1 RESSONÂNCIAS LITERÁRIAS NA SÉTIMA ARTE - Assis

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1 RESSONÂNCIAS LITERÁRIAS NA SÉTIMA ARTE - Assis
X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
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RESSONÂNCIAS LITERÁRIAS NA SÉTIMA ARTE
Wellington Ricardo Fioruci (Docente – UTFPR-Pato Branco)
RESUMO: O romance Plata quemada (1997), do argentino Ricardo Piglia, insere-se na vertente da pósmodernidade, cuja denominação e delimitação ainda carece de consenso nos círculos teóricos da
literatura. Deixando por um momento as diatribes teóricas à parte, a inserção desta obra na poética pósmoderna justifica-se pela experimentação com a linguagem à qual se lança o autor na elaboração do
texto. Para tanto, Piglia sobrepõe camadas textuais que vão de uma construção polifônica à literatura
mais popular e comercial, perfazendo um movimento simbólico que aproxima a literatura mais sofisticada,
dita “elevada”, à “literatura baixa”, abrangendo as temáticas policial e sexual. Em 2000, Marcelo Piñeyro
leva às grandes telas, com bastante êxito, uma versão homônima em película do romance de Piglia.
Partindo das premissas intersemióticas que tratam do diálogo entre as linguagens literária e
cinematográfica, pretende-se analisar de que forma ocorre a transmutação do texto de um espaço
narrativo ao outro. Nesse sentido, destaca-se o estudo das fronteiras que definem a intersecção entre
estas diferentes linguagens narrativas, além da discussão teórica que aborda a poética pós-moderna no
cinema. Assim, a partir destas duas obras homônimas, enseja-se uma discussão dialógica acerca dos
procedimentos intersemióticos, reverberando, por conseguinte, na observância apurada dos elementos
pós-modernos que permeiam a construção de ambos os textos ora sob análise.
PALAVRAS-CHAVE: Ricardo Piglia; Cinema; Literatura hispano-americana; Intersemiótica; Plata
Quemada.
Quando nos defrontamos com a adaptação de um texto literário para o cinema, a
primeira questão que vem à tona é em que medida a passagem, a transferência da fábula de
uma linguagem para outra poderá trazer algum prejuízo para o texto original. Ao mergulharmos
nesta reflexão, devemos primeiramente levar em conta a idiossincrasia inerente a estas
linguagens. Cada um destes meios de expressão artísticos lança mão do repertório sígnico que
lhe cabe: a literatura atém-se ao código verbal, ao passo que o cinema apropria-se deste e ainda
dos códigos visual e sonoro.
Curiosamente, apesar de o cinema agrupar os três principais grupos sígnicos de
expressividade, verbal, sonoro e visual, ouvimos com ruidosa frequência que o livro é melhor que
o filme, um axioma que tem suas bases no senso comum e não se sustenta de forma crítica.
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Robert Stam, abordando a dupla relação que envolve esta apropriação de códigos, aponta seis
motivos que poderiam explicar o que ele denomina de preconceito para com o cinema. Este
“senso intuitivo da inferioridade” justificar-se-ia nos seguintes termos (STAM, 2006, p.21):
1) antiguidade: o pressuposto de que as artes antigas são necessariamente artes melhores;
2) pensamento dicotômico: o pressuposto de que o ganho do cinema constitui perdas para
a literatura;
3) iconofobia: o preconceito culturalmente enraizado contra as artes visuais, cujas origens
remontam não só às proibições judaicoislâmico-protestantes dos ícones, mas também à
depreciação platônica e neo-platônica do mundo das aparências dos fenômenos;
4) logofilia: a valorização oposta, típica de culturas enraizadas na “religião do livro”, a qual
Bakhtin chama de “palavra sagrada”dos textos escritos;
5) anti-corporalidade: um desgosto pela “incorporação” imprópria do texto fílmico, com seus
personagens de carne e osso, interpretados e encarnados, e seus lugares reais e objetos
de cenografia palpáveis; sua carnalidade e choques viscerais ao sistema nervoso; 6) a
carga de parasitismo: adaptações vistas como duplamente “menos”: menos do que o
romance porque uma cópia, e menos do que um filme por não ser um filme “puro”.
Esta perspectiva, cada vez mais corrente nos dias de hoje, costuma partir do preceito
de que o filme deve “traduzir” a obra literária, realizando uma pretendida transposição do
conteúdo verbal para o plano cinematográfico.
A partir dos estudos desenvolvidos pelos estruturalistas e pós-estruturalistas como
Julia Kristeva, Gérard Genette e Roland Barthes, para limitarmo-nos a três nomes
representativos destas correntes, a crítica literária e cinematográfica ampliou de forma
significativa seu escopo teórico, rompendo com as amarras que impediam uma visão mais plural,
porquanto dialógica, do fenômeno intersemiótico. A compreensão de que o cinema e a literatura
representam sistemas complexos de signos que compartilham práticas comuns de significação,
porém sem que haja uma relação de hierarquização entre tais linguagens, foi fundamental para o
universo das artes cada vez mais híbridas na modernidade e, por conseguinte, na pósmodernidade.
Entende-se, assim, o cinema como uma leitura livre da obra literária, na qual os
actantes fílmicos (diretores, roteiristas, atores e demais técnicos de som, imagem, etc.)
reinventam a linguagem verbal na textura da linguagem iconográfica. Sem sombra de dúvidas,
poderíamos apoiarmo-nos na teoria de Umberto Eco da “obra aberta” para respaldar a liberdade
dos leitores, neste caso os actantes fílmicos, na construção dos sentidos a partir do texto
literário, já que “um texto é um mecanismo preguiçoso (ou econômico) que vive da valorização
de sentido que o destinatário ali introduziu” (ECO, 2004, p.37).
Eco explora os conceitos comuns à Teoria da Recepção, essenciais para
compreendermos a primazia do leitor na pós-modernidade, possível apenas em um texto aberto,
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pois ambíguo: “[...] a obra de arte é uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma
pluralidade de significados que convivem num só significante” (ECO, 2003, p.22).
Robert Stam também destaca o papel da teoria derridiana, que “desautoriza”, para
empregar um conveniente trocadilho (Derrida ataca o princípio da autoria como status fundador
inabalável da criação), a noção clássica de texto original, concepção bastante explorada nas
teorias contemporâneas da interpretação do texto.
A desconstrução de Derrida [...] desfez binarismos excessivamente rígidos em favor da
noção de ‘mútua invaginação’. A desconstrução também desmantela a hierarquia do
‘original’ e da ‘cópia’. Numa perspectiva derridiana, o prestígio aural do original não vai
contra a cópia, mas é criado pelas cópias, sem as quais a própria idéia de originalidade
perde o sentido. O filme enquanto ‘cópia’, ademais, pode ser o ‘original’ para ‘cópias’
subseqüentes. Uma adaptação cinematográfica como ‘cópia’, por analogia, não é
necessariamente inferior à novela como ‘original’. A crítica derridiana das origens é
literalmente verdadeira em relação à adaptação. O ‘original’ sempre se revela parcialmente
‘copiado’ de algo anterior. (STAM, 2006, p.22)
A expressão utilizada por Derrida, “mútua invaginação”, é tomada de empréstimo à
Biologia, e refere-se à ideia de dobra, neste caso, dada a reciprocidade almejada por Derrida,
dobras. O teórico francês investe numa relação de trocas, de intercâmbio linguístico, discursivo,
quando emprega tal expressão, dialógico, portanto, tendo em vista construir uma teoria da
alteridade, na medida em que a linguagem ecoa no “outro” para recair sobre si mesma. Neste
sentido, apropriando-nos do pensamento derridiano, o cinema busca na obra de arte literária,
dialógica por excelência, um interlocutor a partir do qual possa reinventar-se a si próprio,
redescobrir-se: “a fissura do autor como ponto de origem da arte” (STAM, 2006, p.22).
Com efeito, perguntamo-nos, qual é o limite desta transposição? Em que resulta esta
pretensa fidelidade? O poeta Pere Gimferrer, conhecido por suas incursões pelo universo crítico
da tradução, defende que: “el material de una novela son las palabras, el material de una
película son las imágenes [...] ¿En qué medida se puede hablar de adaptación y no de creación
nueva y autónoma?” (GIMFERRER, 2006, p. 54). A pergunta do poeta espanhol reverbera neste
artigo e funciona como pedra de toque para as reflexões intersemióticas pelas quais
transitaremos.
Contrariando a perspectiva de que quanto mais fiel a adaptação, mais enriquecedor o
resultado, a crítica apoia-se no conjunto da produção cinematográfica que, embora tenha
encontrado desde sempre na literatura material farto para a telona, muito frequentemente não
tenha suprido as expectativas geradas pelo sucesso da obra matricial. Assim, narrativas literárias
clássicas, a priori garantias de uma boa trama, decepcionaram o público literário e cinéfilo
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quando transpostas:
[...] de ahí el fracaso de una película tan ambiciosa como el Ulisses (1966), de Joseph
Strick, que se limitaba a poner en imágenes el argumento de la novela de Joyce, sin caer
en cuenta de que el problema previo era hallar un equivalente visual de su modo de relatar
[...]. (GIMFERRER, 2006, p. 34)
A armadilha consistiria, de acordo com a teoria intersemiótica, em uma leitura em que
se anulassem as diferenças entre estas duas linguagens, ainda quando se tratassem de
narrativas, isto é, a adaptação de um conto ou romance.
Quando o diretor Marcelo Piñeyro e o roteirista Marcelo Figueras decidiram levar às
telonas o romance Plata Quemada, de seu conterrâneo Ricardo Piglia, certamente sabiam que
tinham pela frente um desafio à altura da sofisticação da obra literária. O romance estrutura-se
em um jogo discursivo, sustentando-se na premissa polifônica que alimenta em grande parte a
narrativa pós-moderna.
Piglia tece sua trama costurando fragmentos de relatos, versões de versões, situando
o leitor na década de sessenta, presente da ação narrativa, para reconstituir por meio dos cinco
sentidos, mediados na horizontalidade da linguagem verbal, o episódio policial que deixou
mortos e feridos e duas nações boquiabertas. Um grupo de três homens, Nene Brignone,
Gaucho Dorda e Chueco Bazán, assaltam um banco, matando, nesta ação, três homens, sendo
dois ex-policiais “ex gendarmes, antiguos tiras, suboficiales retirados” (PIGLIA, 2003, p.29),
seguranças do banco, e o tesoureiro, Martínez Tobar, que carregava a maleta com o dinheiro,
“7.203.960 pesos para pagar los sueldos del personal y los gastos de las obras de desagüe del
municipio” (PIGLIA, 2003, p.28).
Este crime toma proporções dramáticas, dada a violência que provoca a ação,
sobretudo por ocorrer há mais de 40 anos, em 1965, e assume também uma aura espetacular, já
que envolve uma fuga para outro país e um desfecho digno de películas hollywoodianas. Há
ainda um caráter político essencial que envolve a narrativa, na medida em que uma rede de
corrupção emerge da trama. Vai se revelando ao longo do texto o envolvimento de setores
policiais e políticos, ampliando o leque de discussão do romance.
Antes do desafio de Piñeyro, Piglia havia enfrentado o seu próprio, ou seja, a
reconstituição deste evento histórico por meio da linguagem literária: tempo mítico e tempo
histórico entrecruzando-se no plano da ficção.
Hay un punto extremo, un lugar [...] al que parece imposible acercarse con el lenguaje.
Como si el lenguaje tuviera un borde, como si el lenguaje fuera un territorio con una
frontera, después del cual está el silencio. ¿Cómo narrar el horror? ¿Cómo transmitir la
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experiencia del horror y no sólo informar sobre él? Muchos escritores del siglo XX han
enfrentado esta cuestión: Beckett, Kafka, Primo Levi, Ana Ajmatova, Marina Tzvetaieva,
Paul Celan. La experiencia de los campos de concentración, la experiencia del Gulag, la
experiencia del genocidio. La literatura prueba que hay acontecimientos que son muy
difíciles, casi imposibles, de transmitir: supone una relación nueva con el lenguaje de los
límites. (PIGLIA, 2010)
Qual seria o limite da representação? Umberto Eco, criticando a opressão do real
como fonte do discurso artístico, busca nos museus de cera norte-americanos, nos parques de
diversão do mundo, com suas réplicas pretensamente “verdadeiras”, a metáfora que espelha a
sociedade do espetáculo, nossa cultura do simulacro, a qual ele classifica como sendo “uma
filosofia da imortalidade enquanto duplicação” (ECO, 1983, p.12).
Para Piglia, a narrativa de Rodolfo Walsh, escritor também argentino, representa bem
esta relação de alteridade, de tensão entre duas fronteiras, o real e o imaginário, ou em outras
palavras, entre a experiência e a memória. Segundo Piglia, a solução (sempre precária e
instável, acrescentaríamos) seria dar a palavra ao “outro” ou ainda falar com a língua do outro,
olhando para o mundo desde um ponto marginal. A esse movimento Piglia chama deslocamento
(“desplazamiento”).
Hace un pequeñísimo movimiento para lograr que alguien por él pueda decir lo que él
quiere decir. Un pequeño desplazamiento, entonces, y ahí está todo, el dolor, la compasión,
una lección de estilo. Un gesto que me parece muy importante para entender cómo se
puede llegar a contar ese punto ciego de la experiencia, que casi no se puede transmitir.
Piglia escreve este trecho colocando-se (deslocando-se para) dentro da poética de
Walsh, cuja obra Operación masacre (1957) seria um símbolo deste processo, da narrativa do
distanciamento. A ficção de Walsh antecipa-se à obra expoente desta corrente: A sangue frio
(1965), do norte-americano Truman Capote, pois investe na diluição da frágil linha que separava
o fato jornalístico da mise-en-scène literária.
Assim como em Plata Quemada, o texto de Walsh volta-se para a reconstituição de um
episódio nevrálgico da história jornalística rio-platense. Trata-se dos crimes que ficaram
conhecidos como “fusilamientos de José Leon Suarez”, ocorridos em junho de 1956, os quais
Walsh recria em sua teia ficcional.
Prácticamente habitual en la literatura argentina, Operación masacre adopta características
del suceso: la repetición y la multiplicación del relato, además de su inserción en una serie
negra. En esto, Rodolfo Walsh revela una constante de la literatura argentina en lo que
concierne a la muerte política y su vínculo con la memoria colectiva, y con su imaginario
social. (DE GRANDIS, 1992, p.306)
Plata Quemada dialoga com o “periodismo ficcionalizado” de Walsh, porém, ao
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contrário dele, não escreve seu texto no calor da hora. Piglia reconstrói a violenta história do
assalto argentino mais de trinta anos depois, portanto, longe, deslocado temporalmente do
evento histórico. Além disso, situando-se no terreno pós-moderno da autoconsciência da
linguagem, Piglia elabora sua narrativa explicitando os mecanismos ficcionais da composição
polifônica:
Algunos testigos aseguran haber visto a Malito en el hotel con una mujer. Pero otros dicen
que sólo vieron a dos tipos y que no había ninguna mujer. Unos de los dos era un flaquito
nervioso, que se inyectaba cada rato, el Chueco Bazán, que estaba realmente esta tarde
com Malito [...]. Los testigos se contradicen, como siempre sucede, pero todos coinciden en
que el chico parecía un actor y que tenía una mirada extraviada [...] Lo más seguro es que
había dos tipos controlando el Banco desde el hotel y otros tres que llegaron en un
Chevrolet 400 ‘preparado’, según todas las versiones. (PIGLIA, 2003, p.16-17)
Pode-se perceber em meio às vozes que emanam das testemunhas a presença do
narrador, que funciona como um orquestrador deste conjunto de relatos, quem aparentemente
apenas recolhe estas informações para fazê-las emergir na superfície do papel “según todas las
versiones”. Contudo, percebemos sua “mão” atuando na regência destas vozes quando ele
afirma diante das contradições dos relatos que isto “siempre sucede”.
Este narrador enviesado, já que não se coloca claramente aos olhos do leitor,
corrobora a estratégia pós-moderna do relato como jogo um jogo de cena, como ficcionalização
do real: “la ficción trabaja con la verdad para construir un discurso que no es ni verdadero ni falso
[...] y en ese matiz indecidible entre la verdad y la falsedad se juega todo el efecto de la ficción”
(PIGLIA, 2000, p.13).
O relato vai-se construindo em torno a uma série de textos, de fontes, tais quais os
documentos históricos como jornais e depoimentos policiais da época em que se dá o fato:
El entregador era un cantor de tangos que se hacía llamar Fontán Reyes. Estaba nervioso
Reyes. Muerto de miedo, en realidad (según declaró más tarde) [...] Quería entrar y salir
Fontán Reyes, pero esa tarde en el departamento de Arenales sintió que se estaba
quedando pegado [...] tenía miedo de todo (en especial, dijo, del Gaucho Dorda, un
chiflado, un subnormal). (PIGLIA, 2003, p.21)
A tessitura narrativa, porém, desestabiliza esta pretensa rede discursiva de textos
documentais, portanto verídicos, quando insere este narrador em terceira pessoa, o qual pode
tanto ser um suposto Piglia testemunhal, o escritor de carne e osso autor da obra em questão,
quanto pode ser Emilio Renzi, jornalista ficcional, invenção borgeana de Piglia, que costura toda
sua poética como um alter-ego.
El comisario llevaba un traje arrugado y una mano vendada [...] Miró a los periodistas.
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- Usted no piensa que...
- Empezó el chico que hacía policiales en El Mundo...
- Yo no pienso, investigo – lo cortó Silva.
- Dicen que era um informante de la policía. – El chico era un pibe de pelo crespo, con la
credencial del diario donde se leía Emilio Renzi o Rienzi bien visible [...]” (PIGLIA, 2003,
p.67-68).
Renzi teria coberto os eventos relacionados a esta tragédia ocorrida na década de
sessenta. Ao aparecer na trama, o leitor atento, experiente, saberá que percorre um universo
literário, ou seja, confirmando que se trata de um artifício narrativo da ficção. É interessante e
reveladora a descrição do personagem que cobre os fatos, já que o cabelo crespo, além de seu
nome, remetem a Piglia (o nome completo do escritor é Ricardo Emilio Piglia Renzi). Esta
inserção do autor no seu próprio texto, gesto metaficcional, bem como a composição heteróclita
da narrativa, recebe a denominação de narração excêntrica segundo o teórico e crítico francês
Daniel Sangsue, que pesquisou suas bases nas narrativas do século XVIII e XIX (HEINEBERG,
2008).
Se optarmos pela teoria de Genette, estaremos falando de um recurso paratextual ou
autor paratextual. Para Genette, são paratextos todos os elementos paralelos ao texto: título,
subtítulo, intertítulo, prefácio, posfácio, advertência, prólogo, todos os tipos de nota, epígrafes,
ilustrações. O paratexto, para ele, é instância privilegiada da dimensão pragmática da obra, ou
seja, de sua ação sobre o leitor. Este recurso insere-se dentro das relações de
transtextualidades definidas primeiramente pelo teórico em sua obra, Palimpsestes, publicada no
início de 1980 (GENETTE, 2001).
Com efeito, o palco volta a iluminar-se aos olhos dos leitores, mais ou menos
resignados, no epílogo do romance, momento em que o narrador, até então fiel à diegese
impessoal, decide, aparentemente, desmascarar-se: “Esta novela cuenta un hecho real. Se trata
de un caso menor y ya olvidado de la crónica policial que adquirió sin embargo para mí, a
medida que investigaba, la luz y el pathos de una leyenda” (PIGLIA, 2003, p.193).
Piglia joga com o conceito de verossimilhança, explorando as diversas intersecções
entre fato e lenda: “A partir de um peculiar cruzamento entre ficção, história e crônica policial,
esses relatos, permeados pela violência, o cinismo, a corrupção e a impunidade, recriam a
devastação ética de uma sociedade entorpecida” (OLMOS, 2007, p.108).
Busca, para tanto, nas raízes do romance policial, as estratégias discursivas que
estruturarão a história. Acrescenta ainda a esta trama metaficcional altas doses de subversão
ideológica do status quo burguês, começando pela epígrafe brechtiana “Qué es robar un banco
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comparado con fundarlo?” (PIGLIA, 2003, p.12). Investe, desta forma, em uma narrativa que
abusa da crítica social, política, desconstruindo o discurso monolítico clássico em que há apenas
uma versão, um ponto de vista, instaurando um tom perspectivista sugestivo, que convoca o
leitor a tomar partido daquela experiência e tirar suas próprias conclusões.
O filme de Piñeyro evita em parte as digressões discursivas, a densidade narrativa
representada pelo múltiplo perspectivismo do romance, mas não se furta a esta estratégia de
forma absoluta. Simultaneamente ao movimento da câmera, acompanhamos, muitas vezes, um
relato verbal onisciente, seja um narrador em terceira pessoa, bastante fiel ao romance, ou
escutamos o pensamento de um personagem, sobretudo o de Angel. Além disso, quando
ouvimos uma canção, como no início do filme, projeta-se no nível sonoro um novo diálogo, uma
nova camada discursiva, que se sobrepõe ao visual e ao verbal. Assim, Piñeyro e Figueras
evitam o desenvolvimento do romance, que se apoia nas várias versões sobre o crime, mas
também investem na polifonia como estratégia diegética.
Com efeito, se o movimento narratológico do romance centra-se nos discursos que
constituem os eventos paralelos ao espaço-tempo dos assaltantes, quer sejam os das
testemunhas, dos veículos de comunicação ou do âmbito policial, no filme, acompanhamos o
movimento narratológico, o da câmera, centrado no âmbito dos quatro personagens centrais:
Fontana, el Cuervo, Ángel e Nene. Desde o início da película, acompanhamos as perspectivas
destes, sobretudo a do casal formado pelos “gêmeos”. Assim, a história de Blanca Galeano,
ponto fulcral do romance, desaparece no filme, assim como o personagem Renzi, também
essencial na poética de Piglia.
Estas mudanças são as opções estilísticas de Piñeyro, consciente de seu papel fílmico
e de que o romance não apresenta traços cinematográficos, não usa as convenções do gênero
como é comum à poética moderna e pós-moderna. Isto não acarretará nenhum prejuízo às duas
obras, que manterão sua integridade semiótica. Alguns críticos, contudo, viram a adaptação com
reservas:
Outra afirmação de Piñeyro, a de que achou o romance muito violento, também leva a
pensar se essa violência excessiva, aparentemente da ordem do narrado, percebida pelo
cineasta em uma primeira leitura, já era a violência da própria tessitura narrativa, que o
levou a ficar a meio caminho entre levar a fundo as questões relativas à reflexão sobre a
própria representação ou contar de “modo correto” uma aventura policial, entremeada de
um melodrama de amor homossexual. (SOARES, 2008, p.136)
Piñeyro e Figueras buscam no romance o viés poético, o fio condutor que amarra as
vidas dos assaltantes. A câmera, do início ao fim, mergulha na complexa relação entre estes
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personagens. Sua proposta difere da empreendida pelo autor do romance, mas nem por isso
evita levar a fundo a questão da representação, limitando-se a uma possível melodramaticidade.
Assim sendo, se Piglia volta-se para a questão da reconstituição do evento histórico,
questionando de forma borgeana a possibilidade de compreendermos o passado, Piñeyro
prefere aprofundar-se no caos psicológico, nas nuances sutis e nebulosas das relações
humanas. Trata-se de uma escolha, não de uma simplificação, como tampouco reflete uma
indecisão. A fábula é a mesma para os dois textos, mas Piglia explora a ponte entre as camadas
macrodiscursivas do enredo, histórico e psicológico, ao passo que Piñeyro coloca a câmera
rente à camada microscópica dos sentimentos, perguntando-nos insistentemente: quem eram
aqueles homens? O que teriam feito nos dias que precederam sua morte?
Piñeyro conta, para isso, com a eficiente atuação de seu elenco, que tridimensionaliza
o excelente romance de Piglia. A lente dá vida, dá movimento ao quarteto marginal que
sobrevive ao assalto. Em ambos os textos, em ambas as leituras, predominam, no entanto, duas
questões essenciais, para além das implicações referentes às escolhas diegéticas. Uma delas é
a opção por colocar-nos convivendo com a esfera dos criminosos, embora saibamos das
implicações de outras instâncias do poder, da sociedade dita legal. Outra diz respeito à dupla de
assaltantes homossexual, um tapa no rosto de uma sociedade preconceituosa, que tende a ver
neste comportamento humano apenas fragilidade.
Estas duas perspectivas, preservadas no filme, têm em comum, obviamente, a opção
artística em conduzir o olhar do leitor/espectador para um novo foco, uma nova experimentação.
O sofisticado romance de Piglia e o intenso filme de Piñeyro humanizam os indivíduos que
retratam, como num pacto de justiça: servem-se de sua história sem perder de vista sua
identidade, sua contraditoriedade. O leitor/espectador ávido de punição moral é desarmado ao
pisar nestes territórios e, por isso, certamente, as obras ecoaram tantas críticas e ataques por
parte do público.
À maneira do alerta mítico que Dante lê às portas de sua jornada espiritual, o público
deve deixar fora da ficção sua esperança condicionada, a expectativa de redenção. A história
revisitada em suas duas versões, literária e fílmica, não dará resposta a nenhuma indagação
ontológica ou mesmo policial. Nos restará tão somente acompanhar a jornada dos personagens
rumo a uma outra margem, não aquela que separa os dois países, mas para o limbo, aonde
ficarão ocultos dos olhos da sociedade até que a morte apague sua existência e traga às mentes
sedentas de vingança o vil consolo da violência social, momentâneo, fugaz.
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