Debates em PDF

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Debates em PDF
Este livro foi realizado com recursos
da Secretaria do Audiovisual, através
do Convênio: MinC / Sav n. 702133/2008
DEBATES
DEBATES
PATROCÍNIO
REALIZ AÇÃO
APOIO
DEBATES
2008
DEBATES
2008
Organização
Tetê Mattos
Coordenação de Edição
Mariana Pinheiro
Equipe de Produção
Ana Izabel Aguiar
Assistente de produção
Ohana Boy
Taiana Trajano
Fotografia
Roberto Steinberger
Phillip Johnston
Projeto gráfico
Andréia Resende
EDIÇÃO DE IMAGENS
Clarice Pamplona
ILUSTRAÇÕES CAPA
Paulo Villela
Revisão
Itamar Rigueira Jr.
Malu Resende
Fonte financiadora
Secretaria do Audiovisual / Ministério da Cultura /
Governo Federal / Fundo Nacional de Cultura
Convênio: MinC / Sav n. 702133/2008
Parceiros
PETROBRAS
Universidade Federal Fluminense – UFF
Fundação Euclides da Cunha de Apoio Institucional à UFF – FEC
Prefeitura de Niterói / Secretaria Municipal de Cultura / FAN
IBEFEST – Instituto Brasileiro de Estudos de Festivais Audiovisuais
Conexão Cultural
3 Tabela Filmes
Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
A662
Araribóia : Festival de Niterói : debates, 2008 /
[Tetê Mattos, organizadora]. − Niterói : EDG Gráf.
e Ed., 2010.
112 p. : il. ; 30 cm.
ISBN 978-85-87959-13-3
1. Cinema. 2. Festivais de Cinema – Brasil. I.
Mattos, Tetê.
CDD 791.43
EDG-Editora Gráfica Ltda
Rua José Bonifácio, 16
São Domingos - Niterói - RJ
(21) 2705-4050
SUMÁRIO
Apresentação
Tetê Mattos
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Contexto de 1968
Daniel Aarão Reis Filho
9
Sessão 1 I Abertura
Esquentando os Tamborins
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Sessão 2 I 16mm / vídeo
Verdade Tropical
Debate Adilson Ruiz cineasta Mauro Trindade professor e jornalista
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Sessão 3 I 35mm / vídeo
Eu Não Vim para Explicar, Eu Vim para Confundir
Debate Adilson Ruiz, Antonio Carlos da Fontoura e Miriam Chnaiderman cineastas
José Celso Martinez Corrêa diretor teatral, autor e ator
Rubens Machado Jr. crítico de cinema e professor da ECA /USP Poliana Paiva mediadora
38
Sessão 4 I 16mm / vídeo
Metamorfose Ambulante
Debate Rica Saito cineasta Luiz Carlos Maciel escritor, jornalista e roteirista
Poliana Paiva mediadora
54
Sessão 5 I 35mm / vídeo
É Proibido Proibir
Debate Júlia Mariano, Patrícia Moran e Sérgio Sbragia cineastas
Luis Eduardo Carmo técnico de som Daniel Aarão Reis Filho professor de história da UFF
Tunico Amancio professor de cinema da UFF Poliana Paiva mediadora
68
Sessão 6 I 35mm / vídeo
Eu Sou o Início, o Fim e o Meio
Debate Cesar Cabral, Heloisa Buarque de Hollanda e Leonardo Esteves cineastas
Hamilton Vaz Pereira diretor teatral e ator Ivana Bentes professora da ECO/UFRJ
Poliana Paiva mediadora
86
Sessão Homenagem
Walter Lima Júnior
104
Em 2008,
o Araribóia Cine – Festival de Niterói escolheu como tema da sua sé-
tima edição o revolucionário ano de 1968 que completou 40 anos. Inspirada na música do
“maldito” compositor Sérgio Sampaio a comissão de curadoria composta pela pesquisadora
Rosângela Sodré e por mim, colocou o bloco na rua selecionando filmes que traziam para
o centro dos debates as profundas transformações ocorridas na sociedade a partir de 1968,
do ponto de vista das suas manifestações culturais. Transgressão, ousadia, anarquia, rebeldia, contracultura, ditadura, repressão, engajamento, movimento hippie, tropicalismo, sexo,
drogas, rock’n roll, entre outros, foram os temas dos debates que apresentamos agora em
forma de livro.
Combinando ações de reflexão com a exibição de filmes, o Araribóia Cine tem se destacado com o seu perfil voltado para a produção de conhecimento sobre o produto audiovisual
brasileiro, desde a sua criação em 2002. Os debates desta sétima edição transcorreram no
espírito de 68 aliando informalidade, interatividade e extrema profundidade.
Este livro disponibiliza para o grande público os debates realizados durante o VII Araribóia Cine, ampliando o leque de conhecimentos sobre os temas refletidos e as obras exibidas.
No primeiro capítulo apresentamos o texto do historiador Daniel Aarão Reis Filho, distribuído durante uma das sessões do festival, que traz reflexões em termos históricos acerca dos
40 anos de 1968. Um luxo!
A sessão “Esquentando os Tamborins” foi o abre-alas do festival. Após a sessão de filmes
o público foi contemplado com um belíssimo show da Oficina do Bloco do Vigário. Os
debates tiveram início no segundo dia do VII Araribóia Cine na sessão “Verdade Tropical”,
que deixou o público extasiado com as obras exibidas. Durante o debate o clima de 1968
tomou conta da platéia que participou ativamente e interativamente. Foi o caso de Jacqueline
Dalsenter que brindou o público recitando poesia de sua autoria.
5
O mesmo ocorreu na sessão “Eu não vim para explicar, eu vim para confundir” onde a
ousadia de José Celso Martinez Corrêa deu o tom dos debates, estimulando o artista plástico
Pierre Crapez a interpretar um poema.
Na sessão “Metamorfose Ambulante” os olhares de duas gerações – cineasta e palestrante – pautaram o rico debate. O consagrado jornalista e escritor Luiz Carlos Maciel, expoente da contracultura, analisou os filmes da sessão ao lado do jovem cineasta. Em “É proibido
proibir” irreverência e seriedade dominaram o debate que contou com a participação de
historiador e especialista em 1968, Daniel Aarão Reis Filho e do pesquisador e professor
de cinema Tunico Amâncio. Em “Eu sou o início, o fim e o meio”, destaque para a “estréia
mundial” do curta de 1978 dirigido por Heloisa Buarque de Hollanda e pela participação do
ator Hamilton Vaz Pereira integrante do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone.
A última parte deste livro é dedicada ao homenageado do VII Araribóia Cine, ao cineasta niteroiense Walter Lima Júnior, que nos deu a honra de comemorar os seus 70 anos no
festival. O carisma de Walter Lima Júnior trouxe para a terra de Araribóia personalidades
ilustres do cinema brasileiro. Foi uma noite emocionante. Obrigada Walter, por esta oportunidade!
O VII Araribóia Cine - Festival de Niterói foi realizado graças ao patrocínio da Petrobras
e às parcerias firmadas com a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, financiadora deste livro. Também são parceiros a Universidade Federal Fluminense, o Centro de
Artes da UFF, o IACs, a Fundação Euclides da Cunha, a Secretaria Municipal de Cultura de
Niterói, o MAC – Museu de Arte Contemporânea de Niterói, o Museu do Ingá, o o SESC
Niterói e o CTAV-Centro Técnico Audiovisual. O festival é realizado graças a estas parcerias
e ao esforço e dedicação da sua equipe de produção.
Acreditamos que esta publicação servirá como subsídio para as ações de reflexão desenvolvidas nos cineclubes, nas escolas, nos pontos de cultura, especialmente nos circuitos nãocomerciais de exibição, que multiplicam em todo o país. A aposta na força destes filmes atua
como uma espécie de prolongamento da vida destas obras, e contribui para a democratização de conhecimento do produto audiovisual. Um agradecimento especial ao secretário do
audiovisual do Ministério da Cultura, Sr. Silvio Da-Rin e equipe por acreditar mais uma vez
na importância deste trabalho e na concretização de um sonho. A todos que contribuíram,
- cineastas, palestrantes e público - os meus sinceros agradecimentos!
Tetê Mattos
Idealização e direção geral do Araribóia Cine – Festival de Niterói
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Entre passado e futuro:
os 40 anos de 1968
As comemorações dos quarenta anos de 1968, em termos históricos, ainda se referem
a acontecimentos e a processos relativamente recentes. Para os que participaram de algum
modo da aventura de 1968, no entanto, já decorreu um tempo considerável. Em qualquer
caso, há uma certa distância, o que, em princípio, não garante coisa alguma, salvo poder meditar e discutir sobre versões diferenciadas e controversas que não deixaram de se acumular
ao longo das décadas.
De alguns anos para cá, menos ou mais, segundo as sociedades, as datas redondas têm
quase obrigado a um esforço de reflexão sobre certos marcos, considerados importantes, ou
decisivos, na história. Alguns têm mesmo feito uma crítica contundente à febre das comemorações . Elas estariam se banalizando a tal ponto, e invadindo de tal forma os debates,
que, a continuar assim, as margens para novas ações e acontecimentos se veriam reduzidas
já que os atores sociais capazes de empreendê-las estariam sempre ocupados em...comemorar
alguma coisa já acontecida!
Entretanto, a opção de evitar, ou fugir dos debates associados às comemorações pode não
ser boa conselheira, eis que as batalhas de memória, não raro, são tão, ou mais, importantes
que os objetos a que se referem, porque têm a capacidade de reconstruí-los ou remodelá-los,
confirmando-se o velho aforisma de que a versão vale mais do que o fato, sobretudo quando
não se tem consenso sobre o fato/os fatos em questão. Alguns inclusive pretendem, na vertigem dos relativismos cada vez mais dominantes, que a versão é o próprio fato, na medida em
que a ele se sobrepõe, modificando os contornos e conferindo sentido às ações empreendidas
no passado. Segundo esta orientação, os fatos dependeriam das versões e não travar os debates sobre elas seria abandonar os fatos à própria sorte ou ao controle dos que imaginam
deles se apropriar como bem entendam.
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Trata-se portanto de considerar e assumir os riscos inerentes ao exercício das comemorações, sobretudo quando se tem em vista a tendência a comemorar no sentido mais usual
que, infelizmente, é pior sentido da palavra, ou seja, no sentido de celebrar acriticamente
uma data, ou um processo, ou um conjunto de acontecimentos. Nas celebrações, como se
sabe, tendem a desaparecer as contradições e as disputas, e a história é recuperada, ou
narrada, segundo as conveniências das circunstâncias, e/ou dos celebrantes, ou dos valores
dominantes, ou que passaram a dominar. Pode acontecer com os chamados veteranos que,
com o passar do tempo, queiram ou não, vão se convertendo em ex-combatentes, obrigados
a conviver com os avatares inevitáveis deste tipo de situação. Mas pode acontecer também,
em chave negativa, aos que desejam se livrar deles, ou dos acontecimentos a eles associados.
Estes dedicam-se a celebrar, exaltados, não a vigência de algo, mas o seu desaparecimento
ou enterro. E isto se aplica a processos mais recentes ou mais remotos.
Sustento a possibilidade de comemorar (relembrar juntos) sem celebrar, o que, de modo
algum, significa, como se verá, que pretenda entrar no debate sem premissas ou pontos de
vista determinados.
***
O que impressiona no ano de 1968, e muitos já o têm sublinhado, é a disseminação, a
amplitude e a intensidade dos movimentos sociais e políticos. Um pouco por toda a parte, e
com diferentes motivações, houve embates e lutas sociais e políticas, de diferentes naturezas.
Por que tudo aquilo aconteceu naquele ano preciso ainda permanece um tanto ou quanto
obscuro. Para mim, no entanto, embora interessante, esta não é uma questão tão relevante. Mais importante é meditar sobre as correntes, as propostas e as tradições políticas em
disputa. Todas, sem dúvida, das mais conservadoras às mais revolucionárias, apresentavam
laços de continuidade com o passado (a história não conhece marco zero), e exprimiam
fundamentos sociais e históricos determinados. Entretanto, na conjuntura crítica do ano de
1968, algumas tenderam a ancorar-se no passado, enquanto outras foram capazes de abrir
horizontes e perspectivas de futuro. A diferença demarcou campos, e sobre esta diferença é
que é preciso refletir.
Trata-se de uma questão chave, não trabalhada com o devido aprofundamento ou qualificação. Os movimentos que se desencadearam em 1968 foram extremamente diversos.
Ocorridos ao mesmo tempo, às vezes nos mesmos espaços, apresentaram distintas propostas, feições e dinâmicas internas, distintos alcances.
Comecemos com uma proposta de força considerável, mas quase sempre coadjuvante ao
longo daquele ano terribilis: as esquerdas tradicionais, ou seja, o movimento comunista internacional, em suas diferentes tendências e, também em suas diferentes tendências, a socialdemocracia internacional.
O termo tradicionais aqui não está empregado com conotação negativa. Apenas refere o
fato de que eram as esquerdas de maior força e prestígio no cenário político. Tinham mais
tradição, e este fato parece indiscutível.
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Imaginando-se direções/vanguardas políticas, foram surpreendidas pela irrupção e pela
dinâmica dos movimentos. Catando cavaco, correram atrás, tentando segurar o ímpeto ou/e
canalizá-lo, ou/e controlá-lo. Segundo as circunstâncias, chegaram a desempenhar algum
papel, quase sempre moderador em relação às propostas e às paixões, caracterizadas como
esquerdistas, sectárias, porra-loucas. Não sem razão (para elas), respiraram aliviadas quando a ondas de choque tenderam a refluir.
Desde então, estas esquerdas gostam de apresentar os movimentos de 1968 como uma
febre inconseqüente, um despautério, um acidente de percurso, algo a ser riscado do mapa
e do calendário.
Há uma segunda proposta, de força muito mais considerável do que a das esquerdas
tradicionais, em termos de seu peso e desempenho históricos, mas com atitudes, em grande
medida, análogas. Quero me referir às direitas e considerar suas duas grandes vertentes: as
passadistas e as modernizantes.
As direitas passadistas são as reacionárias no sentido próprio da palavra. Exasperaram-se
frente aos movimentos de 1968, sobretudo em relação às propostas de revolução dos costumes. Aquilo estava além da imaginação, não podia ser tolerado. Já as direitas modernizantes
eram mais flexíveis. No futuro, como se verá, se mostrariam mais abertas a certas, e importantes, mudanças no plano dos costumes e dos comportamentos. No entanto, contra as turbulências imediatas, fizeram frente comum com as direitas passadistas. Tratava-se de erguer
um dique à maré montante dos questionamentos à Ordem e vencer os perigos perigosos que
se acumulavam.
Pode-se dizer, sem querer formular amálgamas injustificados, ao contrário, marcando as
diferenças de motivações e de propósitos, que as direitas (passadistas e modernizantes) e as
esquerdas tradicionais deram-se as mãos na contenção dos movimentos de 1968.
Era um inimigo comum a ser derrotado. Depois que fosse abatido, e o foi, retomariam
seus lugares respectivos no jogo político a que estavam acostumadas a jogar.
Daí porque estas forças detestam até hoje o ano de 1968. Nas comemorações do ano,
estas gentes não comparecem, querem mais é esquecer.
No entanto, provavelmente por terem sido forças frias, no contexto de um ano quente, e
vencedoras, não atraindo a simpatia que os vencidos costumam suscitar, sobretudo quando
estão definitivamente vencidos, tais propostas não têm sido estudadas com a importância
merecida.
Enquanto os fundamentos sociais e históricos de suas forças respectivas não forem suficientemente evidenciados, o ano continuará relativamente incompreendido, porque foi de
sua força que derivaram as derrotas dos que pretendiam mudar o mundo.
Passemos agora à análise das propostas revolucionárias de 1968.
Para qualquer observador, mesmo para o mais desatento, seria impossível negar a centralidade as lutas revolucionárias de libertação nacional, em primeiro e principal lugar, a guerra
do povo do Vietnã.
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Estava em todos os noticiários e mídias, em todos os cartazes, em cada uma e em todas
as passeatas. A guerra entrava literalmente no cotidiano de todos e de cada um. Assim, era
muito difícil se dizer indiferente. Ou se era favorável à intervenção armada dos EUA, ou se
era a favor da luta de libertação nacional dos vietnamitas. Uma formidável polarização.
Nos EUA, em especial, a questão do Vietnã foi decisiva na articulação e no desencadeamento dos movimentos sociais contra a guerra. Jovens, e particularmente os jovens negros,
porque estavam tendo suas vidas ceifadas em grande número, começaram a fazer valer suas
vozes de protesto. Depois da ofensiva do Tet, em janeiro/fevereiro de 1968, evidenciando a
impossibilidade de uma vitória militar estadonidense, as manifestações contra a guerra se
multiplicaram de modo avassalador. O então presidente dos EUA (Lindon Johson) foi então
obrigado a desistir da reeleição, abrindo-se quase imediatamente negociações de paz, em
Paris (maio de 1968). Os revolucionários ainda não haviam ganho a guerra, o que só aconteceria em 1975, mas os EUA já a haviam perdido.
A guerra do Vietnã não merece destaque apenas pelos combates intensos que se travavam
naquela região do mundo e pela polarização que suscitava, ou pelos efeitos que produziu,
sobretudo, como já foi referido, nos EUA.
Ela era típica também do ponto de vista do conjunto dos movimentos nacionalistas que
se desdobravam no mundo desde o fim da II Guerra Mundial. Na Ásia e na África, em
particular, mas também em terras de Nuestra América, múltiplos movimentos questionavam a preponderância das potências européias e dos EUA que, em muitos momentos e
lugares, tentavam se substituir àquelas, embora exercitando outras formas de dominação.
Desmoronavam-se os velhos impérios coloniais, considerados até muito recentemente
como inexpugnáveis. Desafiavam-se as políticas neo-coloniais e a dependência em todas
as suas formas.
Neste enfoque, a luta dos vietnamitas era também emblemática, porque inserida na corrente nacionalista mais radical, comprometida com a construção de projetos de modernidades alternativas aos padrões das modernidades liberais. Não queriam apenas a liberdade,
queriam a libertação, ganhando este último termo uma conotação revolucionária no sentido
da associação proposta entre independência nacional e construção do socialismo.
O Vietnã na Ásia, Cuba nas Américas e a Argélia na África. Três revoluções vitoriosas.
Pequenos povos que haviam lutado contras as grandes potências do mundo de então. E haviam vencido. Não havia ali um caminho a indicar que valia a pena ser ousado? Mesmo que
já aparecessem as sombras de derrotas (o golpe que derrubou Ben Bella, em 1965; a morte
de Che Guevara, em 1967), nem sempre, aliás, devidamente avaliadas?
Estas lutas pareciam então abrir amplos horizontes de futuro. Mas não foi o caso. E a
situação atual destas três sociedades o evidencia. Muito se poderá dizer que o fato se deveu
ao isolamento em que ficaram, entravadas por circunstâncias hostis. Mas será preciso também considerar as implicações dos processos de guerra, de onde emergiram estas revoluções
vitoriosas e a qualidade de suas propostas. Sem falar das ditaduras revolucionárias, comuns
às três, com seus Estados hipertrofiados, partidos únicos, predominância das lideranças
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militares, perseguição implacável a todo tipo de oposição política. Os limites do artigo não
me permitem ir mais longe. Em larga medida, o inventário dos projetos revolucionários de
modernidades alternativas está ainda por ser feito. Um desafio, sem dúvida, aos que não se
curvam à hegemonia das modernidades liberais.
Mas é inegável que o nacionalismo revolucionário dos anos 60 e 70, que então parecia tão
promissor, perdeu muito rapidamente sua capacidade de sedução política e de mobilização
social. Parecendo na época inovador, tinha mais âncoras no passado do que se poderia imaginar. E foi no passado que estas revoluções de libertação nacional se aninharam, sem abrir
perspectivas de futuro.
Outras propostas revolucionárias, entretanto, emergiram no ano quente de 1968.
Destacaram-se, em muitos momentos e lugares, alternativas radicais de construção democrática.
Alternativas ao rame-rame tradicional do liberalismo democrático, quase que exclusivamente centrado em calendários e jogos político-institucionais onde acaba primando, apesar
das boas intenções, o cretinismo parlamentar. Arenas fechadas, debates previsíveis, moderação extrema de propósitos, sentido corporativista da mal chamada classe política, distância
insuperável entre representantes e representados, distanciando-se os primeiros em relação
aos segundos, os quais são apenas consultados em momentos eleitorais.
Alternativas igualmente ao padrão do que viria a ser chamado, anos mais tarde, de socialismo realmente existente. Intitulados de ditaduras do proletariado, estes regimes, embora
revolucionários, de proletários não tinham nada. Eram, no melhor dos casos, ditaduras do
partido único, no pior, o que desgraçadamente não era tão raro, ditaduras de líderes carismáticos e suas nuvens de aderentes. Apoiados pelos povos em virtude das reformas sociais
e econômicas que haviam sido capazes de empreender, modelavam instituições liberticidas,
transformando oposicionistas em dissidentes, para os quais eram reservadas as cadeias e os
asilos psiquiátricos.
Assim, as propostas democráticas radicais pretenderam construir, simultaneamente, alternativas ao liberalismo democrático e às ditaduras revolucionárias. Já vamos vendo porque,
como se disse acima, deram-se as mãos contra os movimentos de 1968, as direitas reunidas e
as esquerdas tradicionais. Sentiram-se, com razão, ameaçadas. E reagiram conseqüentemente contra movimentos que punham em questão suas bases de legitimação e suas perspectivas
de organizar as relações humanas.
Desafios históricos, difíceis, a exigir tempo de maturação.
Na Tchecoslováquia, cuja primavera teve início no frio mês de janeiro de 1968, o processo
democratizante mal foi desencadeado e já, em agosto, as tropas do pacto de Varsóvia, lideradas pela União Soviética, invadiam o pequeno país e punham fim a uma experiência que,
apesar de começada pelo alto, estendia-se pela sociedade, mobilizando as gentes, fazendo-as
propor e construir formas autônomas de organização política e social. Uma chance histórica
perdida, com profundas conseqüências a longo prazo. Assinale-se que a invasão soviética
mereceu elogios de Fidel Castro e também o apoio, ou o silêncio omisso, dos demais Estados
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socialistas. Apoio e omissão compartilhados pelos partidos comunistas em todo o mundo,
com a notável exceção do Partido Comunista Italiano.
Social-democratas e liberal-democratas protestaram, sem dúvida. Mais para constar do
que para alterar os acontecimentos. Afinal, no quadro da guerra fria, a Tchecoslováquia era
considerada área de influência da URSS. O que seria reafirmado pela infame doutrina da
soberania limitada atribuída à triste figura de L. Brejnev, então secretário-geral do Partido
Comunista da União Soviética.
Na China, no âmbito da revolução cultural desfechada desde 1965, também pelo alto,
movimentos sociais haviam fugido do controle do Partido Comunista e construído, sobretudo em Xangai, em fins de 1966 e inícios de 1967, formas de organização extremamente
inovadoras, fundamentadas em princípios de democracia participativa e que recuperaram,
em distintos momentos, referências avançadas por pensadores e movimentos anarquistas.
Sem falar na crítica contundente às tradições de mando vertical e descontrolado, presentes
na China antiga e mantidas pelo Partido Comunista, com outras feições, mas características
semelhantes, depois do triunfo da revolução de 1949.
Ainda não suficientemente estudados, estes movimentos, depois de anular em muitas cidades a preponderância do Partido Comunista, não foram, porém, capazes de construir sólidas alternativas. Ao contrário, perderam-se em processos (auto)destruidores que acabaram
proporcionando condições à restauração da Ordem revolucionária ditatorial.
Propostas democráticas radicais apareceriam também na Europa, nos EUA, e mesmo
aqui no Brasil, sobretudo nos meios estudantis, mas também, dependendo das circunstâncias, formuladas por operários em luta, como ocorreu, às vezes, na França e na Itália. O que
aproximava estes experimentos democráticos realizados em latitudes tão distintas?
A formosa idéia da autonomia dos movimentos sociais em relação ao Estado e aos partidos. Críticas radicais às distâncias que se cavavam, mesmo no interior dos movimentos
revolucionários, entre dirigentes e dirigidos, entre representantes e representados. Formas
participativas de democracia. Instituições de controle sobre os representantes e sobre as
elites dirigentes. Uma profunda desconfiança quanto à delegação de poderes. A vontade,
que parecia imensa, em tomar os freios dos próprios destinos nas mãos. Diretamente. Sem
intermediários.
Ensaios, não mais do que ensaios, carecendo ainda de inventários rigorosos. Experiências derrotadas, mas não vencidas. Se também elas tinham referências no passado, o que as
distingue são as promessas de futuro, e por isso têm (re)despontado sempre que se acirram
as contradições sociais e as gentes voltam a se interessar pela Res Pública e pelo destino da
Cidade.
Outro processo que tomou corpo em 1968 foram os chamados novos movimentos sociais.
Como tudo o que surge na História, tinham raízes também no passado, mas se apresentaram
com força inusitada e não mais sairiam de cena nas décadas seguintes. Nos EUA principalmente, mas também na Europa Ocidental, e um pouco por toda a parte, tais movimentos
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articulavam-se em torno de programas específicos, referidos a suas inserções particulares na
sociedade, devidas a aspectos próprios, que os diferenciavam de conjuntos maiores.
Assim, entre outros, as mulheres e os movimentos feministas. Os negros e os povos originários nos EUA. Os homossexuais e o chamado movimento gay. De início chamados de
“minorias”, uma incongruência logo superada, questionavam antigos programas e formas
de fazer política e permaneceram algum tempo (ou muito tempo, segundo as condições de
tempo e lugar) incompreendidos ou/e hostilizados por organizações políticas de direita e de
esquerda.
As direitas passadistas os detestavam pelo caráter ousado de suas reivindicações. Simplesmente não admitiam considerá-las. Entretanto, as direitas modernizantes dispuseram-se,
em não pequena medida, a incorporar aspectos importantes dos programas avançados por
mulheres, negros e gays, entre outros. O fenômeno só acirrou as prevenções e resistências das
esquerdas tradicionais que os acusavam de divisionistas , eis que tais movimentos privilegiavam programas que lhes pareciam demasiadamente particularistas.
Apesar das contradições, os novos movimentos firmaram-se como perspectivas de futuro. Extraíam sua força de reivindicações muito concretas, que diziam respeito ao cotidiano
das pessoas. Por isso se disseminaram pelo mundo, conquistando força e amplitude, realizando parte considerável de seus programas e remodelando substancialmente a sociedade
contemporânea. Ganharam um lugar ao sol e não mais o perderiam, arrastando a reboque
direitas e esquerdas e se tornando atores de primeira grandeza do jogo político atual.
Finalmente, mas não menos importante, seria preciso também mencionar as propostas de
revoluções dos costumes e dos comportamentos cotidianos. Intimamente associadas aos novos movimentos sociais, mas com autonomia própria, tais referências também contribuíram
bastante para modificar tendências e características das sociedades contemporâneas.
O questionamento das rígidas hierarquias que marcavam as relações sociais em todos os
níveis; a ambição de conferir um mínimo de coerência na relação entre o público e o privado;
entre a teoria e a prática; entre o discurso e a ação. A crítica às noções consagradas de representação. O questionamento da importância decisiva do poder político central em proveito
de novas ênfases em mudanças aparentemente pequenas, moleculares, mas sem as quais,
como se constatava na análise do socialismo realmente existente, de nada valiam as utopias
grandiloquentes, eis que perdiam substância na medida mesma em que eram incapazes de
transformar a vida imediata das pessoas. Como se o aqui e o agora merecessem prevalecer
em relação a um futuro anunciado como glorioso, mas tão distante, que se tornava intocável
pelas pessoas comuns em suas vidas correntes.
As propostas revolucionárias de mudança dos costumes não se realizaram plenamente.
Longe disso. Mas registraram avanços bastante consideráveis. E mais importante: a força
bruta da reação (de direita e de esquerda) não conseguiu eliminá-las da cena política. Com
efeito, é perceptível como se instalaram na agenda dos debates políticos das sociedades contemporâneas.
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Considerado nestas múltiplas dimensões e propostas, percebe-se que o ano de 1968, apesar dos 40 anos dele decorridos, ainda interpela os contemporâneos, demandando inventários críticos, suscitando questões.
É necessário estudar a força dos que venceram.
As direitas passadistas, reacionárias no sentido literal do termo, recusam-se a passar e
ainda aparecem no cenário político com seus ressentimentos atávicos, tentando segurar e
impedir o que muda, o que renova. Basta ver o governo Bush e seus inimigos íntimos do AlQaeda para constatar a força dos que ainda só sentem náuseas em relação aos fenômenos
próprios da modernidade. Infelizmente atraem pouco a pesquisa acadêmica, o que é lamentável, porque são forças ainda presentes e extremamente perigosas.
As direitas modernas também mereceriam maior atenção. Ganharam a parada em 1968
e evidenciaram uma notável capacidade de adaptação, inclusive do ponto de vista da incorporação de aspectos importantes das propostas dos novos movimentos sociais e daquelas
comprometidas com a revolução dos costumes e dos comportamentos. Aglutinadas em torno
de programas neo-liberais, partidárias da globalização à outrance, desprezando os valores
da igualdade e da solidariedade, sua hegemonia e domínio constituem, sem dúvida, a principal barreira oposta às eventuais propostas comprometidas com a renovação do socialismo.
As esquerdas tradicionais também ainda marcam presença no cenário internacional, particularmente através da social-democracia na Europa Ocidental e Central, onde mais se
consolidaram ao longo do século XX. Mas não fazem mais do que resistir, o que não é
pouco na conjuntura atual, embora sendo incapazes de apresentar alternativas futuras. O
mesmo se pode dizer dos remanescentes dos movimentos comunistas do século XX. Ainda
governam pequenos Estados e organizam partidos relativamente fortes em alguns lugares,
mas se alimentam mais das glórias do passado do que da capacidade de formular propostas
sedutoras para o futuro.
Restam as demais propostas revolucionárias que adquiriram vigência em 1968. Em termos globais foram derrotadas, sem dúvida, mas não eliminadas, ao contrário, permaneceram vivas, ressurgindo, como a velha Toupeira de que falava Marx, sempre que se reconstituem processos de questionamento da Ordem.
Basta conferir os avanços efetivos da revolução molecular das mulheres, a (re) valorização
e as conquistas inegáveis dos movimentos étnicos-nacionais, a disseminação progressiva do
programa favorável às liberdades no plano comportamental, como, por exemplo, a liberdade de opção sexual, já consagrada e protegida juridicamente em certos Estados. Também é
possível estabelecer laços de continuidade entre os movimentos de 1968 e os que levaram à
desagregação da União Soviética, sem falar das manifestações na Praça da Paz Celestial em
Pequim, em 1989, as passeatas anti-globalização iniciadas em 1999, os movimentos autônomos dos povos originários da América andina, a guerrilha inovadora de Chiapas, os enfrentamentos de Oaxaca, as propostas de certos segmentos no interior da onda nacionalista
revolucionária na América andina.
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Trata-se de considerar estas propostas. O que propuseram e têm proposto. O que fizeram
e têm feito. O que se perdeu, o que se ganhou. O que ficou para trás, o que permanece. Até
que ponto foram recuperadas pelas tendências conservadoras. A que ponto foram capazes de
mudar as sociedades. A que sínteses é preciso ainda chegar para resgatar, superando, experiências que tiveram sua importância, mas que precisam ser reelaboradas para continuarem
abrindo perspectivas de futuro.
Assim, as comemorações de 1968, no sentido próprio do termo – recordar juntos - não
carecem de celebrações, mas de debates, avaliações e inventários sobre estas questões, e que
de preferência sejam controvertidos. Se servirem para isto, terão impedido, como querem
alguns afoitos, o apagamento da memória. E terão oferecido, em honra às lutas travadas há
quarenta anos, uma contribuição válida, à altura do que merecem.
Daniel Aarão Reis Filho
Março, 2008
17
ESQUENTANDO OS TAMBORINS
CINE ARTE
UFF
28/11/08
Sessão 1 I 35mm/vídeo
FILMES EXIBIDOS
foi o abre-alas do festival exibindo
filmes centrados na temática do samba
e do carnaval. Ao som de Pixinguinha,
PIXINGUINHA E A VELHA
GUARDA DO SAMBA
de Thomaz Farkas e Ricardo Dias
SP, doc, 10min, cor/p&b, 35mm, 2006
QUARTA-FEIRA DE CINZAS
mestre Jorjão e Wilson Batista
de Cao Guimarães e Rivane
Neuenschwander
MG, exp, 6min, cor, DV, 2006
o bloco foi posto na rua seguido
JORJÃO
da maravilhosa apresentação da
de Paulo Tiefenthaler
RJ, doc, 18min, cor, 35mm, 2004
Oficina do Bloco do Vigário.
EU SOU ASSIM – WILSON
BATISTA
de Luiz Guimarães de Castro
RJ, fic, 17min, cor, 35mm, 2007
1
Esquentando os Tamborins
A sessão “Esquentando os Tamborins”
19
Luiz Guilherme Vergara
Daniel Santiago
Luiz Guimarães de castro
Paulo Tiefenthaler
Equipe de produção Araribóia Cine
Mariana Carneiro
Tereza Machado, Felipe Peixoto e Paulo Máttar
20
Oficina do Bloco do Vigário
Esquentando os Tamborins
1
21
22
Esquentando os Tamborins
1
23
Mauro Trindade
Adilson Ruiz
Ong Amigos na Cultura, de Volta Redonda (RJ)
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verdade tropical
MAC
29/11/08
Participantes
Adilson Ruiz cineasta
Mauro Trindade professor e jornalista
Sessão 2 I 16mm / vídeo
FILMES EXIBIDOS
milagrez (fragmento)
o ano do dragão – 1968
de Paloma Rocha e Joel Pizzini
RJ, doc, 13min, cor, vídeo, 2007
A sessão “Verdade Tropical” inspirada no
título do livro de Caetano Veloso trouxe
para o debate a temática do tropicalismo
no atualíssimo filme de Adilson Ruiz e do
contexto revolucionário do ano de 1968
e as suas influências nos dias atuais.
Mauro Trindade:
inifinita tropicália
de Adilson Ruiz
SP, doc/exp, 36min, cor, 16mm, 1985
Temas relacionados
Tropicalismo, Antropofagia,
Oswald de Andrade, Colonialismo,
Posição Subalterna x Posição de
Igualdade, Esquerda, Identidade
Brasileira, Governo Lula,
Disponibilização de Acervo, Acesso,
Herói, Geração 60, Modernismo.
Bom, eu sou jornalista e professor de história da arte. Acho que o filme
INFINITA TROPICÁLIA pode ser discutido de diversas maneiras: do ponto de vista
da política, da economia, da cultura e, mais especificamente, da música, das artes
plásticas, do cinema. Mas, antes de tudo e acima de tudo, acho que o mais importante
é dizer o seguinte: esse filme que começou em 1983 falando de um movimento artístico
da década de 60, apesar de ter sido feito há mais de vinte anos, a respeito de algo que
aconteceu há quarenta anos, não está falando do passado. Acho que isso é uma coisa
muito forte, ele é um filme projetivo. Ele está falando o tempo todo sobre o futuro,
de uma ideia de Brasil, de uma ideia de arte que se projeta para o futuro. Não é à toa
que vocês aplaudiram tanto, simplesmente porque essas ideias continuam muito vivas
e fortes hoje.
Plateia:
Todas as imagens foram captadas por você ou você chegou a trabalhar com imagens
de arquivo?
Adilson Ruiz:
Na verdade eu queria ter usado mais imagens de arquivo, por exemplo, de festi-
vais, de filmes e de outras coisas, mas o orçamento que eu tinha, apesar de ter recebido
recursos do prêmio Estímulo de São Paulo e da Embrafilme ter entrado no final, não
dava para comprar esse material de arquivo, que custava caro, e hoje custa mais caro
ainda. Então trabalhei muito com material de publicações, de revistas, essas coisas
produzido por nós.
Tem uma história legal, acho que é um dos momentos mais interessantes do filme,
quando aparece a obra Tropicália, do Hélio Oiticica, e inclusive é daí que vem o nome
Tropicalismo e o Hélio Oiticica explica isso. Pois bem, ele já tinha morrido quando
eu fiz esse filme, não lembro exatamente a data, mas eu acho que foi perto do Glauber
2
VERDADE TROPIC AL
que também reproduziam as imagens de época. Fora isso, todo o material é inédito,
25
Rocha, 80 ou fim dos anos 70. Então, quando eu fui fazer o filme, eu não tinha como
entrevistá-lo, obviamente. Mas eu tenho um amigo, o Silvio Da-Rin, que hoje é o Secretário do Audiovisual do MinC, e ele tinha feito um filme, Fênix, um pouco antes,
uns dois ou três anos antes, e o Hélio Oiticica ainda estava vivo.
Tetê Mattos:
Ano passado, no VI Araribóia Cine, nós exibimos Fênix, aqui nessa mesma sala.
Adilson Ruiz:
Que legal. Mas foi o máximo porque a gente fazia política, a gente fazia cinema,
a gente trocava muita figurinha, e ele me falou: “Olha, você não vai poder entrevistar
o Hélio, mas eu tenho um material que eu não usei no Fênix”. Isso porque o filme não
falava exatamente da obra Tropicália, então ele tinha inédita essa entrevista do Hélio
Oiticica. Foi a única entrevista que a gente “psicografou”, as outras todas fomos nós
que fizemos.
Na época, as relações eram muito legais. A Nara Leão, por exemplo, que era uma
figura ótima, nos recebeu lá em Copacabana e cedeu aquela entrevista super graciosa.
Então foi muito legal fazer esse filme. O Gilberto Gil foi de uma generosidade muito
grande, pois saiu de sua casa, em São Conrado, e topou subir o morro com a gente para
filmar lá em cima. Então, teve tudo isso que foi interessante, e todas aquelas figuras,
muitas delas já morreram, como o Rogério Duprat, recentemente. Historicamente tem
sentido pelas figuras, pelas falas, é interessante perceber que naquele momento eles se
diziam cansados de falar sobre aquele assunto. O próprio Jards Macalé, essa figura
conhecida daqui do Rio de Janeiro, achava que não podia valorizar muito a coisa do
imperialismo cultural da Bahia, coisa e tal, mas topou fazer o filme e foi muito legal.
Engraçado que na estreia do filme no Estação Botafogo o Macalé estava presente e,
quando o filme terminou, ele levantou e fez um discurso do tipo: “Isso é um filme que
fala da Tropicália sem ficar babando”, bem do jeito dele. Aconteceram coisas assim
também, algumas discordâncias que existiam entre as pessoas e o filme acabou absorvendo. Mas acho que a perspectiva era essa, era um pouco uma mensagem para frente,
não era uma mensagem para trás, era pra jogar a bola para frente. O próprio Jards Macalé comenta que “estamos aqui no cenário do Terra em Transe, o Brasil continua em
transe”, e ele termina: “E espero que as futuras gerações entrem em transe também!”
O filme procura esse olhar, eu gostei dessa tua observação, e senti que ele trouxe
isso, esses aplausos para mim foram muito gratificantes porque é uma obra que eu fiz
há 25 anos, e chega aqui e as pessoas aplaudem, e se emocionam. É algo que para mim
é muito importante.
Plateia:
Vocês fazem documentários que resgatam um passado para ele não morrer. O que
você sente ao ver que está fazendo um registro que não vai ser para daqui a dois meses, mas para daqui a cinquenta, sessenta anos? O legal é que por meio do seu filme
percebemos como as pessoas eram. Acho que quando você faz um documentário você
está mostrando para as pessoas que estão na frente aquilo pelo quê as pessoas lutaram, aqueles ideais, coisas que gente mais jovem talvez nem tenha ouvido falar, como
a Tropicália, por exemplo.
26
Adilson Ruiz:
Tem uma coisa que é muito interessante. Um dos primeiros entrevistados, o Celso
Favaretto, é um pesquisador que estuda muito esse período e fez uma grande pesquisa
sobre o Hélio Oiticica, durante o mestrado dele, publicada com o nome de Tropicália:
Alegoria, Alegria. O livro Os Últimos Dias de Paupéria, de Torquato Neto, aquele
livro que o Macalé lê no filme, reúne coisas do Torquato Neto, aquele texto é uma
obra para televisão feita pelo Torquato Neto, pelo Zé Celso e não sei mais quem. Eles
escreveram um programa para televisão e nunca foi feito, e eles falam do grande patrono do Tropicalismo, o Oswald de Andrade. Então, essa é uma discussão que começa
na Semana de 22, o “ser ou não ser tupi”, e trata-se de um olhar para o Brasil que não
apenas importa e reproduz coisas prontas, mas que tem essa capacidade antropofágica
de deglutir, de se alimentar, de fazer uma coisa nova e devolver outro produto. E essa
era uma discussão que vinha lá dos anos 20 e que se reproduz nos anos 60 e que nos
anos 80 é retomada.
Esse filme fala disso e a gente ainda está discutindo isso, mas acho que agora a gente
não tem mais tanto essa dúvida da nossa capacidade. É com muita dificuldade que a
gente está superando trezentos, quatrocentos anos de colonialismo, em que nós éramos colônia. Não podíamos inventar nada, até 1808 sequer podia haver imprensa no
Brasil, não havia máquina de imprimir no Brasil pois era proibido. Então se criou uma
cultura centenária subalterna, digamos assim. E o que a gente experimentou no decorrer do século XX, eu acho que esse momento é a virada, é a superação dessa posição
subalterna para uma posição de igualdade. Nós podemos contribuir em pé de igualdade com qualquer outra cultura. Eu acho que o filme mostra como o grande embate da
Tropicália ainda era essa discussão, tanto que o José Ramos Tinhorão vem com aquela
de que a cultura brasileira não podia ter guitarra, porque se tivesse guitarra não era
mais Brasil. Mas ali estava se provando que não, que a gente pega a guitarra, transforma, faz outra coisa e devolve, e faz uma música que o mundo vai ficar perplexo com
o que a gente conseguiu fazer utilizando aquela guitarra que veio de fora, ou seja, de
uma maneira própria de se apropriar disso tudo.
E eu acho que esse nosso complexo de subalterno está sendo vencido aos poucos, e
eu acredito que no século XXI o Brasil vai deixar de ter qualquer ranço de sentimento
subalterno. Acho que é isso que talvez o Macalé esteja dizendo: “Espero que as futuras
gerações entrem em transe também!” Esse transe é ousar ao propor, ao invés de repetir
meramente.
Eu queria saber do Adilson, e se o Mauro quiser falar também, do primeiro de como
foi fazer e do segundo de como foi ver isso, a importância da música no filme. Você
define INFINITA TROPICÁLIA como um filme teórico-musical. Eu queria que você
falasse um pouco sobre isso, porque eu acho que a importância da música no tropicalismo está no filme de uma forma muito forte. Eu queria saber se isso foi um processo
que você foi percebendo ou se foi uma coisa premeditada? Até porque eu acho que o
seu filme tem um movimento que é da própria Tropicália, lembra até o momento do fil-
2
VERDADE TROPIC AL
Plateia:
27
me da Paloma Rocha e do Joel Pizzini em que o Glauber faz um movimento não sobre
o povo, mas a partir do povo. Então acho que o seu filme é de dentro do tropicalismo
e dá essa dimensão da música.
Adilson Ruiz: Eu
tenho outro amigo do cinema, o Eduardo Mendes, professor da ECO, e lá
nos anos 80, depois desse filme, ele comentou comigo que eu era um tropicalista
tardio. Naquele discurso do Caetano no TUCA (Teatro da Universidade Católica de
São Paulo), e ali é o TUCA depois que pegou fogo e foi destruído, foi ali que aquela
cena do discurso aconteceu, aquelas vaias todas foram produzidas naquele cenário
do TUCA destruído. Eu estava lá naquele momento, eu era plateia durante aquele
discurso, e eu não sabia muito por quê, era muito mais uma intuição. Hoje eu tenho
um pensamento articulado, fui fazer academia, me informei de um monte de coisas,
então eu posso explicar. Mas naquele momento eu não explicava nada, eu sentia
que aquilo fazia sentido, muito mais sentido do que as vaias, que aquelas vaias não
percebiam o que tinha de afirmação naquilo tudo, o que tinha de movimento, de
revolucionário, de uma proposta de superação mesmo desse complexo de vira-lata
que o Nelson Rodrigues tanto falava do Brasil. Mas ali, no meio daquela vaia toda,
tinha agentes infiltrados de uma esquerda mais retrógrada, e era essa esquerda que
estava insuflando aquela vaia, dizendo que eles eram alienados. Então existia isso,
chamavam aquela moçada de alienada, acusavam de estar a serviço do imperialismo
etc. E eu não concordava com isso, apesar de eu concordar com a revolução, então
eu achava que estava errado.
Quinze anos depois, eu vou fazer a minha visão da Tropicália, e vou dentro de uma
chave tropicalista, dentro de um conceito de criação, de articulação antropofágica. O
filme é um ato de sentar-se à mesa e deglutir: são os ingredientes, o preparo, levar para
o forno, tem a mastigação. Tem cinco cartelas no filme que seguem essa ideia. É um
ato de deglutição, é um ato oswaldiano, então é um ato não só tropicalista, mas é um
ato oswaldiano que tem uma importância muito grande.
Mauro Trindade: Não
acho que é um fundo musical meramente. INFINITA TROPICÁLIA tem
uma lógica própria da música, da mesma maneira que as artes plásticas têm uma lógica própria, você não pode entender de outra maneira as perguntas: “O que você quis
dizer com isso?”, “Explique em palavras?” Esse “explicar em palavras” não explica
tudo. Tem uma lógica própria da música, do cinema, das artes visuais, tudo está dentro disso. É por isso que no momento em que o Caetano Veloso é atacado no TUCA,
muita gente queria que fosse uma lógica, digamos, político-ideológica simplesmente.
E a lógica do Tropicalismo não é meramente político-ideológica. Passa por comportamento, por estética, por outros campos que vão além dessa questão, digamos assim,
oral-articulada. Na verdade, o prazer que ele está falando de assistir a um filme, de
gostar e ter prazer, isso também faz parte de certa lógica, mas que não precisa ser uma
lógica tão racional. Acho que é isso que torna o filme gostoso, pois é um filme para se
ver, para se ouvir e para curtir de todas as maneiras.
28
Adilson Ruiz:
Plateia:
Se no final você ainda sair com alguma ideia na cabeça, melhor ainda! (risos)
Eu não lembro qual foi o artista que você entrevistou, que estava quase declamando
um manifesto antropofágico, quando ele fala “ainda precisamos de elementos externos, ainda, ainda!”
Adilson Ruiz: É
Plateia: É
o Décio Pignatari.
muito interessante, voltando ao que estava sendo debatido antes, que esse “ainda” é
hoje ainda. Isso já foi debatido e não vou voltar, o que eu queria falar é especificamente
essa coisa do “ainda”, por que “ainda”? Porque esse “ainda” é essa busca de uma identidade nacional desde o romantismo, desde a vinda da família real, é a busca por esse
herói brasileiro, essa identidade nacional, e o que ele representa. Então tinha o José
de Alencar com o anagrama Iracema, que é América, com todo o movimento de usar
o índio como o herói brasileiro, uma tentativa de falar do Brasil com orgulho, vamos
falar da América com orgulho, essa luta por isso tudo. Depois vem o Modernismo que
é uma releitura de todo esse processo, com o Macunaíma que é uma releitura desse
índio. É interessante ver que até hoje não foi estabelecido esse herói, a gente não tem
esse herói brasileiro. Eu acho que hoje essa busca da identidade nacional é diluída, mas
a gente não tem esse herói brasileiro. Eu sou novo, mas lembro que o Lula tinha essa
coisa de herói, todo aquele alvoroço, o que foi diluindo com o passar dos anos. No
momento da eleição foi interessante, aquele dia da eleição teve essa coisa do herói, mas
não se tem esse herói brasileiro. E eu acho que a arte está aí para tentar refletir isso e
achar esse herói. Acho que o filme aborda essa luta que não é só brasileira, é americana
em si. Outro comentário que eu gostaria de fazer é que em um período de restrição,
como essas décadas, todos os problemas ficam muito evidentes, eles ficam visíveis.
Adilson Ruiz:
Plateia:
O inimigo está desenhado com clareza.
É isso, então hoje não se tem uma restrição, se dilui essa visibilidade dos problemas,
mas os problemas se multiplicaram e são tantos que a gente não consegue enxergar direito. E acho que nesses momentos de repressão eles são mais visíveis e os movimentos,
como a Tropicália, se tornam urgentes.
Adilson Ruiz: Bom,
nos seus comentários você falou sobre o herói. Eu não sei se a gente precisa
de um herói. O que a gente talvez precise, e acho que está acontecendo aos poucos, é se
afirmar como país, como nação, descobrindo que a gente tem identidade, tem cultura
própria, e tem o que dizer e tem o que propor. E ter o que dizer e propor não apenas
na música e no cinema, mas ter o que dizer e propor na economia, na tecnologia.
Acho que é isso que está se projetando. A impressão que eu tenho é que o Brasil hoje é
a vinte anos. Mas isso vai depender muito da gente assumir ou não esse destino em
nossas mãos. É pensar que esse país é a gente que faz. Não tem Lula que vai fazer! Ele
pode ser um caminho, um meio, pode ser uma ferramenta – o político é ferramenta
do povo, não o contrário –, tem que se construir mais isso, construir melhor a nossa
política de tal forma que conseguiremos resolver melhor os problemas. Eu quero ser
2
VERDADE TROPIC AL
melhor do que era há vinte anos. E tenho a impressão que vai ser melhor ainda daqui
29
otimista, acho que a gente está num momento tão motivador quanto a moçada dos
anos 60. Acho que a gente não está devendo para os anos 60. A gente tem que entender
aquele tempo, mas perceber que o nosso momento hoje é um momento muito forte,
vivo, com muita perspectiva. Não vamos apenas babar sobre os anos 60, quem sabe
nesse começo do século XXI, que é mais um ciclo de trinta anos, as coisas se recolocam de outra maneira, de outra forma. Eu espero que esteja acontecendo isso, mesmo
que a gente não construa um herói, mas que tenhamos vários semi-heróis, e alguns
anti-heróis também. A gente precisa de uma cosmologia mais ampla de heróis para
poder construir um caminho.
Plateia:
Queria fazer um comentário sobre esse assunto. Quando pensamos nesse período dos
anos 60 a 70, observamos uma evolução na arte, uma puberdade, uma adolescência
vindo do cinema, da música, várias vertentes surgindo. Mas olhando de 2000 em diante, não percebemos tanto essa efervescência. Se quisermos caçar alguma coisa nova
tem que ser mais no cenário alternativo. Mas a minha pergunta não é sobre isso. É um
absurdo hoje a dificuldade que a gente tem de ter acesso às grandes obras do cinema
nacional, por exemplo. É muito mais fácil a gente encontrar um Chaplin que um Ruy
Guerra, um Glauber Rocha. Então eu queria saber se existe alguma forma de ter acesso a esses filmes que foram exibidos aqui hoje?
Mauro Trindade:
Tetê Mattos:
Acho que essa pergunta é boa para a Tetê Mattos responder!
É realmente muito difícil, até para fechar as sessões temáticas do evento é muito
difícil, porque às vezes a gente escolhe um filme e nem sempre essa cópia está disponível, e a ideia do evento é justamente desengavetar esses filmes. No caso, por exemplo,
dos filmes de curta-metragem, parece que eles têm um prazo de validade. Você faz um
filme em 2008, e você pode exibir em 2008 ou 2009. Já a ideia do evento é justamente
possibilitar essa oportunidade de exibir filmes que não estão por aí. Tem alguns projetos hoje que estão disponibilizando alguns filmes, um deles é a Programadora Brasil,
um projeto do governo federal, e a ideia deles é disponibilizar a produção brasileira de
curtas, médias e longas (www.programadorabrasil.org.br). É um projeto mais direcionado para ONGs, para exibições sem fins lucrativos, mas ali essa produção começa a
ser disponibilizada.
Mauro Trindade: Só
para complementar um pouco isso, acho que o problema da distribuição é o
bem e o mal do capitalismo, é essa a “faca de dois legumes” que a gente vive. Entretanto, acho que hoje, já que você citou a questão da indústria fonográfica, a indústria fonográfica vive em um momento de transe tremendo, exatamente porque as tecnologias
avançaram tanto que ultrapassaram a concepção da própria indústria fonográfica como
existia, que era catar um produto, seja lá qual for, lançar, vender em CD, ou anteriormente em LP, para depois as pessoas consumirem isso. A verdade é que a tecnologia
digital deu uma rasteira nisso e as indústrias fonográficas estão sem pé nem cabeça.
Hoje, é mais fácil dar uma “cavucada” na internet que você vai achar coisas muito mais
interessantes que na loja. Vocês se lembram que existiam lojas de discos? (risos) Tem
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quantas aqui em Niterói hoje em dia? Uma ou duas. É um momento extremamente rico
de transformação, é uma coisa muito interessante que está acontecendo. Os filmes do
Adilson, vários deles estão indicados no site www.portacurtas.com.br. Nesse sentido,
festivais como este são fundamentais, porque eles dão a oportunidade de mostrar esses
filmes e reunir pessoas interessadas, pois é trocando ideias que a coisa anda.
Adilson Ruiz:
Para completar, o meu primeiro filme está sendo restaurado, é de 1976. É um
filme sobre eleições para vereador em São Paulo, um pouco musical também. É o primeiro filme da minha carreira que está sendo restaurado. Tudo o que eu fiz até os anos
90 – depois de lá para cá eu acabei não produzindo muito porque me envolvi com a
academia e para o cinema é preciso tempo, então eu me afastei um pouco da produção
–, todos os meus filmes estão exigindo uma restauração, cópias novas para fazer uma
digitalização, para lançar em DVD, e isso exige recursos. Tem que ir atrás mesmo,
significa uma grande chateação, fazer projetos, entrar em editais, pedir dinheiro, mas
esse é o caminho para a disponibilização dos nossos filmes. Por outro lado, hoje tem
muito da produção cinematográfica brasileira já digitalizada e disponível, como, por
exemplo, a filmografia do Glauber Rocha, que está sendo restaurada e lançada. Eu sou
professor e nas minhas aulas, se precisar de um exemplo, tenho uma gama enorme de
filmes brasileiros em DVD que eu não tinha antes. Há quinze anos era necessário ter
um projetor para a exibição em 16mm pois não tinha outra possibilidade. Hoje esse
material está sendo recuperado porque existe um grande interesse, tanto pelo valor
social como pelo valor econômico.
Plateia: Quando
você fala que a gente não deve nada para a geração de 60, eu vou discordar.
Achei o seu filme genial, é o tipo de filme que deixa a gente sem fôlego, mas eu acho
que a gente deve. Eu concordo com o comentário sobre a produção musical excepcional nos 60 e 70, e de 2000 para cá a gente não tem, é claro que guardadas as proporções do período, dos contextos históricos. Mas eu acho que a gente deve sim, a gente
deve em animação, eu acho que a gente deve principalmente em entrega. A minha discordância se explica não pela questão de idade, já que eu sou nova, mas pela diferença
de olhar. Você tem um olhar que eu acho muito bacana, que não fica babando a Tropicália mesmo, que pega o essencial. Mas eu tenho um olhar, e eu acredito que a minha
geração também tem, que se encaixa na frase “Não vale a pena”. Eu escuto muito isso.
Então, quando você fala que a gente não deve nada para a década de 60, eu acho que
deve, sim. Deve por conta disso: dessa falta de entrega para as causas.
Só para completar, por mais que nos dias de hoje tenhamos mais acesso à cultura,
eu acho que se 60 não tivesse existido, nós não teríamos esse espaço hoje. Eu trabalho com escolas e, conversando com os estudantes, pelo menos a maioria não sabe
a própria raiz, de cidade, de país, de cultura, de música. Eu acho que hoje em dia a
necessidade de conteúdo é pouca. Acho que na década de 60 as pessoas procuravam
mais. Você falou que em 70 fez um filme sobre eleição. Com essa evolução toda, hoje
você tem que ficar dois, três anos fazendo conscientização sobre as eleições para um
2
VERDADE TROPIC AL
Plateia:
31
povo que já devia saber disso. E naquela época você não precisava falar que alguém
era corrupto para não ser votado, as pessoas iam às ruas e gritavam que era corrupto.
O universitário na época tinha uma função primordial, e hoje eles são somente estudantes. Também falaram de heróis, que a gente não tem tantos heróis, mas eu lembrei
de Palmares, Tiradentes, Zumbi. Temos, mas é mais fácil falar de heróis americanos,
também da mesma época, mas que estão nos filmes.
Adilson Ruiz:
Plateia:
Heróis e super-heróis!
O meu comentário era no sentido de que o problema era desenhado. Hoje em dia é
difícil enxergar os problemas e criar uma música que fale sobre eles. Naquele período você tem palavras-chaves, tem contra quem gritar, você tem opiniões sobre como
resolver um problema, porque você tem um problema fixo, claro e concreto. Hoje em
dia a coisa está tão diluída que para achar uma solução tem que entrar muito nesse
mundo, e essa coisa de “não vale a pena” acaba estragando, porque esse processo não
está acontecendo. Essa é a visão que eu tenho sobre aquele período: ficava muito mais
fácil de identificar o inimigo. Não veja esse fácil como ironia, porque é um fácil doloroso; num período tão repressor se tem tantos movimentos, tanta arte, porque a arte é
a escapatória para você conseguir alcançar a massa.
Plateia:
Acho que o que acontece é uma falta de coletividade, mas acho que hoje as pesso-
as gritam, sim. Só que elas estão gritando sozinhas. Então acho que esses espaços
independentes cabe a cada um buscar, fazer uma resistência de buscar esses lugares
invisíveis. Mas é óbvio que quando a gente vê um filme desses sente muita falta dessa
coletividade. Temos que tentar resistir da forma que é possível hoje, já que naquela
época também não era possível de várias outras formas.
Adilson Ruiz:
Eu concordo e discordo de que as pessoas estavam mais conscientes. Não era bem
assim. A população excluída no Brasil sempre foi muito grande e esses movimentos
não chegavam totalmente a todas essas camadas, e os estudantes que estavam mobilizados não chegavam a ser uma coisa tão massiva. O que eu quis dizer é o seguinte:
não vamos ficar olhando para os anos 60 e pensando “como aqueles estudantes se
mobilizavam!”, e que aquilo era legal e a gente não tem saída. É preciso que isso seja
uma referência apenas. É preciso nos admitir como atores do momento presente, descobrir como se articula uma mobilização, pois existe essa mobilização. Os problemas
ainda estão aí: a periferia hoje está mais apartada do centro, está mais desenhada, o
movimento hip-hop é uma coisa importantíssima, forte, conscientizadora. Isso é uma
coisa importante, só que de alguma forma está um pouco distante da classe média.
Então a gente precisa perceber as gradações das coisas. Sou absolutamente contrário
à postura de se dizer que hoje é apenas marasmo. Devemos nos movimentar e eu acho
que existe uma movimentação. Talvez ela só não esteja clara, mas de repente as coisas
se aglutinam e se mostram, e a gente nem percebeu esse processo.
Plateia:
Para mim as coisas se aglutinaram de uma forma muito forte. Eu finalizei agora a
minha monografia, estava tentando levar o inconsciente para as pessoas, e com isso
32
eu acabei trazendo o meu consciente que eu não percebia. Eu me formei em pintura
e percebi que as coisas que eu escrevia eu só estou começando a viver agora. Sobre o
que ela falou de entrega, eu gostaria de contar uma performance minha que é muito
pequena, que na verdade só está em texto, e queria entregar aqui para vocês. Ela fala
desse turbilhão contemporâneo, essa coisa que a gente está vivendo. Então é rápida, é
sobre a consciência. É assim:
2
VERDADE TROPIC AL
O meu semblante
Atordoado
Retardado
Enfeitiçado por uma lacuna
Vazia
Extenso vazio
Onde caio num turbilhão dentro de um mar denso
E penso
Penso que quero parar, mas não consigo!
Quero parar e digo para mim mesma:
O meu semblante reflete uma amante
Do mais puro masoquismo existencial?
Será que é porque termina com “ismo”?
Masoquismo
Porque todos os “ismos” me pertencem!
Ah, que egoísmo!
Meu surrealismo lânguido me eleva e me leva
Para um lirismo sentimental
Os meus sentimentos se multiplicaram e se dividem
Se multiplicaram e se dividem entre eles mesmos!
E fazem um verdadeiro cabo de guerra
Ah, mas eu não quero guerra!
Eu quero um tropicalismo demasiado
Assim acabo de uma vez com o meu cubismo
De múltiplos lados!
Ah... Vamos lá!
Não desvia o olhar!
Não se divida tanto assim!
Porque sua expressão
Ultrapassa qualquer
Expressionismo
É assim, 8 ou 80,
Impressiona
Ou cai num buraco guardado
Dentro do mais puro campo
Aleatório!
Onde escolho a expressão na sorte!
Jogo um dado e o deixo cair
Meu dadaísmo vai se decidir por mim,
Vamos lá, Dadá
Decida!
33
Porque eu detesto escolher quando eu não sei a resposta
Vamos...
Eu te faço uma aposta
Será que és capaz de adivinhar
Qual expressão
O acaso jogará na minha mão?
Meu malabarismo utópico
Não acaba com o vazio
Nem tampouco o masoquismo
De “smile” estampado
Em diversos semblantes
De amantes
Que só querem gritar!
Ou nem isso,
Pois já caíram no mar denso do não saber
Pois já caíram e continuam caindo
Num turbilhão
E é nesse turbilhão contemporâneo
Que não nos damos conta de nos conhecer.”
Jacqueline Dalsenter
Jacqueline Dalsenter
34
Adilson Ruiz: Pois
Plateia: Eu
é, ela deu um passo adiante!
só falei porque eu achei que tinha a ver, porque eu falo sobre o Tropicalismo e, na
verdade, tudo isso que eu fiz, o que eu estava sentindo, foi com o inconsciente, mas
acabou que foi ótimo porque trouxe o meu inconsciente à tona. Então agora quero
participar mesmo dos eventos, quero estudar, ler, porque eu vi que tem que aglutinar
mesmo.
Adilson Ruiz:
Uma coisa que a gente precisa reforçar é a seguinte: sem educação, sem formação,
também não vai aglutinar nada. Então a gente precisa disso: se formar, se educar, buscar mais educação. Tem que se organizar e organizar o todo, não dá para esperar que
o artista resolva ou que os políticos resolvam. Quando eu falo que não devemos para
a década de 60 é porque eu estou vivo aqui, e tudo o que eu possa ter feito no passado
me trouxe até aqui. Mas se eu não fizer mais nada, acabou. Estou respirando no mesmo ar, no mesmo tempo. Eu achei ótima a performance dela, porque é uma atitude
de mobilizar, de andar, de construir, de fazer. Enfim, que não está devendo, está se
informando. Ela sabe o que é dadaísmo, sabe o que é cubismo, ela sabe o que é expressionismo, porque tudo o que ela disse demonstra que ela estudou, que ela sabe o que
essas coisas significam. No entanto, ela está fazendo isso agora e está nos propondo:
“Vamos fazer, vamos responder com a nossa poesia.” Então, obrigado!
Plateia:
Obrigada a vocês que compartilharam comigo. Eu concordo com o Chico Science
quando ele fala: “Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar” (Um Passeio no Mundo Livre, música de Chico Science e Nação Zumbi). Fazer esse projeto,
essa minha monografia, foi uma coisa impressionante porque eu sinto que dei um passo à frente, e de repente pensei até que fosse surtar, porque eu não estava mais no mesmo lugar. Descobri que eu vivia no meu próprio quadrado. Não que agora eu não viva,
eu posso estar inventando outro, mas pelo menos agora é um quadrado mais completo,
não só com o inconsciente, mas com o consciente, que também é importante.
Plateia:
Eu queria fazer uma síntese das coisas que ouvi aqui, fazer um amálgama. Primeiro,
o comentário sobre o Brasil estar sem herói e o exemplo usado foi o Lula, que é um
político. A gente pode pensar também no Getúlio Vargas, que pretendeu construir
uma imagem de pai do povo. Será que o herói tem que ser o cantor? O político? Aquela
pessoa que vai usar alguma ferramenta para transformar a sociedade? Às vezes o herói
sai do imaginário e eu vi um link com o seu filme no aspecto do Modernismo, porque
ninguém citou aqui o Macunaíma, que sendo um anti-herói é talvez o mais perfeito
herói brasileiro. Ele vem da década de 20, o Modernismo é relido quarenta anos depois
legado e a importância que a Tropicália deixou, mas ela já parece um tanto datada e
o mesmo não parece que vai acontecer com o Modernismo. Quer dizer, demos dois
passos de quarenta anos e me parece que a possibilidade das novas gerações se interessarem e se debruçarem pelo Modernismo, e tirarem coisas dali e produzirem coisas
interessantes, é muito maior do que a de releitura de qualquer outro movimento que
2
VERDADE TROPIC AL
pela Tropicália, e estamos quarenta anos depois da Tropicália. Conseguimos ver esse
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já tenha acontecido no Brasil. Talvez porque o Modernismo problematize e não tenha
solução de nada, o Modernismo questiona ou apresenta essa nossa possibilidade de
deglutir o que está em volta e devolver outra coisa. Então me pergunto, e é uma última
associação que eu fiz com o cinema. Tem filmes muito bons sendo produzidos agora,
mas não tem uma coisa de impacto. Será que este não é o momento em que a poesia
está muito ausente das obras audiovisuais? Pensando no Glauber, e esse é outro link
com os filmes que foram exibidos hoje, o Glauber dava conta de política, dava conta de
vários signos da sociedade, ele dava conta de experiências pessoais dele. Em Terra em
Transe, não é à toa que o personagem principal é um poeta, e hoje você não vê poesia
inserida minimamente no audiovisual em larga escala. Acho que a gente nunca vai pretender que a poesia seja consumida como o que é produzido industrialmente em escala
avassaladora, mas sempre que tem alguma coisa transformadora, uma coisa provocadora, aglutinadora, ausências que muitas pessoas reclamaram aqui, muitas vezes é em
um contexto que tem a poesia, que vai ajudar a dar o amálgama nesse caldo, e não
por acaso, depois de tantas discussões aqui nesse debate, tivemos uma performance de
poesia. Será que isso não tem a ver?
Plateia:
Eu não acho que falta poesia, acho que tem poesia, sim, mas é uma poesia diversa.
Plateia:
Acho que a questão é não conseguir ver o que está acontecendo como poesia, mas
daqui a dez anos isso possivelmente será mais visível, que é o que aconteceu hoje ao
vermos um filme sobre 1968. A gente percebe essa poesia no presente, a nossa percepção de hoje é diferente daquela época.
Plateia: Eu
acho que não é só porque estamos em 2008 solicitando algo de 2008 que talvez
não estejamos vendo tão claramente. Mas é um pouco do que a gente está falando desde o início, das coisas estarem mais escondidas de certa forma, dos espaços independentes que a gente precisa buscar. Acho que hoje em dia é tudo mais escondido mesmo,
e não é à toa que ontem o filme Quarta-feira de Cinzas, do Cao Guimarães,
me tocou muito. Porque parece que hoje os filmes querem mostrar coisas que a gente
não vê no mundo; e o seu filme mostrava muita coisa que a gente via. Muitos filmes
bons de hoje mostram coisas que a gente não vê, a gente nunca veria formigas carregando confetes de carnaval na quarta-feira de cinzas a não ser que o cineasta fosse lá
para mostrar isso, que é o que ele fez e é uma atitude. Acho que hoje em dia tem um
pouco essa diferença, que eu acho muito interessante, de querer mostrar uma coisa que
a gente não vê muito por aí, não tem como ver uma coisa coletivamente como era na
época que o filme retrata.
Adilson Ruiz: As
dimensões são outras. Quando o Tom Zé fala do Brasil que passava “de 40
para 80 milhões!”, agora passa para 200 milhões, ou seja, as proporções são outras,
tem mais que o dobro das pessoas no país que nos anos 60. Acho que não existe mais
essa coisa: você identificava um movimento e o movimento então ganhava força, dominava todo o âmbito da mídia. Hoje não dá mais, tem muita coisa ao mesmo tempo.
Acho que é isso que caracteriza a contemporaneidade: muita coisa ao mesmo tempo.
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Espero que essas muitas coisas que estão acontecendo estejam exprimindo essas verdades e essas necessidades de cada grupo, de cada tribo, de cada ambiente, e com isso a
gente faz um movimento que é diferente. Não é mais um movimento de pessoas, mas
é um movimento de movimentos. Existem movimentos que estão em todo lugar, aqui
nesta sala mesmo, e a gente não consegue apreendê-los, mas eles estão transformando.
Talvez a gente se encontre menos numa sala como essa, mas se você entrar na Internet,
quantas são as salas em que a gente se encontra o tempo todo, diariamente discutindo?
Hoje é muito mais eficiente você jogar uma informação na Internet, no Orkut, para
isso se tornar uma coisa de grande conhecimento.
OBRAS CITADAS
Artes plásticas:
Tropicália, de Hélio Oiticica (1967)
Filmes:
Fênix, de Silvio Da-Rin (RJ, doc., 12min, cor, 16mm, 1980)
Terra em Transe, de Glauber Rocha (Brasil, fic., 106min, p&b, 35mm, 1967)
ALENCAR, José de. Iracema. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006, 6ª. Edição)
ANDRADE, Mário. Macunaíma. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
FAVARET TO, Celso. Tropicália: Alegoria, Alegria. São Paulo: Kairós, 1979.
TORQUATO NETO. Os últimos dias de Paupéria. Rio de Janeiro: Max Limonad, 1984.
Músicas:
Um Passeio no Mundo Livre, de Chico Science e Nação Zumbi. Afrociberdelia. Sony Music Entertainment, 1996.
2
VERDADE TROPIC AL
Livros:
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Poliana Paiva e Adilson Ruiz
Antonio Carlos da Fontoura, Miriam Chnaiderman e Rubens Machado Jr.
José Celso Martinez Corrêa
38
Antonio Carlos da Fontoura
EU NÃO VIM PARA EXPLICAR,
EU VIM PARA CONFUNDIR
Participantes
Adilson Ruiz cineasta
Antonio Carlos da Fontoura cineasta
Miriam Chnaiderman cineasta
José Celso Martinez Corrêa diretor teatral, autor e ator
Rubens Machado Jr. crítico de cinema e professor da ECA/USP
Poliana Paiva mediadora
CINE ARTE
UFF
29/11/08
Sessão 3 I 35mm / vídeo
FILMES EXIBIDOS
O PALHAÇO DEGOLADO
de Jomard Muniz de Britto
e Carlos Cordeiro
PE, fic, 10min, cor, Super 8, 1976
B2
de Rogério Sganzerla e Sylvio Renoldi
SP, fic, 11min, p&b, 35mm, 2001
Chacrinha empresta a frase título da sessão
PASSEIOS NO RECANTO
SILVESTRE
“Eu não vim para explicar, eu vim para confundir”,
de Miriam Chnaiderman
SP, doc, 15min, cor, 35mm, 2006
que exibiu filmes que abordam a radicalidade
MUTANTES
dos tropicalistas José Celso Martinez Corrêa,
de Antonio Carlos Fontoura
RJ, doc, 7min, cor, 35mm, 1970
José Agrippino de Paula e Jomard Muniz
UZÉBRIOLOCO
de Britto, o psicodelismo dos Mutantes
de Adilson Ruiz
SP, fic/exp, 9min, cor, 35mm, 1990
e o espírito provocativo do Bandido
da Luz Vermelha.
Poliana Paiva:
Temas relacionados
Teatro Oficina, Tropicalismo,
José Agrippino de Paula,
Super-8, Movimento Superoitista,
Contracultura, Movimento Hippie,
Antropofagia, Oswald de Andrade,
Multiculturalismo.
Antes de passar a palavra para os nossos debatedores, em nossa mesa estão Adil-
son Ruiz, diretor do filme UZÉBRIOLOCO, o ator e teatrólogo José Celso Martinez
Corrêa, o professor de teoria e história do cinema da USP Rubens Machado e a diretora Miriam Chnaiderman, do filme PASSEIOS NO RECANTO SILVESTRE. Gostaria
criação e de realização, de como se deu a passagem do pensamento para a efetivação
do trabalho.
Adilson Ruiz:
Eu adorei fazer o trabalho com o Zé Celso. Fizemos uns dez ensaios, em vários
finais de semana, até fazer o filme. O processo de fazer o filme foi muito bom. Particularmente adoro a interpretação que o Zé faz, pois é uma coisa maravilhosa. Gosto
muito desse trabalho, gosto muito desse filme. Não sei se o Zé sabe, mas aquele plano
final da bigorna – a bigorna é o logotipo, é o símbolo do Teatro Oficina –, aí tem a
brincadeira com a bigorna que derrete, e tem toda uma memória de histórias do Zé,
do Teatro Oficina que vai aparecendo por camadas e forma aquele porta-retrato com
uma foto do Zé Celso na primeira comunhão com uns sete anos. Esse plano ganhou
um dos prêmios mais simpáticos do cinema que é o prêmio Panda, que não existe mais.
Era oferecido pelo Arthur Omar, o Carlos Reichenbach, e igual ao urso panda que está
em extinção, o prêmio era destinado aos planos em vias de extinção, eles escolhiam em
3
Eu Não Vim par a E xplic ar, Eu Vim par a Confundir
de passar a palavra primeiramente aos realizadores para falarem sobre o processo de
39
alguns festivais o plano que eles achavam peculiar e davam o prêmio, e foi um prazer
receber esse prêmio.
José Celso Martinez Corrêa:
Eu torcia para que a bigorna se derretesse totalmente, porque, além
de continuar sendo uma bigorna, ela virou de ponta-cabeça e tornou-se uma taça.
Então eu só posso falar sobre o Zébrio e sobre o filme se eu abrir a taça e encher essas
quatro bigornas.
Eu convido o rapaz que se achar mais bonito aqui presente, que tiver coragem de se
achar lindo como Ganimedes – eu estou aqui de olhos fechados –, por quem Zeus se
apaixonou em Tróia. O único deus de Tróia que se transformou em águia e levou para
o limbo para servir aos deuses. Então, o eu Zébrio convido, tomado por essa entidade
zébrica-dionísia convido. Cadê? (rapaz se desloca da platéia para o palco) Chegou, e ele
é corajoso, porque a timidez e o medo da beleza são um pecado enorme da juventude.
Eu vi agora no filme, eu era tão lindo e não sabia! Então, por favor, Ganimedes, abra o
vinho. Esse vinho é um vinho épico, e hoje nós tivemos uma sessão épica. Evoé! Evoé é o
rumor de tudo, é o rumor desse teatro, da nossa respiração, Evoé! (Zé Celso cantando)
Só duas coisas têm valor na vida:
comida e bebida
comida e bebida
comida é terra
Deus é terra
Dê-me terra
tua velha conhecida
que você chama
pelo nome que te apraz
pois com comida sólida
ela dá de mamar
ela dá de mamar
ela dá de mamar
aos mortais.
Agora soma para multiplicar bebida
que o filho de sêmele trouxe divino
do fruto molhado da vinha
embebedando os mortais.
Eu acho que a bebida é uma coisa ligada à música. Eu pediria seus ouvidos um
instante, a possibilidade musical do instante, a sensibilidade musical porque essa música tem milênios, essa letra tem milênios, foi musicada pelo Zé Miguel Wisnik e por
mim, e foi traduzida pela Denise Assunção, Marcelo e eu. É uma letra milenar, é uma
saudação lapidar:
Só duas coisas têm valor na vida
comida e bebida
comida e bebida
Comida e Bebida, de José Miguel Wisnik e José Celso Martinez Corrêa
40
Eu adorei o filme! Eu tinha horror de me ver; sempre que eu me vejo, depois eu me
detesto. Eu acho que isso é comum, principalmente para os atores; o diretor, não, ele
tem um distanciamento, ele vê mais que o ator. Mas eu quando faço alguma coisa tento ficar uns dois ou três anos sem ver, só então eu vejo. Mas agora eu perdi esse medo.
Eu até brinquei com o Adilson: ele quis fazer um filme sobre o meu irmão e ele não
queria tocar no assassinato, mas eu achava que tinha que tocar no assassinato, porque
faz parte da vida dele. O assassinato do meu irmão foi muito cruel, foi uma tragédia,
ele recebeu cem facadas – sete facadas matam uma pessoa, as outras noventa e três são
alguma coisa que não morre, e que se está tentado matar. Eu adoraria que ele fizesse
esse filme, mesmo sem a morte, porque este ano se completam 21 anos, é a maioridade
da eternidade do Luiz. Todo dia 23 às 14h30 a gente encena alguma coisa no Oficina
para celebrar a eternidade do Luiz. Não é uma questão de ficar preso a essa imagem
do assassinato, mas aconteceu uma coisa tão estranha, que é perto do Natal, é duas
horas e meia, o teatro lota e é a despedida, que depois a gente entra em férias. Então
esses dias têm um clima maravilhoso.
Este ano vamos fazer a comemoração encenando uma peça inédita dele, escrita por
ele, Cipriano e Chan-ta-lan (peça infantil escrita por Luis e Analu Prestes em 1973,
dirigida por Marcelo Drummond e Pascal da Conceição), às duas e meia, no Oficina.
Dia 23 a gente encerra o ano do cinquentenário com essa peça. Eu queria pedir ao
Adilson também para ele ceder uma cópia do filme para eu poder exibir no Centro
Cultural dos Correios, pois foi a única homenagem oficial que nós recebemos pelos
nossos cinquenta anos loucos, zébrios loucos, de loucas e loucos e milhares de pessoas
que passaram. A exposição será no Rio de Janeiro, com curadoria e organização da
Heloísa Buarque de Holanda, uma exposição modesta no Centro Cultural dos Correios, e acho que esse filme tem que fazer parte, como também gostaria de uma cena
do curta B2, que se passa num show dos mais maravilhosos que eu já vi na minha
um cenário muito escuro e o chão era todo coberto de gesso, era quase até o joelho de
gesso, uma atmosfera de loucura. Achei maravilhoso a Gal tomando vinho, cuspindo
vinho.
Realmente uma época de loucura que hoje foi revivida com toda a grandeza dentro
do doutor Jomard, do Super-8 do Jomard, que eu até pensei que poderia ser do José
Agrippino de Paula. Lindo o Jomard Muniz de Britto, que é o homem da Tropicália
de Pernambuco, precursor do Chico Science, precursor da revolução que viria com o
Chico Science. Depois o filme do Rogério Sganzerla que tem essa cena belíssima em
que a luz faz que só se vejam os quadros maravilhosos dele. O filme da Miriam, o Zé
Agrippino realmente é um gênio, ele escreveu o PanAmérica, que é sua obra mais conhecida, mas além de escrever esse livro ele fez um espetáculo maravilhoso, o Rito do
Amor Selvagem. Ele e a mulher, que era uma bailarina extraordinária, que foi para a
Áustria e descobriu totalmente o corpo. Ainda tem aquelas cenas magníficas de Arem-
3
Eu Não Vim par a Explic ar, Eu Vim par a Confundir
vida e foi feito no Teatro Oficina, o show da Gal Costa e do Macalé. Eles fizeram em
41
bepe, no apogeu de Arembepe, onde ela dança, ela está grávida, aliás, aquela barriga
enorme. Como é mesmo que chama o filho?
Miriam Chnaiderman:
Manhã.
José Celso Martinez Corrêa:
Exatamente, Manhã. E o filme maravilhoso dos Mutantes que traz
aquela fantasia, aquele Super-8 viajando nos grandes astros daquela época, esses astros que hoje não existem mais. Não sei o que aconteceu no mundo que não tem a
mesma propriedade alucinatória que tinha, houve uma perda, e eu não sei o que foi.
Mas o filme é uma viagem, e o legal é que o Antonio Carlos da Fontoura traz para o
real, e a viagem continua com eles cantando na Praça da República, na feira hippie, é
maravilhoso.
Foi uma noite, inclusive, em que eu vi muita gente que eu não via havia tempos, vi
a Silvinha Werneck que está no filme do Agrippino. Era uma mulher maravilhosa e foi
morta na África porque transou com um cara de outra tribo, e as mulheres amarraram
ela no pau e mataram a pedradas. Ela era musa da minha geração, o Jorge Ben fez
aquela música “que maravilha, que maravilha… ela vem toda de branco…” (trecho da
música Que maravilha, de Jorge Ben Jor) em sua homenagem. Era uma menina linda,
genial, maravilhosa, eu quero muito que a memória dela seja revivida, uma grande
musa de uma época de muita pulsão estética, de muita pulsão erótica, de muito amor
pela beleza e de muito amor entre os artistas, como nessa mesa aqui eu não sabia que
ia encontrar a Miriam e o Antônio Carlos da Fontoura. Estou extasiado com o que
aconteceu esta noite, estou maravilhado e agradecido. Bravo! Bravo! E esse espírito
eu sinto que está mais vivo do que nunca pelos aplausos de vocês, principalmente aos
Mutantes, de como vocês viajaram com eles. Viva os docinhos!
Miriam Chnaiderman:
Uma coisa que eu queria deixar clara aqui, acho que não entrou no catá-
logo o nome do Rubens Machado, mas o Rubens é parte da equipe, fez a pesquisa,
estruturou o material, queria deixar claro que o Rubens é parte desse processo todo.
A ideia de fazer esse documentário não foi minha, foi do David Calderoni. Eu
sou documentarista e psicanalista, não sei qual é a ordem. Acho que o documentário
brota do lado psicanalista, é um jeito de eu ir para o mundo, enfim, me esparramar
pelo mundo, e tem sido uma coisa muito rica para mim. O Zé Agrippino eu conheci
nos anos 70, quando eu conheci o Zé Celso também, na casa dos meus pais. O Zé
Agrippino era um homem lindo, muito lindo, namorado da Maria Esther Stockler. Eu
fazia dança e por isso conhecia a Maria Esther, que frequentava muito a minha casa.
Eu tinha uma memória do Zé de quando eu era menina muito linda, eram anos muito
fecundos, eu lembro o espetáculo Rito do Amor Selvagem, e depois nos anos 80 ele
publicou. O Caetano Veloso fala páginas e páginas do Zé Agrippino no Verdade Tropical. Eles eram um casal guru, um pouco John Lennon e Yoko Ono do Tropicalismo,
uma coisa muito bonita.
Bom, nos anos 80 eu revi o Zé Agrippino andando pelas ruas de São Paulo, um
louco de rua, e soube depois que ele estava na casa da família em Embu. O Zé Agri42
ppino tinha – ele morreu uns seis meses ou um ano depois da gente concluir o filme
(José Agrippino de Paula faleceu no dia 4 de julho de 2007) – um diagnóstico de esquizofrenia, era o jeito de ele ter uma pensão do Estado, ele vivia dessa pensão. Vivia
nessa casinha como vocês viram no filme em Embu. Tudo começou porque o David
Calderoni, que é psicanalista e músico, o procurou depois de ter visto uma entrevista
do Zé Agrippino quando foi relançado o PanAmérica. Na entrevista, o Pedro Bial perguntou: “O que você acha do diagnóstico de esquizofrenia?”, e ele respondeu: “Bom,
num país que paga o que paga para alguém que escreve, a esquizofrenia pode até ser
um instrumento para ter algum dinheiro para sobreviver!” E o David se agarrou nisso
e me procurou. Falei: “Vamos lá, vamos procurar o Zé e ver de que jeito ele quer contar essa história.” Quando chegamos ao encontro com o Zé Agrippino, ele nos pediu
uma câmera igual a que ele tinha filmado Céu sobre Água. Foi quando eu procurei o
Rubens Machado, pois ele já havia feito trabalhos sobre os filmes do Zé Agrippino.
O Rubens tem uma coisa muito pensada, muito rica sobre o Céu sobre Água, e tinha
organizado a mostra Super-8 no Itaú Cultural. Então a gente foi atrás da câmera para
o Zé e entramos num delírio que ele ia filmar. Delirantes fomos nós que achamos que
ele ia voltar a filmar, que ele ia voltar a ser produtor de cultura. O documentário é
sobre isso. Eu tenho muito material, que daria um longa.
Adilson Ruiz:
Mas ele filmou alguma coisa? Nem um plano?
Miriam Chnaiderman:
Não, eu deixei na suspensão. Eu tinha um prazo, eu ganhei um prêmio
para fazer esse filme. Fui estendendo o prazo, e eu perguntava: “E aí, Zé, já filmou alguma coisa?”, e ele sempre falando que ainda não mas que iria filmar, e o filme termina
nessa suspensão. Muita gente me pergunta se ele filmou ou não. Mas ele viu o filme, a
gente levou para ele assistir e ele se encantou, foi um momento muito bonito. O filme
foi selecionado para o festival É Tudo Verdade e antes da exibição para o público nós
mostramos para ele, foi muito bonito.
VESTRE estar aqui nessa sessão porque o que aparece nos filmes que foram exibidos
hoje é uma imensa liberdade de filmar, é uma riqueza de possibilidades do cinema que
me encanta. Então acho que essa sessão é uma grande homenagem a anos de criação e
uma tentativa de refazer esses momentos de enlouquecimentos criativos, e não é apenas nostalgia, é uma coisa que continua ainda, porque todos nós aqui continuamos
fazendo. O jeito que eu busquei para fazer esse documentário foi a partir de uma coisa
do tempo, de uma coisa que se mistura e que frutifique por aí, gerando coisas tão outras, com uma alteridade absoluta em relação ao que a gente costuma ver no dia a dia.
Antonio Carlos da Fontoura: Bom,
antes de falar do filme, eu gostaria de falar da sessão. Eu adorei
essa sessão porque é um período tão fantástico, eu vi tantas pessoas que eram ícones
para mim naquele momento; o Zé Agrippino era um ícone para mim, o PanAmérica
fazia muito a nossa cabeça. Ver o Lanny Gordin no filme do Rogério foi duro. Eu
amava o Lanny, inclusive ele está nos meus filmes, na época em que eu fiz o filme dos
3
Eu Não Vim par a Explic ar, Eu Vim par a Confundir
Particularmente estou muito comovida do filme PASSEIO NO RECANTO SIL-
43
Mutantes. Eu fiz três filmes nesse período sobre música, o outro era com Gal, filmado
no Teatro Oficina, conforme o Zé falou. Mas essa liberdade desse momento realmente é fantástica, eu já tinha feito dois curtas e um longa-metragem em 68 quando eu
descobri o Super-8. Eu comprei o meu do Otávio Neto, meu produtor nesses filmes.
Para mim, embora a minha adolescência tenha sido muito conturbada, e depois que
eu fiz o Copacabana Me Engana, um filme sobre a minha esquina, e que teve um
milhão de espectadores, a minha vida ficou meio maluca e eu voltei à adolescência.
Adolescência não, acho que voltei à liberdade. Passei de dois a três anos da minha
vida só filmando em Super-8, e eventualmente fazendo essas experiências musicais e
sobre pintura.
Esse filme MUTANTES é o segundo num projeto de três filmes que eu fiz junto
com o David Neves e o André Midani, que na ocasião era diretor da Philips. Nós
resolvemos criar um empreendimento chamado Pop Filmes, objetivando filmar todo
o catálogo da Philips. Cada curta ia ter alguém: Caetano Veloso, Gilberto Gil; enfim,
eu escolhi fazer primeiro a Gal. O filme é um clipe mesmo, é a Gal cantando três
músicas, com fotografia do David Zing. Foi um trabalho super legal. No filme, vemos
a Gal novinha lá no Leblon, com a bolsinha vermelha se arrumando para cantar, o
cabelinho… era demais! E aí o segundo filme foi o Mutantes. Eu me amarrava nos
Mutantes, eu tinha colocado eles no Copacabana Me Engana, eles cantam na trilha
do filme. Tinha visto um show extraordinário na boate Sucata com a Gal, o Caetano,
o Gil e os Mutantes. Talvez o show mais incrível de música brasileira que eu já assisti,
com cenário do Hélio Oiticica, realmente era uma coisa fantástica. Então eu falei com
o David: “Vamos fazer os Mutantes!” Na ocasião eu era vizinho e muito amigo do
Antonio Calmon, o melhor assistente de direção da época; aí eu falei: “Calmon, vai
comigo e você vai ser o diretor assistente!”.
Fomos para São Paulo sem nada na cabeça, realmente sem nada na cabeça. A única
certeza era o encontro com os Mutantes. Éramos eu, o Calmon e o Renato Neumann,
que era o câmera. O filme foi captado sem som, a trilha toda é montada posteriormente, uma tomada em 35mm sem som. Marcamos o encontro na Praça da República e
saímos por ali brincando, botamos num carro e estávamos cheios de coisas, passávamos e “Vamos filmar aqui nesse boteco? Vamos!” Foi tudo sendo inventado com total
liberdade. Tem uma coisa muito curiosa que são os Super-8; esses Super-8 são de uma
viagem da turma à Disney, feita um pouco antes do meu filme. A ampliação desse Super-8 aconteceu da maneira mais primitiva do mundo; no final aparece, por exemplo,
uma imagem da Coca-Cola ao contrário. Por que ao contrário? Não tinha dinheiro
para ampliar, então a gente projetava em um lençol e filmava do outro lado com a
câmera 35mm, essa foi a ampliação que a gente fez! Então, um filme feito só com a
vontade de fazer, com a vontade de brincar um pouco, com o espírito dos Mutantes.
Esse filme me lembra o Help dos Beatles, eu adorava esse filme, adorava os Beatles
como adorava Os Mutantes, e continuo adorando todos cada vez mais.
44
José Celso Martinez Corrêa:
Mas você me arranja uma cópia para eu colocar na exposição?
Antonio Carlos da Fontoura:
Claro, está arranjado!
Rubens Machado Jr.:
Bom, eu fui convidado para comentar a sessão e vou falar de três coisas
diferentes. A primeira delas é o filme O PALHAÇO DEGOLADO. O Jomard Muniz
de Britto é um amigo que eu conheci pesquisando a produção Super-8 experimental.
É uma figura que começa a ser lentamente descoberta ou redescoberta fora de um raio
recifense depois de certo ostracismo, que aliás é parente do mesmo ostracismo a que
ficou relegada toda uma produção marginal, ligada à contracultura ou à resistência
política, e que tem na realização Super-8 parte bastante expressiva. Filmes que praticamente não foram exibidos depois da década de 70; quem viu viu, quem não viu
praticamente não pôde mais ver.
Nessa pesquisa eu fiz um trabalho de recuperação desses filmes, às vezes inclusive
contra a vontade dos próprios realizadores, que não davam grande importância para
o que tinham feito. Em alguns casos os filmes foram premiados, mas alguns diretores
achavam que era coisa de criança, coisa que não tem a menor importância.
De fato, os padrões de avaliação estética dessa produção precisam ser pensados
segundo outros parâmetros, pois eles desafiam os critérios que a gente usa para avaliar, há outros fatores em jogo. Eu levantei uns setecentos filmes feitos nessa bitola,
vi pouco mais de quatrocentos experimentais para escolher 120. A mostra aconteceu
primeiramente em São Paulo e depois rodou o Brasil. Essa produção continua de certo
modo carente de um olhar mais crítico, um olhar mais interessado, uma divulgação
mais sistemática, e acho que é um continente a ser explorado.
O Jomard é uma figura exuberante e talvez seja uma das cabeças pensantes mais
significativas dessa constelação, inclusive naquilo que possui de não-reconhecimento,
naquilo que tem de presença controversa, viva, comunicativa, mas um tanto obscura,
difícil de ser compreendida hoje. O Jomard participou quando jovem da experiência
participando da experiência que originou a teoria do Paulo Freire. Depois virou professor de filosofia. Seu primeiro livro, Contradições do Homem Brasileiro, foi censurado em 1964 e por isso não foi distribuído. O livro é uma reflexão sobre os desafios
enfrentados pelo intelectual brasileiro, foi publicado numa dessas edições populares
de então, pela editora Tempo Brasileiro, com intenção de elevar a consciência política.
Logo em seguida ele publicou Do Modernismo à Bossa Nova, que é sobre a relação
entre o Modernismo e a bossa nova, com prefácio do Glauber Rocha, amigo dele de
juventude. Mais tarde a reflexão ensaística vai cedendo espaço ao poeta, o existencialismo engajado ao poema processo. Um poeta de mimeógrafo, um representante da
Tropicália em Recife, um agitador cultural; até hoje ele continua fazendo algo assim,
como panfletos para serem lidos em praça pública. Ele tem uma lista de e-mail chamada Atentados Poéticos, um correio para poucos privilegiados. Esses ”atentados” são
festejos algo críticos, uma mistura de ensaísmo com poesia e invenção; tem o Marcuse
3
Eu Não Vim par a Explic ar, Eu Vim par a Confundir
do Paulo Freire pelo interior de Pernambuco, acompanhando sua equipe nos anos 50,
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na cabeça, tem Sartre, tem Deleuze, que respira com todas as novas ondas, um pouco
na linha do próprio Glauber, que fez textos bastante criativos na década de 70, textos
descompostos, com uma sintaxe diferente. Ele vai um pouco nessa trilha e pensa sempre tentando desconstruir os fatos políticos então proeminentes.
O filme O PALHAÇO DEGOLADO é o mais conhecido do Jomard, muito por ter
ganhado destaque em circuitos localizados e por ser de uma época em que o Super-8
começava a repercutir em festivais com públicos ampliados, na segunda metade dos
anos 70. Nesse período tínhamos em torno de quinze festivais espalhados pelo Brasil.
Esse cenário foi mudando a própria sintaxe dos filmes Super-8, que passaram a ter um
público específico, passaram a respirar um espaço democrático naqueles eventos, que
tinham muito menos censura do que o circuito oficial. Desse modo foi-se alterando
a morfologia dos filmes, que passaram a ganhar inclinação politizada. Eram politizados na direção de uma luta pela abertura política, incorporando todas as estéticas
tropicalistas e pós-tropicalistas, cinema-novistas e marginais. Pode-se dizer que era
uma esquerda anarquista que se apoderou do Super-8 em contraponto às esquerdas
tradicionais que se aferravam ao 16mm. Nos festivais de cinema, como a Jornada de
Salvador, por exemplo, que foi durante muito tempo o principal evento do cinema independente e de oposição no país, tinha o tradicional debate entre cineastas, críticos e
público; apareciam profissionais liberais e vereadores, lideranças estudantis e artistas.
Reverberava com o brilho costumeiro a imemorial verve baiana, guarnecida de contrapontos com diferentes sotaques. Cada sessão apresentava filmes de estéticas, ideologias e bitolas variadas. O grupo de superoitistas baiano ligado ao Fernando Bélens,
Edgard Navarro, e Pola Ribeiro conta uma coisa curiosa: para eles, quem trabalhava
com 35mm era o pessoal fazendo filme chapa-branca, filmes preocupados em construir monumentos, nacionalidades, depois, em 16mm, vinha o pessoal da esquerda
tentando questionar os monumentos, e por último vinha o Super-8 jogando merda nos
monumentos. Eles contam isso até hoje morrendo de rir. É significativo desse espírito
extremamente virulento de crítica e de negação.
O Jomard tem uma frase que sintetiza muito bem, a meu ver, o espírito dessa
produção: “Lutar com o Super-8 é a luta mais vã”. Ele acha que, até pelo próprio
suporte, há em toda a produção experimental de Super-8 uma espécie de espírito de
negação. O Super-8 não fazia cópias boas e baratas, então o original é que era mostrado. Os autores levavam a cópia na mão, iam junto, acompanhavam as sessões, não
desgrudavam pois tinham medo que o projecionista a estragasse, e às vezes queriam
tomar o seu lugar. Então eram sessões raras e “autorais”. Quem viu viu, quem não
viu não vê mais – eram sessões auráticas. Contrariam o axioma da reprodutibilidade
técnica da arte, que para o Walter Benjamin distinguiria o cinema, e se aproximam
da performance e do teatro. Outro traço comparável com o teatral é o do iminente
aspecto local, eram produções que iam acontecendo e iam se respondendo localmente
de modo concreto.
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Os superoitistas não saem muito de suas cidades. Eles continuam até hoje morando
nessas mesmas cidades, o pessoal de Curitiba, o pessoal de Salvador, o pessoal de Recife. É um pessoal que não circulou muito e não ganhou projeção nacional, que o pessoal
do 16mm ou do 35mm, teoricamente, poderia ter tido e, de fato, não sei se teve. É raro
também que ele tenha migrado imediatamente do Super-8 para o vídeo, ou mesmo
para outros suportes mais “integrados”. Falo aqui, é claro, do superoitismo radical,
que é o experimental. Os outros superoitistas estavam, com frequência, instalados na
bitola por resignação provisória, mais por uma tática de acomodação econômica. Alguns experimentais, rara e tardiamente, foram para o 35mm, como o Edgard Navarro,
que há pouco ganhou o Festival de Brasília com Eu Me Lembro. Mas há uma postura
extremamente arraigada, há o interesse numa vida local, há uma pulsação concreta
da vida à qual eles são fiéis, a maior parte fiéis até hoje. O Jomard Muniz de Britto é
uma celebridade local (se é que isso não seria uma contradição em termos, “celebridade” hoje não pode ser local sem uso de aspas). Tem uma anedota contada pelo Celso
Marconi, um superoitista e crítico de cinema, que também não sai de Recife. Ele conta
que deu com um amigo em Nova York com uma lata cheia de caranguejos no asfalto,
os dois conversando e a lata ali. Vendo que os caranguejos estavam para sair da lata,
uma hora ele diz: “Escuta, você não se preocupa? Uma hora eles fogem dessa lata!” O
amigo respondeu: “Não, não tem nenhum problema, eles vieram de Recife: na hora em
que um está quase saindo, o outro vem e puxa!” (risos)
Por outro lado, os recifenses têm essa coisa, que aliás está no título de um grande
quadro do Cícero Dias: Eu Vi o Mundo... Ele Começava no Recife. Parecem autossuficientes, centrados, uma espécie de mônada de todo o Universo. De certo modo, esse
tipo de ostracismo que se vê no Jomard tem a ver com Recife, embora se repita com
muitos superoitistas radicais, tem em Recife sua expressão máxima. Surge lá a expressão anarcosuperoitismo. Além do Marconi, tinha na época um leque de figuras diferenYpiranga Filho, Rucker Vieira, Daniel Santiago, Geneton Moraes Neto. Este último,
hoje na Globo, diretor do Fantástico, seria uma exceção centrífuga que confirma a
regra centrípeta. A cidade vira em todo filme um cenário incrustado de significados em
filigrana só percebida por quem conhece Recife. O palácio em que evolui O PALHAÇO
DEGOLADO, ninguém diz, mas sabe-se que é a antiga Cadeia Pública que virou Secretaria da Cultura: isso muda tudo, desdobra e duplica, reveste de outro sentido e de
ironia cada palavra e cada gesto do Jomard-Palhaço. O Jomard é uma figura ótima dessa mônada pernambucana. Para brincar com o seu jogo, eu diria que faz dessa mônada
uma monada, inventa no seu trejeito burlesco uma momice recifense meio alegórica.
Sua inteligência combina capacidade de criticar e de brincar o tempo todo.
Mudando de assunto, mas não totalmente, eu estava lendo uma nota biográfica
do Zé Agrippino, começava com a sua data de nascimento em 13 de julho de 1937: é
um outro caranguejo. O interessante é que ele tem um pouco, como todo caranguejo,
3
Eu Não Vim par a E xplic ar, Eu Vim par a Confundir
tes como Amin Stepple, Paulo Bruscky, Kátia Mesel, Fernando Spencer, Paulo Cunha,
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essa história de se proteger do mundo externo. Possui a carapaça que o protege e tem
também as tocas que ele vai construindo mundo afora, e que ainda são proteção. O
canceriano tem essa coisa de não se dar às mil maravilhas no mesmo ambiente da sua
família, prefere realizar-se fora, longe de seus pais. É um bicho muito caseiro, mas está
sempre procurando construir essas tocas no desconhecido, longe da origem – bem ao
contrário do caso recifense. Essa relação com o desconhecido explicará sua carapaça,
de certa forma. A capacidade de se proteger é interessante para quem está sempre procurando algo. Acho que é uma boa metáfora para o Agrippino. Ele mora em Itu, São
Paulo, Rio, viajou na diáspora pós-68 por Londres, África, Nova York, Peru, depois
Arembepe na Bahia e Embu das Artes em São Paulo.
Uma das aflições que eu tinha entrevistando o Agrippino junto com a Miriam é
que ele contava histórias instigantes, mas que demoravam uns quarenta minutos para
começar a fazer sentido. Ele respondia às perguntas sem responder, começava a falar
de outras coisas. Era difícil perceber o sentido que aquilo, teoricamente, deveria fazer. Sempre respondia meio indiretamente à questão, falando de coisas em princípio
distantes. Eu pensava: “Como isso vai caber num curta-metragem? Precisa virar um
programa de televisão, uma minissérie!” Essa maneira dele se exprimir de certo modo
trabalha outro tipo de temporalidade. Eu me perguntava: “Será que a relação dele com
o tempo sempre foi diferente? Esse descompasso dele com o nosso tempo pode ser uma
explicação para entender o interesse que tem sua produção? Ele revela em seus filmes
um tempo cíclico, ou um tempo que tem outro tipo de lógica de unidade, que a gente
não percebe muito bem?”
Em Arembepe, no Céu sobre Água, a natureza é tempo cíclico, revelada por exemplo na gravidez da sua mulher: ora grávida, ora a filhinha já está lá. Mas o antes e
o depois pouco importa? O Agrippino filmava sempre na mesma hora do dia para
obter a mesma temperatura de cor, dizia que era às quatro e meia. Então haveria uma
temporalidade cíclica, é o tempo da natureza, é um convívio de tipo harmônico com
a natureza. Nesse sentido é um filme hippie, não com hippies ou sobre hippies, é um
filme hippie no sentido de que é uma experiência hippie. Ao mesmo tempo é um filme
de família, um home movie hippie. Ele filmou sua experiência em Arembepe com essa
temporalidade transcendental.
Por último, gostaria de falar sobre a herança da contracultura de 68. A Tetê começa o texto de apresentação do evento falando da necessidade de revisitar 68, mas é
curioso ver essa criatividade que a mostra apresenta, porque vai partir por um outro
lado de 68. Justamente esse aspecto do “bloco na rua”, com toda a metáfora de politização, mas ao mesmo tempo uma politização muito diferente. Essa originalidade de 68
precisa ser pensada, é um desafio para todos nós. Está acabando o ano de 2008 com
uma série de comemorações sobre 68 e continua um certo mistério. Tem os que falam
horrores de 68, pois a partir desse período realmente perdeu-se todo um solo para se
pensarem projetos utópicos; outros falam que é uma maravilha por ter sepultado um
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ativismo de esquerda autoritário, 68 teria vindo enterrar isso. As avaliações vão de um
extremo ao outro, e continua para nós um campo de indagação muito grande.
Eu queria terminar pondo essa questão, essa certeza de que pelo prazer a liberação
era revolucionária em 68. Uma geração toda contra a caretice, um sentimento de que
isso era virulento e muito contestatório. Acredito que hoje em dia, de certo modo, esse
sentimento foi incorporado pelo sistema capitalista. Ele nos pede a cada momento:
“Goze! Enjoy it!” Você precisa a cada momento gozar, é uma obrigação gozar, se junte
ao sistema que você pode gozar! Parece que o capitalismo integrou completamente isso.
O que eu acho é que a gente deveria pensar nessa diferença de paradigma, porque já não
é a mesma coisa, ninguém está tendo uma resposta muito clara nesse aspecto, porque o
curtir em 68 tinha um outro sentido. Então eu deixaria isso como interrogação.
Plateia:
Eu queria perguntar sobre essa nova visão, a visão publicitária, que não é apenas uma
visão do consumismo e já se tornou carnívora. Comparando essa linguagem com a
que foi mostrada na sessão de hoje, é uma linguagem totalmente diferente, uma época
diferente, mas é uma linguagem que renovou. Também tem a questão da visão norteamericana do Brasil. Eu tomei um susto quando eu vi a Rocinha sendo filmada e não
tinha um traficante na Rocinha, era uma visão muito doida.
José Celso Martinez Corrêa:
Eu acho o seguinte: é que você está dando valor a essas coisas e são
coisas que não têm valor nenhum. Esse é um império que está em total decadência.
A globalização entrou pelo cano, o mundo quer mudança, mesmo que o Obama não
seja isso tudo. O mundo foi contra não somente o Bush, mas também em relação ao
Partido Republicano, ao ideário do Partido Republicano. Consequentemente, eu sinto
hoje um retorno ao que, a meu ver, foi mais importante em 68. As lutas políticas e
partidárias messiânicas da esquerda por um mundo não sei de que maneira estavam
absolutamente superadas em 68; o que interessava era o “aqui e agora”. Esse “aqui e
a agora” em que o artista se instala, onde ele se relaciona como se fosse um homem
descoberta: houve um desmoronamento do messianismo em 68, do messianismo marxista, do messianismo capitalista, do messianismo das religiões. A coisa mais próxima
de 68 acho que é o zen budismo. Tanto em 1968 como na bossa nova, era um “estou
aqui e agora, e tenho uma certa possibilidade, tenho uma certa liberdade, estou livre,
posso fazer alguma coisa”. E é uma coisa inclusive que superou. Aí houve uma restauração enorme do mundo exatamente naquilo que 68 demonizava, que é a sociedade
do espetáculo, que era aquela sociedade vídeo-financeira construída para novamente
repor as pessoas nos papéis.
Em 68, todos saíram dos papéis. A gente não tinha papel, a gente não representava,
a gente atuava, a gente era, a gente estava! Tal como os Mutantes estavam nos delírios
deles, como o Zé Agrippino estava no contato direto com o cosmo, a consciência psicológica dele explodiu e foi para a consciência cosmológica, que está mais próxima da
percepção. Porque a consciência é uma coisa escrava, a consciência é uma coisa que
3
Eu Não Vim par a E xplic ar, Eu Vim par a Confundir
do neolítico em contato com a ambiência em que ele vive e respira. Essa foi a grande
49
ainda está na linguagem, que faz parte da sociedade do espetáculo. Por exemplo, eu
sei que tenho que fechar a porta do meu apartamento, que é preciso fechar a grade do
edifício, tomar uma série de cuidados, minha consciência me leva a isso. No entanto,
a minha percepção me mostra o cativeiro em que eu vivo, essa percepção não é apenas
minha; e isso tem um significado, o chamado fim das ideologias, fim das religiões, fim
dos monoteísmos, porque eles estão na decadência total, a crença em um Deus único,
numa ordem do mundo, numa organização, isso tudo está desmantelado, isso tudo é
tinta de papel atualmente.
Eu sinto que vocês estão vivendo e eu estou vivendo, eu tenho 71 anos, mas eu me
sinto contemporâneo à geração de vocês no sentido de que a geração de vocês tem
muito mais chances de transmutação que se tinha em 68. O ano de 1968 foi uma descoberta, foi um click que o mundo inteiro teve ao mesmo tempo. Aliás, começou no
Brasil, talvez por ser um país que tem essa mistura do índio, do africano, do imigrante;
se construiu aqui uma babel que o Oswald de Andrade captou como uma religação ao
primitivo, e o Picasso exemplificou há oitenta anos quando disse: “Eu não sou mais
moderno, eu sou o primeiro pós-moderno do mundo”. Depois veio a guerra, veio o
Nazismo, veio o Stalinismo, veio o Realismo, e apenas no ano de 1967, no Brasil,
apareceu o Zé Vicente fazendo uma revolução teológica no teatro, fazendo uma peça
chamada Santidade com dezenove anos. Nessa ocasião o Costa e Silva vai à televisão
dizendo que aquela peça jamais seria exibida porque era uma revolução teológica. A
peça sagra a sexualidade. O Plínio Marcos escrevia Navalha na Carne; o Hélio Oiticica tirava o quadro da parede, punha no corpo e descobria a ambiência; o Caetano
Veloso assiste a O Rei da Vela e retoma o elo perdido com a devoração do bispo Dom
Pero Fernandes Sardinha pelos índios caetés. Os ensinamentos sobre o Padre Anchieta
como um produtor da cultura brasileira a respeito do seu processo de transmitir aos
índios as peças e traduzir, na realidade, eram uma tremenda lavagem cerebral! E dessa
lavagem cerebral a nossa geração se deu conta, e foi buscar a memória do indígena,
do africano, da imigração e tudo misturado, tudo “antropofagiado”, sem essa coisa de
multiculturalismos: preto é lá, branco é ali, sapata é acolá, veado é mais para lá. Não,
é tudo misturado! Hoje em dia o Oswald de Andrade está sendo estudado no mundo
inteiro. Eu mesmo fiz conferência na Alemanha, fiz conferência em Moscou sobre antropofagia. Em uma conferência, encontrei um cara que tinha comido carne humana
devido a um acidente de avião que aconteceu aqui na América Latina e o cara era torturado por isso. Eu falei: “Poxa, cara, você sobreviveu, fica alegre, muda a visão das
coisas!” Mas os índios não comiam por fome, era um ritual de devoção e muito sábio.
Eu tenho a impressão que hoje essa cultura está muito forte no mundo inteiro, essa
cultura da mistura, ainda mais agora com a ascensão da China, da Índia, do próprio
Brasil, dos países da América Latina. Quem imaginaria um dia um presidente como
o Evo Morales? Ou como o Rafael Correa no Equador? Ou como o próprio Hugo
Chaves, que também é absolutamente demonizado pela Globo? Eles são tratados pela
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Globo como os Estados Unidos tratam a Coreia do Norte, o Irã, etc. A chegada dessas
figuras ao poder é tão importante quanto o Barack Obama, um negro, na presidência
dos Estados Unidos. É um índio na Bolívia! O índio, é claro, vai ter que topar com
os brancos que têm a riqueza nas mãos e um racismo absurdo. Aí você começa a ver
aqueles índios com laptops nas universidades e sente na pele o “tupi or not tupi” do
Oswald de Andrade. Essas coisas estão acontecendo.
Acho que vivemos numa época em que a cibernética permite que a gente veja esse
filme do Jomard Muniz de Britto, O PALHAÇO DEGOLADO, que é um filme extremamente apolíneo, a fotografia, os quadros do filme são belíssimos. Nós filmávamos
muito em Super-8, em toda a nossa vida de comunidade principalmente, porque com
a repressão houve uma época em que a gente não podia ir para a rua, então tudo
acontecia em comunidades. A gente viajava muito e acontecia muita coisa, a gente
levantava bandeiras que a própria polícia não suspeitava, a gente filmou tudo. Mas
aconteceu uma coisa triste na fuga quando a polícia veio nos prender, exatamente no
mês de abril de 1974: eu passei uma caixa cheia dos nossos filmes para uma pessoa que
deveria guardar em segurança, mas sumiu! Pode ser que um dia apareça, e se aparecer
a realidade cibernética vai receber muito bem, vai ter uma sobrevida. Quer dizer, é
uma época em que a gente não pode ficar lamentando contra a coisa do domínio do
imperialismo, porque nós temos que aproveitar essa brecha para avançar, e para criar
livremente, porque é um tigre de papel. Se eles estão vindo filmar aqui, eles estão sugando e coisa e tal, mas esses filmes são ordinários, são filmes que são sustentados no
poder do jabá – como na música é o jabá que paga a publicidade, que paga isso e aquilo
–, mas eles não existem, eles entram por aqui e saem por ali, mesmo porque a maior
parte do povo brasileiro nem no cinema vai ainda. Existe uma classe estruturada dentro da sociedade do espetáculo que consome isso, mas é muito pequena em relação à
maioria, e a maioria das pessoas tem outra interpretação do mundo, tem outra visão,
Acho que a gente não pode continuar com esse discurso, a gente tem que aproveitar
e ver que somos vitoriosos. Os filmes que foram apresentados hoje estão numa linha
afirmativa, é uma linha vitoriosa, não é nostálgica, ela é pilar de alguma coisa que está
acontecendo e que eu sinto. Eu acabei de vir de uma oficina de teatro com jovens realizada na Gávea e eu sinto uma sintonia enorme, uma comunicação enorme das coisas
todas. Isso eu fui descobrindo com o tempo. Por exemplo, quando aconteceu o ataque
ao Roda Viva (em 1968, no final de uma encenação da peça, vinte jovens do CCC –
Comando de Caça aos Comunistas invadiram o teatro, agrediram atores e técnicos e
depredaram o local), aquilo não era nada se comparado à grandeza que foi invadir o
palco e descobrir o espaço todo como um teatro, tocar no público. A Camila Paglia
define bem quando fala que houve uma ressurreição do paganismo.
Então o que significa aquele CCC? Caretas, cuzões ou caralhos? Nada! Eu fui torturado também, e daí? Eu estou pedindo revisão porque acho que essa discussão é mui-
3
Eu Não Vim par a Explic ar, Eu Vim par a Confundir
é outro lado da questão.
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to importante, é um crime inafiançável, não se tortura. Mas eu aprendi com a tortura
a amar o corpo humano da cabeça aos pés, a cultuar, a adorar o corpo humano, isso
foi muito mais importante do que ter sido torturado.
Eu acho que uma grande coisa de 68, que não é captada porque realmente a nossa
geração se dividiu, foi a descoberta do corpo: de um lado o corpo pegou em armas, foi
arriscar a vida, e o outro corpo foi para o desbunde, o que é uma coisa maravilhosa, o
desbunde é a desconstrução total do colonialismo no corpo, do colonialismo mental e
físico. O Teatro Oficina é o desbunde! Eu me orgulho do Teatro Oficina estar fazendo
cinquenta anos e a gente continuar aprontando.
Plateia: Na verdade, não é uma pergunta, é só um comentário. Apesar de fazer parte da equipe
do Araribóia, não fiz parte dessa seleção, dessa curadoria, então me sinto no direito de
elogiar a Tetê e a curadoria pela seleção dos filmes, porque realmente eu acho que para
a gente que não pertenceu e não viveu 68.
José Celso Martinez Corrêa:
Plateia:
Sim, mas eu estou dizendo de uma forma mais objetiva, como vocês viveram.
José Celso Martinez Corrêa:
Plateia:
Mas você está vivendo agora!
Não seja objetiva.
Mas eu queria parabenizar porque acho que diversos recortes sobre 68 retratam uma
dimensão excessivamente política, no sentido restrito do termo, e acho que a curadoria
dessa sessão nos leva a uma visão diferente, inclusive essa visão do corpo que o Zé
Celso falou muito bem. Acho que sempre vão existir dimensões que estaremos descobrindo, é um movimento infinito.
José Celso Martinez Corrêa:
Esses filmes são muito políticos, muito mais políticos do que aqueles
filmes ideológicos, que seguem o catecismo, etc. Acabou o catecismo!
Platéia [artista plástico Pierre Crapez recita poesia de sua autoria]:
Vendaval esfuziante
Gosto do seu grito
indecente e cruel
que atravessa,
sem descanso,
meu eixo sentido.
Deixa-me vasculhar
o teu lado obscuro
Deixa-me respirar
o teu halo glorioso
Ou será um sonho que
veio me acordar
me tirar de dentro
para expurgar a dor.
Ho! vida louca
cujo rosto me atormenta
me leva daqui
no teu aposento
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que eu quero te possuir
como se possui a virgem
e no prazer sublime
num último vertigem
mergulhar na Morte.
Vertigem, de Pierre Crapez
Viva a poesia!
José Celso Martinez Corrêa:
Poliana Paiva:
Viva a poesia! Todo poder à poesia!
Queria agradecer a presença de vocês e dessa mesa maravilhosa.
OBRAS CITADAS
Artes plásticas:
Eu vi o mundo... Ele começava no Recife, painel de Cícero Dias (1931)
Músicas:
Comida e Bebida, de José Miguel Wisnik e Zé Celso Martinez Corrêa. São Paulo Rio. Independente, 2000.
Que maravilha, de Jorge Ben Jor. LP 10 Anos Depois. Gravadora Universal (1973)
Filmes:
Eu me lembro, de Edgard Navarro. (Brasil, fic., 108min, cor, 35mm, 2006)
Help, de Richard Lester (EUA, p&b, 35mm, 1965)
Meu nome é Gal, de Antonio Carlos da Fontoura(RJ, doc, 12min, vídeo, 1970)
Livros:
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da cultura de massa.
5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
BRIT TO. Jomard Muniz de. Contradições do Homem Brasileiro. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1964.
BRIT TO. Jomard Muniz de. Do modernismo à Bossa Nova. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1966.
PAUL A, José Agrippino de. PanAmérica. São Paulo: Editora Papagaio, 2001.
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Teatro:
Cipriano e Chan-ta-lan, peça infantil escrita por Luis Antônio Martinez Corrêa e Analu Prestes em 1973.
Navalha na carne, de Plínio Marcos, peça de 1967.
O Rei da Vela, peça de Oswald de Andrade, encenada por José Celso Martinez Corrêa em 1967.
Rito do Amor Selvagem, peça de José Agrippino de Paula e Maria Esther Stockler (1969).
Roda Viva, peça de Chico Buarque de Hollanda, encenada por José Celso Martinez Corrêa em 1968.
Santidade, peça de José Vicente escrita em 1967.
3
Eu Não Vim par a Explic ar, Eu Vim par a Confundir
Céu sobre água, de José Agrippino de Paula (BA, exp., 22min, cor, Super-8, 1978)
Copacabana me Engana, de Antonio Carlos da Fontoura. (RJ,fic., 93min, cor, 35mm, 1968)
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Poliana Paiva
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Luiz Carlos Maciel
Rica Saito
METAMORFOSE AMBULANTE
MAC
30/11/08
Participantes
Rica Saito cineasta
Luiz Carlos Maciel escritor, jornalista e roteirista
Poliana Paiva mediadora
Sessão 4 I 16mm / vídeo
FILMES EXIBIDOS
DOCUMENTÁRIO
de Rogério Sganzerla
SP, fic, 12min, p&b, 16mm, 1966
PROCURA-SE
Na sessão “Metamorfose Ambulante”, título
de Rica Saito
SP, exp, 43min, cor, vídeo, 2008
inspirado na música de Raul Seixas, real e
imaginário se metamorfoseiam em filmes que
tratam do espírito da juventude dos anos 60:
o tédio, a inquietação, o movimento hippie e
a contracultura foram objetos do debate.
Poliana Paiva:
Temas relacionados
Falso Documentário,
Documentário x Ficção,
Cinema Marginal, Geração 60,
Contracultura, Cinema Underground,
Movimento Hippie, Comunismo,
Ditadura, Teoria das Lógicas
Paraconsistentes
Antes de passar para o Luis Carlos Maciel para ele dar um panorama dos dois
filmes da sessão, queria que você falasse primeiro sobre qual foi a sua motivação inicial
e depois como você foi desenvolvendo essa coisa da mistura da ficção com o documentário, como isso foi se construindo? Você já tinha isso na cabeça ou foi vindo no
processo? Depois a gente abre para as perguntas.
Rica Saito: A
motivação de fazer o filme a princípio foi a de fazer um filme. Eu me juntei ao
roteirista e ele me apresentou uma série de idéias. A mais legal que me pareceu foi a
de fazer um falso documentário sobre um músico que ninguém conhece. No entanto,
no meio do caminho, meu tio estava descobrindo uma série de filmes, entre eles o
primeiro que apareceu foi o do seu casamento. A gente viu que ali tinha uma potência
dramatúrgica e tivemos a idéia de associá-lo. Ele tem muitas músicas interessantes e
ninguém nunca ouviu falar dele da mesma forma, mas no meio do caminho a gente
pensou que também não dava para ser só isso, de alguma forma tem que abrir uma
porta para as pessoas conseguirem acessar a figura real, viva. Na verdade, acho que
tem várias camadas: de um lado é um pouco uma metáfora sobre a geração, sobre
uma homenagem.
Luiz Carlos Maciel:
Diria mais como você vê a nossa geração. Eu acho que foi muito feliz essa
idéia de juntar esses dois filmes. O primeiro filme do Rogério Sganzerla, DOCUMENTÁRIO, eu nunca tinha visto e achei que valeu a pena ter atravessado a ponte para
assistir esse filme. O filme do Rica eu tive acesso ao DVD pela produção do Araribóia,
então eu já tinha visto em casa, mas do Rogério eu nunca tinha visto. Achei muito legal
essa sessão por vários os motivos. Um motivo é essa questão da geração, que a gente
4
Metamorfose Ambul ante
como a nossa geração vê a geração de sessenta, setenta, e por outro lado é um pouco
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pode pensar um pouco depois. Mas para ficar no âmbito cinematográfico, eu achei
que era uma sessão perfeita para discutir uma afirmação do Godard, uma afirmação
famosíssima de Jean-Luc Godard, que diz o seguinte: “Todo filme de ficção, se é muito
bom, tende para o documentário. Todo documentário, se é muito bom, tende para o
filme de ficção”.
Essa é uma afirmativa estética audaciosa para as concepções mais tradicionais de
estética cinematográfica. Como assim? Ficção é ficção, documentário é documentário!
Como é que a ficção vira documentário só porque é boa? Como é que o documentário
vira ficção só porque é bom? Não sei como vocês estão reagindo a isso, mas acho que
depois de ter assistido a esses dois filmes a compreensão dessa máxima do Godard fica
muito mais fácil. O Rogério já conhecia essa frase do Godard quando ele fez esse filme,
não digo o mesmo do Saito, que veio muito depois. Mas nos anos sessenta essa frase já
tinha sido enunciada, e o que ele fez? Ele fez uma pequena ficção de dois amigos cinéfilos em uma tarde em São Paulo e virou um tremendo documentário! Visto hoje é um
documentário total sobre aquela época, sobre São Paulo, sobre cinema na época, sobre
como se fazia o cinema, como se via o cinema, ficou um documentário espantoso sobre
uma época que não existia computador, não existia DVD, não existia download, não
existia nada! Só existia o cinema. Se você quisesse ver algum filme tinha que ir ao cinema. Na minha juventude, para ver os filmes clássicos, para ver Joana D’Arc, para ver
o Gabinete do Doutor Caligari, enfim, era muito difícil. O presidente do cineclube de
Porto Alegre, a minha cidade natal, tinha que se virar muito para conseguir esses filmes, e quando a gente assistia ficávamos extasiados. Hoje tem em toda parte, você ver
esses filmes a hora que bem entender, pode comprar o DVD, pode baixar da internet.
Eu fiquei doido com esse negócio de download, eu baixei tudo, fiz uma cinemateca em
casa, baixei todos os clássicos, tudo que na minha juventude era um fenômeno extraordinário, assistir pelo menos uma vez um desses clássicos. Virou uma coisa simples:
baixa ali e ver. Então era uma época em que o cinema tinha isso. Eu não sei se a nova
geração vai apreciar a profundidade desse documentário do Rogério, mas para minha
a geração aquilo era uma coisa total.
No filme PROCURA-SE, do Rica Saito, a máxima que um documentário bom
vira ficção e uma ficção boa vira um documentário está exemplificada ao limite. O
filme exemplifica, prova, demonstra o que o Godard disse sobre cinema. Como eu
vivi aquela época e fui testemunha de como se viam as coisas naquela época, achei
que o filme foi muito fiel. Indica a perspectiva que a nova geração tem, ou a perspectiva que o Saito tem particularmente, ou a equipe do filme tenha, enfim, acho que
é um retrato fiel, muito compreensivo. Ao ver história do Mario Rocha, eu não o
conhecia, não conhecia a música, não conhecia nada do Mario Rocha, mas a saga
dele, da tribo dele e das pessoas que estiveram associadas a ele, é totalmente ilustrativa das principais características do que aquela geração sentia e pensava. Contra a
minha vontade, fui chamado de “guru da contracultura”. O Ruy Castro disse que
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eu estaria com esse epíteto grudado como uma corcunda e que eu teria que carregar
para o resto da vida. Mas devo dizer que o principal tema dentro da contracultura
foi a contestação dessa geração, que chegou e disse: “Está tudo errado, não é nada
disso, isso aí é mentira, é falso, tudo isso não tem nada a ver com a verdade mais
profunda do ser humano!” Isso em nível de filosofia, em nível de religião, em nível de
política, em nível de comportamento, de psicologia, de moral, principalmente moral
sexual. Porque sexo, para não dizer que é a preocupação de todos os seres humanos,
é certamente da juventude.
Tem outra questão que é pouco discutida e muito pouco aventada que é a relação
com o dinheiro, o centro do sistema instalado é a própria materialização do dinheiro.
Foram várias as influências fundamentais da contracultura: o anarquismo, a beat generation, a vanguarda artística do começo do século, enfim, são várias as influências.
Mas a contracultura foi a única que chegou a se levantar contra a sacralização absoluta do dinheiro, que é o que caracteriza a nossa sociedade, a nossa vida em comum.
O dinheiro hoje é o Deus Todo Poderoso. Mais ainda, porque Dele falam mal, mas do
dinheiro ninguém fala mal, o dinheiro nessa civilização é um Deus muito maior que
o Deus tradicional, ninguém se mete com ele. Nas últimas décadas inclusive, depois
do movimento da contracultura, é uma ansiedade, uma aflição por ver esse tremendo
deus incontestado. Imagina se vão achar que o dinheiro tem alguma coisa de mal? Embora ele tenha sido chamado de o “vil metal”, não sem razão pelos mais antigos. Mas
o dinheiro passou a ser predominante na nossa cultura, hoje a ciência por excelência é
a economia; os grandes gurus, os grandes guias espirituais dos últimos anos foram os
economistas, tudo em função do dinheiro. Já na geração da contracultura, os hippies
ou aparentados – a tribo do Mário Rocha não era hippie, mas era aparentada porque
tinham valores semelhantes, valores de contestação do sistema, valores em questão
ética e comportamental, e tudo mais, então eles são aparentados –, nessa geração havia essa reação contra o dinheiro. Ironicamente, o grande problema da geração era o
dinheiro. Quando a Lúcia, personagem do filme, diz: “A nossa ideologia no cinema era
dividir o aluguel” é a grande verdade. O cinema underground nos Estados Unidos e o
cinema da geração da contracultura surgiram para fazer filmes com pouco dinheiro.
Bom, eu vou encerrar aqui porque eu falo pelos cotovelos quando começo a falar dessa
época, mas muito obrigado.
Plateia:
passar para a plateia. Alguém quer fazer uma pergunta?
Eu gostaria de saber como você foi construindo o seu filme? Eu concordo mesmo,
acho que o filme do Sganzerla é incrível, virou um documentário mesmo e era uma ficção. PROCURA-SE é documentário-ficção-documentário. Fiquei com muita vontade
de saber como é que você foi construindo o filme, queria saber do processo. Eu adorei
o filme porque vi amigos meus aos montes, fui amiga do Rubens Torres Filho e o vi no
filme, recuperei imagens da minha história, por isso fiquei com vontade de saber como
foi. Você foi recolhendo Super 8 das pessoas? Como foi acontecendo o filme?
4
Metamorfose Ambul ante
Poliana Paiva: Vamos
57
Rica Saito:
Foi uma pesquisa bem ampla, quase como a pesquisa no google que você põe uma
palavra e vê todos os resultados que aparecem, um por um. Teve o lado de pesquisar
com essas pessoas que a gente tinha definido que seriam os personagens.
Plateia:
E foi o seu tio principalmente?
Rica Saito:
É, eu fiquei indo na casa dele muito tempo. Na verdade, antes de entrar na faculda-
de de cinema, eu cogitava ficar um ano sem estudar oficialmente para viajar e estudar
música com o meu tio, mas a minha mãe me proibiu, achava que era loucura minha.
Mas eu sempre admirei muito o meu tio, aquele museu que aparece no filme, a casa
dele é assim na verdade. É um museu vivo, lá têm coisas por todas as paredes e são
coisas de várias épocas, e esses objetos formam uma colagem que geram novos significados, e isso serviu como uma metáfora para a gente construir o filme.
A pesquisa dos Super 8 teve início com o Rubens Machado e também pesquisamos
no acervo da ECA Filmes coisas que pudessem ser re-significadas. Por outro lado também tem coisas que a gente mesmo filmou. A gente foi pesquisar como é que as pessoas
filmavam naquela época, por exemplo, a sequência do ensaio tem a ver com isso, porque a gente queria fazer aquele efeito do “rabo de cometa”, quando o vídeo velho deixa
um brilho que fica um rastro. Perguntamos a um amigo como que a gente conseguiria
filmar isso e ele comentou que na TV Cultura tinha uma câmera que daria esse efeito,
a câmera de tubo. Entramos em contato com a TV Cultura, e eles falaram: “Beleza,
tudo bem, mas a câmera não pode sair daqui!” Tudo bem. Mas chegando lá não podia
operar as câmeras, tinha que ser uma equipe da própria TV Cultura, a coincidência é
que eles estavam preparando o set do programa Ensaio, os caras afinando a luz e tal,
aí a gente fez do Ensaio mesmo.
A parte do roteiro foi bem longa, foi um ano escrevendo e reescrevendo, durante a
filmagem também, muito por conta do material que a gente ia encontrando. Teve um
momento que a gente pirou que ia fazer um longa, pois na hora de gravar, cada entrevista tinha umas seis páginas, a gente não conseguia fazer todas as perguntas. Na hora
de montar foi uma coisa meio caótica, foi uma amarração de muito tempo, e a locução
foi a última coisa que entrou no filme. A idéia era tentar resolver sem ela, mas no fim
a gente viu que seria interessante colocar um ponto de vista pessoal, e um pouco da
motivação de fazer o filme dele mesmo.
Plateia:
O movimento hippie você pesquisou bastante? Esse momento do Mário Rocha tem
um pouco desse movimento hippie? Ou é parecido ou difere alguma coisa?
Rica Saito:
Eu acho que é parecido, mas como o Luis Carlos Maciel falou, a gente não quis
classificar como um grupo hippie restritamente, mas na verdade essa turma seria bem
hippie, apesar de não terem ido morar em comunidade, mas alguns foram, tem muita
coisa em comum, sim.
Luiz Carlos Maciel:
Eu conheci várias tribos na época que eram meio hippie, não hippie. Na
verdade não tinha essa necessidade, não tinha que ter carteirinha de hippie, o que
configura uma coisa da época também. Ao mesmo tempo em que tinha aquele hippie
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mais fantasiado, com aquela bata, aquele saião e essas coisas, tinham muitas tribos,
como a do Mário Rocha, que não se preocupavam com essas coisas. O que caracterizava essas tribos era o projeto de viver diferente, um projeto de vida que fosse diferente
da convenção e que as pessoas pudessem viver com mais liberdade, e acreditavam que
vivendo com mais liberdade, consequentemente seriam mais felizes. Como no famoso
espetáculo do Living Theatre que é sobre essas aspirações, o chamado Paradise Now,
o paraíso agora. Não um futuro hipotético com muito dinheiro, onde o dinheiro propiciaria essa liberdade. Não, seja livre agora, seja feliz agora, tenha prazer agora, viva a
vida agora. Como eu já falei, eu não conheci essa turma do Mário Rocha, mas merece
toda a minha simpatia, inclusive a piração final. A loucura era um tema recorrente, era
uma questão com que se tinha que defrontar, porque pessoas que queriam ser livres, a
metade era maluca! A quantidade de pessoas que na contracultura inclusive se conheceram no sanatório, tomaram eletro choque e tudo era muito grande. Era normal ser
maluco, aliás, era até um elogio dizer que o cara era muito louco.
Rica Saito:
Acho que tem o lado também do pessoal da esquerda, por exemplo, o me pai foi
do PC, o Partido Comunista, até sessenta e oito. Depois que rolou um racha entre as
pessoas que optaram pela luta armada e as pessoas que achavam que não ia ter como,
que era uma loucura e tal. Era uma forma de resistência diferente, era uma forma de
dizer que não podiam esperar a revolução para depois cruzarem essa fronteira e serem
felizes.
Luiz Carlos Maciel:
É, houve essa divisão na geração, porque eram todos contestadores, e depois
com o AI5 metade foi para a luta clandestina e a outra metade foi queimar fumo.
Rica Saito:
Mas eu acho que mesmo quem estava na contracultura e não estava pegando em
arma sentia a barra bem pesada, acho que a loucura era um pouco por causa disso,
sentiam o que estava acontecendo com os amigos.
Plateia:
A barra era pesada mesmo.
Luiz Carlos Maciel:
Uma das correntes, já que eu sou muito teórico, sou mais da teoria do que
da prática, mas entre as correntes da contracultura, uma das mais importantes é a
da anti-psiquiatria, que é uma corrente de psiquiatras ligados à contracultura que
achavam que você tinha que respeitar a loucura, deixar ser louco, para se curar tinha
que ser louco, deixar a loucura correr. Eles iam contra os tratamentos tradicionais de
trancafiar o paciente, levar choque elétrico, tomar químicas variadas. Outra coisa que
se casou, era a loucura máxima dele, é caretear.
Plateia:
Eu queria perguntar como foi lidar com essa questão que você está fazendo um filme
que é uma pessoa ou um personagem e tem uma questão que é ter que lidar com as
entrevistas e os elogios que os entrevistados começam a fazer em relação ao seu personagem. Porque eu acho que é uma questão importante quando se faz um filme sobre
um personagem que existem entrevistas…
Plateia:
Mas eu entendi que as entrevistas são todas ficcionais?
4
Metamorfose Ambul ante
eu achei interessante é também que a gente considerava que o cara ficou tão louco que
59
Rica Saito:
Plateia:
Não, não são todas ficcionais.
Só para concluir, é até uma questão que a gente estava conversando aqui: até que pon-
to é ficcional ou não? Onde é e onde não é? Mas eu acho que independente de quanto
ficcional é, você opta por deixar essas declarações dos entrevistados, porque existe
essa questão do envolvimento com personagem que você está retratando. Então eu
queria saber até que ponto isso foi uma questão: o de separar o que seria o seu “amor”
pelo seu objeto e essas declarações? Se você dirigiu as entrevistas e como foi? Vou dar
um exemplo: tem a cena que o produtor está na mesa de som, ele vai aumentando o
volume e ele fala: “Ninguém tinha feito isso!”, esse mito de que foi ele que fez isso pela
primeira vez, enfim.
Rica Saito:
Essa fala é a mais verdadeira do filme, na hora que ele fala assim: “Essa viola nunca
se ouviu antes no planeta”, é essa cena que você está falando? Não tinha nada tocando
ali, ele foi subindo o volume e foi construindo a música com essa descrição, e depois a
gente foi no estúdio com o Edu e gravou faixa por faixa todos os instrumentos.
Sobre a questão da verdade ou ficção, foi muito curioso porque eu mostrei para a
Amélia Hamburger, uma professora de física muito respeitada na USP, e ao ver o filme
ela falou: “O filme é um documentário mesmo, só que leva em conta a teoria das lógicas paraconsistentes do Newton Costa”. O Newton Costa é brasileiro e a sua trajetória
foi muito importante para o desenvolvimento da informática, porque ele levava em
conta que você pode ter duas situações que são, como se fossem duas verdades opostas
e complementares. É como se fosse assim: a questão não é “ser ou não ser”, mas “ser
e não ser”. Acho que no filme tem um pouco isso, assim como na ficção onde um ator
representa um personagem mas você identifica os traços do próprio ator. No filme se
misturou um pouco mais, por exemplo, aquela fala da Lúcia sobre o amor foi uma fala
super espontânea, a gente pediu para ela falar uma coisa e ela disse: “Não, não é nada
disso!” e começou a falar o que queria, e ficou tão forte que a gente manteve.
Todos os personagens, com exceção da Wanderléia e do Carlos Callado, eles realmente conviveram com o personagem principal. E todas as imagens do personagem
principal são do Edu Viola, que é o que aparece velho no fim, ou são do Mavutsini,
que é um ator, que não é ator, mas ele também é músico e artista plástico. Foi um longo
processo para encontrá-lo, a gente colou cartazes pela a cidade com o “procura-se”,
daí que vem o nome do filme. No fim, eu lembrei que tinha conhecido uma pessoa muito parecida, eu entrei em contato com ele e quando nos encontramos ele tinha acabado
de cortar o cabelo e tirar a barba um dia antes. Mas ele mostrou o RG e era a cara
do meu tio jovem. Nessa mesma semana, eu descobri que os dois tinham nascido no
mesmo dia, eles fazem aniversário no dia 5 de junho, e um fez sessenta anos e o outro
fez trinta durante a filmagem. Como tivemos um período de três anos de filmagem, eu
decidi esperar o cabelo dele crescer.
O interessante na minha relação com o Mavutsini, que é o Mario Rocha jovem, é
que em algum momento eu me dispus a ser guiado por ele espiritualmente, ele virou o
60
meu mestre de kempo indiano durante dois anos. Fazíamos treinamentos ao ar livre e
a Jessica, fotógrafa do filme, fez esses treinos com a gente. Na cena no centro de São
Paulo que é uma correria, ele dançando com umas penas e ela filmando, ficou uma
coisa orgânica por causa disso também, teve um processo de vivência juntos. Todo o
processo foi muito intenso de reflexões sobre geração, sobre várias coisas. Bem, no fim
das filmagens eu fui a um treino de Kempo e o Mavutsini me cobriu de folhas secas.
O Kempo indiano, só para explicar, é uma luta marcial que é tipo o avô do Kung-fu,
é praticado por monges tibetanos, por exemplo. Seus movimentos têm inspiração nos
espíritos dos animais e uma das modalidades é o morto. Então ele fez o treino do morto comigo e falou: “Aqui jaz Rica Saito que gostaria muito de ter feito um filme”. Aí eu
pensei que estava na hora mesmo de terminar o filme!
Luiz Carlos Maciel:
Eu queria falar sobre o comentário que surgiu na plateia, que o documen-
tarista tem que tomar cuidado porque o entrevistado pode ser tomado pela emoção.
Plateia:
Não foi bem isso que eu quis dizer. Eu não acho que ele tem que tomar cuidado, mas
tem essa escolha: tomar cuidado ou não.
Luiz Carlos Maciel:
Então está certo, tem essa escolha. Se você é um documentarista e o seu
entrevistado é tomado por uma alta emoção e começa a falar coisas insensatas, ou exageradas, ou excessivas; eu digo, se você for um documentarista medíocre, você corta;
se você for um grande documentarista, você conserva. É nessa escolha que se encontra a ponte, conforme o Godard disse, a ponte que leva o documentário em um nível
superior de se aproximar da ficção. Documentário e ficção são como os dois pólos do
conhecimento filosófico: o objeto e o sujeito. O documentário dá predominância ao
objeto, para o que está fora da gente; a ficção dá predominância ao sujeito, para o que
está dentro do sujeito. Então o que o Godard quis dizer é que quando o documentário
ultrapassa o mero objeto e chega à alma das pessoas é um grande documentário, se
aproximou da ficção. Por outro lado, se a ficção, que é a alma dos personagens, chega
a um ponto que ultrapassa essa ambiência e vai para fora, revelando a realidade objetiva, o ontos, então é uma grande ficção, porque além de expressar o sujeito, testemunha sobre o objeto, sobre o ontos. Geralmente esses dois pólos aparecem de diferentes
maneiras, o equilíbrio entre eles é que faz a grande arte. Pode ser o formalismo e o
realismo, pode ser, como o Andre Bazin disse, o cinema como linguagem e o cinema
como ontologia, mas é sempre essa tensão entre o sujeito e o objeto.
Tem um texto do Coutinho que discute essa questão. Para ele quem conta a sua
história já está atuando, e tem isso, não tem muito limite.
Plateia: Também
acho que não existe essa objetividade.
Plateia: Mas em nenhum momento eu falei em objetividade ou verdade. Eu não estou exigindo
que o filme tenha isso, realmente não tem nada a ver com isso. Não é que a emoção
tira a verdade. Concordo com o que você falou, a emoção dá essa verdade, dá essa
força para a cena. Eu quis fazer um questionamento mais em torno da declaração do
entrevistado e como você dosa isso, mas não tem nada a ver com a verdade.
4
Metamorfose Ambul ante
Poliana Paiva:
61
Rica Saito:
No filme tinha a liberdade das pessoas falarem sobre uma pessoa que era um
misto de um conhecido, e que elas tinham várias histórias sobre ele, com uma pessoa
idealizada como herói da geração deles. E a gente também negociava os discursos,
tipo “aqui você exagerou, faz um pouco menos”. Mas cada ator/personagem tem uma
personalidade. Por exemplo, o aviador, o Silvinho, que na verdade se chama Tadeu,
ele curtia muito atuar. Chegou uma hora que o roteirista ficava ao seu lado falando a
frase e ele repetindo, como se tivesse falando ali na hora espontaneamente. A Lúcia era
o oposto, a gente falava uma coisa e ela questionava e falava outra, tanto que a maior
parte das falas dela é opinião dela mesmo.
Plateia:
O que eu senti do filme é que é um documentário em sua estratégia de realização,
mas é uma ficção também, se constrói mais através de elementos ficcionais do que dos
elementos documentais, digamos assim. É um filme que trabalha um tema que não é o
personagem em si, mas é uma geração. Eu entendi assim, não sei se me equivoquei, mas
acho que o tema do filme é sobre uma geração, uma geração que viveu a contracultura.
Eu vivi essa época, pareceu que eu estava em casa em alguns momentos, funcionava
daquele jeito mesmo, eram comunidades muito abertas e eu achava até estranho. Vendo esse filme, eu vi muitos conhecidos e pensei: “Mas como eu não conheço esse cara?”
Eu fiquei incomodado, como eu nunca ouvi falar desse cara? Como é que pode? Não
era o Itamar Assunção, não era o Arrigo Barnabé, não era o Zé Celso Martinez. Quem
era esse cara? Que incrível essa caixinha, porque até o final não ficou claro para mim.
Eu cheguei aqui bastante inocente, sentei e assisti ao filme, e vi um filme sobre um
cara, sobre o Mário Rocha, que ninguém sabia quem era mas fazia essas músicas, era
muito louco e um dia se casou. Mas depois descobrimos que é um falso documentário,
aí eu reconstruí tudo. E o que eu entendo que o filme necessariamente não é nem um
documentário, nem uma ficção, mas que usa os dois para construir um discurso sobre
uma geração. Eu entendi isso, é isso?
Rica Saito:
Essa é a intenção inicial e mais forte do filme, era importante que as pessoas enten-
dessem isso. Mas tem a intenção de pôr mais uma camada que era um personagem que
era um compositor, que é a fonte de tudo isso, que é o Edu Viola. Mas não sei em que
medida isso fica claro para todo mundo.
Plateia:
Fica, no final fica bem claro.
Rica Saito: Essa
era uma tensão que existia pelo fato de estar fazendo uma história em cima da
história de uma pessoa que é muito próxima, ao mesmo tempo em que tem uma distância por ser uma pessoa de difícil acesso, uma pessoa que tem um discurso poético,
você vai conversar com ele e ele não responde o que você queria, era difícil entender.
Ao mesmo tempo, tentamos explicitar esse incômodo. Quando perguntamos como ele
se sentia hoje e ele responde: “Usurpado!”, no entanto, ele entendia que era um gesto
amoroso. Ele tem essa dualidade que é da lógica paraconsistente no próprio sujeito, ele
é gêmeos com ascendente em gêmeos. Tem uma espécie de vida, por exemplo, no fato
de ter duas mulheres na casa dele: tem a companheira artística e a mãe de família, uma
62
morena e outra loira, uma noturna e outra diurna. Essa foi a maneira que eu consegui
para traduzir o que eu entendo dele, e por isso acho que ele é um pouco um mito vivo
da geração de vocês.
Plateia:
Queria aproveitar o Maciel, que é de fato o guru da minha geração – com ou sem
aspas, tanto faz, porque lendo o Pasquim a gente vê que tudo era ironia, sem aspas
ou com aspas, tanto faz. Acho que você deve ter algum ponto de vista sobre o modo
como se retoma hoje a contracultura como clichê. Para ficar em apenas um exemplo,
tem a propaganda de um automóvel importado que põe uns hippies em um conversível
tocando um Led Zeppelin. Esses clichês que no fundo retiram todo o conteúdo que nos
era sagrado, que nos era substancial e importante, para tornar uma coisa esvaziada,
uma espécie de simulacro da sociedade de consumo. No fundo, é o vazio do consumo,
e tem a ver com o fato de que hoje “curtir” é entrar um pouco no jogo do consumismo,
o capitalismo assumiu um pouco esse imperativo do gozar e de algum modo o “gozar”
de hoje não tem o mesmo sentido de contestação que tinha antes, parece que hoje já é
uma coisa aceitável. Eu levei um susto outro dia. Eu leio o jornal de manhã e não sei
que dia que era, o Fábio Assunção sendo tratado com o maior respeito sobre o negócio
das drogas. Achei que tinha alguma coisa estranha com esse respeito, mas aí lembrei
que isso seria estranho há 5, 10 ou 20 anos atrás, mas hoje é normal o cara ser tratado
com respeito mesmo tendo um problema com drogas. Tudo que tinha um significado
de contestação, hoje faz parte do sistema. Para ser um cara do sistema, você tem que
ter esse imperativo da contracultura. Agora desse espectro de representações que estão
fazendo da contracultura, não te incomoda alguma coisa? E dentro desse espectro
todo, como você coloca o filme dele? Se posicione em relação ao filme dele, está mais
para essa onda do clichê ou não?
Luiz Carlos Maciel:
Não, o filme dele não está do lado do clichê. Eu antigamente me sentia um
pouco incomodado por essa utilização pelo sistema de algumas coisas que eram bandeiras da contracultura. Depois achei que isso era até bom, porque isso é o andar da
carruagem, é o movimento das coisas mesmo. Não teria sentido fazer contracultura
hoje como foi a dos anos 60, se os jovens quiserem inventar uma nova contracultura
será completamente diferente dos anos 60, porque a história não se repete, a história
se repete como farsa, conforme disse. Então eu acho que isso é um processo mais ou
menos natural que não me perturba. Eu não sou um militante contracultural em nada,
acontecem no mundo. A contracultura me ajudou numa época da minha vida quando
eu era jovem a ser o que eu me considero hoje: um livre pensador. Não só um livre
pensador, mas um homem livre, eu me considero um homem livre, não tem nada que
me ate, não tem nada que me condicione a pensar isso ou aquilo. Vejo as coisas que
aconteceram depois procurando entender, vendo os pensadores. O pensador mais recente, fora a fase anterior, que mais me ajudou a compreender o mundo contemporâneo foi o Baudrillard. Você falou de simulacro e eu me lembrei logo do Baudrillard,
4
Metamorfose Ambul ante
eu vejo os “senãos” da contracultura como vejo todos os outros, todas as coisas que
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que diz que as coisas hoje são simulacros e simulações, não são mais realidades como
eram antigamente, é tudo fingido, é tudo simulacro. E por isso que a história está
andando no sentido retroativo, a história que sempre andou para frente está andando
para trás. “Perdeu o bonde da história!” Ainda bem que eu perdi, pois o bonde está
andando para trás! E hoje eu fiquei contente que aos setenta anos de idade eu tive mais
essa informação que o Saito trouxe e que me atiçou a curiosidade que é a lógica das
dualidades.
Rica Saito:
Lógicas paraconsistentes. São várias lógicas.
Luiz Carlos Maciel:
Eu pensei que fossem apenas as dualidades. Mas as lógicas paraconsisten-
tes pode nos permitir uma compreensão maior do que está acontecendo, inclusive o
seu filme que é uma coisa que está acontecendo agora e que eu admirei, curti, gostei
bastante em um estado ainda pré-análise. Pois quando eu vou ao cinema, a primeira
vez que eu vejo um filme, eu nunca analiso nada, eu vou usufruir daquele filme, ou
não usufruir, ou rejeito e ele me incomoda, ou eu gosto, mas a análise do filme sempre
requer que você veja mais de uma vez.
Plateia:
Queria fazer dois ou três comentários sobre a sessão de hoje, que foram dois filmes
com essa construção de documentário e ficção, uma discussão muito antiga do cinema, não é nova. O primeiro documentário da história, do diretor Flaherty, o filme
Nanook, o Esquimó, faz todo aluno de documentário pensar como um cara com uma
câmera apenas construiu toda uma cenografia, como ele deu conta daquilo. É um
grande exemplo dos limites da ficção e da realidade, que sempre estiveram imbricados.
Para mim, esse exercício do documentário-mentira tem dois grandes ícones: aquele
documentário no início de Cidadão Kane sobre o personagem Charles Foster Kane
– que é totalmente mentira, mas que você entra em um cine jornal para depois entrar
no filme – e Zelig, do Wood Allen, que é a expressão maior desse exercício e é genial.
Mas o que me pareceu o contraste mais evidente da sessão de hoje é como o Sganzerla
com o filmezinho dele – digo filmezinho porque é precário, foi feito de improviso, era
experimento de muitas coisas –, como é que ele dá conta de um diálogo com o futuro, quando na verdade ele está trabalhando no presente. Quando ele realiza o filme é
tempo presente, mas hoje você vai ver que isso é um documentário, inclusive sobre a
própria vida do Sganzerla, porque o Sganzerla já morreu e você pode fazer uma visão
do conjunto da obra dele, e você sabe que uma das obsessões do Sganzerla era o Orson
Welles e essa obsessão maior já está no primeiro filme. Quando ele bota na boca do
personagem um diretor que ele ama, o Samuel Fuller, nesse momento tem um cartaz
do filme com o Orson Welles, o Terceiro Homem, que é um grande filme, mas os garotos estão decepcionados porque o filme mudou, eles não queriam ver Orson Welles,
eles queriam ver Samuel Fuller.
O documentário dele na verdade trabalha no presente tentando recriar o passado.
Então é lógico que a gente vai fazer uma análise de dados culturais que vão gerar uma
impressão mais forte no espectador do que o que você pode absorver do personagem
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em si. Acho que o que diz de uma época tem um peso maior, principalmente quem
viveu essa geração, mas qual é a possibilidade de diálogo com o futuro que esse filme
tem daqui para frente? Não é uma provocação, é uma dúvida que eu tenho realmente.
Mas eu acho genial o Sganzerla, com poucos recursos, ele já começa a dialogar com
o futuro – não sei se dando conta disso naquele momento ou não –, mas quem assiste
hoje percebe isso. Imagina o que era ver que um filme ficava vinte e três semanas em
cartaz? Hoje não fica nem em uma sessão por dia.
Sobre o filme PROCURA-SE, um último dado, eu queria saber se você assistiu a
um filme que foi exibido no festival É Tudo Verdade que se chama Um Tigre de Papel,
do Luis Ospina, um cineasta colombiano. É o mesmo sistema de construção do seu
filme, a idéia, a forma de fazer, só que é tão engenhoso que se você não tiver nenhuma
informação sobre o filme, apenas aos vinte minutos você vai se questionar se aquilo é
documentário ou ficção, você é pego de surpresa. Como eu achei que aconteceu com o
Maciel, ele falou: “Eu não conhecia o trabalho do Mário Rocha”. Para mim, por algumas questões, já estava evidente – você até falou que o filme foi lançado no 1º de abril.
O grande barato desses filmes é no momento em que você identifica a “farsa”, poder
desconstruí-lo. E nesse sentido de desconstrução, a cena que eu achei mais importante
é justamente aquela da mesa de som, quando eu me perguntei qual era a chance de um
produtor de estúdio ter uma fita, que provavelmente era de não sei quantas polegadas
e com não sei quantas pistas, e trinta anos depois ainda estar preservada e ter máquina pra tocar aquilo? Ou ter tido a possibilidade de botar aquilo em um computador?
Porque na verdade ele estava com a mesa de som e um computador ali, manipulando
os dois. E ele mostrar para o espectador pista por pista. Muito improvável, acho que
seria impossível. A meu ver nesse momento o espectador mais atento desconstrói o teu
documentário, mas a cena é belíssima.
Bom, se vocês quiserem teorizar a respeito, era só uma contribuição.
Plateia:
A princípio, quando você fala se é um documentário ou não, a impressão que eu tive
era que você estava fazendo um documentário, não uma ficção, baseado em uma pessoa que deu início ao movimento hippie. E nessa época já existiam os hare krishna,
tanto que o movimento que sai na rua é até parecido com eles. Nos primeiros vinte
minutos do filme eu jamais achei que aquilo era uma ficção, acho que por conta das
entrevistas que eram tão profundas, esbanjavam tanto amor pela parte das pessoas
como filme de ficção. Agora no debate que eu comecei a entender.
Rica Saito:
Acho que se tiver que classificar nas formas clássicas, ele é um documentário. Mas
se puder inventar uma nova, eu acho que ele é um falso-falso-documentário.
Luiz Carlos Maciel:
Igual o documentário do Sganzerla, nas formas clássicas é uma ficção. Aque-
les dois rapazes são inventados. Não sei se o diálogo foi escrito ou foi improvisado.
Plateia:
Provavelmente foi dublado pelo próprio Sganzerla e pelo Andrea Tonacci.
Luiz Carlos Maciel:
O final evidentemente, quando eles vão de costas e o movimento do corpo
4
Metamorfose Ambul ante
que estavam sendo entrevistadas. Então para mim foi um documentário, eu não assisti
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não tem a ver com o que eles estão falando. Aquilo ele filmou o passeio de costas e
depois jogou um texto em cima.
Plateia:
Ele diz no filme que o Odil ofereceu um estúdio para fazer dublagem, ele conta tudo,
o filme está totalmente revelado. Eu acho que os dois filmes são muito parecidos.
Plateia:
Eu já havia assistido a esse filme – hoje deve ter sido a sexta vez – e eu não consigo
identificar o ponto que o diálogo dos personagens deixa de ser uma discussão sobre
que filme ver, ou a rotina daquele dia, e vira o diálogo do reconhecimento das pessoas
que construíram o filme e da estrutura que estava por trás. De repente você já está
imerso naquele diálogo e se pergunta quando é que passou para isso?
Poliana Paiva:
Mas essa é a ideia, você não saber. Isso é cinema.
Plateia: Quando
eles entram na rua que vai para o cine Metrópolis, na Praça da República em
São Paulo – quem conhece São Paulo conhece bem esse lugar –, a partir desse momento
o diálogo é auto-referente, e ele fala: “No próximo filme, eu vou fazer diferente”, e o
próximo filme que ele fez foi O Bandido da Luz Vermelha. É o Sganzerla dizendo que
o próximo vai ser diferente. O interessante é que parecia que eu estava vendo um filme
feito para assistir hoje e não para ver lá. Parece que ele está falando para o futuro,
como já foi dito hoje, o filme fala para o futuro, pra gente que está aqui nessa sala
vendo hoje. As coisas proféticas, como quando ele diz que vai falar para o filho que
ele andava na rua a pé, a gente sabe o que significa isso hoje, é um caos, e lá eles estão
tranquilamente passeando. Então ele está falando pro futuro, é a impressão que eu
tenho, ele sabia exatamente o que estava fazendo, que era um documentário que cada
vez mais seria um documentário, ele tinha clareza nisso, o filme diz isso, ele diz isso.
OBRAS CITADAS
Filmes:
O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla (Brasil, fic, 92min, p&b, 35mm, 1968)
Cidadão Kane, de Orson Welles (EUA, fic, 119min, p&b, 35mm, 1941)
Joana D’Arc, de Victor Fleming (EUA, fic, 145min, p&b, 35mm, 1948)
O Gabinete do Doutor Caligari, de Robert Wiene (Alemanha, fic, 51min, p&b, 1919)
Nanook do Norte, de Robert Flaherty (EUA, doc, p&b, 1922)
O Terceiro Homem, de Carol Reed (Inglaterra, fic, 105min, 35mm, 1949)
Um Tigre de papel, de Luis Ospina (Colômbia, doc, 114min, 2007)
Zelig, de Wood Allen (EUA, fic, 79min, 35mm, 1983)
Livro:
BAUDRILL ARD, Jean. Simulacros e Simulação. Editora Relógio D’água, s.d.
Teatro:
Paradise Now, espetáculo do grupo The Living Theatre de 1968.
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Metamorfose Ambul ante
4
67
Daniel Aarão Reis Filho
Júlia Mariano
Luis Eduardo Carmo
68
Sérgio Sbragia
Patricia Moran
Poliana Paiva
Tunico Amancio
É PROIBIDO PROIBIR
CINE ARTE
UFF
30/11/08
Participantes
Júlia Mariano cineasta
Luis Eduardo Carmo técnico de som
Patrícia Moran cineasta
Sérgio Sbragia cineasta
Daniel Aarão Reis Filho professor de história da UFF
Tunico Amancio professor de cinema da UFF
Poliana Paiva mediadora
Sessão 5 I 35mm / vídeo
FILMES EXIBIDOS
MEUS AMIGOS CHINESES
de Sérgio Sbragia
RJ, fic, 14min, cor, vídeo, 2006
MAMÃE EU FIZ UM SUPER 8
NAS CALÇAS
de Carlos Zílio
RJ, fic/exp, 1min, cor, silencioso,
Super 8/vídeo, 1979
CLANDESTINOS
Na sessão “É Proibido Proibir” a ditadura é
de Patrícia Moran
MG, doc./exp., 12min, cor, 35mm, 2001
representada em diversas formas de abordagem e
PROJETO 68
através de diversos olhares. A irreverência dos filmes
de Júlia Mariano
RJ, doc, 13min, p&b, 35mm, 2008
de Carlos Zílio e André Sampaio, o envolvimento
TIRA OS ÓCULOS E RECOLHE
O HOMEM
com a luta armada, no documentário de Patrícia
Moran, o movimento estudantil, trabalhado em
de André Sampaio
RJ, fic/doc, 20min, cor, 35mm, 2008
imagens de arquivo por Júlia Mariano e a ditadura
Temas relacionados
através do olhar de um menino, no sensível filme
1968, Ditadura Militar, Revolução,
Memória, Repressão, Documentário
e Ficção, História do Brasil,
Liberdade, Militância Estudantil,
Movimentos de Esquerda, Vanguarda
de Sérgio Sbragia, foram temas dos debates.
Poliana Paiva:
Vou passar aos realizadores na ordem de exibição da sessão. Peço que cada
um comente o que o levou a fazer seu filme, como foi o processo de feitura do filme.
Depois passo para o professor Tunico Amancio e, na sequência, para o professor Daniel Aarão Reis Filho, que está disponibilizando um texto para a plateia.
Sérgio Sbragia:
Eu fiz esse filme (MEUS AMIGOS CHINESES) porque é uma história bacana,
e eu queria contar essa história. Eu contei para um amigo e ele perguntou por que eu
não escrevia essa história, então eu escrevi. Eu tentei em alguns editais e fui selecionado. O que eu posso falar da realização do filme é que foi feito em 16mm e depois foi
finalizado em vídeo; eu não consegui fazer uma cópia em película. Não sei muito bem
o que falar e acho que gostaria mais de ouvir o que as pessoas têm a dizer sobre o filme
ou se têm alguma dúvida.
Boa noite! Foi curioso assistir a esse filme (CLANDESTINOS) agora, ainda
mais porque tinha muito tempo que eu havia visto. Eu pensei: “Nossa, como a técnica
avança!”. É um filme de 2001 e eu fiquei reparando neste aspecto. Mas para mim este
curta é uma parte do processo. Eu sou graduada em história, depois eu passei para cinema e comunicação, mas de formação eu sou historiadora. Uma coisa que sempre me
incomodava, me instigava, era pensar por que essa luta, esse movimento de lutar por
justiça social, de tentar fazer um mundo melhor, essa luta humanista de uma geração
5
É Proibido Proibir
Patrícia Moran:
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que eu costumo brincar que ela é “bebi, mas não fiquei de ressaca”. Tinha algumas
contradições.
O seu livro [voltando-se para Daniel Aarão Reis Filho] foi superimportante, a começar pelo título, que é muito instigante, A Revolução Faltou ao Encontro. É muito
bom este título. É a revolução como um projeto pronto, como um sonho construído,
só que ela não veio. Antes de fazer esse filme, eu fiz um portrait sobre uma revolucionária, uma estudante, e eu imaginava dois tipos de trajetória: por um lado, um tipo
de revolucionário que virou político e passou a viver do seu discurso, da sua biografia;
por outro lado, aquele que mudou de vida. Era o que eu sempre pensava, e o mote do
filme é um pouco isso.
De alguma maneira, a clandestinidade é um período de vida pouco formulado,
pouco explorado, e eu optei por trabalhar com essas pessoas e por pensar um pouco
sobre algumas contradições. Por exemplo: como se luta pela liberdade e se fica sem liberdade? Como é que para lutar contra os militares – e alguns trabalhos colocam isso
muito bem – os estudantes tinham estruturas que eram “militares”, usavam estratégias
semelhantes? Fazer o filme era explorar estas questões. De certa forma, os primeiros
filmes que apareceram na época da abertura davam muita ênfase à tortura, ao sofrimento físico – que é muito duro, claro, e sem querer diminuir isso – mas eu estava
pensando nessa outra parte mais emocional, nessa estrutura emocional. Pensando a
guerrilha urbana – e tinha o movimento de campo também – tinha todo um jogo de
esconde-esconde e de construção de percursos na cidade numa tentativa de manter o
movimento e ao mesmo tempo se esconder. Então, foram estas as estratégias que eu
adotei.
Eu estava comentando hoje que o CLANDESTINOS era um projeto para ter um
desdobramento em um longa-metragem, em que esta questão fosse trabalhada em termos de América Latina. Seria uma produção carioca com o prêmio que a Rosinha
Garotinho deu e ficou um pouco parado; o concurso se chamava Procine, mas não
saiu. Era uma época em que quando se fazia um documentário se pedia uma cópia em
35mm.
Um comentário: o filme tem a música do Mano Chao, Clandestino, e foi bastante interessante como aconteceu. A música fala da clandestinidade, é uma menção à
clandestinidade política, mas também traz para um lado mais subjetivo e, para mim,
a música faz muito bem essa passagem. Foi interessante quando eu pedi para ele, que
falou: “Usa! Gravadoras, editoras são muito complicadas. Se der algum problema, eu
digo que autorizei”, então, é uma autorização ilegal, o que eu acho muito bom!
Júlia Mariano:
Esse projeto (PROJETO 68) começou quando eu era estudante na UFRJ. Eu
era bolsista da Consuelo Lins, que é curtametragista também, e ela estava revisando
umas coisas de 1968. Ela não sabia muito bem o que queria e me pediu que eu fosse
pesquisar imagens para saber o que tinha de material disponível sobre esse período e
começar a pensar o projeto dela. Eu comecei a pesquisa no Arquivo do Estado do Rio
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de Janeiro, na Praia de Botafogo, e vi muitas fotos, fiquei muito impressionada com
as imagens. Eu já tinha visto muita coisa sobre 1968, em geral era um assunto que me
interessava, mas eu nunca tinha visto fotos da galera mesmo, dos estudantes, e eu me
reconheci ali. Como eu já falei, eu era estudante da UFRJ e tinha muitas fotos da invasão da Praia Vermelha, o campus onde eu estudava; enfim, me identifiquei com aqueles
jovens que viviam tudo aquilo. A Consuelo Lins não deu sequência ao projeto dela,
mas eu acabei entrando em contato com esse universo, e nesse meio tempo eu desisti
de fazer jornalismo, resolvi fazer cinema, fui fazer a escola de Cuba.
Um dos primeiros filmes que eu vi em Cuba foi Now, do Santiago Alvarez, que é
uma fotomontagem sobre a luta dos negros na década de 60 nos Estados Unidos. Eu
pensei que este filme poderia servir de inspiração para eu trabalhar com as fotos que eu
havia pesquisado. A estratégia era usar imagens e, por esse motivo, eu não fiz nenhuma
entrevista, não quis me prender ao meu discurso. Muitos dos filmes que eu tinha visto
até então eram completamente baseados no discurso, que eu acho importante também, mas eu queria fazer uma coisa presa à imagem, que a imagem fosse a narrativa,
a imagem e o som, na verdade; decidimos então fazer uma colagem sonora. Foi muito
complicado, porque não tem um som dessa época que esteja preservado. Não tenho
informação se a Globo ou a Bandeirantes tem esses arquivos, mas como o nosso orçamento era mínimo, não foi possível chegar aos arquivos das grandes televisões; para a
produção independente não existe. O filme foi construído dessa forma: um pouco da
influência das novas linguagens de cinema que eu vi em Cuba nos dois anos em que eu
fiquei lá, misturado com essa identificação que tive no início da minha vida acadêmica,
e aí saiu o filme; foi assim basicamente.
Luis Eduardo Carmo:
Eu sou responsável pela parte do som do filme TIRA OS ÓCULOS E RE-
COLHE O HOMEM, fiz parte do processo desde a captação até a mixagem; quem
mixou foi o Alexandre Jardine, a Marcela Jacques e o Bernardo Cabral. Também fez
parte da equipe o Bruno Persan, ele deu uma assistência na parte dos diálogos e na
montagem disso tudo.
O Macalé fez um trabalho com a gente no filme Conceição (primeiro longa universitário brasileiro, produzido na UFF), e foi o primeiro contato que o André Sampaio
teve com o Macalé. Eu conheço o André há algum tempo e sei que há uns oito anos
ele acha essa história fabulosa, ele sempre teve vontade de contar essa história do
Macalé. O que ele achava fabuloso era pensar como numa história que aconteceu em
um momento de grande tensão, a ditadura, foi possível tirar um samba e levar aquilo
te diferente de muitos outros casos, pois foi só uma noite em uma cela. Ele sofreu a
violência do constrangimento, da humilhação, esse tipo de violência. Eles não sabiam
o que ia acontecer, afinal, era uma época em que se fazia o que se queria: o delegado
federal prendeu uma pessoa porque não gostou da música que ele cantou, mas que o
público adorou.
5
É Proibido Proibir
na brincadeira, isto no caso do desdobramento da história para o Macalé, felizmen-
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O André sempre teve vontade de contar essa história, e contou do jeito dele, brincando com um estilo que eu considero estilo de cinema brasileiro – uma brincadeira com os
tipos caricatos. Acho que ele tinha vontade de contar essa história sobre o amigo dele,
ficaria um filme bom de ser visto, talvez fazendo outra observação, o filme reflete sobre
a cultura brasileira que consegue transformar uma situação terrível em um samba.
Tunico Amancio:
Bom, boa noite, antes de tudo. Talvez seja um lugar-comum no Araribóia
Cine, mas eu queria parabenizar o festival pela curadoria. Eu acho esses filmes muito
interessantes, e juntos eles fazem um programa absolutamente interessante e rico para
pensar algumas questões que estão na história do Brasil, sobre as quais eu não vou
aprofundar a conversa aqui, porque tem um especialista no outro lado da mesa. Ele vai
falar sobre história e eu vou tentar colocar aqui algumas coisas sobre cinema.
Esse conjunto de filmes fala muito sobre memória, sobre tempo e sobre documento.
A Júlia estava explicando a dificuldade de conseguir arranjos sonoros da época, a Patrícia também levantou a mesma questão. Imagino a dificuldade que todos tiveram para
se apropriar desses materiais. Mas felizmente a gente ainda tem esses materiais que,
manipulados, conseguem transmitir certo espírito da época, conseguem passar ideias,
imagens e fatos. A meu ver, organizá-los de diversas maneiras é uma das funções do
cinema, para criar uma espécie de memória coletiva sobre o passado. Todo mundo diz
que o Brasil é um país que não tem memória, eu acho que o Brasil tem memória, sim.
A memória não circula evidentemente de maneira ideal, mas existe a memória, a gente
está vendo aqui uma porção de exemplos de filmes interessantes, edificantes e criativos, que servem para mostrar como 1968, a ditadura, a repressão podem ser vistos de
vários ângulos. Mas esses filmes são totalmente “inencontráveis”, é preciso esperar
um festival para poder ver. De qualquer maneira, cada vez mais continuam surgindo
materiais, continuam surgindo coisas que vão alimentar essa leitura do passado, que
é sempre dinâmica – o passado está lá, mas a leitura é sempre dinâmica, o passado
nunca vai ser lido da mesma maneira, é pouco provável que seja.
Tem uma questão que é formidável: todos os filmes usam ao menos um documento,
todos eles são “autenticados” por um documento. MAMÃE FIZ UM SUPER 8 NAS
CALÇAS é o mais peculiar neste aspecto, ele é o documento por ele mesmo. A informação no catálogo é a de que é um filme de 1979, mas na verdade é de 1974, e esses
cinco anos fazem uma boa diferença. É um filme bastante atípico em relação aos outros por ser um filme de um artista plástico, e o artista plástico está trabalhando com a
concretude da palavra, com a concretude das ideias, e ele brinca com isso. A mensagem
do filme quando chega é escamoteada, todo mundo esperando o “abaixo a ditadura”,
e aparece o “abaixo a dentadura”, com uma dentadura de fato.
Ele brinca com o cinema enquanto articulações, imagens e sons. Está muito além da
mera denúncia ou qualquer coisa, ele vai para dentro do aparato do cinema e demonstra seus mecanismos. Isto é de uma riqueza formidável, principalmente por fazer uso
de um humor absolutamente devastador. Ele não permite levar a sério os slogans do
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passado, não permite levar a sério nem a própria brincadeira do cinema, a existência
do cinema, e por isso vai brincar com o leão da Metro, que ruge, vai brincar com a
história das equipes, que é ele mesmo quem faz; ele vai explicitar o que é um zoom, o
focado e o desfocado. Enfim, ele vai criar o “suspense” passando páginas vazias entre
uma sílaba e outra. É um filme de artista plástico. O Carlos Zílio esteve profundamente engajado nos movimentos culturais dos anos 60, participou no final de 1966 da
nova modernidade brasileira, e chegou um determinado momento em que ele decidiu
sair das artes, partir para a militância: foi para a militância estudantil, foi militante
do MR8. Ferido em ação e preso de março de 1970 a junho de 1972, fez um panfleto
chamado Lute, que era distribuído nas portas das fábricas. Então, esse filme é mais
um documento gerado naquele enorme movimento de resistência que foi esse período.
Esse filme é o documento, os outros seguem tradições diferentes, eles têm interfaces
diferentes, mas todos eles vão ser autenticados por um documento.
Fora MAMÃE FIZ UM SUPER 8 NAS CALÇAS, que é de 74, são todos filmes
dos anos 2000. Então, há uma distância do passado que permite olhar para esse passado e trabalhá-lo de maneira menos emocional, quando é esta a intenção, ou mais
emocional, quando você quer fazer um efeito. O filme MEUS AMIGOS CHINESES
é exatamente o segundo aspecto: é um filme que vai se inscrever em uma tradição do
olhar infantil sobre uma grande tragédia social. Podemos pensar no neorrealismo italiano, na quantidade de filmes que foram produzidos, nos quais o olhar sobre a guerra,
sobre a Itália devastada é o olhar de uma criança. São vários os exemplos: Vítimas da
Tormenta, Ladrões de Bicicleta, A Culpa dos Pais, Alemanha Ano Zero, Belíssima.
Isso permite uma estratégia particular, que é a de falar de temas pesados com um filtro
de maior leveza e que toque mais a sensibilidade das pessoas, até porque as crianças
têm um lugar privilegiado no olhar que a sociedade lança sobre elas; porque ao mesmo
tempo a criança é o anúncio de um futuro que tem sempre uma ideia implícita de que
isso não aconteça de novo.
Então, o primeiro filme trabalha com essa anedota e se autentica também com isso.
Há uns filmes recentes que também dialogam com ele: Valentin, Machuca, Vozes Inocentes e, no Brasil, O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias. São filmes com certo
tipo de linguagem, que tem a finalidade de atingir diretamente o público sem muita
intermediação, chega diretamente na emoção do público, chega diretamente ao cerne
do problema através dessa estratégia de olhar pelo olhar da criança. MEUS AMIGOS
CHINESES é isto, é um filme que vai misturar sonhos, memórias, os registros cinemaadoro um plano do filme, que nem tem nada a ver com isso, eu sugeriria um prêmio
especial para o plano dos selos caindo, é de uma beleza absolutamente admirável,
aqueles selos que estão suspensos no ar caindo na água. É uma memória histórica que
permite, que dá condições para este filme existir, e o registro jornalístico vai autenticar a veracidade do discurso, comum nos outros filmes. Eu atribuí uma categoria para
5
É Proibido Proibir
tográficos e o fato jornalístico, arranjando tudo isto na história. Eu particularmente
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cada um dos filmes desta sessão, depois vocês poderiam dizer se concordam, mas este
é um “filme-emoção”, ele vai diretamente na emoção, conta a história dele, informa
a gente sobre o passado, coloca o registro dos dados que são possíveis, e faz disto um
excelente material para a memória.
MAMÃE FIZ UM SUPER 8 NAS CALÇAS está numa vertente de vanguarda, o
neoconcretismo, o concretismo, uma nova configuração que irá superar os suportes
tradicionais. Uma tomada de posição política, uma antiarte, uma coisa de vedar um
pouco o discurso e deixar que a gente construa o que o filme não construiu. O filme
visto por outra materialidade, as folhas de papel como um suporte privilegiado, cheio
de alusões, cheio de ironias, cheio de deboche, procedimentos de comparação, paródias com o suspense, uma concretude do zoom in, zoom out que desfoca. O político
é só enunciado, o filmar sendo ato político de desdobramento dos procedimentos e,
quando chega a palavra que todo mundo espera, ela é substituída por uma associação
fonética, um efeito de comicidade na impossibilidade da fala. A impossibilidade da fala
também é outro tema que percorre boa parte dos filmes, as pessoas não se entendem
falando a mesma língua, ou falando em chinês, ou falando em indiano, ou falando
com o delegado, trabalhando com a cultura na impossibilidade de falar sobre o tempo
e trabalhando com os sons e tal. Este é o tipo de “filme-lacuna”, é um filme para a
gente preencher os buracos.
CLANDESTINOS é um documentário. Documentário é tradicionalmente trabalhado como um lugar sobre uma afirmação a respeito do mundo. Este documentário também vai trabalhar em cima da fala, começa dizendo isso, a fala que não pode ser dita,
a fala que é dura de ser dita, a fala que é fragmentada, e que tem o peso da história, da
dor, do sofrimento que as pessoas viveram nesse período; e que se constitui enquanto
fragmento, enquanto pedaços de uma história que não é possível ser recuperada em sua
integralidade. Então, é trabalhado no arquivo de São Paulo, nas falas das autoridades,
também está cheio de material de época, está cheio de resquícios sonoros, de imagens
de telejornais, está cheio de intervenções nas imagens num tom difuso, como uma fala
fragmentada, como se fosse difícil trazer essas falas à luz. Você comentou sobre a música do seu filme e eu tinha prestado atenção por ter me sugerido uma ideia continental
mais do que uma questão local; essa música latina faz um pouco o elo com esse problema que afligiu, que marcou toda uma geração, todo um período histórico.
É um filme cheio de movimento, o filme que está indo ao passado, à clandestinidade, a um lugar onde não podia se expor; é um filme que vai correr por janelas, vai enquadrar as pessoas. O filme é todo nesse movimento frenético, num sentido em que as
pessoas estão custando a elaborar; o filme recupera esse movimento das dinâmicas das
pessoas, da subjetividade do passado pela construção estética no presente. Os arquivos e os depoimentos são uma coisa só: uma verdade histórica, tudo é documento. Os
próprios documentos que são apresentados na mesa, além dos documentos dos cinejornais que as pessoas estão mostrando, os depoimentos das pessoas, tudo é documento.
74
É um filme apenas de manchete, o sentido vai sendo dado pelo conjunto, as pessoas
nem sempre são vistas em foco, há uma espécie de pudor com a exposição da pessoa
ultrajada; e termina de uma maneira absolutamente brilhante e sensível, perguntando
se os clandestinos são malucos ou sonhadores, e se os sonhos envelheceram. É por isso
que nos interessa voltar a pensar essa época. Para mim, este é um “filme-relâmpago”,
um “filme-flash”, ele pipoca imagens na cabeça da gente.
O filme PROJETO 68, que também é um documentário, é extremamente sofisticado na sua concepção, mistura o material da época e, nesse sentido, tem uma datação
e uma determinação de onde está vindo e para onde está indo. O filme faz uma associação com o dia 7 de setembro que para nós é muito evidente, que na verdade vai
se tornar evidente no decorrer do filme – entre os pobres da Cinelândia, o local das
ações da história e o local que hoje é ocupado pelos militares. A sombra desse passado,
que é misturada dentro do filme, incomoda porque essa presença, ainda que marcada
pelo desfile militar e que está localizada em uma função social, é incômoda, é muito
sinalizadora. É um filme que vai e vem no tempo, também montado em cima de uma
sofisticada composição de fotos e sons, um repertório de imagens de época, uma “dessincronia” sonora, tudo em table top, e passa em revista rapidamente todos os grandes
movimentos dos anos 60. É interessante pensar o filme do ponto de vista de quem
não conhece essa história e que está recebendo tamanho volume de informações. A
exploração e a valorização dos acervos surpreenderam-me por serem tantos, e a gente
reclama disso. E, no fim, a explicação do texto. Eu acho o filme uma justaposição, o
“filme-ampulheta”, no qual há camadas de tempo, e em que a gente vai descamando
um pouco a leitura desse período de 1968 até 2007.
Finalmente, TIRA OS ÓCULOS E RECOLHE O HOMEM é um filme de break,
quem fala isso é ele. Eu fiz um trocadilho infame aqui, já que ele é break-projection,
isto é, aquele efeito no qual o personagem passa andando de carro e vão surgindo umas
imagens de arquivo ao fundo. Esses efeitos são acintosamente falsos, acintosamente
grosseiros para a gente perceber a brincadeira toda que o filme tem. É um filme feito
pelo excesso, pela carnavalização, pela paródia, pela busca do popular. É um filme,
como a gente diria hoje, multiplataforma, um filme de época, com uma variedade
de aspectos e de suportes que põe em xeque essa maneira realista da representação
com a impulsão do documentário. O filme faz alusão ao próprio cinema; ele começa
como um filme de bang-bang safado, um western spaghetti, e vai criando sonhos, e
vai dizendo qual é o seu universo, qual o seu repertório, onde ele está. Vai do western
show, ainda com o Grande Otelo no meio, o que é exatamente capaz de definir aquilo
que eu acho desse filme: é um “filme de chanchada”.
Esses filmes estabelecem relações entre fatos e oferecem uma visão plural desses
fatos. A irreverência de uma parte deles e a solenidade de outros dão esse painel amplo
dos anos 60 que nós tivemos o prazer de assistir.
5
É Proibido Proibir
ao samba, ao filme de aventura policial, e termina maravilhosamente com registro de
75
Daniel Aarão Reis Filho:
Boa noite! Quero em primeiro lugar agradecer o convite que me foi feito
para conversar sobre 1968 através de filmes. Gostaria também de congratular-me com
a organização do evento e com os realizadores desses filmes que trazem memórias
diferenciadas dos anos 1960. Não vou me alongar em considerações estéticas sobre os
filmes, pois o Tunico já fez uma bela análise do conjunto deles, mas antes de abordar
alguns pontos que me parecem importantes, gostaria de fazer comentários que irão me
permitir entrar nas questões que trouxe para o debate com vocês.
Eu penso que a sessão apresentou uma vertente irônica, debochada, através de dois
filmes, embora muito diferentes: MAMÃE EU FIZ UM SUPER 8 NAS CALÇAS e
TIRA OS ÓCULOS E RECOLHE O HOMEM. Esta vertente irônica merece ser enfatizada porque ela é uma característica essencial dos movimentos dos anos 1960. Eu
diria que ela talvez não tivesse sido tão forte no Brasil como foi, por exemplo, nos Estados Unidos ou em algumas capitais da Europa Ocidental, sobretudo em Paris. Porém,
também esteve presente no Brasil e foi uma dimensão muito importante porque, de
certa maneira, essa dimensão contrastava com uma tradição das esquerdas brasileiras
e das esquerdas mundiais, que eram muito solenes, muito pomposas, e que ainda está
presente, aliás, em larga medida, em distintas forças de esquerda. Os movimentos dos
anos 1960 surpreenderam muito, entre outras razões, por essas irreverências. E apresentar essa dimensão, já que ela é geralmente pouco trabalhada, é interessante, porque
resgata um aspecto realmente fundamental dos anos 1960.
O filme CLANDESTINOS me pareceu também muito importante porque, de modo
geral, essa dimensão dos anos 1960 e 1970, até o fim da ditadura, não é muito trabalhada e foi uma experiência que vários chamaram de o “exílio interno”. Foi uma
experiência bastante intensa e que mereceria maior reflexão da nossa sociedade. Finalmente, os filmes MEUS AMIGOS CHINESES e PROJETO 68 tratam de ângulos
muito diferentes da reflexão sobre o trauma que significou para a sociedade brasileira
a instauração da ditadura em 1964 e a reiteração desta mesma ditadura em 1968, sobretudo após edição do Ato Institucional número 5.
Eu queria suscitar algumas questões que me parecem importantes e com as quais
trabalho sempre que participo de debates sobre os anos 1960. Em primeiro lugar – e
estas considerações vão dialogar com os filmes – tenho a impressão de que o conjunto
dos filmes trabalha muito a questão da ditadura como ditadura militar, e penso que
já está mais do que na hora de recuperarmos a dimensão civil-militar do golpe e da
ditadura. Os civis participaram intensamente do processo de instauração da ditadura,
as Marchas da Família com Deus pela Liberdade mobilizaram milhões de pessoas em
todo o país. Posteriormente, embora de maneira ziguezagueante, o fenômeno permaneceu – às vezes de modo mais intenso, ora menos intenso. Claro, a sociedade nunca
foi unânime no apoio à ditadura, pelo contrário, a ditadura sempre suscitou oposições.
Porém, importa considerar que também angariou apoios e cumplicidades. Nos momentos mais duros da ditadura, o presidente-ditador Garrastazu Médici foi mais de
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uma vez ovacionado no Maracanã, e vocês sabem que o Maracanã tem uma tradição
de vaias históricas, o que não aconteceu com o general Médici. Mais tarde, mesmo com
a ditadura passando por um desgaste profundo, o que se evidencia a partir de 1974,
nas últimas eleições parlamentares em 1978, a Aliança Renovadora Nacional/Arena, o
grande partido que apoiava a ditadura, ainda recebeu cerca de 40% dos votos.
Então, me parece importante na reflexão sobre a história da ditadura no Brasil vê-la
não apenas como uma imposição de fora para dentro, de cima para baixo, mas como
uma construção de segmentos importantes da sociedade. Isto é interessante na análise
não para a gente estabelecer, ou iniciar, ou desencadear uma sessão de autoflagelamento, mas para compreender as bases profundas que o autoritarismo tem em nossa
sociedade – ou tinha, pelo menos tinha – o que se mostra bem evidente nos anos 1960
e 1970. Então, esta é a primeira consideração que eu queria trazer para uma reflexão
coletiva.
Uma segunda observação diz respeito à luta contra a ditadura; não sei até que ponto há uma tendência em uniformizar a luta contra a ditadura como se fosse um todo
comum.
Em PROJETO 68, excelente filme da Júlia Mariano, a associação entre os movimentos estudantis e as ações armadas revolucionárias aparece de maneira muito
clara. Ora, embora houvesse entrelaçamento entre movimentos sociais e organizações
revolucionárias, a meu ver, é necessário esclarecer que eram projetos muito distintos.
Parece-me que os movimentos estudantis dos anos 1960, culminando em 1968, eram
movimentos sociais, no seu conjunto, democráticos. Eram movimentos reivindicativos
e democráticos, mas havia no seu interior organizações revolucionárias que elaboravam projetos revolucionários, que vinham desde antes de 1964, e que visavam destruir
o capitalismo, e não apenas a ditadura. Esses projetos revolucionários tenderam a ficar
muitas vezes esquecidos na memória que se faz das lutas contra a ditadura. Talvez
porque a palavra revolução, que estava tão em moda nos anos 1960, tenha saído de tal
maneira de moda nos anos atuais. A revolução como palavra tinha tal prestígio nos
anos 1960 que os próprios golpistas se autodenominaram revolucionários e, durante
muitos anos, o golpe foi chamado de revolução no Brasil. Quando eu voltei do exílio, em 1979, encontrava pessoas de esquerda, progressistas, que se referiam ao golpe
como revolução. Virou um hábito nacional, um costume, referir o golpe como se fosse
uma revolução.
No mundo todo, revoluções estavam em curso e vitoriosas. Em Cuba, em 1959; na
Argélia, em 1962; no Vietnã, em 1968 – a luta revolucionária no Vietnã não foi vitoriosa em 1968, mas a partir dali ficou muito claro que os Estados Unidos não ganhariam
mais aquela guerra. Portanto, a perspectiva revolucionária tinha uma impregnação
muito forte e, assim, mesmo antes de 1964, já se observavam no Brasil movimentos
crescentes a favor de uma revolução social, e isso se desdobra depois de 1964 através
de organizações revolucionárias que desencadearam ações armadas, imaginando que
5
É Proibido Proibir
77
iriam contar com vasto apoio popular, o que não aconteceu. A sociedade não acompanhou esse projeto revolucionário, mas ele existiu, teve certa consistência.
Penso que na análise da época é preciso recuperar que no combate à ditadura houve
duas vertentes, cada uma delas fragmentando-se internamente, mas que se estruturavam como projetos revolucionários, ou como projetos democráticos. Às vezes, inclusive, havia trânsitos entre esses dois projetos; houve pessoas que atuaram em mais
de um deles, porque eles tinham diferenciações internas também, assim como houve
pessoas que apoiavam a ditadura e que migraram, a partir de certo momento, para a
luta democrática.
Vejamos, por exemplo, o caso de Ulisses Guimarães. Com o tempo, tornou-se o
grande líder da campanha das Diretas-Já, mas em 1964 apoiou ativamente a ditadura.
Outro exemplo: a Ordem dos Advogados do Brasil, que se tornou o bastião da luta
democrática, também apoiou formalmente a ditadura em sua instauração; e a Confederação Brasileira dos Bispos? Também desempenhou um papel fundamental na luta
contra a ditadura. Contudo, em 1964, fez uma nota oficial abençoando a vitória do
golpe.
Então, houve migrações. É preciso perceber esse período nas suas ambivalências,
nas suas contradições, porque há uma tentação sempre de se apresentar a realidade
segundo uma arquitetura simplificada: de um lado, a ditadura militar, do outro, a
sociedade. Mas a ditadura ao longo do tempo foi mudando e a sociedade também;
houve quem apoiasse, houve quem não apoiasse, houve quem apoiasse e não apoiasse
ao mesmo tempo, houve gente que apoiava a ditadura mas guardou revolucionários em
suas casas, porque eram contraparentes, ou parentes, ou amigos; houve pessoas que
apoiavam a ditadura e depois passaram para uma oposição radical a ela – é o caso dramático do Jean Marc van der Weid, preso político e revolucionário exemplar, mas ele
mesmo conta que, no dia do golpe, desejou estar no Palácio Guanabara, defendendo
Carlos Lacerda, líder da direita radical, pois estava convencido de que o Golpe vinha
para salvar a democracia no Brasil.
Penso que recuperar esse mosaico nas suas contradições pode ser mais enriquecedor,
mais fecundo do que trabalhar com base em arquiteturas simplificadas, polarizadas.
Finalmente, desejaria encerrar com a pergunta que me parece muito interessante,
feita no final do filme CLANDESTINOS: os sonhos envelheceram?
Em muitos dos debates de que participo sobre os anos 1960, às vezes noto uma
celebração bem enfática daquelas lutas e daqueles anos, e certo desmerecimento da
situação em que a gente vive hoje. De forma frequente, a juventude da época é apresentada como extremamente consciente e politizada, e a juventude de hoje, alienada;
a sociedade em 1968, extremamente ativa, enquanto hoje viveríamos uma fase de apatia. De fato, não concordo com esta perspectiva de análise. Em primeiro lugar, penso,
sem dúvida, que o ano de 1968, no Brasil e no mundo, construiu grandes lutas, muita
atividade política, em certos aspectos, momentos épicos; mas também houve naquele
78
ano forças em atividade que lutaram para parar aquele incêndio, e foram vitoriosas –
eram tão fortes que foram vitoriosas. Embora nas memórias da época essas forças não
apareçam, como que desapareceram do mapa, é bom lembrar que foram vitoriosas.
Então, me parece necessário, ao pensar esses anos, pensar nessas forças que eu
chamo de “frias” – “forças frias”, contribuindo para esfriar as quenturas que vinham
daqueles movimentos. Por outro lado, a situação no Brasil atual, apesar das imperfeições, das dificuldades, das contradições, dos impasses que às vezes acabrunham, irritam, apresenta referências extremamente promissoras. Nunca se viu tanto negro nas
universidades, nunca se viu tantas lideranças populares exercendo cargos públicos;
há um clima de liberdade de organização partidária e sindical como nunca houve na
história do Brasil. Assim, considero que os sonhos não envelheceram, mas mudaram.
E eu diria que envelheceram aqueles que não souberam renovar os seus sonhos.
Muito obrigado.
Sérgio Sbragia:
Uma questão que eu considero importante, e que o Tunico comentou, é a da
disponibilidade dos arquivos. Acho que talvez exista certa dificuldade em vê-los por
causa da própria ditadura, que de certa maneira impediu a produção e a manutenção
dos arquivos, dos registros públicos. No meu filme, realmente tive certa dificuldade,
isto exigiu de mim bastante pesquisa. Por exemplo, não sei se vocês perceberam, mas
quando começa a realidade, quando acaba o sonho do menino, a mãe está ouvindo o
rádio; é um registro do discurso do Carlos Lacerda que eu consegui, todo o discurso
no rádio no dia do golpe. O Carlos Lacerda, que era governador do estado do Rio, ocupou a rádio e ficou o tempo todo falando com a população para aderir ao golpe. Esse
registro, na verdade, pertence a uma coleção particular de um radialista. A mulher
desse radialista gravou e conservou, e está nessa coleção particular. Outra situação foi
uma imagem do dia seguinte ao golpe da UNE. Eu estava na instituição do Arquivo
Nacional e o diretor comentou que tinha uma fita aparecida há algum tempo e que até
então não tinha sido utilizada, pois eles estavam esperando aparecer o dono da fita.
Como não apareceu, ele permitiu a utilização desse material no filme, mas não deu
garantia se iria dar problema, se alguém iria reivindicar, mas achava que não, pois eles
estavam há muito tempo esperando. Então, era um registrou que até então ninguém
tinha usado, mas acho que agora liberou. Realmente há poucos registros.
Plateia:
A pergunta é para o professor Daniel. Você fala sobre essa questão do hoje, que
temos maior democratização, mais liberdade, mas como você vê o fato de o governo
Lula não incentivar a abertura dos arquivos? Ou pelo menos há uma polêmica: o
questão mais interna. Como você vê a questão do governo sobre essa tensão interna
entre abrir ou não os arquivos? Eu queria que você falasse um pouco – já que você
conhece alguns integrantes, o Marco Aurélio Garcia, por exemplo – como está hoje o
governo Lula quanto a essa temática tão complicada da abertura ou não dos arquivos
da ditadura militar.
5
É Proibido Proibir
Tarso Genro fala que se devem punir os torturadores, o governo desmente, é uma
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Daniel Aarão Reis Filho:
Bem, penso ser lastimável que esses arquivos ainda não tenham sido
abertos. Aliás, eles têm aparecido em fragmentos, às vezes até em casas particulares,
uma coisa que evidencia o caos organizativo em que se transformou a ditadura. É
lastimável, repito, que o governo e os ministros militares, o ministro da Defesa em
particular, estejam sendo extremamente tímidos na cobertura dessas atividades que
envolveram a tortura como política de Estado. A tortura não foi um excesso, não
foi obra de pessoas com especiais patologias, embora, evidentemente, os torturadores
possam se transformar em neuróticos, por ser a tortura uma atividade traumática,
principalmente para quem é objeto dela, é claro, mas também para os torturadores,
que se “boçalizam” na sua prática; mas é fundamental chamar a atenção para o fato
de que a tortura foi uma política de Estado. Aliás, o Estado admite isto ao constituir
toda uma política de reparações; no entanto protege, de uma maneira corporativista,
no mau sentido da palavra, as Forças Armadas, comprometendo continuadamente
essas instituições, trinta anos depois, com essas práticas abomináveis.
Penso ser tudo isto muito lastimável. Agora, além de denunciar e criticar, tento
compreender, porque faz parte essencial do ofício do historiador. Vejo o governo Lula
como um governo reformista moderado, exercido pelo Lula, em particular, e por todo
um conjunto de lideranças sindicais e políticas que emergiram no final dos anos 1970.
Tais lideranças consideram, com justa razão, que trouxeram uma contribuição fundamental para o estabelecimento da democracia no Brasil, não tendo se associado, no
passado, aos projetos revolucionários que foram destruídos pela ditadura nos anos
1960. Acredito que haja uma cisão entre essas lideranças sindicais, o que elas representaram e representam e as esquerdas revolucionárias dos anos 1960. É interessante
observar que houve, no final dos anos 1970, início dos anos 1980, certa associação
entre as lideranças sindicais, o Lula em particular, e lideranças intelectuais que tinham
uma tradição revolucionária, inclusive nas organizações das ações armadas. Houve ali
a construção de uma associação, e alguns inclusive exageraram, mas a verdade é que
essa associação foi se desfazendo com o tempo; muitas dessas lideranças intelectuais
migraram também para posições reformistas moderadas. Você citou o caso do Marco
Aurélio Garcia, que era um homem que se vinculava a essa tradição revolucionária,
participou da fundação do PT, mas com o tempo foi migrando para posições bastante
moderadas – não é à toa que ele é assessor até hoje do Lula.
Penso, então, que a resistência em abrir os arquivos decorre dessa cisão: de um
lado, lideranças sindicais e políticas que se autorrepresentam como se tivessem desempenhado um papel fundamental para a construção da democracia; de outro, projetos
revolucionários derrotados aos quais elas não se associam. Ora, aquelas lideranças
tendem a imaginar, a meu ver, equivocadamente, que abrir os arquivos é repropor
uma discussão e uma dinâmica que acabarão favorecendo, nem que seja através do
exercício da memória, os projetos revolucionários. Nesse sentido, preferem fechar a
discussão e manter a sua autovalorização, que é inegável – o papel deles realmente é
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inegável na construção democrática do Brasil, ou seja, interpreto na questão da abertura dos arquivos uma disputa de memória. Não existe apenas um ato de timidez, ou
de covardia, existe uma disputa de memória. A abertura dos arquivos é de certo modo
a revalorização de um passado que foi esquecido até por grande parte das esquerdas
revolucionárias. É impressionante como os próprios revolucionários dos anos 1960
não queiram mais ser reconhecidos como portadores de projetos revolucionários, o
que é até compreensível, tendo em vista a mudança das circunstâncias, e preferem se
enxergar como participantes da resistência democrática no país. Então, também desse
ponto de vista, a abertura dos arquivos vai machucar e vai fortalecer um tipo de memória que é considerado deletério. Creio que se inserirmos a discussão nesse quadro de
disputa da memória, poderemos ter uma entrada melhor no debate do que ficar apenas
lastimando e denunciando, o que também é uma dimensão importante da discussão,
mas eu diria que não é a mais fecunda.
Poliana Paiva:
Acho que a gente poderia tentar mudar o foco, entrar mais nos filmes. Tem mais
alguma pergunta voltada para este tema?
Plateia:
Para juntar um pouco a fala do Daniel com os filmes, tentar fazer uma ponte, o que
me toca no filme CLANDESTINOS, da Patrícia, e também no filme MEUS AMIGOS
CHINESES, do Sérgio – e que eu acho que está presente em todos os filmes mas principalmente nesses dois – é a forma com que a subjetividade foi afetada pelos anos de
terror, pelos anos da ditadura. O que me impressiona muito no filme da Patrícia é que
ela consegue colocar em imagens o que são vivências na clandestinidade. Acho que há
um entrecruzamento entre a subjetividade e aquilo que se passa no nível da sociedade,
que nesses filmes fica exposto nas imagens. É interessante quando o Daniel fala de uma
disputa de memória, e a gente pode entender essa questão dos arquivos como uma luta
política, pode pensar em termos da aliança que esse governo faz com todo o setor que
não quer ser exposto e desmascarado, e pode pensar também que algo é barrado, impedido, ao se vai falar de como tudo foi experienciado, vivenciado. Abrir os arquivos é
abrir um caminho para as pessoas poderem falar o que viveram, o que vivenciaram na
tortura, na clandestinidade, nas decisões que implicaram vidas, formas de viver. Acho
que há uma questão superimportante que é posta em todos os filmes, a da experiência,
que você retoma a partir de uma análise histórica, a questão de que lugar tem, em um
governo como o do Lula, a experiência de cada um.
Plateia:
Eu queria ouvir o comentário da Júlia Mariano e da Patrícia Moran. Pegando um
pouco a última fala, eu percebo nos dois filmes, além da questão da documentação,
passado, não há como não falar também de uma experiência de perda. Parece-me que
nos dois filmes a experiência de perda dá a ideia de ser a perda do público, do espaço
público. O filme da Júlia parece enfatizar muito isto, na medida em que mostra a Parada de 7 de Setembro e mendigos no centro da cidade, o desolado e completamente
despolitizado em contraste com o tempo em que aquele espaço era um espaço de po-
5
É Proibido Proibir
de todo um levantamento, um determinado discurso sobre o presente; ao falar do
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litização. O filme da Patrícia também, na medida em que fala de algo semelhante, em
que a clandestinidade é focalizada em uma espécie de atomização, ou fragmentação
dos prédios, da imagem, das janelas, como se tudo estivesse fracionado, uma experiência de fragmentação. Eu gostaria de ouvir um pouco de vocês duas a respeito desta
questão especificamente, de uma perda da politização do espaço público da cidade.
Plateia:
Acho também que o último filme resgata o lado da ironia, da má-criação e do escra-
cho que acredito ser uma arma que a gente tem também e continua tendo.
Patrícia Moran:
Em relação ao hoje, neste aspecto preciso, eu não procurei construir – há coisas
que a gente não procura construir, mas elas aparecem, elas estão lá de alguma maneira latente e, na hora em que se organiza, elas têm autonomia, você desenha algumas
questões e outras vêm por si. Foi bom você ter colocado este ponto da atomização e de
como eu trabalhei a cidade, porque para mim esta era uma grande questão: como as
pessoas que estiveram nessa situação construíram suas referências, pois já não importa
em qual cidade estão, porque elas andaram, como a gente vê pelas falas. Era um acontecimento que tinha uma amplitude nacional, e tanto faz, não importa. Claro que não
era bem assim, umas cidades são mais propícias para se esconder do que outras; em
algumas a visibilidade é maior, há uma série de questões ligadas a isto, mas é a atomização do espaço público e da própria pessoa, como a Miriam comentou. Isto porque
a identidade desaparece tanto materialmente como documento, e ela tem que desaparecer enquanto traço de comportamento, porque, se você se repetir, fica semelhante
ao que você era e é mais fácil de ser localizado. Como um dos personagens fala: “Eles
sabiam mais sobre a gente do que a gente mesmo, e a gente tinha que se esquecer”.
Então, naquele momento, houve um processo de esquecimento, eles tinham que
fazer isso, tanto para não saber o que estava acontecendo com os colegas, para não
denunciar, quanto sobre si mesmo. Mas o que mais me interessava era o processo de
pensar o seguinte: o cinema também é uma janela, o audiovisual também é uma janela,
uma janela em que você tem a tela branca, você projeta alguma coisa e passa a acontecer. Eu mantive esta metáfora das janelas em mente. Nas grandes cidades, as janelas
do seu vizinho durante o dia são um escuro, à noite é uma televisão, além da própria
televisão, cenas que acontecem – é o lugar do voyeur. E aquelas pessoas tinham que
lidar com isso: como se administra o desejo do olhar do outro quando você precisa
se apagar? Tem essa brincadeira, o jogo com essa situação que é realmente vivenciada
por elas.
Júlia Mariano: No meu caso, a relação com o espaço, o passado e o hoje, como eu não sou dessa
geração, se dá da seguinte forma: eu sempre olhei tudo do ponto de vista do presente. É uma reflexão minha, de uma pessoa que não faz parte daquela geração, sobre
aquilo que aconteceu, então, eu sempre quis deixar isto claro no filme. A ideia do 7 de
Setembro veio antes do início da edição, justamente como um gancho espacial para
trazer a discussão para hoje em dia. Na verdade, a gente não sabia o que ia acontecer
no 7 de Setembro, ninguém da equipe havia passado um 7 de Setembro aqui. Quando
82
chegamos ao Centro, entendemos que não só a gente, mas ninguém passava o 7 de
Setembro no Rio, só os moradores de rua que estavam ali e tinham sido acordados
por toda aquela parafernália do desfile, e eles estavam muito chateados por terem sido
acordados, por isso, aquelas caras rabugentas – foi engraçado, aquilo não foi montado,
aconteceu mesmo.
A gente escolheu aquele espaço com a ideia de fazer um movimento de encher e esvaziar, mas não querendo passar uma noção de romantização daquela época, porque
eu também não concordo com isso. Então, a gente tomou o espaço como esse gancho
de passado e presente. E foi muito legal no dia de gravar, porque a gente levou umas 30
fotos que eram os planos de toda aquela região onde tinham acontecido as perseguições, as disputas e as brigas entre os militares e os estudantes. E a gente foi gravando
a Rio Branco inteira, a Primeiro de Março, a Rádio MEC, com essas fotos de 40 anos
atrás. Foi muito interessante ver como a cidade mudou, como essa mudança apagou
milhões de coisas. Quanto mais prédios se constroem, mais se destrói a história daquele espaço. Eu fiquei muito impressionada com as fotos que eu vi do lugar e em perceber
que não sobrou nada do que era há 40 anos atrás; não há nem como se prender a alguma coisa mais concreta para relembrar esse passado.
Luis Eduardo Carmo:
Sobre a questão afetiva, TIRA OS ÓCULOS E RECOLHE O HOMEM é
um filme de um amigo sobre a história de outro amigo e tem uma questão sobre a distância e sobre o tempo. É interessante imaginar como o Jards vê aquilo que se passou
com ele. Tem essa questão do tempo e tem outra: a de que ele sempre foi um clandestino em tudo, porque todo mundo fez parte de algum movimento e ele não fez parte da
Bossa Nova, ele era muito jovem, ele não fez parte da Tropicália, ele não fez parte do
Clube da Esquina, ele não foi Novo Baiano, ele não foi nada disso. Ele esteve sempre
à margem de tudo isso, ele nunca se engajou em coisa alguma, tanto que até hoje ele
é um cara meio de lado, ele é querido das pessoas, mas as pessoas falam meio que de
longe, é um cara não creditado por várias coisas que ele fez.
É completamente diferente a experiência dele. Por um lado, objetivamente, foi um
cara que entrou por uma porta e saiu pela outra, foi isso, foi preso, sofreu aquilo ali,
mas ele entrou por uma porta e saiu pela outra, então, ele não fazia parte de movimento nenhum. E também ele não é o cara que caiu, que foi preso e está na situação
de prisioneiro, do cara que perdeu, que estava lutando por alguma coisa e perdeu para
o oponente, e que passa por um processo de tortura. É uma coisa completamente
diferente o que aconteceu com o Jards. A experiência dele pode também ser contada
nenhum. Ele não foi um perdedor, ele não foi um torturado, ele foi um cara que entrou
por uma porta e saiu por outra, e seria difícil fazer esse tipo de memória daquele tempo
se ele estivesse em outra posição.
Plateia:
Eu acho interessante, eu também não vivi esse período, mas o pouco que eu estudei
– se eu estiver errado você me corrige – é que nesse período tinha muito uma política
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É Proibido Proibir
dessa forma: ele ter tido esse tipo de experiência, mas não ter feito parte de movimento
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de incentivo ao nacionalismo, aquela coisa do Médici, “Brasil, ame-o ou deixe-o”, e
o interessante no filme do Sérgio é que ele mostra a criança, que é o ser puro, sem a
malícia, que não consegue perceber, diante dos fatos, algumas tentativas, alguma política por trás daquilo. Então, tem a música, a coisa da irreverência da Copa, há muito
essa política nacionalista. E eu acho interessante, no filme da Patrícia, é que através
desses elementos cinematográficos ela conseguiu mostrar esteticamente essa subjetividade. Então, a verdade por trás disso tudo, que é a subjetividade, está sendo medida
por meio de imagens que são subjetivas, assim, elas estão sem foco. Enfim, não sei se
a minha leitura está correta.
Plateia:
Acho que o Daniel colocou uma contradição muito importante. Você falou da palavra
revolução, e o quanto esta palavra se perdeu hoje em dia. E, no final, você fez aquele
levantamento da necessidade de se ver que não está tudo tão perdido como às vezes a
gente gosta de dizer. Então, eu queria perguntar aos realizadores – acho que não vai
dar tempo para responder, mas fica no ar – como eles trouxeram essa dimensão da
revolução, esse movimento para os filmes. Mas eu achei curioso, vendo o catálogo, que
esta sessão, depois da de abertura, é aquela com os filmes mais novos, com filmes de
2000 para cá. E também a Tetê sempre coloca no final do catálogo uma relação dos
filmes pesquisados para cada sessão, e a quantidade de filmes para esta sessão é muito
maior em relação às outras sessões.
Daniel Aarão Reis Filho:
Desejaria reiterar minhas congratulações à organização do evento e aos
realizadores que trouxeram com esses belos filmes a oportunidade de a gente exercitar
a nossa memória. Vou, inclusive, pedir licença aos realizadores para utilizar os filmes
nas minhas aulas e nos debates. Penso de fato que os textos visuais são sempre muito
importantes para contribuir no sentido do exercício da nossa memória.
Poliana Paiva:
Plateia:
Tem mais uma pergunta da plateia? Vamos tentar enquanto houver luz!
A pergunta é para o professor Tunico. Na tentativa de categorizar ou classificar, se-
ria possível encaixar uma ponte em relação ao que o professor Daniel colocou sobre
a abertura de toda essa memória? No filme da Júlia ficou muito forte aquele senhor
que começa o filme, que está na rua, que está quase penetrando naquele bem material;
ele também viveu em Niterói e fica transitando como se o grande desconforto fosse
o estranhamento militar na rua, como se o povo em 1968 estivesse na rua, e hoje
pertencesse à rua. Como se a liberação de um povo da rua e de um povo na rua fosse
uma categoria de desconforto e estranhamento, pergunto se poderia ser uma categoria
também de análise nessa questão fílmica que a Júlia falou.
Júlia Mariano: Na verdade, eu acho que é um pouco isso, esse morador de rua é um personagem
muito clássico no meu filme. Ele é um morador de rua e é gordo, e eu acho que é uma
metáfora boa para o Brasil: a gente é tão rico e vive mendigando; tão gordo, mas ao
mesmo tempo mora na rua, é um pouco isso.
Poliana Paiva:
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Gente, obrigada pela atenção de vocês. Até amanhã!
OBRAS CITADAS
Artes Plásticas:
Lute, de Carlos Zílio (1967)
Filmes:
Alemanha Ano Zero, de Roberto Rosselini (Itália, fic, 78min, p&b, 35mm, 1947)
O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hambúrguer (Brasil, fic, 110min, cor, 35mm, 2006)
Belíssima, de Luchino Visconti (Itália, fic, 108min, p&b, 1948)
Conceição - Autor Bom é Autor Morto, de Daniel Caetano, André Sampaio, Guilherme Sarmiento,
Samantha Ribeiro e Cynthia Sims (RJ, fic, 78min, cor, 35mm, 2007)
A Culpa dos Pais, de Vittorio De Sica (Itália, fic, 1944)
Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica (Itália, fic, 93min, p&b, 35mm, 1948)
Machuca, de Andrés Wood (Inglaterra, França, Espanha e Chile, fic, 121min, cor, 35mm, 2004)
Now, de Santiago Alvarez (Cuba, doc, 5min, 1964)
Valentin, de Alejandro Agresti (Argentina, Espanha, França, Holanda e Itália, fic, 82min, cor, 35mm, 2002)
Vítimas da Tormenta, de Vittorio De Sica (Itália, fic, 93min, p&b, 35mm, 1946)
Vozes Inocentes, de Luis Mandoki (Porto Rico, EUA, México, fic, 120min, cor, 35mm, 2004)
Livros:
REIS FILHO, Daniel Aarão. A Revolução Faltou ao Encontro. São Paulo: Brasiliense, 1990.
Música:
Clandestino, de Mano Chão (Virgin, 1998)
É Proibido Proibir
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Heloisa Buarque de Hollanda
César Cabral
Leonardo Esteves
Ivana Bentes
Hamilton Vaz Pereira
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EU SOU O INÍCIO, O FIM E O MEIO
CINE ARTE
UFF
1/12/08
Participantes
Cesar Cabral cineasta
Heloisa Buarque de Hollanda cineasta
Leonardo Esteves cineasta
Hamilton Vaz Pereira diretor teatral e ator
Ivana Bentes professora da ECO/UFRJ
Poliana Paiva mediadora
A sessão “Eu sou o início, o fim” e o meio trata de
movimentos culturais que dialogam com o espírito de
68. Representando o “início” o filme de Cristina Leal
trata das emoções do modernista Mario de Andrade
ao vivenciar o carnaval carioca. O modernismo foi
um grande inspirador e influenciador de movimentos
culturais de 68. O “meio” está representado em
“Emprego Temporário” que incorpora o espírito
Sessão 6 I 35mm / vídeo
FILMES EXIBIDOS
XARABOVALHA
de Heloisa Buarque de Hollanda
RJ, doc, 13min, p&b, 35mm, 1978
NÃO ME CONDENES ANTES
QUE ME EXPLIQUE
de Cristina Leal
RJ, fic, 17min, cor, 35mm, 1998
EMPREGO TEMPORÁRIO
de Leonardo Esteves
RJ, exp, 4min, p&b, 35mm, 2007
DOSSIÊ RÊ BORDOSA
de Cesar Cabral
SP, ani, 16min, cor, 35mm, 2008
Temas relacionados
Modernismo, Antropofagia,
Humor, Carnaval, Tropicalismo,
Cinema Novo, Cinema Marginal,
Geração 1968 x Geração 2008
do movimento do cinema marginal, ocorrido em
finais da década de 60, e na liberação sexual da
personagem Rê Bordosa. A arte cinema também é
o “meio” pela qual promovemos o debate. O “fim”
mostra as influências desta geração em movimentos
das décadas posteriores a 68 como o fabuloso grupo
carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone e a genialidade
de personagens criados pelo cartunista Angeli.
Tetê Mattos: Talvez pudéssemos começar pela ordem dos filmes. Heloisa podia, então, começar
falando um pouco sobre o seu filme, enquanto a gente aguarda a mediadora Poliana
Paiva, que já deve estar chegando.
Eu não sei o que eu poderia falar a mais sobre este filme. Eu acho
que não é um filme profissional, que não tem maiores pretensões para o cinema. E acho
que é apenas uma tradução de um momento, um momento muito rico da cultura brasileira. Um momento de virada política, um momento de virada cultural muito grande,
a contracultura. E o papel do teatro alternativo e da poesia marginal nesse momento
foi muito importante, porque foram exemplares. Eu lamento demais que eu não tenha
realmente filmado a peça inteira, mais depoimentos etc. Quando vejo esse retalhinho
de filme hoje, acho que teria sido um registro. Mas quando a gente está no presente, a
gente nunca imagina que aquilo ali possa ser memória. Aquilo já tem trinta anos. E eu
acho que poderia ser um documento muito importante para a contracultura brasileira
6
Eu Sou o Início, o Fim e o Meio
Heloisa Buarque de Hollanda:
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em um dos seus melhores momentos. Essa peça Trate-me leão, do grupo Asdrúbal
Trouxe o Trombone, marcou época, foi repetida muitas vezes. Ela tinha um lado ritual, um lado de encontro, um lado de identificação de gerações e um lado que dava voz
a uma geração que era conhecida como geração do sufoco. Uma geração sem informação, uma geração que vivia uma paranoia do susto da censura, e que venceu – isso
é muito interessante, se você for ver de perto, o filme abre um pouquinho essa janela,
mas muito pouco. Eu fico triste quando o vejo, eu fico imaginando: antigamente – eu
sou muito velhinha –, quando você via televisão, você dizia assim: “É pena que isso
não seja a cores!” E eu digo é pena que eu não tenha filmado mais o Asdrúbal, que eu
não tenha feito realmente um registro daquilo que é muito importante. Eu acho que a
importância do filme como cinema não existe. Ele existe como uma provinha mínima
do que foi a vitalidade de uma geração muito bem representada pelo Trate-me leão. Eu
gostaria até que o Hamilton falasse um pouquinho...
Leonardo Esteves:
Eu queria fazer uma observação. Primeiro, que essa cópia que vocês assisti-
ram está um pouco escura. A gente fez uma cópia com remarcação de luz, mas ela está
em São Paulo. Então, não tinha tempo útil para tirar uma cópia nova.
Este é um filme que tem muita influência do Cinema Marginal e um humor dos
cinejornais esportivos, do final dos anos 50, principalmente dos cinejornais da Atlântida. Então foi o primeiro filme para praticamente todo mundo que o fez e foi uma
aventura bacana, valeu a pena! E é isso, não tenho muito o que falar sobre. O processo
foi esse, né? A gente improvisou e é isso que vocês viram.
Cesar Cabral:
Boa noite! Como eu tinha falado no começo, o filme surgiu da ideia de fazer um
documentário sobre quadrinhos, sobre quadrinhos paulistas, do final da década de 70,
começo de 80 – essa geração do Luiz G., do Angeli, Laerte. E eu sempre tive a ideia
de trabalhar a animação e também imagem real, live action. Aí essa ideia evoluiu para
um curta – ou involuiu (risos), que o projeto era maior – e a gente resolveu focar numa
história, num fato verídico, que é quando o Angeli matou a Rê Bordosa em 1987. Ele
nunca explicou muito bem o porquê da morte e foi matando em tirinhas no jornal, até
um ou dois dias antes, quando as pessoas começaram a sacar que ele realmente estava
matando. E ele nunca mais desenhou e nunca explicou muito bem o porquê da morte.
Então a gente trabalhou em cima disso, um documentário: a gente entrevistou as pessoas, o Angeli, os amigos do Angeli, para tentar descobrir o que leva um autor a matar o
seu personagem. E durante o processo de produção, eu resolvi fazer tudo em animação,
porque, até então, ainda teria imagem real e entrevista com os personagens. E o filme
trabalha muito essa linguagem de documentário, isso que em animação, de certa forma,
é meio o oposto. Na animação a gente planeja muito bem a produção, tem uma préprodução muito pensada, para não se animar mais. Quer dizer, eu animava uma média
de cinco segundos por dia, então animar um segundo a mais é um desperdício de horas.
Então foi sempre muito bem trabalhado isso, um documentário com animação. Eu tinha dez horas de material no início dessas entrevistas. Foi um exercício fazer esse filme.
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Poliana Paiva:
Depois vamos abrir para as perguntas e aí entrar nos detalhes. Agora vamos
passar para o Hamilton.
Hamilton Vaz Pereira:
Poliana Paiva:
Pois muito bem, boa noite a todos! O que eu devo falar mesmo?
A princípio, o que você quiser, mas ela pediu para você falar mais sobre o filme
XARABOVALHA. Também pode comentar os outros filmes.
Hamilton Vaz Pereira:
Eu gostaria de falar alguma coisa sobre os três filmes para depois falar
sobre o XARABOVALHA. Achei muito interessantes os filmes. Eu tinha visto em
casa, aquela olhada boa, e aí tive uma boa impressão. Mas de repente, assistindo
com vocês, em uma tela maior, tive uma impressão ainda melhor dos três filmes. É
interessante, várias coisas... O primeiro que eu gostaria de comentar é o do Mário
de Andrade. Eu achei muito bem feito. Tem algum representante do filme aqui? Não.
Então eu posso falar à vontade (risos), até para elogiar. Eu tive uma impressão boa,
achei o filme bem feito, bem acabado, bem produzido. Eu não sou de cinema, então
quem está falando aqui é um amador, um espectador. Eu não sou um especialista no
ramo, meus comentários são iguais aos comentários que vocês também podem vir a
fazer. Eu fiquei o tempo todo com uma dúvida em relação ao filme. Por ser um filme
que mostra o carnaval carioca de muitos anos atrás, por ser uma apresentação de uma
carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira e dos comentários do poeta Mário de
Andrade, se em algum momento a ingenuidade do carnaval carioca, para ter alguma
coisa que ele chama de “ali estava Baco!”, eu não sei se eu achei meio ingênuo ou se
eu achei meio bobo. Fiquei na dúvida se, ao expressar a coisa do Mário de Andrade
naquela época, o carnaval carioca tinha uma ingenuidade que hoje não teria. Se o filme
talvez não pudesse retratar para nós, do carnaval de 2009, que estamos chegando lá,
uma certa volúpia maior, ou se o Baco não teria que ser registrado ou filmado de uma
outra maneira. Não sei se fui claro. Em algum momento, eu achei o filme meio ingênuo
demais. Pensei que talvez pudesse, mesmo retratando o carnaval ainda ingênuo, que
era o carnaval dos anos 20 ou dos anos 30, talvez pudesse ter um tesão maior, talvez
pudesse ter uma coisa mais “tesuda”. Isso eu fiquei o tempo todo do filme pensando.
Eu gostaria de ouvir de vocês, porque eu realmente não sei dizer qual seria a onda.
Este é um comentário que eu posso fazer. Vocês podem perceber que é meio que um
comentário ingênuo. (risos)
muito divertido. Talvez por ter visto em seguida ao do Mário de Andrade, que teve
maior duração na tela. Um filme de quatro minutos! Pá, pá, pá e foi. Eu achei que tem
um humor muito bom, muito divertido. As falas, as imagens... Eu fiquei realmente encantado! No final – eu já tinha visto o filme em casa, como eu disse –, o público aplaudiu e eu falei: “Puxa, e ainda tem uma jogadinha que será que o público vai aplaudir
no momento que o cara diz: ‘Não, agora terminou’?” Faltava mais um pouquinho para
ele terminar. Então eu fiquei pensando se não teria, para ter recebido algum patrocínio, que ter um tempo exato de duração, que precisava “encher alguma linguiça” para
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Eu Sou o Início, o Fim e o Meio
Com relação ao filme de quatro minutos, EMPREGO TEMPORÁRIO, eu achei
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poder compor um curta de quatro minutos. A coisa de ser em preto e branco, eu vi
muitos desses filmes. Eu sou um senhor, já sou muito antigo! A gente adorava ver esse
tipo de filme. Então quando eu vejo outra vez uma releitura desse momento, me deu
algum calor no coração. Gostei muitíssimo de ver o bom humor do filme.
Para terminar, antes de falar do XARABOVALHA, o filme sobre a Rê Bordosa.
Quando eu li DOSSIÊ RÊ BORDOSA, me deu uma antipatia de cara, porque eu não
gosto muito desse universo da Rê Bordosa. Eu nunca li Rê Bordosa. Eu sou carioca,
não sou paulista, não acho muita graça nesse humor de bêbados e mulheres largadas
na noite. Eu acho isso uma chatice inominável! No entanto, eu fui assistir ao filme e comecei a simpatizar com ele de cara. Depois dos primeiros quinze segundos de filme, eu
falei assim: “Opa! Que filme legal! Opa! Bom! Oi, legal!”, e adorei o filme! Adorei, por
exemplo, quando o Angeli diz que não gosta desse tipo de mulheres que bebem, ficam
em casa babando e não sei o quê. Falei exatamente ali: “Eu não gosto também!“ A simpatia aumentou e foi aumentando até que aumentou de vez. Adorei o filme. Quando o
autor disse que levava o dia inteiro para fazer cinco segundos, eu fiquei completamente
arrepiado! Eu falei: “Como que um cara para fazer cinco segundos leva o dia inteiro!”
Eu fico encantado com esse tipo de coisa. Porque quem faz cinema, música, teatro,
artes plásticas, balé, literatura, seja o que for, gasta um tempo da sua vida para criar
um verso razoável. Gasta um tempo da sua vida para compor uma cena de um minuto!
E outra coisa que ele disse muito bonita foi que ele teve dez horas de coisas gravadas
para reduzir, concentrar isso em poucos minutos. Nossa, que generosidade! Porque se
grava dez horas é difícil para o artista reduzir para uma hora. E o cara reduzir para
pouquíssimos minutos... Eu achei de uma generosidade, disciplina e uma vontade de
fazer um belo filme. E também concentrar uma certa emoção e não alugar a plateia
com dez horas de projeção. Achei fantástico e está de parabéns! E dou os parabéns
mesmo porque o pessoal do filme está aqui, é até mais fácil. (risos) Mas merece sim!
Eu não sei se devo continuar a falar, já estou falando demais. Mas para dizer um
pouquinho do XARABOVALHA e depois passar para os meus colegas e para abrir
para alguma conversa entre nós, eu não via o filme já há algum tempo, talvez há uns
três anos, desde que Heloisa lançou o livro dela sobre o Asdrúbal Trouxe o Trombone
– ela vai dar uma novidade aqui, daqui a pouco. Então, o livro vinha com um DVD,
que eu assisti e que já não via desde muito tempo atrás. E fiquei encantado de me ver, de
ver meus colegas, com cabelo, magrinhos, todos bonitinhos, e todos mascaradésimos,
orgulhosos por estarem fazendo aquilo. Eu achei muito bonito ver as pessoas contentes
com o que produzem, emocionadas com as suas vidas. E, naqueles treze minutos de
vídeo, eu fiquei encantado com muita coisa. Por exemplo, no vídeo aparece um amigo
nosso, Fábio Junqueira, que fala no discurso final do espetáculo, um amigo que nos
deixou semana passada. Então foi uma surpresa muito grande para mim. Enfim, o
filme é bonitinho, amoroso, a Heloisa fez com o coração dela, onde ela pode elogiar o
trabalho de Asdrúbal Trouxe o Trombone, de Trate-me leão. Hoje, como ela disse, foi
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a estreia mundial do filme. Nunca passamos num cinema, nunca ficamos encantados
com isso. E pode aplaudir que eu já estou terminando o meu discurso.
Poliana Paiva:
Eu cresci – só abrindo um parênteses –, eu cresci amando a Regina Casé. Então
esse filme para mim foi um clássico. Eu acho que ele tem que passar em cineclube. Eu
acho que o filme é um barato. Tem que ser exibido! Se estreou aqui, foi apenas a estreia! Vou passar agora para a Ivana Bentes.
Ivana Bentes:
Boa noite! Ótimo que a gente vai ter que comentar os filmes pontualmente, por-
que a maioria dos debates sobre 68 são tão gerais e abstratos, e eu achei essa sessão
maravilhosa com quatro filmes pontuais, então fica mais fácil fazer algum comentário.
Principalmente para a gente que não viveu na época, somos sempre acusados: “O que
você está fazendo aí falando sobre 68?”
Acho que a proposta de filmes da sessão O Início, o Fim e o Meio ficou bem interessante. E os filmes, de certa maneira, contemplam a proposta de uma visão não
cronológica, não esteroetipada das forças que produziram Maio de 68.
Então eu vou começar falando do filme NÃO ME CONDENES ANTES QUE ME
EXPLIQUE, que é um curta de época muito bacana. Eu senti também uma certa
ingenuidade na visão do carnaval, uma visão lírica, melhor dizendo, mas o que mais
me chamou atenção foi essa ideia do Mário de Andrade convertido em Oswald de
Andrade, diante do carnaval carioca, acontecimento da raça, e aí ele, todo formal,
paulista, erudito, sabido, vai se soltando. E isso porque o filme não levou às últimas
consequências as entrelinhas da carta, a descoberta sexual e pan-erótica, homoerótica
do carnaval. No final da carta, o Mário de Andrade agradece aos rapazes cariocas,
que não aparecem no filme. O tempo todo o filme ainda tem uma distância, digamos,
respeitosa em relação ao personagem de Mário de Andrade.
Mas eu acho que, se a gente for falar de um pré-68 no Brasil, em termos históricos,
conceituais, sem dúvida a gente vai ter que passar pela questão da antropofagia, do
modernismo, dessa ideia do carnaval como dispositivo, como metodologia de conversão do mais hostil em algo positivo. E eu acho que isso o filme trabalha de uma
maneira bastante interessante. O carnaval carioca como dispositivo de transmutação
e de conversão em um Maio tropical, ensolarado, libertário, uma política dos corpos.
Então, esse filme seria, digamos, o “início”.
DOSA. Ele faria a ponte entre o Maio de 68 e o pós-68, com o que de melhor e de
pior se produziu e se pensou sobre um tema importantíssimo, o discurso das minorias,
das mulheres, da liberação sexual, a política dos corpos e a emergência desses novos
sujeitos do discurso e do desejo que emergiram em 68.
A figura da Rê Bordosa é a “rebordosa” do próprio Maio, inclusive a rebordosa do
discurso machista e a antipatia, a desconfiança, pelas mulheres bêbadas e liberadas
nos bares, que ela encarna. Que horror essa liberdade toda! É a liberdade de ser assim mesmo, “largadona”, detonada, pé-na-jaca “estragada”, como os homens sempre
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Eu Sou o Início, o Fim e o Meio
Seguindo a cronologia do “início, meio e fim”, o meio seria o DOSSIÊ RÊ BOR-
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foram pelos bares da vida, mas a mulher nunca pode gozar desses prazeres sublimes
da baixaria em público, sem uma condenação social violenta! E que o próprio Angeli
também deixa claro que odeia (mas isso em psicanálise se chama “denegação”, você
sai logo dizendo que destesta, negando, aquilo que te atrai, te pega), e o Hamilton
também! Então eu acho que a Rê Bordosa está no meio, está fazendo a ponte entre a
euforia com as liberdades todas e o revertério, a ressaca; o que não significa negar, nem
despotencializar esse Maio de 68 que foi um desbunde e é a base de grande parte dos
discursos libertários ainda hoje.
Então eu acho que a questão do modernismo está ali no NÃO ME CONDENES
ANTES QUE ME EXPLIQUE, essa matriz antropofágica, que é Oswald devorando
Mário de Andrade, ou melhor, uma fusão de duas vertentes do modernismo, a dionisíaca de Oswald e a apolínea, universitária, sabida de Mário.
E aí a gente vai para o filme EMPREGO TEMPORÁRIO e encontra também uma
série de referências importantíssimas. A gente costuma fazer a cronologia: modernismo, antropofagia, cinema novo, tropicalismo... Enfim, o pré e o pós-68 se ligam com
algumas experiências brasileiras. Maio de 68 foi inventado e reinventado em diferentes
períodos no mundo todo e podemos vir até mais recentemente.
Sem dúvida que o filme EMPREGO TEMPORÁRIO está dialogando com o cinema marginal. Eu acho que é até uma discussão bacana para a gente fazer aqui em
relação a 68, tropicalismo e esses movimentos no Brasil, porque você tem toda uma
deriva, digamos, solar desse tropicalismo, desse 68 liberado, alegre, da “Alegria! Alegria!”, mas a gente também tem um tropicalismo trágico, enfim, lunar. Tem toda uma
tradição também que eu acho que não foi um tropicalismo que, digamos assim, emplacou na cultura de massa, né? Agora que uma figura como o Tom Zé, por exemplo,
ganha espaço na mídia, o Torquato Neto ficou pelo meio do caminho. Então eu acho
interessante que existe um tropicalismo lunar, trágico, com outras questões menos da
celebração, do carnaval, da alegria, que fica sempre um pouco de lado. Quer dizer,
está ali na borda dessa “Alegria! Alegria!”. Uma vertente “marginália” encarnada por
Torquato Neto, Capinan, Tom Zé, Rogério Duarte, nomes cuja trajetória e atitude
mais agressiva e errática se aproximam da atitude marginal/underground/experimental de Rogério Sganzerla, José Agripino de Paula, Júlio Bressane, da efervescência do
super-8, Ivan Cardoso, das propostas de Hélio Oiticica nas artes visuais.
E o XARABOVALHA é um filme de celebração dessa alegria. É muito interessante,
e parece televisão, no bom sentido! Parece um “ao vivo” da televisão, tem essa informalidade absoluta, das pessoas passando o microfone, sem pose, sem “formato”. Uma
coisa que eu também acho que a gente vai encontrar no cinema da época, no Cinema
Novo e principalmente no Cinema Marginal, e que me chamou a atenção. Um frescor
absoluto e uma coisa meio assim: “Ah, eu não tenho nada a dizer. Não tenho muito
um discurso!“ As pessoas passando o microfone: “É isso aí!”, ou seja, o meu discurso
é não ter discurso pronto, que é de uma informalidade bacana, conquistada, e a câme92
ra também. Enfim, essas são as primeiras considerações que eu venho fazer sobre os
filmes, e vamos abrir para o debate.
Ah, e o que seria o pós-68, o pós-Rê Bordosa, morta em 87? Vamos lá agora para
ver o que nos restou.
Alguém quer fazer alguma pergunta?
Poliana Paiva:
Plateia:
Bom, em primeiro lugar, para o Leonardo Esteves. Isso não é nem uma pergunta, é
um elogio, os filmes são bem importantes porque, hoje em dia, que a gente dispõe dos
meios para produzir filmes de uma forma bem mais fácil, eles são um incentivo mesmo
para você se lançar e fazer. E você tem resultados muito bons. Achei o filme genial,
uma crítica muito boa para o que o público brasileiro pensa do cinema brasileiro e
também com um humor excepcional.
E para o Cesar Cabral. Eu sou um grande fã da Rê Bordosa, porque, enfim, ela é
genial. Você pensar em mostrar, em uma hora, a real morte da Rê Bordosa? Não sei
se você conhece esse quadrinho, quando ela se casa com um barman e ela fica gorda e
dona de casa. Rê Bordosa dona de casa!
Cesar Cabral: É,
na verdade são duas mortes. Tem a história em que ele mata a Rê Bordosa e
depois ele se autodesenha em quadrinho, encontra a Rê Bordosa e joga ela num rio.
E ele acha que ela morreu, mas aí entra a versão oficial dos fatos. Ela não morreu, ela
sobreviveu ao rio, ficou morando um tempo na rua, até casou e, na verdade, ela explode depois de casada, ela fica comendo. Seria uma vida de dona de casa e, quando o
marido resolve falar em filhos, ela explode e morre. Mas eu achei que era meio complicado para a história, até porque a morte não tinha muito significado para a história
do filme. A morte era uma desculpa para a gente falar sobre esse universo, o universo
do Angeli, dos quadrinhos e trabalhar a coisa do documentário. Então, eu deixei mais
com os fãs. Tem gente que me pergunta, mas eu não acho importante na história.
Heloisa Buarque de Hollanda:
Aquele psicanalista foi você quem inventou? Ou tem nos quadri-
nhos?
Não, não. Ele existe e falou, ele é o Tales Ab’Saber, psicanalista, filho do Assis
Cesar Cabral:
Ab’Saber, professor da USP. Na verdade, o Tales Ab’Saber fez cinema e depois foi
para a psicanálise. E um dia eu encontrei ele num bar, eu não o conhecia muito bem,
mas quando eu falei que estava fazendo esse documentário, ele começou a falar que o
Aí eu falei: “Pô, você tinha que fazer uma análise sobre o que leva um autor a matar o
seu personagem” (risos). Aí ele topou, ele fez uma análise séria, foi uma hora de sessão
com ele, e ele fala coisas muito bacanas! É que no filme se cria um humor ali, né? Ele
não assistiu ao filme ainda, estou até com medo, né? (risos) Porque ele foi muito sério
na análise.
Ivana Bentes:
Só uma observação, o boneco do Laerte também é muito melhor que o Laerte! É
impressionante! (risos)
Poliana Paiva:
Vou fazer uma observação aqui porque eu conheci a mulher do Cesar, lá no
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Eu Sou o Início, o Fim e o Meio
Angeli era um dos maiores gênios brasileiros, enfim, comparando a Machado de Assis.
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Festival de Manaus, e ela falou: “Olha só, o negócio é que ele chegava em casa reclamando dos bonecos. Eu nunca vi isso na minha vida! O diretor chega falando do ator,
do set, do sol. Mas lá em casa era: ‘Esse boneco não me obedece!’” Eu queria que você
falasse um pouco dessa relação entre homem e boneco. Porque é ator também, não é?
Cesar Cabral:
É, isso na verdade é muito louco, mas acontece. Não sei explicar muito bem, mas
tem boneco que não funciona muito bem na hora que você está animando. O boneco
do Laerte foi um boneco com que eu tive problema o tempo todo. E eu assim: “Pô, eu
vou tirar esse boneco do filme!” (risos) Apesar de ser o Laerte. E engraçado que hoje é
um dos personagens de que as pessoas mais gostam. Eu acho que é pelo jeito dele, um
jeito tímido, faz umas piadas e depois fica com vergonha. Ele tem um respiro. Mas tem
essa relação. Na verdade, eu acho que é uma coisa nossa ali, você está manipulando
o boneco e às vezes não funciona, vai criando uma intimidade ali que é complicado.
(risos) Mas eu ia falar que é melhor que ator, mas aí eu não sei. (risos)
Poliana Paiva:
Vai saber... Você já trabalhou com ator?
Cesar Cabral: Não,
Plateia:
não.
Bom, boa noite a todos. Eu queria falar como espectador. Estou aqui, neste cinema,
moro nesta cidade e é uma oportunidade enorme participar deste evento. Gostei de
todos os curtas, de uma maneira geral. Quero parabenizar todos os diretores, mas
precisaria fazer um registro especial para a emoção que o filme da Heloisa e do Hamilton me proporcionou aqui. É um filme de 78. Eu acho que muitos dessa plateia,
talvez muitos jovens, e eu, mais intermediário, um pouco mais jovem do que eles, mas
também vivendo aquela época. Um filme atual, um filme que é a linguagem de hoje,
eu senti. E é um filme que tem trinta anos. Então, estão de parabéns! Eu gostei muito
e não sei mais o que externar, o que me passou ao ver pessoas ali que nós conhecemos
e admiramos e ver o que elas estavam dando ali naquele filme, naquele momento. Parabéns para vocês por isso!
Plateia:
Um momento muito interessante do XARABOVALHA é aquele em que ele fala sobre
eles, atores, tendo aquele momento bom ali, mas uma rapaziada mais nova xingando
eles por terem se vendido para a televisão e todas essas coisas. Eu queria que você
comentasse um pouco sobre isso. Sobre o que era ter, ao mesmo tempo, esse sucesso e
sofrer discriminação por ir para uma parte mais de massa.
Hamilton Vaz Pereira:
É, além do filme, eu me refiro ao seguinte, a que uma parte da garotada
apoiava a gente e que já vinha uma outra geração que estaria chamando a gente de
velho, de careta etc. Eu também adorei essa parte. Não me lembrava disso. Eu achei
muito bem-humorada, porque é evidente que talvez na década de 70, final de 60, talvez as grandes capitais do mundo, Rio de Janeiro entre elas, tenham começado a ver
a juventude como algo bom para consumir produtos, para novas ideias etc. O jovem,
que era até aquele momento ali, provavelmente no meio de 60, relegado a um segundo
plano, começou a ganhar voz. Hoje na televisão boa parte da programação é para jovens. É o jovem que tem grana. É o jovem que pede ao pai para comprar produtos etc.
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Então, se você não é jovem, você está roubado, porque ser jovem é uma maravilha. E
ali é a piada que eu solto, que eu gostei de ouvir também, é já sacando que a juventude
passa. Então, que lá venha uma outra turma. Enquanto nós ali do Trate-me leão estávamos nos vangloriando por sermos jovens, bonitos, animados, com prestígio e com
uma certa fama na cidade, pelo menos em alguns redutos, logo viria uma nova turma
para nos chamar de velhos, caretas, com outras ideias, outra juventude e outro sentido
de liberdade, inteligência e sensibilidade. Então, eu gostei muitíssimo também de ver
isso. E o bom humor que eu sinto ali na minha fala de sacar que é assim mesmo. Que
beleza que é assim mesmo! E meio que já preparar – eu estou sacando isso agora, não
é? – para a vida adulta, a velhice e bola pra frente! Esse Trate-me leão, apesar de ser
uma lembrança sobre a juventude, era sobre a vida. Quando eu comecei a ser jovem e
comecei a encontrar pessoas que produziam teatro, atores belíssimos, de uma geração
anterior à minha, e diretores e produtores que vinham da década de 70, eu me lembro
que uma coisa que me chocava era que aquelas pessoas tinham uma amargura muito
grande. Eu começando a fazer teatro, querendo, gostando daquilo e aquelas pessoas,
por força da ditadura militar, por força da dificuldade de pagar os aluguéis etc., de viver de uma maneira mais normal suas vidas, começaram a desdenhar do teatro. Então
eu dizia que queria fazer teatro e essa geração que tinha feito belíssimos espetáculos,
uma belíssima dramaturgia, direções e atuações, me olhava como que dizendo: “Coitado! Não sabe de nada! É jovem”. E eu via naquelas pessoas alguma amargura, e não
queria passar por aquilo. Então essa frase que você achou interessante era como se eu
estivesse pensando assim: “Cara, eu vou chegar lá! Eu vou daqui a pouco ter, não 25,
como eu tinha na época, eu vou ter 35, 45...” Daqui a dez dias eu vou fazer 57 anos.
Olha que maravilha! E estou aí, com força, legal, curtindo. E é isso mesmo: a vida
vai. Trate-me leão é sobre a vida. A gente chamava de juventude porque era uma fase
legal. O meu filho, quando nasceu, as pessoas diziam: “Ah, bebê é engraçadinho, mas
quando chegar aos cinco anos de idade...”, e eu falava: “Poxa, mas bebê já é uma maravilha!” Aí, quando ele chegou aos cinco anos, todo mundo falava: “Ah, ter filho de
cinco anos de idade é maravilhoso, mas deixa ele fazer dez anos. Aí você vai ver o que
é bom”. Chegou aos dez anos. Que maravilha que é ter dez anos! Hoje ele tem quinze
e vai ter cinquenta, vai ter dois mil anos. É meu filho e sempre será lindo! Porque é a
sei mais o que estou falando, estou me sentindo meio Rê Bordosa! (risos)
Eu gostaria de dizer mais uma coisa, um elogio ao filme RÊ BORDOSA. Eu acho
que eu nunca vi, eu tenho a impressão de que eu nunca vi algum filme, algum curtametragem, alguma coisa assim com um boneco, um desenho falando. De repente eu
achei com voz de entrevistado e depois fui achando, assistindo ao filme, fui achando
que os caras devem ter entrevistado aquele cara e depois fizeram um boneco daquele
cara e no final já estava achando que era isso mesmo. E quando aparece o Angeli e
o boneco do Angeli, veio a confirmação. Então às vezes a gente gosta de novidades,
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Eu Sou o Início, o Fim e o Meio
vida. É a vida que começou comigo e agora está nele. E está em todos nós. Então, não
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gosta do inusitado. Puxa, eu nunca, aos 57 anos de idade, eu nunca tinha visto aquilo!
Então, eu me lembrei agora de dar os parabéns. Isso é tão genial! Achei tão bonito,
tão revelador do entrevistado. Hoje nós temos nas televisões, a gente tem entrevistado
para caramba, não é? “O senhor acha que não sei o quê?” “Ah, eu acho isso, eu acho
aquilo... economia, política, sexo, rock and roll...” Todo mundo falando. E de repente,
quando coloca o bonecão numa voz do cara, revela alguma coisa, que eu não saberia
dizer para os senhores e senhoras, mas para mim abriu um campo enorme. Eu fiquei
muito contente! E nunca tinha visto isso na minha vida!
Poliana Paiva:
Anteontem estava o Zé Celso aqui e uma pessoa, supernovinha, comentou: “O
que você acha do uso da contracultura como uma forma de vender o capitalismo?”
E aí o Zé Celso comentou: “Pelo amor de Deus! A gente tem mais é que pegar isso
e transformar. A gente tem mais é que transmutar as coisas, pegar as coisas ruins e
transformá-las em coisas boas”. Então esse discurso do Hamilton me lembrou o Zé
Celso. Aqui está muito chique, só convidados alto nível!
Plateia:
Só quero lembrar para o Hamilton que o carnaval era assim. Eu sou tão velho que eu
peguei um carnaval quase assim, inocente, ingênuo. Porque a sacanagem era fora do
baile, a sacanagem era na porta da casa da moça.
Poliana Paiva:
Plateia:
Mas rolava, não é?
Rolava, claro. Era no Campo de São Bento, que é aqui. Eu sou de Niterói. Tenho 62
anos, eu te barrei. Então eu brinquei carnaval no final da década de 50 e o carnaval
era mais ou menos aquilo ali, de 30. E que trilha sonora, não é?! Onde é que o cara
achou aquela trilha sonora?! Maravilha! E eu queria dizer que já fui casado com uma
Rê Bordosa! Tenho dois filhos com ela. (risos) Ela é a cantora Rita Mansur, cantora
aqui da cidade. Canta pra dedéu! Mas o álcool atrapalhou a vida dela. Mas as Rê Bordosas também são boas, também são gostosas! Todas as mulheres, todas as pessoas
são bonitas e gostosas. É preciso que a gente descubra onde está a beleza e a gostosura
de cada semelhante. (aplausos)
Plateia: Só
um comentário. Eu senti alguns paralelismos. Por exemplo: teve uma exibição do
filme do Fontoura aqui que eram os Mutantes, anos 70, 68, e de repente tem esse filme
do começo dos 80 com o Asdrúbal. E a mesma leveza, a mesma vivacidade, a mesma
alegria que tinha ali no filme dos Mutantes, a gente vai encontrar ali no Asdrúbal. Isso
para mim foi maravilhoso, porque eu estou aqui desde o primeiro dia, acompanhando
os debates e vendo o que está acontecendo. E tinha uma conversa no primeiro dia, de
que talvez só lá, ali atrás, as coisas tinham essa vivacidade musical e hoje não tem mais
essa vitalidade. E eu falava: “Não! Essa vitalidade existe, está aí!” E esse filme pelo
menos mostra que, se pesquisar vai encontrar mais, um do começo dos 90 que tenha o
mesmo frescor, a mesma vitalidade. Isso que o Hamilton colocou: vamos pra frente!!
Quer dizer, é bom perceber que a vitalidade continua, ela vai renascendo. Aquela coisa
assim, nasce e morre, renasce e “remorre”. Então mais uma vez eu fiquei muito satisfeito de ver hoje esse filme com um frescor e com essa vitalidade.
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Um outro paralelismo também, que eu não sei se o Leonardo tenta encontrar ou
se conhece, mas um filme que foi exibido aqui também do Sganzerla feito em 68, Documentário, né? Esse documentário é outro documentário do documentário de 90.
Pelo menos é uma rima plástica, um eco, alguma coisa entre os dois filmes. E, só para
terminar, ambos estão projetados para frente, pelo menos foi o que eu senti do filme,
que era um filme que ele fez naquele momento mas também pensando que esse filme
um dia muito além, muito adiante, quem sabe trinta anos, 35, quarenta anos depois,
ele pudesse ser visto e que seria um documentário da época apesar de ser ficção, né?
E só antes de passar, para terminar, esse filme do Cesar Cabral também tem a
grande novidade do diálogo, tem uma coisa maravilhosa desses bonecos com todos
os detalhes dos personagens/entrevistados. Só que me parece que essa voz e aquele
boneco têm o traço da caricatura, ele traz na voz um dado da caricatura que amplia e
traz um humor. Eu acho que se não tivesse o boneco, aquelas mesmas falas não teriam
o humor, a vivacidade do humor que elas adquirem quando elas estão com o boneco.
Então é uma maravilha. Eu queria até dizer que eu estava naquele júri de Paulínia e eu
nunca participei de um júri que deu um prêmio de melhor filme para um curta como
esse daí. Eu saí muito satisfeito e feliz de ter visto esse filme aquele dia e ter visto hoje
outra vez. (aplausos)
Leonardo Esteves:
Mas esse paralelo com o documentário confere. Realmente eu fiz o filme,
peguei esse plot de dois cinéfilos irem ao cinema e não assistirem a filme nenhum.
Mas depois eu descobri: dois cinéfilos vão ao cinema para ver um filme brasileiro e
não conseguem assistir a filme nenhum por uma força da época e tal, né? Época da
Embrafilme. Mas a influência é correta, eu realmente peguei...
Plateia:
Mas você conhecia o filme?
Leonardo Esteves:
Conheço o filme, claro. Peguei, retirei ele e botei mais ou menos hoje. É uma
coisa de referência, das principais do filme.
Ivana Bentes:
O mais incrível é que no filme DOSSIÊ RÊ BORDOSA também tem essa influ-
ência do Rogério Sganzerla. Toda a opção de narração do DOSSIÊ RÊ BORDOSA
(radiofônica, sensacionalista, a voz de um homem/mulher em contraponto) vem de O
Bandido da Luz Vermelha, do Sganzerla. A Rê Bordosa é a versão contemporânea do
personagem do Bandido. O Sganzerla realmente é genial, eu acho incrível o frescor
Glauber, por exemplo, que eu adoro, o Sganzerla entra muito mais rapidamente na
cultura contemporânea, esse humor cínico, grosso, brutal. Esse humor agressivo. Eu
falava antes do frescor tropical, do tropicalismo solar, leve, e acho que tem esse outro
humor, um tom distinto, essa agressividade, essa anarquia profundamente agressiva
num humor mais pesado, que está no Sganzerla e vem até o Angeli, por exemplo.
Poliana Paiva:
(para Leonardo Esteves) Você ensaiou?
Leonardo Esteves: Não, não teve ensaio nenhum, ninguém é ator ali, é um pessoal que trabalhou
comigo no jornal – eu fui diagramador e tal. Falei pra eles: “Vamos fazer um filme esse
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Eu Sou o Início, o Fim e o Meio
desse filme dele. Quando a gente exibe hoje, até em comparação com o cinema do
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final de semana, vamos lá?” Aí chegamos e fomos fazendo. Eu falava: “Olha pra cá,
agora faz assim”, e aí o pessoal foi interagindo e muitas coisas apareceram. Eu cheguei
lá, vi que tinha um lixão, falei: “Vamos fazer uns planos pro lixão”, e tal. O filme foi
assim, só improviso. Na montagem, a gente improvisou tudo outra vez. Fui montar
com a Marise, e quando eu vi as imagens – porque eu não tinha vídeo assist, é óbvio
–, eu falei: “Ih, Marise, não era bem isso que eu tinha filmado”. (risos) Aí a gente foi
trabalhando. Eu fiquei muito satisfeito nesse sentido porque chegou num ponto que eu
pensei: “Eu não estou dirigindo esse filme, ele é que está me dirigindo”, porque eu via
as coisas e eu não podia fazer da forma que eu queria ter feito. Então tinha que fazer
de outra forma, aí a gente foi buscando soluções. Alguns diálogos foram escritos ali no
calor da hora também. Esse negócio do “Acabou mesmo!”, a gente tinha acabado de
montar o filme, e a Marise disse: “Pô, por que você não coloca: ‘Agora vai acabar!’”?
Eu falei: “Então, beleza!”, e a gente foi pro banheiro da casa, com um microfone de
lapela e botou.
Ivana Bentes: Não
Plateia:
é estética da forma, é “escrotética” da forma.
Boa noite! Queria cumprimentar a mesa, cumprimentar a organização do Araribóia
Cine pela noite fantástica! Tetê, parabéns, é legal ver como os filmes permeiam realmente um tema e como a gente vai fazendo as nossas conclusões aqui, fechando as
nossas sinapses. Heloisa, obrigado pela oportunidade de ver o Asdrúbal, eternizado
como era. Eu acho que a minha geração é uma geração que provavelmente não viu,
mas leu, estudou, ouviu falar do quanto foi fantástico o trabalho. Eu tenho trinta anos,
nasci em 77, então eu não vi, ouvi falar! Comecei a minha carreira no teatro também,
então, que maravilha! Uma oportunidade única, realmente um momento que vai ficar
na minha memória.
Cesar, eu sou fã do DOSSIÊ RÊ BORDOSA, é um curta que com certeza o tempo
vai classificar como um clássico do curta-metragem brasileiro. É um trabalho fantástico, genial. Eu estava conversando aqui, e como foi engraçado o Hamilton colocar
isso na mesa, que realmente eu nunca vi um documentário de animação, é inédito, eu
não conhecia um trabalho do tipo e realmente é uma ideia fantástica, a genialidade e
o primor técnico do filme.
A minha pergunta eu queria dirigir para o Hamilton e para a Ivana, em cima do
tema do festival que é o legado de 68. O quanto essa geração foi importante, o quanto esse período foi importante, mas como a gente o contextualiza nos dias de hoje e
como a gente o projeta pro futuro? Porque foi uma época tão marcante que estamos
aqui quarenta anos depois discutindo, conversando, e é através do audiovisual. Então,
Hamilton, o que veio, o que ficou do legado? Na arte, na política, economicamente…
E para a Ivana também, o quanto isso veio pra cá, o quanto isso ainda está presente,
o que a gente superou, o que a gente não superou, o que a gente leva? Quanto essa juventude usufrui a liberdade conquistada por essa geração e quanto a gente não usufrui,
quanto a gente abafa, esquece, deleta? Obrigado.
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Hamilton Vaz Pereira: Podemos ficar aqui até meia-noite? (risos) Posso começar? Em 68, eu estava
começando a sair pras ruas. Então eu tinha… Eu sou de 1951, então em 68 eu tinha
quanto mesmo? Dezessete? Dezessete! Então eu não sou exatamente da geração de
60, eu sou de um pouco depois. O filme XARABOVALHA foi feito em 78. Você fez
muitas perguntas e eu soltei uma piada dizendo que ficaríamos horas para tentar te
responder alguma coisa, deixa ver se eu consigo juntar lé com cré para falar alguma
coisa interessante. Veja, eu tiro por mim. Eu frequentava uma boa escola, mas eu era
muito expulso da sala de aula porque eu ouvia falar coisas. Na época, você não conseguia ler muita coisa nos jornais, você não conseguia saber o que acontecia nas cidades
brasileiras através da televisão, que estava ainda engatinhando, então o que se sabia
sobre a vida brasileira, pelo menos na minha geração que estava começando a deixar
a casa dos pais para conhecer os outros bairros cariocas, era por meio do contato com
pessoas. Então a gente chegava nos lugares, nas festas, nos encontros e procurava ouvir
uma certa conversa, que houve uma tal prisão de não sei quem, aconteceu um tiroteio, ou sequestraram fulano de tal. Aí a gente ficava atento a isso. Ao mesmo tempo,
ouvíamos versões das versões. Ou então se dizia: “Puxa, parece que no Humaitá tem
uma garota linda, com um cabelo assim, com o suingue acolá, e ela fala tão bem; e a
gente ficava pensando que garota era essa, que maravilha era essa. Então a dificuldade
de ter naquele momento informações concretas sobre a vida carioca, a vida brasileira
era muito grande. Talvez você não saiba, mas num certo momento no final dos anos
60, não podia haver reunião desse tipo. Por lei, se três pessoas, um pouco mais de três
pessoas – não sei o número exatamente – se reunissem, podiam ser presas, porque de
repente poderiam estar tramando alguma coisa contra o Estado militar brasileiro.
Então a informação era dada muito a partir do outro. Voz e orelha. Eu me lembro
disso. Ao mesmo tempo, em 69, o homem pisava na Lua, a gente sonhando e via
aquilo pelos jornais e pela televisão. Porra, o homem pisou na Lua! A gente não podia
articular contatos maiores, não se tinha esse tipo de informação através dos jornais.
Os nossos dirigentes eram homens muito feios, com roupas muito feias, com óculos
escuros muito feios. Não uns óculos maravilhosos como o que a Heloisa está usando
hoje, naturalmente de uma grife exuberante, provavelmente com muito charme. (risos)
Não é nada disso, vamos pensar diferente! Então a coisa naquele momento era essa.
sessão era um oásis! Você ir ao teatro e frequentar salas de exibição de cinema era uma
revelação! Mesmo o filme que a gente não entendia exatamente nada daquilo, mas o
fato das pessoas estarem reunidas para ver aquela tela grande e tentar pensar alguma
coisa acerca da vida, do país, da cidade era algo exuberante, motivava, inspirava, animava aquela juventude à qual eu pertenci.
No meio dos anos 70, eu passei de consumidor para produtor de arte – o termo
é maravilhoso: produtor de arte. Então ali eu vi que eu podia e deveria, e seria uma
delícia pra mim, entrar em contato com pessoas e poder expressar uma maneira de
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Eu Sou o Início, o Fim e o Meio
Ao mesmo tempo, naquela época, o cinema brasileiro chamado de Cinema Novo, cada
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estar na vida. Mas com a ditadura militar, com sua censura prévia, a gente tinha que
fazer espetáculos para as autoridades, para as autoridades poderem dizer se o público
deveria ou não assistir àquele espetáculo. Isso em quase todos os meus espetáculos – o
primeiro em 74, o segundo em 75, 76, em 80. Então você pensa um universo artístico
e tem que apresentar para um burocrata militar para saber se aquilo pode ser levado
para a família brasileira, digamos assim. Eu venho desse momento. Para fechar o meu
discurso, tentei à beça te dar uma resposta, eu queria aproveitar o que o colega de boné
ali da plateia falou. Eu ouvia alguma coisa de uma geração antiga, anterior à minha,
pessoas criadoras em teatro que diziam: “Que pena você estar chegando agora, jovem!
Tanta coisa incrível aconteceu nos anos 60!” Hoje eu vou num encontro como esses e
vejo jovens interessados no que se produziu na década de 70, que foi quando eu comecei, e às vezes eu vejo uma curiosidade linda, e às vezes eu vejo uma curiosidade estranha, a curiosidade que diz assim: “Puxa, eu não estive lá naquela época! Eu nasci em
78, então eu não assisti”. Não é nenhuma indireta pra você, não, mas é uma juventude
que diz assim: “Puxa, pelo que eu li aconteceu tanta coisa boa no passado e hoje não
acontece mais nada de interessante, pelo menos, algo parecido com isso que está sendo
mostrado nos curtas-metragens ou com o que você está falando nesse exato momento”. Aí eu penso o seguinte, para fechar o meu blá-blá-blá: quando um homem mais
velho diz a um jovem: “No meu tempo é que era incrível!”, meu raciocínio diz que isso
só interessa ao mais velho, de achar que no seu tempo é que era bom. Quando o jovem
diz: “Puxa! No seu tempo é que era bom!”, eu digo: “Tolice, jovem! Todos os tempos
são bons, sempre está acontecendo uma coisa incrível”. Hoje está acontecendo entre
nós aqui algo incrível. Estamos aqui tentando articular algum raciocínio, transmitir
alguma sensibilidade, nós aqui nos esforçando e vocês aí com perguntas e comentários.
Sempre haverá alguma coisa que retorna e retornará sempre, que é a vida, em qualquer
idade. A vida é bela em qualquer idade! É isso aí. Agora os aplausos! (risos e aplausos)
A Heloisa tem uma coisa incrível para dizer pra vocês!
Heloisa Buarque de Hollanda:
Vou falar de 68. Já que a gente está lembrando e vendo continui-
dades, eu queria convidar vocês pra ir a uma exposição que eu organizei e que vai ser
inaugurada nesta quarta-feira agora. São cinquenta anos do Teatro Oficina e o Zé Celso vai estar presente abrindo a exposição. É muito impressionante que são cinquenta
anos de renovação! Quando você pergunta do legado, ele está fazendo hoje uma coisa
nova! Mas com o Eros, digamos, com a força, com o vigor de cinquenta anos atrás. É
muito impressionante, é uma exposição que vai ser basicamente audiovisual, porque
o Zé Celso gravou tudo que fez, ele tem um registro audiovisual gigantesco da obra
dele e iconográfico também, muitos cadernos etc. A gente pôs todo em plasma, então o
Centro Cultural dos Correios vai ficar coberto de Zé Celso e vocês vão ter uma visão
dos cinquenta anos de uma procura apaixonada. Vocês estiveram com ele aqui, vocês
sabem do que eu estou falando. Então eu queria convidar todo mundo pra ir nessa
exposição, ela fica dois meses, mas eu acho que a abertura vai ser incrível porque ele
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disse que ia abrir “as dias” da exposição e eu ainda não sei bem o que é isso. Eu tenho
medo que ele quebre os plasmas todos, aí eu estou perdida. (risos) Mas eu espero que
ele não faça isso!
Ivana Bentes:
Bom, eu vou falar rapidamente. É tão difícil quando a gente trabalha com esses
temas históricos, monumentais, se livrar dos clichês em torno dessas questões. Ainda
mais para quem não experimentou, não viveu, não é do período. A minha experiência
de Maio de 68 chega pelas discussões em torno do cinema, as discussões em torno
da linguagem, essa ideia do cinema político, que se apropria de uma linguagem pop,
da publicidade, do cartaz, das histórias em quadrinhos. E que está próxima de certa
forma de uma série de mudanças que estão acontecendo hoje, com a apropriação das
linguagens transgressoras pela cultura de massa na produção de novos discursos políticos. Claro que estamos em outro contexto. Não estamos em maio de 68, mas não
dá para desqualificar as questões que apareceram ali. Então eu acho que o Hamilton
levantou um primeiro risco que é esse de um discurso meio passadista da impotência,
que Maio de 68 foi muito bom, mas já era, já foi, e tudo de bom, de inovador, de novo
já aconteceu. Quer dizer, o que fazer depois da revolução? Não sobrou nada para nossa geração. Esse é, evidentemente, um discurso absolutamente problemático. Nostalgia
do Maio, colocar Maio de 68 no passado. Ao contrário, temos que liberar Maio de 68
do passado e da “história”.
E o segundo discurso problemático também é o anti-Maio de 68, que é um discurso
recorrente hoje, de desqualificação de toda a experimentação, a questão da relação da
estética com a política, um certo anti-intelectualismo. Então o anti-Maio de 68 também está aí ativo, “isso é passado, isso tem que ser enterrado”. Eu acho que a gente
encontra muito esse “pacotão” da nostalgia e da pá de cal nos cadernos de cultura dos
jornais, nos livros comemorativos que saem sobre o Maio de 68. Você encontra muito
ainda essa reverberação que é um pouco, digamos, um historicismo que acaba com
qualquer possibilidade de atualização. E o Maio de 68 é uma caixa de ferramentas, é
uma variedade enorme de figuras de linguagem que foram inventadas no cinema, no
discurso político, no ativismo, uma série de experimentações, questões políticas que
estão aqui agindo, afinal teve um pré-68 e um pós-68, e uma série de coisas que estão
acontecendo hoje que estão relacionadas a esse processo, com algumas dessas questões
história, dos discursos de mumificação, de neutralização da caixa de ferramentas.
Uma questão que eu gostaria de trazer aqui pra mesa é essa questão da história
contada do ponto de vista de certos grupos sociais, que é muito interessante e problemática. A gente só relaciona as questões da época de 68 a um grupo social, ou à Zona
Sul carioca, e eu sempre me pergunto: “O que será que aconteceu? O que foi o 68 de
outros grupos sociais, em outros territórios? O que estava acontecendo fora da universidade? Fora da Zona Sul?” Claro, era a ditadura militar, a repressão, mas também a
explosão de uma cultura de massa no Brasil, uma mudança de costumes mais ampla
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Eu Sou o Início, o Fim e o Meio
ativas, algo processual, não “passado”. Também é preciso liberar Maio de 68 de tanta
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e transversal, para além dos garotos e garotas da Zona Sul. Mas a história é contada
por um determinado grupo social, suas festinhas, sua praia, sua elite cultural. Haveria
outros 68? Eu acho que essa historiografia ainda está para ser feita. Senão as datas e
os movimentos ficam reféns de um grupo social, de um determinado grupo que conta
a história. Essa também é uma questão importante. Aí você pergunta: “E hoje?” Tem
uma variedade enorme de discursos e experiências!
No filme XARABOVALHA tem a Regina Casé falando da cooperativa de atores:
“Nós não estamos fragmentados, não somos atores do mercado, a gente tem um grupo”. E hoje está aí, tem o retorno e a reinvenção dos coletivos, os coletivos de arte,
coletivos de cinema, toda uma série de proposições que têm tudo a ver com aquele
discurso ali. Então, para finalizar, uma questão fundamental que é essa ideia de que o
comportamento e a vida são formas de expressão política. Ou seja, ali onde você não
via política, estava-se gestando um discurso político novo. Uma “biopolítica”, uma
forma de resistência. Que eu acho que podemos conectar com hoje, quando a gente
encontra a Tati Quebra-Barraco no funk falando: “Não adianta, eu esculacho, fama
de putona só porque como teu macho”, ou ainda explicando as diferentes posições sexuais: “Fica de quatro, fica de frente”, eu gosto de fazer isso e aquilo. É toda uma série
de discursos hoje sobre sexualidade, comportamento, direitos reprodutivos, violência,
polícia, que encontramos no hip-hop, no funk, em lugares que a gente considera que
não são “políticos”, ou que são bregas, kitsch, de mau gosto, sexistas e que não têm
nada a ver nem com a revolução, nem com Maio de 68, nem com nada disso. Mas
essas são mudanças e mutações, e temos que estar abertos e atentos. Os Maios são
infinitos.
OBRAS CITADAS
Filme:
O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla (Brasil, fic, 92min, p&b, 35mm, 1968)
Música:
Fama de Putona, de Tati Quebra-Barraco (2000)
Teatro:
Trate-me Leão, espetáculo do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, encenada em 1977
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Heloisa Buarque de Hollanda, Ivana Bentes e Rubens Machado Jr.
Eu Sou o Início, o Fim e o Meio
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O homenageado do VII Araribóia Cine foi o cineasta niteroiense Walter Lima Júnior, que completou dias antes da abertura do festival, 70 anos de
idade. Nascido e criado na cidade de Niterói, Walter Lima Júnior viveu 25 anos na terra de Araribóia.
Pela primeira vez no festival o homenageado foi contemplado com uma mostra de 7 filmes que buscou
dar um panorama da sua carreira. Dois documentários e 5 longas-metragens foram exibidos nos espaços
SESC Niterói e Cine Arte UFF. A curadoria da Mostra
Walter Lima Júnior foi da pesquisadora Beth Formaggini, com a colaboração de Carlos Alberto Mattos.
A sessão homenagem à Walter Lima Júnior exibiu o filme
A LIRA DO DELÍRIO, dirigido por Walter entre os anos de
1973 e 1978, e filmado em Niterói. Antes do homenageado
subir ao palco, amigos, parentes e colegas de trabalho deram emocionantes depoimentos à platéia de como é conviver e trabalhar com Walter. Foram eles: os atores Arduino
Colasanti, Dira Paes, Tonico Pereira, Ângelo Paes Leme,
Antonio Pedro, o fotógrafo Pedro Farkas, os curadores
Carlos Alberto Mattos e Beth Formaginni, os montadores
Ricardo Miranda e Sérgio Mekler, o cineasta e produtor Flávio Tambellini e os irmãos Humberto e Ronaldo Trigueiros.
Antes de receber o Troféu Araribóia Cine (criação do
artista plástico Paulo Villela), Walter Lima Júnior protagonizou um dos momentos de maior emoção no festival:
recebeu das mãos da chefe de gabinete do Reitor, Martha de Lucca, o diploma de bacharel em direito pela UFF.
Homenagem walter lima júnior
É um prazer estar aqui para participar desta homenagem ao Walter
que é um irmão muito querido. Eu tenho visto que a relação do
Walter com o cinema é uma relação muito profissional, de muito prazer
em fazer aquilo que ele faz, de muito conhecimento, de muita satisfação,
mas também muito sofrido, tudo que ele faz dá um trabalho do cão,
é tirar leite de pedra pra chegar no final com resultado e não tem moleza.
E eu espero que ele continue ainda muitos anos fazendo essas coisa
mágica e brasileira que ele sabe fazer do jeito dele.
Humberto Trigueiro Lima / irmão de Walter
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Trabalhei com o Walter
Lima e fiquei amigo dele.
Adoro o Walter e esta
homenagem é super
bem-vinda...
Pedro Farkas / fotógrafo
Trabalhar com o Walter
Lima em dois filmes é
a certeza que participar
de uma empreitada
honesta e profundamente
ligada ao cinema.
HOMENAGEM Walter Lima Júnior
Arduino Colasanti
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O Walter é uma memória viva, é uma lenda
é uma figura maravilhosa! É uma pessoa
do cinema que ao mesmo tempo pensa no
público. Ele vive o cinema, tem uma cultura
cinematográfica enorme e uma generosidade!
Flávio Tambellini / produtor
Uma das razões pelas quais eu virei
montador foi por ter visto o filme
A LIRA DO DELÍRIO. O primeiro filme
que montei foi A OSTRA E O VENTO
e estou muito feliz por estar hoje aqui
nesta homenagem a Walter Lima Jr.
Sérgio Mekler / montador
Homenagear o Walter Lima Jr. é
uma coisa muito boa! Trabalhei em
A LIRA DO DELÍRIO, de 1978 e em
OS DESAFINADOS, último filme do
Walter. É sempre um prazer muito grande
trabalhar com um artista como este.
Antônio Pedro / ator
Fred Martins interpreta Sérgio Sampaio
Antes de uma relação cinematográfica, a gente se estabeleceu como ser humano:
eu numa platéia e ele num palco fazendo a seleção para A Lira do Delírio,
eu me candidatando para figurante. E foi a sensibilidade do Walter, a grandeza
do Walter que me levou a fazer o meu primeiro filme e começar como figurante
e terminar como ator. Ao Walter, as minhas mais gratas lembranças, as minhas
mais fortes influências no modo de fazer cinema.
Tonico Pereira / ator
Todos que se aproximam do Waltinho se
sentem privilegiados, não só no intuito de
fazer cinema ou respirar cinema, mas também
por se aproximar dessa pessoa maravilhosa
que ele é. Então, eu me sinto privilegiada de
ter começado realmente a acreditar que eu era
uma atriz através do Walter Lima Júnior.
Dira Paes / atriz
O Walter é um cara divertidíssimo, é um
cara que tem uma presença de espírito
sensacional. É um privilégio fazer parte
da vida dele. Foi minha grande sorte na
vida ter feito OS DESAFINADOS.
Ângelo Paes Leme / ator
A LIRA DO DELÍRIO foi a minha
primeira experiência profissional num
longa-metragem. Quando eu vi pronto,
eu fiquei estaziado! Tão estaziado que
eu obrigatoriamente passo para os meus
alunos todos os anos para que eles não
se esqueçam o que é o talento, o que é
a poesia, o que é a criatividade!
Tunico Amancio / pesquisador
Quando eu tava fazendo o livro com o Walter, a biografia e análise da obra
dele, o único cenário da vida dele que nós visitamos juntos foi aqui em Niterói.
A gente veio num fim de semana com o Walter Carvalho passear pela Ponta
da Areia e lembrar da infância dele, como começou o relacionamento com
o cinema, essa raiz profunda que ele tem com Niterói. Depois nós não
visitamos outros cenários, fizemos o livro sempre conversando durante 3 anos.
Mas durante esse período eu passeei muito com o Walter, passeei pela Minas
Gerais de CHICO REI passeei pela Paraty de BRASIL ANO 2000, passeei
pela Ilha da Marcela de A OSTRA E O VENTO, passeei por inúmeros
cenários maravilhosos através do cinema do Walter e através dessa poesia,
desse lirismo que emana dos filmes dele. Então no dia do aniversário dele
eu só tenho a agradecer por ele ter me dado o braço nesses passeios.
Carlos Alberto Mattos / crítico
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Aprendi a amar o cinema quando
menina vi MENINO DE ENGENHO.
Acho que o Walter é uma luz que ilumina
o caminho da gente e vai continuar
iluminando por muito tempo.
Beth Formaggini / produtora
O Troféu Homenagem ao Walter Lima Júnior
é uma criação do artista plástico Paulo Villela
HOMENAGEM Walter Lima Júnior
Martha de Luca entrega diploma a Walter Lima Júnior
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EQUIPE ARARIBÓIA CINE
iDEaLizaçãO E DirEçãO GEraL
Tetê Mattos
AGRADECIMENTOS
MINC/SAV
COOrDEnaçãO MOsTra DiGiTaL
silvio Da-rin, ana Paula santana, adilson ruiz,
Lisiane Taquary, Emerson rodrigues, Márcia Ludovico,
rubem Tavares da rocha, Elynês rodrigues e toda equipe
COOrDEnaçãO DE PrODuçãO – sEssãO CurTas
PREFEITURA DE NITERÓI / Secretaria de Cultura
COOrDEnaçãO DE PrODuçãO – MOsTra WaLTEr LiMa Jr.
Marcos sabino, Margareth da Luz, Marilda Ormy,
Danielle Barreto nigromonte, andré Diniz, Ângela Provetti,
Gisella Chinelli, Marcelo Velloso e Maria Clara alexandrisky
COOrDEnaçãO DE PrODuçãO
izabella Faya
ana izabel aguiar
Fábio souza
Juliana Cardoso
PrODuçãO – DDC
Márcia souza
MOsTra /CurTas-METraGEns
Comissão de curadoria
rosângela sodré e Tetê Mattos
MOsTra / WaLTEr LiMa JÚniOr
Curadoria:
Beth Formaggini, Carlos alberto Mattos (colaboração)
MOsTra DiGiTaL / COMissãO DE sELEçãO
ana izabel aguiar, Fábio souza e Juliana Cardoso
JÚri MOsTra DiGiTaL
Camilo Cavalcante, Gustavo Pizzi e Márcia Correa e Castro
TráFEGO DE CÓPias
Fábio souza e rafael amorim
UFF
roberto de souza salles, Martha de Luca,
Fabio Barboza Passos, Leon Carlos da Costa Crespo,
Mara Eliane Fonseca, Tereza Machado, Paulo Máttar,
alexander Vancelotte, Marcia souza, ivani itiene, e equipe
FEC
antonio Fontana, Cesar Frederico dos santos von Dollinger,
Marcos de Oliveira Pinto, silvana Borges de aguiar,
Patrícia Christiane Machado Benedetto, Vanessa Moreira de
Carvalho, Margaret Ferreira, Márcia Carneiro Vieira e toda equipe
PrODuçãO
MUSEU DO INGá
adriana Manhães, Deborah rebello Lima,
Michelle Vasconcellos e Teresa Cancela
Dora silveira
rECEPTiVO
MAC
Taiana Trajano
Maria Cláudia Périssé
assEssOria PEDaGÓGiCa E assunTOs COMuniTáriOs.
Edith Leal e José antonio Barroco
MEDiaçãO DOs DEBaTEs
Poliana Paiva
CEriMOniaL
Mariana Carneiro
assisTEnTEs DE PrODuçãO
Bianca Caetano, Ohana Boy Oliveira e anele Camila rodrigues,
alfredo Taunay, Beatriz Ferreira, Caio Branco, Camila Camuso,
Carina Faleiro, Carolina Fagundes, Claraluz Kaiser,
Felipe Maximiano, Gabriel Ornellas, Maria Emília Mendes,
Mariana Castro, Mariane arthenis de azeredo, Olga Bon,
Tatiana Hauer, Thamiris Tavares, Valquiria noya,
andressa nobre rodrigues e Gabriel santana
COnsuLTOria / inCEnTiVOs FisCais À CuLTura
antonio Leal
Luis Guilherme Vergara, Guilherme Bueno,
Telma Lasmar, Volmira Teresa Veras salgado,
Luis rogério Baltazar e alessandro noronha
CTAV
Gustavo Dahl, Liana Corrêa, rosângela sodré,
Paulo roberto, ivan souza, rosália Oliveira, Débora Butruce,
sérgio Pedrosa, renato Costa e toda equipe
PETROBRAS
Eliane Costa, Diana Lomba e Patrícia Baby
SESC
Maria Jose Motta Gouvêa, isabela Paiva, andréa Monteiro,
sabrina rangel, Luciana Janeiro e Francisco quiorato
assEssOria DE iMPrEnsa
Paula Grassini
PrOJEçãO
Projecine
VinHETa
rico Vilarouca
FOTOGraFia
roberto steinberger
VÍDEO
Phillip Johnston
siTE
Dulado Design
PrOJETO GráFiCO
andréia resende
PrOGraMaçãO VisuaL
aline Paiva
DiaGraMaçãO / JOrnaL
Márcia souza
iLusTraçÕEs
Paulo Villela
antonio Leal, Guilherme Bettamio e equipe(Gráfica EDG), Maria
Farias, Flávio zettel, anna Luiza Faya, andréia resende, Beatriz
Lindenberg, Bianca Lopes, Eduardo nunes, Flavio Loureiro, allan
ribeiro, Wanda ribeiro, Diogo Machado da Cunha, Tunico amancio,
Hernani Heffner, nTi – Leonardo rizzo e equipe, Mariana Belmont,
Davy alexandrisky, ana Luiza azevedo, rioFilme, sinai sganzerla,
prof. Marco aurélio e amigos na Cultura, Oficina do Bloco do Vigário,
rodrigo Bessa, Gabriel Policarpo e Cristiana Cocco Carvalho,
Moema Muller, William Hinestrosa, Marco Barbosa (CCr/Ponte s.a),
Paulo Villela, rocio salazar e Maria da Glória Mattos de Moraes.
Homenagem Walter Lima Júnior: antônio Laurindo (arquivo
nacional), Beth Formaggini, Bianca Lopes, Cadu Pereira, Camila
roque (Canal Brasil), Carla Domingues (Canal Brasil), Carlos
alberto Mattos, Daniela Cantagalli (Canal Brasil), Eduardo
ades, Flavio Tambellini , Gilberto santeiro, Hernani Heffner,
rosale de Mattos souza, Mario Tambellini (ravina Filmes),
umberto Trigueiros e Vivian Malusá (Cinemateca Brasileira)
E a todos os realizadores e palestrantes
PaTrOCÍniO
rEaLiz açãO
aPOiO
Este livro foi realizado com recursos
da Secretaria do Audiovisual, através
do Convênio: MinC / Sav n. 702133/2008
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REALIZ AÇÃO
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