Pithon

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Pithon
A PRIVATIZAÇÃO DO USO DA FORÇA – A
QUALIFICAÇÃO DAS COMPANHIAS PRIVADAS MILITARES
SEGUNDO O DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO
Rodrigo Pithon ∗
1. INTRODUÇÃO:
Em 31 de março de 2003, um comboio civil que passava por Fallujah, Iraque, foi
vítima de uma emboscada perpetrada por homens encapuzados e armados com lançagranadas. Em uma questão de minutos, todos os quatro passageiros de um dos carros
foram mortos.
O ataque – uma resposta de grupos de resistência de Fallujah contra as
sucessivas incursões de tropas da Coalizão Norte-Americana (a quem atribuíam a
responsabilidade pela morte de 17 iraquianos entre os dias 29-31 de março de 2003) 1 –
foi assistido por diversos civis, que, após o ataque, retiraram os corpos dos passageiros
do veículo atacado e começaram a linchá-los. Logo depois, dois corpos carbonizados
foram pendurados em uma das pontes sobre o rio Eufrates, apresentados como troféus
em uma das cenas mais fortes divulgadas pela imprensa internacional durante a
Campanha Militar Norte Americana de 2003.
Em um primeiro momento, acreditou-se que as vítimas eram soldados
americanos. No entanto, tratavam-se na realidade, do que a Administração americana no
Iraque nomeou de “contratados civis”, todos empregados da Blackwater USA. Seus
serviços foram requisitados pela ESS 2 , para a escolta de um comboio de transporte de
suprimentos que seguia para uma base americana, a oeste de Fallujah 3 .
∗
Rodrigo Pithon é Bacharel em Direito pela faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas
Gerais _ UFMG, Brasil.
1
ROSEN, Nir. Fallujah – Inside the Iraqi Resistance. Asia Times, 15 de julho de 2004. Disponível em:
http://www.atimes.com/atimes/Front_Page/FG16Aa02.html Ultimo acesso em 30 de julho de 2008.
2
ESS é uma sigla para Eurest Support Service, empresa multinacional contratada pela KBR, uma das
subsidiárias da Halliburton para executar o contrato LOGCAP e prestar serviços de construção e
alimentação das tropas. (vide http://oversight.house.gov /Documents/ 2007020 711 2222- 87567.pdf ultimo acesso em 30 de julho de 2008)
3
vide http://www.thenation.com/doc/20060508/scahill (ultimo acesso em 30 de julho de 2008)
1
Este evento isolado revelou aquele que pode ser considerado o elemento
definidor da Campanha da Segunda Guerra do Golfo, qual seja, a participação de
Companhias Privadas Militares, contratadas diretamente pelo Departamento de Defesa
Norte Americano e diversos entes não estatais, tais como empresas petrolíferas,
Organizações Não Governamentais etc., para a prestação de alguns serviços de
segurança e outros antes de exclusividade militar. Toda a logística de tropas e armas,
acomodação, construção de bases militares, comunicação e até a participação ativa em
algumas missões militares passaram a ser realizados por essas empresas. Segundo o
Departamento de Defesa Norte Americano, algo em torno de 126.000 “contratados
civis” trabalhavam no Iraque em 2007, número que tende a aumentar 4 .
No entanto, deve-se observar atentamente que as raízes desse fenômeno são
muito mais profundas 5 . O colapso da URSS e o fim da estrutura bipolar nas relações
internacionais, no inicio da década de 1990s, não lugar a um Admirável Mundo Novo:
em regiões da África e Ásia diversos conflitos até então mantidos sob controle
eclodiram. A redução drástica dos contingentes militares por parte de exércitos de
nações ocidentais disponibilizou, no mercado, grande quantidade de mão de obra militar
altamente treinada; ao mesmo tempo, diversos países do antigo bloco soviético, se
desfaziam de seus antigos arsenais durante o processo de modernização de seus
exércitos.
A lógica capitalista entrou em cena, ligando a demanda e a oferta, mas
revestindo toda a operação em uma estrutura corporativa acima de qualquer suspeita.
Assim sendo, a Administração Bush não inventou esse novo mercado, apenas deu a ele
uma extensão até então não considerada.
Entretanto, a atuação das Companhias Privadas Militares é ainda um tema
controverso: para alguns autores, as CPMs são a manifestação clara de uma nova onda
de privatizações, tão características do governos neo-liberalismo 6 , enquanto outra
4
Vide Report on DoD-Funded Service Contracts in Foward Areas disponível em
http://www.acq.osd.mil/log/PS/p_vault/Sec_3305_report_DoD-funded_service_contracts_02July07.pdf
(ultimo acesso 30 de julho de 2008)
5
SINGER, Peter em Corporate Warriors: The rise of the Privatized Military Industry. Nova Yorque
Cornell University Press, 2003.
6
TERRY, Mark em Contingency Contracting and Contracted Logistics Support: A Force Multiplier
monografia apresentada perante a Naval War College, Newport , Rhode Island em maio de 2003 (versão
http://stinet.dtic.mil/cgi-bin/GetTRDoc?AD=ADA420178&Location=U2
digital
disponível
em
&doc=GetTRDoc.pdf – ultimo acesso em 30 de julho de 2008); Wulf, H., ‘Internationalizing and
privatizing war and peace’, Palgrave Macmillan 2005; Singer, P.W., ‘Corporate Warriors: the rise of the
2
corrente entende que essas empresas e seus empregados são uma versão corporativa da
clássica figura dos mercenários 7 . Além desse debate, o cenário apresenta fortes
questionamentos jurídicos quanto a legalidade da atuação das Companhias, quando
confrontado com as normas de Direito Internacional Humanitário vigentes.
Destarte, o presente artigo discorrerá sobre I) a formação contemporânea das
Companhias Privadas Militares e sua classificação em função das atividades que
desempenham; II) possíveis conseqüências da utilização das CPMs no âmbito do
Direito Internacional Público e das Relações Internacionais e III) a qualificação dos
“contratados”
conforme
as
normas
de
Direito
Internacional
Público,
mais
especificamente o Direito Internacional Humanitário.
2. O PROCESSO DE FORMAÇÃO DAS COMPANHIAS PRIVADAS
MILITARES
A queda do Muro de Berlim na noite de 9 de novembro de 1989 ilustra o fim do
conflito político e ideológico travado entre EUA e URSS, sendo o marco da transição de
um mundo bipolar para uma Nova Ordem Mundial, multipolar e de paz.
Entretanto, o desenrolar desse processo seguiu diferente trilha, menos romântica
e segura. Em um mundo bipolar, as dicotomias e o maniqueísmo prevaleciam; a Nova
Ordem Mundial significava o surgimento de ameaças globais mais variadas, capazes e
perigosas. A retirada de uma das potências da Guerra Fria significou o fim do jogo de
alinhamentos e, uma vez que o fantasma do socialismo havia sido espantado de forma
eficaz, a única grande potencia mundial mudou a sua forma de intervenção geopolítica.
Algumas das zonas de exercício de influência norte-americana durante a Guerra Fria
tornaram-se desinteressantes segundo a lógica do capitalismo global.
Destarte, o fim da relação bipolar gerou um vácuo de poder criando condições
propícias para que antigos conflitos locais então re-emergissem. Diversos Estados, tais
como Serra Leoa, Etiópia e Iugoslávia, tão dependentes dos recursos externos injetados
pelas superpotências, sofriam cada vez mais pressões internas de grupos até então
privatized military industry’, Cornell University Press, 2003; Holmqvist, C., ‘Private security companies:
the case for regulation’, SIPRI Policy Paper no. 9, 2005.
7
BRAYTON, Steven em Outsourcing War: Mercenaries and the Privatization of Peacekeeping em
Journal
of
International
Affairs,
2002
–
versão
digital
disponível
em
http://www.weltpolitik.net/texte/sicherheit/brayton.pdf - último acesso 30 de junho de 2008).
3
fortemente reprimidos 8 . A fragmentação de Estados proporcionou o crescimento da
demanda por serviços em diversos setores antes garantidos pelos seus governos, como
por exemplo, a segurança.
Se uma grande parte do mundo enfrentava fortes instabilidades em razão da
lacuna gerada pelo colapso da URSS e a alteração ontológica da intervenção norteamericana, o Ocidente alinhado ao lado da única potência remanescente vivia uma
estabilidade e paz nunca antes presenciada. As ameaças e perigos mundiais, ao mesmo
tempo em que se tornavam mais diversificados não exigiam mais tantos investimentos
na manutenção da estrutura de grandes exércitos, mas sim investimentos em setores de
inteligência e estratégia. A redução dos contingentes militares em diversos exércitos
ocidentais proporcionou aumento da oferta de mão de obra militar altamente qualificada
e treinada, rapidamente cooptada por empresas montadas para atender a crescente
demanda por segurança em diversas regiões do globo. Além do material humano
contratado, essas empresas adquiriram um arsenal militar a baixo custo junto as exRepúblicas Soviéticas, que modernizavam seus recursos bélicos para se adequarem ao
padrão ocidental. Essa venda de armas não respeitou qualquer critério exceto um: quem
tem condições de pagar por elas e transportá-las.
Diferentemente do que acontecia durante a Guerra Fria, o interesse das potências
mundiais orientou-se para a consolidação e desenvolvimento de economia forte e
estreitamento de relações comerciais. A globalização tornou cada vez mais fácil a
transferência de recursos financeiros e a alocação dos mesmos em diversas regiões do
globo. No entanto, todas aquelas regiões de pouca ou nenhuma relevância econômica
ficaram abandonadas a própria sorte.
Destarte, todos esses elementos, quais sejam, o fim da Guerra Fria, a Nova
Ordem Mundial e a globalização dos mercados, a crescente demanda por segurança
aliada à disponibilidade de grandes contingentes de mão de obra e arsenais propiciaram
a criação das primeiras Companhias Privadas Militares (CPM). Segundo SINGER, as
CPMs podem ser definidas como:
8
SINGER, Peter em Corporate Warriors: The rise of the Privatized Military Industry. Nova York
Cornell University Press, 2003 pág 50-51.
4
“(...)corporate bodies that specialize in provision of military skills, including
combat operations, strategic planning, intelligence, risk assessment, operational
support, training, and technical skills. (...)” 9
Alguns autores diferenciam as Companhias Privadas Militares (CPM) das
Companhias Privada de Segurança (CPS), ao apontar que estas são contratadas para a
realização de serviços defensivos durante conflitos e em momentos pós-conflitos 10 ,
enquanto aquelas participariam diretamente das hostilidades. Essa classificação, no
entanto, é artificial visto que o Direito Internacional Humanitário qualifica as atividades
defensivas
contra
adversários
realizadas
pela
CPS
enquanto
“ataque”
e,
consequentemente, participação direta nas hostilidades 11 .
A atividade das CPMs é composta por um leque bem variado de serviços. Podese classificá-las de acordo com o serviço prestado e o grau de participação no campo de
batalha da enquanto Empresas Provedoras de Forças Militares, Empresas de Consultoria
Militar e Empresas de Suporte Militar.
3.1 Empresas Provedoras de Forças Militares:
A Executive Outcomes, Sandline, SCI e NFD são exemplos de Empresas
Provedoras de Forças Militares (Military Provider Firms), trabalhando diretamente em
ambientes hostis, fornecendo material humano altamente capacitado – desde homens
9
Ibid Outra boa definição pode ser encontrada em ORTIZ, Carlos. 'The Private Military Company: An
Entity at the Center of Overlapping Spheres of Commercial Activity and Responsibility' (PDF), in Jäger,
Thomas and Kümmel, Gerhard (eds). Private Military and Security Companies. Chances, Problems,
Pitfalls and Prospects, Vs Verlag, 2007, pp. 60-1 – “PMCs are legally established multinational
commercial enterprises offering services that involve the potential to exercise force in a systematic way
and by military means and/or the transfer or enhancement of that potential to clients. The potential to
exercise force can materialize when rendering, for example, a vast array of protective services in
climates of instability (on land and sea). Transfer or enhancement, on the other hand, occurs when
delivering expert military training and other services such as logistics support, risk assessment, and
intelligence gathering. It is a ‘potential’ to exercise force because the presence of a PMC can deter
aggressors from considering the use of force as a viable course of action.”
10
De acordo com o PrivateMilitary.com, "Private Security Companies or PSCs are on many ocassions
contracted to render tasks in conflict and post-conflict environments. It is complex to distinguish between
PSCs and PMCs when they operate in climates of instability. In this light, the argument can be advanced
that in such cases PSCs become localised permutations of the PMC and/or a fast expanding international
security industry.”( http://www.privatemilitary.org/private_security_companies.html - ultimo acesso em
30 de junho de 2008).
11
O artigo 49.1 do Protocolo I expressa que o termo “ataque” significa atos de violência contra um
adversário quer seja ofensiva ou defensivamente. Assim sendo, a primeira característica utilizada como
diferenciadora das PSCs das PMCs é falaciosa.
5
para compor a infantaria leve no campo de batalha a pilotos de bombardeios – para
tomar parte direta nas hostilidades em favor do contratante.
Os típicos clientes dessas firmas tendem a ser aqueles com capacidade militar
consideravelmente baixa se comparadas com a existência de uma ameaça real e
perigosa. A esses clientes, costuma ser oferecido dois tipos de contratos: a) provimento
de unidades genéricas b) provimento de forças múltiplas e especializadas.
As CPMs disponibilizam pequenos contingentes – sendo raro os casos de
utilização de grande número de unidades 12 . Entretanto, esse fato não revela qualquer
tipo de deficiência ou fraqueza: a sua eficiência é fruto de seu treinamento e experiência
– a força dos agentes reside em sua habilidade de atingir o alvo no momento correto.
Diferentemente dos combates travados na primeira metade do século XX – que
aconteciam em longos campos de batalha com a participação de exércitos numerosos –
os conflitos modernos, em muitos casos, demandam pequenas unidades táticas com a
missão de atingir um especifico objetivo estratégico 13 .
De uma maneira geral, essa categoria de CPMs vem sendo contratadas para atuar
em conflitos no continente africano, onde enfrentam exércitos pouco treinados e mal
equipados. Apenas para ilustrar o poder militar e tático que essas empresas e seus
empregados possuem, Charles Taylor iniciou sua rebelião na Libéria com pouco mais
de dez desses agentes ao seu lado.
As CPMs, durante o conflito, oferecem diversidade de mão de obra
especializada ou ainda a possibilidade de introdução de seus membros nas forças
regulares do contratante para que treine as tropas. Em nível tático, os agentes da CPMs
agem como “pequenos-generais”, difundindo experiência com forças militares
12
“In Sierra Leone, Executive Outcomes deployed a battalion-sized unit on the ground, supplemented by
artillery, transport and combat helicopters, fixed wing combat and transport aircraft, a transport ship, and
all types of ancillary specialists (such as first aids and civil affairs). In this type of situation, the firm is
not supplementing the client’s pre-existing forces, but rather providing an alternative or even replacement
of them.” SINGER, Peter W. em “Corporate Warriors – The Rise of the Privatized Military Industry”
Cornell University Press 2003.
13
Essas informações podem ser encontradas em uma série de textos que anteviam a emergência das
guerras assimétricas enquanto modelo de conflito para o século XXI. Ver GARNER, Jay M. “The Next
Generation of Threat to U.S. Military Superiority... ‘Assymetrical Niche Warfare’” em Phalanx 30 nº1;
TOFFLER, Alvin e Heidi em “War and Anti-war: Survival at the Dawn of the 21st Century” Boston
1993.
6
normalmente mal treinadas e pouco experientes 14 . Como essas forças são mal treinadas,
a adição de poucos membros altamente capacitados causa um impacto significativo 15
Certamente o mais controverso dos setores de atuação das CPMs, essas
empresas tendem a ser mais “virtuais” em suas estruturas, demonstrando uma grande
capacidade em se reerguer e transferir suas atividades.
A história desse ramo de CPMs está diretamente atrelada a uma das mais
renomadas empresas do ramo, fora de atividade desde 1999 – as Executive Outcomes
da África do Sul.
A Executive Outcomes foi criada pelo Tenente Coronel Eeben Barlow em
1989 16 ; contava com a participação de membros reformados do 32º Batalhão do
Exército Sul Africano, uma das tropas das Forças Especiais Sul Africanas, tendo atuado
decisivamente na Campanha da Definição das Fronteiras Sul Africanas em Angola e
Namíbia. Duas campanhas devem ser apresentadas, tendo em vista os resultados
atingidos pela EO, considerado um sucesso sob a ótica política e militar.
Angola é um dos paises africanos mais ricos em recursos naturais. É o segundo
maior produtor de óleo, perdendo apenas para a Nigéria, entretanto a sua história
recente é repleta de eventos violentos e de instabilidade nacional. O fim da violenta
dominação portuguesa em 1975 deu inicio a uma guerra civil entre a MPLA
(Movimento Popular de Libertação de Angola) e a UNITA (União Nacional pela
Independência Total de Angola). A MPLA consegue assumir o poder central do país,
sem, no entanto, conseguir realizar a sua pacificação.
Em março de 1993, a UNITA conseguiu capturar diversas instalações de refino
de petróleo na cidade costeira de Soyo, um dos maiores produtores nacionais de óleo
cru e derivados de petróleo. O governo angolano contratou a EO que, com um pequeno
esquadrão de 80 comandos conseguiu recuperar as instalações e afastar os rebeldes da
cidade. Alem dessa bem sucedida missão, a EO reestruturou a 16ª Brigada do Exército
Angolano, tornando-a uma das forças mais bem treinadas da África. A participação
dessa CPM teve um papel decisivo no processo de paz, formalizado em novembro de
1994.
14
"Can Anybody Curb Africa's Dogs of War" The Economist, January 16, 1999
BROOK, Doug em “Write a Cheque, End a War Using PMC to End African Conflicts” em Conflicts
Trends nº 6 Julho 2000 - http://www.accord.org.za/ct/2000-1/CT%201_2000%20pg33-35.pdf acesso em
25 de abril de 2008.
16
BARLOW, Eeben em Executive Outcomes: Against all Odds
15
7
Outra campanha bem sucedida teve palco em Serra Leoa, contra os rebeldes da
RUF (Revolutionary United Front). Em março de 1991, rebeldes da RUF atravessaram
a fronteira vindo da Libéria, cruzando boa parte do território de Serra Leoa e espalhando
o terror entre a população civil. Agiam com extrema crueldade contra os lideres locais
ao mesmo tempo em que raptavam as crianças das vilas onde passavam para empregálas na sua causa, como crianças soldados.
O Governo de Serra Leoa era totalmente incapaz de lidar com o grupo rebelde.
O seu exército era pouco preparado, mal equipado e tinha pouco espírito de coesão, o
que permitiu que a RUF ganhasse muitas batalhas com grande facilidade.
A EO entra em cena após abril de 1995, quando os rebeldes encontravam-se
muito próximos da capital. O contrato fora formalizado entre o Governo e a EO com o
intermédio do Sr. Anthony Buckingham, que trocou o pagamento de US$15.000.000,00
pela concessão para a exploração de minas de diamante na região de Kono. Esse
contrato foi renovado e se estenderia por 21 meses, período suficiente para o país
restabelecer o controle sobre suas partes produtivas.
Entretanto, a pressão internacional contra a participação da EO nesta guerra civil
levou o Presidente Kabbah a encerrar o contrato mais cedo. Os contratados da EO
conseguiram reduzir as zonas de controle da RUF consideravelmente, entretanto não
garantiram uma vitória definitiva. A retirada dos homens da Executive Outcomes seria
seguida pelo envio de tropas de paz da ONU, entretanto a falta de recursos da
organização internacional impediu o seu envio. Após 95 dias da retirada da EO, um
golpe de estado perpetrado pela RUF depôs o governo de Kabbah, dando inicio a uma
onda de caos e violência contra a população civil. Kabbah recorreu a outra CPM, a
Sandline International para recuperar o poder em Serra Leoa.
3.2 Empresas de Consultoria Militar:
As Empresas de Consultoria Militar (Military Consulting Firms) fornecem
consultoria estratégica, operacional e organizacional, além de treinamento integral para
operações e reestruturação das forças militares do contratante. Diferentemente do
primeiro ramo apresentado acima, essas empresas não atuam no campo de batalha,
(ainda que sua participação altere decisivamente todo o ambiente tático e estratégico,
8
redesenhando o posicionamento das forças locais), atuando na preparação, e
treinamento visando o sucesso das forças do cliente em sua campanha militar.
Essa distinção é crítica no setor das CPMs. O impacto que a participação dessas
empresas não é menor ou menos grave se comparado os efeitos de sua atividade com os
das atividades de outras empresas. Em suma, por mais que seus empregados não
participem diretamente das hostilidades, os seus conhecimentos e os treinamentos
produzem efeitos tão decisivos quanto o uso direto de poder de fogo por um exército
mal treinado 17 .
Essas empresas são normalmente contratadas por entes que planejam reestruturar
seus exércitos ou aumentar sua capacidade bélica. Uma vez que as necessidades do
contratante não são imediatas (como as daqueles que contratam Empresas Provedoras
de Forças Militares), as CPMs normalmente estabelecem termos de longa duração que
se convertem em cláusulas mais lucrativas 18 .
Uma grande vantagem de se utilizar os serviços desse tipo de empresa reside no
acesso a vasta experiência militar de seus agentes. Atualmente, empresas como a MPRI
conservam em suas folhas de pagamento ex-membros de forças militares de alta
patente. No entanto, as atividades dessas CPMs podem ter um efeito reverso. Essas
empresas disponibilizam agentes altamente capacitados para prestar trabalhos de
consultoria ou treinamento visando tornar as forças militares do cliente auto-suficientes.
No entanto esse mesmo cliente pode tornar-se dependente das atividades desenvolvidas
pela CPMs, firmar novos contratos – sem ter a real necessidade de formalizá-los. Nada
impede que essa dependência cresça a ponto de tornar o contratante cada vez menos
capaz de decidir por si mesmo qualquer ato das suas tropas.
Atualmente, diversas Empresas Provedoras de Forças Militares começam a
modificar sua área de atuação, preferindo atuar no ramo da Consultoria, atividade mais
rentável e discreta, além de não enfrentar o risco de perder contratados nos campos de
batalha. Essa atividade é hoje considerada como uma das grandes responsáveis pelo
problema na relativização do significado do termo “participação direta nas
hostilidades”, uma vez que os resultados práticos desse serviço são espantosos nos
campos de combate.
17
BROWN, Justin, “The Rise of the Privat-Sector Military” em Christian Science Monitor. Julho 2000.
SINGER, Peter W. em “Corporate Warriors – The Rise of the Privatized Military Industry” Cornell
University Press 2003, pág. 96.
18
9
Um bom exemplo da eficácia da participação desse tipo de CPMs nas zonas de
combate foi a contratação da MPRI pela Croácia em 1994-5
A Croácia tornou-se independente da Iugoslávia em 1991, sendo a primeira
República a se formar durante o colapso do estado sérvio. No entanto, suas forças
militares mal equipadas e treinadas sofriam diversas derrotas para os sérvios da região
de Krajina, apoiados pelo governo de Belgrado. Quando da contratação da MPRI, essa
empresa realizava a monitoração para a ONU do cessar fogo na região de Krajina,
exigindo o fim das hostilidades entre os dois grupos.
A guerra estava sendo bastante ruim para todos os oponentes dos sérvios – por
razões obvias, visto terem o controle do exército nacional iugoslavo e serem bem
treinados – e as tropas de paz da ONU não possuíam mandato para participarem das
hostilidades, exceto em casos de legítima defesa. Essa situação era vista com grande
preocupação por Washington. O objetivo principal dos EUA era garantir treinamento
militar para as forças croatas e aliá-las aos bósnios como uma forma de conter as
vitórias sérvias. Entretanto, era inviável realizá-lo diretamente, uma vez que o Conselho
de Segurança havia emitido a Resolução nº 787 que estabelecia um embargo contra a
venda de armas a qualquer uma das partes envolvidas nas hostilidades.
A proibição do envolvimento de qualquer país no conflito não impediu a
formalização de acordos entre o Ministério da Defesa da Croácia e a MPRI, uma
empresa com sede nos EUA. O objetivo oficial do contrato seria a modernização do
exército croata, para que o mesmo atingisse o padrão da OTAN. No entanto, em agosto
de 1995, as forças croatas iniciaram a “Operação Tempestade” – um ataque maciço
contra as forças sérvias, que não estavam preparadas para enfrentar uma força militar
tão bem estruturada, treinada e coesa. Com menos de uma semana, as forças croatas reestabeleceram o controle sob a região de Krajina.
Essa operação militar deu inicio a uma reviravolta no conflito: com a aliança
entre Croácia e Bósnia, os sérvios bósnios viram-se cercados e com poucas
possibilidades de reagir contra uma força militar taticamente superior. Em questão de
meses, Belgrado aceitou sentar em uma mesa de negociações para estabelecer um cessar
fogo.
A MPRI nunca reconheceu a sua participação no treinamento das forças croatas,
entretanto analistas militares asseguram que todas as táticas empregadas pelo exército
10
croata foram criadas por essa CPM para ser empregada no treinamento das forças norteamericanas. Além disso, seria impossível um exército composto por homens com pouca
experiência militar ser capaz de realizar manobras de coordenação entre artilharia,
blindados móveis e infantaria, em apenas 11 meses, sem um treinamento intensivo.
Cinicamente, a MPRI alega que qualquer um poderia encontrar em Georgetown os
planos táticos empregados na “Operação Tempestade”.
3.3 Empresas de Suporte Militar:
O terceiro tipo de CPMs, as Empresas de Suporte Militar (Military Support
Firms) são caracterizadas por desempenharem funções não-letais diretamente
relacionadas ao conflito como, por exemplo, auxílio nos serviços de logística, suporte
técnico, suprimento e transporte de equipamentos e pessoal. A grande vantagem da
contratação dessas empresas reside na especialização que fazem nas tarefas secundárias
– visto não estarem listadas como objetivos imediatos das forças militares – criando
uma estrutura muito eficiente e segura, o que permite ao corpo militar concentrar todos
os seus esforços exclusivamente na sua campanha. Essas empresas são contratadas por
clientes envolvidos em conflitos imediatos e de longa duração.
Normalmente suas atividades são confundidas com as realizadas por civis
contratados. Isso certamente se deve ao caráter menos ligado à atividade mercenária. No
entanto, ainda que não participem diretamente das hostilidades, ou contribuam nas
decisões tática/estratégica, sua participação é de fundamental importância, atendendo
necessidades críticas das tropas.
A participação norte-americana durante a manutenção das Zonas de Exclusão
Aérea, contou com o suporte da Brown & Root Service, que manteve os suprimentos
necessários na base de Aviano – Itália, de onde os caças saiam.
A BRS foi novamente contratada para garantir a infra-estrutura básica para
alojar os quase 20 mil soldados norte-americanos que integraram as tropas de paz
enviadas pela OTAN (NATO IFOR 19 ) para a Iugoslávia. Interessante destacar que em
pouco tempo a BRS já supria todas as outras forças envolvidas no conflito, tais como a
Bósnia, Hungria etc.
19
A NATO Implementation Forces (NATO IFOR) era composta por forças multilaterais para atuar no
território da Bósnia Herzegovina por um ano, substituiu a UNPROFOR.
11
A mesma empresa foi requisitada pela OTAN durante a Guerra de Kossovo,
quando os caças partiam de fora da fronteira do país. Um grande detalhe deve ser
apresentado: com o grande numero de refugiados que fugiam de Kossovo, a OTAN foi
procurada por diversas agências humanitárias para de alguma forma pudesse abrigar boa
parte desse contingente. Esse pedido foi cumprido graças a atuação da BRS.
4.
AS
COMPANHIAS
QUALIFICAÇÃO
SEGUNDO
PRIVADAS
O
MILITARES
DIREITO
E
A
SUA
INTERNACIONAL
HUMANITÁRIO:
O Direito Internacional Humanitário (DIH) é um ramo autônomo do Direito
Internacional Público composto por normas de natureza convencional e costumeira que
visa limitar os efeitos de conflitos armados por razões humanitárias 20 . Para tanto, o
DIH: I) limita/restringe os meios e métodos empregados nas guerras e II) protege
pessoas e bens que não participam das hostilidades ou foram postas em uma situação
que impede a sua participação 21 .
A sua aplicação tem inicio com a emergência de um conflito armado
internacional ou não internacional (interno) 22 , permanecendo em vigor enquanto durar
as hostilidades 23 . As Convenções de Genebra de 1949 e seu Protocolo Adicional I
estabelecem diversas regras a serem aplicadas aos conflitos internacionais – por
exemplo, regras especificas para territórios ocupados e tratamento dos civis neles
20
GASSER, Hans-Peter, “International Humanitarian Law - An introduction” em HAUG, Hans
“Humanity for all” Instituto Henry Dunant 1993.
21
“International Humanitarian Law (IHL) can be defined as the branch of international Law limiting the
use of violence in armed conflicts by:
a) Sparing those who do not or no longer directly participate in hostilities;
b) Limiting ht eviolence to the amount necessary to achieve the aim of the conflict, which can be –
independently of the causes fought for – only to weaken the military potential of the enemy.”
SASSOLI, Marco; BOUVIER, Antoine. How does Law Protect in War 2ª edição Vol I. Genebra 2006.
Essa definição contemporânea é fruto da fusão do Direito de Haia (que limitava os meios e métodos de
guerra) e o Direito de Genebra, (que visava a proteção de pessoas durante os conflitos) promovido pelos
Protocolos Adicionais de 1977.
22
“With exception of its rules already applicable in peacetime – provisions on preparatory measures in
the field of implementation, such as dissemination and the obligation of all States relating to armed
conflicts affecting third States – International Humanitarian Law starts to apply as soon as en armed
conflict arises, e.g. as soon as the first protected person is affected by the conflict, the first portion of
territory ocupied, the first attack launched etc.” SASSOLI, Marco; BOUVIER, Antoine. How does Law
Protect in War 2ª edição Vol I. Genebra 2006
23
A exceção a essa disposição encontra-se no artigo 6.2 da Quarta Convenção de Genebra de 1949, que
estabelece: “Nos casos de ocupação de território, a aplicação da presente Convenção cessará um ano após
o encerramento de todas as operações militares”.
12
localizados, tratamento de prisioneiros de guerra entre outros, enquanto somente o
artigo 3º comum às quatro Convenções de 1949 e o Protocolo Adicional II valerão para
os conflitos não internacionais.
Essa classificação dos conflitos é de grande valia por dois motivos: I) apresentar
o direito aplicável às pessoas envolvidas e, II) em especial para os conflitos de caráter
internacional, a definição do status jurídico de cada individuo.
Um conflito armado internacional 24 existe sempre que houver o recurso às
forças armadas entre Estados 25 , independentemente das razões ou intensidade do
confronto 26 . Essa definição substituiu o termo “guerra”, tradicionalmente utilizado,
ampliando a esfera de aplicação do Direito Humanitário 27 .
O artigo 3º comum é aplicado para todos os conflitos armados de caráter não
internacional que ocorram no território de uma Alta Parte Contratante28 . Diferentemente
24
De acordo com o artigo 2º comum, as Convenções aplicar-se-ão “em caso de guerra declarada ou de
qualquer outro conflito armado que surja entre duas ou várias das Altas Partes Contratantes, mesmo que o
estado de guerra não seja reconhecido por uma delas.”
25
Tribunal Penal Internacional Para Ex-Iugoslávia – “ICTY The Prosecutor v. Tadic, Dusko, Appeal
Chamber, Decision on the Defence Motion for Interlocutory Appeal on Jurisdiction, October 2, 1995,
parag. 70” em http://www.trial-ch.org/en/trial-watch/profile/db/spotlight/dusko_tadic_190.html - Acesso
em 06 de abril de 2008
26
"any difference arising between two States and leading to the intervention of armed forces is an armed
conflict within the meaning of Article 2, even if one of the Parties denies the existence of a state of war. It
makes no difference how long the conflict lasts, or how much slaughter takes place"(PICTET, Jean em
“Commentary on the Geneva Convention for the Amelioration of the Condition of the Wounded and Sick
in Armed Forces in the Field”, ICRC, Genebra, 1952,p. 32.)
27
"It is irrelevant to the validity of international humanitarian law whether the States and Governments
involved in the conflict recognize each other as States": Joint Services Regulations (ZDv)15/2,in: D
28
O artigo 3º comum que dispõe a situação e os direitos a serem aplicados nos conflitos não
internacionais - “No caso de conflito armado sem caráter internacional e que surja no território de uma
das Altas Partes Contratantes, cada uma das Partes em luta será obrigada a aplicar pelo menos, as
seguintes disposições:
1) As pessoas que não participem diretamente das hostilidades, inclusive os membros de forças armadas
que tiverem deposto as armas e as pessoas que tiverem ficado fora de combate por enfermidade,
ferimento, detenção, ou por qualquer outra causa, serão, em qualquer circunstância, tratadas com
humanidade sem distinção alguma de caráter desfavorável baseada em raça, cor, religião ou crença, sexo,
nascimento, ou fortuna, ou qualquer outro critério análogo.
Para esse fim estão e ficam proibidos, em qualquer momento e lugar, com respeito às pessoas
mencionadas acima:
a) os atentados à vida e à integridade corporal, notadamente o homicídio sob qualquer de suas formas, as
mutilações, os tratamentos cruéis, as torturas e suplícios;
b) a detenção de reféns;
c) os atentados à dignidade das pessoas, especialmente os tratamentos humilhantes e degradantes;
d) as condenações pronunciadas e as execuções efetuadas e sem julgamento prévio proferido por tribunal
regularmente constituído, que conceda garantias judiciárias reconhecidas como indispensáveis pelos
povos civilizados.
2) Os feridos e enfermos serão recolhidos e tratados.
13
do artigo 2º comum, as Convenções de 1949 definem os conflitos não internacionais por
meio de uma negativa, considerando tudo aquilo que não estiver abarcado pelo artigo 2º
comum como regido pelo artigo 3º comum. Segundo o Tribunal Penal para a ExIugoslávia são considerados os conflitos enquanto interno quando da ocorrência de
violência armada prolongada entre autoridades governamentais e grupos armados
organizados ou entre esses grupos dentro de um Estado 29 .
A edição do Protocolo Adicional II às Convenções de Genebra de 1949 Relativo
a Proteção das Vítimas de Conflitos Não Internacional de 1977, suplementou o regime
criado pelo artigo 3º comum às quatro Convenções o que em termos práticos significou
o surgimento de um outro regime legal aplicável aos conflitos armados não
internacional.
Suas normas foram criadas visando proteger as partes envolvidas direta ou
indiretamente nas hostilidades. Nesse sentido, os conflitos de natureza internacional
possuem uma estrutura normativa que qualifica as pessoas durante as hostilidades em
dois grupos: o combatente e a população civil.
O combatente tem o direito de participar diretamente das hostilidades 30 e não
será responsabilizado por atos de guerra legalmente realizados durante uma campanha
militar (podendo, no entanto, ser processados por violações de Direito Internacional
Humanitário, como por exemplo, crimes de guerra 31 ). Serão considerados alvos
legítimos até o momento em que sejam colocados fora de combate (hors de combat) 32 .
Uma vez capturados, será reconhecido o status de prisioneiro de guerra e todos
os benefícios e proteções contidos na Terceira Convenção de Genebra de 1949. As
condições para a declaração do status de combatente/prisioneiro de guerra podem ser
extraídas dos artigos 4º da Terceira Convenção de Genebra, 43 e 44 do PA I (que
desenvolveu o mencionado artigo 4º). Nos casos em que não seja evidente a que
28
De acordo com o artigo 2º comum, as Convenções aplicar-se-ão “em caso de guerra declarada ou de
qualquer outro conflito armado que surja entre duas ou várias das Altas Partes Contratantes, mesmo que o
estado de guerra não seja reconhecido por uma delas.”
29
Ver nota de rodapé nº25
30
Ver artigo 43(2) do Protocolo Adicional I.
31
DÖRMANN, Knut em “The legal situation of ‘unlawful/unprivileged combatants’” International
Review of the Red Cross Vol 85 nº 849 Março 2003.
32
O combatente será considerado fora de combate se a) ele encontra-se em poder da força adversária; b)
ele manifesta claramente a intenção de se render; ou c) ele foi posto inconsciente ou incapacitado em
virtude de ferimentos ou enfermidade, sendo incapaz de se defender. Considerando que, em qualquer uma
dessas situações ele não tem intenção de atacar ou evadir-se, não poderá ser alvo de ataques. Ver VERRI,
Pietro em Dictionary of the International Law of Armed Conflict. ICRC, Genebra, 1992.
14
categoria pertencia um indivíduo quando preso enquanto participava das hostilidades, o
artigo 5 da Terceira Convenção de Genebra estabelece que um tribunal competente
deverá determinar o seu status.
De maneira geral, serão considerados civis todas as pessoas que não pertençam a
qualquer das categorias enumeradas nos artigos 4 A (1), (2), (3) e (6) da Terceira
Convenção de Genebra e 43 do Protocolo Adicional I 33 . São eles os cidadãos de um
Estado envolvido em um conflito (de qualquer natureza), que não se encontram em
situação fática – por exemplo, levee en masse - ou jurídica de participar das
hostilidades.
Segundo diversas normas convencionais (em especial as contidas nos artigos 48
e seguintes do Protocolo Adicional I) e costumeiras34 que regem a condução das
hostilidades 35 , os civis não podem ser alvo de ataques militares, devendo também a ser
protegidos dos seus efeitos, assim como não podem participar diretamente das
hostilidades (take direct part in the hostilities) 36 .
33
De acordo com o artigo 50 parágrafo 1 do Protocolo Adicional I: “É considerada como civil toda a
pessoa não pertencente a uma das categorias mencionadas pelo artigo 4.º- A, alíneas 1), 2), 3) e 6), da
Convenção III e pelo artigo 43.º do presente Protocolo. Em caso de dúvida, a pessoa citada será
considerada como civil.”
34
Para melhores detalhes acerca da definição de normas costumeiras de Direito Internacional
Humanitário, ver HENCKAERTS, Jean-Marie em “Study on Customary International Law: A
Contribution to the Understanding and Respect of the Rule of Law in Armed Conflict” – International
Review of the Red Cross, Vol 87 nº 857, março 2005; HENCKAERTS, DOSWALD-BECK em
“Customary International Law: Volume One, Rules” Cambridge University Press, março 2005.
35
Regras nº 85 – 105 em “Study on customary international law” ver nota nº16
36
“Direct participation in hostillities by civilians entails loss of immunity from attack during the time of
such participation and may also subject them, upon capture, to criminal prosecution under the domestic
law of the detaining State. Despite the serious legal consequences involved, neither the Geneva
Conventions nor their Additional Protocols include a definition of what constitutes taking an “active part
in the hostilities,” and how such conduct should be distinguished from “indirect” participation, which
does not entail loss of protection from direct attack. An additional difficulty is that of defining the
duration of direct participation and when concrete preparations for an attack begin or the “return from”
military engagement ends. (…) Contemporary conflicts have given rise to further challenges in terms of
defining and implementing the notion of “direct participation in hostilities.” The use of high-tech warfare
(including computer network attack and exploitation), the outsourcing of traditionally military functions
to private contractors and the “fight against terrorism,” among other things, illustrate the increased inter
mingling of civilian and military activities, which makes it difficult to determine who is taking a “direct
part in hostilities” and what measures should be taken to protect those who are not directly
participating.” em “Violence and the Use of Force” ICRC Genebra 2008.O problema do termo
Participação direta nas Hostilidades pode ser encontrado também em “Third Meeting on the Notion of
Direct Participation in Hostilities – Geneva 23-25 October 2005 Summary Report” em
http://www.icrc.org/Web/eng/siteeng0.nsf/htmlall/participation-hostilities-ihl-311205
/$File
/Direct
_participation_in_hostilities_2005_eng.pdf – Acesso em 05 de abril de 2008.
Essa questão deverá ser discutida durante todo o ano de 2008, quando o Comitê Internacional da Cruz
Vermelha, em parceria com TMC Asser Institute deverão lançar “Interpretative Guidance on the Notions
of Direct Participation in Hostilities under IHL”.
15
Os civis podem ser presos pelas forças militares adversárias nas seguintes
situações: I) no caso do leveé en masse, sendo reconhecido aos civis o status de
prisioneiro de guerra; II) caso, abrindo mão da proteção conferida por seu status,
participe diretamente das hostilidades, sendo capturado e tratado como detento
(detainee) e, finalmente; III) quando da ocupação de um território por uma força militar,
atue de maneira a colocar membros da força ocupante em risco.
O Direito Internacional Humanitário determina algumas situações nas quais
poderá ocorrer a perda dos direitos conferidos a cada um dos status – quais sejam, civil
ou combatente. Destarte, nos casos em que um civil participe ativa e diretamente das
hostilidades perderá direito a proteção que o seu status confere, tornando-se no entanto
alvos legítimos para as forças adversárias 37 .
Ao se tentar estabelecer o status das CPMs de acordo com o Direito
Internacional Humanitário, deve-se considerá-las de acordo com a peculiaridade das
atividades que desenvolvem. Essa classificação em nada seria absoluta, sendo sempre
necessária uma investigação de cada um dos casos para se evidenciar o efetivo status.
As CPMs que desenvolvem atividades militares em campo – que nesse trabalho
foram classificadas enquanto Empresas Provedoras de Forças Militares – poderão
receber dois diferentes tratamentos dependendo de dois critérios: o status do contratante
– Estado ou agente não-estatal – e, no caso da contratação por um Estado, a forma
como foram integrados às suas forças militares.
Nos casos de um conflito internacional em que umas dessas empresas seja
contratada por um Estado para participar diretamente das hostilidades ao lado de seu
exército nacional, os “contratados” seriam considerados combatentes de acordo com o
artigo 4.1 da Terceira Convenção de Genebra de 1949, desde que devidamente
integrados às forças militares regulares. Outro mecanismo que poderia ser utilizado
como forma de reconhecimento desse status seria o artigo 5 38 dos Artigos Preliminares
sobre a Responsabilidade Internacional por Atos Ilícitos.
37
Artigo 51 parag 3 estabelece que “As pessoas civis gozam da proteção concedida pela presente secção,
salvo se participarem diretamente nas hostilidades e enquanto durar essa participação.”
38
Segundo o artigo 5 do Draf Article: “a conduta de pessoa ou entidade que não seja qualificado como
órgão do Estado conforme o artigo 4 mas a quem lei estatal atribui competência para o exercício de
elementos de autoridade governamental deve ser considerado um ato do Estado segundo o direito
internacional, desde que essa pessoa ou entidade atue nos limites de sua competência.” - 38 Segundo os
comentários da International Law Commission, “(...) the formulation of article 5 clearly limits it to
entities which are empowered by internal law to exercise governmental authority.(…) For the purposes of
16
O Direito Internacional Humanitário não estabelece passos a serem seguidos
para o registro das CPMs ao exército nacional. Entende-se, todavia que essa
incorporação dependeria de legislação interna e notificação às partes do conflito, nos
mesmos moldes do disposto no artigo 43 parágrafo 3 do Protocolo Adicional I 39 ,
quando da incorporação das forças policiais e paramilitares em seus exércitos 40 por
parte dos Estados.
Essa incorporação das CPMs por parte de um Estado, como membros de suas
forças militares traria em conjunto a possibilidade de atribuição de responsabilidade
estatal pelos atos ilícitos que os “contratados” cometam no exercício de suas
atribuições. Essa é justamente uma das lógicas que o fenômeno torna confuso e
nebuloso. Seguramente, quando os EUA defendem que as CPMs que atuam no Iraque
são “contratados civis”, busca dizer que eles nada têm haver com os interesses do
Estado, que trabalham em uma zona de conflito sabendo dos riscos e por que o governo
legalmente constituído do Iraque permite a sua participação. Em outras palavras, tem-se
como objetivo afastar qualquer possibilidade de responsabilização Estatal por atos
ilegais que os “contratados” possam a cometer.
De uma maneira geral, os atos de agentes não estatais não são atribuíveis a um
Estado. Entretanto, algumas condutas podem ser atribuídas ao Estado quando da
existência de uma relação fática entre a ação do agente/entidade não estatal e um
Estado 41 . Segundo o artigo 8 dos Artigos Preliminares:
“A conduta de uma pessoa ou grupo de pessoas deve ser
considerada como ato do Estado de acordo com o Direito
article 5, an entity is covered even if its exercise of authority involves an independent discretion or power
to act; there is no need to show that the conduct was in fact carried out under the control of the State.”
em “Draft State Article on State Responsibility for Internationally Wrongfull Acts, with commentaries
2001” http://untreaty.un.org/ilc /texts/instruments /english /commentaries /9 6_2001.pdf – Acesso em 30
de junho de 2008.
39
Artigo 43 parag. 3 estabelece, “A parte num conflito que incorpore, nas suas forças armadas, uma
organização paramilitar ou um serviço armado encarregado de fazer respeitar a ordem, deve notificar esse
fato às outras Partes no conflito.”
40
“However, it is clear that some form of official incorporation is necessary, especially since Article 43.3
of Protocol I imposes a specific obligation on states that incorporate their own police forces or other
paramilitary forces into their armed forces to inform the oposing side” em CAMERON, Lindsey em
“Private Military Companies: their status under international humanitarian law and its impact on their
regulation” – International Review of the Red Cross Vol 88 nº 863, setembro 2006.
41
Ver “Draft State Article on State Responsibility for Internationally Wrongfull Acts, with commentaries
2001” em http://untreaty.un.org/ilc /texts/instruments /english /commentaries /9 6_2001.pdf artigo 8
parágrafo – Acesso em 13 de abril de 2008
17
Internacional se essa pessoa ou grupo está de fato atuando
segundo instruções de, ou sob a direção ou controle de, um
Estado que esteja encarregado da conduta em questão.”
A Comissão de Direito Internacional entende que casos dessa natureza devem
ser analisados individualmente para averiguar se a conduta em questão pode ser
atribuída ao Estado, assim como avaliar a extensão do controle da conduta 42 .
Essa questão da atribuição de responsabilidade foi objeto de apreciação por parte
da Corte Internacional de Justiça no Caso Envolvendo as Atividades Militares e
Paramilitares contra e na Nicarágua (Nicarágua vs. Estados Unidos da América).
Segundo a Corte, agências governamentais norte-americanas foram incumbidas de
plantar minas aquáticas nos portos da Nicarágua, tarefa realizada por pessoas aliciadas
por essas entidades, sendo fornecido todo o suporte logístico e supervisão necessários
para o sucesso da operação. Ao mesmo tempo, os EUA teriam destinado recursos para
grupos militares e paramilitares – os contras – que atuavam na Nicarágua e na fronteira
com El Salvador.
A Corte, mesmo reconhecendo toda a participação dos EUA na situação em
voga decidiu que
“(...) ainda que decisiva e preponderante no financiamento,
organização, treinamento, fornecimento de equipamentos para
os contra, a seleção dos alvos militares e paramilitares e o
planejamento como um todo das operações seriam ainda
insuficientes como base para a Corte para o propósito de
atribuir aos EUA os atos cometidos pelos contras no curso de
suas operações na Nicarágua. (...) 43 ”
De acordo entendimento da Corte, só seria possível atribuir responsabilidade
legal para os Estados Unidos se ficasse provado que este exercia controle efetivo
42
Ver “Draft State Article on State Responsibility for Internationally Wrongfull Acts, with commentaries
2001” em http://untreaty.un.org/ilc /texts/instruments /english /commentaries /9 6_2001.pdf artigo 8
parágrafo 5 – Acesso em 13 de abril de 2008
43
Ver Military and Paramilitary Activities in and Against Nicarágua (Nicarágua v. United States of
América), Mérito em ICJ Reports 1986 parágrafo 115.
18
(effective control) sobre as operações militares e paramilitares 44 , controle esse que
ficaria demonstrado se agentes norte-americanos estivessem encarregados de realizar as
operações dos contra tendo eles sob seu comando direto.
Entretanto, esse teste será questionado pelo Tribunal Penal para a Ex-Iugoslávia,
no paradigmático caso Procurador vs. Dusko Tadic perante a Câmara de Apelação.
Antes de qualquer análise quanto a distinção entre responsabilidade individual
ou estatal, é importante resolver questões preliminares quanto às condições em que,
segundo o Direito Internacional, um indivíduo pode ser considerado como agindo como
um agente de facto de um órgão estatal. A Câmara arroga para si a seguinte tarefa: i)
determinar quando um ato realizado por um indivíduo pode ser atribuído ao Estado,
gerando responsabilidade estatal para o mesmo e ii) determinar em que condições um
indivíduo age como oficiais de facto de um Estado, o que tornaria o conflito em questão
internacional, assim estabelecendo as precondições naturais para as que o sistema das
violações graves (grave breaches) seja aplicado 45 . Em suma, essa Câmara entendeu que
a evidência dos critérios para atribuição de responsabilidade ao Estado tornariam
também o Direito Internacional Humanitário aplicável, especificamente as normas que
regem as situações de conflitos armados internacionais 46
Os princípios de Direito Internacional relativos à atribuição estatal de atos
realizados por indivíduos não são baseados em um critério rígido e uniforme. O artigo 8
dos Artigos Preliminares (supra transcrito), estabelece que pessoas atuando em nome do
Estado (on behalf of that State) sem, no entanto, serem membros de qualquer órgão do
Estado ensejaria a atribuição de responsabilidade estatal por seus atos. Essa regra visa
impedir que os Estados escapem de qualquer responsabilidade internacional por: i)
utilizarem agentes privados – como contratados das CPMs – para realizarem atos que
são considerados proibidos para agentes estatais ou; ii) alegarem que indivíduos que
participem de autoridade governamental não são classificados como órgãos do Estado
de acordo com legislação interna. Destarte, a Câmara de Apelação do TPI para ExIugoslávia considerou o teste aplicado pela Corte Internacional de Justiça no Nicarágua
44
Ver nota nº 44.
“a questão é estabelecer o critério para a imputação legal ao Estado de atos realizados por indivíduos
que não possuem o status de oficiais do Estado.” em ICTY The Prosecutor v. Tadic, Dusko IT-94-1,
Appeal Chamber, Judgment 15 de julho de 1999.
46
Sassòli, Marco em “State Responsability for Violations of International Humanitarian Law” IRRC
Vol. 84, nº 846 Genebra junho 2002
45
19
Case não convincente ao contrariar a verdadeira lógica da responsabilidade estatal.
Declarou não encontrar razões para o Direito Internacional exigir, em toda e quaisquer
situações, um patamar tão alto de controle, sendo certamente suficiente que os Estados
exercessem um grau controle (a ser analisado caso a caso)
47
sobre os indivíduos que
atuassem em nome do Estado (on behalf of that State). Assim, a Câmara apresenta o
teste a ser realizado em várias situações:
a)
Quando um Estado encarrega agentes não estatais para a realização de
atos ilegais no território de um outro Estado é necessário mostrar a
edição de instruções específicas relativa à realização das violações,
provando então que os agentes atuariam como agentes de facto. Outra
possibilidade seria a aprovação retroativa das ações dos agentes por parte
do Estado que se utilizou do serviço dos agentes não estatais;
b)
Quando agentes não estatais, encarregados por um Estado de executar
uma determinada tarefa legal, violam uma obrigação internacional do
Estado ao se desviarem da execução da tarefa, o Estado que tomar os
serviços dos agentes incorrerá em responsabilidade pelos seus ato;
c)
Quando da participação de grupos organizado e hierarquicamente
estruturado (como unidades militares ou em casos de conflitos ou guerras
civis, grupos armados irregulares ou rebeldes), poder-se-á atribuir seus
atos ao Estado se este exercer um controle abrangente (overall control) 48
sobre o grupo como um todo.
47
Ver parágrafos 118-120 do Julgamento de Mérito do caso ICTY The Prosecutor v. Tadic, Dusko IT-941, Appeal Chamber, Judgment 15 de julho de 1999
48
“(parágrafo 121)This kind of State control over a military group and the fact the State is held
responsible for acts performed by a group indempendently of any State instructions, or even contrary to
instructions, to some extent equates the group with State organs proper (...) A State is internationally
accountable for ultra vires acts or transactions of its organs. (...) The rationale behind this provision is
that a State must be hed accountable for acts of its organs whether or not these organs complied with
instructions, if any, from the higher authorities. (...)(parágrafo 122) The same logic should apply to the
situation under discussion. As noted above, the situation of an organised armed group is diferente from
that of a single private individual performin a specific act on behalf of a State. In the case of an organized
group, the group normally engages in a series of activities. If it is under the overall controlo f a State, It
must perforce engage the responsability of that State for its activities, whether or not each of them was
specifically imposed, requeste dor directed by the State.(...)” – ICTY The Prosecutor v. Tadic, Dusko IT94-1, Appeal Chamber, Judgment 15 de julho de 1999 em SASSOLI, Marco; BOUVIER, Antoine. How
does Law Protect in War 2ª edição Vol II. Pág. 1850 Genebra2006
20
Os elementos apresentados pelo TPI para a Ex-Iugoslávia na atribuição de
responsabilidade visam, primeiramente, determinar o direito aplicável à situação fática.
No caso apresentado, a Câmara de Apelação entendeu que 49 .
Entretanto, a posição da Comissão é criticada. Antes de se estabelecer
responsabilidade individual no para o acusado, deve-se ter em mente que o Direito
Internacional Humanitário aplicável aos conflitos armados internacionais só seria
aplicável aos atos do acusado se eles fossem considerados legalmente como atos de um
outro Estado 50 .
Nos casos de atribuição de responsabilidade estatal por atos cometidos por
“contratados” de CPMs em um caso concreto, esse exercício pode ajudar a provar a
existência de uma relação fática entre os atos realizados pelos funcionários das
Companhias e os atos desempenhados pelo exército estatal. Caso o “contratado” não
seja devidamente integrado às forças militares de um Estado, ele estará envolvido nas
hostilidades enquanto civil, o que significa dizer que não teria o direito de participar
diretamente das hostilidades.
Durante os trabalhos preparatórios para a Terceira Convenção de Genebra de
1949, alguns participantes entendiam que os civis que pegam em armas deveriam
receber um status diferente, punitivo. O termo “combatentes inimigos”
51
foi cunhado
com esse intuito, visto que a participação de civis dessa maneira mitigava alguns
princípios básicos do DIH, como o princípio da distinção 52 .
O termo cunhado em 1949 nunca recebeu significado normativo internacional,
sendo, no entanto largamente utilizado em manuais militares. No entanto, logo após os
ataques do 11/09, o Departamento de Defesa norte americano apresentou nova definição
do termo “combatente inimigo” visando a qualificação do status dos terroristas.
Entendia esse departamento que grupos como Al Quaeda são atores não-estatais que
conseguem cumprir as demais exigências contidas no artigo 4º da III Convenção de
49
Ver “Draft State Article on State Responsibility for Internationally Wrongfull Acts, with commentaries
2001” em http://untreaty.un.org/ilc /texts/instruments /english /commentaries /9 6_2001.pdf artigo 8
parágrafo 5 – Acesso em 13 de abril de 2008
50
Sassòli, Marco em “State Responsability for Violations of International Humanitarian Law” IRRC
Vol. 84, nº 846 Genebra junho 2002
51
Deve-se ter em mente que essa conceituação nao está normatizada ou sequer regulada pelas
Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais. Ela nao foi incorporada por nao haver sentido
punir os civis pela participação nas hostilidades. O simples fato de retirar sua proteção já bastaria.
52
DORMANN, Knut. "The legal situation of unlawful/unprivileged combatants". International Review of
the ICRC, março de 2003.
21
Genebra de 1949, não podendo ser considerados combatentes. Por outro lado, não
poderiam ser considerados civis uma vez que se envolvem diretamente em
hostilidades 53 . Para essa teoria, o termo “combatente inimigo” não significaria mais o
civil que pega em armas e perde seu status de pessoa protegida, mas sim um status de
negação de qualquer direito e garantia conferida pelo DIH.
Em outras palavras, o termo tornou-se um verdadeiro “limbo jurídico” 54 : a
lógica utilizada pelo DoD conseguiu afastar dos chamados “terroristas” todos e
quaisquer instrumentos normativos de proteção. Em outras palavras, o “combatentes
inimigos” tornou-se um indivíduo sem qualquer tipo de direitos ou garantias 55 .
Essa teoria foi tão criticada pela comunidade internacional que toda e qualquer
tentativa de revesti-la de legalidade foi abandonada. No entanto, apenas para demonstrar
uma das maiores falácias do Direito Internacional Público, qual deveria ser o tratamento
de “contratados” de CPMs que não estão integrados devidamente às forças militares de
uma das partes (ou luta em favor de um ente não-estatal) e participam diretamente das
hostilidades caso o termo “combatente inimigo” tivesse a definição proposta pela
Administração Bush? Em que o “contratado” seria diferente do “terrorista”? No que diz
respeito a aplicação do conceito de “combatente inimigo”, em nada. Entretanto, o
tratamento é diferenciado: até janeiro de 2007 56 , estava em vigor uma lei editada pelo
Governo Provisório que conferia total imunidade às CPMs e seus funcionários por atos
ilícitos que realizados no Iraque. Esse é um ponto importante do presente trabalho, a
demonstração de que essa indeterminação terminológica e legal proporciona graves
violações tanto de Direitos Humanos quanto de Direito Humanitário.
Nos casos de contratação de uma CPM por um Estado para tomar parte nas
hostilidades diretamente contra entes não estatais, em um conflito não internacional,
aplicam-se apenas as regras do artigo 3º e do Protocolo Adicional II. Uma vez que não
53
As normas de DIH não se aplicam, uma vez que elas são destinadas aos civis e combatentes, a
Constituição norte-americana também não deveria ser utilizada na defesa dos direitos dos detidos por que
eles não estavam em território norte americano – visto estarem detidos em Guantanamo;
54
Segundo Giorgio Agamben, termo “combatente inimigo” acabou por recriar a figura do Homo Sacer,
instituto jurídico do Direito Romano que retirava o indivíduo da proteção do direito através de uma norma
jurídica. AGAMBEN, Giorgio em Estado de Exceção – Coleção Estado de Sítio. Boitempo editorial São
Paulo 2005; Id em Homo Sacer – O Poder Soberano e a Vida Nua I – Coleção Humanitas Editora UFMG
Belo Horizonte 2004.
55
Lembrar que não se aplica a ele os Direitos Humanos e a Constituição Americana
56
Contractors
in
war
zones
lose
immunity
em
Boston.com
07/01/2007
http://www.boston.com/news/world/middleeast/articles/2007/01/07/contractors_in_war_zones_lose
_immunity/ - Ultimo acesso 29 de julho de 2008
22
existem os status protetores vigentes nos conflitos internacionais, os contratados
integrados ao Estado serão beligerantes 57
As duas situações até então não apresentam grandes dificuldades. Entretanto, a
participação das CPMs nas hostilidades pode levantar sérios problemas quando o
conflito for de natureza muito nebulosa – o que é comum nos casos de Guerras
Assimétricas 58 - ou quando da sua contratação por atores não estatais.
Nos casos das CPMs que prestam serviços de consultoria e treinamento –
classificadas enquanto Empresas de Consultoria Militar – o exercício de qualificação do
status perante o DIH trás consigo a relativização do conceito de participação direta nas
hostilidades 59 .
Legalmente, apenas os combatentes podem participar diretamente das
hostilidades – apenas eles possuem esse direito e, conforme dito anteriormente, não
podem ser responsabilizados penalmente, após o fim do conflito, pelo exercício regular
deste direito. Caso um civil tome partido diretamente das hostilidades, perderá a
proteção garantida pelo seu status.
Antigamente, a “participação direta nas hostilidades” era um conceito de fácil
definição. Os conflitos eram travados por grandes exércitos nacionais, devidamente
uniformizados e identificados enquanto defensores de uma parte. Entretanto, os
conflitos contemporâneos apresentam diversas zonas cinzentas na qualificação do status
das pessoas envolvidas nas hostilidades e a indeterminação do conceito de “participação
direta nas hostilidades”.
Existiria “participação direta nas hostilidades” no caso de hackers contratado por
um exército nacional, que realize um Computer Network Attacks (CNA)? O fato de estar
desempenhando uma atividade sob a égide de um Estado seria suficiente para defini-lo
enquanto combatente ou se trata de um civil envolvido ilegalmente no conflito? A
57
Deve-se sempre ter em mente que o termo beligerante apenas define os indivíduos envolvidos
diretamente nas hostilidades em um conflito interno, o que não significa o reconhecimento de qualquer
tipo de status ou vantagem.
58
Definição de Guerras Assimétricas: originally referred to war between two or more actors or groups
whose relative military power differs significantly. Contemporary military thinkers tend to broaden this to
include asymmetry of strategy or tactics; today "asymmetric warfare" can describe a conflict in which the
resources of two belligerents differ in essence and in the struggle, interact and attempt to exploit each
other's characteristic weaknesses. Such struggles often involve strategies and tactics of unconventional
warfare, the "weaker" combatants attempting to use strategy to offset deficiencies in quantity or quality
59
23
resposta pode ser apresentada com alguma facilidade ao se realizar o teste empregado
para as Empresas Supridoras de Força Militar.
No entanto, qual seria o status do mesmo hacker “contratado” mencionado
acima, que forneça treinamento em CNA para o exército de um país, sem participar
diretamente de qualquer ataque? Ele seria um alvo militar legítimo – já que o
treinamento fornecido terá impacto direto no conflito, a neutralização deste instrutor
poderia ser garantir um ganho militar real e efetivo?
De todas as formas de participação das CPMs em conflitos, a prestação de
serviços de consultoria e treinamento é seguramente a que levanta mais
questionamentos sobre a interpretação das normas de DIH. Os efeitos que esse tipo de
participação indireta trás para a realidade dos conflitos são decisivos. O
desenvolvimento de armamentos ainda está muito vinculado à participação de técnicos
civis. Reconhecendo essa peculiaridade o Comentário ao Protocolo Adicional I
estabelece que:
“The increasingly perfected character of modern weapons,
which have spread throughout the world at an ever-increasing
rate, requires the presence of such specialists (foreign adviser
and military technicians), either for the selection of military
personnel, their training or the correct maintenance of the
weapons.”
Essa definição, entretanto, não estabelece o status desse técnico, nem sequer o
envolvimento necessário para que seja considerada a participação nas hostilidades.
Considerando então que esse envolvimento técnico tem com interesse ultimo a
destruição do inimigo ou a aquisição de informações, essa participação é vista por
alguns especialistas enquanto uma ação positiva que causa dano ao pessoal e ao
equipamento inimigo 60 .
Ainda que essa interpretação extensiva do conceito de “participação nas
hostilidades” resolva parte do problema criado pela atuação dos “contratados”, ela não
60
GUILLORY, M. E., “Civilianizing the Force: Is the United States Crossing the Rubicon?”, ibid., p.
128. According to the author “to argue to the contrary would seem akin to suggesting that a shell loader is
not a direct participant because someone else is firing the cannon.”
24
elucida o seu status perante o DIH. O exército norte americano entende que:
“Taking part in hostilities has not been clearly defined in the
law of war, but generally is not regarded as limited to civilians
who engage in actual fighting. Since civilians augment the Army
in areas in which technical expertise is not available or is in
short supply, they, in effect, become substitutes for military
personnel who would be combatants.” 61
Destarte não apresentar um grande estudo acerca da prática estatal acerca do
reconhecimento de “contratados” de CPMs que se dedicam aos serviços de consultoria e
estratégia, esse documento oficial dos EUA tem um peso interessante – uma vez que ele
rebate toda e qualquer declaração acerca do status de civil os “contratados”. Ainda
assim, todo e qualquer estabelecimento acerca do status de “contratados” envolvidos
nessas atividades deve ser desenvolvido em um estudo caso a caso, em razão de todas as
circunstâncias diretamente relacionadas ao tema.
As CPMs organizadas enquanto Empresas de Suporte Militar podem ser
caracterizadas de duas formas: I) como assemelhados ao combatente (sendo
considerado prisioneiro de guerra caso capturado), ao participem de um conflito
internacional enquanto contratados para o abastecimento de suprimentos essenciais às
tropas (supply contractors), desde que devidamente autorizados, e II) enquanto
membros da Defesa Civil, tanto em conflitos internacionais como internos.
O artigo 4º da III Convenção de Genebra de 1949 estabelece os critérios para o
estabelecimento do status de prisioneiro de guerra. Esse artigo normalmente é utilizado
como um meio e teste para o reconhecimento do status de combatente. Entretanto, os
dois status devem ser separados e analisados de forma independente.
Seguramente, todo o combatente que caia nas mãos do inimigo será tratado
enquanto prisioneiro de guerra – visto que este é um dos direitos que o status de
combatente possui. Entretanto, nem todo prisioneiro de guerra é necessariamente um
combatente ou possui o direito de, por exemplo, participar diretamente das hostilidades.
61
Em The Civilian Employee Deployment Guide of the U.S. Department of the Army –
http://www.hq.usace.army.mil/cere/civiliandeploymentguide.htm ultimo acesso em 30 de junho de 2008.
25
Assim sendo, as CPMs que realizam serviços de provisão são civis que, segundo
o artigo 4.4 62 da III CG 1949, serão tratados enquanto prisioneiros de guerra caso caiam
nas mãos das forças inimigas. Essa provisão é perfeita para a definição de CPMs como
a BRS, que atuou ativamente na campanha da Ex-Iugoslávia em 1995 e Kossovo em
1999.
Em um primeiro momento, a forma mais fácil que um leigo usaria para definir as
CPMs de acordo com as atividades que desempenham seria considerar os seus
funcionários enquanto mercenários. Entretanto, essa pode ser um dos status mais
difíceis de se provar e, seguramente, o que apresenta poucos resultados práticos.
De acordo com o Dictionary of International Humanitarian Law, são
“mercenários” para o DIH,
“Any person who vonlutarily enrols in the combatant armed
forces of a beligerent State of which he is not a national, being
motivated by the desire for private gain. He is not entitled to
combatant status, or if captured, to the status of prisoner of
war.”
O artigo 47 do Protocolo Adicional I 63 , define legalmente os mercenários
enquanto qualquer pessoa que preencha todos os seguintes requisitos: i) ter sido
especialmente recrutada para lutar em um conflito armado; ii) ter participado
diretamente das hostilidades; iii) a sua participação estar diretamente motivada pelo
desejo de ganho privado, que é prometido por uma das Partes ou em favor de uma das
Partes, sendo superior ao pago aos combatentes regulares; iv) não seja nacional de
nenhuma das partes envolvidas nas hostilidades, nem residente de qualquer território
sob o controle de uma delas; v) não seja membro das forças armadas de uma das partes
e vi) não ter sido enviado por um Estado não envolvido no conflito enquanto membro
de suas forças armadas a desempenhar obrigações oficiais.
62
63
Esse mesmo rol de exigências foi repetido no artigo 1º da Convenção Internacional contra o
Recrutamento, Uso, Financiamento e Treinamento de Mercenários de 4 de dezembro de 1989.
26
Algumas criticas muito sérias são tecidas acerca das exigências contidas no
instrumento: i) o extensivo rol de exigências para a qualificação de um indivíduo
enquanto mercenário torna o instrumento frágil 64 ; ii) a privação do status de prisioneiro
está longe de ser uma forma de se coibir a participação mercenária, e, iii) a não
criminalização da atividade contribui para o aumento da impunidade.
O artigo supra mencionado estipula seis condições para a qualificação do agente
enquanto mercenário. Elas são todas concorrentes e isso torna a sua caracterização
muito precária e difícil. Por exemplo, no caso da Segunda Guerra do Golfo pelo menos
uma das exigências cai por terra, visto que os contratados são de nacionalidade
majoritária norte-americana o item iv) supra. Além disso, o elemento subjetivo contigo
no item iii) é difícil de ser provado e, conforme argumenta as CPMs, os contratados
trabalham por seus salários e não por lucros ou vantagens pessoais. A Companhia lucra
certamente, entretanto não há qualquer instrumento que proíba esse lucro.
Para o Direito Internacional Humanitário, os mercenários não são considerados
combatentes legítimos. Assim sendo, não é reconhecido o status de prisioneiro de
guerra nos casos em que for capturado por uma das Partes envolvidas no conflito
armado. Entretanto, em termos práticos, o seu tratamento em nada será diferente de um
civil que participe ilegalmente das hostilidades. De qualquer maneira, estarão vigentes
os artigos 75 do Protocolo Adicional I (nos casos de conflitos internacionais) e 4 do
Protocolo Adicional II (nos casos de conflitos internos).
Os instrumentos de DIH que definem o status dos mercenários não criam
condições coercitivas para reprimir a sua contratação por quaisquer Partes envolvidas
em conflitos armados. Dois outros instrumentos 65 entretanto criam algumas condições,
mas a qualificação dos mercenários reproduz os erros estabelecidos no artigo 47 do
64
“(…)But in any case the Convention hardly provides a workable legal framework. Emphasizing the
presumed avarice of mercenaries, it defines a mercenary as someone who is “motivated to take part in
the hostilities essentially by the desire for private gain.” The difficulty of proving such motivation led the
British military historian Geoffrey Best to suggest that anyone convicted of an offence under the
convention should be shot — as should his lawyer.” CHESTERMAN, Simon. Leashing the Dogs of War:
The Rise of Private Military and Security Companies em New York University Public Law and Legal
Theory Working Paper nº 85. 2008.
65
São eles: Convention of the OAU for the Elimination of Mercenarism in Africa, em força desde 22 de
abril de 1985 e a UN International Convention against the Recruitment, Use, Financing and Training of
Mercenaries de 4 de dezembro de 1989.
27
Protocolo Adicional I, ao fazerem as mesmas exigências para a qualificação do
indivíduo enquanto mercenário.
No entanto, esse rótulo sempre foi negado pelas Companhias e seus
funcionários. Enquanto firmas, possuem clara hierarquia executiva, o que inclui um
corpo de diretores; são devidamente registradas e estruturadas segundo as leis do país
onde estão registradas. Além de estarem orientadas para o lucro da corporação, ao invés
do lucro individual, seus fins sociais são, normalmente, diversificados. 66
67
.
5. CONCLUSÃO:
Um dos traços definidores do Estado Nacional se manifesta no princípio da
soberania do governante. Esse princípio demanda dois fortes instrumentos, controlados
pelo soberano: a centralização da produção legislativa e jurisdicional e o monopólio do
uso coercitivo, legal e legítimo da força. Maquiavel definirá esses dois elementos no
capítulo 12 de O Príncipe com o seguinte lema “Boas leis e bom exército”. A
racionalidade pré-Iluminista já advogava em favor da formação de exércitos nacionais
como único instrumento efetivo para a manutenção do poder soberano e da
territorialidade.
Esse é um fenômeno recente: durante toda a Idade Média e boa parte da Idade
Moderna as batalhas eram travadas entre exércitos de mercenários. A Europa passou por
um momento de grandes dificuldades durante a Guerra dos Trinta anos, o que criou
condições para o processo de Paz de Westphalia, o marco da concentração do poderio
militar na mão do soberano. Entretanto, a participação de empreendimentos privados
com participação de forças armadas militares nunca foi totalmente proibida. Existiu, por
razões obvias um maior controle da utilização do uso da força dentro das fronteiras
66
A Executive Outcomes tinha como missão corporativa:
“To provide a highly professional and confidential military advisory service to legitimate governments.
To provide sound military and strategic advice.
To provide the most professional military training packages currently available to armed forces, covering
aspects related to sea, air, and land warfare.
To provide advice to armed forces on weapon and weapon platform selection.
To provide a total apolitical service based on confidentiality, professionalism, and dedication."
ADAMS, Thomas em The New Mercenaries and the Privatization of Conflict Parameters, 1999
67
“Instead, they represent the next evolution in the provision of military services by private actors,
paralel to the development of the modern bussiness organization. A more complete, and less normative,
assessment of the phenomenon finds that it is the corporatization of the military service provision that
sets them apart.”
28
estatais. No entanto, fora desses limites, a participação do então empreendimento
privado utilizava-se de forças próprias para conseguir seus objetivos.
Dessa forma, ao avançar-se nesse percurso histórico, pode-se argumentar uma
racionalidade embutida nas políticas imperialistas do séc. XVIII e XIX: o imperialismo
foi idealizado segundo interesses estatais, sendo, no entanto organizado e financiado por
capital de origem privada. As Companhias das Índias Ocidentais Britânicas e
Holandesas são exemplos claros dessa participação. Percebe-se como nessa relação, os
Estados toleraram e utilizaram-se de mercenários e empreendimentos militares, visando
consolidar, proteger e projetar seu monopólio do uso legitimo da força coercitiva.
Utilização, portanto de forças privadas para consolidar o poderio do Estado. Relação
estreita e ativa, que moldará o Direito Internacional Público.
Esse exemplo mostra como os interesses comerciais domésticos participam na
organização de espaços internacionais, de maneira tal que permite ao comercio privado
livre de intrusão de outros Estados, mas livres para organizar a violência através de
parceria com o Estado. Atuação do privado cada vez mais entrelaçada com o Estado,
dando forma a regras internacionais, de forma a reproduzir a distinção público/privado
em níveis globais, mascarando o papel que os atores privados representavam na
organização da violência estatal 68 .
A exportação da distinção público/privado atuou na determinação das bases
conceituais do direito internacional, que se tornou cada vez mais organizado em torno
de entes “públicos”, quais sejam, Estados. Organizações que não podiam oferecer ao
comércio internacional uma eficiência administrativa como a organização territorial e
hierárquica dos Estados – tal qual a Liga Hanseática – foram lentamente excluídas.
Esse sistema permitiu a consolidação do monopólio da força dentro do território
estatal, garantindo ao poder central todas as condições para construir todo o seu aparato
administrativo, tornando-o ainda mais concreto. Ao garantir a centralização do poder,
pode-se enviá-lo para outras localidades ao longo do globo, onde o Estado reafirmaria
sua soberania e, em parceria com esse capital privado e seus empreendimentos
militares, garantir lucros significativos.
68
COCKAYNE, John em The Global Reorganization of Legitimate Violence: Military Entrepreneurs and
the Private Face of International Humanitarian Law” em International Review of Red Cross Vol 88 nº
863. Setembro 2006
29
A emergência das Companhias Privadas Militares pode representar, a longo
prazo, o fim de uma etapa conceitual das democracias ocidentais. Para Weber, o traço
definidor do Estado está no monopólio da força, na possibilidade de se obrigar a
realização de condutas conforme a lei estabelecida e a existência de mecanismos para
reparar as suas violações. O patrocínio do retorno do privado à um nicho estatalizado a
pelo menos duzentos anos, pode ser visto como uma grande conquista da democracia
moderna – a crença de que o Estado não precisa centralizar os meios de coerção pode
também significar uma maior participação na imposição do que é legal. Por um outro
lado, pode também significar um chocar o ovo da serpente.
Patrocinar a participação de CPMs trás conseqüências nocivas. Essas empresas
não são transparentes na realização de suas operações militares. Além disso, várias
delas são controladas por grandes conglomerados econômicos que tem outros
investimentos em diversas das zonas de conflito mundial: a Executive Outcomes, por
exemplo, era controlada por uma empresa de exploração de minérios e pedras preciosas.
Esse tipo de ligação faz pesar sobre essas empresas a seguinte questão: Não seriam elas
bons instrumentos para a consolidação de políticas neo-imperialistas?
De um outro lado, empresas como a Sandline, que trabalham com consultoria e
treinamento
só
formalizam
contratos
quando
devidamente
autorizada
pelo
Departamento de Defesa Norte-Americano. Essas empresas são verdadeiramente
imparciais ou servem como instrumento de política internacional aos interesses de
alguns outros países? A participação da MPRI no conflito da ex-Iugoslávia em 1995, ao
treinar o exército da Croácia enquanto desempenhava funções atribuídas pela ONU para
a manutenção das zonas desmilitarizadas levanta ainda mais dúvidas acerca de suas
orientações éticas.
A falta de instrumentos específicos para a qualificação dos contratados não traz
conseqüências graves: como foi demonstrado, os princípios gerais do DIH apresentam
respostas atuais e concretas para a definição do status dos “contratados”. No entanto, a
falta de mobilização dos países que servem de sede para essas empresas, no intuito de
fiscalizar e controlar de perto a atividade pode ser um grande incentivador da
impunidade e graves violações em zonas de conflito armado.
Finalizando, mais importante que criar mecanismos específicos para a definição
dos contratados perante o DIH, o internacionalista deve aprender a transitar pelos
30
conceitos básicos da lei de Genebra e instrumentos de Responsabilidade Estatal, sem,
no entanto, perder a atenção para aqueles assuntos que podem trazer conseqüências
verdadeiramente graves. A falta de limites da atividade das CPMs, a necessidade de
instrumentos que tragam maior transparência aos contratos formalizados e
accountability quando das violações, assim como mecanismos que possam assegurar
que a atividade privada das Companhias não viole os princípios basilares do Direito
Internacional Público e os princípios de Friendly Relations são muito mais importantes
neste momento.
31