tirar o país do volume morto - Revista Política Democrática

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tirar o país do volume morto - Revista Política Democrática
TIRAR O PAÍS
DO VOLUME MORTO
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Obra da capa: Coisas penduradas em varais, de Alano de Freitas.
Política Democrática – Revista de Política e Cultura –
Brasília/DF : Fundação Astrojildo Pereira, 2016.
ISSN 1518-7446 No 44
200p.
CDU 32.008 (05)
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Política Democrática
Revista de Política e Cultura
Fundação Astrojildo Pereira
TIRAR O PAÍS
DO VOLUME MORTO
Abril /2016
Sobre a capa
A
s pinturas e desenhos que ilustram e embelezam esta edição
da nossa Política Democrática são de autoria do conhecido
artista plástico cearense Alano de Freitas.
Nascido em Fortaleza, há 66 anos, ele já exibiu suas criativas e
emocionantes obras em um infindável número de mostras individuais e coletivas, não só na querida terra natal, que o admira e o
tem na maior conta, mas também em várias outras capitais como
São Paulo, Recife, Salvador e Teresina. Em Brasília, fez memorável
exposição no hall da Casa do Ceará, em 1975, a convite de Meire
Calmon que, à época, presidia esta conhecida instituição.
Fora do Brasil, expôs algumas de suas mais conhecidas telas,
em uma individual na cidade de Cremona, na Itália, e uma outra,
na galeria do Subte Municipal de Montevidéu, no Uruguai.
A qualidade dos seus trabalhos foi reconhecida, por meio de
oito prêmios de desenho e menção honrosa em pintura, por conta
de sua participação em mostras organizadas pelo Salão Pernambucano de Arte Contemporânea, pelo Salão de Abril, pela Universidade de Fortaleza (Unifor Plástica), pelo Salão Norman Rockwell do
Desenho e da Gravura, e pelo Salão Nacional de Artes Plásticas.
Sua contribuição artística à nossa publicação é motivo de
justo orgulho para quantos a editam.
Sumário
EDITORIAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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I. TEMA DE CAPA:
TIRAR O PAÍS DO VOLUME MORTO
Crimes de irresponsabilidade com a História
Cristovam Buarque. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
O bolchevismo tardio
Luiz Carlos Azedo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
Destruição criativa
Antonio Machado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
Especulações em torno do dia seguinte
Hamilton Garcia de Lima. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
II. OBSERVATÓRIO
A fraqueza de um homem só
Gabriel Burnatelli de Antonio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
Brasil caminha na contramão do Continente
Nelson Rojas de Carvalho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
O Gramsci que “conhecemos” e o que ele inspirou
Alberto Aggio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
Eleição municipal e mudanças na Lei Eleitoral
Arlindo Fernandes de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
III. CONJUNTURA
Para além da conjuntura. E aquém da decadência?
Elimar Pinheiro do Nascimento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
O Brasil completa sua Revolução Burguesa. E para onde vai?
Ivan Alves Filho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
A incrível fábrica de mitos
Sérgio C. Buarque. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
IV. ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO
As perdas dos legados da estabilidade econômica
e da inclusão social
Laécio Noronha Xavier . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
Brasil fica mais distante da fronteira global da economia,
do conhecimento e da inovação
Ricardo Abramovay. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
Convulsão econômica, social e política no Brasil
José Osmar Monte Rocha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
V. QUESTÕES DO ESTADO E DA CIDADANIA
As violências contra as mulheres
Thiago Pierobom . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Segurança pública não é caso de polícia!
Rodrigo Cosenza / Valdir Ribeiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102
VI. EDUCAÇÃO
Políticas educacionais e educação científica no Brasil
e na França: considerações preliminares de um projeto
em parceria
Renata Cabrera / Faouzia Kalali . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
Biblioteca Pública Estadual da Paraíba, um retrato
Tiago Eloy Zaidan. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
VII. ENSAIO
Da revolução à democracia: uma transição incompleta
Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
VIII. AS CIDADES E A GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA
Os desafios da Governança Democrática municipal
George Gurgel de Oliveira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
Sobre “tudo que está aí”
Maria Alice Rezende Carvalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
A cidade traída
Cleia Schiavo Weyrauch . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148
IX. BATALHA DAS IDEIAS
Coxinhas e petralhas: para além de mais um falso dilema
da classe média brasileira
Mércio Gomes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
Implicações políticas da tese de doutoramento
de Karl Marx
Gastão Rúbio de Sá Weyne. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162
O combate às desigualdades sociais no capitalismo:
segundo Marx e Piketty
Fernando Alcoforado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168
X. MUNDO
Espectros do terror
José Antonio Segatto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175
O impeachment, a autonomia e o mundo
José Flávio Sombra Saraiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186
Políticas afirmativas e Forças Armadas nos EUA
Sionei Ricardo Leão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188
XI. RESENHA
Compreender bem a democracia e a República
Nicolau da Rocha Cavalcanti . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195
A história de três mulheres valentes
Elio Gaspari. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 198
Editorial
E
sta edição, prezado leitor, chega às suas mãos, após a aprovação pela Câmara dos Deputados do pedido de impeachment da presidente da República, formulado pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaína Paschoal. Admitido
por mais de 70% dos deputados, o delicado pedido entra em fase
de julgamento no Senado. A obediência ao rito estabelecido pelo
Supremo Tribunal Federal, no final de 2015, é a garantia decisiva
da constitucionalidade. Por amargo que seja, o remédio extremo
do impedimento da chefe do Executivo foi entregue pelos constituintes de 1987/88 à cidadania para enfrentar os males advindos
do mau exercício do poder por parte dos governantes.
Em relação ao outro impedimento, o de 1992, o de agora carrega
carga de dramaticidade maior. Collor de Mello, um intruso, tinha
atrás de si um partido de ocasião, o Partido de Reconstrução Nacional, e uma invulgar inabilidade para tratar com o Parlamento. Esta
invulgar inabilidade também caracteriza a presidente Dilma Rousseff, cuja proverbial arrogância a fez afastar-se irremediavelmente
da “classe política”. Mas, bem ou mal, ela tem atrás de si um partido
de esquerda (populista), com implantação na “sociedade organizada” e, portanto, com capacidade de mobilizar e de propor, com
ajuda de seus intelectuais, a narrativa consolatória de um “golpe
das elites” contra o “governo nacional e popular”. Na verdade, tratase de manter-se no poder, a qualquer preço.
Curioso a considerar é que, ao contrário do que tenta fazer a
enganosa propaganda do petismo, 367 representantes do povo –
eleitos no mesmo pleito de outubro de 2014 junto com a presidente
e o seu vice – contra apenas 137 a favor, 7 abstenções e duas ausências, manifestaram-se favoravelmente pela saída de Dilma e de seu
partido do Palácio do Planalto, por terem simultaneamente
“quebrado o país” e “mascarado” a situação econômica para garantir a reeleição.
Pouco importa que a narrativa do golpe mal se sustente, haja
vista não só os fatos capitulados na denúncia aceita pela Câmara
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dos Deputados – as “pedaladas fiscais” e a abertura de créditos
sem a anuência do Legislativo em 2015 –, mas também o conjunto
da obra do ciclo petista de poder. Estão diante de nós, como moldura
indispensável para os argumentos jurídicos, a catástrofe econômica e a crise social que afetam brutalmente milhões de famílias
com o desemprego, a inflação e o quadro depressivo. Não há quem
não tenha parente, amigo ou pessoa próxima vítima destes flagelos, e só isso basta para tirar legitimidade de qualquer pretensão de
continuidade do lulopetismo.
Se tal continuidade é difícil, a missão imediata vai além de
sustentar e viabilizar o novo governo do PMDB e demais forças da
oposição democrática que vai tomando forma. Em outros termos,
ainda mais importante é a necessidade de acumular recursos intelectuais e argumentativos para corroer a falsa descrição lulopetista
sobre os acontecimentos. A obstinação patológica de Dilma na
defesa de seu mandato não lhe dá ou dará força para governar,
mas fornecerá elementos para vitaminar o discurso vitimista com
o qual buscará recobrir o malogro.
Dilma, contudo, é pouca coisa, politicamente falando. Irrelevante no começo do processo, à irrelevância retornará em seu final.
Como dissemos, há um partido de esquerda (populista) forte, na
circunstância brasileira, tal como durante todo este ciclo houve, e
ainda há, um sujeito nem tão oculto assim: o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, a quem alguns gostariam, não se sabe por que
diabos, de coroar como uma espécie de imperador informal do
Brasil. Pois é este partido e este capo carismático que ora nos
ameaçam com o radicalismo de uma oposição social, que, se é
péssima para governar, é, no entanto, bem capaz de perturbar
enormemente as tentativas de conter e superar o caos em torno de
nós, contribuindo bem menos para defender os mais desfavorecidos do que para agravar seu indiscutível sofrimento social.
Por tudo isso, urge a constituição de um governo de salvação e
unidade, com capacidade técnica, audácia política e apoio congressual. Estabilizar a crise política e preparar o caminho da retomada
do crescimento são suas tarefas urgentes. E erguer bem alto os
valores constitucionais, com o pleno respeito aos ritos e à substância da vida democrática, é sua tarefa permanente, assim como de
toda a cidadania. Só ficam de fora os que de caso pensado se deixarem aprisionar pelo fanatismo ideológico.
Acreditamos, firmemente, que a democracia haverá de domá-los.
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I. Tema de Capa:
Tirar o país
do volume morto
Autores
Antônio Machado
Jornalista. Comentarista econômico e político.
Cristovam Buarque
Engenheiro, doutor em Economia, foi reitor da Universidade de Brasília, governador
do Distrito Federal, ministro da Educação, atualmente é senador da República
(PPS-DF).
Hamilton Garcia de Lima
Cientista político e professor do Lesce (Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e
do Estado)/Universidade Estadual de Nova Friburgo/RJ.
Luiz Carlos Azedo
Jornalista. Colunista do Correio Braziliense.
Crimes de irresponsabilidade
com a História
Cristovam Buarque
H
á um debate acirrado no Brasil de hoje sobre os crimes
de responsabilidade que teriam sido cometidos pela
presidente da República, Dilma Rousseff. Mas não se
vê um debate sobre os crimes cometidos pela presidente e seu
governo contra o futuro do Brasil: crimes de irresponsabilidade
com a História.
O quadro social, econômico e político do país e suas consequências no futuro mostram que decisões e omissões governamentais comprometeram o futuro do Brasil, como se verdadeiros
crimes históricos tivessem sido cometidos.
Desajustes estruturais na economia
Ao longo dos anos, desde 2011, especialmente em 2014, o
governo Dilma, apesar de muitos alertas, cometeu crimes históricos que comprometem não apenas o dia a dia da sociedade, mas
o próprio futuro da economia brasileira, por décadas. Um texto de
2011, publicado pelo Senado Federal, com o título de “A economia
está bem, mas não vai bem”, lista problemas que visivelmente
ameaçavam a economia brasileira por causa da leviandade ou
eleitoralismo oportunista e míope do governo: endividamento das
famílias, dívida pública; aumento e composição dos gastos públicos; dívida das empresas em moeda nacional e moeda estrangeira; deficiências em infraestrutura; fragilidade de nosso quadro
institucional (incluindo os temas burocracia, corrupção e corpo11
rativismo); vulnerabilidade no comércio exterior; tamanho e ineficiência da nossa carga fiscal; má qualidade da educação básica;
incapacidade de inovação e falta de investimento em ciência e
tecnologia; baixo nível da poupança pública e privada; persistência da desigualdade e da pobreza; elevado nível de violência;
descuido e depredação do meio ambiente; amarras constitucionais e euforia ilusória com o quadro econômico, que impedia de
enxergar os importantes riscos no médio prazo.
Endividamento
Por causa do aumento dos gastos, a dívida pública cresceu nos
últimos anos, passando de R$ 2 trilhões (53,4% do PIB), em 2010,
para quase R$ 4 trilhões (66,2% do PIB), em 2015. Esta situação
ameaça o futuro do Brasil. Cada brasileiro nasce hoje devendo R$
20 mil, por causa da dívida pública contraída por seus governos,
especialmente o atual. O futuro está amarrado a esta dívida,
comprometendo uma percentagem do PIB ao longo de décadas.
Por isso, o futuro de cada brasileiro está comprometido com o
pagamento da dívida; porque deverá deixar de usar estes recursos
como investimento para pagar a conta dos juros.
O governo Dilma/Lula não cometeu apenas o crime de superendividamento público. Políticas sistematicamente utilizadas
de incentivo ao consumo levaram a um endividamento crescente
das famílias.
No ano de 2010, as famílias brasileiras estavam endividadas
em 35% da renda familiar; em 2015, este endividamento era de
44,3% da renda familiar total. Mesmo que, no momento em que foi
contraído, o empréstimo significasse uma elevação no consumo,
esta situação compromete o bem-estar das famílias no presente e
ao longo dos anos. As consequências já estão visíveis: famílias
obrigadas a reduzir gastos com saúde, alimentação, educação; e a
vender patrimônio a preços deprimidos.
Da mesma forma que o endividamento público compromete as
próximas décadas da história do país, o endividamento familiar
compromete o futuro das pessoas por longos anos de suas vidas.
Baixa taxa de poupança
Paralelamente ao comprometimento do futuro, em função do
endividamento, as políticas de incentivo ao consumo comprometeram o futuro do país devido ao baixo índice de poupança que
leva a um baixo índice de investimento. Embora a baixa poupança
12
Cristovam Buarque
da economia brasileira tenha razões históricas, inclusive culturais, pela preferência brasileira com o imediato e o consumo, as
decisões governamentais não buscaram reverter esta preferência
comprometedora do futuro, e até acirraram a tendência negativa.
Corrupção e aparelhamento do Estado
Em 2010, a Petrobras era a mais importante empresa brasileira: o valor de suas ações estava em cerca de U$ 200 bilhões;
seu papel estratégico era reconhecido e o prestígio que gozava no
imaginário da população dava orgulho aos brasileiros como uma
das grandes conquistas de nossa história. Além da esperança que
representava, a Petrobras era o vetor de exploração do Pré-sal.
Representava também a vitória de nossa população, na luta pelo
“Petróleo é Nosso”. Para um país que não faz guerras, a Petrobras
era como a conquista de um território estrangeiro.
A Petrobras ruiu, perdeu seu valor que caiu para menos de
U$30 bilhões; perdeu sua capacidade estratégica e sua possibilidade de explorar a riqueza do Pré-sal. De orgulho nacional passou
a vergonha que vai perdurar por décadas.
Tudo isto ocorreu devido ao crime histórico do irresponsável
aparelhamento da Petrobras e seu uso por uma quadrilha que se
apropriou de seus recursos, depredou sua saúde financeira em
benefício de enriquecimento pessoal e proveito eleitoral.
Este crime compromete de forma grave o futuro do país.
A corrupção é a mais visível face dos crimes do governo Dilma
contra o futuro do Brasil, mas não mostra toda dimensão do crime
que o petrolão representa para o futuro; desorganizando a
máquina do Estado.
A degradação dos Fundos de Pensão é um grave exemplo do
crime histórico: centenas de milhares de brasileiros serão sacrificados por causa da administração irresponsável do patrimônio público
dos fundos, aparelhados pelos partidos no governo com pessoas
despreparadas, ocupando cargos apenas para atender interesses
partidários ou mesmo escusos. O resultado é a quebra dos fundos e
a cobrança de contribuições adicionais aos segurados para cobrir os
déficits criados por incompetência e irresponsabilidade.
Descrença com a política
O descrédito consequente da corrupção trouxe um outro crime
contra o futuro do Brasil: a descrença da população em relação à
Crimes de irresponsabilidade com a História
13
política, aos políticos e às instituições democráticas. Por seus atos,
o governo Lula/Dilma conseguiu provocar descrença absoluta na
credibilidade dos dirigentes nacionais. Esta descrença é ampliada
pelo fato de que o Partido dos Trabalhadores oferecia a alternativa de
honestidade e da pureza política. Era a esperança. Sua degradação
provoca uma descrença com as mesmas proporções da esperança
que ele representava. A população não aceita o desmoralizante argumento usado pelo PT, de que a corrupção é inerente à política: todos
são iguais. Porque o PT se elegeu prometendo ser diferente.
O governo provoca um crime histórico ao cooptar e alienar,
desconscientizar os movimentos sociais. A polarização surgida
nos últimos meses entre impeachment e não impeachment mostra
uma discussão política, mas com retrocesso na consciência política: é um intenso debate, mas pobre politicamente.
Serão necessárias décadas para retomar uma militância estudantil progressista, independente, livre de financiamentos por recursos públicos, consciente e motivada pelos propósitos nacionais.
A perda de credibilidade nas políticas é um crime histórico
que pode condenar o Brasil por anos e décadas. Não menor é o
crime da perda de credibilidade do Brasil no exterior. No século
da globalização, a perda de credibilidade entre os investidores
internacionais, como o Brasil enfrenta hoje, carrega o elevado
risco de barrar a vinda de investimentos produtivos, atraindo
apenas capital especulativo de curto prazo, graças a elevadas
taxas de juros; afasta o país do circuito financeiro internacional
e exige anos, décadas, para recuperar sua credibilidade. Os
escândalos de corrupção e as irresponsabilidades na política
econômica estão tendo impacto equivalente às declarações de
moratória feitas no passado: suspende-se o pagamento imediatamente da dívida, mas fica-se anos fora do mercado financeiro.
O crime de irresponsabilidade histórica condena o país a décadas ou mesmo todo um século perdido, este é um crime que o governo
Lula/Dilma, especialmente o último, cometeu contra o Brasil.
Os crimes de irresponsabilidade que permitem cassar o
mandato da presidente provocam crises de curto prazo na economia do país. Os crimes históricos, embora menos perceptíveis, são
nocivos para o futuro do país, provocam decadência civilizatória.
Desprezo ao diálogo e à justiça
Isto se agrava com o insuflamento à violência por estas entidades, sob o olhar cúmplice do governo. Este comportamento tem a
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Cristovam Buarque
ver com o crime de constante desprezo da presidente ao diálogo e
à coalizão.
Ao passar a ideia de que nomeou o ex-presidente Lula com o
propósito de protegê-lo da justiça, o governo Dilma cometeu um
crime histórico, porque abriu a probabilidade de uso do poder do
Executivo como forma de obstruir a justiça.
Ainda mais grave é o fato de fazer uma reforma ministerial
com a nítida tarefa de salvar o mandato, e não de fazer o governo
funcionar a serviço da população. No momento em que o país
atravessa uma gravíssima crise na saúde, o governo comete um
crime histórico ao acenar que pode negociar o cargo de Ministro
da Saúde conforme o número de deputados que o novo ministro e
seu partido possam atrair para barrar seu impeachment e não
para barrar a praga do mosquito Aedes Aegypti, o vírus Zika, a
gripe H1Nl ou resolver o caos na saúde.
O mesmo vale para outros ministérios. Escolher ministros por
negociata política sem preocupação com o desempenho deles, o
que vem caracterizando o governo Dilma há anos, é um crime não
apenas pelas consequências negativas ao bom funcionamento do
governo, como também pelo descrédito que este estilo provoca no
grau de confiança da população em seus dirigentes.
Promiscuidade antirrepublicana
Ao misturar Estado, governo e partido, o PT aprisionou a nação,
dificultou a visão republicana. Isto foi um crime de irresponsabilidade histórica visível agora na disputa relacionada ao impeachment.
Os interesses da República exigem mudança do governo incompetente e sitiado pela corrupção, dentro das normas constitucionais.
Negação das propostas e compromissos
Ao longo dos meses, o governo Dilma foi pródigo de crimes
históricos por promessas não cumpridas. O próprio lema de
“Pátria Educadora”, a criação e o abandono de programas como o
Pronatec, Ciência sem Fronteiras, Fies, Prouni geram duplo crime
histórico: pela falta de educação, ciência, tecnologia e inovação
que o Brasil precisa para construir o futuro, e pela descrença nas
promessas de campanha. Estes fatos comprometem o futuro por
décadas ou todo o século adiante.
Crimes de irresponsabilidade com a História
15
O bolchevismo tardio
Luiz Carlos Azedo
N
ão é normal, por mais grave que seja uma crise política,
o presidente da República repetir a todo instante que não
vai renunciar ao mandato, como disse Dilma Rousseff no
meeting organizado por seus partidários do mundo jurídico no
Palácio do Planalto, no dia 22 de março. Transmitido ao vivo e
em cores pela tevê estatal NBR, a solenidade foi um encontro do
tipo “nós com nós” para injetar ânimo nos militantes petistas e
construir a narrativa de que há um golpe de Estado em marcha
no país. Esses comícios vêm se repetindo, cada semana, na sede
da Presidência da República.
O advogado-geral da União, ministro José Eduardo Cardozo,
deu caráter oficial à agitação política ao invocar a frase famosa da
lendária líder comunista Dolores Ibarruri na defesa de Madrid,
durante a Guerra Civil Espanhola: “Não passarão!” O que tem a
ver a crise tríplice que estamos vivendo no Brasil – ética, política
e econômica – com os acontecimentos da Espanha que antecederam a II Guerra Mundial? Absolutamente nada, exceto a retórica
esquerdista adotada por Dilma e seu ministro para jogar areia
nos olhos da opinião pública.
Dilma lançou uma campanha “pela legalidade”, para barrar
suposta conspiração golpista liderada pelos partidos de oposição,
quando se sabe que as gigantescas manifestações contra o governo
passaram ao largo dos partidos. Investiu outra vez contra o juiz
Sérgio Moro, de Curitiba, uma autoridade constituída, que acusa
de colocar em risco a segurança nacional. E disse que o processo
de impeachment em curso na Câmara é um golpe de Estado,
embora siga rigorosamente o rito determinado pelo Supremo
Tribunal Federal (STF) para garantir sua constitucionalidade.
Foi-se a época em que o presidente da República era o primeiro
a dizer que decisão da Justiça não se discute. O Diário Oficial da
União circulou, na edição de 22 de março, com o nome do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no expediente como ministrochefe da Casa Civil, cargo ao qual foi impedido de tomar posse,
por decisão do ministro Gilmar Mendes, que só pode ser revogada
pelo plenário da Corte. Duas tentativas de reverter a decisão
16
foram negadas pelos ministros Luiz Fux e Rosa Weber. Toda essa
confusão já seria suficiente para uma autocrítica: cada dia fica
mais evidente que a nomeação de Lula para a Casa Civil foi um
erro crasso. Levou a Operação Lava-Jato para a antessala de
Dilma Rousseff.
Aliás, o que não falta na trajetória de Dilma são erros crassos,
na economia e na política. Mas parece que a presidente da República se considera infalível. Quando algo dá errado, a culpa é dos
outros. Se não aprende com os próprios erros, menos ainda com
os que foram cometidos coletivamente pela esquerda ao longo da
história. No ato de ontem, Dilma fez referência à “campanha da
legalidade”, liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul,
Leonel Brizola, para garantir a posse de Jango, após a renúncia
de Jânio Quadros, em agosto de 1961. A mobilização resultou
num grande acordo político: a adoção do parlamentarismo.
O gabinete liderado por Tancredo Neves, porém, não durou
muito. O nome de San Thiago Dantas nem sequer foi aprovado
pelo Congresso. Ambos foram acusados de conciliação com o
imperialismo. A esquerda nunca engoliu o acordo e fez campanha
pela volta do presidencialismo, que acabou aprovado num plebiscito, em 1963. Na equivocada avaliação da esquerda, estava na
hora de aprovar as reformas de base, na “lei ou na marra”. Não
havia, porém, correlação de forças para isso. A classe média se
mobilizou contra o governo, os conservadores açularam os militares e os Estados Unidos, em plena guerra fria, apoiaram a destituição de João Goulart.
Os petistas evocam os fantasmas do golpe de 31 de março de
1964 para construir a sua narrativa. Essa comparação não faz o
menor sentido. A começar pela situação internacional, que mudou
da água para o vinho, haja vista a visita de Barack Obama a Cuba,
encerrada com um discurso do presidente dos Estados Unidos no
Gran Teatro de Havana, que foi transmitido ao vivo pela tevê oficial
para todos os cubanos. Cadê a conspiração imperialista?
Do ponto de vista interno, também não se pode falar em golpe
de Estado. Os militares não se meteram na confusão. O poder
moderador é o Supremo Tribunal Federal (STF), como manda a
Constituição, inclusive em relação às decisões do juiz Sergio Moro
que foi enquadrado pelo ministro Teori Zavascki, relator da Operação Lava-Jato no STF, ao requisitar para si o caso de Lula e exigir
explicações sobre a divulgação das interceptações telefônicas.
O bolchevismo tardio
17
Ademais, o governo estava mancomunado com os grandes
grupos econômicos nos mandatos de Lula e Dilma. E jamais a
esquerda defendeu a concentração de capital e a formação de
monopólios como o PT no poder, com sua política de “campeões
nacionais”. No caso das empreiteiras, o pacto era tão perverso que
resultou no escândalo da Petrobras e suas ramificações, como as
reveladas pela contabilidade da propina distribuída pela Odebrecht,
que anunciou que seus executivos vão colaborar com as investigações da Operação Lava-Jato, inclusive Marcelo Odebrecht.
A origem
A matriz ideológica da esquerda brasileira é uma mistura de
anarquismo, marxismo e positivismo. Leandro Konder, no livro A
derrota da dialética, explica que a chegada das ideias de Marx ao
Brasil se deu logo após a Comuna de Paris de 1871. Contra elas
reagiram as elites políticas escravocratas do Império, mas muitos
estudantes receberam essas ideias com entusiasmo. Os principais intelectuais do país, porém, não se empolgaram com elas.
Tobias Barreto considerava Marx um reformista ingênuo. Clóvis
Bevilacqua via a desigualdade como o resultado do progresso. O
grande ideólogo da proclamação da República seria Benjamin
Constant, líder positivista ortodoxo, que lecionava na Escola Militar da Praia Vermelha. Somente em 1900, 11 anos depois, o professor italiano Antônio Piccariolo (1868-1957) criou o centro socialista
paulistano. Era formado por anarco-sindicalistas, sindicalistas-revolucionários, reformistas e socialdemocratas.
Como hoje, o socialismo era algo distante da realidade brasileira. Após a Revolução Russa de 1917, no rastro da I Guerra
Mundial, as ideias socialistas voltaram a ter eco no Brasil, sob
forte influência do Partido Bolchevique, liderado por Vladimir
Lênin. Pouco depois, em 1922, sindicalistas de origem anarquista,
liderados pelo jornalista Astrojildo Pereira (RJ) e o contador Cristiano Cordeiro (PE), fundaram o Partido Comunista do Brasil
(PCB). Alguns anos depois, Astrojildo converteu ao comunismo o
líder tenentista Luiz Carlos Prestes.
A adesão de Prestes completou a simbiose entre as ideias anarquistas, marxistas e positivistas, que depois influenciou o comportamento de toda a esquerda brasileira. Houve uma espécie de
fusão da visão bolchevique, cuja política considerava a luta de
classes como parte de uma guerra civil mundial, com o golpismo
18
Luiz Carlos Azedo
dos militares brasileiros de formação positivista. Seu ponto alto
foi a tentativa dos comunistas de tomada do poder pelas armas
em 1935. Como os militares tutelaram a República de 1889 a
1985 – com destaque para a Revolução de 1930 e o golpe militar
de 1964 –, a concepção de “revolução social pelo alto” adotada por
comunistas e militares nacionalistas era a outra face da moeda de
uma concepção de modernização do país por uma “via prussiana”.
Durante 100 anos da história republicana, o golpismo provocou
graves crises políticas.
O melhor cenário para examinar essa questão é a crise do
governo João Goulart (PTB), em 1964, depois de uma sucessão de
tentativas de golpe de Estado por parte da direita militar e dos setores conservadores. O programa de reformas do governo defendia a
nacionalização das empresas estrangeiras e a reforma agrária, mas
não reunia apoio efetivo no Congresso. A esquerda, porém, queria
que Jango fizesse as reformas “na lei ou na marra”. Além disso,
havia o problema da sucessão de Jango, na qual os candidatos mais
fortes eram o ex-presidente Juscelino Kubitscheck (PSD) e o então
governador da antiga Guanabara, Carlos Lacerda (UDN).
A esquerda nacionalista atacava a “política de conciliação” de
Jango e defendia a candidatura do ex-governador gaúcho Leonel
Brizola (PTB). O líder comunista Luiz Carlos Prestes, porém, já
articulava a reeleição de Jango. Pela Constituição, nenhum dos
dois poderia ser candidato. Como o mundo vivia o auge da guerra
fria, a radicalização política no Brasil era quase inexorável, com
os Estados Unidos incentivando a tomada de poder pelos militares. Foi nesse contexto que houve o golpe de 1964.
A destituição de Jango provocou um racha na esquerda,
porque não houve resistência armada ao golpe, por decisão de
Jango e de Prestes. Liderada por Carlos Marighella, parcela
expressiva resolveu partir para a luta armada, com apoio de Cuba
e da China. Prestes e o PCB, com apoio da antiga União Soviética,
defendiam uma frente ampla contra o regime militar e a luta pela
redemocratização do país por meios pacíficos.
De modo geral, o “bolchevismo” adotava três ideias-força: a
implantação do socialismo a partir do Estado, a inevitabilidade
da “guerra civil” para a manutenção do poder e a necessidade de
neutralizar a reação das potências imperialistas. Essa visão
pautou o comportamento da esquerda no Brasil, principalmente
dos setores que optaram pela luta armada contra o regime militar, alguns dos quais nunca fizeram autocrítica do seu fracasso.
O bolchevismo tardio
19
A presidente Dilma Rousseff e o presidente do PT, Rui Falcão,
são remanescentes da guerrilha urbana. A ideia de renúncia ao
poder não passa por suas cabeças. Diante da crise econômica,
política e ética, a postura da esquerda governista cada vez mais
reflete uma espécie de “bolchevismo tardio”. Aposta no Estado
para controlar o país, sua economia e a sociedade. Usa de todos
os meios para se manter no governo e considera um retrocesso a
alternância de poder. Adota a retórica nacionalista para tratar os
adversários como inimigos do povo e traidores da pátria. Vê o
crescimento da oposição como suposta conspiração golpista articulada pelos Estados Unidos. Viola as regras do Estado democrático de Direito, ao mesmo tempo que pretende usufruir de suas
prerrogativas e garantias.
A cortina da crise
Num antológico ensaio sobre o romance, o escritor tcheco
Milan Kundera enaltece a importância da obra de Cervantes para
toda a literatura contemporânea: “Uma cortina mágica, tecida de
lendas, estava suspensa diante do mundo. Cervantes mandou
Dom Quixote viajar e rasgou essa cortina. O mundo se abriu
diante do cavaleiro errante em toda nudez cômica de sua prosa”.
É a invenção do romance, a “marca de identidade” de uma arte.
A Operação Lava-Jato se desenrola como um grande romance,
pois rasga a cortina de um mundo político maquiado, mascarado
e pré-interpretado. Entretanto, nada pode contra a cegueira maniqueísta, causada por um conjunto de ideias que se tornaram
anacrônicas após a queda do Muro de Berlim, a dissolução da
União Soviética e o fim da guerra fria. Postas em prática, essas
ideias levam a economia à bancarrota e bloqueiam a renovação
política, além de resultar numa crise ética sem precedentes.
A cortina da política brasileira pode ser bem traduzida pelas
palavras do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís
Roberto Barroso, numa conversa informal com estudantes de
pós-graduação em economia, gravadas sem que ele soubesse pelo
sistema de tevê da Corte: “Quando, anteontem, o jornal exibia que
o PMDB desembarcou do governo e mostrava as pessoas que
erguiam as mãos, eu olhei e pensei, meu Deus do céu, essa é a
nossa alternativa de poder! Eu não vou fulanizar, mas quem viu
a foto sabe do que estou falando”.
20
Luiz Carlos Azedo
“O problema da política neste momento, eu diria, é a falta de
alternativa. Não tem para onde correr. Isso é um desastre. Numa
sociedade democrática, a política é um gênero de primeira necessidade. A política morreu. Talvez eu tenha exagerado, mas ela
está gravemente enferma. É preciso mudar”, disparou o ministro.
Como rasgar esta cortina? Essa é a questão que está posta.
Gostem ou não os políticos, para a sociedade, quem está rasgando
a cortina é a Operação Lava-Jato.
Na raiz do impasse nacional, há duas concepções que tecem
a crise tríplice: de um lado, a ideia de que o Estado é o tutor e
provedor da sociedade; de outro, a de que os fins justificam os
meios, ainda mais se os objetivos são, digamos, (pseudo)revolucionários. O fracasso do governo Dilma pode ser atribuído a
esses dois aspectos, basta fazer uma retrospectiva dos erros
cometidos na condução da economia e agora mesmo, no fragor
da batalha, das ações em curso para reorganizar a base do
governo contra o impeachment.
A presidente mobiliza correligionários e aliados, montou um
palanque no Palácio do Planalto para atacar a Operação LavaJato e defender seu mandato. Recorre ao passado e compara a
situação atual às crises que levaram o presidente Getúlio Vargas
ao suicídio, em 1954, e os militares ao golpe de Estado que destituiu João Goulart, em 1964. Mascara, porém, a realidade e tenta
fechar a cortina de seu mundo maquiado e pré-interpretado. Será
mesmo essa a alternativa que nos resta?
Fala-se muito em defesa do Estado democrático e das garantias e direitos individuais, embora os militares (protagonistas das
rupturas de 1889, 1930 e 1964) estejam quietos no seu canto.
A economia está se desmanchando. A democracia brasileira foi
bloqueada. Um pacto perverso garroteou suas instituições. Quem
pode impedir que a cortina seja remendada pelo Executivo?
O Congresso Nacional, se também purgar seus pecados e cortar
na própria carne; ou o Supremo Tribunal Federal, se levar adiante
a Operação Lava-Jato e iluminar o palco da renovação política.
O bolchevismo tardio
21
Destruição criativa
Antonio Machado
A
s multidões de decepcionados com a condução do país pelo
PT e aos petistas ressentidos com a ação conjunta do Judiciário e da polícia sobre o partido e seus líderes, em especial o ex-presidente Lula, é lícito esperar que o progresso do Brasil
seja o denominador comum.
Talvez seja mais fácil um diálogo civilizado quando as partes
veem pontos de encontro entre seus anseios, juízos e reclamações. Embora soe como platitude dizer que ninguém é contra o
Brasil, às vezes se faz necessário buscar convergências para
enfrentar o mal-estar.
O brasileiro está abespinhado e apreensivo com “tudo isso que
está ai”, como demonstram as enquetes de opinião e os índices
econômicos e sociais certificam. Esse sentimento da sociedade é
insofismável e é a partir dele que o governo de Dilma Rousseff e o
PT, que se veem injuriados com a perda de popularidade e o
colapso da confiança em suas ações, devem refletir sobre o que se
passa e o que fazer.
Não os aproximam da sociedade que, em peso, repudia o
governo, como estampam as pesquisas, ignorar as responsabilidades pela recessão, pela inflação renitente e pela volta do desemprego – que de FHC não são mais, após 13 anos e três meses de
seu mandato –, nem resultam do noticiário negativo, baseado em
fatos oficiais, não em ficção.
Também ajuda à dinâmica de grupo sobre a situação deprê do
país, e não só da economia, apartar a baciada de maus resultados
do governo Dilma dos dissabores de Lula. Ambos são do PT, sob
investigação dos dois elos da Operação Lava-Jato: de Curitiba,
agrupado em torno do juiz Sérgio Moro, e do Supremo Tribunal
Federal, reunido ao redor do ministro Teori Zavascki, relator do
caso, com o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, na
condição de promotor das denúncias.
A afiliação comum os une, mas Dilma, por ora, desceu ao
inferno só pela sua inépcia e ruína da economia. Lula encara
outros demônios, que também assombram os palácios, mas leva22
dos pela sua pressão para safar-se do sufoco. Como? Sem brilho
próprio, ela cedeu, ao afastar Aloizio Mercadante, da Casa Civil, e
José Eduardo Cardozo, da pasta da Justiça, deslocando-os para
outros postos. Enfim, chamou Lula para ocupar o ministério que
quiser. Na prática, está abdicando de sua autoridade, temendo o
impeachment e a derrocada total do governo.
Fato, versão e intenção
Certamente, ameaças e palavrões, tal como Lula reagiu à
condução coercitiva para depor aos procuradores e delegados
federais, não ajudam a aclarar as dúvidas da Justiça sobre sua
responsabilidade no esquema apurado pela Lava-Jato. O fato é
que ex-presidentes não têm foro privilegiado nem são inimputáveis. É duvidoso também que a tática de desqualificar o juiz Sérgio
Moro melhore a sua situação.
É legítimo que Lula se sinta ofendido e suspeite de armações
para inviabilizá-lo politicamente. No caso da denúncia mal ajambrada dos procuradores da Justiça de São Paulo contra ele, ficou
difícil não supor tal intenção à véspera dos protestos contra
Dilma e o PT.
Já o processo da Lava-Jato se ampara em delações que estão
gerando provas consistentes sobre o desvio sistemático de recursos públicos sob a forma, sobretudo, de contratos superfaturados,
com repasse de parte do butim a partidos e pessoas. Isso é fato,
não insinuação.
Até agora, salvo informações desconhecidas, não apareceu o
chamado “batom na cueca” contra Lula e Dilma, a prova indiscutível. A linha de atuação de Moro, Teori e o STF sugere que não
pretendem valer-se da teoria do “domínio do fato”, usada em várias
condenações no caso do mensalão. Significa que o processo será
à base do tudo ou nada.
Exímio orador, Lula apelou ao confronto para inflamar sua
base de apoio. Arrisca-se a reunir não muito mais que militantes
de crachá, se a sua defesa não for convincente, caso venha a ser
acusado, aos brasileiros indignados com o vulto do ataque à
Petrobras, além de impor um sério abalo nas correntes de esquerda
do país. E ainda há a resolver a espantosa inaptidão de Dilma
para governar – tão ruim, que muitos torcem pela Lava-Jato achar
razões para impugná-la.
Destruição criativa
23
A situação chegou a um ponto de não retorno para o governo
– hoje sem base parlamentar –, e também para Lula, questionado
por setores do PT que só esperam a poeira assentar para contestar os líderes do partido. Discute-se uma frente de esquerda, nos
moldes do Podemos – partido criado em 2014, na Espanha, e
sensação nas últimas eleições, tal como o Cidadãos, de 2006, de
centro-direita progressista.
O caminho de rupturas da política tradicional tende a avançar
como sequela da razia da Lava-Jato entre os partidos no
Congresso. Senso comum é que novos líderes vão emergir até
2018, especialmente junto a grupos hoje sem atividade parlamentar. Tal movimento será mais ou menos arrebatador conforme a
eficácia da transição que se avista.
A recuperação da economia não será indolor, ao envolver cortes
de subsídios com dinheiro público e mudança de prioridades. Não
é nada muito diferente do plano de emergência proposto pelo lado
pensante do PMDB. Não precisa ter um viés extremo de austeridade, já que há economias a recuperar revisando políticas mal
desenhadas e com escasso controle social, como alerta o plano.
O ponto de partida é definir com precisão a população necessitada de ajuda, grosso modo balizada pelo programa do PMDB,
com sugestões de muita gente, como os 40% mais pobres da sociedade, 80 milhões de pessoas. Elas carecem de assistência e meios
para terem autonomia.
Essa linha de corte orienta a reforma fiscal necessária, sem
ter o aumento de impostos como eixo central (erro desde 1994),
seguida de um acordo de que só o investimento promove crescimento sustentado. Função, vale dizer, do bom equilíbrio entre
lucros e salários.
O Livro Sagrado
Algumas questões comezinhas têm escapado aos contendores
em torno do que já apresenta risco real de descambar em anarquia. A primeira questão é um dos pilares constitucionais: a soberania do Judiciário e do Legislativo, instituições às quais se
subordina o Executivo, e não o contrário, como sugerem os críticos da Operação Lava-Jato.
Presidente nenhum tem o poder delegado de fazer o que quiser,
como ilustra a elaboração do orçamento anual de receita e
24
Antonio Machado
despesa, cujos valores agregados e os de cada rubrica são propostos, não impostos, ao Congresso, que pode ou não aceitá-los. É a
única lei renovada a cada ano, e nem sua aprovação exime o
presidente de prestar contas bimestralmente do que fez com os
dinheiros à Câmara e ao Senado – e ao Tribunal de Contas da
União (TCU), órgão auxiliar do Congresso.
O mandato cominado pelo voto ao presidente, portanto, não é
pleno, seus poderes são regrados pela Constituição. Ela é que
consagra a independência e a harmonia entre as três instâncias
da República – o Executivo, o Congresso e o Judiciário, todos com
total autonomia financeira, observados os limites da Lei Orçamentária Anual (LOA).
Se algo referente ao mandato atribuído ao presidente configurar
um conflito de prerrogativas, recorre-se ao Supremo Tribunal Federal (STF), a instância encarregada de aclarar questões controversas
e zelar para que todos cumpram a Constituição. Os ministros do
STF são indicados pelo presidente da República ao Senado, que pode
ou não aprová-los. A partir daí, tais juízes são indemissíveis, embora,
tal qual o chefe do governo, sujeitos a processos de impeachment.
O que a Constituição determina, contudo, não é o que a sociedade intui, já que prevalece a falsa ideia de que o presidente pode
tudo – e, quando se atém democraticamente ao que lhe é permitido fazer, é visto como fraco e sem liderança. Não vamos tratar da
causa dessa crença, de resto comum na América Latina, mas é
certo que as partes no Brasil, a Presidência e o Congresso, alimentam esses equívocos.
O modo de operar do governo e do Parlamento está na raiz tanto
da corrupção sistêmica, que hoje atingiu níveis epidêmicos, quanto
da perigosa linha de defesa adotada pela presidente Dilma Rousseff,
ao atribuir intenção golpista aos processos contra o seu mandato.
Boca dura não funciona
Ao reunir advogados, militantes e simpatizantes do PT e do
PCdoB, no Palácio do Planalto, para o que teve a alegoria dos
comícios, de claque a palavras de ordem, Dilma cometeu diversas
impropriedades. A promoção de evento partidário na sede do
governo foi uma delas.
Mais sério, no entanto, foi, mais uma vez, ignorar os fundamentos do pedido de impeachment, ao afirmar não ter cometido
Destruição criativa
25
nenhum crime de responsabilidade, embora todo o rito orçamentário, assim como sua execução, incluindo as relações do Tesouro
Nacional com os bancos estatais, seja a pedra fundamental da
democracia representativa.
Não foi só. Depois de ouvir discursos contra o juiz da Lava-Jato,
o Ministério Público, a Polícia Federal, inclusive de um procurador
(noutra irregularidade), Dilma declarou que o ato era pelo Estado
democrático de Direito e encerrou dizendo que não vai ter golpe.
Não é com golpe que Dilma e Lula, investigado pela Lava-Jato
e, mesmo assim, nomeado chefe da Casa Civil (e ainda sem assumir o cargo), se o STF entender que tal ato não configura obstrução da Justiça, deveriam preocupar-se. Mas com as consequências do ambiente deletério em formação no país por questionarem
ações previstas na Constituição e com amplo direito de defesa.
Não se acende fósforo com material inflamável ao redor.
A verdade é que a eleição de presidentes sem maioria parlamentar (caso do PT e anexos, que nunca tiveram mais que 20%
dos deputados) e que governam agregando partidos amorfos,
atraídos por cargos que lhes facilitem desvios como os flagrados
na Petrobras, é a raiz mais profunda da corrupção que corroeu a
alma do Estado. Aliás, não é nada que o PT ignorasse, já que Lula
se elegeu em 2002 prometendo moralizar a política. É disso que
se trata – ainda. Onde há golpe?
Entre as tantas decepções, sobretudo a incapacidade de o
governo tirar a economia da recessão, e lá se vão 15 meses da
reeleição (e antes ainda, evitar no primeiro mandato o experimentalismo que nos legou essa ruína), provoca pesar assistir a professores acadêmicos investindo contra a Lava-Jato. Apesar de excessos, como a condução coercitiva de Lula, nada mitiga o alcance
dos crimes já apurados.
Ninguém nega a enorme corrupção da antiga diretoria da
Petrobras, por exemplo. Ela aconteceu. Está provada. A derrocada
da estatal é insofismável. Seu prejuízo em 2015, o segundo em
dois anos, atingiu chocantes R$ 34,8 bilhões. Contra a debacle da
economia, o ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, acatando a
vontade de Lula, quer reeditar o buraco de 2015, ao propor outro
déficit fiscal, equivalente a 1,55% do PIB. E não vai funcionar: a
economia não carece de demanda, mas de medidas para reerguer
o investimento produtivo sem a ajuda de muletas. No fim, pensando
bem, o golpe que Dilma tanto teme já houve: foi dado por ela
mesma na economia, e estamos pagando caro por isso.
26
Antonio Machado
Especulações em
torno do dia seguinte
Hamilton Garcia de Lima
A
lguns analistas da cena política têm aventado a hipótese
de que o dia seguinte à votação do impedimento de Dilma
Rousseff será de um grande alívio para a crise em curso:
se aprovado, os aloprados seriam postos de lado e um presidente
equilibrado assumiria o leme, com o PT alquebrado, levando a
uma reversão das más expectativas econômicas; de outro, se rejeitado, à oposição restaria apenas apostar no processo de cassação
da chapa “Com a força do povo”, no TSE, como se isso atenuasse
a pressão social contra o lulopetismo ou abrisse alguma janela
para a normalização econômica.
Na verdade, a hipótese mais provável é de um aumento da
tensão em curto e médio prazos: da tensão política, no caso do
impedimento; da tensão social e econômica, no caso do continuísmo. Explico melhor.
Aprovado o impedimento, o PT teria dois caminhos a seguir:
tentar se reconstruir em torno de lideranças mais sensatas e
responsáveis, ou enveredar pela política de resgate de seu legado
originário, que hoje teria mais ares de anacronismo do que de
radicalismo democrático-pluralista, como outrora.
A julgar pela trajetória do PT até aqui, a segunda via é a
mais provável, não só por se nutrir da nostalgia de um Lula com
ampla credibilidade, mas porque o PT já não é mais o mesmo e
a militância que hoje vai às ruas defender seus dirigentes encalacrados exala o cheiro de naftalina dos velhos métodos de
manipulação do stalinismo, com seus cacoetes fanático-inescrupulosos; exatamente o oposto daquilo outrora representado
pela miríade de grupos alternativos enfeixados no PT dos anos
1980, que empolgou a sociedade exatamente por combater o
autoritarismo, a mentira sistemática e o conformismo insosso
da política moderada.
Ademais, o tempo fez do PT um partido parlamentar pragmático e, dos movimentos sociais tradicionais, um mero apêndice de
partidos que há décadas os controlam, o que implica perda de
radicalidade original, cuja fonte era a proximidade verdadeira
com as bases sociais. A doença senil da esquerda envolveu a
27
doença infantil, que hoje serve apenas de chamariz para os neófitos, além de eterno combustível dos sectários, comprometendo a
promessa do elixir da utopia, que hoje estufa as velas do voluntarismo romântico das seitas anencéfalas que se fizeram sentir na
vazante das jornadas de junho de 2013.
A possibilidade de uma repentina tomada autocrítica de consciência dos petistas fica prejudicada também pelo modo como
seus setores não degenerados se comportaram diante da orgia
que tomou conta da legenda, preferindo sempre compactuar com
a cleptocracia dirigente ao invés de sustentar a divergência com
vistas ao inevitável desenlace, que agora se vislumbra. Deste
modo, não apenas se limitou o alcance e credibilidade das justas
críticas ao desvio de rota partidário, como se deixou aberta a
porta para a saída de quadros e seguidores que poderiam sustentar esta luta no plano interno das convenções.
Isto tudo pode significar o lento e seguro isolamento políticosocial do PT em longo prazo, e mesmo assim na dependência do
êxito dos governos que virão. Em curto e médio prazos, todavia, a
cleptocracia petista ainda pode contar com uma reserva de apoio
entre jovens, intelectuais e sindicalistas, capaz de lançar labaredas na direção de uma sociedade frustrada, em meio a uma crise
econômica grave e, até aqui, sem lideranças alternativas capazes
de mostrar novos caminhos para a recuperação do país.
No caso da impugnação do impedimento, naturalmente os
partidos de oposição refarão seus cálculos na direção do TSE.
Porém, é sabido que a influência desses partidos sobre o movimento social de rua é tênue, seja pela desconfiança do público
nas lideranças tradicionais, seja porque as lideranças alternativas (PPS e Rede) ainda não se mostraram à altura deste desafio.
Assim, a direita radicalizada, pioneira no enfrentamento ao
lulopetismo, poderia ocupar o vácuo, no contexto da grande
frutração que se seguiria, quer empurrando alguns segmentos
para a violência aberta nas ruas, quer alimentando grupos ilegais
no intuito de desestabilizar a ordem pública e provocar uma intervenção militar. Do outro lado do ringue, encontrariam seus antípodas dispostos a colaborar, estúpida e involuntariamente, quer
nas milícias sindicais petistas e no, ainda ausente, “exército do
Stedile”, quer na juventude carbonária a postos desde 2013 –
tendo, inclusive, já produzido um cadáver, em 2014, sem que a
Justiça os tenha efetivamente punido e sem que perdessem o
status de “ativistas sociais”.
28
Hamilton Garcia de Lima
Tudo isso pode não se realizar. Mas, em meio ao ambiente
tóxico criado pelo lulopetismo, desde a desastrosa campanha de
2014, não se pode deixar de considerar a hipótese do agravamento
político. Mesmo que se possa debitá-lo na conta daqueles que
entendam a corrupção como um instrumento legítimo da atividade política e justifiquem sua torpeza com base no equivocado
princípio de tirar vantagem do atraso, supostamente para produzir progresso, seus efeitos serão para todos.
Especulações em torno do dia seguinte
29
II. Observatório
Autores
Alberto Aggio
Historiador e professor da Unesp, presidente do Conselho Curador da FAP.
Arlindo Fernandes de Oliveira
Advogado, consultor legislativo do Núcleo de Direito do Senado Federal.
Gabriel Burnatelli de Antonio
Doutor em Ciência Política pela UFSCar e pesquisador do Laboratório de Política e
Governo da Unesp.
Nelson Rojas de Carvalho
Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pesquisador do
Observatório das Metrópoles/Ippur/UFRJ.
A fraqueza de um homem só
Gabriel Burnatelli de Antonio
A
riqueza da democracia não se encontra, a priori, no êxito de
seus resultados econômicos, políticos e sociais, sobretudo
porque os indivíduos democráticos reconhecem que quaisquer decisões tomadas sem o escrutínio do maior número possível
de partes interessadas e/ou implicadas nas consequências de uma
escolha redundará, inexoravelmente, em ineficácia, mesmo que, a
longo prazo, e, acima de tudo, em injustiça, pois minorias restarão
alijadas do exercício ativo da cidadania e, como corolário, serão as
primeiras a experimentar o passivo de decisões mal elocubradas.
Se somos seres políticos (zoon politikon) e, acima de tudo, democratas, reconhecemos que a razão e a justiça, nos assuntos humanos, não são um apanágio dos heróis ou de homens e mulheres
dotados de excepcional clarividência; não resultam da mera inspiração ou do improviso de líderes que desfrutam de profunda aclamação popular; não surgem naturalmente pela punição dos corrompidos; não florescem no vácuo institucional; e, por fim, não dependem
de circunstâncias excepcionais, como a crise, para que emerjam.
A democracia é um regime político desejável porque, acima de
tudo, pressupõe 1) a reavaliação permanente das instituições,
seja para aperfeiçoá-las, quando funcionam bem, seja para reformá-las, quando soçobram; 2) a crítica e a autocrítica da sociedade; 3) a existência de freios e contrapesos que salvaguardam o
exercício das liberdades públicas e privadas; 4) a instituição de
procedimentos que limitam o fluxo das paixões e obrigam os cida33
dãos participantes ao exercício da política, ou seja, da negociação
e, acima de tudo, do respeito à liturgia da lei.
Todavia, para que o regime democrático engrene suas peças e
produza movimento, é preciso que o leito socializador dos indivíduos
seja consentâneo às exigências e expectativas da vida democrática.
Em outros termos, é preciso que a democracia seja ensinada, exemplificada e transubstanciada em valor cultural, algo que indubitavelmente não é fácil, mormente se considerarmos que, passados quase
28 anos do retorno à democracia no Brasil, continuamos majoritariamente presos ao facciosismo ideológico, ao moralismo que clama
por justiçamento, à busca de heróis e interventores (sobretudo juízes)
que se obriguem às tarefas que somos incapazes de realizar coletivamente, à intolerância e, por conseguinte, à incapacidade de construir pontes e coalizões que suportem alguma unidade na diferença
e, acima de tudo, na divergência.
O aziago fla-flu entre PT e PSDB, sobejamente alimentado, nas
últimas décadas, pelos próceres de ambos os partidos, mas, urge
salientar, especialmente mobilizado por Lula, com sua retórica
verborrágica que costumeiramente inicia-se com um “nunca
antes na história desse país”, criou uma espécie de jactância ideológica da esquerda petista, cuja soberba sequer foi capaz de transigir com diversas outras tendências internas ao partido, que
foram sendo paulatinamente expulsas ou tangidas para a margem
e esquecidas pelo conjunto mais amplo da militância e, obviamente, pelos quadros dirigentes do partido que comanda o governo
federal há mais de uma década.
Se um partido é incapaz de construir unidade internamente
de forma democrática – por meio da divergência, mas visando à
construção do consenso –, como pode alçar-se à condição de dirigente nacional, ainda mais quando, por força do voluntarismo de
um homem só, lança à presidência da República uma pessoa
completamente destituída de aptidão para a política? Ao conseguir eleger Dilma como presidente, Lula consumou o fla-flu,
desfazendo, por completo, os elos que o ligavam, de maneira mais
orgânica, ao partido e à sociedade.
Lula comportou-se como um desorganizador da cultura,
cevando polarizações que foram se açodando ao longo dos últimos
anos, culminando na bipolarização mentecapta que, de um lado,
acolhe aqueles que rotulam genericamente de “coxinhas” todos os
que desaprovam os procedimentos nada republicanos do PT no
poder, e, de outro, abre flancos para uma direita fascista que,
34
Gabriel Burnatelli de Antonio
como um vírus, aproveita-se do momento de fragilidade institucional e de aguda radicalização política para açular os ânimos
dos descontentes e conclamá-los à ruptura da democracia.
Em Os intelectuais e a organização da cultura, Gramsci adverte:
O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na
eloquência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das
paixões, mas num imiscuir-se ativamente na vida prática,
como construtor, organizador, “persuasor permanente”, já que
não apenas orador puro – e superior, todavia, ao espírito matemático abstrato; da técnica-trabalho, eleva-se à técnica-ciência
e à concepção humanista histórica, sem a qual se permanece
“especialista” e não se chega a “dirigente” (especialista mais
político). (GRAMSCI, 1982, p. 8).
O intelectual moderno, para Gramsci, é capaz de articular o
conhecimento especializado com o senso comum, construindo,
organizando e persuadindo aqueles que, inseridos na trama das
questões práticas da vida, ele pretende dirigir. Se, por um lado, o
intelectual-dirigente “dribla” as armadilhas da oratória (“motor
exterior e momentâneo dos afetos e das paixões”), por outro, ele
dispõe de predicados que o levam a superar o caráter abstrato da
técnica, inserindo-a numa “concepção humanista histórica”,
dotada, portanto, de sensibilidade política e orientada à realização de uma teleologia emancipatória.
Lula poderia ter consagrado a aliança entre política, técnica e
cultura, não só pelo que representa (um nordestino, oriundo do
“Brasil esquecido”, que se tornou moderno, a princípio, pela via
operária, e, posteriormente, pela política, alcançando, por meio
da última, a presidência da República), mas pelo que efetivamente
ele teve a oportunidade de fazer, e não fez: reconhecer abertamente os ganhos constitucionais e políticos do país nas décadas
que precederam o seu mandato presidencial, aproximando os
setores socialmente emergentes das camadas sociais mais modernas e empoderadas, entre as quais, inclusive, diversos setores
sociais ligados à oposição, como o PSDB.
Ao afastar uma parcela politicamente significativa do Brasil
moderno – constituída majoritariamente por frações mais favorecidas da classe média – do discurso e da performance propagandista do PT, Lula isolou ainda mais aquela que por intermédio
dele foi eleita, e cuja habilidade para a concertação e o diálogo é
reconhecidamente desastrosa. Dilma, de perfil estritamente
técnico, imbuída de convicções pessoais bastante empedernidas,
A fraqueza de um homem só
35
e Lula, eminentemente político, dotado de uma oratória bastante
peculiar, que por vezes beira à bufonaria e ao escracho, representam justamente a cisão daquilo que é fundamental para a formação de um bom dirigente.
Não há arcabouço institucional, por mais avançado que seja,
capaz de resistir ao desleixo dos dirigentes para com a política.
A exemplaridade, o respeito à coisa pública, o diálogo aberto e
democrático com toda a sociedade são fundamentais para o exercício da política e, ao mesmo tempo, para o aperfeiçoamento da
cultura democrática, sobretudo num país cujas tradições políticas são marcadamente autoritárias.
Em “Como tirar proveito de seus inimigos”, Plutarco observa
que um homem estará mais distante de invejar a sorte de seus
amigos, ou o sucesso de seus parentes, se ele adquirir o hábito de
elogiar seus inimigos, não sentindo nenhum resquício de ressentimento quando estes prosperarem. Com isto, grosso modo,
Plutarco quis dizer que quanto mais somos capazes de lidar civilizadamente com quem nos defrontamos, mais somos capazes de
governar a nós mesmos: aquele que se deixa consumir pela inveja
é, antes de tudo, incapaz de aceitar que o outro possa ser aquilo
que ele mesmo não é. Talvez, salvo engano, isto sirva de lição a
Lula e ao PT: à medida que a jactância e a soberba foram se
impondo ao PT governista, mais frágil ele se apresentou diante
daqueles com os quais escolheu rivalizar, ao passo que menos
dúctil ele se tornou perante os que dele ainda esperavam algum
resquício de grandeza e generosidade.
36
Gabriel Burnatelli de Antonio
Brasil caminha na
contramão do Continente
Nelson Rojas de Carvalho
C
omo sabem politólogos e constitucionalistas, ao contrário
da dinâmica dos sistemas parlamentares, nos quais os
governos se fazem e refazem ao sabor do alinhamento das
forças legislativas do dia, no presidencialismo confere-se ao chefe
do Executivo a certeza de mandato fixo; mandato forte, suavizado pelo mecanismo do controle mútuo entre os poderes. Muito
embora os chefes de governo em nosso Continente gozem desta
certeza constitucional, a dinâmica política na América do Sul,
com frequência, tem tornado letra morta o que consiste em cláusula central dos regimes presidencialistas.
De fato, nas últimas três décadas, em sete países sul-americanos, nada menos do que 12 presidentes tiveram seus mandatos
interrompidos: os argentinos Raul Alfonsín (1989) e Fernando de
la Rúa (2001), o brasileiro Collor de Mello (1992), o venezuelano
Carlos Andrés Perez (1993), os equatorianos Abdalá Bucarám
(1997), Jamil Mahuad (2000) e Lucio Gutierrez (2005), os paraguaios Raúl Cubas (1999) e Fernando Lugo (2012), o peruano
Alberto Fujimori (2000) e os bolivianos Sánchez de Lozada (2003)
e Carlos Mesa (2005).
Se as interrupções de mandato representam pontos traumáticos de inflexão política associados à dinâmica interna de cada
país, é possível, no entanto, identificarmos conexões plausíveis
entre eventos só na aparência tão díspares.
Como há anos destacou o analista político argentino Rosendo
Fraga, as crises políticas que ocorreram na América do Sul, entre
1989 e 1997, apresentaram três ingredientes em comum: a interrupção dos mandatos de presidentes eleitos ocorreu com o intervalo médio de dois anos, os chefes de governo lograram atravessar
pelo menos metade de seus mandatos e, mais importante, os
conflitos se equacionaram por intermédio de mecanismos institucionais – pela entrega antecipada do poder, no caso de Alfonsín,
ou pela destituição, nos casos de Collor, Perez e Bucarám.
37
Vale lembrar aqui que essa primeira onda de turbulências no
Continente recém-democratizado antes de haver sido interpretada como crise, foi lida como uma série de testes a que se viram
submetidas as instituições, testes pelos quais teriam passado
com louvor: o impeachment de Collor foi então festejado internacionalmente como prova inequívoca do vigor da democracia no
Brasil, leitura que se estendeu – em menor medida – ao processo
contra Perez e à remoção de Bucarám.
Ora, as crises ocorridas na América do Sul, entre 1999 e 2005,
apresentaram traços marcadamente diferenciados daqueles
observados na etapa anterior: a interrupção dos mandatos presidenciais se processou com o intervalo médio de menos de um ano,
os chefes de governo se viram destituídos do poder antes mesmo
de cumprirem metade dos seus mandatos e, mais grave, os conflitos deixaram de se equacionar pelos canais institucionais; os
desfechos foram caóticos, com golpes (Mahuad) ou renúncias
presidenciais em ambiente de violência, ingovernabilidade e sublevação das ruas (Cubas, Fujimori, De la Rua e Sánchez de Lozada).
Essa segunda etapa de crises do presidencialismo no Continente – quando mecanismos institucionais como o Legislativo ou
o sistema de partidos se mostraram insuficientes para a canalização e equacionamento de conflitos – se acompanhou de descrença
na legitimidade das instituições na região. De acordo com pesquisas então realizadas pelo instituto Latinobarômetro, não mais de
54% dos sul-americanos apoiavam a democracia, em 2003.
No que poderia ser identificado como terceiro capítulo do
presidencialismo no Continente, os chefes de governo eleitos na
última década na América do Sul – com a exceção de Fernando
Lugo, no Paraguai – lograram chegar ao fim de seus respectivos
mandatos, em consonância com ditame central dos sistemas
presidencialistas: a garantia de mandato fixo ao chefe de governo,
independentemente de seu desempenho.
Não há como negar que a estabilidade política observada no
período coincidiu com um ciclo de crescimento econômico inédito
no Continente, crescimento que se acompanhou tanto da diminuição dos níveis de pobreza como do apoio crescente às instituições democráticas.
Importa aqui assinalar que, muito embora alterações ocorridas no cenário econômico internacional no último triênio, com o
arrefecimento do preço das commodities, tenham reposicionado a
taxa de crescimento do Continente no seu patamar histórico, nem
38
Nelson Rojas de Carvalho
por isso a América do Sul se aproximou de um quadro recessivo
ou de situação de crise político-institucional.
Tanto na economia, como na política, o Brasil caminha assim
na contramão do Continente. A retração econômica e, sobretudo, a
grave crise de governabilidade que marcam a conjuntura recolocaram no centro da agenda alternativa política que parecia destinada
aos arquivos históricos: o impedimento do chefe do Executivo.
Limitada inicialmente a um nicho minoritário da oposição e a
segmentos extremados de direita, a tese do impeachment hoje
ganha terreno não só na sociedade, mas, sobretudo, entre os
atores políticos: aglutina o conjunto das oposições e se infiltra na
base de sustentação do governo, mais precisamente nas fileiras
do PMDB. Como tem ocorrido nos últimos meses, tudo leva a crer
que também nesse episódio a posição do PMDB indicará o rumo
dos acontecimentos: o seu afastamento da base do governo está
sendo interpretada como adesão do partido majoritário à opção
pelo encurtamento do mandato da presidente – alternativa que
está ganhando densidade.
Caberá, nesse caso, lembrar que, em regimes presidencialistas, na posse caneta, é de competência exclusiva do presidente
um último ato: a renúncia ao cargo. Ato que, como sabemos, é
seguido de consequências pouco previsíveis para a vida e para os
atores políticos.
Brasil caminha na contramão do Continente
39
O Gramsci que “conhecemos”
e o que ele inspirou1
Alberto Aggio
G
ramsci é, no Brasil, um autor bastante conhecido e com
um número estável de leitores. A primeira edição dos
Cadernos do Cárcere é da década de 1960 e foi reeditada
no final da década seguinte, num contexto de luta contra a ditadura. Uma nova edição dos Cadernos, que mescla a edição temática dos anos sessenta com a edição crítica publicada na Itália
a partir de 1975, veio à luz nos últimos anos do século passado,
com vários dos seus volumes já reimpressos. Há tempos registra-se uma difusa assimilação do pensamento gramsciano.
As teorias de Gramsci se tornaram de uso comum e identificáveis por meio de conceitos como “hegemonia”, “guerra de posições”, “revolução passiva”, “transformismo”, “americanismo” e
outros. O pertencimento dele à história do marxismo e do comunismo é patente, ainda que seja reconhecido, mas não generalizadamente, como um pensador político original.
Desde o final da década de 1970, a progressiva difusão do
pensamento gramsciano contribuiu e alimentou um novo “programa
de ação” para a esquerda brasileira: organizar a luta contra o autoritarismo. Além de Gramsci, outros pensadores animaram esse
movimento, como Norberto Bobbio, Hannah Harendt e Jürgen
Habermas. Mas foi com Gramsci que se instituiu no universo de
reflexão da esquerda as temáticas e as visões críticas da história
brasileira a partir de uma perspectiva de longa duração.
Com a difusão e a assimilação de Gramsci se começa a pensar
o Brasil tomando como referência a Alemanha e a Itália, países que
não chegaram à ordem burguesa por meio do percurso revolucionário francês. Por meio das referências gramscianas, se passa a
reconhecer que o país era “ocidental” e que se havia estruturado
como um país moderno pela via autoritária, sobretudo a partir de
1964. Isso requeria da esquerda uma nova leitura da democracia.
1 Esta é a versão em português do artigo publicado no L’Unità, em 7 de dezembro
de 2015, com o título “Studiavamo Gramsci nel Brasile senza libertà” (http://
www.unita.tv/opinioni/studiavamo-gramsci-nel-brasile-senza-liberta/) e que
corresponde a uma súmula da palestra realizada na Fondazione Istituto Gramsci de Roma, em 25 de novembro de 2015.
40
Sem ela, a esquerda não seria capaz de se tornar um ator relevante
na luta contra o autoritarismo e lhe faltaria uma “grande política”
que pudesse lhe guiar numa nova situação democrática.
Naquele contexto, o Gramsci que conheceríamos não seria
aquele da luta operária, mas o Gramsci inspirador de uma luta
política geral, cuja tradução política se exprimia na ideia de que,
para combater o autoritarismo, era necessário “fazer política” e
construir alianças que objetivassem a conquista da democracia.
O Gramsci dos intelectuais, da hegemonia e da guerra de posição
se encontrava então em campo aberto, em diálogo com outras
correntes de pensamento, em particular as liberais, jogando a
esquerda para dentro do debate público sobre as questões do
pluralismo como horizonte político-cultural: um diálogo que nem
a esquerda nem os liberais estavam acostumados. Em síntese, a
difusão das ideias dele contribuiu para amadurecer na esquerda
brasileira uma perspectiva crítica a respeito da sua história precedente, de forte matriz golpista e autoritária, pouco afeita aos
temas decorrentes da política democrática.
No contexto de luta pela democracia no Brasil, o mais importante ensaio de corte gramsciano foi, sem dúvida, A democracia
como valor universal, de Carlos Nelson Coutinho (1979), que representou um marco divisório na cultura política da esquerda brasileira, sobretudo no que diz respeito à revalorização da democracia.
O ensaio tem muitos méritos e foi extremamente influente. Embora
Carlos Nelson valorizasse temáticas como a “ampliação do Estado”,
ajudando a esquerda a compreender a natureza “ocidental” da
sociedade brasileira, entendia que não se deveria cogitar nenhuma
“leitura mais complexa” do conceito gramsciano de revolução
passiva. No ensaio de 1979, as formulações a respeito da realidade
brasileira aparecem inteiramente subordinadas ao enfoque leninista, assim sintetizada no subtítulo do seu segundo item: “o caso
brasileiro: a renovação democrática como alternativa à via prussiana”. A ênfase não era irrelevante e nem foi esporádica. Em diversos textos posteriores, Carlos Nelson se empenhou em definir a
transição brasileira à modernidade capitalista identificando revolução passiva a uma “contrarrevolução prolongada” (a expressão é
de Florestan Fernandes), por definição reativa à mudança social.
Este é um tema importante na discussão sobre Gramsci no
Brasil: se admitirmos que o conceito de “via prussiana” descreve
uma situação histórica na qual está anulada a possibilidade do
ator da antítese ao capitalismo de assumir, pela política, um papel
afirmativo no processo de modernização capitalista, a pergunta
O Gramsci que “conhecemos” e o que ele inspirou
41
que emerge naturalmente é se a categoria de “revolução passiva”,
elaborada por Gramsci, pode ser compreendida no sentido de se
admitir um novo protagonismo do ator da antítese no interior do
processo de modernização capitalista.
Luiz Werneck Vianna, em seu livro Revolução passiva:
americanismo e iberismo no Brasil (1997), responde afirmativamente a esta pergunta, esclarecendo que na revolução passiva
se pode desenvolver a ação de um ator que represente uma
“antítese vigorosa” e empenhe de maneira intransigente todas
as suas potencialidades (p. 78). A revolução passiva, como
critério de interpretação de processos históricos, é útil ao ator
que se invista da representação de portador das mudanças,
“capacitando-o, a partir de uma adequada avaliação das
circunstâncias que bloqueiam seu sucesso imediato e fulminante, a disputar a hegemonia numa longa ‘guerra de posições’,
e a dirigir o seu empenho no sentido de um transformismo ‘de
registro positivo’, assim desorganizando molecularmente a
hegemonia dominante, ao tempo em que procura dar vida
àquela que deve sucedê-la”. (...)
“A exploração do transformismo de ‘registro positivo’ é indicada em processos societais novos na sociedade brasileira, muito
especialmente depois da institucionalização da democracia política em meados dos anos 80” (p. 9). A revolução passiva é, portanto,
um critério de interpretação “que poderia servi-lo no sentido de
mudar a chave da direção do transformismo: de negativo para
positivo”. Graças a esse conceito, Gramsci cria “a possibilidade de
uma tradução do marxismo como uma teoria da transformação
sem revolução ‘explosiva’ de tipo francês”.
Como se sabe, a história brasileira nunca protagonizou uma
revolução de tipo “jacobino”. As grandes transformações históricas
do país foram moleculares ou caracterizadas por uma “dialética
sem síntese”, no interior da qual os elementos de novidade e de
modernidade foram introduzidos, no mais das vezes, por grupos
sociais anteriormente contrários à modernização. Os ciclos da
longa “revolução passiva á brasileira” (L. W. Vianna) vão da fundação do Estado Nacional até o recente processo de democratização
vivido pelo país, passando pelo período Vargas, pela democracia de
1946 e pelo autoritarismo das décadas de 1960 e 1970.
Neste longo período histórico, o Estado assume o papel de
agente modernizador e condutor das transformações históricas,
em geral sem a participação da sociedade civil, estabelecendo a
42
Alberto Aggio
lógica de conservar-mudando. Essa lógica faz com que as transformações históricas no Brasil ocorram sem abalos violentos,
o que ajuda a conservar a precedente hegemonia dos grupos
sociais mais atrasados.
Nos dias que correm, contrariando as enormes esperanças, os
governos do PT, desde 2003, não se constituíram numa alternativa ao longo processo da “revolução passiva à brasileira”. Ao
contrário, no governo, o PT conduziu a modernização associandose às elites agrárias e industriais, abrigando-as no seio de um
enorme Estado, inteiramente dependente do Poder Executivo.
O alargamento do poder de consumo das classes populares fez
parte dessa estratégia e a figura de Lula passou a ser essencial a
esse tipo de transformismo. Mantiveram-se o dirigismo estatal, o
patrimonialismo e o corporativismo ao invés de se estabelecer um
nexo renovador entre democracia, autonomia, mercado e bem-estar. Nascido do moderno parque industrial paulista, isto é, da face
americanista mais visível do país, o PT no governo foi derivando
progressivamente para a velha tradição ibérica de supremacia do
Estado sobre a sociedade que havia marcado a história brasileira.
O PT é, como já se disse, uma monografia particular do Brasil,
articulada por uma síntese de americanismo e iberismo, na qual
o Estado continua a contrapor-se à sociedade civil, controlando
molecularmente as transformações, obedecendo à lógica do
conservar-mudando, e impedindo consequentemente o desenvolvimento autônomo da sociedade civil.
Mudar as relações entre a sociedade civil e o Estado e fazer
com que a mudança dirija a conservação, não significa adotar
uma espécie de antirrevolução passiva, instalando um processo
de rupturas de corte jacobino. Transformar o caráter recessivo da
“revolução passiva à brasileira” demanda a construção de uma
cultura política republicana, que contribua para a geração de
uma sociedade civil autônoma, capaz de associar-se politicamente
para a condução dos destinos do país. É esse o desafio que está
colocado: buscar, com realismo, as balizas e os parâmetros de
uma grande reforma da política, de caráter republicano, que
reverta os termos da atual modalidade de “revolução passiva à
brasileira” e ao mesmo tempo recomponha a confiança do país em
continuar vivenciando e ampliando a democracia política.
O pensamento de Gramsci apresenta-se hoje no Brasil essencialmente por meio de uma disjuntiva. De um lado, o Gramsci da
“política democrática”, ou seja, da política-hegemonia, enquanto
“hegemonia civil”. De outro lado, temos o Gramsci como expresO Gramsci que “conhecemos” e o que ele inspirou
43
são da “política revolucionária”. Na primeira “leitura”, a revolução
não é mais o centro da elaboração política e a perspectiva se
deslocou no sentido de exercitar o conceito de revolução passiva
até seus limites, isto é, acionar permanente e intransigentemente
a política democrática no interior da perspectiva de “rovesciare” a
longa revolução passiva à brasileira, de marca autoritária e excludente, e lhe dar finalmente outro direcionamento.
Essa perspectiva implica compreender que Gramsci se descolou da sua originária demarcação revolucionária, distanciandose assim de um marxismo que ainda tem como referência uma
época histórica de revoluções. De outro lado, a perspectiva de um
“outro Gramsci” se desdobrou gradativamente em “outros
Gramsci”, mantendo-os, contudo, no universo diversificado da
noção de “representação”, agora num duplo sentido: representação de classe, como fora anteriormente, e portanto numa perspectiva revolucionária, e, noutro sentido, representação como conservação e difusão de um imaginário revolucionário, no qual se quer
resguardar os signos e significados de uma época revolucionária
terminada há décadas.
44
Alberto Aggio
Eleição municipal e mudanças
na Lei Eleitoral
Arlindo Fernandes de Oliveira
A
Lei 13.165, de 2015, promove diversas mudanças nas regras
legais aplicáveis às eleições municipais que interessam de
perto a todos os que participam desse processo: partidos e
candidatos, especialmente ao cargo de vereador, são afetados por
essas mudanças.
Pela primeira vez desde 1997, quando foi aprovada a chamada
Lei Eleitoral Geral (Lei nº 9.504, de 1997), promove-se uma alteração no sistema eleitoral brasileiro aplicável às eleições proporcionais, ao se exigir, de cada candidato, tomado isoladamente,
que alcance 10% do quociente eleitoral pertinente ao cargo de
vereador em sua cidade.
Recorde-se que, conforme as regras vigentes até então, um
partido ou coligação deve alcançar, primeiro, o quociente eleitoral (número de votos mínimos para eleger um candidato).
O quociente eleitoral é calculado dividindo-se o total de votos
válidos conferidos naquela eleição (fiquemos aqui com uma eleição para o cargo de vereador), dividido pelo número de vagas da
Câmara Municipal respectiva.
Elege um candidato, ou mais, o partido ou coligação cujos
votos, somando os de todos os candidatos do partido – ou da coligação – com os de legenda, alcançam o quociente eleitoral. Um
quociente garante uma vaga, dois quocientes duas vagas e assim
por diante. Os candidatos mais votados, independentemente de
sua votação, são eleitos.
Caso existam sobras – costuma haver – faz-se um cálculo
suplementar para definir os partidos ou coligação que ocuparão
essas sobras, utilizando-se a famosa Fórmula D’Ondt, ou, nos
termos do Código Eleitoral, a fórmula das maiores médias.
A partir das eleições de 2016, a Lei Eleitoral passará a exigir
de cada candidato que alcance, em sua votação individual, os
referidos 10% do quociente eleitoral. Essa medida é adotada para
mitigar o efeito de um candidato com muitos votos trazer consigo
a eleição de candidatos pouco votados em seu partido ou coligação. Podemos chamar essa norma de Cláusula de AntiTiririca, ou
45
AntiEnéas, para exemplificar com dois candidatos a deputado
federal muito bem votados que ajudaram seu partido a eleger
candidatos com pouca expressão eleitoral.
Há nessa norma algo contraditório com o princípio constitucional que rege as eleições proporcionais – para deputado federal,
estadual e distrital, conforme a Constituição, e para vereador,
conforme o Código Eleitoral – à medida em que pode excluir da
cadeira um partido que, na proporção de seus votos, teria direito
a tal mandato. Por isso, deve ser objeto de controle de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.
O problema da constitucionalidade é substancialmente menor,
entretanto, na eleição para o cargo de vereador porque, nesse
caso, a Constituição é omissa quanto ao sistema eleitoral. A Carta
Magna apenas o define sistema proporcional para o cargo de
deputado federal e o manda aplicar às eleições para deputado
estadual e distrital.
Assim, é possível que a mudança trazida pelo Lei 13.165, de
2015, seja aplicada já nas eleições de 2016 para as câmaras municipais dos mais de 5.560 municípios brasileiros.
Para que se tenha uma ideia da dimensão da mudança e, com
base nela, avaliar qual a melhor tática numa eleição para o cargo
de vereador, ajuda se tomarmos como referência concreta o resultado das eleições municipais de 2012. É importante que os partidos e seus candidatos se detenham nessa questão.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, conforme o TSE,
5.711.364 (cinco milhões, setecentos e onze mil e trezentos e
sessenta e quatro) eleitores votaram validamente, ou seja, em um
candidato ou em uma legenda partidária. O quociente eleitoral,
assim, calcula-se dividindo essa quantidade de votos pelo número
de vagas na Câmara, que é 55, o quociente eleitoral para o cargo
de vereador na cidade foi de 103.843 votos no ano de 2012.
Aplicado o novo sistema eleitoral a essa eleição, teríamos que
cada candidato isoladamente deveria ter alcançado 10% de
103.843 votos, ou seja, 10.384 votos. Por exemplo, não seria eleito
– ficaria na suplência, de acordo com a nova norma – um candidato de partido que tenha direito a duas vagas mas apenas um
candidato obteve mais – às vezes, muito mais – de 10.384 votos,
ainda que o partido ou coligação tenha direito a mais vagas.
Essa nova conformação legal do sistema eleitoral brasileiro
quanto às eleições proporcionais deve implicar, naturalmente,
46
Arlindo Fernandes de Oliveira
mudanças no comportamento dos atores políticos, pois não valerá
a pena – será contraproducente – o partido lançar um número
excessivo de candidatos, entre eles distribuir os seus votos, alcançar o quociente eleitoral sem que os seus candidatos individualmente atinjam 10% desse quociente.
Este contexto normativo recoloca, especialmente para os
partidos médios e pequenos (e todos os partidos são médios ou
pequenos em uma grande quantidade de municípios), a necessidade de alguma forma de concentração: provavelmente teremos
um número menor de candidatos, em face dessas novas regras.
Uma alternativa seria o partido definir de forma clara, especialmente nas cidades maiores, que irá lançar dois tipos de
candidato a vereador: aquele que efetivamente disputará a vaga,
pois intentará alcançar 10% do quociente eleitoral, sozinho
(recorde-se, mais de dez mil votos, por exemplo, na cidade de São
Paulo), e aquele que será candidato com o duplo propósito de
contribuir para que o partido alcance o quociente eleitoral e
firmar seu nome como liderança de segmento, categoria, bairro,
comunidade ou como expressão de uma determinada temática,
mas sem chances de ser eleito.
A realização de uma tática eleitoral dessa natureza, entretanto, cresce em complexidade se o partido participar do processo
eleitoral para vereador em coligação com outras formações políticas. Nesse caso, o lançamento de candidaturas frágeis assume
tons ainda mais dramáticos, pois esses candidatos irão operar
para eleger os parceiros da coligação, que não necessariamente
serão de seu partido.
Alguns desses problemas já existem com o atual sistema eleitoral. A nova norma, entretanto, traz tintas e cores novas, ao
impor um cálculo muito específico, que reúne elementos políticos,
eleitorais e legais para se chegar à melhor tática em cada caso.
Um aspecto a ser levando em conta, nesse cálculo, será se o
partido concorre sozinho ou coligado. Isolado, o partido terá maior
liberdade para escolher sua tática: lhe bastará que uns poucos
candidatos obtenham os tais 10% do quociente eleitoral. Coligado,
entretanto, o problema cresce em complexidade.
Vale anotar também que o eleitorado brasileiro cresceu desde
2014 e os municípios são a expressão desse crescimento. Assim,
quem pretender usar os dados das eleições de 2012, aqui referiEleição municipal e mudanças na Lei Eleitoral
47
dos, para fazer sua avaliação eleitoral deve acrescentar aos números o crescimento do eleitorado de sua cidade.
Outro dado de avaliação mais complexa é a capacidade de o
pleito municipal de 2016 atrair o interesse do eleitor, circunstância que faz crescer a quantidade de votos válidos de um pleito.
Caso em que a melhor tática deve comportar um elemento de
prudência: para eleger um vereador nas eleições de 2016, na
cidade de São Paulo, deve um partido lançar candidato que tenha
condições de alcançar a expressiva votação de 11.000 (onze mil
votos). Mantidas as regras aqui referidas, muito dificilmente um
candidato será eleito com menos votos.
Por último, vale acompanhar a decisão do STF a respeito de
eventual questionamento sobre a constitucionalidade dessas
normas. Cabe perceber, entretanto, que o Tribunal Superior Eleitoral já aprovou a regulamentação das eleições de 2016, e nelas
mantém as novas regras aqui referidas, sem as questionar.
Recordemos, finalmente, que esta pequena, mas relevante
mudança no sistema eleitoral brasileiro aplicável às eleições
proporcionais revela o quanto de resiliência há em nossa legislação quanto a esse tema: desde 1945, quando foi aplicado pela
primeira vez, apenas duas mudanças significativas foram promovidas em nosso sistema eleitoral proporcional. Uma em 1955, para
impedir que uma mesma pessoa se candidatasse a deputado por
diversos estados – que podemos chamar de cláusula antiPrestes,
eleito deputado por 14 estados em 1945 – e a alteração promovida
em 1997, pela vigente Lei Geral das Eleições, para excluir o voto
em branco do cômputo do quociente eleitoral.
Nesse período, esse sistema foi aplicado a dezessete eleições
para os cargos de deputado federal e estadual e igual número de
pleitos para vereador. Encontramo-nos diante da histórica experiência de promover, nas eleições de 2016, uma terceira mudança
no quadro normativo quanto a esta importante matéria.
48
Arlindo Fernandes de Oliveira
III. Conjuntura
Autores
Elimar Pinheiro do Nascimento
Sociólogo, professor associado do Programa de Pós-Graduação do Centro de
Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB).
Ivan Alves Filho
Historiador, autor de mais de uma dezena de obras, a última das quais é
O historiador e o tapeceiro, editado pela Fundação Astrojildo Pereira.
Sérgio C. Buarque
Economista, mestre em Sociologia, professor da FCAP/UPE, consultor em
planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local.
Fundador e diretor da revista eletrônica Será?
Para além da conjuntura.
E aquém da decadência?
Elimar Pinheiro do Nascimento
E
stamos mergulhados em uma conjuntura nacional, quase
que nela afogados, pelas más notícias que se acumulam
e mudam, a cada par de horas. Entre as piores pode-se
citar a queda de arrecadação fiscal e do PIB, o aumento do déficit
público, do desemprego e das falências de empresas. As portas
se fecham e o povo fica na rua, exposto à violência crescente. Há
também boas notícias: as prisões e condenações de executivos e
políticos decorrentes da Operação Lava-Jato. Que pode não durar
muito, com tantos interesses contrariados e o volume de resistências e reações que se ergue de todos os lados.
A conjuntura nos afoga e, segundo o sociólogo pernambucano
Paulo Henrique Martins, nos impede de pensar, de ver para onde
estamos indo, de ver longe. E, aparentemente, ela está resumida,
em artigo do jornalista Luiz Carlos Azedo no Correio Braziliense
(27/03/2016), em três cenários: a) impeachment da Dilma; b) não
impeachment da Dilma; e c) cassação da presidente e do seu vice,
pelo TSE. Nenhum desdobramento da conjuntura, impeachment
ou não impeachment, nos levará a uma situação fácil. Em todas,
os sentimentos devem se acerbar, as manifestações de rua devem
crescer, as contradições devem se acirrar. Espera-se que a crise
econômica se encolha. Contudo, este último aspecto é uma incógnita. Não existe qualquer segurança de superação imediata da
crise. Este consenso, paradoxalmente, soma-se a outro: mas a
crise será vencida. Pode ser que em 2018 ou em 2020, mas será
vencida. O Brasil é muito grande para quebrar.
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E depois da crise superada? Caminharemos como antes, à
espera de uma nova crise, ou tomaremos as medidas necessárias
para introduzir mudanças que nos liguem ao futuro que se desenha no mundo com o mercado globalizado, a sociedade do conhecimento crescendo, as inovações tecnológicas se sucedendo e
novas políticas de descarbonização da economia sendo adotadas?
Quando tomaremos conhecimento de que a nave Terra caminha
para o suicídio, com sua ideologia do crescimento infinito em um
mundo finito? Quando tomaremos as primeiras decisões de mudar
a dinâmica do desenvolvimento baseado em um consumo desenfreado que nos dá uma eterna sensação de felicidade para logo se
acabar, nos reconduzindo à prática de um novo consumo, novo
conforto e nova ansiedade? Quando seremos capazes de definir o
que é efetivamente importante para criar um novo desenvolvimento, mais qualitativo do que quantitativo? Quanto estaremos
dispostos a fazer nossa revolução nas prioridades, como clama,
há décadas, o senador Cristovam Buarque? Estes são alguns dos
desafios de criação de uma nova esquerda, adequada às mudanças do século XXI.
Convite para enfrentar esse desafio é o objeto do presente
artigo: descortinar os eixos estratégicos a serem percorridos para
criar um novo tipo de desenvolvimento, com economia constante
de consumo, de uso de recursos naturais e de energia, com
aumento da qualidade de vida. Uma prosperidade sem destruir a
natureza e sem congelar a desigualdade social, o que implicará
um novo estilo de vida, novos valores e posturas dos membros da
sociedade. O nome deste novo desenvolvimento, ou nova sociedade, é um nome pouco usual nas ciências sociais e, mais ainda,
em nossos meios de comunicação, na mídia, no nosso cotidiano
– resiliência. De maneira simples, ela indica a capacidade de um
sistema (humano, natural ou artificial) se reconstruir constantemente. Uma economia é resiliente, quando os recursos naturais
que ela retira do meio ambiente, ou devolve como dejetos, para
produzir os bens (sejam eles mercadorias ou não) necessários à
sua produção e reprodução, não ultrapassam a capacidade da
natureza em repor os recursos retirados e absorver os dejetos. Se
retirarmos de um ecossistema um volume de recursos naturais
superior ao que ele é capaz de produzir, ele morre. É assim que se
formam os processos de desertificação, de crise hídrica, de extinção de espécies e do efeito estufa com aquecimento global, que
acarreta aumento dos eventos críticos do clima. Da mesma forma,
se lançamos de volta na natureza dejetos em quantidade que ela
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Elimar Pinheiro do Nascimento
não possa absorver, como a queima de combustíveis fosseis (CO2),
teremos uma aceleração do aquecimento da Terra.
Os limites do crescimento, identificados desde metade do
século passado, têm se manifestado com mais frequência neste
século com o aumento de eventos críticos climáticos: variações
extremas de temperaturas e quedas pluviais, entre outros. E as
consequências são cada vez mais perceptíveis, como seca, crise
de recursos hídricos, temperaturas ineditamente altas ou baixas,
impactando a produção de alimentos e a qualidade de vida de
segmentos humanos crescentes.
É um fenômeno global, mas as respostas são múltiplas, distintas e articuladas, desde locais a globais, passando pelas nacionais. E percorrem necessariamente a adoção de novas práticas
econômicas, de melhorias substantivas nos campos da educação
e da inovação, ou seja, no grande campo do conhecimento. Ação
que demanda uma máquina estatal moderna, eficiente e lúcida,
com programas sociais que efetivamente eliminem a pobreza e
reduza a desigualdade.
Parece estranho escrever sobre isto quando estamos em meio
à maior crise de nossa história republicana. No entanto, ou o
fazemos agora ou iremos sair da crise com as mesmas estruturas
e as mesmas condições para mergulhar, pouco depois, em nova
crise, distanciando-nos cada vez mais dos países desenvolvidos,
distanciando-nos do futuro.
Para tanto, identifiquemos rapidamente os entraves para se
construir uma sociedade com PIB de nova cara, sem consumismo
desenfreado, e amiga da natureza e do futuro. Eles se distribuem
em diversos campos, relativamente conhecidos, como educação de
má qualidade, com escolas muito desiguais; perfil de Ciência,
Tecnologia e Inovação frágil, sem ambiente favorável e estruturas
apropriadas; economia de baixa produtividade e fechada, com
carga tributária alta e injusta, ambiente de negócios pouco favorável, insegurança jurídica, sem acordos comerciais importantes e
pauta de exportação baseada em commodities; infraestrutura de
transporte e logística envelhecida, deficiente e de alto custo, impactando negativamente na competitividade econômica; fragilidade
institucional com gestão pública ineficiente, corrupção elevada,
justiça morosa, sem transparência e um sistema eleitoral apropriado pelos grandes interesses econômicos, produzindo condições
desfavoráveis à governabilidade e distorções no mecanismo de
representação, e um sistema previdenciário deficitário, antiquado e
Para além da conjuntura. E aquém da decadência?
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insustentável no médio e longo prazos; política ambiental pouco
eficaz, baseada na punição, fiscalização precária e sem envolvimento da população; cidades “monstrópoles”, desordenadas, com
baixa mobilidade urbana, altos índices de criminalidade, e elevadas perdas de vidas humanas, sobretudo de jovens; desprezo pela
cultura indígena e discriminação em relação às mulheres, aos
negros e aos LGBT; desigualdades sociais e regionais marcantes, e
bolsões de pobreza significativos, com perdas de coesão social e
exclusão social inadmissível em pleno século XXI. E finalmente,
uma política externa pouco eficaz na promoção dos interesses
comerciais do país, poucos acordos bilaterais e baixa inserção de
nossa economia nas cadeias econômicas globais. Diagnóstico que
nada tem de novo, e aqui apenas o relembramos.
Superar os entraves que amarram o Brasil aos séculos passados implica na construção, coletiva e democrática, de uma estratégia eficaz. Nela não podem faltar os dez eixos seguintes:
• desenvolver talentos, com uma escola de qualidade e chances iguais para todos;
• preservar vidas: aumentar o tempo e a qualidade de vida,
com melhor segurança pública e promoção, prevenção e
bons serviços de saúde;
• viver em harmonia: com fortalecimento da coesão social,
eliminação da pobreza e redução da desigualdade;
• promover a solidariedade com as novas gerações: um meio
ambiente de qualidade;
• humanizar as cidades: espaço público para as pessoas e
não para as máquinas;
• reformar o Estado: com instituições que ofereçam segurança, agilidade e transparência;
• consolidar a democracia: com participação na vida pública
e respeito à diferença;
• criar uma infraestrutura adequada às mudanças: energia,
transporte e comunicação;
• fomentar um novo desenvolvimento: criar uma economia de
alta produtividade, inovadora, de baixo carbono, com as
riquezas justamente distribuídas;
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Elimar Pinheiro do Nascimento
• Desempenhar um protagonismo internacional: um país inserido no mundo, nas cadeias produtivas globais, nos fluxos de
conhecimento e em prol da paz e do respeito à diversidade.
Entre os entraves destacam-se a má qualidade da educação e
a fragilidade institucional, que se relacionam com os dois únicos
elementos recorrentes entre os países desenvolvidos: alta escolaridade e instituições confiáveis. É por eles que temos que iniciar
nossas mudanças. Gostaria, porém, de enfatizar um dos dois
eixos mais relevantes: a superação da fragilidade institucional. E,
mais especificamente, o aspecto da modernização do Estado, ação
iniciada pelo governo Fernando Henrique Cardoso, sob a tutela de
Bresser-Pereira, mas interrompida pelo populismo e falta de visão
estratégica de país, por parte dos governos Lula e Dilma.
Uma das características comuns aos países desenvolvidos é o
de serem dotados de instituições estáveis, confiáveis e eficientes.
A instabilidade institucional no Brasil é um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento nacional. Temos uma atividade legisferante febril. As leis mudam segundo a vontade indecifrável dos
dirigentes de plantão, acarretando consequências perversas aos
investidores, empresários, gestores e cidadãos em geral. A cada
dia leis, decretos e portaria, dos governos federal, estadual e
municipal são publicados. Ao que se deve acrescentar, a morosidade e complexidade do arcabouço jurídico, aliada a sentenças
contraditórias proferidas em função do tribunal a que se recorre,
que criam uma enorme insegurança jurídica.
O Estado é moroso e caro. Arrecada muito, gasta mal e entrega
pouco. O Brasil ocupa a última posição no ranking que mede o
retorno da aplicação dos impostos arrecadados, segundo estudo
divulgado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário.
Este desempenho estatal ruim está centrado em uma concepção
arcaica do Estado, a qual prega sua intervenção excessiva na sociedade, inibindo os fatores de desenvolvimento social. A corrupção é
um dos legados deste Estado gigante. Por outro lado, sua concepção confunde o estatal com o público. Serviço público é aquele que
permite o acesso a todos os cidadãos, sendo realizado diretamente
ou indiretamente pelo Estado. Neste último caso, por meio de ação
intermediada por organizações sociais ou similares.
Com custos excessivos, o Estado adota o procedimento perverso
de subtrair poupança da sociedade, por meio do endividamento
que, hoje, quase atinge 70% do PIB. Somado à má qualidade dos
gastos, não tem recursos para investimento, e, sobretudo, provoca
Para além da conjuntura. E aquém da decadência?
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constante desequilíbrio fiscal, o que o conduz a sucessivos aumentos de impostos. Cria-se, assim, um círculo vicioso que compromete nosso desenvolvimento. Círculo que precisa ser quebrado.
Para modernizar esta máquina envelhecida, apropriada de um
lado pelo grande capital e de outro pelas corporações em seu
âmbito, será necessário um grande e longo esforço de mudança,
mas que necessita começar o mais cedo possível. Porém, sem
açodamento, de forma planejada e eficientemente implantada.
O que demandará um grande acordo político entre as diversas
forças da sociedade, dos trabalhadores aos empresários, dos
movimentos sociais aos partidos políticos.
1. Adotar regras que produzam o equilíbrio fiscal e amplie a
capacidade de investimento, por meio de orçamento de base zero
– avaliação constante dos programas governamentais em todos os
entes federativos; definição de limites claros e objetivos de gasto
público, buscando a meta de redução gradativa da dívida pública
num prazo de dez anos, até alcançar o patamar de 50%. Adoção
de medidas de uma cultura de austeridade será essencial ao
Estado, iniciando pela Presidência da República.
2. Estabelecer um sistema de simplificação permanente dos
procedimentos da gestão estatal, com ruptura do excesso de
normas e rigidez nos procedimentos, atribuindo agilidade e
eficiência ao Estado.
3. Ampliar a eficiência estatal, com concentração de suas
atividades no planejamento, regulação e fiscalização, reduzindo o
tamanho do Estado por meio de privatizações de empresas deficitárias e pouco relevantes, de venda de imóveis sem uso, de eliminação das unidades administrativas que realizam retrabalho e
dos programas e políticas que demonstram pouca efetividade.
Ganhar foco e eficiência, privilegiando os resultados.
4. Reduzir a máquina estatal com aumento da eficiência nos
campos essenciais como planejamento, regulação, segurança e
fiscalização por meio da redução dos ministérios e órgãos anexos
e dos cargos comissionados, e fortalecimento da presença dos
servidores nos cargos de direção (secretaria-geral, por exemplo).
5. Melhorar a qualidade dos gastos públicos, entre outros, por
meio da adoção da profissionalização da gestão pública, inicialmente com preenchimento de cargos técnicos comissionados por
meio de editais, com valorização do mérito sobre as indicações
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Elimar Pinheiro do Nascimento
políticas e por meio da ampliação do e-governo, utilizando de
forma inteligente as tecnologias de informação e comunicação.
6. Fortalecer as Agências de Regulação independentes, e instituir novos modelos de governança das empresas estatais: transparentes e profissionais, com exclusão de agentes políticos e
fortalecimento dos atores econômicos e sociais.
7. Adotar legislação e mecanismos eficientes de combate à
corrupção, com mais rigor e menos recursos. Entre outros, aprovando a proposta do Ministério Público, apoiada pela sociedade.
8. Adotar formas de parceria para prestação de serviços públicos, reduzindo os gastos, ganhando agilidade e melhorando os
serviços ofertados (fornecimento de energia e água; limpeza
urbana; transporte coletivo; sistema penitenciário; sistema de
saúde de média e alta complexidade).
9. Implantar um sistema de planejamento e gestão voltado para
resultados, com monitoramento e avaliação das metas definidas
para cada ação e unidade administrativa, e adoção do sistema de
consequências, superando a deficiência das informações, a ausência de indicadores e, sobretudo, a inexistência de cobranças.
10. Estabelecer um novo pacto federativo que redefina, de
forma justa e eficiente, as atribuições e recursos dos diversos
entes da Federação.
Por si só, essas medidas não serão capazes de criar uma
máquina estatal moderna, serão necessárias ainda mudanças de
cultura, de organização e de procedimentos ao nível do microespaço organizacional, mas, caso adotadas, serão um bom começo
para se ter um Estado com entregas melhores, mais essenciais e
mais baratas, abrindo espaço para mudanças nos outros poderes
constitucionais e no sistema tributário.
Encerro, alertando ao leitor, mais uma vez, que se trata de
propostas iniciais para o debate com o intuito de dar um toque na
bola para a construção de propostas essenciais no campo institucional, que qualquer partido que tenha como objetivo a transformação do Brasil deverá adotar. No meio da crise, quem tiver
propostas de mudanças mais substantivas tende a ganhar o
apoio, senão de todo o eleitorado, pelo menos de um segmento
essencial, mais qualificado e formador de opinião pública. Pensar
o estratégico, hoje, é evitar a possível decadência, amanhã. Pensar
as novas reformas, hoje, é se posicionar, de forma lúcida, na criação de um novo campo da esquerda.
Para além da conjuntura. E aquém da decadência?
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O Brasil completa sua Revolução
Burguesa. E para onde vai?1
Ivan Alves Filho
B
asta abrir as páginas de alguns jornais ou revistas para
nos inteirarmos de que muita coisa ocorreu no Brasil e
no mundo nos três primeiros meses de 2016, tamanho o
dinamismo da vida política contemporânea. A crise brasileira,
por exemplo, se aprofundou terrivelmente na esteira do transformismo – conceito tão trabalhado por Antonio Gramsci – ou
da passagem de partidos ou agrupamentos do campo progressista para o campo político oposto. Contudo, não existem apenas
retrocessos no país e fortes avanços democráticos também foram
concretizados, até como resposta a determinados desmandos.
A abertura de um processo de impeachment contra o Governo
Dilma no Congresso Nacional é mais uma prova disso. O que se
passa na esfera jurídica no Brasil hoje tem muitas semelhanças,
por exemplo, com a operação Mani Pulite (Mãos Limpas) que sacudiu a Itália nos anos 90 do século passado. Com efeito, desde
março de 2014 dezenas de empresários, altos funcionários do
Estado e políticos corruptos brasileiros começaram a tomar o
rumo da cadeia. O próprio ex-presidente Lula não escapou de ter
sua casa vasculhada pela Polícia Federal, que o conduziu de forma
coercitiva para depor, revelando assim que ninguém está acima
das leis. Toda essa situação, diga-se de passagem, teve início com
a ida de centenas de milhares de pessoas às ruas de quase todo o
Brasil em junho de 2013.
E não só: as apurações vão apontando cada vez mais para o
fato de que houve ingerência nas eleições de 2014, manipuladas
por um esquema que não vacilou em violar o processo democrático. Aqueles que desviaram recursos públicos – ao menos em
condições sistêmicas – parecem estar com os dias contados no
Brasil atual. Vale dizer, soou a hora dos valores republicanos.
O que acaba com a corrupção não é tanto a luta contra o capitalismo: havia corrupção também no chamado socialismo real e
países capitalistas como a Noruega e a Dinamarca exibem índices
baixíssimos de corrupção. O que de fato conta é a luta por mais
1 Este artigo foi publicado inicialmente no site Gramsci e o Brasil (no início de
março de 2016), sendo atualizado, no início de abril, quando já se estruturava o
pedido de impeachment de Dilma Rousseff.
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democracia, isto é, pela afirmação da sociedade civil diante do
Estado. No Brasil, tudo indica que a sociedade finalmente saiu à
captura do Estado, exigindo mais transparência no trato com a
questão pública. Estarreceu o Brasil a publicação, em meados de
março, de áudios revelando o quanto a promiscuidade – expressa,
até, em linguagem chula, de baixíssimo calão – grassava nas mais
altas esferas do poder em Brasília. Urge colocar um ponto final
nisso. O Brasil não é uma casa de tolerância.
Sabemos todos que o momento vivido pelo país é extremamente delicado. Basta citarmos a incrível violência que campeia
nas nossas cidades, o desemprego que atinge as mais diferentes
camadas da população e ainda o desencanto crescente com a
ladroagem nas diferentes esferas governamentais e nas empresas
estatais. Isso, para não aludirmos aos desastres ambientais, como
aquele que infelicitou recentemente a histórica cidade de Mariana,
em Minas Gerais. A lama que se deslocou pelas centenas de quilômetros que separam a cidade do oceano Atlântico chega a ter um
efeito simbólico, metafórico.
Porém, a sociedade é sempre maior que o Estado e nós saberemos encontrar uma saída coletiva para a crise que nos assola. Aliás,
esse movimento já começou, a partir justamente da abertura do
processo de impeachment contra o PT e seus aliados nessa desastrosa administração Dilma e das tratativas para a formação de um
governo composto pelas mais diferentes forças do campo democrático. Vale dizer, apesar de o risco de decomposição social estar
presente entre nós, podemos destacar, por outro lado, que o processo
de afirmação da cidadania avança de forma inexorável. Um quadro
difícil de entender, até. Mas uma coisa é certa: o Brasil vive hoje uma
verdadeira revolução cidadã, com o início do fim do Estado privatizado pelos grandes grupos econômicos, ou do patrimonialismo de
corte praticamente feudal, de um lado; e, de outro, com o aumento
da consciência popular no tocante a fazer prevalecer seus direitos à
educação, saúde, segurança e bem-estar. É como se a Revolução
Burguesa finalmente se completasse, o país vivenciando uma espécie de 1789 em 2016, devidamente atualizado. Não por acaso os franceses tratavam-se uns aos outros por citoyens – ou cidadãos – no
período da Revolução. Fui firmando esse juízo em minhas andanças
pelo país e não apenas pelas leituras.
Curiosamente, a Revolução Burguesa no Brasil – uma Revolução Burguesa sem Robespierre e o Terror, diga-se de passagem,
afirmando-se pela via jurídica – surpreendeu o Partido dos Trabalhadores, que se posicionou à direita do liberalismo clássico. Ou
O Brasil completa sua Revolução Burguesa. E para onde vai?
59
se preferirmos: a Revolução Burguesa colocou-se à esquerda do
partido que se reivindicava da luta dos trabalhadores, em alguns
momentos fazendo até mesmo a apologia do socialismo (nunca
definido, diga-se também). Em realidade, o PT assumiu uma série
de práticas do velho coronelismo, travestido em política de Estado,
como o assistencialismo, escancarando seu viés semifeudal.
Ironias da História, seguramente. Na verdade, vai se firmando a
convicção de que o despertar da cidadania – com o consequente
aprofundamento de instrumentos de intervenção tais como uma
mídia vigilante, o crescimento do papel das redes sociais e da
própria transparência administrativa – é central para o pleno
florescimento da democracia.
Em outras palavras, é preciso empoderar o cidadão comum
em seu local de estudo, trabalho e moradia, em plena ligação com
as esferas institucionais. O que se nota é que a autonomia ainda
vai dar o que falar neste século: surge com força um tipo de cidadão que não se conforma em ser apenas governado, isto é, alguém
que deseja igualmente opinar e mesmo influir nos assuntos governamentais a partir da sua própria realidade. Nesse sentido, a
democracia não deve se limitar aos representantes institucionais
do povo, podendo ainda se alastrar para o conjunto da sociedade,
ao seu cotidiano. Da democracia dos políticos profissionais à
democracia de toda a cidadania e de toda a militância – este o
desafio maior da contemporaneidade, talvez. Pois não é possível
administrar mais à moda antiga e uma nova governança se impõe.
Partidos políticos continuam sendo necessários (até porque não
apareceu nada capaz de substitui-los), todavia é preciso renovar
as formas de participação sempre. Ou, se considerarmos melhor,
democratizar um pouco mais os próprios partidos.
Há muitas mudanças no ar na América Latina. E elas são
positivas. O populismo local, cada vez mais aparentado ao
fascismo, vem recuando em países como a Argentina, Brasil, Bolívia e a Venezuela. Sintomaticamente, o Chile e o Uruguai – nações
onde a esquerda democrática, de base socialista ou comunista,
sempre teve um certo peso político – escaparam dessa prática
demagógica. O populismo opera, justamente, a partir do vácuo
deixado pela esquerda democrática, identificando-se, cada vez
mais, com aquilo que Karl Marx e Friedrich Engels no livro A ideologia alemã denominaram por lumpenproletariat, composto por
indivíduos sem vínculo social maior. Como sabemos, a lógica dos
marginais não é aquela dos incluídos socialmente, que passa pela
prática da negociação. Em outros termos, os marginais traba60
Ivan Alves Filho
lham com a noção do extermínio: o adversário político é, portanto,
um inimigo e como tal precisa ser varrido do mapa. Com o inimigo
não se negocia, não é verdade? As SS alemãs procediam dessa
maneira e não por acaso alguns dos responsáveis pelo Partido
Nazista eram oriundos do mundo do crime. Vinham do lumpen –
ou trapo, em alemão –, justamente. Os kapos, ou responsáveis
pelos campos de concentração nazistas, eram recrutados entre os
prisioneiros de direito comum.
Infelizmente, a História parece se repetir em parte e o fundador de um movimento extremista de direita na Alemanha, o
Pegida, é um ex-condenado por furto e tráfico de drogas. Nessa
linha de cumplicidade com o crime, diversas autoridades venezuelanas já foram acusadas de controlar o comércio de drogas e o
próprio presidente da República teve dois sobrinhos presos por
ligações com o narcotráfico, em 2015, no Haiti. O ex-chefe de
gabinete de Cristina Kirschner, Aníbal Fernández, foi acusado de
controlar o tráfico na Argentina. O poderio dos traficantes avança
de forma impressionante no México. Manuel Noriega, ex-militar e
ex-ditador do Panamá, com notórias ligações com a CIA e veleidades populistas, se encontra preso desde 1990 por envolvimento
com o comércio de cocaína e em diversos assassinatos de opositores. Na Bolívia, vários mandatários tiveram ligações com o mundo
das drogas. Formou-se assim uma espécie de burguesia do crime
na América Latina e o pior é que, ao propalar a ideia de que governos populistas são governos de esquerda ou progressistas, essas
para lá de duvidosas lideranças chamuscam a própria prática de
esquerda no subcontinente. Da mesma forma que o autoritarismo
político, a escalada da inflação e a corrupção financeira, a força
crescente do crime organizado na América Latina é uma ameaça
ao Estado Democrático de Direito, a duras penas conquistado
pelos povos da região. Ultranacionalismo, lideranças carismáticas buscando contato direto com o “povo” e os “pobres”, corporativismo, corrupção desenfreada, instrumentalização dos sindicatos e manipulação demagógica dos anseios das massas têm
endereço certo: fascismo.
Há motivos, no entanto, para algum regozijo, com as derrotas
eleitorais recentes de Cristina Kirschner, Evo Morales e Nicolás
Maduro, conforme apontamos acima. Fora isso, o restabelecimento de relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos
em 2014, assim como o avanço dos acordos de paz para pôr fim à
guerra civil na Colômbia, parecem indicar que estamos finalmente assistindo ao início de um processo político mais amadureO Brasil completa sua Revolução Burguesa. E para onde vai?
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cido e consequentemente menos sujeito a manipulações por parte
do autoritarismo na região. A histórica viagem do presidente
Barack Obama a Havana contribuiu para melhorar substancialmente o clima no subcontinente. Na Argentina, Obama como que
se superou, rendendo homenagem às milhares de pessoas assassinadas durante a ditadura militar naquele país. A lógica oriunda
da guerra fria parece estar com os dias contados nas Américas.
Já não era sem tempo. Entretanto, é preciso cautela e não podemos descartar artimanhas de toda sorte por parte das forças
autoritárias em países como a Venezuela e a Argentina. Por seu
turno, Evo Morales, na Bolívia, parece ter entendido o recado das
urnas, que lhe negou um novo mandato. O verdadeiro sentido
desses fatos recentíssimos que ocorrem na América Latina é a retomada do processo democrático ou uma espécie de adeus ao populismo. E aqui cabe uma observação: o termo populista, que migrou
para a América Latina a partir da experiência dos narodniks russos
no século XIX, não se coaduna no entanto com a prática política
em curso no subcontinente, a qual se assemelha muito mais à
experiência do fascismo europeu.
Falando mais claramente ainda, pensamos que nenhuma
democracia é de direita e nenhuma ditadura é de esquerda.
Quanto mais examinamos as ditaduras, mais valorizamos o papel
das instituições na contenção da violência. É a velha batalha
entre civilização e barbárie na marcha da História. O Estado
Democrático de Direito tem que ser para todos, uma vez que é
uma conquista da Humanidade, atravessando o sistema de classes e os espaços nacionais. Não há razão para que as conquistas
obtidas nos últimos 150 anos – direito de voto, liberdade de
reunião e de opinião, entre outras – não sejam mantidas e mesmo
ampliadas hoje. Se o povo adquiriu determinados direitos democráticos sob o sistema capitalista, isso só reforça a necessidade de
incorporá-los a um projeto de sociedade que se quer ainda mais
avançado, sob pena de se praticar uma incoerência ou mesmo um
retrocesso. A História é sempre um processo e nunca é demais
lembrar que a experiência do século XX demonstrou que um dos
grandes adversários da esquerda é o autoritarismo – venha de
onde vier. O outro grande adversário é o dogmatismo – conforme
já assinalara há várias décadas o saudoso crítico literário Otto
Maria Carpeaux, em texto que enaltecia a lucidez de outro crítico
extraordinário, Astrojildo Pereira.
O melhor seria que uma nova ordem mundial democrática
seguisse à risca os ideais de justiça internacional esboçados pelo
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Ivan Alves Filho
Tribunal de Nuremberg, entre 1945 e 1946, para julgar os crimes
do nazismo. Faltou, sem dúvida alguma, um Tribunal de Nuremberg que julgasse igualmente a máquina de guerra pilotada por
Richard Nixon no Vietnã. Contudo, a existência, desde 1998, de
um Tribunal Penal Internacional, criado em Roma, foi um grande
passo no julgamento de atos como os praticados na antiga Iugoslávia. Ainda antes de o ano de 2015 terminar, o Tribunal Regional
de Frankfurt condenava, segundo a agência de notícias Deutsche
Welle, um político ruandês à prisão perpétua, recusando-se a
devolvê-lo às autoridades de Ruanda, temendo que ele pudesse vir
a ser solto uma vez em seu país. Também os crimes hediondos
cometidos pela ditadura de Bashar al-Assad, na Síria, merecem a
atenção da consciência e do juízo democráticos internacionais.
Tudo indica que caminhamos para o entendimento de que os
direitos humanos não têm fronteira nacional e que a integridade
das pessoas está acima da lógica dos Estados. Evidentemente,
ninguém pode viver isolado apenas dentro sua própria cultura,
mas direito à diferença não significa tampouco tolerância para
com situações de opressão. Afinal, tortura nunca foi cultura.
Ainda que tentando se esconder sob o manto da política, facínora
é facínora, seja ele Adolf Hitler, Muammar Khadafi, Papa Doc,
Chiang Kai-shek, Idi Amin Dada, Pol Pot, Anastacio Somoza,
Augusto Pinochet ou Bashar Al-Assad, para ficarmos apenas em
alguns notórios delinquentes do nosso tempo. Em outras palavras, os limites da nossa atuação nos parecem bem delineados e
não há a menor compatibilidade entre democracia e racismo, aviltamento da condição feminina ou ainda propaganda de propostas
fascistas. O sistema democrático não pode compactuar com
propósitos anti-humanistas, sob pena de cavar sua própria
aniquilação, banalizando o mal, ou seja, a mediocridade. Acreditamos na existência de uma razão humana universal e que fora
dela não há saída possível.
Evidentemente, pertencemos a um mundo de nações, ainda
que cada vez mais globalizado. E tudo que acontece no plano
internacional nos afeta enormemente. É verdade que a situação
em algumas partes do mundo vem se complicando, com os atentados terroristas perpetrados por mercenários e fanáticos, tanto
no Oriente Médio quanto na África subsaariana e na Europa
Ocidental. O alvo desses ataques é a própria vida das pessoas,
além da democracia e da cultura humanista obviamente. O Papa
Francisco tem alertado constantemente a opinião pública para as
ameaças que pairam sobre o processo civilizatório no mundo.
O Brasil completa sua Revolução Burguesa. E para onde vai?
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Toda vez que as bases desse processo são atacadas, a barbárie se
apresenta. Assim, democracia, humanismo, coexistência pacífica
entre os povos, direito de ir e vir são conquistas da Humanidade
e não de uma determinada região ou de um dado sistema político.
Ou muito menos de uma classe social. Afora alguns mercadores
de armas, ditadores e grupos terroristas covardes, alguém teria
dúvida em escolher entre a paz e a guerra?
Mas precisamos também admitir que muitas vezes o horror
está dentro de nós mesmos e os riscos de um conflito generalizado
são reais. No seu belíssimo e oportuno relato intitulado Infiel,
Ayaan Hinsi Ali, uma corajosa intelectual feminista somali, foi
direto ao assunto, criticando aqueles que pretendem impor a
centenas de milhões de seres humanos de hoje “a mentalidade do
deserto árabe do século VII”. Evidentemente, isso não pode dar
certo nem para quem vive no deserto árabe no século XXI. Têm
culpa nesse cartório não somente o autoproclamado Estado Islâmico como também as intervenções militares promovidas pelas
potências expansionistas e, ainda, algumas ditaduras sanguinárias que resistem aos ventos libertários que assolam o Oriente
Médio. Tenderíamos a dizer que a batalha política atual implica
evitar que a Síria seja a Espanha da Terceira Guerra Mundial.
Como sabemos, a aliança da União Soviética – então se reivindicando do socialismo – com os Estados Unidos – país ainda hoje
símbolo do liberalismo – foi fundamental para barrar o nazismo e
o fascismo no mundo, possibilitando estancar a escalada terrível
da Segunda Grande Guerra. Se os homens então no poder na
União Soviética se aliaram aos liberais, mais uma razão para que
aqueles que se reclamam da esquerda – hoje infinitamente menos
influentes, por sinal, do que naquela época – percebam a importância histórica de um acordo com os liberais de hoje para evitar
o pior. Convém lembrar que o dirigente comunista búlgaro Georgi
Dmitrov foi o grande artífice dessa política de alianças, cada vez
mais necessária e atual.
Sob esse prisma, nos parece fundamental a defesa que o
Partido Democrático da Itália faz do espaço europeu, por exemplo.
De qualquer forma, os dados estão lançados e o que não falta são
ingredientes explosivos no tabuleiro. Todo o cuidado é pouco:
posturas reacionárias e belicistas da Rússia de Vladimir Putin,
surgimento das candidaturas Trump e Cruz beirando a psicopatia nos Estados Unidos, avanço das ações terroristas no plano
internacional, desempenhos eleitorais surpreendentes da
extrema-direita na Escandinávia e na Suíça, abalos no comporta64
Ivan Alves Filho
mento da economia chinesa, problemas com a integração de
imigrantes na Europa Ocidental, na esteira do desmoronamento
do mundo colonial e das dificuldades que as democracias ocidentais tiveram de incorporar esses novos cidadãos. Dados divulgados pela ONU, em dezembro de 2015, indicavam que havia 60
milhões de refugiados no mundo. Uma catástrofe humanitária,
realmente, em meio à farra que se promove com o dinheiro dos
povos nos paraísos fiscais. Uma excelente notícia, contudo, foi a
derrota da proposta racista reunida em torno da Frente Nacional
na França, nas eleições regionais de 2015. A provável – e por nós
para lá de desejável – vitória do Partido Democrata nos Estados
Unidos nas eleições presidenciais de 2016 certamente dará algum
alento ao quadro internacional também. O recuo de Vladimir
Putin na questão da Síria – caso realmente se confirme a partir
da retirada parcial das tropas russas do país – representa ainda
um passo importante para o futuro da paz no Oriente Médio e no
mundo. Outra boa notícia decorre do fato de que as relações entre
o Ocidente e o Irã tendem a se normalizar. E nem é preciso lembrar
novamente o quanto a estabilidade na União Europeia é condição
básica para a própria estabilidade mundial.
A democracia, até para poder se firmar como um valor de fato
universal, como sonhou o líder comunista italiano Enrico Berlinguer, tem de estar em permanente construção, alimentando-se da
seiva de todas as lutas travadas pelos homens, em todos os
quadrantes. A busca por um novo processo civilizatório não pode
prescindir das liberdades cívicas e dos direitos e deveres de cada
um de nós. Isso é certo. Mas também é correto apontar que se faz
necessário repensar a organização da vida econômica sob outros
moldes. Constatar, por exemplo, que a polarização não se dá entre
a propriedade estatal, de um lado, e o mercado ou a propriedade
privada dos grandes grupos econômicos, de outro. Isso porque a
noção de propriedade pública e do trabalho por conta própria
começa a abrir espaços, sinalizando para novas formas de se viver
e produzir em sociedade. É necessário entender que o mercado é
um dado da economia e não um sinônimo de modo de produção
capitalista. E que é possível reinventá-lo, ou seja, pensar em um
mercado diferente desse que aí está. No embate entre Estado e
mercado, a sociedade detém a palavra final. E mercado algum
pode se sobrepor à sociedade. As forças progressistas têm de estar
antenadas com esse novo tempo, retirando todas as consequências advindas disso. Um sistema econômico voltado unicamente
para o lucro conduz a sociedade humana a um impasse.
O Brasil completa sua Revolução Burguesa. E para onde vai?
65
Centrando sua crítica à visão utilitária da cultura, um intelectual como Nuccio Ordine tem batido ultimamente nessa tecla com
muita propriedade. Desemprego em massa no mundo, instrumentalização da cultura, danos terríveis ou até irreversíveis causados
ao meio ambiente, lucros exorbitantes na esfera financeira – tudo
isso vai tornando as sociedades humanas irrespiráveis, inviáveis.
A luta pela igualdade de oportunidades econômicas e culturais
areja a própria estrutura política pois a Democracia é sempre
uma totalidade e não existe uma liberdade separada das demais.
O avanço da automação, como salientamos, tem um potencial
transformador extraordinário, se encararmos a economia como
algo voltado para a satisfação das necessidades das pessoas e não
apenas do grande capital. Entendida assim, a automação é a base
técnica da sociedade sem classes. Ela contribui para implodir o
sistema de classes sob o capitalismo da mesma forma que, em seu
tempo, a Revolução Industrial abrira a via para a superação definitiva do sistema de ordens sob o feudalismo.
Como nos revelam os quadros de Marc Chagall, os filmes de
Vittorio De Sica, os romances de Maximo Górki, a arquitetura de
Oscar Niemeyer ou as canções de John Lennon, o sonho é fundamental em nossa existência. Vida é risco, e não há motivo para
que nos identifiquemos com Enrico Brentani, personagem de Italo
Svevo em Senilidade, “que ia atravessando a vida cauto, deixando
de parte todos os perigos mas também todo o deleite, toda a felicidade”. O engajamento é o outro nome do sonho. Aprendemos
com Thomas Mann o quanto é dúbio, para dizer o mínimo, um
comportamento pautado pelo “intimismo à sombra do poder”. Daí
a necessidade de contribuirmos para a reconstrução da esquerda,
até como forma de revitalizar o próprio Humanismo.
66
Ivan Alves Filho
A incrível fábrica de mitos
Sérgio C. Buarque
O
Partido dos Trabalhadores e o seu líder máximo, o
ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, têm demonstrado
uma especial e insuperável capacidade para fabricar
mitos utilizando com maestria imagens e símbolos em narrativas fantasiosas, exageradas e distorcidas de eventos e fatos reais.
Mito é a imagem simplificada, exagerada e ilusória dos fatos que,
sendo aceita pelos grupos humanos, passa a constituir explicação da realidade (segundo Aurélio Buarque de Holanda). Como
tal, os mitos resistem aos fatos, aos dados empíricos das estatísticas oficiais e mesmo aos argumentos consistentes e relevantes.
Na história recente do Brasil, alguns mitos fabricados pelo PT
passaram a constituir verdades definitivas e indiscutíveis para
seus militantes e simpatizantes, para algumas organizações
sociais e para parcela não desprezível da população (e mesmo
para parte da imprensa internacional e alguns intelectuais
estrangeiros), apesar dos fatos, dados e análises que vêm demonstrando, nos últimos anos, o evidente fracasso do governo petista e
a desmoralização ética do partido e seus principais líderes. Para
a maioria da população, parte significativa dos que votaram no
PT, iludidos por estes mitos, estas narrativas fantasiosas, estão
desmoronando, mas ainda resistem fortemente arraigados em
parte da opinião pública, mas não sobrevivem às evidências e aos
fatos da história. A fábrica de mitos do PT está na iminência de
fechar as portas por falta de suprimento e desmoralização no
mercado das ideias.
Os mitos confundem e poluem o debate político, criam fanatismos e comportamentos irracionais que podem levar à violência e,
no mínimo, a narrativas irreais que alimentam decisões equivocadas e perigosas. Desfazer mitos políticos é tão importante
quanto difícil na medida em que deve enfrentar imagens e narrativas simples e ilusórias ainda pouco permeáveis a fatos reais e
argumentos consistentes. Mas, esta crítica dos mitos políticos é
uma tarefa fundamental para orientar um debate, para conhecer
melhor a realidade e, desta forma, contribuir para a interpretação
da realidade e para despoluir os debates e os processos decisórios
que decidem o presente e o futuro do Brasil.
67
Primeiro mito
As políticas sociais dos governos do PT, especialmente a distribuição de renda do “Bolsa Família”, promoveram uma drástica
redução da pobreza e desconcentração de renda, tirando milhões
de brasileiros da condição de miséria. Os governos petistas realizaram a maior redistribuição de renda da história mundial.
Não se pode negar que, efetivamente, tem havido no Brasil
uma redução forte da pobreza e das desigualdades nas últimas
décadas, confirmada pelos dados e análises dos especialistas. Na
verdade, quase todos os indicadores sociais, incluindo pobreza e
desigualdades sociais, vêm melhorando continuamente, desde a
década de 80, mesmo sem qualquer política explicita e ainda em
momentos de alta inflação e baixo crescimento, quase como um
processo inercial. A redução da pobreza ganhou força a partir de
1993 pelo efeito combinado de três fatores: queda da inflação que
corroía a renda da população pobre, moderado crescimento da
economia a partir de 2004, e mudança demográfica com redução
do tamanho médio das famílias.
A primeira grande queda da pobreza e das desigualdades no
Brasil ocorreu bem antes do governo do PT, com o Plano Real, por
conta da redução drástica da inflação, melhoria decorrente,
portanto, do comportamento da economia e não de políticas
sociais, mesmo que não se possa ignorar iniciativas de formação
de uma rede de proteção social pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. A taxa de pobreza extrema no Brasil caiu em torno
de 4,41% ao ano, de 1993 a 2002 (período de maturação do Plano
Real) e a desigualdade social também declinou lenta mas continuamente, de 1993 a 2002.
No governo Lula, a melhoria dos indicadores sociais, principalmente a redução da pobreza, também tem mais a ver com a
economia que com políticas de assistência social como o Bolsa
Família. A continuidade da política macroeconômica pelo presidente Lula, operando com um superávit fiscal maior do que no
governo anterior, manteve a inflação em patamares baixos e criou
as bases para um crescimento econômico médio. Os seis primeiros anos da gestão petista contaram com excepcionais condições
externas de acelerado crescimento econômico, fluxo amplo de
capital e elevada demanda de commodities.
O crescimento da economia brasileira, nenhum milagre econômico, diga-se de passagem (taxa média anual de 4%, de 2002 a
2010), coincidiu com o aprofundamento de importantes mudan68
Sérgio C. Buarque
ças demográficas: baixa elevação da População em Idade Ativa e
queda significativa do tamanho médio das famílias.
Desde 1991, a PIA-População em Idade Ativa no Brasil (acima
de 15 e abaixo de 65 anos) vem crescendo a taxas fortemente declinantes: de 2,6% ao ano (de 1991 a 2000), caiu para 1,9% nos cinco
anos seguintes (de 2000 a 2005) e para apenas 1,2% (de 2005 a
2010). Mesmo considerando que parte desta população apta para o
trabalho não busca emprego (cerca de 50% da PIA busca trabalho,
ou seja, constitui a PEA-População Economicamente Ativa) é deste
segmento etário que emerge a oferta de mão de obra no país. Tamanha redução no ritmo de expansão da PIA explica o aparente mistério de queda do desemprego em um período de crescimento mesmo
moderado da economia (4% no mesmo período): a oferta de mão de
obra cresce bem menos que a demanda, o que promove também o
aumento do salário real do trabalhador. O “exército industrial de
reserva”, destacado por Marx no século XIX, vem declinando de
forma acelerada no Brasil, retirando a pressão para baixo que
exerce na formação dos salários.
Ao longo do período 1991/2010, enquanto a população apta
para o trabalho crescia cada vez menos, a economia melhorava
aos poucos o seu desempenho. E como a produtividade do trabalho praticamente estacionou no Brasil, o desemprego caiu e os
salários reais cresceram pelo jogo do mercado de trabalho, de
forma completamente independente de políticas.
A esta alteração na estrutura etária da população do Brasil
corresponde uma drástica diminuição da fecundidade (número
muito menor de filhos) e, como decorrência, do tamanho médio
das famílias brasileiras. Em 1991, nossas famílias tinham, em
média, 2,9 filhos (eram 5,3, em 1970), declinando para 2,4, em
2000, e apenas 1,9 filhos, em 2010, o que corresponde a famílias
com média de apenas 3,3 membros. Nestas últimas décadas,
segundo o demógrafo mineiro José Alberto Magno de Carvalho
(matéria da Piauí, nº 80), a redução da fecundidade e do tamanho
das famílias foi mais acentuada na população pobre, mesmo
porque este movimento já tinha ocorrido antes entre os mais
ricos. De modo que a renda domiciliar per capita entre os pobres
cresceu mais que na média da população, na medida em que o
denominador da relação – tamanho da família – despencou ao
mesmo tempo em que o salário real também cresceu.
Como resultado destes dois movimentos – aumento do salário
real e redução do tamanho das famílias – a renda domiciliar per
A incrível fábrica de mitos
69
capita cresceu bastante (maior renda para menos pessoas na família), levando ao declínio da pobreza e das desigualdades de renda.
Conclusão: o silencioso processo de mudança demográfica levou à
melhoria dos indicadores sociais independente das políticas sociais.
O problema é que esta mudança não aparece visível nem é propagada
pela máquina de construir mitos dos governos que insiste em dizer
que o milagre está no programa Bolsa Família e nas transferências
de renda. E como o fenômeno demográfico não é perceptível pela
opinião pública, tornou convincente o mito do “milagre” dos governos
petistas Tanto é assim que, nestes últimos dois anos, a recessão
econômica (estagnação em 2014 e queda de 3,8% do PIB em 2015)
jogou no desemprego cerca de 10 milhões de pessoas, o nível médio
da renda caiu e a inflação cresceu, corroendo a renda da população.
Segundo mito
O Nordeste foi a região que mais se beneficiou das políticas
sociais dos governos do PT, registrando maior crescimento econômico, recebendo mais assistência social que teria promovido a
redução da pobreza nordestina.
O PIB-Produto Interno Bruto do Nordeste vem se mantendo, ao
longo das décadas, inclusive nos governos do PT em torno de 13%
do PIB nacional (chegou a 13,6%, em 2012); e como a população
nordestina cresce mais que a média do Brasil, o PIB per capita
regional continua representando menos da metade do PIB per
capita brasileiro. Evidente que uma mudança de peso nesta posição relativa do Nordeste na economia e no PIB per capita do Brasil
demanda muito mais tempo que os 12 anos do governo do PT.
Durante as últimas décadas, incluindo o período dos governos
do PT, a pobreza vem caindo no Nordeste, acompanhando de perto
o declínio no país e em todas as outras macrorregiões. Ocorre,
contudo, que apesar do Nordeste ter recebido bem metade dos
benefícios do Bolsa Família, até porque tem a metade da população pobre, a pobreza nordestina caiu menos que a média do Brasil
e mesmo das outras macrorregiões, excetuando a Região Norte
que teve o pior desempenho. Com efeito, de 2004 a 2014, o percentual de famílias pobres no Brasil caiu cerca de 8,7% ao ano mas
no Nordeste a redução foi levemente inferior (8,3% ao ano). Quando
se compara com outras regiões, o mito do PT desmorona: a redução da pobreza na região Sul foi da ordem de 12,1% ao ano, no
Sudeste a queda foi de 10,9% ao ano, e o Centro-oeste registrou
um declínio de 14,2% ao ano.
70
Sérgio C. Buarque
Terceiro mito
O crescimento econômico brasileiro de 2003 a 2010 foi resultado
da política do presidente Lula, sem qualquer relação com o que foi
implementado no governo anterior e independente do grande boom
da economia internacional até 2008. E o Brasil soube lidar bem com
a crise internacional iniciada em 2008 graças à política anticíclica
de estímulo ao consumo da população e da ampliação do crédito.
Entretanto, segundo o mito, as dificuldades econômicas do governo
Dilma são totalmente decorrentes da crise externa.
Para o mito que mostra o PT grande gestor da macroeconomia,
a economia externa não teve nenhuma relevância no sucesso
econômico de 2004 a 2010, mas passou a ser determinante na
crise e no desmantelo da economia brasileira nos anos recentes.
Na verdade, o desempenho da economia mundial condicionou
decisivamente o crescimento da economia brasileira na primeira
década do século como está influenciando a crise brasileira atual,
embora a evolução da economia (pra melhor ou pior) tenha sido
resultado também das condições endógenas.
O desempenho positivo no governo de Lula só foi possível pela
sua decisão correta e corajosa, considerando o discurso expansionista e estatizante dominante no PT, de manutenção da política
macroeconômica – superávit fiscal, regime de metas de inflação, e
câmbio livre – e das mudanças institucionais realizadas antes –
privatização, agências reguladoras, e lei de responsabilidade
fiscal – fatores determinantes da estabilidade econômica e da
confiança aos agentes econômicos. A manutenção das políticas e
a maturação destas ao longo de mais dez anos criaram o ambiente
macro e microeconômico interno para aproveitamento das condições excepcionais da economia mundial: alta liquidez, elevada
demanda de commodities, termos de troca muito favoráveis ao
Brasil e entrada líquida de capital.
Nos dois primeiros anos da crise, o Brasil reagiu bem e não
afundou na crise mundial, teve uma pequena queda do PIB em
2009 e uma recuperação forte em 2010 mas iniciou desde 2011
um ciclo de retração que se aguçou em 2014 e 2015. O Brasil
conseguiu moderar o impacto da crise global nos primeiros anos
graças a dois fatores combinados: os fundamentos macroeconômicos, e a liquidez do sistema bancário e financeiro do Brasil.
Este último aspecto – liquidez do sistema bancário e financeiro do
Brasil – foi obtido, lá atrás, pelo Proer-Programa de Estímulo à
Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro NacioA incrível fábrica de mitos
71
nal (duramente criticado pelo PT no governo de Fernando Henrique Cardoso), fundamental para moderar o impacto da crise
externa, considerando que o desequilíbrio mundial teve origem na
completa desorganização do sistema financeiro.
Depois de atravessar os primeiros anos da crise mundial com
relativa estabilidade e mesmo crescimento, a partir de 2011 a
economia brasileira iniciou um processo de deterioração e retração. Precisamente quando começava uma recuperação da economia global, o Brasil afundava; em 2015 nossa economia foi uma
das poucas com crescimento negativo, na lamentável companhia
da Venezuela. Embora as condições externas não sejam tão favoráveis quanto na primeira década, o desempenho brasileiro vai na
direção contrária da economia mundial. A crise atual da economia
brasileira decorre diretamente dos equívocos e voluntarismos da
chamada “nova matriz econômica” com expansão do gasto, promoção de mais consumo, descontrole e leniência com o déficit público,
manipulação de tarifas e represamento artificial da inflação.
Quarto mito
O PT e os seus governos são representantes da esquerda e,
sendo esquerda é bom, e todos que criticam e se opõem às suas
políticas são de direita e, sendo direita são representantes do mau.
O recorrente discurso “Nós e Eles”, utilizado à exaustão pelas
lideranças petistas e seus aliados, carrega um maniqueísmo
simplista e autorreferente na medida em que tentam demonizar
seus adversários com a divisão dos brasileiros entre os bons e os
perversos. Além de tentar diluir as enormes nuances de visão de
mundo, interesses e posturas políticas na população brasileira e
nos políticos, este discurso mistifica o PT com destaque para o seu
líder messiânico. Apresentados como os representantes do bem e
da ética, os fatos recentes desmoralizaram o mito do PT que se
limita agora a reclamar que não são os únicos corruptos do Brasil.
A diferença esquerda-direita não parece muito pouco apropriada para analisar o espectro político-ideológico do Brasil
contemporâneo. Quem é esquerda neste momento no Brasil? Pode
ser dito, genericamente que esquerda é a tendência política comprometida com a redução das desigualdades sociais. Além de muito
pouco, o conceito deixa de considerar a diferença entre os fins –
redução das desigualdades sociais – e os meios, medidas e programas que promovam mudança relevante e consistente na sociedade.
72
Sérgio C. Buarque
A prática dos governos do PT, centrada nas políticas de distribuição de renda, está muito longe de atacar as causas estruturais das
desigualdades e da pobreza. Os seus programas, principalmente o
“Bolsa Família”, atuam nos efeitos e não nas causas e, desta forma,
não garantem a superação da pobreza e das desigualdades.
A desigualdade de renda não é causa e sim a consequência de
uma desastrosa disparidade de oportunidades na sociedade.
A fonte primária das desigualdades no Brasil reside no abismo
que separa a qualidade das escolas públicas, frequentadas pela
maioria esmagadora da população, das escolas particulares. Os
que não podem frequentar uma escola particular de qualidade
estão condenados à vulnerabilidade e deficiência de formação
profissional, desenvolvimento dos seus talentos e vocações e da
construção de uma vida digna e confortável.
O fundamental da perspectiva de um novo socialismo (nova
esquerda) é a eliminação, no longo prazo, das desigualdades de
oportunidades na sociedade e não apenas a “redução das desigualdades de renda”. A diferença entre esquerda e o populismo assistencialista do PT reside nos meios para eliminação (e não apenas
redução) das desigualdades de oportunidades na sociedade.
A sociedade desejada é aquela na qual os cidadãos, desde o nascimento, possam ter acesso igualitário ao desenvolvimento das suas
potencialidades, o que significa, em primeira linha, acesso à educação pública igualitária de qualidade. A igualdade de oportunidades
não significa igualdade de renda e sim igualdade de condições
sociais que permitam explorar suas capacidades para a sua formação como cidadão, o desenvolvimento dos seus talentos e vocações
e a construção de uma vida digna e confortável.
Para isso, são necessárias mudanças estruturais e radical
orientação dos recursos públicos em larga escala para a redistribuição de ativos sociais que promovam a igualdade de oportunidades: Educação pública de qualidade (ativo conhecimento),
Qualificação profissional (ativo tecnológico) e Saneamento básico
(ativo sanitário). Distribuição de renda com os pobres, como o
“Bolsa Família”, mesmo que possa ser aceitável como pequeno e
transitório alívio da pobreza, não promove nenhuma transformação efetiva da realidade social e econômica capaz de eliminar esta
condição indigna de milhões de brasileiros. Na verdade, estes
programas compensatórios perpetuam a pobreza e as desigualdades sob o mito da generosidade de esquerda que termina contribuindo para o populismo que propaga a figura de Lula como o
“pai dos pobres” no velho estilo messiânico.
A incrível fábrica de mitos
73
IV. Economia e
Desenvolvimento
Autores
José Osmar Monte Rocha
Contador, auditor, analista de Controle e Finanças do Ministério da Fazenda
(aposentado) e professor da Universidade do Distrito Federal (UDF).
Laécio Noronha Xavier
Advogado, doutor em Direito Público/UFPE, mestre em Direito Constitucional/
UFC, especialista em Economia Política/UECE e professor de Direito Internacional
Público/Unifor e Ciência Política/FCRS.
Ricardo Abramovay
Professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia e
Administração da USP, autor de Muito Além da Economia Verde.
As perdas dos legados da estabilidade
econômica e da inclusão social
Laécio Noronha Xavier
O
Brasil assiste estupefato, em 2016, a recessão econômica
e as contraditórias tentativas de ajustes patrocinadas pelo
governo federal. O primeiro desses ajustes, fiscal, com
corte de investimentos sociais e aumento de impostos visando
equilibrar as contas públicas e diminuir o déficit nominal, mas
sem manter o superávit primário e impedir a queda no PIB.
O segundo, “parafiscal”, com redução do crédito público subsidiado pelo Tesouro, mas, ao mesmo tempo, lança novas linhas de
crédito sem que haja demanda de tomadores. O terceiro, cambial,
em face da alta do dólar, visando deter o déficit em conta-corrente
e elevar o superávit comercial, somente conquistado com a queda
de 19% do volume do comércio exterior, em especial as importações. O quarto, de contenção inflacionária, dada a correção dos
preços administrados que ficaram congelados, apesar da redução
do consumo e alta no desemprego. E o monetário, em que o Banco
Central não pode usar de estímulos para reativar a economia
(diminuir juros, ampliar crédito ou liberar recolhimento compulsório dos bancos), obrigando-se a aumentar os juros pelo crescimento da inflação, queda de arrecadação e alta dívida bruta.
Todos estes fatos juntos, além do crescimento mundial baixo, a
China desacelerando seu PIB, os preços das commodities tendo caído
e os Estados Unidos subido sua taxa de juros e, por consequência,
elevado o dólar, jamais justificarão a atual crise econômica brasileira, que foi largamente anunciada e era perfeitamente evitável.
Mas, o governo que semeou ventos com desenfreada gastança num
passado recente, atualmente colhe uma “tempestade perfeita”, já que
77
continua a gastar mais que arrecada e o Estado demonstra não
caber mais no orçamento. Lista-se pelo menos dez erros dos governos Lula e Dilma como um breve diagnóstico da maior recessão
econômica dos últimos 35 anos no Brasil.
Aponta-se como primeiro erro a subestimação da crise dos
subprimes dos EUA (2008) pelo presidente Lula, que a tratou como
“marolinha”. Ao sentir a força da queda do PIB em 2009 (-0,3%)
em relação a 2008 (5,2%), o governo estimulou o crescimento da
economia pelo consumo, ampliação do crédito, desoneração de
impostos para bens de consumo (carros e eletrodomésticos),
concessão de reajustes generosos ao funcionalismo e mais aumentos do salário mínimo, com indexação dos benefícios de menor
valor para aposentados. O resultado imediato foi espetacular:
crescimento de 7,5% do PIB em 2010. Contudo, Lula exagerou nas
doses da medida anticíclica e a manteve até as eleições/2010, com
Dilma não corrigindo os excessos e levando à insuficiência do
caixa do Tesouro nos anos seguintes. (LEITÃO, 2015).
Indica-se como segundo erro a redução artificial dos juros.
Dilma forçou o Banco Central a reduzir os juros para atender
promessas de campanha, com a taxa Selic caindo de 12,50%, em
julho/2011, para 7,25%, em março/2013, e daí subindo sucessivamente até 14,25%, em novembro/2015 (LEITÃO, 2015). Taxa de
juros baixos é objetivo desejável, mas caso seja reduzida, sem
atentar para a autonomia do Banco Central, pode acabar elevando
a inflação, e posteriormente, ampliar-se, uma vez que em
março/2016 ainda permanecia em 14,25%.
Define-se como terceiro erro a inflação fora da meta. Desde
2010, ela permanece acima da meta oficial (4,5%), como demonstra
o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), o indicador oficial
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): 2010 –
5,90%; 2011 – 6,50%; 2012 – 5,83%; 2013 – 5,91%; 2014 – 6,41%.
E, em 2015, o índice fechou em dois dígitos (10,67%). Outra razão
da elevada inflação foi o represamento pelo governo dos reajustes
da energia e da gasolina entre 2012-2014, implicando no estouro
em 2015 de seu volume reprimido. Portanto, o governo federal foi
pouco cuidadoso com a meta de inflação, com o limite da tolerância
se transformando no teto da meta: 6,5%. (FUCS, 2016).
Evidencia-se como quarto erro a administração temerária da
Petrobras e seu uso ilegal político e econômico, repleto de ilicitudes. Medidas adotadas (ou omissões) pelos presidentes Lula e
78
Laécio Noronha Xavier
Dilma foram desastrosas para a empresa e o país, entre as quais
(LEITÃO, 2015):
a) investimentos realizados para agradar aliados políticos,
como as refinarias Premium I e II (Maranhão e Ceará) que viraram prejuízo, e a Refinaria Abreu e Lima (Pernambuco) em
parceria com a empresa venezuelana PDVSA que desistiu de
ficar no negócio;
b) o governo Lula mudou o marco regulatório do Pré-sal de
concessão para partilha, além das regras de aquisição de componentes com conteúdo nacional, paralisando por cinco anos as licitações dos lotes, bem como a queda no interesse pelo petróleo do
Brasil quando surgiram outras novidades, como o gás de xisto
nos EUA, as áreas de Pré-sal na África, México e Colômbia, o
retorno do Irã ao mercado depois de décadas de sanções comerciais e a diminuição do preço do barril de petróleo de US$ 115
(junho/2014) para US$ 30 (dezembro/2015), arbitrada pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep);
c) quando a cotação do petróleo estava alta em 2012, Dilma
interferiu nos preços internos, impedindo o reajuste dos combustíveis e produzindo um prejuízo bilionário para a Petrobras;
d) a corrupção na Petrobras representou um fator desestabilizador das finanças e da credibilidade da empresa, cuja ação
passou de R$ 44,66, em maio/2008, para R$ 4,01, em janeiro/2016,
além do alto endividamento (R$ 506 bilhões em 2015) e queda no
valor da empresa (R$ 510,3 bilhões, em maio/2008, e R$ 73,7
bilhões, em janeiro/2016).
Pontua-se como quinto erro a política de “empresas campeãs
nacionais” e as transferências de recursos do Tesouro ao Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Entre
2008-2014, o governo ampliou os recursos injetados no BNDES
(20% do crédito do país ou R$ 500 bilhões) e que passaram a ser
contados como ativos, apesar da pouca probabilidade desse
dinheiro voltar aos cofres do Tesouro. Os financiamentos bilionários privilegiaram grandes empresas, respondendo por cerca de
2/3 do volume de seu crédito anual. Encaixam-se nessa categoria
os negócios do BNDES com EBX, JBS Friboi, Votorantim, BRF,
D’Or, São Luiz, Cutrale, EMS, Riachuelo, Americanas, Boticário e
Natura, bem como a ampliação dos financiamentos de infraestrutura realizados por empreiteiras brasileiras em Cuba, Venezuela,
Equador, Argentina, Uruguai, Peru, Bolívia, Panamá, Nicarágua,
Angola e Moçambique. (LIMA, 2015).
As perdas dos legados da estabilidade econômica e da inclusão social
79
Identifica-se como sexto erro o aumento do déficit fiscal. Quando
Delfim Netto (2013) propôs em 2005 e 2013, respectivamente, aos
ministros da Fazenda, Antonio Palocci e Guido Mantega, aumentar
o superávit primário (saldo entre receita/despesa, menos os gastos
com os juros das dívidas interna e externa) até alcançar o déficit
nominal zero (economizar para pagar todas as despesas do governo,
inclusive com juros), Dilma, como ministra da Casa Civil e presidente da República, fulminou a ideia. Entretanto, sua política
fiscal, a partir de 2011, fez o déficit tornar-se recorrente (estrutural) e atingir 9,5% do PIB, em 2015. Sem mencionar que, em 2016,
haverá aumento de despesas indexadas de R$ 75 bilhões (previdência, seguro-desemprego e outros benefícios). A única despesa que o
governo conseguiu reduzir no período foram os investimentos (40%
em 2015), que caíram a patamares de 2010. E a conta dos subsídios concedidos nos anos anteriores continuará sendo paga nos
próximos anos. Para cortar R$ 30 bilhões e chegar à meta de
poupar 0,7% do PIB (superávit primário defendido por Joaquim
Levy em 2015), seria preciso acabar com subsídios ao Minha Casa,
Minha Vida (R$ 15 bilhões) e ao setor agrícola (R$ 7 bilhões) e
cortar novamente os investimentos em 20% (ALMEIDA, 2015). Caso
a concepção econômica fosse reduzir custos públicos e conter a
dívida pública via superávit primário (2% do PIB), Levy nem necessitaria sair do governo.
Avalia-se como sétimo erro a Medida Provisória 579/12 que
força a baixa do preço da energia do consumidor doméstico (18%)
e dos segmentos produtivos (32%) em 2013, desequilibrando o
setor energético. Tal fato ocorreu quando a inflação era ascendente e os níveis dos reservatórios das hidrelétricas caíam (escassez de chuvas), com as usinas térmicas tendo de ser acionadas
(energia mais cara que a de hidrelétricas). Companhias de vários
estados (Cesp/SP, Cemig/MG, Copel/PR, Celg/GO) rejeitaram o
acordo proposto pelo governo federal, que ordenou ao setor energético tomar empréstimos bancários dando como garantia aumentos futuros nas tarifas. Passada a eleição/2014, os preços da
energia saltaram (47,95%), contribuindo para elevar a inflação em
2015. (MONTEIRO; MOURA, 2013).
Assevera-se como oitavo erro a maquiagem nas contas públicas, com pedaladas fiscais e decretos de elevação de gastos sem
autorização do Congresso e descumprindo o orçamento. O governo
federal manteve suas despesas em alta (e acima da arrecadação),
mas, em vez de apertar o cinto, recorreu a truques contábeis e à
criação de receitas extraordinárias (não recorrentes). Mesmo com
80
Laécio Noronha Xavier
o país tendo uma das maiores cargas tributárias do planeta, os
recursos não são ainda suficientes para as demandas do governo.
Como o Estado não cabe em seu orçamento, o governo pressiona
por aumento do dinheiro em circulação, dificulta o combate à inflação e eleva o endividamento público. E o resultado da “dominância
fiscal” é a necessidade de maior financiamento público (e refinanciamento da dívida) competindo pela poupança privada e exaurindo os mercados de capitais, que existe quase exclusivamente
para carregar a dívida pública, com a política fiscal elevando as
taxas de juros (com repasse da culpa para o Banco Central) e reduzindo os recursos privados disponíveis para os investimentos privados, com tal desequilíbrio acirrando a queda no ritmo de crescimento da economia. (GUANDALINI, 2014).
Considera-se como nono erro a falta de reformas institucionais. Em especial, previdenciária, tributária e trabalhista, quando
o Brasil tinha condição para reformar-se (2003-2012), diferente
do atual momento recessivo. Em 2015, o déficit da previdência foi
de R$ 40 bilhões, e considerando estados e municípios, a cifra
atingiu R$ 85,8 bilhões (projeção de R$ 120 bilhões para 2016),
implicando na insustentabilidade financeira da Previdência em
médio prazo, e gerando impactos imediatos nas contas públicas e
economia. (VARELA, 2016).
Sobre a questão tributária, mesmo com alto nível de arrecadação de impostos e distribuição de renda desigual no Brasil, as
receitas dos impostos sobre rendimento pessoal são proporcionalmente baixas, devendo o Imposto de Renda ser a principal fonte
de receita e recolhido a partir de pelo menos 15 alíquotas, ao invés
das 05 atuais. Para Pazzianotto (2015), os sindicatos deveriam
seguir a Convenção nº 87, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e desligarem-se totalmente do Estado, significando a
autonomia da organização sindical, reconhecimento pleno como
pessoa jurídica de direito privado, encerramento do processo de
registro no Ministério do Trabalho e fim das contribuições compulsórias e dos repasses do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
Analisa-se como décimo erro a ausência de ajuste fiscal em
2015 e 2016. O papel de Joaquim Levy era ajustar a economia,
cortar gastos, aumentar impostos e entregar um superávit nas
contas públicas em 2015, fato que significaria a transição das
ideias econômicas da Universidade de Campinas (capitalismo de
Estado) para as da Universidade de Chicago (capitalismo liberal).
Mas a recessão econômica tornou impossível cumprir tais metas.
Mesmo com as alíquotas de impostos subindo, a arrecadação caiu
As perdas dos legados da estabilidade econômica e da inclusão social
81
5,6% (R$ 1,27 trilhão, em 2014, para R$ 1,22 trilhão, em 2015).
E o forte, no corte dos gastos públicos, ocorreu justamente nos
investimentos (saúde, educação, infraestrutura), enquanto aumentavam as despesas com a Previdência e subsídios empresariais,
além da economia temporária com o adiamento do pagamento de
despesas (alteração do cronograma de abonos salariais e atraso na
quitação de fornecedores). Portanto, Levy não fez ajuste fiscal
nenhum, até porque o governo manteve sua herança maldita nas
contas públicas e não realizou as reformas institucionais previdenciárias, trabalhistas e tributárias. (ALMEIDA, 2015).
Ajuste fiscal é um remédio obrigatório que implica em efeitos
colaterais. Todavia, o receituário econômico contraditório do
governo federal, ao invés do remédio, indica mais doses do mesmo
veneno. Como a inflação ficou em 12,67%, em 2015, a saída foi
subir a taxa de juros (14,25%) visando inibir o crédito e reduzir a
demanda. Todavia, como a economia encontra-se em recessão, a
alta de juros reduziu o crescimento econômico (-3,8% do PIB),
ampliou o déficit nominal para 9,5% do PIB, aumentou a dívida
pública bruta (65,7% do PIB) e fez crescer a cotação do dólar, uma
vez que fechou 2015 em R$ 4,02. Em fevereiro/2016, Nelson Barbosa
anunciou medidas complexas, projetos que sequer foram formulados e corte de despesas de R$ 23,4 bilhões, e ao mesmo tempo fez
o oposto, uma vez que o governo pode ter déficit de 0,97% do PIB
em 2016, caso peça ao Congresso Nacional um “espaço para relaxamento fiscal” de até R$ 82,4 bilhões para descumprir a meta.
Não é à toa que o Orçamento/2016 encontra-se repleto de suposições de receitas: CPMF, dinheiro da Lei de Repatriação, dividendos
pagos pelas estatais se tiverem lucros, pagamento das concessões
ainda não licitadas e não pagamento de precatórios. Com tal arrecadação duvidosa, o governo poderá afirmar ao Congresso que
houve frustração de receitas e solicitar espaço para gastar, inventar dinheiro, produzir déficit e aumentar o desequilíbrio fiscal
(LEITÃO, 2016). Ou seja, como sintetiza David Ricardo em seu
Princípio da Equivalência: Não existe gasto público sem imposto,
dívida pública ou calote, ontem, hoje ou amanhã.
Observa-se que a economia brasileira está colhendo os resultados dos erros crassos cometidos num passado recente. E a situação do ministro Nelson Barbosa é a pior dos mundos, tendo em
vista que não pode acusar muito o antecessor e culpar a situação
em que encontrou as contas públicas, por fazer parte da equipe
econômica entre 2003-2013, e ter sido ministro do Planejamento
em 2014 da mesma presidente Dilma. Definitivamente, distorcer a
82
Laécio Noronha Xavier
realidade, negar a gravidade da crise e escolher “vilões irreais” não
são as medidas mais indicadas para as lideranças políticas enfrentarem o atual quadro de problemas econômicos estruturais.
Portanto, com base no quadro econômico delineado pode-se construir um cenário “pessimista” para o segundo mandato de Dilma e
considerar a atual década como perdida: política econômica heterodoxa, desonerações tributárias seletivas, inflação acima do teto
da meta, delicada situação das contas públicas, perda do grau de
investimento e desempenho negativo do PIB. Principalmente,
porque a crise é fruto de uma “tempestade perfeita” e envolve fatos
desastrosos sob o ponto de vista econômico, político e ético. E não
foi por falta de alerta, uma vez que o colapso foi anunciado por um
farto quadro de analistas econômicos.
As projeções mais otimistas indicam que o brasileiro chegará
mais pobre em 2020 do que estava em 2011, já que a renda não
conseguirá vencer a inflação, nem a produção conseguirá superar
a pobreza com crescimento inferior a 2,5% ao ano e menor que a
média de crescimento global em 2015 (3%). Prognósticos do FMI,
Banco Central e IBGE mostram que: o PIB per capita recuou dos
US$ 13,2 mil (2011) para US$ 11,6 mil (2014) e cairá para US$ 9,7
mil em 2020; o PIB cresceu abaixo do necessário para abrir postos
de trabalho suficientes; os juros que estavam no patamar de
11,50%, em 2011, chegaram a 14,25%, em 2015, e somente em
2020 estabilizarão em 9%; a inflação que estava no teto da meta
em 2011 (6,5%), estourou em 2015 (10,67%), e apenas em 2020
alcançará a meta (4,5%). Uma possível reversão somente se dará
a partir de 2019 e com uma nova concepção econômica e renovação de lideranças políticas. E crescer em ritmo forte daqui a
alguns anos será mais difícil para o Brasil, porque a população
estará estável e envelhecendo. Por isso, a perda de uma década na
economia significa uma tragédia social. (OLIVEIRA, 2015).
E a perda de credibilidade social no governo federal para
conduzir a política econômica e realizar o ajuste fiscal com seu
conjunto de convicções econômicas equivocadas fundamenta a
queda do PIB, aumento da inflação, elevação dos juros, alta do
déficit nominal, retração dos investimentos produtivos, diminuição no volume do comércio exterior e cortes nos programas sociais
em 2015, com a população sentindo intensamente os efeitos da
recessão, tanto na diminuição da produtividade e competitividade
das empresas, como na deterioração dos serviços públicos, além
do desemprego crescente, perda de aumento real do salário
mínimo e paralisação na redução da pobreza.
As perdas dos legados da estabilidade econômica e da inclusão social
83
O crescimento do PIB nos governos Dilma (2011– 2015) aponta
para o pior resultado da história econômica brasileira, com 0,5%
em média/ano. E os prognósticos do FMI pioram o quadro com
-3,5, em 2016, e estagnação, em 2017. Conforme o FMI, entre
2011-2014 a variação média anual do PIB do Brasil foi de 1% em
comparação com o mundo (3,2%). O IPCA chegou a 10,67%, em
2015, a maior taxa desde 2002. E a inflação nas faixas de baixa
renda, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor
(INPC), via IBGE, chegou a 11,3%, com a alta média de preços
para as classes D e E sendo ainda maior (13,5%). E como a maioria dos países vivencia inflação baixa ou deflação, a alta da inflação no Brasil está na contramão do mundo. Já as taxas de investimento/PIB passaram de 20,5%, em 2010, para 17,4%, em 2015,
com os índices de produtividade do trabalho caindo de 5,4% para
0,3% no mesmo período. E a participação da indústria no PIB,
conforme o IBGE/Fiesp, retraiu em 2015 (10,9%) para indicadores
aquém de 1950 (11,5%). Não sem razão, o índice de confiança da
indústria caiu de 113,5 pontos, em 2010, para 76,7 pontos, em
2015. (FUCS, 2016).
O fim do boom das commodities (2004-2012), a retração de 3,8
da economia em 2015 e a desvalorização cambial (dólar subiu de
R$ 2,65, em dezembro/2014, para R$ 4,02, em dezembro/2015)
contribuíram para que o Brasil registrasse, em 2015, um saldo
positivo de US$ 19,7 bilhões nas operações de comércio exterior,
mas tendo como justificativa a queda de volume total comercializado de 14,1% nas exportações (US$ 191,1 bilhões) e de 24,3% (US$
171,4 bilhões) nas importações, com redução de todas as categorias de importações (bens intermediários, bens de capital, bens de
consumo e combustíveis), conforme dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. (CUCOLO, 2016).
O governo federal vai registrar, em 2016, o terceiro ano de déficit primário. O resultado da gastança em volume superior ao
orçamento foi mascarado pelas “pedaladas fiscais” (2008-2014),
imaginando-se que desonerações tributárias e subsídios de
crédito de bancos (BNDES, Caixa, BNB, Banco do Brasil) levariam necessariamente ao crescimento econômico. As receitas do
Tesouro, em 2015, foram de R$ 1,035 trilhão e as despesas somaram R$ 1,150 trilhão, com déficit de R$ 115 bilhões e um resultado primário de -1,6% do PIB, implicando numa queda do crédito
bancário para novos empréstimos, já que em 2014 somava
R$ 3,78 bilhões, e em 2015, diminuiu para R$ 3,66 bilhões, uma
diferença de R$ 120 bilhões. E com os juros em 14,25% ao final de
84
Laécio Noronha Xavier
2015, os gastos anuais com a dívida pública bruta representaram
cerca de 9,5% do PIB, ou seja, em dezembro/2010, passou de R$
2 trilhões (51,8% do PIB) para R$ 3,8 trilhões (65,7% do PIB) em
dezembro/2015. (FUCS, 2016).
O resultado de uma década de estímulo ao consumo das famílias mostra que de março/2005 a outubro/2015 o custo dos juros
pulou de 4,6% para 10,1% da renda dos brasileiros ampliando o
endividamento (46%) e a inadimplência total das famílias. Por outro
lado, os bancos incorporaram proteção contra o calote, tornandose mais seletivos na concessão de empréstimos, escolhendo melhor
os tomadores de crédito, pedindo mais garantias, encurtando
prazos e elevando o spread bancário, fato que agrava ainda mais o
quadro econômico. Conforme o Banco Central, os juros no Cheque
Especial dispararam de 138,2% (2012) para 287,1% (2015), e os
saques na Caderneta de Poupança bateram recordes em relação
aos depósitos: – R$ 53,6 bilhões, em 2015, em relação aos + R$
23,8 bilhões, em 2014. Já o Sistema de Proteção ao Crédito (SPC)
indica atrasos nas dívidas financeiras e nos serviços (telecomunicações, água, luz e outras taxas). E o principal efeito é o retardamento da recuperação do PIB, dificultando a reorganização do
orçamento familiar via consumo e do setor privado, com a queda da
produção e dos investimentos. (LEITÃO, 2016).
De acordo com o Pnad/IBGE, em dezembro/2013 os desempregados no Brasil eram 6,1 milhões, passando em dezembro/2015
para 9,5 milhões (10,1%, em 2015, e projeção de 12%, em 2016).
No primeiro momento, contam com indenização trabalhista,
recursos do FGTS e seguro-desemprego. Mas, depois de algum
tempo, essas pessoas dificilmente conseguirão novo trabalho
formal. E no mercado informal, fatalmente terão renda menor
(ALMEIDA, 2015). Já o salário mínimo (R$ 880,00, em
janeiro/2016), a remuneração de 50 milhões de trabalhadores e
de 22,5 milhões de aposentados, pensionistas e beneficiários da
Lei Orgânica de Assistência Social repassados pelo Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS) não terá aumento real até 2019,
porque a fórmula definida desde 2003 entre governo e centrais
sindicais estabelece sua subida conforme a inflação (INPC) do ano
anterior e o crescimento do PIB de dois anos antes. Como o país
teve recessão em 2015, continuará com crescimento negativo em
2016 e deve ficar sem crescer em 2017, somente haverá aumento
real (acima da inflação) em 2020, e caso o país cresça em 2018.
(LEITÃO, 2016).
As perdas dos legados da estabilidade econômica e da inclusão social
85
De 2000 a 2010, o número de pessoas inseridas no mercado de
trabalho formal duplicou, com o poder de compra do salário
mínimo tendo dobrado entre 2003-2013. O número de famílias
beneficiadas, via Bolsa Família, passou de 3,6 milhões para 13,8
milhões e atingiu 40 milhões de pessoas, com o volume das transferências representando R$ 18,5 bilhões ou 0,5% do PIB.
O volume pago conseguiu tirar as pessoas da miséria, mas não da
pobreza, com 16 milhões ainda vivendo na miséria e 43 milhões
na linha de pobreza (CNBB, 2015). Em 2013, pela primeira vez em
dez anos, a velocidade da redução da pobreza e da desigualdade
caiu de 3,4% (2011) para 0,6% (2013). Em 2015, depois de dez
anos, a renda da população caiu. O ganho médio real teve queda
de 3,7% nas regiões metropolitanas, passando de R$ 2.353 (2014)
para R$ 2.265 (2015), com as estimativas apontando que, em
2020, a renda per capita será de R$ 2.103, a mesma de 2010, mas,
superior à de 2003: R$ 1.763,85. (FUCS, 2016).
Com base no Orçamento da União, oito dos nove principais
programas sociais dos governos Lula e Dilma perderam recursos
em 2015, e para 2016 apontam mais retração. Excetuando o Fies,
quatro programas tiveram corte nominal, como Pronatec (-44%),
Prouni (-14%), Brasil Carinhoso (-51%) e Minha Casa Minha Vida
(-58%), e outros quatro programas tiveram seus valores nominais
corroídos pela inflação, registrando perda real em relação a 2014:
Bolsa Família, Brasil Sorridente, Pronaf e Luz Para Todos. Como
o forte do “ajuste fiscal” de 2015 foi cortar gastos com políticas
sociais, o aumento do desemprego e a queda nos rendimentos
médios farão com que a população mais pobre pague a conta da
crise, uma vez que, conforme o IBGE, a nova classe média perdeu
força em 2015, com 3,7 milhões de pessoas saindo da classe C
para as classes D e E. (BONFIM, 2016).
Mesmo com enorme capital político na fase de alta das exportações (2004-2012), os governos do PT não o utilizaram para fazer as
reformas necessárias, priorizar a poupança pública, realizar investimentos em infraestrutura. Lógico, não haverá crise social como nos
anos 1980, até porque a rede de cidadania criada com a Constituição/1988 tornou o Brasil mais resiliente às crises econômicas. Todavia, o risco da manutenção da atual política econômica é prejudicar
os mais pobres, com a implosão tanto do legado de bem-estar social
dos governos do PT da década passada, como da herança da estabilidade econômica patrocinada na década de 1990 por Itamar Franco
e Fernando Henrique Cardoso, pondo fim, assim, ao mito que governos populistas, como os do PT, governam para os mais pobres.
86
Laécio Noronha Xavier
Referências
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da previdência. O Povo. 18/02/2016. Economia, p. 16.
As perdas dos legados da estabilidade econômica e da inclusão social
87
Brasil fica mais distante
da fronteira global da economia,
do conhecimento e da inovação
Ricardo Abramovay
E
xaltar as virtudes de um suposto modelo inclusivo de crescimento econômico que marcaria o Brasil do século XXI,
como faz recente coletânea do International Policy Centre
for Inclusive Growth, do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento, é transformar vício em virtude. Não há dúvida
que – da mesma forma que na grande maioria do mundo em desenvolvimento, especialmente na China e na Índia, mas também em
vários países da África e da América Latina – a miséria absoluta
foi sensivelmente reduzida, o emprego formal aumentou e a escolarização cresceu. Da mesma forma, nunca é demais ressaltar a
drástica redução no desmatamento da Amazônia brasileira, que
isoladamente pode ser considerada como a maior conquista global
na luta contra as mudanças climáticas.
O que, entretanto, a coletânea deixa na sombra e que agora
vem tragicamente à luz é a fragilidade das bases econômicas
destas conquistas e a natureza conservadora das redes e coalisões sociais em que elas se apoiaram. Do que se trata?
O Brasil – e, com ele, os mais importantes países da América
Latina – distanciou-se da fronteira global da economia do conhecimento e da inovação. Isso reduz as oportunidades de retomar o
crescimento econômico e, portanto, de manter e aprofundar as
importantes conquistas dos últimos anos. A demonstração empírica desta distância vem de um indicador que acaba de ser divulgado pelo Center for International Development da Universidade
de Harvard, num trabalho dirigido pelo economista venezuelano
Ricardo Hausmann e pelo físico chileno Cesar Hidalgo. Seu Atlas
da Complexidade Econômica é uma das mais importantes contribuições recentes para compreender a maneira como diferentes
países usam seus recursos materiais, energéticos e bióticos e os
impactos deste uso sobre sua prosperidade.
O Brasil, por exemplo, em 2012, exportou para a China US$
41 bilhões e dela importou US$ 33 bilhões. Esta relação comercial
aparentemente favorável para nós esconde algo muito preocu88
pante. Enquanto os produtos exportados pelo Brasil são pouco
densos em conhecimento teórico e prático (minério de ferro, soja,
petróleo, açúcar) o que importamos dos chineses (telefones,
computadores, circuitos integrados e imensa diversidade de
produtos industriais) supõe alta capacidade de imprimir informação à matéria.
A complexidade de uma economia relaciona-se à “multiplicidade dos conhecimentos úteis nela embutidos”. Estes conhecimentos, por sua vez, não são apenas teóricos, mas envolvem o
“saber fazer” (know how), ou seja, uma dimensão prática e tácita
fundamental. Em última análise, o que marca as sociedades
humanas é a capacidade não só de imaginar produtos, mas de
operar transformações materiais capazes de trazê-los à existência, que se trate de uma lança, de uma carruagem ou de um
smart phone.
A esmagadora maioria dos objetos de que dependemos exprimem nossa capacidade de incorporar conhecimento teórico e
prático à matéria. E esta incorporação não depende apenas do
conhecimento dos indivíduos, mas, antes de tudo, das redes
sociais em que eles estão imersos e que têm capacidade de acumular, materialmente, conhecimentos teóricos e práticos, informação, obviamente muito superior à de qualquer pessoa, por mais
inteligente que seja.
Cesar Hidalgo, num livro fascinante recentemente publicado,
mostra que estas redes não são apenas entre indivíduos, mas
também entre empresas: o iPod da Apple, por exemplo, só foi possível em função de um dispositivo inventado pela Toshiba. De forma
geral, os computadores (mas este raciocínio vai muito além deste
produto específico, claro) são construídos por uma rede de empresas, mais que por uma empresa. Hidalgo apoia-se em estudos de
sociologia da vida econômica para mostrar que a complexidade (ou
seja, a capacidade de imprimir conhecimento à matéria) depende
diretamente da natureza das redes sociais e não simplesmente do
abstrato funcionamento dos mecanismos de mercado.
As sociedades mais prósperas são as que alcançam redes
sociais extensas, que não derivam de relações familiares ou do
domínio político de um restrito grupo sobre os recursos econômicos. Produtos que exigem grandes volumes de conhecimento só
podem ser fabricados ali onde emergiram redes sociais capazes
de lhes dar sustentação. Ao contrário, ali onde estas redes sociais
são pouco densas e restritas, a tendência é fabricar aquilo que
Brasil fica mais distante da fronteira global
89
uma grande quantidade de países fabrica, já que isso supõe baixa
acumulação social de conhecimentos, sob o ângulo da informação neles contida.
Uma comparação entre o que os países importam e exportam
dá uma boa medida destas redes e, portanto, da complexidade da
vida econômica de cada um. O Brasil, por exemplo, em 2012,
exportou para a China US$ 41 bilhões e dela importou US$ 33
bilhões. Esta relação comercial aparentemente favorável para nós
esconde algo muito preocupante. Enquanto os produtos exportados pelo Brasil são pouco densos em conhecimento teórico e
prático (minério de ferro, soja, petróleo, açúcar) o que importamos
dos chineses (telefones, computadores, circuitos integrados e
imensa diversidade de produtos industriais) supõe alta capacidade de imprimir informação à matéria. Tanto o Atlas da Complexidade Econômica como o livro de Cesar Hidalgo oferecem ilustrativas figuras mostrando, país por país, a estrutura de suas
exportações e a maneira como se relacionam tanto com a economia global como, individualmente, uns com os outros. O que estas
figuras revelam é a propensão de as redes sociais de cada país
estimularem a ampliação do conhecimento teórico e prático (como
na China) ou, ao contrário, de se restringirem a produzir basicamente o que seus recursos oferecem e o que não supõe alto nível
de informação (como, de forma geral, na América Latina).
O modelo econômico que fez da exportação de commodities
agrícolas e minerais a base essencial da riqueza que permitiu
melhorar a situação social dos mais pobres no Brasil está se decompondo. E uma das expressões mais trágicas desta decomposição foi
divulgada há alguns dias numa atualização do Atlas da Complexidade Econômica: entre 2004 e 2014, o Brasil perdeu nada menos
que dez posições no Índice de Complexidade Econômica. Colômbia,
Argentina e Chile também perderam várias posições.
A desindustrialização brasileira é apenas a face mais visível de
um problema muito maior e mais comprometedor. Enquanto
China e Índia apoiam cada vez mais sua vida econômica em redes
sociais que fazem do conhecimento teórico e prático a base de
suas relações, o Brasil enreda-se nas coalisões em que fósseis,
hidrelétricas caras e ineficientes e baixa capacidade de agregar
valor aos produtos formam sua cultura empresarial dominante.
Promover justiça social sobre uma base tão conservadora é condenar-se ao recuo que hoje, perplexo, o Brasil está sofrendo.
90
Ricardo Abramovay
Os riscos políticos da desindustrialização prematura
Em nenhum lugar do mundo foi maior que na América Latina
o aumento na renda dos 40% mais pobres da população, na
primeira década do milênio. No entanto, como mostra um trabalho recente do Banco Mundial, este inédito surto equitativo foi
efêmero: o Continente encontra-se em seu quarto ano consecutivo
de baixo crescimento. Na raiz deste desempenho errático está o
mau preparo da região para um “crescimento de longo prazo”.
A “dependência de commodities agrícolas e minerais” está entre os
componentes decisivos deste despreparo.
É verdade que o início do século XXI entrará para a história
como o período de ascensão econômica do hemisfério Sul. Mas as
diferenças entre a Ásia do Leste e a América Latina nos respectivos
padrões de crescimento contribuem para explicar as perdas das
importantes conquistas sociais que marcaram os primeiros anos do
milênio entre nós, tema cuja abordagem foi feita anteriormente.
O relatório do Banco Mundial mostra que os países do Hemisfério Sul representavam 20% do PIB global no início dos anos
1970 e dobraram esta proporção em 2012, com a China representando sozinha 12% do total. Os aumentos foram espetaculares
também nos fluxos comerciais e destacaram-se nas exportações
de manufaturados que aumentaram, entre 2000 e 2012, de 32%
para 48% das vendas globais. Hoje, metade do que o mundo
compra e vende em produtos industriais origina-se em países em
desenvolvimento. E é exatamente aí que as coisas se complicam
para a América Latina.
Uma classe operária numerosa apoiada em sindicatos e partidos com ela identificados é um fator decisivo de participação política, de negociação e esta foi uma das bases dos virtuosos processos que, nos países desenvolvidos, reduziram de forma expressiva
as desigualdades e ampliaram direitos desde a II Guerra Mundial
até o início dos anos 1980.
É inevitável a comparação com países como Coreia do Sul,
Taiwan e China que tinham renda per capita, produtividade do
trabalho e grau de diversificação de suas estruturas econômicas e
comerciais equivalentes ou piores que as da América Latina.
O economista Lucas Mations, do Ipea, mostra que a produtividade
do trabalho na América Latina (excetuando o Brasil) era quase o
dobro da do Leste da Ásia, em 1960. Já nesta época, estávamos na
lanterninha do Continente, um pouco abaixo do desempenho do
Leste da Ásia. Em 2011, continuamos abaixo da média da América
Brasil fica mais distante da fronteira global
91
Latina e do Caribe, mas o Leste da Ásia deslanchou deixando a
América Latina para trás em produtividade do trabalho. A economia brasileira cresceu, é verdade, mas seu vetor fundamental não
foi o melhor desempenho de nossos trabalhadores.
No que se refere às redes regionais de comércio, até 1980, elas
tinham formato muito semelhante na América Latina e no Leste
da Ásia, ambas centradas em alguns poucos países dominantes.
Já em 2012, mostra o Banco Mundial, o Leste da Ásia diversifica
sua inserção global, o mesmo nem de longe ocorrendo com a
América Latina.
Mais importante, porém, do que saber para quem se vende é o
quê cada região coloca no fluxo do comércio internacional. O que
ficou obscurecido pela associação entre redução da pobreza e
forte dependência de commodities agrícolas e minerais é que
nosso Continente (junto com a África) ocupa hoje os mais baixos
patamares das cadeias globais de valor. Sua capacidade de atrair
investimentos é dada exatamente por esta pouco virtuosa vantagem comparativa e não por sua capacidade de inserir no mercado
mundial produtos com alto valor agregado.
Isso se exprime na maneira como nos relacionamos com o resto
do mundo e, sobretudo, com sua parcela mais dinâmica, que se
encontra justamente no Leste da Ásia. O Século XXI é marcado
pela intensificação dos vínculos entre países em desenvolvimento.
No entanto, diz o relatório do Banco Mundial, os “laços da América
Latina com outros países do hemisfério Sul é guiado em grande
medida por vantagens comparativas baseadas em dotações naturais, muito mais que pela integração manufatureira nas cadeias
globais de valor”. Os vultosos investimentos chineses na América
Latina hoje voltam-se fundamentalmente a fortalecer o lugar que já
ocupamos nas cadeias globais de valor e concentram-se em setores
marcados por baixo grau de inovação tecnológica e ameaçadores
impactos socioambientais. Hidrelétricas, fósseis e exploração mineral são suas expressões mais emblemáticas.
Isso significa que a recente redução da pobreza de renda na
América Latina não teve lastro num processo de mudanças estruturais da vida econômica, mas, ao contrário, apoiou-se exatamente
em coalizões sociais, em comportamentos e em instituições que
aprofundaram esta forma inferior de inserção nas cadeias globais
de valor. A impressionante desindustrialização do Continente é a
principal expressão desta fragilidade. Contrariamente ao que ocorreu no Leste da Ásia, em que o fortalecimento da indústria trouxe
92
Ricardo Abramovay
consigo não só novas oportunidades de trabalho, mas, sobretudo,
abriu caminho à emergência de novos atores sociais e de uma
densa rede voltada à inovação, a América Latina vive o drama de
ter-se desindustrializado, antes de ter chegado a uma renda que
lhe permita transitar a uma economia moderna de serviços.
O economista Dani Rodrik, da Universidade de Princeton,
chama este processo de “desindustrialização prematura” e mostra
que a América Latina e a África são hoje suas principais vítimas.
Os dados de Rodrik convergem com os do Banco Mundial no
sentido de que a atrofia industrial latino-americana não só inibe
a inovação, mas é também um obstáculo consistente para que o
aumento nos ganhos dos mais pobres se origine nas melhorias
vindas do próprio mercado de trabalho.
Mas Rodrik mostra que o risco desta desindustrialização
prematura não é apenas econômico. É também político. “Historicamente, a industrialização desempenhou o papel fundacional na
Europa e nos Estados Unidos, na criação dos Estados modernos
e na emergência da democracia política”, diz ele. Uma classe
operária numerosa apoiada em sindicatos e partidos com ela
identificados é um fator decisivo de participação política, de negociação e esta foi uma das bases dos virtuosos processos que, nos
países desenvolvidos, reduziram de forma expressiva as desigualdades e ampliaram direitos desde a II Guerra Mundial até o início
dos anos 1980.
Ao contrário, elites que têm diante de si segmentos sociais frágeis,
desorganizados e cujos interesses comuns são difíceis de definir
tendem a comportamentos políticos predatórios. “Elas podem preferir – e têm a habilidade para fazê-lo – dividir e dominar cultivando o
populismo e a política da patronagem e colocando grupos que não
pertencem às elites uns contra os outros”. Qualquer semelhança
com a realidade não parece ser mera coincidência.
Brasil fica mais distante da fronteira global
93
Convulsão econômica, social
e política no Brasil
José Osmar Monte Rocha
O
momento conturbado que vive a sociedade brasileira,
diante de um quadro alarmante na área social, na economia e na política, faz tirar o sono e a tranquilidade dos
cidadãos; exige uma reflexão sobre o cenário nacional e uma decisão de fé e coragem para superar a crise instalada pelo governo;
o país vive uma verdadeira convulsão social, econômica e política;
a preocupação dos trabalhadores, das famílias e dos empreendedores é o sinal de alerta, para enfrentar a crise desoladora que
tomou conta do país.
A inflação desenfreada cresce todo dia; a taxa de juros dispara
num ritmo que nenhum tomador de empréstimo suporta; o
Produto Interno Bruto encolhe como bucho de menino pobre em
época de frio; a corrupção se alastra de ponta a ponta como uma
epidemia ainda sem vacina para imunizar o povo brasileiro; a
política devaneia e tremula na base e no parlamento; a economia
fraqueja como sertanejo sem água para beber, plantar e matar a
sede dos animais – é uma total convulsão social, econômica e
política no Brasil!
O povo não aguenta mais essa situação: a disparada de preços
dos alimentos, transportes, escolas, combustíveis, energia elétrica
e demais serviços; a taxa Selic do Banco Central subiu para aproximados 15% ao ano; os juros praticados pelos bancos e operadoras de cartões de crédito estão beirando a casa dos 400% ao ano;
a inflação oficial até agora estimada em 10% ao ano, derrubou
todas as previsões do governo, estraçalhou a meta anual de inflação projetada pelo BC e fez encolher a economia com um PIB na
faixa de 3% negativos. Nem Adam Smith, o pai da economia, dá
jeito no cenário econômico que enlameia o povo brasileiro.
O desemprego aflige os trabalhadores inquietando famílias que
pagam aluguéis, escolas, planos de saúde e outras despesas para a
sobrevivência familiar; os benefícios sociais, principalmente o
seguro desemprego, foram duramente golpeados pelo governo, em
flagrante delito social; a ausência dessa garantia temporária é
motivo para o desespero daqueles que perdem a única fonte de
receita e não conseguem encontrar um novo emprego.
94
A Bolsa de Valores de São Paulo cai vertiginosamente pela
baixa cotação das ações de empresas de capital aberto que negociam no mercado. O exemplo mais contundente é o da Petrobras
que perdeu, no Brasil e no exterior, o interesse de investidores na
companhia. As agências de classificação de riscos rebaixaram o
grau do Brasil como local seguro para investimentos; e um
conjunto de empresas brasileiras também foram rebaixadas,
perdendo a capacidade de captação de capitais no exterior.
A moeda brasileira – o Real, em pouco tempo perdeu 50% do valor
em relação ao dólar americano, provocando aumento vultoso na
dívida pública e desequilíbrio na balança comercial. O trabalhador, o empresário e demais cidadãos estão apavorados com o
quadro estarrecedor da economia.
O governo federal perdeu as rédeas da economia, castigou a
população com medidas econômicas baseadas em retirada de
benefícios e aumento da carga tributária; quando deveria reduzir
ministérios e secretarias com status de ministério. É preciso
cortar gastos, sobretudo o excesso de cargos comissionados;
eliminar as viagens de servidores com passagens e hospedagens
por conta do erário; retirar as mordomias praticadas por servidores e dirigentes ocupantes de cargos comissionados, tais como
carros oficiais e de serviços, telefonia fixa e móvel, auxílio moradia e o uso de energia elétrica e água, de forma desordenada;
todas as salas deveriam dispor de interruptores para que em
horário de almoço se pudesse apagar as luzes; os contratos de
manutenção, de limpeza, de vigilância e outros, deveriam ser
revistos, com a adoção de uma tabela de preços aprovada pelo
Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão.
É hora de refletir, analisar e chamar toda a sociedade para
opinar na busca de uma saída para a crise instalada no país. Por
que deixar tudo a cargo dos economistas? É um ônus muito pesado
para esses dedicados estudiosos! Os economistas já formalizaram
diversas ideias e tudo falhou. É hora de chamar vários segmentos
da sociedade: administradores, contadores, auditores, advogados,
engenheiros, matemáticos, sindicalistas, filósofos, etc, e principalmente chamar as donas de casas – essas sabem planejar e controlar o orçamento doméstico; conhecem o sacrifício de conter gastos,
e creem na esperança de dias melhores.
Em passado recente, no governo Itamar Franco, foi o então
ministro Fernando Henrique Cardoso (sociólogo) que debelou a
inflação com a criação do Plano Real – mudou a moeda, tornou-se
forte e deu novo ânimo aos brasileiros com a melhoria do poder
aquisitivo e o crescimento do Produto Interno Bruto. Foi no
Convulsão econômica, social e política no Brasil
95
governo de FHC que o economista (deputado, senador, governador) José Serra, no cargo de ministro da Saúde revolucionou a
pasta, com a implementação de medidas técnicas e administrativas. Assim temos exemplos de dois estudiosos de áreas diferentes,
atuando com êxito em campos distintos de suas especializações e
conquistando melhorias para a nação brasileira.
A área política brasileira sofreu um duro golpe aplicado pela
corrupção; o ringue político foi abalado; os partidos citados nos
recentes escândalos, e os nomes divulgados pela mídia, abalaram
as instituições partidárias e deixaram os eleitores frustrados e
indignados pelos fatos narrados diariamente nos veículos de comunicação. Mas é bom lembrar que nem todos os políticos fazem parte
desses escândalos; existem representantes do povo em todos os
partidos, trabalhando com seriedade e dignidade para a melhoria
da nação brasileira. Com tudo isso, certamente os eleitores conscientes vão dar respostas aos candidatos às eleições de 2016 para
prefeitos e vereadores; e em 2018 nas eleições gerais para presidente da República, senadores, governadores e deputados federais
e estaduais. É só esperar e conferir a força do voto popular.
O Ministério Público continua apurando fatos evidenciados na
Operação Lava-Jato, com a possibilidade de desvios de bilhões de
reais; e o Poder Judiciário firme no exame e julgamento daqueles
que são considerados responsáveis pelos prejuízos causados ao
erário. Agora resta esperar os diversos processos em andamento
para que a sociedade tome conhecimento dos escândalos noticiados pela imprensa, com a efetiva apuração e julgamento pelo
Judiciário, após o cumprimento do rito com direito ao contraditório e à ampla defesa.
Diante do quadro estarrecedor que aflige o povo brasileiro,
restam poucas alternativas para a saída da crise conjuntural;
antes de tudo é preciso reconhecer os erros praticados na administração pública, e as mazelas produzidas: planejamento inadequado, gastos excessivos com a máquina administrativa, resultando em déficit orçamentário; negociações políticas onerosas para
o Poder Executivo e desequilíbrio político na base governista.
Vendo tudo isso, considero que há uma verdadeira convulsão
social, econômica e política no Brasil, sem precedentes na história e sem horizonte promissor para o futuro próximo, que alente e
estabeleça diretrizes para o bem-estar social, o crescimento
econômico e o equilíbrio político, mantendo a harmonia dos três
Poderes da União, como está definido na Constituição do Brasil.
96
José Osmar Monte Rocha
V. Questões do Estado
e da Cidadania
Autor
Rodrigo Cosenza
Formado em História pela Universidade Veiga de Almeida, atualmente é professor
da rede particular no município de Teresópolis/RJ.
Thiago Pierobom
Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.
Valdir Ribeiro
Formado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora – especialista em
Filosofia Moderna. Atualmente é professor da rede estadual de ensino do Estado do
Rio de Janeiro.
As violências contra as mulheres
Thiago Pierobom
C
ertamente muito avançamos no enfrentamento às violências contra as mulheres, após o advento da Lei Maria da
Penha, e das diversas convenções internacionais (Cedaw/
ONU, e de Belém do Pará). Mas ainda há muito a avançar.
A violência contra a mulher é uma séria violação de direitos humanos. É também uma verdadeira pandemia global: segundo dados
da ONU, mais de 70% das mulheres já sofreram alguma forma de
violência em sua vida, no mundo. O Brasil ocupa o vergonhoso 5°
lugar no ranking dos países que mais matam suas mulheres.
A violência doméstica é a forma mais debatida das violências
contra as mulheres. Certamente é a que mais mata. Mas há
outras. Inúmeras meninas são vítimas de violência sexual dentro
de suas casas. Há atualmente uma CPMI em curso para investigar a exploração sexual de meninas atletas, por seus treinadores
e equipe técnica. Inúmeras outras meninas são exploradas no
turismo sexual, à beira das rodovias e às margens de grandes
obras. Um delito em que, na esmagadora maioria, autor e vítima
têm sexo determinado: trata-se de uma violência do masculino
contra o feminino.
E ainda há quem queira negar às mulheres o acesso às políticas públicas de saúde para profilaxia da gestação, mesmo após
terem sofrido um crime de estupro, na eterna desconfiança da
palavra daquela que supostamente induziu Adão ao pecado.
As mulheres conquistaram o mercado de trabalho, mas não se
libertaram da carga exclusiva dos trabalhos domésticos, tendo
99
que suportar uma iníqua dupla (quando não tripla e quádrupla)
jornada de trabalho. As mulheres possuem salários mais baixos
que os dos homens e menor representatividade nos espaços de
decisão e poder. Estão mais expostas ao risco do assédio moral e
sexual nas relações de trabalho. E se, apesar de toda a competência, galgam uma promoção, haverá sempre o comentário malicioso sobre qual favor sexual ela teria feito para merecer a benesse.
As mulheres são sistematicamente expostas nas campanhas
publicitárias como um mero objeto sexual, um par de nádegas e
seios ligados por uma cintura fina, cuja existência possui uma
finalidade: satisfazer a lascívia masculina. A honra das mulheres
é, não raro, enxovalhada nas instruções probatórias dos crimes
contra a dignidade sexual, na eterna tese defensiva de que elas
provocaram e são corresponsáveis pelo crime. Aliás, 25% dos
homens no Brasil entendem que se uma mulher usa roupas curtas
e é estuprada, ela também é culpada pelo estupro.
O Brasil já foi condenado pela Comissão Cedaw, da ONU, por
haver uma verdadeira epidemia de mortalidade materna no
momento do parto, a qual anda ao lado da epidemia de cirurgias
cesarianas. Há um conjunto de violências às mulheres normalizado no parto, que deveria ser um momento sagrado de trazer à
vida um novo ser.
Muitas mulheres estão morrendo nas mesas de cirurgia plástica na exigência de alcançarem um utópico padrão de beleza: que
sejam eternamente adolescentes. A sociedade lhes reconhece o
valor enquanto cumprem o papel de objeto de desejo sexual. Um
padrão de beleza que simplesmente não se exige dos homens:
afinal dizem que é dos carecas que elas gostam mais e que cabelos grisalhos dão um certo charme aos homens.
Tenho um filho de 16 anos e uma filha de 12. Gostaria muito
que eles pudessem crescer numa sociedade livre da violência
decorrente da divisão estereotipada de papéis entre homens e
mulheres. Que minha filha tivesse a liberdade de poder vestir um
shorts e andar sozinha na rua, sem o risco de ser sistematicamente assediada ou mesmo violada. Que meu filho tenha a liberdade de chorar nos momentos de dor, de se dedicar mais aos
filhos, e não precise externar comportamentos violentos ou dominadores como prova de sua masculinidade. Que não houvesse
qualquer problema em minha filha ganhar mais que seu futuro
companheiro, nem em meu filho ganhar menos que sua futura
companheira. Acima de tudo, que eles tenham a liberdade de
100
Thiago Pierobom
serem eles mesmos, sem pressões por papéis que incentivam a
violência. Que eu possa andar na rua abraçado com meu filho
sem o risco de ser confundido com um casal homossexual e
sermos apedrejados. E que os casais homossexuais igualmente
possam viver em uma sociedade livre, justa e solidária, sem
nenhuma forma de discriminação.
A violência contra as mulheres é um câncer social. Violenta
mulheres e também homens. As mulheres são e devem continuar
sendo as protagonistas na luta por seus direitos humanos. Mas
eu, homem, sou solidário a essa luta, porque dela também preciso
para afirmar a minha própria humanidade. Meu desejo é que
possamos refletir sobre as invisíveis micro relações de poder que
subalternizam as mulheres e precarizam sua existência, rumo à
efetiva igualdade de direitos entre homens e mulheres. Que digamos todos não às violências contra as mulheres.
As violências contra as mulheres
101
Segurança pública não
é caso de polícia!
Rodrigo Cosenza / Valdir Ribeiro
A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’
em que vivemos é na verdade a regra geral.
Walter Benjamin
A
s últimas pesquisas1 sobre as maiores preocupações dos
brasileiros revelaram que a segurança pública, ao lado da
educação e da saúde, se tornou prioridade. Muito se diz sobre
os problemas ligados ao tráfico de drogas, assaltos, assassinatos
e violência, no campo e nas cidades. Mas poucas vezes a questão
fundamental é levantada: afinal, o que é segurança pública?
A Constituição de 1988 define que segurança pública2 – dever
do Estado e de toda a sociedade – é a organização para garantia da
ordem pública e suas atribuições são responsabilidade dos órgãos
ligados à segurança como as polícias civil e militar, polícia rodoviária, aduaneira e de fronteiras, corpo de bombeiros e as guardas
municipais. Esses órgãos institucionais desempenham ora o papel
de fiscais, de investigadores ou de repressores, mas sempre de
garantidores do que se chamaria normalidade pública. Nesse
sentido, as políticas de segurança pública são as garantidoras de
uma normalidade da vida e sua ação liga-se ao controle social.
Em todo o espectro político o tópico recorrente para se iniciar
a reflexão sobre segurança é a violência, identificada imediatamente pelo número de crimes cometidos, destacando-se os homicídios. À esquerda e à direita parece haver um consenso em torno
da incolumidade do cidadão, isto é, em torno da defesa de sua
vida. Segurança pública nesse sentido seriam aquelas políticas
que priorizam a proteção à vida.
Alguns defenderiam a instrumentalidade das polícias e acreditam que elas são a materialização da força necessária do Estado
para o controle social. Outros sustentariam a tese de que o Estado é
1 Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2014/08/seguranca-e-2-maior-preocupacao-dos-brasileiros-segundo-pesquisa.html>. Acesso
em: set./2014.
2 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigoBd.asp?item=1359>.
102
dominado por uma classe e as polícias tornar-se-iam as defensoras
dos interesses dessa classe dominante. Tanto lá como cá, as políticas de segurança são assumidas à luz dos problemas da natureza,
organização, gerenciamento ou gestão das diversas esferas policiais.
Ou seja, nem esquerda, nem direita prescindem da existência e da
centralidade da força policial nas políticas de segurança.
Medidas socioeducativas,3 penas capitais ou privatização das
prisões são tópicos recorrentes. A segurança pública pensada a
partir do conjunto dos aparatos punitivos e de justiçamento da
sociedade, são adequados ao controle social e corresponde à lógica
das ações policiais. Isso significa que a necessidade ou não do
encarceramento e do tipo de punição esperado determinam as
respostas adequadas a essa sorte de questões. Obviamente, os
olhares se voltam à eficiência dos tribunais e ao trabalho dos
promotores, defensores e juízes.
As consequências dessa forma de se pensar a segurança
pública podem ser avaliadas pelos atuais investimentos no setor
carcerário. Eles aprofundaram os sistemas de repressão e de
controle social por parte do Estado à custa do crescimento vertiginoso da população e das mazelas do sistema carcerário. Isso
tem se mostrado menos uma solução do que um novo problema a
ser resolvido.4 Além de não reduzir os índices de criminalidade e
violência, aprofundam-nas o que revelam os altos índices de reincidência e de violência que a própria vida encarcerada produz.
Na prática, esses elementos criam uma política de opressão e
de confronto que recrudesceu a violência policial. Aprofundou-se
o número de ações militares de intervenção nas cidades e no
campo, investimentos na aquisição de armamento para os órgãos
de segurança, em tecnologias de identificação biométrica, treinamento especializado para ações armadas em territórios urbanos
– favelas, por exemplo – e aquisição de armamentos para defesa
3 Apesar de serem medidas socioeducativos, elas mantêm-se na lógica de organização punitiva se não alcançam os níveis desejados de ressocialização e aprendizagem necessários à reincorporação social daquele cidadão.
4 “O sistema é um sumidouro de verbas. Entre presídios e unidades socioeducativas, em 2013 foram gastos 4,9 bilhões de reais, segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A despesa média com cada preso, informa o Depen,
situa-se entre 2,5 mil e 3 mil reais por mês (valor aproximado do investimento
anual com alunos da rede pública).” Disponível em: <http://www.cartacapital.
com.br/revista/838/se-cadeia-resolvesse-4312.html>.
Segurança pública não é caso de polícia!
103
de fronteiras. Resultado: os números de policiais e indivíduos à
margem da lei mortos5 crescem assustadoramente ano após ano.6
Políticas públicas de segurança concebidas como ações de
intervenção para controle e repressão são heranças das políticas
de segurança no Brasil dos tempos da Ditadura Militar. A Lei de
Segurança Nacional daquele tempo via os cidadãos como potenciais inimigos internos. Isto era possível graças à existência do
estado militar de emergência, ou seja, uma forma permanente de
estado de exceção. O encarceramento, a prisão preventiva ou
temporária e a ação violenta e direta, excepcionais nas democracias, eventualmente tornaram-se o padrão das políticas de segurança. Desafortunadamente a constituição de 1988 não conseguiu superar a lógica e a cultura presentes nos anos de chumbo.
O desafio atual é reinterpretar o sentido das políticas de segurança à luz da democracia, isto é, saber como deveriam ser criadas politicas de segurança pública no regime democrático. Soares
(2000) afirma que:
Nesse sentido, a segurança pública democrática seria o tipo
ideal regulatório de um processo coletivo que, mesmo animado
pelo movimento imprevisível da liberdade e dos efeitos de
composição, se orienta pela profecia auto realizada da reprodução das condições apropriadas à celebração do contrato includente em bases igualitárias.7
O cidadão, como imagina Soares (2000), é prioridade nas políticas de segurança. O direito e a liberdade política nasceriam da
cessão por parte dos cidadãos de algo de sua liberdade de agir em
nome da segurança. Nesse caso, as políticas de segurança são a
condição prévia para a liberdade da ação cidadã, suportando e
protegendo a vida e os direitos que se produzem no contrato.
Todavia, esse direito à segurança se produz antes da ação conjunta
5 A média de letalidade anual das polícias no Brasil é de 2.000 mortos. RAMOS,
Michele.
6 “(...) mais de 60 mil pessoas são assassinadas por ano no país e há um forte viés
de cor e condição social nessas mortes: ‘Numa proporção 135% maior do que
os não negros. Enquanto a taxa de homicídios de negros é de 36,5 por 100 mil
habitantes, no caso de brancos, a relação é de 15,5 por 100 mil habitantes” BELCHIOR, D. em: Negros são 70% das vitimas de assassinatos no Brasil reafirma
Ipea. Disponível em: <http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2013/10/18/
negros-sao-70-das-vitimas-de-assassinatos-no-brasil-reafirma-ipea/>.
7 Apud SOARES, Luiz Eduardo: Notas sobre segurança pública. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/politicas_sociais/ensaio3_notas_2.pdf>.
104
Rodrigo Cosenza / Valdir Ribeiro
dos indivíduos. Ele se estabelece no vazio do direito e é soberano,
pois dele se originam os demais direitos cidadãos. A defesa contratualista de Soares (2000) dirige a segurança pública para um
estado de exceção.
Idealmente, a ação soberana do cidadão deveria ocupar a
centralidade das políticas de segurança, mas é impossível escapar daquela situação excepcional, a não ser que, talvez, se pense
a segurança pública como meio para a fundação de uma cultura
de direitos e não como fim. A esse respeito, Motta (2014) diz:
Ao contrário do que se costuma ler e ouvir, segurança não é
nem sinônimo de polícia, nem de prisão. Segurança pública é o
resultado da articulação de diversas políticas sociais visando a
defesa, garantia e promoção da liberdade. Um estado cheio de
prisões e repleto de policiais não é um estado seguro, muito
menos livre. Um estado livre é o que se organiza em torno de
uma cultura de direitos.8
Sendo assim, os direitos humanos – historicamente considerados – poderiam se tornar o fundamento a partir do qual as políticas de segurança seriam reconsideradas. Caminha-se para
pensar dentro dos marcos da liberdade, da democracia e da vivência plena da cidadania. Fugir da lógica do estado de exceção é
pensar um novo caminho para a segurança pública. Eis a tarefa!
Mas quais os impeditivos? Que forças sociais turvam a possibilidade de superar o paradigma que hoje direciona tais políticas?
Quando a organização e a burocracia impedem que o público
seja tratado como tal, que a liberdade e o cidadão sejam os protagonistas do convívio há de se pensar na legitimidade dessa ordem.
Ou seja, a atual política de segurança pública fracassou e é
preciso repensá-la.
Enquanto se mantiverem as forças econômicas que atuam
diretamente para a manutenção do status quo, o lobby das empresas de equipamentos de segurança que impede a superação da
lógica do enfrentamento bélico e do encarceramento e a campanha pela aquisição de equipamentos cada vez mais modernos
para combate a violência, a solução para os problemas da segurança pública ficará presa no modus operandi policial, o terreno
da repressão, da violência e da exceção. Essa parece ser a conclusão do Ipea. Em uma publicação de 2003, lê-se:
8 MOTTA, Tarcísio: Segurança cidadã. Disponível em: <http://tarcisio50.com.
br/2014/08/seguranca-cidada/>.
Segurança pública não é caso de polícia!
105
Sabe-se que o capital financeiro representa um dos fatores mais
importantes para a estruturação do crime organizado. A lavagem do dinheiro e sua interface com o sistema financeiro permitem a reciclagem do capital que financia o comércio de ilícitos
que, por sua vez, possibilita a acumulação de capital do crime e
as fontes de recursos para a corrupção que em última instância,
favorecem a atuação em escala do crime organizado.9
A sugestão é que se pense em aprofundar a construção das
políticas de segurança pública elaboradas pelo conjunto da sociedade e vividas por todos. Tudo o que é público, de direito e responsabilidade de todos, garantidos pelos instrumentos da organização republicana precisa estar sob o cuidado do conjunto dos
cidadãos livres.
A análise se direciona pela reinterpretação do conceito de
segurança pública – que pode e deve ser pensada a partir da radicalização da democracia, a fim de garantir a isonomia dos cidadãos diante das leis e da constituição, bem como de retirar a polícia da centralidade de tal discussão, ou mesmo de ser o diapasão
único do tema. Sua principal função é assegurar que a democracia se realize plenamente. Isso significa que todas as políticas de
segurança pública seriam formadas através de debates e com
ampla atuação popular e deveriam ser totalmente transparentes
ao controle e à fiscalização da sociedade.
O primeiro passo é a desmilitarização das polícias e dessa
lógica de funcionamento da segurança pública. Esse padrão de
organização impede a atuação cidadã direta sobre as forças de
segurança e mantém o policial distante da sociedade com a qual
ele trabalha. A desmilitarização permite ainda uma relação horizontal entre a sociedade e os agentes de segurança. Isso se
completaria pela redistribuição do controle das instituições de
segurança. Com o aporte logístico e econômico da Federação e
dos Estados o controle e organização das polícias deveriam estar
a cargo das comunidades municipais. Deixa-se claro que desmilitarizar não é somente dar fim a Polícia Militar, mas principalmente acabar com uma cultura militarizada que há em todos os
órgãos ligados direta ou indiretamente a segurança pública.
Uma segunda proposta seria a unificação das secretarias que
de alguma forma agem na segurança. Não necessariamente sua
união formal, mas obrigatoriamente aproximação prática. Os
9
Disponível em: <http://carceraria.org.br/wpcontent/uploads/2012/07/Plano_
Nacional_Seguranca_Publica_analise.pdf>.
106
Rodrigo Cosenza / Valdir Ribeiro
setores de segurança precisariam dialogar constantemente com
os demais setores da sociedade. Secretarias de segurança, de
assistência social, direitos humanos e o poder judiciário, por
exemplo, deveriam compartilhar uma base de dados comum e
equipes interdisciplinares atuariam em conjunto em todos os
casos necessários.
No Brasil, negros, pobres, o público LGBT e outros grupos
minoritários aparentemente não estão incluídos na democracia.
Eles são mais suscetíveis à falta de segurança e estão, ao mesmo
tempo, mais expostos à violência e menos amparados por qualquer
política pública. Pior ainda, estão sujeitos à atual política violenta
e militarizada de segurança pública do Estado. Sendo assim, a
terceira proposta seriam ações de aprimoramento e treinamento
constante dos agentes de segurança, enfatizando a compreensão
dos direitos humanos e de tolerância com a diversidade.
As políticas de criminalização das drogas e dos usuários têm
lotados os presídios e agravado o contato precoce de jovens com o
crime organizado, portanto uma quarta saída seria a reversão
dessa forma de abordar a questão das drogas.
Sem pretender esgotar as possibilidades de solução, apresenta-se aqui uma última sugestão importante: o fortalecimento
das Defensorias Públicas Estaduais. Essa é uma medida importante para garantir que o cidadão tenha, de fato, um direito de
defesa jurídica de qualidade. Há também a necessidade de fortalecer o Ministério Público no que tange às suas atribuições, mas
enfatizando o que diz a Constituição de 1988 sobre sua natureza,
ou seja, comprometendo-se com a defesa da cidadania e da dignidade da pessoa humana.
Mas e a polícia? E os crimes? Essa é a ínfima parte desse
complexo, reificadas, extrapoladas e postas em um status que
não lhes pertencem. Tratar de polícia é tratar de prevenção e
investigação de crimes, estabelecer estratégias e prover meios
para que crimes não ocorram. Caso ocorram, que sejam investigados com técnica e percepção de seu lugar social. Polícia é
instrumento, segurança pública é cidadania!
Segurança pública não é caso de polícia!
107
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 2ª
ed. Belo Horizonte: UFMG, 2014.
______. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
BELCHIOR, Douglas. Negros são 70% das vítimas de assassinatos
no Brasil reafirma Ipea. Disponível em: <http://negrobelchior.
cartacapital.com.br/2013/10/18/negros-sao-70-das-vitimas-deassassinatos-no-brasil-reafirma-ipea/>. Acesso em: set./2014
BARROCAL, André. Se cadeia resolvesse o Brasil seria exemplar.
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/revista/838/secadeia-resolvesse-4312.html>.
BRASIL. Constituição 1988. Disponível em: <http://www.stf.jus.
br/portal/constituicao/artigoBd.asp?item=1359>.
G1. Segurança é 2ª maior preocupação dos brasileiros segundo
pesquisa. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/
noticia/2014/08/seguranca-e-2-maior-preocupacao-dosbrasileiros-segundo-pesquisa.html>. Acesso em: set./2014.
HOBBES, Thomas. Leviatã. (trad. João Paulo Monteiro e Maria
Beatriz Nizza da Silva). 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (col.
Os pensadores).
MOTTA, Tarcísio. Segurança cidadã. Disponível em: <http://
tarcisio50.com.br/2014/08/seguranca-cidada/>.
Acesso
em:
set./2014.
SOARES, Luiz E. Notas sobre segurança pública. Disponível
em:
<http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/
politicas_sociais/ensaio3_notas_2.pdf>.
108
Rodrigo Cosenza / Valdir Ribeiro
VI. Educação
Autores
Faouzia Kalali
Professora doutora da Universidade de Rouen-França <[email protected]>.
Renata Cabrera
Professora doutora do Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato
Grosso <[email protected]>.
Tiago Eloy Zaidan
Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco, coautor
do livro Mídia, movimentos sociais e direitos humanos (Org. por Marco Mondaini)
e professor do Curso de Comunicação Social na Faculdade Joaquim Nabuco e na
Escola Superior de Marketing/Fama, todas no Recife-PE.
Políticas educacionais e educação
científica no Brasil e na França:
considerações preliminares
de um projeto em parceria
Renata Cabrera / Faouzia Kalali
As últimas três décadas evidenciam o vigor com o qual o modo
de produção capitalista enfrenta suas crises internas e se mostra
cada vez mais como meio de garantir a acumulação de riqueza na
mão de pequena parcela da população.
As transformações pelas quais passa a sociedade contemporânea implicam em mudanças nas esferas das políticas sociais.
Nesse sentido, coadunamos com os argumentos apresentados por
Libâneo, Oliveira e Toschi (2008) que relacionam a educação no
contexto das transformações da sociedade atual, evidenciando,
no caso da formulação das políticas educacionais, a influência
que países em desenvolvimento recebem de organismos internacionais. Essas transformações interferem no modus vivendi e
operandi da escola. Esses autores destacam que:
(...) pensar o papel da escola nos dias atuais implica, portanto,
levar em conta questões sumamente importante. A primeira e,
talvez, mais importante é que as transformações mencionadas
representam uma reavaliação que o sistema capitalista faz de
seus objetivos. (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2008, p. 53).
A reavaliação dos objetivos feita no interior do modo de produção capitalista traz implicações para a forma de relação entre as
nações e no desenvolvimento das políticas sociais. Para permitir
a maior acumulação é preciso criar um mercado consumidor de
maneira a garantir a circulação de mercadoria. Ganham força,
nesse cenário, instituições como o Banco Mundial e o Banco de
111
Desenvolvimento Interamericano (BID) que financiam projetos de
reformas nos países em desenvolvimento.
Essas reformas atingem, sobretudo, o campo das políticas
sociais, onde se inserem as políticas educacionais. O Brasil pôs
em prática uma série de reformas em seu sistema educativo, desde
a metade da década de 90 do século XX, que seguiram as regras
de organismos internacionais como o BID. A título de exemplo
pode ser citada a reforma curricular da educação básica, que
culminou na elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN) em 1996, a expansão do ensino médio e a ênfase na formação dos profissionais da educação.
As publicações na França e na comunidade europeia, ao final
do século XX, também evidenciaram o interesse nos domínios da
educaçao em geral e das ciências específicas, expressos em relatórios e em textos de orientações (European Commission, 2004,
2009; THÉLOT, 2004). Este interesse reflete a importância do
ensino científico no devolvimento econômico (European Commission, 2004). As prescrisções e as recomendaçôes são dadas sob a
forma de padrões e de objetivos esperados de acordo com a escala
internacional. (KALALI; JENKINS, 2012).
O ciclo comum de conhecimento e de competência (THÉLOT,
2004) dotar os alunos de conhecimentos e de bases para que
desempenhem seu papel como cidadãos. Os objetivos fixados (BO,
2005), por exemplo, para os cursos de ciências no ensino fundamental centram em permitir ao aluno construir uma cultura
científica que lhe permita ter representação global do mundo no
qual ele vive. Os programas escolares centram no desenvolvimento de práticas experimentais, no pensamento matemático e
nas ferramentas de informação.
Essa reforma do ciclo comum coloca destaque sobre o componente experimental e reafirma o papel importante que ele desempenha. Kalali (2008) mostrou que em cada reforma a dimensão experimental serve de elemento de debate a tal ponto que ela acompanha
a história do ensino científico na França desde a revolução.
Várias mudanças de programas seguiram e colocaram destaque sobre a experimentação, que propiciou o melhor conhecimento das relações dos seres vivos e do seu meio. Na Biologia,
fala-se de uma verdadeira carta para o ensino das Ciências Naturais no secundário (KALALI, 2008). Essas mudanças proporcionaram o rompimento com a tradição de observação das Ciências
Naturais e introduziram o estudo dos problemas biológicos.
112
Renata Cabrera / Faouzia Kalali
O componente experimental teve desde o começo um papel político. A reforma atual do Ciclo Comum de Conhecimentos e de
Competências (THÉLOT, 2005) mobilizou novamente para as ciências o interesse por uma vertente experimental necessária para a
promoção de uma visão de uma cultura contemporânea do mundo.
No que se refere ao cenário brasileiro, as principais políticas
que incidiram no ensino de Biologia, de 2000 a 2012, centraram
na aquisição de laboratórios para o desenvolvimento de atividades
didático-experimentais nas escolas de Ensino Médio (CABRERA;
CAMPOS, 2013).
Nesse período, por exemplo, a Rede Escolar Estadual de Mato
Grosso (REE-MT) fez aquisição de laboratórios para o ensino das
Ciências da Natureza para 74 unidades escolares. Estes laboratórios foram viabilizados por meio de ações de políticas educacionais tais como: Programa Ensino Médio Inovador (Proemi),
Programa Mais Educação, Programa Brasil Profissionalizado;
Programa de Desenvolvimento Escolar (PDE-escola), Programa
Dinheiro Direto na Escola (PDDE) e o Programa de Melhoria e
Desenvolvimento do Ensino Médio (Promed).
Stephen Ball (2006) discute sobre as novas formas de controle
social imbuídas nas reformas que os Estados vêm implementando
para atender à lógica mercadológica das políticas neoliberais.
Esse autor alerta sobre a necessidade de analisar o contexto onde
as políticas públicas são desenvolvidas que segundo esse autor:
(...) a análise política necessita ser acompanhada por cuidadosa
pesquisa regional, local e organizacional se nos dispomos a
entender os graus de “aplicação” e de “espaço de manobra” envolvidos na tradução das políticas nas práticas ou na diferencial
“trapaça” das disciplinas da reforma. (BALL, 2006, p. 16).
A necessidade de apoiar a ação política pelas pesquisas e conciliar a agenda política foi discutida por Kalali & Jenkins (2013).
Como vem sendo traduzidas as políticas educacionais que
incidem no ensino de Biologia no sistema educacional brasileiro e
francês? Como se insere o professor nesse contexto de desenvolvimento de políticas que recairão sobre o seu trabalho docente?
Que papel tem desempenhado os pesquisadores na orientação
das políticas educacionais para a educação científica? Essas são
algumas questões que auxiliam no contorno do projeto de parceria estabelecido entre o Brasil e a França, por meio da Universidade Federal de Mato Grosso e a Universidade de Rouen-França.
Políticas educacionais e educação científica no Brasil e na França
113
O projeto intitulado “L’entrée dans la vie, l’entrée dans la
culture: entre l’actuel et le futur” foca na compreensão das relações que se estabelecem entre cultura científica, cultura escolar e
vida em sociedade, e toma como base os questionamentos que
sustentam a reforma do sistema educativo francês, implementada
desde 2005. São três as questões que orientam a referida reforma,
a saber: como se constitui o mundo no qual eu vivo? Qual é o meu
lugar? Quais são as responsabilidades individuais e coletivas?
Essas questões são orientadas pelo entendimento de que o
desenvolvimento de uma política educacional apresenta entre as
suas principais etapas: a formulação – elaboração dos textos, a
implantação, implementação, acompanhamento e avaliação.
Estamos convictas de que sem a participação efetiva do professor
no cerne desse desenvolvimento essas políticas tendem ao fracasso
e o trabalho docente pode ser convertido em trabalho alienado,
que é alheio a quem o produz, que expropria o Homo sapiens da
sua condição humana.
Políticas educacionais para o ensino de Biologia
no Brasil e na França: algumas considerações
A análise histórica evidencia convergências entre a história do
ensino científico francês (KALALI, 2008) e o brasileiro (SOUZA,
2009). Para a França, nós estabelecemos as mudanças dos
programas depois da revolução até os anos 70, passando pela
grande reforma de 1902, reiterando os debates recorrentes do
cultural versus o utilitário.
Esse debate surgia a cada reforma e atravessou, assim, toda a
história do ensino de Ciências. Esse debate reunia as diferentes
tendências e correspondia a diferentes aspectos: literários versus
científicos; velhos contra modernos; partidários da educação utilitária contra aqueles que defendiam uma educação desinteressada.
O caráter experimental em todos esses debates serviu de argumento para justificar todas as reformas desde o século XIX.
Atualmente, este caráter não esta mais a situar na oposição especialidade/humanidades – ele não toma esses dois aspectos que
opõem Domenach (1989): o homem culto, capaz de apreender os
conhecimentos essenciais; o especialista, que se fecha em um
saber único –, mas ele se situa hoje antes na distinção entre uma
cultura humanista, generalista, unificadora e aberta ao presente
114
Renata Cabrera / Faouzia Kalali
e uma nova cultura de partilha de saberes, baseada sobre as
divergências de opiniões e de contextos.
Souza (2009) analisou os debates que acompanharam as
mudanças no currículo brasileiro desde 1902 a 1960 que se
inscreveram em uma visão humanista do currículo reunindo
diversos atores como os educadores que problematizavam essa
questão que guiavam as orientações curriculares, ou seja, os
intelectuais de diversas tendências progressistas e aqueles de
influência católica.
O contexto contemporâneo milita por um novo humanismo
que tenta guiar as diversas reformas que atravessam os países
durante este século 21.
O destaque para o aspecto experimental do ensino de Biologia
tem orientado as reformas no contexto francês e brasileiro. No
caso francofônico, reformas foram introduzidas nos programas
curriculares. Na situação brasileira, a ênfase das políticas recaiu
sobre a aquisição de material e equipamentos para o desenvolvimento de atividades didático-experimentais.
De modo geral, a situação das disciplinas científicas no
contexto do sistema educativo francês, durante o século XX,
evidencia a organização de um campo disciplinar autônomo,
sobre a base da promoção do método experimental. Este, graças
ao seu valor educativo que lhes reconhecem os clássicos, serviu
para distinguir o ensino de Ciências do ensino da Matemática. Ele
serviu, então, para caracterizar o que se tornaria mais tarde o
ensino das disciplinas científicas experimentais.
O quadro a seguir apresenta os aspectos que constituíram a
evolução do ensino das Ciências Experimentais na França.
Quadro 01 – Evolução do ensino das Ciências Experimentais na
França
Especialidade
Utilidade prática
Valor educativo
Diferentes saberes operacionais
Disciplina
Formação do espírito
Valor cultural
Saberes e questões tipos
Fonte: Kalali, 2008.
Políticas educacionais e educação científica no Brasil e na França
115
Atualmente, na escola média, a evolução das disciplinas, sobretudo da Biologia, alterou os currículos que integraram os aspectos
sociais e éticos. Novidades encontradas entre as disciplinas experimentais se tornariam então necessárias. A função cultural da
partilha de saberes científicos é levantada. Esta nova tendência é
afirmada atualmente por temas de convergências previstos pelos
programas de 2005, no contexto francês. Seus conteúdos energia,
meio ambiente e desenvolvimento durável, meteorologia e climatologia, estatística aplicada ao olhar científico sobre o mundo, saúde
e segurança, evidenciam a procura da dialética recaída sobre os
conhecimentos científicos e sociais. Esses novos programas são
ligados à nova reforma em curso do Ciclo Comum. (THÉLOT, 2004).
No contexto brasileiro, as pesquisas têm mostrado distanciamento do professor no desenvolvimento de políticas educacionais
que têm incidido sobre o seu trabalho e o foco dessas políticas
para a educação científica tem sido a aquisição de equipamentos
para laboratório. (CABRERA, 2015).
Libâneo, Oliveira e Toschi (2008, p. 39) alertam para a necessidade de relacionar o trabalho do professor ao contexto mais amplo
onde suas práticas estão inseridas, nas palavras desses autores:
É certo que a sala de aula representa o principal espaço de
atuação dos professores, mas a prática docente não acontece
apenas ali. Ressalta-se, assim, a importância de compreender
as ligações do espaço escolar com o sistema de ensino e com o
sistema social, para articular as práticas pedagógico-didáticas
com as demais práticas sociais concorrentes.
Ademais, quando o professor é tomado como mero operador
prático de programas e ações oriundas das políticas educacionais
gestadas, sem levar em conta a participação desse profissional,
abre-se espaço para que esse trabalhador seja expropriado do
produto do seu trabalho, no sentido de que será limitada a
compreensão dos múltiplos determinantes que estão a agir sobre
a sua ação em sala de aula.
Nesse sentido, o trabalho docente é entendido para além do
domínio das práticas pedagógico-didáticas, desenvolvidas no
âmbito da sala de aula, pois o professor é compreendido como
sujeito da sua própria ação, ou seja, que faz história ao mesmo
tempo em que se tem a consciência sobre a mesma.
A experimentação por si só não garante a apreensão de uma
cultura científica que atrele questões do saber elaborado ao saber
social e ético, questões que nos coloquem em termos de indagar e
116
Renata Cabrera / Faouzia Kalali
de compreender nossas responsabilidades com as gerações
presente e futura.
É necessário o engajamento dos pesquisadores, da comunidade científica e professores no que se refere ao desenvolvimento
das políticas educacionais voltadas para a educação científica de
maneira que as indagações a respeito de “conhecimento sobre” e
o “conhecimento para” estejam na linha condutora.
Para além da apropriação mecânica dos saberes escolares, é
necessária a apreensão crítica dos mesmos, de modo a proporcionar que a difusão de uma cultura científica e tecnológica esteja a
serviço de uma cidadania planetária.
Considerações preliminares
A análise do quadro da política educacional nos contextos
francês e brasileiro evidencia que as reformas que estes países
vêm implementando se inserem no quadro das transformações e
mutações pelas quais passam as sociedades contemporâneas.
Indagações sobre o papel e importância da educação científica, da
atividade experimental no ensino de Biologia, ganham destaque
na formulação de políticas para esse setor.
A experimentação no ensino de Biologia tem sido objeto das
reformas que o Brasil e a França implementaram nas últimas
décadas. Analisar como essas políticas têm incidido sobre o trabalho do professor é questão imperiosa, pois é esse o profissional
que as implementa em sala de aula.
Da mesma maneira, é salutar desvelar as dimensões das
políticas educacionais sobre a educação científica e o papel que
têm desempenhado pesquisadores da área no desenvolvimento
das mesmas.
Dados de pesquisas (KALALI, 2010; CABRERA; CAMPOS, 2013;
CABRERA, 2015) evidenciam que a lacuna existente entre o que se
realiza na escola e o que se formula como política educacional para
o ensino de Biologia. Estes dados articulados com a indagação
sobre a maneira como a escola tem contribuído para a formação de
uma cultura científica e tecnológica, que permita aos indivíduos
que por ela passem a compreenderem e explicarem o mundo, constituem o cerne do projeto de cooperação que ora se desenvolve entre
duas universidades parceiras no Brasil e na França, a Universidade Federal de Mato Grosso e a Universidade de Rouen.
Políticas educacionais e educação científica no Brasil e na França
117
Referências
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em política educacional. Currículo Sem Fronteiras, v. 6, n. 2, jul.dez./2006, p. 10-32.
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CABRERA, R. C. Laboratório para o ensino de Biologia: relações entre
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LIBÂNEO, J. C.; OLIVEIRA, J. F. DE; TOSCHI, M. S. Educação
escolar: políticas, estrutura e organização. 6. ed., 2008. São PauloSP: Cortez. (Coleção Docência em Formação.)
118
Renata Cabrera / Faouzia Kalali
MINISTÈRE NATIONAL DE L’ÉDUCATION EN FRANCE Programmes
des enseignements de mathématiques, de sciences de la vie et de
la terre, de physique-chimie pour les classes du cycle central du
collège (classes de cinquième et de quatrième). Bulletin Officiel 5,
25/aout/2005.
SOUZA,R. F. A renovação do currículo de ensino secundário no
Brasil: as últimas batalhas pelo humanismo (1920-1960). Curriculo
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THELOT, C. Pour la réussite de tous les élèves. Rapport de
la commission du débat national sur l’avenir de l’école, Paris:
Documentation française, 2004.
Políticas educacionais e educação científica no Brasil e na França
119
Biblioteca Pública Estadual
da Paraíba, um retrato
Tiago Eloy Zaidan
A Biblioteca Pública da Paraíba foi fundada em 1859, por
Henrique Baurepaire Rohan, mas, apenas em 1939, foi estabelecida no atual prédio que a abriga, na Avenida General Osório,
região central de João Pessoa. Trata-se de um casarão ventilado,
com estrutura imponente, que já abrigou, antes dos livros, a
primeira Escola de Ensino Primário e o Tribunal de Justiça. Tal
edificação, cuja pedra fundamental data de 26 de março de 1874,
foi concluída somente em 1884.1
Depois disso, a biblioteca e o casarão histórico ainda foram
separados uma vez. Foi em 1982, ano marcado pelos derradeiros
atos da ditadura militar no Brasil. Naquele ano, o acervo foi transferido para o Espaço Cultural da Paraíba, deixando o centro da
capital paraibana órfão de biblioteca. O limbo durou até 1998,
quando a Biblioteca Pública retornou ao prédio, o qual já lhe
confere identidade.2
Atualmente, sob a alcunha de Biblioteca Pública Estadual
Augusto dos Anjos, o espaço possui cerca de 26 mil títulos, dos
quais 16 mil estão cadastrados digitalmente. Entre 1.500 e 1.800
títulos são infantis, e ficam em estantes à parte. Trata-se de um
acervo basicamente conquistado por meio de doações, como o são
as cerca de 300 revistas em quadrinhos em espanhol, inglês e
português, doadas por um usuário. Também constam periódicos,
gentileza dos frequentadores os quais possuem assinaturas de
revistas. As informações são de Severina Kátia Augusta da Silva,
a abnegada coordenadora da biblioteca.
Fisicamente, a estrutura é composta por uma recepção, o
salão do acervo e um amplo salão de leitura, com sete computadores ligados à internet disponíveis para os usuários. “Cada um
tem o direito de usar por uma hora, podendo renovar por mais
uma hora. Eles têm acesso ao que eles quiserem, com exceção de
sites pornográficos e jogos. Essa parte eles não podem acessar”,
1 GOVERNO DO ESTADO DA PARAÍBA. Secretaria de Educação. Biblioteca Pública Estadual Augusto dos Anjos. João Pessoa, 2014. Folder.
2 Ibidem.
120
esclarece Severina Kátia. O salão de leitura abriga ainda eventos,
como saraus poéticos, lançamentos de livros e exposições, a
exemplo da recentemente realizada mostra em memória de
Augusto dos Anjos, ilustre poeta paraibano e patrono da instituição. Periodicamente, o salão também é adaptado para receber
crianças de escolas municipais e estaduais, em ações de imersão
dos infantes no mundo da leitura.
O fluxo diário de visitantes ao espaço é de 60 pessoas, em
média. Embora este número possa variar, Kátia esclarece que, em
época de alta estação turística, o prédio recebe visitantes de
outros estados e, até mesmo, de outros países, curiosos em descobrir o acervo da biblioteca local.
Para o futuro, pelo menos dois projetos de infraestrutura estão
em pauta. A climatização do ambiente – o que demandaria a aprovação do Instituto Histórico e Geográfico, uma vez que o prédio é
tombado, conforme faz saber a bibliotecária – e a disponibilização
de wi fi para os usuários, já que a internet é acessível apenas nos
sete computadores alocados no salão de leitura.
O encetamento de tais projetos depende diretamente de negociações junto à Secretaria de Educação do Estado, à qual a biblioteca está vinculada atualmente. A instituição não possui verba
própria e depende da emissão de projetos e ofícios à Secretaria
para as ações, como os eventos, incluindo aqueles destinados aos
estudantes da rede pública, e reparos na estrutura física. Foi
assim que a biblioteca recebeu os seus equipamentos mais recentes, como computadores e um aparelho de reprografia. Antes,
Kátia lembra que precisava valer-se de uma máquina de datilografia elétrica.
Apesar das conquistas, nem todas são boas notícias. “A gente
tem muitos projetos, mas não é certeza que eles vão sair”, admite
a bibliotecária. O motivo é patente: a limitação dos recursos. Por
falta de verba, o miniauditório da biblioteca, com capacidade para
cerca de 25 pessoas, foi desativado. Isso porque as cadeiras precisaram ser deslocadas para o salão de leitura, onde os usuários
não podiam prescindir delas.
O arrocho afetou, da mesma forma, o horário de funcionamento da Biblioteca Pública Estadual. Antes, o espaço funcionava
das 8 da manhã às 21h30. Hoje, sob o pretexto de economizar
energia elétrica, o expediente foi encolhido para as 16h30, para a
frustração dos usuários, muitos dos quais comerciários, impossiBiblioteca Pública Estadual da Paraíba, um retrato
121
bilitados de usufruir do espaço, durante à manhã e à tarde,
conforme reconhece Kátia.
Como se não bastasse, alguns problemas podem residir justamente naquele que é o principal motivo da biblioteca existir: o
usuário. Há leitores que, diante de uma página cujo assunto lhe
interessa, não titubeiam: arrancam a folha do livro. Deste impropério estavam padecendo, sobretudo, os títulos de história da
Paraíba, bastante procurados pelos candidatos em concursos
públicos. Agora, tais obras ficam guardadas na recepção, e o
usuário interessado deve solicitar o livro no balcão.
A despeito dessa atitude, o desrespeito à biblioteca e ao seu
acervo não é a regra. Muitos dos frequentadores possuem uma
relação com o espaço, a qual vai muito além do pragmatismo.
Chega à admiração e à afabilidade.
Durante a nossa conversa, Kátia me aponta um senhor que se
deleitava como criança, em uma mesa, de posse de alguns livros.
“Esse senhor de amarelo. Ele já está aqui na biblioteca há 50
anos. Quando ele era jovem, vinha estudar aqui. Terminou,
aposentou-se, e continua lendo aqui. Todo o acervo daqui ele
conhece. Ele vem sempre”.
122
Tiago Eloy Zaidan
VII. Ensaio
Autor
Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira
Jornalista paraense.
Da revolução à democracia:
uma transição incompleta
Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira
A
revolução, como aponta Alberto Aggio (1997), se configura
como um mito. Tal perspectiva mítica anuncia a possibilidade de criação de um tempo inteiramente novo a partir
de um determinado evento fundador. Nesse sentido, a revolução
se comporta como um fiat do desenvolvimento da História. No
Brasil, como aponta Marcelo Ridenti (2010), a revolução é apropriada como uma necessidade nas esquerdas brasileiras a partir
dos anos 1950. Diante do quadro de subdesenvolvimento brasileiro, grande parcela das esquerdas apostava na possibilidade de
uma revolução que, fincada nos valores nacionais, seria capaz
de romper com esse cenário, inaugurando um novo tempo para o
Brasil. Essa brasilidade revolucionária, na perspectiva de Ridenti,
é o eixo central das esquerdas brasileiras até meados dos anos
1970. A democracia, por outro lado, foi experimentada de modo
bastante diverso nas culturas políticas das esquerdas brasileiras.
Ao longo do século XX, sobretudo os comunistas, concebiam a
democracia de modo instrumental. A democracia, nessa perspectiva, constitui apenas uma etapa do processo revolucionário.
Os anos 1970 marcam um processo de revisão no interior das
esquerdas mundial e nacionalmente. Os ecos dessa renovação
atingem o continente sul-americano, como demonstra Norbert
Lechner (1988). Experimentando períodos ditatoriais, as esquerdas
sul-americanas iniciam um processo de descobrimento dos valores
da democracia, colocando-a como eixo central em suas discussões.
No Brasil, como atesta Daniel Pécaut (1990), em seu estudo sobre
os intelectuais, a rejeição do Estado autoritário leva os intelectuais
125
a rediscutirem suas apreciações acerca da democracia, fazendo
com que a revolução deixasse o centro dos debates.
Diante disso, esse trabalho objetiva analisar as relações entre
revolução e democracia no Brasil dos anos 1970 e 1980 no debate
intelectual, tomando como fontes e objetos as discussões promovidas por Carlos Nelson Coutinho, em A democracia como valor
universal (1979), Marilena Chauí, em Cultura e Democracia (1980),
e Francisco Weffort, em Por que Democracia (1984). Com a análise
desses intelectuais pretendemos problematizar que a transição
para a democracia das esquerdas brasileiras, entre anos 1970 e
1980, ainda se encontra em aberto, demonstrando o papel ainda
central que a revolução ocupa nesses debates.
Para tanto, é necessário pensar historicamente o que possibilita essa reapreciação das esquerdas em relação à democracia.
A rejeição ao autoritarismo do Estado levantada por Pécaut contribui para explicar essa problemática, todavia é preciso notar a
ocorrência de um importante deslocamento na estruturação dos
intelectuais na sociedade brasileira do período.
Os intelectuais brasileiros, desde o início de sua estruturação
na sociedade, orbitam em torno da esfera do Estado, traçando
determinados projetos de condução da sociedade brasileira
(ALONSO, 2002). Essa ligação dos intelectuais ao Estado é condição fundamental para o desenvolvimento de uma chave negativa
da revolução passiva, como aponta Gramsci (1978). Em nosso
processo de revolução passiva, isso se liga à presença do iberismo
em nossa formação histórica, segundo Luiz Werneck Vianna
(2003). É exatamente essa estruturação fortemente ligada ao
iberismo que começa a ser deslocada no início dos anos 1970.
A introdução do americanismo na sociedade brasileira, conduzida
autoritariamente pelos militares, contribui para a valorização da
sociedade civil em detrimento do Estado.
Portanto, amparados em Gramsci, podemos afirmar que há
um processo de ocidentalização das esquerdas brasileiras iniciado
nesse período. O americanismo, na perspectiva gramsciana, se
comporta como uma antítese do Oriente. Nas formações históricas orientais, o Estado é tudo. Sendo encarado como agente
modernizador por excelência, o Estado invade e molda a sociedade civil, tolhendo a autonomia desta, estabelecendo processos
de modernização de modo autoritário. O Ocidente forma-se na
perspectiva contrária. A relação entre Estado e sociedade civil é
invertida, de modo que a formação do Estado obedece aos movi126
Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira
mentos da sociedade civil. As discussões dos intelectuais aqui em
questão estão, nesse sentido, situadas no interior dessa conjuntura histórica, marcada pela forte introdução do americanismo
na sociedade brasileira, que gera a rejeição do Estado autoritário.
Cabe agora perceber em que medida tais intelectuais se apropriaram dessa ocidentalização.
O texto de Carlos Nelson Coutinho (1979), A democracia como
valor universal, homônimo da célebre declaração de 1977 de Enrico
Berlinguer, é decisivo para a compreensão desse processo de ocidentalização e reapreciação da democracia no interior das esquerdas
brasileiras. Coutinho objetiva em suas reflexões estabelecer uma
revisão no patrimônio político das esquerdas brasileiras, demonstrando a existência do vínculo entre socialismo e democracia.
A democracia, para Coutinho, em sua gênese, está intimamente ligada ao liberalismo e a burguesia. Todavia, isso não
significa que seus valores universais possam ser abandonados
pela esquerda. Aqui, há uma revisão importante. A democracia,
na cultura política das esquerdas, era desprezada exatamente
pelo fato de ser burguesa. Em Coutinho, aparece uma valorização
dessa democracia mesmo em sua versão burguesa.
Isso não significa, por outro lado, que o socialismo é um
prolongamento da democracia liberal e burguesa. Para Coutinho,
a superação da democracia liberal ocorre com a construção de
uma democracia socialista. Essa democracia pode somente ser
construída mediante a formação de novos sujeitos coletivos, capazes de conduzir a sociedade. Nesse sentido, há uma revisão dentro
da própria ideia de socialismo. O socialismo não consiste apenas
na socialização dos meios de produção, mas também na crescente
socialização dos meios de governar.
Na análise de Coutinho, a democracia e o socialismo nascem
das vicissitudes e das contradições impostas pela dinâmica privatista da reprodução capitalista. No Brasil, essas vicissitudes atingem seu ápice no processo de revolução passiva desencadeado
pelos militares. Nesse processo, estão conciliados os interesses do
capitalismo dependente e do latifúndio, de modo a excluir a população autoritariamente da esfera de participação política.
A renovação democrática é a alternativa à revolução passiva,
que é aqui igualada ao conceito leninista de via prussiana. A democracia, nessa perspectiva, ao criar sujeitos autônomos coletivos,
possibilita a ruptura com as vicissitudes da reprodução capitalista,
marcadas pela exclusão da população. Assim, a democracia incorDa revolução à democracia: uma transição incompleta
127
poraria as massas na construção do socialismo, rompendo com a
cultura vanguardista e golpista das esquerdas brasileiras.
Nessa equiparação de Gramsci e Lenin, Coutinho perde o
significado da revolução passiva. Gramsci ao desenvolver esse
conceito partiu de uma leitura da história que detecta o surgimento de uma nova morfologia da política. Com isso, Gramsci
elaborou um conceito que permitisse compreender novas formas
de ingresso no mundo moderno, em países que não experimentaram processos clássicos de revolução burguesa, como a Itália.
Assim, na perspectiva gramsciana, a ideia de revolução passiva
permite rever a revolução de tipo explosivo, característica do
jacobinismo. Nesse sentido, a revolução passiva jamais pode
tornar-se o seu contrário, uma vez que as condições históricas
que originaram a possibilidade de uma revolução de caráter
ruptural desapareceram.
Estando, portanto, a revolução fora das possibilidades históricas, faz-se necessária a construção de um novo tipo de política
capaz de levar adiante as transformações sociais. É a partir dessa
leitura que Gramsci constrói sua teoria da hegemonia. Tendo
consciência de estar inserido em um processo de revolução
passiva, os atores precisam disputar a construção da hegemonia,
isto é, do consenso em torno de seu projeto. Em virtude disso, as
transformações sociais podem ocorrer somente de modo molecular, dentro de uma perspectiva democrática.
Coutinho, contudo, deseja a partir da construção da hegemonia e da incorporação das massas à política inverter o sentido da
revolução passiva. Isso significa, em outros termos, reativar a ideia
de um processo revolucionário. Essa perspectiva ainda se reforça
no diálogo com Lenin. Gramsci, ao aparecer atrelado à Lenin,
termina por reforçar algumas características do projeto revolucionário de Lenin. Embora seja evidente que Coutinho aponte as
insuficiências do vanguardismo, característica essencial do leninismo, há um apelo para um processo revolucionário de massas.
A saída revolucionária parece inevitável em virtude da análise
de Coutinho acerca do processo de reprodução capitalista. Nos
moldes em que se estrutura, o capitalismo termina por, necessariamente, excluir a população dos processos de decisão política.
Dentro desse quadro, somente um processo de esgotamento das
contradições pode superar a exclusão. A democracia é, nesse
sentido, um dos agravantes dessa contradição, uma vez que
128
Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira
aumenta a demanda por participação, sendo capaz de inverter as
vicissitudes do capitalismo.
Assim, a democracia pode somente surgir dos escombros da
sociedade capitalista. Coutinho é claro ao afirmar a necessidade da
socialização dos meios de governar e da criação de indivíduos autônomos. Todavia, esta socialização pode somente ocorrer após a
socialização dos meios de produção e trabalho. É algo a ocorrer
processualmente já no interior do socialismo. Nesse sentido, a democracia não se comporta como um valor em si mesmo, mas como um
valor fundamental para o desencadeamento do processo revolucionário, uma vez que agrava as contradições do sistema capitalista.
Em Marilena Chauí (2001) há também essa intersecção entre
a revolução e democracia. Chauí inicia suas discussões partindo
da definição de ideologia. Para a autora, a ideologia pertence ao
campo do imaginário, sendo um conjunto coerente de imagens
capazes de explicar e justificar a realidade. Nesse sentido, a ideologia visa à legitimidade do poder de determinada classe. Para
tanto, a ideologia cria uma imagem a-histórica da sociedade, para
que esta pareça sempre idêntica a si mesma.
A democracia, na visão da autora, permite abrir a sociedade
à historicidade. Isso ocorre porque a democracia é, essencialmente, um regime político que faz com que a sociedade se institua sempre, estando aberto aos conflitos e aos dissensos. Diante
disso, Chauí observa a democracia em seus aspectos históricos.
Como questão histórica, a democracia abre margem para a superação das ideologias e de seu caráter a-histórico, uma vez que,
ao estabelecer a vivência dos conflitos, permite que a sociedade
esteja aberta à historicidade.
Além destas questões, Chauí aponta as condições sociais para
a existência dessa democracia. Para que a democracia exista é
necessária uma transformação no sistema de produção, capaz de
eliminar a divisão entre trabalho manual e intelectual. Nesses
termos, a democracia, para Chauí, pode ocorrer somente mediante
o término da divisão social do trabalho. Diante disso, a autora
parece concluir que a democracia não pode ocorrer dentro dos
marcos do capitalismo. Partindo de uma perspectiva marxiana, a
divisão social do trabalho é a origem da luta de classes. Sua eliminação é somente possível em uma sociedade sem classes, ou seja,
na construção do comunismo.
A análise de Chauí acerca do Estado também corrobora essa
leitura. Assim como Coutinho, Chauí propõe uma revisão no inteDa revolução à democracia: uma transição incompleta
129
rior do marxismo. Partindo das análises gramscianas entre sociedade civil e Estado, a autora estabelece uma recusa do modelo
leninista, alegando que esse modelo produz uma crítica coerente
ao Estado representativo, mas não tece críticas à organização do
Estado em si. Tal crítica se faz necessária, na perspectiva de
Chauí, uma vez que o Estado é uma forma determinada pelo capitalismo. Em consequência dessa determinação, por mais que os
movimentos sociais atuem em direção à esfera estatal em um
cenário de democracia participativa, sua participação está condicionada aos limites do capitalismo, de modo que as demandas
sociais serão repostas pelo próprio capitalismo.
Nessa conjuntura, Chauí propõe que os movimentos sociais
inovem suas formas de luta. Para a autora, os movimentos sociais
no Brasil nunca se pautaram por uma perspectiva anti-estatal, o
que, como vimos, é uma das razões de seus fracassos na transformação da sociedade. Diante disso, Chauí desloca o terreno da luta
política do Estado para a sociedade civil, compreendendo que esta
é o terreno, por excelência, em que desenvolve a luta de classes.
Assim como Coutinho, Chauí participa do amplo debate das
esquerdas sobre a questão da democracia e do Estado. Nesse debate
procura rever elementos importantes na cultura política das
esquerdas, sobretudo em relação ao leninismo. Aponta as insuficiências e o autoritarismo da ideia de vanguarda em Lenin. Para
superar as deficiências do leninismo, apoia-se também em Gramsci.
Todavia, a leitura de Gramsci estabelecida por Chauí parece não
frutificar-se na formulação de uma política democrática.
Ao observar as relações entre Estado e sociedade civil, Chauí
terminar por excluir o Estado da esfera de luta, uma vez que este
se encontra determinado pela reprodução capitalista. Ao excluir a
dimensão estatal da luta pelas transformações, Chauí produz, de
fato, uma importante crítica ao caráter autoritário e classista do
Estado. Contudo, concomitantemente, exclui as possibilidades de
uma transformação gradual e democrática da sociedade. Não
havendo possibilidade de hegemonia no interior da sociedade, o
socialismo pode ocorrer somente a partir do surgimento de um
poder popular que tome esse Estado de assalto. A democracia,
nessa perspectiva, surge apenas, no interior do capitalismo, como
uma forma de agravar as contradições do sistema.
Portanto, a revolução no pensamento de Marilena Chauí
aparece como condição fundamental para o desenvolvimento da
democracia. Em sua valorização da democracia, Chauí cria uma
130
Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira
estrutura que impossibilita o próprio desenvolvimento da democracia. As massas devem se fortalecer e ganhar autonomia, obedecendo à lógica de criação de um poder paralelo ao Estado que, em
dado momento, seja capaz de destruir o sistema vigente.
Francisco Weffort (1985), diferentemente de Coutinho e Chauí,
estabelece em suas análises uma equivalência entre os conceitos
de democracia e revolução. Para tanto, fixa um balanço da história brasileira, apontando os equívocos cometidos na apreciação
da democracia. Demonstra a existência de tradições autoritárias,
que concebem a democracia somente como um instrumento de
poder. O conceito de revolução é também revisto por Weffort. Para
o autor, em nossa tradição, o conceito de revolução, em virtude do
autoritarismo, é marcado por uma cultura golpista.
Observando o processo de transição brasileiro nos anos 1980,
o autor procura traçar possibilidades de atuação das esquerdas.
Para Weffort, no Brasil as transformações ocorrem sempre pelo
alto em virtude do predomínio dos grupos conservadores, amplamente marcados pelo autoritarismo e pelo encastelamento no
Estado. Nos anos 1970 e 1980, essa relação assimétrica entre
Estado e sociedade civil começa a inverter-se, em virtude do fortalecimento desta última.
Esse crescimento da sociedade civil permite os avanços da
transição no Brasil. Nesse avanço, a aliança entre liberais e comunistas tende a terminar, abrindo espaço para a emergência de uma
sociedade de classes, momento fundamental, na visão do autor,
para as lutas de transformação da realidade. Finda a aliança, os
liberais, contrários ao regime, se aliariam novamente aos conservadores, fechando-se no Estado. Diante dessa recusa dos liberais
em gerir a democracia, a classe operária deve emergir como ator
fundamental na condução do processo de democratização brasileiro, uma vez que surge da sociedade civil, estando, portanto em
contraposição ao Estado, fortaleza dos liberais e conservadores.
A transformação desse cenário, para Weffort, deve ocorrer a
partir de uma revolução. A revolução, nessa leitura, não se identifica
com um fenômeno autoritário. As ditaduras pós-revolucionárias não
podem ser confundidas com o a revolução em si, que é um fenômeno
essencialmente democrático. Nesse sentido, Weffort afirma categoricamente que “democracia e revolução não são conceitos que se
excluam reciprocamente” (WEFFORT, 1985, p. 103). Assim, o caminho da revolução é a democracia, pois esta garante o controle popular das reformas a serem efetivas no interior da sociedade.
Da revolução à democracia: uma transição incompleta
131
Essa revolução, anunciada por Weffort, pode somente ocorrer
a partir do fortalecimento da sociedade civil. Esse fortalecimento
garante mais autonomia e independência para os trabalhadores,
que podem afirmar sua força no cenário político. Além disso, essa
força deve valer-se de uma compreensão adequada dos conceitos
de revolução e democracia. Com isso, as esquerdas poderão
compreender que “a luta pela democracia será também a luta pelo
socialismo”. (WEFFORT, 1985, p. 133).
Portanto, Weffort é bastante claro em sua apreciação das relações entre revolução e democracia. Assim como Coutinho e Chauí,
Weffort acredita que a democracia é um fenômeno que pode ocorrer somente mediante uma revolução. No entanto, em diferença
dos autores analisados acima, Weffort procura igualar o sentido
dos dois conceitos, demonstrando que as revoluções são, em si,
movimentos democráticos.
Ademais, como os outros autores, Weffort também procura
estabelecer revisões no interior da cultura política das esquerdas.
A ênfase do autor recai, nessa perspectiva, na cultura golpista a
autoritária. Todavia, essa cultura é mostrada como algo exógeno
às esquerdas, tendo sido originado nas direitas conservadoras.
Nessa revisão, Weffort parece também desprezar a esfera estatal,
deslocando a política para dentro da sociedade civil, uma vez que
o Estado aparece como o domínio histórico das classes liberais e
conservadoras. Nesse sentido, resta somente, para a construção
da democracia, um processo revolucionário de massas que tome
esse Estado.
Portanto, tendo analisado até aqui as ideias dos três autores,
podemos arriscar algumas problematizações acerca da renovação
democrática das esquerdas brasileiras. Como é notável em Coutinho, Chauí e Weffort, há uma crítica direcionada ao Estado, seu
caráter autoritário e suas políticas de modernização conservadora.
Em paralelo, há um apelo unânime de fortalecimento da sociedade
civil, que seria capaz de inverter essa lógica do Estado. Isso, como
vimos nas notas sobre o americanismo de Gramsci, se configura
como uma adesão das esquerdas às vantagens do moderno, apontando para um claro processo de ocidentalização das esquerdas.
Nesse raciocínio, a democracia é avaliada como uma possibilidade clara de atuação da sociedade civil. Há uma nítida tentativa
de revisão dos valores da democracia dentro da cultura política
das esquerdas, que procura superar seus traços vanguardistas,
autoritários e golpistas. Nesse bojo, a própria ideia de revolução
132
Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira
procura ser revista, na tentativa de abarcar os valores da democracia. Todavia, podemos notar que nesses autores a revisão da
ideia de revolução é incompleta. Esta ainda aparece como uma
tomada do poder, originada por um poder paralelo gestado no
interior da sociedade. A recusa da luta política no interior do
Estado, gera a recusa da luta por hegemonia e, consequentemente,
elimina a possibilidade de uma transição gradual para o socialismo, restando apenas a condição de um embate frontal e decisivo entre as forças políticas. Somado a isso, a lacuna da renovação do conceito de revolução, também impede o desenvolvimento
e a aceitação da democracia como um valor universal. Nesse
sentido, podemos problematizar, a partir da leitura desses intelectuais, que há uma ocidentalização incompleta das esquerdas
brasileiras, já apontada por Luiz Werneck Vianna (1989) em suas
análises sobre o PCB. A transição para uma esquerda democrática, nesse sentido parece estar, ao menos nos anos 1970 e 1980,
aberta e inconclusa. A democracia, apesar de figurar como aspecto
importante da discussão das esquerdas, não parece se configurar
como seu eixo central.
Referências
AGGIO, Alberto. Revolução e democracia no nosso tempo. Franca:
Unesp, 1997.
ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do
Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente. São
Paulo: Cortez, 9. ed., 2001.
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado Moderno. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 3. ed., 1978.
LECHNER, Norbert. Los patios interiores de la democracia:
subjetividad y política. Santiago: Flacso, 1988.
PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo
e a nação. Trad.: Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Ática, 1990.
RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária. São Paulo: Unesp,
2010.
SILVEIRA, Ênio da (et al.) Encontros com a Civilização Brasileira 9.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva: americanismo e
iberismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997.
Da revolução à democracia: uma transição incompleta
133
______. Questão Nacional e democracia: o ocidente incompleto do
PCB. In: A transição: da constituinte à sucessão presidencial. Rio de
Janeiro: Revan, 1989.
WEFFORT, Francisco. Por que democracia? São Paulo: Brasiliense,
1984.
134
Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira
VIII. As Cidades e a
Governança Democrática
Autores
Cleia Schiavo Weyrauch
Professora associada do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da
UERJ.
George Gurgel de Oliveira
Professor, doutor, da Cátedra da Unesco – Sustentabilidade, da Universidade
Federal da Bahia.
Maria Alice Rezende de Carvalho
Professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio e pesquisadora do
Centro de Estudos Direito e Sociedade (Cedes/PUC-Rio).
Os desafios da Governança
Democrática municipal
George Gurgel de Oliveira
O
texto a seguir trabalha o conceito de Governança Democrática, relacionando-o com a política e a gestão pública
local na perspectiva do desenvolvimento e da sustentabilidade municipal e regional.
Uma análise da política e da gestão pública dos municípios
brasileiros em geral deve considerar a realidade econômica, social
e ambiental destes espaços locais.
Atualmente, o Brasil possui 5.570 municípios distribuídos
pelos 26 estados da Federação (IBGE, 2014). Minas Gerais concentra o maior número deles (853), seguida de São Paulo (645). No
outro extremo, os estados localizados na região norte são os que
possuem o menor número, apesar da grande extensão territorial:
Amazonas (62), Rondônia (52), Acre (22), Amapá (16) e Roraima
(15). O mais populoso é São Paulo com mais de 11 milhões de
pessoas e o de menor população é Borá, também em território
paulista, com apenas 805 habitantes.
A maioria dos municípios brasileiros enfrentam problemas de
custeio e contam apenas com as cotas constitucionais. As administrações não conseguem atender às expectativas de suas populações, excluídas dos seus direitos básicos constitucionais, a
saber: moradia, educação, saúde, trabalho e renda.
Quais as razões desta crise permanente da maioria dos
municípios? Em que esfera governamental se localiza? O modelo
de desenvolvimento brasileiro atende às expectativas dos seus
137
municípios e das regiões onde estão inseridos? O atual pacto
federativo atende às expectativas da sociedade brasileira? Qual
o papel dos governos, do mercado e da sociedade civil no enfrentamento desta realidade?
A Governança Democrática, a política e a gestão municipal
As crises política, econômica e de valores, vividas, no momento,
pela sociedade brasileira, se refletem direta e concretamente na
realidade econômica e social dos municípios.
O atual pacto federativo aponta caminhos para a superação
destas crises? As relações dos governos estadual e federal atendem às expectativas dos municípios?
Quais os fundamentos de uma Governança Democrática para a
administração municipal? Quais as questões estruturantes a serem
consideradas neste contexto frente a esta realidade brasileira?
A primeira constatação importante para significar o conceito
de Governança Democrática é entender que a sociedade contemporânea está integrada, mundialmente, de uma maneira interdependente e funciona em redes. Também é fragmentada, concentradora de riquezas e socialmente excludente.
Portanto, são complexos os desafios políticos, econômicos,
sociais e ambientais para transformar esta realidade na perspectiva de construção de novas relações políticas, econômicas e
sociais tanto no plano global, quanto nacional e regional, refletindo no dia a dia das populações locais.
Assim, coloca-se a necessidade de uma outra perspectiva de
desenvolvimento, com ampliação da democracia, construtora de
uma nova economia, para o enfrentamento dos complexos desafios sociais e de preservação do meio ambiente nos planos mundial,
nacional e regional.
Destaque-se, ainda, que a maioria da população brasileira
(cerca de 80%) vive nas cidades. Neste contexto, a vida social é
predominantemente urbana. As cidades dão a tônica das regiões
onde estão inseridas.
As democracias modernas delegaram a representantes eleitos
diretamente pela cidadania a ação de governo. Assim, a qualidade
da Governança Democrática será proporcional a relação construída entre estes diversos atores políticos, econômicos e sociais.
138
George Gurgel de Oliveira
Uma das variáveis importantes para uma efetiva “Governança
Democrática” é o processo de escolha dos governantes. Tanto o
processo político-eleitoral, quanto os compromissos construídos nos
programas de governo e principalmente, o exercício de governança
em si. A autonomia e participação efetiva da sociedade civil neste
processo são variáveis importantes na avaliação da qualidade da
democracia conquistada e a perspectiva de sua ampliação.
Segundo Josep Pascual (2), as condições necessárias para
garantir uma representação política (governo) comprometido com
a Governança Democrática são:
1. Dispor de mecanismos de participação e avaliação que
permitam conhecer a opinião de todos os setores da cidadania
implicados em uma política ou projeto, a fim de garantir que a
autonomia em relação aos eleitores seja utilizada para se obter o
interesse geral;
2. Assegurar que a liberdade de expressão alcance a todos e,
em particular, garantir que se ouça a voz dos setores mais precários como garantia de uma cidade inclusiva;
3. Que as eleições sejam precedidas por uma prestação de
contas dos programas de governo e projetos realizados, com requisitos de objetividade e transparência e sejam disponibilizadas as
fontes alternativas de informação, com as mesmas características;
4. Um amplo uso da deliberação e a geração de ideias por
meios eletrônicos e presenciais, não como instrumentos de decisão sobre recursos públicos, mas para garantir a qualidade das
decisões políticas.
Qual é a realidade brasileira?
O atual pacto federativo ajuda a esta construção?
As evidências pautadas pela realidade política, econômica e
social da maioria dos municípios brasileiros demonstram que não.
Portanto, o que se coloca é a necessidade de construção de um
novo pacto federativo, na busca de maior autonomia para os
municípios e, ao mesmo tempo de corresponsabilidade com os
governos estadual e federal, com participação pró-ativa da sociedade para o enfrentamento dos desafios políticos, econômicos e
sociais da maioria dos municípios na perspectiva do desenvolvimento e da sustentabilidade municipal e regional.
Os desafios da Governança Democrática municipal
139
Governança Democrática, desenvolvimento e sustentabilidade
Assim, deve-se discutir a questão do desenvolvimento e da
sustentabilidade do município de uma maneira mais ampla, com
foco na região onde está inserido.
As cidades concentram a população, a pobreza e as desigualdades.
A crise dos municípios e das administrações locais reflete um
conjunto de distorções, disfuncionalidades e limites das atuais
estruturas político-administrativas que são responsáveis pela
formulação e implementação das políticas públicas municipais,
tanto na esfera do próprio município, quanto nas áreas estadual
e federal.
Esta crise pode ser resumida na insuficiência de receita, na
falta de visibilidade em relação as decisões sobre despesas e
investimentos, na insuficiência de recursos técnico-administrativos e, ainda, na falta de participação da população na política e
na gestão municipal.
Urge, neste contexto, se promover imprescindíveis reformas
política, administrativa e tributária que não mudem apenas os
critérios de redistribuição de recursos entre União, estados e
municípios, melhorando a situação atual da maioria dos municípios, como também garantir aos estados e à União recursos que
viabilizem a implementação de políticas públicas, particularmente nas áreas de educação, saúde e saneamento básico, criando
as condições para o enfrentamento da difícil realidade econômica
e social da maioria dos municípios do país.
Portanto, a crise recorrente vivenciada pelos municípios brasileiros se reflete no processo de construção e implementação das
políticas públicas. Coloca-se como imperativo o foco em prioridades que garantam a construção e a implementação de políticas
públicas voltadas para o desenvolvimento municipal, articulado
às políticas de desenvolvimento regional, sob as responsabilidades estadual e federal, em sintonia com a realidade local.
Há que se trabalhar a administração pública municipal como
uma questão regional, estadual e nacional.
A gestão local deve estar comprometida com a reorganização
do espaço urbano a favor do público, melhoria das condições de
moradia, educação, saúde, saneamento básico, segurança, mobilidade urbana e ampliação da renda familiar em função dos que
mais necessitam.
140
George Gurgel de Oliveira
Estes são os desafios permanentes de uma Governança Democrática, voltada para o desenvolvimento municipal.
A seguir, algumas questões a serem consideradas no processo
de construção de políticas públicas, desafios permanentes de
uma Governança Democrática, na perspectiva do desenvolvimento e da sustentabilidade municipal.
Os desafios da Governança Democrática
Uma análise sistêmica da realidade econômica, social e
ambiental é o fundamento para a construção de uma Governança
Democrática no município.
O processo de construção deste governo relacional considera o
papel e os interesses dos diversos atores políticos, econômicos e
sociais envolvidos no processo de desenvolvimento municipal e as
relações do município com a região onde está inserido, considerando as realidades nacional e mundial.
Uma Política de Governança Democrática Municipal deve ser
construída considerando a necessidade de:
• realizar um diagnóstico da realidade econômica, social e
ambiental municipal;
• construir um pacto político-administrativo envolvendo os
atores políticos, econômicos, sociais e ambientais a nível
municipal, dialogando com os governos estadual e federal
e a sociedade civil em geral;
• comprometer, a partir do diagnóstico e do pacto antes
mencionados, a administração e a sociedade municipais
no processo de construção e implementação das políticas
públicas, na busca do desenvolvimento e da sustentabilidade econômica, social e ambiental.
Importante destacar-se a necessidade da criação de um Conselho Consultivo Municipal para o Desenvolvimento e a Sustentabilidade, como espaço de discussão permanente dos diversos atores
sociais no processo de construção, implementação e acompanhamento dessas políticas públicas. Este Conselho será a garantia de
uma participação efetiva das representações da sociedade civil, do
mercado e do Estado nesta construção, independente das forças
políticas que estejam no Executivo e no Legislativo municipal, na
perspectiva do desenvolvimento e da sustentabilidade locais.
Os desafios da Governança Democrática municipal
141
Finalmente, é importante destacar os limites do município
neste processo de construção de uma Governança Democrática,
limites estes impostos pelo atual pacto federativo, assim como em
função das crises política, econômica, social e de valores, vivenciadas pela sociedade brasileira, particularmente na área federal.
Assim, os desafios de uma Governança Democrática no Brasil,
particularmente na esfera municipal, é garantir espaços de participação individual e coletiva, no processo de construção de uma
sociedade cada vez mais plural, ampliando os espaços de participação e de decisão da cidadania, na busca de um modelo de
desenvolvimento, cuja economia tenha como fundamento estar
atenta à inclusão social e à preservação do meio ambiente, considerando a história e a cultura brasileiras, especificidades regionais, buscando realizar as reformas política, econômica e social
tão necessárias e ainda por fazer.
Neste contexto, impõe-se a necessidade de um novo pacto político entre a sociedade e os entes federativos, reconhecendo a autonomia e o potencial dos municípios brasileiros.
Referências
PASCUAL ESTEVE, Joseph Maria, trad. João Carlos Vitor Garcia.
Governança democrática: construção coletiva do desenvolvimento
das cidades. Juiz de Fora: UFJF, FAP, IC, 2. ed., 2012.
GURGEL DE OLIVEIRA, George. A Governança Democrática, a
política e a gestão municipal. Digital, apresentado no Painel V – A
construção coletiva do desenvolvimento das cidades, do ENCONTRO
DE PREFEITOS, 4. 17 a 20 de set./2015. Bahia.
MARTÍNEZ, Francisco Rodríguez (coord.). Desarrollo regional y
territorio. Nuevos planteamientos y perspectivas. Granada: Instituto
de Desarrollo Regional, 2007.
142
George Gurgel de Oliveira
Sobre “tudo que está aí”
Maria Alice Rezende Carvalho
A
lguém já disse que o ensaísta Otávio Paz se sentia à vontade “no
todo”, no trato de questões que lhe permitiam viajar por largos
períodos de tempo, transitando, quase sempre, do domínio da
política para o da cultura, do conjuntural para um aspecto constitutivo do modo de existência dos mexicanos. Mas talvez se pudesse
dizer que, independente do ensaísta, esse é o propósito do gênero
ensaio: um esforço de entendimento de algo que é pressentido no seu
contorno, e não no detalhe. Ensaios falam de coisas já sabidas por
todos, que, contudo, tomam de assalto a consciência quando arrumadas de um jeito novo. Por isso, quando o contexto expõe fraturas
políticas aparentemente profundas, quando a divisão é o elemento
dominante no cenário intelectual, o ensaio é um convite à reunião
de todos nesse lugar comum, uma convocação a esse recuo de onde
é possível avistar mais facilmente o “todo”.
Vive-se hoje uma crise cujo escopo abrange a política, a economia, a legalidade republicana e um modo de existir socialmente,
a que se dá o nome – ou, pelo menos, se dava – de Brasil. Se as
três primeiras dimensões são constantemente referidas, revezando-se na preferência dos analistas, as menções à nossa
maneira de viver, isto é, à ética social brasileira e aos deslocamentos que se verificam nesse âmbito, têm sido menos frequentes. E
talvez seja aí onde se nutre o nosso mal-estar.
No Brasil, guardadas as devidas proporções, as três últimas
décadas conheceram uma revolução social comparável à dos anos
compreendidos entre 1940 e 1980. Naquela época, a chegada de
milhões de brasileiros às cidades era o aspecto que mais se destacava e o que melhor traduzia os rumos que a modernidade assumia entre nós. O êxodo rural experimentou um momento de
grande aceleração e, por volta de 1970, chegou a transferir para
as cidades o equivalente a 30% da população rural – cerca de 12
milhões de pessoas. Assim, se o Brasil dos anos 1940 apresentava
uma taxa de urbanização de 26,35%, ao final do período mencionado, essa taxa já havia atingido 68,86%. Em seu livro A urbanização brasileira, onde se encontram tais informações, Milton
Santos afirma que, ao longo desses quarenta anos, a população
143
total do Brasil triplicou, enquanto a população urbana brasileira
se multiplicou por sete vezes e meia.
Os migrantes vinham atrás de melhores condições de vida – o
que significava não apenas casa e trabalho dignos, mas também
o acesso à educação e, sobretudo, a uma vida livre, que as relações de trabalho nos latifúndios não favoreciam. Movido pelas
políticas de substituição de importações, o mercado industrial de
trabalho foi uma poderosa miragem para aquele contingente, estimulando, nesse sentido, a urbanização dos Estados de São Paulo
e da Guanabara, destinos preferenciais de homens pobres do
campo, sem adequação imediata ao modo de vida urbano. Muita
gente se desprendeu de toda parte do Brasil em busca de melhor
destino; e a penosa entrada em um mundo desconhecido não
parecia tão ruim, comparada à permanência no campo.
O fato, porém, é que essa revolução demográfica conhecerá
assentamento durante a ditadura militar, conformando, nas cidades, um tipo de experiência social inseparável daquela circunstância. Se a experiência política da ditadura vem sendo revolvida
– como se observa com a construção de uma memória pública
relativa àqueles anos —, o mesmo não se dá com a experiência
social da ditadura, ainda que seus efeitos sejam bastante severos
e duradouros. É claro que um número significativo de estudos se
debruçou sobre a organização da sociedade civil naquele período,
apontando, justamente, a destruição – ou, pelo menos, o abrandamento – do que havia sido conquistado desde o segundo pósguerra. Mas as organizações sociais, como se sabe, além de habitarem a fronteira da política, supõem a participação de cidadãos
empenhados. Portanto, a experiência social da ditadura como
algo que afeta a todos, indistintamente, e não apenas àqueles que
participam do mundo público-político, deve ser buscada em uma
específica configuração histórico-espacial que resultou do encontro entre aquela gigantesca onda migratória e o autoritarismo
político. A esse resultado se pode dar o nome de “cidade da ditadura”, isto é, o ambiente urbano que, tendo sido fruto de uma
determinada conjuntura, se tornou perene.
A súbita movimentação de migrantes em escala superior ao que
as cidades brasileiras poderiam comportar gerou uma pressão social
latente que terá sido afrouxada com a informalização do trabalho e
da habitação, o que não apenas liberou variadas estratégias de
subsistência, incluído o improviso habitacional das favelas e cortiços, como também desmarcou algumas instituições da cidade –
sobretudo ruas e espaços públicos, que foram sendo devoradas pela
144
Maria Alice Rezende Carvalho
informalidade reinante. Deliberada ou não, foi essa a “política
urbana” praticada pelos militares: deixar que as cidades fossem
conformadas pela acomodação espontânea entre velhos e novos
habitantes, velhos e novos interesses, cabendo os custos materiais e
sociais daquela acomodação aos próprios citadinos. Ao fim de algum
tempo, a desregulação encontrou operadores que mercantilizaram
alguns arranjos e passaram a viver do absenteísmo governamental.
Mandões, valentões, toda a florada de patronos dos ajuntamentos
populares contiveram a pressão embaixo – alinhados, evidentemente, pela repressão estatal – enquanto, em cima, mandava a
indústria da construção civil, incorporando novos terrenos e dando
emprego à mão de obra despreparada e analfabeta que adentrara o
mundo urbano. Viadutos, túneis, pontes, conjuntos habitacionais
construídos em áreas de fronteira da cidade foram amarrando as
gerações futuras a uma era de autoritarismo político que se inscreveu na própria morfologia das cidades.
É, portanto, nessas “cidades da ditadura” que continuamos a
viver – cidades marcadas por arranjos urbanísticos de péssima
qualidade e pior inspiração, pela escassez de saneamento, pela
proliferação de guetos sociais, pela violência do Estado, pela
ausência de participação efetiva da sociedade em experiências de
auto-organização, e, como se não bastasse, pelo desrespeito à
vida (e mesmo à morte), que se percebe em eventos como o da
recente passagem do trem da SuperVia sobre o corpo do jovem
que jazia em seus trilhos. Pesquisa realizada posteriormente pelo
jornal O Dia constatou que a maioria dos entrevistados apoiou a
decisão dos administradores. Quem há de estranhar? A brutalização dos passageiros da SuperVia é nutrida, cotidianamente,
pela ausência de dignidade que a empresa lhes concede: não há
limpeza, conforto, segurança, banheiros públicos, plataformas
cobertas nas estações, acessos facilitados aos mais velhos, às
crianças e aos deficientes, e, aliás, qualquer certeza quanto aos
serviços anunciados. Enfim, esse é o miserável cenário que nos
contém, em nada parecido com o de uma cidade livre – vivemos
tristes em ruas tristes, aprisionados em cidades da ditadura.
As três últimas décadas no Brasil, de modo similar ao que
ocorreu nos anos compreendidos entre 1950-1980, representaram
uma mudança estrutural no país, expressa na chegada de milhões
de brasileiros ao mundo dos direitos. Não se trata mais da migração campo-cidade, mas da vitória da agenda da igualdade, que
conhece enorme desenvoltura em todo o mundo – e, no Brasil, não
tem sido diferente. Entre nós, as políticas de transferência de
Sobre “tudo que está aí”
145
renda somadas a um ambiente político democrático pareciam
poder impulsionar a participação e, com ela, o aprofundamento
das conquistas consagradas pela Carta de 1988. O tema da
“inclusão” e a denúncia da desigualdade seguem sendo, desde o
início dos anos 2000, os ângulos hegemônicos das análises voltadas aos impasses da democracia brasileira.
Portanto, é impossível não mencionar avanços auferidos nesse
âmbito – das políticas focais a estratégias de valorização dos setores mais vulneráveis da população. Mas também seria irresponsável desconhecer o fato de que tais avanços apenas roçam a
superfície do problema. E por dois motivos. O primeiro deles é
mais óbvio: não basta apenas ter acesso aos direitos; é preciso
que eles se tornem efetivos, cumulativos e cotidianos. Crianças e
jovens vão às escolas, mas não necessariamente se alfabetizam
ou têm a chance de fazer do conhecimento uma via de ascensão e
de reconhecimento social; moradores de favelas têm acesso à
eletricidade, mas, se houver um problema no fornecimento, por
quantos dias, semanas, em alguns casos, meses, permanecerão
sem o serviço? De fato, a democratização dos “bens de cidade”
ainda é limitada, pois a simples garantia dos direitos não corresponde automaticamente ao seu usufruto.
O segundo motivo, talvez mais importante, é que a cidade, tal
como se encontra estruturada, não permite que mesmo as mais bem
intencionadas políticas de transferência de renda alterem o círculo
vicioso da pobreza urbana, que, como se sabe, supõe uma forte relação entre territórios e oportunidades sociais e ocupacionais. Assim,
transferir renda, mantendo, porém, grandes áreas da cidade destituídas de equipamentos e serviços públicos, não promoverá a democratização da sociedade. Afinal, parodiando Luiz Cesar Queiroz
Ribeiro, “o que a economia produz como promessa de bem-estar
individual, a metrópole transforma em mal-estar coletivo”.
Em suma, a novidade dessa segunda revolução demográfica
não é mais a chegada das grandes massas à cidade e sequer sua
adequação à pauta de consumo que a cultura urbana impõe, mas,
antes, a chegada das grandes massas ao mercado de crédito –
fenômeno que cancelou a barreira da “heterogeneidade estrutural” que, na América Latina, impedia o avanço da sociedade de
mercado. O argumento é da economista Lena Lavinas, que, no
caso brasileiro, observa que o sistema de saúde – mas se poderia
dizer o mesmo sobre o sistema educacional – foi financeirizado,
como se atesta pela rápida expansão dos planos de saúde. No
caso do sistema educacional, vide a multiplicação de escolas e
146
Maria Alice Rezende Carvalho
faculdades privadas. Ora, esse deslocamento da provisão pública
dos “bens de cidade” para a esfera privada não reflete a melhoria
das condições de vida das famílias brasileiras. Trata-se, ao
contrário, de uma dinâmica de fortalecimento do capital financeiro e de mercantilização da cesta básica de direitos (nela incluídos, habitação e transporte), cujo efeito tem sido a ampliação da
vulnerabilidade dos segmentos mais pobres da população. Em
outras palavras, a política social que acompanha esse segundo
grande ciclo de expansão da urbanização brasileira não concorre
para a democratização da cidade. Sendo o acesso ao mercado
financeiro a grande novidade desse segundo desenvolvimentismo,
todas as exigências de uma cidade igualitária vêm sendo progressivamente descuidadas, para não dizer canceladas: não há saneamento básico para uma grande parte da população metropolitana, não se construíram moradias dignas na proporção requerida,
o sistema de transportes humilha e avilta seus usuários, a saúde
e a educação públicas são deficientes e... se utiliza o crédito para
assegurar necessidades básicas. Nesse sentido, à “cidade da ditadura”, excludente e autoritária, se superpõe a “cidade da inclusão
financeira”, que não afeta a morfologia urbana herdada do regime
militar e tampouco a desigualdade nela inscrita.
Daí que, paralelamente aos diagnósticos que tomam as jornadas
de julho de 2013 como expressão periférica de um movimento global
de contestação política, como algo derivado de energias destampadas pela interação de jovens que, “não sabendo o que querem”, sabem
que não desejam ver obstruídos seus esforços de participação, é
importante destacar o quanto o modo de vida nas cidades brasileiras
contribuiu para a deflagração daquele e de futuros levantes.
É claro que há algo de descontentamento político no movimento das ruas, sobretudo se considerarmos o quanto os representantes se distanciaram da sociedade e de seus anseios. Mas
isso talvez seja mais verdadeiro entre os jovens argentinos, que
têm proclamado um contundente “que se vayam todos”. O levante
das ruas brasileiras, diferentemente, foi e será movido por uma
constatação da falência das instituições urbanas, uma sensação
de desatendimento das expectativas quanto ao viver em cidade,
uma amarga experiência social – além da política – deixada pela
ditadura. A (des)organização do espaço, a sofrível oferta de serviços públicos, a individualização do acesso a bens de cidadania, a
mercantilização, a exclusão, a desregulação, enfim, “tudo isso
que está aí” são vestígios do fracasso da democracia brasileira em
prover uma cidade livre e justa.
Sobre “tudo que está aí”
147
A cidade traída
Cleia Schiavo Weyrauch
S
éculos atrás, a cidade era o lugar da redenção, espaço de
liberdade e da organização política, onde ex-servos e vilões
assumiam sua individualidade independente dos donos
das terras em que, na origem, nascessem. Nessas cidades, novos
horizontes se abriam aos homens, livres das amarras do mundo
feudal, espaço aberto de possibilidades e de criação.
Na Idade Média, muitas cidades serviram de ensaio a experiências democráticas, na medida em que pouco a pouco criaram instituições representativas que dessem conta da nova
realidade social. Como espaço de convívio promissor, as cidades
foram celebradas pelo que podiam acolher como novas formas de
viver e representar politicamente os cidadãos. Assim, políticas
foram engendradas na esfera do poder, do conhecimento e mesmo
da própria administração espacial do território, entre elas o
exemplo de Florença.
Embora a Revolução Industrial tenha convertido as cidades em
territórios de desigualdade, com guetos de miséria e insatisfação,
assim mesmo elas continuaram a ser concebidas como espaço de
utopia social (fosse nas concepções marxista e/ou liberal). O nascimento do urbanismo, no início do século XX, deu ênfase ao redesenho urbano em sua relação com a democracia do espaço e algumas
considerando até sua relação com o processo produtivo.
Nessa linha, concepções urbanísticas se sucederam presididas por revolucionárias visões de cidade, na qual o conceito de
cidade ideal permanecia como um conceito limite a ser alcançado.
As práticas, entretanto, mostravam o contrário, evidenciando o
poder daqueles que tinham o controle do território.
Enquanto a utopia da igualdade social caminhava na direção
de uma cidade valor de uso social, as práticas capitalistas a
tornavam valor de troca, ou seja mercadoria a ser vendida a quem
poder econômico tivesse ou tenha. O caráter público das cidades,
seja sua dimensão coletiva, bem comum da maioria dos cidadãos,
foi com o avançar do capitalismo se esvaziando e assim os desfavorecidos espalharam-se pelas áreas desvalorizadas, sujeitos à
148
insalubridade de todos os tipos, sem que políticas públicas revertessem esse quadro.
A partir dos anos 1950, consolidou-se uma classe média que
incorporou um padrão de vida de qualidade, em virtude do acesso
às instituições socializadoras de educação, saúde e outras. Nessa
linha, esse grupo inseriu-se qualitativamente nas instituições
sociais, ou seja incorporou o direito à cidade enquanto as camadas mais desfavorecidas ficaram em sua periferia. Com o tempo,
essa população espalhou-se fractalmente pela cidade urbanizada,
derramando-se apertada, espremida entre morros e bairros
nobres da cidade, caracterizando uma perversa contiguidade
social que acentuou todos os tipos de poluição: sonora, ambiental, sanitária e mais outras tantas.
A cidade contemporânea tornou-se um espaço de convergência
das mazelas sociais estimuladas pelos estrangulamentos urbanos resultantes da política de privatização do espaço urbano.
Mas, as cidades não responderam as expectativas! Tidas como
territórios de civilização e campo aberto de possibilidades, elas
foram sufocadas pela voracidade dos circuitos de exploração de
seus espaços. Tornada mercadoria, a cidade mascarou sua vocação pública em maquiadas políticas públicas assentadas em uma
cultura da pobreza, associada ao consumismo patrocinado pelas
esferas do poder e incentivado pela mídia. Pouco a pouco, o conceito
sociopolítico de cidadania foi substituído pelo das grifes, das estrelas e atores da TV e, em decorrência, uma subcidadania grifada
ganhou lugar nos espaços precários da cidade.
As questões propriamente ditas relativas à sociedade urbana,
marca da civilização contemporânea, foram rejeitadas em detrimento de grandes obras e em nome de uma sociedade do espetáculo que entregou a cidade ao grande capital. A cidade como
demanda social e ecológica foi minorizada, sua dimensão
pública, no bom sentido, exigia atenção e um novo padrão de
intervenção. A inexorabilidade da sociedade urbana com todos
seus problemas adjacentes tornou as cidades leito de cruzamento de todas as questões sociais. Na ausência de padrões
urbanos tão necessários à conquista de uma adequada qualidade de vida, as cidades explodiram elevando a revolta a instrumento de protesto.
Enfim, o conceito de cidade compreendido como espaço da
liberdade e da ascensão social ficou muitíssimo distante, foi traído
pelo despotismo de grupos de dirigentes que precisam andar de
A cidade traída
149
helicóptero para não ver os desacertos das cidades estranguladas
por políticas injustas que imprimiram em seus espaços.
Espaço lixeira e prisão da população, a cidade contemporânea
busca para si um outro nome que não seja o de cidade moderna.
Talvez seja cidade urbana, seja melhor porque considera os direitos urbanos imprescindíveis aos cidadãos como ar, luz, silêncio,
distância adequada entre habitações de baixa renda, direito à
salubridade e aqueles outros já tão debatidos da cidade moderna
como educação, saúde, moradia e mobilidade urbana.
Os direitos urbanos constituem hoje a nova utopia social.
150
Cleia Schiavo Weyrauch
IX. Batalha das ideias
Autores
Fernando Alcoforado
Membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento
Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor
universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento
empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, e autor
de vários livros, entre os quais Globalização e um projeto para o Brasil.
Gastão Rúbio de Sá Weyne
Professor Associado aposentado do Departamento de Engenharia Química da Escola
Politécnica da USP; tenente-coronel reformado do Exército; advogado e doutor em
Direito, na Área de Filosofia do Direito (USP).
Mércio Pereira Gomes
Antropólogo, professor de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, ex-presidente da Fundação Nacional do
Indio (Funai) e autor, dentre outros, dos livros O índio na história e Darcy Ribeiro.
Coxinhas e petralhas:
Para além de mais um falso dilema
da classe média brasileira
Mércio Pereira Gomes
Eu sou oposição ao seu governo, presidenta Dilma, mas eu tenho
um contentamento em poder dizer isso na sua frente e dizer que
vivo num Estado que se pretende utopicamente em realidade,
em transformação, em exercício, nesse momento, nesse governo,
de ser um Estado democrático. (Atriz Letícia Sabatella, Palácio
do Planalto – 31/03/2016)
E
u estava em São Paulo, há uns cinco anos atrás, quando
ouvi a palavra coxinha pela primeira vez usada para caracterizar uma pessoa. Meu amigo, que mora num bairro de
classe média paulistana, rotulou um colega por esse nome e me
explicou: “É aquele cara todo certinho, bem formado, com espírito competitivo, ideias moderninhas, carro bom, bem viajado
etc.” Ah, como fulano, eu disse, mencionando uma pessoa que
conhecemos com essas características: formado na USP, dono
de Audi, fala línguas, sedutor etc. “Não, não, esse é gente boa,
não é coxinha”. Então como sicrano, disse-lhe eu mais uma vez
mencionando outro conhecido: fez PUC, direito, jornalista, Land
Rover velho, aventureiro etc. “Não, não, quer dizer, talvez, mas
... não”. Então, quem é coxinha, meu caro amigo? “É o cara que
tem ideias meio de direita, pensa muito em grana e status, e
frequenta lugares da moda”. É evidente que, naquele momento,
nada ficou claro para mim. De algum modo, esse meu amigo me
parecia meio coxinha por várias características, mas também
não, por outras.
153
Passados uns tempos, comecei a ouvir a palavra sendo vocalizada mais frequentemente. Logo entendi. Coxinha é a pessoa que
não se afina com o PT, ou com partidos que fazem parte diretamente dos governos do PT, ou com o apoio ao governo atual. Coxinha, consequentemente, é o cara marcado como de direita, mas
também como de uma esquerda infiel por não ser PT, nem PSOL,
nem PCdoB.
Nos últimos tempos, coxinha virou um epíteto acusatório, e a
palavra corre solta pelas redes sociais. Sob muitos aspectos, no
calor das disputas político-ideológicas do momento, coxinha se
opõe à mortadela, que representa o sanduiche doado aos participantes de passeatas de sindicalistas, ou petralha, palavra criada
pelo jornalista Reinaldo Azevedo, que seria o petista radical (para
Reinaldo, mancomunado ou insensível às roubalheiras de políticos dos governos do PT), que não vacila por suas convicções, suas
benesses e seus heróis. Ou que se tornou um ferrenho militante
do governo atual.
Acontece que não se precisa ir muito longe para se compreender que aquilo que as pessoas dizem de si mesmas e aquilo que
falam sobre os outros está quase sempre em polos opostos.
A autoimagem do indivíduo é sempre delineada por um desejo
muito grande de se parecer sempre bem, de quem os melhores
adjetivos podem ser servidos para caracterizá-lo. Já, ao contrário,
a imagem do outro é carregada de tintas foscas, melhor assim
para não fazê-lo brilhar. Portanto, é fácil se autoenganar e não
saber as motivações mais recônditas de sua alma.
Um dos aspectos psicológicos que mais afastam a pessoa de
sua realidade é não conseguir se inserir no contexto em que está,
seja por ignorar sua própria história coletiva, seja por desconsiderar sua própria vivência. Daí o “nunca antes na história deste
país” e o “é só você querer”, duas expressões tornadas clássicas
pelo uso frequente nos últimos anos pelas hostes petralhas.
Portanto, nessas circunstâncias, é fatal a autoenganação. Como
já demonstrou o biólogo Robert Travis, a autoenganação, por ser
inconsciente, não é desvirtude dos parvos, ao contrário, serve aos
espertos para criar uma vantagem para si. Você nem sabe que
está se autoenganando porque o resultado disso é que você está
se saindo muito bem.
Este é o caso de quem acusa o outro de coxinha ou de petralha.
Frequentemente a pessoa partilha das mesmas condições sociais e
culturais para ser merecedor de qualquer dos epítetos, mas se
154
Mércio Pereira Gomes
autoengana ao não se incluir nessas circunstâncias para melhor
acusar os outros de uma característica que ele supostamente não
detém. Diferença fundamental: o coxinha é acusado de ser elitista
e não querer a ascensão do povo; o petralha é visto como um fanático por um líder, mas que no fundo quer é ficar no poder.
É preciso que fique claro que esse debate de acusações se dá
exclusivamente no âmbito de segmentos de uma mesma classe
social brasileira. As pessoas que se acusam mutuamente de coxinhas ou petralhas são quase todas da mesma classe social, partilham das mesmas condições educacionais e participam do mesmo
panorama cultural. Isto é, é gente da classe média brasileira
falando de gente da mesma classe média brasileira. Muitas vezes
são pessoas da mesma família. O povo trabalhador está, até o
momento, totalmente divorciado dessas acusações. Acontece,
apenas, que uma, digamos, facção da classe média está com o PT
e seu governo e a outra não está; uma acha que o governo foi eleito
e deve continuar, a outra acha que o governo perdeu a legitimidade por crimes administrativos e outros. Uma espera muito
desse governo, a outra nunca esperou ou não espera mais grandes coisas. Uma acha que sem o PT o Brasil não existiria com a
configuração que tem hoje, a outra acha que o Brasil nunca precisou do PT para se ter a si mesmo, e, sem o PT, com outra visão,
teria outra configuração, quiçá até mais bem disposta. E, no
processo de autoenganação, cada qual acredita piamente que o
Brasil ou está passando pelo perigo de um golpe político e uma
possível volta a tempos autoritários, ou está irremediavelmente
afundado na corrupção e na autodestruição.
Em outras épocas, quando a discussão política girava em torno
de questões levantadas pela temática do marxismo, os atuais coxinhas seriam chamados de pequenos burgueses; e os petralhas de
comunas. As discussões eram igualmente virulentas, mas os
termos eram diferentes, soavam teóricos e altissonantes. Quem
tem razão, Jean-Paul Sartre ou Raymond Aron, por exemplo;
Florestan Fernandes ou Gilberto Freyre, outro exemplo. Mas o
marxismo deixou de ser o pano de fundo das discussões políticas,
tendo sido substituído por uma linguagem propositadamente
difusa e imprecisa, porém não menos politicamente influente,
característica das contribuições dos filósofos franceses Gilles
Deleuze e Michel Foucault, como veremos a seguir. Aí, a discussão,
quando esbarra num beco sem saída, naquela zona em que a razão
discursiva dá vez à crença, deteriora-se para o deboche.
Coxinhas e petralhas
155
O fato é que a visão marxista do Brasil foi ultrapassada nas
discussões e celeumas da atualidade por uma visão filosófica e
política pós-moderna, na qual a temática de classes, soberania
política, desenvolvimento econômico e responsabilidade individual foi, se não substituída, ao menos diluída por uma nova temática difusa de coletividades localizadas e minoritárias, conexões
infrassubjetivas (rizomáticas) entre sujeitos políticos, consumismo como base da produção econômica, desconsideração do
sentido histórico dos povos e nações e, enfim, uma espécie de fuga
coletiva da responsabilidade do indivíduo, agora definitivamente
considerado refém da máquina do mundo. É desconcertante, no
Brasil de hoje, ver um velho intelectual marxista perorando sobre
o caráter revolucionário da classe trabalhadora, assim como, na
década de 1950, era já penoso ouvir um defasado intelectual positivista descortinar sua erudição sobre a história inexorável da
evolução da humanidade. Hoje, a classe trabalhadora é considerada um conjunto maleável de minorias e subjetividades múltiplas que se identificam como trabalhador caso isto lhe convenha,
independente de sua real, objetiva, posição socioeconômica na
sociedade. Um ricaço pode virar trabalhador, porque, afinal, ele
se conecta com o mundo do trabalho.
Parece muito longe o tempo em que brasileiros de esquerda
davam algum valor para uma sociedade que adotasse uma economia com algumas características do tipo socialista. Hoje em dia,
qualquer modelo de economia comunista ou socialista não é
levado em consideração por ninguém, a não ser, romanticamente,
para Cuba e, com desprezo, para a Coreia do Norte. Entretanto,
ainda que dominante, no Brasil, o capitalismo brasileiro continua
impregnado de instituições de ordem patrimonialista e clientelista, de modo que a discussão sobre o modo capitalista de se
exercer nas sociedades só penetra nos debates sobre o Brasil de
soslaio e frequentemente para servir de boneco de Judas no
sábado de Aleluia. Quase todo mundo acha, por exemplo, que a
economia brasileira precisa adquirir mais produtividade, porque
a maior produtividade é um ganho econômico que reverbera no
plano social. Entretanto, logo que o tema é acolhido para se transformar em política pública, dá-se a primeira objeção de cunho
ideológico (capitalismo com clientelismo): isto não pode acontecer,
pois vai provocar uma maior exploração do trabalhador. Os economistas que se assumem capitalistas, chamados de conservadores,
propõem que haja mais investimentos em aplicação de tecnologia,
em melhora na organização interna das empresas e numa competitividade maior entre elas. Como método, isso significaria mudar
156
Mércio Pereira Gomes
a gestão do trabalho, reforçar a sua contabilização, ampliar a
educação técnica, destravar a burocracia e os impostos e, no
plano mais geral, reequacionar a relação entre o trabalhador e a
previdência. Pontos pacíficos? Nada disso. Na discussão atual o
economista formado nas universidades públicas brasileiras só
concordaria se essas mudanças viessem para serem aplicadas às
empresas privadas, e não às estatais, como a Petrobras, ou ao
serviço público, como as universidades. Teme-se por corte de
empregos e perda de direitos adquiridos. No exagero, colocar-se-ia
em risco direitos pétreos constitucionais. Por sua vez, quando
confrontado com a facilitação de verbas públicas do BNDES para
algumas poucas empresas, o economista com vergonha de se
mostrar capitalista só aceitaria se tal política tivesse como finalidade fortalecer as empresas estatais.
Enfim, para dizer o mínimo, os economistas não se entendem
no Brasil há muitos anos. Os economistas de esquerda ainda carregam consigo o trauma da imposição econômica feita durante o
período da ditadura militar e, ao procurar proteger os direitos
trabalhistas existentes, acobertam a influência do clientelismo de
classe, especialmente os direitos de empregos de classe média. Por
sua vez, os economistas capitalistas não suportam mais a tendência do governo em proteger as estatais, mas torcem a cara para
acusações de favorecimento do patrimonialismo, que é o amparo
da classe alta. Eis porque, ao contrário dos Estados Unidos, onde a
política nacional se concentra numa discussão sobre ética e identidade nacional, a economia no Brasil ainda é o principal osso de
disputa na nossa liça política, não porque haja dúvidas sobre o
domínio do capitalismo em nosso país, mas porque o tema está
encoberto de subterfúgios e autoenganações para fugir das questões do patrimonialismo e do clientelismo de classe.
Voltando à fofoca, mesmo pertencendo à mesma classe social,
em sua diversidade estética e de propósitos, há alguns motivos
para alguém ser rotulado de coxinha ou de petralha. O petralha
mais renitente é em geral um membro do governo do PT, ou de
algum partido a ele relacionado, ou de alguma ONG que aufere
recursos do governo, ou do estrato social que depende do Estado.
O menos renitente pode ser um funcionário público, um sindicalista de classe média, ou um membro da geração que sentiu tão
arduamente as agruras políticas e culturais do período ditatorial
que, passados 50 anos, ainda lamenta por sua existência atual.
Em muitos casos, o petralha mediano sabe fazer o jogo político e
pode correr de um governo a outro sem muitas dificuldades.
Coxinhas e petralhas
157
Muitos militantes do petralhismo vieram do tempo do governo
FHC, ou antes até.
Faz diferença cultural ser um petralha ou ser um coxinha. Há
os puros-sangues petralhas intelectuais, como os professores,
estudantes e funcionários públicos que cultivam um discurso de
origem marxista porém já encharcado pela penetração triunfante
das propostas filosóficas de Deleuze e Foucault, como dito antes,
que, inesperadamente, por mais que incompreensíveis sejam para
a grande maioria dos seus leitores, se esparramaram e se diluíram de muitas formas pela sociedade letrada brasileira, talvez
porque se coadunassem como parte das condições econômicas,
políticas e culturais dos tempos atuais, tempos pós-modernos.
Os conceitos e argumentações desses autores se tornaram
pedras angulares do comportamento social e do pensamento ideológico atual, tais como o sentimento prevalente de que todo comportamento humano é dominado pela vontade do poder; que a vida em
geral está em eterna transformação sem nenhum sentido, portanto,
é algo indefinido; que o ser humano (e também a sociedade e a
nação, qualquer que seja ela) não possui propriamente uma identidade, mas tão-somente multiplicidades ou o potencial múltiplo de
contínuas variações de “identidades” segundo suas conexões “rizomáticas” com outras multiplicidades, e, para encurtar, que é inútil
e fantasioso buscar algo verdadeiro, pois a verdade não passa de
uma asserção discursiva momentânea que interrompe o fluxo de
olhares e perspectivas, e que, no fundo, só serve a quem a emite
(favor ler de novo a epígrafe deste artigo).
Por sua vez, essa visão filosófica se faz extremamente atraente
porque estimula uma abertura ilimitada para uma espécie de
libertarianismo existencial, cultural e político, e contém altas
doses de promessas de autonomia do homem. Por exemplo, no
plano político-cultural, para os seguidores conscientes ou inconscientes de Deleuze, só os segmentos sociais que estão por baixo
ou à margem de alguma situação de poder social estabelecido –
mulheres, minorias étnicas e sexuais, e o que Marx chamaria de
lumpenproletariado – se constituem por aquilo que Deleuze
chama de devir, i.e., o ímpeto de mudança, de dispersão e de
adaptação – portanto, de espírito crítico e de criatividade. Os
demais segmentos sociais de algum modo estabelecidos estariam
condenados a estiolar em seus míseros e desbotados lugares do
não devir, numa pretensa autossuficiência própria a uma sociedade capitalista (aliás, capitalista aqui é palavrão mais feio do
que quando emitido por um stalinista). Nessa atmosfera político158
Mércio Pereira Gomes
filosófica, com consequências sobre o pensamento e o comportamento dos brasileiros de várias gerações pós-1970, petralhas ou
não, há algumas variações do pensamento que se assentam no
campo teórico de um pós-marxista como Pierre Bourdieu, para
fortalecer a ideia de que, nas condições atuais de vida, tudo é
embate, tudo é tensão, tudo vem carregado de subterfúgios e
manobras. E, ainda que com menos popularidade, se penetra
nesse comportamento pós-moderno a visão de que a vida é um
conjunto de ações que se interpenetram como numa rede, tal qual
se vê nas comunidades da internet, de conexões praticamente
infinitas, nas quais os interesses de cada um (pessoa, instituição,
grupos) se assumem e se dissimulam para melhor tirar vantagem
e estão à espreita dos incautos para pegá-los de surpresa. Em
suma, este espírito do nosso tempo brasileiro de classe média nos
faz conviver com espectros de todos os tipos e por todos os lados,
fazendo do mundo (sua cidade, sua comunidade, até seu próprio
lar) não somente uma arena de competição, mas um lugar onde
prevalece um sentimento próximo do paranoico e faz do constante
embate sua razão de ser. Não é por outro maior e mais profundo
motivo que emergiu o discurso vocalizado de vários modos pelos
mais eminentes intelectuais acadêmicos brasileiros, segundo o
qual a história do Brasil tem sido desde sempre uma farsa
completa – no caso, para alguns, só redimível pela chegada do PT.
Tal pensamento, que podemos cognominar de “marxista-deleuziano” (por mais que logicamente contraditório isto pareça ser)
perpassa com maior ou menor intensidade a sociedade brasileira
letrada, de classe média, que está nas ruas em protesto. No caso dos
chamados coxinhas, a variação desse pensamento tende a se opor
um tanto aos seus pontos mais radicais, isto é, aqueles que recusam
a identidade do ser. Pudera, dado o predomínio desse discurso, os
coxinhas estão na defensiva – mas ao menos querem que o ser tenha
identidade palpável. Entretanto, é preciso apontar desde já que existem dois tipos de coxinha: os de esquerda e os de direita. Os de
esquerda tomam como base a velha dialética marxista, à la Lukacz
ou Sartre ou até à la Bourdieu, mas fugindo dos filósofos já mencionados, agrupados como filósofos da diferença. Acham que entre
esses últimos, por insistirem na volatilidade do comportamento e da
verdade, falta-lhes sentido ético, por um lado, enquanto prevalece
um ilusório radicalismo teórico, por outro. Os coxinhas de esquerda
detestam as linguagens próprias de cada um dos filósofos da diferença, cheias de conceitos inusitados e aparentemente contraditórios, os quais consideram todos carregados de certa ambiguidade e
inconsistência, difíceis de serem monitorados por quem não se
Coxinhas e petralhas
159
dedica profundamente às novas e cambiantes palavras dos mestres.
Os coxinhas pensam que Gilberto Freyre ou Darcy Ribeiro, ainda
que de gerações diferentes e inclinações políticas distintas, pensam
o Brasil por uma veia culturalista que lhes permite sentir na história
do Brasil uma realidade em formação e algum conforto para sua
existência atual. Coxinhas esquerdistas, já calejados por prévias
ilusões políticas, principalmente a comunista, pensam que só com
uma afirmação cultural radical é que o destino do Brasil pode encontrar seu caminho de desenvolvimento. Por conseguinte, consideram
que a democracia é uma negociação política razoável e que as formas
atuais do capitalismo devem ser acatadas como parte da modernização do Brasil, apenas para serem submetidas aos contornos mais
característicos da identidade brasileira – que, aliás, deve se constituir. Já os coxinhas de direita, ainda não bem assumidos, ou,
quando assumidos, um tanto estrepitosos, estão buscando em autores conservadores um caminho mais seguro para a vida que veem se
desenrolando pelo mundo. Uma vida que lhes parece caminhando
para um abismo pela falta de fé cristã e pelo afã de mudanças e do
consumismo. Filósofos como Roger Scruton, Eric Voegelin e o brasileiro Olavo de Carvalho são ícones do conservadorismo brasileiro, ou
melhor, neoconservadorismo, que se descortina na atualidade. Os
neoconservadores brasileiros, apesar de sua estridência verbal e
política, se preparam a cada dia para produzir ideias e novos autores
que um dia possam ser reconhecidos e influenciar os destinos do
Brasil, tal como, imaginam, já o foram Tristão de Athaíde, Alceu
Amoroso Lima e Vicente de Carvalho, entre outros. Do ponto de vista
político-econômico os coxinhas de direita acatam as condições e
exigências clássicas do capitalismo liberal ou socioliberal, se tal
ainda puder existir.
Assim, os coxinhas vêm de duas direções opostas. E há evidentemente uma briga política se oferecendo como palco dessa
intensa, obtusa e insciente contenda intelectual de bastidores
brasileiros. Por enquanto os coxinhas de direita e esquerda tocam
o banjo no mesmo diapasão porque aparentemente têm um adversário comum formidável – os petralhas, que, com o poder, ainda
que, aparentemente, a se escorrer entre os dedos, se apresenta
com um vigor fantástico, com a gana de quem quer sobreviver.
Entretanto, em breve, a aliança inopinada desses contrários –
Bolsonaro e Gabeira, para exemplificar – se quebrará, na medida
em que a causa petista for perdendo o fôlego e diminuindo a resistência à perda de poder, no caso, tanto político quanto intelectual.
É muito provável que boa parte do atual quadro do petralhismo,
os gentis filo-petistas que se apresentam como denodados defen160
Mércio Pereira Gomes
sores de uma democracia unívoca, só possível sob o petismo,
debandem para as hostes dos atuais coxinhas de esquerda em
busca de uma nova visão de esquerda, mais aberta e mais generosa, na medida em que forem se dando conta de sua desconfortável posição filosófica.
Seja como for, atirando ao ar esse jogo de acusações mútuas
que cada vez mais vai se transformando em lixo da história, vem
chegando a hora de o Brasil não mais poder fazer vistas grossas
para a nossa inusitada situação política, econômica e principalmente cultural. Na política, a principal novidade é o reconhecimento cabal, por provas evidentes, da corrupção que nos atinge de
um modo avassalador. Abrir a janela da verdade está nos levando
para o sufoco do fedor que nos penetra, porém, em consequência,
nos empurrando para a tomada de atitude determinante. A segunda
é a necessidade irrecorrível da transparência do Estado, com tudo
a que isso se refere. Na questão econômica está evidente a necessidade de se reconhecer que o desenvolvimento do país exigirá um
novo modelo da relação entre capital, trabalho, tecnologia e o
Estado brasileiro, bem como novos métodos de trabalho, de apuração de lucro, de investimento do capital e de distribuição da riqueza
privada e social. E no plano cultural, haveremos de nos orientar
em torno de um comprometimento firme entre o povão trabalhador
e a classe média construtora de um novo discurso político e cultural. Esse comprometimento deve se pautar não só pelas chamadas
políticas de compensação e de direitos humanos, mas sobretudo
por uma política educacional que reconheça de cara, para melhor
superá-lo, o papel nefasto do professorado (de origem majoritariamente da classe média) na educação da população pobre brasileira.
Papel este exercido por uma retórica de esquerda (o Estado opressor), esquentada por discursos de direitos de trabalhadores (o
Estado como patrão), mas que serve só a si próprio, irresponsavelmente relegando seus deveres e comprometendo as mínimas chances de fortalecimento da classe trabalhadora e de sua integração
na civilização brasileira.
Portanto, que nos desarmemos todos das mútuas acusações
tolas e das firulas de palavreado que nos dominaram nos últimos
tempos, e partamos para o que interessa: repensar o Brasil sob
um novo paradigma a ser construído depois da iminente borrasca
que se nos avizinha, não só por um possível impeachment da
presidente do Brasil (ou sua continuidade como pato manco), mas
também pela indefinição paralisante sobre como sair do declínio
econômico e da depressão cultural que nos acometem.
Coxinhas e petralhas
161
Implicações políticas da tese
de doutoramento de Karl Marx
Gastão Rúbio de Sá Weyne
O
pensamento marxista está indissoluvelmente vinculado à
notável coerência de pontos de vista e à marcante personalidade de Karl Marx (1818-1883), que se manifestaram
desde a sua juventude. Ainda jovem, ele já cultuava virtudes de
ética e altruísmo.
Um episódio indelével na vida de Marx indica o seu caráter, a
sua sólida formação humanista e diferenciada visão social,
mostrando a precoce preocupação do grande pensador com os
seus semelhantes. Quando realizava seu exame final de língua
alemã, no Ginásio de Trèves, cidade em que nasceu, seu professor
mandou-o dissertar sobre o tema “Reflexões a propósito da escolha de uma profissão”.
Nessa dissertação, desenvolvida por ele, aos 17 anos, foram
defendidas duas ideias. A primeira, foi a de que o homem feliz é
aquele que faz os outros felizes; e a segunda, que a melhor profissão deve ser a que proporciona ao homem a oportunidade de
trabalhar pela felicidade do maior número de pessoas, isto é, pela
humanidade. Este seu trabalho e a tese de doutoramento que, a
seguir, elaborou foram publicadas na época em que o autor passou
a ser denominado de “o jovem Marx”.
Karl Marx dedicou-se, desde os 20 anos, à elaboração de sua
tese de doutorado durante os anos de 1838 a 1840. Como havia
sido dispensado do serviço militar, sobrava-lhe tempo para conseguir seu objetivo.
Em 15 de abril de 1841, aos 23 anos, defendeu brilhantemente
a sua tese de doutoramento, intitulada Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, e obteve o diploma na
Universidade de Iena, Alemanha.
Com a tese, fundada em bases ateístas, entretanto, ele não
conseguiu obter a cátedra que pretendia, pois o governo não queria
hegelianos de esquerda pontificando nas universidades alemãs.
Além disso, sem dinheiro, foi obrigado a adiar seu casamento.
162
As concepções de Demócrito e Epicuro,
como fundamentos da sua tese de doutoramento
No prefácio da tese, Marx ressaltou: “Deverá considerar-se
este trabalho como esboço de uma obra mais importante em que
exporei detalhadamente o ciclo das filosofias epicurista, estoica e
cética, nas suas relações com o conjunto da especulação grega”.
Procurou justificar a escolha do tema, enfatizando: “Parece-me
que, se os sistemas anteriores são mais significativos e interessantes para a análise do conteúdo da filosofia grega, os sistemas
pós-aristotélícos – sobretudo o ciclo das escolas epicurista, estoica
e cética – o são ainda mais para o estudo de forma objetiva, o
caráter dessa filosofia”.
Mostra a história que Demócrito (Demócrito de Abdera), juntamente com Leucipo, foram os fundadores do atomismo clássico.
Demócrito acreditava que a alma é feita de átomos particularmente perfeitos, mas é um composto e, por esse motivo, tão perecível como o corpo. A percepção resulta dos eflúvios dos átomos,
emitidos pela superfície dos objetos, que entram em interação
com os átomos da alma.
Epicuro acreditava na metafísica atomista de Leucipo e Demócrito, aceitando, em particular, o espaço vazio, um número infinito de átomos e o número infinito de mundos que suas variadas
combinações produzem. Contudo, há espaço para os deuses,
ainda que não tenham qualquer preocupação por este cosmo, não
tendo em especial qualquer papel, quer como causas primeiras,
quer como algo que proporciona finalidade à existência. A concepção atomista de Epicuro tem, portanto, bases ateístas.
Para os epicuristas, é necessário ter sabedoria prática, adquirida por meio da filosofia, para atingir uma vida agradável, que
consiste numa preponderância dos prazeres suscetíveis a prolongamento indefinido, sobre os prazeres meramente sensoriais e
voláteis. Tal como em outras filosofias éticas gregas, a denominada ataraxia constitui o ponto mais alto dos prazeres longos e
exige a compreensão dos limites da vida, a supressão do medo da
morte, o cultivo da amizade e a eliminação dos desejos desnecessários e dos falsos prazeres.
Marx considerava Demócrito um físico, cético e empírico, que
atribuía ao mundo sensível uma aparência subjetiva. Demócrito
dedicava-se à ciência empírica da natureza e aos conhecimentos
positivos, e representava a inquietude da observação que experimentava, aprendia e errava pelo mundo; considerava a natureza
Implicações políticas da tese de doutoramento de Karl Marx
163
do ponto de vista da necessidade, e procurava explicar e apreender a existência real das coisas. Epicuro, segundo Marx, considerava real o mundo dos fenômenos, desprezava o empirismo, encarnava o repouso do pensamento que encontrava satisfação em si
mesmo, admitia a autonomia que criava o seu saber a partir de
um princípio interno, aceitava o fenômeno como real, via apenas
o acaso e seu modo de explicação tendia a englobar toda a realidade objetiva da natureza.
Demócrito admitia dois tipos de movimento atômico, a queda
em linha reta e a repulsão dos diversos átomos, enquanto Epicuro
acrescentava um terceiro: a declinação da linha reta, o desvio
clinamen. Para Demócrito, o movimento dos átomos seria originariamente em todas as direções. A movimentação em linha reta
seria decorrência de uma concepção de peso do átomo que existia
apenas em Epicuro.
O fator tempo nas filosofias da natureza
em Demócrito e Epicuro
Em Demócrito, o tempo carece de importância e não é necessário ao seu sistema. Quando ele aborda o tempo, é para suprimi
-lo: e quando o determina como eterno, é para que o nascimento e
a morte, ou seja o temporal, sejam afastados dos átomos. É o
próprio tempo que deve fornecer uma prova de que nem tudo teve
necessariamente uma origem, um momento em que se iniciasse.
Em primeiro lugar, Epicuro, diferentemente, considerava a
contradição entre a matéria e a forma como o caráter da natureza
fenomênica, a qual se torna, desse modo, aquilo para que tende a
natureza essencial do átomo. Isso prende-se ao fato de se considerar o tempo em oposição ao espaço e a forma ativa do movimento
em oposição à forma passiva.
Em segundo lugar, somente em Epicuro o fenômeno é concebido efetivamente como fenômeno, isto é, como uma alienação da
essência que se afirma, enquanto alienação, em sua realidade
efetiva. Em Demócrito, pelo contrário, para quem a composição é
a única forma de natureza fenomênica, o fato não se apresenta em
sua qualidade de fenômeno, de algo diferente da essência.
164
Gastão Rúbio de Sá Weyne
Os corpos celestes nas teorias atomistas
de Demócrito e Epicuro
As ideias de Demócrito podem ter sido perspicazes no seu
tempo. Mas não têm um maior interesse filosófico, pois não superam o âmbito da reflexão empírica e não têm relações suficientemente bem determinadas com a doutrina dos átomos.
Em contrapartida, a teoria de Epicuro sobre os corpos celestes
e os processos a eles vinculados, ou sobre os meteoros (expressão
em que sintetiza tudo isso), opõe-se não só à opinião de Demócrito, mas também à de toda a filosofia grega. A veneração dos
corpos celestes é um culto celebrado por todos os filósofos gregos;
o sistema dos corpos celestes constitui a primeira existência,
ingênua e determinada pela natureza, de razão efetivamente real.
A consciência de si ocupa a mesma posição no mundo do espírito;
é o sistema solar espiritual.
Assim, enquanto Aristóteles, de acordo com os outros filósofos
gregos, considera os corpos celestes eternos e imortais, visto que
se comportam sempre da mesma maneira, e lhes atribui um
elemento próprio, superior, que não está submetido ao peso,
Epicuro afirma que acontece exatamente o contrário. Aquilo que,
em sua opinião distingue especificamente a teoria dos corpos
celestes de todas as outras doutrinas físicas é o fato de que, nos
meteoros, tudo se produz de forma múltipla e irregular e que tudo
deve ser explicado por um número indeterminado de razões diferentes. Epicuro conclui: os corpos celestes não são eternos porque
perturbariam a ataraxia da consciência de si; e essa conclusão é
necessária e imperiosa.
Mas, como se deve entender essa opinião particular de
Epicuro? Todos os autores que escreveram sobre sua filosofia
apresentaram a doutrina dos meteoros como não estando relacionada com o resto da física, com a doutrina dos átomos. A polêmica com os estoicos e a luta contra a superstição e a astrologia
são razões suficientes para explicar esse comportamento.
Alicerces ideológicos em Demócrito e Epicuro
Na tese de doutoramento de Marx, Epicuro aceitava o espaço
vazio, um número infinito de átomos e um número infinito de
mundos, havendo, no entanto, espaço para os deuses, sem qualquer preocupação com o cosmo. Vale lembrar que os epicuristas
foram alvo de constantes ataques por parte da igreja católica, por
Implicações políticas da tese de doutoramento de Karl Marx
165
negarem a Criação, a providência, o Deus único e onipotente, a
imortalidade da alma.
Ressalte-se que a ideologia é um termo que possui diferentes
significados e duas concepções: a neutra e a crítica. No senso
comum, o termo ideologia é sinônimo do termo ideário, contendo
o sentido neutro de conjunto de ideias, de pensamentos, de doutrinas ou de visões de mundo de um indivíduo ou de um grupo,
orientado para suas ações sociais e, principalmente, políticas.
Para autores que utilizam o termo sob uma concepção crítica,
como Karl Marx, a ideologia age mascarando a realidade.
Com relação a crenças religiosas, Marx considerou-as alienantes e dissimuladoras das desigualdades materiais e afirmou
que “a religião não faz o homem, mas, ao contrário, o homem faz
a religião”. “A religião – para ele – é a autoconsciência e o autossentimento do homem que ainda não se encontrou ou que já se
perdeu. Mas o homem não é um ser abstrato, isolado do mundo.
O homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade”. Ele,
portanto, considerava haver uma inversão de valores, priorizandose uma divindade em detrimento do homem.
A liberdade, a ética e as implicações políticas da tese
Segundo a tese de doutoramento de Marx, a composição da
essência, no pensamento de Epicuro, “é a forma meramente
passiva da natureza concreta e o tempo é sua forma ativa. Se for
considerada a composição da essência a partir da liberdade, a
ética e as implicações políticas do tema relativo ao ser – o átomo,
nesse caso –, existirá por trás dela, no vazio, no imaginário”.
Ao analisar a liberdade na sociedade capitalista, Marx demonstra muito bem que esta liberdade é limitada, assim como o domínio do capital sobre o trabalhador também apresenta limites.
É essa contradição entre liberdade e não liberdade que domina a
sociedade capitalista. O capitalismo não é o reino da liberdade,
como afirmam os liberais, presos às aparências do mercado, mas
tampouco é o reino do absoluto domínio do capital sobre os
homens. A liberdade conquistada pelo capital desenvolveu a liberdade civil e a igualdade jurídica entre os cidadãos, acabou com os
privilégios legais de classe, declarando todos os homens iguais
perante a lei.
Para Marx, quer a religião quer a moral são a “autoconsciência
e o autossentimento que possui o homem que ainda não se encon166
Gastão Rúbio de Sá Weyne
trou, ou que tornou a se perder; é um suspiro da criatura oprimida, o estado de ânimo de um mundo sem coração”. Por sua vez,
a crítica da religião e da moral são necessárias, sendo preliminares a toda a crítica radical da ordem existente. A moral e a religião
não passam “do sol ilusório que gravita em volta do homem,
enquanto o homem não gravita em volta de si mesmo”.
Desde o início das suas proposições filosóficas, o “jovem Marx”,
apontava que o caminho para a liberdade não se apresentava em
um estado livre de religião oficial, mesmo não negando o aspecto
progressista de um estatuto político não religioso. Seu pensamento não compreende a liberdade do ser humano como é considerada no Estado laico, ou seja, mesmo que isso seja um avanço,
ele considera que a humanidade deve buscar a emancipação total.
Pode-se resumir afirmando que o homem religioso pode
tornar-se cidadão em um estado laico, porém é uma “meia solução”, uma vez que a emancipação política não implica em emancipação humana e esta somente ocorre com o homem livre das
divindades, da crença na vida eterna e dos milagres divinos.
Referências
BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro:
Zahar, 1997.
BOTTOMORE, Tom (edit.). Dicionário do pensamento marxista. Rio
de Janeiro: Zahar, 2001.
CARTLEDGE, Paul. Demócrito. Trad. de Angelika Elizabeth Köhnke.
São Paulo: Unesp, 2001.
FARRINGTON, Benjamin. A doutrina de Epicuro. Trad. de Edmond
Jorge. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
MARTINS, Jader Benuzzi. A história do átomo – de Demócrito aos
Quarks. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2001.
MARX, Karl. Diferença entre as Filosofias da Natureza em Demócrito
e Epicuro. Trad. de Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira.
Lisboa: Presença, 1972.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo:
Ciências Humanas, 1979.
MORAES, João Quartim de. Epicuro – as luzes da ética. São Paulo:
Moderna, 1998.
Implicações políticas da tese de doutoramento de Karl Marx
167
O combate às desigualdades sociais no
capitalismo: segundo Marx e Piketty
Fernando Alcoforado
Thomas Piketty escreveu um livro chamado Capital in the
Twenty-First Century (O Capital no século XXI ) publicado pela The
Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 2014, no qual defende a taxação progressiva e a tributação da riqueza global como único caminho para deter a tendência
de uma desigualdade crescente de riqueza e renda no sistema
capitalista. Ele coloca em xeque a visão, amplamente aceita, de
que o capitalismo de livre mercado distribui riqueza. Piketty
demonstra que o capitalismo de livre mercado, na ausência de
uma grande intervenção redistributiva por parte do Estado,
produz oligarquias antidemocráticas. O livro tem sido frequentemente apresentado como substituto para o século 21 do trabalho
do século 19 de Karl Marx, que leva o mesmo título.
Em seu livro, Piketty não explica as causas mais profundas da
crise mundial de 2008, e por que está demorando tanto para o
sistema capitalista mundial se recuperar. Ele não ajuda a entender por que o crescimento econômico é tão medíocre hoje nos
Estados Unidos, ocorre a estagnação da Europa e do Japão e a
desaceleração econômica da China. O que Piketty mostra estatisticamente é que o capital tendeu, por meio da história, a produzir
níveis cada vez maiores de desigualdade. Esta é exatamente a
conclusão teórica de Marx, no primeiro volume de sua versão do
Capital. Em O Capital, de Marx, a desigualdade é vista não como
o resultado da distribuição da riqueza como O Capital no século
XXI, de Piketty apresenta, mas como um resultado inevitável da
produção da riqueza sob o capitalismo.
Segundo Marx, toda riqueza na sociedade é produto do trabalho, criada pelos esforços físicos e mentais da classe trabalhadora. Os lucros, que significam o retorno sobre o capital, são
como Marx explicou nada mais do que o trabalho não pago da
classe trabalhadora, isto é, a diferença entre o valor que é produzido e o valor que reverte aos trabalhadores na forma de salários. Uma taxa crescente de lucro, portanto, apenas implica em
uma exploração crescente da classe trabalhadora, o que significa necessariamente uma maior parte da riqueza na sociedade
168
se acumulando nas mãos dos capitalistas – uma pequena elite
de exploradores.
Marx demonstrou em seus três volumes de O Capital
(Boitempo, São Paulo, 2013) como, por vários meios, o capitalismo pode explorar a classe trabalhadora por maiores lucros: 1)
estendendo a jornada de trabalho, por meio de uma intensificação do trabalho dentro de um dado tempo; e, 2) aumentando a
eficiência e a produtividade dos trabalhadores, através da substituição de trabalho por máquinas etc. Tudo isto se reflete no
aumento da proporção do trabalho não pago em relação ao valor
do que é produzido pelos trabalhadores.
Marx viu a economia capitalista como um sistema com processos interconectados, e em última análise como uma luta entre
forças vivas – uma luta de classes entre os capitalistas detentores
dos meios de produção e os trabalhadores pelo excedente produzido na sociedade. Através dos meios descritos acima, os capitalistas podem tentar aumentar seus lucros à custa da classe trabalhadora. No entanto, onde a classe trabalhadora é organizada,
unida e desejosa de lutar, reformas podem ser obtidas e os trabalhadores podem ganhar uma parcela maior da renda gerada pela
atividade produtiva. Este tipo de exploração é inerente ao capitalismo. Se os trabalhadores não recebem de volta o pleno valor de
seu produto – o que é necessariamente o caso em um sistema de
propriedade privada e de produção para o lucro – então, não
podem comprar de volta todas as mercadorias que produzem.
Esta situação tende a criar situações de superprodução que,
historicamente, têm resultado na queda da produção e no aumento
do desemprego que leva inevitavelmente a crises tendentes à
depressão como a que experimentamos em 1929 e atualmente, na
qual todas as contradições acumuladas no sistema capitalista
mundial estão se agravando.
Pelo exposto, Piketty não é o novo Marx. Enquanto Marx
mostra as verdadeiras causas das desigualdades sociais que estão
relacionadas com a expropriação da renda dos trabalhadores
pelos detentores dos meios de produção, Piketty aponta as consequências desta expropriação, isto é, as desigualdades resultantes.
Enquanto Karl Marx defende o fim do capitalismo com a implantação do socialismo e, mais tarde, do comunismo para acabar
com as desigualdades sociais, Piketty propõe medidas para
consertar o sistema capitalista e mantê-lo funcionando.
O problema para Piketty não é a desigualdade em si, mas o fato
de que esta cria injustiça na sociedade que ameaça a existência
O combate às desigualdades sociais no capitalismo: segundo Marx e Piketty
169
do próprio sistema capitalista. Piketty afirma que é muito difícil
fazer o sistema funcionar quando se tem uma desigualdade tão
extrema como a que vem se registrando.
Para diminuir as desigualdades sociais, Thomas Piketty propõe
uma medida que é considerada utópica que é a taxação de grandes
fortunas. O Capital no século XXI sugere, entre outras coisas, a
tributação de grandes fortunas, o combate à desigualdade econômica e à concentração da riqueza nas mãos de poucos. Com cerca
de 500 páginas, O Capital no século XXI é dividido em quatro partes
nas quais trata da questão da renda, produção, capital e suas
transformações ao longo da história, principalmente a partir da
Revolução Industrial e faz uma verdadeira genealogia da questão
de renda, sobretudo, com um extensivo levantamento sobre as políticas de salário com focos na França, Reino Unido e Estados Unidos
os quais foram muito úteis para uma leitura a respeito da história
do capitalismo global e suas problemáticas.
Thomas Piketty analisa, também, a desigualdade, a concentração de renda, o rentista enquanto inimigo da democracia, a
desigualdade mundial da riqueza no século XXI, a questão das
famílias detentoras da riqueza global e, por fim, a taxação e regulação da riqueza global. Piketty aborda o “apocalipse marxista” de
acúmulo infinito de capital que, para ele, não se concretizou.
Porém, afirma que, apesar de não termos um acúmulo infinito de
capital, temos cada vez mais poucas famílias detendo quase a
metade da riqueza global.
Piketty explica que ocorre uma tendência ao crescimento da
desigualdade devido ao contínuo aumento da acumulação de
riqueza resultante do fato de que a taxa de retorno sobre o capital
(r) sempre excede a taxa de crescimento da renda (g). Isso, diz
Piketty, é e sempre foi “a contradição central” do capital. Mas esse
tipo de regularidade estatística dificilmente alicerça uma explicação adequada, quanto mais uma lei. Então, quais são as forças que
produzem e sustentam tal contradição? Piketty não diz. Marx
afirma em sua obra O Capital que a existência desta lei resulta do
desequilíbrio de poder entre capital e trabalho. E essa explicação
ainda é válida hoje. A queda constante da participação do trabalho
na renda nacional, desde os anos 1970, é decorrente do declínio do
poder político dos trabalhadores à medida que o capital mobilizava
tecnologia, aumentava o desemprego, realizava a deslocalização de
empresas e adotava políticas antitrabalho (como as de Margaret
Thatcher e Ronald Reagan) para destruir qualquer oposição.
170
Fernando Alcoforado
As políticas anti-inflação dos anos 1980 aumentaram o desemprego que era um modo extremamente desejável de reduzir a força
política das classes trabalhadoras. A crise do capitalismo que se
seguiu recriava um exército de mão de obra de reserva possibilitando que os capitalistas lucrassem mais do que nunca. A disparidade entre a remuneração média dos trabalhadores e dos executivos-chefes era cerca de trinta para um em 1970.
Hoje, está bem acima de trezentos para um e, no caso do
MacDonalds, cerca de 1200 para um (Outras palavras. David
Harvey: leia Piketty, mas não se esqueça de Marx. Disponível no
website
<http://outraspalavras.net/posts/david-harvey-leia-pikettymas-nao-se-esqueca-de-marx/>. Piketty reúne uma grande
quantidade de dados para sustentar sua argumentação. Sua
descrição das diferenças entre renda e riqueza é bastante útil e
faz uma defesa cuidadosa da tributação sobre a herança, do
imposto progressivo e de um imposto sobre a riqueza global como
possíveis (embora quase certamente não politicamente viável)
antídotos contra o avanço da concentração de riqueza e poder.
A solução proposta por Karl Marx de superação das desigualdades deveria levar ao fim do capitalismo com a implantação do
socialismo e, mais tarde, do comunismo a qual é considerada
utópica por muitos analistas haja vista o fracasso do socialismo
real implantado na União Soviética e em outros países. A solução
proposta por Piketty para consertar o sistema capitalista e mantê
-lo funcionando é, também, considerada utópica diante do poder
do capital porque sugere, entre outras medidas, a tributação de
grandes fortunas, o combate à desigualdade econômica e à
concentração da riqueza nas mãos de poucos. Em suma, ambas
as soluções propostas seriam politicamente inviáveis e, portanto,
utópicas por muitos analistas.
Eric Hobsbawn ofereceu uma resposta a este dilema em artigo
publicado no jornal britânico The Guardian, em 16/04/2009, sob
o título Pressupostos teóricos da “economia mista”, quando afirmou que conhecemos duas tentativas práticas de realizar ambos
os sistemas, socialista e neoliberal, em sua forma pura: por um
lado, as economias de planificação estatal, centralizadas, de tipo
soviético; por outro, a economia capitalista de livre mercado isenta
de qualquer restrição e controle. As primeiras vieram abaixo na
década de 1980, e com elas os sistemas políticos comunistas
europeus; a segunda está se decompondo diante de nossos olhos
na maior crise do capitalismo global ocorrida em 2008.
O combate às desigualdades sociais no capitalismo: segundo Marx e Piketty
171
Hobsbawm disse que o futuro pertence às economias mistas
nas quais o público e o privado estejam mutuamente vinculados
de uma ou outra maneira. Isto significa dizer que a Social Democracia com o Estado de bem-estar social, o mais bem sucedido
sistema já implantado no mundo, que incorpora elementos tanto
do socialismo como do capitalismo, especialmente nos países
escandinavos, poderia ser a solução para o problema da desigualdade que avassala o planeta em que vivemos. A social democracia do futuro, que deveria resultar do aperfeiçoamento do
modelo atual implantado nos países escandinavos, operaria com
um tripé estruturado com base na sociedade civil organizada
ativa, setor produtivo (estatal e privado) eficiente e eficaz e um
Estado neutro, que exerceria a coordenação do planejamento e a
regulação do sistema e mediaria os conflitos entre a sociedade
civil e o setor produtivo.
172
Fernando Alcoforado
X. Mundo
Autores
José Antonio Segatto
Professor titular de Sociologia da Unesp.
José Flávio Sombra Saraiva
PhO pela Universidade de Birmingham, Inglaterra, professor titular de Relações
Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e Pesquisador 1 do CNPq.
Sionei Ricardo Leão
Jornalista, assessor de imprensa na Câmara Federal, é ativista de direitos humanos
e igualdade racial, o que lhe valeu o Prêmio Palmares de Comunicação (Ministério
da Cultura) pelo Documentário Kamba-Racê, que trata do tema igualdade racial e
Forças Armadas.
Espectros do terror
José Antonio Segatto
O
s atentados terroristas, em passado recente, promovidos
pelo Estado Islâmico (EI) e por grupos ou seitas similares
(Al Qaeda, Taleban, Frente al-Nusra, Al Shabaad, Ansar
al Sharia, Boko Haran) na Espanha, na Inglaterra, na Bélgica,
na França, nos Estados Unidos, na Turquia, no Líbano, no Mali,
na Líbia, na Tunísia, no Egito, no Iêmen, no Quênia, na Somália,
na Nigéria e outros que chocaram o mundo – divulgados como
atos espetaculares e/ou fantásticos, por parte de certos órgãos da
mídia global – não devem ser compreendidos como uma simples
reação de seitas político-religiosas fundamentalistas contra o
Ocidente cristão e democrático, como muitos ideólogos ou governantes querem fazer parecer. Ou ainda como um epifenômeno do
“choque de civilizações”, como quis Samuel Huntington.
Quais seriam então os elementos explicativos para tais atos?
Seu entendimento, cremos, envolve um conjunto complexo de
fatores histórico-políticos, tanto no passado longínquo e/ou secular, quanto hodierno.
Problemas histórico-políticos
Para não recuar demasiadamente na história, pode-se partir
das últimas décadas do século XIX, quando teve início uma outra
fase do desenvolvimento capitalista, diversa da anterior – liberal,
assentada no e ordenada pelo “mercado não regulado” e pela “livre
concorrência”. Uma de suas características fundamentais foi a
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expansão colonial em busca de novos mercados consumidores de
produtos manufaturados e fornecedores de matérias-primas, gêneros alimentícios e áreas lucrativas para investimento de capital.
“Entre 1876 e 1915, cerca de um quarto da superfície continental
do globo foi distribuído ou redistribuído, como colônia, entre meia
dúzia de Estados”; Inglaterra, França, Bélgica, Alemanha, Itália e
Estados Unidos promoveram a divisão territorial do mundo, “configurando um conjunto de colônias formais e informais e de esferas
de influência”. (HOBSBAWM, 1988, p. 91 e 93).
Nas regiões de populações muçulmanas da África, Oriente
Médio e parte da Ásia, o domínio inglês e francês constituiu fato
mais que perceptível e inconteste. A supremacia dessas duas
potências europeias acentuou-se com a dissolução do Império
Otomano – cuja autoridade abrangia grande parte do Médio
Oriente – resultante da Primeira Guerra Mundial (1914-18). Antes
mesmo do término do conflito, França e Inglaterra, por meio de
acordos secretos de Sykes – Picot (1916), redividiram a região em
áreas de influência e controle. A França, que já tinha sob seu jugo
a região do Magreb, ficou com a Síria e o Líbano; a Inglaterra, que
estendia sua dominação direta ou sob a forma de protetorado,
desde o Egito e Sudão até o Aden, Omã, Qatar, Kuwait, etc, apoderou-se da Transjordânia, do Iraque e da Palestina.
O término da I Guerra Mundial assinalou também o desaparecimento final do Império Otomano. Das ruínas do império emergiu um novo Estado independente na Turquia, mas as províncias
árabes foram postas sob controle britânico e francês; todo o
mundo de língua árabe achava-se agora sob o domínio europeu, a
não ser por algumas partes da península arábica. (HOURANI,
1994, p. 270).
Entre os anos de 1920/40, a região ganhou novos contornos e
suas fronteiras – praticamente inexistentes ou pouco nítidas –
foram redesenhadas com a organização, por parte das potências
europeias, de inusitados Estados-nacionais. A criação, desde
cima e de fora (sob a supervisão e/ou tutela inglesa ou francesa),
de países artificiais, no mais das vezes sem nenhuma tradição,
coesão ou fundamento histórico, teria implicações sociopolíticas
graves e duradouras.
Há casos em que o poder foi instaurado a partir de tribos e
clãs nômades do deserto, por meio de monarquias teocráticas,
com a invenção de dinastias ou casas reais, e instituições que
pareciam exóticas ou mesmo bizarras. Seu poder e domínio foram
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José Antonio Segatto
impostos, em geral, pela força e pela coerção e garantidos pela
submissão desses novos Estados aos interesses das potências
(EUA e Europa) e aos monopólios da indústria petrolífera e armamentista. Na África Setentrional e do Nordeste e na Ásia Central,
o processo foi similar, com governos de reduzida legitimidade,
regimes opressores e iníquos, tirânicos ou autocratas. Isso gerou
situações de permanente instabilidade e conflitos contínuos (étnicos, religiosos, políticos etc.) na região.
Essas tensões e antagonismos seriam, concomitantemente,
potencializados por inúmeras outras razões, envolvendo desde a
criação de certos nacionalismos, o ressurgimento de fundamentalismos político-religiosos, à permanente contrafação árabe-israelense na Palestina etc. – todos eles permeados pelos ecos da
guerra fria.
Como contraponto às relações de dominação política e exploração econômica impostos pelas potências capitalistas, irrompeu
no Oriente Médio, na década de 1950/60, um projeto nacionalista,
propugnando um pan-arabismo (a construção de uma nação que
congregasse todos os povos árabes), com ingredientes de socialismo estatista – exemplares foram os casos do nasserismo no
Egito e o movimento de libertação nacional da Argélia. Desse
fenômeno, redundariam regimes políticos com formato de ditadura militar, dirigidos por partidos-Estados (em geral laicos).
Foram os casos, entre tantos outros, do Egito (Gamal Abdel
Nasser, 1952), Síria (Hafez al-Assad, 1970) Iraque (Sadam Hussein,
1969), Líbia (Muammar al-Kadafi, 1969).
Em sincronia com tais acontecimento, irrompeu, em meados
dos anos 1960, um movimento político-religioso de cunho fundamentalista e regressista. Cisma da Irmandade Muçulmana
(fundada no Egito em 1928), propunha-se à ressurreição do califado islâmico; e entre os meios para alcançá-lo, o jihadismo (guerra
santa contra os hereges, em defesa dos princípios sagrados do Islã)
deveria ser conduzido por grupos combatentes (mujahedim) “preparados para a violência e o martírio” (HOURANI, 1994, p. 443).
Perseguido pelo governo egípcio, o movimento encontrou guarida e
apoio financeiro na monarquia ultraconservadora saudita que, de
maneira conveniente, consentiu a difusão de suas concepções e
doutrina por meio das madrassas, pois eram congruentes com o
integrismo do wahabismo, crença oficial do Estado.
Por último, outro elemento de desequilíbrio e de perturbação
na região seriam as intermináveis guerras e hostilidades entre
Espectros do terror
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árabes e judeus após a criação do Estado de Israel, em 1948.
A forma como foi encaminhada a solução dos Estados nacionais
judaico e palestino – imbuída pela lógica da guerra fria das geopolíticas norte-americana e soviética na região, além de contagiada
por ideologias sectárias e messiânicas – constituiu-se, historicamente, em componente fundante e fundamental de transtorno, de
desestabilização e insuflador de terrorismo.
Mas, não obstante todas as tensões e paradoxos, Estados e
governos fundados e legitimados por poderes, geralmente extrapolíticos, mantiveram a ordem imutável, estendendo seus domínios por extensas áreas e, em muitos casos, por longo tempo –
beneficiados, inclusive, pela crescente importância da exploração
do petróleo com seus incomensuráveis lucros.
A pax americana e seus demônios
No pós-II Guerra Mundial (1945), a influência e o domínio
britânico foram, gradativamente, sendo substituídos pelos norte
-americanos. Tornados grande potência, os Estados Unidos estabeleceram seu poder e domínio político-econômico na região de
maneira evidente. Seja por meio de transações ou outorgas, seja
por meio de persuasão ou compulsão, garantiram os interesses
e os negócios do seu Estado, dos grandes monopólios da indústria do petróleo e do complexo industrial-militar. Para tanto,
suas intervenções tornaram-se, nas décadas que se seguiram,
constantes e sistemáticas na área. Exemplar foi a operação, por
meio de um golpe de Estado bem sucedido, organizado e financiado pela CIA, que depôs o primeiro ministro do Irã, Mohammad
Mossadegh, em 1953, pelo fato de ele ter nacionalizado a exploração do petróleo.
Desde fins dos anos 1970, os sucessivos governos – mesmo
que com matizes partidárias distintas – dos Estados Unidos, por
meio de órgãos diplomáticos ou militares e agências secretas de
segurança, intensificaram as ações e/ou intervenções para garantir seus interesses econômicos e geopolíticos. Jeffrey Sachs, analisando essas operações, asseverou há pouco que “A CIA recrutou
em grande escala, membros de populações muçulmanas (inclusive na Europa) para formar Mujahidin, uma força de combate
sunita multinacional mobilizada para expulsar infiéis soviéticos
do Afeganistão.” E observou também que, ao fomentar a concepção fundada na eclosão da Jihad “para defender as terras do Islã
[...] contra forasteiros, a CIA produziu uma força de combate
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José Antonio Segatto
inicial – e a ideologia que a motivou – que hoje ainda forma a base
das insurgências jihadistas sunitas, incluindo o EI. O alvo original dos jihadistas era a União Soviética, hoje são EUA, França,
Reino Unido e Rússia”. (SACHS, 2015. b.p. A11).
Essas condições e desígnios foram agravados e potencializados pelas ações e intervenções militares americanas e europeias
a partir dos anos 1990, continuando no início do século XXI. Ao
desestabilizarem ou deporem governos e governantes (Afeganistão, Iraque, Líbia, Iêmen, Síria etc.), tais operações provocaram
um vácuo de poder ou destruíram, em alguns casos, o que havia
de Estado organizado. Isso facultou a liberação de espectros ideológicos extemporâneos e a ressurreição de concepções e atitudes
fundamentalistas e/ou messiânicas há séculos adormecidas que
irromperam com brutalidade e ódio inauditos – despertando
demônios. Ainda que com elementos antediluvianos, essas
concepções ganharam organicidade, manifestando-se na forma e
por métodos terroristas. Seus alvos: a mercantilização das relações sociais e humanas, os símbolos do capitalismo, as normas
da modernidade laica, os valores da civilização ocidental e cristã
e as tentativas de impô-los, seja pelo convencimento, seja pela
força. Seus juízos e práticas político-ideológicas implicaram em
uma espécie de “choque de civilizações” às avessas.
Suas ações, estruturação e difusão não ficaram circunscritas
à região de origem. Encontraram condições de desenvolvimento,
excepcionalmente propícias, no âmbito europeu, sobretudo na
França, na Bélgica, na Inglaterra, países com significativa população de muçulmanos, advinda das ex-colônias. Migrantes, refugiados, descendentes; cidadãos de 2ª e 3ª categorias, tratados
como estrangeiros, discriminados pela origem e vítimas da islamofobia; jovens sem perspectiva ou oportunidade de estudo ou
trabalho, marginalizados e abandonados à própria sorte, tornaram-se alvo do aliciamento e da sedução dessas seitas sectárias e
fundamentalistas. Os subúrbios de Paris, Bruxelas, Londres são
hoje incubadores do extremismo jihadista.
A reação, por parte dos EUA, da Inglaterra, e da França e de
seus aliados não foi menos atroz e desarrazoada. A resposta ao
terror foi dada no mesmo tom, informada e guiada pelo princípio do “olho por olho, dente por dente”. Especialmente durante
o governo G. W. Bush, retomaram-se os velhos paradigmas da
“política cruzadista”, baseados na força militar, na supremacia
político-econômica dos EUA e nas noções de “guerra justa”,
“missão civilizatória”, “exceção permanente” etc. – o que serviu
Espectros do terror
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para alimentar a ira, acirrar os conf litos e disseminar o terror
de parte à parte.
Tornou-se, pois, inconsistente a compreensão de a política
internacional ter sido impregnada e mesmo condicionada, neste
início de século, por aquilo que tem sido categorizado como “questão islâmica”. E colocam-se problemas que não podem ser enfrentados, simplesmente, pela coerção ou por “métodos bárbaros”
baseados na força bruta. Ou seja, o “processo da islamização da
agenda internacional constitui desafio inédito, de natureza
distinta aos do passado. Ao envolver a mais dinâmica e numerosa
das religiões, a mais resistente até hoje à modernização, ela
exigirá muito mais do que a superioridade militar dos EUA”.
(RICUPERO, 2009, p. A3).
Ordem política e nova fase do capitalismo
Nos anos oitenta do século XX, foi desencadeado um complexo
e diversificado processo transformador que culminou com o
ingresso do capitalismo em uma nova fase, expressa em mudanças como a reestruturação produtiva, a financeirização da economia, a “revolução” técnico-científica, as políticas socioeconômicas
neoliberais, a globalização etc. Em contrapartida, houve o colapso
do “socialismo real” no Leste Europeu e em outras regiões, a desagregação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1991), o
perecimento dos partidos comunistas, o esgotamento e/ou a
metamorfose da social-democracia, a crise nos movimentos sindicais e outros fatos e fenômenos.
Esse processo, para alguns, como o historiador inglês Eric J.
Hobsbawm, significou “o fim de uma era”, iniciada em 1917,
quando “a história mundial girava em torno da Revolução de
Outubro” desencadeada na Rússia – época em que, “por mais de
setenta anos os governos e as classes dirigentes ocidentais foram
atemorizadas pelo fantasma da revolução social e do comunismo”
(1992, p. 93). Numa posição antitética, outros, como um funcionário do Departamento de Estado Norte-Americano, Francis
Fukuyama (1992), chegaram a entender que essa serie de acontecimentos significavam a vitória do liberalismo ou do livre mercado,
a universalização da civilização ocidental, “o ponto final da evolução ideológica da humanidade”, a “forma definitiva de governo
humano” – “o fim da história”.
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José Antonio Segatto
Apesar da entusiástica acolhida midiática, o vaticínio apoteótico de Fukuyama mostrou-se imediatamente falacioso, reduzindo-se a um simples espasmo ideológico. O que de fato ocorreu
nesse processo foi o início de uma nova fase do modo de produção
capitalista – que passou por outras, como a comercial nos séculos
XVI-XVIII, a concorrencial de fins do século XVIII ao XIX e a
monopolista ou imperialista entre mais ou menos 1870 a 1970 –
que muitos denominam de globalização ou mundialização, sem
chegar-se ainda a um consenso categorial.
Concomitantemente – e com o desdobramento desse processo
– a ordem mundial construída no pós-guerra (1945) será levada
de roldão. A derrocada do socialismo soviético e do Leste Europeu, simbolizada pela “queda do muro de Berlim” (1989), colocou
um fim à guerra fria e à bipolaridade da política internacional que
confrontava Estados Unidos e União Soviética. Isso, junto com
outros fatores, abriu perspectivas de despolarização e renovação
democrática na ordem política internacional.
O que sucedeu, no entanto, foi justamente o inverso. Na nova
fase histórica, os Estados Unidos – agora sem o contrapeso
geopolítico da URSS – assumiram ou se autoinvestiram do direito
e da autoridade legítima de defensores e reguladores da ordem
mundial. Seu poder deveria ser inconteste, não podendo ter limites ou ser desafiado. Nesse contexto, recriaram-se, inclusive,
noções e categorias como “guerra justa”, “autoridade internacional”, “eixo do mal”, “missão civilizatória”, “excepcionalismo
permanente”, “fronteira sem fim” e outras (IANNI, 2004, p.
271-272). Um importante intelectual do establishment norte-americano, Samuel P. Huntington (1996), elaborou a tese do
“choque de civilizações”, segundo a qual os conflitos fundamentais no “novo mundo” não seriam mais, essencialmente, de caráter econômico ou ideológico, mas de ordem cultural ou civilizacional – o antagonismo entre Ocidente e Oriente e mais especificamente
entre a civilização ocidental (liberal, cristã, civilizada, racional,
desenvolvida) e o mundo islâmico (incivil, bárbaro, atrasado,
ímpio, autoritário, cruel). Não por acaso, tal proposição foi amplamente difundida e absorvida pela diplomacia norte-americana.
Ainda, nas novas condições históricas, reestabeleceram-se
doutrinas e práticas geopolíticas que pareciam pretéritas, como a
da contra-insurgência preventiva para combater a criação de
possibilidades ou potencial propício à reação e à oposição aos
interesses norte-americanos. A velha tese do estrategista militar
alemão do século XIX, Karl Von Clausewitz (1960), para quem “a
Espectros do terror
181
guerra é a continuidade da política por outros meios”, foi ressuscitada e reatualizada – ela passou, inclusive a fundamentar
sanções e intervenções, além de ser usada para legitimar a busca
de estabelecimento do monopólio internacional da força por parte
dos Estados Unidos e seus aliados. Dessa forma que, fundadas
“na força militar e política do Estado Imperial, as relações internacionais” passaram a ser “submetidas ao regime de exceção
permanente” (BELLUZZO, 2004, p. 132). Retomou-se, em toda a
sua crueza, concepção de conflito, sanção ou guerra segundo a
qual o mais forte, o vencedor sempre tem razão. (BOBBIO, 1982).
Ao mesmo tempo, de acordo com a lógica da globalização,
desencadeou-se uma forte ofensiva político-ideológica contra o
Estado de Bem-Estar Social e a favor da desregulamentação e
eliminação de barreiras para suprimirem-se quaisquer obstáculos à liberdade das mercadorias e à sua livre circulação conforme
os interesses dos grandes conglomerados multinacionais com
sede nos Estados Unidos, na Europa, na China e no Japão.
Enquanto isso, restringiu-se a ação dos Estados nacionais periféricos, submetidos progressivamente aos mercados financeiros
globais. Nesse processo, algumas “das características ‘clássicas’
do Estado nação parecem modificadas, ou radicalmente transformadas”, de forma que “a soberania do Estado-nação não está
sendo simplesmente limitada, mas abalada pela base” (IANNI,
1995, p. 48-49 e 34), mostrando-se “materialmente limitados em
sua autonomia decisória”. (FARIA, 199, p. 23).
Evidencia-se, desse modo, que o processo de globalização tem
implicações múltiplas e substanciais: a) o movimento do capital
ganhou uma velocidade excepcional e sua capacidade de reprodução foi potencializada; b) o mercado financeiro foi tornado global
e virtual e o fluxo de moedas e capitais alcançou agilidade exponencial; c) a circulação de mercadorias e capitais, o deslocamento
de indivíduos e grupos, em todas as direções e regiões, criaram
condições para a desterritorialização econômica e o desenraizamento cultural e identitário, desalinhando ou dissipando fronteiras, reais ou imaginárias; d) as relações de trabalho e/ou de
produção, a sociabilidade e a representação, os meios de informação e comunicação viram-se drasticamente alterados e transtornados; e) a redefinição das atribuições e soberania dos Estadosnacionais – como unidades geopolíticas, como espaços da livre
circulação de mercadorias (entre as quais a mão de obra), como
mercados internos (complexa rede de relações sociais mercantilizadas), mediadas e geridas por um poder soberano e como “comu182
José Antonio Segatto
nidades imaginadas” (ANDERSON, 1989, p. 14-16) – levou à corrosão da autoridade e da jurisdição, à efemeridade das instituições
e esferas de decisão ou deliberação, fragilizando a sociedade civil
e política (parlamento e Judiciário, partidos e sindicatos, imprensa
e ordens, igrejas e associações etc.).
Pode-se dizer que, de fato, a globalização é, simultaneamente
e em grande medida, um processo de americanização do mundo
– anunciado e iniciado já nas primeiras décadas do século passado
– de expansão não só do capital e mercadorias, mas também de
disseminação dos valores, da cultura política e da ordem americana – e impulsionada por organismos internacionais, que se
tornaram seus executores: Bird, FMI, BID, OCDE etc. É possível
mesmo que seja o desenlace e/ou realização plena do longo movimento histórico, inaugurado nos séculos XVI-XVII, de ocidentalização das relações sociais mercantis, valores e normas da sociedade burguesa e da ordem capitalista.
Talvez seja plausível afirmar que os atos terroristas promovidos por grupos jihadistas islâmicos sejam, em certa medida,
reação às tentativas de imposição da ocidentalização/americanização do Oriente por meio de procedimentos nem sempre legítimos e/ou lícitos. Além disso, reflete também, em suas formas de
organização e difusão, em seus métodos de ação e atitudes, muitos
dos elementos da globalização.
Mas, se a globalização tem corroído e reordenado os poderes
dos e nos Estados nações, promovido e intensificado o movimento de mercadorias e capitais, de povos e etnias em todos os
países e continentes, é também realidade inconteste que tem
afetado duramente o exercício dos direitos de cidadania. Como
eles foram instituídos em outro momento e realidade – pelo
menos muitos deles, variando em grau e extensão – no espaço
geopolítico de cada país e como prerrogativa dos nacionais ou
nativos, o migrante e o refugiado, o estrangeiro ou mesmo o
descendente, não são considerados cidadãos plenos ou, em
muitos casos (os “ilegais”), nem mesmo parciais. Ou seja, se, por
um lado, a globalização promoveu, por meios os mais variados
– econômicos ou culturais, pacíficos ou pelo desterro, autorizados ou inválidos – o deslocamento de indivíduos e mão de obra,
por outro, não resolveu a contento o problema do exercício dos
direitos de cidadania do adventício. Assim, ao mesmo tempo em
que criou um mercado mundial de produtos, capitais e mão de
obra, não criou o cidadão do mundo.
Espectros do terror
183
Esse fato tem sido tanto um elemento perturbador nas relações econômicas e políticas internacionais, como tem contribuído
para precarizar as relações de trabalho, incentivar a discriminação e a opressão étnico-cultural e incitar o reavivamento de ideologias políticas e religiosas nacionalistas e/ou fundamentalistas,
conservadoras ou regressistas, intolerantes e anti-humanista. É o
caso, por exemplo, das seitas islâmicas jihadistas, dos grupos e
partidos de extrema direita ou tradicionalistas e hiperconservadores que vicejam em várias partes, não só no Oriente e na África,
como, em especial, na Europa e nos Estados Unidos.
Não obstante o processo de globalização suscitar novos dilemas e repor velhos problemas, ele também enseja possibilidades
de despolarização e condições propícias para a interdependência
entre Estados nacionais, para o fortalecimento dos organismos
mediadores das relações internacionais, para a regulação democrática, para o estabelecimento de premissas garantidoras da paz
e mediadoras de conflitos por meio do direito internacional. Aventa-se mesmo a possibilidade de a Organização das Nações Unidas
(ONU) voltar a ter um protagonismo indispensável no novo cenário. Esse papel foi limitado nas décadas anteriores devido às
injunções da guerra fria, mas, como instituição supranacional e
com poderes a ela delegados, seria a organização capaz de restringir os poderes dominantes, criar uma ordem mundial pluralista e
implementar uma plataforma de valores universais: consolidação
da paz, defesa dos direitos humanos, fortalecimento da democracia e ampliação dos direitos de cidadania, preservação e recuperação do meio ambiente, resolução dos problemas da miséria e
das endemias etc.
A renovação democrática da ordem mundial tornou-se um
imperativo ou condição sine qua non, em torno da qual poderiam
ser criados pressupostos básicos e, a partir deles, poder eliminar a
violência e o terror e confinar os demônios de todos os tipos e classes, cores e credos, posições e partidos, nacionalidades e etnias,
religiões e doutrinas, concepções e ideologias – caso contrário, a
humanidade continuará convivendo com o pesadelo ou em pânico,
sobressaltada e assombrada pelos espectros demoníacos.
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José Antonio Segatto
Referências
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1989
BELLUZZO, L. G. de M. O porrete da liberdade. In: _______. Ensaios
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CLAUSEWITZ, K. V. De la guerra. Buenos Aires: Mar Océano, 1960.
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1999.
FUKUYAMA, F. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro:
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HOBSBAWM, E. J. Adeus a tudo aquilo. In: BLACKBURN, R. (org.).
Depois da queda. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 93-106.
______. A era dos impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988
HOURANI, A. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Cia. das
Letras, 1994.
HUNTINGTON, S. P. O choque de civilizações. Rio de Janeiro:
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IANNI, O. Capitalismo, violência e terrorismo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004.
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RICUPERO, J. A islamização da agenda. Folha de S. Paulo,
10/05/2009, p. A3.
SACHS, J. Como deixar de alimentar o terrorismo. Valor Econômico,
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______. Um novo século para o Oriente Médio. O Estado de S. Paulo,
24/12/2015. a, p. A9.
Espectros do terror
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O impeachment,
a autonomia e o mundo
José Flávio Sombra Saraiva
O
s Estados, atores preponderantes na constelação dos
sistemas internacionais, seguem no centro decisório.
Governantes globais observam os tempos do impeachment
no Brasil. Líderes mundiais demonstram espanto com os fatos,
embora a imprensa da Europa e a dos Estados Unidos tenham
mantido muitas matérias razoáveis acerca do Brasil de hoje.
Convergem com a ideia de que o Brasil perdeu fôlego e, mesmo
com ajuda dos brasileiros, ainda haverá algum tempo para voltar
a ser o país parceiro dos grandes Estados mundiais, quando
comparadas com as conexões internacionais do Brasil nos anos
1990 e 2000.
O sistema de Estados atual é hierárquico, dividido entre grandes, médias e pequenas autonomias. É o mundo que temos.
O resto é menor. Apesar da esperança de regimes societários e
horizontais – inspirados nos cidadãos, na onda da globalização,
nos romantizados sonhos juvenis de constituição global de deveres e direitos – o que vale no novo mundo ainda se parece com o
velho mundo. Capacidade econômica, criação tecnológica, governança estratégica, poder militar, todos influenciam para criar
conceitos que monitoram o mundo contemporâneo.
Onde está o Brasil? Há algum tempo se falava em um país
que começava a andar por si. No meio internacional, o Brasil já
seria uma potência média, ou emergente, uma das grandes
democracias do mundo. Falava-se em ser uma potência média,
um soft power.
Os últimos anos foram de animação para a diplomacia brasileira, merecida pela missão crescente de negociação, particularmente no campo multilateral, movendo-se na pressão entre grandes e pequenos Estados.
Mas o país vai e volta, em gangorra que convergiu para a
mediocridade em quase todas as métricas de inserção internacionais econômicas, políticas e morais. Essa é a expressão das leituras internacionais dos grandes Estados que observam o imbróglio
brasileiro nesses dias. O país, nessas quase 20 décadas de cria186
ção de um Estado independente, caminhando aos 200 anos, ainda
se enrola em problemas de governabilidade e na insistência do
presidencialismo ora imperial, ora de coalizões sem projetos reais
de elevação do patamar civilizatório.
Mas não foi sempre assim. O Brasil ensaiou um caminho
razoável de se afirmar entre as estrelas das potências que dirigem
o diretório internacional. E ainda há um Brasil à busca de um
caminho próprio, histórico, de se inserir no sistema mundial. A
ideia da autonomia decisória, ou simplesmente autonomia,
permeia a história dos Estados modernos. E o Brasil teve seus
teóricos, como Hélio Jaguaribe, nos anos 1960, ao lembrar as
condições sine qua non da autonomia do Brasil: viabilidade nacional e permissibilidade internacional.
O impeachment da presidente do Brasil, mesmo que siga ainda
entre ritos longos e judicializações, terá implicações na inserção
internacional do Brasil. O mundo olha um país-esperança que
terá que se fazer de novo, recuperar a tradição de conversar,
mediar, colaborar para as controvérsias internacionais. Essas
tradições do Brasil parecem que foram afetadas pelo deterioro da
capacidade de participar dos grandes temas globais.
No campo econômico, como comentam nossos colegas internacionalistas das escolas europeias, o país foi à lona. Será um
grande recomeço para o Brasil, como comenta colega e professor
de universidade inglesa.
O impeachment passa. Será uma lição para todos os brasileiros. Na expressão externa do país, o que urge é a necessidade da
busca de um novo modelo de desenvolvimento e a busca de recuperação da autonomia na inserção internacional do Brasil. Vamos
retomar os caminhos da busca de um caminho próprio, mesmo
que tenha que ser lenta, com paciência.
O Brasil é grande e saberá superar a crise atual.
O impeachment, a autonomia e o mundo
187
Políticas afirmativas
e Forças Armadas nos EUA
Sionei Ricardo Leão
É
instigante a propósito da discussão sobre políticas afirmativas, assunto que entrou na agenda política brasileira,
a trajetória das Forças Armadas dos Estados Unidos da
América, que foram as primeiras instituições a pôr fim à segregação racial naquele país.
No caso norte-americano, a II Guerra Mundial foi um divisor
histórico e social. Prestes a iniciar o conflito, líderes dos movimentos negros estadunidenses discutiram se incentivariam ou
não o alistamento dos jovens da comunidade para irem lutar na
Europa. Na visão desses ativistas, o tratamento recebido pelos
afro-americanos nas Forças Armadas, apesar das contribuições
nos conflitos anteriores, permanecia desfavorável. A conclusão a
que chegaram esses representantes foi adotar a estratégia baseada
numa dupla ação.
Eles decidiram apoiar o ingresso dos jovens nas instituições
militares com vistas a alcançar dois objetivos: combater o nazismo
na Europa, articulando essa ação com a tática de lutar contra o
racismo em seu país.1
Milhares de afro-americanos foram enviados aos vários teatros
de guerra em que se desdobrou o conflito. Dos vários corpos organizados o que mais se destacou foi o 99th Squadron, Tuskegee
Airmen. Ativado em março de 1941, seus treinamentos começaram oficialmente em 19 de julho e as instruções de vôo, em 25 de
agosto do mesmo ano, em território norte-americano. Contou
inicialmente com 33 pilotos e 27 aeronaves.
Afro-americanos haviam ocupado várias funções nas Forças
Armadas, durante os conflitos em que o país se envolveu, mas na
condição de pilotos militares era a primeira vez. A ideia de criar a
Tuskegee Air Force Flying School foi defendida pela National for
the Advancement of Colored People (NAACP), entidade estadunidense de combate ao racismo, que vislumbrou na ação um meca1
HIGGINBOTHAM, Michael. A military strike against racism. The Boston Globe,
25/07/1998.
188
nismo de luta contra a segregação nas organizações militares
norte-americanas.
No total, 278 homens afro-americanos receberam treinamentos para atuar no 99th Squadron. Os tuskegees foram incluídos
no 33rd Group, em Fardjouna, na África do Norte, em 1943. No
mês de junho, passaram a integrar a 324th Fighter Group, com o
papel de escoltar bombardeiros ao longo da costa da Sicília.
No ano seguinte, participaram da Operação Strangle destinada a deter tropas alemãs que pudessem ameaçar posições
conquistadas pelos Aliados. Durante a invasão da Normandia,
deram apoios aos esquadrões convencionais em 31 operações.
O 99th Squadron também tomou parte da conquista de Cassino,
em 17 de maio, posição tomada aos alemães.
O desempenho dos tuskegees motivou o general Mark Clark,
comandante do 5º Exército norte-americano, a pedir o apoio deles
para proteger suas tropas. Da mesma forma, agiu o general Cannon,
comandante da 12ª Força Aérea. Ao final, o 99th Squadron estabeleceu o recorde de realizar centenas de missões sem ter perdido
qualquer avião bombardeiro que estivesse protegendo.
Um ano antes de encerrar-se o conflito, o senador McCloy,
assistente da Secretaria de Guerra, foi incumbido de coordenar a
comissão de estudos sobre o desempenho dos tuskegees.
As discussões aconteceram em sigilo, uma vez que havia o temor
da reação e pressão da comunidade negra.
Os depoimentos dos seus membros propunham uma suposta
inferioridade dos pilotos negros em comparação com o desempenho
dos brancos. Pontos de vista apoiados em estudos de caráter antropológico com vieses racistas. Com isso, a intenção era a de manter
a segregação na Força Aérea. Veio em defesa dos tuskegees o coronel Parrish, comandante da Tuskegee Air Force Flying School.
Ele evocou as garantias constitucionais a que tinham direito os
afro-americanos. Por fim, contestou a inferioridade dos pilotos
negros, sugerindo que a participação deles fosse de 10% do efetivo
da Força Aérea. O general Alan Gillem, por sua vez, afirmou que a
integração racial era a melhor escolha para o país. Tais argumentos deram suporte à continuidade da ação dos tuskegees.
Além dos tuskegees, afro-americanos participaram da II
Guerra Mundial em outras corporações. Na Marinha, houve o
caso do USS Mason, que esteve em atividade no Atlântico Norte.
Entre os marines, atuaram cerca de 19 mil jovens, treinados no
Políticas afirmativas e Forças Armadas nos EUA
189
campo Montford Point, em Lejeune, na Carolina do Norte, alistados a partir de 1941, depois da publicação da Ordem Executiva nº
8802, assinada pelo presidente Franklin Delano Roosevelt.
Na logística, papel importante coube aos The Red Ball que
atuaram em comboio, transportando suprimentos. Em média,
deslocavam entre 700 e 750 toneladas por dia, durante as operações na França e na Bélgica, calculou o general Bradley.2 O esforço
desses comboios foi decisivo, por exemplo, para a mobilidade dos
carros de combate, sob o comando do general Patton.
Em razão dessas participações exitosas, os EUA encerraram
com a segregação nas Forças Armadas seis anos antes do caso
Brown v. Board of Education, portanto em 1948. De acordo com o
professor Michael Higginbotham, da Universidade de Baltimore, o
sistema militar dos EUA é uma das instituições mais radicalmente diversificadas do país. “Mais do que a maioria de nossas
escolas, corporações, fundações ou serviços civis”.3
Essa participação não se restringe, analisou Higginbotham,
somente aos escalões mais baixos das forças – 5% dos oficiais das
Forças Armadas dos EUA são afro-americanos. O percentual sobe
a 20%, quando o cálculo inclui as praças e sub-oficiais, o que
significa que, proporcionalmente, a presença desse segmento nas
instituições militares superou proporcionalmente o quantitativo
populacional, uma vez que os negros naquele país somam 12% de
toda a população, de acordo com as estatísticas oficiais.
Historicamente, afro-americanos haviam atuado em todos os
confrontos bélicos nos quais os EUA se envolveram, com destaque
para a Guerra de Secessão. Há também presenças na I Guerra
Mundial, Guerra da Coreia e Guerra do Vietnã.
No plano individual, ganharam relevo as atuações de pessoas
como Crispus Atucks, durante a Guerra da Independência; a
família O. Davis, que teve membros na experiência dos Tuskegges
(homens do ar), durante a II Guerra Mundial e o mais conhecido
deles foi o general Colin Powel.
Este destacado líder militar foi o comandante das Forças
Armadas norte-americanas durante a operação Tempestade no
Deserto, que reuniu efetivos europeus e norte-americanos para
2 The History of Buffalo Soldier. Disponível em: <[email protected]>.
3 HIGGINBOTHAM, Michael. A military strike against racism. The Boston Globe,
25/07/1998.
190
Sionei Ricardo Leão
lutar contra os contingentes militares de Sadam Hussein, no
Kwait e no Iraque, em 1991.
Para Michael Higginbotham, Colin Powel serve de exemplo
para se demonstrar as possibilidades do sistema de políticas afirmativas norte-americano. “Powel beneficiou-se no Exército da
reserva de cotas, o fato de ele ter conseguido alcançar os mais
altos degraus da hierarquia militar aponta que essa iniciativa dá
resultados positivos”.4
Algumas corporações cujas fileiras contiveram majoritária ou
totalmente afro-americanos ganharam reputação ao longo da
história norte-americana, como o 54th Massachusetts Volunteer
Infantry (Guerra de Secessão); as 9th e 10th U.S Cavalary (também
conhecidos como os soldados búfalos); o 99th Squadron Tuskegee
Airmen (II Guerra); o USS Mason (II Guerra), o Montford Point (II
Guerra) e o The Red Ball Truck (II Guerra).
As tropas sulistas, comandadas pelo general Lee, já estavam
em combate contra as “yankees” do general Grant, quando o
governador do Estado de Massachusetts decidiu, em 1862, organizar um regimento de infantaria, cujas praças seriam todos
homens negros, a maioria deles cativos. A ideia foi de um afroamericano livre, na verdade ex-escravo, defensor da causa abolicionista, Frederick Douglass. Também alistaram-se homens do
Tennessee e da Carolina do Sul.
Dois dos recrutas eram filhos do próprio abolicionista (N.
Douglass e Charles Douglass). Os treinamentos iniciaram-se em
27 de novembro de 1862, no acampamento de Readville. A missão
de comandar a unidade coube ao coronel Robert Gould Shaw –
branco da mesma forma que todos os oficiais. As cartas que remeteu à mãe durante o período em que esteve à frente do 54th
Massachusetts Volunteer Infantry estão arquivadas na Universidade de Harvard. Elas ajudaram na elaboração do filme Glorie
(Tempo de Glória) que popularizou a história do regimento.
4HIGGINBOTHAM, Michael. Justiça e discriminação racial. Rio de Janeiro, Plenário do Conselho Universitário da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ): CONFERÊNCIA NACIONAL DOS ADVOGADOS, DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, 17, 1º/09/1999.
Políticas afirmativas e Forças Armadas nos EUA
191
XI. Resenha
Autores
Elio Gaspari
Jornalista ítalo-brasileiro, comentarista diário de alguns dos principais jornais do
país, e autor, dentre outros, da coleção As Ilusões Armadas, em cinco volumes.
Nicolau da Rocha Cavalcanti
Advogado e jornalista.
Compreender bem a
democracia e a República
Nicolau da Rocha Cavalcanti
O
s tempos são de crise. Não apenas política e econômica,
mas também argumentativa. Não raro o debate público é
dominado pela polarização ideológica, na qual os argumentos, despidos de seu contexto e transformados em lugar-comum, servem apenas para atacar o suposto adversário.
Nesse ambiente de pouca reflexão e raso diálogo, o novo livro
de Luiz Werneck Vianna, Ensaios sobre Política, Direito e Sociedade (Hucitec, 2015) é um oásis. Reunião de textos escritos ao
longo das últimas três décadas, a obra analisa com serenidade e
profundidade, num contínuo diálogo com autores clássicos e
contemporâneos, a realidade institucional e social brasileira.
Para Werneck Vianna, a sociedade brasileira está de tal modo
configurada pelo Estado que a análise do fenômeno social passa
necessariamente pelo estudo das relações entre o seu direito e a
sua política. Daí brotará o eixo temático do livro – a judicialização
da política. Consciente de que o fenômeno desafia as teorias clássicas republicanas centradas na regra da maioria e de que “na
democracia não cabe um governo de juízes”, o autor adverte para
a necessidade de compreender bem o protagonismo contemporâneo do Poder Judiciário. Não vê incompatibilidade entre o abandono da neutralidade judicial e a representação. No entanto,
desvelar essa harmonia exigirá um novo pensar, com a ampliação
do conceito de soberania popular e o reconhecimento de novos
lugares de representação popular.
195
Nem todos os elementos do fenômeno da judicialização da política são novos, lembra o autor. Por exemplo, a legislação trabalhista dos anos 1930, num movimento de publicização da esfera
privada. Ao proteger o economicamente vulnerável, introduz-se
um elemento de justiça na política, com uma tendência de predominância do legislado sobre o negociado. Ocorre, assim, a judicialização do mercado de trabalho.
Semelhante movimento se fará notar na Constituição de 1988;
agora, no entanto, com outra dinâmica na relação entre Estado e
sociedade. A tutela autoritária será substituída por uma nova
modalidade de interação. O constituinte buscará na judicialização da política uma forma de realizar as mudanças substantivas
na e com a sociedade, convocando-a a participar da defesa e aperfeiçoamento do direito.
Em contraste ao ocorrido em 1891, 1934 e 1946, a Constituição de 1988 não é resultado de um processo político concluso,
mas se insere na transição do autoritarismo para a democracia
política. Tal circunstância impõe soluções de compromisso entre
forças díspares. A estratégia será deslocar para o futuro a implementação da mudança social, por meio de uma ampla e compreensiva declaração dos direitos fundamentais. Ao enunciar programaticamente os direitos sociais, “o constituinte demanda a
mediação da sociedade a fim de impedir (...) que as normas e
garantias dispostas na Carta fossem interpretadas como de caráter simbólico”.
Luiz Werneck Vianna frisa que a judicialização da política não
é fruto de um ativismo judicial, mas resultado da vontade expressa
do legislador. Não há usurpação de poder, fato comprovado pela
jurisprudência dos anos imediatamente seguintes a 1988, quando
os magistrados se mostram um tanto reticentes com o novo papel
que a Constituição lhes atribui. Aos céticos do caráter democrático dessa nova relação entre os três Poderes, o autor faz importante observação: “Não há registro de nenhum exemplo de judicialização em um contexto não democrático”.
A Constituição é, portanto, um continuar-descontinuando. Há
o velho e há o novo. Com um diagnóstico cético do Brasil – “país
socialmente desigual, sem história de auto-organização e carente
de sedimentação das virtudes cívicas” –, o constituinte opta por
preservar papéis fortes para a dimensão do público na regulação
da vida social, ao mesmo tempo que, numa perspectiva comunitarista, redefine o papel democrático do Poder Judiciário. Apesar
196
Nicolau da Rocha Cavalcanti
de não estar submetido ao controle dos eleitores, isto é, não originário da representação, o terceiro Poder exercerá representação
dos princípios constitutivos do corpo político. “De poder isolado
em sua autonomia institucional, o Judiciário passa a ser incorporado como novo ator na expressão da vontade soberana”, reconhece o autor.
Além de conter certo pessimismo com a representação parlamentar, essa nova perspectiva é também reflexo de uma descrença
nas revoluções políticas como meio de mudança social. O futuro
deixa de ser concebido em ruptura com o presente. É nas “sucessivas transformações moleculares” que agora se depositam as
esperanças de uma transformação social. É a “revolução sem
revolução”, mas já não como mero teatro para o triunfo das forças
de conservação, e sim como o fiat da dialética como “tranquila
teoria” de Gramsci.
Há um novo direito e, portanto, uma nova noção de Estado. Já
não existem respostas prontas. Substituiu-se o direito do pretérito, com sua pretensa segurança, por um direito do futuro, ainda
a ser concretizado, contaminado pelo provisório e configurado
mais como rede do que como código. Um sistema aberto, mas nem
por isso “alternativo” ou com menor juridicidade. Sua realização
não é uma utopia, mas exige a participação da sociedade.
Esse movimento, no entanto, não é isento de riscos. O autor
nota que, de uma inicial reticência, o Judiciário brasileiro parece
ter abraçado com entusiasmo desmedido seu novo papel, com ingerências não de todo justificáveis na esfera dos outros Poderes.
“Forçando as tintas, pode-se sustentar que o Brasil tornou-se (...) a
capital mundial da judicialização da política”. É preciso compreender bem a democracia e a república. Tanto para reconhecer os
méritos democráticos da nova arena pública em torno do Judiciário, quanto para advertir seus claros limites republicanos.
Sobre a obra: Ensaios sobre política, direito e sociedade, de
Luiz Werneck Vianna. São Paulo: Hucitec, 2015. 244p.
Compreender bem a democracia e a República
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A história de três mulheres valentes
Elio Gaspari
E
stá chegando às livrarias Luta e memória, organizado pela
professora Maria Ciavatta. Nele está contada a história
de três mulheres que, nos anos 1970, salvaram o arquivo
de Astrojildo Pereira, um dos fundadores do Partido Comunista
Brasileiro. Marly Vianna, Zuleide Faria de Melo e Dora Henrique
da Costa montaram aparelhos clandestinos no Rio e em São Paulo
para preservar o acervo guardado em 47 caixotes e conseguiram
mandá-lo para a Itália, onde ele ficou até 1992, quando voltou ao
Brasil. É uma história à espera de um filme.
Aos 73 anos, em 1964, Astrojildo Pereira passou três meses na
cadeia e morreu pouco depois. Seu arquivo, com parte da história
do movimento operário brasileiro, foi guardado pelo Partido
Comunista. O maior interesse de Astrojildo era a literatura, e ele
foi o “adolescente de 16 ou 18 anos” que Euclides da Cunha viu
chegar à casa de Machado de Assis na noite em que o “Bruxo”
agonizava. Beijou-lhe a mão e foi-se embora.
Em 1971, a direção do partido temeu pela segurança do acervo
e pediu à professora Marly Vianna que conseguisse um novo abrigo,
em São Paulo. Os caixotes foram para um pequeno apartamento.
Estava tudo bem até que, em março de 1974, a ditadura resolveu cair em cima do Partidão. Favorecidos pelas regras de segurança frouxas dos comunistas, em poucos meses capturaram
quase toda a sua direção, matando 12 pessoas. Num lance, José
Salles, o marido de Marly, com outros dois capas-pretas a bordo
de sua Variant, viu que estava sendo seguido. Desvencilhou-se,
mas restava um problema: o carro havia sido comprado numa
oficina mecânica próxima ao apartamento onde estava o arquivo.
Em agosto, “fiscais do Detran” chegaram ao apartamento. Era
a polícia. (A essa altura mais três dirigentes do PCB haviam desaparecido, para nunca mais serem vistos. As casas de outros dois
haviam sido visitadas por estranhos.) Avisada, em três dias Marly
transferiu o arquivo, e, quando a polícia voltou, o apartamento
estava limpo. Vinte caixas com o acervo político foram para o Rio
e ficaram sob a guarda de Zuleide Faria de Mello.
198
Cinco anos depois da chegada das caixas ao Rio, Dora Henrique da Costa, que vivia na França, veio ao Brasil para cuidar da
viagem da papelada para a Itália, onde ela seria preservada na
Fundação Giangiacomo Feltrinelli, em Milão. Os baús viajaram
de navio e o acervo só voltou ao Brasil em 1992.
Hoje, o Arquivo Astrojildo Pereira está bem guardado e acessível, na Universidade Estadual Paulista.
Dora e o resgate do secretário Giocondo
Antes de embarcar os baús de Astrojildo Pereira, Dora Henrique
da Costa participou de um resgate bem mais arriscado. Em 1976, a
“tigrada” já havia decapitado o Partido Comunista, mas não conseguira pegar seu secretário-geral, o baiano Giocondo Dias. Dois anos
antes, quando sua casa foi visitada por “ladrões”, ele sumiu de todos,
tanto da polícia como do PCB, perigosamente infiltrado.
Dora vivia na França e lá, com Marly e José Salles, montou-se
um plano para tirar Giocondo do Brasil. Onde ele estava? Não
sabiam. Dora chegou a uma militante que trabalhava no consultório da psicanalista Helena Besserman Viana (a mãe do
Bussunda). O tiro foi certeiro. Giocondo deveria ir a um ponto,
sem nada nas mãos. Dora passou de carro, abriu a porta e ele
entrou. Com um passaporte argentino falso, atravessou a fronteira, e, de Buenos Aires, tomou um avião para Genebra, onde
Dora o esperava (a história é bem mais complicada, mas está
contada no livro). Giocondo voltou ao Brasil com a anistia de 1979
e morreu em 1987, aos 73 anos. Dora, Marly e Zuleide estão aí e
contaram suas histórias.
Sobre a obra: Luta e memória. A preservação da memória
histórica do Brasil e o resgate de pessoas e de documentos das
garras da ditadura, de Maria Ciavatta (coord.). Rio de Janeiro:
Revan, 2015. 248p.
A história de três mulheres valentes
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Distribuição
FUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRA
Tel.: (61) 3224-2269
Fax: (61) 3226-9756
[email protected]
www.fundacaoastrojildo.org.br

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