor muitas vezes ácido, perguntei em
retórica: “Quantas vezes a escada pode cair?”. Porém, antes de
achar graça de mim mesmo, outros sons irromperam. Inicialmente, as portas do guarda-roupa do quarto de vestir começaram a dar sinal de vida, como se alguém o torcesse ou tentasse
abrir suas portas; em seguida, um som vindo do banheiro, como
se fosse a tampa do vaso sanitário sendo levantada e solta.
Poltergeist
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Nesse momento, corri mesmo confuso, até a porta do
quarto para trancá-la com a chave. Imaginei que fosse um ladrão, mas, esquisito, 15º andar, como alguém teria entrado tão
logo fui me deitar? Talvez estivesse à espreita. Não ouvi barulho na porta de entrada! Depois pensei, pode ser um rato saindo do esgoto, pelo banheiro. Mas como? Barulhos em cômodos
diferentes, muito rápidos e muito altos para ser um rato; a essa
altura, o quarto usado como escritório, onde ficava o computador, já tinha sido atacado e, pelo barulho, muitas coisas tinham
voado pelo chão. Já estava concebendo um poltergeist. Abaixeime para olhar por debaixo da porta e nada de luzes, nem uma
lanterna. Como poderia ser um ladrão? Olhei pela janela do banheiro da suíte e nada de vultos ou luzes. A Cris não se arriscou
a dizer uma palavra, já completamente acordada e tão assustada
quanto eu. Comecei a pensar que, se meu pai estivesse ali, faria
algo. Sempre destemido, o que será que ele faria? Sem chance
de essa hipótese acontecer, ele não estava lá, eu era o homem
da casa e os barulhos não paravam. Olhei para o mancebo que
tínhamos no quarto e removi a parte superior dele, parecia um
taco, um galho de árvore, sei lá, mas me armei e, no máximo do
meu medo, coloquei a mão na chave da porta e decidi usar o elemento surpresa — abri a porta subitamente, batendo a mão no
interruptor do corredor, gritando como um alucinado: “QUEM
ESTÁ AÍ?”. Acho que acordei uns dois andares com minha exclamação. Corri para cima do seja lá o que fosse...
Olhos muito grandes me fitavam, brilhando na penumbra, para minha surpresa, assustados como os meus... Uma bela
e grandiosa coruja me olhava do braço da poltrona do quarto do
computador.
Minha mente juntou os fragmentos de sons e minha imaginação agora se juntavam à luz da razão. A coitadinha da coruja
entrou pela janela basculante da cozinha e deu de cara com a
escada de alumínio, que ficava sempre encostada naquela loca-
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lidade. Desgovernada, derrubou tudo que estava sobre a geladeira e bateu de volta na escada, tentando sair por onde entrara.
Provavelmente, ainda tonta, voou pelo quarto de vestir e chocou-se contra o guarda-roupa, espalhando-se por suas portas.
Em seguida, voando por uma rota paralela, bateu contra o boxe
do banheiro, caiu sobre a tampa do vazo, daí aquele barulho que
ouvira. Tentando se recuperar, voou novamente dessa vez em
diagonal, e achou o quarto do computador, onde derrubou simplesmente tudo que estava sobre o armário, disquetes, porta-lápis, tudo. Finalmente cansada, repousou sobre o braço do sofá
desse último cômodo.
Um Homem acuado é muito perigoso, vence medos, tira
forças do seu âmago. Hoje perdi o medo do escuro, não penso
mais que meu pai possa me proteger, ainda tenho paura quando
me deparo com uma barata voadora, mas, com o tempo, isso
também se vai.
Quando era muito pequeno, sonhava com coisas sempre
grandiosas; cresci e acho que muitos desses sonhos aconteceram. O mais difícil foi desvestir a armadura do Homem de Ferro. Um sonho de infância tê-la e não ser atingido por nada. Ela
me acompanhou até bem pouco tempo atrás. Na verdade, ainda
visto-a, às vezes. Entretanto, a proteção que ela me deu tornoume pesado, as lágrimas que nunca brotaram para fora enferrujaram-na por dentro, fiquei lento e pesado, não conseguia mais
carregá-la comigo.
Sabe, sem ela fui alvejado, era de se esperar; senti primeiro a dor lancinante, a minha visão ficou turva, meus joelhos se
dobraram e senti as pedras sobre as quais me repousei no primeiro momento. Os sentidos se perderam mais um pouco e meu
rosto foi contra o chão. Minhas mãos, cheias de terra e areia,
marcadas por pedriscos, eram minha visão naquele momento,
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nada além das minhas mãos, que consegui trazer diante do meu
rosto. Agora, o gosto de sangue na boca passou, estou recobrando os sentidos, lembrando-me do que aprendi fazendo escalada,
primeiro segurar com as pontas dos dedos, equilibrando-me,
achar ponto de apoio para uma perna, depois para a outra perna, a que fará força, e o primeiro passo, só pensando nele. Nada
mais importa senão o primeiro, e, depois, nada mais importa
além do próximo.
Ainda dói, o ferimento está lá, mas estar livre dessa armadura fez-me sentir leve, vale tanto a pena, que vou ficar sem, por
enquanto.
l
LouCuRa rEVERSA
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Sou um pouco confuso, concordo, mas há um motivo para
isso: vivo escravizado pelos meus sentidos. Cheiros, gostos, cores, temperaturas, sentimentos... Lá de pequenininho, o sol e as
sombras das nuvens me fascinavam. Um dia de chuva, um rosto
sorridente, tudo era motivação para aguçar minha imaginação.
A comida era um problema. Não tinha apetite, a anemia
era constante. Vivia à base de vitaminas e fortificantes. Lembrase, minha irmã Valéria, do óleo de fígado de bacalhau? Pois é,
mas eu não sabia aonde iria chegar!
Com a fase adulta, o encontro com outras culturas, começou a me despertar o interesse por comidas e bebidas de todos
os tipos acessíveis. Com as experiências se sucedendo, percebi o
quanto eu tinha a capacidade de sentir. Certa vez, na casa de meu
pai, por conta dessa minha “frescura” de dizer que uma comida
estava velha ou passada, ele resolveu me testar; cozinhou carne
moída em duas panelas, colocou na mesa e disse: ”Uma estava
congelada faz um mês e a outra está há tempos congelada, temperei do mesmo jeito, me fala qual é qual, se você é bom mesmo!”.
Fui todo confiante, como sempre que me propõem desafios. Experimentei aleatoriamente a primeira e disse: “Essa está há quase um ano na geladeira”. Ele se levantou, pegou a panela e jogou
imediatamente aquela carne no lixo, pronunciando palavrões,
como era de costume, e me falando: “Onze meses na geladeira!”.
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Outra vez fiz um teste cego com uísque que nem é meu
forte, um doze anos e um oito anos. A Cris colocou nos copos e eu
nunca havia tomado um deles. Mesma coisa: quando provei o primeiro já saí dizendo, este é o Black, porque nunca senti este sabor
na minha vida.
E assim é com cheiros também. Sei se a comida está sem
sal, se está salgada e mesmo se está com muito açúcar, sei pelo
cheiro. Talvez por isso que quando eu assisto Ratatouille, fico
emocionado. Conhecem o filme? Aquele do ratinho, Remy, que
mora em Paris e é um grande cozinheiro. Em uma passagem do
filme, ele tenta explicar para o irmão, um ratão gordo que come
lixo, o segredo dos sabores e das misturas. Nessa cena usam uma
explosão de cores enquanto ele explica ao irmão as nuances (é
fato que nuance pode, sim, ser usada para coisas que não cores)
dos sabores: agridoce, amargo, nozes, etc..
Sabe o que me emociona? É que eu sou um pouco sinestésico, ou seja, no meu cérebro tenho uma confusão que me faz sentir, por exemplo, o gosto, cheiro ou até o som de uma cor. Isso é
uma perturbação para muitos, mas para mim é uma enorme fonte
de prazer. Vendo o ratinho do filme, que se mostra com uma capacidade fora do comum de prever as misturas de sabor, descobri
que essa capacidade sensorial também existe em outras pessoas.
Senti-me, então, completamente normal em meio aos excepcionais (risos)... Por isso que, quando no primário, eu misturava, durante a merenda, as quatro bolachas doces com o ovo cozido, com
o arroz doce, tudo no mesmo prato, meus amiguinhos fugiam da
mesa. Só estava me preparando para o gran finale: de me tornar
um grande chef da culinária mundial!
Para ficar sério o assunto, essa capacidade que tenho de
sentir vai além dos cinco sentidos, vai ao ponto de observar dentro de uma alma e sentir o que alguém sente por dentro. Isso dá
medo, não exploro muito. Preciso conhecer muito mais a minha
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alma, se não a distorção pode me levar a sérios problemas... (ou
será que já levou?).
Comam e bebam, sintamos os prazeres que as coisas boas
nos trazem, e de preferência em boa companhia. Muitas vezes
a companhia consegue fazer um simples macarrão improvisado num sábado à tarde, enquanto se lava o carro, ser o melhor
manjar provado em toda sua vida!
Quando estivermos saciados, lembremo-nos de quem
não tem o que comer, e que possamos compartilhar o que nos é
abundante.
b
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A saga de escrever meus pouco modestos e nada despretensiosos textos começou num vazio entre uma perda irreparável e um ganho descomunal.
Meu filho completaria um ano e tudo se encaminhava
para uma vida tranquila, com tudo a meu favor, mas não foi.
Entrei no maior dos parafusos mentais, senti-me incapaz
de repetir a criação que meu pai me dera. Senti-me perdido sem
entender de onde vinha minha força e também de onde vinha
minha fraqueza. Precisava de ajuda para sair de uma espiral de
infelicidade que me acercava, pela incapacidade de me sentir
querido. Procurei ajuda e a encontrei na psicanálise Junguiana.
Penso que ninguém é tão forte que nunca sentirá a dor
da solidão e nem tão fraco que não se sensibilize com as oportunidades que a vida nos dá de forma tão amorosa.
Comecei, então, uma viagem para dentro; posteriormente, descobri que teria que ser primeiro para fora, entendendo
minhas ações e reações sobre o que me vinha no campo de provas da vida, e depois para dentro, almejando o céu, sem limites,
seja o céu onde for.
Todos nós merecemos saber que a vida tem um sentido
e uma direção e que não somos meros passageiros; na verdade
participamos do seu planejamento e execução, podendo, eventualmente, participar de sua avaliação, dependendo de nossa capacidade de querer isso.
Pe rdas e ganhos
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Meu filho me brinda, às vezes, com intermináveis sessões
repetidas dos mesmos filmes, e descobri que isso é uma bênção.
O filme da vez foi Avatar.
Uma explanação: avatar é um termo originalmente usado no hinduísmo para designar um corpo usado por uma divindade de forma que esta possa vir e habitar na terra. No filme
em questão, o avatar era um corpo que permitia aos habitantes
terráqueos habitarem em Pandora, um planeta muito hostil em
gravidade e atmosfera para a raça humana, mais precisamente
ao personagem principal, que era paralítico por um acidente sofrido, a andar novamente.
Nesse filme, vemos dezenas de mensagens veladas e declaradas, como o despertar da consciência coletiva, a comunhão
entre os diversos seres, a natureza e seu enorme poder, o amor.
O que eu vi de diferente então, graças às repetições? Talvez tudo.
Somos paralíticos emocionais, cada um com sua deficiência e, em algum lugar ou momento, nos transportamos para
nossos avatares perfeitos.
O meu local é no trabalho. Sou mais alto, mais forte, mais
rápido, sorrio mais, tenho menos medo, busco a passagem tribal
de aprendiz a guerreiro. Conecto-me ao meu dragão alado e,
com o simples pensar, faço manobras fantásticas, atinjo velocidades inconcebíveis. Combato as grandes máquinas destruidoras e defendo o mais puro direito de trabalhar e vencer na vida,
Avatares
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não importando a origem, credo ou raça. Sou Justo, passo lições,
transmito experiência, sou confiável sempre, sobreponho ao
meu interesse o bem coletivo, arrisco meu avatar, como se não
houvesse morte.
Mas aí acaba o expediente, volto pra minha casca real,
paralítico, fraco, egoísta, impotente.
Por que não somos fortes para ir a uma escola e falar para
crianças, tentar ao menos que algumas sejam orientadas a fugir
das drogas, a viver como crianças e não como adultos paralíticos? Por que não vamos aos parques e observamos quem precisa de um alento, de uma palavra de consolo em meio à multidão?
Por que não olhamos para quem amamos e não interferimos,
tomamos sua dor de assalto, protegendo-os e desviando-os do
caminho da paralisia?
Paralíticos ou Avatares?
Um dia ainda vamos nos transferir integralmente para os
corpos da mente, sem culpas, sem o medo da felicidade, sem a
covardia de não tentar. Um dia vamos enfrentar a fila da montanha russa, sentir medo, frio na espinha, vontade de fugir, mas
vamos ficar e sentir a vida passar pelos nossos ossos e almas.
Chegando lá em baixo vamos dizer que valeu cada gota de suor
frio e cada grito, que sentir o risco é estar vivo, que se apaixonar
dói, mas faz sentir a vida, que tudo vale a pena, que só aprendemos pela dor, para chegar ao amor e se esquivar desta, (a dor), às
vezes, é saudável, porém, fazer isso sempre é não viver.
q
LouCuRa rEVERSA
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Este texto é sobre o motivo dessa aventura de escrever.
Custou para eu começar, porque talvez estivesse esperando ser
isso uma mentira, mas, hoje, quando acordei pela manhã, percebi que não era...
A vida tem uma grande estrada, onde dirigimos sozinhos
em nossos carros. Cada qual na sua velocidade, cada qual para
um destino. Se mais rápido, mais emoção e chegamos mais rápido. Se mais lento, vemos mais coisas, mas também nos aborreceremos pelo tempo necessário para cumprir o caminho.
Quando nos encontramos, é nos postos de gasolina da vida, para
abastecermos e continuarmos a viagem.
Por que sempre sozinhos? Uma família não está no mesmo carro ou numa van. Não? Como não? Por acaso um bebezinho dirige um carro? Não, ele está sendo rebocado. O carro
é uma figura que representa nosso corpo físico, entenderam?
Sozinhos dentro de nós mesmos.
E aí, o que sei é que, às vezes, alguém coloca o rosto para
dentro de nossa janela e nos beija. O meu leitor poderia dizer:
“Já sei, é algum coração entrando em contato com o nosso!”. Outros que me encontraram em outros postos de gasolina diriam:
“É uma referência ao sexo!”.
Ora bolas, claro que é o amor!
Highway
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Então, o que tem tudo isso de interessante, e de lição, e de
complicado, para eu demorar a ter coragem de escrever? Bom,
sempre que estou na estrada, tenho muito tempo para pensar e tenho lembranças do passado, que vêm sempre regadas de saudades.
Algumas são só boas, mas outras, trazem arrependimento: coisas
que deixei de fazer, momentos que deveria ter aproveitado, pessoas
que perdi, enfim, situações mil. Começo a procurar um retorno,
uma forma de voltar àquele momento. A vida, porém, é uma estrada sem placa de retorno! Não tem mais como voltar, porque essa
estrada se chama tempo e o tempo perdido não volta. Entendem,
agora, por que demorei tanto para escrever uma coisa tão lógica?
Não dá mais para voltar e essa sensação de impotência é terrível.
Começo a me entender e estou concluindo que, como
não posso voltar ao passado, só tenho uma coisa a fazer: trilhar
minha vida por caminhos que me façam lembrar com satisfação
do que se passou, sem arrependimentos. Essa regra de imutabilidade vale para todos, afinal, não sou tão importante para ter
uma lei assim só para mim!
Nada volta, mas algumas situações surgem muito parecidas a outras vividas, de modo que pensei: vou tomar decisões
diferentes desta vez; se apareceu de novo e fiz certo da outra vez
é porque agora tenho mais lições a aprender. Se deu errado, do
mesmo jeito, fazer até aprender, ou fazer até se sentir satisfeito.
Todavia, no final de tudo, sempre sozinhos, no máximo
em comboios, no máximo nos abastecendo juntos, no máximo
sorrindo uns para os outros, no máximo, por concessão divina,
fazendo os corações beijarem-se.
Hoje compreendo a que veio aquela música que dizia que
nessa infinita highway restou na boca, em vez de um beijo, um
chiclé de menta e a sombra do sorriso que deixei.
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LouCuRa rEVERSA
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Foram dois anos e pouco de luta contra um câncer no
estômago (carcinoma na cárdia), terminando em 23 de Julho de
2006. Meu pai, de saudável, cheio de força e ativo como nunca,
passou a lutar num combate do qual não sairia vitorioso. Meu
maior balaústre, minha coluna de sustentação. Lutei como se
fosse a minha carne que se esvairia. Diagnosticado com o carcinoma de grau 4, começamos a via sacra a médicos e constatamos que todos opinaram por operar.
A primeira cirurgia deixou-o bem debilitado, porém, as
oito horas para a retirada do estômago e uma parte do esôfago
foram suportadas. O próximo ano foi de adaptação e até comemoramos num restaurante alemão, comendo eisbein com muito
chopp, por minha conta, é claro.
Mas não tinha acabado!
Na revisão médica anual, outro tumor foi encontrado nas
fronteiras da operação. Uma nova cirurgia, essa com um risco
e uma esperança completamente diferentes. Um resultado trágico — uma semana em coma e meu pai voltou outra pessoa,
fraca, esgotada. Uma estricção formada na emenda do trecho
de intestino com o que restou da traqueia impedia a ingestão
de alimentos. Vivi os momentos mais tensos vendo as tentativas, através de cautérios, de se desobstruir essa estricção. Com
o tempo, essa intervenção se tornou semanal.
Perdas
L. C. IuraS
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Eu, literalmente, conheci meu pai por dentro. Trabalhei
de assistente médico, ajudando na localização do melhor caminho a percorrer para desobstruir a estricção, fui enfermeiro,
limpando o sangue que se esvaía pelo chão do ambulatório, fui
guia de um homem sem forças durante sessões de quimioterapia
e radioterapia, decidi por intervenções ao meio de uma equipe
de residência do Hospital das Clínicas, num momento em que
um “Doutor” tratou meu pai como cadáver vivo.
No velório eu estava inconsolável, sentindo uma derrota
sem tamanho, e só uma das inúmeras tentativas de consolo trouxe um alento, quando um tão simples e sábio amigo me disse:
— Vocês não perderam, tinha que acontecer, seu Pai me
disse que ele só fez a primeira cirurgia pois viu sua luta, por ele a
vida tinha acabado ali, foi você que o manteve vivo, não se culpe!
Obrigado, André...
Essa realidade esclarecida me deu forças para continuar
meu caminho, que só tomaria rumo mesmo alguns anos depois.
l
LouCuRa rEVERSA
25
Esta crônica foi escrita a pedido da minha psicóloga para
uma pessoa que não conheço, preservando assim o sigilo profissional. Para ser entendida, requer uma pequena noção de estatística, nada de muito complexo, somente para entendermos o
mundo onde estamos mergulhados.
A Curva Normal (também conhecida como Curva de Gauss)
é um estudo sobre valores estatísticos que vem do século XVII. Ela
foi usada, inicialmente, para previsões de jogos de azar e foi aprimorada, desde então, por cientistas de diversas áreas, de modo
que, atualmente, conseguimos prever a quantidade de eventos
que poderão acontecer dentro de um universo de possibilidades,
se repetirmos a experiência; e, quanto mais repetimos, mais precisa será essa distribuição. Em resumo, se perguntarmos para 100
pessoas a que horas elas tomam o café da manhã, através das previsões de uma curva normal, saberemos que noventa e cinco por
cento (95%) delas estarão dentro de dois (2) desvios padrão, previsivelmente na mesma hora. Se quisermos ter uma precisão muito maior, saberemos que dentro de um (1) desvio padrão, teremos
quase setenta (70) dessas pessoas. E isso vale para qualquer evento.
Para que toda essa teoria complicada?
D e s c on h ecend o a m edi a
-M ed i ocre i g n o r a ncia , se pr efer ir em!
L. C. IuraS
26
Muitas pessoas que conheço, incluindo a mim, sentemse, invariavelmente, em muitas situações, sós. Essa solidão é
oriunda de um fator estatístico.
Vejamos: é fato que se conhecemos bem um assunto, estamos entre míseros vinte e cinco por cento (25%) que conhecem bem
esse assunto; se conhecemos muito bem, estamos entre ínfimos
dois por cento (2%) dos seres humanos que conhecem muito sobre
algo. Então, estatisticamente falando, o assunto que nos preenche,
que conhecemos bem, normalmente é desconhecido pela maioria
esmagadora das pessoas com quem cruzamos na estrada (e quando
falamos de alguém nos conhecer muito bem, este número cai para
absurdos 0,13%). Então, meus caros, o normal é ignorar algo, a mediocridade e a ignorância são onde se encontram a grande maioria
das ações dos seres humanos que, por consequência disso, se sentem sós. Eu disse as ações, não os seres humanos, ok?
Estamos certos de nos sentirmos sós? Vamos inverter
essa retórica sem sentido: somos nós os responsáveis pela solidão dos outros? Quantas infinitas vezes fomos nós dados estatísticos, medíocres e ignorantes? Quantas... ?Infinitas?
Muitas vezes, não é? Exageradas vezes somos os ignorantes.
Talvez um pouco de boa vontade, um pouco de respeito pela verdade do outro nos colocasse na média esperada. Quem sabe, assim,
poderíamos nos sentir acompanhados, mesmo em nossa solidão,
visto que noventa e nove por cento (99,74%) dos componentes desta
curva se sentem sós em algum grau e em algum momento da vida.
Portanto, estamos somente acompanhados por todos!
Vamos olhar friamente esses números numa próxima crise depressiva, ok? Esta análise não vale só para a solidão, vale para
a descrença no ser humano, além de curar mal olhado, frieira e
desmistificar as loterias todas!
t
LouCuRa rEVERSA
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Quando eu tinha uns 11 anos, ia para Jundiaí passar férias.
Meu primo, Vanderley, também ia, passava as férias com a mãe, e
a diversão estava feita se estivéssemos juntos. Éramos, um para
o outro, os irmãos que não tínhamos.
Certa vez, uma cadela que minha tia possuía pariu. Foi
um perereco! Cinco filhotinhos, se não me falha a memória, e
minha tia nos incumbiu de dar fim aos bichinhos.
— Deixem bem longe daqui, perto de alguma casa!
Fomos eu, meu primo e uma molecada da rua, doidos por
farra. Atravessamos a Estrada Velha de Campinas, indo do bairro
Hortolândia em direção à prefeitura nova, todos animados com
a aventura. Enveredamos pela região que margina o rio Jundiaí.
Encontramos uma nascente com água, e os garotos batutas resolveram brincar com os filhotinhos. Brincadeira bem saudável:
afundavam os bichinhos e depois tiravam da água, coisa pouca,
e as palavras de ordem eram: “Vamos afogar, aí nem precisamos
achar uma casa pra eles”.
Eu era o garoto da cidade, ingênuo, sem boca para nada,
nem palavrão falava. Tímido, medroso até, vivendo no meu mundo de faz-de-conta, sempre super-herói, o imbatível que nunca
me encaixava na realidade da vida. Era, na verdade, um amigo
desinteressante para os garotos da minha idade, opaco, cinza!
Bolhas de vida
L. C. IuraS
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Voltando ao que estavam fazendo com os cachorrinhos,
aquilo começou a me gelar a barriga e a cada vez que um pobrezinho era mergulhado na água, eu me sentia sem ar. Para o meu assombro, meu primo também gostou da brincadeira e tinha um cachorrinho nas mãos, este era afundado na água e ali ficava até não
haver mais bolhas, depois era tirado da água, para tomar fôlego e,
novamente, para água. Aflição e agonia tomaram conta de mim.
Sem saber como agir, era o único que não ria da situação e, como
todo bom super-herói da ficção, estava procurando uma cabine telefônica para me trocar, esperando uma palavra mágica para me
transformar, sei lá o que esperei tanto, mas, então, aconteceu!
Parei com aquilo. Falei firme com meu primo, que de início me ignorou, subi a voz como nunca fazia e, aí, sim, me ouviram. Não me lembro de minhas palavras, mas, assim como voltaria a acontecer muitas vezes depois na minha vida, elas foram
contundentes e atingiram seu justo objetivo. Pararam imediatamente com aquela coisa sem propósito e acabamos por deixar
os filhotinhos próximos a uma casa.
Lembrei mesmo daquele outro super-herói trash da minha
tenra infância, o Incrível Hulk, era cinza, mas era um cinza claro,
diferente do capitão América, que tinha cinzas mais radiantes, ou
do Homem de Ferro, que tinha um cinza escuro... TV em preto e
branco era assim, até o Garibaldo era cinza!(risos). Lembro-me de
que o Hulk era a figura que aparecia da transformação do Dr. Banner, quando este ficava nervoso. Depois de destruir muitas coisas
acabava ajudando alguém, era perseguido pelo exército ou pela
polícia e tinha que se refugiar no topo de alguma montanha (todos sabem a história, imagino). Lembro-me das palavras da criatura solitária: “Ninguém ama o Hulk, todos querem matar o Hulk”.
Eu ficava triste, sempre tive vontade de ser forte “pra burro”, mas não era, era magro e fraquinho, não causava medo em
ninguém. Por isso o que me identificava com o Hulk era sua solidão.
LouCuRa rEVERSA
29
Anos mais tarde, com a série da TV, conheci uma nova
história para o ser verde incompreendido: o Dr. Banner, depois
de perder a mulher num acidente, pesquisa sobre pessoas que
têm uma força descomunal quando estão em situações de perigo e conseguem até virar um carro com as mãos nuas, para salvar um filho, por exemplo. Dr. Banner se sentiu completamente
impotente com a morte da esposa. Na busca por despertar essa
força extra, envolve-se em um acidente de exageradas proporções e, atingido por raios gama, passa a ser o Hulk. Que ironia
essa história: ele já tinha perdido a chance, não traria mais a
esposa de volta e, agora que nada mais poderia fazer, convivia
com esse desajuste de ser excessivamente forte nas situações
adversas. Inútil! Não dava mais para trazer o que se fora.
Essa síndrome do Hulk, como arbitrariamente denomino,
é um fenômeno que muitas pessoas vivem. Irritam-se em demasia com coisas banais. A origem está numa impotência, em alguma situação no passado, mas essas pessoas não percebem que
as situações não voltam se nós não as trouxermos de volta. Não
abandonam nunca aquela sensação do passado, de impotência,
então a potência novamente se revela, no momento em que é
preciso jeito!
Acho que, mesmo eu tendo sido o Incrível Hulk na minha
infância, consegui, de alguma forma, usar a potência nas situações mais difíceis da minha vida. Ainda não consegui parar totalmente de usar contra mim mesmo esse critério furioso. Às vezes,
imagino-me pesado, sisudo, até mesmo cinza, por que não? Mas
isso ainda vai me deixar completamente.
l
L. C. IuraS
30
Uma correria, sair do serviço e ir a um casamento logo
em seguida, correr para se aprontar e correr para não perder a
cerimônia. A cabeça pensando rápido para não perder nenhum
momento e ainda com os resíduos do dia circulando na atmosfera. Comecei a pensar em uma coisa bem incomum e me veio
essa atitude de brindar aos noivos, mas sendo sempre autocrítico, desisti em cima da hora, mas ficou a intensão.
— A todos os convivas, peço a atenção! Tenho uma revelação bombástica que pode mudar o destino deste casamento.
Dessa forma, todos ficariam petrificados e com a atenção
presa, afinal, uma notícia da vida dos outros sempre nos interessa.
— Obrigado pela atenção, mas, mais do que reparar no buquê da noiva e se o noivo chorou na cerimônia, o que todos nós,
homens, fazemos (muitos prováveis risos, eu sou engraçado pra
caramba), vamos levar nossos corações e mentes para o casal!
Nessa hora, chamaria os nubentes ao palco, e diante do
acanhamento óbvio pediria um ribombar de tambores.
O meu discurso continuaria assim:
— Noiva, você que sorri com os olhos, revelando sua alma,
olhos que brilham quando está ao lado de seu noivo, mostrando
Brinde a os n ub e nte s
LouCuRa rEVERSA
31
que a cara metade foi encontrada, a metade da laranja, a tampa
da panela, vou te dar uma arma neste momento. Quando as coisas parecerem sem solução e os problemas a enfrentar causarem um desentendimento, no momento daquele impasse maior,
faça seus olhos brilharem olhando dentro dos dele. Nada vai ser
maior do que isso!
— Noivo, você, que não calcula o que o coração há de
sentir e nem premedita suas amizades e companhias, mesmo
tendo a sua capacidade intelectual tão acima da média, saiba
que ser admirado é uma coisa, amado é outra completamente diferente. Nos momentos de maior tribulação, quando tudo
parecer perdido e as discussões se inflamarem, dispa-se do seu
intelecto e deixe que seu coração de criança fale mais alto. Chore, olhe nos olhos de sua noiva, diga que a ama. Nada poderá ser
maior do que isso!
Depois disso, é claro, os noivos estariam emocionados,
aliás, como toda plateia e eu só um pouquinho.
— Antes de brindarmos, o Raul que me perdoe, mas...
cantaria essa primeira parte “Um sonho que se sonha só é só
um sonho que se sonha só, mas um sonho que se sonha junto é
realidade!”
— Um brinde aos noivos!
Mesmo sem ter realizado o escrito acima, tomei o cuidado de entregar este texto aos nubentes e tive a notícia de que
mais de uma vez este texto salvou o casamento. Fico feliz!
r
L. C. IuraS
32
Como sempre, mais brindes oferecidos por pessoas excepcionais em momentos tão aleatórios que acabam, orquestralmente, sendo música de câmara para meus ouvidos, poeticamente falando, é claro...
Assisti, neste fim de semana, ao filme A Ilha do Medo. Há
uma infinidade de blogs falando sobre o filme, que é muito bom
mesmo, vale a pena ver, para quem gosta de suspense e drama.
Não quero, porém, falar especificamente do enredo, apenas comentarei sobre a última frase do filme (sem estragar a surpresa da
história, fiquem sossegados): “Este lugar me faz pensar se é melhor viver como um monstro ou morrer como um homem bom”.
O personagem da trama vive numa constante nuvem de
sonhos e alucinações, uma culpa o envolvia: a de ter deixado passar a oportunidade de ajudar alguém que ele amava. Todavia, a
vida é assim, um monte de encontros, nada aleatórios em meu
ponto de vista. Naturalmente, sempre decidimos o que é relevante, quem é importante para nós, de quem vamos ficar mais próximos, de quem nos afastaremos e, até mesmo, quem ignoraremos.
Voltando à trama, o que parecia um problema passageiro, de
forma dramática e trágica, se transforma no maior de todos os acontecimentos possíveis para um ser humano, a perda, a morte. O que
poderia ser amenizado pelas opiniões dos que estavam fora da situação nunca poderia ser esquecido pelo protagonista: o julgamento
Ilha do medo
LouCuRa rEVERSA
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próprio, vindo do que ele sabia de mais íntimo, o condenou. E ele
decidiu, na ilha do medo, que não poderia viver como um monstro.
Há uma frase que poucos vão entender, mas que alguns
vão se reconhecer, que traz uma verdade essencial, a razão dos
seres humanos estarem sobre a Terra: “Toda ocasião que perderdes de serdes útil será uma infidelidade e todo socorro recusado será um perjúrio”. Realmente, a pessoa tem que ser útil
e tem que prestar socorro aos outros, depois é sempre tarde. Eu
sempre insisto nisso e acabo sendo chato e bobo até certo ponto. Porém, às vezes, sou impedido de agir por este princípio, por
seguir outra máxima, “Cada qual com seus problemas”.
Estava assistindo com meu filho, pouco tempo depois de
ver o DVD da Galinha Pintadinha (personagem de diversão infantil, com várias histórias musicadas), e no clipe chamado
“Alecrim Dourado” ele dormiu e eu fiquei assistindo, foraN
umas 157 vezes (demais isso):
“Alecrim, Alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado.”
“Foi meu amor que me disse assim,
que a flor do campo é o Alecrim”.
Meu Alecrim Dourado, se eu não mais vivesse, já teria
sentido cumprido o motivo da minha vinda, ver-te assim, crescendo no campo, reluzindo seus raios louros sobre tudo que
passa, repousarei meus olhos em sua luz, no seu sol, na sua vida!
Sempre gostei da cor amarela no cabelo...
O que uma coisa tem a ver com outra?
Nada ou Tudo!
n
L. C. IuraS
34
Estava há tempos sem escrever... Será que acabou a inspiração? Acho que um tempo sempre é bom, para as coisas virem naturalmente.
Tive um sonho muito ruim, meus dias estavam vazios e
tristes. Sempre depois de cumprir uma etapa em que a tensão
me dominou nos preparativos e cujos resultados foram mais que
satisfatórios, fica um vazio. Este, porém, estava diferente.
Foi mais ou menos assim o sonho: eu e meu cunhado,
Paulinho, levamos os restos mortais do meu pai para o quarto
dos fundos, parecia a casa em que morávamos em 1979, quando
mudamos para Jundiaí. Depois de deixá-los no chão, levei meu
filho, que estava dormindo, para esse mesmo quarto e o coloquei
também no chão, como se tivesse um colchonete bem fofinho
do lado esquerdo de onde meu pai estava. Imediatamente me
veio um sentimento de não deixá-lo, quando acordasse se sentiria mal, eu me sentiria mal. Peguei-o no colo e, quando ia saindo,
incrivelmente, meu pai abriu os olhos. Voltei e perguntei:
— Precisa de alguma coisa, pai?
— Deixa um copo d’água, às vezes, é bom – Respondeu-me.
Esse foi o sonho, senti-me abandonando alguém que
amo! Cidinha, minha psicóloga, me elucidou o sonho, na sessão
seguinte: foi a “Elaboração do luto”. Uma fase nas minhas desco-
Copo d’agua
LouCuRa rEVERSA
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bertas psicológicas... Eu decidi pelo novo, decidi continuar a viver,
poxa, demorou... O copo d’água, vida, renovação. Devo, todo dia, trocar a água? Será? Li um pouco. Copo com água é símbolo do feminino, receber um copo com água limpa é uma surpresa agradável.
Voltando alegre e faceiro da minha sessão de análise, parei num semáforo, ouvia eu a Lady Gaga, muito alto, quando para
ao meu lado um carro multicolorido de tanta massa; dentro, um
rapazinho moreno, de boné virado para trás, batucando no volante. Imaginei, de imediato, um “pancadão” ouvido no último!
No semáforo de trás era eu quem estava batucando no volante,
elaborando meu luto. Como a alegria do rapaz era evidente, resolvi ouvir o que o alegrava tanto. Abaixei meu som, abri meu
vidro e, para minha surpresa, o som do rapaz estava baixinho,
era o samba enredo de alguma escola de samba que nunca ouvi.
Curti. Ouvi a musica junto com ele, naqueles breves segundos antes da abertura do semáforo. Fiquei feliz pela felicidade dele e grato por receber aquela energia. Simples e efetiva.
Sou assim, simples, e fico feliz assim, por coisas simples.
“Elaborar o luto”. Quando um relacionamento marcante,
uma fase importante da vida ou até mesmo uma expectativa se extingue e chega ao fim, todos nós, seres humanos, precisamos elaborar o luto. Porque, para nós, mesmo que saibamos que o final
está próximo, ainda que sintamos a relação andar na corda bamba,
nossos sentimentos – e saudade – precisam passar por todas as fases necessárias de aceitação para realmente darmos o “Adeus”.
Agora, peço-lhe uma coisa, caro leitor ou leitora: ELABORE
SEU LUTO. Sim, passe por todas essas fases — choque, negação,
raiva, depressão – chegue à aceitação e enterre pra valer o que
está no seu passado. Sejam todos felizes! Vivam suas perdas, mas
se despeçam delas!
m
L. C. IuraS

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