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JOÃO SIMÕES LOPES NETO NO “CONTINENTE” DE ERICO
VERÍSSIMO
Elisângela Aparecida Zaboroski de Paula*
Resumo
Nosso estudo pretende apresentar a importância da literatura do gaúcho João Simões
Lopes Neto (1865-1916) para Erico Veríssimo (1905-1975) Para isso nos valemos da
obra O Tempo e o Vento (1949-1961), do escritor de Cruz Alta, onde em várias passagens podemos encontrar alusões à obra de Simões Lopes Neto, principalmente quando Veríssimo recorre ao tema das lendas gaúchas como: “Negrinho do Pastoreio”,
“Salamanca do Jarau”, “São Sepé” e ainda às lendas sobre os tesouros dos Jesuítas,
as quais são descritas por Simões Lopes Neto em seu livro Lendas do Sul de 1913.
Nosso objetivo é também a divulgar o folclore gaúcho através da obra de João Simões
Lopes Neto, bem como de sua importância para a literatura brasileira como um todo.
Palavras-chave: João Simões Lopes Neto. Lendas do Sul. Erico Veríssimo. O Tempo e
o Vento.
Introdução
Ao abrirmos os volumes “O Continente” I e II, bem como o restante da obra O
Tempo e o Vento (1949-1961), de Erico Veríssimo, percebemos que o criador de Ana
Terra dedica várias passagens em sua obra para falar das lendas pertencentes ao
folclore gaúcho, bem como se vale da obra Lendas do Sul de João Simões Lopes Neto
para então recontar essas histórias. Podemos também citar que Veríssimo criou um
personagem de sua trilogia, baseado na biografia do escritor pelotense, uma vez que o
capitão Rodrigo Cambará está intimamente ligado ao jeito de ser de Catão Bonifácio
Lopes, o pai de João Simões Lopes Neto. Ligia Chiappini, crítica da obra simoniana, ao
aprofundar-se mais no tema diria que
Catão Simões Lopes transformou-se mesmo num tipo meio
legendário na família e na cidade, por suas gauchadas que antecipam, e talvez tenham inspirado, as de Um Certo Capitão
Rodrigo, personagem de O Tempo e o Vento, de Erico Veríssimo” (CHIAPPINI, 1988, p. 11, grifo do autor).
É importante ressaltar que quando citamos que Erico Veríssimo utiliza-se das
* Mestre em Literatura, com ênfase em Teoria Literária pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina);
Doutoranda em Estudos da Tradução pela PGET- UFSC. E-mail: [email protected]
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versões contadas por Simões Lopes Neto, das lendas que apresenta em sua trilogia,
baseamo-nos na afirmativa de Flávio Loureiro Chaves, outro estudioso da obra simoniana e também da literatura de Erico Veríssimo, quando este diz: “Erico Veríssimo foi
buscar em João Simões Lopes Neto esta achega decisiva para a narrativa de “O Continente”. Instaura-se assim, o diálogo intertextual com Simões Lopes Neto” (CHAVES,
2001, p. 58).
A influência da literatura simoniana também pode ser facilmente sentida e identificada nos volumes d’“O Retrato” e ainda nos d’“O Arquipélago”, onde nos deparamos com um subcapítulo intitulado “Uma vela pro Negrinho”, sendo que uma versão
para a lenda da “Salamanca do Jarau” irá reaparecer na parte final de “O Arquipélago”.
Nosso estudo pretende dar verossimilhança ao fato de ter sido João Simões Lopes
Neto o principal influenciador, das lendas contadas por Erico Veríssimo na primeira
parte de seu romance: “O Continente” I e II, uma vez que já existiam inúmeras versões
para as histórias recontadas por Lopes Neto em suas Lendas do Sul (1913). Nosso
principal interesse é, portanto, demonstrar que Erico Veríssimo utilizou-se das versões
do criador de Blau Nunes para então recontá-las em sua trilogia.
João Simões Lopes Neto nas páginas do “Continente” em O Tempo e o Vento
Inúmeras são as versões existentes para as lendas recontadas por Simões Lopes Neto em suas Lendas do Sul. Vários escritores antes dele já tinham se debruçado
sobre este tema e ainda havia a literatura oral, uma das principais divulgadoras e
responsáveis pela perpetuação das mesmas. Era através da literatura oral que aquelas
histórias fantásticas eram passadas de geração em geração. Então, como podemos
afirmar que é na versão de Simões que Erico Veríssimo se baseia para produzir sua
história e inserir nela essas lendas?
Basta fazermos uma comparação entre o texto simoniano e o de Erico Veríssimo
e logo iremos perceber que as influências simonianas estão nítidas no texto de Erico e
porque não dizer que podemos também afirmar que existem algumas particularidades
que só estão presentes nas versões de Lopes Neto para essas lendas, as quais, também aparecem no texto de Veríssimo, um indício forte de que ele teria utilizado Simões
como sua fonte inspiradora. Podemos recorrer, então, como exemplo para a lenda d’ “O
Negrinho do Pastoreio”, a qual, na versão simoniana apresenta pelo menos duas
variantes novas e originais, sendo elas: o tema do menino mau, filho do estancieiro e o
tema de Nossa Senhora, madrinha daqueles que não a têm. Encontramos no romance
de Veríssimo a seguinte versão para a lenda do negrinho:
Era uma vez um estancieiro podre de rico de tão malvado...
(Isso se passou nos tempos de dantes). Pois diz-que esse hombre malo tinha até dinheiro, mas era tão sovina que não comia
ovo pra não bota a casca fora. Na estância não dava pousada
nem comida para ninguém. [...] Pois essa peste tinha um filho, um menino, ruim como o pai, porque quem sai aos
seus não degenera. [...] Tinha também nessa estância um
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negrinho escravo, preto como fundo de panela, mas de dentes brancos que nem asa de garça. [...] Todo mundo judiava
do Negrinho naquela estância maldita, principalmente o
estancieiro e o filho. Pois diz que um dia o hombre malo
mandou o Negrinho pastorear, num potreiro enorme de trinta
quadras, trinta tordilhos. O Negrinho montou num baio e se
foi... E os cavalos fugiram [...] (VERÍSSIMO, 2004, p. 263267, grifo nosso).
Neste trecho acima citado percebemos nitidamente a presença da personagem
do filho do estancieiro, o qual, também foi descrito por João Simões Lopes Neto da
seguinte maneira:
Era uma vez um estancieiro, que tinha uma ponta de surrões
cheios de onças e meias-doblas e mais muita prataria; porém era
muito cauíla e muito mau, muito. Não dava pousada a ninguém,
não emprestava um cavalo a um andante; no inverno o fogo da
sua casa não fazia brasas; as geadas e o minuano podiam entanguir gente, que a sua porta não se abria [...]. Só para três viventes ele olhava nos olhos: era o filho, menino cargoso como
uma mosca, para um baio cabos-negros, que era o seu parelheiro de confiança, e para um escravo, pequeno ainda, a quem
todos chamavam somente o – Negrinho (LOPES NETO, 2006,
p. 235-236, grifo nosso).
Em outro momento da lenda é possível perceber como era o filho do fazendeiro.
Diria Simões: “O menino maleva foi lá e veio dizer ao pai que os cavalos não estavam.
O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e darlhe, dar-lhe uma surra de relhos” (LOPES NETO, 2006, p. 239, grifo nosso). Também é
evidente a apropriação por Veríssimo da história de Simões quando falamos no tema de
Nossa Senhora, chamada por ambos os autores, de Madrinha daqueles que não a têm.
Quando Fandango, personagem de Veríssimo, relata a lenda do Negrinho ele faz a
seguinte menção sobre ela:
Todos sabiam do causo do estancieiro malo e achavam que tudo
tinha sido milagre da Nossa Senhora. Diz-que agora tudo que se
perde no mundo o Negrinho acha, mas ele só entrega os perdidos a seus donos se estes lhe acenderem uma vela. O Negrinho
não quer vela pra ele, mas sim pro altar da sua Madrinha
(VERÍSSIMO, 2004, p. 266-267, grifo nosso).
Ao relatar a relação de afeto e devoção do Negrinho com Nossa Senhora, João
Simões Lopes Neto diz: “A este [Negrinho] não deram padrinhos nem nome; por isso
o Negrinho se dizia afilhado da Virgem, Senhora Nossa, que é a madrinha de quem não
a tem” (LOPES NETO, 2006, p. 236). A lenda sobre o “Negrinho do Pastoreio” é tema de
frequente revisitação pelo romancista para composição da primeira parte de seu roDiálogos & Saberes, Mandaguari, v. 7, n. 1, p. 153-161, 2011
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mance, fato que semelhantemente ocorre com as demais lendas existentes em Lendas
do Sul, em especial a “A salamanca do Jarau” e o “Lunar de Sepé”. Como um todo o
folclore gaúcho é ressaltado no “Continente I e II”, mas as semelhanças com a narrativa simoniana são de fato bastante nítidas e certamente é por esta razão que Flávio
Loureiro Chaves afirma que a inspiração de Veríssimo estava em Simões Lopes Neto.
Destaca-se que a figura da mulher sedutora, falsa e feiticeira é representada em
O Tempo e o Vento por Luzia Silva, a suposta neta de Aguinaldo, um homem misterioso
que chega a Santa Fé, “escoteiro, montado num cavalo magro e manco, e fazendo
questão de mostrar a toda a gente que tinha as guaiacas atestadas de moedas de ouro.
Começaram então a murmurar na vila que Aguinaldo havia descoberto uma salamanca
lá para as bandas de São Borja” (VERÍSSIMO, 2004, p. 21). Salamanca, esta que, como
não poderia deixar de ser, era a do Cerro do Jarau, onde, dizem as lendas, que a Teiniaguá vive enclausurada por um feitiço, realizando pactos com aqueles que estejam
dispostos a pagar pelo preço de deixarem um pouco de si mesmos para o livramento da
encantada. Em um capítulo sugestivamente intitulado “A Teiniaguá”, Erico Veríssimo
inicia sua narração acerca da personagem Luzia, a sedutora mulher que é capaz de
encantar a qualquer homem, exatamente como ocorre com a Teiniaguá simoniana, que
encanta o Sacristão e a Blau Nunes, que apesar de adentrar na furna e passar por sete
provas sai da salamanca sem levar nada, porque o que mais deseja é o amor da mulher
moura. Luzia é a estrangeira, aquela que vem de longe, símbolo, portanto, da alteridade, do “Outro”, do diferente e do desconhecido, que causa curiosidade ao passo que
provoca medo naqueles que a desconhecem. “Santa fé deveria ter um poderoso sortilégio [...] Luzia Silva deveria ter mandinga naqueles olhos de réptil” (VERÍSSIMO,
2004, p. 65). Os olhos de réptil da Teiniaguá de Veríssimo são uma alusão à forma
reptiliana da moura encantada e transmudada em carbúnculo da lenda simoniana. Para
Flávio Loureiro Chaves, a moura simoniana pode ser assim definida:
Mulher/ bicho imundo, porque é a causa da tentação e do erro.
Ela é a imagem do abismo e da desordem; tem a conotação da
falsidade, traição e feitiço. Mulher/demônio, porque é associada
a Anhangá-pitã; a mulher/moura que se vota a destruição da
cristandade (CHAVES, 1982, p. 92).
Luzia é o abismo de Bolívar que ao casar-se com ela vê sua vida mergulhada no
caos: “Bolívar tinha no rosto a marca da infelicidade. E a Trude Weil, que ele amara um
dia, não existia mais” (VERÍSSIMO, 2004, p. 93). Assim igualmente ocorre com o Sacristão simoniano, que ao estabelecer o seu vínculo com a moura vê-se condenado duplamente: pela lei secular da Igreja e pelo feitiço que envolve a própria Teiniaguá. Se a
moura salva o jovem da morte imposta pelos que se intitulam representantes terrenos
do poder de Deus, ela não obtém o mesmo sucesso diante do poder divino em si, o qual
condena ambos à clausura no Jarau. Em um lamento profundo dessa sua sorte, o
Sacristão não é nenhum pouco condescendente com a sua amada: “Fui sentenciado a
morrer pela morte no garrote, que é infame; condenado fui por ter dado passo errado
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com bicho imundo, que era bicho e mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira” (LOPES
NETO, 2006, p. 208).
Nos domínios da alteridade, a simples condição de mulher da Teiniaguá simoniana é decisiva para a sua superação das dificuldades impostas por Anhangá, que
exatamente malogra em seus intentos porque “não tomou tenência que a Teiniaguá era
mulher” (LOPES NETO, 2006, p. 200). Sem dúvida, tem-se aí uma colocação emblemática do feminino como detentor de engenhosidade e poder que mina e subverte o seu
mundo contrário, o dos homens. Portanto, através do pressuposto do “outro”, como
se ela fosse um espelho, a Teiniaguá é o outro do próprio homem, o espaço onde este
reencontra o seu negativo. Sempre é bom lembrar que é ela que atrai o Sacristão para
sua perdição e condenação no Cerro do Jarau, mas que também o salva da “morte pelo
garrote”. Contudo, desse papel contraditório emerge a sua função de parceira do
jovem, com quem ele dará origem à nova raça dos gaúchos. Chiappini (1988, p. 242)
assim sintetiza sua atuação: “[A Teiniaguá é] a mulher que atrai o homem para a danação, cujo brilho do olhar e da voz deslumbra e cega. [...] Mas também é por ela que ele
alcança a imortalidade, se reproduzindo”.
Exatamente assim, Luzia Silva, a Teiniaguá de Santa Fé, é descrita por Erico
Veríssimo ao longo de sua narrativa, uma vez que a mulher sedutora, a estrangeira que
tem origem incerta é a mulher capaz de perverter o homem: Bolívar, culminando com
sua morte, bem como é capaz de imortalizá-lo através do filho que carrega no ventre.
Bolívar não era mais o mesmo. Andava arisco, já não se abria
com a mãe, não dependia mais dela, não lhe pedia conselhos em
nenhum assunto. Vivia enfeitiçado, dominado pela outra mulher. [...] Às vezes durante dias inteiros Luzia se mostrava amável e atenciosa não só com o marido como também com os
outros (VERÍSSIMO, 2004, p. 135).
Luzia Silva Cambará era ardilosa, manipuladora, tinha feitiço no olhar de Teiniaguá. Conseguia tudo que desejava, era encantadora e assim dominava os homens
que caíam de amores por ela. Igualmente à Teiniaguá simoniana, também tinha feitiço
no olhar. Ligia Chiappini (1988) qualifica estes como “Olhos que atraem” (CHIAPPINI,
1988, p. 241). Para a pesquisadora, o olhar desse ser lendário “é o olhar da reciprocidade, magicamente comunicando-se com outros seres” (CHIAPPINI, 1988, p. 235).
Acerca de Luzia Cambará e da Teiniaguá simoniana destaca-se aqui a afirmação
de Flávio Loureiro Chaves: “Quero registrar que a personagem Luzia Cambará foi
decalcada em cima da lenda tal e qual Simões Lopes a redigiu” (CHAVES, 2001, p. 60).
Assim é possível afirmar que a personagem de Erico Veríssimo aproxima-se de forma
bastante evidente da moura de Simõers Lopes Neto, seja por suas qualidades malignas, seja por ser símbolo de alteridade ou mesmo por representar uma ambivalência: a
salvação e imortalização do homem aliadas à sua perdição, como ocorre com Bolívar e
o Sacristão. Evidentemente que, devido à moral ética cristã, ao final do conto de
Simões Lopes Neto, o Sacristão é salvo pelo perdão divino, juntamente com sua amada, a Teiniaguá. Bolívar, no entanto, morre tragicamente em um confronto armado.
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As características associadas á maldade e até mesmo à feitiçaria
não mais abandonaram a personalidade de Luzia, deixando um
rastro de violência e devastação. Sua associação à morte será
restaurada [...] quando ela e o marido visitam Porto Alegre durante a epidemia de cólera. por isso, ao voltarem o sobrado é
colocado em quarentena e Bolívar morre ao tentar rompê-la,
fuzilado pelos capangas do intendente Alvarino Amaral (CHAVES, 2001, p. 62).
É lícito afirmar ainda que a versão utilizada por Erico Veríssimo para a composição de sua Teiniaguá tenha advindo de Simões Lopes Neto, pois, se até o presente
momento, analisando a primeira parte do romance, relatamos apenas suposições em
relação à veracidade do uso da literatura simoniana para a composição de determinados episódios ou personagens da trilogia de Veríssimo, a partir da afirmação de Floriano Cambará, que em “O Arquipélago III” diz:
Sônia me pareceu um misto de ave pernilonga e felino. Agora,
revendo-a com a memória, sinto nela algo de réptil. É a teiniaguá
da lenda da salamanca do Jarau. A lagartixa encantada que desgraçou o sacristão [...]. Há poucos dias reli essa lenda na
versão de Simões Lopes Neto (VERÍSSIMO, 2004, p. 336,
grifo nosso).
Destaque-se aqui o arquétipo de homem e de mulher que Erico Veríssimo faz de
seus personagens, uma vez que os homens sempre são violentos, sendo dominados
por uma ação impulsiva e emotiva, já as mulheres são fortes, com “ótima moral e
elevada dose de estoicismo” (CHAVES, 2001, p. 66). Em Simões Lopes Neto pode-se
observar que os homens não apenas em suas Lendas, mas igualmente em seus Contos
são compulsivos, dominadores, violentos, talvez permitam assim a visualização do
gaúcho mitificado.
A mesma coisa se observa, nesse grande arcabouço literário, que
é O Tempo e o Vento, ambos vão plasmar uma figura do gaúcho.
Em grande parte a construção ideológica foi operada pela sociedade, como também pela intelectualidade. Desse modo, [também] existe uma aproximação das obras de João Simões e de
Erico Veríssimo (CHAVES, 2001, p. 66, grifo do autor).
A versão de Erico Veríssimo para a história de São Sepé também pode nos
remeter a Simões Lopes Neto, pois em suas Lendas do Sul o escritor pelotense faz uma
descrição da morte de Sepé Tiaraju, um valente índio que morreu em combate, defendendo os Sete Povos das Missões, sob o título de “São Sepé”, bem como apresenta
uma cantiga: “O lunar de Sepé”, em homenagem ao guerilheiro. Eis um fragmento do
mesmo, na versão simoniana:
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O lunar de Sepé
Era o rastro procurado
Pelos vassalos dos Reis,
Que o haviam condenado;...
Ficando o povo, vencido...
E seu haver, conquistado!
Então, Sepé, foi erguido
Pela mão do Deus-Senhor,
Que lhe marcara na testa
O sinal do seu penhor!...
O corpo, ficou na terra...
A alma, subiu em flor!
E, subindo para as nuvens,
Mandou aos povos – benção!
Que mandava o Deus-Senhor
Por meio do seu clarão...
E o – lunar – da sua testa
Tomou no céu posição...
(LOPES NETO, 2006, p. 261).
Na primeira parte, “O Continente I”, da trilogia de Veríssimo, o personagem
Pedro vê a alma de Sepé Tiaraju subir aos céus, tornado-se santo protetor dos Sete
Povos Missioneiros. Pedro também faz uma música em homenagem ao novo “santo”, chamada “Lunar de Sepé”. Lê-se em Veríssimo: “O que foi que tocaste, Pedro? O
menino ficou um momento de olhar vidrado, absorto em seus pensamentos, e depois
respondeu: - É uma música que inventei. Chama-se ‘Lunar de Sepé’ ” (VERÍSSIMO,
2004, p. 86). Em outro trecho, Pedro alude à visão que tem de Sepé Tiaraju emergindo
aos céus: “A alma de Sepé subiu ao céu e virou estrela [...]. Deus botou também na
testa da noite um lunar como o de São Sepé” (VERÍSSIMO, 2004, p. 87). Assim,
percebe-se a influência simoniana na composição de “O Continente I e II ” de Erico
Veríssimo.
Outro fator determinante para tal percepção é a referência aos tesouros dos
jesuítas que, segundo o povo, estariam enterrados nos terrenos próximos a região
onde ficavam os Sete Povos das Missões. Na trilogia de Erico Veríssimo, assim como
nas Lendas do Sul de Simões Lopes Neto, encontram-se alusões às possíveis riquezas
dos jesuítas, as quais são apresentadas sob a ótica do mito, onde tais preciosidades
não passariam de mera imaginação das gentes. Nas páginas do volume II de “O Continente”, encontra-se a seguinte assertiva: “Vosmecê vai procurar algum tesouro?
Vosmecê acredita mesmo que há tesouros enterrados nas Missões? [...] – Pode que
sim, pode que não” (VERÍSSIMO, 2004, p. 94). Ou seja, os tesouros fazem parte do
folclore e do imaginário do povo gaúcho que habita aquela determinada região. Já, em
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Simões Lopes Neto, verifica-se a ligação dos tesouros dos jesuítas com a proteção
indígena, não deixando, no entanto, de pertencer ao universo do imagético:
Dentro do mato grosso, mato velho e crescido [...] há uma casa
de pedra branca [...] a casa de Mbororé, índio velho, cacique que
foi, [...] dentro da casa as salas estão lastradas de barras de ouro
e barras de prata. Mbororé era amigo dos santos padres das Sete
Missões, e guardou tudo e espera por ele (LOPES NETO, 2006,
p. 247).
Considerações finais
Assim, as relações intertextuais que se verificaram entre a primeira parte, “O
Continente I e II”, da trilogia O Tempo e o Vento de Erico Veríssimo e as Lendas do Sul
de Simões Lopes Neto, ressaltam a verossimilhança entre ambos os textos, no que
concerne às lendas recontadas pelo escritor de Cruz Alta. Prevalece, assim, um jogo
intertextual, em que Erico Veríssimo apresenta as histórias eternizadas por Simões
Lopes Neto. O que se procurou aqui foi um diálogo entre esses dois textos e entre os
dois escritores, situados em momentos distintos da história sul-rio-grandense.
Abstract
JOÃO SIMÕES LOPES NETO IN THE ERICO VERÍSSIMO’S “CONTINENTE”
Our study intends to present the importance of the southern João Simões Lopes
Neto’s literature to Erico Veríssimo, and for that we are going to use O Tempo e o Vento,
written by Cruz Alta , where in several passages we can find allusions of Lopes Neto’s
work, mainly when Veríssimo turns to the theme of southern legends, as Negrinho do
Pastoreio, Salamanca do Jarau, São Sepé and even the legends about the treasures
of Jesuits, which are described by Simões Lopes Neto in his book Lendas do Sul of
1913. Our aim is, also, to divulge the southern folklore through the work of João
Simões Lopes Neto as well as his importance to Brazilian literature as a whole.
Keywords: João Simões Lopes Neto. Lendas do Sul. Erico Veríssimo. O Tempo e o
Vento.
REFERÊNCIAS
CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto: regionalismo e literatura. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1982.
______. Simões Lopes e Erico Veríssimo: um diálogo inter-textual. In: SEMINÁRIO
DE ESTUDOS SIMONIANOS. 2., 2001, Pelotas. Anais... Pelotas: Editora
Universitária, 2001. p. 65-72.
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CHIAPPINI, Ligia. No entretanto dos tempos: literatura e história em João Simões
Lopes Neto. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos. Lendas do Sul. Edição crítica por
Aldyr Garcia Schlee. Porto Alegre: Instituto Estadual do livro: Unisinos, 2006. v. 1.
VERÍSSIMO, Erico. O Arquipélago I, II e III. In: ______. O tempo e o vento. 3. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.150-335.
______. O Continente I e II. In: ______.O tempo e o vento. 3. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004. p. 21-136.
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