DO objeto do retrato ao objeto da fotografia em geral

Transcrição

DO objeto do retrato ao objeto da fotografia em geral
62
Primeiro
momento
I Do real à fotograficidade
ria: seus corpos de mulheres, seus corpos de elefantes e seus corpos de árvores
encontram-se, misturam-se e confundem-se nesse espaço novo que é o espaço
fotográfico, nesse Pays de permissiori, como indica o título de seu livro. A arte é
um país onde tudo é permitido, basta existirem leis.
É esse mesmo procedimento que anima Évrard em sua série Murs installés.
O artista parte de uma realidade já existente e nela se instala. As paredes deterioradas e cansadas adquirem então um novo sentido ao se tornarem fotográfias. Évrard, que à primeira vista parecia repórter, situa-se, aqui, nas antípodas
das constatações de Lewis Baltz: torna-se plástico e passa a preocupar-se com
matéria, com luz e com forma, em resumo, com estilo, como Pascal Kern. O
objeto a ser fotografado foi o ponto de partida do repórter e não seu ponto de
chegada: o repórter colocou-o em movimento, mas não o atingiu. No entanto,
sem ele, não teria havido trabalho nem obra. Ele foi apenas um objeto-pretexto.
Portanto, mesmo na reportagem, é possível passar do objeto a ser fotografado ao objeto fotográfico e, assim, dar adeus a uma relação sonhada com O
primeiro para se confrontar com uma relação real com O segundo. Uma estética
da reportagem deve partir desse deslocamento. Veremos como tal estética só
assume seu sentido articulada com uma estética do "ao mesmo tempo"."
A reportagem não atinge nem fotografa o objeto a ser fotografado. Será que
isso é um fracasso? Não, é uma condição de possibilidade da realização de uma
obra; todas as grandes reportagens, como, a título de exemplo, a obra fotográfica
de Robert Frank sobre os norte-americanos ou aquelas da FSA,nos levariam às
mesmas conclusões.
2
DO objeto do retrato ao objeto
da fotografia em geral:
"Isto foi encenado"
Será possível esperar do retrato uma melhor apreensão do objeto a ser fotografado?
Neste capítulo, o problema da possibilidade de a fotografia captar o real e, portanto, atingir o objeto a ser fotografado é inicialmente aprofundado a partir do
retrato: é preciso substituir um "isto existiu" por um "isto foi encenado". Essa
tese pode ser universalizada para a fotografia em geral. Mais do que isso, ela é
um dos fundamentos de uma estética do "isto foi encenado", que integra a estética do retrato, articulada com a da encenação.
Esta reflexão baseia-se numa análise poiética das obras e das fábulas de Ca-
78
Ver "Rumo a uma estética do 'ao mesmo
no capítulo 8.
meron, Gelpke, Thrner, Michals e Klein.
tempo".
no capítulo 7, e "A estética do 'ao mesmo tempo' e o político",
O conceito condutor é aqui o de "isto foi encenado": uma estética do "isto foi
encenado" deve ser aplicada.
:64 Primeiro momento
I
Do real à fotograficidade
Do objeto do retrato ao objeto da fotografia
Se existisse uma representação
em geral: "Isto foi encenado"
exata, eu não fotografaria.
Claude Maillard, " ... Sur l'imphotographiable"l
Em um artigo sobre Christian Vogt, Jean-Claude Lemagny distingue "duas tendências irredutíveis" na fotografia. De um lado, a "fotografia direta", como a
reportagem, o retrato e a paisagem: ela explora a realidade que se apresenta ao
fotógrafo. De outro lado, a "fotografia encenada", como a de Duane Michals, Les
Krims ou Ralph Eugene Meatyard, "fotografia subjetiva, manipulada, autônoma, que, ela própria, é exploração de uma realidade: realidade do próprio meio
fotográfico".2Essa distinção é interessante. Por um lado, indica os dois palas, ou
seja, o objeto e o sujeito, entre os quais hesitam, se orientam e oscilam as fotos
_ a "fotografia direta" deixaria a escrita para o objeto luminoso, e a "fotografia
encenada" seria escrita por um sujeito esclarecido, como o déspota. Por outro
lado, ela nos obriga a reconhecer uma abordagem conceitual nesta "fotografia
subjetiva manipulada" que se indaga sobre sua própria essência. Mas será tão
simples assim? Será que o retrato, por exemplo, não pode resultar também da
fotografia encenada? A questão é importante: será que no retrato, o objeto a
ser fotografado é atingido ou, como na reportagem, é inapreensível? A obra de
Cameron deve nos ajudar a aprofundar esse problema e suas implicações ..Poderemos então não só escolher entre a teoria do "isto existiu", importante para
Barthes," e a do "isto foi encenado", que faz apelo a uma estética do "isto foi encenado", mas sobretudo poderemos nos perguntar se a fotografia em geral não
é da ordem do "isto foi encenado".
A encenação do objeto do retrato
(Julia Margaret Cameron)
Julia Margaret Cameron, A Rembrandt (Sir Henry Taylor, 1865).
Será que o retrato é um gênero que dá o objeto - um (ou vários) serres)
humano(s) - a ser fotografado ou uma prática que produz uma aparência foto-
--I
C. Maillard, "... Sur I'imphotographiable: le déroulernent", em Photocouleur critique üa Tremblade: Photolangages, 1985), p, 14.
cr Zoam, no 30, p. 36.
Roland Barthes, La chambre claire, Coleção Les Cahiers du Cinéma (Paris: Gallimard/Seuil, 1980).
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Primeiro
momento
I Do real à fotograficidade
DO objeto do retrato ao objeto da fotografia
gráfica de um fenômeno visível? Esse problema tem raízes na própria tradição
do retrato em pintura, aquela, por exemplo, expressa por Dom Perriety em seu
Dictionnaire portatif de peinture, de sculpture et de grauure, de 1756: para fazer um
retrato, é preciso
expressar bem o verdadeiro temperamento, o caráter distintivo, o ar e a fisionomia das pessoas, de maneira que se leia aí o que se lê no próprio rosto da pessoa viva. [...]
É
sempre captar o momento, a posição mais favorável para a pessoa. [...] Mas essa indulgência
não deve ser levada ao extremo, pois seria um quadro e não um retrato. 4
o retrato fotográfico é pleno de tensões e contradições próximas: será que ele se
distingue, de fato, de uma fotografia, que seria, como O quadro, da competência
da arte? 'Talvez seja apenas
uma simples
constatação?
Uma análise
o nOS permite
sonhar e imaginar. A mulher olha ao longe: dá uma aber.
denunci
c
A I'em diISSO, essa Imagem
enuncia-se como lato
pe I a
tura Jll
'lumina seu rosto, pois de onde vem essa luz? A fotografia não depende
[uz que l
re da exterioridade?
Os cabelos estao soltos e caem sobre os ombros: belesemp odernidade dessa mulher colocada ali por uma outra mulher que se quer
za e rn
'.
Depois de repente, percebemos
que a mão esquerda da mulher segura a
mesm. finita
,
c
para a lato.
[jvre.
preciso
poiética
do
trabalho de Cameron poderá nos ajudar a compreender
melhor o problema
retrato fotográfico e de suas relações com o ser a ser fotografado.
do
'
. esse contato sensual mostra-nos que a prece não existe mais, talvez nem
cruZ.
tenha existido, talvez nem venha a existir. O fundo muito escuro destaca a personagem e a cruz, isolando-as do mundo: só há elas; ele afirma a solidão dessa
mulher sonhadora: não há nada atrás, como se fosse um cenário vazio no teatro.
1àmbém sonhamos nós a partir dessa foto, como sonhamos graças às frases fotográficas de Pierre-Paul1temblay.
Nosso sonho é ainda mais vivo e pertinente
à medida que a foto se afirma como encenação, ao passo que, diante do real ou
do real encenado,
A teatralização
Por que, do ponto de vista de muitos historiadores
da fotografia,
Cameron
se ela é, antes de tudo, uma encenadora
conti-
fotográfica?
Na verdade, uma grande parte de suas fotos representa
mitológica ou literária encenada muito frequentemente
The Christ Kind: ainda nos impressiona,
será porque
uma situação histórica,
por desconhecidos.
Se
seu modelo é Margerie
Thackeray ou porque
Menino, anjinho?
Jesus, meio Deus, meio
é, portanto,
do sentido
ao mesmo
a encontrar.
tempo
incontornável
"Little Margie" encarna
o Menino
composição. Na verdade, se para a fotografia direta a recusa
do termo I/composição" em favor do termo "enquadramento"
as histórias
das artes com as geografias
das artes. Sejamos
exemplo
todos esses casos, é sempre
do cotidiano:
em 1861 pelos Cameron,
Mary Ann Hillier, empregada
vai, em 1865, representar
domés-
nessa foto a
mulher que reza. Cameron dispôs todos os elementos significativos da cena: um
crucifixó branco sobre uma grande cruz negra e flores em torno da cruz. Onde
estamos?
Num cemitério?
Numa igreja? Numa casa? Cameron
indeterminada
e, desse modo, torna possíveis
diferentes
um encenador
que não nos impõe
leitura
-
Um
sua única
deixou a resposta
interpretações,
como
do texto e que, por isso
Dom Pernety, verbete "Portrait", em Dictionnaire portatif de peinture, de sculpture et de gravure (Paris: Bauche,
1757).
As fotos de que falamos foram extraídas do livro de Jean-Marie Bruson, Hommage de J. M. Cameron à Victor
Hugo (Paris: Les Presses Artistiques/Maison de Victor Hugo, 1980). Os títulos são de Cameron.
de Arnaud Claass"
é operatória, por
outro lado, para a encenação, deve-se falar de composição. Evidentemente,
toda
arte é específica, mas nem por isso é totalmente
autônoma: é preciso articular
Fotografar pode gerar vários tipos de comportamento:
ção aparente do voyeur, ou mostrar-se com a exuberância
dessa teatralização
e discreta.
objeto fotográfico é desviado de seu sentido mundano para adquirir um sentido
fotográfico, e, correlativamente,
o sujeito que fotografa se designa e assina sua
Podemos identificar
quatro objetos da encenação
na obra de Cameron: o
cotidiano, a cultura religiosa, a história e a literatura. Lady with a Crucifix é um
tica contratada
4
somos escravos
fotógrafo pode ser tentado por duas direções: a da publicidade, que constitui um
instante eternizado de uma peça de teatro engajada em proveito de uma produção e de um consumo determinados,
e a da obra de arte. Neste último caso, o
A teatralização fotográfica
nua sendo uma retratista,
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em geral: "Isto foi encenado"
constituir
então cartógrafos.
ou ver com a discrido exibicionista.
Em
um teatro do qual se é o diretor, do qual
se é, por certo tempo, o Deus ordenador:
dão-se ordens, chama-se à ordem,
introduz-se ordem no real que se quer fotografar. A preordenação
divina - a previsão absoluta de todas as coisas - é o sonho de certos fotógrafos: Duane Michals
declara prever nove décimos de suas fotos. Deus per machinam: o fotógrafo é,
então, ouvido e obedecido;
poder decorrente
~arece captar o ser, ou, pelo menos,
JO de Cameron
----
oscila sempre
da máquina
que detém
uma das formas instantâneas
entre esse Deus leibniziano
o tempo
e
do ser. O dese-
e esse Deus do Teatro.
fi
Arnaud Claass, "Un art sans matériau", em tes Cahiers de Ia Photographie, no 1, Paris, 1981, p. 24.
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Primeiro
I Do real à fotograficidade
momento
DO objeto do retrato ao objeto da fotografia
Ser o Deus do cotidiano: através desse desejo de criação, Cameron coloca-se como artista. Mas o cotidiano não é seu único objeto. Ela quer também
reapropriar-se
fotograficamente
das grandes mitologias e das grandes religiões,
e reativar o poder "eterno" delas, modernizando-as
graças a uma técnica nova,
exatamente
como os pintores do Quattrocento
pintavam as cenas bíblicas: essa
fotografia religiosa notável, na qual Cameron brilhou, foi muito esquecida. Mary
Mother é um exemplo impressionante
desse trabalho verdadeiramente
hermenêutico: é uma reinterpretação
da maternidade
divina no século XIX graças à
máquina
fotográfica.
Mary Ann Hillier vai representar
inúmeras
vezes a perso-
nagem da Virgem, tornando-se
sucessivamente
a Madana aspettante, a Madona
vigilante, a Madona aâolorata ... O título da foto estudada introduz um equívoco:
Mary Mother. Será Mary Ann Hillier ou a Virgem Maria? Esse equívoco, na
verdade, reforça a trans-historicidade
do tema, correlato implícito da trans-historicidade da fotografia. Mary parece olhar a criança, e através desse olhar para
a criança
ausente
da foto revela-se
sua maternidade.
Como sabemos
que é para
uma criança que ela está olhando? Por causa do título? Aqui o texto dá sentido
à foto, mas a distância - produtora de sentido - entre o texto e a imagem não é
em nada comparável ao que se pode encontrar, por exemplo, em Magritte. Essa
foto é maciçamente
teatro de um instante; nisso ela se distingue da pintura, em
relação à imediação de toda tomada fotográfica. Como escreveu Roger Fry:
Aqui o artista mostrou-se capaz de controlar tudo, a mise en page, a disposição dos tecidos
e a iluminação; e o resultado é quase perfeito .. Nenhum [pintor] pocena ultrapassar a be-
ada passar por uma fotografia de reportagem.
Ilusão superior da arte ainda
cen. t: rte porque Pinkie Ritchie usa uma roupa que só evoca o século XVI de
mais 10
.'
muito aproxImatIVa.
forma
A teatralização é elevada ao quadrado quando Cameron fotografa os Cenci:
reendamos
que agora a arte fotográfica toma como objeto uma obra de
(I,
l e a materia-prima
d e sua pro d ução
compH Qual é seu ponto dee parti
riartid a? '-Zua
arte.
ibilid
d
histé
1
d
C
.
N
artística? Primeira pOSSI inua e: a IStOna rea
os erici.
esse caso, estamos
é
no erudito. Mas então, por que não fotografar os atores da peça representada
em Londres? Talvez porque Cameron quisesse recriar fotograficamente
para
si mesma e por si mesma a tragédia de Shelley: a obra de arte pode ser a fonte
de uma outra obra de arte. O quadro de Guido Reni (da coleção Barberini), de
que fala Stendhal em Promenades dans Rome, considerado como a terceira fonte
possível da fotografia de Cameron, só reforça nossa tese: a imagem de Reni dá
origem a uma outra imagem (a de Cameron), imagem específica, pois imagem
de uma encenação de um hic et nunc extratemporal
dos Cenci. Mais do que isso,
A study af Cenci designa uma pluralidade
potencial de imagens possíveis: Kate
Keown, dois anos depois,
questiona por isso mesmo
substituiu Mary Prinsep; essa substituição
indica e
a eternidade
e a universalidade
do drama dos Cenci.
leza do modelado do lado esquerdo do rosto ou a excelente perfeição do contorno do lado
direito?
Com Cameron, a fotografia se afirma como arte e revela a natureza própria do
fotográfico. Lembremos
que, na mesma época, Duchenne
de Boulogne quer
O problema
personagens
da teatralização
se coloca de maneira
ainda mais intensa
quan-
do Cameron decide fotografar uma personagem
histórica que existiu outrora
e da qual há representações
pictóricas. Por que, na verdade, fotografar uma
mulher
que representa
ron permite
modernas.
Mary Stuart?
a reencarnação
De fato, em Mary, Queen of Scots, Carne-
de Mary Stuart graças
Ela aposta que a fotografia
artística
a sua arte e a sua técnica
da representação
que viveu numa época em que não existia a fotografia,
olha a foto, o mesmo
tém essa aposta,
7
,..
diante da mesma problemática
referente a Mary Stuart: que relação existe entre
a orgulhosa Beatriz que viveu entre 1577 e 1599 e Mary Prinsep, que a encarna
em 1866 diante de nossos' olhos? Existe uma segunda possibilidade:
a tragédia
de Shelley, The Cenci, que fazia grande sucesso em 1866 junto a todo vitoria-
fazer com que pacientes
quem
em geral: "Isto foi encenado"
papel que a foto verdadeira
dessa mulher,
pode desempenhar,
da rainha.
para
Se ela man-
é graças à força de sua arte, que pode fazer uma fotografia
en-
Roger Fry, "Introduction", em Julia Margareth Cameron, Victorian Photographs of Famous Men and Fsit Women,
introd. Virginia Woof e Roger Fry (Londres: Hogarth, 1926), pp. 26-27. Fry escreveu "mise en page" em francês em
seu texto inglês.
- que ele fotografa
- representem
os sentimentos
das
de Shakespeare.
A fotografia como arte elevada ao quadrado assume uma nova característica
com o trabalho que Cameron realizou a partir dos poemas de Alfred Tennyson: passamos
luz a escrita
de fato da encenação
do poeta.
poesia vitoriana";
"o precursor
Como nos lembra
de nossos mestres
e Tennyson.
:--9
Com imagens,
a fotografia
Ritz,9 Tennyson
de 1850 a 1892, ele mantém
em 1874, a tarefa de ilustrar
d traduzirá
à reescrita;
sua obra mais famosa,
com a
é "a figura maior
o título de "poeta laureado".
Yeats, Joyce, Huxley,
mas recriará
reescreve
da
Ora,
Eliot" confia a Cameron,
Idylls of the King. Ela não
uma obra de arte a partir
The Kiss of Peace é uma foto feita a partir do poema
da literatura
"Saint Agnes
~~r a noção de "arte elevada ao quadrado" no último capítulo deste livro.
. EncYClopaedia universalis, tomo 15 (Paris: Éditions de l'Encyclopaedia Universalis, 1979), p, 933.
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Primeiro
momento
I Do real à fotograficidade
Do objeto do retrato ao objeto da fotografia
Eve": uma mulher bela e misteriosa beija a testa de uma adolescente; ambas parecem mergulhadas em pensamentos melancólicos _ tristes, mas sem angústia
=, evocando tanto o poema de Thnnyson quanto a pintura pré-rafaelita. Quem
olha a foto encontra os sonhos de "Saint Agnes Eve", mas também se encontra
alhures, pois a imagem não funciona em seu imaginário como as palavras.
The Rosebud Garden of Girls mostra-nos bem o procedimento de Cameron
para compor uma foto. O poema "Maud", de Thnnyson, inspira a fotógrafa, que
"isola uma palavra ou um grupo de palavras'"? e lhes dá uma interpretação totalmente pessoal, "distante de seu contexto, guiada pelas sonoridades ou pelas
visões que as palavras evocam":
Rosa, rainha do jardim florido de jovens,
Venha, as danças terminaram
No brilho do cetim e na luminosidade das pérolas,
Rainha dos lírios e das rosas ao mesmo tempo. 11
As quatro irmãs Fraser 1Ytler representam as jovens que Thnnyson evocava;
o jardim, as rosas e os lírios formam o cenário; a atmosfera é recriada _ e não
encontrada, como em certos trabalhos medíocres com pretensões realistas.
Essa teatralização fotográfica também pode ser elaborada seguindo um outro processo. Em 1869, Cameron fotografara Mary Ann Hillier desempenhando
o papel de uma heroína patética e estranha; ora, cinco anos depois, essa foto
evocou para Cameron o poema "The Lady ofthe Lake":
Ejunto a ele estava a Dama do Lago
Que conhece encantos mais sutis do que os seus
Vestida de brocado branco, misteriosa, maravilhosa. 12
O poema já estava ilustrado. Só restava à fotógrafa realizar, uma segunda
vez, ato de artista: desviar a foto de seu primeiro sentido e articulá-Ia à obra de
Thnnyson, dando-lhe o título tão famoso do poema. Ainda aqui, não só Cameron
fazia urna obra de arte, mas, além disso, desvendava o status paradoxal da fotografia: obra cujo sentido muda em função do título que lhe é dado. Na verdade,
-
. ta reinterpretava sua própria foto, tal como Moliêre, que fazia representar
com outra encenação, uma de suas próprias peças de teatro.
O
a arOs
de
nOV
,
Aliás, Cameron às vezes dá várias interpretações fotográficas de um mesmo
a É o caso de "The angel at the tornb": a cada vez, encontramos a mesma
poem
.
Duas senes
' . corre I'ativas dee interpretações
i
. fiotográficaMary Ann nnn
I ler.
atflZ
_ postas em prática: de um lado, as diferentes interpretações teatrais que
sao
Mary Ann Hillier deu ao papel do anjo - da mesma forma que uma atriz interpreta várias vezes e de maneiras diferentes uma ~esma peç~ de teatro, a cada
representação -, e, de o~tro lado, as diferentes mterpretaçoes do poema por
Cameron - da mesma forma que um tradutor pode interpretar de maneiras diferentes um mesmo poema ou, talvez, como um psicanalista interpreta indefinidamente o mesmo sonho: ponto central da fotografia, imagem do ponto central
da interpretação dos sonhos estudada por Freud, imagem também do ponto central das cópias que, a cada vez, são sempre as mesmas e sempre são diferentes."
Rumo a uma estética do retrato e da encenação
Será que a teatralização fotográfica é específica de um determinado tipo de retrato ou de todos os retratos? Para responder, vejamos os de Hattie Campbell.
Que retrato nos revela melhor a identidade da moça? Será que é quando ela
representa a Vestal ou quando Carneron faz dela um retrato "verdadeiro", fotografando a própria Hattie, e não Hattie encarnando uma personagem? Será
que a verdade de uma identidade é encontrada graças à apreensão natural de
uma natureza, ou graças à apreensão cultural de uma cultura? De fato, no retrato "verdadeiro" de Hattie, a moça já está representando. Ela "posa" nos dois
sentidos da palavra: pose fotográfica e afetação mundana, cultural e social. Não
temos diante dos olhos a pessoa de Hattie, mas sua personagem, ou seja, um
ar, um jogo e uma imagem que ela dá de si mesma aos outros e talvez a si própria. "O homem não passa de disfarce, mentira e hipocrisia. [...] não fazemos
outra coisa senão nos enganarmos e adularmos mutuamente", escreve Pascal.I4
Além disso, essa pose é obrigatória por razões técnicas da época: a exposição
da placa devia durar de cinco a sete minutos. Permanecer imóvel durante um
tempo bastante longo a fim de deixar para a eternidade a imagem de seu eu!...
•••••••••
13
11
Jean-Marie Bruson, Hammage de J. M. Cameron à victor Huga, cít., p. 17.
Alfred Tennyson, "Maud", em Maud and Other Paems (Londres: Moxon, S/d).
12
Alfred Tennyson, "The lady of the lake", em Idylls
10
em geral: "Isto foi encenado"
ot the King
(Londres: Penguin Classics, 1983).
14
Ver capítulo 4.
Pascal, PenSées, no 100, org. Brunschvicg (Paris: Garnier, s/d). [O trecho aqui citado é da edição brasileira pensamentos, no 100, org. Brunschvicg, trad. Sérgio Milliet, Coleção Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural, 1973),
P.70.1
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Primeiro
momento
I
Do real à fotograficidade
Mas o que é o eu? Na verdade, será que ele não é mais facilmente perceptível
nas fotos claramente teatrais? Em todo caso, considerando a pluralidade destas,
o eu não é afirmado nem como elemento fixo nem como elemento natural; a
oposição verdade/representação,
correlata da oposição natureza/cultura, é aqui
recusada, assim como as distinções fotografia diretalfotografia encenada e en,
quadramento/ composição. A identidade de Hattie é plural: Hattie é, também
em sua própria vida, Vestal, anjo da guarda ou Eco; para a última foto _ The
Echo -, Bruson fala até, com uma exatidão paradoxal, da "espontaneidade do
movimento", que parece "natural e não posado". 15 A pose mundana e social dá
a impressão de desaparecer quando é estabelecida a pose teatral e artística: a
identidade nasce da ilusão afirmada.
Acting Grand-Mama reforça nossa tese. Nessa foto, a ilusão é ao mesmo tempo
posta em prática e denunciada duplamente: através do título e através das roupas convencionais usadas nas brincadeiras infantis e nos teatros amadores do
século XIX. Mary Prinsep, moça de uns 20 anos, representa a avó; dessa forma,
nós a descobrimos em Sua pluralidade identitária: a moça, a atriz, a mulher que
será avó ... Ora, entre essas três personagens, estabelecem-se e tensionam-se
relações que permitem uma leitura fenomenológica do eu, portanto, uma leitura a ser sempre retomada, mas, de qualquer modo, produtora de um sentido
infinito.
Todo retrato é uma representação: o retrato da mulher desconhecida com um
turbante nos designa não mais uma determinada mulher, mas um tipo de mulher representado; passamos do individual ao típico e ao universal. E, quando
Cameron fotografa Tennyson, podemos reafirmar o que dissemos. Temos ao
mesmo tempo a foto do poeta "em carne e osso" e a foto do poeta fazendo-se
fotografar; como diria Barthes, o sujeito tornando-se objeto. E que objeto! Carneron queria "imortalizar os grandes homens": já imortalizados pelas práticas e os
discursos da sociedade - Tennyson é o poeta laureado durante cerca de meio
século - a ponto de se terem tornado quase que super-homens, esses homens
são duplamente eternizados e universalizados: pela técnica fotográfica e pela
arte fotográfica. Não é mais o retrato de Alfred Tennyson que temos diante
dos olhos, mas a imagem atemporal de Tennyson e até a imagem do conceito
de grande homem. A fotografia, que parecia ser uma técnica que reproduzia o
fenômeno, coloca-se como uma arte que resulta no conceito; ela parece ter a
mesma pretensão que a pintura de Leonardo da Vinci: ser "a ciência suprema".
Como Leonardo, Cameron poderia ter dito: "Aciência perfeita é a distinção en-
-15
Jean-Marie Bruson, Hommage de 1. M. Cameron à victor Hugo, cit., p, 17.
Do objeto
do retrato
ao objeto
da fotografia
em geral: "Isto foi encenado"
mbra e a luz em claro-escuro [...]. Quero fazer milagres". É possível então
tre a SO
ética da encenaçao.
uma es t
se considera uma pintora ou uma encenadora? Rembrandt" parece
camero 11
,
'
.
. . ialmente indicar que o modelo da fotografa e o pintor: ela quer fotografar
In1C
b
d
.,
d
M
. ficar
. Ilenry Taylor como Rem ran t o tena pinta o. as sera' que e, preciso
SI;sse primeiro nível de análise? Na verdade, ela quer fotografar com a mesma
~ualidade artística com que o maior pi,nto~ teria pintado o,u o maior diretor de
teatro teria feito representar. Sua referência a Rembrandt e a marca de sua eXIgência artística e de sua-assinatura pessoal de artista, não a marca da mimesis
da pintura.
Tclmbém ela será aconselhada, para suas fotos, por artistas de horizontes diferentes: pintores, é claro, mas também poetas, dramaturgos, músicos, diretores
de teatro. Se Watts, por exemplo, colabora às vezes na preparação dessas fotos,
durante os 23 anos que mora com os Cameron, é antes de tudo como artista.
Aliás, suas pinturas históricas eram verdadeiras encenações, assim como seus
afrescos monumentais que evocam a evolução da humanidade - por exemplo,
tlamour et Ia mort - ou seus retratos de Swinburne ou de Thomas Carlyle. O
problema da teatralização em pintura era exportado para o campo da fotografia.
Evidentemente era modificado, mas não totalmente transformado.
Cameron levou esse problema a sério, trabalhando-o e tratando-o com sua personalidade e suas próprias escolhas artísticas, técnicas e ideológicas. Recusando-se a adotar uma teatralização fotográfica realista, ela vai se chocar - e isso
será sua força e sua riqueza - com a crítica fotográfica tradicional. Em 1864,
um crítico considera suas fotos "admiráveis, cheias de expressão e de vigor, mas
terrivelmente contrárias às convenções e aos usos fotográficos"." Uma crítica
de 1865 que talvez parecesse, na época, depreciativa revela-se, de fato, extremamente valorizadora: as fotos de Cameron, "embora muito medíocres como fotografias, são a obra de uma verdadeira artista"." Fotógrafa, encenadora, artista
simplesmente, são estes os qualificativos que podem ser atribuídos a Cameron.
Ela própria faz duas observações interessantes sobre a definição da imagem e
sobre as manchas:
o que é a definição da imagem e quem tem
o direito de dizer qual é o grau exato de de-
finição? [,..] Quando eu estava definindo a imagem e quando chegava a alguma coisa que,
16
17
Foto publicada na p. 64 deste livro.
18
The Phatagraphic Jaurnal, vaI. 9, Londres, 1864, P, 171.
Ibid" 1865, p, 117,
73
Do objeto do retrato ao objeto da fotografia
para mim, era muito bonito, eu então parava em vez de girar a objetiva até uma definição
perfeita, o que todos os outros fotógrafos insistem absolutamente em fazer [...]. Quanto às
manchas, penso que é preciso deixá-Ias. Poderia retocá-Ias, mas sou o único fotógrafo que
só apresenta fotografias não retocadas, e os artistas, por esse
minhas fotografias 19
motivo, entre
outros, valorizam
Dessa forma, Cameron mostra que ser artista é escolher, e que o mais importante não é o objeto a ser fotografado, mas sim a maneira fotográfica de gravar suas
aparências visuais para produzir o fotográfico.
"Nunca ninguém captou nem utilizou o sol como VOCê",20 dizia Victor Hugo a
Julia Margaret Cameron. Talvez pelo fato de ela ter sabido ultrapassar a fotografia aparentemente objetiva e realista para atingir o teatro: teatro da vida? Teatro
da arte? Teatro fotográfico, em todo caso, graças a essa Aufhebung21 hegeliana de
uma técnica. Cameron pôde também ultrapassar o simples projeto de retrato de
um ser a fotografar para chegar à fotografia como obra, deixando no mistério a
identidade do ser. Ela abandonou a busca do "isto existiu" para escolher o "isto
foi encenado". O objeto a ser fotografado não é mais do que uma oportunidade
de encenação. A estética do retrato articula-se então com a da encenação no
interior de uma estética do "isto foi encenado".
Rumo a uma estética geral do
"isto foi encenado
ll
o jogo
da fotografia
Pode-se então pensar que toda foto é teatralizante e que para a fotografia em
geral é preciso dizer: "isto foi encenado"? Retomemos o problema do ponto de
partida.
Pode-se fotografar o eu de uma pessoa? Para tal, seria preciso que o eu existisse de maneira permanente e idêntica. "O que é o eu?", pergunta Pascal:"
todas as tentativas de respostas que ele apresenta - o corpo, a beleza, o julgamento, etc. - fracassam: "Onde está portanto esse eu, se não está nem no corpo
19
20
21
22
Cf. Jean-Marie Bruson, Hommage de 1.M. Cameron à vtctor Hugo, cit., pp 9,12,18.
Ibid., p. 5.
na alma?" Não será ele unicamente uma das três personagens do segundo
nem
- sera'1e e sempre mutante e d·irerente?
e
, íco de Freud? Consequentemente, nao
toP~;1tado eu, devemos fotografar o próprio aparelho psíquico? O que significa,
Nasse caso. a expressão "fotografar o psíquico"? Não se estará sempre diante de
ne orpo ou em todo caso, diante de uma matéria? Mas esse corpo é o sintoum c
, '
a o vestígio ou o índice de quê? Do eu? Mas então de qual eu? Do aparelho
rn -' Ul'CO? Mas será isso de modo geral ou num dado instante? Seria melhor dizer
psiq
.
..
.
ue a fotografia nos põ~ diante do id do outro. Esse iâ afirma-se como deslocado
~m relação ao eu permanente impossível. Esse id é representado por si mesmo
e por sua posição dialética no interior do aparelho psíquico. Cada foto nos indica
que o id foi representado, pois, diante de um fotógrafo, representamos e somos
representados. O livre-arbítrio não é aceito em fotografia: é preciso que seja
substituído pelo jogo da necessidade, a necessidade das relações de teatro que
constituem a vida.
"Isto foi encenado": isso é verdadeiro não só para o id do fotografado, mas
também para o id daquele que fotografa. Com efeito, toda foto é trabalhada por
aquilo que escapa àquele que fotografa e, portanto, o domina, a saber, entre ou
tras coisas, pelo id daquele que fotografa. A relação fotografado que fotografa
não é neutra. Mais do que isso, ela não é controlável, porque o mais importante
acontece no nível inconsciente." Uma foto é antes de tudo o resultado de relações entre ids, entre pulsões. O id do que fotografa desempenha um papel,
mas, além disso, um papel é desempenhado pelo id do outro e pelo próprio
aparelho psíquico. Para todo fotógrafo ocorre um jogo dialético, na maioria das
vezes inconsciente, entre seu ego, que visa a dominar e a prever, seu id, que
exprime maciçamente suas pulsões e suas tendências para com a exterioridade
(e portanto para com o fotografado e a fotografia), e seu superego, que é habitado pela identificação problemática do fotógrafo com "grandes" fotógrafos, e
portanto com regras e modelos estéticos, estilísticos ou técnicos; todo fotógrafo
é encenado e dirigido, atraído e paralisado por esses modelos, mesmo - e sobretudo - se quiser se distanciar deles.
"Isto foi encenado": todo mundo se engana ou pode ser enganado em fotografia - o fotografado, o fotógrafo e aquele que olha a fotografia. Este pode achar
q~e a fotografia é a prova do real, enquanto ela é apenas o índice de um jogo.
Diante de qualquer foto, somos enganados. Isto foi encenado, porque isto ocorreu e po
.
rque isto ocorre num lugar diferente daquele que se acredita. Como no
teatro, em fotografia o referente não está onde se pensa, nem onde se está, nem
Ultrapassagem dialética.
Pascal, Pensées, nO688, org, Louis Lafuma (Paris: seuil, s/d.).
em geral: "Isto foi encenado"
23
FranÇOiSSOulages et ai., Photographie
et inconscient
(Paris: osírís. 1986).
75
Do objeto do retrato ao objeto da rorograna
F
J 6""'Prrmelro=tt10mentO
onde se acredita que esteja. Talvez a fotografia não se refira senão a ela mesma:
é, aliás, a única condição de possibilidade de sua autonomia.
As teses que apresentamos para a obra de Cameron poderiam ser retomadas em relação a qualquer retrato fotográfico: a pessoa fotografada representa
uma personagem. Demonstraremos isso, por exemplo, com Diane Arbus," para
quem cada foto é, conscientemente ou não, uma encenação, ou a foto de uma
encenação: [eune homme avec bigoudis chez lui, Les champions du [unior Interstate
Dance, Dame à un bal masque avec deux roses sur sa robe, etc. Todas as fotos de
Arbus poderiam ser citadas.
Essas teses são pertinentes não só para as fotos das pessoas que sabem que
estão sendo fotografadas, mas também para as de pessoas anônimas tiradas às
escondidas. Na verdade, há sempre uma encenação do fotógrafo: poderíamos
tomar como exemplo as fotos de William Klein. Talvez seja - poder-se-ia dizer
numa perspectiva humanista - a especificidade da encenação que manifesta o
estilo do autor. Diante da foto de um anônimo, nunca podemos saber se essa
foto é realmente de um anônimo espionado ou a de uma pessoa prevenida (que,
portanto, representa): o "isto existiu" é impossível de dizer porque o "isto foi
encenado" foi pronunciado uma vez. Assim como Descartes foi enganado uma
vez, devemos, diante de qualquer foto, praticar uma dúvida metódica e hiperbólica em relação à existência particularizada do referente: a fotografia sempre
pode ser vítima do Gênio Maligno, de "algum não sei qual enganador"." As pretensas fotos espontâneas de Doisneau são frequentemente fotos de encenação.
Ora, essa encenação não se refere só às fotos de homens ou de mulheres,
mas também às de paisagens, de máquinas, de qualquer objeto do real. Na verdade, qualquer foto pode ser a foto de uma encenação, como, por exemplo,
essas paisagens falsas cujo status não deixa de evocar o dos cenários de teatro
barroco, como em Lillusion comique, de Corneille, ou A vida é sonho, de Calderón. Além disso, qualquer foto pode ser manipulada na revelação, como as fotos
de publicidade. Enfim, ela é sempre feita por um homem que é ele próprio trabalhado e dominado inconscientemente por modelos a serem reproduzidos ou
a serem evitados, por pulsões e desejos. Todo fotógrafo é, portanto, quer queira
quer não, um encenador, o Deus de um instante. Toda fotografia é teatralizante.
24
Ver capítulo 7.
25
Descartes, Méditations métaphysiques (Paris: PUF, 1966), 11, 4. [O trecho aqui citado é da edição brasileira Meditações, 11, 4, trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior, coleção Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural, 1973),
p.100.]
em geral: "ISto TOI encenaao
7
I Do-rnalTmtografiClClaae"
Mais uma vez o real nos escapou, talvez simplesmente porque é impossível
ostrá-l . Os homens parecem ter necessidade de crer, e talvez seja por isso
o
mIes
se apeguem à aparência. Não podendo dizer e assumir o "isto foi enceque
e diante de uma foto, eles apostam na fotografia como prova do real. Essa
ado"
:atisfação com a ilusão vem de outro lugar, ela não é específica da fotografia,
mas deve ser denunciada para que a fotografia possa chegar a um papel diferente daquele de, pobre testemunha de um real impossível. A fotografia deve
ser comparada com o teatro e ser pensada como trabalhada por um jogo: o jogo
dos homens e das coisas. Por ser habitada por esse jogo do mundo, por sermos
representados diante dela, por sermos enganados por ela é que a fotografia pode
entrar no mundo das artes. A fotografia está do lado do artificial e não do real.
O objeto a ser fotografado pode menos ainda ser reproduzido em sua integralidade pela fotografia, à medida que ela está sempre na dependência do
ponto de vista de um sujeito: dessa forma, o "eu" do fotógrafo é posto em primeiro plano. Que consequências se pode tirar disso? Em que a arte fotográfica é
modificada por isso? As obras de Gelpke e de Thrner, de Michals e de Klein vão
permitir-nos elaborar respostas para essas questões.
o jogo
da realidade
(André Gelpke e Pete Turner)
A fotografia não dá a realidade. Em contrapartida, ela pode questioná-Ia. A
esse respeito, o trabalho de André Gelpke é exemplar: suas fotos se apresentam como fotos realistas, mas não o são. Quando o receptor toma consciência
disso, não pode fazer outra coisa a não ser questionar a fotografia, a pretensa
realidade e a relação que ele mantém com ela. "A 'pseudo-aparência' de meus
26
'clichés realistas' põe em questão a própria realidade", afirma o fotógrafo. Suas
fotos constituem, na verdade, um jogo com as aparências e a realidade, com
o fotografado e o simulacro, com a foto e o infotografável. "A realidade, condicionada pelo afastamento do acontecimento, pela avalanche dessas imagens
de crueldade, torna-se uma ficção"," diz Gelpke. De um lado, a realidade tem
aparências de sonho e até de pesadelo. De outro lado, essa angustiante estranheza é reforçada pela própria natureza da foto, que descontextualiza o fenômeno visível fotografado. Por essa separação de seu tempo, de seu espaço e de
seu ponto de vista de origem, a foto pode então parecer vazia de sentido, seja
26
27
Release da exposição do Centro Georges pompidou, 1984.
Ibidem.
otograficidade
Do objeto do retrato
porque nada nela é reconhecível
nem identificável,
seja simplesmente
porque
o que se pensa reconhecer
está separado do Conjunto que lhe dá sentido. A foto
está sempre rodeada por um irremediável
extracampo
visual inacessível,
enconhecível e doador
quanto no cinema o extracampo é sempre potencialmente
de sentido. "Logo depois de tirada, a foto começa a se esvaziar de seu sentido
ligado à atualidade
representada
para começar a ficar carregada de sentidos
intencionais,
isto é, aqueles
Ando Gilardi.>
que a realidade
pode investi-Ia
estabelecidos
por seu modo de divulgação",
escreve
Como a foto, em SUa própria essência, é esvaziada do sentido
poderia ter, o receptor, uma vez passado o tempo da confusão,
de novos sentidos
uma foto de alguma
a arte do imaginário
ligados a Sua subjetividade
e a seu imaginário:
coisa permite sempre imaginar outra coisa. A fotografia é
por excelência, bem mais do que o cinema, talvez porque
seja muda, sem movimento e sem futuro, puro fragmento de nonsense que pede
uma construção
de sentido imaginária por parte do receptor. Essa é uma das
razões de sua possível passagem do sem-arte à arte. Também Gelpke pode em
sua obra tentar "tornar perceptível,
pelos meios puramente
fotográficos, essa
'contra-realidade'''.29
A fotografia permite não captar a realidade, mas chegar à
contrarrealidade
que, por contragolpe,
critica a realidade
do mundo:
a ficção tal-
vez seja o melhor meio de se compreender
a realidade. "A máquina fotográfica
representa uma maneira de ir, de uma matéria fluida e mutante, ao encontro de
uma outra realidade ", diz Jerry Uelsmann.e'
o trabalho de Pete Thrner é um outro modo de questionar a realidade: "Quero
uma outra realidade em minhas imagens, mais realidade", escreve ele." Entendemos "mais realidade" como sendo ao mesmo tempo uma realidade diferente,
uma realidade mais solicitadora para quem olha, e uma realidade de natureza
fotográfica. Com esses dois fotógrafos, encontramos
questionamentos
com os
quais já nos deparamos
a respeito da esquizofrenia.32 Não que uma tendência
ou tentação esquizofrênica
perpasse a obra deles, mas vemos em suas fotos e
compreendemos
em Suas afirmações uma decepção e até um mal-estar quanto
à realidade externa, assim como uma vontade ou de criticar essa realidade ou de
substituí-Ia por outra. A fotografia lhes dá esperança de que essa vontade pode
chegar
a um fim porque,
28
29
30
31
32
como diz Ernest
Haas, ela "decorre da transformação
Jerry Uelsmann, soua J. Lizé, Fixer-révéler ou tentative de délimitation
1981, o, 15, não publicado.
tiu champ
Photo, Pete Tumer, Coleção Les Grands Maltres de Ia Photo, no 7 (Paris: Photo, 1983), p. 7.
Ver François Soulages et ai., Photographie et inconscient, cit.
79
inventem-na'." A fotografia deve ser
; realidade! Se vocês não a encontram,
não só encenação
e jogo, mas deve ser invenção; nisso o fotógrafo é criador.
pete -rurrier experimenta,
por conseguinte,
todos os parâmetros
constitutivos
da fotografia; nota-se, aliás, essa liberdade exploradora e criadora entre os fotógrafos desde o início da fotografia. "Não mudo as cores simplesmente
para fazer
experimentos,
faço o que posso para que elas trabalhem a meu favor", escreve
'Illrner.35 Seu interesse não é a realidade externa, mas a realidade de Sua obra.
'Itabalha com a cor com a mesma lógica do fotógrafo que usa o preto e branco.
É por razões de coerência interna da foto e de distinção para com a realidade
que determinada
cor é usada. Ele se opõe totalmente
a Herman Podesta, que
afirma: "Não faço fotos coloridas, pois a cor induz uma referência imediata ao
real"." Os dois fotógrafos constatam a mesma coisa, mas tiram disso consequências prático-estéticas
opostas. É preciso então distinguir as cores do objeto a
ser fotografado
autônomo
e as da foto. Thrner
cria seu mundo
na fotografia:
esse mundo
é
e rico.
o jogo e o eu do fotógrafo
(Duane Michals e William Klein)
É por essa razão que esses fotógrafos
Cartier-Bresson:
é contra sua doutrina
captação
do objeto a ser fotografado
"Em vez de fotografar
mento
que precedia
e o momento
quer captar um acontecimento
aventura
quência
que se desenvolve
--34
35
36
37
se opõem explicitamente
à estética de
do instante decisivo e de uma possível
que esses fotógrafos
o momento
tografia não é mais citação
33
esthétique de Ia photographie,
em geral: "Isto foi encenado"
_ da reprodução"33 Pete Turrier extrai disso uma consequência
que o coloca
e nao
ma artista: "Fico constantemente
surpreso de ver a quantidade
de fotógrafos
C~e se recusam a manipular
a realidade, como se isso fosse um mal. Mudem
decisivo,
que seguia",
da realidade,
que ocorreu
durante
constroem
sou levado
escreve
mas história
Duane
Estabelece
o mo-
Michals."
encenada.
(Barcelona: Time Life, 1979), p, 234.
Herman Podesta, apud Photographiques, nO101, Paris, novembro de 1983, p. 17.
Entrevista concedida à rádio France Culture, novembro de 1980, não publicada.
A fo-
O autor não
mas contar uma
então uma se-
de um texto. Dessa maneira,
e para a ficção: por vezes aparece
Ernest Haas, apud tes grands photographes
Photo Pete Turner, cit.. p. 8.
Ibidem.
sua obra.
a fotografar
num dado instante,
um certo tempo.
de várias fotos, às vezes acompanhada
se abre para a narração
Ando Gilardi, Storia sociale della fotografia (Milão: Feltrinelli, 1976), p. 251.
Release da exposição do Centro Georges Pompidou, cit.
ao objeto da fotografia
ele
um anjo na foto, em
80 Primeiro
momento
I Do real à fotograficidade
DO objeto do retrato
decorrência das necessidades da história e, ao mesmo tempo, para nos mostrar
que a fotografia capta as aparências às vezes invisíveis para o olho humano e
não a simples realidade. O artista, portanto, apela mais para nossa imaginação
do que para nossa visão: ''A única realidade que conheço de modo seguro é a
mas não na realidade
das pinturas.
Isso dá uma vantagem
para os
fotógrafos. O problema é que os fotógrafos também acreditam na realidade das
fotografias", observa Duane Michals." Os fotógrafos devem se situar no mesmo
plano que os pintores para abordar a questão da realidade;
é uma das condições
81
FOtoSautomáticas, paparazzo, tabloide, pastiche, arte bruta, antifoto, para começar. Eu não
desfocado, não enquadramento,
esse procedimento
tudo. Granulado,
deformação, acidentes. Batia fotos ao acaso [...l. fazendo
render o máximo. Mergulhava de cabeça em tudo o que não se devia
fazer em fotografia [. .] Tinha a impressão de que os pintores tinham-se libertado das regras:
por que não os rotógraíos?"
Encontramos na aventura deliberada de Klein o trajeto de Pataut com as crianças do hospital-dia: não há nenhum limite, nenhum superego técnico nem estético domina; a experimentação
é total, e as fotos são notáveis; só existe um
modelo: a liberdade total dos pintores. O artista estuda todas as possibilidades
da possibilidade de que eles façam arte. "Eu não 'vi' o que fotografei, eu 'fiz"',
afirma esse fotógrafo. ''A fotografia é um ato poético, no sentido em que poiein
da fotografia, voltando incessantemente
a seu trabalho, retomando o que lhe
parece não canônico, "perseguindo os negativos disperses"." Foi porque ousou
quer dizer 'fabricar'
antes de tudo mentais: seus limites são os de meu espírito. "41 O fotógrafo não
tira fotos, ele as faz, evidentemente
a partir dos fenômenos visíveis _ sem com
trabalhar o que alguns teriam deixado nas latas de lixo da história e porque se
apropriou disso para construir um conjunto coerente, assinado e significativo
que ele pôde produzir uma obra original e rica, que é a sua, e dessa maneira
isso procurar ter deles uma restituição realista -, mas sobretudo a partir das
imagens psíquicas que ele inventa em si mesmo. Encontramos aqui, ao mesmo
pôde renovar a estética da fotografia. Foi confrontando-se
com o temporário
sem arte que ele entrou na arte: fotos automáticas, arte bruta e antifoto torna-
tempo, as afirmações
ram sua fotografia possível e poderosa.
em grego. Tenho horror do pitoresco;
de Marc Pataur" e a concepção
portante para Paul Valéry e René Passeron.?
centro da fotografia, seu responsável.
minhas
imagens
são
poiética da arte que é im-
o sujeito criador volta a se tornar o
"Eu ia em direção oposta [a Cartier-Bresson], deixando de lado o mito da
objetivida.de",44 escreve William Klein para explicar seu procedimento. Também
rejeita o instante
decisivo,
que ele substitui
são decisivos";" afirma corretamente
esse criador. A liberdade
infinita. Ele experimenta tudo o que é tecnicamente
possível:
-
de negativos,
um homo faba. Não se tira uma foto, ela é feita.
do poiein é então
Dessa forma, a fotografia
dos seres humanos
não deve fazer crer que ela
pode fotografar o ser a fotografar: ela sempre o perde, fotografando apenas uma
aparência visual que depende do ponto de vista de um sujeito e de uma aparelhagem
técnica.
"Nós vemos, mas não sabemos
nada", escreve Lemagny."
É
sei, o que o
e talvez, as-
sim, nos abrir para um outro saber. Saber do objeto? Talvez, mas não se trata so-
Ibidem.
39
J-M. Schaeffer, L'image précaire: Ou dispositif photographique,
40
Cf. Duane Michals & Michel Foucault, Ouane Michals: Photographies
Museu d'Art Moderne de Ia Ville de Paris, 1982), p. 111.
Cf. Zoom, no 40, Paris, outubro de 1976, o, 25.
Ver capítulo 5.
41
é um perseguidor
justamente esse ver sem saber, que substitui o saber de eu vejo/eu
artista explora para nos fazer ver outra coisa de maneira diferente
38
42
O fotógrafo não é um caçador de imagens,
pelo sujeito que decide: cabe ao
artista e não ao tempo decretar o que será uma foto e decidir sobre isso, sendo
o fotógrafo, nesse caso, apenas um caçador de imagens. "Todos os momentos
bretudo de um mistério?
Coleção Poétique (Paris: Seuil, 1987).
de1958 à 1982 (Paris: Paris Audiovisual/
43
René Passeron, Pou: une philosophie de Ia création (Paris: Klincksieck, 1989), e Création et répétition, Coleção
Recherches POlétiques (Paris: Clancier-Guénaud, 1982).
44
Cf. William Klein, Coleção Les Grands Maitres de Ia Photographie, nO6 (Paris: Photo, 1983), p 60.
CI. Camera International, no 4, Paris, 1985, p 107.
45
em geral: "Isto foi encenado"
estava limitado por um formato fotográfico ou por tabus; experimentava
que acontece em mim, são minhas emoções", escreve ele." A realidade das
fotos não é a do mundo no qual se vive, apesar do hábito cultural _ do "isto
existiu" de Barthes à arché de Schaefferê? ''As pessoas acreditam na realidade das
fotografias,
ao objeto da fotografia
problemas
Em resumo,
a fotografia nos persegue
radicais: o que é o objeto a ser fotografado? O que é o real? Como se
Pode fazer uma obra a partir dessas não evidências?
--46
47
48
ainda com seus
Cf. Wil/iam Klein, cit.
Ibid., p. 59.
Texto de introdução de Cahiers de Ia Photographie, nO1, Paris, 1981, p. 2.