1 Tudo começou por conta da gaivota que pousou

Transcrição

1 Tudo começou por conta da gaivota que pousou
O HUNGARO QUE
SE FOI SEM
AVISAR
Novas aventuras de Bebéi e os Pelagatos na
Cidade Antiga de Santa Clara Frente ao Mar
Marcelo Antinori
1 2 1
Tudo começou por conta da gaivota que
pousou no terraço de Bebéi
Do outro lado da praça, Tenente Pirilo jogava dominó na
Taverna Asturiana, sinal de que tudo estava absolutamente
tranquilo na cidade. Verdade que a palavra tranquilo tinha ali
um significado limitado pois em Santa Clara noites serenas
rapidamente se transformavam em vésperas de grandes
tempestades. Mesmo assim todos aproveitavam e a única que
reclamava era Grená; com tudo tão calmo, a vendedora de
bilhetes de loteria andava sem muitas novidades para contar.
Em parceria com o asturiano dono do restaurante, Tenente Pirilo
enfrentava a dupla campeã da cidade: Moses e Habib. Os dois, o
judeu e o libanês, tinham lojas de roupas na Avenida Central,
uma em frente a outra. Passavam o dia inteiro brigando por
clientes, mas quando sentavam para o dominó, não tinham
concorrência. De tanto competir na rua, até parece que cada um
tinha aprendido a ler o pensamento do outro.
Segundo Pirilo, com um pouco de despeito, os dois não
ganhavam pela qualidade do dominó que jogavam e sim pelas
piadas que contavam para distrair os adversários. Para cada uma
que Moses contava de um patrício judeu, Habib devolvia com
uma de seus compatriotas árabes. E a verdade é que Pirilo não
tinha direito de reclamar pois quando os dois se calavam, seu
parceiro, que jurava nunca ter escutado piadas de asturianos,
rapidinho aparecia com mais uma do português.
Naquele dia o tenente estava com sorte e os dois tinham ate
conseguido ganhar uma das partidas. O barulho das gargalhadas,
3 dos gritos e das pancadas que os quatro davam com as pedras na
mesa, se escutava do outro lado da praça da Gabriela.
Ali, no começo da ladeira que levava ate a Igreja das Mercedes,
Bebéi, o arquivista da embaixada francesa, aproveitava a calma
daquela tarde e, com movimentos sóbrios, abria a porta do
senhorial casarão onde tinha seu apartamento e saia com seu
cachorro aproveitando a brisa que chegava da baia e refrescava a
cidade.
Tudo caminhava bem em sua vida. A embaixadora sempre
elogiava seu trabalho. Os mais invejosos diziam que era apenas
pelos pasteizinhos fritos que ele comprava de Laís e distribuía
entre os colegas no meio da manha, mas a razão, era pouco
relevante. O importante era que a embaixadora estava contente e
foi por conta disso que depois de entregar a pasta com todos os
documentos solicitados, ele pediu para sair mais cedo. Ainda
que tudo estivesse calmo, havia algo que lhe preocupava;
durante a noite uma gaivota ferida pousou no terraço de seu
apartamento e ele não sabia o que fazer.
Foi seu cachorro quem primeiro percebeu a presença da nova
hospede. Parecia ter um ferimento na asa que a impedia de voar.
Estava como que paralisada cercada pela balaustrada do
pequeno terraço frente a sala. Nem a cabeça ela mexia.
Permanecia completamente imóvel, com o olhar fixo no
horizonte do mar.
Imagino que não deve ser fácil visualizar o arquivista já de uma
certa idade e um pouco barrigudo ao lado do cachorro olhando
curioso a gaivota pela porta de vidro do terraço. E ainda mais se
você não conhece nenhum dos dois, não conhece Santa Clara e
nunca leu nenhuma das aventuras de Bebéi e os pelagatos. Mas
não se preocupe, que posso lhe ajudar.
Começo pela cidade: Santa Clara Frente ao Mar e um desses
lugares onde por magia ou esquecimento a cidade ainda mantem
a mesma arquitetura dos tempos coloniais. Uma pequena cidade
que sobreviveu independente, encostada na moderna cidade
capital. É lá que esta a antiga Catedral, o Teatro Colonial e os
4 grandes casarões que em outros tempos reafirmaram a grandeza
de todo o pais. A grande maioria das antigas construções
históricas foram reabilitadas e, o que dava uma dignidade
especial ao lugar, é que não havia ali uma construção sequer que
fosse moderna.
As pessoas que viviam em Santa Clara ainda se
cumprimentavam nas esquinas, tomavam sorvete na praça,
compravam pipoca no carrinho, comiam pastel frito na calçada e
muitas vezes ainda gritavam da rua para passar recados a janela
aberta de um segundo andar qualquer. Nas praças as crianças
jogavam bola e os aposentados comentavam as noticias dos
jornais cercados por cachorros e pombas enquanto esperavam os
amigos para o carteado ou o dominó.
Bebéi vivia no terceiro andar do casarão amarelo construído
séculos atrás por um dos fundadores da republica e que foi
reabilitado e dividido em apartamentos. O seu ficava bem na
esquina e tinha dois pequenos terraços, um no quarto e outro na
sala. Deles ele podia ver o ancoradouro e a baia sempre cheia de
gaivotas acompanhando a chegada dos barcos de pesca e a
esquerda a Praça da Gabriela, com a fonte de Ilona, o
supermercado e a Taverna Asturiana ao lado do luxuoso hotel
dos espanhóis. No fim da praça ele também podia observar a
entrada da Rua das Francesas com seus pecados e suas mulheres
atentas atraindo homens que se faziam de distraídos. Mas isso
tudo foi antes da chegada da gaivota pois desde que ela se
instalou no terraço tudo mais que se via dali passou a ser
completamente irrelevante.
Bebéi trabalhou toda sua vida no Ministério de Relações
Exteriores em Paris e ainda que um pouco lento nos
pensamentos, sempre foi um excelente arquivista. “Guardando
o que não se pode perder e sempre encontrando o que parecia
perdido,” como ele orgulhosamente explicava. Em um dia de
muito frio quando já estava quase por se aposentar, ele decidiu
arriscar uma nova aventura e se candidatou a uma transferência
para a embaixada de Santa Clara em pleno mar do Caribe onde
5 ele imaginava, ainda viviam os piratas com quem desde criança
sempre tinha sonhado.
Desde sempre ele foi gordinho e careca. Protegia a cabeça do sol
com um chapéu castanho que junto com a gravata curta e o terno
caqui já um pouco gasto, compunham sua simpática figura que
todos estavam acostumados a ver pelo bairro. Sempre
caminhando tranquilo, acompanhado pelo seu cachorro e
cumprimentando a todos com quem cruzava com um discreto
saudar com seu chapéu.
Seu cachorro, este sim era todo um mistério. O único que se
sabia ao certo é que estava com o Condor naquele dia em que
ele morreu ao lado das ruinas do convento dos dominicanos.
Pelo que diziam, nasceu do outro lado do mundo, na Nova
Zelândia, e segundo insistia Henry Moriarty o hippie sessentão
da confraria dos pelagatos, o cachorro era a reencarnação de um
monge zen budista que ele chegou a conhecer em um mosteiro
de Kyoto no Japão.
Se era monge ou não, ninguém sabia ao certo mas o cachorro
era conhecido por todos. Com segurança é possível dizer que se
fosse gente todos ali lhe cumprimentariam com respeito ao vê-lo
passar com seu olhar meigo, algumas vezes ao lado de Bebéi e
outras correndo livremente, acompanhado de sua amiga de todos
os dias, a cadela magrinha da Passarinho.
Acho que com estas explicações já podemos regressar ao terraço
onde a gaivota seguia imóvel e Bebéi, pelo vidro da porta,
observava preocupado. Ter uma gaivota no terraço não lhe
incomodava. Tanto ele quanto o cachorro estavam contentes
com a nova hospede. O problema era como alimentá-la.
Olhar não resolvia o problema e foi por isso que ele decidiu sair
em busca de alguém que lhe pudesse ajudar. Desceu as escadas,
abriu a porta que dava para rua, e naquele exato momento em
que os quatro jogavam dominó e gargalhavam na taverna, ele
saiu sobriamente com seu cachorro para passear.
6 Ao pisar na calçada o primeiro que escutou foi a musica do
realejo. Era o filho da Passarinho, tão louco como a mãe, que
passava por ali com seu triciclo colorido vendendo sorvetes. Ele
pedalava sorrindo, vestido e pintado de palhaço e atrás, apoiado
em suas costas, o macaquinho vestido de Napoleão rodava a
manivela do realejo, espalhando aquela musica que enchia a rua
de alegria.
Desde que aquele magico misterioso andou por Santa Clara que
o filho da Passarinho tinha aprendido alguns truques e ao ver o
amigo a porta do casarão, parou de pedalar e desceu do triciclo.
Fez então uma reverencia respeitosa, se aproximou, e com
algumas palavras magicas tirou um pequeno ramalhete de flores
do peito do cachorro que olhou assustado e entregou como um
presente a Bebéi. Em seguida, como se fosse uma criança feliz,
sorriu, e sem dizer palavra montou outra vez no triciclo e se foi
subindo a ladeira com suas pedaladas e sua musica em direção a
Igreja das Mercedes. Atrás dele foi Bebéi com a correia do
cachorro e o ramalhete de flores na mão, pensando que a musica
do realejo combinava bem com o colorido dos casarões
coloniais de Santa Clara.
Frente a igreja Bebéi parou para cumprimentar a velha Grená
que protegida pelo guarda sol amarelo vendia seus bilhetes. Do
outro lado da rua, ali na escadaria da igreja, Robespierre outro
dos pelagatos da confraria, gritava com um grupo de turistas
finlandesas que por sorte não entendiam palavra do que ele
dizia.
Bebéi permaneceu por alguns minutos escutando os insultos e
observando as expressões de espanto e incompreensão no rosto
das turistas, mas como aquilo tudo era una cena tão corriqueira
por ali, ele preferiu caminhar ate a barbearia de Rasta Bong
onde Jordi cortava seu o cabelo para dar uma boa impressão na
entrevista que faria ao dia seguinte na prefeitura.
Jordi tinha concluído os exames do concurso para professor da
escola secundaria e o único que lhe faltava era a entrevista.
Como a meses não cortava o cabelo, decidiu passar pela
7 barbearia e foi ele quem explicou ainda sentado na cadeira de
barbeiro, como alimentar a gaivota. E como tinha o resto da
tarde livre aproveitou para acompanhar Bebéi ao supermercado
comprar as latas de sardinha.
O jovem Jordi estava feliz com a perspectiva de ser professor.
Certamente que dar aula na secundaria não era o sonho da sua
vida, mas pelo menos era melhor que servir as mesas do Café de
Ilona. Ele estava seguro que iria passar no concurso. Sempre foi
um bom estudante e a entrevista não lhe preocupava, assim
como também não lhe preocupava a fome da gaivota. O que
confundia sua cabeça naquela tarde e criava toda aquela
ansiedade era a saudade de Cristina. Ela tinha viajado alguns
meses antes a Boston com uma bolsa de estudos oferecida pelo
prefeito e quanto mais se aproximava o dia do seu regresso mais
o peito de Jordi parecia apertar.
Para ele, viver sem Cristina era algo bem estranho. Os dois
sempre estiveram juntos. Moravam na mesma rua, estudaram na
mesma escola e quase sempre na mesma sala de aulas desde os
cinco anos de idade. Apenas se separaram na universidade; ele
foi estudar historia e ela psicologia. E mesmo estudando em
cursos diferentes os dois continuaram passando as tardes juntos
pois tinham um sonho em comum; queriam mudar o mundo.
Quando Cristina estava ao seu lado tudo era fácil. Sua cabeça
produzia mil ideias mas elas eram tantas que as vezes Jordi até
se perdia. Era Cristina quem conseguia aterrissar e transformar
seus sonhos em realidade. Por isso ele não fazia nada sem antes
perguntar a ela, mas como dar de comer a uma gaivota não
parecia ser um problema tão transcendental ele decidiu
acompanhar Bebéi.
– Afinal, que de mal pode passar quando alguém dá de comer a
uma gaivota no terraço de um apartamento?
8 2
O anel saiu voando entre teias de aranha
de um antigo mistério.
Os dois subiram as escadas do apartamento praticamente sem
conversar. Era natural que estivessem preocupados; nenhum dos
dois, nunca antes tinha dado de comer a uma gaivota. Mas a
verdade é que dar de comer foi até mais simples do que
imaginavam, o complicado foi o que veio depois.
Quando abriram a porta do terraço, o primeiro que se atreveu a
sair foi o cachorro que com movimentos cautelosos se
aproximou do pássaro ferido. Ela não se moveu, talvez por
perceber que era pouco o que podia fazer em sua defesa. No
inicio o cachorro parecia desconfiado, esperou, cheirou uma
vez, cheirou outra e só então, mais seguro, sentou ao seu lado
com os olhos no mar como que tentando entender o que de tão
importante ela observava dali. Foram comportamentos como
este que fizeram Bebéi acreditar que o cachorro era a
reencarnação de um monge budista e foi por isto também que
ele propôs a Jordi deixar aos dois sozinhos.
– Talvez entre animais é mais fácil que se entendam –
comentou.
Esperaram e alguns minutos depois abriram lentamente a porta e
colocaram as sardinhas ao lado da gaivota e o pote com comida
ao lado do cachorro. O cachorro rapidamente comeu sua comida
e, respeitoso, nem tocou nas sardinhas da gaivota. Ela de inicio
permaneceu imóvel e depois demonstrando una certa hesitação
bicou a primeira sardinha. Comeu todas e ao terminar voltou seu
olhar outra vez para o mar enquanto o cachorro satisfeito seguia
9 deitado ao seu lado. Bebéi e Jordi sorriam detrás do vidro sem
muito entender, mas pelo menos a gaivota estava alimentada.
O cachorro e a gaivota permaneceram ali em silencio e a calma
era tanta que Jordi decidiu aproveitar para sair ao terraço. Era a
primeira vez que subia no apartamento de Bebéi e dali ele podia
ter uma vista de toda a baia, sentir melhor a brisa e pensar em
Cristina.
Naquela tarde quase não haviam nuvens no céu. La do terraço
ele podia ver a mesa do restaurante onde os quatro continuavam
jogando dominó e lembrou das serenatas que fez com ela
naquela praça. E enquanto recordava, olhava com carinho o anel
que ela lhe entregou antes de partir.
Jordi sabia que aquele anel era importante e deixa-lo com ele foi
a forma que ela escolheu para dizer que ainda longe, seus
pensamentos seguiriam com ele. Curioso, pensava, entre os dois
sempre foi ela quem tomou a iniciativa. Os dois já haviam
conversado de praticamente tudo mas nunca tinham conversado
sobre os dois. Eram os melhores amigos e isto era tão natural em
suas vidas como comer e dormir, mas antes de partir ela lhe
entregou o anel. E isto de certa forma mudava tudo.
Ele conhecia bem a historia. A mãe de Cristina trabalhou na Rua
das Francesas e seu pai foi um dos tantos marinheiros que por
ali chegaram e com ela passaram a noite.
– Mas teu pai foi especial –era o que ela explicava– percebi isso
desde o primeiro momento.
Se isso era verdade ou mentira pouco importava, mas aquela era
a historia que Cristina conhecia e que ela lhe recordou antes de
viajar.
– Não fui eu que me aproximei – era o que a mãe contava com
orgulho– Fomos ao hotel, passamos a noite e nenhum dos dois
quis sair mais daquele quarto. Ficamos ali ate que ele regressou
ao navio. Nunca entendi suas palavras. O único que sei é que
seu nome era Mikhalis, que ele era da ilha de Chipre e que me
tocava como nunca alguém me havia tocado. E sei também que
10 no cais do porto, antes de entrar no navio e partir, ele tirou o
anel do dedo, me entregou e se foi.
Jordi olhava as gaivotas voando, lembrando que aquela foi a
única vez em que a mãe de Cristina viu a seu pai. Talvez ele
nunca regressou, ou se regressou não conseguiu encontra-la,
pois logo que ficou gravida ela deixou a Rua das Francesas e foi
trabalhar como recepcionista e a única recordação que guardava
daquele encontro era o anel que Cristina lhe entregou antes de
partir.
Era por isso que ele olhava o anel e até o tirou do dedo para
poder acaricia-lo melhor na palma da mão. Foi naquele
momento, em que acompanhava distraído o movimento dos
barcos entrando e saindo do ancoradouro, que a gaivota
repentinamente saltou abrindo bruscamente suas asas como se
quisesse voar outra vez. Voar ela não conseguiu mas conseguiu
assustar o cachorro que ladrou e assustar a Jordi que deixou o
anel sair voando pelo ar.
Sua primeira reação foi quase um desespero. Quem sabe o anel
não tinha caído na rua? Lá ele provavelmente estaria perdido
para sempre. Será que caiu no terraço do apartamento de baixo?
E Jordi se dependurou na grade e ate teve a impressão de que
podia vê-lo dali.
Com o nervoso as ideias se atropelaram na sua cabeça. Qualquer
coisa podia acontecer menos perder o anel. Gritou por Bebéi e
contou do susto da gaivota e do salto do anel:
– Temos de entrar no apartamento e olhar no terraço –e seguia
repetindo– O anel esta ali, tenho certeza.
Bebéi procurou acalma-lo e explicou que aquele apartamento
sempre esteve fechado e que ninguém vivia ali. Mas a ansiedade
era tão grande que os dois decidiram descer e pedir a chave ao
zelador.
– Eu nunca tive esta chave –foi a resposta inesperada– Desde
que comecei a trabalhar, dez anos atrás, que ninguém vive ali. O
apartamento esta fechado. Não querem alugar e nem mesmo
11 vender. Sei, pelo que me explicaram, que um escritório de
advogados é quem paga as contas –e até comentou– Nunca
entrei ali e não tenho a menor ideia de quem sejam os donos.
Bebéi percebeu que tinha de fazer alguma coisa. Olhou para
Jordi que seguia atônito, para o zelador que seguia sem saber o
que dizer e ate olhou para o cachorro que no pé da escada
também lhe encarava confuso. Pensou o pouco que conseguiu
pensar, olhou para Jordi e disparou:
– Venha comigo que sei o que podemos fazer.
Regressaram ao apartamento e o primeiro que fez o cachorro foi
verificar se a gaivota continuava no terraço. Foi e voltou com
uma expressão tranquila, sinal de que tudo estava bem. Jordi
parecia estar um pouco mais relaxado e Bebéi explicou seu
plano.
Começou falando em voz baixa, como se aquilo fosse um
segredo. E falava com seu português aprendido nas aulas que
teve em Paris com a Senhora Pereira que era de Coimbra e
falava como falam os de lá:
– Gente que vive sozinho quase sempre tem uma chave
escondida fora do apartamento. Senão como podemos entrar se
um dia perdemos a que levamos no bolso – e aproveitou para
comentar– Eu tenho a minha e se quiser posso lhe contar onde a
tenho escondida
Bebéi seguiu explicando seu plano e Jordi apenas escutava sem
fazer perguntas.
– Faz um bom tempo percebi que sempre que descíamos as
escadas o cachorro parava para cheirar o rodapé no piso de
abaixo. E sempre no mesmo lugar, bem ao lado da porta do
apartamento. Por curiosidade lhe confesso que um dia,
discretamente, dei uma olhada e percebi que ali o rodapé estava
solto e que por detrás, estava escondida uma chave. Nunca
experimentei, mas acho que aquela chave nos pode ajudar a
abrir a porta do apartamento.
12 Jordi se animou e quis descer mas Bebéi que já se havia metido
em problemas por entrar em apartamentos, preferiu esperar e
explicou.
– Importante que saibas que isto não é legal. Não temos
autorização e tampouco sabemos quem são os donos. Mas isto
agora pouco importa. Vamos fazê-lo pois queremos muito
recuperar o anel de Cristina – e depois de uma pausa e ai já com
uma expressão travessa no rosto, continuou– Me parece,
entretanto, que é melhor que façamos de noite para que ninguém
nos veja –e quase que sussurrando completou– e depois não
contaremos a ninguém, verdade?
Despois de um ano vivendo nos trópicos Bebéi já havia
entendido que nem tudo ali era branco e preto como os rígidos
princípios morais que aprendeu com seu tio muçulmano.
Esperaram a noite e desceram deixando o cachorro cuidando da
gaivota. Atrás do rodapé que estava solto, encontraram a chave e
confirmando a suspeita de Bebéi, a chave abria a porta do
apartamento.
Na entrada, ainda com a porta aberta e usando uma lanterna que
ele guardava para emergências, os dois tiveram uma surpresa: o
apartamento podia estar fechado a mais de dez anos, mas não
estava vazio, todos os moveis ainda estavam ali.
Entraram e mesmo com pouca luz perceberam que não eram
apenas os moveis. As paredes também estavam cheias de
quadros e na parede da sala de jantar haviam fotos do teto ate o
chão. Olharam a sala de estar e observaram ali uma estante com
livros e algumas pequenas estatuetas que pareciam ser africanas.
Na parede uma enorme coleção de mascaras e sobre a pequena
mesa ao centro da sala, assim como nas pequenas mesas ao lado
do sofá e das duas poltronas, haviam inúmeros objetos. Tudo
coberto por uma grossa camada de pó.
Bebéi se impressionou ao observar a sala de jantar onde
centenas de teias de aranha saiam do candelabro preso ao teto
formando um toldo de circo que cobria a mesa e as seis cadeiras.
13 E ali mesmo na entrada aos seus pés, uma carta que alguém um
dia empurrou por debaixo da porta. Provavelmente muito tempo
atrás pois a carta também estava coberta de pó.
O apartamento tinha uma distribuição diferente, a sala era maior
que a de Bebéi e até tinha um piano. Encostados na parede,
outros instrumentos de sopro, um violão e o que parecia ser a
caixa de um violino. O piano ate tinha uma partitura posta como
se alguém tivesse acabado de tocar. Tudo completamente
coberto de pó e de lúgubres teias de aranha.
A visão era um pouco assustadora e Bebéi estava atônito com o
que via. Jordi, que era quem tinha a lanterna nas mãos não
parecia dar atenção a estes detalhes e apenas caminhava em
direção ao terraço. Entraram no quarto e ali a cama estava feita
com lençóis e travesseiros e na mesa do criado-mudo um abajur
um relógio e alguns objetos. Bebéi ficou parado na porta
olhando espantado para o tapete ao lado da cama onde um par
de chinelos estava na posição exata esperando quem ali se
levantasse.
Jordi foi ate o terraço e apenas depois de abrir a porta e sorrir
com o anel outra vez em suas mãos colocou a luz da lanterna em
Bebéi e entendeu a expressão confusa do seu rosto. O
apartamento não estava vazio. Estava sujo e abandonado mas
tudo estava ali, como se alguém tivesse saído de um momento
ao outro e nunca mais regressado.
Os dois olharam também dentro do banheiro e ali estavam as
toalhas, a escova, a pasta de dentes, tudo.
– Era um homem que vivia aqui –disse Jordi–nada aqui recorda
a presença de uma mulher.
Regressaram a sala e então com mais calma iluminaram cada
uma das mascaras penduradas e foi quando perceberam alguns
instrumentos musicais que pareciam ser africanos no chão,
encostados na parede.
Abriram a porta da cozinha e ali também tudo parecia estar em
seu lugar. Os dois se surpreenderam ao ver que dentro da pia,
14 ainda estava um prato, uma panela e alguns talheres, como se
alguém tivesse saído poucos minutos antes e deixado ali para
lavar depois. Ninguém havia entrado naquele apartamento por
mais de dez anos, mas se não fosse o pó e as sombrias teias de
aranha, era como se alguém ainda vivesse ali e apenas tivesse
acabado de sair.
Difícil compreender o que viam, mas como o que buscavam era
o anel e ele estava outra vez no dedo de Jordi os dois saíram sem
tocar em mais nada. O único que deixaram foram as marcas dos
pés na camada de pó que cobria o tapete e o chão.
15 16 3
O apartamento vazio que estava cheio
era do húngaro que se foi sem avisar
Para Jordi a historia do apartamento podia terminar ali pois o
único que lhe importava era recuperar o anel. Já para Bebéi, a
visão do apartamento vazio com seus moveis e teias de aranha
provocou uma seria duvida:
– Será que o homem que vivia ali foi embora ou será que foi
assassinado como a canadense? E para os que não conhecem a
historia da canadense e não leram as Lembranças do Fim do
Mundo1, lembro que depois de desaparecer de seu apartamento o
único que encontraram da canadense foi o braço que alguns dias
depois, apareceu nadando sozinho frente as ruinas do velho
forte.
Certamente que não era a mesma coisa e era nisto que pensava
Bebéi; a canadense desapareceu e dois dias depois eles já se
deram conta de que alguma coisa estranha havia acontecido com
ela. O que passou com seu vizinho do piso de baixo era
diferente. Fosse quem fosse que vivia ali, tinha desaparecido a
mais de dez anos sem que ninguém tivesse dado pela sua falta.
Bebéi não podia simplesmente ignorar o que tinha visto e voltou
a conversar com o zelador. Não contou que tinha entrado no
apartamento mas perguntou outra vez o que ele sabia. O zelador
repetiu que não sabia nada e se comprometeu a obter o endereço
do escritório de advogados responsável por pagar as contas, o
1 Outra das aventuras de Bebéi e os pelagatos. 2 “O ultimo voo do Condor”, “Lembranças do Fim do mundo” e “O Macaquinho 17 que já era um bom começo. E como queria saber mais sobre a
vida do húngaro Bebéi sabia onde encontrar as respostas; não
havia nada acontecido ou por acontecer em Santa Clara que não
fosse comentado frente ao guarda sol amarelo de Grená, a
vendedora de bilhetes de loteria.
Chegou cauteloso pois não queria levantar suspeitas e sabia que
Grená era muito mais rápida do que ele no pensamento.
Primeiro disfarçou seu interesse e perguntou se ela sabia quem
tinha vivido no apartamento que ele estava alugando. Depois de
escutar com uma expressão interessada, perguntou então se ela
sabia quem tinha vivido no andar de baixo e ela respondeu
enquanto entregava o troco a uma das enfermeiras do centro
medico.
– Ali vivia um estrangeiro, acho que alemão, que dava aula de
musica na escola municipal. Viveu por muito tempo em Santa
Clara e um dia sem que ninguém esperasse, avisou Carmela, que
era diretora da escola, de que não ia mas dar aulas e se foi sem
dizer aonde ia.
A informação ainda era pouca mas Bebéi saiu contente, Carmela
era sua amiga e ela certamente lhe contaria tudo que ele
necessitava saber. Não explicou a Grená o por que da pergunta e
na falta de uma explicação, ela mesmo teve de deduzir a razão:
– Desconfio que Bebéi anda buscando apartamento para
comprar – e como muitas das novidades que contava, talvez não
fosse exatamente a verdade, mas sempre ajudava a puxar
conversa com o primeiro que passava por ali.
Na manhã do dia seguinte depois de arquivar os documentos
deixados no escaninho de entrada e encontrar todos os papeis
requisitados pelos funcionários de embaixada, atividade que
sempre exercia com zelo e perfeição, Bebéi finalmente pode
conversar com Carmela. E aqui talvez seja importante explicar
que quando Carmela se aposentou depois de trabalhar toda sua
vida como professora e depois diretora da escola municipal de
Santa Clara, ela também foi trabalhar na embaixada da França
onde dividia uma pequena sala com Bebéi. Ele cuidando dos
18 arquivos e ela escrevendo com sua caligrafia elegante o nome do
destinatário em toda correspondência enviada pela embaixadora.
E como nem sempre havia muito trabalho os dois tinham muito
tempo para conversar.
– Arpad Corvinus era seu nome e não era alemão e sim húngaro.
Um homem muito educado e atencioso, mas que parecia ser
uma pessoa solitária. Ensinou musica por dez anos na escola.
Era sempre um dos primeiros a chegar e dava suas aulas com
grande dedicação. Era muito respeitado pelos alunos e estou
certa que Jordi e Cristina devem lembrar. Um belo dia, quando o
ano já estava terminando, ele entrou em minha sala e disse que
não ia mas ensinar. Apenas informou e se foi. Nunca mais
tivemos noticias dele.
Não era muito, pensou Bebéi, mas ao menos ele sabia o nome de
Arpad. E aquela tarde quando voltou a encontrar Jordi, feliz
saindo de sua entrevista, repetiu o que Carmela tinha contado.
– Obvio que conheci. Foi meu professor de musica e também de
Cristina. Não sabia que era ele quem vivia ali. Cristina chegou a
fazer parte de uma orquestra que ele montou com as alunas e até
chegaram a se apresentar na prefeitura –e seguiu contando
enquanto os dois caminhavam– Deve ser por isso que ele tinha
todos aqueles instrumentos no seu apartamento.
Jordi então esqueceu do húngaro e começou a contar coisas e
mais coisas de Cristina até que Bebéi depois de ouvir
educadamente por alguns minutos lhe recordou que seu interesse
era conhecer um pouco mais sobre o professor e não sobre sua
namorada.
– Lembro também –continuou Jordi um pouco frustrado– que
Cristina contava que ele sabia tocar vários instrumentos mas que
não podia tocar bem a nenhum deles pois lhe faltavam dois
dedos da mão –e depois de uma pausa para recordar– Lembro
que ela também contava que as vezes quando estavam ensaiando
com a orquestra, ele esquecia o que estava fazendo e ficava
parado olhando os alunos. Mas lembro bem que ela gostava
muito dele.
19 Bebéi continuava intrigado. Como alguém pode ir embora
deixando o apartamento completamente montado? E não era
apenas isso. Como alguém pode desaparecer sem que ninguém
ficasse sabendo? A duvida continuava, será que ele foi embora
ou será que o mataram?
Para estar mais seguro ele preferiu contar o que sabia a Pirilo. O
tenente era seu amigo e certamente não se incomodaria em saber
que ele entrou no apartamento do húngaro sem autorização.
Quem sabe se juntos eles poderiam desvendar mais este novo
mistério?
Tenente Pirilo era o segundo filho da Grená dos bilhetes e
trabalhava, mas não muito, como chefe da segurança da
prefeitura. Sempre foi um professional sério e inteligente mas
tinha fama de ser excessivamente acomodado. Diziam que
dedicava a maior parte de seu dia ao dominó, ao futebol e a
passar as noites na casa da noiva. Importante porem deixar claro
que vagabundo ou não, Pirilo sempre acabou resolvendo os
mistérios e trazendo a paz de volta as ruas de Santa Clara.
Bebéi lhe contou tudo o que sabia e propôs uma visita ao
apartamento, mas o tenente não estava convencido. O
apartamento estava vazio a mais de dez anos e ele mal lembrava
quem era o húngaro, mas Bebéi insistia e insistia muito.
Lembrou que se ninguém tivesse tentado descobrir quem era o
morto desconhecido no dia em que a banda desfilou, eles jamais
teriam descoberto quem era o Condor; lembrou também que se
não fosse o esforço para descobrir por onde andava a canadense,
que eles nunca teriam conseguido evitar a guerra do fim do
mundo entre chineses e americanos; depois continuou
recordando o esforço que eles fizeram para descobrir quem era a
mulher que o magico queria matar2... e neste ponto, Pirilo
decidiu interromper. Era impossível resistir a insistência de
Bebéi e seria muito mais fácil acompanha-lo em uma rápida
2 “O ultimo voo do Condor”, “Lembranças do Fim do mundo” e “O Macaquinho vestido de Napoleão” as três primeiras aventuras de Bebéi e os pelagatos. 20 visita ao apartamento. Uma visita que ao final acabou por não
set tão rápida quanto imaginava.
Entraram com a mesma chave escondida no rodapé e a claridade
fazia com que tudo parecesse ainda mais misterioso. Com a luz
eles podiam ver todos aqueles pequenos objetos espalhados pela
sala do apartamento. Abriram os armários e dentro encontraram
as roupas ainda penduradas. As gavetas, tanto no quarto quanto
na sala também estavam cheias com roupas, objetos e papeis.
Até a cozinha estava completa e também chamou a atenção de
Pirilo a panela, o prato, o garfo e a faca dentro da pia. Tudo era
tão curioso que Pirilo foi se entusiasmando e observando os
detalhes.
Na geladeira e no armário da cozinha ainda haviam alguns
vidros e latas de alimentos destruídas pelas formigas. Pirilo
também percebeu que a chave geral de eletricidade tinha sido
desconectada e que o apartamento, se não fosse a sujeira, estava
pronto para ser habitado. A cama estava feita e as toalhas
estavam no banheiro. Os remédios estavam no armário do
espelho, a escova de dentes, o pente e a tesoura para cortar
unhas, tudo coberto por dez anos de abandono, poeira e teias de
aranha.
As mascaras penduradas na parede, trinta e duas segundo Bebéi,
eram todas africanas. Com a luz do dia pareciam mais belas e
menos assustadoras com seus detalhes coloridos. Os
instrumentos musicais que também pareciam ser africanos ainda
que estivessem cobertos de pó pareciam estar prontos e talvez
afinados para tocar. Os pequenos objetos que decoravam o
apartamento eram quase todos africanos mas na parede a entrada
da cozinha haviam alguns bonecos pendurados que pareciam ser
marionetes asiáticas. Na estante uma coleção de adagas
douradas que recordaram Bebéi a adaga que tinha em seu
apartamento e que foi uma das poucas coisas de seu tio argelino
que ele ainda guardava consigo.
Ainda mais impressionante eram as fotos na parede da sala de
jantar. Certamente mas de cem, algumas com imagens europeias
21 onde se viam edifícios que recordavam a Bebéi os que ele
conhecia em Paris. Outras pareciam ser da África com lagos e
montanhas e em muitas o húngaro aparecia cercado de amigas e
amigos que pareciam ser africanos. Havia uma foto do que
parecia ser a Casba de Argel que tantas vezes seu tio lhe havia
mostrado e também fotos do deserto como aquelas que
encontraram no apartamento da canadense quando ela
desapareceu.
Pirilo e Bebéi saíram do apartamento ainda mais confusos do
que entraram. E o tenente ficou tão curioso com tudo o que viu
que no dia seguinte decidiu fazer uma visita ao escritório de
advogados. O zelador tinha passado o endereço e ele preferiu ir
sem avisar para aproveitar a surpresa.
O escritório parecia ser pequeno e o jovem advogado que lhe
recebeu não parecia ser um professional experimentado.
Explicou que eles eram apenas os representantes locais de um
importante escritório de advogados de Miami e o único que ele
pode fazer foi confirmar que o apartamento pertencia ao
húngaro. Para surpresa de Pirilo, e do advogado, ninguém ali
parecia saber que o húngaro tinha desaparecido.
O advogado também contou que eles seguiam instruções
transmitidas pelo húngaro anos atrás. Cuidavam do pagamento
das despesas e impostos utilizando os recursos de uma conta de
poupança do húngaro que eles também administravam. E
explicou a Pirilo:
– Seguimos estritamente suas instruções e como os juros da
conta de poupança são bem maiores que as despesas do
apartamento, continuamos fazendo a mesma coisa por vários
anos e nunca recebemos uma reclamação.
Obvio, pensou Pirilo, como seguiam recebendo a comissão e o
húngaro tinha desaparecido, administrar seu apartamento era
fácil e um excelente negocio.
– O apartamento não é a única propriedade dele que
administramos –comentou também o advogado e Pirilo apenas
22 anotou; eu interesse naquele momento era entender por onde
andava o húngaro e não o que ele tinha.
O advogado confirmou que o nome do húngaro era Arpad
Corvinus e que ele havia nascido em Budapest em 1926.
Confirmaram também que ele era musico de profissão e
trabalhava como professor na Escola Municipal, mas Pirilo saiu
dali com as mesmas duvidas com que entrou e dois dias depois
recebeu uma visita que lhe deixou ainda mais intrigado. Era um
advogado do escritório de Miami. Um homem mais velho e bem
vestido que pelo que ele mesmo explicou, viajou a Santa Clara
especialmente para conhecê-lo. Perguntou do húngaro, dos seus
herdeiros e até perguntou por Bebéi:
– Agora que sabemos que o Senhor Arpad desapareceu
necessitamos encontrar algum outro membro da família.
As perguntas do advogado até que pareciam normais mas havia
alguma coisa em sua expressão que incomodava a Pirilo. Era
verdade que ele era um pouco preguiçoso, mas tonto ele não era
e no meio daquelas perguntas ele percebeu que advogado estava
escondendo alguma coisa.
– Melhor manter os olhos bem abertos –foi seu comentário
aquela tarde quando encontrou outra vez com Bebéi.
23 24 4
Como tudo vai bem ninguém se importa
com o húngaro que desapareceu
A gaivota ferida no terraço de Bebéi era o grande assunto da
cidade. Do húngaro quase ninguém se lembrava mas da gaivota
todos sabiam. Na calçada frente ao casarão amarelo, turistas se
revezavam para tirar fotografias do pássaro imóvel detrás da
balaustrada.
Todos os dias alguém inventava uma nova piada e até o
português do supermercado, que nunca perdia a oportunidade de
promover seu negocio colocou um anuncio na televisão dizendo
que a gaivota estava ali atenta para garantir que seus preços
eram os melhores da cidade. Instalou também um telescópio na
entrada do supermercado para que todos pudessem ver de perto
a gaivota de Bebéi no seu terraço.
Os mais românticos diziam que a gaivota era uma alma solitária
que estava dali observando a mulher que lhe havia abandonado
para trabalhar na Rua das Francesas. Outros mas brincalhões
replicavam dizendo que era a alma da falecida que apenas estava
esperando que o viúvo tentasse se aproximar de uma mulher
para voar e bicar a arma do crime.
A gaivota ficou tão conhecida que até Grená decidiu sair do seu
guarda sol para ir ao apartamento conhecê-la. O problema foi
que ela tirou uma foto ao lado da gaivota que mostrava a todos,
o que acabou por detonar uma romaria de crianças e não tão
crianças para tirar sua foto dando de comer a gaivota no terraço
de Bebéi.
25 E como ele não sabia dizer não, passava o dia levando e
recebendo gente no seu apartamento. A peregrinação só acabou
quando o medico do centro de saúde desaconselhou as visitas
dizendo que a gaivota poderia transmitir doenças contagiosas e
Tenente Pirilo, para salvar Bebéi do tormento, colocou um
cartaz na porta: Visitas a gaivota estão proibidas por ordem da
prefeitura. A única exceção foi o próprio prefeito que levou seus
principais assessores para uma foto que foi publicada nos
principais jornais da cidade onde ele aparecia agachado no
terraço, colocando uma sardinha no bico da pássaro.
Santa Clara Frente ao Mar vivia um momento como nunca antes
havia vivido. O prefeito continuava roubando como sempre mas
não perdia uma oportunidade de ser simpático com todos que
viviam ali. Tirava fotos com a gaivota; distribuía brinquedos
para as crianças, todos comprados com dinheiro da prefeitura e
que incluíam uma gorda comissão; entregava garrafas de vinho
para os pelagatos, obviamente que escondido de sua esposa;
patrocinava os concertos da banda municipal no coreto da praça
da Catedral onde quase sempre levava uma artista da televisão
para distribuir autógrafos e que depois era honrada com um
jantar. E quando ele tinha sorte, com um final de semana
privado no hotel favorito do prefeito escondido em uma praia da
Republica Dominicana.
Depois que mandou Cristina, a jovem assistente de Pirilo que
teimava em investigar o que não deveria ser investigado estudar
nos Estados Unidos e finalmente tinha construído a fonte da
praça da Gabriela, com barulhinho de agua e tudo, exatamente
como Ilona a dona do Café queria, ele não tinha mais oposição
na cidade. Seguia os conselhos da sua assessora a loura sérvia
que conhecia profundamente Maquiavel e graças a isso era
amado por todos. E como todos estavam felizes, continuava
roubando tudo o que podia roubar. Todos os contratos da
prefeitura sem exceção eram entregues a algum de seus amigos
e todos eram supervisados de perto por seu irmão, que era quem
administrava o caixa dois e as comissões.
26 Santa Clara era uma mina de ouro e não apenas pelos chineses
que chegaram comprando propriedades e colocando ali a sua
embaixada, mas principalmente pelos turistas. Desde que o
prefeito lançou seu plano de desenvolvimento turístico que os
negócios da cidade cresciam.
Com as obras da prefeitura, todas sobre-faturadas, a cidade
estava mais cuidada e com isso mais turistas chegavam para
visita-la. E quanto mais eram os turistas, mais os de Santa Clara
ganhavam dinheiro e melhoravam os seus negócios. O prefeito
reabilitou as ruas trocando as pedras do calçamento e refez as
calçadas rebaixando todas as esquinas para facilitar a vida aos
descapacitados o que lhe valeu ate uma menção especial dada
pela revista da associação nacional de aposentados dos Estados
Unidos. Renegociou o contrato com o italiano, sócio e amigo
que recolhia o lixo, e assinou um novo contrato multimilionário
que garantiu que a cidade ficasse mais limpa e que ele e o
italiano ficassem ainda mais ricos. Os casarões, as igrejas e
todos os edifícios foram pintados de novo graças a tinta que a
prefeitura comprou e revendeu aos que queriam pintar suas
casas com um grosso subsidio. O que deixou a cidade brilhando
e a sociedade que ele tinha com seu outro sócio, o romeno, cheia
de dinheiro com a comissão que levaram na compra da tinta.
– Uma aliança perfeita entre setor publico e setor privado –como
explicava o prefeito a todos os jornalistas.
A Cooperativa Bobo Ashanti criada por Rasta Bong o filho mais
velho de Grená que levava turistas a passear pela baia já contava
com mais de vinte escunas e empregava quase todos os
rastafáris da cidade. O novo supermercado do português, que
segundo Grená parecia coisa de filme americano, estava sempre
cheio e o restaurante mexicano da Juanita tinha sempre uma fila
de turistas na porta, surpreendendo a todos que pensavam que
ela não resistiria a concorrência do McDonalds que abriu bem
no vizinho.
Com os turistas chegaram novos hotéis e com os novos hotéis
chegaram os novos turistas. Os espanhóis restauraram alguns
27 casarões abandonados que se transformaram em pousadas de
luxo e o único casarão que permanecia abandonado era aquele
onde vivia a velha que inventava historias e os quatro irmãos
ciganos. Segundo o que diziam, aquele casarão, que sempre foi
um dos mistérios da cidade, estava protegido por algum feitiço e
uma herança conflitiva. Mas tudo o mais havia sido restaurado e
estava brilhando. E o que dava a aquilo tudo um toque especial é
que em Santa Clara ainda viviam os que sempre viveram por ali.
Foram poucas as famílias que tiveram de sair com os novos
investimentos. Os vizinhos de sempre continuavam caminhando
pelas calçadas. Continuavam comprando suas coisas nas
mesmas lojinhas, tomando café na mesma padaria e passando
todos os dias frente ao guarda sol amarelo de Grená para saber
as ultimas novidades e perguntar como andava a gaivota de
Bebéi.
O curioso, é que era exatamente essa combinação de beleza e
historia com um ambiente de pequena cidade que atraia gente de
todos os lugares do mundo. Santa Clara Frente ao Mar não era
um cenário montado para impressionar visitantes, era una cidade
de verdade, que estava tão feliz quanto a sua gente. Mas tudo
isso foi antes de começarem os rumores de uma nova Santa
Clara, e disto trataremos mais tarde pois enquanto nos
distraiamos comentando a cidade, Bebéi seguia confuso e a
gaivota já não era o seu único problema.
– Como é possível que alguém desapareça de uma hora para a
outra sem que ninguém possa dizer onde ele foi?
Em Paris foram poucos os que perceberam quando ele partiu,
lembrava Bebéi, talvez os colegas de trabalho no ministério,
mas apenas eles. Quando vivia em Malakoff ele tomava o metro
todos os dias para trabalhar, fazia suas compras no grande
supermercado, assistia ao futebol, as noticias e os filmes pela
televisão do apartamento e quase nunca falava com ninguém
Provavelmente nenhum dos vizinhos notou quando ele partiu.
Em Santa Clara era diferente. Ali todos o conheciam e ele
sempre cumprimentava aos amigos quando caminhava pelas
ruas. Será que o húngaro do apartamento debaixo também
28 cumprimentava as pessoas na rua? Esse pensamento lhe
incomodava, rodava e voltava como uma obsessão. Será que
alguém sentiria sua falta se um dia ele desaparecesse? Bebéi
recordava o dia em que foi sequestrado pelos carteis nos tempos
da morte do Condor. Naquele dia foi seu cachorro quem saiu
pelas ruas chamando a atenção de todos. Será que que as
pessoas lhe conheciam apenas pelo cachorro? Será que o
húngaro tinha um cachorro como o seu?
Tenente Pirilo que junto com Bebéi jantava o risoto de polvo a
provençal preparado pelas mãos benditas de Dona Cécy, a
cozinheira do Café de Ilona, também estava intrigado.
– Será que ele foi assassinado ou será que se matou? –e
continuava comentando enquanto saboreava com prazer cada
garfada que levava a boca– Acreditar que ele simplesmente
fechou o apartamento e desapareceu não faz o menor sentido. E
tem mais. Ninguém deixa as roupas no armário e os pratos na
pia quando vai viajar. Alguém apenas sai assim se vai voltar
logo – e ai lembrou – Mas antes de sair ele desligou a chave da
eletricidade, sinal de que sabia que ia demorar. Mas para onde
ele foi?
Bebéi escutava e sentia que precisava saber mais sobre a vida do
húngaro. Além de Pirilo ninguém parecia se importar com ele,
mas para Bebéi o húngaro era importante... e muito. Era seu
vizinho e sempre viveu ali sozinho como ele.
Aquela noite ele não conseguiu dormir. A vontade de fazer
alguma coisa agoniava seu peito e foi enquanto andava pelas
ruas com o cachorro que ele recordou as palavras do tio:
– São estes desejos fortes e incompreensíveis que apertam o
estomago, que dão cor a nossas vidas. Tudo mais são
ornamentos que colocamos apenas para impressionar aos outros.
Não lhe parecia correto que todos continuassem ignorando seu
vizinho e pensando nisso ele regressou ao apartamento, deixou o
cachorro no terraço cuidando da gaivota e com a lanterna na
mão voltou outra vez ao apartamento do húngaro. Ele ia olhar
29 cada papel, cada objeto e cada foto que estava ali ate entender
por que Arpad se foi sem avisar e tinha que começar rápido pois
na manhã do dia seguinte ele tinha de ajudar Frei Bernardo a
abrir sua pizzaria.
30 5
Enquanto o frade vende pizzas os ladroes
esvaziam o apartamento
Frei Bernardo já não era mais frade e estava abrindo uma
pizzaria. E se você não conhece a historia do Macaquinho
vestido de Napoleão, lhe conto que Frei Bernardo era um
homem profundamente religioso que se dedicava com paixão ao
trabalho que fazia na igreja, mas que depois de conhecer Gigi, a
amiga de Ilona, teve sua predileção pelo celibato seriamente
afetada. E como foram muitos na cidade que se solidarizaram
com ele quando o arcebispo lhe expulsou da igreja, era grande o
apoio que vinha recebendo para abrir sua pizzaria.
Frei Bernardo era toscano e aprendeu a fazer pizza com seu pai
antes mesmo de aprender a rezar, mas dai a abrir uma pizzaria
em Santa Clara era um longo e árduo caminho. Ling o chinês
lhe alugou um imóvel que antes utilizava como deposito e que
com pouco dinheiro podia ser transformado em um restaurante.
Ilona, que insistia em que faltava uma pizzaria na cidade, ajudou
com a compra do forno e de todo o material para a cozinha.
Junto com Rasta Bong, o filho mais velho de Grená, ela
acompanhou Frei Bernardo ao banco e ajudou a conseguir o
empréstimo assinando como fiadora. Kay, a filha de Ling, que
fazia a contabilidade de quase todos os negócios de Santa Clara,
ajudou com a papelada e pediu a Bebéi que apoiasse o frade que
nunca em sua vida tinha lidado com tanto papel. Rasta Bong,
quem já tinha aberto inúmeros negócios na cidade também
indicou em detalhes tudo o que ele tinha de fazer e a quem
procurar. Mas tudo isto não foi suficiente, Frei Bernardo tinha
uma forma muito especial de fazer as coisas e foi esta a razão da
31 reunião do dia seguinte. Os amigos estavam ali, menos Bebéi
que não apareceu.
– Não aceito e não vou aceitar pagar suborno a ninguém – e
falava com tanta veemência que misturava algumas palavras em
italiano que não pareciam apropriadas na boca de um frade,
ainda que fosse um ex-frade.
– Não vou pagar a comissão aos inspetores da secretaria de
saúde pois eles sabem que minha câmera refrigerada é nova e
esta funcionando de acordo com as mais modernas normas. E
nem a este bando de cornutti da secretaria de trabalho que
sabem que todos os empregados aqui, são registrados e não me
dão a autorização para funcionar–e seguia repetindo com raiva–
Também não vou pagar a questi mafiosi dos bombeiros que
revisaram a cozinha, sabem que tudo esta em ordem e se
recusam a dar a licença... e nem a estes filli di putani da
prefeitura que ainda não me deram a licença para abrir a pizzaria
apesar de que todas as obras já estão terminadas... nem a estes
sporcci da secretaria de finanças que ainda não liberaram os
documentos que Kay lhes entregou a mais de dois meses... e
sabem que mais, vaffanculo tutti questi scemi do Patrimônio
Histórico que sabem muito bem que não mudei absolutamente
nada na fachada mas continuam pedindo uma comissão para
liberar a construção.
Rasta, Kay, Ilona e até Gigi tentavam explicar que sem pagar
estas “comissões especiais” talvez tomariam meses ou mesmo
anos para lograr obter as licenças necessárias, mas o frade
insistia em que pagar suborno era tão criminoso quanto aceitalo. E o que devia ser uma reunião de negócios acabou por se
transformar em uma reunião de princípios onde as paixões
ensurdeceram a Rasta Bong e Frei Bernardo que já estavam aos
gritos quando Ilona, que manteve sua serenidade, percebeu que
não era muito o que conseguiriam avançar naquela manhã
– Por hoje chega. Melhor continuar amanhã e Rasta, por favor,
passe pela casa de Bebéi para ver o que houve. Não é normal
que ele esqueça um compromisso. E por favor que esta seja a
32 ultima reunião que fazemos pela manhã. Vocês sabem que tenho
dificuldades em pensar com tanto sol.
Rasta saiu e o frade foi com ele. Os dois continuaram discutindo
enquanto caminhavam pelas ruas. Rasta era absolutamente
pragmático. A noite, quando fumava seus cigarrinhos tudo o que
lhe importava era a poesia da musica, das cores e dos
movimentos, mas durante o dia ele não fumava e fazia tudo o
que devia fazer para manter os pequenos negócios que tinha
criado com os amigos, que iam desde a cooperativa com os
rastafáris, ate os taxis com Miguel seu amigo de infância,
passando pela barbearia que herdou de seu pai e a orquestra dos
ciganos.
– Com esta mania de querer entender e discutir tudo, você não
vai conseguir nada –insistia Rasta com seu amigo Frade.
Foi apenas quando subiam as escadas do casarão que finalmente
pararam de discutir. A porta do apartamento do andar de baixo
estava aberta, o que parecia curioso, mas como nenhum dos dois
conhecia a historia do húngaro, eles continuaram subindo até o
apartamento de Bebéi. Tocaram varias vezes e perceberam pelos
latidos do cachorro que algo estranho estava acontecendo.
Rasta Bong chamou seu irmão Pirilo por telefone e ele
estranhou ainda mais.
– Bebéi nunca sai sem o cachorro. Ele deve estar dentro do
apartamento – e ainda com o telefone na mão, saiu da prefeitura
para encontra-los.
Chegou rapidamente, encontrou com os dois na porta da rua e
quando subiam as escadas, Pirilo percebeu a porta do
apartamento do húngaro aberta e decidiu entrar. Aquilo
decididamente não parecia normal.
A surpresa que teve foi ainda maior do que na primeira visita.
Tudo que ele antes tinha visto nas paredes coberto de pó e teias
de aranha tinha desaparecido e o apartamento estava um caos.
Entrou no quarto e ali a desordem era total. As gavetas estavam
abertas e as roupas, e tudo que antes estava dentro delas, não
33 estava mais ali. Foi só então que ele abriu a porta do banheiro e
encontrou Bebéi amarrado e amordaçado dentro da banheira. E
considerando o que tinha acontecido, ele até que estava bem.
Não estava ferido.
– Desta vez não me quebraram o braço – lembrando o dia em
que ele foi sequestrado pelo bando do El Cuspa.
Depois, já mais tranquilo, sentado no sofá Bebéi contou que
ninguém o tinha agredido. Os bandidos apenas o amarraram
dentro do banheiro para poder fazer o seu trabalho.
– Eram quatro homens mascarados que chegaram quando estava
olhando os armários do quarto.
Ele explicou que tinha ficado ali até de madrugada tentando
descobrir mais coisas sobre o húngaro e quando estava dentro do
quarto, escutou um ruído na sala e viu os quatro.
– Usavam mascaras e luvas e isso foi tudo que pude ver. Depois
me colocaram amarrado na banheira.
O apartamento estava completamente revirado. Até na cozinha
eles tinham entrado e tudo estava jogado no chão, como se
procurassem alguma coisa dentro dos armários.
– Abriram as portas sem arrombar nada –comentou Pirilo–
Provavelmente tinham as chaves.
Um roubo que parecia curioso pois levaram tudo o que
encontraram, roupas, papeis, as fotografias que estavam na
parede, as mascaras e ate as pequenas estatuetas que o húngaro
tinha nas estantes e nas mesinhas da sala. Limparam
completamente as gavetas e ate levaram os instrumentos
musicais. Apenas deixaram o piano.
– E por que alguém rouba fotos penduradas na parede. Que
merda vão fazer com estas fotos? –reclamou Rasta Bong que de
tanta raiva tirou a boina da cabeça e as tranças rastafáris caíram
ate quase tocar o chão.
34 – Eram professionais –respondeu Pirilo começando a organizar
seus pensamentos– Não foi um simples roubo. Pelo que contou
Bebéi eles tinham mascaras e luvas mas estas marcas na poeira
do chão não tem traços de solas de sapatos, o que significa que
eles estavam usando também algum tipo de proteção nos pés
para não deixar pistas. Estavam procurando alguma coisa e
como não tinham tempo para encontrar o que queriam, levaram
tudo pra revisar depois em outro lugar –e comentou consigo
mesmo– Curioso, o apartamento passou dez anos fechado é só
agora, três dias depois que Bebéi descobriu que o apartamento
vazio estava cheio, eles aparecem para roubar.
Pirilo então se virou para Bebéi que estava sentado no sofá
ainda um pouco tonto depois de ter passado tanto tempo
amarrado dentro da banheira:
– Eu lembro que no dia em que estivemos aqui você levou um
diploma que estava na parede– e Bebéi confirmou.
Naquele dia uma folha de papel emoldurada tinha chamado a
atenção dos dois. Eles não sabiam ao certo se era um diploma ou
um convite pois estava em alemão, mas estava dentro de uma
moldura sofisticada e nele aparecia em grandes letras o nome de
Adolf Hitler.
Aquela moldura foi o único que sobrou depois do roubo pois
estava no apartamento de Bebéi que em meio a toda aquela
emoção esqueceu de mencionar que antes da chegada dos
ladrões tinha colocado no bolso o envelope que estava no chão
perto da porta do apartamento.
– Olhe que absurdo. Nem aos ladroes lhes importam os livro –
foi o comentário irônico de Frei Bernardo ao perceber que na
estante da sala, a prateleira com os livros permanecia intacta.
E foi então que Bebéi surpreendeu a todos levantando do sofá
com um enorme sorriso e pedindo para levar os livros do
húngaro para o seu apartamento
– Talvez podemos saber algo mais sobre ele estudando os livros
que leu.
35 Pirilo não conseguia entender… Como era possível que Bebéi
estivesse sorrindo e interessado em livros depois de passar toda
a noite amarrado e amordaçado? De que poderiam servir aqueles
livros?
Alguns estavam em alemão outros em francês e alguns escritos
com umas letras que Pirilo nem sabia o que significava. Entre o
dominó, o futebol e as mulheres nunca lhe sobrava tempo para
ler e ele nem conseguia lembrar o nome daquele livro, que
segundo contava a todos com orgulho, leu duas vezes para fazer
um trabalho para escola.
Bebéi ao contrario, sempre viveu conhecendo bem a
importância de notas, livros, cadernos e papeis. Importantes pelo
que contavam como também pelo que escondiam e o que Pirilo
não sabia é que antes da chegada dos quatro ladrões ele tinha
encontrado uma foto muito interessante guardada dentro de um
dos livros. Uma foto tão especial que ele preferiu não contar a
ninguém antes de estar seguro do que tinha visto.
Pirilo instruiu seus assistentes a revisar em detalhes o
apartamento em busca de pistas e Bebéi regressou ao
apartamento para buscar o cachorro e leva-lo a passear. Eram
muitas os pensamentos que se misturavam em sua cabeça e
apenas quando caminhava ele conseguia pensar. Roubaram tudo
o que o Húngaro tinha deixado ali. Levaram as fotos, as roupas,
as estatuetas e até os cadernos e as partituras de musica.
Esvaziaram todas as gavetas e por sorte não encontraram o mais
importante; os livros. Ele agora tinha tudo que necessitava para
descobrir quem era o húngaro e isso ele não ia contar a
ninguém. Apenas a Irigandi, a menina indígena, pois dela ele
nunca escondia nada.
Para ele o mais importante agora era saber quem era o húngaro,
porque ele tinha partido sem avisar e porque ele guardava
escondido dentro de um livro aquela foto de seu pai quando
vivia na Argélia.
36 6
Si tocou para Hitler, era um nazista.
Que bom que lhe roubaram tudo!
Para evitar maiores confusões é importante explicar aqui quem
era seu pai, o que não é necessariamente uma tarefa fácil pois
nem o próprio Bebéi o conheceu. O único que sabia, pois seu tio
lhe havia contado, era que seu pai era argelino e tinha lutado ao
lado do General de Gaulle com a resistência para expulsar da
França os alemães.
Aparentemente participou de muitas ações importantes e por
isso, ao final da guerra, foi condecorado pelo próprio De Gaulle
e recebeu a cidadania francesa. Depois da guerra conheceu e se
casou com uma jovem francesa cheia de ideias revolucionarias.
Teve com ela um filho e quando Bebéi ainda tinha dois anos seu
pai decidiu que depois de libertar a França dos nazistas ele
deveria regressar ao seu pais para liberta-lo de seus invasores. E
sua mãe foi com ele. O único problema era que os invasores da
Argélia eram os mesmos franceses a quem ele tinha ajudado a
libertar.
Bebéi permaneceu em Paris vivendo com o tio que tinha
excelentes pensamentos mas pouco dinheiro e por isso foi
obrigado a coloca-lo em um orfanato onde ele viveu toda a
infância sempre pensando em seu pai e sua mãe, até dia em que
seu tio lhe contou que os dois tinham sido executados pelo
exercito francês.
Ele apenas conheceu seu pai por fotografias e de sua mãe nem
isso. As poucas fotografias que o tio guardava foram levadas
pela policia no dia em que eles invadiram o apartamento em
37 busca de mais informações sobre seu pai. Foi apenas alguns
anos depois quando os jornais publicaram uma foto dos
revolucionários argelinos que seu tio lhe mostrou quem era seu
pai. Aquela foto era a única imagem que ele tinha dele e era esta
mesma foto que o húngaro guardava dentro de um dos seus
livros.
Bebéi passeou com seu cachorro por todo calçadão a beira mar e
ainda que estivesse cansado não queria parar de caminhar. Foi
andando ate as ruinas do velho forte e chegou até o rio que
separava a cidade antiga do bairro mais pobre onde as casas
eram simples e os turistas nunca visitavam. A vontade que
sentia era a de seguir caminhando sem parar, mas não podia, ele
tinha de voltar e levar o papel que estava na moldura para Frida.
Ela era alemã e poderia traduzi-lo.
E enquanto Bebéi regressava ao seu apartamento aproveito para
contar que Frida quando jovem foi uma revolucionaria trotskista
que nos anos setenta, depois de colocar uma bomba na estação
de trens em Stuttgart, foi presa e depois, torturada pelo remorso,
saiu perdida pelo mundo e chegou em Santa Clara, primeiro
como prostituta e depois como uma velha bêbada, sentada nos
degraus da escadaria da Igreja das Mercedes.
A alemã já estava um pouco acabada mas ainda era forte e
violenta e isso quem sabia bem era o almirante americano,
comandante geral da quarta frota, que cometeu a loucura de
chama-la de bêbada durante a invasão de Santa Clara e que
levou tamanho sopapo no nariz que nem com todas as cirurgias
que fez depois, jamais reencontrou seu desenho original.
Aquele soco tornou Frida famosa, mas famosa ou não ela
continuava dormindo nos degraus das Mercedes com os outros
pelagatos. Cuidando da sua vida sem incomodar a ninguém,
desde que, obviamente, ninguém lhe cruzasse o caminho pois
sua paciência era bem limitada.
Bebéi a respeitava e sabia como trata-la. Como necessitava um
favor, também tinha de retribuir com outro e passou pelo
supermercado para comprar uma garrafa de vodca. Ela
38 agradeceu o presente, tomou uns três dedos de um só gole e
depois com calma pediu os óculos que Nullo Rompido, o mais
velho dos pelagatos, guardava entre suas coisas. Leu o papel
dentro da moldura e explicou a Bebéi que aquilo era o convite
para um jantar.
Dizia que no dia 19 de Março de 1944 no palácio Schloss–
Klessheim em Salzburg, Adolf Hitler o “Führer des
Großdeutschen Reiches” que segundo explicou significava líder
do grande império alemão, recebia para jantar ao Almirante
Miklos Horthy, Regente da Hungria.
Descrevia também o que eles iriam comer e ao final mencionava
que antes do jantar, “em uma demonstração da histórica união
entre os dois países”, o jovem violinista húngaro Arpad
Corvinus executaria a Dança Húngara numero 5 do compositor
alemão Johannes Brahms.
– Filho da puta –disparou Frida– teu húngaro era um nazista.
Um comentário deselegante que incomodou profundamente a
Bebéi. Como podia ser verdade que o húngaro, o vizinho do
andar de baixo fosse um nazista? Um sale cochon como dizia
com raiva e desprezo seu tio em Paris. Isto não podia ser
verdade e como quem entendia bem destas coisas de historia era
Jose Princesa o livreiro, Bebéi deixou Frida ali falando sozinha
seus insultos aos nazistas em alemão e foi voando até a livraria.
Princesa não estava e quem estava ali era o novo assistente
recém contratado, que segundo a manicure da barbearia era
ainda mais bonito que Jordi. Princesa estava no atelier de modas
como Lola Marlene, e se você ainda não sabe, lhe conto que
Jose Princesa o livreiro e Lola Marlene, sensual cantora do
cabaré maldito e desenhadora de modas, são a mesma pessoa,
apenas que um se veste de homem e a outra de mulher, algo com
que Bebéi e todos de Santa Clara conviviam já a algum tempo
com a mais perfeita naturalidade.
39 Bebéi esperou que Lola terminasse de atender a esposa do
embaixador argentino, lhe mostrou o menu do jantar e explicou
o que Frida tinha comentado.
José Princesa que mesmo quando se vestia como Lola Marlene
era apaixonado por tudo que os livros contavam, foi com Bebéi
a livraria para consultar alguns livros até que encontrou uma
referencia a aquele jantar.
– Este jantar foi muito importante. –explicou Princesa–
Enquanto jantava com o regente húngaro, Hitler havia instruído
o exercito alemão a invadir a Hungria ao som do violino do teu
amigo nazista.
Outra vez a acusação de nazista que tanto incomodava a Bebéi,
mas ele queria saber mais e Princesa explicou que em Março de
1944 as coisas estavam se complicando para os alemães.
– Na Itália as forças aliadas já estavam atacando o sul de Roma
e os alemães estavam com dificuldades para resistir. Do outro
lado de Europa o exercito soviético tinha libertado Leningrado –
e seguiu contando detalhes daquele período da guerra até que
explicou– Aparentemente Horthy, o regente húngaro, estava
traindo Hitler com algumas negociações secretas com os
soviéticos. Foi por esta razão que Hitler lhe convidou para
aquele jantar e enquanto jantavam começou a invasão do
território húngaro.
– Quer dizer então que é verdade que o húngaro era um nazista?
–perguntou Bebéi resignado.
– Parece que sim –respondeu Princesa. E aquilo confirmou a
primeira das surpresas que Bebéi teve aquele dia.
Da livraria ele foi ate o Café de Ilona sempre com seu cachorro
ao lado. Quem sabe se ali ele esquecia a tristeza de ter um
vizinho que era nazista? Mas ali uma nova surpresa. Já na porta
seu cachorro percebeu que alguma coisa diferente estava
acontecendo. Correu para o terraço do restaurante que dava para
o calçadão e viu Ilona e Irigandi brincando com um pequeno
40 cachorrinho que Paul, o namorado de Ilona, tinha acabado de
presentear a Irigandi.
O cachorro de Bebéi podia ser a reencarnação de um monge
budista mas ao ver Irigandi e Ilona acariciando o filhotinho ele
perdeu completamente sua postura Zen e não conseguiu
disfarçar um profundo ciúme. Bebéi percebeu a tristeza e
imediatamente demonstrou sua solidariedade saindo do
restaurante. Ilona e Irigandi entendiam mas que podiam elas
fazer? O filhotinho era tão pequeno e tão doce.
Aquela tarde Bebéi ainda tinha um encontro marcado com um
veterinário amigo de Jordi que se havia oferecido para visitar a
gaivota. O veterinário foi ao apartamento e ao entrar reconheceu
que nunca antes tinha tratado uma gaivota mas que podia
examinar o ferimento. Foram ate o terraço e enquanto o
veterinário a examinava, Bebéi respondia aos gritos as perguntas
dos turistas que da calçada acompanhavam curiosos.
Ele examinou, tocou na asa, limpou algumas partes que estavam
sujas com um pouco de algodão e definiu seu inesperado
diagnostico:
– Pelo que pude ver ela não tem nada. Decididamente que sua
asa não esta ferida. Apenas suja com o que parece ser algum
tipo de graxa. Tenho certeza que a qualquer momento ela vai
sair voando outra vez, e se não voou ate agora e por que o
senhor deve estar lhe tratando tão bem que ela decidiu
aproveitar e ficar no terraço.
Um roubo e três surpresas em um único dia, pensava Bebéi; O
húngaro era nazista, Irigandi tinha um novo cachorro e a asa da
gaivota não estava ferida. E para completar, depois que o
veterinário partiu, tocaram a campainha do seu apartamento com
mais novidades. Era um dos assistentes de Pirilo avisando que o
apartamento estava liberado e que ele podia buscar os livros do
húngaro.
Eram apenas vinte seis livros e ele sabia por que os tinha
contado e recontado. Para os ladrões eram apenas livros que
41 dariam muito trabalho levar, provavelmente algo parecido com
o que pensaram Pirilo e seus assistentes que estavam tão
acostumados a ver livros fechados nas estantes que nem tiveram
curiosidade em abri-los. Mas Bebéi tinha os olhos de um
arquivista e ao bater os olhos já percebeu que eram vinte seis
livros colocados em ordem alfabética pelo nome do seu autor.
Um livro para cada uma das letras do alfabeto. E eles não
estavam ali por acaso:
The shield of Achilles, W.H. Auden
Die verlorene ehre der Katharina Blum, H. Boll
Heart of darkness, J. Conrad
Justine, L. Durrel
The hollow men, T.S. Elliot
Le crime de Sylvestre Bonnard, A. France
Die Blechtrommel, G. Grass
Siddhartha, H. Hesse
Hedda Gabler, H. Ibsen
Ulysses, J. Joyce
Der prozeß, F. Kafka
Woman in love, D.H. Lawrence
Eszter hagyatéka, S. Marai
Veinte poemas de amor y una canción desesperada, P. Neruda
1984, G. Orwell
Доктор Живаго, B. Pasternak
Giorno dopo giorno, S. Quasimodo
Briefe an einen jungen dichter, R. M. Rilke
Az ajtó, Magda Szabo
Воина и мир, L. Tolstoi
Niebla, M. Unamuno
Eneida, Virgilio
Leaves of grass, W. Whitman
La montagne de l’ame, G. Xingjian
Her praise, W.B. Yeats
Germinal, E. Zola
Bastou uma rápida olhada para que ele suspeitasse que o que o
húngaro tinha ali era um arquivo e quando na noite do roubo,
42 antes da chegada dos ladroes ele abriu o primeiro dos livros, o
de Auden, ele encontrou ali a fotografia de seu pai.
O húngaro antes de ir embora tinha organizado ali um arquivo
guardando notas pessoais, cartas e fotografias dentro das
paginas daqueles livros. Qual era a razão, Bebéi não sabia, mas
certamente deveria ser algo importante. Aquele arquivo
escondia algum segredo e com paciência ele ia descobrir, mas
não iria contar nada a ninguém pois quem tinha roubado o
apartamento do húngaro poderia voltar para roubar o seu.
Ele lembrou também que ainda tinha com ele o envelope
encontrado no apartamento. Uma carta que chegou talvez pouco
tempo depois que o húngaro partiu e que alguém, sem saber,
empurrou por debaixo da porta.
Para sorte a carta estava em Frances. Era uma carta de poucas
linhas que parecia ter sido escrita por uma menina e que apenas
dizia. “Sou a filha de Morgen. Vivo em Kinshasa com minha
avó, a mãe de meu pai e pelo que me contaram talvez você
também seja meu avô. Se isso for verdade, me avise que quero
muito conhecê-lo.” Aquela carta tinha sido escrita mais de dez
anos antes e nunca ninguém tinha respondido.
O húngaro que se foi tinha uma neta chamada Laurence Será
que ele sabia? Será que ele partiu para encontrá-la? Mas a carta
estava fechada e o húngaro se foi antes de recebê-la. Por sorte a
carta trazia um endereço. Quem sabe a neta ainda vivia ali?
43 44 7
Nem as loucuras de Paul distraem a
atenção do detetive Bebéi
Nos dias que se seguiram Bebéi dividiu seu tempo entre suas
três grandes preocupações: cuidar da gaivota que não estava
ferida, entender o sistema utilizado pelo húngaro para organizar
seu arquivo e por ultimo mas certamente não menos importante,
acalmar os ciúmes que seu cachorro sentia.
Com relação a gaivota não havia muito o que fazer. Ela
continuava imóvel no terraço contente com a companhia do
cachorro que já não dormia aos pés de Bebéi e sim no terraço ao
lado de sua nova amiga; uma que nunca lhe havia traído! Na rua
os turistas seguiam com sua romaria tirando fotos e pelo que
diziam, na entrada do supermercado do português já eram três
os telescópios apontados para o terraço. Jose Princesa comentou
que o português tinha até colocado um anuncio na televisão
dizendo que a gaivota estava tão fascinada com os preços baixos
do supermercado que tinha decidido ficar por ali.
Entender o arquivo, o segundo dos seus problemas, era apenas
uma questão de tempo e paciência. Ele era um arquivista e sabia
que cada arquivo tinha a sua logica e o único que necessitava era
descobrir qual era a logica do húngaro. O problema é que
algumas das notas estavam escritas em línguas que ele não
conhecia e para não levantar suspeitas ele tinha de ser muito
cauteloso ao pedir ajuda
Ele rapidamente percebeu que não havia uma relação direta
entre o idioma dos livros e o idioma das notas ali guardadas.
Percebeu também que não havia nada dentro do livro de
45 Xingjian. Ali, na ultima pagina, apenas estava escrita uma frase
simples e ao mesmo tempo misteriosa; “meu ultimo livro... de
que me serve seguir lendo?”.
No livro de Zola também não haviam notas. O único que havia
era um pequeno envelope grudado em uma das paginas com
uma chave dentro. Pelas duvidas, ele preferiu tira-lo dali para
guarda-lo em um lugar mais seguro.
Em quatro dos livros as notas estavam escritas em húngaro e por
sorte ele conhecia o arquivista da embaixada da França em
Budapest. Os dois trabalharam um bom tempo juntos em Quai
D’Orsay em Paris e ele podia lhe pedir ajuda. O arquivista de
Budapest não conhecia ninguém em Santa Clara e por isso não
representava um risco. As notas em húngaro estavam dentro dos
livros de Hesse, Joyce, Lawrence e Pasternak.
No livro de D.H. Lawrence havia uma foto bem antiga de uma
cigana e atrás estava escrito Lali. No libro de James Joyce uma
longa carta firmada por alguém que se chamava Janus Corvinus
e no libro de Herman Hesse estavam algumas cartas de Horthy o
regente húngaro, o que parecia indicar uma relação entre a
primeira letra do sobrenome autor do livro e o assunto das notas
que ali estavam guardadas. L de Lali, J de Janus e H de Horthy.
Mas ainda era muito cedo para tirar conclusões.
Escreveu ao amigo de Budapest contando o que havia
descoberto e que estava curioso para saber mais sobre a vida de
Arpad. Bebéi sabia que ele não teria problemas em ajuda-lo pois
quando trabalhavam juntos ele sempre se entusiasmava quando
aparecia alguma investigação deste tipo.
As notas em francês, espanhol e português ele poderia ler. Em
Paris ele cuidava dos arquivo dos países ibéricos e por isso
havia estudado bem os dois idiomas. As outras ele decidiria
depois. O que ele precisava era tempo e paciência. Duas coisas
que eram mais fáceis de controlar que os ciúmes do cachorro
que, este sim, estava totalmente indignado.
46 Varias vezes Bebéi tentou leva-lo ao Café mas ele se recusava.
Nem na rua do restaurante queria mais passar mas aquela noite
Bebéi queria pedir a pequena Irigandi que lhe ajudasse a
esconder a chave. Guardada com ela e dentro da casa de Ilona, a
chave certamente estaria bem protegida. E foi com o cachorro,
pois gostando ou não, ele tinha de se acostumar com a ideia que
sua jovem amiga agora tinha seu próprio filhotinho. Mas foi
difícil, ele teve que utilizar toda força para arrasta-lo até o
restaurante.
Sentou em uma das mesas do terraço e amarrou o cachorro ao pé
da cadeira. Ilona que percebeu o que estava acontecendo pediu a
Irigandi que se aproximasse para acaricia-lo como sempre.
Passaram alguns minutos assim e só quando ele estava mais
tranquilo e que foram buscar o filhotinho.
Irigandi apesar de ser uma jovem sempre foi a grande amiga de
Bebéi desde o dia que ele chegou a Santa Clara. Era uma
indígena que por ser cega nunca pode ver o que os outros veem,
mas que nasceu uma Nele que é como seu povo chama aqueles
que nascem com o dom de ver o que ninguém mais pode ver.
Chegou a Santa Clara junto com seu avô, um dos grandes sábios
de seu povo e desde que ele morreu vivia com Ilona. E enquanto
os cachorros se cheiravam e se lambiam debaixo da mesa eles
aproveitaram para conversar. Fazia tempo que Paul, o Professor
de Nebraska e namorado de Ilona, não contava a Bebéi como
andavam suas investigações e o Café aquela noite estava
tranquilo.
Muitos consideravam Paul um louco. Ainda mais louco que os
pelagatos que dormiam frente a igreja das Mercedes. Mas era
um louco com dois doutorados, um em física e outro em
historia, respeitado por todos os loucos do mundo que
acreditavam na existência de vida em outros planetas.
Desde que chegou em Santa Clara se enamorou de Ilona e por
isso acabou ficando. Ela insistia que o único homem de sua vida
tinha sido o Condor, mas como finalmente ele estava morto,
47 Ilona decidiu deixar Paul viver com ela em sua casa. E como
explicava a Dona Cécy:
– É um excelente remédio para acalmar minhas ressacas
matinais.
Ele foi enviado a Santa Clara pelos Departamento de Defesa,
para verificar se havia algum fundamento nos rumores de que
havia algo escondido nas matas do Darién que como um dia
explicou o avô de Irigandi “era ainda mais belo que o ouro pois
guardava todo o conhecimento dos antepassados.”
O problema é que segredo estava tão bem protegido pelos
guardiães que nunca ninguém conseguiu encontra-lo. Um
problema que se agravou quando algumas explosões causadas
por perfurações de petróleo provocaram um incêndio que
destruiu toda aquela parte da selva e tudo que ali estava
escondido.
Com ou sem o segredo do Darién, Paul decidiu ficar em Santa
Clara e dali saia em viagens pelo mundo que depois
transformava em livros de arqueologia espacial publicados em
vários países. Suas ideias e aventuras eram conhecidas por todos
em Santa Clara e até Grená, que vendia os bilhetes já era uma
especialista em galáxias, planetas e sondas espaciais. E aquela
noite Paul explicava os planos de sua próxima viagem:
– Se queremos saber para onde podemos ir no dia em que nos
ocorra uma catástrofe é bem provável que civilizações de outros
planetas também queiram conhecer suas opções. Um planeta
com temperatura e clima como o nosso é uma perola preciosa no
meio do universo.
E enquanto ele contava suas historias, debaixo da mesa o
cachorro de Bebéi começava a se interessar pelas lambidas do
filhotinho de Irigandi. A jovem indígena foi a única a perceber,
pois não necessitava ver para sentir.
– Suponham por um minuto que isso seja verdade. Suponha que
eles nos visitaram e queriam preservar nosso planeta. Se foi
assim é bem provável que deixaram aqui algum tipo de
48 informação que pudera nos ajudar –e Paul falava com seus olhos
em Ilona que se distraia com todas aquelas divagações. Não lhe
gostavam homens chatos e monótonos que apenas sabiam
conversar de futebol, politica e negócios. E certamente que Paul
não era um deles.
Irigandi escutava atenta e calada. As loucuras e Paul pareciam
muito com as loucuras que seu avo contava sobre o segredo do
Darién e ela estava cada vez mas segura que com a ajuda do
professor seu povo poderia entender muitas coisas que nunca
antes haviam entendido.
Bebéi também escutava mas a verdade é que seu pensamento
estava longe ali. Por muito tempo ele tentou ajudar Irigandi a
entender o segredo que estava escondido na selva. Ele sabia que
para ela e para seu avô isto era muito importante. Mas tudo isso
foi antes. Desde que Paul chegou, Bebéi percebeu que o
professor podia ajuda-la muito mais do que ele e com isso ele
podia se concentrar nos seus próprios problemas. E desde que a
gaivota pousou no seu terraço que eram muitas as coisas com
que ele tinha de se preocupar. Verdade que já não tantas pois
depois daquele jantar no Café seu cachorro tomou carinho pelo
filhotinho, mas entender o arquivo do húngaro e por que ele
havia desaparecido continuava sendo uma obsessão.
Naquela noite antes de sair ele contou em segredo a Irigandi que
havia encontrado a chave no livro de Emile Zola e pediu que ela
guardasse onde ninguém pudesse encontrar.
– Melhor não contar a ninguém, nem mesmo a Ilona. Os
bandidos não vão descansar até descobrir quem esta com a
chave e de ti ninguém vai desconfiar.
Com a missão cumprida ele regressou ao apartamento para
continuar com suas investigações e o primeiro que queria
entender era porque a fotografia de seu pai estava ali.
No livro de Auden, além da foto de seu pai junto a outros lideres
do movimento de liberação da Argélia também haviam algumas
notas referentes a aquele pais, onde aparentemente o húngaro
49 viveu de 1958 ate 1960. Não havia nenhuma referencia
especificamente ao seu pai mas haviam algumas notas onde se
mencionavam os contatos com os principais lideres
revolucionários da Argélia.
No livro de Quasimodo, haviam poucas coisas e por sorte todas
estavam escritas em francês. Um endereço de Quebec no
Canada, alguns extratos bancários e alguns papeis que ele não
consegui entender mencionando um certo Walden. O livro que
tinha mais notas dentro era o de Conrad. Ali todas as cartas,
anotações pessoais e fotos pareciam estar relacionadas com o
Congo. E pelo que Bebéi pode entender o húngaro viveu ali por
mais de dez anos. Mas as notas daquele livro mencionavam
pessoas e lugares que ele não conhecia.
Ainda que ele não entendesse o que diziam as notas, tudo
parecia confirmar que havia uma relação entre a primeira letra
do sobrenome do autor e a palavra chave do arquivo. Argélia
para Auden, Congo para Conrad e Quebec para Quasimodo. No
libro de Anatole France haviam algumas notas em português
que falavam de algumas pessoas e de problemas políticos em
Angola e Moçambique, mas não havia nada ali que tivesse algo
a ver com a letra F. Paciência, pensou Bebéi, ele estava apenas
começando. O único problema que lhe incomodava e muito era
que Frida tinha contado a todos que seu vizinho húngaro era um
nazista.
Bebéi não podia aceitar que alguém que tinha vivido no andar
de baixo ao seu; que tinha instrumentos musicais na sala; que foi
professor de Cristina e de Jordi e amigo de Carmela fosse um
nazista, mas a Trotska insistia com suas piadas e não era apenas
ela. Todas as vezes que passava pelas escadarias da igreja das
Mercedes os pelagatos sempre lhe perguntavam pelo nazista.
Entre as fotos que ele encontrou no arquivo do húngaro havia
uma que provava definitivamente que Arpad não era nazista mas
como fazer para poder mostra-la? Ninguém em Santa Clara
sabia do arquivo do húngaro e era melhor que ninguém
soubesse. Mas como incomodava aquela historia. Ele tinha de
50 fazer alguma coisa para que definitivamente Frida parasse de
chamar o húngaro de nazista.
51 52 8
Os planos revolucionários do prefeito
para uma Nova Santa Clara
Em Santa Clara toda semana trazia sua novidade. Lucia, a que
foi beata e agora andava pelas ruas com suas roupas apertadas
de ginastica, ia inaugurar sua academia e era isto que todos
comentavam.
Lucia ate os seus vinte anos foi uma das beatas mais religiosas
da cidade. Não faltava nunca a missa das sete da manhã e
trabalhava todos os dias como assistente da mulher do prefeito.
O único problema era que ela ficava tensa e começava a suar
toda vez que passava em frente ao Negro Zen meditando sem
camisa com seu peito forte pelas na praça da idade. Isso durou
ate o dia em que os rastafáris da cooperativa decidiram tirar suas
roupas no calçadão de beira mar para protestar contra o prefeito.
Naquele dia ela não aguentou. Esqueceu a virgindade e trocou
as missas diárias por sessões de ginastica e yoga que sempre
fazia com uma malha sensual. Como seu pai era o administrador
do porto e chefe da loja maçônica e não aceitava a ideia de ter
uma filha frequentando salões desconhecidos, ele a ajudou a
abrir sua própria academia.
Era um galpão antigo que o porto já não utilizava e ela
conseguiu todas as licenças e autorizações necessárias em tempo
recorde, o que não era de surpreender, pois como contava
Grená, qualquer coisa se podia conseguir no porto que seu pai
administrava, ate embarcar drogas, desde que pagando as
devidas comissões.
53 A academia foi inaugurada com uma exibição de dança moderna
na escadaria da igreja das Mercedes. Desde que o magico fez
aquele espetáculo em frente a igreja que todos queriam fazer
suas apresentações por ali. Obviamente que isto incomodava
muito aos pelagatos e acabou causando grandes discussões até
que tudo foi resolvido por Nullo Rompido o chefe da confraria.
Como antes de ser um bêbado ele foi banqueiro e poderoso,
Nullo sabia muito bem como fazer grandes negociações. Os
pelagatos estabeleceram uma taxa em garrafas de vodca que
qualquer um tinha de pagar se quisesse utilizar as escadarias ou
o terraço da entrada e com isto o problema foi resolvido. Lucia
podia promover sua academia nas escadarias e os pelagatos se
embebedariam tranquilos por toda a semana com vodca
importada.
A academia não era um tema importante mas todas as vezes que
eles se reuniam com Frei Bernardo para conversar sobre a
pizzaria, Rasta Bong recordava:
– Vê como você é um babaca! Lucia paga todas as comissões e
subornos necessários e já esta abrindo sua academia e tu com
teus princípios não vai conseguir abrir nunca esta pizzaria. E
tem mais, a partir do próximo mês começam os pagamentos de
aluguel. E ai, como é que você vai fazer para pagar o chinês?
O frade que já não era mais frade insistia em não pagar
comissões e já tinha conversado com a mulher do prefeito que
também não compreendia como alguém tinha de pagar suborno
para poder abrir um negocio honesto.
Foi ela quem insistiu em acompanha-lo a uma visita ao prefeito
que se demonstrou chocado com tudo o que escutou:
– Não posso acreditar. Vou abrir imediatamente uma
investigação e podem ficar tranquilos que em menos de uma
semana tudo vai ser resolvido – e isso foi três semanas antes.
O que nenhum dos dois ficou sabendo é que depois que saíram o
prefeito chamou o irmão em seu gabinete
54 – Quem este louco pensa que é? Será que esta achando que só
porque comeu a gostosona da Gigi pode fazer o que quer? Olho
com ele! Se não pagar comissão por fora não abre –e
pontificou– Não vamos abrir nenhum mal precedente em nossa
administração.
Rasta Bong que já não sabia mais o que fazer foi reclamar com
Ilona.
– Si ele não paga o que lhe pedem não abre a pizzaria. E se não
abre a pizzaria não vai poder pagar o banco. Como nos dois
somos os fiadores, o que vai acontecer é que vamos ter de pagar
pela sua teimosia –mas Ilona explicou que não parecia ser muito
o que eles podiam fazer.
De todos os subornos o que mais incomodava ao frade era o do
Corpo de Bombeiros. Ele tinha absoluta consciência dos perigos
de um incêndio em meio a todos aqueles casarões antigos e por
isso insistiu em comprar equipamentos absolutamente testados e
seguros ainda que mais caros. Colocou também dispositivos
modernos de seguridade contra incêndios e nem assim eles
queriam aprovar sua licença. Seguiam insistindo que faltava
concluir uma avaliação da madeira utilizada na escada que
levava ao deposito, o que era apenas mais uma desculpa, pois
na semana anterior tinha sido o diâmetro de saída do exaustor e
antes a distancia entre o fogão e a parede.
Sua raiva aumentou ainda mais com o incêndio da sorveteria
italiana que todos sabiam pertencia a mulher do italiano da
empresa de lixo sócio do prefeito em vários negócios. Com o
incêndio, todos os jornais noticiaram que o incêndio começou
no sistema elétrico e questionavam: por que a sorveteria, que
não cumpria com as regulamentações mais básicas tinha obtido
a licença dos bombeiros em menos de uma semana?
O frade aproveitou o incidente para visitar os jornais e explicar
tudo o que estava acontecendo. Pediu também publicamente que
se fizesse uma inspeção em sua pizzaria com participação de
jornalistas. A discussão tomou tal dimensão que o assunto
acabou saindo no noticiário da televisão.
55 O prefeito abriu outra investigação e a licença da pizzaria saiu
no dia seguinte, mas essa era apenas uma das tantas licenças e
autorizações que ele necessitava e Bernardo que já não era
frade, decidiu aproveitar o interesse dos jornais para denunciar
a todos que lhe estavam extorquindo. A repercussão foi tão
grande que ele até recebeu convite da Câmara de Comercio para
fazer uma apresentação no seu almoço semanal.
Tudo aquilo incomodava muito o prefeito que não queria
confusões com a imprensa pois estava a ponto de lançar seu
megaprojeto neo revolucionário.
A ideia do projeto não era nova. Alguns investidores da Arábia
Saudita e um grupo de holandeses tinham apresentado tempos
atrás propostas para construir um mega-hotel e alguns cassinos
em Santa Clara mas a ideia não tinha avançado. O que era novo,
diziam os rumores e que os dois grupos se haviam juntado a
outros grupos internacionais também poderosos e estavam
apresentando uma super-mega proposta.
A primeira a perceber que algo estranho estava acontecendo foi
obviamente Grená. Segundo ela contava no seu guarda sol
amarelo, o motorista do irmão do prefeito tinha escutado em
uma conversa que a ideia era construir uma nova cidade onde
terminava o calçadão a beira mar.
Pelo que ele tinha escutado o projeto começaria no forte em
ruinas que passaria a ser parte de um grande hotel e de um
enorme shopping center que seria construído frente a uma nova
marina para grandes iates e alguns edifícios de mais de
cinquenta andares para apartamentos e escritórios. Os rumores
foram crescendo ate que o cunhado de Carmela que antes de se
aposentar foi engenheiro da prefeitura, descobriu e contou a
todos que a área construída do novo projeto seria três vezes e
meia a área construída da cidade antiga, incluindo teatros,
igrejas e o edifício da prefeitura.
– O pior –dizia ele– é que existe um outro projeto de um grande
hotel com cassino do outro lado da cidade que apresentado por
56 uns investidores russos e que certamente seria aprovado se o
projeto da nova cidade avançasse.
Com todos aqueles projetos novos a cidade ficaria
completamente cercada por grandes edifícios e pelo que contava
o engenheiro, apenas o cinema que iam construir teria seis salas
onde mas de mil pessoas poderiam estar assistindo filmes ao
mesmo tempo. Uma mudança dramática se comparada a sala da
prefeitura que apresentava novos filmes todas as terças e quintas
a noite para não mais de cinquenta pessoas por sessão.
O projeto incluiria uma nova avenida de seis pistas para entrar e
sair da cidade antiga e, segundo diziam, até o rio que
desembocava no mar depois do forte iria desaparecer. Pelo que
se comentava toda agua seguiria passando por tubos
subterrâneos e onde antes passava o rio seria construído o novo
shopping center com cinemas e vários restaurantes das grandes
cadeias americanas.
– Como é possível –reclamava indignado o Coronel Viera– ali
esta o centro de treinamento onde todos os soldados e oficiais
das forças armadas foram treinados. Que vão fazer com o
centro?
– Leva-lo para o norte da cidade, ali onde esta a nova mesquita
dos muçulmanos– explicou o engenheiro quase causando um
enfarto no Coronel.
O engenheiro também explicou que para construir o novo
projeto as empresas construtoras iriam trazer mil trabalhadores
de outras partes do pais e outros mil mais de países vizinhos.
Santa Clara seria uma das maiores cidades de todo o Caribe,
cheia de americanos e europeus que rapidamente se mudariam
para viver ali.
– Façam o que quiser desde que não construam nada em frente
ao terraço do restaurante –era o que dizia Ilona mas Gigi, não
estava de acordo.
– Você enlouqueceu. Você acha que todas estas pessoas que
hoje vem ao café para beber, dançar e contar historias vão
57 continuar aparecendo no dia que esta cidade estiver cheia de
gringos? Os clientes que você gosta não são estes de camisas
coloridas e bermudas. Você gosta dos vagabundo aventureiros e
sonhadores e estes não vão querer mais vir por aqui com todas
estas torres e estes shopping centers Você não lembra o inferno
que foi teu Café nos tempos da invasão? Você acha que vai
poder sair bêbada do Café no final da madrugada e dar uma
mijada no meio do calçadão a beira mar como você deu ontem
a noite quando tudo isto estiver construído Acorda mulher, isto
vai ser um inferno.
Gigi não era a única que pensava assim. Todos em Santa Clara
já tinham passado pela invasão da cidade por americanos e
chineses nos tempos do fim do mundo. A invasão transtornou
toda cidade. Todos ganharam muito dinheiro, mas não tinham
quase tempo e tranquilidade para gasta-lo.
Tenente Pirilo insistia em dizer que nos tempos da invasão
varias vezes ele teve de suspender o domino da tarde por falta de
parceiros.
– Como vamos fazer?–perguntavam todos e ninguém sabia a
resposta.
– Será que não podemos convencer o prefeito a suspender o
projeto–perguntou Bebéi a Nullo Rompido que respondeu com
toda sabedoria de quem antes foi banqueiro.
– Se o projeto é tão grande como estão falando, o prefeito vai
ganhar tanto dinheiro em comissões que jamais vai cancela-lo.
Dioclecio Bergantin o filosofo da praça da Catedral que sempre
escutava a todos calado acariciando seus gatos, assustou a todos
exclamando:
– Se fazem esta merda eu me vou daqui! –e nunca antes
ninguém ali tinha escutado o velho Dioclecio chamar alguma
coisa de merda.
Bebéi se foi sem entender. Se tudo estava tão bem na antiga
Santa Clara, porque fazer uma nova?
58 9
Como pode um húngaro nazista tomar
café com Che Guevara?
Os planos da nova cidade já estavam causando apreensão nas
escadarias da Igreja das Mercedes onde os membros da
confraria dos pelagatos se reuniam para suas importantes
discussões. Coronel Vieira, que antes de ser um bêbado quase
foi o chefe supremo das forças revolucionarias do pais tentava
convencer Robespierre e Frida a lutar contra os planos do
prefeito. E a cada dia que passava o Coronel parecia mais
estranho:
– Tudo o que querem é nos expulsar das Mercedes. Primeiro
tentaram com os venezuelanos do bando do Cuspa e como não
conseguiram, mandaram a quarta frota americana que apenas
não conseguiu graças ao sopapo que Frida meteu no nariz do
almirante. E quando aquele magico andou por aqui, se o prefeito
chegava a expulsar os estudantes da praça ele certamente viria
depois atrás de nos. Como resistimos heroicamente nas
barricada, ele agora quer construir estes apartamentos para
trazer mais dos nossos inimigos a Santa Clara. Temos de
resistir.
Robespierre estava tão bêbado que continuava dançando uma
valsa com duas pombas empoleiradas em um pedaço de pau, um
truque que ele havia aprendido com o magico, enquanto Frida,
que não dava a menor atenção ao que Coronel falava, tentava
entender como aquele militar aposentado, que antes apenas
pensava em bundas e peitinhos acabou por virar um velho
paranoico.
59 Nullo Rompido que por ser o mais velho acreditava que tinha o
direito de abrir e fechar as reuniões da confraria, um direito
unanimemente questionado por todos os demais, preferia se
fazer de desentendido. Ele tinha simpatias pelo prefeito. Gostava
das garrafas de vinho que ele deixava no meio da noite e estava
suficientemente sóbrio para saber que não havia nada que um
bando de pelagatos pudesse fazer para deter os planos de
grandes investidores internacionais. Ele lhes conhecia e sabia
como atuavam, afinal das contas um dia ele também foi um
deles.
Bebéi não tinha simpatias pela ideia de uma nova cidade,
escutava o que se falava mas sem grande interesse. Na verdade
tudo aquilo era secundário pois o único que lhe importava era
entender o que o húngaro tinha escondido no seu arquivo. E era
nisso que voltou a trabalhar assim que conseguiu sair com a
fotografia do Che nas mãos e voltar ao seu apartamento.
As notas em francês sobre o Congo que estavam no livro de
Conrad, descreviam o assassinato de alguém que se chamava
Patrício Lumumba e de um ditador que se chamava Mobutu que
aparentemente era um grande assassino mas que recebia algum
tipo de apoio do húngaro.
Ele não conhecia a historia do Congo e tinha muita dificuldade
em entender. O que ele sabia fazer bem era ler os títulos para
arquivar os documentos. Tinha uma memoria fotográfica e uma
forma de pensar que lhe permitia visualizar todos os arquivos
com que trabalhava como se tivesse um mapa escondido dentro
da cabeça.
Era isso o que ele sabia fazer, arquivar e encontrar papeis, mas
desde criança nunca conseguiu ler mais de uma pagina de um
livro sem se perder. Sua cabeça se distraia com outras coisas e
por mais que se esforçasse, seus pensamentos voavam e ele não
conseguia se concentrar na leitura.
Ele precisava de ajuda para compreender o que passou no
Congo e sabia que Jose Princesa podia ajuda-lo mas como pedir
60 ajuda sem dizer que os documentos do húngaro estavam no seu
apartamento.
Primeiro ele tentou ler as notas em espanhol, especialmente as
que estavam no livro de Henrich Boll. Ali haviam notas
comentando países africanos, especialmente a luta do ditador do
Congo que se chamava Mobutu com um tal de Agostinho Neto
que vivia em Angola. Bebéi desconfiava que o libro de Boll era
onde o húngaro arquivavas notas que faziam referencia a um tal
de Barba Roja que parecia ser um cubano que participava em
muitas discussões sobre África e talvez Barba Roja fosse a
chave daquele arquivo.
No livro de Magda Szabo a palavra chave parecia ser Santa
Clara pois foi ali que Bebéi encontrou alguns documentos em
espanhol sobre o apartamento que o húngaro tinha em Santa
Clara, o contrato com a empresa de advogados que administrava
os bens do húngaro e algumas referencias a uma outra
propriedade que aparentemente ele também havia comprado na
cidade. Naquelas notas do livro de Szabo não havia nenhuma
referencia a politica ou a vida do húngaro.
As notas mais interessantes pareciam estar no livro de Gunter
Grass, pois ali estavam todas as provas de que o húngaro não era
nazista. Como alguém pode ser nazista e ao mesmo tempo ser
amigo do Che Guevara?
Haviam ali algumas cartas do Che onde ele agradecia ao
húngaro por ter apresentado Tamara. Aparentemente ela era
amiga de Arpad e ele a apresentou a Guevara quando ele esteve
em Leipzig para algumas reuniões com o governo da Alemanha
Oriental em 1960. Haviam também outras cartas onde Che
Guevara comentava os acontecimentos do Congo e em todas
elas ele sempre incluía um paragrafo contando como estava
Tamara.
E o mais importante, havia uma foto onde o Che aparecia com
sua boina de guerrilheiro, ainda bem jovem, e ao seu lado uma
jovem mulher de cabelo negro também com uma boina e um
homem europeu de cabelos claros que parecia ser Arpad. Os três
61 sentados em uma mesa e atrás da foto estava escrito “Leipzig
1960 com T e G.”
Bebéi que já começava a entender a logica do arquivo do
húngaro decidiu dar uma olhada no livro de Tolstoi para ver si
ali havia alguma referencia a Tamara e o que viu confirmou o
que pensava pois as notas guardadas naquele livro faziam
referencia a ela, mas tudo ali estava escrito em alemão e ele não
conseguia entender.
Cada vez mais ele sentia que precisava de ajuda. O arquivista de
Budapest lhe ajudaria com as notas que estavam em húngaro
mas ele necessitava pedir ajuda a Frida para entender o que
estava escrito em alemão e também necessitava ajuda de Jose
Princesa para entender o que aconteceu no Congo e em toda
África, mas como fazer?
Ele tinha enviado uma carta para o mesmo endereço que
aparecia no envelope da carta de Laurence, a neta do húngaro,
dizendo que era vizinho do apartamento de Arpad e que estava
procurando saber por onde ele andava. E foi ao recordar aquela
carta que Bebéi teve a ideia de inventar uma mentira. Não era
uma grande mentira, o que não seria aceitável frente aos seus
rígidos princípios morais, mas uma pequena mentira que lhe
permitiria salvar a reputação do húngaro sem ter de dizer que
tinha todo o arquivo.
Colocou a fotografia do húngaro com Guevara no bolso e foi ate
a esquina das Mercedes com ar decidido de quem de uma vez
por todas queria acabar com a má reputação de seu vizinho.
Chegou com seu cachorro e Frida que estava bem humorada não
quis perder a oportunidade e mal ele cruzou a rua, ela se
aproximou da amurada cantando um hino alemão e imitando a
saudação nazista.
Bebéi sorriu pois sabia que ela fazia apenas por brincadeira mas
a verdade é que este tipo de brincadeira lhe incomodava. Ele não
sabia ainda o que o húngaro fazia, mas sabia que ele não era um
nazista.
62 Preferiu conversar com Frida a sós e por isso foi com ela para
dentro da igreja. Sua intenção era ser discreto e manter o que
conversavam em sigilo mas quando a alemã viu a fotografia do
Che ela ficou eufórica. Chamou Robespierre que se aproximou
para ver mas não conseguia pois seus olhos já não enxergavam
quase nada. Nullo não encontrava seus óculos e tiveram de pedir
ajuda na barbearia onde foram salvos pelo judeu Moses que
cortava ali seu cabelo.
Quando Robespierre finalmente reconheceu quem estava ao
lado do húngaro começou a chorar e em prantos subiu na
amurada do terraço a entrada da igreja para convidar a todos que
ali passavam a se aproximar e ver a fotografia do honorável
guerrilheiro internacionalista Che Guevara, que o companheiro
Bebéi havia encontrado.
Ele estava tão emocionado que não conseguia parar de gritar e
começou a cantar a Internacional Socialista no que foi
acompanhado por Frida que se divertia ao olhar a expressão
confusa de Bebéi que não compreendia absolutamente nada do
que estava acontecendo.
Ao final do hino Robespierre, saiu correndo pelas ruas
anunciando a grande novidade e durante todo o dia uma romaria
de amigos e inimigos passaram pelas escadarias das Mercedes
onde Frida orgulhosa mostrava a fotografia do Che Guevara a
todos os visitantes.
O húngaro que ate aquele momento não era conhecido por
muitos em Santa Clara, passou a ser famoso como o amigo do
Che, o que para Bebéi parecia ser melhor do que ser um nazista.
O difícil para ele foi quando Grená e Pirilo começaram com
suas perguntas.
– Onde você conseguiu esta foto?
– Foi a neta do húngaro que me mandou.
63 – E como você sabia que o húngaro tinha uma neta? – e foi
apenas ai que ele contou a Pirilo da carta que eles encontraram
no apartamento.
– E que mais ela disse na carta – e quando Bebéi respondeu que
nada, Grená insistiu.
– Como pode ser que não te disse nada? Ela apenas te mandou a
foto e mais nada? – e Bebéi já começava a se confundir em sua
própria mentira.
– Esta foto estava na carta que encontramos ou em outra carta
que ela te mandou depois– perguntou Pirilo
Bebéi começou a gaguejar e os dois perceberam que ele estava
escondendo alguma coisa e decidiram não pressionar. Mais
tarde com mais tranquilidade e sem tantas pessoas a volta,
Grená e Pirilo facilmente descobririam o que Bebéi estava
escondendo. O importante ali é que o húngaro não era nazista e
sim um comunista o que para Coronel Vieira era igualmente
uma porcaria.
64 10
Sábado dia de encontrar os amigos para
jogar um pouco de conversa fora.
Manhã de sábado, dia de aproveitar a tranquilidade da Praça da
Catedral e conversar com os amigos, pelo menos era isto o que
pensava Dioclecio Bergantin sentado no banco em que sempre
sentava bem em frente a livraria de Jose Princesa. A livraria
seguia vazia mas isto não preocupava a Princesa pois o que Lola
Marlene ganhava desenhando roupas era mais do que suficiente
para pagar todas as suas despesas. E quando alguém lhe
perguntava se não era melhor fechar a livraria ele respondia com
firmeza:
– De que vale uma cidade que não tenha a sua livraria?
Bebéi já chegou na praça escutando a boa novidade; os
resultados do concurso tinham sido publicados e Jordi tinha
passado em primeiro lugar. Isso tal vez fosse uma má noticia
para Ilona que perdia o melhor de seus garçons, mas era boa
para Jordi que finalmente poderia dedicar mais tempo ao que
mais gostava e Dioclecio ainda comentou:
– Pena que como professor vai ganhar menos do que ganhava
atendendo as mesas do restaurante mas pelo menos Ilona já lhe
avisou que se quiser, ele pode trabalhar lá a noite para completar
o salario.
Os dois ficaram por ali dando de comer as pombas enquanto o
cachorro de Bebéi corria pela praça com a cadela magrinha da
Passarinho que em meio a sua eterna loucura seguia frente a
Catedral distribuindo aos turistas convites para exibição de
65 teatro uruguaio que foi um grande êxito quando ocorreu pelo
menos três semanas atrás.
Poucos minutos depois Tenente Pirilo chegou por ali. Parecia
distraído, mas a verdade é que ele queria aproveitar a calma
daquele sábado para conversar com Bebéi e entender melhor a
historia da fotografia e da neta do húngaro. Pirilo continuava
desconfiado. E não pela mentira de Bebéi, pois ele o conhecia
bem e sabia que não precisava se preocupar com nada que que o
arquivista fizesse, o que lhe incomodava era o roubo ao
apartamento do húngaro.
Tudo parecia muito estranho. Pela descrição de Bebéi o roubo
foi trabalho de profissionais mas por outro lado ninguém sabia o
que os ladroes estavam procurando. Ele estava investigando e
sua equipe ainda não tinha descoberto nada de concreto. Até os
ciganos da orquestra que sempre sabiam de tudo que se passava
nas ruas e que muitas vezes já lhe haviam ajudado a descobrir
coisas que ninguém descobria, sabiam dizer quem tinha roubado
o húngaro. Quem acabou por ajudar foi Ludmilla, a bailarina
russa que antes dançava nua em um dos cabarés da Rua das
Francesas, e que agora estava casada com Rasta Bong. Pirilo
conhecia bem os segredos de sua cunhada e sabia que ela tinha
muitos amigos fora de Santa Clara e que fazia parte de um grupo
de anarquistas europeus que se entretinham em roubar obras de
arte de velhos milionários, mas sobre isso, por prudência, ele
nunca comentava. E foi ela quem chegou com a novidade:
– Meus amigos escutaram de um conhecido em Miami, que
alguém de muito dinheiro contratou um grupo de especialistas
de primeira para vir aqui e limpar o apartamento. O roubo não
foi coisa de pé de chinelo. Foi de profissionais e gente de
primeira.
Como é possível que alguém contrate professionais para roubar
objetos pessoais de um húngaro que ninguém sabia quem era e
que estava desaparecido a mais de dez anos sem que ninguém
tivesse percebido. E isto, que não fazia o menor sentido, não era
a única coisa que lhe intrigava; a visita que recebeu do
66 advogado de Miami aumentou as suas suspeitas. Tantos anos
trabalhando com a policia que ele já sabia quando alguém estava
escondendo a verdade e aquele gringo bem vestido com uma
gravata que parecia valer mais do que um mês de seu salario,
certamente sabia mais do que contou.
Sentados ali na praça frente ao quiosque da banda Bebéi
respondeu as perguntas de Pirilo e até tentou insistir com a
historia de que a fotografia tinha chegado na carta da neta, mas
foi se confundindo tanto que não teve outro jeito e contou a
verdade.
Pirilo escutou e ate se mostrou interessado em visitar o
apartamento de Bebéi mas não aquela manhã. Tudo estava tão
calmo e a praça tão agradável e para ele, por mais interessantes
que fossem os documentos encontrados, parecia difícil acreditar
que alguns papeis guardados dentro de velhos livros pudessem
atrair a atenção de outra pessoa que não fosse Bebéi.
Ele estava convencido que não era por aqueles livros que os
professionais foram contratados para roubar o apartamento do
húngaro. E estava seguro também que não eram notas e
fotografias velhas o que aquele advogado gringo estava
procurando. Pelas duvidas combinou de passar mais tarde pelo
apartamento e aproveitou para telefonar a um de seus assistente
e pedir uma atenção especial na segurança do casarão de Bebéi.
O que ele não mencionou ao telefone, mas que seu assistente
entendeu muito bem, era que dar uma atenção especial
significava colocar ali uma das novas câmeras que lhes permitia
acompanhar de uma sala na prefeitura quem entrava e saia do
casarão amarelo.
As câmeras de vigilância eram uma novidade na cidade e
poucos sabiam da sua existência. Segundo o irmão do prefeito
deveriam ser colocadas em alguns pontos estratégicos e como
Pirilo não tinha muito claro o que fosse estratégico em Santa
Clara, ele apenas colocou um par de câmeras para testar os
equipamentos.
67 Colocou uma na entrada da Rua das Francesas e era a que mas
atenção recebia de seus assistente que agora sabiam quem
entrava e quem saia das visitas as mulheres e aos cabarés. Outra
no campo de futebol depois do rio onde alguns marginais do
antigo grupo de Silvino se reuniam para planejar suas atividades
e uma terceira na entrada do calçadão, onde passavam as turistas
de shorts e camisetas. E como foram muitas as câmeras
compradas, Pirilo estava distribuindo as outras pela cidade e
depois daquele telefonema uma foi para a esquina da casa de
Bebéi.
Pirilo ainda ficou por ali mais alguns minutos conversando com
o Negro Zen, que sempre lhe perguntava noticias de Clara que
antes de ser a namorada do tenente tinha sido sua esposa. Pouco
depois Pirilo decidiu aproveitar a tranquilidade do sábado para
jogar dominó na taverna com o amigos. Talvez o asturiano
estivesse ocupado com os almoços de sábado, mas mesmo assim
ele provavelmente encontraria alguns parceiros para jogar.
Bebéi ficou por ali observando os cachorros que já não corriam
tanto pois Irigandi havia chegado com seu cachorrinho. Curioso,
pensava ele, tudo caminhava tão bem em Santa Clara. Os que
tinham seus negócios estavam contentes e os turistas seguiam
chegando para visitar a cidade. Por que será que agora que tudo
estava bem, o prefeito tinha decidido tudo mudar?
– Acho que é a crise da idade –opinava José Princesa– Desde
que a amante jamaicana lhe abandonou por aquele rastafári
bonito e forte que trabalhava de motorista na prefeitura que o
prefeito já não é o mesmo. Passou um tempo com a loira da
Câmara de Turismo mas ela lhe colocou um par de cornos com
aquele artista europeu amigo da Riquita. E digo mais, aquela
finlandesa pode ser bonita e gostosa mas é mais burra que uma
porta –e continuava com seus trejeitos que divertiam a Bebéi–
Pelo que me contaram o prefeito esta por fazer uma cirurgia
plástica para tirar as rugas e os olhos empapados. Não duvido
que amanha ele faça uma lipoaspiração e quem sabe até coloque
uns peitinhos mais delicados como os meus –e concluiu
68 sorridente– Acho que é a idade. Foi por isso que ele inventou
esta historia de uma Nova Santa Clara.
Coronel Viera que antes de começar a beber e terminar como
um dos pelagatos era um assíduo frequentador dos debates da
praça, também opinou:
– Quem manda não é o prefeito, é aquela Sérvia –referindo-se a
assessora que o prefeito contratou quando ganhou as eleições e
que antes tinha sido enfermeira e segundo alguns ate amante de
Gadafi.
Muitos na cidade atribuíam a ela toda a estratégia neorevolucionaria que aumentou a popularidade do prefeito. Ela
quase nunca conversava com ninguém mas pelo que diziam era
uma profunda conhecedora de Maquiavel e uma grande
influencia oculta por detrás do prefeito.
– Que Sérvia o cacete! – e isso quem dizia era Nullo que ainda
não estava bêbado e aproveitava para esticar um pouco as pernas
fazendo um esforço para não deixar cair suas calças mal
amarradas na cintura.
– Não é o prefeito e nem a assessora –seguia Nullo– Essa
historia de Nova Santa Clara é uma coisa muito maior. Podem
ter certeza que o prefeito, seu irmão e seus amigos vão ganhar
muito dinheiro ajudando os árabes com este projeto – e todos
escutavam com atenção pois destas coisas de dinheiro sem
duvida que Nullo Rompido era um profundo conhecedor.
Bebéi contou que escutou um comentário na embaixada de que
o ex-embaixador da França tinha sido contratado pelos árabes
para ser o presidente do projeto. Contou também que a
embaixadora tinha recebido instruções de seu governo para
apoiar o projeto, mas que para ela, toda a discussão da nova
cidade, não era uma coisa que lhe interessava.
– O único que interessa aquela nariguda –comentou Priscilia, o
cabeleireiro que era amigo de Lola Marlene e que também tinha
se juntado a conversa– são as aulas de meditação que o Negro
Zen lhe dá. E pelo que ela comentou ontem enquanto fazia seu
69 cabelo, percebi que ela esta furiosa com a nova academia de
Lucia. Parece que as mulheres de lá andam fazendo tantas
sessões privadas de meditação com o Negro Zen que aquele
gostosão safado já quase não tem tempo para ela.
Rasta Bong que passava rapidamente por ali correndo entre sua
barbearia e a cooperativa Bobo Ashanti com o ar de executivo
que mantinha durante o dia antes de fumar seus cigarrinhos,
comentou que os rastafáris também estavam preocupados com o
projeto.
– Eles acabaram de abrir o Centro Sailassie com um enorme
salão para concertos de reggae e pelo que escutaram o novo
centro esta bem no lugar onde querem construir a nova cidade.
Entre os brother rasta, esta nova cidade é uma bad idea!
Bebéi ainda ficou mais alguns minutos escutando a conversa
mas preferiu se despedir e regressar ao seu apartamento. O
cachorro já tinha passeado o bastante e ele queria aproveitar o
resto do dia para tentar entender mais o arquivo do húngaro.
Para sua surpresa, quando se levantou o Coronel Viera decidiu
acompanha-lo.
– Você tem de tomar muito cuidado. Já entraram no
apartamento do húngaro e podem agora tentar entrar no seu.
Eles tem microfones em todos os lugares. Pode estar certo que
amanha tudo o que conversamos na praça será discutido em suas
reuniões. E preciso tomar muito cuidado com os telefones e com
tudo o que você fala nas ruas.
Bebéi escutava pensando que o Coronel Viera estava ficando tão
louco como Robespierre.
70 11
Uma historia que parecia de cinema e
terminava com um final feliz.
Outra surpresa esperava Bebéi em seu apartamento; a carta de
seu amigo arquivista de Budapest tinha chegado no seu
computador. Enquanto imprimia para poder ler com serenidade
ele colocou agua e comida para o cachorro, deu uma rápida
olhada no terraço para ver se a gaivota continuava ali, encheu
um copo com seu vinho do porto favorito e sentou na poltrona
frente a janela. A carta não era curta:
Caro amigo Bebéi, sinto falta dos tempos em que tínhamos
escrivaninhas uma frente a outra em Quai D’Orsay.
Aprendi muito com tuas perguntas; as vezes elas
enganam, por que parecem ingênuas, mas são mais
profundas do que parecem. Ao ler tua carta com a historia
da chave no rodapé recordei que era você quem guardava
a copia da chave de minha escrivaninha. Nunca precisei,
mas como você sempre dizia, se por acaso... a copia
estava sempre ali. A historia de teu vizinho húngaro é
fascinante e começo por dizer que ele não era húngaro e
sim cigano.
Sua mãe Lali, ou Lalika como Janus seu pai a chamava,
foi uma dançarina cigana, assim como a Esmeralda
daquele filme do Corcunda de Notre Dame que assistimos
juntos. Lembra? A do corcunda que vivia na torre da
igreja. Lali também dançava nas ruas, mas ao seu lado
não tinha um cabrito como Esmeralda e sim o filho que
tocava o violino e era o teu Arpad. Seu nome não era
71 cigano e esta foi a única concessão que ela fez ao pai,
Janus Corvinus, um jovem bem educado de uma família
tradicional da elite húngara que por ela se apaixonou.
Pelo que percebi nas notas ela também se apaixonou mas
ele vivia nos palácios e o mundo de Lali eram as ruas de
Budapest. Suas duas grandes paixões foram a musica e o
futebol. Pelo que pude entender ela sempre ia ao estádio
quando a equipe do Ferencvarosi jogava e era amiga de
Sarosi, que foi grande jogador da seleção húngara nos
anos trinta. Sonhava que seu filho Arpad fosse um grande
atacante mas ele nunca demonstrou a menor habilidade
para isso, e como segunda opção, acabou sendo violinista.
Foi ela mesmo quem lhe ensinou a tocar e com cinco anos
Arpad já se apresentava ao seu lado nas ruas. Lali
dançava tão bem que foi convidada para se apresentar em
teatros e entre os papeis de teu húngaro esta aquela nota
do principal jornal de Budapest na época, comentando o
sucesso da sua apresentação no Teatro Erkell. Lali era
bonita e era uma mulher livre. Pelo que Janus nos conta
na carta que enviou ao seu filho, ela varias vezes lhe
propôs que abandonasse sua carreira e fosse viver nas
ruas ao seu lado mas ele nunca teve a coragem suficiente.
Como ele mesmo reconheceu na carta: “vou levar este
remorso comigo ate o ultimo dia da minha vida.”
Janus, era um dos jovens idealistas húngaros que
trabalhavam com o Almirante Miklos Horthy. Todos
unidos pelo sonho de reunir a grande pátria húngara
separada e dividida pelo Tratado de Trianon. O pai de
Arpad trabalhou mais de vinte anos com Horthy, ocupou
varias posições e chegou a ser um de seus principais
assessores durante a segunda grande guerra.
Ate os onze anos, Arpad viveu com sua mãe, jogando mal
o futebol, tocando divinamente o violino e aprendendo a
falar tantas línguas quanto aquelas que se escutavam nas
ruas de Budapest. Falava o romani dos ciganos, o
húngaro, o alemão o romeno e o eslovaco. Nunca
72 frequentou a escola e apenas aprendeu a ler e escrever
muito mais tarde quando voltou da Sibéria, mas como seu
pais mesmo escreveu “Arpad tinha um instinto que
ajudava compreender as palavras mesmo quando ouvia
pela primeira vez uma língua que jamais tinha antes
escutado”
Em 1937 sua mãe ficou doente, tuberculose, e no dia 19 de
Novembro morreu no hospital. Segundo o próprio Arpad
escreveu, foram tantas as mudanças na sua vida que ele
levou muito tempo a compreender e sentir a sua morte.
Conversou com seu pai pela primeira vez em sua vida no
hospital. Ele tinha prometido a ela que si algo acontecesse
ele cuidaria de Arpad. Junto com seu pai ele acompanhou
o enterro de Lali e na tarde daquele mesmo dia entrou
pela primeira vez no palácio onde seu pai vivia. Um
palácio suntuoso. Tudo ali era novo para Arpad e a única
coisa que ele levou consigo foi o violino que tocava e
tocava noite e dia sem parar. Seu pai lhe levou conhecer a
Grande Academia de Musica de Budapest, a Franz Liszt,
uma academia conhecida e respeitada em toda Europa, e
como escreveu seu pai na carta “mal ele tirou o violino da
caixa e começou a tocar já lhe ofereceram uma bolsa para
estudar com eles”
Descobrir a academia e o mundo da musica clássica teve
nele tanto impacto que seu padre desistiu de lhe dar uma
educação tradicional e se resignou ao fato de que o único
que ele poderia fazer em sua vida era tocar o violino.
Arpad praticamente viveu com o violino nas mãos, como
se toca-lo fosse uma obsessão que lhe ajudava a conviver
com a morte de sua mãe. Foi apenas no mês de Junho de
1938 quando chegou o telegrama de Sarosi contando que
eles tinham perdido a final do campeonato mundial de
futebol para a Itália, que ele se conscientizou de que
nunca mais poderia ver uma partida de futebol ao lado
dela. Foi só então que toda a tristeza que ate então não
havia sentido pela sua morte explodiu no seu coração.
73 Segundo ele mesmo escreveu, ele passou semanas sem
tocar em profunda depressão ate que foi ao cemitério
onde ela estava enterrada e prometeu que ia tocar a
Dança Húngara numero 5 de Brahms, a musica favorita
de Lali, tão bem como ninguém no mundo antes tinha
tocado.
A isso dedicou a sua vida e foi por isso que alguns anos
depois quando Horthy foi a Salzburg para o famoso jantar
com Hitler, ele levou Arpad para que ele impressionasse o
Fuhrer tocando a Dança Húngara. Não sei se você tem
claro o que foi aquele jantar. Hitler era o todo poderoso
senhor da Europa e Horthy estava fazendo de tudo para
evitar que ele invadisse a Hungria. Arpad chegou para
tocar a pedido de Horthy e demonstrar o que podiam fazer
os húngaros quando tocavam as composições alemãs.
Naquela cena Arpad provavelmente teve de escutar calado
quando Hitler disse a Horthy que os húngaros deveriam
ser mais ativos na eliminação dos ciganos e dos judeus. E
como ele era um violinista, Arpad respondeu com sua
musica. Aquela noite ele não tocou para Hitler como
húngaro e muito menos como um nazista, coisa que ele
nunca foi. Ele tocou como cigano, filho de Lali, uma
cigana como tantas outras que Hitler estava eliminando
por toda Europa. Naquele jantar ele celebrou a vida de
sua mãe, que dançava descalça pelas ruas de Budapest,
tocando a mais cigana de todas as musicas compostas por
Brahms o alemão. A dança cigana como sua mãe chamava
que poderia não ser a favorita de Hitler mas que
certamente era a musica favorita de Lali.
É por isso que aquele convite era tão importante para ele.
Para Hitler aquele jantar pode ter sido apenas uma farsa,
pois quando convidou Horthy para o jantar no palácio de
Schloss–Klessheim em Salzburg ele já tinha dado
secretamente as instruções para a Operação Margarethe
da invasão húngara, mas para Arpad, aquela foi a noite
onde como cigano ele desafiou o assassino responsável
74 pela morte de 28 mil ciganos que como sua mãe viviam em
Budapest. E isso certamente merecia uma moldura em
destaque na parede.
Uma coisa que também percebi pelas notas era que além
de cigano ele era solidário com os judeus. Em 1943,
quando tinha apenas dezessete anos ele se casou com uma
mulher um pouco mais velha de uma família judia que se
chamava Eszter Bider. Na Hungria os judeus não foram
tão perseguidos como em outros países da Europa mas
ainda que isto não esteja mencionado nas notas, é bem
provável que ele se casou com ela para protege-la dos
nazistas. Curioso não? Foi o virtuosismo com que tocava
o violino que lhe permitiu sobreviver como cigano e
proteger a Eszter. Imagine como ele deveria tocar bem!
Os papeis que me mandaste incluem uma carta que seu
pai escreveu depois de tê-lo escutado tocar em Salzburg:
“ainda que viva mil anos vou guardar para sempre
comigo a tristeza que senti ao escutar teu violino esta
noite. Segui minhas ambições por toda a minha vida e
deixei a margem do caminho meu coração e tudo o que
encontrei foi a infelicidade. Hoje você me fez chorar como
apenas uma criança sabe chorar. Teu violino ainda
mantem nossa Lalika viva e te agradeço e congratulo por
isso.”
Depois chegou o ultimo ano da guerra e em 1945 a
Hungria foi invadida pelos soviéticos. Horthy conseguiu
escapar com vida mas seu pai Janus foi executado na rua
pelas tropas soviéticas. Arpad foi deportado para a União
Soviética e depois para Kolima na Sibéria. Por que lhe
deportaram? Difícil dizer. Talvez por ser o filho de Janus
ou talvez por ter tocado para Hitler. Nunca saberemos.
Foram seiscentos mil os húngaros deportados para os
campos de concentração da Sibéria russa e apenas
duzentos mil os que regressaram.
75 Entre as notas também havia uma carta que o Almirante
Horthy lhe enviou, em 1952, que nos da uma indicação do
que se passou depois da guerra. Na carta Horthy lhe
congratulava pelo nascimento de Morgen e da a entender
que foi Eszter que de alguma forma lhe resgatou dos
campos de concentração da Rússia. Menciona também
que “depois de tudo que se passou em Kolima” sem
explicar o que foi “não podes seguir encantando a todos
com teu violino” e por isso era muito importante aceitar o
trabalho que seu amigo “o embaixador” lhe estava
oferecendo. Na mesma carta Horthy fazia uma reflexão
sobre tudo que a nação húngara sofreu desde o final da
primeira grande guerra e “ainda que Arpad não pudesse
mais defender sua pátria tocando a Dança Húngara, seu
pai se sentiria muito orgulhoso em saber que seu filho
estava lutando para reconquistar a liberdade de todos os
húngaros.” Pela carta não é possível saber que trabalho
era este e nem o que ele fez depois. Tentei também
encontrar aqui em Budapest algum registro dele e não
encontrei nenhum.
Pelo que entendi das notas, ao regressar da Sibéria ele foi
viver em Berlim com Eszter onde nasceu sua filha. E por
elas não se pode entender o que ele fazia ali. Se você
encontrar algo mais, por favor me envie, pois estas notas
me despertaram a curiosidade de conhecer melhor a vida
de teu vizinho Arpad. Como será que ele conseguiu viver
se todo o que sabia era tocar o violino e depois da Sibéria
já não podia mais tocar? Um grande abraço de teu amigo
arquivista de Budapest.
Ps: as notas marcadas com a letra P de Pasternak não
pude ler pois elas não estão em húngaro. Elas estão em
Tcheco e este idioma eu não domino.
76 12
Bebéi parece um detetive mas seus
assistentes são dignos de uma tragédia
A carta de seu amigo arquivista contava a vida do húngaro que
era cigano até o final da guerra e confirmava sua teoria sobre a
logica do arquivo escondido entre as paginas dos vinte e seis
livros. É como se cada um dos livros da estante fosse uma
gaveta onde ele arquivava alguns papeis especiais. Por que ele
fez isto, não estava claro. Será que ele escondia algum segredo?
Mas se era um segredo, por que ele colocou toda a informação
organizada em um arquivo? Para quem ele havia organizado
aquele arquivo?
Bebéi estava seguro de que para cada letra existia uma palavra
associada e anotou em uma folha de papel o que já tinha
descoberto de cada uma e o idioma em que as notas estavam
escritas, pois seu maior problema era encontrar alguém que lhe
pudesse ajudar a traduzi-las e compreende-las.
A – Auden
B – Boll
Francês
Espanhol
Argélia
Barba Roja ???
C – Conrad
Francês
Congo
D – Durrel
Espanhol
Dominicana ?
E – Elliot
F – France
Alemão
Português
Eszter ?
?
G – Grass
Espanhol
Guevara
H – Hesse
Húngaro
Horthy
I - Ibsen
Inglês
?
77 J – Joyce
Húngaro
Janus
K – Kafka
Inglês
?
L – Lawrence
Húngaro
Lali
M – Marai
Inglês/Alemão
Morgen ?
N- Neruda
Russo
?
O- Orwell
P- Pasternak
Alemão
Tcheco?
?
?
Q- Quasimodo
Frances
Quebec?
R - Rilke
Russo
?
S- Szabo
Espanhol
Santa Clara ?
T - Tolstoi
Alemão
Tamara ?
U - Unamuno
Inglês
?
V - Virgílio
Inglês
?
W - Whitman
X - Xingjiang
Inglês
?
O ultimo livro
Y-
Russo
?
Yeats
Z - Zola
!!!
Ele leu as notas em Frances e sabia que o A era de Argélia, o C
de Congo e o Q de Quebec, três lugares onde aparentemente o
húngaro tinha vivido. As notas em português do livro de
Anatole France, certamente estavam relacionadas a alguma
coisa africana de Angola e Moçambique, mas não estava claro o
que havia ali com a letra F. Entre as notas em espanhol, o livro
de Boll trazia notas de um tal de Barba Roja que Bebéi não tinha
a menor ideia de quem pudesse ser. A letra D parecia ser da
Republica Dominicana e as notas faziam referencia a um certo
Juan Bosch e alguns eventos de 1963 naquele pais. A letra G
parecia ser de Guevara. Incluía algumas cartas que Arpad
recebeu do Che contando o que ocorria na África e de uma
mulher que se chamava Tamara. As notas do livro de Szabo
também estavam em espanhol e todas elas estavam relacionadas
78 a Santa Clara o que parecia indicar que o S era do nome da
cidade.
Os livros de Elliot, Marai e Tolstoi tinham notas em alemão e
pelo que Bebéi já conhecia da historia do húngaro
provavelmente se referiam a Eszter Bider que foi sua esposa,
Morgen Corvinus sua filha e a Tamara, que deveria ser parente
ou uma amiga bem próxima já que era mencionada em todas as
notas assinadas por Che Guevara. Havia um quarto livro, o de
Orwell, onde as notas estavam em alemão mas estas notas, ele
ainda não sabia o que significavam.
O livro de Xingjiang não tinha notas, apenas a menção de que
era o ultimo livro que o húngaro leu. Bebéi até pensou em ler
para ver se descobria algo, mas o livro era muito grande e sua
atenção se distraia rapidamente. No livro de Zola apenas a chave
que já estava muito bem escondida com Irigandi, nem ao
Tenente Pirilo ele tinha mencionado o esconderijo, e era por esta
razão que na pagina que tinha preparado ele não colocou a
palavra chave e sim os três pontos de exclamação.
Para as outras letras do alfabeto, ele ainda não havia descoberto
as palavras chave e necessitava ajuda pois algumas estavam
naquelas letras confusas que finalmente ele descobriu que era
russo, uma em tcheco e outras em inglês. Com o russo ele não
teria problemas pois Ludmilla poderia ajudar mas ele não sabia
como fazer para encontrar alguém que conhecesse o tcheco em
Santa Clara. Para traduzir as notas em inglês ele podia pedir
ajuda a Paul que era americano, mas Paul estava entretido com
os preparativos de sua viagem ao Oriente Médio. Bebéi sabia
que para Irigandi aquelas viagens eram muito importantes e não
queria incomodar. Outra opção seria Moriarty, mas ele não
estava seguro pois o velho hippie parecia viver em um mundo
bem distante da realidade.
Ele necessitava seguir com cautela para não permitir que os que
haviam roubado o apartamento soubessem que aqueles
documentos estavam com ele mas o primeiro passo era claro: ele
tinha de começar pelas notas que estavam em alemão e para elas
79 havia apenas uma alternativa. Ele sabia que era um risco contar
a Frida sobre o arquivo mas por outro lado, ela era a única que
poderia ajuda-lo. Por cautela, ele decidiu apenas levar algumas
das notas que estavam no livro de Elliot. Eram duas notas
assinadas por Eszter Bider e também uma que tinha o nome de
Eszter bem no inicio.
Havia uma quarta nota que parecia também ser sobre Eszter,
mas era uma nota mais longa e Bebéi preferiu guarda-la no
apartamento. Ele conhecia Frida e sabia que quando lhe atacava
o mal humor a trotska jogava tudo o que via pela frente no meio
da rua e ele não queria que nada acontecesse com aquelas notas.
Na manhã do dia seguinte quando estava na embaixada, ele
recebeu um telefonema do escritório de advogados que
administrava os bens do húngaro. Aparentemente eles tinham
sido informados que ele estava com uma correspondência de um
parente do húngaro e queriam mandar alguém para busca-la.
Bebéi que estava desconfiado, preferiu perguntar a Tenente
Pirilo que desde que conheceu o advogado de Miami estava
ainda mais desconfiado do que ele.
– Não entregue nada. Como foi que eles souberam da carta?
Traga a carta da neta para mim e diga a eles que venham
conversar comigo –e depois de um rápido silencio continuou– E
não diga a eles que você escreveu para ela. Vamos esperar para
ver se ela responde e depois decidimos o que fazer. –o que
também parecia uma boa ideia a Bebéi.
Naquela tarde, quando saia da prefeitura depois de deixar a carta
com Pirilo, Bebéi encontrou a Senhora da embaixada americana
que estava ali acompanhando alguns empresários de seu pais em
visita ao prefeito.
– Ouvi dizer que o senhor agora é comunista, verdade? –
perguntou ela sorrindo.
E ele rapidamente tentou explicar esbaforido que não era
comunista e tampouco nazista e que o convite do Hitler e a foto
do Che eram do húngaro.
80 – É só uma brincadeira. É que já faz tanto tempo que o senhor
não me visita e nem me escreve. Cheguei a pensar que me
esqueceu –e o comentário foi sincero pois ainda que sempre
estivesse envolvida em tensões e problemas que a ninguém
podia contar, a elegante Senhora da embaixada guardava um
profundo carinho por duas pessoas em Santa Clara; o arquivista
Bebéi e a velha Grená dos bilhetes.
E para entender é importante voltar um pouco atrás e recordar
que a sempre elegante Senhora era a chefe de uma enorme
operação de inteligência do serviço secreto americano lançada a
partir da embaixada dos Estados Unidos em Santa Clara ainda
nos tempos em que o CIA desconfiava que o Condor tinha
alguma relação com os terroristas de Al Qaeda. Foi ela também
quem ajudou a aclarar quem estava por detrás do atentado ao
Canal do Panamá que quase causou um conflito entre
americanos e chineses e aquela tarde ela estava visitando o
prefeito junto com o embaixador para apresentar alguns
americanos interessados em conhecer melhor o projeto da Nova
Santa Clara.
Foi apenas ao final da tarde que ele finalmente teve tempo para
passar pelas escadarias das Mercedes e encontrar Frida. Quando
chegou, ainda do outro lado da rua, percebeu que por sorte todo
ali estava relativamente tranquilo. O que já era muito, pois
nunca nada estava completamente tranquilo por ali. Frida de
longe ate parecia estar sorrindo mas quando ele cruzava a rua,
Maestro Heitor o professor aposentado e maestro da banda
municipal gritou da porta da barbearia; Robespierre lhe havia
contado da fotografia do Che e ele queria ver.
Bebéi sempre levava a foto no bolso e a razão, como ele mesmo
explicava, era simples:
– Para acabar de uma vez por todas com esta historia de que o
húngaro era nazista.
Heitor olhou a foto com emoção nos olhos, o Che era um mito
para aquele velho comunista. Mas o que mais lhe chamou a
atenção não foi nem o Che com uma expressão jovem e alegre e
81 nem o húngaro Arpad que ele havia conhecido como professor
da escola, já com mais idade e um pouco menos de cabelo. O
que impressionou Heitor foi a jovem sentada entre eles.
– Essa é Tamara Bunke –e seu comentário surpreendeu a Frida e
Robespierre.
– E quem caralho e esta Tamara? – perguntou Frida.
– É uma argentina que o Che conheceu na Alemanha depois da
revolução cubana. Alguns dizem que ela era a amante secreta do
Che e outros que ela era uma agente infiltrada da Stasi, o serviço
secreto da Alemanha oriental. O que sabemos também é que ela
viveu um tempo em Havana e depois foi com ele para a Bolívia
onde acabou sendo presa e executada.
Heitor falava com visível orgulho por seu conhecimento. Como
chefe da célula comunista de Santa Clara ele nunca tinha feito
absolutamente nada, pois desde os tempos em que Negro
Barbeiro, o esposo de Grená morreu, que as reuniões da célula
eram pouco concorridas. Mas ele nunca reclamou, pois pelo
menos isso lhe deixava com tempo livre para estudar o que
acontecia no mundo do socialismo e até para saber quem era
Tamara Bunke, a amante secreta do Che.
Bebéi comentou que o húngaro tinha algumas cartas do Che
mencionando Tamara o que entusiasmou ainda mais a Heitor
– E como você conseguiu estas cartas? –perguntou Frida.
– Eu não tenho estas cartas –foi a resposta de Bebéi que ainda
tentava manter o segredo – quem tem é a neta do húngaro, mas
ela já me mandou algumas.
E para que ninguém continuasse a fazer perguntas que não podia
responder, ele tirou do bolso uma das cartas assinadas por Eszter
Bider e passou a Frida para que a traduzisse, o que não foi tão
simples como imaginava. Eles tiveram de esperar que
Robespierre fosse buscar os óculos emprestados ao judeu Moses
da loja de roupas já que o Nullo não encontrava os seus pois
com os óculos de Heitor, Frida não conseguia ler.
82 Quando finalmente chegaram os óculos ela começou a ler e
apenas leu as primeiras linhas já perguntou.
– Teu amigo russo esteve em algum campo de concentração? –e
Bebéi contou a historia que seu amigo de Budapest lhe havia
contado.
Heitor escutava com uma expressão de surpresa e reclamou
brincando com Coronel Vieira que vinha chegando com um
binoculo na mão:
– Coronel nos tempos em que que passávamos as tardes
conversando na frente da janela de Laís nada de interessante
acontecia ali. Agora que me aposentei e passo o dia ajudando
Dona Lourdes a cuidar do jardim vocês se metem com nazistas e
ate com a segunda guerra mundial –e completou sorrindo– e
muito me impressiona que vossa senhoria um fascista ortodoxo
converse com gente que conhece o Che.
Frida que também estava de bom humor aproveitou para
perguntar:
– E aproveitando nos conte, que loucura é esta de andar com
este binoculo pendurado no pescoço?
Coronel Viera ia começar a explicar quando Nullo se aproximou
e depois de soltar um enorme peido que saiu gaguejando pelas
escadarias reclamou:
– Por Deus, como alguém pode se concentrar em peidar com
toda esta gritaria– e foi ai que Bebéi percebeu que traduzir as
notas com a ajuda de Frida, decididamente, não ia a ser tão fácil
quanto imaginava.
83 84 13
O importante é garantir que a neo
revolução continue
A nova Santa Clara não era apenas um rumor e enquanto Bebéi
continuava tentando obter o apoio dos pelagatos para entender o
arquivo do húngaro, o prefeito se reunia com sua equipe de
trabalho para acertar os últimos detalhes do projeto. A reunião
foi na casa de praia do italiano da empresa de coleta de lixo. Era
uma casa isolada que eles utilizavam para seus retiros não tão
espirituais sempre que não tinham tempo para viajar ate a
Republica Dominicana.
A privacidade era muito importante pois algumas assistentes
jovens e bonitas, também tinham sido convidadas para garantir
um ambiente relaxado. Eles eram poucos, estava ali o prefeito,
seu irmão e os dois principais sócios nos negócios, o italiano,
dono da casa e o romeno que entre outras coisas controlava as
licenças dos bombeiros. Ali estava também a Sérvia que como
bem dizia o irmão do prefeito, quanto mais velha ficava, mais
jeitosa parecia.
Outro que estava com eles era um egípcio que atuava como
representante local dos investidores da Arábia Saudita e que
tinha sido o responsável por levar as jovens assistentes. Todas
elas absurdamente lindas e loiras de origem russa que
acompanhavam as reuniões, serviam bebidas e, quando
requisitadas, ajudavam com outros tipos de divertimento, mas
que não entendiam uma palavra sequer de tudo o que era
discutido ali.
85 – Não podemos subestimar a oposição – era o que dizia o
prefeito enquanto dava uma tragada no seu charuto, caminhando
pela varanda da casa de cuecas largas, sem camisa e com sapato
e meias pretas já que desde pequeno nunca gostou de pisar no
chão descalço.
Alguns escutavam deitados em redes, outros em confortáveis
cadeira de palha com almofadas coloridas cercadas por alguns
vasos com enormes palmeiras. O ambiente era informal e o
romeno, que sempre era o mais agitado, escutava o prefeito e
com suas mãos ativas seguia acariciando a russa sentada no seu
colo.
Depois de quase perder as ultimas eleições o prefeito tinha
lançado sua estratégia neo revolucionaria concebida pela Sérvia
que podia ser resumida em seguir roubando, mas com muito
mais simpatia. Sua implementação havia sido um êxito. Os
negócios continuavam crescendo e todos em Santa Clara
estavam contentes com ele. Pelo menos uma vez ao mês o
prefeito se refugiava com seus principais colaboradores para
retiros como aquele onde por dois ou mesmo três dias eles
faziam uma avaliação de suas atividades.
Foram muitas as decisões introduzidas em Santa Clara como
parte da neo revolução. A decisão de manter o monopólio dos
serviços de transporte marítimos de turistas com a Cooperativa
Bobo Ashanti tinham transformado o prefeito na reencarnação
de Selassie entre os rastafáris locais.
As atividades sociais também tinham aumentado. E o prefeito
participava com infinita paciência dos eventos da liga das
senhoras católicas que lideradas por sua esposa distribuíam
óculos para os estudantes sem recursos, todos comprados da
ótica do seu irmão, uniformes, comprados do filho do italiano e
comida, comprada através do romeno. Tudo, obviamente
financiado pelo orçamento da prefeitura e sobre faturado para
gerar polpudas comissões.
A distribuição de alimentos se fazia nas feiras das terças e
quintas, onde o prefeito pessoalmente entregava bolsas de
86 alimentos a mulheres de famílias carentes acompanhadas de um
beijinho carinhoso no rosto.
E não eram apenas as atividades sociais; todos os dias,
religiosamente, o prefeito passava pela praça da Catedral onde
estava instalada a tribuna publica para que todos pudessem
expressar suas opiniões e sempre ficava por ali pelo menos por
meia hora escutando as reivindicações e reclamações de todos,
que anotava com muita consideração em um caderno que levava
com ele e que depois passava a seus assistentes.
Como parte da estratégia de desenvolvimento turístico a
prefeitura distribuiu novas licenças para hotéis, restaurantes e
cabarés, obvio que contra o pagamento de uma não tão pequena
contribuição financeira e autorizava rapidamente tudo que fosse
necessário para o desenvolvimento dos negócios.
O prefeito também apoiava as atividades culturais, entre elas a
banda municipal, da qual Bebéi era o General com direito a
faixa tricolor no peito em dias de festas e feriados. Assistia a
todos os eventos sempre com um sorriso no rosto e desde que o
prefeito começou com a sua demagogia todos os espetáculos no
Grande Teatro Colonial sempre começavam com atraso pois ele
insistia em receber e cumprimentar a todos na porta do teatro.
Pelo menos uma vez por semana jogava dominó na praça com
os aposentados e quando percebia que a praça estava suja,
chegava com os empregados da prefeitura, vassoura na mão,
para limpa-la. Obviamente que sempre frente as câmeras de
televisão que eram previamente alertadas pela assessora de
relações publicas contratada pela prefeitura que, pelo que
contava Grená, já estava em linha para ser a futura primeira
amante.
Participava dos eventos religiosos e durante toda a quaresma
acompanhou sua esposa na novena da Virgem Maria, sempre
com o cabelo já seco e penteado depois da sauna tomada ao final
da tarde com alguma de suas massagistas asiáticas.
87 Fazia tudo que fosse necessário para contentar a gente e como
contrapartida pelo trabalho realizado, cobrava comissões e
controlava todas as obras que se faziam na cidade onde não
havia um único contrato da prefeitura do qual não saíssem
comissões para o prefeito e para seus sócios que por esta razão
estavam ali tranquilos com aquelas belas modelos russas em um
sábado de sol.
– A Sérvia aqui ao meu lado –seguia explicando o prefeito– esta
preocupada com Frei Bernardo e com toda esta confusão armada
por suas denuncias de comissões, mas tenho minhas duvidas se
ela não esta afrouxando apenas porque o padre é bonito e tem
aqueles olhinhos azuis. Por mim quero que ele se afunde com a
sua pizzaria junto com aquela drogada da Gigi. Se não paga o
que tem de pagar não abre seu negocio.
A Sérvia não entendia bem o comportamento do prefeito.
Normalmente ele aceitava suas sugestões mas quando ela propôs
ajudar o padre para que ele parasse de incitar a gente, ele não lhe
escutou. Ela desconfiava que era por causa da Gigi, pois o
prefeito sempre tinha feito o possível para se aproximar da
amiga de Ilona, mas como a Sérvia tinha por principio jamais
questiona-lo em publico preferiu permanecer calada.
– Temos que ajudar os rastafáris com um novo salão de bailes. –
seguia o prefeito– Eles estão contentes com o salão que tem mas
terão de sair dali com a nova cidade. Já conversei com meu
irmão e vamos entregar a eles aquele deposito que prefeitura
tem no final da Rua das Francesas onde os coreanos querem
fazer seu cassino. Me parece muito melhor entregar aos
rastafáris, ainda que seja apenas temporariamente, para que não
nos encham mais o saco e depois encontraremos algo para os
coreanos. O importante agora é manter a todos em paz.
E seguia com suas reflexões sobre o projeto:
– Já acertamos com o exercito e eles vão construir uma
academia nova lá para os lados do aeroporto e vão ter ali o
dobro do espaço que antes tinham. Com isso acredito que já
88 temos todo o tema dos terrenos resolvido –e olhando para o
egípcio perguntou– Verdade El Waun?
–Sem duvida – respondeu o egípcio que estava um pouco
distraído com a mão no seio da loira que tranquilamente dormia
ao seu lado– já temos quase todos os terrenos comprados e
estamos construindo um centro habitacional depois do aeroporto
para todos aquele que terão de deixar suas casas. Já
tranquilizamos a todos que ninguém vai ficar sem moradia.
– Você falou quase todas ou todas? –perguntou o prefeito–
Quase todas não é suficiente. E se nos falta uma? Como vamos
construir todo o projeto se nos falta algum terreno no meio?
– Não existe nenhum motivo para preocupação –insistiu o
egípcio– já identificamos de quem é aquele pedaço que falta
depois do forte. Estamos por fechar dois ou três acordos que
faltavam e logo estaremos prontos. Pode estar seguro que tudo
esta resolvido e poderemos começar a construção nas próximas
semanas.
– Isto é fundamental –insistiu o prefeito– Não quero que este
tema de terrenos nos complique o projeto.
– O tema do forte já esta acertado com o Patrimônio Histórico –
e isto quem disse foi o irmão do prefeito que estava encostado
na rede enquanto uma das russas lhe fazia a manicure nas
unhas– vamos fazer uma associação do setor publico com o
setor privado para reabilitar o forte. Vamos construir uma nova
marina e atrás um centro comercial integrando o calçadão a
beira mar, a nova marina, o forte e os restaurantes do shopping
center. Aquele forte em ruinas que hoje não serve a porra
nenhuma vai ser agora a entrada do shopping onde vão estar
todas as lanchonetes. Podem imaginar, comer um Big Mac
vendo o forte e os iates na marina. Vai ser um luxo!
– Esta é a ideia –completou o prefeito– construir edifícios
modernos em volta da cidade antiga com hotéis, cassinos e
centros comerciais. Aumentar o calçadão e lá no final, depois do
hotel e do cassino que vamos construir com os árabes, levantar
89 oito torres de sessenta andares. E depois o resort dos espanhóis
que vai ter campo de golfe por sobre aqueles penhascos que dão
para o mar. Do lado sul da península, depois da Rua das
Francesas e do novo salão de reggae dos rastafáris, vamos
deixar os holandeses construírem seu hotel e cassino. No total
vão ser quase duas mil novas habitações novas de cinco estrelas
para turistas e mil novos apartamentos que serão vendidos aos
estrangeiros. Imaginem o que isto significa se hoje Santa Clara
tem menos de duas mil casas. Quando tudo isso estiver
construído a cidade antiga vai ficar no meio, cheia de lojas e
restaurantes como um centro para passeios e divertimentos. Que
vão poder dizer esses pentelhos do patrimônio histórico quando
toda a cidade estiver cercada de torres de sessenta andares. Ai
sim vamos poder fazer o que nos der vontade. E começaremos
pela Praça da Catedral. Hoje ali são oito mil metros quadrados
desperdiçados com pombas que cagam na cabeça dos turistas,
velhinhos que jogam dominó e aquela garotada pentelha que
passa o dia correndo e gritando com os cachorros. Um absurdo!
Vamos cercar de restaurantes e encher a praça de mesas para os
turistas. E nada de restaurantes baratos. Ali na praça vamos
colocar restaurantes caros como aquele do magico. Estes
restaurantes que tanto encantam aos turistas ricos. Os que hoje
estão vivendo na cidade terão de mudar para outros lugares, mas
que podemos fazer, é o progresso. Tiveram a cidade para eles
por tantos anos e não fizeram merda nenhuma. Agora é a nossa
vez. Vamos fazer em cinco anos o que eles não fizeram em
quinhentos.
O prefeito se entusiasmava sempre que começava a falar dos
planos de sua nova cidade. Ele já tinha acertado com os árabes
que as empresas construtoras de seus sócios participariam em
todas as construções e já estavam contratando engenheiros
europeus para ajuda-los.
– As principais embaixadas –continuava ele– já estão de acordo.
Os chineses estão contentes pois como estão construindo o novo
estaleiro com o russo depois dos penhascos terão todas suas
propriedades valorizadas. Os franceses estão felizes desde que
90 contratamos seu ex-embaixador para ser o presidente de honra
do projeto. Em sua santa ingenuidade pensam que com isso
vamos dar a ele autonomia para decidir onde contratar os
serviços. Os americanos já estiveram comigo e nossa estratégia
com eles será de prometer tudo o que queiram até que a obra
inicie e depois daremos qualquer coisa para as empresas gringas
e eles vão ter de ficar quietos. Mas é preciso manter os olhos
bem abertos com a Senhora do serviço secreto pois ela agora
virou uma defensora da cidade, mas mesmo assim não poderá
fazer nada contra a decisão de seu governo, mas pelas duvidas, e
melhor manter os olhos abertos. Os espanhóis estão tranquilos
com seus hotéis e os italianos, deixamos na mão de nosso amigo
aqui para que ele negocie um acordo. O que temos de fazer
agora é passar todas estas novas leis que pedi para meu irmão
preparar e que vão facilitar a imigração de gente rica e cancelar
todos os acordos internacionais de deportação que o pais assinou
no passado. É muito importante criar condições para que os
estrangeiros, bandidos ou não, venham viver aqui. Não vamos
perguntar de onde vem e nem o que fizeram para ganhar
dinheiro. Se querem viver em Santa Clara, não tem problema,
vamos protege-los, desde que paguem uma comissão pela
autorização de residência
E enquanto isto se passava, no Café de Ilona, a oposição ao
projeto se reunia. Eram dez no total. Frei Bernardo tentava
convencer Ilona e Rasta Bong a alugar uma boa impressora para
que Jordi e ele pudessem lançar uma publicação semanal
alertando a todos que viviam na cidade dos subornos que tinham
de pagar. O dinheiro não era muito grande e certamente
representava um sacrifício mas o frade justificava cheio de
entusiasmo.
– Se não fazemos isso não temos como resistir ao prefeito.
91 92 14
O Húngaro foi a Berna mas quem fez o
milagre foram os alemães
Foi apenas na noite de sexta-feira que sentados na sala do seu
apartamento Bebéi, Frida e Heitor conseguiram montar o quebra
cabeças das notas em alemão do arquivo de Arpad. Tinham
avançado bem pouco nas escadarias da Igreja das Mercedes e
Bebéi preferiu propor aos dois que fossem a seu apartamento.
Ali teriam um bom vinho, condição fundamental para que Frida
aceitasse a proposta, e tranquilidade pois no terraço a gaivota e o
cachorro permaneciam em silencio.
Para Heitor, o velho comunista, ajudar Bebéi a entender o que
dizia uma nota escrita pelo Che e conhecer os segredos do
relacionamento de Tamara com ele, valia mais do que qualquer
coisa que ele havia feito em duas décadas como chefe da célula
comunista clandestina da cidade e Bebéi tinha um carinho
especial por ele, pois foi desfilando frente a banda do maestro
Heitor que ele tinha feito sua entrada triunfal em Santa Clara
nos tempos do Condor.
– Quando a guerra terminou Arpad foi deportado, Eszter
aparentemente fugiu para a Alemanha Oriental e foi viver em
Berlim onde estava sua mãe – explicou Frida depois de ler uma
das notas.
– Imagine o que deveria ser Berlim ao final da guerra –
comentou Heitor– Uma vez vi um filme do Rosselini que
mostrava a cidade completamente destruída nesta época.
93 – Pelo que entendi –continuou Frida que não estava disposta a
perder tempo conversando de cinema– Eszter entrou no partido
comunista para poder encontrar Arpad. Ela sabia que ele tinha
sido deportada para a União Soviética e não tinha como
encontra-lo. Pelo que ela mesmo escreveu foi graças ao partido
comunista que ela conseguiu sobreviver e descobrir onde ele
estava preso.
Seguiu lendo mais algumas linhas e ai comentou:
– Esta carta Eszter mandou ao final de 47 e ele foi deportado em
45 o que significa que teu vizinho passou dois anos congelando
nos campos de concentração do Gulag. A carta foi escrita
durante o inverno e não consigo imaginar como ela fez para
viajar ate Kolima na Sibéria russa no meio do inverno para
encontra-lo. Apenas sabemos pelas notas que Arpad escreveu
que ela foi busca-lo no campo de concentração.
– Quando foi que ele aprendeu a escrever –perguntou Bebéi–
Meu amigo de Budapest disse que ele nunca foi a escola e que
apenas sabia tocar o violino.
E Frida tentou responder:
– Creio que ele aprendeu quando regressou a Berlim e foi viver
na casa da família de Eszter. Na nota que ele escreveu mais de
seis anos depois em 1954 ele menciona que como não podia
mais tocar o violino teve de aprender uma nova profissão e foi
Eszter quem ensinou “tudo o que eu tinha de aprender para
poder trabalhar”
– Não sei o que significa todo o que tinha de aprender mas
imagino que isto incluía saber escrever –e como estava muito
bem humorada, talvez pela qualidade do vinho francês que
estava tomando, presente da embaixadora a Bebéi, aproveitou
para brincar– Vê como são as mulheres alemãs? Cruzam toda
Rússia para salvar seus homens na Sibéria, lhes sustentam,
ensinam a trabalhar e ate lhes ensinam a escrever.
Heitor aproveitou a interrupção para perguntar se nas notas
aparecia algo da amante do Che e Frida comentou que não havia
94 nenhuma menção a Tamara nas cartas de Eszter, mas que nas
notas escritas por Arpad ele mencionava que “em 1952 os
Bunken chegaram a Berlim e foram viver junto conosco”
-– Mas existe algo muito importante antes disso –comentou
Frida– Em 1951 nasce a filha de Arpad e Eszter e eles lhe dão o
nome de Morgen. Ele até escreveu em suas notas “ainda que
seja filha de uma mãe alemã e judia, Morgen tem na cor da pele
e dos cabelos todos os traços de sua avó cigana.”
– Nasceu Morgen em 51 –continuou Frida– chegou Tamara em
52 e em 54 Arpad regressa a Budapest e fez isso por uma partida
de futebol. Os “magiares” como escreve Arpad, eram a melhor
equipe de futebol de todo o mundo e iam receber os ingleses
para uma partida de preparação a Copa do Mundo.
Heitor e Bebéi olharam Frida surpreendidos sem entender
porque um jogo de futebol era tão importante.
– Pelo que teu amigo de Budapest escreveu –continuou Frida–
as duas coisas que recordavam sua mãe eram o violino e o
futebol e nas notas de Arpad, ele mesmo escreveu:
“Talvez não recorde de memoria todas as notas da dança
húngara mas jamais esquecerei a equipe de Grosics;
Buzanski, Lorant e Lantos; Bozsik e Zacharias; Toth,
Kocsis, Hidegkuti, Puskas e Czibor.”
Frida se divertia com aquela menção ao futebol e continuou
lendo as notas incluindo uma que Arpad escreveu a Eszter:
“Sei que para Otto parece um absurdo regressar a
Budapest para um jogo de futebol e agradeço muito a ti e
a ele por me ajudarem a cumprir este sonho. Senti que
seria importante. Ganhamos em Wembley mas esta vez o
jogo foi em Budapest na nossa Hungria. Antes do jogo
caminhei pelas mesmas ruas que caminhava com a minha
mãe. Estou seguro que ela também estava ali comigo para
ver o jogo. Nunca vi uma celebração igual em Budapest.
As recordações que tinha guardadas na memoria eram
tristes; minha mãe dançando nas esquinas, os soviéticos
95 chegando na rua onde meu pai foi executado e o edifício
onde me prenderam, mas ontem foi diferente, dos dois
lados do rio as pessoas sorriam. Não podes imaginar o
que foi. O Puskas Ferenc não estava cheio, são muitas as
restrições e muitos os que tem medo, mas são também
muitos os que queriam celebrar e gritar com alegria por
nosso pais. E nossos magiares não decepcionaram. Do
inicio ate o final foi uma festa húngara. Fizemos sete gols
contra apenas um deles e depois da jogo saímos pelas
ruas para celebrar. Como gostaria de poder ter tocado o
meu violino. Estou seguro que Lali sairia de donde esta
para dançar nas ruas de Buda. “Do resto” não te posso
dizer muito. Os soviéticos estão por todos os lados. Nagy
tenta fazer algumas reformas mas são poucas as
esperanças”
– Quem era este Otto? –perguntou Bebéi e Frida tentou
responder.
– Pelo que nos dizem estas notas é um grande amigo que ajudou
muito aos dois. Eszter trabalhou para ele desde que chegou a
Berlim e foi ele quem a ajudou a encontrar Arpad na Sibéria.
Foi Otto também quem mais tarde, quando os dois viviam em
Berlim, conseguiu um emprego para Arpad e lhe ajudou a
regressar a Budapest para ver os húngaros derrotarem os
ingleses.
– Curioso –disse Heitor– Sair da Alemanha Oriental e ir a
Budapest não deveria ser fácil naquela época e se este Otto
ajudou Arpad é porque era alguém muito importante. Este Nagy
que ele menciona na nota foi o húngaro que liderou a revolução
de 1956 contra os soviéticos.
Enquanto escutava Heitor, Bebéi pensou que provavelmente era
Otto a palavra chave do livro de Orwell.
– O futebol lhe deu alegrias mas também uma grande tristeza –
disse Frida interrompendo os pensamentos de Bebéi– Veja o que
ele escreveu.
96 “Depois do jogo de Budapest contra os ingleses a equipe
húngara viajou a Suíça para jogar a Copa do Mundo
como grande favorita. Na primeira fase vencemos
facilmente aos alemães, aos coreanos e aos turcos. Depois
derrotamos as duas grandes equipes sul-americanas
finalistas da copa anterior, Brasil e Uruguai e apenas nos
faltava a partida final onde Hungria teria de vencer mais
uma vez os alemães para ser finalmente a campeã do
mundo”
– O jogo foi em Berna na Suíça –explicou Frida– Arpad outra
vez foi assistir a jogo graças a Otto e desta vez levou Eszter com
ele. Segundo ele mesmo descreveu:
“…chovia e o que se jogava ali não era futebol e sim uma
guerra. O primeiro tempo terminou empatado. Os
húngaros atacaram com toda a força de Puskas e Czibor e
os alemães resistiram. A seis minutos do final o alemão
Schaefer cruzou para Rahn que atirou de longe e fez o gol,
3 x 2. Uns húngaros ainda fizeram um gol mas o arbitro
achou que Puskas estava impedido e anulou. Éramos os
favoritos mas os alemães conseguiram um milagre em
Berna. Alemanha campeã do mundo. Por mais que sofri
na Sibéria. Creio que o dia daquela partida foi o pior dia
de toda a minha vida e o que recordo bem foi a reação de
Eszter. Ela tinha todo o direito de estar feliz pois eles
eram alemães como ela, mas ela estava triste e me
consolou com um abraço. Quando saímos do estádio
caminhamos por horas e ela me levou ate a estação de
onde regressamos a Berlim. Não recordo de nada mais
naquele dia. Recordo que regressamos a Berlim onde os
alemães seguiam em festa mas Eszter estava triste ao meu
lado.”
– Pelo que percebemos –comentou Frida querendo avançar a
discussão do que fazia Arpad– a grande paixão do húngaro
depois que regressou da Sibéria foi o futebol. Não tocava mais o
violino, e a razão ainda não sabemos, e tanto ele como Eszter
97 seguiam trabalhando com Otto, mas não esta claro o que faziam
e nem onde trabalhavam.
– Tal vez isto seja compreensível –disse Heitor– depois de
viver a grande guerra e ver seu pais invadido pelos alemães e
depois pelos soviéticos. E depois também de passar quase três
anos em um campo de concentração na Sibéria, não me
surpreende que ele não se interessava mais pela politica.
– A que se interessava por politica parecia ser Eszter – disse
Frida– mas é curioso que pelo que ele mesmo menciona ela era
uma comunista rebelde. Vejam o que Arpad escreveu sobre ela:
“no principio defendia o que se passava na Alemanha
Oriental mas era muito critica a ingerência dos soviéticos
em todo o que se decidia em seu pais. Não comentava isso
com todos mas nas as discussões com Otto sobre este tema
eram cada vez mais frequentes”
Neste momento eles foram forçados a interromper sua conversa
pois Jordi chegou ao apartamento para ver Bebéi e perguntar
pela gaivota.
Jordi também trazia novidades, Ilona e Rasta estavam de acordo
em alugar a impressora e eles estavam prontos para começar
com o jornal da cidade. Jordi estava feliz mas naquele momento
nenhum dos três estava interessado nos planos do jornal, ainda
mas sabendo que Bebéi tinha outra carta que Frida ainda não
havia lido. Era uma carta extensa, escrita por Arpad a Otto, que
por alguma razão nunca havia sido enviada, ou talvez havia sido
enviada e por alguma razão tinha regressado a Arpad.
Antes de ler, Frida pediu outra garrafa de vinho. A carta
prometia ser interessante. Foi escrita ao final de 1956 e contava
como Eszter morreu.
98 15
A morte de Eszter nas barricadas
lutando contra tanques de Moscou
“Caro amigo Otto” assim começava a carta que Frida traduziu
aquela noite. Irônico pensar que naquela mesa ao lado de Bebéi
estava uma bêbada que em sua juventude pensou em mudar o
mundo colocando bombas em estações de trem; um velho
comunista que por toda vida pensou em construir uma sociedade
mais justa e que apenas conseguiu ser um bom esposo e um dos
amigos mas dignos de toda a cidade; e um jovem Jordi, que
celebrava o seu primeiro emprego e acreditava no poder das
demonstrações e que se lembrava do húngaro como o professor
de musica que as vezes parava frente aos alunos, esquecido do
que estava fazendo.
O húngaro nunca tinha sido importante em Santa Clara e as
poucas pessoas que um dia chegaram a nota-lo passando calado
a caminho de casa jamais podiam ter imaginado que aquele
homem solitário que vivia no segundo andar do casarão amarelo
um dia tinha passado por tudo o que passou e escrito uma carta
como aquela:
É muito difícil para mim escrever, mas não tenho
alternativa, pois não tenho coragem para encontrar-te.
Você sempre soube que discordávamos de algumas de tuas
ideias e posições. Foram muitas as discussões que
presenciei entre você e Eszter. E ainda reconhecendo o
direito de discordar não tínhamos o direito de trair. Mas a
verdade é que te traímos e tudo acabou muito mal. Sei que
se não fosse teu apoio, não teríamos conseguido sair de
99 Budapest e regressado a Berlim. Graças a tua amizade
sobrevivi, Eszter não. Ela já não esta mais conosco e antes
de morrer me fez jurar que te diria que você sempre foi
tão importante para ela como Morgen e como eu. E disse
mais: no trem, ferida quando regressávamos, ela disse que
o futuro nos contara quem esta certo mas que seja quem
for que tenha a razão e seja em que parte do universo
cada um de nos esteja que nossa amizade, agradecimento
e respeito por ti será eterno. Eszter me pediu também que
contasse tudo o que aconteceu e é por isso que te escrevo
esta carta.
Já por muito tempo estávamos mantendo contato com
nossos amigos de Budapest e fizemos isso escondidos de ti.
Eles pensavam como Eszter que era muito importante
para nossos países libertar-se do domínio soviético. Ela
mesmo te disse muitas vezes que jamais poderíamos seguir
as politicas importantes para nosso pais pois somos
sempre forçados a priorizar o que é importante para eles.
Estávamos acompanhando, ainda que de longe, a luta de
nossos amigos contra o Governo de Rakosi e no mês de
julho, quando ele renunciou, o entusiasmo de todos e
especialmente de Eszter foi tão grande que ela passava
todo o dia procurando alguém que pudesse contar as
ultimas novidades do que estava acontecendo em
Budapest. Imagino que agora entendes o porque das
discussões tão violentas que tiveram desde então. Eszter
não te contava pois sabia que não poderias guardar em
segredo o que ela pensava, mas toda sua paixão estava ao
lado de nossos amigos de Budapest. E você, conhece tão
bem como eu a força das paixões de Eszter. Sempre que
ela quis algo, ninguém nunca lhe conseguiu parar. Hitler
não a queria judia e ela resistiu. Horthy não a queria
comunista e ela não se importou. Os soviéticos me
queriam morto e ela me salvou e ainda que tu, nosso
maior e mais querido amigo, a quisesse uma comunista
disciplinada e respeitadora das decisões do partido Eszter
se rebelou. Ela nunca aceitou imposições. Acho até que
100 tinha um pouco do sangue cigano de minha mãe e acho
que foi por isso que tanto lhe amei.
A cada semana que passava ela ficava mais inquieta até
que um dia lhe propus que fossemos a Budapest. Ela
estava tão entusiasmada que mesmo sabendo que o risco
era grande, decidimos viajar. Tamara podia ficar
cuidando de Morgen e nossos amigos nos ajudariam a
cruzar as fronteiras. Não te contamos pois sabíamos que
nunca nos permitiria viajar. Sabíamos que era una
traição, mas quem sabe vivendo de perto tudo o que
acontecia em Budapest ela poderia entender melhor o que
significava se libertar dos soviéticos e ai, quem sabe, ela
conseguiria convencer-te. Ela sempre soube que pela
posição que tens jamais poderias fazer o que estávamos
fazendo e sempre acreditou que no fundo tinhas as
mesmas duvidas, apenas que teu espirito disciplinado e
germânico, como ela dizia, jamais te permitiria questionar
ao partido.
Decisão tomada, passamos meses nos preparando. Apenas
em outubro conseguimos partir e viajamos de trem por
todo o final de semana para chegar em Praga e dali a
Budapest, onde chegamos na manhã de 22 de Outubro.
Podes imaginar o que foi para Eszter, depois de tantos
anos fora do pais regressar a Budapest exatamente
naquela segunda feira? Por sorte dormimos muito no trem
pois depois daquele dia foram poucas as noites de sono
que tivemos. Chegamos bem cedo. Eu tinha estado em
Budapest para o jogo de futebol contra os ingleses mas
Eszter não e passamos o resto da manhã passeando na
beira do rio, mas no inicio da tarde já era impossível
seguir caminhando. A excitação era enorme. Em todo
lugar jovens se reuniam para discutir a lista de
reinvindicações preparada pelos estudantes da
Universidade Técnica. Ali estava escrito tudo o que os
húngaros queriam e nunca tinham tido a coragem de
dizer. O primeiro ponto pedia a retirada das tropas
101 soviéticas de todo território húngaro. Propunham eleições
secretas para todas as posições do partido e eleições
diretas para a Assembleia Nacional. Como podes
imaginar Eszter estava eufórica pois era exatamente isto
que ela sempre te propôs para tua Alemanha. O
documento com os dezesseis pontos também propunha
levar a juízo todos aqueles que cometeram crimes contra a
democracia e incluía dois pontos emblemáticos: a
remoção imediata da estatua de Stalin e a remoção da
estrela comunista que representava o domínio soviético,
da bandeira húngara.
Como nossos amigos eram jornalistas, passamos aquela
noite no sindicato fazendo planos para o dia seguinte. Os
jornalistas estavam planejando junto com os estudantes
uma demonstração frente a estatua do General Joszef
Bem, um dos heróis da revolução húngara de 1848.
Imagino que conheces, aquela que esta em Buda na beira
do Danúbio.
Acordamos na terça bem cedo para preparar a
demonstração. Os mais otimistas diziam que seriamos
mais de mil pessoas na praça e ao inicio da tarde, quando
chegamos eram tantos os que ali estavam que ninguém
podia acreditar. Alguns diziam que éramos mais de vinte
mil pessoas e por onde você olhasse, mais gente vinha
chegando. Primeiro falou Veres pelos jornalistas e depois
alguns estudantes da Universidade leram os dezesseis
pontos da declaração.
A emoção tomava conta da praça e para onde quer que
olhássemos, gente mais gente vinha chegando com
bandeiras. Era como se toda Hungria estivesse unida em
seus pensamentos e a cidade outra vez fosse nossa. Era
impossível resistir a euforia que tomou conta de todos
quando os alto falantes começamos a escutar os versos de
Nemzeti Dal, o poema escrito por Petofi depois da
revolução de 1848 “Ate hoje fomos escravos” gritávamos
todos “Nossos antepassados escravos que livremente
102 viveram e morreram em solo de escravos não podem mais
descansar” Eszter tua amiga alemã e judia estava ao meu
lado em lagrimas declamando “Ao Deus dos húngaros te
juramos. E juramos que jamais voltaremos a ser
escravos” E todos ali, eufóricos, agitávamos as bandeiras
depois de anos de passividade e silencio em que nos
limitamos a observar os soviéticos entrando e saindo de
nosso pais como se fossemos um pais sem dignidade.
Estávamos ali naquele dia, fortes como o sol que nos
iluminava, corajosamente desafiando os soviéticos que
executaram a meu pai, que me deportaram para a Sibéria
e que mantiveram meu país no cativeiro por mas de dez
anos. Minha pele e meu peito estavam a ponto de explodir
e Eszter ao meu lado era toda pranto e sorrisos.
Escutar a todos na praça recitando juntos os versos de
Petofi era como se todos fossemos Puskas e os magiares
entrando em campo para defender nosso pais. A nossa
pátria húngara de que meu pai tanto falava e que foi
destroçada pelo Tratado de Trianon estava ali naquela
praça se dizendo presente.
Bem ao nosso lado um jovem estudante cortou com uma
tesoura a estrela soviética que estava ao centro da
bandeira. Foi do nosso lado e vimos quando ele fazia.
Quando ele começou a agitar a bandeira com aquele
buraco no meio, todos começaram a imita-lo e em poucos
minutos por toda a praça só o que se via eram as
bandeiras tricolores húngaras com aquele buraco no meio
voando sobre nossas cabeças. Éramos tantos que já não
cabíamos mais ali. Olhavas o rio e vias bandeiras em
todas as pontes e mesmo do lado de Pest. Eszter, quis sair
caminhando e cruzamos a ponte em direção ao
Parlamento e pelo que anunciava a radio já éramos mais
de duzentos mil demonstrando nas ruas. Você consegue
imaginar o que foi isso? Depois de anos de opressão e
silencio. Duzentas vezes mais do que esperávamos quando
saímos aquela manha do sindicato empunhando nossos
103 cartazes e bandeiras. E não era como as demonstrações
que fazemos aqui onde você sabe exatamente quantos são,
quem são e até que horas temos todos de permanecer. Ali
a demonstração não era uma imposição do partido e sim
um grito que saia de dentro do coração da cidade.
As oito da noite escutamos pelos pequenos rádios que
muitos tinham ali na praça do Parlamento a Gero
condenando o movimento. Escuta-lo foi escutar o governo
odiado dizendo que não reconhecia o que estávamos
gritando nas ruas e foi naquele momento que a aquela
massa de gente decidiu tomar a justiça em suas próprias
mãos. Um dos dezesseis pontos da reivindicação já estava
atendido pois com as mãos e com as tesouras, o símbolo
soviético tinha sido extirpado da bandeira húngara, mas
faltava outro; derrubar a estatua de Stalin, e aquilo que
de manha poucos teriam a ousadia de imaginar começou
a ocorrer bem ali em frente a nossos olhos. A multidão
com suas próprias mãos colocou a baixo aquela enorme
estatua. Ainda não eram dez da noite e a estatua já estava
no chão e Eszter, a tua amiga querida Eszter, foi uma das
mulheres que colocaram a bandeira húngara sem a estrela
soviética tremulando no que antes eram as botas da
estatua do ditador.
A cada minuto chegava alguém contando de um novo
enfrentamento e foi quando percebemos que as coisas
estavam tomando um rumo violento. Escutamos tiros e
apareceram os primeiros veículos de policia incendiados.
Acho que ninguém em Budapest pode dormir aquela noite.
Foi uma longa noite de escaramuças entre manifestantes e
policia e, o que não sabíamos, foi também uma noite onde
Gero solicitou apoio dos soviéticos para reprimir as
manifestações.
As três da manhã nos sentamos no apartamento de um
dentista, que conhecemos aquela noite e que nem me
recordo seu nome, para compartir um pedaço de queijo
com pão, a primeira coisa que colocávamos em nossos
104 estômagos naquele dia. Foi apenas ai que percebemos do
terraço do apartamento os tanques soviéticos entrando na
cidade. A radio nada dizia e ninguém sabia o que fazer.
Decidimos ficar ali e esperar o sol da manhã antes de
arriscar regressar as ruas e quando saímos do
apartamento tudo estava em silencio. Os soldados
soviéticos e seus tanques nos olhavam das esquinas e a
cidade estava completamente tomada.
Chegamos a pensar que tudo estava perdido e que o dia
anterior havia sido apenas um sonho, mas quando
reencontramos os primeiros amigos rapidamente
percebemos que ninguém estava disposto a aceitar que o
sonho havia terminado. Pouco a pouco apareceram as
primeiras barricadas e foram os estudantes que tomaram
a iniciativa. Tudo que haviam conhecido desde a sua
infância foi a guerra e a invasão soviética. Pela primeira
vez estavam experimentando o doce sabor de poder lutar
pela liberdade e não iam se entregar tão facilmente. Foi
incrível o que aconteceu. Ninguém estava preocupado em
morrer. Confesso que houve momentos em que tive um
pouco de medo mas acho que fui um dos poucos. Todos ali
queriam seguir lutando ate a morte e agora percebo, era
este o sentimento que movia Eszter.
Alguém passou dizendo que alguns estudantes estavam
distribuindo armas roubadas de um deposito da policia e
sem que tivesse tempo de pensar, Eszter e eu já estávamos
em uma das barricadas preparando e distribuindo
coquetéis Molotov. E Eszter tinha uma pistola com ela. A
cada hora que passava alguém contava de uma nova
vitória. Um tanque incendiado, uma rua retomada e
parecia que ninguém nos poderia parar. Não sabíamos
que entre as tropas soviéticas haviam instruções para
evitar enfrentamentos e chegamos a pensar que éramos
nos que os estávamos intimidando. Foi outra noite de lutas
intensas e alguns entre nos chegaram a desconfiar que os
soviéticos nos estavam jogando contra a policia húngara
105 mas ainda que fosse assim, nada importava pois
estávamos reconquistando a cidade.
Quando o sol outra vez voltou a iluminar a cidade e a
nevoa se dispersou Eszter e eu estávamos em uma
barricada frente ao Parlamento. Foi ali que escutamos
que o Governo Húngaro tinha caído e que seus principais
ministros tinham fugido para o aeroporto, e dali para
Moscou. Parecia outro sonho. Pela radio escutamos que
estavam formando um governo revolucionário liderado
por Nagy. Você sabe bem que as ideias de Nagy
representavam para Eszter uma nova esperança e ela não
era a única. Ainda cansados por dois dias de
enfrentamentos um enorme entusiasmo tomou conta das
ruas e praças de Budapest. Os tanques tinham
dificuldades em movimentar-se pelas ruas estreitas onde
eram presas fáceis dos coquetéis Molotov jogados dos
terraços dos apartamentos e como os soviéticos não
tinham ordens de disparar, eles não tinham como se
proteger e muitos tanques optaram por buscar posições
defensivas em lugares mais protegidos.
Os combates nas ruas seguiram por todo o final de
semana. Ninguém sabia muito bem quem estava dando as
ordens e tudo era um caos. Sabíamos que o novo governo
estava tentando coordenar as milícias. Ninguém sabia em
quem confiar até que finalmente no domingo anunciaram
o cessar fogo e na segunda feira, depois de toda uma
semana em Budapest, foi a primeira noite em que os dois
dormimos em um quarto e em uma cama.
Despertamos no outro dia felizes como a muito tempo não
havíamos despertado e Eszter estava especialmente linda
aquela manha. Tomamos o café da manha na casa de
uma senhora que se chamava Lusja, professora de uma
escola primaria que estava feliz pois sua Hungria
finalmente estava livre. E foi naquele café da manha que
Eszter e eu decidimos que apenas voltaríamos a Berlim
para buscar Morgen e que iriamos viver em Budapest
106 para provar que era possível construir uma sociedade
socialista e humana sem ter que obedecer as instruções do
Politburo soviético.
A vida voltou a normalizar-se e na terça feira já se notava
que a maioria dos tanques soviéticos tinham saído de
Budapest. Chegamos a participar de reuniões com os
membros do novo governo para discutir a reorganização
da cidade. Quem ia tomar conta das novas escolas, as
milícias e ate quem ia recolher o lixo? Todos estávamos
eufóricos e não sabíamos que enquanto sonhávamos os
soviéticos já estavam preparando seu exercito para uma
nova invasão, mas desta vez com muito mais organização
e muito mais força.
Trabalhamos toda semana como se fossemos cidadãos de
Budapest e ate chegamos a escrever a Tamara dizendo
que voltaríamos para buscar Morgen, mas chegou o
sábado. Os militares soviéticos convidaram uma
delegação do novo governo para negociar os termos de
sua retirada do pais e para surpresa de todos, quando a
delegação foi ao encontro deles, foram todos presos. No
domingo 4 de Novembro os tanques soviéticos entraram
outra vez na cidade . As milícias não estavam nas ruas e
os principais lideres do movimento estavam presos. Por
todos os lados discutíamos nossas opções e esta ansiedade
seguiu por toda a noite ate que as 6 da manha escutamos
pela radio a Nagy fazendo um apelo desesperado. Todo o
pais estava sendo tomado e já não sabíamos o que fazer.
Alguns tentaram resistir. Se já havíamos derrotado os
tanques soviéticos uma vez poderíamos repeti-lo. Não
sabíamos que as instruções dos soldados eram outras e as
poucas pessoas que tentaram se aproximar dos tanques
com Molotovs foram atingidos e entre elas a nossa Eszter.
Não te posso contar como foi pois não estava ao seu lado.
Fui com um grupo buscar algumas armas que estavam
escondidas com nossas milícias e quando regressei ela
estava ferida e sangrava. O que aconteceu depois, você já
107 sabe. Entrei em contato contigo e graças a tua ajuda
conseguimos tomar um trem para regressar. Mas a bala
que estava no seu corpo tinha chegado muito perto do
pulmão e ela não resistiu. Chegamos a Praga no dia 8 e
lembro que ao chegar escutei que Janus Kadar estava
assumindo o governo com o apoio dos soviéticos. E no dia
seguinte Eszter morreu, antes de chegar a Berlim, antes de
abraçar a Morgen e antes mesmo de pedir-te perdão por
nossa traição.
108 16
Na África, entre a amizade com Tamara
e as aventuras do Che.
– Quem diria! –foi o comentário emocionado de Heitor– o
húngaro que quase nunca falava e que ninguém dava a menor
importância foi um grande violinista que tocou para Hitler, um
prisioneiro de guerra no Gulag siberiano e um revolucionário
nas ruas de Budapest.
Jordi estava ainda mais surpreso:
– E nós que pensávamos que o único que lhe interessava eram
suas aulas de musica –e depois de uma pausa para recordar seu
professor onde o pensamento rapidamente voou para a
lembrança de seu amor distante, comentou sorrindo– Tenho de
contar a Cristina que seu professor de musica que parecia
perdido nos ensaios da orquestra fazia coquetéis Molotov nas
barricadas para enfrentar os tanques soviéticos.
Frida, a quem o passado revolucionário do húngaro não
impressionava, disparou com um ar de desgosto:
– Eu vou dizer uma coisa e sei que vocês não vão gostar mas
para mim este Otto era da Stasi – e Heitor entendeu muito bem o
que ela estava pensando. Bebéi e Jordi não tinham a menor ideia
do que significava Stasi e Heitor explicou:
– A Stasi era o serviço secreto da Alemanha Oriental mas
naqueles tempos os agentes do serviço secreto não era simpático
como a Senhora da embaixada americana ou mesmo nossa
amiga a Anã Chinesa. Eles eram duros, desconfiados e
controlavam todos os movimentos da gente.
109 – E se ele era da Stasi –dizia Frida que já começava a dar sinais
de que as garrafas de vinho lhe estavam confundindo as
palavras– isso significa que Eszter era da Stasi e que teu vizinho
que não era um nazista filho da puta, era um grande filho da
puta por ser da Stasi.
Bebéi se assustou com o comentário mas Heitor tentou aclarar:
– Melhor não precipitar as conclusões. Sabemos que o húngaro
foi apaixonado por sua Eszter e que ela morreu em 1956. Não
estamos seguros que ele era da Stasi, mas sabemos que ele
trabalhava para Otto e que depois desta carta provavelmente
perdeu seu emprego. Sabemos também que ele já não podia
mais tocar o violino; que gostava de assistir a jogos de futebol e
que; nesta época, tinha uma filha de cinco anos e era amigo de
Tamara.
Bebéi e Jordi escutavam interessados mas Frida já dava sinais de
estar inquieta. Foi com muito esforço que Heitor lhe convenceu
a dar uma rápida olhada nas notas que mencionavam Tamara
Bunke. Eram notas bem curtas escritas pela própria Tamara.
Aparentemente ela não lhe gostava escrever.
Havia uma fotografia de Tamara, ainda criança e atrás estava
escrito Tamara nasceu em Novembro de 1937 no mesmo mês em
que Lali morreu
– Tamara era uma mulher bonita, pode ser que teu vizinho se
apaixonou por ela depois da morte de Eszter –comentou Frida.
– Não creio –disse Heitor– Arpad tinha trinta anos e Tamara
apenas dezoito.
– Isso é o que você pensa por ser um velho moralista– retrucou
Frida já nos limites da sobriedade– não te esqueça que o Che
tinha mais ou menos a mesma idade deste filho da puta da Stasi
vizinho do nosso Bebéi.
Heitor insistiu com Frida para que ela traduzisse as notas de
Tamara mas Bebéi estava assustado. Ele sabia que quando Frida
ficava bêbada ela era imprevisível e normalmente violenta.
110 – Existe uma nota de 54 – comentou Frida– creio que foi
quando os dois foram a Suíça para ver o jogo de futebol:
“Aproveitem o jogo. Graças por confiar em mim e deixar sua
filha comigo. Ela é um encanto e como sua avó e sua mãe, é
rebelde e ama a liberdade. Já descobri que é impossível dizer a
pequena Morgen o que ela deve ou não deve fazer.
Frida a estas alturas já estava esvaziando a garrafa de uísque
escocês que o prefeito tinha dado de presente a Bebéi no dia em
que ele foi nomeado General da Banda. Os vinhos e a vodca já
tinham acabado.
– Outra nota é de 57 “Como são os argelinos? Eles se parecem
com os argentinos que te descrevi? Morgen esta bem. Todos
estamos felizes em poder cuidar dela. Não te preocupes por
nada. Continuo achando que você estaria melhor aqui em
Berlim mas o Senhor Otto me disse que ainda tristes temos de
respeitar tua decisão.”
Bebéi explicou que pelas notas que estavam no livro de Auden,
depois da morte de Eszter, Arpad foi viver em Argel e foi Heitor
quem recordou a todos que Tamara tinha nascido e vivido em
Buenos Aires ate seus quinze anos.
– Será que foi outra vez esse safado da Stasi que mandou Arpad
para Argel –comentou Frida demonstrando uma clara antipatia
por tudo o que se referia a Otto.
– Não creio – retrucou Jordi– a nota de Tamara dá a entender
que Otto preferia que ele estivesse em Berlim.
Foi quando Bebéi lembrou que na carta do arquivista de
Budapest, ele dizia que o Almirante Horthy queria que Arpad
aceitasse o trabalho que seu amigo o “embaixador” estava
oferecendo e comentou:
– Será que ele aceitou aquele trabalho?
– E que trabalho era este –perguntou Heitor e Bebéi decidiu
buscar a carta para mostrar exatamente o que arquivista de
Budapest tinha escrito:
111 “era muito importante aceitar o trabalho que seu amigo
“o embaixador” lhe estava oferecendo... ainda que Arpad
não pudesse mais defender sua pátria tocando a Dança
Húngara, seu pai se sentiria muito orgulhoso em saber
que seu filho estava lutando para reconquistar a liberdade
de todos os húngaros.
– Um trabalho importante oferecido pelo embaixador onde ele
estaria “lutando para reconquistar a liberdade.” Que trabalho
poderia ser este? – comentou Heitor pensativo.
A impaciência de Frida já era bem visível e Heitor preferiu
aproveitar o pouco que restava para tentar entender o que diziam
as notas de Tamara, deixando o tema do trabalho do húngaro
para mais tarde.
– Existe uma outra nota, esta de 59 –continuou Frida.
Que alegria saber que vens a Berlim mas estou triste por
saber que te transferiram para a África. E te confesso que
a minha tristeza não é por você, pois sei que estas fazendo
tudo para recuperar a tua felicidade, mas sinto por
Morgen. Ela é muito especial para mim. Saiba que ainda
triste, sei que o que você esta fazendo é o correto. Ainda
que goste muito dessa menina briguenta e rebelde, creio
que ela tem de estar próxima a seu pai.
E com aquela nota a paciência de Frida acabou. Havia uma nota
mais onde Tamara mencionava o Che mas foi impossível
segura-la ali:
– Até agora me comportei muito bem –e com esta frase ficou de
pé e caminhou em direção a porta– Tua gaivota esta encantada
com teu apartamento, mas eu sou como Lali e prefiro estar no
meio da rua.
Bebéi estava contente, pelo menos haviam avançado. Não
sabiam ainda que trabalho o húngaro fazia mas sabiam que
depois da morte de Eszter ele foi viver sozinho na Argélia e dali
foi “transferido” para Kinshasa no Congo junto com sua filha
Morgen.
112 – Quem foi que lhe transferiu? –perguntou Bebéi e ninguém ali
sabia responder.
– Sabemos também –comentou Heitor– que em 1960 ele
regressou a Alemanha ainda que por pouco tempo, pois foi
quando Tamara conheceu o Che e os três se encontraram
naquela mesa de bar da fotografia de Leipzig.
Heitor estava feliz por descobrir coisas sobre o húngaro, seu
colega na escola, mas seu grande interesse era o Che, e se Frida
já não estava para traduzir as cartas de Tamara, Bebéi tinha com
ele as notas de Guevara que estavam no livro de Gunter Grass.
Eram trens notas de poucas linhas assinadas por ele. A primeira
de 61 onde o Che contava a Arpad como Tamara estava se
adaptando a vida em Havana. A segunda de 64 onde o Che
mencionava que ia estar próximo a Kinshasa em Congo
Brazzaville e queria que Arpad fosse encontra-lo ali. A terceira
era de 1966 contando que havia reencontrado Tamara e que
agradecia por tudo o que ele fez para ajuda-lo “ainda que de
longe” nos tempos em que ele esteve no Congo e terminava
dizendo. “Lastima que não conseguimos o sonho que
buscávamos.”
Com as notas na mão Heitor, fez todo um discurso que Jordi
seguiu sem perder palavra, explicando que o Che tinha estado
no Congo, provavelmente no mesmo período em que Arpad
viveu ali liderando uma força internacionalista cubana que
apoiava o Movimento Simba contra o governo de Mobutu.
Heitor não tinha claro as datas e foi por isso a sugestão de Jordi
de fazer uma visita a Jose Princesa. O velho professor comunista
falava com paixão dos movimentos de libertação africanos que
ocorreram nos anos sessenta, mas ele não conhecia os detalhes
tão bem como Princesa. Como Bebéi sempre dizia a todos com
orgulho, Princesa sabia tudo pois lia os livros antes de vende-los
o que obviamente apenas era verdade quando ele não estava
cantando como Lola Marlene no cabaré.
113 Por tudo que tinham lido, Arpad deveria estar de alguma forma
envolvido com o que se passou ali naquele período.
– Ainda mais sabendo agora que o Che esteve por ali e era seu
amigo –comentou Jordi que se entretinha com todas as
descobertas sobre a vida de seu professor de musica– Não vejo a
hora de contar a Cristina.
Antes de sair ele aproveitou para explicar seus planos para o
lançamento do jornal. Para ele ainda mais importante que
entender o que fazia o húngaro, era organizar a resistência ao
prefeito em Santa Clara.
– A ideia é fazer um pequeno jornal para informar a todos das
coisas que se passam por aqui. Os grandes jornais nacionais não
contam as coisas que são importantes para nossa cidade. Frei
Bernardo quer convencer as pessoas que vivem em Santa Clara
a não pagar mais subornos. Já Carmela e eu estamos mais
preocupados com os planos da Nova Santa Clara. Se o prefeito
consegue construir esta cidade, todos que hoje vivemos aqui
vamos ser obrigados a mudar para outro lugar – E seguia
contando entusiasmado– Vamos começar com um pequeno
jornal de quatro paginas. Digo quatro paginas, mas na verdade
será uma única pagina impressa frente e verso que depois vamos
dobrar no meio. Tem de ser algo bem simples pois não temos
dinheiro. Vamos imprimir dois mil exemplares e já conseguimos
os recursos para financiar todos os gastos do primeiro numero.
Utilizaremos o carro da Gigi para o que for necessário e o
apartamento deles para as reuniões editorias. A casa da Carmela
vamos utilizar para deposito do material e a impressora vai ficar
atrás da barbearia de Rasta Bong. Os artigos serão escritos por
nos mesmos utilizando o computador de Cristina aproveitando
que ela esta nos Estados Unidos.
– Não sei se é suficiente para enfrentar o poder do prefeito mas
certamente já é um bom começo– foi o comentário de Heitor e
com isto terminaram a reunião.
114 17
Para quem trabalhava o húngaro, para
os gringos ou para os vermelhos?
No dia seguinte, ao sair da embaixada, Bebéi encontrou com
Jordi que o esperava na Praça do Libertador Bolívar. Heitor não
pode se juntar a eles, pois ex-chefe da célula comunista estava
aproveitando aquela tarde para fazer algumas compras no
supermercado a pedido de Dona Lourdes.
Os dois foram ao atelier de Lola Marlene que ficou feliz quando
soube a razão da visita. Todo o sucesso que vinha fazendo
desenhando vestidos tinham facilitado muito sua vida mas sua
paixão continuava sendo os livros. Tudo estava tão bem que já
ninguém mais lhe perguntava quando ia fechar a livraria. Pagava
todas as despesas e os prejuízos já não eram tão grandes pois,
seguindo uma sugestão de Diana, a americana mochileira, tinha
comprado uma maquina italiana e estava servindo café em umas
mesinhas colocadas em frente a livraria. Como ele mesmo
explicava:
– Se não compram livros, pelo menos assim se sentem bem ao
tomar um café olhando para eles.
Sua ultima novidade era um auto usado que havia comprado e
que graças a um desenho que ela mesmo fez e ao trabalho de
alguns amigos, foi pintado a mão com todas as cores do arco íris
e chamava a atenção dos turistas que paravam ali na Praça da
Catedral para tirar fotografias ao lado do carro.
Princesa ao perceber que a conversa seria longa preferiu trocar o
elegante modelo turquesa e amarelo que estava usando para
115 impressionar as clientes e colocar algo mais apropriado para
uma discussão de historia africana e colocou sus velhas calças
jeans, uma camisa quase discreta, branca com pequenas flores
rosadas, o chapéu rosa de beisebol e sentou com eles
entusiasmado em uma das mesas da calçada.
– Melhor começar pela historia do Congo nos anos sessenta –
disse Princesa bebendo um cappuccino que ali na livraria ele
servia em copos altos de vidro– entendo que foi neste período
que o húngaro que era amigo do Che viveu em Kinshasa. E para
entender o que passou ali naquele período é importante que
entendam tudo que aconteceu na África naqueles anos de guerra
fria quando americanos e soviéticos buscavam aumentar sua
influencia internacional. Naqueles tempos o mundo se dividia
entre o primeiro mundo dos países desenvolvidos capitalistas, o
segundo mundo dos países comunistas e o terceiro mundo dos
países menos desenvolvidos onde se incluíam todos os países
africanos. E todos lutavam contra todos.
Bebéi se confundia um pouco com aquelas explicações mais
sofisticadas mas ele sabia que para Jordi era importante
conhecer os detalhes de tudo o que havia passado.
– O Congo –seguia Princesa– foi um dos primeiros países a
buscar sua independência e um dos que mais sofreu com aquela
disputa. A primeira nota que estava dentro do livro de Conrad é
de 1960 e pelo que percebi foi escrita por alguém próximo aos
americanos. Ela menciona Patrício Lumumba que foi o primeiro
líder da luta africana contra o imperialismo europeu. O Congo
era uma colônia belga e ele lutou contra os europeus para levar
seu pais a independência. Pelo que sempre li era uma pessoa
brilhante e a nota que o húngaro guardava confirma isso quando
reconhece “que ele era um homem inteligente, capaz de liderar
a construção da nova nação independente do Congo” E digo
que é uma nota escrita por alguém dos americanos pois depois
de falar bem dele, propunham elimina-lo. Segundo a nota “suas
ideias de criar uma democracia onde todos tivessem os mesmos
direitos tinha aproximado Lumumba dos soviéticos” O curioso
é que a mesma nota menciona um outro líder, mas deste apenas
116 citam coisas negativas. Alguém que não parecia ser inteligente,
que era ambicioso, corrupto, violento e chegam ate a dizer
“alguns consideram ele um animal, e provavelmente tem razão,
mas pelo menos é o nosso animal” Por isto é que me parece
uma carta escrita por alguém próximo aos americanos que
consideravam Lumumba como ficha dos soviéticos. Vejam que
a nota chega a mencionar que o outro “não serve para conduzir
o pais, mas pode ajudar-nos a liquidar Lumumba e depois
encontraremos alguém que possa cuidar dele” E isso me leva a
uma pergunta –Vocês já descobriram que fazia o húngaro no
Congo?
– Quando estava na Alemanha, antes de ir a África, suspeitamos
que ele trabalhava para a Stasi – foi a resposta de Jordi.
Bebéi não respondeu nada pois estava um pouco confuso com
tudo o que escutava. Lumumba era bom e tinha de ser eliminado
e o outro era um animal mas que era o “nosso” animal e deveria
ser apoiado. Será que ele tinha entendido bem?
– Isso parece estranho –comentou Princesa– primeiro porque
não acredito que a Stasi estivesse ativa na África. Pelo lado dos
países comunistas quem cuidava dos temas africanos era a KGB.
A Stasi era uma agencia orientada a preservar o comunismo na
Alemanha Oriental e esta carta parece muito mais ser uma carta
de alguém que trabalhava para o CIA, que era a agencia que
coordenava a ação americana na África.
Depois de fazer este comentário, Princesa ficou em silencio,
como se estivesse pensando em algo, mas não falou nada e
seguiu lendo a segunda nota que Bebéi lhe entregou de 1965.
– Esta nota é ainda mais curiosa. Pelo que vocês me contaram o
Húngaro era amigo do Che e o que sabemos com certeza, pois
ele chegou a escrever um livro sobre isso “O Diário do Congo”
é que Guevara esteve no Congo em 1965 e 1966, apoiando a
revolução Simba. No entanto esta nota que o húngaro guardava
é dos americanos e comenta as varias execuções que o governo
do Congo ordenou contra opositores e a necessidade de apoialas. Parece um pouco com a outra nota pois menciona
117 especificamente a “importância de convencer os Tutsis a apoiar
Mobutu e lutar contra a gente de Pierre Mulele que esta
tentando fomentar um golpe de estado” e por isso não faz
sentido que seja de alguém amigo do Che, pois era exatamente
ao grupo de Pierre Mulele que Guevara estava apoiando com
seus guerrilheiros cubanos.
José Princesa olhou para os dois com uma expressão travessa no
rosto e os provocou com uma inocente pergunta:
– Será que o húngaro trabalhava para a Stasi ou será que ele
trabalhava para a CIA, ou ainda pior, será que o húngaro era um
agente duplo –e comentou com uma expressão quase infantil–
isso esta ainda mais interessante que os livros de Le Carré. Que
mais vocês sabem deste húngaro que eu já estou apaixonado por
ele?
E quem respondeu foi Jordi:
– Bebéi também tem uma carta do Almirante Horthy, regente da
Hungria onde segundo o que traduziu o arquivista de Budapest
ele insiste para que Arpad aceite o emprego que um
“embaixador” lhe estava oferecendo, mas não sabemos quem
era este embaixador.
Quebra cabeças assim era o que mais encantava a Princesa e ele
foi imediatamente consultar alguns livros sobre a guerra e
algumas fontes na internet. Não tomou muito tempo ele voltou a
se juntar aos dois que continuavam sentados na mesinha da
livraria:
– O grande amigo de Horthy, que praticamente financiou sua
vida durante o exilio em Portugal foi o embaixador americano
John Montgomery e é por isso que eu pergunto. Para quem ele
trabalhava? Para os vermelhos ou para os gringos?
Jordi aproveitou para mencionar a carta do Che onde estava
escrito que Arpad havia ajudado no Congo e utilizava a
expressão “de longe”
118 – Será que o húngaro era um agente duplo? –voltou a insistir
Princesa e a imaginação de Bebéi saltou voando ainda mais alto
que a gaivota.
Quantos livros ele havia lido contando historias de espiões
internacionais e agora, no apartamento de baixo ao seu tinha
vivido um agente duplo da guerra fria. Pouco importava que ele
não o tivesse conhecido. Arpad viveu num apartamento como o
seu e todos os seus livros, suas notas e suas recordações estavam
agora no seu apartamento. Que mistérios escondia aquela chave
guardada no livro de Zola, pensava Bebéi, que agora se sentia
como um agente internacional a caça de espiões.
Os três seguiram conversando animados e apenas não ficaram
por mais tempo pois aquela era uma noite de espetáculos no
cabaré e Lola Marlene tinha de se preparar. Desde que fecharam
o Gata Caliente que os travestis levaram seu espetáculo para o
cabaré da Anã Chinesa onde Lola Marlene era a atração
principal recriando as canções românticas de Edith Piaf.
Ainda tiveram tempo aquela tarde para revisar rapidamente as
três outras notas que estavam no livro de Conrad sobre o Congo.
A primeira descrevia um plano para apoiar o desenvolvimento
de uma cidade chamada Kisangani. Pela letra se podia perceber
que tinha sido escrita por Arpad e citava os dez pontos que eram
importantes para desenvolver a cidade e toda região que
começava em Kisangani e chegava ate Bukavu, passando por
Lubuto.
– Kisangani é o nome da cidade do endereço de Laurence a neta
do húngaro – comentou Bebéi.
A segunda nota mencionava os Tutsis e descrevia um plano dos
soviéticos para fomentar a divisão entre dois grupos africanos,
os Hutus e os Tutsis e desestabilizar o controle que os
americanos tinham do pais com Mobutu.
– Quem a escreveu –comentou Princesa– propunha neutralizar a
influencia que os soviéticos tinham junto aos Hutus, ajudando
119 os Tutsis a ataca-los e menciona que seria possível aproveitar os
problemas que já existiam entre eles em Burundi.
A terceira era de 1974 e comentava a importância de convencer
Mobutu a combater as forças do MPLA em Angola pois
segundo a nota, Agostinho Neto o chefe do MPLA era muito
amigo dos soviéticos. A nota também dizia que era importante
convencer Mobutu que se Agostinho Neto conseguia controlar
Angola ele ia vender todo o petróleo do Enclave de Cabinda
para os russos e comentava “ainda que isso não seja verdade
pois estamos negociando com os angolanos para que assegurem
o aceso ao petróleo para as empresas americanas e italianas é
importante convencer Mobutu a lutar contra ele”
Ao sair da praça, Bebéi comentou com Jordi:
– E depois de todas estas aventuras ele veio viver em Santa
Clara onde não tinha amigos e onde nada perguntou por ele no
dia em que se foi. Quem pode entender?
120 18
Fim de semana agitado começa com a
banda e termina com a sanfona cigana
Nas noites de sexta feira a banda municipal se apresentava no
coreto bem ao centro da Praça da Catedral e como sempre, era
seu general quem abria o espetáculo com a faixa tricolor ao
peito acompanhado por seu fiel cachorro. Mas aquela noite pela
primeira vez desde que tinha sido nomeado solenemente pelo
prefeito, Bebéi teve de ir sozinho. Seu cachorro insistia em ficar
com a gaivota no terraço. Ele ate chegou a pensar que ele estava
doente mas pelas duvidas decidiu não insistir e acabou por
deixa-lo no apartamento. O que acabou por ser providencial pois
por mais absurdo que possa parecer, naquela sexta feira alguém
tentou entrar no seu apartamento.
A principio ninguém tinha muito claro o que estava acontecendo
pois o único que escutaram foram os latidos no terraço do
apartamento. E como sempre havia alguém ali na calçada
observando a gaivota, quando o cachorro começou a latir os que
estavam na rua rapidamente perceberam que alguma coisa
estranha estava acontecendo.
A porta do casarão estava fechada e como ninguém podia entrar
alguns vizinhos decidiram ir até a praça avisar Bebéi que
regressou rapidamente pensando que alguma coisa tinha
acontecido com a gaivota. E como ele saiu da praça correndo,
Dioclecio que estava por perto, percebeu que alguma coisa
anormal estava acontecendo e comentou com Tenente Pirilo que
que não se lembrava de haver escutado antes alguém dizer que
121 Bebéi estava correndo e também preferiu deixar a banda
tocando sozinha para segui-lo até o apartamento.
Quando chegaram ali tudo parecia normal. A porta do casarão
não havia sido forçada e nem a porta do apartamento que
permanecia fechada. Quando Bebéi entrou o cachorro parou de
latir, mas estava claramente agitado sinal de que alguma coisa
havia acontecido.
Até então Pirilo não tinha dado muita atenção as câmeras de
vigilância, mas decidiu aproveitar aquela noite para voltar a
prefeitura e rever o vídeo gravado pela câmera colocada na
esquina do casarão e percebeu que no vídeo se podiam ver
claramente duas pessoas que entraram no casarão normalmente
pela porta da entrada e o curioso é que depois não mais saíram.
– ¿Como é possível que entraram e não saíram? –perguntou
Pirilo a seus assistente que voltaram ao casarão, entraram nos
quatro apartamento, incluindo o do húngaro e constataram que
os dois provavelmente saíram saltando o muro, pois o arame de
proteção tinha sido cortado.
– Se entraram pela porta e saíram pelo muro e por que boa coisa
não estavam fazendo ali – concluiu Pirilo.
Pediu os vídeos das cinco câmeras que estavam instaladas na
cidade e passou a noite vendo e revendo cada um deles. Que
falta ele sentia de Cristina sua assistente, mas sem ela por ali, ele
mesmo teve de revisar cada um deles e observou que os dois
homens que entraram no casarão, apareceram, alguns minutos
depois, cruzando a praça do Bolívar na entrada do calçadão, e ai
não eram dois mas sim três, pois havia mais um com eles.
Pirilo revisou outra vez o vídeo da câmera na porta do casarão e
percebeu que o terceiro que aparecia na praça passou duas vezes
frente a porta e depois de passar a segunda vez ficou parado na
esquina junto com os outros que observavam a gaivota no
terraço. No vídeo era até possível perceber quando ele ficou
tenso, provavelmente quando o cachorro começou a latir e foi
embora.
122 – Esta claro –concluiu Pirilo– Eram três, um ficou na rua e os
outros dois entraram no apartamento usando uma chave que por
alguma razão conseguiram. Subiram as escadas, provavelmente
pensando que como era dia de apresentação da banda, Bebéi
estaria na praça junto com o seu cachorro e quando o cachorro
começou a latir, saíram correndo saltando o muro e voltaram a
se encontrar outra vez na entrada do calçadão.
Nos vídeos era impossível reconhece-los pois os três estavam de
óculos escuros e usavam gorros que cobriam a cabeça, mas
pelas roupas e pelo jeito de caminhar não pareciam com nenhum
dos marginais conhecidos em Santa Clara.
Em Santa Clara nunca ninguém tinha sido roubado e desde o dia
em que Bebéi descobriu que o apartamento vazio do húngaro
estava cheio que dois roubos tinham acontecido em menos de
três semanas. No primeiro levaram tudo o que o húngaro tinha
deixado no apartamento, será que este segundo era para roubar o
que tinham deixado.
– Acho que não –dizia Bebéi a Pirilo– desconfio que esta vez o
que queriam era gaivota.
Uma ideia que parecia completamente absurda ao tenente, mas
Bebéi insistia.
– O cachorro não quis me acompanhar ao concerto. Alguma
coisa ele estava prevendo pois por mais que insistisse ele não
quis sair do terraço e lá ficou com sua amiga gaivota.
A verdade é que Tenente Pirilo estava completamente perdido.
Ninguém ia entrar num apartamento para roubar uma gaivota, e
quem iria se interessar por alguns livros que guardavam umas
notas contando o que o húngaro tinha feito antes de se mudar
para Santa Clara? Pelas duvidas ele decidiu reforçar a segurança
no apartamento e até propôs que Bebéi guardasse os
documentos com elena prefeitura. Ate então Pirilo ainda não
sabia da chave. Este era um segredo que apenas Irigandi
conhecia.
123 Bebéi aceitou e com ajuda de Pirilo, colocou todas as notas que
estavam nos livros em pastas azuis, uma para cada livro, de
modo a não confundir os arquivos e levaram as pastas para o
cofre que Pirilo tinha em seu escritório.
Como sua equipe ainda não sabia utilizar muito bem toda aquela
parafernália tecnológica de segurança, Pirilo pediu ajuda a
senhora da embaixada americana. Teve de explicar a historia da
nova tentativa de roubo e ela se preocupou. Tinha muito carinho
por Bebéi e se interessou por saber mais do que havia
acontecido. Mandou seus assistentes a prefeitura para ajudar a
equipe de Pirilo a identificar os três que apareciam no vídeo e
com a ajuda deles, descobriram nas imagem de uma das câmeras
que estava colocado frente a prefeitura, o automóvel em que eles
chegaram a cidade e a partir dai descobriram que era um auto
alugado. Na locadora descobriram que o aluguel foi feito com
um documento falsificado e conseguiram encontrar as
impressões digitais no carro. Com isto e com a ajuda dos
sistemas de informação a que a Senhora tinha acesso,
descobriram que as digitais eram de um peruano que vivia em
Miami.
Em Miami, já na manhã de domingo o peruano foi preso e
confessou que tinha sido contratado por um cubano que vivia
em Little Habana. Naquela mesma tarde o cubano acabou por
confessar que tinha sido contratado por outro cubano, dono de
um restaurante que era conhecido por agenciar trabalhos
especiais. Na noite de domingo alguns agentes do FBI fizeram
uma visita ao dono do restaurante que tranquilamente comia
uma pizza na sua casa com a família e que para evitar maiores
problemas, confessou que quem havia encomendado o serviço
era um escritório de advogados que estava interessado em obter
alguns documentos e que era o mesmo escritório de advogados
que administrava os bens do húngaro.
Não fizeram nenhuma prisão pois ninguém havia cometido um
crime e todas informações deveriam ser tratadas com o maior
sigilo, pois como explicou a Senhora:
124 – Não utilizamos os métodos legais tradicionais de investigação
e é melhor que ninguém saiba o que fizemos.
Pirilo entendeu, mas aquela nova tentativa de roubo, lhe deixou
ainda mais intrigado.
– ¿Que havia de tão importante ali? –perguntava ele a seus
assistentes enquanto pensava na falta que Cristina lhe fazia.
Desde que ela viajou para os Estados Unidos seus assistentes
nunca mais foram capazes de responder as suas perguntas.
E Tenente Pirilo não era o único a estar curioso. Depois de sair
de seu escritório na prefeitura a Senhora circulou com seu
motorista pela cidade até encontrar Bebéi passeando com seu
cachorro pelo calçadão. Era uma noite tranquila de domingo e
ela saltou do carro para acompanha-lo em sua caminhada e foi
com ele até a praça onde os dois se sentaram no mesmo banco
em que Dioclecio dava de comer a seus gatos. A praça estava
cheia de casais que aproveitavam a tranquilidade daquele noite
para escutar a sanfona do cigano que tocava sentado nos degraus
do coreto com a gata amarela de Dioclecio aos seus pés.
A Senhora tinha algumas perguntas. Por que as tinha? Ela
mesmo não sabia. Talvez por ser alguém que em toda sua vida
trabalhou com os serviços de inteligência e sempre estava atenta
em busca de novas pistas, ou talvez porque como Grená, gostava
de saber de tudo o que passava na cidade. O que ela sabia com
certeza é que Bebéi tinha um bom olfato para descobrir coisas
que os outros não conseguiam entender. Foi assim com o
Condor e também depois com a canadense. O que começou com
uma simples curiosidade de Bebéi acabou por levar a
interessantes descobertas e se ele estava interessado no húngaro
e alguém estava interessado em rouba-lo por isso, é por que ali
havia alguma coisa especial.
Bebéi lhe contou o que dizia a carta do amigo de Budapest,
contou a historia de Lali, de Eszter e dos jogos de futebol.
Contou também das suspeitas que eles tinham de que o Húngaro
tinha trabalhado para a Stasi e até o que disse Princesa de que
talvez ele fosse um duplo agente que também trabalhava para o
125 CIA. Contou também da foto de seu pai na Argélia e das cartas
do Congo. Contou do convite de Hitler e da foto do Che. E ela
escutou com simpatias o entusiasmo de Bebéi em descobrir
quem era o vizinho solitário que ele nunca conheceu.
Do ponto de vista pratico, nada ali lhe interessava pois tudo o
que ele contava eram historias dos anos sessenta e setenta
quando o muro de Berlim dividia o mundo e a guerra fria era a
principal preocupação dos serviços de inteligência americanos.
Bons tempos aqueles, pensava a Senhora quando pelo menos
sabíamos quem eram nossos inimigos e contra quem estávamos
lutando.
Escutou toda a historia e até se comprometeu com Bebéi a
ajuda-lo a descobrir se Arpad tinha trabalhado para o serviço
secreto americano. Tinha a mesma duvida de Pirilo. Que
estavam procurando os advogados de Miami no apartamento de
Bebéi? Certamente que o roubo não tinha nada a ver com todas
as historias românticas de futebol e de espiões que Bebéi lhe
contou, mas por alguma razão eles tinha contratado alguns
especialistas para roubar tudo o que o húngaro tinha em seu
apartamento e como provavelmente não haviam encontrado o
que estavam buscando regressaram. Mas isso tudo certamente
não era pela historia do húngaro. Se eles contrataram os
especialistas é porque havia algo ali que valia dinheiro. E era
isso que ela tinha de descobrir. Será que era a gaivota?
Ela se foi e Bebéi permaneceu na praça com Dioclecio. Ele tinha
mais um problema a resolver aquela noite e quem sabe
Dioclecio lhe podia ajudar. Ele não conhecia ninguém em Santa
Clara que entendesse o tcheco das notas que estavam no livro de
Pasternak. Dioclecio contou que uma das mulheres que
trabalhavam na Rua das Francesas e que muitas vezes cruzava a
praça da catedral depois de atender a seus clientes no hotel era
tcheca. Quem sabe ela poderia ajudar?
126 19
Noite de reunião no Café de Ilona para
escutar “L’Orgue de Barbarie”
A reunião foi convocada por Rasta Bong e o tema era a pizzaria
do Frade. Ele seguia preocupado com a insistência de Frei
Bernardo em não pagar as “comissões” o que estava atrasando e
muito a inauguração do restaurante. Como Rasta sabia que o
frade escutava Ilona, preferiu fazer a reunião no Café e para não
repetir o mesmo erro, marcou o encontro para a noite que era
quando Ilona sempre estava bem desperta. Verdade que
naqueles dias Ilona andava um pouco triste; Paul estava já a dias
viajando pelo Oriente Médio buscando extraterrestres, como ela
mesmo explicava. Junto com ela e Rasta Bong aquela noite
também estavam no Café Gigi, Dioclecio, Bebéi e Jordi.
– Você não pode continuar com esta teimosia– insistia Rasta–
Conseguiu a licença dos bombeiros e sei que a autorização do
patrimônio histórico esta por sair graças a pressão que Ilona e
Princesa fizeram no chefe da agencia mas ainda falta a licença
de saúde isso sem falar da autorização da prefeitura para poder
servir bebidas alcoólicas
Frei Bernardo escutava o que dizia seu amigo Rasta, mas
retrucava:
– Todos equipamentos que compramos são de primeira, iguais
aos de Ilona apenas que mais novos. As contratações são apenas
cinco e todos já estão trabalhando em outros restaurantes e negar
a licença de bebidas alcoólicas é um absurdo pois apenas vamos
vender algumas garrafas de cerveja e uns poucos copos de vinho
para acompanhar as pizzas. Nossas vendas de todo um mês vão
127 ser menores que as de Ilona em uma única noite e mesmo assim
estão questionando.
Rasta insistia:
– Juanita também tinha equipamentos tão bons como os teus,
empregados registrados e quase não vende bebidas mas mesmo
assim teve de pagar as comissões... e pagou. A cooperativa tem
salva vidas em todos os botes mas toda semana temos de pagar
um pedágio para o fiscal do porto. Um dia que Miguel estava de
lua e decidiu não pagar, eles nos fizeram tirar todos os salvavidas dos barcos e coloca-los no cais para fazer a contagem e
com isso tivemos de suspender os passeios da manha e deixar os
turistas reclamando no cais.
– É exatamente por isso que quero insistir –interrompeu o frade–
Não é possível que sigamos aceitando esta corrupção – e seguiu
com seu discurso que todos ali conheciam bem.
Ilona nunca opinava sobre as decisões de seus amigos “Cada um
tem a sua cabeça, pensa o que quiser pensar e faz o que tiver
vontade” e Dioclecio não necessitava falar. Ali todos sabiam
que o velho filosofo era um dos que mais incentivavam o frade
na sua cruzada moralizadora. Rasta chegou ate a pedir ajuda a
Gigi mas ela também preferiu ficar calada. Ela tomava as suas
decisões que incluíam os voos não tão legais que pilotava e o
frade não se metia o que lhe dava o direito de fazer o que queria
com a sua pizzaria. Rasta não estava contente, mas não era
muito o que podia fazer e como Jordi e Bebéi também estavam
por ali, eles deixaram de lado a discussão da teimosia do frade e
aproveitaram para conversar um pouco sobre o novo jornal que
estava quase pronto para ser lançado mas que ainda não tinha
um nome.
Rasta Bong propôs “O Leão de Judá” e como ninguém aceitou e
nem queriam mais conversar sobre a pizzaria ele se foi ate o
fundo do terraço e ali sozinho acendeu um de seus cigarros.
Ilona propôs “A Gaivota” e o nome era simpático pois todos
conheciam a gaivota de Bebéi mas Frei Bernardo não gostou.
128 – A gaivota sempre voou e sempre seguira voando. Não é algo
que represente nossa cidade.
Seu comentário acabou por provocar uma enorme discussão
entre eles sobre o que mais representava a cidade de Santa
Clara.
– Sua arquitetura com as ruas estreitas de pedra e os grandes
casarões coloniais –disse Gigi e Jordi retrucou dizendo que eram
muitas as cidades que também tinham seu bairro histórico.
– A tranquilidade da vida –argumentou o frade mas já
reconhecendo que a tranquilidade era um elemento típico de
qualquer pequena cidade.
Cada um foi colocando suas impressões até que Ilona perguntou
a Bebéi.
– E para ti, qual é a primeira coisa que vem na tua cabeça
quando alguém fala de Santa Clara.
– A música de “L’Orgue de Barbarie”
Ninguém entendeu e Ilona que tinha aprendido o francês por
conta de um amor de juventude explicou:
– O realejo –e todos ficaram pensando em silencio.
Ilona foi também a primeira a comentar:
– Acho que eu também gosto do realejo. Tem dias que acordo
com vontade de matar todos vocês mas quando escuto o som do
carrinho de sorvete do filho da Passarinho, é como se a raiva se
dissipasse no ar.
O frade comentou que o realejo era uma coisa nostálgica como
nostálgicos eram todos os que queriam manter Santa Clara
tranquila e preservada. Cada um foi opinando e as opiniões eram
todas favoráveis. Ate Rasta que vinha voltando do terraço com
os olhos brilhando escutou e comentou:
129 – Cool… o realejo… One Love –e começou a sorrir de uma
forma tão contagiosa que todos ali, ainda que sem entender por
que, começaram a sorrir também.
Jordi também gostou da proposta:
– Nosso jornal tem de ser algo que mexa com as emoções e acho
que “O Realejo” seria um ótimo nome– e depois de mais
algumas opiniões, aquele foi o nome escolhido.
– A vantagem –comentou Jordi– é que com este nome, todas as
vezes que escutem a musica do realejo as pessoas vão se
lembrar de nosso jornal
E Rasta Bong que não parava de sorrir completou:
– O jornalzinho será anunciado pelo filho da Passarinho e
distribuído por ela –e concluiu com uma gargalhada–
Certamente que será uma coisa de loucos!
A reunião não continuou por muito tempo pois ninguém
conseguia resistir com seriedade aos comentários de Rasta e no
dia seguinte a ideia de um novo jornal “O Realejo de Santa
Clara” começou a tomar forma entre todos que viviam na
cidade.
A primeira foi Grená que confessou que todas as manhãs
esperava a chegada do filho da Passarinho. Não pelo sorvete. e
sim pela musica do realejo que alegrava a sua esquina.
Dioclecio comentava com todos na praça que quando o triciclo
de sorvetes parava por ali todos as crianças se aproximavam. E
não eram apenas elas. Os velhinhos paravam seu dominó, os que
estavam de mau humor sorriam e ate os mais apressados
paravam alguns minutos para escutar o realejo. Jordi também
descobriu que a ideia era bem recebida entre os mais jovens e
até se surpreendeu ao perceber que todos, sejam os mais
privilegiados que frequentavam a academia de ginastica de
Lucia, até os que viviam nas casas mais pobres depois do rio,
compartiam o encanto pela musica do realejo. Os pelagatos
também confirmaram. Quando o filho da Passarinho chegava
com seu triciclo, Frida parava de insultar as pessoas, o Coronel
130 se oferecia para girar a manivela e até Nullo controlava os seus
peidos
Rasta Bong tinha sido um dos primeiros a descobrir a magia dos
realejos e muito antes daquela reunião ele tinha proposto ao
filho da Passarinho fazer alguns realejos para colocar nos
triciclos que estavam construindo para levar turistas a passear
pelas ruas do centro histórico. O problema na época foi que os
realejos montados por ele não eram muito bons e não duravam
mais que uma ou duas semanas. A frustração foi tanta que Rasta
decidiu seguir com a ideia dos triciclos para passeio de turistas
mas abandonou a ideia de colocar neles os realejos.
Os mesmos problemas técnicos complicavam também o realejo
do carrinho de sorvetes que pelo menos uma vez por semana
tinha problemas, mas agora havia uma nova possibilidade; a
irmã da canadense que morreu nos tempos do Fim do Mundo
tinha decidido ir viver em Santa Clara e estava montando uma
carpintaria em sociedade com Rasta Bong para fazer moveis e
também consertar os barcos da Bobo Ashanti e foi dela a ideia
de construir um novo realejo para o lançamento do jornal.
O realejo não passava de um conjunto de tubos que tocavam
notas musicais e os mais simples, como aquele do filho da
Passarinho tocavam vinte notas. Os tubos eram alimentados por
um fole, como a sanfona do cigano e ao girar a manivela o ar do
fole passava aos tubos que tocavam as notas seguindo a
programação dos cilindros.
Quase tudo era um trabalho de madeira e a irmã da canadense
estava disposta a faze-lo. Os foles seriam os mesmos da sanfona
e o cigano sabia onde encomenda-los. E foi apenas ai que eles
descobriram que o filho da Passarinho, por alguma razão que
apenas a velha que inventava historias e vivia no casarão
abandonado podia explicar, tinha com ele muitos cilindros
programados para varias canções.
O problema de construir o realejo já estava resolvido, mas havia
outro problema Quem iria rodar a manivela?
131 O realejo para tocar necessitava a rotação do cilindro. Quando o
filho da Passarinho pedalava a bicicleta isso não era um
problema pois ele havia montado um sistema pelo qual o
movimento dos pedais acionava o fole e os cilindros. Quando
ele parava para vender sorvetes era seu macaquinho que girava a
manivela e quando ele cansava e abandonava o triciclo, algum
voluntario se habilitava pois girar a manivela não havia musica.
Quem seria o tocador do realejo que iria anunciar o jornal?
Tinha de ser alguém que não tivesse nada que fazer durante o
dia e isto, ainda que pareça curioso, não foi fácil pois em Santa
Clara todos tinham muito o que fazer. Dioclecio caminhava
pelas ruas observando as pessoas e filosofando sobre a vida. O
Negro Zen meditava, os pelagatos se embebedavam e a
Passarinho tinha de passar o dia correndo sem razão de um lado
a outro da cidade para que todos pensassem que ela estava muito
ocupada. Nenhum deles poderia passar o dia debaixo da grande
arvore na Praça da Catedral, que foi a sombra escolhida para
colocar o realejo.
Contratar alguém para ser o tocador não parecia fazer sentido e
foi de Bebéi a mais absurda das propostas:
– Por que não pedimos a Arcádio –o que pareceu um total
absurdo a todos, mas ele insistiu– depois da surra que ele levou
por ter batido na Passarinho ele nunca mais apareceu por aqui.
Todos na cidade lhe odeiam e ele odeia a todos mas, por que não
perguntamos para ver se ele quer? –e concluiu com bom senso–
Se ele aceita, ninguém mais terá razão para odiá-lo e quem sabe
ele também deixe de nos odiar.
– E o que vai dizer a Passarinho –perguntou Ilona.
– Estou seguro que estará de acordo– respondeu Bebéi– ela
sempre me pergunta o que Arcádio poderia fazer para deixar de
ser tão infeliz.
Para os que não se recordam quem era Arcádio, lhes conto que
era um mendigo que não bebia mas que roubava a tudo o que
podia. Foi ele que roubou a carteira e o passaporte do Condor e
132 também foi ele quem bateu na Passarinho quando ela encontrou
o que ele tinha roubado. Ninguém, absolutamente ninguém na
cidade conversava com ele. Cheirava mal, era desagradável e
sempre estava com raiva das pessoas. Certamente a ultima
pessoa no mundo que alguém poderia pensar para girar a
manivela do realejo, mas Bebéi propôs e o que a principio
parecia uma proposta absurda passou a ser algo que segundo
Jordi, valia a pena tentar.
Ao frade lhe encantou a ideia recordando que perdoar com
dignidade é sinal de sabedoria e Dioclecio também apoiou a
ideia. Bebéi foi encarregado de falar com Arcádio o que não foi
uma tarefa fácil. Arcádio estava nas ruinas do velho forte e
quase não o deixou falar. Ofendeu com as palavras mais
horríveis que Bebéi escutou na sua vida. Só não lhe deu um soco
pois lembrou o que lhe passou quando deu um soco no rosto da
Passarinho mas toda raiva ele a transformou em palavrões e
mesmo depois que Bebéi se foi ele ainda continuou gritando.
– E como foi – perguntou Dioclecio
– Bem –respondeu Bebéi– Esperemos um dia ou dois e acho que
ele vai aceitar.
Não tiveram de esperar tanto. Ainda naquela mesma tarde,
Arcádio apareceu na praça e se sentou ao lado de Dioclecio para
perguntar se era verdade a proposta que Bebéi lhe tinha feito.
– Pronto –celebrou Jordi ao saber da visita– temos um realejo,
um tocador de realejo e o primeiro numero do jornal já esta
quase pronto. Lançaremos no próximo sábado.
Pena que Cristina não estaria ali para compartir esta nova
aventura.
133 134 20
O Realejo de Santa Clara sai pelas ruas
contando o preço do seu o lixo
A primeira edição do “Realejo de Santa Clara” trazia dois
artigos. O primeiro era um artigo de três paginas sobre “Quanto
vale teu lixo” escrito por Jordi aproveitando as informações que
levantadas nos tempos em que Carmela foi candidata a prefeita.
Comentava que além da taxa de lixo que todos pagavam junto
com a suas conta de luz, a empresa do italiano recebia alguns
benefícios extraordinários.
O primeiro foi a compra de alguns novos equipamentos de
coleta de lixo pela prefeitura que depois foram transferidos sem
custo para a empresa do italiano. A justificação do prefeito foi a
de que era importante que a empresa tivesse equipamentos
modernos e se o italiano “pobrezinho” não podia comprar a
prefeitura compraria, o que gerou uma grande aprovação por
parte da população que foi evidenciada pelas pesquisas.
O outro beneficio foi por conta dos empregados que faziam a
limpeza e que segundo o prefeito, provavelmente seriam
despedidos pelo italiano e que a prefeitura em uma
demonstração do apreço que tinha pela gente que trabalhava ali
decidiu pagar os salários e coloca-los a disposição da empresa
de lixo. Outro golpe demagógico que melhorou ainda mais a
popularidade do prefeito.
O terceiro era uma espécie de multa que a prefeitura pagava a
empresa da lixo e que era calculada em mais restrito segredo
pelo irmão do prefeito que trabalhava como tesoureiro da
prefeitura. O principio que estava por detrás da multa, e que o
135 prefeito explicou pela televisão, era de que como muita gente
não pagava a taxa de lixo, a empresa do italiano não podia
continuar funcionando. E por isso inventaram uma formula que
definia quanto todas as pessoas deveriam pagar por mês e se por
alguma razão a receita com a taxa de lixo não chegasse a estes
níveis e prefeitura transferiria para o italiano a diferença.
Nunca ninguém explicou como se calculavam estes números
mas o resultado, e estes números Jordi tinha conseguido, era de
que todos os meses a prefeitura pagava uns vinte por cento mais
que a arrecadação da taxa de lixo para o italiano. O que se dizia
era que metade desta quantia, o italiano nem chegava a ver, pois
ia direto para uma conta de Investimentos do Caribe, empresa
com sede em Grand Cayman que o prefeito tinha com seu
irmão. E este tema da multa, ao contrario dos outros dois, quase
que não impactava nas pesquisas de popularidade do prefeito.
O outro artigo era a historia de Laís que sobrevivia na cidade
vendendo pasteis da janela do seu apartamento no casarão verde
ao lado da Catedral. Era querida por todos na cidade, e seus
pasteis mais ainda, e a fotografia de Laís sorrindo na janela
circulou por toda a cidade.
A decisão de não incluir nada sobre a Nova Santa Clara foi de
Jordi.
– Primeiro necessitamos ganhar credibilidade. Se começamos a
denunciar os planos da nova cidade que ainda não conhecemos,
corremos o risco de que eles nos desmintam. Isso da coleta de
lixo, temos toda a informação e sabemos de tudo. Ninguém
poderá negar o que esta escrito.
Fizeram duas mil copias e em menos de dois dias todas foram
distribuídas. A Passarinho era a principal distribuidora. Saía de
rua em rua com sua expressão sorridente e alucinada seguida por
sua cadela magrinha, distribuindo jornais e ao final da tarde
quando o calçadão se enchia de turistas, era ali que ela
concentrava a sua distribuição. Naquele sábado, como havia um
espetáculo de dança no Grande Teatro Colonial a Passarinho
permaneceu distribuindo na porta do teatro ate que o ultimo
136 convidado entrou no teatro e segundo os cálculos de Jordi,
somente ali ela distribuiu mais de duzentas copias.
A barbearia de Rasta Bong era outro ponto de distribuição.
Colocaram os jornais empilhados ao lado da cadeira da
manicure e qualquer um podia passar por ali e pegar seu
exemplar. Outro ponto importante foi a livraria-café de Princesa
e outro ainda na praça do Libertador a entrada do calçadão, na
cadeira onde o Cholo lustrava os sapatos.
Todo foi tão bem que decidiram imprimir mil exemplares mais e
isto custava mais dinheiro do que eles tinham. A ideia de cobrar
pela publicidade estava nos planos de Jordi mas para isso ele
tinha de registrar e legalizar a empresa que produzia os jornais,
o que o levaria a mesma ladainha de subornos, comissões e
aborrecimentos que o frade estava enfrentando com a pizzaria.
Na prefeitura a reação ao “Realejo de Santa Clara” foi imediata
e o prefeito convocou a todos seus assessores no domingo para
uma reunião extraordinária e estava com muita raiva. A Sérvia
tentou acalma-lo mas não conseguiu. Ele queria vingança do
Frade, de Jordi e de todos os que estavam financiando ou
apoiando o jornal e deixou isso bem claro já ao inicio da
reunião:
– A licença para servir bebidas alcoólicas da pizzaria, nem
pensar e quero que vocês investiguem agora mesmo se podemos
deportar o Frade para a puta que o pariu. Pelo que me
explicaram ele estava autorizado a residir no pais para trabalhar
com a igreja e agora que não é mais frade que volte a Itália. E
pelas duvidas investiguem também a situação da pilota Gigi e se
ela não esta legal no pais, vamos deporta-la junto com seu
noivo. Este Jordi que foi contratado como professor, quero que
se abra imediatamente uma sindicância para demiti-lo da
prefeitura e enquanto não concluímos o processo que ele seja
suspenso sem direito a honorários.
A Sérvia fez todo o que pode mas o prefeito estava com tanta
raiva que ela não conseguiu acalma-lo e ele regressou a insistir
nas mesmas atitudes anteriores a neo revolução que quase lhe
137 custaram a prefeitura. Ela sabia que com mais tempo poderia
convence-lo a adotar uma postura mais inteligente e menos
passional mas o que lhe preocupava é que ele passou instruções
naquela reunião que deveriam ser cumpridas imediatamente e se
o que estavam discutindo saísse daquela sala, os problemas
seriam enormes.
E foi exatamente o que passou. Na tarde da segunda feira os
temas que haviam discutido no domingo estavam ao centro das
conversas frente ao guarda sol amarelo de Grená.
– O prefeito quer deportar o Frade e demitir a Jordi, e tudo isso
somente pelo que saiu publicado no Realejo.
O primeiro resultado da reação do prefeito foi que todos aqueles
que na cidade ainda não tinham lido o jornal, saíram para
encontrar um exemplar. Que será que de tão importante estava
escrito ali? E todos começaram a falar da coleta de lixo, pois
obviamente que o problema não era o sorriso de Laís.
A Passarinho chegou na barbearia desesperada pois não tinha
mais nenhum exemplar para distribuir e todos estavam pedindo.
Rasta teve de financiar a compra de papel para mais mil copias e
a manicure teve de deixar seus clientes esperando para ajudar
Jordi a imprimi-los na copiadora alugada.
Rasta ate pensou em utilizar Henry Moriarty para dobrar as
copias mas desistiu quando percebeu que sua velocidade era de
aproximadamente uma copia para cada cinco minutos. E isto
que o único que ele tinha de fazer era dobrar no meio pois o
papel já estava impresso frente e verso e ao dobrar no meio, ele
virava um folheto de quatro paginas.
Gigi quando escutou que o prefeito queria deportar o frade foi
pedir ajuda a Ilona que chamou um advogado amigo para jantar
no restaurante. O problema era complicado pois o frade
necessitava uma autorização para residência, coisa que Gigi já
tinha e foi ai que nasceu a ideia do casamento dos dois.
– Resolver não resolve pois ela também não é cidadã mas ajuda
– disse o advogado.
138 Com relação a Jordi não havia muito que podiam fazer. Carmela
estava furiosa e conversou com outros professores mas concluiu
que não seria realista montar um movimento de solidariedade a
Jordi pois ele ainda não havia dada uma única aula sequer.
O apoio a Jordi veio de onde ninguém esperava; os jovens que
viviam depois do rio. Eles haviam se unido aos jovens da cidade
quando o prefeito proibiu as serenatas e também tinham
participado do movimento de ocupação da praça. Eles não
sabiam bem o que queriam mas estavam com muita raiva.
Jordi era um jovem e apenas estava tentando trabalhar. Muitos o
conheciam da escola onde além de ser um amigo de futebol e
das festas, era também, junto com Cristina um dos melhores
alunos. Passou seu concurso para professor em primeiro lugar e
agora apenas por publicar um jornal denunciando o prefeito ia
perder seu emprego. Isso não era justo, nem aceitável e causava
indignação
Os ânimos se esquentaram e o apoio aos dois crescia. Com a
pressa em lançar o jornal não tinha sido possível esperar que o
realejo novo que Rasta havia encomendado a irmã da canadense
estivesse pronto, o que acabou por ser ainda melhor pois se
sábado eles lançaram o jornal, na sexta feita da semana seguinte
aproveitaram para lançar o novo realejo.
Decidiram fazer na sexta pois era essa a noite em que se
apresentava a banda municipal. Ali estavam todos aguardando a
abertura do concerto pelo general da banda que aquela noite
estava acompanhado pelo seu cachorro que também exibia uma
coleira tricolor para admiração e inveja de todos os demais
cachorros da cidade.
Bebéi subiu no coreto e anunciou que a partir daquela noite a
praça teria um realejo permanente e a surpresa que se seguiu não
foi pela musica do realejo que era mais bonita que todas as
musicas de realejo que antes eles tinham escutado e sim por
conhecer o tocador do realejo. Ele estava vestido com um dos
fraques que o magico tinha utilizado em suas apresentações e
139 estava com o cabelo cortado, barba feita e ate dava a impressão
de que tinha tomado uma banho.
Muitos tomaram um bom tempo para perceber que era o sempre
detestado Arcádio que a todos odiava talvez por que todos o
odiavam. Mas naquela noite ele não tinha que roubar nem
agredir a ninguém e pela primeira vez em todas as suas
lembranças, as pessoas da cidade o olhavam com um sorriso.
Depois daquela noite ele nunca mais parou. Passava o dia na
sombra da grande arvore girando a manivela do realejo
distribuindo os jornais e de longe a Passarinho olhava com
orgulho... e com uma sensação estranha no peito que ela não
sabia explicar.
140 21
Complica a neo revolução mas a Sérvia
conhecia bem a Maquiavel.
Os problemas do prefeito começaram com sua esposa que
entrou em seu gabinete como se um furacão tivesse atingido a
cidade.
– Como pode passar pela tua cabeça deportar Frei Bernardo – e
depois de dizer isto, ela disse tantas coisas tão horríveis que a
única que ele conseguiu lembrar depois que ela saiu foi: “A
única razão por que aguento continuar casada com você são os
trabalhos que posso fazer na prefeitura ajudada pelo frade. Se
ele se vai, eu também me vou”
E não foi apenas ela. Todas suas amigas, e quando digo todas
incluo até aquelas que raramente saiam de suas casas para
qualquer outra coisa que não fosse casamento de filho, enterro e
missa de domingo. Todas estavam reunidas na praça do
Libertador frente a casa do prefeito insistindo para que Frei
Bernardo não fosse deportado de Santa Clara.
Ninguém se incomodou quando ele foi expulso da igreja. Todas
ali sabiam que frades não podiam ter namoradas e quando ele se
enamorou de Gigi, a única a alternativa logica era abandonar a
igreja, mas ainda sem ser um frade ele poderia permanecer
fazendo o mesmo trabalho que fazia. Não como frade, mas sim
como assistente da esposa do prefeito. A pizzaria, como diziam
as mulheres, era um mal necessário pois de alguma forma ele
tinha de ganhar o dinheiro que necessitava para sobreviver.
141 – E que isto não lhe tome muito tempo pois o importante é o
trabalho que ele faz com os que mais necessitam.
E se as senhoras católicas da alta sociedade saíram em sua
defesa, a reação foi ainda maior entre os mais pobres que viviam
depois do rio; entre os indígenas que tinham saído de suas
aldeias para tentar a vida na cidade; e entre os emigrantes que
abandonaram regiões mais pobres para tentar a sorte ali e que
tinham de viver nos albergues criados pelo frade ate conseguir
um lugar para morar. Quando a noticia de que o prefeito queria
expulsar Frei Bernardo do pais circulou pela cidade, a
indignação foi geral. Quando chegou na Praça da Catedral,
como fazia todos os dias, para cumprimentar os que debatiam no
espaço democrático, o prefeito recebeu uma sonora vaia e não
teve como responder a todos que insistiam em perguntar se ele
acreditava realmente na liberdade de expressão ou se era um
hipócrita.
Na tarde de sábado a Sérvia lhe aconselhou a ficar calado por
algum tempo mas ele insistiu em subir no palco para a
apresentação da banda comemorando o dia internacional da
musica. Foi apenas ele pisar no primeiro degrau que as vaias
começaram e apenas não foram maiores graças a banda que por
instruções da Sérvia começou imediatamente a tocar.
A coisa foi ainda pior no domingo. Pela manhã no jornal da
Senhora Rosenthal que cobria todo o pais, o editorial tinha como
titulo “A hipocrisia e a xenofobia de um prefeito” e nele o
jornal lhe acusava com violência por dizer que Santa Clara
Frente ao Mar recebia de braços abertos a todos os turistas,
enquanto expulsava os estrangeiros que faziam um trabalho
socialmente relevante para o pais.
Para piorar ainda mais as coisas, o domingo era dia de
inauguração de novas obras no cais de turistas. O prefeito já
vinha anunciando a varias semanas as reformas que iam dar um
ar moderno ao velho cais, com cercas novas de proteção,
banheiros, área para lanchonetes, assim como novas instalações
de agua e luz para todos os barcos ali ancorados. Verdade que a
142 obra havia custado uma fortuna mas isto não importava pois a
prefeitura tinha financiado com um empréstimo internacional e
os primeiros pagamentos apenas seriam feitos dez anos depois
quando o prefeito certamente estaria bem longe dali com uma
enorme conta bancaria, pois obviamente que a construtora
contratada foi uma nova empresa que o prefeito tinha criado
com o romeno.
Quando chegou, o calçadão estava completamente tomado, mas
não de turistas. Quem estava ali eram os emigrantes, os pobres e
os indígenas com cartazes defendendo Frei Bernardo. O prefeito
até que tentou se aproximar confiando em seu simpático sorriso,
mas os que estavam ali não estavam de bom humor e a vaia foi
tão forte que sua segurança insistiu que ele deveria retirar-se.
E o domingo foi todo um tormento. Pela manha a vaia, no
almoço as infindáveis criticas das amigas de sua senhora no
clube e a tarde as broncas da servia. E como se isso tudo fosse
pouco, a noite, mal ele se deitou, foi acordado por um
telefonema do Tenente Pirilo:
– Colocaram fogo em dois automóveis depois do rio. Eram os
veículos dos engenheiros que estão fazendo as medições para o
novo projeto e que estava estacionado em frente ao escritório
dos árabes.
O prefeito pediu a Pirilo que passasse para busca-lo e
rapidamente se vestiu para ir com ele verificar o que havia
acontecido. Quando chegou já não havia mais fogo, apenas a
fumaça e os dois autos estavam completamente carbonizados.
Os investidores árabes haviam ocupado, com muita discrição
um deposito depois do rio, próximo a área do forte para abrigar
os engenheiros. Ali eles tinham três autos sem nenhuma
identificação externa e dois deles tinham sido destruídos. O
terceiro se salvou pois foi nele que os engenheiros foram passar
o final de semana em uma praia distante e apenas regressaram
no dia seguinte.
143 E não era apenas o incêndio. O que mais preocupou o prefeito
foi a nota que encontraram na porta do deposito com apenas
uma palavra, mas bem eloquente: “Fora!”
A Sérvia tinha razão, foi o primeiro pensamento que lhe veio a
mente.
– Você tem de se concentrar no que é importante – foi o que ela
lhe disse aquela tarde – e o importante é construir a nova Santa
Clara pois com isso você vai ganhar todo o dinheiro que
necessita para se aposentar como um príncipe. As criticas nos
jornais não são importantes, pois com duas grandes festas que
inventemos podemos fazer todos esquece-las. O problema é este
frade jogando a todos contra nos. A pizzaria e o jornalzinho do
Realejo só estão criando problemas por tua culpa. Você tem
ciúmes do Frei Bernardo porque ele é jovem, bonito e atrai todas
as mulheres, incluindo tuas amantes, que morrem de amores por
ele. Mas se insistes nesta teimosia estupida, você vai ter sérios
problemas pois se perdes o apoio dos mais pobres e dos jovens,
você nunca vai saber por onde a bomba te vai explodir.
Ele estava furioso. Queria muito fazer “aquele filho da puta
comer merda,” mas isto teria de esperar. O novo projeto era
muito importante e ele não podia arriscar tudo apenas para
“ferrar” com o cura. A Sérvia tinha razão e aquela mesma noite
avisou os sócios e assessores; amanha na primeira hora, reunião
de emergência na prefeitura”
Foram todos os assessores e sócios mas a única que falou foi a
Sérvia. O prefeito preferiu permanecer calado ao seu lado.
– Hoje o Senhor Prefeito vai visitar as obras da pizzaria do frade
as doze e trinta e junto com ele vai o Senhor Tesoureiro, o
Senhor Chefe dos Bombeiros e todos os responsáveis pelas
licenças de saúde, trabalho e bebidas. Todas as licenças da
pizzaria terão de estar aprovadas antes do final da tarde –e para
não deixar duvidas ainda complementou– sem exceções. Por
favor, pediria que os senhores façam a barba e coloquem roupas
sóbrias e elegantes pois teremos ali as televisões.
144 Todos permaneciam
serenamente:
calados
e
ela
continuava
falando
– As três da tarde o Senhor Prefeito vai receber em seu
escritório a este jovem Jordi, para informar que sua suspensão
foi revogada e que ele começara a dar aulas já na próxima
semana –e complementou– Para esta reunião o Senhor
Secretario de Educação deve estar com o prefeito em seu
gabinete.
O secretario concordou com a cabeça enquanto os demais
permaneciam calados sem mover-se de suas cadeiras.
– Tenente Pirilo nos vai informar que ontem, por um pequeno
incêndio involuntário, provavelmente causado apor alguém que
descuidadamente jogou um cigarro pela janela de seu veiculo,
dois autos se incendiaram, mas Graças a Deus, não tivemos
nenhuma vitima e os veículos estavam completamente cobertos
pelo seguro. Qualquer informação de que o incêndio foi
provocado por marginais tem de ser negada com veemência pois
impactaria na imagem de nossa cidade frente aos investidores. A
prefeitura já emitiu um comunicado oficial para a imprensa e o
tema esta encerrado.
O prefeito concordou com a cabeça olhando a todos com uma
expressão grave para destacar a importância do que a Sérvia
acabava de dizer.
– Importante que vocês saibam também que amanha as onze e
trinta o Senhor Prefeito vai visitar o realejo da praça da catedral,
junto com o jovem Jordi para anunciar que um grupo de amigos
do prefeito acaba de fazer uma importante contribuição para que
o “Realejo de Santa Clara” siga pois o Senhor prefeito acredita
firmemente na liberdade de expressão.
E não falou mais nada pois tudo já estava completamente claro.
E ao seu lado o prefeito apenas comentou:
– Agora podem todos voltar ao trabalho.
145 As doze e trinta em ponto o prefeito chegou a pizzaria, e não
chegou sozinho. Junto com ele estavam seus principais
assessores , os jornalistas, as câmeras de televisão e duas peruas
com quarenta pizzas que o prefeito mandou trazer de uma
pizzaria da capital. O prefeito desceu do seu automóvel
sorrindo, abraçou Frei Bernardo e frente a todas as câmeras
informou:
– Como estas demorando tanto para abrir decidi trazer as pizzas
e toda a minha assessoria para ver o que temos de fazer para
inaugurar esta pizzaria ainda esta semana. Santa Clara Frente ao
Mar necessita urgentemente de uma pizzaria –e foi a imagem de
sua chegada, seguida da distribuição de pizzas que todos
assistiram em suas casas nos principais jornais da televisão.
– Sobre o realejo conversaremos amanha –explicava a Sérvia
aos demais assessores– fazer dois eventos no mesmo dia seria
um desperdício.
Como acordado, no dia seguinte, com a presença da Viúva
Rosenthal, e de outros donos de jornais nacionais e televisões, o
prefeito entregou a Jordi um cheque que asseguraria pelo menos
três meses de funcionamento do jornal. Ali, depois de fazer um
violento discurso defendendo ate a morte se necessário a
liberdade de todos os cidadãos em expressar suas opiniões, o
prefeito pousou em frente as câmeras. A imagem que a
população de todo o pais viu em suas televisões aquela noite não
foi a do discurso mas sim a do prefeito girando a manivela do
realejo ao lado de Arcádio que não apenas agora era querido por
todos, mas também aparecia na televisão ao lado do prefeito.
– Crise superada –disse o prefeito aos seus assessores ao final
do dia–Retomemos agora o projeto da Nova Santa Clara.
146 22
A guerra fria na África confunde ao
húngaro e as ideias de nossos amigos
Com toda a agitação daqueles dias não era muito o que Bebéi
tinha avançado, mas quando passou em frente a livraria e viu
Jose Princesa ali sentando atrás do caixa lendo um livro, ele
sentiu que era um bom momento para retomar suas
investigações. Passou pela prefeitura pegou algumas das pastas
que estavam guardadas no cofre de Pirilo: a de W. Auden com
as informações da Argélia e a de J. Conrad com as informações
do Congo e pelas duvidas decidiu levar também as notas em
espanhol que estavam dentro do livro de L. Durrel e que
aparentemente falavam da Republica Dominicana e as notas do
livro de H. Boll que mencionavam um tal de Barba Roja.
Princesa ao vê-lo chegar com as pastas azuis na mão já
desconfiou o que lhe esperava e animado foi sentar-se com
Bebéi em uma das mesas em frente a livraria. A praça parecia
um circo antigo aquela tarde com as pombas fugindo dos
turistas, os cachorros correndo atrás da bola e Robespierre
dançando ao som da musica do carrossel de cavalinhos que saia
do realejo de Arcádio.
– Procurar informações em notas e livros e o que mais me
fascina –explicou Princesa– O cheiro de papel velho me excita
muito mais que o brilho das lantejoulas.
Bebéi não entendeu muito bem, mas pelo sorriso de Princesa
interpretou que era alguma coisa positiva e lhe passou os
documentos.
147 Na pasta com os papeis do livro de Auden estava a fotografia de
seu pai no jornal que o descrevia como um dos principais
responsáveis pela formação do Exercito de Liberação Nacional,
o braço militar da Frente de Liberação Nacional que levou a
Argélia a se libertar do domínio francês em 1961.
Princesa continuava com a ideia de Arpad era um agente duplo e
pelo que pode observar pelas notas ali guardadas, seu trabalho
em Argel foi o de o observar o que estava passando ali e manter
seus chefes informados. Pelas notas não era possível identificar
quem eram seus chefes, mas claramente não eram os
comunistas. A preocupação que se evidenciava nelas era a de
entender ate onde os lideres do movimento de liberação estavam
envolvidos com os soviéticos e uma das notas que talvez um de
seus superiores lhe havia escrito dizia:
“Para os franceses o tema da liberação de Argel é um
tema passional, o que lhes esta levando a perder sua
racionalidade. Para nos não é importante saber si a
Argélia é um pais livre ou não, o que não queremos é uma
Argélia vermelha”
As notas escritas por Arpad indicavam que ele estava
aproveitando o tempo em Argel para aprender o francês e
entender melhor seu trabalho.
Havia uma nota a Otto e Bebéi aproveitou para comentar algo
que lhe intrigava:
– Em muitos livros existem notas escritas por Arpad a este Otto,
o que não chego a entender. Se ela as enviou, as notas deveriam
estar com este Otto e não no arquivo de Arpad – Princesa apenas
escutou sem fazer comentários e leu a nota:
“Pouco me pedem. Apenas que lhes mantenha informados.
Sinto muita falta de Eszter e de Morgen. Quando penso em
regressar a Berlim sinto uma dor ainda maior pois sei que
ao rever Morgen vou sentir mais forte a dor por não ter
Eszter ao meu lado. Aqui pelo menos posso sonhar com a
ilusão de que as dois estão esperando por mim na casa
148 dos Bider. A vida em Argel é bem agradável. O suor faz
parte da pele e os odores são todos distintos e me
recordam a cada momento que estou longe da Europa. A
comida e a musica são excelentes, mas o futebol que
jogam por aqui é horrível.
– Arpad aparentemente passou pouco tempo em Argel –
continuava Princesa– pois ao final de 1958 ele foi transferido
para o Congo.
E depois de pensar um pouco continuou:
– Isto me faz pensar em algo. Na Argélia a situação permaneceu
bem agitada ate 1962 e se eles o mandaram para o Congo em
1958 é por que o trabalho que Arpad fazia ali não era importante
e também porque o Congo era muito mais importante para os
americanos em sua luta com os soviéticos pelo controle da
África.
Princesa cada vez se animava mais em conhecer a vida do
húngaro.
– Nas notas que estavam no livro de Conrad sobre o Congo é
possível perceber que ele teve ali uma participação mais
relevante e foi ali também que ele começou a se interessar pelo
que se passava em outros países. Em uma das notas ele mesmo
descreve isto:
“Estou em Kinshasa mas com os olhos abertos para
entender o que passa em Dominicana, em Jakarta e em
toda África Oriental. É como se todo o mundo estivesse
explodindo ao mesmo tempo e existem coisas muito
estranhas acontecendo em todas as partes”
Princesa explicou a Bebéi que o CIA americano tinha estado
fortemente envolvido em todos estes países e que quando ele
mencionava África Oriental, ele estava provavelmente se
referindo a Eritreia, Etiópia e tal vez ao Chade onde também
haviam movimentos revolucionários ao inicio dos anos sessenta.
149 – Tudo isso –disse Princesa– parece confirmar que Arpad
trabalhava para o CIA. Em 65 os americanos estavam
preocupados com os movimentos revolucionários do Congo pois
ali Che Guevara e os cubanos apoiavam aos rebeldes, e também
com os esforços que se faziam naquela época para levar Bosch
de volta ao poder na Republica Dominicana. Eles acreditavam
que outra revolução como a de Cuba no Caribe seria muito
perigoso e poderia desestabilizar toda a região.
O CIA também estava apoiando Suharto na Indonésia a dizimar
os comunistas e em vários países da África Oriental, começando
pelo Chade passando pelo Sudão, Etiópia e Eritreia haviam
movimentos políticos que preocupavam ao CIA pela forte
presença de soviéticos apoiando aos grupos revolucionários e
independentistas locais.
Bebéi escutava a todo que dizia Princesa e fazia um esforço para
não se perder entre todos aqueles países mas o que mais lhe
interessava era compreender o que fazia o húngaro por ali.
– São muito interessantes também as notas que estavam no livro
de Henrich Boll – explicava Princesa– pois são notas do Barba
Roja que era o coordenador de toda atuação do governo cubano
na América Latina e na África. Pelo que leio nelas foi o próprio
Guevara quem apresentou Arpad a Barba Roja em um encontro
que tiveram em Argel e isto não foi no período em que ele vivia
ali, mas sim depois. Talvez Arpad passou por ali para participar
de uma reunião e conheceu o Comandante Piñero que era o
nome do Barba Roja –e acrescentou– Se você se lembra das
historias que nos contou o irmão do Condor, Júlio, no tempo em
que era um guerrilheiro revolucionário trabalhava baixo as
ordens do mesmo Barba Roja.
Depois de ler em silencio algumas das notas de Barba Roja,
Princesa fez um comentário definitivo:
– Aqui esta claro que teu amigo húngaro fazia um jogo duplo.
Por um lado trabalhava e recebia salario do CIA para mantê-los
informados de tudo o que acontecia ali e de outro, por amizade a
este Otto e talvez ao Che, ele também mantinha a Barba Roja
150 informado de tudo o que sabia, não apenas no Congo mas
também na Republica Dominicana, Indonésia e outros países de
interesse para os americanos.
Bebéi contou então a Princesa de sua conversa com a Senhora e
explicou que ela se comprometeu a descobrir se o húngaro
trabalhava para o CIA. E Princesa comentou sorrindo que
provavelmente ela não ficaria feliz em saber que o húngaro
também tinha amores por seus inimigos.
– A partir de 1966 as coisas se acalmaram um pouco na vida de
teu amigo –explicava Princesa– Os americanos com as suas
tropas asseguraram a eleição de Balaguer na Republica
Dominicana e a eliminação de todos os que apoiavam a Juan
Bosch. Em 1967 Suharto assumiu o poder com total controle
sobre os comunistas da Indonésia e Mobutu se consolidou no
poder no Congo.
Pelo que indicam estas notas escritas pelo próprio Arpad é neste
período que ele começa a se dedicar a um projeto com os Tutsis.
Se entendi bem, ele estava fazendo isso para os americanos que
queriam evitar que os Tutsis apoiassem aos revolucionários prosoviéticos –e acrescentou– Pelo que ele escreveu parece ser um
grande projeto de assistência técnica para desenvolver a
agricultura que ele mesmo ajudou a preparar e implementar e
pelo que li, um projeto onde Morgen, sua filha também estava
envolvida.
Pouco a pouco Bebéi ia conhecendo a historia do húngaro. Um
funcionário do serviço secreto americano vivendo no Congo
mas que na verdade parecia ser um agente infiltrado pelos
comunistas trabalhando em coordenação com o Barba Roja.
– Ai final dos anos sessenta –continuava Princesa– ainda
vivendo em Kinshasa, ele parecia dedicar toda sua atenção a
outra cidade do Congo, Kisangani que era onde estavam
implementando o projeto com os Tutsis. Existe uma nota mais,
esta de 1975 onde aparecem algumas referencias a um Francisco
que aparentemente trabalhava em Angola e Moçambique e com
quem Arpad mantinha contato.
151 Bebéi interrompeu para comentar que no livro de Anatole
France haviam algumas notas em português que falavam de
Angola e Moçambique e que talvez a palavra chave fosse este
Francisco mencionado nesta nota. Comentou também que
haviam outros livros com notas em inglês que poderiam ajudar a
entender todo o que Princesa contava, como o livro de Ibsen
onde haviam notas sobre a Indonésia e o libro de Kafka. Para
este livro Bebéi ainda não sabia se a palavra chave era a cidade
de Khartum, ou se era simplesmente a letra K, pois algumas das
notas neste livro foram escritas por alguém que assinava como
agente K.
Os dois estavam entusiasmados com o quebra cabeças mas
tiveram de interromper sua conversa pois Jordi chegou e sentou
com eles com uma expressão preocupada no rosto.
– Acho que vou ter de seguir com o Realejo sozinho. Não posso
pedir a Frei Bernardo que me ajude.
Os dois escutaram sem entender e ele explicou:
– No dia em que visitou a pizzaria, o prefeito comentou em
privado que junto com sua esposa eles apoiariam a preparação
dos documentos para que Frei Bernardo receba sua autorização
de residência definitiva em Santa Clara e que sua esposa seria a
patrocinadora e responsável frente ao serviço de imigração. Não
seria justo agora pedir a ele que siga nos ajudando a brigar com
o prefeito e mais, a verdade é que ele já não tem tempo pois
passa todo o dia ultimando os preparativos para a inauguração
da pizzaria e ajudando a esposa do prefeito em suas atividades
de assistência social. Mas não se preocupem que eu posso levar
o jornal sozinho e Cristina já me disse que quando voltar ela vai
me ajudar.
Ai foram os três que pararam de falar atônitos com o que viam
na praça da Catedral.
O velho Dioclecio Bergantim vinha caminhando em direção a
eles, sereno como sempre, com sua barba branca e sua expressão
de filosofo, vestido com a mesma capa de chuva cinza e velha
152 que usava desde o primeiro dia em que chegou a Santa Clara
mas ao seu lado uma surpresa. Uma mulher loira de mais de um
metro e oitenta de altura que parecia ser uma das mulheres com
quem os amigos do prefeito chegavam as suas festas no hotel
dos espanholes. E vinham os dois conversando em direção a
mesa da livraria onde os três estavam sentados.
A surpresa de Jose Princesa aumentou ainda mais quando
Dioclecio de forma educada e diplomática apresentou a loira
que lhe acompanhava.:
– Meus amigos esta é a Senhora Dusanka –e ai olhando para
ela– Senhora Dusanka, estes são meus amigos, Senhor Bebéi,
Senhor Princesa e Senhor Jordi.
Dusanka era a tcheca que atendia os turistas no hotel e que ia
ajudar Bebéi a entender o que estava dentro livro de Pasternak,
mas lhes tomou um bom tempo para entender, tal vez pela
beleza da Tcheca ou quem sabe pelo contraste de ver uma
mulher alta, sensual com salto alto e vestida com roupas
elegantes caminhando ao lado de Dioclecio que apenas trocava
suas roupas quando elas estavam tão velhas que Dona Cécy lhe
forçava derrubando nelas um copo de vinho. E como explicava
ela:
– Tem de ser todo um copo de vinho, pois se forem apenas
algumas gotas, Dioclecio não se importava e continuava usando.
Dusanka já havia lido as notas que Dioclecio lhe tinha passado e
comentou que elas mencionavam um apartamento onde vivia
uma certa Natasha. Disse também que uma das notas fazia
referencia aos principais documentos de registro do
apartamento, sua localização e alguns detalhes da conta de luz,
agua e o nome de um escritório de advogados de Andorra que
aparentemente administrava o apartamento. A outra nota trazia o
numero de uma caixa postal que aparentemente pertencia a
mesma Natasha.
Será que as notas do livro de Neruda eram da Natasha, pensou
Bebéi, mas como saber se as notas estavam em russo.
153 Não havia muito mais que eles podiam fazer ali e Bebéi pediu a
Dusanka que lhe ajudasse a escrever uma carta para o endereço
da caixa postal de Natasha contando que ele estava tentando
descobrir por onde andava Arpad Corvinus e pedindo sua ajuda,
o que a Tcheca fez ali mesmo na mesa da livraria de Princesa.
Ao partir a Senhora Dusanka deu um beijo em cada um dos
quatro que com seus olhos acompanharam seus movimentos de
quadris ate que ela entrou no taxi e se foi.
– Tem varizes –foi o comentário fulminante de Princesa.
154 23
Ao final da reunião una surpresa e o tão
esperado voo da gaivota
As investigações de Bebéi em poucas semanas haviam
transformado o húngaro em uma das pessoas mais conhecidas
em Santa Clara. Falavam dele na janela onde Laís vendia seus
pasteis e ali era Jose Princesa quem comentava com Heitor e
com Coronel Vieira que o húngaro era um agente duplo. Na sala
de Pirilo na prefeitura o que se discutia eram as duvidas com
relação a tentativa de roubo. E Pirilo insistia com seus
assistentes que alguma coisa estavam buscando e como dizia a
Senhora da embaixada americana “alguma coisa que
certamente valia muito dinheiro” E frente ao guarda sol amarelo
de Grená o húngaro era também o centro das novidades:
– Sempre desconfiei do húngaro–dizia a japonesa que tinha a
banca de verduras no mercado publico– sempre comprava a
mesma coisa, nunca perguntava nada e jamais reclamava.
Pagava tudo em dinheiro e nunca discutia o preço. Ninguém é
assim. Certeza que estava escondendo algo. É como aquela
chinesinha que todo mundo pensava que era puta de cabaré e
que depois virou embaixadora – se referindo a Anã Chinesa que
a japonesa sabia, nunca contou com a simpatia de Grená.
Do outro lado da cidade na casa de Clara onde Pirilo passava
quase todas as noites, ela também insistia com ele:
– Tem algo muito estranho ai. Foi você mesmo quem
desconfiou daquele advogado gringo e agora já sabe que foram
eles que contrataram os bandidos que entraram no apartamento.
Sem Cristina, teus assistentes não são capazes de encontrar um
155 elefante escondido na fonte da Praça da Gabriela. Você não tem
outra alternativa. Você mesmo tem de descobrir o que esta
passando e a única pessoa que pelo menos sabe alguma coisa é
Bebéi.
Ao Tenente Pirilo a ideia de passar o tempo lendo papeis velhos
não lhe atraia, mas Clara tinha razão. Com Cristina estudando
fora ele não tinha outra alternativa e acabou sendo sua própria
assistente quem por telefone lhe propôs uma solução:
– Converse com Jordi e convide Princesa e Bebéi para uma
reunião no teu gabinete para que lhe contem tudo o que já
descobriram. Eu converso quase todos os dias com Jordi e de
longe posso te ajudar.
Foi apenas assim, depois de uma bronca de Clara e uma
sugestão de Cristina que Pirilo finalmente decidiu assumir o
controle das investigações e convidou os três para uma reunião
em seu gabinete.
Em volta da mesa estavam Pirilo Jordi, Princesa e Bebéi e em
frente a eles as pastas azuis. Todos tinham também uma copia
da folha preparada por Bebéi onde estava anotado o que ele
sabia e o que queria saber sobre cada uma delas.
A – Auden
B – Boll
Francês
Espanhol
Argélia
Barba Roja
C – Conrad
Francês
Congo
D – Durrel
E – Elliot
Espanhol
Alemão
Dominicana
Eszter
F – France
Português
Francisco?
G – Grass
Espanhol
Guevara
H – Hesse
I - Ibsen
Húngaro
Inglês
Horthy
Indonésia?
J – Joyce
Húngaro
Janus
K – Kafka
Inglês
K o Khartum?
156 L – Lawrence
Húngaro
Lali
M – Marai
Inglês/Alemão
Morgen
N- Neruda
Russo
Natasha?
O- Orwell
Alemão
Otto
P-
Tcheco
Praga
Q- Quasimodo
R - Rilke
Francês
Russo
Quebec
?
S- Szabo
Espanhol
Santa Clara
T - Tolstoi
Alemão
Tamara
U - Unamuno
Inglês
?
V - Virgílio
Inglês
?
Pasternak
W - Whitman Inglês
?
X - Xingjiang
El ultimo libro
Y- Yeats
Z - Zola
Russo
?
!!!
Foi de Jordi a ideia de olhar cada uma das pastas e começaram
pelas que tinham as notas em húngaro. Jordi leu a carta do
arquivista de Budapest e depois comentou o que Frida tinha
contado sobre seu resgate na Sibéria por Eszter.
Leram depois as notas que estavam em espanhol e que
confirmavam a teoria de Princesa de que o húngaro era um
agente duplo e Bebéi comentou que a Senhora ficou de
investigar se era verdade que o húngaro tinha trabalhado para o
CIA na África.
Jordi, que conhecia um pouco do inglês comentou que as notas
que estavam no livro de Ibsen e de Kafka confirmavam a teoria
de que o húngaro era um agente duplo interessado em coisas que
aconteciam em outros países.
– Uma das notas que estavam no libro de Ibsen –explicou ele –
comenta que os americanos haviam preparado algumas listas
com os nomes de pessoas que pertenciam ao partido comunista ,
157 o PKI, e as tinham entregue ao General Suharto. E no livro de
Kafka, existem varias notas mencionando algumas execuções
apoiadas pelo CIA de lideres de movimentos nacionalistas e
muçulmanos que se alinhavam com os soviéticos o que não
parecia ser algo que interessava aos americanos para quem
Arpad supostamente trabalhava.
Depois deste comentário Bebéi propôs olhar a pasta com as
notas que estavam dentro do livro de Anatole France. Ele já as
tinha lido, mas nenhum dos outros conhecia. Eram notas que
não estavam assinadas, provavelmente do tal de Francisco que
foi mencionado em outras notas. Elas também descreviam o que
o CIA estava fazendo de uma forma bem critica. A primeira era
de 1966 onde se mencionava que Agostinho Neto tinha
encontrado com Guevara e que seu grupo o MPLA estava
recebendo apoio do Barba Roja e da Alemanha Oriental.
– O que ate podia indicar que Otto estava envolvido –comentou
Princesa.
A nota mencionava que “os portugueses com todos seus
problemas internos não vão aguentar a pressão e
provavelmente Agostinho Neto assumira o controle do pais em
aliança com os soviéticos” E reproduzia uma instrução que o tal
Francisco tinha recebido de seus chefes:
“Tens de fazer todo o possível para impedir a aliança
entre Agostinho Neto e os demais movimentos
revolucionários. É importante que eles se dividam e sigam
lutando entre eles, Busque apoio em teu amigo de
Kinshasa para colocar os do Enclave de Cabinda contra
Angola. É muito importante envolver Mobutu nisto pois
quanto maior a tensão entre eles mais difícil que
controlem o petróleo. Faça o que puder para apoiar
Golden e a FNLA, eles são um desastre mas é tudo o que
temos pois Sawimbi esta fascinado pelos chineses. Não
temos como evitar que os soviéticos tomem o controle e
por esta razão não temos outra alternativa; o único que
podemos fazer é provocar um colapso no pais.
158 – Não entendo –perguntou Bebéi– os americanos queriam
provocar um colapso em todo pais apenas porque este
Agostinho era amigo dos comunistas?
Princesa achou aquela questão complicada demais e tentou
evitar a discussão. Apenas seguiu lendo as notas:
– As outras notas são de Moçambique e o que contava este
Francisco não era muito diferente. Ali não era Agostinho neto
quem liderava o movimento e sim Samora Machel da Frelimo, a
Frente de Libertação de Moçambique e Francisco escreve que as
instruções que tinha eram de:
“apoiar Dhlakama, pouco importando o que pensam
nossos colegas do Departamento de Estado. Eles estão
tentando convencer Samora Machel a se aliar conosco
mas pelas duvidas é importante seguir debilitando o
governo e o pais.”
Bebéi estava confuso. Em sua visão romântica os espiões
internacionais sempre buscavam os criminosos. Como era
possível que alguns queriam colapsar um pais.
Princesa percebeu o confusão no olhar de Bebéi mas não quis
discutir. Ali a ideia não era discutir a ética da politica
internacional e sim saber o que o húngaro tinha feito de tão
importante e que valia tanto dinheiro a ponto de atrair a atenção
de um escritório de advogados de Miami
– Ele viveu no Congo –disse Princesa– mas fez varias viagens e
de alguma forma estava interessado em vários países africanos.
Já sabemos que esteve na Argélia onde se encontrou com Barba
Roja . Esteve discutindo Republica Dominicana em uma reunião
que não sabemos onde foi mas desconfiamos que foi em
Havana. Suspeitamos, pelo que Jordi leu nas notas, que Arpad
esteve em Khartum e em Adis Abeba e temos indícios de que
esteve envolvido com Jakarta e que se interessava muito pelo
que ocorria ali. Mantinha contatos com este Francisco onde
discutia temas de Angola e Moçambique. Ou seja o húngaro não
era um pé rapado qualquer. Ele trabalhava com quase todos os
159 países da África onde haviam movimentos revolucionários. E
sabemos que ainda trabalhando para os americanos ele não tinha
simpatias por muitas das coisas que eles faziam.
Repassaram depois o que faltava na lista e combinaram que para
as notas em alemão a única opção era Frida e como Bebéi era o
único ali que conseguia conversar com ela, ele ficou de procurala. Para as notas que estavam em Russo era mais fácil pois Pirilo
pediria ajuda a Ludmilla. A única duvida era com relação as
notas em Inglês. Pirilo e Princesa estavam em duvida se
deveriam pedir ajuda a Senhora da embaixada pois talvez as
notas traziam alguma coisa que a Senhora quisesse esconder.
– São 26 livros e apenas 24 envelopes, por que? – perguntou
Pirilo ao final.
E foi apenas ai que comentaram o libro de Xingjiang que não
tinha nota dentro dele e onde Arpad havia escrito aquela frase
“Meu ultimo livro... de que me serve seguir lendo” que eles não
entendiam.
O outro era o livro de Zola e Bebéi finalmente decidiu compartir
com eles seu segredo e contou da chave que estava no pequeno
envelope dentro do livro.
– Talvez seja esta chave que o advogado de Miami esta
buscando – comentou Pirilo.
– Ella esta bem guardada – respondeu Bebéi e quando Pirilo
sugeriu que talvez fosse melhor guarda-la no cofre da prefeitura,
Bebéi retrucou com firmeza– Ela esta bem escondida e até que
saibamos de onde é a chave prefiro deixa-la onde esta que sei
que ali ninguém vai encontrar.
E não houve forma de convence-lo r do contrario. Os três se
surpreenderam com a resistência de Bebéi mas o que eles não
sabiam é que Bebéi já tinha conversado muito sobre isto com a
pequena Irigandi e ainda que ele respeitasse muito a opinião dos
três que estavam ali, Bebéi sabia que com ela a chave estava
bem escondida.
160 Depois da reunião ele regressou ao apartamento onde uma nova
e agradável surpresa o esperava. Na porta encontrou uma
mensagem escrita em francês:
“Estou na Pousada dos Caracóis em frente a Embaixada
da China. Laurence.”
A neta do húngaro não tinha respondido a carta mas sim tomado
um avião em Kinshasa para encontra-lo em Santa Clara. Bebéi
nem entrou em seu apartamento e foi direto a pousada.
Laurence era tão bonita como Tsehai, a modelo etíope que vivia
com Sonia em Paris e que ele apenas conhecia por fotografias.
Ela lhe contou que seu pai era Tutsi e ela era uma mulher alta o
que lhe dava uma forte presença ainda que seu rosto mantivesse
sempre uma expressão tímida. Sua pele tinha a cor da canela e
seus olhos eram de um azul brilhante, herança de sua mãe. Suas
sobrancelhas tinham algo de forte e exótico, talvez cigano, ou
talvez judeu, mas certamente algo mediterrâneo. E para alegria
de Bebéi ela era tão doce quanto a pequena Irigandi.
Começaram a conversar ali mesmo na varanda da pousada e em
poucos minutos ele já estava encantado. Laurence tinha já uns
trinta anos, falava um francês perfeito e havia estudado na
Universidade de Grenoble, mas ainda mais importante do que
tudo, tinha uma enorme curiosidade em conhecer mais sobre a
vida de seu avô.
Ela contou que Morgen, quase nunca o mencionava. Era como
se ele não tivesse existido. Foi somente quando já estava bem
debilitada pela tuberculose e poucos dias antes de morrer que ela
comentou:
– Talvez errei em não dar ao teu avô uma chance explicar o que
fez e por isso nunca soube quais foram as suas razões.
Laurence nunca chegou a compreender o que dizia sua mãe e
nem seu pai ou a avó com quem vivia lhe souberam explicar. O
que passou entre Arpad e Morgen era algo que apenas os dois
conheciam.
161 Bebéi contou tudo o que sabia. Contou que Arpad tinha
desaparecido dez anos antes, que alguém mais estava
interessado em descobrir o que ele sabia e por isso tinham
roubado seu apartamento. Contou também que tinha com ele
todos os livros onde Arpad guardava suas notas e que agora eles
estavam sob proteção de Tenente Pirilo na prefeitura. Depois de
tudo contar, ele a levou até o apartamento onde ele vivia e onde
puderam entrar graças a chave que continuava guardada no
rodapé. Ali era pouco o que podiam ver, mas ainda que fosse
pouco, tudo ali era dela, pensava Bebéi.
Subiram também ao apartamento de Bebéi pois ele insistia em
que ela conhecesse a gaivota. Quando entraram e ele abriu a
porta de vidro do terraço, Laurence se sentou no chão e
começou a acariciar a gaivota que pela primeira vez desde que
havia pousado ali, deixou de olhar para o mar e virou seu bico
em direção a ela.
Bebéi preferiu deixa-la a sós com a gaivota e com o cachorro
que também se acostou ao seu lado no terraço. Aparentemente
aquele carinho era o único que faltava para a gaivota recobrar o
desejo de voar e quando Laurence se levantou e fechou atrás de
si a porta do terraço a gaivota finalmente saiu voando.
O cachorro latiu balançando o rabo e eles ainda tiveram tempo
de ver a gaivota sobrevoando a Praça da Gabriela até que tomou
a direção do forte onde foi juntar-se a outras gaivotas que
estavam voando sobre a baia naquele final de tarde.
Fosse o que fosse estava curado e com o carinho da neta de
Arpad a gaivota finalmente voltou a voar. O único que ia ficar
triste era o português do supermercado que teria de cancelar sua
campanha publicitaria.
Bebéi permaneceu ali pensando ainda por muito tempo. Será
que a gaivota estava apenas esperando Laurence chegar?
162 24
Laurence chega com historias
Banyamulenges e de Kisangani
de
Depois de ver a gaivota partir Bebéi levou Laurence ao Café
para que ela conhecesse Ilona, Irigandi e todos os que
trabalhavam ali. O único que ele não compreendia era porque os
homens paravam de falar quando viam Laurence e foi Ilona
quem explicou falando baixinho em seu ouvido.
– Não repita o que eu vou te dizer a Gigi, pois ela vai ficar com
ciúmes, mas Laurence é uma das mais belas mulheres que já
entraram neste Café.
Um comentário bem comedido se comparado ao que disse Lola
Marlene aquela noite quando entrou no Café exuberantemente
vestida para seu espetáculo no cabaré.
– Você é uma mulher ou uma deusa que veio a terra só pra
despertar inveja em todas nos?
Laurence sorriu e baixou os olhos quando Bebéi lhe traduziu.
Era curioso, pensava ele, como ela combinava exuberância com
timidez, algo que contrastava completamente com a nada tímida
Lola Marlene.
Já no primeiro dia ela se fez amiga de todos, desde o cachorro
de Irigandi até as assistentes de Dona Cécy na cozinha. E no
jantar contou historia do lugar onde vivia e mostrou varias
fotografias que Bebéi descreveu em detalhes para Irigandi.
Contou aquela noite que o pouco que sabia de seu avô Arpad é
que ele trabalhava para os americanos e era o responsável por
163 um importante projeto financiado pela USAID para todos que
como ela e seu pai, eram os Banyamulenge; era assim, explicou
ela, que se conheciam os congoleses Tutsis que viviam entre
Kisangani, a cidade no alto do rio Congo, e Bukavu a beira do
lago Kiwu na fronteira com Ruanda.
– Foi por conta do projeto de meu avô que minha mãe conheceu
Kisangani.
Contou que sua mãe vivia e estudava em Kinshasa mas como
seu pai era responsável pelo projeto ela sempre o acompanhava
em suas viagens ate Kisangani. E sempre que tinha ferias ficava
por lá. Contou que eles iam tanto que Arpad decidiu comprar
uma pequena casa onde Laurence ainda vivia com sua outra avó,
a mãe de seu pai.
– Quando minha mãe tinha dezesseis anos eles tiveram a
primeira briga. Meu avô queria que ela fosse fazer a
universidade na Alemanha e ela mentiu dizendo que estava
enviando todos os papeis para inscrição, mas a verdade é que
não queria ir. Seu desejo era viver em Kisangani e quando ele
descobriu já era tarde; o curso na universidade estava
começando e minha mãe não estava inscrita. Meu avô tentou
tudo o que pode e com a ajuda de um amigo de Berlim até
conseguiu que mesmo sem inscrição ela fosse aceita, mas ela se
recusou e não foi.
Laurence seguia contando sua historia com o filhotinho de
Irigandi em seus braços e o cachorro de Bebéi em seus pés.
– Foi por conta desta briga que minha mãe decidiu ir viver em
Kisangani e isto foi mais ou menos em 1969. Desde então ela
nunca mais saiu dali.
Laurence explicou que entre Kinshasa, a capital do Congo, até
Kisangani havia um grande movimento de barcos e de pessoas
pelo rio, mas que depois de Kisangani, até a fronteira com a
Ruanda, tudo eram montanhas e selva.
– É uma parte do pais que poucos estrangeiros conhecem e onde
minha mãe conhecia cada lugar e cada família. Todos ali a
164 queriam muito e não apenas pelo que fazia pelo projeto mas sim
pelo carinho e o tempo que ela dedicava, viajando por todos os
lugares e conhecendo a toda gente. Minha avó contava que ela
algumas vezes desaparecia de Kisangani por meses metida nas
montanhas. Sua grande paixão era o parque nacional de Maiko e
segundo o que dizem ali, quando ela tinha dezenove anos, minha
mãe foi pessoalmente pedir ao presidente Mobutu que assinasse
a lei criando o parque
Bebéi tomava notas de tudo o que ela dizia para não esquecer e
Laurence seguia contando:
– A ruptura com meu pai foi depois e nem minha avó sabe por
que. Alguma coisa fez meu avó que de repente minha mãe parou
de falar com ele e abandonou o projeto onde trabalhava, mas
isso foi antes de que nasci.
Até Dona Cécy abandonou sua cozinha para sentar no terraço e
escutar o que ela contava.
– Minha mãe continuou vivendo em Kisangani mas nunca mais
trabalhou com meu avô. Foi por esta época que ela conheceu
meu pai e fez a sociedade. Ele tinha um barco bem velho e
transportava coisas entre Kinshasa e Kisangani e como ela tinha
um pouco de dinheiro economizado pelo meu avô para financiar
seus estudos na universidade, ela propôs a meu pai comprar um
barco novo e os dois montaram juntos a empresa de transportes.
Meu pai segue até hoje transportando carga com o mesmo barco
mas minha mãe nunca trabalhou com ele. O único que ela queria
era conseguir da sociedade o dinheiro que necessitava para
seguir vivendo ali e poder continuar ajudando os
Banyamulenge. Ela também criou uma Fundação para receber
doações e financiar seus projetos. Uma fundação que existe ate
hoje.
A todos que a escutavam ali no terraço do Café aqueles lugares
e aquelas cidades não tinham um grande significado mas era
agradável escutar Laurence, combinando sua beleza exótica com
a timidez e humildade com que contava suas lembranças.
165 – Alguns anos mais tarde –seguia ela– os dois se casaram e eu
nasci e todas as minhas recordações de infância são ao lado de
minha mãe. Nunca fui a escola. Foi ela quem me ensinou tudo.
Viajávamos sempre juntas e todas as noites, não importa onde
estivéssemos, estudávamos juntas. Com ela aprendi o francês e
o alemão. Aprendi matemática, historia tudo o mais que devia
aprender.
Irigandi escutava e pensava que se sua mãe não tivesse morrido
protegendo o segredo do Darien ela certamente lhe teria
ensinado tudo, assim como Morgen ensinou a Laurence.
– Toda aquela região das montanhas sempre foi muito perigosa.
Ali estavam os guerrilheiros do Simba mas nunca tivemos
problemas. Viajávamos por toda região onde viviam os Tutsis e
a grande preocupação de minha mãe eram os conflitos com
Hutus que cada vez ficavam mais evidentes.
E aquele menção a Tutsis e Hutus, aguçou a atenção de Jose
Princesa que já havia lido muitas coisas sobre o conflito entre
aqueles dois povos africanos.
– Ela morreu em 1991 quanto eu tinha dezesseis anos e depois
de sua morte passei a viver com minha avó em Kisangani.
Naquela época minha avó quis que participasse de um concurso
para bolsas de estudo do governo francês. Ninguém acreditava
que pudesse passar pois nunca tinha assistida a uma única aula
na escola e apenas havia estudado com a minha mãe, mas passei
em uma das primeiras posições. Graças a minha mãe ganhei a
bolsa e fui estudar na França –e disse isso com orgulho–
Quando estava na universidade em Grenoble, fiz tudo o que
podia para tentar encontrar meu avô e foi quando descobri que
ele vivia em Santa Clara. Enviei a carta mas como ninguém
respondeu desconfiei que nunca mais poderia vê-lo. Quando
terminei meus estudos voltei a Kisangani e estava trabalhando
na Fundação tentando fazer o mesmo trabalho que ela fazia, mas
as coisas andam cada vez piores. Enquanto estive na França a
Fundação cresceu muito graças as doações recebidas mas aquele
166 também foi o período da guerra civil e do massacre dos Tutsis
em Ruanda. Hoje quase que não é mais possível viajar por ali
pois toda a região das montanhas é controlada por caçadores
clandestinos e guerrilheiros. Mas então –e disse isto sorrindo–
recebi a carta de Bebéi e tomei o primeiro voo que pude para vir
aqui encontrar com vocês.
Aquela noite Bebéi pediu a Tenente Pirilo que levasse pastas
azuis com as notas que estavam dentro dos livros de Marai,
Orwell e Tolstoi. Laurence falava o alemão e talvez com o que
estava nos envelopes ela poderia entender um pouco mais do
que havia acontecido entre sua mãe e seu avô e ao mesmo tempo
ajuda-los a compreender o que estava escrito ali.
Combinaram de se encontrar no dia seguinte na sala dele na
prefeitura para que ela pudesse ver as outras pastas a ao sair
Pirilo aproveitou para mencionar algo que lhe preocupava:
– Ainda não entendo o que querem estes advogados e a verdade
é que não confio neles. Se eles te chamam o passam pelo hotel
por favor não converses com eles sem que esteja ao teu lado.
Pode ser a qualquer hora do dia ou da noite, não importa, me
chame que eu te acompanho.
E foi muito bom que ele tivesse dito pois aquela mesma noite os
advogados a chamaram na pousada. De alguma forma eles
tinham descoberto que ela havia chegado a Santa Clara. Ela
escutou e seguindo a recomendação de Pirilo propôs um
encontro no dia seguinte, no escritório de Pirilo na prefeitura.
– Tenente Pirilo insiste que quer participar –disse ela por
telefone, o que aparentemente desagradou aos advogados.
Como é possível que eles descobriram rapidamente que ela
havia chegado? Foi o primeiro que pensou Tenente Pirilo
quando Laurence lhe contou que os advogados a tinham
chamado. Será que eles também tem câmeras instaladas na
cidade? Perguntou pelos lugares onde ela havia estado l e eram
poucos, o apartamento de Arpad, o apartamento de Bebéi e o
Café de Ilona, como descobriram tão rápido.
167 Pirilo seguia pensativo, será que ele estava ficando tão
paranoico quanto Coronel Viera que dizia que todos estavam
vigiando seus movimentos? O problema com isto é que Pirilo
sabia que no caso do Coronel, ele tinha razões para desconfiar
pois a prefeitura tinha instalado uma câmera com microfones em
frente as escadarias da Igreja das Mercedes e seus assistentes
podiam dizer com precisão quando o coronel acordava, dormia,
peidava e até mesmo quando olhava os decotes e as pernas das
meninas com aquela expressão de velho safado.
Pelas duvidas, enquanto revisavam as pastas, Pirilo pediu a seus
assistentes que revisassem os lugares onde ela tinha estado
utilizando os novos equipamentos que o irmão tinha comprado
para detectar câmeras e microfones escondidos. Quem sabe
alguém estava acompanhando os movimentos de Bebéi?
Antes mesmo de olhar as novas pastas, Laurence contou o que
havia descoberto nas notas do livro de Marai. Eram as notas
sobre Morgen e confirmavam o grande amor e carinho que
Arpad sentia por sua mãe.
–Ele se sentia culpado de ter levado ela para a África. Demorou
muito tempo para ele entender que ela se sentia mais feliz ali
que talvez jamais se sentiria em Berlim, mas isto ele apenas
entendeu quando ela estava trabalhando em Kisangani – e
continuava– As notas que li também confirmam que ele fez todo
o possível para leva-la estudar em Berlim e que um amigo de
nome Otto, tinha ajudado para que ela entrasse na universidade
naquele mesmo ano ainda que não estivesse inscrita.
E Bebéi comentou brincando que o amigo Otto resolvia
qualquer problema, desde viagens a partidas de futebol até
inscrições na universidade.
– Os problemas entre os dois se aprofundaram depois e tem a
ver com o trabalho que ele fazia. Segundo o que ele mesmo
escreveu:
“Morgen nunca entendeu por que faço meu trabalho e não
a culpo pois eu também jamais compreendi. A diferença é
168 que já há muito tempo que parei de fazer perguntas e
Morgem segue perguntando”
– Curiosa esta frase –comentou Pirilo– não parecia ter muito
orgulho do que fazia.
Laurence comentou que era esta mesma impressão que ela teve
depois de ler as notas e traduziu uma como exemplo:
“O que aconteceu em Burundi foi horrível e não tive como
evita-lo. Não sabia que estavam planejando e quando
percebi já era tarde demais. Ela nunca me perdoou e
nunca me perdoara. Ela sabia quem estava por detrás
daquilo fomentando a rebelião e entregando a eles as
armas. Morgen sabia que eu tinha minhas mãos sujas de
sangue”
Foi apenas depois de varias horas lendo e relendo as notas que
eles finalmente começaram a compreender o que tinha ocorrido.
Aparentemente o projeto de Arpad era uma tentativa dos
americanos de se aproximar dos Tutsis, mas não o faziam
apenas para ajuda-los; seu interesse parecia ser o de convencelos a seguir combatendo os grupos organizados contra o governo
de Mobutu, como os Simba onde o Che havia lutado, e que eram
fortes na região onde habitavam os Banyamulenge.
O tema era ainda mais complexo pois segundo as notas que
leram, aparentemente os soviéticos, do outro lado, estavam
tentando organizar os Hutus para combater os Tutsis e sua
motivação era a mesma dos americanos. Como os americanos
apoiavam os Tutsis para atacar aos Hutus, os soviéticos estavam
apoiando os Hutus para enfrentar os Tutsis. Tanto americanos
como soviéticos estavam fazendo exatamente o oposto do que
Morgem sempre tinha feito. Enquanto ela tentava acalmar as
tensões que haviam entre eles, os americanos e os soviéticos
estavam estimulando, jogando africanos contra africanos em um
conflito que não tinha nada a ver com eles e sim com os
interesses de dominação politica dos dois países.
169 Laurence então contou toda a preocupação de Morgen antes de
morrer com o que estava passando em Ruanda.
– Pelo que contava minha mãe havia muita tensão especialmente
na região do rio Rusizi, que ia do lago Kiwu ate o lago
Tanganica. Os Tutsis viviam no Congo mas também em Ruanda
e em Burundi. Minha mãe sempre dizia que antes, eles não
lutavam entre si, mas que foram os “de fora” que os
convenceram a lutar. Ela nunca explicou quem havia feito e isso
tudo foi antes de que nasci. Recordo que falavam do grande
massacre de Burundi mas nunca pude imaginar que meu avô
tivesse envolvido com isto. Mas ali estava a nota de Arpad:
“Morgen sempre disse que não devíamos entregar armas
aos Tutsis pois não era disso que eles necessitavam e ela
estava correta, mas alguns pensavam que era importante
armar aos Tutsis para controlar o movimento Simba e
todo terminou em uma grande tragédia”
Havia uma frase mais que ajudava a entender a tormenta que
passava pela cabeça de Arpad:
“Minha mãe me ensinou a encantar as pessoas com as
notas agudas do violino e todo o que hoje fazem minhas
mãos sujas são relatórios de sangue”
Quando leu estas linhas Laurence pediu para interromper a
reunião. Foram muitas as informações e emoções aquela manhã
e ela precisava caminhar um pouco antes de reunir-se com os
advogados, mas antes de sair ainda comentou:
– Minha mãe dizia a todos que depois do massacre de Burundi
era importante acalmar os ânimos pois se os Hutus decidissem
buscar vingança, eles iriam massacrar aos Tutsis. Ela sabia que
o massacre de Burundi podia causar o genocídio que depois
ocorreu em Ruanda e sabia também que meu avô trabalhava
para os que haviam fomentado aquele conflito.
170 25
Pirilo gostava de jogar póquer e o
húngaro de fazer revoluções
Naquela mesma tarde eles se reuniram com os advogado. O
encontro foi no escritório de Pirilo que ao seu lado trazia um
jovem advogado da prefeitura que também era amigo de
Cristina e Jordi. Ali estava Laurence, Bebéi, que lhe ajudava
com a tradução, a equipe de advogados que incluía dois
advogados do escritório local e outro mas que tinha chegado de
Miami no dia anterior.
A primeira pergunta que fizeram foi se Laurence tinha como
provar que era neta de Arpad e ela lhes apresentou a certidão de
nascimento de sua mãe na Alemanha e o certificado de
nascimento que tinha da Republica Democrática do Congo.
O advogado de Miami tomou a copias dos documentos em suas
mãos, e com uma expressão arrogante argumentou que eles
teriam que obter as certificações necessárias mas que ele
antecipava uma certa dificuldade para atestar a validade de
documentos emitidos pela Republica Democrática do Congo e
especialmente pelo registro publico de uma cidade com o nome
de Kisangani.
Laurence escutou com a mesma atitude de humildade que
sempre mantinha e quando ele concluiu comentou:
– Tenho também este documento que minha mãe obteve
pensando que algum dia alguém poderia questionar a validade
de minha certidão de nascimento – e mostrou uma certidão de
nascimento emitida pelo governo da Republica Democrática
Alemã– Mesmo sem jamais ter estado na Alemanha tenho
também a cidadania alemã por ser a filha de Morgen Corvinus.
171 O advogado não conseguiu esconder seu desgosto e o jovem
advogado da prefeitura, rapidamente tomou o documento das
mão de Laurence:
– Como já fizemos copias dos outros documento é melhor fazer
uma copia deste documento também para evitar qualquer risco
de perda.
Bebéi não entendia bem o que cada um deles estava querendo
naquela reunião mas percebia que naquela mesa todos
suspeitavam de todos.
Depois de ver os documentos os advogados não pereciam ter
mais perguntas. Comentaram duas ou três pequenas coisas mais
e a reunião já parecia estar terminando e antes de concluir Pirilo
ainda perguntou:
– Algum tema mais que lhes gostaria tratar? –e os advogados
responderam que não.
Tenente Pirilo esperou que os três tivessem levantado da mesa
de reuniões e apenas ai fez uma nova pergunta:
– Quando estive pela primeira vez em seu escritório, o advogado
que me atendeu comentou que vocês também administravam
uma outra propriedade do húngaro. Não lhes parece que seria
interessante que conversemos também sobre esta propriedade?
O advogado de Miami certamente não era um bom jogador de
pôquer pois sua expressão denunciava bem o que sentia e ele
estava claramente incomodado com a pergunta.
– Não me pareceu necessário mencionar pois ainda não temos
uma indicação clara de que o Senhor Arpad Corvinus esta
morto. Ate agora seguimos administrando os seus bens imóveis
assim como seus ativos financeiros, da mesma forma que
sempre o fizemos.
– De acordo –disse Pirilo– mas como o Senhor Arpad
desapareceu a mais de dez anos atrás creio que seria interessante
informar Laurence, sua eventual herdeira, quais são os bens que
ele tem, não lhes parece?
172 Os advogados regressaram as suas cadeiras e o advogado de
Santa Clara abriu a pasta de onde tirou uma folha que leu com
uma expressão que não conseguia esconder sua contrariedade.
– Além do apartamento no casarão amarelo, administramos
também uma conta de poupança com aproximadamente um
milhão de dólares e uma propriedade em Santa Clara Frente ao
Mar de dois mil e quatrocentos metros quadrados onde não
existe no momento nenhuma construção.
E o advogado de Miami rapidamente acrescentou:
– Que seguiremos administrando com o mesmo cuidado e
dedicação de sempre até que se aclare a situação do Senhor
Corvinos e de sua eventual herdeira.
Outro silencio e ai Pirilo decidiu provoca-los uma vez mais:
– Imagino que os senhores estão ao par de que depois que o
apartamento foi roubado, três pessoas vieram de Miami com o
objetivo de invadir outra vez o casarão onde vivia a Senhor
Arpad, será que os senhores sabem o que eles estava buscando?
Tenente Pirilo enquanto falava observava com atenção a
expressão dos três advogados e foi curioso que os dois
advogados locais se mostraram surpreendidos e voltearam seus
rostos para o advogado de Miami que conseguiu manter a
tranquilidade:
– Apenas conhecíamos o roubo dos artigos pessoais do Senhor
Arpad e nada sabíamos desta segunda tentativa.
Mas Pirilo era um grande jogador de pôquer e estava se
divertindo em provocar os advogados. E até tentou dar mais um
passo:
– Será que eles estavam buscando a chave que lhes faltava?
E ai os três deram a impressão de que nenhum deles tinha a
menor ideia de que chave ele estava falando.
173 Pouco mais se conversou e quando os dois saíram Tenente Pirilo
fez um comentário com Laurence que Bebéi rapidamente
traduziu:
– Agora já sabemos que você não apenas é muito bonita mas
também muito rica
E foi a vez de Bebéi fazer uma pergunta a Laurence:
– E quem era o amigo da Alemanha que te ajudou com a
certidão de nascimento?
– Nunca soube –respondeu Laurence– apenas sei que era
alguém que conhecia minha mãe desde que ela era uma criança
e que ainda vivia em Berlim.
– Provavelmente Otto –disse Bebéi a Pirilo.
E foi então que os dois explicaram todo o que estavam pensando
do trabalho que Arpad fazia, da suspeita de que Otto era da Stasi
e de que Arpad era um agente duplo trabalhando para o CIA e
também para a Stasi e os soviéticos.
Laurence escutou em silencio sem aparentar surpresa:
– As notas que estava dentro do livro de Orwell e que li esta
manhã confirmam isto. Por elas pude notar que Otto sempre foi
um grande amigo de meu avô, desde os tempos em que minha
avó ainda estava viva. Meu avô seguiu em contato com ele ate
que ele se foi do Congo em 1976 – e comentou o mesmo que
intrigava a Bebéi– O curioso é que Arpad tinha guardada com
ele algumas cartas que ele enviou a Otto e não entendo porque é
ele quem as tem e não Otto.
Laurence ai traduziu uma das notas que estavam escondidas no
livro de Orwell:
– A primeira era da Argélia onde Arpad mencionava:
“Preferiria distanciar-me de tudo, mas não sei o que mais
posso fazer. Sei que você sempre me ajudaria em Berlim
174 mas não posso viver ai pois tudo me recorda a tristeza da
guerra e da morte de Eszter”
– Existem outras notas que Arpad enviou de Kinshasa, mas estas
apenas indicam que os dois eram amigos, pois Arpad descreve
como ele e minha mãe viviam. Nestas cartas tanto ele como Otto
não fazem nenhuma referencia a trabalho. Sei, por que minha
mãe um dia me contou que minha avó, Eszter trabalhava para
Stasi. Este foi o preço que ela teve de pagar para se aproximar
do partido e conseguir ajuda para ir salvar meu avô dos campos
de concentração soviéticos, mas sei também que ela sempre se
rebelou contra a orientação do partido comunista. Otto, sempre
foi um grande amigo da família e não sei onde ele trabalhava.
Existe apenas uma nota onde Arpad fala de algo relacionado a
trabalho. Uma carta que Arpad escreveu a Otto onde ele explica
um pouco seu remorso:
“Tudo que havia visto era como os americanos e
soviéticos jogavam com a vida dos africanos. Entre todos
que conheci a única pessoa que realmente se interessou
pela África foi Morgen e por isso nos abandonou a todos e
rompeu a relação que tinha comigo. Ela fez o que todos
nos que amamos a África deveríamos ter feito desde o
principio. Eu segui aproveitando o emprego que tinha e o
único que causei foi morte e destruição”
Bebéi seguia tomando nota de tudo.
– Nas notas onde Arpad escreve suas anotações pessoais existe
uma interessante referencia a Otto:
“Janeiro de 1977 : a ultima vez que encontrei Otto. Ele
sempre esteve ao meu lado mas agora tenho de seguir
sozinho e não posso tê-lo comigo. Agora sim vou fazer o
que sempre deveria ter feito”
Depois de olhar todas as notas do livro de Orwell eles ainda
discutiram as notas de Tamara que estavam no livro de Tolstoi e
havia uma que Frida não havia traduzido. Era uma nota de
Tamara bem pessoal onde ela falava das dificuldades que tinha
175 na Bolívia. Foi escrita em 1965, o mesmo ano em que Guevara
foi ao Congo segundo as anotações de Bebéi e dizia “Já disse a
nosso amigo que ele não deve se aproximar de ti”
– Tamara sabia que Arpad era um agente duplo –comentou
Pirilo– e que o Che não podia aproximar-se dele o que reforça o
que pensávamos da nota do Che quando ele disse que Arpad lhe
ajudava “de longe”
Muita cosa tinha sido esclarecida mas Pirilo ainda tinha uma
grande duvida: Que fez o húngaro depois de janeiro de 1977?
Que significado teria aquela frase: “Vou fazer o que sempre
deveria ter feito” e por isso comentou:
– Ele apenas chegou em Santa Clara em 1986 para ser professor
de musica da escola municipal, faltam ainda dez anos de sua
vida que não conhecemos e talvez sejam eles que explicam a
chave que estava guardada no Germinal de Emile Zola.
176 26
O que parecia claro fica confuso quando
a Senhora conta o que sabe
Pouco a pouco as perguntas iam sendo respondidas. Ainda não
sabiam por que o húngaro desapareceu sem avisar e muito
menos para que servia a chave. Pirilo era um que ainda tinha
duvidas de que a chave era a causa dos roubos, mas pelo menos
eles já sabiam o que o húngaro fazia; era um importante agente
do CIA que defendia os interesses dos americanos em vários
países africano e que atuava também como um agente duplo
enviando informações a Cuba e a Berlim. Ou pelo menos era
isto o que pensavam ate o dia em que a Senhora telefonou a
Bebéi dizendo que havia descoberto o que Arpad fazia e
propondo um encontro no atelier de Lola Marlene onde ela ia
experimentar alguns novos modelos desenhados especialmente
para ela.
Pirilo quando soube decidiu ir também para confirmar o que já
haviam descoberto mas o que escutou aquela manhã da Senhora
foi uma surpresa.
– Arpad Corvinus trabalhou para o CIA. Esteve na Argélia por
dois anos e depois foi ao Congo onde trabalhou por catorze anos
para nós. No inicio fazia trabalhos de inteligência, ou
espionagem como prefere chamar nosso amigo Bebéi. Depois
passou a trabalhar com nossa agencia de apoio ao
desenvolvimento a AID. Aparentemente o trabalho de
inteligência não lhe interessava e por isso ele nunca chegou a
impressionar os seus superiores. Seu trabalho no Congo era
mais um trabalho burocrático. Fez algumas visitas a Burundi e
177 Ruanda por conta do projeto de desenvolvimento mas nunca
trabalhou fora destes países
– Quer dizer que ele não era um espião importante – perguntou
Bebéi decepcionado e ela respondeu que não.
Pirilo comentou que eles tinham boas razões para acreditar que
ela estava enganada pois as notas que encontraram
demonstravam que ele estava envolvido com coisas importantes
que se passavam em vários países e não apenas no Congo.
A Senhora não lhe deu grande atenção pois obviamente confiava
muito mais na informação entregue por seus agentes de
Washington que nos descobrimentos de Bebéi e Tenente Pirilo
em Santa Clara Frente ao Mar, mas por ser educada ela se
comprometeu a passar pelo escritório de Pirilo ao final da tarde
e dar uma olhada nos documentos que eles tinham ali.
Bebéi saiu dali frustrado e como tinha pedido licença da
embaixada decidiu aproveitar o resto da tarde para levar
Laurence as escadarias das Mercedes e apresentar lhe aos
pelagatos.
Frida não estava bêbada e ficou feliz de poder falar com alguém
em alemão. Nullo quase que não conseguia se levantar de tão
impressionado que estava com a beleza de Laurence, mas
quando finalmente a cumprimentou, recuperou sua energia de
executivo de empresas e instruiu a Bebéi com autoridade.
– Diga a tua amiga que a partir de agora ela vai viver em Santa
Clara – e acrescentou com soberbia – E esta decidido!
Bebéi entendeu que Laurence tinha uma beleza especial quando
viu Henry Moriarty levantando daquele canto onde passava seus
dias e suas noites para se aproximar e cumprimenta-la. Ele
nunca tinha feito isso antes. Coronel Viera seguia dormindo
provavelmente sonhando com a falecida Riquita, mas quando
abriu os olhos seu rosto se iluminou como se estivesse pensando
que o verdadeiro sonho tinha começado. E enquanto os homens
olhavam com seus sorrisos ávidos Frida, continuava
178 conversando com ela em alemão mas sempre traduzindo para
que Bebéi pudesse entender.
– Para mim tanto o húngaro como Otto são da Stasi e é
importante dizer que foi graças aos da Stasi que consegui
sobreviver na prisão e sair da Alemanha. Eu nunca os procurei
pois sabia que eles eram tão sacanas quanto os que me
torturaram, mas eles me procuraram e tentaram me ajudar. Sei
que não foi por mim e sim porque tinha colocado uma bomba
contra o governo fascista, mas a verdade é que a Stasi me
ajudou.
Como tinham ainda muito tempo Bebéi foi ate a barbearia e
aproveitou para entregar a Rasta as pastas com as notas em
russo para que Ludmilla traduzisse e por sorte a própria Ludmila
estava por ali com o seu barrigão de quase nove meses. Grená
também se aproximou; a ela pouco lhe interessavam as historias
antigas do húngaro, mas Laurence era a grande novidade do
bairro e ela também queria conhece-la.
Como a manicure estava desocupada Laurence aproveitou para
fazer as unhas enquanto Ludmilla lia uma das notas que estava
no livro de Rilke. E de repente ela começou a chorar. Importante
dizer que ela já conhecia a historia do húngaro pois Pirilo tinha
contado a todos no jantar com a família e ainda mais importante
lembrar que como ela estava gravida, ela andava ultra sensível e
qualquer coisa lhe emocionava.
Foi entre soluços que ela traduziu a todos uma nota que Arpad
enviou a Eszter e que foi escrita em russo graças a compaixão de
um soldado do campo de concentração onde ele estava preso.
“Daria todo resto de meu corpo si pudesse preservar
minhas mãos pois era com elas que tocava o violino para
minha mãe, mas o frio aqui e devastador e quando
cheguei não tinha como protege-las. O único que me
entregaram foi um par de luvas onde uma delas, a da mão
esquerda estava rasgada e apenas tinha dois dedos. Tentei
colocar todos os dedos dentro daqueles dois dedos da luva
mas foi impossível e como tinha de seguir trabalhando tive
179 de colocar o polegar separado dos outros para poder
segurar a pá. Coloquei o polegar em um dos dedos e
outros dois dedos, o indicador e o maior no outro e com
isso os dois dedos menores ficaram expostos a neve e
congelaram. A noite, ao regressar a cabana onde
dormíamos eles eram apenas duas coisas negras que
pareciam grudadas ao meu corpo. Perdi meus dedos e
exatamente os dois com que tocava as notas mais agudas
do violino. Eram exatamente estas as notas que
encantavam a minha mãe e faziam Lali dançar pelas ruas
de Budapest. O único que aprendi na minha vida foi como
tocar o violino e isto ficou para sempre congelado nas
neves de Kolima”
No envelopes também havia uma foto de Arpad com Eszter em
Moscou frente ao Kremlin que Ludmilla mostrou a todos e que
provavelmente foi tomada quando ela foi busca-lo pois ele
parecia extremamente frágil e doente.
Os que estavam na barbearia suando, pois era um dia de grande
calor em Santa Clara, começaram a opinar passionalmente sobre
como deve fazer alguém para sobreviver na neve que eles
apenas conheciam por fotos e enquanto escutava, Ludmilla deu
uma rápida olhada nas notas do livro de Neruda e sua expressão
se modificou completamente.
Continuou lendo um pouco mais e depois disse a Bebéi que não
conseguia entender muito bem o que estava escrito e que
preferia levar para casa e ali ler com mais calma. Grená que
estava ali percebeu rapidamente que era uma mentira, mas como
Bebéi e Laurence não perceberam. Ludmilla se foi com as notas
para casa e ao chegar telefonou imediatamente para Pirilo que
deixou para passar ali a noite pois antes tinha de receber a
Senhora no seu escritório.
Pirilo não tinha duvidas de que Arpad era um agente duplo mas
sabia também que a Senhora era muito bem informada e por isso
estava curioso para ver sua reação ao ler as notas que tinha, mas
decidiu ser cauteloso. O único que lhe interessava era entender o
180 que buscavam os que roubaram o apartamento e não queria se
involucrar desnecessariamente em todos aqueles temas de
espiões e contra espiões que tanto fascinava a Bebéi.
Bebéi e Laurence estavam também ali em sua sala quando a
Senhora chegou e Lola Marlene veio com ela pois também
estava curiosa para escutar o que a Senhora ia dizer. E ainda que
Laurence fosse ali a mais bonita, Lola e a Senhora estavam as
duas imbatíveis em termos de elegância.
O primeiro que ele fez foi mostrar as notas do Congo e de
Francisco e a Senhora leu com atenção. Seu único comentário
foi de que tanto o húngaro como este outro Francisco que
trabalhava em Angola e Moçambique e que também parecia
trabalhar para os americanos, não estavam muito contentes com
o trabalho que estavam fazendo. Explicou também a Laurence
que aquele foi um período de grande turbulência politica e que
muitos equívocos lamentáveis foram cometidos na África.
Depois Pirilo lhe passou as notas que estavam em inglês
guardadas no libro de Ibsen e que pareciam fazer referencia a
Indonésia. E foi ai que sua expressão passou a demonstrar uma
certa preocupação. Antes de traduzir ela insistiu em dizer que
não acreditava que o que estava escrito era verdadeiro, mas o
que diziam as notas era que alguém que Arpad conhecia havia
tido acesso a algumas listas com nomes de membros do partido
comunista da Indonésia preparados pelo CIA que eram
entregues ao General Suharto para que ele os executara.
Claramente a nota indicava que Arpad estava compartindo as
listas com os soviéticos para que eles pudessem tentar salvar
algumas daquelas pessoas incluídas nas listas de morte.
Ela insistiu em dizer que isso não parecia ser verdade e foi
interrompida por Lola Marlene:
– Meu amor, te amo até a morte, mas nem tente dizer que os
americanos foram santos na Indonésia. Os livros nos contam
que pelo menos uns quinhentos mil comunistas foram
assassinados ali quando o general Suharto decidiu acabar com
181 eles. O que passou já passou, isso eu aceito, mas que passou,
passou, isso você não pode negar.
A Senhora não contestou e seguiu lendo até que comentou que
ali também estava escrito que haviam copias destas listas e que
elas estavam “bem guardadas” e que seriam distribuídas aos
jornais.
– Será que o húngaro tinha mais documentos escondidos na sua
casa– ela perguntou e Pirilo respondeu que achava que não pois
os ladrões já haviam levado tudo e que a equipe da segurança da
prefeitura também havia revisado o apartamento.
– Revisaram mas não perceberam o que estava dentro dos livros
– recordou Bebéi – o que levou a Senhora a pensar que talvez
seria interessante fazer uma nova e mais detalhada revisão no
apartamento de Arpad.
Depois ela leu as notas do livro de Kafka e ao ler já com mais
interesse comentou que elas mencionavam alguém que se
chamava K e que era um contato de Arpad e vivia em Khartum.
Parecia ser alguém como Francisco que trabalhava para o CIA e
como ele não tinha grandes simpatias pelo que os americanos
estavam fazendo.
– Estas notas parecem indicar que havia uma rede de agentes
nos anos setenta que trabalhavam com o CIA mas que filtravam
informações para os soviéticos e que Arpad, de alguma forma
estava envolvido com eles – e acrescentou – tudo isso passou a
mais de trinta anos atrás mas talvez existam pessoas que por
alguma razão que não conhecemos estão interessadas nelas.
Enquanto falava ela abriu o envelope com as notas que estavam
dentro do livro de Virgílio e que pareciam fazer referencia a
uma tal de Valerie e foi quando sua expressão mudou
completamente:
– Que outras notas vocês tem? – foi sua pergunta um pouco
assustada e Pirilo respondeu com outra pergunta.
182 – Por que você quer saber –e como ela não lhe respondeu, ele
insistiu – que foi que você viu de tão interessante nestas notas
que tem na mão?
– Tenho de ser sincera. Não posso falar nada agora. Deixe me
levar estas notas para mostrar a um amigo e depois prometo que
conto, mas existe algo aqui que talvez seja muito importante.
Pirilo e Bebéi confiavam nela. Não era a primeira vez que
trabalhavam juntos e a Senhora sempre tinha honrado seus
compromissos. Mas apenas deixaram que ela levasse as notas de
Valerie e por prudência não lhe mostraram nenhuma nota mais.
Quando ela saiu Bebéi fez um comentário.
– A expressão da Senhora foi muito parecida a expressão de
Ludmilla esta tarde quando leu as notas de Natasha.
183 184 27
As historias russas assustam Ludmilla
quando chega o amigo de Laurence
– Pirilo você tem de tirar estas notas das mãos de Bebéi, elas são
um perigo. Esta Natacha estava chantageando a KGB –Foi a
primeira coisa que disse Ludmilla quando ele entrou na casa de
Grená e lhe tomou um bom tempo e duas doses de rum para
finalmente entender de que exatamente ela estava falando.
– No envelope que Bebéi me entregou com o que estava dentro
do livro de Neruda existem claras insinuações de que esta
Natasha tinha informações secretas que seriam entregues aos
principais jornais internacionais e as Nações Unidas se os russos
não pagassem o que ela estava pedindo. Ali também estão
algumas informações que indicam uma serie de pagamentos que
ela recebeu de um tal Yuri e uma lista de organizações a quem
os recursos recebidos eram enviados.
E Ludmilla continuava falando de forma descontrolada:
– No envelope do livro de Yates estão as notas deste Yuri e ali
se mencionam uma serie de sequestros, assassinatos e
desaparecimento de lideres africanos indicando que eles foram
todos coordenados por Moscou. E não eram apenas no Congo,
existem casos em Angola e Moçambique onde foram
assassinados os opositores de Agostinho Neto e de Samora
Machel; notas comentando o apoio que os soviéticos davam aos
hutus para matar os tutsis; outras de um golpe de estado que eles
apoiaram em Brazzaville para levar um tal de Major Ngouabi ao
poder e que mataram não sei quantas pessoas no caminho.
Falam também de Siad Barre na Somália, de um outro que se
185 chamava Amílcar Cabral na Guine Bissau e de todo o trabalho
que os soviéticos fizeram para executar seus opositores.
Mencionam também outras coisas, mas somente com a ajuda de
Princesa poderemos entender e até descrevem uma tentativa de
matar a Sellasie para colocar um tal de Megistu Hallie como
presidente na Etiópia. Quando mencionei isto a Rasta Bong ele
passou mal e tivemos de dar uma dose dupla de chá de sono
para ele se aclamar. Esta agora no seu quarto fazendo suas
orações e disse que quer conversar e que você tem que abrir
imediatamente uma investigação para descobrir quem queria
matar o Leão de Judá.
Pirilo tomou mais duas doses de rum e escutou calmamente tudo
o que Ludmilla lhe dizia e antes que Rasta decidisse sair do
quarto ele preferiu voltar a prefeitura. Ninguém, nem toda a
maconha e todos os chás do mundo poderiam acalmar seu irmão
aquela noite depois de saber que alguém queria matar Negus
Selassie, imperador da Etiópia, Ras Tafari Makonen, como seu
irmão o chamava, descendente direto do Rei Salomão, e de nada
valeria tentar explicar que aquilo tudo tinha acontecido a mais
quarenta anos.
Ele queria estar com Clara e junto com ela poder pensar. Clara
era teimosa, rígida em seus princípios mas pelo menos sabia
pensar. Foram muitas coisas que aconteceram desde que Bebéi
começou a investigar as notas daqueles livros e ele estava
confuso.
– Essa tal de Natasha chantageava os russos e a Senhora tinha
ficado muito preocupada ao ler o que estava dentro do livro de
Valerie. Será que esta Valerie chantageava os americanos? E
que tinham a ver os advogados de Miami com aquilo tudo? –
comentou ele com Clara e também mencionou outra coisa que
cada vez mais lhe intrigava:
– E que merda tenho eu que ver com tudo isso? Ninguém aqui
em Santa Clara sabia quem era este húngaro e ninguém ali tinha
nada a ver com o que lhe roubaram e nem com o que estava
escondido nos malditos livros de Bebéi. A ninguém aqui
186 importa saber pra que serve esta chave e me explique por que
deixei de jogar dominó esta tarde apenas para esperar a Senhora
e escutar o que ela tinha a dizer?
Cada vez as coisas estavam se complicando mais e como se tudo
isso ainda fosse pouco agora ele ainda tinha de aguentar seu
irmão rastafári que não descansaria ate descobrir quem estava
interessado em matar a Sallasie.
Foi por isto que ele insistiu com ela que não poderia mais seguir
acompanhando as invenções de Bebéi e que a partir daquele
momento iria cuidar exclusivamente dos temas que eram
relevantes para a prefeitura .
Clara primeiro o deixou desafogar e depois junto com ele tentou
entender o que estava acontecendo. Por algum motivo o húngaro
havia escondido aqueles papeis. Talvez apenas por curiosidade
ou talvez por que tinha algum interesse na chantagem que a tal
Natasha estava fazendo. De qualquer modo insistia ela, tudo
passou tanto tempo atrás que não havia por que se preocupar.
Pirilo até que se acalmou mas foi quando tocou o telefone. Era
Ilona a dona do Café:
– Theo Cavafys acaba de me chamar dizendo que vem a Santa
Clara. Disse que o grande chefe russo chamou pedindo um favor
especial. Quer que ele venha a Santa Clara para acompanhar
alguns amigos e se não estas sentado é melhor que te sentes pois
ele disse que os russos vem a Santa Clara para conversar com
Bebéi – e Ilona seguiu falando enquanto Pirilo escutava olhando
Clara com uma expressão perdida– Cavafys não tem a menor
ideia do que querem mas pelo que disse o russo, parece que é
alguma coisa muito importante e me pediu que te avisasse pois
Theo não quer que Bebéi se encontre com os russos sem que
estejas ao seu lado.
Clara estava errada e Pirilo tinha toda razão de estar
preocupado. Ele não queria mais se envolver com as loucuras de
Bebéi mas não tinha como escapar. Ele sabia que com raiva ou
não e mesmo sem entender ele teria de ajudar a Bebéi a
187 enfrentar os russos que provavelmente já haviam descoberto a
historia da Natasha.
E para entender a importância daquela chamada telefônica é
importante recordar que o russo trabalhou na KGB nos tempos
em que os soviéticos apoiavam as revoluções do Condor, o
grande amor de Ilona na América Central. Quando a União
Soviética se desintegrou o russo passou como o Condor para o
trafico de drogas e com o tempo ganhou tanto dinheiro que se
deu ao luxo de a abrir vários negócios legais e acabou por
tornar-se milionário com importantes investimentos em grandes
navios e estaleiros, incluindo um enorme que estava sendo
construindo em Santa Clara.
O grande chefe russo, como os antigos amigos lhe conheciam,
ainda que milionário permanecia amigo do Capitão Cavafys
desde os tempos em que ele ajudava ao russo e a ao Condor a
transportar armas para Guatemala e Nicarágua. O russo também
havia ajudado a Cavafys e a Santa Clara nos tempos em que o
cartel do Cuspa tomou a cidade e quase todos ali lhe queriam
muito bem, com exceção de Ludmilla que, diziam, era sua filha
e que desde criança nunca tinha aceitado encontrar com ele.
No dia seguinte Pirilo ligou para Cavafys que confirmou suas
preocupações. O capitão grego também comentou que Bebéi
tinha escrito uma carta a uma tal de Natasha e que
aparentemente isso era um tema muito delicado e que o grande
chefe pediu que ele acompanhasse alguns amigos que visitariam
Santa Clara. Segundo Cavafys eles queriam saber o que Bebéi
sabia sobre esta Natasha e para sorte de Pirilo ele estava saindo
naquele mesmo dia com seu barco, o Ithaca, para Trinidad e
apenas encontraria com os russos em Santa Clara na semana
seguinte, o que pelo menos dava algum tempo a Pirilo para que
se preparasse.
Por sorte, nem tudo eram preocupações em Santa Clara.
Laurence estava contente pois ia ao aeroporto receber a um
amigo de sua mãe que quando soube que ela estava em Santa
Clara, aproveitou para viajar e encontra-la ali. Bebéi foi junto
188 com ela e os dois foram na perua do Café de Ilona pois Senhor
Baungarten vinha com sua cadeira de rodas motorizada. Ele
podia caminhar, mas com dificuldades e por isso preferia a
cadeira de rodas o que certamente lhe ia causar alguns
problemas na cidade com suas ruas de pedra e suas calçadas
estreitas, apesar de todos os avances para descapacitados
introduzidos pelo prefeito.
– Por favor não se preocupem –disse ele ainda no aeroporto–
vivo em uma pequena cidade de Portugal muito semelhante a
Santa Clara e é por isso que sempre levo comigo esta cadeira
que é bem leve e incomoda o menos possível. O único que não
poso fazer é ficar fechado dentro de uma casa pois ai fico tão
ranzinza que ninguém neste mundo me aguenta – e falava tudo
em um português, ainda melhor do que o de Bebéi, com um
forte acento lusitano.
O velhinho era simpático. Explicou que era de uma família
austríaca que havia vivido na Alemanha e desde que se tinha
aposentado já tinha vivido em varias cidades de Europa. Estava
casado com uma mulher portuguesa e já ha mais de um ano
vivia em uma pequena cidade próxima a Coimbra. Comentou
que tinha conhecido Morgen e viajado algumas vezes ao Congo
para ajudar a Fundação Banyamulengue.
Quando ele sentou no Café, Ilona foi a primeira a se encantar. O
velhinho conhecia todo o tipo de historias e historias de todo o
tipo de gente e de lugares, bem como ela gostava. Apenas fazia
questão de um bom vinho, e nisto o velhinho era exigente, mas
com uma garrafa aberta, podia falar e contar casos por horas.
Já nos primeiros dois dias Senhor Baungarten conquistou muitos
amigos na cidade e os únicos que ficaram com ciúmes foram os
grande jogadores de dominó de Santa Clara pois ele chegou na
véspera do grande torneio anual que a Embaixada da Espanha
patrocinava na cidade em conjunto com a prefeitura. O torneio
começava na sexta, tomava todo o final de semana e
tradicionalmente terminava com os partidos finais no fim da
tarde de domingo jogados entre a dupla de Moses e Habib, os
189 vendedores de roupas da Avenida Central, contra Pirilo e o
asturiano da taverna. E nos três anos anteriores desde que o
torneio tinha sido criado, uma vez Pirilo e o Asturiano chegaram
a ganhar e as outras duas vezes foi a dupla judia-libanesa.
Como Baungarten apenas chegou na sexta todos já estavam
inscritos e ele não tinha com quem formar uma dupla. Quem
acabou por salva-lo foi a pequena Irigandi quem comentou que a
irmã maior da princesa cigana era uma grande jogadora de
dominó mas que apenas jogava com seus irmãos.
Ao velhinho Baungarten a ideia lhe encantou e os dois foram os
últimos a se inscrever. Nos primeiros jogos ninguém lhes deu
atenção, uma jovem de dezesseis anos cigana e um velhinho em
cadeira de rodas não pareciam intimidar seus adversários, mas
eles foram ganhando seus jogos da sexta e do sábado. E no
domingo foram a grande atenção vencendo todos os adversários,
inclusive a dupla de Pirilo ate chegar na grande final contra o
judeu e o libanês onde ganharam com uma grande festa.
Segundo Pirilo explicava a todos, não foi apenas por sorte.
Tanto um como o outro tinham uma capacidade incrível de
memorizar tudo o que se jogava e com tal facilidade que sabiam
exatamente as peças que cada um tinha e se comunicavam com
os olhos de uma forma que ninguém conseguia perceber. Eram,
segundo ele, imbatíveis.
A vitória no torneio fez o velhinho rapidamente uma figura
popular o que foi uma tranquilidade para Laurence que não
necessitava mais se preocupar com ele e podia deixa-lo de
manhã na praça da Catedral onde passava todo o dia entre
partidas de xadrez e dominó e as longas conversações com
Dioclecio Bergantin enquanto alimentavam os gatos.
A noite o velhinho sempre jantava no café de Ilona não apenas
para contar historias mas também para escuta-las, pois ele tinha
aquela mesma qualidade de Ilona em deixar as pessoas
tranquilas e faladoras, o que lhe permitia conseguir boas
historias ate dos mais tímidos. Surpreendeu a todos quando
conheceu a Frida e por alguma magia logrou que a Trotska
190 passasse toda uma noite com ele tomando varias garrafas de
vinho e recordando historias de sua juventude de esquerdista
radical na Alemanha.
Jantava no terraço do Café mas alguns dias depois teve a honra
de ser convidado para aquela mesa especial na cozinha onde
Dona Cécy jantava com Dioclecio Bergantin. A única coisa que
não fazia bem era dormir. Dizia que isso não lhe fazia falta e
como Dioclecio também dormia pouco, muitas vezes os dois
permaneciam na praça ate alta madrugada escutando o cigano da
sanfona. Foi por isso que ele preferiu ficar no hotel da praça
pois ali podia entrar e sair a qualquer hora sem incomodar a
ninguém.
A chegada do velhinho e o torneio de dominó serviram para
acalmar um pouco a Pirilo. Seu problema já não eram apenas os
russos que estavam por chegar como também a pressão da
Senhora da embaixada americana. Ela lhe havia telefonado
dizendo que estava muito interessada em conhecer tudo o que
Bebéi havia encontrado nos livros do húngaro. Tinha dito de
uma forma que não deixava duvidas que de um jeito ou de outro
ia obter o que queria e Pirilo sabia que quando ela falava assim,
era melhor nem tentar resistir.
Conseguiu ganhar algum tempo com algumas desculpas mas sua
insistência era firme.
– Os documentos trazem informações importantes que não
interessam nem a ti e nem a Bebéi e que podem criar muita
confusão se caírem em mãos equivocadas.
Apesar de tudo Pirilo decidiu que não ia entregar Ele a
respeitava muito e também respeitava o russo que sempre tinha
sido muito leal a ele e a todos na cidade. Sua decisão não tinha
nada a ver com eventuais preferencias entre russos e
americanos, comunistas ou não. A razão é que cada vez ele tinha
mais simpatias por Laurence. Clara a tinha invitado para jantar
com Bebéi e o velho Baungartem em sua casa. Laurence, como
Clara, era muçulmana e poucas vezes ele e Clara se haviam
simpatizado tão rapidamente com alguém como com ela.
191 Conversaram tanto que o jantar terminou as duas da madrugada.
O velhinho Baungartem, queria conhecer as historias de Santa
Clara e Pirilo contou todas que conhecia. Tenente Pirilo não
sabia exatamente o que estava escondido entre as notas de
Arpad, mas fosse o que fosse, os documentos pertenciam a
Laurence sua herdeira e até que todos entendessem muito bem o
que estava escondido ali nem russos nem americanos iriam tocalos.
Chamou Laurence em seu escritório e contou que tinha retirado
os documentos da prefeitura e que os tinha escondido em um
lugar onde ninguém poderia encontrar. Informou a Senhora da
embaixada americana que não podia entregar os documentos
pois eles não lhe pertenciam mesmo sabendo que aquilo ia
provocar uma reação imediata e não teve de esperar. Ao final da
tarde chegou uma delegação de americanos liderada pelo
embaixador e foram acompanhados do prefeito ate a sala de
Pirilo para pedir os documentos que estavam no cofre
Pirilo, abriu o cofre, mostrou que estava completamente vazio e
disse que os documentos já não estavam mais com ele. Explicou
que os havia devolvido a Laurence pois ela tinha decidido
queima-los.
Obviamente que a historia de que os documentos estavam
queimados não enganou a Senhora mas não havia muito que ela
pudesse fazer além de tentar por todos os meios, convencer
Bebéi e especialmente a Grená, a mãe de Pirilo, a entrega-los,
mas pelo menos com isso Pirilo ganhava algum tempo para
enfrentar os russos que também estavam chegando.
192 28
Sexta feira, dia de conhecer os planos do
prefeito e de comer a pizza do padre
Os russos estavam por chegar no sábado mas a sexta foi um dia
bem intenso para Pirilo, para o prefeito e para toda a cidade.
Desde as primeiras horas da manhã começou a circular o
segundo numero do “Realejo de Santa Clara” com uma
descrição detalhada dos planos da nova cidade. Tudo foi feito
em grande sigilo por Jordi e sua equipe e como eram bem
poucas as pessoas que conheciam os novos planos, o prefeito
imediatamente chamou a Pirilo e ordenou uma rigorosa
investigação interna para descobrir quem tinha vazado as
informações.
Como outras informações tinham vazado entre os motoristas
Pirilo decidiu começar por eles e junto com seus assistentes
entrevistou um a um todos os motoristas que transportavam o
prefeito, seus assessores e convidados. Depois foram as
secretarias e assistentes de todos os principais assessores que
tinham acesso aos planos e por ultimo as senhoras que serviam o
café.
Como não encontraram nada Pirilo decidiu estender a
investigação a empresa de arquitetos e revisaram um por um
todos os arquitetos que tinha participado do desenvolvimento
dos planos que eram todos estrangeiros pois desde o inicio o
irmão do prefeito, que cada vez mais se especializava em temas
de segurança e vigilância, já se tinha assegurado que nem ali e
nem na firma de advogados contratada, trabalhasse algum
professional que pudesse vazar as informações.
193 O único que Pirilo e seus assistentes não investigaram foi a
equipe de limpeza da empresa de arquitetos e ali estava Nádia.
Ela e seu irmão tinham estudado na mesma escola de Jordi e seu
irmão era um dos grandes companheiros de Jordi no futebol.
Sonhava ser arquiteta e para financiar seus estudos trabalhava de
noite em uma das equipes que fazia a limpeza da empresa. E foi
ela que a noite olhou os planos, tomou notas, fez algumas copias
e as entregou a Jordi.
No jornal também apareciam alguns desenhos que tinham sido
feitos por ela e que davam uma boa ideia de como seria Santa
Clara Frente ao Mar depois da construção da nova cidade. Com
eles todos finalmente entenderam que o projeto do prefeito
representava o fim da cidade que eles conheciam.
Um dos desenhos explicava como as ruinas do forte ao final do
calçadão iam se juntar com o novo shopping center e com os
edifícios de escritório que ficariam onde naquele momento o rio
desembocava no mar. Mostravam também como as torres de
apartamentos ocupariam toda a área depois do rio onde estavam
as casas mais pobres e onde Nádia vivia.
O prefeito estava furioso e continuou furioso pois Pirilo não
conseguiu descobrir como a informação vazou mas Jordi estava
orgulhoso com o novo numero de seu jornal. Ele sabia que todos
iam querer uma copia e por isso aproveitou o dinheiro que o
próprio prefeito lhe tinha dado para contratar mais três ajudantes
que junto com ele fizeram não apenas dois mil mas sim cinco
mil copias que desde as primeiras horas do dia começaram a
circular pela cidade.
Arcádio ficou na praça da Catedral com o realejo e o filho da
Passarinho passou o dia circulando com seu triciclo pelo
calçadão. Mas naquele final de semana ele não vendeu sorvetes
pois ao lado do macaquinho que girava a manivela ia sua mãe a
Passarinho distribuindo os jornais vestida com a roupa de Bela
Adormecida que o magico tinha lhe dado.
Santa Clara tinha despertado aquela sexta feira ao som dos
realejos, pois além destes dois Rasta Bong tinha mandado
194 construir outro mas que a própria Nádia tocava girando a
manivela e que ficou na ponte que separava a cidade antiga do
bairro depois do rio onde ela distribuía exemplares do periódico.
Com isso e mais os que se distribuíam na barbearia de Rasta e
no restaurante de Ilona, chegaram aos cinco mil antes que a
noite chegasse.
Quem estava feliz era o Cholo que ilustrava sapatos, pois assim
como Jordi tinha colocado um texto com fotografia de Laís no
primeiro numero, no segundo numero do “Realejo” o cidadão
homenageado foi o Cholo. E foi apenas então que todos em
Santa Clara se deram conta que o maior comentador de noticias
da cidade não sabia ler.
Por trinta e seis anos o Cholo lustrou sapatos sempre ali na
praça do Libertador Bolívar na entrada do calçadão. Nunca teve
tempo de ir a escola. Sabia fazer contas de somar e diminuir de
cabeça mais rápido do que muitos mas era tudo o que sabia.
Nunca tinha aprendido a multiplicar, dividir, ler ou escrever.
Todas as manhãs desde cedo ele já tinha os jornais do dia a
disposição de seus clientes que sentavam na cadeira para lustrar
os sapatos e de tanto escutar aprendeu a comentar o que
escutava. Com o tempo a sua cadeira na praça passou a ser o
ponto central da venda de jornais e das discussões que as
noticias despertavam. Assim como o guarda sol de Grená era o
centro de distribuição de fofocas e rumores, sua cadeira era o
centro das discussões de noticias, sempre lideradas pelo Cholo
que era respeitado como grande autoridade em eventos
ocorridos em Santa Clara e no mundo. E tudo isso sem jamais
ter lido um único titular.
A noite ninguém mais queria distribuir jornais e sim comer
pizza pois aquela sexta também era noite de inauguração da
“Pizzaria de Frade.” Ali estavam todas as personalidades
locais, os turistas e até alguns visitantes ilustres como o Senhor
Baungartem que circulava sorridente com sua cadeira
motorizada. E como não podia deixar de ser o grande assunto
eram os planos do prefeito para a nova cidade.
195 O prefeito tinha se comprometido publicamente em participar da
inauguração e não teve como escapar. Foi e passou a noite
inteira tentando explicar a todos que o cumprimentavam, por
que insistia com a nova cidade.
– A cidade antiga esta tão boa Senhor Prefeito, por que mudar –
era a pergunta de todos.
As reclamações eram as mais variadas. Grená dizia que com as
torres de sessenta andares o vento que refrescava a cidade não
poderia mais chegar a praça, Miguel o taxista reclamava que
com todos os apartamentos e oficinas não haveria mais onde
estacionar seu taxi e Carmela acrescentava que com as ruas
cheias de automóveis as crianças não poderiam mais jogar bola
tranquilas.
As maiores reclamações vinham dos que viviam do outro lado
do rio pois tinham percebido que todos teriam de sair de onde
viviam para dar lugar aos novos edifícios e os que estavam mais
furiosos eram os jovens como Nádia. Ali, depois do rio, eles
estavam bem perto de tudo o que passava na cidade. O único
que tinham de fazer era cruzar a ponte e já estavam na cidade
antiga onde tudo acontecia, mas as novas casas que a prefeitura
estava construindo para eles ficavam depois do aeroporto e eles
estariam longe de tudo. Já se sentiam excluídos por não ter
dinheiro para poder fazer as coisas que os outros faziam e a
partir de agora seriam ainda mais excluídos pois nem poderiam
circular por onde os outros circulavam.
– Os que são donos de suas casas ainda vão receber algum
dinheiro mas os que alugam casas nem isso e todos terão de sair
– explicava Jordi.
Mesmo os que viviam dentro da cidade já estavam percebendo
que também teriam de sair pois a cidade seria um mar de lojas e
restaurantes para os turistas e para os que iriam viver nos
apartamentos e trabalhar nos escritórios das torres de sessenta
andares.
196 Mas ali nem todos queriam falar sobre a nova cidade. A Senhora
da embaixada americana escutava Pirilo explicar que ela não
tinha mais por que se preocupar pois os papeis já haviam sido
destruídos, mas ela insistia:
– De acordo, não precisamos conversar mais sobre os papeis. Se
vocês não querem entregar não posso fazer nada, mas pode ser
que ainda existam documentos dentro do apartamento que vocês
ainda não encontraram. Posso mandar minha equipe para fazer
uma busca detalhada e ver se ainda tem alguma coisa escondida
ali.
A ideia não parecia má, mas como ele tinha de se concentrar nos
russos, ele preferiu esperar.
Ilona e Irigandi também estavam felizes aquela noite, pois Paul
já estava a caminho de casa. Depois de Jerusalém, ele foi ate o
Iran junto com uma delegação de chineses para visitar algumas
cidades a beira do mar Cáspio onde esperavam encontrar sinais
de visitas espaciais e pelo que havia contado por telefono de
Londres, eles haviam encontrado coisas bem interessantes.
Agora só lhe faltava mais uma semana ali e depois estaria de
volta a Santa Clara.
Gigi e Frei Bernardo queriam agradecer a cada um dos que
estavam ali mas não lograram, pois eram tantos e a pizza,
segundo os comentários, o que incluía uma avaliação bem
critica de Juanita, Dona Cécy e Laís, as três grandes cozinheiras
de Santa Clara, era divina.
O prefeito manteve sua dignidade o mais que pode, mas já
estava começando a perde-la com todos questionando seu planos
quando a Sérvia a seu lado insistiu para que eles saísse. Ele não
estava preparado para abrir a discussão com os moradores e ela
já lhe tinha alertado.
Naquela mesma noite eles se reuniram na casa do prefeito e o
romeno insistia que tinham de começar rapidamente com uma
campanha promocional:
197 – Os árabes vão ter de soltar o dinheiro para financiar a
campanha – e acrescentou– se não fazemos já a oposição ao
projeto da nova cidade vai crescer e ai não poderemos mais
controlar.
E como todos estavam de acordo que era isto que deveriam
fazer e não tinham mais nenhum assunto a discutir o prefeito
aproveitou que todos estavam ali reunidos para perguntar mais
uma vez ao egípcio El Waun si todas as propriedades já estavam
compradas e regularizadas e foi quando o egípcio veio com a má
noticia:
– Tem apenas uma propriedade que não esta comprada e pelo
que me informaram os advogados, pode ser que tenhamos
problemas.
O prefeito engasgou com o uísque e quase tropeçou no tapete.
Ate a dor de cabeça que ele começou a sentir na pizzaria
desapareceu.
– Você tinha dito que tudo estava sob controle, que historia é
esta que agora vamos ter problemas?
– Existe uma propriedade a beira mar depois do final do
calçadão que vai desde onde estão as ruinas do velho forte ate o
galpão dos rastafáris. Esta propriedade esta em nome de um
estrangeiro que vivia em Santa Clara e que se foi muitos anos
atrás. Já tínhamos negociado com o escritório de advogados que
administra seus bens e íamos fazer uma troca entre esta
propriedade e uma outra do mesmo tamanho em outra parte da
cidade. Segundo me confirmaram os advogados isto seria fácil
pois eles seguiriam tendo registrada uma propriedade de dois
mil e quatrocentos metros quadrados entre os bens do
estrangeiro mas seria outra propriedade e não aquela que
necessitamos. Como expliquei tudo estava acertado e ate já
havíamos adiantado o dinheiro aos advogados mas pelo que me
contaram, agora apareceu uma neta do dono e vamos ter de
negociar com ela.
198 – Que merda! –explodiu o prefeito– Isso pode atrasar e muito o
projeto.
– E se ela decide que não quer vender? –perguntou o irmão do
prefeito.
– O problema não é insolúvel – e foi o próprio prefeito quem
respondeu– podemos desapropriar por interesse social mas o
processo nos vá tomar tempo e pode nos expor a alguns
problemas políticos.
– Diga aos árabes –comentou o prefeito olhando com uma
expressão grave ao egípcio– que é melhor pagar o que ela pedir.
Negociar desapropriações de casas no bairro pobre não é um
problema, mas negociar uma propriedade de frente para o mar
com gente rica e especialmente estrangeira pode nos trazer
sérios problemas.
Quando a reunião terminou e todos se foram, o prefeito ficou a
sós com o irmão e disparou sua raiva.
– Chame ao árabe que é teu amigo e diga que este egípcio que
ele nos mandou é um inútil. Só serve pra trazer putas mas no
trabalho é um incompetente total. Como é possível que ele nos
vinha assegurando que tudo estava bem quando ainda falta uma
propriedade bem no meio do projeto. Se ele não resolve este
problema quero ele fora do negocio já!
199 200 29
Chegam os russos querendo saber quem
é o amigo da Natasha
Segunda feira, no meio da manhã chegou Cavafys com os
russos. E aquela vez capitão grego não chegou como sempre
costumava chegar em um dos velho taxis que o levavam do
porto até Café de Ilona. Naquela segunda ele chegou em um
luxuoso helicóptero que pousou no novo heliporto construído ao
lado do cais assustando a todos os que estavam no calçadão. Era
o mesmo helicóptero com que o Grande Chefe Russo tinha
chegado para a inauguração do restaurante nos tempos do
magico e nele vinham Cavafys com sua japona negro e os dois
russos que queriam conversar com Bebéi.
Do cais já foram andando direto para o Café de Ilona onde
Bebéi e Tenente Pirilo foram encontra-los. Ainda que
soubessem que o tema da conversa eram os segredos de
Natasha, Pirilo preferiu não levar Laurence ao encontro.
– Melhor esperar para ter certeza de que sabemos o que querem
–e o velho Baungartem que desde que chegou atuava como uma
espécie de conselheiro de Laurence também estava de acordo.
Quando entraram no Café foram direto para a mesa a esquerda
do terraço onde sempre Cavafys sentava e o capitão mal teve
tempo de alertar Pirilo:
– Deve ser alguma coisa bem importante pois o grande chefe me
disse que se é verdade que Bebéi sabia algo sobre Natasha e
Yuri que ele mesmo viria a Santa Clara –e acrescentou– e você
sabe que ele não anda nenhum pouco entusiasmado a voltar para
201 Santa Clara depois de tudo o que aconteceu com Riquita quando
o magico abriu o restaurante3.
Os dois russos eram bem descontraídos e mal se sentaram já
começaram com seus elogios a beleza de Ilona e com suas
piadas que davam a impressão de que tudo o que queriam era
divertir-se e aproveitar aquela manhã de sol e brisa na baia.
Abriram a primeira garrafa de vodca ainda as dez e meia da
manhã e sem rodeios entraram no assunto comentando que
Bebéi havia escrito a sua amiga Natasha e que os dois estavam
curiosos por saber o que ele sabia sobre ela, pois já fazia muito
tempo que não a viam.
E antes que Bebéi começasse a responder foi Pirilo quem se
adiantou e contou toda a historia. Disse que haviam descoberto
que o apartamento do húngaro não estava vazio e que quando
começaram a examinar o que estava ali, o apartamento foi
invadido por professionais que chegaram do exterior e roubaram
quase todas as coisas e papeis de Arpad. Contou também que
entre os poucos papeis que não foram roubados estava o
endereço de Natasha em Praga e que foi esta a razão da carta
que Bebéi enviou. Comentou também que despois ainda houve
uma segunda tentativa de roubo e esta, suspeitavam eles, tinha
sido ideia de uma firma de advogados de Miami e concluiu:
– Quando percebemos que os papeis do húngaro podiam causar
problemas decidimos queima-los.
Os russo perguntaram o que diziam os papeis e Pirilo deixou
Bebéi responder, pois sabia que ele ainda não tinha ideia do que
Ludmilla havia descoberto.
Bebéi contou em detalhes toda a historia de Arpad, desde as ruas
de Budapest, até a briga com sua filha Morgen e toda suspeita
que eles tinham em Santa Clara de que o húngaro era um agente
duplo trabalhando para os americanos e para os comunistas com
3 O macaquinho com roupa de Napoleão, outra das aventuras de Bebéi e os pelagatos 202 contatos diretos em Havana e com a Stasi. O único que ele não
mencionou foi a folha com os vinte seis nomes de livro, pois
Pirilo lhe havia pedido explicitamente e por reiteradas vezes que
a folha com os nomes dos autores e as palavras chaves não
deveria ser mencionada frente a ninguém, especialmente frente a
Senhora da embaixada americana e os russos.
Continuaram conversando e Pirilo fez três descobertas: A
primeira era que os russos eram muito simpáticos pois seguiam
conversando por toda manhã e emendaram com um arroz com
polvo preparado por Dona Cécy que sempre tratava o grego com
carinho e que apenas foi terminar as quatro da tarde quando
Pirilo teve de sair para sua reunião diária com o prefeito. A
segunda era de que os russos gostavam de beber. A primeira
garrafa de vodca terminou no almoço e praticamente foram
apenas os dois russos que a tomaram, a segunda já estava vazia
no inicio da tarde, verdade que graças a ajuda de Ilona que
almoçou com eles e seguia tomando a terceira garrafa que já
estava mais da metade vazia. A terceira descoberta era a de que
os russos apesar de brincalhões e bêbados, não eram nem um
pouco tontos, pois ainda que Bebéi tivesse se comportado muito
bem e não havia mencionado os vente seis livros, os russos com
suas perguntas inocentes, certamente já haviam descoberto que
o arquivo do húngaro escondia coisas que podiam ser muito
interessantes para eles.
Quando o almoço terminou Bebéi chegou a pensar em passar
pelo hotel para contar a Laurence o que tinham conversado mas
se sentia tão mal que foi ate seu apartamento dormir. Ele não
bebia, mas apenas o odor da vodca e o pequeno toque de língua
que ele tinha de dar no copo todas as vezes que os russo
propunham um novo brinde lhe haviam deixado completamente
bêbado. Ele mal conseguia andar em linha reta e foi apenas
graças ao cachorro que conseguiu chegar ao apartamento.
Apenas a noite ele conseguiu regressar a praça onde encontrou
Baungartem. O velhinho tinha descoberto que a irmã de Ishtari
também sabia jogar muito bem o xadrez. Tinha um pensamento
extremamente rápido e era muito intuitiva mas não conhecia os
203 fundamentos do jogo e ele estava aproveitando para ensinar os
conceitos teóricos das grandes aberturas.
Ele tinha um relógio de xadrez coisa que Nullo e Robespierre,
os dois grandes jogadores de xadrez de Santa Clara sempre
quiseram ter. Com o relógio e a mesa que ele mandou fazer com
tabuleiro pintado, ele e ela praticavam. Não jogavam a tarde
pois ela sempre queria estar ao lado de sua irmã de quem
cuidava e ele também dava prioridade ao dominó, mas a noite,
quando Ishtari tinha suas aulas especiais com os mestres ciganos
e os velhinhos aposentados estavam de regresso a suas casas
para o jantar e a televisão, os dois se sentavam para jogar frente
ao olhar atento de Dioclecio, pois o velhinho Baungartem tinha
colocado a mesa de xadrez bem ao lado do banco onde o velho
filosofo alimentava os seus gatos.
Aquela noite Laurence e Pirilo passaram pela praça para discutir
o que fazer. Laurence tinha algumas novidades para contar mas
foi Bebéi quem começou a falar contando da reunião que tinham
feito com os russos. E depois de escutar foi Baungartem quem
fez uma pergunta:
– A Senhora da embaixada sabe que os russos estão por aqui? E
sabem os russos que a Senhora também esta interessada nos
mesmos papeis?– e quem respondeu foi Pirilo.
– A Senhora pode ser que ainda não saiba mas e muito bem
informada e rapidamente vai saber. Aos russos não contamos,
mas pelas coisas que mencionaram no almoço tenho a impressão
que desconfiam que os americanos também podem estar
interessados nos papeis.
– Que bom –comentou o velhinho sorrindo e Pirilo não
entendeu.
– Não acho que seja bom. Se os russos e os americanos sabem
que os outros também estão interessados, pode ser que tentem
fazer alguma coisa mais drástica para consegui-los.
– Não creio – disse o velhinho que seguia jogando tranquilo e
ate indicando com o dedo as alternativas de jogadas que a jovem
204 cigana deveria considerar– Pelo que aprendi nos livros de
espionagem que gosto de ler, quanto mais pessoas souberem,
mais seguros nossos amigos Laurence e Bebéi estarão. Nenhum
de nos e nem os policiais da prefeitura, e digo isto com todo
respeito que tenho a eles, podem protege-los se americanos ou
russos decidem fazer alguma coisa, mas se americanos e russos
sabem que o inimigo esta interessado, são eles mesmo que vão
assegurar a proteção de nossos amigos.
Pirilo ficou pensativo e o velhinho Baungartem continuou:
– Nenhum de nos sabe onde estão os papeis. Sabemos que não
estão contigo e sabemos que você é o único que sabe onde eles
estão escondidos. Nem Bebéi e nem Laurence sabem e é melhor
que continue sendo assim.
A ideia ate que pareceu interessante mas havia uma coisa mais
que preocupava a Pirilo. Bebéi era o único que sabia onde estava
escondida a chave. Ele sabia que Bebéi não tinha contado a
ninguém e era importante insistir com ele para que não contasse.
Seguiram conversando e combinaram que Pirilo iria ligar para a
Senhora e para os russos dizendo que seus inimigos também
estavam buscando os papeis do húngaro e quando tudo já estava
definido, foi a vez de Laurence contar suas novidades:
– Recebi uma chamada telefônica do escritório de advogados
dizendo que alguns investidores estão querendo fazer uma oferta
para comprar a propriedade de Arpad em Santa Clara e querem
conversar comigo amanhã.
–Muito cuidado –disse Pirilo– estes tipos de Miami não me
parecem ser confiáveis. Escute o que eles vão propor e depois
estudaremos a proposta com muita cautela.
E depois disso Bebéi preferiu regressar ao seu apartamento. O
dia seguinte prometia ser bem movimentado. Paul chegava de
viagem e o prefeito estava prometendo novidades. O que mais
lhe preocupava era que a embaixadora da França, sua chefe,
estava de péssimo humor. Pelo que Carmela contava a culpa era
da nova academia de ginastica de Lucia. Desde que o Negro Zen
205 começou com as suas aulas de yoga que os jovens de Santa
Clara faziam fila para tomar aulas particulares de meditação
com ele e por conta de todos aqueles pedidos ele quase que já
não tinha mais tempo para dedicar a embaixadora. E sem o
Negro Zen, ela era insuportável!
206 30
A confraria dos puros descobre o que
estava bem no centro da nova cidade.
Se Professor Paul já tinha ideias estranhas quando foi, imaginem
ao regressar? E foi o que percebeu Ilona já no caminho de volta
do aeroporto. O voo chegou tão cedo que ela foi direto do Café e
por isso seguia com seu bom humor noturno. Depois de passar
varias semanas entre o Sagrado Sepulcro de Jerusalém e as
terras da antiga Pérsia com outros científicos em uma expedição
organizada pelos chineses para investigar indícios da presença
de civilizações de outros planetas, Paul estava eufórico. Na
perua ele já contava dos lugares onde esteve e das descobertas
que fizeram sobre uma outra confraria que existiu no século XI,
o período da historia que mais fascinava a Paul que acreditava
que aproximadamente em 1013, nosso planeta tinha recebido
algumas visitas espaciais.
– O nome em árabe é Ikhwan al-Safa –explicava ele
entusiasmado apesar de todas as horas de viagem– e isso talvez
possa ser traduzido como a irmandade dos puros.
Aparentemente foi um grupo de filósofos, pensadores e
científicos que trabalharam em segredo e segundo se dizia,
escondidos dentro de grutas e que formaram uma confraria
secreta. Mas uma confraria um pouco distinta da confraria dos
pelagatos de Santa Clara pois eles certamente não bebiam tanto
e por isso tiveram mais tempo para escrever uma das primeiras
enciclopédias que conhecemos. Foram cinquenta e dois tratados
cobrindo vários setores do conhecimento; álgebra, geometria,
astronomia, música, filosofia e psicologia. E se queremos
brincar com a imaginação é como se um grupo de pessoas
207 tivesse transcrito todo o conhecimento dos antepassados que
segundo o avô de Irigandi estava escondido dentro do Segredo
do Darién para com eles preparar uma enciclopédia.
Irigandi escutava pensando, “pena que o avô não esta mais
conosco para escutar estas coisas” e a seu lado Dioclecio que
também lhes acompanhou ao Aeroporto pensava que a pequena
Irigandi estava conseguindo exatamente o que queria com o
plano que colocou em pratica depois da morte de seu avo;
manter o segredo do Darién fora dos radares dos pesquisadores e
dos curiosos que pensavam que tudo havia sido destruído com o
incêndio e serenamente aproximar dos sábios de seu povo o
conhecimento de outros segredos similares que existiam pelo
mundo
Mas aquela manhã o interesse em escutar as historias de Paul
rapidamente desapareceu quando eles avistaram os primeiros
outdoors anunciando que Santa Clara Frente ao Mar finalmente
entraria no século vinte um.
A data de passagem para o novo século já estava até definida,
seria no 11 de Agosto, data e que tradicionalmente se celebrava
o dia de Santa Clara e da cidade, e que este ano, além do
tradicional desfile de bandas, teria um evento especial pois o
prefeito autorizaria o inicio das obras da Nova Cidade.
Os desenhos que apareciam nos cartazes e outdoors espalhados
aquela manhã por toda a cidade eram impressionantes. Torres
enormes de apartamentos com arquitetura arrojada como aquela
que se via nas ricas cidades do petróleo árabe, frente ao
calçadão, novas marinas com iates tão grandes como os que
apareciam nas fotos do Principado de Mônaco e nas ilustrações,
as pessoas que apareciam pareciam saídas daquelas revistas de
Priscilia a cabeleireira que traziam as ultimas fofocas de
famílias reais. Da cidade antiga que todos conheciam o único
que aparecia, e apenas em um dos cartazes, era um desenho da
nova praça da Catedral que mais parecia aquela grande praça de
San Marco em Veneza, cheia de mesas cadeiras e turistas.
208 Não havia um lugar sequer em toda a cidade onde não houvesse
um cartaz, parecia dia de véspera de eleições. E se os carteis já
eram impressionantes, mais impressionante ainda foi a
publicidade que desde a manhã começou a aparecer na televisão.
Eram quase dois minutos de um anuncio que foi repetido ate o
cansaço e que começava com imagens opacas da cidade antiga,
do calçadão e do bairro mais pobre depois do rio onde as novas
construções modernas e coloridas pareciam desabrochar
transformando a cidade antiga na Nova Santa Clara do futuro.
O rio que separava a cidade do bairro pobre desaparecia
completamente como se fosse um dos truques do magico e ali
nascia um enorme shopping center que conectava a cidade com
as novas megatorres, cada uma mais bela e arrojada que a outra.
Do outro lado da cidade, onde estava o mercado, outras tantas
torres também desabrochavam ocupando a avenida que separava
a cidade antiga do resto da cidade moderna. As pequenas ruas
que davam acesso a cidade antiga se transformavam em grandes
avenidas e todos que caminhavam pelas ruas no filme que se
mostrava na televisão, estavam elegantemente vestidos e com
modernos automóveis.
Foi tanta a promoção que acabou por despertar uma grande
inveja em todas as outras cidades do pais e foi acompanhada de
uma serie de entrevistas e artigos nos grandes jornais
mencionando que a modernidade finalmente tinha chegado ao
pais.
O prefeito que a partir daquele dia passou a vestir um terno mais
elegante quando dava entrevistas, era por todos os lados
mencionado como um pioneiro em atrair o investimento
estrangeiro “Alguém que finalmente compreendeu os benefícios
deste mundo globalizado e que lança Santa Clara em direção
ao futuro” Pelo menos era isso o que dizia o anuncio na
televisão.
Os números que mencionavam também causavam espanto. A
quantidade de empregos que seriam criados na construção era
ainda maior que o numero total de habitantes da cidade. A
209 quantidade de cimento seria tão grande que daria para construir
uma ponte ate Miami. E as cifras dos novos negócios que seriam
criados superava a capacidade de compreensão de qualquer um
que caminhava pelas estreitas ruas de pedra da velha cidade.
Na reunião que sempre faziam ao final da tarde o prefeito
perguntou ao Tenente Pirilo como havia sido a primeira reação e
a única resposta que lhe ocorreu foi dizer que não houve uma
primeira reação pois todos ainda estavam paralisados pelo
choque.
Frente a barbearia, um dos cartazes mostrava a nova avenida de
entrada da cidade antiga e Rasta Bong jurava que pelo desenho
que aparecia no cartaz, a avenida ia passar bem ao lado de sua
casa e onde estava o quarto de Grená na esquina da casa, no
desenho aparecia um enorme semáforo.
– Como você vai fazer para viver em um semáforo –perguntava
ele a Grená.
No cartaz que mostrava a nova praça da Catedral, onde estava a
livraria de princesa aparecia um restaurante de comida árabe e
onde estava o pequeno deposito em que Dioclecio dormia com
seus gatos apareciam elegantes banheiros o que levou Nullo a
comentar com Dioclecio:
– Vais acordar mijado todos os dias.
Era impossível reagir de uma forma racional.
– O rio desaparece – dizia Gigi– como pode desaparecer um rio?
Onde vão colocar toda a agua que passa por ali e desemboca no
mar?
Segundo os desenhos os casarões que davam para o calçadão,
seguiriam ali mas comparadas as enormes torres que estendiam
para norte e para o sul pareciam tão pequenas que quase não
eram visíveis.
– Tua casa e teu restaurante vão ser agora um traço e um ponto
no desenho da nova cidade –foi o comentário de Gigi que
deixou Ilona tão furiosa que imediatamente instruiu aos
210 empregados que o prefeito estava a partir daquele momento
terminantemente proibido de entrar no Café.
Ate os jovens da academia de ginastica de Lucia que eram
defensores entusiastas da modernização da cidade estavam
assustados pois o velho armazém onde Lucia havia montado a
academia foi substituído nos desenhos dos cartazes por uma
enorme e moderna ponte pela qual as pessoas caminhariam do
novo centro comercial ate a rua que levava a nova praça da
Catedral.
– Não se preocupe –disse o pai de Lucia– terás uma nova
academia em uma das torres. Já acertei com o prefeito
Mas o problema não era apenas a localização. Sair da academia
dentro de uma das torres para entrar em um automóvel não era o
que eles queriam. O divertido era sair dos exercícios com a
roupa ainda suada e cruzar a praça exibindo os resultados do
esforço no corpo para tomar um café ao lado dos livros na
livraria de princesa ou comer os pasteis fritos de Laís.
– Gostando ou não, não ha nada que possamos fazer –dizia
Nullo Rompido– Uma enorme quantidade de dinheiro esta
envolvida nestes projetos, e não somos nós, um bando de
pelagatos, que vamos conseguir para-lo.
A discussão seguiu pela tarde e até a noite em todas as casas,
esquinas, bares e restaurantes da cidade, mas no café de Ilona,
Laurence não queria conversar dos planos da nova cidade. Para
ela, o dia tinha sido bem movimentado, primeiro por uma
reunião com os advogados e depois um encontro com o prefeito.
E era sobre isto que ela queria conversar:
– Os advogados me chamaram. Eles encontraram um comprador
com uma excelente proposta para a propriedade de Arpad.
Contou também que lhe haviam oferecido um milhão de dólares,
o que era muito mais do que seu avô havia pago pelo terreno.
– Aparentemente necessitam a propriedade para o projeto da
nova cidade– acrescentou.
211 – Deixe me entender melhor–comentou Jordi que também
estava no Café– Isso quer dizer que se você não vende o terreno
eles não podem construir a nova cidade?
– Não é tão simples – respondeu Laurence– A tarde o prefeito
pediu a Bebéi que nos levasse ate o seu gabinete e fomos os três:
Baungartem, Bebéi e eu.
Laurence contou que no encontro o prefeito foi muito atencioso
e lhes explicou que o projeto da Nova Santa Clara era muito
importante para a cidade e que por isso ele não podia impedi-lo.
Recomendou também que ela aceitasse a oferta pois estavam
pagando um preço muito acima do valor do mercado. Disse que
aos que não aceitavam vender suas propriedades, a prefeitura
lhes estava desapropriando pois a Nova Cidade era um projeto
de grande interesse social.
Até lhe disse que pelo carinho que tinha por Bebéi, seu amigo e
general da banda que sempre fazia comentários muito positivos
sobre ela, que ele mesmo ia conversar com os árabes e fazer
todo o possível para convencê-los a aumentar a sua oferta.
– E todos a quem perguntamos nos confirmam que o prefeito
tem razão –disse Laurence– É isto que estão fazendo com todos
os que se recusam a vender suas propriedades e pelo que nos
explicaram alguns advogados amigos de Ilona é muito melhor
aceitar e vender, pois assim o pagamento é mais rápido.
– E o que é que você quer fazer? –perguntou Ilona
– Pedi aos advogados alguns dias para conhecer a propriedade e
pensar –respondeu Laurence.
– E depois de pensar, a primeira coisa que você vai fazer é dizer
a eles que por este preço o negocio não interessa –disse o
velhinho Baungartem– pois se te ofereceram um milhão é por
que estão dispostos a pagar muito mais.
Laurence contou também o pouco que sabia da propriedade e
Ilona comentou que a conhecia bem:
212 – Quando Júlio e eu compramos nossa casa, também pensamos
neste terreno. É aquela área desocupada depois do forte –e
seguiu explicando a Laurence e a Baungartem– Vocês
conhecem onde esta minha casa. Despois vem o Casarão de
Pedra onde o magico fez seu restaurante e depois as ruinas do
forte. O teu terreno esta depois do forte e antes do rio. A parte
de frente para o mar é mais ou menos do mesmo tamanho do
meu terreno, mas o teu tem também todo aquele espaço vazio
atrás do forte, que vai ate onde esta o campo de treinamento dos
militares e o galpão dos rastafáris.
– Ou seja bem no meio do novo centro comercial da nova
cidade– complementou Jordi.
– Bem no meio –confirmou Ilona– e são dois mil e quatrocentos
metros quadrados. Para nós o terreno não interessou pois era
mais distante do Café e teríamos de construir uma nova casa.
Foi por isso que compramos nossa casa que já estava pronta e
apenas tivemos de reformar um pouco. Lembro também que
por esta época Júlio, o Condor, tentou contatar o proprietário,
mas nos disseram que ele não a queria vender.
Ilona não seguiu conversando recebeu a inesperada visita de
uma amiga cubana que não via a muito tempo. Ninguém ali
parecia conhece-la apenas Dona Cécy que quando soube que ela
estava ali veio correndo da cozinha para abraça-la. Parecia ser
uma velha e querida amiga mas Bebéi não teve muito tempo
para pensar na nova visitante pois Tenente Pirilo entrou no Café
e a noite ainda lhes reservava outras surpresas.
Tenente Pirilo havia convidado Laurence e Bebéi para um
encontro com a Senhora da embaixada americana. Como
haviam combinado, Pirilo havia informado a Senhora que os
russos estavam na cidade interessados nos papeis e aos russos,
que os americanos também os queriam. Foi a Senhora quem
propôs o encontro e foi Pirilo quem sugeriu que ele fosse ali na
terraço do Café.
Eles continuaram sentados na ultima mesa do terraço a espera da
Senhora e junto com eles o velhinho Baungartem que não
213 necessitava de cadeiras pois tinha a sua cadeira motorizada com
a qual todos que trabalhavam no Café de Ilona já estavam
acostumados. O velhinho parecia se divertir com todas aquelas
reuniões e comentou.
– Santa Clara é muito mais divertida que qualquer cidade onde
vivi –e Bebéi ao seu lado concordou sorrindo.
214 31
O misterioso agente Z surpreende a
russos e a americanos
Em Santa Clara Frente ao Mar o inesperado parece ser parte da
rotina mas ainda assim aquela noite o que a Senhora contou
surpreendeu a todos. Entrou no Café elegante como sempre com
um vestido beije discreto e um lenço de desenhos beije e
alaranjado que chamava a atenção pelas cores e pela beleza. Não
vinha só, ao seu lado estavam os dois russos da KGB e entrou
com a confiança de quem sabia que de uma vez por todas ia
esclarecer o que fazia o vizinho de Bebéi.
Sentaram todos no terraço e Ilona mandou bloquear as mesas
vizinhas para que eles pudessem conversar tranquilos e foi a
Senhora mesmo quem depois de cumprimentar a todos e pedir
um mojito, quem começou a compartir o que sabiam e o que
ainda queriam saber sobre o agente Z.
– Como vocês descobriram em suas investigações o Senhor
Arpad Corvinus não era apenas um funcionário que ajudava ao
CIA no Congo. Ele também era um informante de Barba Roja a
quem conheceu por recomendação do Che Guevara e de sua
amiga Tamara Bunke.
Todos ali estavam calados escutando com atenção, mas
inquestionavelmente quem mais se divertia ali com todas
aquelas historias de espiões bem no meio de suas ferias era o
velhinho Baungartem.
– Graças aos contato com a Stasi, Arpad também se aproximou
da KGB e por muitos anos trabalhou como agente duplo. Isso
215 foi o que vocês descobriram e lhes agradecemos muito por isso
– e depois de fazer uma pausa para ajudar a criar um certo
suspense continuou– mas o que vocês não sabem é o que Arpad
fez depois de 1976 quando saiu do Congo e lhes confesso que
nem nós e tampouco os russos sabíamos.
Fez outra pausa para tomar um bom gole de seu mojito pois ela
mesmo estava surpresa com tudo o que havia descoberto nos
últimos dias.
– Os documentos que Bebéi encontrou demonstram que Arpad
tinha contato com um certo Francisco em Angola e com o
agente K em Khartum. Um deles trabalhava com o CIA o outro
com a KGB e tanto um como o outro pareciam estar frustrados
com seu trabalho e tinham alguma relação com a Stasi alemã.
Ninguém ali se movia enquanto escutava.
– Os dois nomes foram investigados anos atrás tanto por nos
como pelos russos –seguia a Senhora– pois desconfiávamos que
alguém entre eles podia ser o homem ou a mulher que nos
estava chantageando.
Os olhos de Bebéi brilhavam e ele pensava que tudo aquilo
começou com a gaivota pois foi graças a ela que eles
descobriram o apartamento do húngaro.
– O que lhes vou contar –seguia ela– é uma historia que muitos
de nos pensávamos que era apenas uma lenda, mas que agora
sabemos foi real. Ao final dos anos setenta passamos a receber
ameaças de uma mulher canadense que dizia ter provas de que o
CIA tinha estado envolvido com uma serie de atentados
políticos na África. E não eram coisas pequenas pois haviam
também certas coisas bem significativas que nunca foram
explicadas com relação a morte do Secretario Geral das Nações
Unidas Dag Hammarskold em um acidente de avião. O CIA
preferiu pagar o que ela pedia e evitar assim que aquelas
acusações fossem divulgadas ao publico –e ela parou para outro
gole de mojito
216 – Como podem imaginar fizemos o possível para descobrir
quem era aquela Valerie. Sabíamos que vivia no Quebec e
conseguimos identificar onde ia todo o dinheiro que lhe
pagávamos e descobrimos que tudo era transferido para
organizações não governamentais que apoiavam populações
africanas como por exemplo a Fundação Banyamulengue criada
pela mãe de Laurence. Esta chantagem seguiu até a o inicio dos
anos oitenta quando descobrimos que se tínhamos a nossa
Valerie, os russos tinham a sua Natasha que vivia em Praga e
estava chantageando a KGB e o governo russo da mesma forma
que Valerie nos chantageava.
Os olhos e ouvidos de Pirilo não podiam estar mais atentos e a
Senhora seguia:
– Foi quando decidimos unir os esforços dos dois serviços
secretos pois percebemos que provavelmente Valerie e Natasha
eram a mesma pessoa já que haviam muitas coisas relacionadas
a guerra civil entre os hutus e os tutsis que apareciam tanto na
chantagem de uma como também na chantagem da outra.
Investigamos nesta época a vários agentes duplos incluindo este
Francisco, que na verdade era uma mulher portuguesa e o agente
K que era um Hindu, mas nunca investigamos Arpad. Como
expliquei, ele era um funcionário burocrático que apenas fazia
trabalhos de pouca importância e que parecia estar desmotivado
quando decidiu abandonar tudo o que fazia em 1976 –e ai pediu
um segundo mojito antes de continuar explicando –E foi apenas
agora, graças a suas investigações e a folhinha que preparou
Bebéi – e ai ela olhou sorrindo para ele– e que vocês mantinham
escondida, mas que consegui uma copia, é que finalmente
descobrimos a identidade do agente Z.
A Senhora então mostrou a folha de Bebéi, mas agora completa:
A – Auden
Francês
Argélia
B – Boll
Espanhol
Barba Roja
C – Conrad
Francês
Congo
D – Durrel
Espanhol
Dominicana
217 E – Elliot
Alemão
Eszter
F – France
Português
Francisco
G – Grass
Espanhol
Guevara
H – Hesse
Húngaro
Horthy
I - Ibsen
Inglês
Indonésia
J – Joyce
K – Kafka
Húngaro
Inglês
Janus
Agente K
L – Lawrence
Húngaro
Lali
M – Marai
Inglês/Alemão
Morgen
N- Neruda
Russo
Natasha
O- Orwell
Alemão
Otto
P-
Tcheco
Praga
Q- Quasimodo
Francês
Quebec
R - Rilke
S- Szabo
Russo
Espanhol
Rússia
Santa Clara
T - Tolstoi
Alemão
Tamara
U - Unamuno
Inglês
USA
V - Virgílio
Inglês
Valerie
W - Whitman
Inglês
Walden
Pasternak
X - Xingjiang
Y- Yeats
Z - Zola
O ultimo livro
Russo
Yuri
Agente Z
– E como vocês ainda não sabem algumas das coisas que estão
ai, lhes explico. O contato do CIA com Valerie se fazia através
de um agente que se chamava Walden e o contato da KGB com
Natasha era feito pelo agente Yuri. A pessoa que por todos estes
anos esteve nos chantageando passou a ser conhecido nos dois
países como o agente Z, o que passou a ser uma lenda pois
nunca ninguém conseguiu descobrir era aquela pessoa que havia
218 por tantos anos orçado o CIA e a KGB a pagar uma quantidade
monumental de recursos com chantagem. E o agente Z era seu
vizinho Bebéi –e depois olhando para Laurence– seu avô, Arpad
Corvinus. É por esta razão que tanto nossos amigos russos como
nós queremos saber o que havia dentro do livro de Zola e onde
estão escondidos os documentos que Valerie e Natasha sempre
utilizaram para nos ameaçar.
Pirilo e Bebéi olharam a folha e depois de uma pausa ela seguiu:
–Aparentemente Arpad, decidiu se vingar tanto dos americanos
como dos soviéticos por tudo o que havia visto na África. Com a
ajuda de Francisco e do agente K, juntou uma serie de
informações confidenciais e as utilizou para fazer a chantagem.
E fez de uma forma bem inteligente, pois nunca conseguimos
descobrir quem era e o interessante é que não fazia por ele pois
todo o dinheiro era transferido para organizações que apoiavam
aos que foram as vitimas daquela guerra politica entre os dois
países. Apenas suspendeu sua chantagem quando percebeu que
russos e americanos estavam trabalhando juntos e que
provavelmente iriamos descobrir sua identidade, mas nunca
entregou os documentos. O agente Z simplesmente desapareceu
sem deixar traços. Nunca mais Walden recebeu uma mensagem
de Valerie e nem Yuri de Natasha. Conhecíamos os endereços e
seguimos observando atentos e por mais de dez anos não houve
nenhum movimento até que Natasha recebeu a carta de Bebéi e
até que Pirilo nós entregou as notas que estavam dentro do livro
de Virgilio.
Pirilo se apresou em explicar que o único que eles tinham eram
os documentos encontrados dentro dos livros e mandou seu
assistente buscar todas as pastas que ele havia escondido no
deposito por detrás da Catedral onde Dioclecio dormia com seus
gatos. E enquanto aguardavam ele insistiu que tudo o que
tinham encontrado eram as notas e as cartas que estavam dentro
dos livros.
219 A Senhora percebeu que Pirilo estava fazendo o possível para
evitar que Bebéi falasse e como conhecia bem aos dois preferiu
ser paciente.
Quando chegaram os envelopes, e especialmente os de Walden e
Yuri, que estavam nos livros de Whitman e Yates, ela leu e
comentou
– Aqui estão as descrições do que ele fazia –explicou a
Senhora– e o que buscamos não é a descrição mas sim os
documentos que ele possuía e que pareciam comprovar as coisas
que o agente Z mencionava na chantagem de Valerie e Natasha.
Tanto a Senhora quanto os russos seguiram insistindo em saber
o que estava dentro dos livros de X e Z e Pirilo mostrou o livro
de Xingjiang que também estava guardado dentro do envelope
onde na ultima pagina estava escrito no mesmo francês da
tradução do livro que Arpad havia lido: “Este é meu ultimo livro
… ¿de que me serve seguir lendo?”
– E no livro de Zola –perguntou a Senhora– ¿Que havia?
Pirilo preferiu não responder. Antes ele tinha de conversar com
Laurence pois nem ela sabia da existência da chave. A única
pessoa que sabia era Bebéi e ele seguia olhando a Pirilo,
esperando uma indicação de que deveria fazer.
A Senhora percebeu que seria inútil insistir e fez uma proposta:
– Nem vocês e tampouco os que invadiram o apartamento, não
encontraram nada. Deixe nos tentar. Se é que existe alguma
coisa dentro daquele apartamento podemos encontrar com
nossos equipamentos.
Pirilo não tinha objeções e tampouco Laurence, mas quem fez
um comentário foi o velhinho Baungartem que até ali estava em
silencio:
– Imagino que para fazer esta revisão detalhada do apartamento
vocês serão obrigados a destruir muitas coisas que existem ali.
Creio que seria justo que ao final os governos de seus países
voltem a colocar o apartamento em condições para que a
220 Senhorita Laurence possa viver ali, incluindo, moveis, tapetes e
cortinas novas, não lhes parece?
A Senhora e os russos sorriram e aceitaram.
– Com isso terás teu apartamento pronto para viver e não terás
que gastar mais com o hotel – foi o comentário sorridente do
velhinho, orgulhoso de sua engenhosidade.
221 222 32
Pausa para una sopa de grão de bico
com linguiça portuguesa.
No dia seguinte Tenente Pirilo fez algo que a muito tempo não
fazia: acompanhou o Senhor Baungartem as compras no
mercado publico. Desde o jantar na casa de Clara que Pirilo
sempre que podia passava pela praça para cumprimentar e
conversar com o velhinho e a ida ao mercado era parte de um
pedido muito especial que ele lhe fez no dia anterior:
– Quero comer una sopa de linguiça com grão de bico das que
minha esposa sempre me faz em nossa casa em Portugal.
Pedir a Dona Cécy ou a Laís, ele não queria:
–As duas são excelentes cozinheiras. Tão boas que certamente
vão querer fazer a sopa a sua maneira e o que quero é uma sopa
igual a da minha Senhora pois é esta a sopa que estou
acostumado a comer.
Tenente Pirilo, que não tinha a menor simpatia pela cozinha,
acabou por se envolver pela cozinha que tinha em sua casa e que
nunca utilizava pois apenas comia na taverna do asturiano ou na
casa de Clara ou Grená.
– Se tento fazer minha sopa na cozinha do Café de Ilona vão ser
tantas as opiniões que vou acabar por ficar de mau humor.
Quero uma cozinha onde possa cozinhar sem nenhuma mulher a
dar palpites.
A de Bebéi não servia, pois seu apartamento estava no terceiro
andar e seria muito complicado levar a cadeira de rodas até ali.
223 A solução mais simples parecia ser a casa de Pirilo pois era fácil
de entrar e como já havia contribuído com a cozinha, Pirilo
decidiu também acompanha-lo junto com Bebéi em suas
compras no mercado, o que acabou por ser uma excelente
oportunidade para conversar sobre o que sabiam e compartir o
que lhes preocupava.
– Primeiro é importante que encontremos uma boa linguiça pois
os grãos de bico, já os temos de molho em agua desde ontem e
pedi também ao Senhor Bebéi que os cozinhasse por hora e
meia para que não tivéssemos de esperar tanto pelo seu
cozimento. Mas é fundamental que seja uma boa linguiça
portuguesa.
Encontrar a linguiça que buscavam tomou muito tempo pois
Baungartem era muito exigente e profundo conhecedor do que
buscava. E enquanto circulavam dentro do mercado eles
conversavam:
– Pelo menos sabemos o que o húngaro escondia e já temos
russos e americanos buscando os documentos perdidos, mas
ainda existem coisas que não entendo tenente –dizia
Baungartem– quem foi que tentou roubar o apartamento do
Senhor Bebéi?
Conversando com o velho Baungartem, Pirilo sempre se sentia
importante pois o velhinho lhe dava a impressão de estar
interessado em aprender. E a verdade é que suas perguntas lhe
obrigavam a pensar.
– Foram os do escritório de advogados que tentaram invadir o
apartamento e não foi pelo que buscava a Senhora ou os russos
pois os de Miami não pareciam ter a menor ideia de quem era o
húngaro muito menos dos documentos que ele escondia. O
único interesse dos advogados era a venda da propriedade do
húngaro para os investidores árabes e invadiram o apartamento
para evitar que descobríssemos quem era o húngaro e que ele
era o dono do apartamento e do terreno perto do forte.
224 – Muito interessante seu comentário e como sempre muito
atinado– disse Baungartem– mas agora que já encontramos a
linguiça, temos de comprar as verduras. Necessitamos, cebola,
alho, cenoura, salsão e batata doce, mas Tenente qual é sua
opinião. Acreditas que os advogados não vão mais importunar
ao Senhor Bebéi, lembre-se que eles tentaram por uma segunda
vez invadir o apartamento?
– Não creio contestou Pirilo, antes estavam preocupados em
descobrir quem era a herdeira, mas agora o que querem é
comprar a propriedade de Laurence.
– Muito correto seu pensamento, mas tem um aspecto da
questão que ainda não tenho claro Senhor Tenente: a
propriedade ainda pertence ao Senhor Arpad, não é verdade? E
como ainda não fizeram o inventario para passa-la a herdeira,
me pergunto o que se passaria por exemplo si algo como um
acidente, ocorre com a Senhorita Laurence e Deus nos livre, ela
morre. Creio que neste caso a propriedade permaneceria no
inventario do Senhor Arpad e os advogados poderiam vende-la
aos investidores, pois aparentemente para isto estão autorizados,
não lhe parece?
Pirilo, pensou por alguns minutos e Senhor Baungarten
complementou:
– O que me preocupa é que acabamos por transformar a
Senhorita Laurence em um importante alvo para eles. Agora, se
querem a propriedade a qualquer custo, uma boa alternativa
poderia ser, simplesmente, eliminar a herdeira.
Para Pirilo esta ideia de assassinos e assassinatos em Santa
Clara parecia uma paranoia e por isto tentou encerrar a
discussão:
– Provavelmente o senhor tem razão mas certamente que nada
vai acontecer com Laurence.
– Estou seguro que não – comentou Baungartem– mas não nos
esqueçamos que estamos falando de um projeto de milhões e
milhões de dólares e que por muito menos eles foram capazes de
225 contratar professionais para invadir o apartamento do Senhor
Bebéi e amordaça-lo no banheira e isto sem mencionar a
possibilidade de que a Senhorita Laurence decida não mais
vender a propriedade, mas antes de seguir passemos naquela
barraca pois creio que a batata doce ali parece estar mais bonita.
Bebéi que lhes escutava já estava começando a se preocupar.
Será que alguém poderia querer fazer algum mal a Laurence?
Mas Pirilo lhe tranquilizou.
– Pelas duvidas vamos colocar uma proteção especial junto a
ela. Vou colocar um escolta vinte quatro horas por dia ao seu
lado.
– Que sabia decisão senhor Tenente, prevenir é sempre a melhor
alternativa. Agora apenas por divertimento, enquanto buscamos
umas folhas de louro e o cominho, me conte Tenente, que
poderiam eles fazer. Não nos esqueçamos que eles estão
dispostos a pagar um milhão de dólares para ter o seu terreno e
certamente não hesitariam em utilizar este milhão para mata-la.
Diga-me Senhor Tenente, o senhor que é tão bom nestas
investigações como crés que faríamos para matar alguém como
ela.
Pirilo gostava destes desafios. Pareciam as perguntas que
Cristina sempre lhe fazia e que muito lhe ajudavam a pensar.
– O primeiro seria contratar um assassino que poderia fazer o
trabalho, o que não seria difícil pois existem muitos neste
mercado.
– Quer dizer que é assim de fácil encontrar um assassino. E
como faria o senhor para descobrir se alguém esta contratando
um assassino professional para matar a Laurence
A pergunta não era fácil, mas enquanto esperava o velho
Baungartem terminar as suas compras, Pirilo ficou pensando e
quando saíram do mercado e tomaram caminho de regresso a
casa de Pirilo ele respondeu:
226 – Perguntar não nos ajudaria muito pois neste mundo de
professionais ninguém gosta de responder perguntas e muito
menos de meter-se no negocio dos outros. A melhor alternativa
em minha modesta opinião –e a verdade é que dizia isto sem
nenhuma modéstia– seria a de passar a informação neste
mercado de contratações que estamos buscando um assassino
para matar Laurence e que estamos dispostos a pagar uma
quantia absurda de dinheiro. Esta noticia se propagaria
rapidamente e com sorte confundiria os assassinos contratados
que com sorte se interessariam em saber se podemos pagar mais
do que os outros já lhes estão pagando.
– Genial tenente. Vê Senhor Bebéi a diferença entre um
professional em investigações como Tenente Pirilo e dois
curiosos como nos. Uma ideia como esta jamais passaria por
minha cabeça e creio que tampouco pela sua, verdade?
E como a caminhada tomou uns bons quinze minutos, Senhor
Baungartem seguiu pensando em seu suposto assassinato e
fazendo perguntas enquanto desacelerava a sua cadeira para não
ir mais rápido que seus dois acompanhantes.
– Como podemos fazer para melhor proteger nossa Laurence
enquanto os assassinos professionais não entram em contato
conosco. A ideia da escolta me parece boa mas imagino que si o
assassino contratado é um bom professional, a proteção de um
único policial certamente não seria suficiente, verdade senhor
tenente?
Pirilo, que já se sentia orgulhoso do respeito pelo qual o
velhinho fazia suas perguntas aproveitou para exibir seus
conhecimentos.
– Nosso assassino, certamente não seria alguém de Santa Clara e
teria de circular pela cidade para descobrir o lugar mais
recomendável para tentar ataca-la. Como nossa cidade é
pequena, o que deveríamos fazer seria em primeiro lugar pedir a
senhorita Laurence que não circule muito e segundo, passar a
informação para aqueles que sempre estão caminhando pelas
ruas –e continuou– além do Senhor Bebéi que certamente vai
227 seguir passeando com seu cachorro mas de olhos atentos ao que
se passa, temos os pelagatos que em algo nos podem ajudar.
Temos Dioclecio que passa todo o dia na praça da Catedral, os
ciganos da banda que já protegem a princesa Ishtari e não se
incomodariam de proteger também a Laurence e temos os
amigos de Cristina e Jordi que vivem do outro lado do rio e que
sempre circulam pela cidade. Estou seguro que com todos eles
atentos, rapidamente descobriremos alguém com um
comportamento suspeito.
E foi quando Bebéi, fez sua contribuição ao plano de proteção
de Laurence.
– Vou propor que ela fique com meu cachorro ao seu lado por
todo o dia. Sempre que alguém tenta se aproximar de mim pelas
costas, ele começa a latir –uma ideia que também pareceu
interessante a Pirilo e a Baungartem
Na casa de Pirilo, depois de refogar as verduras com um pouco
de toicinho e depois de colocar a linguiça, o grão de bico e
cobrir tudo com agua fervendo, o Senhor Baungartem seguiu
com suas perguntas e reflexões.
– Sua ideia de passar a informação de que estamos dispostos a
pagar muito a quem nos ajude a eliminar Laurence me parece
muito boa. E como faríamos para passar esta informação? –e
enquanto tomavam um vinho do porto, bebida favorita de Bebéi
e esperavam a sopa cozinhar Pirilo seguia exibindo seus
conhecimentos:
– Desenvolvemos uma boa rede de informantes quando
estávamos tentando encontrar o Cuspa. Esta rede nos permite
chegar a todos os centros latinos, seja na América Central, onde
operam as maras, México, Colômbia e Venezuela com seus
carteis de narcotraficantes, e em toda América do Sul. Temos
também bons contatos em Kingston e Port of Spain para o
Caribe e para Miami e os outros centros nos Estados Unidos
podemos pedir ajuda a Senhora. Sua rede de informantes nos
permitiu em menos de vinte quatro horas, descobrir quem eram
os que tentaram invadir o apartamento de Bebéi. Para os
228 europeus podemos contar com ajuda dos amigos de Ludmilla.
São anarquistas românticos mas muito bem informados. Já lhes
utilizamos para obter informações do submundo europeu e
temos também os russos e mesmo o magico que andou por aqui
e que de assassinos professionais parece entender muito.
– Excelente, vejo que com isso podemos tentar chegar aos
assassinos – e foi quando o velho Baungartem comentou com
uma expressão preocupada– sinto que Laurence não vai aceitar a
proposta para vender a propriedade. Ela esta muito encantada
com Santa Clara e isto me preocupa. E não falo pelo prefeito
que é seu chefe e a quem respeito – e a Pirilo lhe pareceu mais
prudente não comentar a seriedade do prefeito– mas vejo que
neste projeto da Nova Santa Clara existem muitos interesses e
muito dinheiro envolvido. Não entendo muito destas coisas mas
imagino que para algumas destas pessoas eliminar nossa
Laurence pode ser uma opção atraente.
E enquanto esperavam por uma hora mais que tudo cozinhara
eles seguiram discutindo os detalhes e Pirilo ate começou a fazer
alguns telefonemas para colocar o plano em movimento. Pirilo
não estava completamente convencido de que Laurence estava
em perigo mas depois de pensar melhor estava de acordo com o
velho Baungartem que era melhor ser precavido.
– Agente nunca sabe – disse Baungartem.
Bebéi que a tudo observava, se perguntava em silencio se era
Pirilo quem estava exibindo seus conhecimentos ou se era o
velhinho com seu sorriso e forma doce de falar quem estava
levando Pirilo a montar todo um esquema para proteger a
Laurence
Pouco tempo depois chegou Laurence e eles se sentaram a mesa
para desfrutar a sopa de Baungartem que segundo Bebéi estava
quase tão boa como a sopa que preparava Dona Cécy
229 230 33
Os velhinhos motorizados invadem a
tranquila cidade
O almoço acabou por ser bem agradável pois junto com a sopa
de grão de bico com linguiça, foram muitas as novidades
compartidas. Primeiro conversaram sobre Arpad:
– Foram tantas as coisas que fez em sua vida e aqui viveu dez
anos sem ter amigos e sem que nada soubesse as coisas que fez
em sua vida – e isto continuava confundindo a Bebéi.
Um professor de música, que pouco saia de sua casa e que se
esquecia do que estava fazendo enquanto dava aulas para
Cristina. Um virtuoso violinista que se não houvesse perdido
seus dedos, seria talvez um dos maiores de toda Europa. Um
exilado nos campos de concentração da Sibéria resgatado por
uma mulher com quem teve sonhos de melhorar o mundo e a
quem viu morrer despois de lutar nas barricadas de Budapest.
Um espião que trabalhou na África para o CIA, a Stasi, os
cubanos e os russos e que conheceu o lado sujo da guerra fria
quando os grandes países destruíram as recém liberadas nações
africanas apenas para fazer prevalecer seus interesses políticos.
Um vingador solitário que tomou a justiça em suas próprias
mãos e fez americanos e soviéticos pagarem, ao menos em
parte, pelos danos que haviam causados. Talvez um empregado
burocrático de pouca expressão como dizia a Senhora mas
alguém que por dez anos enganou os mais poderosos serviços
secretos do mundo, Um húngaro metade cigano que apenas
sonhava em tocar seu violino para alegrar as pessoas nas ruas de
231 Budapest mas que viveu em meio a amargura e terminou na
solidão de seu apartamento.
Como era possível que ninguém em Santa Clara soubesse quem
era? Esta era a questão que intrigava a Bebéi mas não era a
única. Eles já haviam descoberto o que ele tinha feito, mas
ninguém ainda tinha conseguido explicar por que um dia ele
saiu de seu apartamento deixando o prato, a panela e os talheres
na pia da cozinha para partir sem dizer para onde.
Aquela manhã, antes mesmo de ir ao mercado Bebéi tinha
passado pela casa de Ilona para buscar a chave que estava
escondida no quarto de Irigandi. Ele sabia que em seu
apartamento a chave não estaria segura e nem na prefeitura e
assim como o tenente preferiu esconder os envelopes no
deposito onde Dioclecio dormia, ele também tinha decidido
esconder a chave com Irigandi. Quem no mundo teria coragem
para invadir a casa de Ilona e revistar o quarto da pequena
Irigandi?
Ao regressar com a chave e passar pelo hotel para encontrar
Baungartem os dois cruzaram aquela manha com a Senhora que
estava entrando no hotel com um americano que apenas havia
chegado a Santa Clara. Deveria ser alguém importante pois ela
mesmo foi busca-lo no aeroporto e o que mais chamou a atenção
dos dois é que o velhinho também tinha uma cadeira de rodas
motorizada.
– Que lhe parece se lhe convidamos para uma corrida de
cadeiras no calçadão? – comentou Baungartem sorrindo.
No almoço enquanto comiam a sopa Bebéi recordou esta
historia ao entregar a chave a Laurence. Contou também que
não havia nada escrito e nem notas dentro livro de Zola. Tenente
Pirilo insistiu que apenas Laurence poderia decidir se queria ou
não entregar a chave a Senhora e aos russos, mas que na sua
opinião seria melhor entregar, pois se não eles não parariam de
pressionar.
232 Ela não respondeu. Queria pensar um pouco mais e o único a
fazer uma pergunta foi Baungartem.
– Em que pagina estava o pequeno envelope com a chave?
– Na pagina 256 – respondeu Bebéi.
– Como vocês sabem –disse o velhinho– gosto muito de livros
de mistério e me pergunto se não havia no envelope, na chave
ou no livro alguma indicação de que tipo de cofre ou gaveta abre
esta chave.
– Imagino que deve haver algum cofre secreto dentro do
apartamento –disse Pirilo– e conhecendo como trabalha a equipe
da Senhora não tenho duvidas de que vão encontra-lo. Imagino
que esta é a chave que necessitaremos para abri-lo.
– Não estaria tão seguro senhor tenente. Esta chave não parece
ser de um cofre de apartamento. É uma chave bem solida que
me faz lembrar estas chaves europeias de cofres públicos que
tem de resistir ao tempo e a várias idas e vindas de abrir e
fechar.
Eles examinaram a chave mas como ali nenhum deles era um
serralheiro e nem especialista em cofres Laurence preferiu
encerrar a discussão:
– Esperemos para ver se eles encontram algum cofre no
apartamento e ai decidiremos se entregamos a chave o não.
Queria aproveitar a tarde para visitar o terreno de Arpad.
Ela já tinha comentado isto com Bebéi que se prontificou a levala até ali e Baungartem foi com eles. Tenente Pirilo não lhes
acompanhou.
Ele preferiu voltar ao seu despacho e fez todo o caminho
sorrindo. Sua alegria não era apenas pela sopa de grão de bico e
linguiça mas sim por Cristina, sua assistente que finalmente
estava regressando a Santa Clara.
Jordi estava eufórico desde o dia anterior quando recebeu o
telefonema:
233 – Já terminei todos os trabalhos, conversei com os professores e
todos eles me autorizaram a antecipar meu regresso. Estou com
muita saudades e quero te dar ainda mais beijos do que todos
aqueles que demos na noite antes de viajar.
A euforia era tanta que Jordi pensou em todas as formas
possíveis de sequestrar Cristina no aeroporto e leva-la para uma
ilha deserta mas ao final teve de aceitar a realidade de que a mãe
e os amigos, ainda que não quisessem dar tantos beijos, pelo
menos tinham direito a um abraço.
Cristina chegou no mesmo voo em que tinha chegado o amigo
da Senhora na cadeira de rodas e Pirilo havia combinado com
Jordi, que a tarde ele passaria com Cristina no seu escritório,
mas o que ele não sabia era que Cristina lhe reservava uma
surpresa mas esta não era agradável... pelo menos para ele.
Ela entrou na prefeitura e abraçou a todos. Pirilo olhava
orgulhoso pois se sentia como uma espécie de protetor de
Cristina por ter lhe contratado quando ela ainda era uma
estudante na universidade. Ela lhe abraçou com carinho e disse
que queria que ele fosse o primeiro a saber que ela não
continuaria a trabalhar na prefeitura.
Pirilo ficou sem reação e ela continuou:
– O compromisso que o prefeito me fez assinar foi o de que ao
regressar de Boston eu me comprometia a trabalhar em Santa
Clara. Foi ele mesmo quem me explicou que tinha mudado o
contrato da bolsa de estudos onde dizia que eu deveria trabalhar
na prefeitura, pois tinha conversado com o seu irmão e eles
queriam me oferecer para trabalhar em alguns negócios que os
dois eram sócios. Pois vou cumprir o compromisso que assinei e
vou trabalhar em Santa Clara mas não para ele e nem para os
seus sócios. Vou trabalhar com Jordi no “Realejo de Santa
Clara” e vamos fazer jornalismo investigativo a nível nacional
–e até provocou Pirilo– Quem sabe um dia você decide mandar
o prefeito ao inferno e também vem trabalhar com agente.
234 Pirilo sorriu, pois era a única coisa que ele podia fazer ao ver
toda a expressão de felicidade no rosto de Cristina, mas a
verdade e que trabalhar na prefeitura sem ela não ia ser nada
divertido.
Cristina saiu dali feliz por estar de regresso mas estava um
pouco surpresa:
– Pensei que ao chegar ia encontrar a todos em barricadas
defendendo a cidade e desde que cheguei ninguém mencionou a
Nova Santa Clara.
– É curioso –comentou Jordi– É como se todos pensassem que
isso nunca não vai acontecer. Meu temor é que o dia em que
descubram já seja tarde para evitar.
Mas não discutiram muito mais. Ilona, que apreciava muito a
Jordi e que sabia que dinheiro não lhe sobrava, tinha pago por
uma noite em um pequeno hotel perto da cidade, para que os
dois pudessem dar todos os beijos que queriam.
Do outro lado da cidade Bebéi acompanhava Laurence e
Baungartem na visita ao terreno, o que não era uma tarefa fácil
pois a topografia não era a mais apropriada para uma cadeira de
rodas, ainda que motorizada. Mas de qualquer forma, isso não
parecia incomodar ao velhinho que sorridente se metia aos
trancos e solavancos por todos os lados.
Ao final das ruinas do velho forte havia uma praia com muitas
pedras que terminava onde o rio desembocava. Dali a esquerda
os três podiam ver o forte e a baia da cidade e a direita o
mangue seguindo a costa até onde os penhascos encontravam
outra vez com a mar. Podiam ver, também, depois do rio e por
detrás do mangue o bairro mais pobre onde Nádia vivia.
– Entendo que é exatamente aqui que vão construir o centro
comercial – disse Laurence– e toda esta área onde vemos hoje o
mangue e o bairro de Nádia é onde vão construir as novas torres,
que pelo que escutei, já em uma primeira fase serão oito, com
escritórios e apartamentos.
235 Era difícil acreditar naquele momento que tudo aquilo poderia
ser verdade. Naquele momento o único que se escutava ali era o
ruído das ondas batendo nas pedras e os únicos movimentos
eram as folhas das arvores e o voo das gaivotas. Uma delas
estava voando próxima a eles e Bebéi ate brincou:
– Acho que é a nossa amiga que sente saudade do terraço.
E a gaivota seguiu voando por cima do forte. Subiu bem alto no
céu e depois baixou em direção a eles em um voo rasante
passando bem onde estavam, quase ao alcance da mão. Seguiu
voando por sobre a cidade e depois pela linha da costa seguindo
o mangue e os penhascos.
– Até parece que ela nos esta querendo dizer alguma coisa
comentou Laurence.
E enquanto seguia com os olhos a gaivota, ela pensava que seu
avo tinha comprado aquela propriedade e nunca quis vende-la
pois sonhava que talvez sua herdeira, a filha de Morgen quisesse
viver ali.
Ao regressar a cidade eles viram um helicóptero chegando e
parecia ser o mesmo helicóptero em que Cavafys havia chegado
com os russos. Bebéi acompanhou Laurence e Baungartem ate o
hotel e depois, ao ver o grego Cavafys caminhando em direção
ao heliporto do cais, decidiu segui-lo e percebeu que o capitão
grego e os dois russos estavam ali para receber um outro
velhinho, que pelo que se via também trazia uma cadeira de
rodas motorizada.
– Acho que a corrida de cadeira de rodas vai ser bem
concorrida– comentou Bebéi a Cavafys que não entendeu.
Cavafys explicou que o russo era um antigo chefe do grande
russo nos tempos em que ele trabalhava na KGB e que estava
em Santa Clara especialmente para ver os papeis encontrados no
apartamento do húngaro.
A primeira coisa que fez o velhinho foi acariciar o cachorro de
Bebéi e depois agradecer, em um perfeito francês, por haver
236 honrado a memoria de Arpad e guardado os papeis, assegurando
que tudo que lhe pertencia seria transferido a sua herdeira.
– Você e um homem admirável –disse o velhinho a Bebéi que
saiu dali pensando que todos os velhinhos em cadeiras de todas
eram bem simpáticos. E estava tão orgulhoso pelo que havia
escutado, que decidiu que aquela noite ele iria usar no peito a
faixa tricolor de General da Banda Municipal de Santa Clara
Frente ao Mar.
237 238 34
As recordações de Arpad voltam a parede
e as cadeiras circulam pela praça
Coronel Viera seguia no auge de sua paranoia. Insistia que todos
estavam sendo vigiados.
– Eles tem câmeras e microfones por todos os lados. Sabem
tudo o que falas e ate o que pensas –explicava ele ao velhinho
Baungartem que aproveitava o sol da manhã sentado em sua
cadeira de rodas, estacionada na praça em frente ao hotel. O
plano preparado por Pirilo para proteger Laurence já tinha sido
implementado e todos estavam atentos a qualquer pessoa com
comportamento estranho, mas até aquele momento não haviam
novidades.
Na porta do hotel o velhinho russo de cadeira de rodas
motorizada lhes observava. Ele estava hospedado no mesmo
hotel e pela mesma razão; naquele hotel em frente a praça ele
podia entrar e sair sem incomodar a ninguém e disfrutar a
tranquilidade de Santa Clara. E como uma cadeira de rodas atrai
a outra o russo se aproximou de Baungartem para com ele
escutar as reclamações do Coronel.
– Até no confessionário da igreja das Mercedes tem microfones
e nem falar dos quartos na rua das Francesas. Tudo que passa ali
é gravado. Hoje já não se pode nem dar uma trepadinha em paz.
Quando Coronel Viera fez uma pausa para reorganizar seus
pensamentos o russo aproveitou para se apresentar. Disse que
havia acabado de chegar e Baungartem que já sabia que ele era
239 da KGB se apresentou como um amigo de Laurence para que o
russo entendesse que ele sabia bem por que ele estava ali.
Os dois seguiram escutando a ladainha do Coronel alertando que
o governo, os empresários, os comunistas, os padres e até a sua
ex-mulher lhe estava vigiando vente quatro horas por dia e os
dois velhinhos escutavam com ares de estar impressionados.
Do terraço do hotel o outro velhinho, o americano amigo da
Senhora, quando viu as duas cadeiras motorizadas na praça
decidiu se aproximar. Chegou com a sua cadeira, se apresentou
ao grupo e junto com os outros dois seguiu escutando o discurso
do Coronel sobre a invasão da privacidade no mundo moderno.
Uma predica bem apropriada pois se o russo era o ex-chefe da
KGB, o velhinho americano que tinha acabado de chegar tinha
sido o responsável por todas as operações do CIA na África nos
tempos da guerra fria.
O russo e o americano já se conheciam de nome mas nunca
haviam se encontrado antes e estavam em Santa Clara pela
mesma razão; encontrar e destruir os papeis de Arpad. Quando o
Coronel se cansou de repetir seus argumentos e foi buscar uma
garrafa para recompor as energias, os três iniciaram uma
interessante conversação comparando as vantagens e
desvantagens de cada uma das três cadeiras de rodas, a russa,
fabricada no Paquistão, a americana fabricada na China e a
alemã fabricada na Turquia e com isso passaram entretidos toda
a manhã.
Os três sabiam que naquela mesma manhã especialistas dos dois
países estavam olhando cada detalhe do apartamento de Arpad e
que se alguma coisa havia ali certamente seria encontrada. Dos
três o único que tinha novidades para contar era o americano.
– Descobrimos que o escritório de advogados de Miami tinha
contratado os especialistas para limpar o apartamento do
húngaro e evitar que se descobrissem eventuais herdeiros. Eles
já tinham negociado com os árabes, uma troca da propriedade de
Arpad e iam ganhar uma boa comissão. Quando souberam que
as coisas do húngaro ainda estavam no apartamento mandaram
240 limpar e quando descobriram que no apartamento deste Senhor
Bebéi poderiam haver documentos que levassem a herdeira,
tentaram rouba-los também. Os advogados não tem ideia de
quem era Arpad e nem imaginavam o que ele tinha escondido
ali. Por sorte ainda não haviam destruído tudo o que levaram e
conseguimos recuperar pelo menos as fotos –e completou–
segunda a elegante Senhora que trabalha em nossa embaixada
este senhor Bebéi tem uma memoria privilegiada e ela me
garantiu que com a sua ajuda será possível colocar todas as fotos
em seus lugares originais para ver se elas nos dão alguma pista
que nos permita encontrar o que buscamos.
O velhinho Baungartem cada vez se divertia mais com suas
ferias nos trópicos. Segredos escondidos nos livros, agentes
secretos do CIA e da KGB era muito mais do que tinha em
Portugal e o único que não mencionou a seus novos amigos foi a
existência da chave pois Laurence ainda não tinha decidido o
que fazer com ela. Verdade que o russo e o americano fizeram
de tudo para descobrir se ele sabia algo, mas ele resistiu
bravamente aos interrogatórios e não contou nada.
A única coisa que preocupou foi outra informação que tinha o
americano. Os advogados de Miami tinham contado que
recebiam instruções de um egípcio que se chamava El Waun.
Alguém que já era conhecido dos serviços secretos não por suas
ações politicas mas sim por sua total falta de escrúpulos e o
americano até comentou:
– Quando necessário recorre a violência e temos serias suspeitas
de que não hesitaria em mandar matar aqueles que se cruzam
com seu caminho.
Mais tarde quando a irmã de Ishtari chegou na praça
Baungartem propôs um dominó e como não tinham nada mais
importante a fazer os três velhinhos em suas cadeiras de rodas e
a jovem cigana, ficaram ali jogando, esperando que a Senhora
chegasse com as novidades do apartamento.
Ela apenas chegou mais tarde e junto com ela vinham Bebéi,
Pirilo e Cristina que depois de uma noite de muitos beijos com
241 Jordi já tinha sido convocada por Pirilo em caráter de
emergência para ajuda-lo a resolver o mistério do húngaro.
A Senhora comentou que tinham revisado o apartamento
utilizando os equipamentos mais modernos e que não haviam
encontrado nada. Decididamente que não era ali que o húngaro
escondia seus papeis. Confirmou o que disse o velhinho
americano de que eles haviam recuperado as fotos e parte dos
objetos e dos instrumentos musicais que ali estavam.
Infelizmente os papeis que ele tinha em suas gavetas e que não
interessaram aos ladroes e aos advogados tinham sido
destruídos, mas parece que eram basicamente partituras e
anotações musicais pois Arpad, o agente Z, não iria deixar
importante papeis guardados em gavetas sem chaves.
Bebéi aproveitou que todos estavam reunidos para perguntar se
alguém sabia por que o húngaro tinha saído do apartamento sem
lavar os pratos e os talheres e nunca mais voltado. E ninguém ali
sabia como responder.
Cristina foi a única que se atreveu a dizer algo e mencionou que
em sua opinião era importante saber o que o húngaro tinha feito
nas ultimas semanas antes de desaparecer:
– Vocês estão tão interessados em entender o que ele fez dez,
vinte ou quarenta anos atrás que não pensaram que
provavelmente a razão de seu desaparecimento esta ligada a
alguma coisa que passou nos dez, vinte ou quarenta dias antes
do dia em que ele se foi.
Ninguém comentou nada, sinal de que a jovem estava correta e
Pirilo pediu que ela lhe ajudasse a investigar. Ela aceitou a
condição de que a prefeitura pagasse o hotel onde havia passado
a noite com Jordi por toda a semana para que ela pudesse ficar
aproveitar um pouco mais, mas o que lhe preocupava não eram
os papeis do húngaro e sim o futuro da cidade.
Assim que terminou o encontro na praça ela foi ao encontro de
Jordi que estava na casa de Carmela trabalhando no novo
numero do “Realejo” e Cristina depois de contar a boa
242 novidade da semana adicional que havia conseguido já começou
a disparar sua energia:
– Temos que fazer alguma coisa e rápido. De nada nos serve
fazer um jornal se não temos uma cidade onde vende-lo e estou
impressionada com a passividade de todos.
Junto com Jordi também estava Gigi que ajudava com o artigo
central e Nádia que também estava entusiasmada com a ideia do
jornal e era responsável por toda parte de ilustrações e
diagramação. Ela até tinha levado uma prima para ajudar. A
prima era mais jovem, tinha uns dezesseis anos e tinha andado
envolvido com drogas. Pelo que Nádia contava “por todo o
entusiasmo gerado pelo Realejo,” ela apareceu para viver em
sua casa e tentar a reabilitação. Já estava a quase uma semana e
como Nádia dizia com orgulho; estava completamente limpa
– Não é que a gente de Santa Clara seja passiva –comentou
Gigi– o que acontece é que todos estão paralisados pois
ninguém sabe o que fazer e ainda pior, acham que nada pode ser
feito para impedir os planos do prefeito.
Cristina decidiu aproveitar para caminhar um pouco pela cidade:
– Vejo que Santa Clara se modernizou na minha ausência. Não
temos as gangs de motocicletas dos Estados Unidos mas
percebo que já temos nossa gang de cadeiras de rodas passeando
pela praça –brincou antes de sair.
Começou seu passeio por uma visita a Grená que a atualizou em
todos os principais rumores da cidade. Grená sempre repetia a
que Cristina era a pessoa mais inteligente que vivia por ali e
estava feliz por tê-la de volta. Depois de conversar com Grená
ela foi ate a praça e convidou Dioclecio para dar uma volta pela
cidade. Ela sempre se sentia em paz quando caminhava junto a
ele. Fizeram uma visita ao Cholo e depois comeram uns pasteis
na janela do apartamento de Laís. Ali ela percebeu que todos na
cidade estavam atentos a qualquer movimento estranho e ao
final do dia já se sentia outra vez completamente em casa na
cidade.
243 No apartamento do húngaro Bebéi e Laurence ajudavam a
recolocar as fotos na parede. Cento e nove para ser bem preciso.
Laurence estava feliz, não apenas pelas fotos como também
pelas mascaras, pois quando chegaram as caixas recuperadas em
Miami, ali também estava toda a coleção com as trinta e dois
mascaras africanas que Arpad tinha penduradas na parede do
apartamento. Como combinado, a Senhora tinha mandado sua
equipe pintar o apartamento nas cores escolhidas por Laurence e
enquanto eles colocavam as fotos na parede outra equipe
colocava novos carpetes e cortinas.
Colocar as fotos acabou por ser uma tarefa mais fácil do que
imaginavam pois pela lembrança de Bebéi eles descobriram que
elas estavam colocadas na parede da sala de jantar desde as mais
antigas a direita no chão ate as mais recentes no alto a esquerda.
Algumas nãos seguiam a ordem cronológica e eram fotos
especiais que estavam colocadas com maior relevo em outras
partes do apartamento. A foto mais antiga de Lali dançando nas
ruas de Budapest. Uma foto de Eszter sorrindo em Berlim e uma
foto de Morgen com a roupa caqui que segundo Laurence ela
sempre utilizava quando viajava pelas montanhas. Por detrás de
Morgen se via um lago que segundo Laurence era o Lago Kiwu
na fronteira do Congo com Burundi e Ruanda.
– As três grandes mulheres de sua vida – disse Bebéi– e agora
você tem de colocar uma foto sua pois você é a quarta grande
mulher da vida de Arpad.
Na parede da sala de jantar haviam fotos de seu pai ao lado de
alguém que parecia ser muito importante e que provavelmente
era Horthy e fotos de uma criança em traje de gala que parecia
ser Arpad, tocando violino em um palco elegante que segundo o
velho Baungartem que foi levado ate o apartamento graças a
ajuda dos guarda costas da Senhora, era do Teatro Nacional de
Budapest. Fotos de soldados nazistas nas ruas de Budapest e
fotos dos soviéticos quando invadiram a cidade. Uma foto de
Eszter com Arpad frente a uma pequena cabana em meio a neve
que pelas roupas e pela expressão enferma de Arpad foi tirada
244 quando de sua liberação de Kolima. Fotos de Berlim destruída
pela guerra e da família Binder, onde se via Eszter e uma
senhora mais velha que provavelmente era sua mãe. Varias fotos
de amigos em Berlim e de uma jovem que pela outra foto que
Bebéi havia visto parecia ser de Tamara um pouco mais jovem.
Fotos de Argel, a cidade de seu pai que Bebéi nunca conheceu e
uma foto de Arpad em uma praça com varias autoridades do
governo e onde Bebéi insistia que aquela pessoa que aparecia ao
centro e que não se podia reconhecer bem pela foto era seu pai.
Fotos do Congo e segundo explicou Laurence, algumas eram de
Kinshasa, outras de Kisangani e outras de alguns lugares nas
montanhas do Congo. Havia uma foto no Congo onde Arpad
aparecia ao lado de um senhor careca de terno e gravata que o
velho Baungartem jurava que era o Che Guevara.
– Só não tem uma foto do tal de Otto que consegue ingressos em
partidas de futebol e matriculas nas escolas – brincou Bebéi.
– E como você queria que tivesse –respondeu também
brincando o velhinho Baungartem– se ele era um agente secreto
da Stasi, não podia deixar se fotografar.
Recompuseram o apartamento, examinaram cada detalhe de
cada uma das fotos mas foi muito pouco o que descobriram de
novo ali. Pelo menos a memoria da vida de Arpad, nas fotos, e
nos livros estava outra vez de regresso ao apartamento que agora
era de Laurence.
– Falta colocar aqui na sala uma foto da gaivota –disse
Laurence– pois foi ela quem me trouxe aqui.
245 246 35
Finalmente Cristina descobre por que o
húngaro se foi sem avisar
Cristina sempre foi a assistente preferida de Tenente Pirilo e foi
por isso que ele lhe pediu que investigasse os últimos dias do
húngaro para tentar descobrir porque ele se foi deixando os
pratos na pia. Ela ia sair da prefeitura e trabalhar no jornal mas
ele sabia que ela não poderia recusar este ultimo pedido. E mais
ainda com uma semana de hotel para celebrar seu regresso com
Jordi.
A primeira coisa que fez Cristina foi conversar com Carmela
que era a diretora da escola nos tempos em que o húngaro era
seu professor e maestro na orquestra
Pelo que Carmela recordava o húngaro lhe avisou alguns dias
antes de terminar o período escolar que não voltaria a dar aulas
no ano seguinte. Cristina, também recordava que foi mais ou
menos na metade daquele ano que ele decidiu interromper os
ensaios da orquestra e foi com estas informações que ela
começou a construir um cronograma dos últimos dias antes do
desaparecimento de Arpad: Junho - suspendeu os ensaios da
orquestra; Novembro – informou a Carmela que ia parar com
as aulas.
Com o escritório de advogados que desde que a Senhora e seus
amigos passaram a pressiona-los faziam tudo o que lhe pediam,
ela descobriu que a ultima visita que Arpad fez ao escritório foi
na quinta feira dia 12 de dezembro de 1996. Por ultimo, pelos
registros da companhia de luz, seu ultimo consumo de energia
foi naquele mês de Dezembro. A partir de Janeiro, os registros
247 não indicavam mais consumo de energia no apartamento e ela
anotou: Visitou ao escritório de advogados 12 de Dezembro e
desapareceu entre 12 e 31 de Dezembro.
Algo que Cristina recordava bem é que algumas vezes ele
parecia esquecer o que estava fazendo no meio da aula. Será que
ele estava doente?
O medico que o atendia já estava morto. Seu filho tinha seguido
com a clinica e herdado todos os registros de pacientes do pai.
Encontra-los foi um pouco complicado pois o filho tinha todo o
arquivo antigo guardado em um deposito, mas com a ajuda da
Senhora que se colocou a disposição para ajuda-la, eles
revisaram os arquivos e encontraram o prontuário medico de
Arpad que indicava que no mês de Julho daquele ano o medico
recomendou uma serie de exames pois suspeitava que ele estava
com Alzheimer. Ao inicio de Novembro foi a ultima visita ao
medico que confirmou o diagnostico:
“A recorrência da perda de memoria é maior o que indica
uma rápida progressão da doença. São visíveis os sinais
de oscilações de humor o que parece indicar que em breve
devera apresentar os primeiros sintomas de demência”
Com estas informações não era difícil entender o que passou.
– Tudo o que teu avô guardava com ele era a recordação dos
momentos que havia vivido –disse ela a Laurence–
provavelmente por isso é que ao perceber que a memoria lhe
estava desaparecendo colocou as fotos na parede de uma forma
organizada e guardou suas notas arquivadas nos vinte seis livros
que tinha na estante. Foi a forma que encontrou para tentar lutar
contra a perda de memoria e também uma forma de deixar todas
as informações organizadas no caso em que a filha de Morgen
um dia decidisse procura-lo. O que de certa forma se confirma
com o que ele escreveu no livro de Xingjiang “meu ultimo
livro…de que me serve seguir lendo.”
Tanto tempo havia passado que era impossível comprovar, mas
o que dizia Cristina parecia estar bem próximo a verdade.
248 – Foi quando ele visitou o escritório de advogados e deixou tudo
organizado, o que parece indicar que ele tinha a esperança de
que algum dia um herdeiro poderia aparecer, pois ate uma
propriedade ele tinha comprado e guardado para ela ou ele.
Organizou tudo para que ninguém soubesse de sua morte e
deixou tudo a espera de que seu herdeiro aparecesse – e
complementou– Quando finalmente reuniu a coragem
necessária, saiu do seu apartamento, desconectou a eletricidade
e se foi a algum lugar para morrer. Provavelmente no mar e de
alguma forma seu corpo nunca aparecesse, para que ninguém
nunca soubesse de sua morte.
Baungartem também comentou:
– Ele provavelmente sabia que existias. Entre as fotos que
aparecem do Congo e que vimos na parede do apartamento tem
uma onde aparece teu pai e você sabe que teu avô nunca chegou
a conhecer o teu pai. Ele sabia que Morgen se casou e talvez
sabia que ela tinha uma filha, mas nunca reuniu a coragem
necessária para ir ate Kisangani pois sabia que Morgen nunca
lhe perdoou pelo que fez. Segundo o que nos contou a Senhora,
os recursos que obtinha com a sua chantagem eram em parte
enviados para a Fundação que tua mãe criou e pelo que você
mesmo contou, foram estas doações, que agora sabemos foram
de Arpad, que permitiram que a Fundação seguisse com seu
trabalho. Ele comprou aquele terreno para você mas nunca teve
coragem para regressar a África para e encontrar-te e por isso
morreu sozinho. Pena que ele se foi antes de receber tua carta
pois certamente teria regressado a Kisangani, mas isto já não
importa pois graças a Bebéi e a gaivota pelo menos você chegou
a tempo de conhece-lo melhor.
Laurence apenas escutou. Ela não conseguia mais falar e queria
apenas caminhar sozinha pelo calçadão e olhar as gaivotas
voando no céu.
E se para alguns o importante era conhecer os segredos de
Arpad, para outros a grande preocupação eram os planos do
prefeito e Cristina teve de deixa-los para encontrar com Jordi e
249 ajuda-lo com os últimos detalhes do terceiro numero do
“Realejo de Santa Clara”, já que a ideia era apresenta-lo aquela
mesma noite no encontro que teriam na pizzaria de Frei
Bernardo.
O artigo principal tinha sido escrito por Jordi com a ajuda de
Gigi e tinha um titulo bem provocador “Estão roubando a tua
agua” e contava os planos ainda secretos da nova represa que
seria construída para reter as aguas do rio antes que elas
chegassem a cidade.
Gigi é quem havia descoberto todo plano.
– Como é possível que nos novos planos da cidade o rio
desaparece? –foi a pergunta que fez a Jordi e a partir dai os dos
descobriram o que tramavam o prefeito e seus sócios.
Os apartamentos, as oficinas e as lojas da nova Santa Clara
necessitariam de muita agua e aproveitando-se disso o prefeito
outorgou a uma empresa francesa, da qual obviamente ele e seu
irmão também eram sócios, a concessão para construir uma
grande represa, armazenar a agua do rio e distribui-la a toda
cidade incluindo os hotéis e as mega-torres da nova Santa Clara.
O artigo descrevia com ilustrações desenhadas por Nádia onde
seria construída a represa, a estação de bombeio e explicava
como os novos encanamentos levariam a agua que passava pelo
rio para distribui-la pela cidade.
Contava também que toda agua que estava desembocando no
mar como agua limpa passaria a ser jogada ao mar sem nenhum
tratamento como aguas residuais dos esgotos dos apartamentos e
escritórios. Um plano que permitiria aos investidores árabes
construir o centro comercial onde passava o rio, asseguraria
agua que necessitavam as novas construções e garantiria uma
quantidade absurda de dinheiro para o prefeito e seus sócios no
projeto com os franceses que teria o monopólio da distribuição
de agua potável em Santa Clara Frente ao Mar. Apenas não
tratariam as aguas antes de joga-las ao mar pois isto reduziria a
rentabilidade do investimento.
250 O jornal também trazia, como cidadão destacado a Dioclecio
Bergantin, que depois de Laís e do Cholo, tinha sido escolhido
por uma razão muito especial; além ser conhecido e querido por
todos, o filosofo que caminhava pela cidade e alimentava seus
gatos no banco da praça, já havia recebido a notificação para
abandonar o deposito onde dormia com seus gatos pois seria
exatamente com a construção dos novos banheiros públicos que
o prefeito daria o inicio a construção da nova cidade.
Dioclecio não havia contado a ninguém pois ainda não tinha
decidido o que fazer e foi quando Jordi distribuiu “O Realejo”
na pizzaria com a noticia do inicio das obras que todos
começaram a entender que a Nova Santa Clara era uma
catástrofe iminente. E aquele não era o único sinal. Grená havia
descoberto que eles iriam utilizar a área do calçadão onde estava
o banco em que a Passarinho dormia para a partir dali iniciar as
obras da nova marina.
O prefeito já tinha combinado com a freira da creche infantil
que a Passarinho teria uma cama ali, mas ninguém tinha
conversado com ela.
– Duvido muito que ela queira sair do calçadão – dizia Rasta–
desde que me lembro, quando ainda era criança, que ela sempre
dormiu ali.
Dona Cécy também apareceu na pizzaria aquela noite. Todos
estavam surpresos por vê-la participando destes encontros e
imaginavam que alguma razão ela deveria ter
Ela explicou que alguns engenheiros tinham visitado o casarão
abandonado em frente a sua casa e quando ela lhes perguntou,
eles contaram que o casarão seria utilizado como dormitório
para os trabalhadores e engenheiros e que os quatro irmãos
ciganos teriam de sair dali.
– Como é possível –preguntou Frei Bernardo lembrando em
segredo que foi ali que pela primeira vez que ele e Gigi se
amaram.
251 – E a velha que inventa historias e também vive ali?– perguntou
Grená atônita– sem ela Santa Clara não terá mais historias para
contar.
Lamentaram, reclamaram, discutiram e ao final saíram todos
frustrados pois não havia nada que pudessem fazer. Podiam
seguir fazendo oposição ao projeto, mas não tinham como detêlo. Os investidores já tinham comprado todos os terrenos e os
que resistiam estavam sendo desapropriados pela prefeitura. Os
planos e desenhos estavam prontos e os investidores haviam
conseguido todo o financiamento necessário ao projeto. A nova
cidade era quase uma realidade a única alternativa parecia ser a
de resignar-se a conviver com ela.
Robespierre não estava de acordo e em sua loucura propunha
recorrer as armas, no que era apoiado por Frida e pelo Coronel
Viera. Moriarty o eterno pacifista, propunha que uma delegação
fosse tentar convencer o prefeito. Nullo e Dioclecio estavam
calados pois não sabiam o que fazer e a Passarinho apenas
sorria, pois isso era o único que ela sempre soube fazer em toda
a sua vida.
Sentado em uma das mesas da pizzaria Bebéi perguntava a
Ilona:
– Será que ainda vou poder passear com meu cachorro pelas
ruas? –E foi Gigi quem respondeu lembrando que seriam tantos
os veículos que provavelmente eles iriam restringir as horas para
passeio com cachorros, assim como tinham feito nos tempos da
invasão da quarta frota americana.
– Sempre podemos ir viver com minha família no Nebraska –
disse Paul– e Ilona lhe olhou com tal expressão de ódio em seus
olhos que certamente depois daquela noite ele nunca mais ousou
repetir o convite.
252 253 36
O prefeito contra a parede e nas ruas
todos buscam os assassinos.
– Você é a única que ainda pode fazer alguma coisa– dizia o
velhinho Baungartem a Laurence enquanto conversavam no
quarto de hotel– Já sabes quem era teu avô e como ele se
preocupou em deixar algo aqui te esperando. Se queres ficar
tens um apartamento onde viver e uma conta com muito
dinheiro no banco. Se queres partir, partiras rica pois certamente
os investidores vão pagar o preço que queiras pelo terreno.
Laurence sabia o que queria. Ela se sentia feliz em Santa Clara.
Em Kisangani sua avó tinha acabado de partir e seu pai sabia
que ela não pensava mais em viver ali. Por algum tempo pensou
viver em Santa Clara e chegou a confidenciar isto a Bebéi mas
agora a cidade também ia desaparecer, ou será que ela poderia
fazer algo para salva-la?
– Conheci teu avô e sei como ele pensava –disse Baungartem e
antes de dizer qualquer coisa mais, foi com ela ate o banheiro
onde abriu o chuveiro as duas torneiras e até acionou a descarga
enquanto falava. Laurence entendeu pois já conhecia a paranoia
de seu velho amigo com os microfones
– Esta chave não é de um cofre qualquer. É a chave de um dos
cofres da agencia postal que esta em frente ao estádio de futebol
Ferenck Puskas em Budapest. Era ali que teu avô Arpad e tua
avó Eszter tinham uma caixa postal e era ali onde Lali, a cigana
que vivia nas ruas, guardava tudo que tinha de importante. O
numero da caixa teu avô te deixou. O pequeno envelope com a
chave estava na sexta parte do capitulo quarto de Germinal, na
254 pagina 256. Os papeis que ele escondeu estão ali na caixa
numero 6-4-256. Ninguém nesta cidade pode parar este projeto,
mas tens algo em tuas mãos que querem muito russos e
americanos e é tua a decisão do que fazer com esta chave. Se
queres partir com o dinheiro podes e ninguém nunca vai saber
desta nossa conversa, mas se queres, podes utilizar a chave e os
papeis para parar o projeto pois nenhum prefeito e nenhum
investidor podem resistir se colocamos os russos e os
americanos do teu lado.
Laurence não precisou pensar muito. Ela queria viver em Santa
Clara. Ela acreditava que foi a gaivota com o espirito de seu avô
que lhe foi buscar em Kisangani e era isto que o voo das
gaivotas lhe confirmava todos os dias quando caminhava pelo
calçadão. Ela amava a cidade do jeito que ela era, com suas
praças, sua gente e sua tranquilidade e não queria uma nova
cidade com torres, centros comerciais, autos e pessoas
apressadas cruzando por todos os lados.
– A única pessoa apressada aqui é a Passarinho e é assim que
tem de ser –disse ela sorrindo.
Baungartem explicou como ela poderia fazer e no dia seguinte
ela se reuniu com os dois velhinhos motorizados e colocou as
suas condições.
– Vocês me ajudam a convencer o prefeito a abandonar o
projeto da Nova Santa Clara e eu lhes entrego a chave e lhes
conto onde estão os papeis escondidos de Arpad.
Os americanos e os russos também não tiveram muito o que
pensar. Consultaram as autoridades dos dois países e naquela
mesma tarde confirmaram que aceitavam as condições.
– Tem coisas que é melhor deixa-las esquecidas no passado–
disse o velhinho americano e o russo concordou.
A Senhora foi a escolhida para conversar com o prefeito mas ele
resistiu. Era muito o dinheiro que ele ia ganhar com o projeto.
Ela ameaçou mostrando os números das contas que ele tinha em
255 Grand Cayman e lembrou que elas poderiam ser bloqueadas em
uma investigação de lavagem de dinheiro.
– Mas tudo isso será esquecido no caso de uma decisão positiva
do prefeito –e ele entendeu muito bem o que ela queria dizer.
O prefeito sabia que estava contra a parede mas não ia desistir.
Era muito o dinheiro que ele ganharia com aquele projeto e o
que necessitava era tempo pois ele, e especialmente a Sérvia que
lhe assessorava, sabiam que a Senhora não conseguiria manter a
pressão por muito tempo.
– No fundo são burocratas e por mais que queiram fazer as
coisas a sua maneira vão ter de lidar com as pressões e o tempo
joga a nosso favor. Se consegues resistir uma ou duas semanas
eles vão perder força –foi o conselho da Sérvia.
As coisas se complicaram ainda mais quando os assistentes da
Senhora explicaram aquela tarde como andava o plano de
proteção de Laurence.
– A boa noticia é que a estratégia funcionou e os que foram
contratados para eliminar Laurence entraram em contato
querendo saber se pagamos mais, mas estão desconfiados. A má
noticia é que o acordo não foi feito com um profissional mas
sim com todo um grupo; uma gang hondurenha de San Pedro
Sula. A gang é grande e na maioria são jovens viciados em
drogas, dispostos a fazer qualquer coisa por dinheiro. São
especialistas neste tipo de trabalho. Normalmente atacam com
dois na motocicleta e o que esta sentado atrás dispara e fogem
rapidamente. Não temos forma de para-los, o que vamos fazer é
aumentar a vigilância sobre os principais membros do grupo
mas já lhes aviso seria impossível evitar que algum deles
consiga entrar em Santa Clara. E a outra é controlar as
motocicletas nos lugares onde a Senhora Laurence esta.
A informação causou uma grande preocupação e provocou uma
reunião de emergência ainda naquela mesma noite e a reunião
foi ali na praça da catedral que estava vazia e era o único lugar
256 onde os três velhinhos podiam chegar facilmente com as suas
cadeiras motorizadas.
– O Senhor Baungarten tem razão –disse o russo– com nossos
acordos transformamos Laurence em um alvo fundamental para
os que querem o projeto. Agora a única alternativa para que eles
possam manter a esperança do projeto é elimina-la para que a
propriedade possa ser transferida aos investidores sem a
necessidade de um desapropriação e o prefeito vai tentar ganhar
tempo e tempo é o que não temos.
E todos começaram a dar suas opiniões. Tenente Pirilo ainda
seguia pensando que a ideia de proteger Laurence era uma
paranoia e insistia que conhecia os investidores e eles não eram
assassinos e foi a Senhora quem lhe respondeu:
– Os investidores não são assassinos. Para eles é indiferente
onde ganham o seu dinheiro e se não podem fazer este projeto
aqui eles vão investir em outro lugar, mas pelo que nossos
informantes confirmaram, este egípcio El Waun estava
comprometido com os árabes em fazer o projeto de Santa Clara
e se o projeto não vai adiante é ele que ficara com a
responsabilidade pelo fracasso o que significa perder muito
dinheiro e ter a sua reputação bastante afetada –e acrescentou–
Todo indica que foi ele quem contratou este grupo de
assassinos.
Todos que estavam ali reunidos, começando por Bebéi estavam
de acordo que era melhor levar Laurence para outro lugar, mas
não conseguiram convence-la.
– Estou tranquila pois aqui, o cachorro de Bebéi e a gaivota me
protegem vinte quatro horas por dia –um argumento que
certamente não convencia a ninguém mas que teve de ser aceito,
pois ela foi definitiva em dizer que não deixaria Santa Clara até
que tudo estivesse completamente resolvido
Com a insistência de Laurence, o velhinho Baungartem propôs
outra alternativa.
257 – O que devemos fazer é eliminar esta pressão sobre Laurence e
pelo que entendo os advogados tem uma procuração para vender
ou transferir a propriedade que iriam utilizar para fazer a troca
do terreno de Arpad por um outro terreno fora da área da nova
cidade. O que podemos fazer então é transferir um metro
quadrado bem no centro da propriedade para o governo
americano e outro para o governo russo. Com isso colocamos os
dois governos como sócios da propriedade e impedimos a
desapropriação.
A proposta foi imediatamente rechaçada tanto pelos americanos
como pelos russos.
– Isto implicaria em uma burocracia absurda e nos tomaria
meses, talvez anos para obter todas as autorizações necessárias
dos dois governos –foi o que disse a Senhora com firmeza e
tanto o velhinho russo quanto o americano confirmaram que
estavam de acordo com ela.
– Que pena –comentou Senhor Baungartem olhando a Laurence
e dando sinais de que estava pronto para sair dali– Se em
quarenta e oito horas não temos estes dois metros quadrados
legalmente transferidos para os dois governos, me parece que a
melhor alternativa será entregar a chave a um grande jornal
internacional –e complementou– e agora sou obrigado a lhes
abandonar pois tenho uma partida de xadrez com minha amiga a
jovem cigana.
Acionou o motor de sua cadeira e foi para o outro lado da praça
onde estava a mesa de xadrez e Laurence foi com ele. Estava já
nas jogadas iniciais de uma Defesa Alekhine com a jovem
cigana quando a Senhora lhe alcançou com uma expressão tensa
mas ao mesmo tempo elegante:
– Ok, não se preocupem e não façam nada pois em quarenta e
oito horas as dos transferências estarão concluídas.
Laurence sorriu orgulhosa com os resultados da estratégia do
velhinho. No banco ao lado, Dioclecio que observava a partida
também sorriu. Apenas o velhinho não sorria pois a jovem
258 cigana estava tentando uma variação onde estava colocando
pressão sobre seus peões mais avançados. Os dois velhinhos
com suas cadeiras de roda se acercaram para ajudar Baungartem
e como tudo parecia estar tranquilo o cigano da sanfona
aproveitou para tocar uma nostálgica canção cigana.
Bebéi a tudo observava enquanto aproveitava para acariciar seu
cachorro. Naqueles dias eram poucas as oportunidades que tinha
para estar com ele pois o cachorro estava fazendo a guarda de
Laurence. Passava o tempo todo com ela e ate dormia no hotel.
Por instruções especificas e Bebéi não podia deixar Laurence
sozinha nem um só minuto e tinha de prestar atenção nas
motocicletas, o que não era um problema pois ele odiava
motocicletas.
– Isto é muito importante –e foi Dioclecio Bergantin quem
comentou com ele– os assassinos já devem estar na cidade e
provavelmente ainda não sabem do acordo que fizeram.
Pirilo, que não acreditava na paranoia dos velhinhos, mas que
também não acreditava que o cachorro e a gaivota eram uma
proteção suficiente, colocou dos guarda costas ao lado de
Cristina e passaram a checar documentos de todas as
motocicletas que entravam na cidade.
– Motocicleta com alguém na garupa, não entra e ponto –
instruiu Pirilo aos seus assistentes.
– ¿Seria isso suficiente para protege-la?–preguntou Bebéi.
– Melhor continuar com os olhos bem abertos– respondeu
Dioclecio que seguia atento a tudo o que acontecia na praça–
eles podem vir de motocicleta ou podem vir caminhando com
alguma arma escondida
E o sistema de proteção parecia funcionar mas chegou a criar
uma certa confusão nos dias em que se seguiram. Eles
combinavam una tecnologia sofisticada que permitia
acompanhar o movimento de qualquer pessoa de uma câmera a
outra instalada na cidade, com um sistema de prevenção
coordenado pelos ciganos da banda que incluía os pelagatos e a
259 vários dos jovens que viviam do outro lado do rio que estavam
contra os planos do prefeito e solidários em defender a
Laurence.
Os que vigiavam as ruas estavam atentos a comportamentos
estranhos mas nem sempre sabiam diferenciar quem deveriam e
quem não deveriam vigiar. E foi assim no domingo quando o
arcebispo chegou para a missa e para suas visitas dominicais. O
filho da Passarinho, que também estava em alerta, foi o primeiro
a suspeitar de um homem com roupa escura que parecia estar
observando Laurence na praça e avisou a Dioclecio que avisou
aos outros. O suspeito olhou para ela três vezes o que não
deveria chamar a atenção pois todos os homens olhavam três
vezes para Laurence quando ela passava, mas o curioso é que
depois que ela entrou no hotel, ele ainda ficou por ali como que
esperando alguém.
Mais tarde quando a missa terminou e o Arcebispo saiu
caminhando ate a casa da esposa do prefeito que todos os
domingos servia em sua casa refrescos e biscoitos para ele e
para suas amigas católicas, e o homem vestido de terno escuro
seguiu ali sem nenhuma razão aparente. Quando Laurence
regressou a praça o suspeito olhou para ela outra vez e
permaneceu sentado em um dos bancos em frente ao hotel.
Dioclecio foi ate ali sentou-se ao seu lado tentou puxar uma
conversa mas o suspeito evitou conversar. Ai foi Priscilia, o
cabeleireiro amigo de Jose Princesa, que ao passar por ali
reconheceu o suspeito dos tempos da Gata Caliente, o cabaré
maldito do porto.
– É uma pessoa estranha, sado masoquista, mas muito violento
com quem saí uma vez e nunca mais. Nenhum dos travestis do
cabaré queria sair com ele e depois de um tempo ele
desapareceu. Agora esta ai na praça de terno e gravata preta.
Muito estranho –e foi isto que foram contar a Pirilo que pelas
duvidas colocou um policial para vigia-lo.
A suspeita aumentou quando perceberam o suspeito se
aproximando de uma casa atrás do hotel de Laurence e ainda
260 pior quando ele entrou na casa que pertencia ao Comendador
Ernestino, por uma entrada meio escondida na rua de atrás.
O policia avisou rapidamente a Pirilo que foi direto a casa do
Comendador, um homem viúvo e muito religioso, que se
surpreendeu com sua chegada e ate tentou evitar a entrada de
Pirilo em sua casa. A confusão que se formou ali foi enorme e
nunca foi explicada. O único que se soube ao certo é que o
arcebispo também estava naquela casa “descansando depois da
missa” e as explicações sobre quem era o suspeito e o que ele
estava fazendo ali nunca foram muito claras. A versão oficial
era a de que o arcebispo havia passado mal e o suspeito era um
enfermeiro que foi ali medica-lo. Uma historia que ninguém
acreditou mas como o suspeito certamente não estava ali para
matar Laurence, Pirilo achou melhor deixa-lo ir e esquecer o
que tinham visto.
– Melhor que seja com um sado masoquista que com os
meninos da primeira comunhão –dizia a todos Grená que
claramente não tinha nenhuma simpatia pelo arcebispo desde
que ele expulsou Frei Bernardo da igreja.
O outro problema foi com a equipe que seguia as câmeras, pois
com o sofisticado sistema que o irmão do prefeito havia
comprado eles podiam seguir uma pessoa passando de uma a
outra. E foi quando um dos assistentes percebeu que havia uma
mulher vestida com roupas de homem caminhando pela rua da
embaixada chinesa com óculos escuros e chapéu.
– E como você percebeu que era uma mulher –perguntou Pirilo
e a resposta do assistente foi rápida– Não entendo estes sistemas
modernos, mas entendo de bundas. E aquela bunda não é bunda
de homem.
O que se confirmou mas adiante quando uma câmera melhor
colocada permitiu a identificação e a bunda era de Minda, a
amante finlandesa do prefeito. Pirilo ao perceber pensou em
interromper a vigilância, mas pelo que explicou depois, como
eram muitos os técnicos que estavam ali trabalhando, lhe
pareceu melhor não explicar quem era Minda. Uma historia que
261 convenceu a equipe do prefeito mas que não convenceu a Clara
que ria ao escutar a historia.
– Já entendi, deixaste para ver com quem Minda ia transar. E me
conte com quem era? Não vai me dizer que...– e parou de falar
rindo.
E Pirilo confirmou sua suspeita e Clara riu as gargalhadas ao
saber que ela entrou no apartamento do Negro Zen, seu exesposo, de onde saiu muito cansada e bem relaxada duas horas
depois. Como podem imaginar não foi exatamente um sorriso o
que se viu no rosto do prefeito quando lhe contaram quem era e
o que fazia a nova suspeita.
Mas mal ou bem o sistema de vigilância estava funcionando e
eram muitos os olhos abertos protegendo a Laurence. Cada um
na cidade se concentrava em suspeitos diferentes. Os ciganos
cuidavam dos turistas. O cigano da sanfona insistia que a melhor
forma para um assassino professional se aproximar de Laurence
era disfarçando-se como turista e Robespierre desconfiava das
equipes de coleta de lixo e passava em revista cada uma das
equipes de coleta que chegava na cidade.
Frida, por alguma razão que ninguém entendia passava os dias
vigiando a ponte, na entrada do bairro onde vivia Nádia e
aproveitava para ficar ali no mesmo guarda sol que ela dividia
com sua prima que seguia em recuperação e ajudava com a
manivela do realejo. O único que por alguma razão não gostou
muito foi o cachorro de Bebéi pois o dia em que Laurence foi
ate lá, o cachorro começou a latir e a forçou a regressar a praça.
Alguns diziam que ele latiu por sentir que havia ali algo que
preocupava a Frida, mas pelas duvidas, Bebéi insistiu com
Laurence que ela não deveria mais ir por aqueles lados.
Ainda assim o velhinho Baungartem seguia preocupado:
– O assassino vai chegar exatamente por onde não estamos
esperando e é assim que temos de pensar.
262 37
E ainda que antiga, Santa Clara segue
serena frente ao mar.
Depois que as duas embaixadas lhe informaram oficialmente da
transferência dos dois metros quadrados do terreno de Laurence
para os dois países o prefeito decidiu desistir e foi ele mesmo
quem anunciou a suspensão do projeto. E como tudo o que
fazia, fez de uma forma neo revolucionaria com uma
transmissão ao vivo da praça da Catedral, cercado por algumas
crianças onde ele anunciou em lagrimas que tinha decidido
suspender o projeto.
– Sei que este projeto iria trazer mais progresso e riqueza para
alguns mas sei também que os principais beneficiados seriam os
empresários e os banqueiros de sempre e que a gente desta
cidade, com quem cresci, não seria beneficiada pela nova Santa
Clara. As torres e os centros comercias seriam para os outros e
não para nossas crianças. E é nossa obrigação assegurar o seu
futuro. Temos de lhes entregar uma cidade onde possam viver
tão bem como a cidade que nos entregaram nossos pais e é por
isso que vamos suspender imediatamente o projeto da nova
cidade e com os recursos que temos, ainda que limitados, vamos
fazer obras que beneficiem a todos os que vivem aqui.
Como o prefeito era um grande artista quando discursava, as
pesquisas de opinião feitas por sua equipe na semana seguinte,
chegaram a indicar noventa por cento de aprovação, o que lhe
assegurava uma nova reeleição fosse quem fosse o candidato da
oposição.
263 O único que lhe incomodou foi que por mais que tentasse ele
não conseguiu ser convidado para a festa de despedida do
“Castelo da Ladeira” que por muitos foi considerada como a
festa do enterro da Nova Santa Clara.
O Castelo guardava importantes recordações para todos. Ilona
junto com Frida e mais dos amigas, foram as que montaram
aquela casa muitos anos antes como a primeira casa de mulheres
independentes da rua das Francesas rompendo o controle que os
homens exerciam sobre o trabalho das mulheres. Ali eram elas
as que trabalhavam mas também eram elas que decidiam,
controlavam o trabalho e ficavam com todo o dinheiro
arrecadado.
As mulheres que fizeram a historia do Castelo já a tempos não
trabalhavam na casa, porem eram muitas as lembranças e por
isso a festa de encerramento era um evento tão especial.
Os rumores diziam que quem havia comprado era a cubana que
tinha acabado de chegar e que era uma das duas sócias que
abriram o Castelo com Ilona e Frida e que depois de passar um
tempo vivendo na Europa, regressava viúva e rica a Santa Clara
com planos que eram um mistério para todos.
A festa foi no dia seguinte ao anuncio do prefeito e tinha
algumas regras especiais. Era uma festa das mulheres e apenas
para elas. Homens somente entravam com convite pessoal de
alguma das mulheres amigas do castelo e foram poucos os que
tiveram esta honra. Bebéi entrou junto com Paul e Cavafys, os
três acompanhando Ilona que estava exuberante como nunca.
Dioclecio foi invitado por Dona Cécy que antes de ser a
cozinheira do Café de Ilona cuidava da limpeza do Castelo. Os
pelagatos, Nullo, Robespierre, Coronel Viera e Moriarty
entraram como convidados de Frida e Rasta Bong foi convidado
por Ludmilla e sairam no meio da festa para ir ao hospital e dar
a luz a sua filha.
A Anã Chinesa veio especialmente de Hong Kong para a
celebração e junto com ela chegou de surpresa o Grande Chefe
Russo que segundo Grená não veio por causa da festa mas sim
264 para conhecer sua neta. Os três velhinhos das cadeiras de rodas
foram convidados pois não havia ninguém em toda a cidade que
não estivesse encantado com a simpatia dos três. Frei Bernardo
entrou com Gigi. Cristina e Jordi foram orgulhosos
acompanhando suas mães que tinham trabalhado por muito
tempo na casa e até Arcádio foi convidado pela Passarinho que
estava ainda mais sorridente.
Jose Princesa entrou como convidado de Lola Marlene com um
vestido colorido que chamou a atenção de todos na festa. Todos
menos o prefeito que não foi convidado, apesar de ter deixado
muito do seu dinheiro ali com as mulheres.
Quais eram os planos da cubana e que pensava ela fazer com a
casa apenas Ilona sabia e a verdade é que isso pouco importava
aquela noite. O que queriam todos ali era beber e dançar, mas
curiosamente Frida estava completamente sóbria. Pirilo era dos
poucos que sabiam a razão. Frida estava muito desconfiada. Ela
havia tomado bem a serio a ideia de proteger a Laurence e a
ninguém queria dizer de quem suspeitava.
– Não tenho provas, apenas suspeitas.
Pirilo já não tomava em serio quando alguém lhe vinha falar de
novos suspeitos, pois cada um na cidade tinha o seu e a verdade
é que para ele toda aquela historia de matar a Laurence ainda
parecia uma paranoia do velhinho Baungartem.
– Coisas como assassinatos encomendados não ocorrem por
aqui –e quando alguém lhe recordava a historia de Riquita ele
sempre comentava– Não foi assassinato e se foi, não foi coisa de
gente de Santa Clara. Foi por conta do que ela fazia na Europa.
Mas Frida seguia sóbria, o que ninguém compreendia, e seguia
atenta a cada um dos movimentos de Laurence, que aquela noite
estava sem o cachorro, que não havia sido convidado para a
festa.
– Laurence esta tão bonita que fez a alemã se esquecer dos
homens e das bebidas –dizia Lola Marlene para quem Frida
estava obcecada com a jovem beleza africana.
265 Com o entusiasmo da festa todos acabaram por esquecer Frida
até que sem que ninguém entendesse o porque ela premiou a
jovem prima de Nádia com um soco no queixo que a jovem,
reabilitada ou não foi parar por debaixo da mesa onde Laurence
estava sentada. E ali ficou desacordada até que a levaram presa e
algemada para a delegacia.
Nádia também era filha de uma das mulheres que tinham
trabalhado no Castelo e estava ali com a sua prima que passava
todo o tempo ao seu lado.
– Reabilitação um corno no rabo –explicou Frida, com toda a
diplomacia e elegância que tinha e como sempre em poucas
palavras– Dois dias atrás ela estava comprando o pozinho
branco próxima do velho forte. Pensei que gostava de mulheres,
mas ontem mesmo estava olhando com desejo a bunda de Jordi.
Que queria ela com Laurence? Quando abriu a bolsa e vi a arma
lhe meti uma cacetada para facilitar a vida de Pirilo.
Na bolsa encontraram uma pistola com um silenciador ultra
moderno que segundo as investigações foi comprada em Miami.
Isto e mais cinquenta mil dólares em notas de cem dólares que
encontraram no quarto onde dormia e que a obrigaram a
confessar ainda aquela noite. Nos dias que se seguiram
descobriram que ela era parte da mara hondurenha de San Pedro
Sula e que aquele não era o primeiro trabalho de assassinato
encomendado que fazia.
– Enquanto todos buscavam o assassino misterioso somente
Frida seria capaz de desconfiar de uma menina de dezesseis
anos –comentou Ilona e depois de um suspiro complementou–
uma assassina professional de dezesseis anos que mata para
comprar cocaína... tristes tempos!
O que passou depois na festa apenas sabem os que estavam ali e
estou seguro que ninguém vai contar. Segundo o taverneiro
asturiano que pela manhã passou em frente e viu a expressão
dos que saiam, a bebedeira tinha sido intensa.
266 Bebéi ainda hoje não se recorda de como saiu e nem de como
chegou a sua casa onde despertou no dia seguinte dormindo de
camiseta, cuecas, sapatos e meia dentro da banheira de seu
apartamento. Até teve de comprar um chapéu novo, pois o que
sempre levava com ele desapareceu aquela noite e por mais que
todos procurassem nunca mais foi encontrado. Mais um dos
mistérios da cidade.
Passada a ressaca a vida regressou ao normal. O prefeito
aproveitou para tomar alguns dias de ferias, segundo Grená com
uma nova bailarina hindu, e regressou mais entusiasmado do
que nunca para seguir com a sua gestão neo revolucionaria pois
se não podia ganhar dinheiro com a nova cidade, sempre haviam
outras formas de fazer dinheiro administrando as finanças de
prefeitura.
Ilona seguiu com seu terraço frente ao mar e ao calçadão, um
lugar perfeito para conversar sobre a vida e seus mistérios em
meio a copos de um bom tequila. Permaneceu também fiel a
memoria de Júlio, o Condor, e seu único grande amor, ainda que
compartindo sua casa com Paul que todas as noites lhe contava
historias de planetas e galáxias distantes que ela via do terraço
do restaurante.
Irigandi continuou com os seus estudos. Com Paul ela estava
aprendendo tudo o que queria saber sobre outras civilizações
para melhor compreender o Segredo do Darien. Muitos
pensavam que tudo ali tinha sido destruído naquele grande
incêndio, mas Dioclecio e Irigandi sabiam que o segredo seguia
escondido. Não como antes protegido pelos guardiões que na
verdade acabavam por atrair ainda mais a atenção, mas sim
protegido pela inteligência da pequena Irigandi que propôs ao
Conselho retirar os guardiões para que todos pensassem que o
segredo tinha sido destruído e aproveitar o tempo para com a
ajuda dos wagas, compreender o que ali estava guardado.
Dioclecio que a tudo observava e de tudo sabia seguiu dormindo
com seus gatos no deposito atrás da catedral. Foram tantas as
manifestações de apoio a ele e a seus gatos que o prefeito
267 decidiu abandonar a ideia de construir os banhos públicos. O
único a mencionar é que ele estava cada vez mas gordinho
graças a comida que compartia com Dona Cécy na cozinha do
Café.
Cristina abandonou definitivamente a prefeitura para trabalhar
com Jordi nas investigações especiais do “Realejo” e Jordi, que
ainda passava metade do seu tempo dando aulas de historia na
escola da rua das Francesas, assumiu a liderança do jornal.
Os pelagatos permaneceram nas escadarias das Mercedes, todos
admirados com as melhoras no humor de Robespierre desde que
a jovem garífuna que foi aprender sobre plantas medicinais com
o povo de Irigandi lhe receitou algumas raízes que estavam
acabando com a sua prisão crônica de ventre. Depois que ele
começou o tratamento os pelagatos apenas aguardavam ansiosos
quando Robespierre regressava da sacristia ao final da manhã
comunicando que seus intestinos tinham funcionado
normalmente, pois isto era sinal seguro de um dia tranquilo.
Robespierre já não temia mais os monos e até se fez amigo do
macaquinho do filho da Passarinho que algumas vezes dormia
no seu colo nos degraus da escadaria da igreja,
Coronel Viera continuava paranoico. Dizia que haviam câmeras
filmando os degraus das Mercedes, o que era verdade mas
ninguém sabia. A única que suspeitava era Grená; uma vez
Pirilo encontrou microfones gravando tudo o que se conversava
no seu guarda sol. Ele retirou e até tentou saber quem os havia
colocado ali pois em teoria era ele o chefe da segurança mas não
investigou muito pois sabia que o irmão do prefeito tinha o seu
grupo privado de informações para controlar os adversários
políticos e para saber se alguém mais estava roubando na cidade
já que ele e seu irmão tinham o monopólio nesta área.
Laurence permaneceu vivendo em Santa Clara no apartamento
que era de seu avô e segundo o que Bebéi contou um dia a
Grená, a gaivota as vezes vinha visita-la e dormia no terraço do
apartamento como se estivesse protegendo seu sono.
268 Grená estava contente pois tinha uma neta na casa que segundo
ela era tão bela como Laurence, pois tinha a exuberância
africana de seu filho Rasta e aqueles olhos azuis e a
personalidade intensa de Ludmilla. A velha Grená teve ate o
orgulho de receber em sua casa o Grande Chefe Russo que foi
visitar a sua neta Makeda, o nome escolhido pelos pais em
homenagem a Rainha de Sabah.
Bebéi continuou caminhando pelas ruas da cidade com seu
cachorro mas antes de terminar esta historia ele queria confirmar
uma suspeita e por isso escreveu uma pequena carta de
agradecimento ao velhinho Baungartem e entregou no dia em
que foi leva-lo ao aeroporto.
Baungartem leu com atenção e ao terminar de ler, devolveu a
carta a Bebéi.
– Muito obrigado pela tua carta e saiba que sinto a mesma
admiração e carinho por ti.
– E porque estas devolvendo a carta –perguntou Bebéi.
– É que em minha vida –explicou o velhinho– nunca pude
guardar as cartas que recebi e como me parece uma falta de
respeito rasgar algo escrito com carinho, sempre preferi
devolver as cartas a quem as escreveu.
Bebéi sorriu pois havia conseguido confirmar que o velhinho
amigo de Laurence era o Otto da Stasi que tanto ajudou a Arpad
e sua família.
Ao despedir, o velhinho percebeu a expressão no rosto de Bebéi
e comentou:
– E agora que já sabes quem sou, te convido a que passes por
minha casa em Portugal para comer uma sopa de linguiça com
grão de bico preparada por minha senhora. Lhe garanto que é
ainda melhor do que a que prepara Dona Cécy. Creio que vais
gostar de conhece-la. Hoje você apenas a conhece seu nome de
código que não parece um nome de mulher. Ela é Francisco uma
encantadora e doce mulher portuguesa.
269 Bebéi voltou a cidade sorrindo e encontrou o Coronel que por
estar bêbado sorria e comentou:
– Finalmente tudo esta tranquilo outra vez em Santa Clara.
E Bebéi que já compreendia como eram as coisas naquela
cidade comentou:
– Por pouco tempo Coronel. Pode estar seguro que não passa
uma semana até que alguém invente outra novidade para
movimentar a vida em nossa cidade.
Assim tudo termina e a velha que vivia no casarão esquecido
decidiu continuar por ali inventando historias para que as
pessoas em Santa Clara sempre tivessem algo que contar. A
cidade seguiu bela como sempre e segundo o que contavam os
pescadores, quando no mar chegava a brisa que vinha da terra
eles sempre podiam escutar o som dos realejos de Santa Clara
Frente al Mar.
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