lucere 2010

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lucere 2010
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
CENTRO DE ESTUDOS E INVESTIGAÇÃO CIENTIFICA
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UCAN
ANO 6 – Nº 7
DEZEMBRO DE 2010
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
REGRAS DE APRESENTAÇÃO DOS ARTIGOS
A Revista Académica da Universidade Católica de Angola – LUCERE – tem como foco
essencial a reflexão sobre a realidade social, cultural, histórica e económica de Angola.
Os seus domínios particulares de interesses são:

Pobreza e distribuição do rendimento.

Disparidades regionais internas.

Agricultura, desenvolvimento comunitário e reforma agrária.

Cultura, desenvolvimento e modernidade.

Os aspectos históricos, sociólogos e psicológicos do desenvolvimento.

Antropologia cultural e desenvolvimento.

Modelos de desenvolvimento económico.

Transferência de tecnologia e empreendedorismo.

Integração económica regional.

Industrialização e modelos de competitividade.

Administração, Governação e Transparência.

Economia, recursos naturais, ambiente e desenvolvimento sustentável.

Planeamento e gestão estratégica macro e microeconómica.

Direitos humanos e democracia.

População, urbanização e desequilíbrios demográficos.
A Revista académica LUCERE aceita artigos teóricos, sobretudo se apresentarem uma
abordagem interdisciplinar inovadora. No entanto, a sua prioridade vai para as reflexões
empíricas e para os estudos de casos que tenham repercussões sobre os nossos modelos
de crescimento, governação e interacção social. A LUCERE aceita, de igual modo,
artigos curtos que traduzam experiências ou reflexões pessoais sobre as temáticas
anteriores.
A Revista Académica da UCAN é, predominantemente, uma publicação em português,
mas são aceites artigos em inglês e francês.
A política editorial da Revista Académica LUCERE expressa-se pelos seguintes
parâmetros:
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
Os artigos são avaliados pelo Conselho de Redacção e pelo Conselho Cientifico.

Os artigos devem ser originais, não se aceitando os que já tiverem sido
publicados noutras revistas.

Uma vez aceite o artigo, o seu autor não poderá retirá-lo sem a anuência do
Conselho de Redacção da Revista.

As opiniões expressas pelos autores dos artigos não engajam a Revista.

Os artigos devem ser remetidos em suporte informático e acompanhado dum
exemplar em papel.

Os artigos devem ter no mínimo 15 páginas e no máximo 25 páginas, em
formato A4, Times -New Roman, tamanho 12, sem espaços entre os parágrafos
e com um espaço para dentro nos parágrafos.

Nesta dimensão devem caber um resumo do artigo, uma conclusão e as
referências bibliográficas.

Os autores dos artigos devem identificar – se no inicio do mesmo com o nome,
profissão e eventuais referências académicas.

As notas de rodapé devem ser indicadas em cada página e devem ser numeradas
em série.

As citações devem ser registadas em itálico.

As referências bibliográficas devem ser feitas de acordo com a indicação autor
data (por exemplo, Dupont 1998,p.10-14).
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MENSAGEM DO 2º. SÍNODO DOS BISPOS E A REINVENÇÃO ÁFRICA
Damião A. Franklin
Reitor da UCAN
I – PRELIMINARES
É um tema aliciante, porque muito actual e oportuno, sobretudo neste ano em
que vários Estados Africanos celebram os seus cinquenta anos de Independência
política.
Actual, porque vários povos africanos e por isso vários cidadãos aguardavam a
expectativa da independência política com a panaceia para as duas vidas e com andar do
tempo veio a frustração senão foi total, pelo menos, em parte, atingiu não uma pequena
franja das respectivas sociedades.
Oportuno, porque uma das razões do segundo Sínodo era para desbravar o
momentoso tema: “África é mas atingida por estes males (cfr.n.4 da MENSAGEM). E
rica em recursos humanos e naturais, mas grande parte do nosso povo continua a
arrastar-se no meio da pobreza e de misérias, de guerras e conflitos, de crises e
desordens. Estas raramente são consequências de desastres naturais, mas devem-se em
grande parte a decisões e acções humanas levadas a cabo por pessoas que não se
interessam pelo bem comum e muitas vezes numa trágica e criminosa cumplicidade de
dirigentes locais com interesses estrangeiros.”
Todavia, não é minha intenção esgotar o assunto. Pretendo apresentar algumas
pinceladas que ajudem a conscientizar os próprios africanos para que em tantas
oportunidades aprendamos a ser protagonistas do nosso presente já vivido e o presente
ainda não vivido, o futuro
Assim, começarei por delinear alguns aspectos METODOLÓGICOS para uma
leitura apropriada dos textos do Magistério da Igreja, seguindo depois a REFLEXÃO
TEOLÓGICA, segundo São Paulo sobre Reconciliação. Paz e Justiça (cfr. Mensagem
do Sínodo) e finalmente, uma espécie de PLANO ESTRATÉGICO de ACÇÃO que a
Mensagem sugere.
II – ACENO METODOLÓGICO
Com que binóculos devemos ler a MENSAGEM? Porque esta metodologia?
Na Igreja Católica, vige bastante, a hermenêutica de continuidade ou reforma e a
hermenêutica da descontinuidade ou ruptura. Por exemplo, foi notória a aplicação desde
princípio no último Congresso Teológico sobre o Sacerdócio, durante o Ano
SACERDOTAL, ano passado.
Esta hermenêutica foi recordada por BENTO XVI no seu primeiro discurso á
Cúria Romana, na apresentação dos votos de Natal, aos 22.12.05.
Na verdade não se põe em causa a continuidade dos princípios mas pode avançar para
uma certa descontinuidade de certas práticas históricas destes princípios, na esteira do
pronunciamento de João XXIII.
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Na abertura do Concílio VATICANO II, aos 11.10.1962 e do discurso de
encerramento de Paulo VI, aos 7.12.1965.
Por conseguinte, o “depositum Fidei” pode e deve ser salvaguardado, todavia o
modo de enuncia-lo pode ser contestado pelos desafios do tempo e do lugar. Os cristãos
devem estar prontos para aquele que as razões da respectiva esperança (cfr. 1Pe.3,15) e
segundo Bento XVI, é “exactamente neste conjunto de continuidade e diversos níveis
que consiste a natureza da verdadeira reforma.
Neste prisma, a MENSAGEM não pode fugir ao mesmo princípio de
continuidade e descontinuidade, como supra mencionado.
III – Assim, quando a MENSAGEM (II parte) aborda a Reconciliação, a Paz e a Justiça
não foge dos parâmetros da Fontes habituais. Senão vejamos:
O múnus episcopal leva-nos a considerar tudo á luz da fé”. Nº 7, recordando
ainda o protagonismo SECAM – Cristo nossa Paz – 2000.
Toda a iniciativa de reconciliação vem de deus, foi amiúde recordado na
Assembleia Plenária (cfr. 2 Cor.5,17 – 20). De igual modo a justiça também é obra de
Deus, por meio da sua graça justificadora em Cristo……
Por outro lado, continua a MENSAGEM-n.8, partindo de S. Paulo:
Deus nos confiou a mensagem da Reconciliação e nos escolheu como
embaixadores de Cristo, exortando por nosso intermédio.
A Igreja em África, quer como a Família de Deus, quer individualmente a nível
dos seus membros crentes, tem o dever de ser instrumento de paz e de reconciliação,
segundo o coração de Cristo, nossa paz e reconciliação, desde que ela própria se
reconcilie com Deus. Ás suas estratégias neste campo, devem ultrapassar as do mundo,
indo para o transcendente, para o mais além” nós vos exortamos em nome de Cristo
reconcilia-vos com Deus “ (2Cor.20), isto é, apelamos a todos que se deixem reconciliar
com Deus. Só assim poderá abrir caminho a autentica reconciliação entre as pessoas,
isto é, sem esta base, dificilmente se combaterá o círculo vicioso da ofensa, das
vinganças, à retaliação e para o efeito a perdão é crucial.
Na verdade, se nós não antepusermos a água do Baptismo ao sangue humano,
tribal, radical, cultural….estas palavras não passarão de” flatus vocis”. “Nemo dat quod
non habet”, já diziam os antigos ….
Como consequência desta autoconsciência, a Igreja deve ser sal e luz do mundo,
para as realidades temporais, socio-económico-culturais-politicas.
IV – PLANO ESTRATEGICO DA IGREJA SEGUNDO A MENSAGEM
A causa da miséria e pobreza, segundo a mensagem, encontra-se em grande nas
decisões e acções humanas com deficit pelo bem comum, pelo desrespeito pela pessoa
humana concreta, pelo dever de solidariedade e por vezes numa trágica e criminosa
cumplicidade de dirigente mancomunados a interesses estrangeiros, favorecendo o
espectro da corrupção e outros desmandos…. (cfr. Nos.5,36-37).
A terapia não pode ser a do desespero (n.6). Apelam a esperança e encorajam as
iniciativas positivas ….”Por isso, apelamos a todos e a cada um para darem as mão se
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enfrentarem os desafios da reconciliação, da justiça e paz em África. São muitos os que
sofrem e morrem, não há tempo a perder (n.6). A África não está abandonada ao
fracasso. O nosso destino continua a estar nas nossas mãos… (n.42)
Tratai África com respeito, com dignidade (n.32), apelando as grandes potências
em consonância com a Encíclica Caritas in Veritate…
Os bispos louvam os esforços em prol da emancipação económica da África com
existência de um governo…infelizmente aí reside o ponto crítico. Continuam a esperar
por uma melhoria geral de Governação geral em África, saudando o caminho de uma
autêntica Democracia. (35).
A própria Igreja é convidada a arregaçar as mangas. Tanto a igreja Universal
(nn.9-13), como a African (14-28). Como não implicar a comunidade Internacional (2933), o próprio Continente Africano (34-37), sem descurar a Colaboração ecuménica (3841).
A Igreja Universal, a MENSAGEM a solicitude pastoral do Magistério
Pontifício, em questões socio-políticas e sobretudo com o vademecum e recurso
material, o compêndio da Doutrina social da Igreja, vivamente recomendável a todos os
nossos fieis leigos, especialmente aqueles que desempenham altos cargos nas nossas
comunidades (cfr.n.9).
Agradecendo a amizade de Sumo Pontífice pela África e africanos, a Mensagem
agradece igualmente a FUNDAÇÃO SAHEL, combatendo as de certificações do Sahel,
bem como as Representações Pontifícias em 50 dos 53 Países africanos (cfr.n.10).
Não faltaram palavras de apreço pela solidariedade dos responsáveis das igrejas
irmãs além da costa africana, presentes na aula sinodal, bem como por tudo quanto
possam fazer dos respectivos países pelo bem da África. Para isso, seja fortalecida a
relação actualmente entre o Conselho das Conferencias Episcopais de Europa (CCEE) e
o SECAM e as relações fraternas com Igrejas das Américas (cfr.n.11).
Questões atinentes à Emigração merecem atenção, como forma de partilha de
dons, levando a interessar-se pelos descendentes de africanos que vivem noutros
continentes, especialmente, nas Américas (cfr.12).
Como não agradecer a actividade missionaria “ad gentes” par a África de tantos
missionários, religiosos e leigos? Não faltaram e não faltam mártires (cfr.n.13).
Com efeito, a Igreja em África, existente e actuante desde os seus primórdios,
como em Egipto, Etiópia, cuja colaboração com as Igrejas subsaarianas deve ser
salientada, através de envio de sacerdotes Fidei Donum e doutros missionários.
(cfr.n14).
A Igreja em África recepciona o apelo da aula sinodal para uma colaboração
Sul-sul, dando-nos as mãos, como trocando impressões (cfr.16).
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Outro ponto estratégico da acção é interesse e revitalização de SECAM,
instrumento de pastoral orgânica, bem como o COSMAM (Confederação dos
Superiores Maiores da África e Madagáscar) – cfr.n.17.
Os próprios Bispos se comprometem a exercitar a colegial idade efectiva e
afectiva, a comunhão nas suas conferências episcopais, visando também esta
colaboração a nível dos mass média (cfr.n.18.), sem descurar a colaboração ecuménica,
inclusive com os muçulmanos (cfr.38-41)” servatis servandis”
Na verdade, o múnus episcopal seria incompleto se na Agenda prioritária
faltasse uma atenção especial a reconciliação, paz e justiça, o que implica interessar-se
pelo combate à pobreza, o maior obstáculo no caminho da paz e reconciliação. Daí o
papel da formação, mobilizando os seus fieis, de acordo com a sua missão, de os
implicar na planificação, formulação, implementação, avaliação da justiça e da paz.
Porque não implementar também o micro-credito? (cfr.n.19).
Aos sacerdotes, religiosos, pede-se um engajamento “tous azimuts” nos planos
de reconciliação, justiça, e paz, sempre em comunhão, envolvendo todas as pessoas e
sectores da paróquia: diáconos, religiosos, catequistas, leigos, homens e os jovens
(cfr.n.20). Os leigos organizados em pequenas comunidades cristãs, na esteira da
Ecclesia in Africa (n.93). Aos leigos se pede o espírito de oração, sim, mas formação
religiosa sólida, também, atenção especial às bases da Igreja, como Sagrada Escritura e
o CATECISMO da Igreja Católica, o Compendio da Doutrina Social para o tema
específico do Sínodo. Não se descure o papel das Universidades CATÓLICAS e
Instituições similares, para a formação de um laicado católico bem formado,
especialmente de intelectuais capazes de enfrentarem os desafios da hora presente
(cfr.nº.22).
Um protagonismo especial pede aos homens em cargos públicos, como u
exercício de apostolado para o bem comum, deixando de escandalizar o povo e denegrir
a imagem da igreja.
Citam o exemplo do Presidente Julius Nyerere, cujo processo de beatificação “é
um catalisador para muitos dos nossos cristãos na vida pública (cfr.23).
Dado, porém, mas não concedido que assim não fosse, o papel das Famílias
Cristãs é inadiável; seja na defesa da identidade da família cristã e perseverança nos
seus ideias, como também na vigilância em relação a cultura pós – moderna com os seus
ideais virulentos sobre a família…… apelam aos governos o seu engajamento neste
campo, de fedendo s família, cuja procriação responsável seja respeitada e ajudada ….
(cfr.24-27)
As epidemias com SIDA podem ser erradicadas pela via que a igreja apregoa,
contrariamente aos métodos reducionistas dos profilácticos (cfr.31). Apelam às grandes
potências, às multinacionais, no campo de ajudas, a serem mais magnânimos e não a
olharem aos seus interesses de lucro fácil e por vezes fomentando desordens bélicas
para melhor escoamento do material letal. Afinal, a pobreza assim a aumentar (cfr.32)
Como se pode depreender todas estas boas intenções pouco servirão se o próprio
africano não despertar, não assumir, em primeira pessoa, o protagonismo e considerarse o actor da sua felicidade, contra a síndroma de dependências (cfr.Instrumentum
Laboris nº. 66).
Apesar de alguns passos, como a integração regional a nível da União Africana,
o Nepad …há uma longa travessia a empreender …(cfr.nºs.34-35). Este Sínodo
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proclama-o claramente, alto e bom som. É tempo de mudar de atitudes para o bem da
geração presente e futuras…
Á GUISA CONCLUSÃO, podemos inferir que a Mensagem do Sínodo espelha
a dinâmica da continuidade da descontinuidade, na medida em que muitas das
afirmações feitas já fazem parte do património antropoteológico do Magistério da
Igreja, acrescentando o ensinamento social de Bento XVI, nas suas Encíclicas IN SPE
SALVI e CARITAS IN VERITATE.
Com o efeito, no centro de tudo está diálogo entre homem africano e seu
CRIADOR, de cuja vida deseja participar e par tal, se impõe uma mística de
centralidade a pessoa humana, como principio, meio e fim de tudo, seja social, político,
económico, cultural, neste mundo globalizado….
Luanda, 2 de Novembro de 2010.
Referências
Vaticano II, Secretariado Nacional de Apostolado de Oração, Braga 1967.
CEAST, Mensagem Pastoral – O nosso viver e agir em Cristo – Dimensão Social, 20 de
Novembro de 2009.
Maurice Cheza, Le Synode Africain, Karthala, Paris 1996.
Sachs Jeffrey, The End of Poverty, Penguin Books 2006
Tati R. Crise Africana e processo de democratização em África, Academia Alfonsiana,
Roma 1998.
Imbamba J. Manuel, Agenda Social: As políticas tendentes à valorização da Pessoa
Humana, in Revista Lucere 2004 (UCAN), pp.83-93.
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Estratégias comerciais e hegemonias resultantes
na economia mundial contemporânea
Julien David Zanzala
(PhD, Docente da UniPiaget)
[email protected]
Resumo: O presente artigo pretende compreender as estratégias comerciais desenvolvidas pelos
protagonistas do comércio mundial e as hegemonias resultantes, apesar das tentativas da OMC de
submeter todas as economias às exigências do comércio livre, para um comércio internacional mais
equitativo. Fundamentou-se nas mais recentes análises da economia internacional, geografia
económica, integração regional e teoria do comércio internacional. Os resultados da análise apontam
um ressurgimento do proteccionismo, contrapondo-se aos princípios da globalização, uma aposta nas
alianças estratégicas e na regionalização e uma hegemonia das principais economias do mundo, vastos
mercados solventes com um forte avanço tecnológico nos sectores da economia de ponta.
Palavras-chave: Economia mundial, Estratégias comerciais, Hegemonias comerciais.
Introdução
As estratégias comerciais observadas na economia mundial contemporânea, de acordo
com De Medeiros (1998), surgem para diminuir os obstáculos intra-regionais à circulação de
mercadorias, de serviços, de capitais e de pessoas; estimular os investimentos e as trocas com
países terceiros; perturbar os oligopólios existentes, mudando as regras do jogo na luta pela
vantagem competitiva; reforçar a colectividade e a soberania dos participantes face ao resto
do mundo; introduzir-se no mercado internacional, obtendo uma quota crítica; aceder aos
canais privilegiados, na linha da segurança concedida pelos acordos comerciais; ultrapassar as
decepções e dificuldades encontradas a nível de conversações comerciais multilaterais;
amortecer as tensões políticas e forjar uma cooperação política através do elo comercial;
igualizar as vantagens do jogo, entre os principais parceiros comerciais; diminuir a supremacia
económica de um parceiro comercial grande e poderoso; lançar a cooperação multilateral.
Segundo o mesmo autor, os acontecimentos dos anos 90 que alteraram a estrutura
política e económica do planeta, nomeadamente com o desaparecimento da União Soviética e
surgimento de novos países que se pretendem viáveis, redefiniram novos espaços. O
observador das relações internacionais apercebe-se de uma dinâmica diferente, assente numa
extrema mobilidade internacional de factores, com rendimentos de escala crescentes e
inseridos em mercados de concorrência imperfeita.
Tem sido habitual dividir geopoliticamente o espaço mundial em países desenvolvidos
e em desenvolvimento. Várias são as diferenças entre os dois grupos. Enquanto os indicadores
económicos e sociais do primeiro grupo são considerados equilibrados os do segundo grupo
piscam vermelho ou são alarmantes. A eficiência das instituições, a distribuição da renda, o
nível de renda e o tamanho do mercado interno, a capacidade tecnológica, o padrão de
internacionalização da economia, a estrutura financeira e outras tantas características podem
ser citadas entre as diferenças. Este facto leva a que muitos indicadores sejam artificialmente
sobreavaliados e de difícil comparação. No entanto nenhum espaço económico fica imune a
perturbações originárias de outras áreas, ainda que distantes. Daí as constantes
recomposições intra-regional, inter-regional e transnacional, com base nas políticas de
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cooperação. Daí também as estratégias comerciais dos governos para favorecer o
desenvolvimento de elos económicos internacionais com os países geograficamente vizinhos.
A questão que se debate consiste em indagar se estes blocos regionais prejudicam ou
não o sistema comercial multilateral.
Os objectivos gerais desta comunicação são caracterizar essas estratégias comerciais e
identificar as suas principais consequências, que são as hegemonias constituídas no espaço
económico mundial. Nos objectivos específicos procura-se apresentar uma síntese do estado
actual dos conhecimentos a respeito das estratégias comerciais dos espaços económicos mais
relevantes; enquadrar as mesmas estratégias na análise económica de formação de blocos
regionais ou de busca de vantagens comparativas; comparar os indicadores básicos dos
espaços económicos mais relevantes para compreender melhor as hegemonias constituídas na
economia mundial contemporânea.
Quadro teórico da análise
O arrimo teórico da análise económica das estratégias comerciais e de hegemonias
constituídas na economia mundial contemporânea está presente num conjunto de disciplinas
tais como a economia internacional e integração regional, a teoria estratégica do comércio
internacional, a geografia económica e a teoria da localização que leva ao paradigma das
deslocações espaciais da actividade económica, na permanente busca de vantagens
comparativas, sempre transitórias. As referidas estratégias incidem sobre a constituição de
conjuntos regionais quando procedem de uma vontade política dos governos no sentido de
favorecer o desenvolvimento de elos económicos internacionais com países geograficamente
vizinhos, ou transnacionais, ligadas à ideia da internacionalização generalizada dos mercados
adentro da política livre-cambista. Henri Bourguinat (apud De Medeiros) invoca 3 séries de
razões explicativas dessas estratégias. O bloco regional seria, para os pequenos países, uma via
de introduzir-se no mercado internacional, através da quota crítica; seria uma via de acesso
aos canais privilegiados do “vizinho”, na linha da segurança concedida pelos acordos
comerciais; seria, para os grandes países, uma via de ultrapassar as decepções e dificuldades
encontradas a nível de conversações comerciais multilaterais.
As disputas no comércio mundial
O comércio internacional, principal fonte de divisas nas economias modernas,
aparenta-se com frequência, na opinião de Samuelson e Nordhaus (2005), com a perspectiva
de um conflito darwiniano de ganho nulo, pela partilha de mercados, de lucros e de recursos
vitais. O multilateralismo mundial, cujo símbolo é a Organização Mundial do Comércio, não
consegue obstar à aplicação de medidas de salvaguarda, em particular na agricultura ou no
sector têxtil. Desde modo, apesar das perspectivas abertas pelas negociações multilaterais, a
chave do desenvolvimento reside na capacidade dos diferentes países para desenvolver os
seus atractivos e, acima de tudo, para oferecer, de preferência em espaços económicos mais
alargados, um potencial de mercado capaz de atrair os investidores. Alves da Rocha (2008)
nota, dentre as tendências observadas ao nível do comércio mundial, que ao mesmo tempo
que se desenvolve o comércio entre países com níveis semelhantes de desenvolvimento,
assiste-se, também, a uma elevada concentração do comércio entre países industrializados e
nos produtos transformados, em desfavor das trocas com os países subdesenvolvidos. Assim,
os mais importantes protagonistas encontram-se influenciados, em grande medida, por
disputas que são muito difíceis de resolver. Por exemplo, muitas empresas ou indústrias
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americanas têm estado envolvidas numa série de disputas com as japonesas. Entre outras
coisas, uns acusam os outros de não autorizarem o acesso dos mercados nacionais e fazer
dumping, isto é, vender a um preço inferior até talvez abaixo do custo. O que leva uns a
tomarem certos tipos de acção de retaliação contra outros países tais como suspender ou
retirar concessões comerciais, impor tarifas ou outras restrições às importações dos países
envolvidos.
O recente ressurgimento do proteccionismo
Nas relações comerciais contemporâneas, observa Alves da Rocha (Rocha idem), o livre
comércio é mais excepção do que regra, tanto nos países subdesenvolvidos, como nas
economias industrializadas. Normalmente, os governos têm tendência a intervir sobre o grau
de abertura e liberdade de comércio com o estrangeiro com o objectivo de favorecer o
produtor nacional, face a concorrentes mais competitivos e eficientes. Este processo é
denominado protecção. Os economistas têm tendência para argumentar que o livre comércio
é a política que melhor serve os interesses da sociedade como um todo. Assim, na sua maioria
aplaudiram a descida das tarifas na década de 60 e no início da década de 70 e olharam com
desaprovação a onda de proteccionismo crescente durante a década de 80. À medida que a
Europa Ocidental e o Japão se iam tornando concorrentes mais fortes, muitas indústrias
americanas começaram a fazer lobby no sentido de introduzir quotas e tarifas mais altas e de
exigir a protecção do governo federal em relação às importações.
De acordo com Alves da Rocha (idem), o proteccionismo é ainda uma realidade com a
argumentação básica em sua defesa que radica na verificação de falhas no mercado que
justificam a intervenção do Estado e da sua política de regulação. Segundo o mesmo autor, os
seus defensores advogam o emprego duma política comercial estratégica como medida de
protecção à indústria nascente, de redução do desemprego, da substituição das importações e
da diminuição dos salários. Existem cinco (5) grandes formas de proteccionismo que importa
conhecer: o proteccionismo ofensivo; o proteccionismo defensivo; o proteccionismo
orçamental; o proteccionismo para aproveitamento de recursos e o proteccionismo natural.
Pese embora o GATT (General Agreement on Tarif and Trade) e a Organização Mundial
do Comércio (OMC) terem encetados esforços de liberalização, os obstáculos tarifários à livre
circulação de mercadorias é uma evidência. A protecção pode dar-se por meio de diversos
instrumentos de intervenção pública sobre o comércio exterior, no seu conjunto denominados
de política comercial. As formas de protecção habitualmente utilizadas são: as quotas de
importação; os controlos cambiais (restrições de pagamentos); a proibição de importações; o
monopólio estatal; as leis de compra de produtos nacionais; o depósito prévio à importação e
as barreiras não tarifárias.
Durante a segunda metade dos anos 80, os japoneses efectuaram grandes
investimentos além-fronteiras e não deixaram de se manter bastante fechados aos
investimentos estrangeiros. As empresas japonesas, entre 1986 e 1991, canalizaram 310 mil
milhões de dólares americanos de investimentos para os Estados Unidos, 56 para a Europa, 47
para a Ásia e 40 para América Latina. Simultaneamente, os investimentos directos estrangeiros
no Japão não passaram dos 18 mil milhões de dólares.
As alianças estratégicas
Apesar do seu poderio político, económico e militar os mais importantes protagonistas
nem sempre podem ditar leis ao resto do mundo. Porque, na verdade, eles têm uma influência
extraordinariamente reduzida sobre as políticas económicas dos outros países. Samuelson e
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Nordhaus (idem) afirmam que uma observação minuciosa revela que os países na segunda
metade do século XX abandonaram a luta encarniçada e criaram instituições que servem a
causa comum do crescimento e da justiça, na arena internacional. Assim, os blocos regionais
para facilitar o trânsito de mercadoria, serviços e capitais são hoje em número considerável. A
partir dos anos 90, foram vários os acordos assinados ou reactivados. Mesmos os países em
desenvolvimento denotam um interesse crescente pela constituição de blocos regionais, pois
estão perfeitamente cientes do risco de exclusão que paira sobre eles, se não reforçarem a sua
atractividade enquanto mercados (Desgardins e Lemaire;1997). A constituição de conjuntos
regionais pode tomar a forma de zonas de comércio livre, uniões aduaneiras ou outro
qualquer acordo de comércio preferencial. Na base da institucionalização da regionalização,
estão forças políticas enquadradas nos poderes do estado, tendo em vista diminuir obstáculos
intra-regionais à circulação de mercadorias, de serviços, de capitais e de pessoas. No plano de
facto, a regionalização é encarada como um fenómeno económico resultante das mesmas
forças microeconómicas que aparecem na globalização, com o objectivo de impelir a área na
via do crescimento, estimulando os investimentos e as trocas com países terceiros. A
regionalização visa reforçar a colectividade e a soberania dos participantes face ao resto do
mundo. Com a unificação da Europa, as empresas estão ocupando um mercado mais amplo,
fazendo até fusões com empresas de outros países deste bloco. E com essa unificação,
também o conceito de cidadania mudou, já que um belga pode fazer um seguro na Itália, um
alemão pode comprar um carro inglês do mesmo preço que é praticado neste país e um
espanhol pode abrir a filial de sua firma na Holanda. Um porém nesta unificação é que os
países que a compôem, devem dar prioridade aos produtos que são fabricados dentro da
união, como é o caso da Grã-Bretanha que deixou de comprar lã da Austrália e Nova Zelândia
para dar este direito aos italianos e dinamarqueses, mesmo se a preços mais elevados.
Com Timbergen, a Teoria da Integração Económica Internacional procura equacionar
as maiores vantagens do agrupamento, as quais se podem sintetizar da seguinte maneira:
- Aumentos de produção decorrentes da divisão internacional do trabalho e da
especialização internacional, função das vantagens compradas;
- Aumentos de produção face ao aproveitamento das economias de escala;
- Melhoria das razões de troca da área face a países terceiros;
- Mudanças forçadas na eficiência, geradas pela pressão concorrencial;
- Mudanças induzidas pela integração e decorrentes de avanços tecnológicos,
afluxo de capitais e diferentes velocidades de circulação de factores.
Em suma, os mercados regionais estão melhor integrados, sobretudo entre países
industrializados ou em vias de industrialização, dando, contudo, origem a um certo número de
avanços que despertam o interesse da maior parte dos países do mundo. As áreas mais
atrasadas podem receber apoio por parte dos outros integrantes para que haja
desenvolvimento no espaço económico.
Evidências empíricas das hegemonias resultantes das estratégias
É útil estabelecer a comparação de situações a fim de visualizar, como síntese, as
tendências que forjaram os novos espaços económicos, institucionalizados ou não, sob o pano
de fundo da globalização. No quadro a seguir, é perceptível a tendência de maior relevo nas
trocas intra-zonas. Mais precisamente, existem espaços económicos que dominam e efectuam
cada vez mais trocas internas, Europa (72,8%), Ásia (50,1%) e América do Norte (49,8%), em
2009. O comércio europeu, asiático e norte-americano com África, Médio Oriente e CEI é
muito reduzido.
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Quadro nº 1: Origem e destino de produtos do comércio mundial em 2009
Destino
Origem de América do Norte
América Central
Europa
CEI
África
produtos
e do Sul
América do 49,8
8,1
18,1
0,8
1,7
Norte
América
28,2
26,5
20,2
1,5
2,8
Central e do
Sul
Europa
7,4
1,5
72,8
3,7
2,9
CEI
5,1
1,4
57,7
19,2
1,5
África
21,0
3,3
39,1
0,3
9,6
Médio
11,4
0,7
12,3
0,7
3,6
Oriente
Ásia
17,8
2,9
18,4
2,5
2,8
Fonte: World Trade Developments (www.wto.org/english/res_e/statis_e/its2009_e/section1_e/its0)
Médio Oriente
Ásia
3,0
18,4
2,0
16,8
2,5
3,6
2,5
12,0
7,5
10,9
20,4
55,7
4,5
50,1
Como foi dito, essa regionalização observada é encarada como um fenómeno
económico que visa diminuir os obstáculos intra-regionais à circulação de mercadorias, de
serviços, de capitais e de pessoas, reforçar a colectividade e a soberania dos participantes face
ao resto do mundo, e impelir a área na via do crescimento, estimulando os investimentos e as
trocas com países terceiros. Para perceber melhor como o comércio mundial é desequilibrado
apresenta-se os dois quadros seguintes.
Quadro nº 2: Evolução das Exportações mundiais de mercadorias por regiões
1948
1953
1963
1973
1983
1993
América do 28,1%
24,8%
19,9%
17,3%
16,8%
18,0%
Norte
América do 11,3%
9,7%
6,4%
4,3%
4,4%
3,0%
Sul
e
Central
Europa
35,1%
39,4%
47,8%
50,9%
43,5%
45,4%
África
7,3%
6,5%
5,7%
4,8%
4,5%
2,5%
Médio
2,0%
2,7%
3,2%
4,1%
6,8%
3,5%
Oriente
Ásia
14,0%
13,4%
12,5%
14,9%
19,1%
26,1%
Fonte: World Trade Developments (www.wto.org/english/res_e/statis_e/its2009_e/section1_e/its0)
2003
15,8%
2008
13,0%
3,0%
3,8%
45,9%
2,4%
4,1%
41,0%
3,5%
6,5%
26,2%
27,7%
Quadro nº 3: Evolução das Importações mundiais de mercadorias por regiões
1948
1953
1963
1973
1983
1993
América do 18,5
20,5
16,1
17,2
18,5
21,4
Norte
América do 10,4
8,3
6,0
4,4
3,8
3,3
Sul
e
Central
Europa
45,3
43,7
52,0
53,3
44,2
44,6
África
8,1
7,0
5,2
3,9
4,6
2,6
Médio
1,8
2,1
2,3
2,7
6,2
3,3
Oriente
Ásia
13,9
15,1
14,1
14,9
18,5
23,6
Fonte: World Trade Developments (www.wto.org/english/res_e/statis_e/its2009_e/section1_e/its0)
2003
22,5
2008
18,1
2,5
3,7
45,0
2,1
2,7
42,3
2,9
3,6
23,5
26,4
Os quadros acima revelam que as trocas comerciais põem os espaços económicos
numa disputa gladiatória assimétrica. Os principais importadores, a Europa e a Ásia, são os
principais exportadores, apesar da tendência de África e América do Sul e Central recuperar,
nos últimos anos, um pouco dos prejuízos registados nos anos anteriores.
O desequilíbrio entre o poder económico e financeiro dos espaços económicos
dominantes e o resto do mundo é enorme. Como os vencedores exploraram este desequilíbrio
é uma questão essencial bastante discutida nas cimeiras. O poder de comercialização que
13
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
estes têm leva os países exteriores a esses espaços a uma situação difícil. Surgem assim outros
blocos comerciais de dimensões mais reduzidas, que apresentam um comércio interno em
crescimento. Este jogo prejudica realmente a supressão de barreiras ao comércio mundial.
Para terminar, é correcto lembrar com o Dr. Kevin Watkins da Oxfam que
“tradicionalmente, o comércio internacional é visto como uma actividade exercida entre
nações. Na realidade, os fluxos de comércio são dominados pelas poderosas empresas
localizadas esmagadoramente na Europa Ocidental, na América do Norte e no Japão”. A
concentração assistida do comércio a nível mundial constitui uma oportunidade para essas
poderosas empresas conservarem bases regionais internas enquanto continuam a expansão a
nível global. Assim a nova prosperidade global preconizada torna-se uma realidade para uma
esfera muito limitada da economia mundial.
Com esta reflexão, tornam-se evidentes os limites funcionais das relações económicas
e financeiras internacionais tais como preconizadas nos manuais de Economia e ao mesmo
tempo das instituições reguladoras dessas relações. No entanto permanece o debate entre os
advogados de um comércio livre, impulsionador da actividade económica e criador de riqueza
entre as nações e os oponentes que alegam ter sido um factor de crescimento de problemas
que o mundo menos precisa: concorrência implacável e interminável, ameaças ao ambiente,
propagação desigual do desemprego, crescente poder dos oligopólios transnacionais e
alargamento das diferenças entre ricos e pobres, tanto dentro de cada sociedade, como entre
as várias sociedades.
Referências
De Medeiros, E.R. (1998). Blocos Regionais de integração económica no mundo. Instituto Superior de
Ciências Sociais e Políticas. Lisboa.
Lang, T; Hines, C. (1994). O novo proteccionismo. Protegendo o futuro contra o comércio livre.
Instituto Piaget.
Rocha, M.J.A (2008). Introdução à economia internacional e integração regional. Universidade Católica
de Angola. CEIC. Faculdade de Economia e Gestão.
Samuelson, P.A; Nordhaus, W.D. (2005). Macroeconomia. 18ª Edição. McGrawHill, Madrid.
Desgardins, B; Lemaire, J.P. (1997). Desenvolvimento internacional da empresa. O novo ambiente
internacional. Instituto Piaget.
World Trade Developments (www.wto.org/english/res_e/statis_e/its2009_e/section1_e/its0).
14
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
MODUCAN, a policy oriented macro-economic model for Angola
Jan Isaksen and Line Skaldebø (The Chr Michelsen Institute, CMI, Norway)
Alves da Rocha and Milton Reis (Centro de Estudos e Investigação Cientifica, CEIC, Angola
1. Introduction
Two principal features of a macroeconomic model are that it provides a
statistical description of a country’s economy based on defined national accounts data
and that it contains accounting identities, technical and behavioural equations which
when combined with exogenous (determined outside the model) variables may be used
to project endogenous (determined inside the model) variables like GDP, inflation,
employment etc.
It is an important feature of model building that the work that goes into the
model imposes discipline on economic analysts and policymakers and offers a
systematic opportunity for learning about the economy in ways that encourages realism
in policy making. The necessary work with data and mathematics needed for the
building process stimulates capacity building in economic policy institutions. The
intensive use of national accounts, on which macroeconomic models are based, leads to
transparency in economic policy and contributes to better overall governance.
In Angola, economic modelling is only in its beginning stages. As far as we are aware
the only model with a broad coverage is the MODANG used for a number of years in
the Ministry of Planning and the more recent model of the petroleum sector used by the
Ministry of Finance. Modelling has until recently not taken place in universities or
other research institutions in Angola.
This brief article gives an overview of the efforts to establish a macro economic
model for Angola that is now underway at CEIC-UCAN. After a brief review of various
types of macroeconomic models in Ch. 2, we point to some modeling experiences on
the African continent and elsewhere (Ch. 3). Ch. 4 describes important features around
the start of the CEIC-CMI cooperation and the idea of a model. Ch. 5 dwells at some
length on the definition of desired characteristics of the model to be applied to Angola
and Ch. 6 then describes the principal features of a Mundell-Fleming type of model. We
end with a short review of the ongoing work and in Ch. 8 a summary of what practical
advantages one might expect to draw from the construction and use of of the model.
Chapters 1 to 3 of the article draw heavily on a study of macro modeling in Africa by D.
Årnesi.
2. Types of macroeconomic models
For models used in Africa one may distinguish between two main types. Those
that focus on Short and Medium term Stabilization and those dealing with Long term
Growth and Poverty Reduction. Each of these may be classified into sub categories. For
short and medium purposes key types are the macro-econometric IS-LM, based on
established (Keynesian) macroeconomic theory. Such models deal with the effect of
short/medium term demand in the economy and are mainly used for guiding fiscal and
monetary policy as well as certain other features of public sector policy. Also with a
15
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
short term focus the IMF Financial programming models link targets for growth and
inflation with the size of public deficit. Such models are often used as the basis for
dialogue with IMF on fiscal and monetary policies
For longer term concerns and a wide variety of “what-if” analyses as e.g.
structural change issues Computable General Equilibrium (CGE) models may be used.
Because of their extremely high data requirements they are not widespread in use in
Africa. Also addressing longer term concerns are the World Bank RMSM-type models
that has been used to calculate the level of investment, imports and external finance
needed to achieve a targeted GDP growth rate. It has been found helpful for guiding the
assessment of finance requirement, loans and grant aid. The data requirement is
substantial but as used by the World Bank this type of model is often based on “similar
countries’” data and coefficients as local data are often not available.
3. Macroeconomic models elsewhere
A number of theoretical models for various African countries and for Africa in
general have been constructed by academics. Such frameworks tend to be reported on in
academic journals or may be found in libraries of doctoral theses. The type of model we
are discussing here is actually used for policy analysis by the authorities or policy
institutes in various countries and are much more difficult to find information about.
The below information is based on Årnes, 2006 and our own experience.
Angola's macroeconomic model resides in theMinistery of Planning. It is a
macro consistency model with some hundred equations and provides the Angolan
government with macroeconomic projections of GDP (global and sectoral level) for the
medium term.
Zambia has been constructing a model dealing with public financial
management, budgeting and economic policy. The model will aim at improving policy
planning and “translating” the poverty reduction plan into budget allocations and
concrete plans.
A macro model in Uganda is similar to the one in Zambia. Ethiopia’s
macroeconomic model resides in the Ministry of Finance and Economic Development.
The stated objective is to introduce tools that help systematically manage the economy
aimed at efficiently utilizing available resources. There is collaboration with the Micro
Macro Consultants (MMC) based in the Netherlands
In Mozambique a number of models have been developed over the last 8 – 10
years but the Ministry of Finance has not consistently used any of them. The technical
assistance programme in the Ministry’s think tank, the Gabinete de Estudos, has
consisted of two components, one for economic policy issues and one more
academically research oriented models building exercise.
In Malawi, the three main policy institutions, Ministry of Economic Planning
and Development (MEPD), Ministry of Finance (MoF) and Reserve Bank of Malawi
have cooperated to develop a new macroeconomic model. The National Statistical
Office (NSO) is also participating. The model, will be truly independent of the IMF and
16
LUCERE
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offer alternative projections. Developed in cooperation with Statistics Norway it was
first used for training, but later for policy purposes.
Botswana has since the mid-seventies run a model called MEMBOT as a basis
for the annual budgets and medium term National Development Plans (NDPs),
including the triennial revision of NDPs. Developed first by the Macro-Unit of the
Ministry of Finance, the Botswana Institute for Development Policy Analysis (BIDPA)
has later been involved in developing and maintaining the model structure. The model
is now about to be complemented by a less complicated structure.
Tanzania has its own macroeconomic model that is being updated and used
regularly in the policy process. The model is called MACMOD has been in operation
for a number of years and was interestingly long operated by the Presidents Office and
not the Ministry of Finance. Tanzanian government representatives maintain that the
model is extensively used and has a good deal of indirect and direct impact on policy
and understanding of developments.
In Norway economic models have been used since the 50s. The tradition in
Norway is that the Research Department of Statistics Norway builds and maintains
models which are used by various departments and which can also be run for any other
organisation at a fee. There is a multitude of available models:
•
Population models
– BEFREG - Population and migration model
– MOSART - Long term projections, labour force education and social
security (dynamisk microsimulation)
•
Energy market models
– NORMOD-T - Simulation of nordic power market
– PETRO - dynamic long term model on global petroleum markets
•
Municipal and regional economy
– MAKKO - employment in municipal services
– KOMMODE - municipal budget allocation
– REGARD - projections of employment, labour force, GDP, investment
by region.
•
Tax models
– LOTTE - microsimulation of revenue and distributional effects of
changes in the tax system
•
Macroeconomic models
– KVARTS – disaggregated model for short/medium projections and
policy analysis based on quarterly data
– MODAG – disaggregate model for short/medium projections and policy
analysis based on annual data
– MSG – general equilibrium model foruse in long term projections of
changes on policies in terms of e.g. Taxation, trade, industrial policy,
environment and energy.
17
LUCERE
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4. The start of the CEIC CMI modeling cooperation
The cooperation between the CEIC and CMI started in 2006 although contact
between CEIC and CMI researchers predate this. The first annual programme in 2007
did not have a focus on macroeconomic issues but included a study of the government
budget system as well as some training in statistical methods. Under the preparation of
the triennial cooperation programme 2008-2010 both institutions agreed that it would be
important to start the construction of a macro model. The lack of or ageing state of
home grown models in Angola was one reason for the need of a new model.
On the Angolan side an advantage was the prior experience in building as well
as running the MODANG. This was not only an advantage in the technical sense. It
also meant that CEIC had considerable knowledge of the administrative structures
“around” the model itself that is of key importance for the use of quantitative methods
and modelling to good effect in practical policy making. A simple macro model was
also used for training purposes and a database was being built up to furnish the model
with appropriate information.
Similar practical experience was found on the CMI side where researchers had
been involved in model building and macro policy application in several African
countries as well as in Norway. Successful policy modelling with a CMI input e.g. took
place in connection with the MEMBOT and the MACMOD as mentioned above.
The more recent MACMOD in Tanzania has reportedly had considerable
positive indirect impact on Tanzanian economic policies during the last decade. During
a period MACMOD has been a training tool and probably boosted self- confidence
among Tanzanian government economists in their discussions with IMF and the World
Bank. Tanzanian Government representatives emphasize that the increased focus on
national planning exercises such as the PRSP has increased the understanding for the
usefulness of consistent macroeconomic planning and the use of models as tools.
5. Defining the needs
In the project proposal for the MODUCAN macro modeling project which was
part of the CEIC-CMI institutional cooperation 2008-2010 the overall objective was to
contribute to the use of macro modeling for policy purposes in Angola and thus
contribute to sound economic development.
More specifically the project aimed to
 Introduce CEIC and UCAN personnel to the use of national accounts and
models for policy research
 From the existing base at CEIC develop a macro model and build CEICs
capacity in national accounts and modeling
 At an early stage, construct a simple modeling framework for the improvement
of economic projections for the Relatório Económico.
 If desirable from the side of the Ministries of Finance and Planning as well as
the Bank of Angola, involve their personnel in the early limited modeling
exercise with a view to commence a discussion about the possibility of an
Angolan planning model.
18
LUCERE

REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
Involve the INE in the exercise from the start and thereby provide an impetus for
improvement of economic statistics.
It was found that CEIC and the Government of Angola would be interested in
analysis of the results of public policy at the macro level. Also, it was thought that a
medium term model (up to five years) would be most useful although many of the
problems of the Angolan economy will have to be considered in the longer term,
perhaps as a supplement to the main macro model. The policy analysis character of the
desired model would mean, in principle, that the relevant government controlled
variables would be exogenous. A main government objective was the non inflationary
financing of the government budget. In that connection it would be important to include
bond and TB financing as well central bank financing of the treasury and also interest
and principal payments on government debt.
Analyses of and forecasts for the “true” macro variables, like GDP, total
investment, savings and consumption, imports, exports, exchange rates, prices etc are
main objectives for a macro model. However, most useable macro models comprise a
certain amount of sectoral analysis and forecasting. It was found that some sector
models could be built simultaneously with the main model, others more likely as addons, perhaps at a later stage.
Firstly, the petroleum sector ought ideally to be divided into three sub-sectors:
exploration, production and processing. A link to the petroleum sector model of the
Ministry of Finance was proposed. The choice of production sectors for MODUCAN
would need to take into account the policies of developing the non-petroleum industries
as well as the enormous influence of the petroleum sector. One aim should be to trace
the generation of petroleum wealth and the flow of petroleum generated resources
through the financial sectors and government.
Secondly, the size and diversity of government investment in Angtola justifies
an ancillary model on major public sector projects. (Loosely estimated, government
investment might be 1/3 of GDP at times.)
Thirdly, two key sectors within the government ambit are health and education.
It would be of considerable value to go into some detail on government health and
education expenditure, particularly if it could be linked to indicators for public service
levels and effects in the health and education sectors.
Fourthly, non-oil sector production is likely to be of increasing interest in
government’s efforts to step up these sectors’ contributions to production and
employment. The budgetary effect on prices, exchange rates and the degree of
‘crowding out’ of the private sector are of main importance to diversification. Indeed
the key problem in oil ‘soaked’ economies is to diversify. Therefore, growth and
development in the non-oil sectors will be important indicators for the realization of
diversification objectives through government budget and associated macro policies
At the starting point it was not clear what data would be available for a macro model.
Both IMF and the World Bank pointed out that much data is lacking and that existing
data sources (INE, Bank of Angola and WB/IMF) differ considerably even with regard
to key magnitudes like the GDP. In some cases of missing data it will be necessary to
“construct” data.
19
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
After a good deal of consideration of the pros and cons of various model
frameworks it was suggested that the MODUCAN be built basically on a short to
medium term framework, the so called ‘IS-LM Bop’ framework, also called the
Mundell-Fleming model. The chapter below will give an overview of the principles of a
Mundell-Fleming model. In the actual model built for use in Angola a number of
features are however added.
An orthodox ‘IS-LM Bop’ framework would seem to have a weakness in
ignoring the possibility that developments over a five year period could increase the
potential output by having positive effects on technology labour and - not least for
Angola - capital. This weakness was amended by including the possibility of an
increasing trend in potential output, based on data and forecasts for capital
accumulation and the labour market. In addition, analysis of sectoral output as
mentioned above would contribute more depth in the macroeconomic projections for the
medium/long run. This in turn would pose challenges for consistency since the sectors
analysed would not necessarily, in the aggregate, be in line with the results of the core
macro model. The experience from the MACMOD in Tanzania which showed that this
could be solved by an input output structure was not relevant since I/O data are not
available in Angola. The approach would be either to use “synthetic” and coefficients
from other countries or an iterative “muddling through” method to equate the macro
block output to the relevant aggregates from the sector block.
It can, and we believe, will be argued that the Keynesian IS-LM framework is
concerned only with short to medium term business cycle fluctuations and how fiscal
and monetary policy can be used to handle these. The answer to this is that although
developing countries fluctuations in income and production are usually not seen as
business cycle phenomena but still have much of the same characteristics.
6. Principal features of the Mundell Fleming model
The Keynesian IS-LMii framework is commonly used for analysis of fiscal and
monetary policy in the short and medium term. Keynes held that the fall in aggregate
demand that caused the downturn often was linked to government fiscal and monetary
policy. In the IS-LM model, aggregate demand falls and income and the interest rate
adjusts to reach equilibrium. The Mundell Flemming model adds the Balance of
Payments curve to the IS/LM model. Equilibrium is reached by adjustments in the
exchange rate, the interest rate and incomeiii. The model emphasizes the differences
between fixed and floating exchange rates.
Equilibrium in the model for demand of goods market is achieved when
investments equals savings. The IS curve derives the relationship between interest rates
and income in the short run. It specifies a simple negative relationship between
investment and the interest rate.
A higher interest rate reduces the demand for goods at a given level of income.
A higher interest rate also reduces investment demand and the demand for consumption.
Higher interest rates reduce demand and lower the level of output where demand equals
the quantity produced (supply) and thus creates the IS curve. The name is derived from
the fact that in a closed economy investments will be equal to savings.
20
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
The slope of the IS curve determined by the sensitivity of investments to
changes in the interest rate, and the sensitivity of GDP to changes in exogenous
variables (the spending multiplier). Changes in GDP caused by changes in the interest
rate is reflected as movements along the IS curve. Changes in exogenous spending
(government spending for example) cause shifts of the IS curve.
Equilibrium in the money market is described by the LM curve. The quantity of
money demanded (demand for liquidity) increase with income and decrease with the
interest rate. Equilibrium in the money market is determined by the demand for liquidity
(liquidity preference) and the quantity of money supplied by the central bank.
If the money supply is fixed, then a rise in aggregate income (increasing the
demand for liquidity) will increase the interest rate at which the demand and supply of
money is equal. The LM curve therefore describes a positive relationship between
output and the interest rate.
The IS – LM diagram can then be depicted as below
r
LM
r0
IS
Y0
Y
The intersection between the two curves shows the only combination of output
and interest rate where both the goods market and the money market are in balance.
GDP (Y) is on the horizontal axis while the interest rate (r) is on the vertical axis.
For an open economy the IS curve needs to be specified for a specific exchange
rate. It still depicts the combination of the interest rate and output that equate total
expenditure and production but total expenditure is affected by the exchange rate. When
the economy is open and has floating exchange rates an increase in the interest rate will
also increase the value of the domestic currency and therefore reduce net exports.
Whenever the exchange rate changes, we see a shift in the IS curve.
Export represents foreign demand for domestic goods and services. The foreign
demand for domestic goods depends among other things on the level of foreign income.
Demand also depends on the relative price between foreign and domestic goods. If the
price of domestic goods is lower than goods from other markets, foreign demand for
domestic goods will be higher. The relative price is reflected in the exchange rate
(domestic price for foreign currency). When the exchange rate is flexible an
21
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
appreciation of the exchange rate allows domestic residents to buy the same amount of
foreign goods with less domestic currency. A devaluation of domestic currency will
have the opposite effect. If the exchange rate increases (devaluation) domestic goods
becomes cheaper for foreign consumers and demand will increase. An increase in the
exchange rate will also cause imports to fall as imported goods will be more expensive
relative to domestically produced goods. If the exchange rate decreases (appreciation)
then domestic goods become relatively more expensive and foreign demand will
decrease.
The country’s exports become more expensive in the international market when
the value of the currency increases relative to other currencies internationally.
In the case of Angola, the economy is dominated by the petroleum sector, and
the banking system functions relatively poorly. This means that demand might be less
sensitive to interest rate changes and the slope of the IS curve will be less steep. Also a
huge part of investments are made in the petroleum sector, where the decision to invest
is linked to profitability in the sector rather than the interest rate. In the formal model
these investments will be modelled separately and exogenously and independent of the
interest rate. These factors suggest a smaller role played by the interest rate in the
Angolan economy. There is currently a low level of domestic production and exports
are linked first and foremost to petroleum and other natural resources (diamonds). This
particular feature of the Angolan economy is captured in the formal model by allowing
a separate term for petroleum sector exports and petroleum sector related import. The
Kz is not convertible and set via a “managed” auction within a given band. This means
that interest rate and the exchange rate will have smaller effect on output than what we
might find in other economies.
The effect of trade in financial assets is reflected by the BP curve. The balance
of payments curve shows combinations of interest rates and income levels for which the
capital account (trade in assets) and current account (trade in goods and services) offset
each other. The current account is equivalent to the level of net exports, and it is
determined by the domestic level of income, the foreign level of income and the
exchange rate.
We assume that there is less than perfect capital mobility. The BP curve is drawn
for a given exchange rate and a given foreign interest rate.
The IS curve shifts right when there is an expansionary fiscal policy change or
the exchange rate depreciate. The IS curve shifts left when there is a contradictionary
monetary policy change. The LM curve shifts right when there is an expansionary
monetary policy change. It shifts to the left when there is a contradictionary monetary
policy change.Because the basic version of the model assumes fixed prices, it cannot be
used to analyze inflation. When the model was developed in the 1950’s and 1960’s
inflation was of little concern. As inflation became important during the late 1960s and
1970s, the model was extended to incorporate aggregate supply.
The essential feature of this extension is that higher output leads to a higher
price level. The impact from output in prices can operate directly through firms’ price
setting decisions, or indirectly through wages. There is not complete nominal flexibility
(needed for the AS curve to be upward sloping rather than vertical in the output-price
22
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
level) is due to adjustment costs, imperfect information and contracts. The price level
that prevails when output is a t its normal level or “natural rate” can be determined by
rational forward looking expectations, by past levels of inflation or both. The aggregate
supply curve (AS) has been specified in different ways. The essential relationship
though is that there exists a positive relationship between output and the price level.
The IS-LM-AS model consists of three equations in three unknowns: the output,
the interest rate and the price level. When depicting this relationship graphically we
combine the IS and LM curves to obtain a relationship between output and the price
level. Given the fixed money supply, a higher price level reduces real money balances.
Thus, for a given level of income, the interest rate at which the quantity of money
demand equals supply rises. This means that the LM curve shifts upward and the IS and
LM curves intercept at a lover level of output. This inverse relationship between the
price level and output is known as the aggregate demand curve. The aggregate demand
AD and AS curves then determine output and the price level.
The aggregate demand curve summarizes the relationship between the price
level and the quantity of domestic output demanded by consumers, firms, the
government and foreigners.
The AD curve can be derived from the IS LM diagram. An increase in the price
level P increases money demand. The excess demand for money shifts the LM curve
inward, raising r and lowering Y . When P goes down the money demand decreases
and brings about an excess supply of money. This means that the LM curve shifts
outward and lovers r and increases Y .
r
LM’( P1 ) LM
r1
P1
r0
LM’’( P2 )
r2
P2
IS
Y1
Y0
Y2
P0
Y
AD
Y1
Y0
Y2
Y
Any shift in the IS-LM model that is caused by a change in prices is represented
as a movement along the AD curve. Any other shifts in the IS or LM curves that
increases income will be a shift outward in the AD curve (an increase in G ). Any
change in the IS-LM model that reduces income will be an inward shift in the AD curve
(a decrease in M s ).
The terms of trade and the expected rate of inflation are included in the IS curve.
Terms of trade equals the domestic price level minus the world price level minus the
exchange rate. This means that if the domestic price level increase, the world price level
decrease, or a strengthening of the domestic currency making domestic goods relatively
23
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
more expensive will increase the terms of trade and result in a reduction in the trade
balance. Imports increase while exports decrease. The IS curve is stationary only when
the terms of trade is constant.
For the LM curve, the demand is still determined by real national income and the
nominal rate of interest, but the domestic interest rate is also tied to the world interest
rate and the expected depreciation of the home currency.
The aggregate supply curve now responds to two price indicies, the one of
interest to producers and the one of interest to consumers. Employment is constrained
by demand for labor. Employment and output increase if the rate of producer price
inflation exceedes the rate of growth of nominal wages. The wages will be related to the
rate of inflation for consumer prices (part of which are the imported consumables). This
means that the terms of trade will play an important role in determining labour and
hence output supply.
With flexible exchange rates the IS schedule become superfluous. The negative
relationship between inflation and output comes from the money market alone.
If Y goes up, this will create an excess demand for money but if the world
interest rate is fixed and so is the expected depreciation of the home currency, the only
variable that can change is inflation in the home country.
7. Steps in MODUCAN development
Work on the model has been going on intermittently since late 2008 in Norway
and in Angola. An early step was the agreement on the specific structure and variables.
Although this step included consideration of the database in order to prevent the use of
variables for which data were particularly weak of non-existent, frequent setbacks in the
data supply were experienced. In some cases synthetic data had to be used. This did not
boost our confidence in the reliability of the results.
Ironically, the increase in data availability over the last year has created its own
problems. For instance, the detailed trade statistics that have now been published by the
INE could not be ignored and therefore some coefficients first estimated on the basis of
weaker data had to be re-estimated. It now seems likely that a set of national accounts
from 2002 to 2008 will be available shortly. This will in all likelihood mean that a
broad range of model coefficients will have to be reconsidered.
Estimation of a full range of parameters has been completed. We have used the
econometrics package” Stata” for the purpose. One particular problem has of course
been that historical data are lacking to a great extent. This will undoubtedly have the
effect of weakening the correctness of our coefficients. Before 2002 Angola had
periods of triple digit inflation and dramatic changes in nearly all relevant variables the
economy. Basing estimates on such data will mean that the economy described by the
model will implicitly have on board an assumption that economic structures and
mechanisms (partly) are as they were in those days. This means we base the model on a
totally different environment than we have today and which we believe will prevail in
24
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
the future. On the other hand, using the less tumultuous data from 2002 onwards will
limits the length of data series for estimation giving very large confidence ranges.
The model does not use sophisticated modeling software. We have found many
advantages in terms of transparency and easy handling by using a simple spreadsheet,
which, with the recent development in the capacity of spreadsheets, appears to have
computing power enough for our purposes. Most economist will have a good
knowledge of spreadsheets so the handling of the model will not need particular
training. A bit of additional training in programming Visual Basic should also make it
possible to produce nice, tidy and useful user interfaces.
The first version of the model is now functioning. The core model is solved by
using the matrix calculation functions within the spreadsheet. Step one of the
calculation is to solve the system for GDP at constant prices, real interest rate and real
exchange rate using matrix algebra. Based on these three endogenous variables with the
addition of exogenous and parameters, the spreadsheet will calculate the other
endogenous variables.
The team now runs a number of tests of the model. Testing is done by making
projections for a period for which data exist and then check projections against actuals.
Some interesting results have already appeared. For the shorter period the model does
appear to predict GDP very well. However the exchange rate and the interest rate often
differ from the actuals - for some years considerably. The plan is now to finish the
model and produce documentation and user manuals by the end of 2010. We hope that
after this, in the next three year period the model can be used intensively in making
economic projections.
8. Modeling benefits to come?
Although the pace of model building has been much lower than expected, the
work done has rendered results. A number of courses in model building and
econometrics using Stata have been of benefit to a wide range of economists from
CEIC-UCAN and other institutions in Angola. We have noticed increased interests for
the modeling exercise both from the INE and the Ministry of Planning. The model
building has given incentives to further exploration of the economy. The model building
gives incentives to debates on how the economy works and gives input to such debates.
The exercise also contributes to build teams across government institutions. By keeping
close in touch with relevant government departments we hope to avoid the all too usual
syndrome in model building, namely that models are used for a research project only or
linked to technical assistance only.
25
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
AS TRANSFORMAÇÕES ECONÓMICAS ESTRUTURAIS EM ANGOLA – UMA ANÁLISE
PARA O PERÍODO 1997/2008
Alves da Rocha
Professor Associado da Universidade Católica de Angola
O tema do crescimento económico de Angola continua a ser dos mais estudados,
dentro e fora das fronteiras nacionais. Alguns desses estudos têm procurado descortinar
sinais sustentáveis de diversificação da economia, mas o sector petrolífero continua
majestático, ainda que com perdas episódicas de importância relativa no PIB.
A resolução do conflito militar interno veio propiciar uma situação mais atreita à
obtenção de resultados positivos na política económica, em especial nos equilíbrios
fundamentais e na reconstrução das bases materiais e humanas para o crescimento
económico. A análise do período 1997/2008 revela tratar-se duma sequência importante
de crescimento económico real no país e de aplicação duma política económica de
mercado.
O crescimento económico não foi contínuo ao longo do período em análise,
sendo visíveis diferentes períodos em que a variação real anual do PIB se colocou
abaixo da sua linha tendencial de crescimento.
FONTE: Relatórios Económicos de Angola, CEIC, Universidade Católica de Angola, com base nas informações dos Relatórios de
Balanço dos Programas do Governo elaborados pelo Ministério do Planeamento.
O ano de 2002 marca, claramente, uma linha divisória no processo de
crescimento económico do país, devido à finalização do conflito militar interno e à
possibilidade de desviar da guerra uma parte importante dos recursos financeiros
petrolíferos – ou obtidos pela facilidade de hipoteca das receitas futuras do petróleo –
para aplicações na recuperação das infraestruturas físicas e materiais, muito danificadas
pela extensão e violência das operações militares.
Porém, entre 2000 e 2002, como que a antecipar-se o final do conflito militar
interno e com base nas políticas levadas à prática no contexto dos Planos de 2001 e
2002, a economia angolana apresentou sinais duma mudança significativa nos índices
gerais de produtividade, ainda que puxados pela natureza capital-tecnologia intensiva
das actividades de extracção mineral.
26
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
FONTE: Ministério do Planeamento.
Graças, também, à resolução do conflito militar foi possível ao Governo
concentrar as suas acções de política económica em matérias que passaram a fazer mais
sentido e a ter outras condições de resolução dos problemas que as afligiram durante a
longa noite de guerra. O controlo da inflação começou a ser mais efectivo depois desta
data e a estabilização macroeconómica passou a constituir um objectivo com
possibilidades de ser atingido.
As excelentes condições do mercado internacional – taxas médias anuais de
crescimento do PIB elevadas devido aos impulsos emprestados pelas performances
chinesas e preço tendencialmente em crescendo do barril do petróleo – ajudaram a
manobra de estabilização macroeconómica do Governo angolano a partir de 2002, ao
mesmo tempo que a acumulação de receitas fiscais e de reservas em meios de
pagamento sobre o exterior permitiu que se iniciasse o ambicioso programa de
reconstruir o que tinha sido desfeito pela guerra e de construir o que ela não tinha
permitido.
FONTE: Instituto Nacional de Estatística.
27
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
No entanto, não foram suficientes 11 anos de crescimento e cerca de 6 anos de
relativa estabilização macroeconómica para que os fundamentos económicos do país se
alterassem. Com efeito e em termos médios para o período 1997/2008, a estrutura do
Produto Interno Bruto permaneceu, essencialmente, a mesma, com as actividades de
extracção de petróleo a responderem por cerca de 55% do valor de riqueza anualmente
gerado, as receitas fiscais petrolíferas a contribuírem com 80% para as receitas totais do
Orçamento Geral do Estado e a indústria transformadora manter a sua importância
relativa no PIB em redor dos 4%.
.
FONTE: Ministério do Planeamento
O baixo valor percentual da representatividade da actividade do petróleo em
1998 deveu-se à crise económica mundial, com a procura e o preço do petróleo a
evoluirem em baixa. O preço médio do Brent nesse ano foi de 12,7 dólares o barril, a
produção angolana de petróleo atingiu a cifra de 738 mil barris de petróleo por dia e as
exportações diminuíram 32,6% face aos valores registados em 1997. Provavelmente
poucos se lembrarão da crise de pagamentos – internos e externos – que se abateu sobre
o país nesta altura e que pressionou o Governo a alterar o Plano de Desenvolvimento
1998-2000, substituíndo-o pela Estratégia de Saída da Crise.
28
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
FONTE: Ministério do Planeamento
Fase de crescimento lento 1997/2002
Depois das eleições de Setembro de 1992, o país assistiu ao recrudescimento,
sem precedentes, da violência do conflito armado interno, devido, em particular, à
rejeição dos seus resultados pela parte da UNITA. O ano de 1995 fica marcado na
História de Angola, depois da independência, como o da extensão do conflito armado a
todo o território nacional e o da intensificação da violência associada. Até 1997, a
actividade económica do país aumentou a sua dependência do petróleo e os sectores
agrícola e industrial estavam virtualmente em falência técnica, tal a intensidade da
destruição de infraestruturas físicas, da fuga dos campos e da insuficiência de recursos
humanos.
Com esta base de funcionamento é natural que até 2002 os principais
estrangulamentos e as mais básicas carências (humanas, materiais, financeiras, etc.)
tivessem favorecido um funcionamento da economia nacional de baixa intensidade e se
tivessem mantido os sinais de crise económica e financeira vindos de trás. A transição
para a economia de mercado – iniciada com a primeira desvalorização do kwanza em
Março de 1991 e num clima de expectativas políticas positivas propiciadas pela
esperança de paz e de implantação do processo democrático – faz-se num contexto de
grande incerteza, caracterizado pela sucessiva diminuição das receitas fiscais
petrolíferas, pelo não funcionamento da economia não petrolífera, pela insegurança de
pessoas e bens e pelas difíceis condições de circulação das mercadorias e dos cidadãos.
Portanto, esta fase de crescimento da economia angolana foi marcada por taxas
relativamente baixas de variação da actividade produtiva e que se podem expressar
numa taxa tendencial de cerca de 6%. Só a partir de 2001 é que a actividade de
extracção petrolífera começa a apresentar sintomas de reversão da crise dos anos
anteriores graças à recuperação da economia mundial. Nesse ano, o PIB petrolífero
retrocedeu 1% face a 2000 e as actividades não petrolíferas apresentaram uma taxa de
crescimento de 10%, com destaque para os 18% dos sectores primários (agricultura,
pecuária, florestas e pescas).
29
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
FONTE: Ministério do Planeamento.
Ainda que a indústria transformadora apresentasse um crescimento do seu PIB
tendencialmente crescente, não existiam condições para que assumisse uma posição
central e estratégica no processo de diversificação da economia angolana. A prestação
de serviços mercantis começou a instalar-se a partir de 2000 e a apresentar razoáveis
dinâmicas de crescimento.
TAXAS DE CRESCIMENTO DA AGRICULTURA, TRANSFORMADORA E SERVIÇOS MERCANTIS (%)
SECTORES
PIBa
PIBt
PIBs
1998
5,2
4,9
5,0
1999
1,3
7,1
4,4
2000
9,3
8,9
3,4
2001
18,0
9,8
6,0
2002
13,4
10,3
11,6
FONTE: Ministério do Planeamento, Relatórios de Balanço dos Programas do Governo.
A análise da estrutura económica do país mostra que o peso relativo da
economia petrolífera se reforçou, quando comparado com o que vigorava em 1998, em
prejuízo das actividades mais estruturantes do mercado interno, como a agricultura e a
indústria transformadora.
30
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
FONTE: Ministério do Planeamento
Durante esta fase de cinco anos, as preocupações centrais do Governo estiveram
voltadas para o controlo e gestão do conflito armado interno, no sentido de a mais breve
trecho se encontrar uma solução definitiva. No entanto, o crescimento económico e o
processo de estabilização macroeconómica foram, igualmente, propósitos que o
Governo considerava importantes para a preparação do país para a fase pós-conflito
armado. As medidas mais consistentes a favor do controlo do défice fiscal, da redução
da inflação, da convergência cambial e de recuperação da confiança no kwanza
começaram a ser implementadas a partir de 2000, no âmbito, quer do Plano de
Desenvolvimento e Estabilização Económica 1998-2000, quer, especialmente, da
Estratégia Geral de Saída da Crise1.
As condições internacionais começaram a melhorar – as taxas médias de
crescimento do PIB mundial entre 2000 e 2002 foram de 2,1%, 2.4% e 3%,
respectivamente2 –, culminando com um preço do barril de petróleo de 23,74 dólares
em 2002, praticamente o dobro do registado em 1998. Estas alterações no contexto
internacional facilitaram, pela via do aumento das receitas fiscais e em divisas, os
objectivos do Governo quanto à preparação do país para a fase seguinte à guerra.
A inflação foi uma das matérias da estabilização macroeconómica que logo
depois de 2000 começou a mostrar uma tendência de diminuição sustentada. Depois
deste ano não mais o índice de preços no consumidor na cidade de Luanda apresentaria
valores acima dos dois dígitos.
1
Na medida em que persistiam condições adversas na economia mundial, traduzidas numa reduzida
procura de petróleo e num preço do barril que atingiu 12,7 dólares, o Governo entendeu não existirem
condições propícias para a implementação do Plano 1998-2000. O Governo foi remodelado, a equipa
económica integralmente substituída e elaborado um novo Plano, baseado na Estratégia para a Saída da
Crise.
2
International Monetary Fund – World Economic Outlook, September, 2003.
31
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
FONTE: INE
Fase de crescimento rápido 2002/2006
Do ponto de vista político, o acontecimento marcante deste período é a paz. Este
facto, igualmente social, representa um ponto de viragem na trajectória da política
económica, cujas condições começaram a ser criadas depois de 2000. A finalização do
conflito militar interno colocou novos e importantes desafios ao Governo, deixando de
fazer sentido as justificações para os insucessos das medidas governativas e alicerçadas
na reduzida margem de manobra da política económica e no excesso de consumo dos
recursos financeiros pela guerra. O mercado passou a ter enquadramento conceptual na
elaboração dos Programas do Governo e as medidas de fomento e incentivo deixaram
de ser administrativas, para darem mais atenção aos mecanismos mercantis de alocação
dos factores de produção. Durante este período, o Governo conduziu a sua intervenção
na economia através do Plano de 2002 e, depois, por dois programas bienais intitulados
Programa Geral do Governo 2003-2004 e Programa Geral do Governo 2005-2006.
A visão adoptada pelas instituições públicas e por algumas organizações
empresariais angolanas privilegiou a componente estratégica da reconstrução económica
e do progresso social. A elaboração da Estratégia de Desenvolvimento de Longo Prazo
2000-2025 é a prova de que o urgente – exigido pela guerra – deixou de tirar lugar ao
importante e estruturante (determinado pelo crescimento e desenvolvimento).
Consideraram-se como pilares desta Estratégia a construção duma competitividade
estrutural, o desenvolvimento do sector privado, a promoção do emprego, a valorização
dos recursos humanos, a edificação duma sociedade mais justa e a garantia do uso
sustentável dos recursos naturais e da preservação do ambiente.
O preço médio do barril de petróleo passou de 23,74 dólares em 2002, para 61,5
dólares em 2006, um incremento percentual de 159%3, enquanto a economia mundial se
encontrava num período de crescimento de alta intensidade, com taxas de 3,2% em
2003, 4,1% em 2004, 3,5% em 2005 e 4% em 20064. Condições excelentes e propícias
ao lançamento das bases materiais para a reconstrução das infraestruturas e o
3
BP statistical review of world energy June 2008.
4
International Monetary Fund – World Economic Outlook September 2005 e World Economic Outlook
Update, January 2009. World Bank – Global Economic Prospects, 2009.
32
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
crescimento económico. Portanto, ocorreu uma feliz conjugação dos ambientes interno e
externo em favor do crescimento económico de Angola.
FONTE: Ministério do Planeamento
A precipitada quebra do nível de actividade do sector petrolífero em 2003 – o
registo real foi de -2,2% de crescimento – foi devida a factores meramente conjunturais
e relacionados com atrasos na entrada em funcionamento de determinados blocos de
águas profundas.
A taxa tendencial de crescimento deste período foi de quase 14%, mais 9 pontos
percentuais do que a registada no período anterior. O destaque, porém, continuou a
pertencer ao sector petrolífero, com uma taxa média de crescimento no período a rondar
os 14%, mais 1,5 pontos percentuais do que o sector não petrolífero.
TAXAS DE CRESCIMENTO DA AGRICULTURA, TRANSFORMADORA E SERVIÇOS MERCANTIS (%)
SECTORES
PIBa
PIBt
PIBs
2002
13,4
10,3
11,6
2003
11,7
11,9
9,9
2004
14,1
13,5
10,4
2005
17,0
24,9
8,5
2006
9,8
44,7
38,1
FONTE: Ministério do Planeamento, Relatórios de Balanço dos Programas do Governo.
Através das taxas de crescimento anteriores parece adivinhar-se alguns indícios
de alterações sectoriais, nomeadamente, em relação à indústria transformadora e aos
serviços mercantis. Com efeito, a taxa tendencial de crescimento da indústria
transformadora foi de 20,4% e dos serviços de 15,3%.
33
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
FONTE: Ministério do Planeamento
No entanto, em termos de pesos relativos, a composição do PIB
permaneceu, essencialmente, a mesma. Embora a alteração dos pesos relativos dos
sectores no PIB não seja o critério, por excelência, para se avaliar o processo de
diversificação duma economia, fornece, todavia, uma indicação de tendência. Portanto,
o que de relevante se passou entre 1997 e 2006 foi a manutenção da participação
percentual dos sectores de actividade económica não petrolíferos, em particular, a
agricultura e a indústria transformadora.
FONTE: Ministério do Planeamento
Ou seja: as elevadas taxas de crescimento do PIB deveram-se, no essencial, à
dinâmica do sector petrolífero e os sectores não petrolíferos deveram o seu excelente
comportamento à reduzida base de partida para a aventura do crescimento económico de
Angola, tal o grau de destruição em que o conflito militar deixou o país. Os projectos
industriais e agrícolas implementados neste período não foram suficientemente
estruturantes duma nova ordem económica interna.
Do ponto de vista da estabilização macroeconómica, os sucessos foram ainda
maiores em matérias como o controlo da inflação, a gestão financeira do Estado – com
34
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
sucessivos excedentes fiscais – e a balança de transacções correntes (em 2005 e 2006
foram registados os maiores excedentes com o exterior, repectivamente, 30,2% e 35,6%
do PIB.
FONTE: Ministério do Planeamento
A atenuação do crescimento (2007/2008) e os sintomas da crise internacional (2009)
Durante o período 2007/2008, a política económica do Governo enquadrou-se no
Programa Geral do Governo para o Biénio 2007/2008 e as condições para a obtenção
dos objectivos aí definidos5 – com realce para a consolidação da estabilidade
macroeconómica, a reorganização das redes de distribuição (electricidade, água,
transportes), o lançamento de indústrias de apoio à reconstrução nacional, a expansão
das cadeias produtivas – aparentemente existiam e exprimiam-se pelo excelente
ambiente económico interno (taxas elevadas de crescimento em 2005 e 2006, aumento
do investimento privado, melhoria significativa da situação das finanças públicas,
disponibilidade de linhas de crédito, estruturação, modernização e desenvolvimento do
sistema bancário nacional, criação do Banco de Desenvolvimento de Angola e
preservação da paz e da reconciliação nacional) e pelo favorável enquadramento
externo, caracterizado pelas elevadas taxas de crescimento do comércio internacional
(9,8% em 2006, 7,5% em 2007 e 6,2% em 20086) e de variação do PIB mundial (3,4%
em média anual no triénio 2006/20087).
Contudo, o principal estímulo ao crescimento económico de Angola, no período
em referência, continuou a ser dado pelo preço do petróleo no mercado internacional.
Entre 2006 e 2008, o preço médio do barril de petróleo registou um incremento de perto
de 60%, equivalente a uma variação média anual de 16,7%.
Entretanto, os primeiros sinais de antecipação da crise económica mundial
começaram a ser visualizados pela redução do ritmo de crescimento do PIB mundial
(apenas 2,5% em 2008) e pela quebra no índice de preços das commodities não
petrolíferas. A drástica redução do preço do barril de petróleo no último trimestre de
2008 confirmou que a economia mundial entrara em crise dramática e que Angola iria
5
Programa Geral do Governo para o Biénio 2007/2008.
World Bank – Global Economic Prospects, 2009.
7
World Bank – Global Economic Prospects, 2009.
6
35
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
sofrer os seus efeitos mais nefastos, agravados pela debilidade da estrutura económica
nacional e pela reduzida capacidade de absorção de choques externos. As medidas de
atenuação dos efeitos desta crise mundial tomadas pelo Governo foram num sentido
inverso ao da maior parte das economias do sistema económico internacional, que
acentuaram a vertente do aumento das despesas públicas (de investimento, subsídios,
transferências, redução de impostos para se estimular a recuperação da produção, etc.).
Compreende-se, assim, que depois de 2007, o ritmo de crescimento económico
diminuiu, apesar de as taxas de variação do PIB ainda se terem apresentado
significativas. A taxa tendencial deste período foi de 17,7%, influenciada pelos 20,9%
de 2007. Ao considerar-se a previsão de crescimento para 2009, a taxa tendencial de
crescimento baixa para menos de 14%.
Em 2008, foi registada uma quebra de 5,5 pontos percentuais em relação à taxa
tendencial e de 7,3 pontos percentuais face a 2007.
FONTE: Ministério do Planeamento
A agricultura e a indústria transformadora ressentiram-se dos efeitos da crise
económica internacional, mas os serviços ainda conseguiram melhorar a sua
performance face a 2007. De sublinhar que alguns segmentos da indústria
transformadora angolana – materiais de construção, alimentação e bebidas e indústrias
químicas – patentearam desempenhos interessantes entre 2007 e 2008 mas, no
fundamental, continuaram a ser as actividades alimentares e de bebidas a dominarem o
panorama manufactureiro nacional (perto de 80% do total).
TAXAS DE CRESCIMENTO DA AGRICULTURA, TRANSFORMADORA E SERVIÇOS MERCANTIS (%)
SECTORES
PIBa
PIBt
PIBs
2004
14,1
13,5
10,4
2005
17,0
24,9
8,5
2006
9,8
44,7
38,1
2007
27,4
32,6
21,8
2008
1,9
11,0
26,9
FONTE: Ministério do Planeamento, Relatórios de Balanço dos Programas do Governo.
No entanto, as tão desejadas alterações estruturais da economia não ocorreram e
algumas das variações registadas não passaram de meros episódios no longo percurso
do processo de diversificação da estrutura produtiva interna.
36
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
FONTE: Ministério do Planeamento
As condições de preservação da estabilização macroeconómica do passado
degradaram-se na parte final de 2008, acabando por ferir, significativamente, o seu
exitoso percurso anterior. De resto, a resistência da inflação aos dois dígitos traduz a
prevalência de diversas imponderabilidades sobre a actividade económica interna e a
excessiva dependência das políticas macroeconómicas das receitas do petróleo.
As dinâmicas de crescimento registadas entre 1997 e 2008 consequencializaram
uma aumento sustentado no rendimento nacional bruto por habitante, colocando-se o
seu valor nos 3284 dólares em 2008. A grande questão – de resto, comum a qualquer
economia – reside no modo como este rendimento é repartido pelas funções capital e
trabalho e pela população esempenhando, neste caso, o Estado um papel primordial na
correcção da distribuição da renda feita pelos mecanismos de mercado. Não só pela via
da tributação, directa e indirecta, mas, igualmente, pelo montante e natureza das
transferências que o Governo entrega à sociedade.
37
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
CONCLUSÕES
A resolução do conflito militar que afectou a economia e a sociedade angolanas
foi o ponto de partida para as transformações estruturais ocorridas desde então.
Evidentemente que alguma coisa tinha de acontecer. Não era possível aguentar uma
situação de atropelamento dos equilíbrios económicos fundamentais e de degradação
das condições de vida da população.
A reposição dos macroeconomic fundamentals (défice fiscal, convergência
cambial, reservas internacionais, défice externo, inflação, dívida pública) em níveis
aceitáveis e internacionalmente recomendáveis era uma imposição do novo período de
paz. E foi nesse sentido que o Governo angolano, logo no decorrer de 2000, começou a
preparar as políticas macroeconómicas, cujos resultados foram importantes para a
recuperação da economia, através de taxas muito elevadas de variação do Produto
Interno Bruto.
Outro vector relevante para a reconfiguração da economia nacional é o da
construção e reabilitação das infraestruturas económicas e sociais. As primeiras têm
sido um factor importante de incentivo ao funcionamento do sector produtivo e à
difusão do crescimento económico pelo território nacional. As segundas perfilam-se
como indispensáveis para uma maior socialização da educação, saúde, habitação e
serviços diversos de saneamento.
No entanto:
 Permanece a excessiva dependência dos sectores de enclave, pouco
entrosados com o resto da economia, essencialmente virados para o
mercado internacional e potenciadores de desigualdades na
distribuição do rendimento nacional.

O peso dos sectores estruturantes duma nova ordem económica
interna – indústria, agricultura, sistema financeiro e tecnologias de
informação – ainda é pequeno, apesar das elevadas taxas de
crescimento dos respectivos valores acrescentados.
38
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA

O intenso crescimento económico ainda não se transformou em
desenvolvimento, muito menos em progresso, devido ao modelo de
repartição da renda que prevalece e ao qual só acedem as franjas
sociais ligadas ao poder político.

Grande parte da população continua a não ter acesso à habitação, ao
fornecimento de água e electricidade em condições normais e aos
serviços de saneamento. A prova é dada pelo caos que
recorrentemente a chuva provoca nas periferias dos grandes centros
urbanos, com saliência para Luanda.

As transformações económicas e sociais estruturantes e sustentáveis
são um processo de longo prazo, que exige boas políticas de
desenvolvimento, resguardo dos equilíbrios macroeconómicos
fundamentais, transparência e burocracia competitiva.
39
LUCERE
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BASE IV DO NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO
A CLÁUSULA DA CONFLITUALIDADE
António Fernandes da Costa
Faculdade de Ciências Humanas da UCAN
1. Introdução
A base IV do acordo ortográfico da língua portuguesa de 1990, na qual surgem
inseridas as disposições que consagram a queda ortográfica das consoantes sem
realização fonética, ou seja, a eliminação das consoantes mudas, é certamente aquela
que mais polémica tem gerado entre os analistas e destinatários do acordo.
Confrontamo-nos com um tema susceptível de ser abordado sob diversos ângulos. A
nossa perspectiva, neste trabalho, será meramente linguística e centrar-se-á apenas numa
cláusula. Não nos ocuparemos, por exemplo, de considerações de natureza política,
diplomática ou económica relacionadas com o tema, o que não significa que as
assumamos
como
considerações
de
somenos
importância.
Reservamo-las,
simplesmente, para outras vozes mais autorizadas.
As disposições inseridas na base IV chegam a ser vistas por uma certa crítica de
oposição ao acordo, como uma ameaça à identidade da língua. A contestação chega a
atingir proporções radicais, procurando-se excluir toda a possibilidade de diálogo:
“Minha pátria é a língua portuguesa”, sentenciam muitos críticos contestatários. O
recurso a este veredicto pessoano, em que os conceitos de pátria e língua se cruzam
numa equivalência metonímica, mais não significa do que fechar as portas a um debate
possível.
Na verdade, a contestação de Fernando Pessoa à reforma ortográfica de 1911, que
até se caracterizou pela unilateralidade, circunscreveu-se entre as mais radicais da
época. No auge da contestação, Fernando Pessoa lançou aquele que seria o mote final da
sua argumentação contra qualquer cedência a uma reforma da ortografia da língua
portuguesa: “Minha pátria é a língua portuguesa”. Hoje, observa-se a reiteração do
mesmo estribilho pessoano, em nome da rejeição do acordo ortográfico de 1990.
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Contudo, a reforma ortográfica de 1911, apesar de uma forte contestação de uma
determinada intelectualidade da época, prosseguiu o caminho traçado. O que se escrevia
abysmo, lyrio, syntaxe, estylo passou a escrever-se abismo, lírio, sintaxe, estilo, sem
o ípsilon, abandonando-se a memória emocional de uma ortografia etimológica, sem
que a língua tivesse sido chamuscada. Que isto sirva apenas para um exemplo.
2. Os argumentos contra o acordo
Se há pontos do acordo ortográfico de 1990 que têm mais a ver com a consolidação
de certas matérias já autorizadas, no acordo ortográfico de 1943 ou de 1945, a base IV
está entre aquelas que introduzem alterações concretas e significativas na ortografia da
língua portuguesa. Referimo-nos especificamente à ortografia consagrada no português
padrão, em Portugal e nos países africanos de língua oficial portuguesa. Há consoantes
sem realização fonética que continuam a ser representadas graficamente, na norma
ortográfica portuguesa e africana, por razões de natureza etimológica, por razões ligadas
à genética das palavras. Portanto, os motivos da sua conservação são ditados, acima de
tudo, por determinantes ligadas à memória etimológica e, certamente, a razões de
carácter emocional. Assistimos à reiteração da argumentação usada contra a reforma
ortográfica de 1911.
Como é sabido, na norma ortográfica brasileira as consoantes mudas há bastante
tempo que não são representadas ortograficamente. A base IV do acordo ortográfico de
1990 consagra, portanto, a supressão dessas consoantes, na norma padrão portuguesa e
africana, com vista a uma uniformização da ortografia. E é aqui que reside o pomo da
discórdia.
No conjunto da argumentação utilizada pelos arquitectos do acordo, na
justificação desta unificação estão a valorização da componente fonética, na pronúncia
das palavras, que permite um ensino e uma aprendizagem mais simplificados da língua,
a internacionalização da língua e a circulação do livro e outros elementos culturais,
entre os países da CPLP.
Para os críticos discordantes deste acordo ortográfico, as consoantes mudas têm
uma dupla função, que não podem deixar de exercer. Não só contribuem para a
legitimação da etimologia da palavra, conforme ficou explícito, como garantem a
creditação fónica das vogais precedentes que, por via da sua presença, são abertas.
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Proceder à supressão dessas consoantes levaria a uma espécie de caos, não só no que
respeita à perpetuação da história das palavras, como também no que diz respeito à
representação fonética das vogais precedentes. Assistiríamos, portanto, à degradação do
valor fonético das palavras e, consequentemente, à degenerescência da língua
portuguesa, à degenerescência da sua identidade.
Para uma melhor explicitação da argumentação das vozes discordantes, se na
palavra recepção, o fonema vocálico e, que precede a consoante p, é realizada como
uma vogal definida pelo traço fónico +BAIXO, ou seja, soa como uma vogal aberta, esta
vogal deixará de exibir o valor fonético que se lhe atribui, caso se observe a queda
ortográfica do fonema consonântico. Isto levaria a que a palavra fosse representada
ortograficamente receção, acabando a vogal e por se transformar numa vogal definida
por um traço fónico +ALTO, reconvertendo-se numa vogal átona. Apresentamos apenas
uma ilustração. Poderíamos multiplicar os exemplos.
A supressão das consoantes mudas é uma questão já versada no acordo
ortográfico de 1945, mas de forma ambivalente: “[…] eliminação das consoantes
interiores cc, cç, ct, pc, pç, pt, quando invariavelmente mudas e de sua manutenção,
quando pronunciadas em um país e não no outro ou quando têm valor fonético e/ou
valor de tradição ortográfica e similaridade com outras línguas românicas”.
A ambivalência com que se formula, em 1945, esta cláusula, leva a uma
consequência que perdura até hoje, a manutenção a que se assiste dos grafemas
consonânticos mudos, na norma padrão euro-africana.
Como se observa, a questão das consoantes mudas não é colocada, pela primeira
vez, no acordo ortográfico de 1990, pois constitui uma preocupação que já vem de trás.
O acordo de 1990 pretende pôr cobro a esta ambivalência, procedendo à
unificação desta divergência entre a ortografia praticada, por um lado, no Brasil e a
praticada, por outro lado, em Portugal e nos países africanos de língua portuguesa.
A base IV, sendo a mais rejeitada pelos críticos que se opõem ao acordo,
conforme ficou explícito atrás, acaba por ser também aquela que é a responsável pela
rejeição de todo o acordo por parte dos referidos críticos. Pois, além dos argumentos
acima transcritos, há um de natureza política e, quiçá, de natureza económica, segundo
o qual se considera que o Brasil beneficia mais com o acordo em causa do que Portugal,
porque lhe atribuirá maior protagonismo, na penetração nos países africanos. Uma vez
que o Brasil já não representa ortograficamente as consoantes mudas, eliminando-as,
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considera-se que o presente acordo está desenhado em função dos interesses do Brasil.
Só serve o Brasil. Em princípio, a análise deste tipo de preocupações não faz parte da
nossa abordagem. A nossa perspectiva é meramente linguística, conforme referimos
atrás.
Por isso, importa tecer alguns comentários sobre os argumentos de natureza
linguística, fundados na história da língua, ou seja, na salvaguarda da origem
etimológica da palavra, e no papel atribuído às consoantes mudas, na creditação do
timbre aberto das vogais que com elas coexistem na mesma estrutura lexical,
precedendo-as.
3. A história da língua e o acordo ortográfico
No contexto do acordo ortográfico, a história da língua será encarada apenas
numa perspectiva parcial, pois corresponderá unicamente à história da palavra. E o que
se entende por história de uma palavra?
Na nossa modesta opinião, achamos que a história de uma palavra não reside em
algo inatingível, impenetrável, algo insusceptível de visualização, algo de místico. Com
todo o respeito, pensamos que a história de uma palavra consiste, em primeiro lugar, na
ligação dessa palavra ao étimo de que provém ou ao derivante de que deriva e, em
segundo lugar, consiste na trajectória evolutiva dessa palavra, perante o étimo ou o
derivante.
Se nos for concedida alguma liberdade, apresentamos aqui a história da palavra
filho, apenas para um exemplo. Provém do étimo latino filiu(m). Quanto à trajectória
evolutiva que a caracteriza, verifica-se a queda do l intervocálico, dado que as
consoantes sonoras na evolução das palavras do latim ao português tenderam a cair ou a
vocalizar-se. Esta transformação conduziu ao surgimento de duas vogais em hiato, fiiu,
que foram eliminadas, mediante a intromissão de uma consoante entre elas. Esta é a
história que tem sido descrita pelos historiadores da língua sobre a origem etimológica e
a trajectória evolutiva da palavra filho, não nos apresentando, por isso, nada de
transcendente, de impenetrável, nada de mítico.
Apesar da transformação que a palavra filho sofreu, caracterizando-se, de certo
modo, por uma estrutura que não é de todo idêntica à do seu étimo latino filiu(m), não
se perdeu de vista o elo da sua origem etimológica, nem se perdeu de vista o respectivo
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trajecto evolutivo. A quase totalidade das palavras sofre uma transformação estrutural,
ao evoluir do latim ao português arcaico e não foi por este facto que se perdeu o elo da
respectiva história, a possibilidade de descrição do respectivo percurso evolutivo.
Analogamente, pensamos que não se perderá de vista a origem etimológica ou o
percurso evolutivo de palavras como acção, concepção, recepção, na sequência da
eliminação, na escrita, das consoantes c e p, respectivamente, quando estas já nem
sequer existem, enquanto estruturas com realização fonética, constituindo estruturas
sem pronúncia, tendo emudecido, há muito.
Se nós compararmos estas palavras com as correspondentes das outras línguas
românicas teremos, em francês:
action
conception
reception.
Em espanhol, teremos:
actión
conceptión
receptión.
O que se constata? Constata-se que as palavras correspondentes, na língua
portuguesa, sofreram uma mais acentuada transformação, ao evoluíram do latim, do que
as suas congéneres, na língua francesa, espanhola, pois provieram umas e outras dos
étimos latinos:
actione(m)
conceptione(m)
receptione(m).
Repare-se que, nas outras línguas românicas citadas, os fonemas consonânticos
p e c, das palavras em referência, continuam a ser pronunciados, tal como o eram, no
latim clássico. Em português, emudeceram. Na fonética das palavras, estas consoantes
já não existem, na língua portuguesa. Existem apenas no desenho ortográfico das
palavras.
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Com essa transformação visível das palavras em causa, na língua portuguesa,
não se perdeu de vista o respectivo trajecto evolutivo até hoje. Não será, certamente,
com a supressão de consoantes, que já nem se pronunciam, já não existem na fonética
das palavras, que só existem no desenho ortográfico, que se vai perder de vista a sua
história e de outras similares que se caracterizam pela mesma ortografia. Pois,
continuaremos a ter pleno conhecimento dos étimos de que provêm e do processo
evolutivo que as tipifica. A história das palavras em causa poderá ser acompanhada, tal
como tem sido a da totalidade das palavras da língua portuguesa.
Quanto à tese fundada no papel das consoantes em causa, na definição do timbre
das vogais que imediatamente as precedem, os críticos discordantes do acordo anunciam
um enfraquecimento antecipado dessas vogais, na sequência da queda ortográfica das
consoantes mudas. Pois, pretendem fazer crer que a eliminação gráfica dessas
consoantes sem realização fonética, corresponderá, ipso factu e irremediavelmente, à
redução do timbre das vogais, que as precedem. A depreciação sonora dessas ocorrerá
de forma imediata, no seu entender.
Pensamos que a tese da antevisão dessa depreciação do timbre das vogais
adjacentes às consoantes em referência é linguisticamente insustentável.
4. O vocalismo pré-tónico e as consoantes mudas
Essas vogais cujo timbre menos reduzido é supostamente creditado pelas
consoantes mudas ocorrem em sílabas pré-tónicas e em sílabas tónicas. Nesta
conformidade, o tema em análise tem especial incidência no vocalismo pré-tónico e no
vocalismo tónico.
Embora existam vogais pós-tónicas abertas, como na palavra agradável e
noutras, não há notícia de ocorrência de vogais abertas pós-tónicas creditadas por
consoantes mudas, na língua portuguesa. Portanto, apresentando-se esta questão
substancialmente associada ao vocalismo pré-tónico e tónico, é no âmbito destes dois
quadrantes linguísticos que deverá ser estudada.
Não se pode negar o facto de que, no domínio da norma padrão euro-africana, o
vocalismo pré-tónico é fortemente dominado pelo vocalismo átono, ou seja, pelo
vocalismo dominado pela redução sonora. De acordo com os foneticistas da língua
portuguesa, esta tendência afigura-se como a regra geral.
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Contudo, também reconhecem os mesmos foneticistas que existem excepções à
regra geral do vocalismo átono, como afirma Mira Mateus:
[…] estão incluídas verdadeiras excepções à regra geral do vocalismo átono, cuja causa é
histórica e não analisável a nível sincrónico. Assim, estas palavras estão marcadas no nível
lexical, nas respectivas formas de base, como não sujeitas à regra geral, e como tal são
aprendidas pelos falantes.iii
Existem palavras com vogais fonologicamente menos reduzidas, ou seja, com
vogais definidas como abertas, em sílabas pré-tónicas, sem que esse traço fonológico
seja legitimado por consoantes mudas. Essas vogais continuam a ser abertas, no
português padrão euro-africano, sem que o respectivo valor fonológico seja posto em
causa. São as excepções de que fala Mira Mateus e outros foneticistas, ao se referirem à
regra geral do vocalismo átono.
Tomemos, como ilustração da matéria, a lista de palavras agrupadas nos dois
conjuntos que se seguem. Na primeira série, agrupamos um conjunto de palavras em
que figuram consoantes mudas. Na segunda série, agrupamos palavras sem o desenho
ortográfico de consoantes mudas:
a) acção;
concepção;
recepção;
b). aquecer;
aquecimento;
corar;
esquecer;
esquecimento;
ganhar;
normal;
normalmente;
padeiro;
pregar (sermão);
economia;
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ortodoxia.
profilaxia
As palavras seleccionadas, nestes dois conjuntos, apresentam uma característica,
em comum. Em todas elas figuram segmentos vocálicos pré-tónicos abertos. A
diferença consiste em que nas palavras do primeiro conjunto figura a representação
ortográfica de consoantes mudas, que supostamente legitimam o timbre menos reduzido
das vogais precedentes e, no segundo conjunto, as vogais são abertas, sem que tal
propriedade fónica seja legitimada por consoantes mudas:

em ac, na palavra acção;

em cep, na palavra concepção;

em cep, na palavra recepção;

em que nas palavras aquecer e aquecimento;

em co, na palavra corar;

em que nas palavras esquecer e esquecimento;

em ga, na palavra ganhar;

em no nas palavras normal e normalmente;

em pa, na palavra padeiro;

em pre, na palavra pregar (sermão);

em co, na palavra economia;

em or, do, em to, na palavra ortodoxia;

em pro, na palavra profilaxia.
Estes são apenas alguns exemplos. Podíamos multiplicá-los, mas pensamos que
se torna desnecessário.
No primeiro grupo, as vogais abertas aparecem ladeadas por consoantes mudas.
No segundo grupo, apesar de as vogais serem caracterizadas por uma localização prétónica, como as vogais do grupo anterior, essas vogais também são abertas, no
português padrão euro-africano, apresentando-se sós, isto é, sem que o referido traço
fónico apareça submetido a uma pretensa legitimação de consoantes mudas.
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A que conclusão nos leva esta coincidência? À conclusão de que a ocorrência de
uma consoante muda não constitui uma condicionante, sine qua non, para a abertura de
uma vogal pré-tónica.
Portanto, não vemos a razão pela qual os críticos discordantes do acordo
antecipam a vulnerabilidade sonora das vogais ladeadas por consoantes mudas,
consoantes já sem existência fonética, caso estas sejam eliminadas ortograficamente.
Como vemos, o fenómeno da ocorrência de vogais abertas pré-tónicas não é
estranho à língua portuguesa. Não será, pela primeira vez, que surgirão vogais prétónicas abertas, caso as consoantes mudas sejam eliminadas ortograficamente, mediante
a implementação do acordo ortográfico. Antes desta eliminação, as vogais abertas prétónicas já ocorrem, no domínio da língua portuguesa. Na palavra ortodoxia, somos
confrontados até com três segmentos vocálicos pré-tónicos caracterizados por um
timbre aberto, sem que nenhum deles seja ladeado ou legitimado por qualquer
consoante muda.
Depois da ilustração sobre a relação entre o vocalismo pré-tónico e uma
provável queda gráfica das consoantes sem realização fonética, passemos à análise da
relação entre o vocalismo tónica e a suposta eliminação.
5. O vocalismo tónico e as consoantes mudas
Tomemos, como exemplificação deste estudo, as palavras seguintes agrupadas
em três séries:
afecto;
directo;
predilecto;
tecto;
carácter;
didáctico;
sintáctico.
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bela;
cela;
feto;
meta (linha de chegada);
rosa;
seta;
sola;
vela;
caderno;
desenho;
porta.
Como se verifica, em todos os exemplos, ocorrem em posição tónica da palavra
vogais definidas por um timbre menos reduzido, ou seja, vogais abertas:

em fec na palavra afecto;

em rec na palavra directo;

em lec na palavra predilecto;

em tec na palavra tecto.

em rác na palavra carácter;

em dác na palavra didáctico;

em tác na palavra sintáctico;

em be na palavra bela;

em ce na palavra cela;

em fe na palavra feto;

em me na palavra meta (linha de chegada);

em ro na palavra rosa;

em se na palavra seta;

em so na palavra sola;
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
em ve na palavra vela;

em de na palavra caderno;

em se na palavra desenho;

em por na palavra porta;
No primeiro agrupamento desta ilustração de palavras, as vogais tónicas abertas
aparecem ladeadas por consoantes mudas que, supostamente, legitimam o timbre menos
reduzido que as caracteriza; no segundo agrupamento, incluímos palavras cujas vogais
tónicas, além de serem graficamente acentuadas (o acento gráfico, neste caso, serve para
marcar a abertura da vogal), são ainda ladeadas por consoantes mudas; e, finalmente,
uma terceira série de palavras em que as vogais tónicas, apesar de serem abertas, se
apresentam sem acentuação gráfica e sem consoantes mudas, em contiguidade,
susceptíveis de legitimarem a referida propriedade fónica.
Perante estes exemplos, verifica-se que a abertura da vogal, em posição tónica,
não depende de consoantes mudas. Pensamos que estas podem ser dispensadas, sem que
tais vogais sofram qualquer alteração, quanto à propriedade fonológica que as
caracteriza. Apresentamos apenas alguns exemplos, mas são numerosas as palavras, na
língua portuguesa, nesta condição. Apregoar a vulnerabilidade sonora dessas vogais, na
sequência da supressão ortográfica das consoantes mudas, é apenas uma antecipação de
um fenómeno cuja hipótese de verificação não tem qualquer fundamento linguístico.
A segunda série de palavras, nas quais as vogais se apresentam graficamente
acentuadas e ainda ladeadas por consoantes mudas, constitui um caso flagrante, quanto
à redundância, na validação do mesmo traço fonológico, a validação do timbre vocálico
menos reduzido das vogais tónicas em causa. Se, no primeiro caso, a consoante muda já
nos parece dispensável, esta consoante, sem realização fonética, será muito mais
dispensável e sem consequência para uma vogal que já é tónica e que é ainda
graficamente acentuada, como se verifica.
Quanto à história, pensamos que a supressão ortográfica da consoante muda não
irá afectar nunca a possibilidade de visualização do percurso evolutivo da palavra e
muito menos a sua origem genética, conforme ficou explícito, atrás.
Da história dos acordos ortográficos, buscamos uma outra ilustração dos factos
linguísticos que descrevemos. Este exemplo parece ter constituído o único instante feliz
da história dos acordos ortográficos, no passado. No limiar dos anos 70, decidiu-se
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eliminar o acento gráfico grave, nos advérbios de modo em mente e de certos
diminutivos graficamente acentuados. Até aí, os advérbios de modo em mente e certos
diminutivos derivados de nomes graficamente acentuados, eram representados com um
acento gráfico grave. Exemplo:
agradável – agradàvelmente;
amável – amàvelmente;
café – cafèzinho;
pé – pèzinho;
só – sòzinho.
Que finalidade tinha a aplicação do acento gráfico grave, nestes advérbios de
modo e diminutivos? A finalidade residia justamente na necessidade de manutenção do
valor fonológico das vogais que constituíam segmentos vocálicos abertos, na estrutura
subjacente dos advérbios e dos nomes, em referência:

em dà, na palavra agradavelmente;

em mà, na palavra amavelmente;

em fè, na palavra cafezinho;

em pè, na palavra pèzinho.
Até essa data em que era aplicado o acento gráfico grave, presumia-se,
certamente, que a eliminação deste acento provocaria o enfraquecimento do timbre das
vogais abertas, na estrutura subjacente. Ora, o acento gráfico foi eliminado, nesses
advérbios de modo e diminutivos derivados de certos nomes a que nos referimos e até
hoje, décadas depois, essas vogais, que são vogais pré-tónicas, nos derivados em que
surgem, continuam abertas, na norma padrão euro-africana.
Em agradavelmente, amavelmente e outras estruturas congéneres, temos até
duas vogais pré-tónicas abertas: em da e em vel e em ma e vel, respectivamente; como
mais uma vez se observa, nenhuma delas se apresenta ladeada de qualquer consoante
muda que legitime o respectivo timbre de abertura.
Não entendemos por que razão se apregoa que a queda ortográfica das
consoantes mudas provocará, ipso factu, um fechamento das vogais implicadas que as
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precedem, se tal enfraquecimento ainda não aconteceu, nos múltiplos casos concretos
que serviram de ilustração ao presente trabalho.
Outros aspectos poderão ser reveladores da incongruência decorrente da
conservação das consoantes mudas. Consideremos outro grupo de palavras:
reflecte
reflectia
reflicto
reflicta
Neste conjunto de palavras do mesmo paradigma, somos confrontados com
palavras em que as respectivas vogais tónicas se apresentam ladeadas de uma consoante
muda, uma questão que já foi abordada atrás. Mas voltemos a considerá-la neste caso
específico, para terminarmos.
Em reflecte/reflectia, temos a tónica em ec e em reflicto/reflicta, temos a
tónica em ic. De acordo com as vozes que se opõem ao acordo, admitamos que, no
primeiro caso, em ec, a consoante muda legitime a abertura da vogal tónica. No segundo
caso, em ic, qual será o papel desempenhado pela consoante muda, sendo o i uma vogal
+ALTA,
ou seja, uma vogal fechada por natureza, não funcionando com uma segunda
alternância sonora?
Conclusão
Se é verdade que os argumentos dos arquitectos do acordo ortográfico da língua
portuguesa de 1990 só podem ser entendidos numa perspectiva relativista, também se
infere, pelo que ficou dito, que se torna difícil, senão impossível, conceber um acordo
ortográfico inatacável e que agrade a gregos e a troianos - repare-se que se descobre
aqui na sílaba tro da palavra troianos mais um segmento vocálico aberto, na norma
padrão euro-africana, sem que tal propriedade fonológica seja creditada por uma
consoante muda. Se o vocalismo menos reduzido tónico e até o vocalismo pré-tónico
menos reduzido já existe, numa multiplicidade de casos não creditados por consoantes
mudas, a tese do enfraquecimento do timbre das vogais supostamente legitimado por
consoantes mudas, na sequência da queda ortográfica destas, é linguisticamente
insustentável.
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Bibliografia
CASTELEIRO, João Malaca e Pedro Dinis Correia, Actual – o novo acordo
ortográfico, Texto Editores, Lisboa, 2008.
MATEUS, Maria Mira et aliae, Gramática da Língua Portuguesa, Caminho,
Lisboa, 2003.
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Stability in international contracts for hydrocarbons exploration and some of the
associated General Principles of Law: from myth to reality
Nélia Dias
Pós-Graduada em Direito da Comunicação e Direito do Pteróleo e Gás
Mestre em Direito Civil
The so–called stabilized contractual relationship: classical ideas and myth in
contracts for petroleum exploration
There are several types of contracts through which one or more parties, generally
foreign and private, decide to invest in the oil and gas business. These international
contracts may be: a simple traditional concession, a PSA, service (or pure) contracts,
with or without risk clauses, joint ventures, lease contracts, hybrid or others. The main
difference between these is the fact that, on one side, we have one or more private
investors and, on the other, the state (government), a state-owned agency or a
governmental company. We can foresee rights and obligations where there are rights
granted by the state for the exploration, use and destination of the hydrocarbons. Also,
these are contracts that, due to its nature, imply the establishment of a long-lasting legal
relationship. One of “weapons” very much in use to protect the private investment from
governmental and legislative changes has been the stabilization clause. Before
investing, however, it is commonly accepted that the private investor proceeds to the
due diligence, in order to become acquainted with the local law. When such clauses are
foreseen in the state’s legal system , these dispositions are considered to be favorable in
terms of attracting investment (1). They also include the economical hazards the foreign
investor must bear.
PETER CAMERON (2) chooses to differentiate the classical from the modern.
A first notion of these clauses (3) consists in a disposition which ostensibly forbids or
mentions the consequences of the revision of an existing legislation, decrees, dispatches
or other unilateral revisions of the host state. These refer to the contract signed with this
state or to new legislation, regulations, decrees and/or dispatches which will determine a
revision in the legal relationship formerly defined between the host state and the
international investor. Or, still, they essentially dictate that legislative changes that
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REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
affect a project unfavorably do not apply. Formerly, these dispositions were meant to
protect the investor from political hazards (4) of a specific nature (5) and they were a
way of attempting to introduce external legal sources in the contract (6). According to
FIONA MARSHALL and DEBORAH MURPHY (7) these dispositions acquired a high
profile resulting from their inclusion in the contract between the consortium of oil
companies and the states that were involved in the polemic Baku-Tsibilisi-Ceyhan
(BTC).
Through this clause the host state accepts voluntarily that its legislative and
administrative powers will not be able to change one-sidedly or even annul the
contractual conditions agreed with the investor. However, the risk of a one-sided
alteration is always present, depending heavily on the will of the governments, which
may only see things in terms of compensation. With this agreement we see a
strengthening of the roman adage Pacta sunt servanda (8) (agreements must be kept(9)),
protecting the private investor before the sovereignty of the host state over the natural
resources. These dispositions, strongly rooted in the private interest, have been
expressively repudiated by some doctrines and jurisprudence, claiming that the same
preclude the prevailing principle of public interest (10), without forgetting the terms of
casus fortuitus or the abnormal change of circumstances. This remarkable paradigm,
embedded in the Aristotelian thesis of the virtue of keeping one’s promises, must be
compensated, in this seat, in terms of international law, specifically by the VCLT (Art.
26). These clauses are also meant to define that legal security is a conditio sine qua non
of this type of agreements, aiming at the return of private investment (including in areas
as sensitive as fiscal law, environment (11), work, import and export, property rights,
among others).
Although these clauses are designated as above, their content may vary
according to authors and writing techniques. We can differentiate the freezing clauses,
which solidify the law of the host state for the entire duration of the project. Within
these clauses, ANDREA SHEMBERG cit. separates between full freezing clauses
(which aim at freezing all laws for the entire duration of the project) and limited
freezing clauses (which aim at protecting the investor in a more restricted frame of
reference). Other authors (12) choose to speak in terms of stabilization clauses in stricto
sensu or of traditional stabilization, meaning the said freezing, consistency (13) and
intangibility clauses. Here we find the prohibition to alter or annul one-sidedly
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contractually defined regulations, the supremacy of the contract as special law before
general law (legislation), predicting and defending the contract against subsequent
legislation contrary to previously agreed terms, including administrative dispatches and
similar decisions, and the incorporation of a given law in the contract signed with the
host state. For example, the establishment of a new royalty or of new taxes results in
changes to the concession contract whenever taxes were previously agreed upon. In this
case, and given the specificity of the contract, the written or tacit consent of the investor
is necessary (preferentially written) (Art. 39 of the VCLT).
Complementing this, the parties must adjust the form by which it is indispensible
the consent of both parties in case of abrogation or modification of the contract, or to
provide a non-modification, if in the present; if in the future, to prevent the one-sided
non-change or extinction of the contract.
The Principle of good-will or good faith precludes implicitly the faculty of unilaterally
changing or extinguishing the agreement made by both parties. In both negotiations
(preliminary or definitive) and the writing of the agreement, the parties must proceed
with the utmost and reciprocal loyalty and trust in the intention of fulfilling the contract
(subjective good faith) and according to socially accepted standards (objective good
faith). In this dimension one must consider that this rule does not prevent the unilateral
extinction of the contract, but it demands the payment of a just compensation in case it
is extinct. If both parties choose the international law applicable to the agreement, that
allows the use of arguments from the Public International Law, the structural Principles
of the law and the Principle of good faith, recurring to international arbitration (14).
What is the legal and functional value of these clauses? For some, they must be seen as
the limits of non-alienation of state prerogatives or as self-limitation of its legislative
competences. Maxime when it is the prediction that expressly prohibits nationalization
or expropriation (15) of the investor’s assets. As referred by DAVID ALEXANDER
and STEVEN HUNSICKER, investors are exposed to risks of expropriation by
governments, namely in the form of the modern “creeping expropriations” where the
financial advantages of the state are dilated or the control of the government over the
investor’s assets is amplified. However, we believe here that the NOC may play a
crucial role, namely in the fiscal stabilization of contracts. It is only necessary to make a
readjustment by paying additional taxes from their share of the profits or in their
royalty, if it is a PSA, or to reimburse IOC directly. By this we mean indirect
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expropriation. According to some interpretations of the courts, in order to validate a
complaint based on that ground, it is necessary that the investor relinquishes control
over the operations or the value of the deal is annulled, maxime cases Sempra vs.
Argentina (16), PSEG vs Turkey (17) and Eastern Sugar vs. Czech (18).
According to Public International Law, no state may renounce to its prerogative
of sovereignty (19), for it is through it that the state attains the prosecution of public
interest. Therefore, if the investment agreement falls in the public domain or in the
domain of administrative law, it must be treated in the terms of the legal framework of
the host state. As ABBA KOLO and THOMAS WÄLDE wrote, that is why
governments would see these agreements not as mere commercial contracts, but as
genuine instruments of public policies of which their economic development depends.
Note that every stabilization clause that contradicts peremptory norms of International
Law (ius cogens) may not produce the legal effects intended by the investor. This
parameter of sovereignty includes the power of the state over its natural resources to the
point that it is considered that the right of exploration of such resources is absolutely
inalienable or negotiable (20).
Fiscal issues are a sensitive matter. According to SILVANA TORDO (21), we
may speak of flexible, neutral and stable fiscal clauses. A supple fiscal regime allows
the government to take an adequate part of the rent according to given conditions of
profitability. It possesses the advantage of establishing a flexible structure and it is
permanently stable. A neutral regime does not promote nor demote investment and it is
considered an efficient and impartial system. A stable regime is a regime which does
not vary over a given temporal cycle nor it is foreseen that it will vary. About the
relevance of the latter, see LUÍS CEZAR P. QUINTANS (22).
The violation of the stabilization clause: some de facto and legal consequences for
the investment contract
One of the legal remedies available may, especially, be the option for the
mechanisms of contractual resolution of existing conflicts and will have its fundaments
in private investment law (when applicable) which sometimes allow the appeal to a
neutral court of arbitration. The parties involved may also choose an agreement (23),
appealing to international arbitration (24). Most litigations between a state and an
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investor are dealt with by ICSID, UNICITRAL or by arbitration courts ad hoc. In such a
situation it may be necessary to investigate, case by case, as previous question, on the
possibility of appealing to national or international arbitration court, since it is a
concession, because some legal systems consider the existence of a principle of
unavailability of public interest . If the contract possesses a stability disposition any
measure concerning social security may be considered an expropriation (25) which must
be duly compensated (Methanex Corporation vs United States of America).
The host Government (26) may not invoke its prerogative of sovereignty in
order to exclude matters referring to the contract under the jurisdiction of arbitration
court. Here, the arbiter may determine that even though international law recognizes the
right of the government to nationalize or expropriate it does not mean that the
government is not obliged to honor its commitments or pay the just compensations to
the private investor (27). Besides, it suffices to consider the imposition of specific fiscal
obligations, previously inexistent, and that may alter the balanced economic structure
existent to the date of contract execution. Here experience and practice have shown that
it is preferable to allege the violation of the principle of justice and equity in arbitration
court than to indirectly expropriate an investor. The introduction of such a clause in the
contract will have direct consequences in court as a violation of the paradigm of just and
equitable treatment in what concerns promotion of equitable foreign investment (as was
the case of Siemens vs. Argentina (28), PSEG vs. Turkey (29), Enron vs. Argentina (30),
MCI Power Group vs. Equador (31) and Parkerings-Compagniet AS vs. Lithuania (32).
Moreover, this concept is of the highest relevance since the pre-decisions of the investor
are rooted in certain commercial presuppositions, which the host state must not ignore.
It is commonly known that one of the elements integrating any paradigm of justice and
equity (and consequently of protection against arbitrary or discriminatory treatment)
means that the host state has the exact obligation to respect the so-called legitimate
expectations (33) of the investors when they actually decide to invest. But here it is
necessary to define whether we stand before a mere expectation (a simple hope to
eventually acquire the right), or of an acquired right which informs a non limited reality.
This paradigm must act in consonance with the principle of non-discrimination in the
treatment of investors, as discussed in the case Parkerings vs. Lithuania.
It is worthy to note the principle of security in juridical relations and the
obligatory subjection of states and individuals to the Democratic Rule-of-Law State
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referred to by JORGE REINALDO VANOSSI (34). In these democratic states,
behavior of government must be exemplary, included in the good governance, rooted in
the ideals of transparency, protection of legitimate expectations of the investor,
freedom, due process, good faith, and with a constant concern for public interest.
Therefore, a new law must only be enforced in the future, according to LEON FREJDA
SZKLAROWSKY (35): “(…) any legislative reform or imposition of the state must
bear in consideration the fundamental guarantees and rights.”
Another essential legal paradigm is the principle of public order, internal or
international, as advocated by GABBA (36). All norms are grounded in criteria of
public order, thus making clear that the retroactive effect is an act that generates effects
contrary to the purpose of Law, which is the realization of harmony, justice and social
peace. These beneficial principles cannot be realized without the corresponding
stability. That is why such guarantee may be classified, as said by Count GRANIER , as
the “very moral of legislation”. Therefore, we might inclusively, at least in theory,
frame acquired rights as a norm of public order. However, the doctrine is not
unanimous. It is important to be aware of the concept of public law as one that preserves
the common good, avoiding confusions with others (which only apparently deal with
public interest. If the international investment contract possesses one of the substantive
paradigms (37) of International Investment Law, informed in the so-called “umbrella
clauses” (38), a violation by the host state in an investment contract must be seen as a
genuine breach of contract.
Courts have had diverging opinions, v.g., whether a typical BIT clause, referring
the observance of obligations, may transform the proven violation of contract in a pact
or Treaty infraction. It seems that whenever a Host State violates the rights guaranteed
by the BITs to the foreign investor it is breaching norms of customary international law
as well as the obligations derived from a treaty that was signed with the state the
investor is from (note that Switzerland, the Netherlands, the United Kingdom and
Germany usually include such a clause in BITs, whereas France, Australia and Japan
only include this disposition in a minority of contracts). These clauses are usually
drafted like this: “Each party must observe any obligation it has incurred in considering
the investment.” It is supposed that there are presently over 2500 BITs and of these 40%
have such a prevision.(39) There is a wide margin for a certain interpretative
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uncertainty, more or less comprehensive, as to what is the meaning of the phrase “any
obligation”.
In a given interpretation, more generous, the idea is to convert every
commitment of the host state in an international obligation as if it were derived from the
violation of a treaty. We adhere to this wider understanding, even though we know that
this thesis presents several frailties (Eureko vs. Poland). Among other possible
inclinations, this orientation allows the investor the right to bring to the table any
contractual divergences with the host state in an international court of arbitration as well
as in state judicial courts. The first approach of a court regarding this “umbrella”
disposition had a much more restrictive view. In SGS vs. Paquistan the court ruled that
interpretation in that sense was not possible, since that clause aimed at converting the
obligation in a commitment similar to the one of an international treaty. The case of El
Paso vs. Argentina was somewhere between the two extremes, but pending towards a
narrower view of this matter.
The substantially moralizing effect of the insertion of a stability clause in
hydrocarbons exploration
Nowadays, the idea of the importance and function of a clause of this nature is
not linear. Some consider that is has no functionality in international law since it forbids
any interference (arbitrary or illegal) of a Host State regarding an investment contract.
Others understand that these would have a merely financial role, allowing
compensations for the investor. Others still consider that they might confer some kind
of secondary protection even in those situations where international law already
provides some protection to the investor. We believe that beyond the edifying effect and
of the contractual justice they represent their insertion is fundamental whenever certain
states do not intend to honor their commitments until the end of the project even though
we know that “paper accepts everything”.
As far as international law goes, we know it is valid, even though the majority of
problems are derived from the interpretation courts or arbiters make of it. That is
because we can reference the existence of international treaties and conventions which
advocate the stability of contracts. This doctrine of internationalization may aid the
investor contributing with a financial solution that may remedy the expropriation, since
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to repel it would be difficult and problem-ridden. Or the investor may not have a strong
enough stability clause in the contract signed with the government or derived from his
license. Or still the introduced clause may apply to a very restricted area, remaining
limited maxime to the fiscal elements. There may also be situations where the investor
needs, from time to time, of government approvals of a discretionary nature, so they can
begin or expand their activity. Or the government-designed objectives may be very
vague, leaving loopholes in a contract totally subject to unilateral changes by the
government. Even if the investor tries to foresee every situation, the government may
ignore the contractual stipulations assumed and impose whatever alteration it may see
fit. In our opinion, it should be written into law in these instruments that its terms are
legally binding for both parties, regardless of subsequent commitments, negotiations or
extension of contracts, except if both parties, by mutual agreement, express in writing
their will to change the meaning of said contracts.
The future of stabilization clauses in the new hydrocarbons contracts: From
classical stability to recent contractual balance
How can investors minimize their risks? They can pay higher attention to the
option of the applicable law. They may decide to introduce a very well-clad clause that
simultaneously comprehends a provision that tolerates the renegotiation of contract and
predicts the cases of force majeure or an abnormal alteration of circumstances. These
are not incompatible. But private parties involved in negotiations do not usually include
renegotiation (40). This hesitation may have to do with considering that they are making
the contractual relationship unpredictable or increasing the costs of the transaction or,
still, making the contract nonobligatory (41).
Another defense of the investor is materialized in the selection of the law (42).
Most agreements would choose the internal law. However, this may mean less
impartiality or worse preparation of the state court to judge these litigations. If both
parties choose national law then this will be the law applied, although questions
referring to nationalization or compensation fall under the jurisdiction of international
law, as far as the responsibility of the state go. In some developing countries it is
considered that the interpretation of a concession contract is a matter of domestic law.
We do not believe this is the right interpretation. Other countries invoke the already
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mentioned theses of the internationalization of contracts, meaning that once a sovereign
state assumes a commitment with a private investor, it cannot change unilaterally the
terms of contract. Contract may be changed only with mutual consent. The parties may
choose to apply only any given international law. That includes enormous difficulties
since, as it is commonly known, international norms aim at regulating relationships
among states. This is a prominent question, to decide which law to apply in case of
conflict. In these conjunctures, the cases will commonly be resolved recurring to
international arbitration. In case both parties choose to apply a law from a third state
that will be the law applicable to the contract. Whatever the choice may be, and
according to the advice of certain doctrine, it seems indispensible to us that the parties
transpose to the contract a strong appeal to the law or to international general principles
(43); if not, we may be before a case where the stabilization clause may lose all of its
functionality. As far as international arbitration goes, we may find innumerous arbitral
resolutions that comprehend this matter, namely Lena Goldfields, LTD, vs USSR,
Sapphire International Petroleum LTD vs National Iranian Oil Company, Saudi Arabia
vs. Arabian American Oil Company. The same occurred in the so called Libyan
Nationalization cases, alluding to three situations where the clauses we here analyze
prevailed and the nationalization carried out by the Libyan government constituted a
breach in International Law. Finally, we have the case Government of Koweit vs.
American Independent Oil. From another angle, it is fundamental to mention that in
many conjunctures certain norms or Principles of Commercial Law do not exist.
Presently, the mention of these clauses is meant to improve their legitimacy and
applicability (44) in more recent investment contracts. Nowadays there is great mention
of economic equilibrium clauses, economic stability clauses or economic or financial
equilibrium clauses.
In short, the primordial issue is that we are dealing with two laws or interests in
open collision, one of law and public interest and the other of private interest. Where
they disagree, we can conclude, in face of the elements here mentioned, that the public
interest is manifestly predominant, even though it provides adequate and reasonable
monetary compensations.
We have seen that in contracts of hydrocarbon exploration that there is urgent
need to appeal to international law since dispositions of stabilization may lose all their
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practical functionality due to the proven present interpretive inconsistency of
international courts of arbitration.
Next, another angle which seems substantial has to do with the circumstance that
those who negotiate and draft this type of contracts must have the greatest care in their
writing, be it in preliminary drafting phase or in the final writings in order to ensure the
actual utility of these dispositions. According to some authors, lessons learned by
negotiators are as follow: the dispositions must always be put in the clearest of writings,
saying exactly what is forbidden.
And in the absence of international legislation that may standardize foreign
investment (which is an aim) as well as of a court exclusively devoted to these matters,
we are left with courts of arbitration which cannot offer the security that foreign
investments need. We return to the age-old enigma of strength, or of its absence, in
International Law. Therefore, in some international settings it is by far preferable to
choose a global treaty on investment and to establish an international court of this
nature that may ensure a standardized formulation, interpretation and application of the
law according to the paradigms of investment protection.
This problem of lack of strength of these clauses may have grown worse due to the fact
that investors do not possess the same “negotiation superiority” they had in the former
era of concessions.
Another outcome might be the reduction of the duration of oil investment
contracts.
To conclude, it seems fundamental to us that both parties introduce a clause of
economic equilibrium in their oil investment contracts and agree to a BIT or a MAI. It is
a cautious position that frankly benefits the party. If not, we will allow new loopholes to
emerge, and there will be new forms of getting round (v.g. indirect expropriation) or to
“soften” the juridical effects that were intended with the introduction of a stabilization
clause in contracts and the latter loses all reason of existence. Or else we could easily be
tempted to say that these clauses have no actual function at all. Which we don’t agree.
Luanda, 9th July 2010
NOTES
(1) SHEMBERG, ANDREA, Stabilization Clauses and Human Rights, International
Finance Corporation World Bank Group, UN, 27-05-2009, pages viii and 10-11.
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(2) Cameron mentions that relevant jurisprudence in the application of stability
clauses may be divided into two categories.
(3) MANIRUZZAMAN, A. F M. Stabilization in investment contracts and change
of rules in host countries: Tools for Oil and Gas Investors, London, on
26.02.2007.
(4) COALE, MARGARITA T.B., Stabilization clauses in international petroleum
transactions, EMEKA J.’WOKORO, Anchoring Stabilization Clauses in
International
Petroleum
Contracts,
2009,
accessible
in
http://works.bepress.com/emeka_wokoro/1/. PAUL E. COMEAUX e N.
STEPFAN KINSELLA, Reducing Political Risk in Developing Countries:
Bilateral Investment Treaties, Stabilization Clauses, and MIGA &OPIC
Investment Insurance, New York Law School Journal of International and
Comparative law, 1994. BRUNO LEONI, Freedom and the Law, 3rd amplified
edition, Indianapolis, Liberty Fund, 1991.
(5) BLAKE, CASSELS AND GRAYDON LLP, Addressing risk in international
Petroleum
agreements,
07.01.2006,
http://blakes.com/english/view_printer_bulletin.asp?ID=110
(6) PATE, THOMAS J, Evaluating Stabilization Clauses in Venezuela’s Strategic
Association Agreements for Heavy- Crude Extraction in the Orinoco Belt: the
Return of a Forgotten Contractual Risk Reduction Mechanism for the Petroleum
Industry.
(7) MARSHALL, FIONA e DEBORAH MURPHY, Climate Change and
International Investment Agreements: Obstacles or Opportunities- Draft for
discussion,
published
by
the
International
Institute
for
Sustainable
Development, 2009, pages 34 and 35.
(8) YANNACA-SMALL, KATIA, Interpretation of the Umbrella Clause in
Investment Agreements, OECD, Working papers on international investment,
number 2006/03, October 2006.
(9) RODRIGUES, SÍLVIO, Notes taken from the class of Post-Graduation and Gas
on 21.04.2009, Faculdade de Direito Agostinho Neto, Luanda and Art. 1.3 of the
UNIDROIT convention.
(10) Different from a petroleum contract of 1999 in Azerbaijan.
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(11) VERHOOSEL, GAETAN, Foreign Direct Investment and Legal Constraints
on Domestic Environmental Policies; Striking a “Reasonable” Balance Between
Stability and Change, article published in Law and Policy in International Business,
Vol. 29, 1998,
(12) CAMERON, PETER, Stabilization in Investment Contracts and changes of
Rules in host countries: Tools for Oil and Gas investors, cit., page 7.
(13) NWKOLO, AMAECHI, Is there a legal and functional value for the
stabilization
clause
in
international
petroleum
agreements,
http://www.dundee.ac.uk/cepmlp/car/html/car8_article27.pdf.
(14) ASMUS, DAVID, JAY ALEXANDER and STEVE HUNSICKER, The
Developed and Developing World – a look at legal issues facing the industry, Oil
and Gas Financial Journal, July, 2006, page 41.
(15) JOFFE, GEORGE, PAUL STEVENS, TONY GEORGE, JONATAN LUX
and CAROL SEARLE, Expropriation of oil and Gas Investments: Historical, Legal
and Economic Perspectives in a New Age of Resource Nationalism, The Journal of
World Energy Law and Business, 2, number 1, pages 3-23.
(16) ICSID, nº ARB/02/16 (Argentina- USs BIT), Award, 28.09.2007.
(17) ICSID, nº ARB/02/05, Award, 19.01.2007.
(18) Case nº 088/2004 (Czech Republic-Norway BIT), Final Award, 12.04.2007.
(19) CAMERON, PETER D., Property Rights and Sovereign Rights: The case of
North Sea Oil, Academic Press, 1983.
(20) KOLO, ABBA and THOMAS WALDE, Renegotiation and Contract
Adaptation in International Investments Projects- Applicable Legal Principle and
Industry Practices, Journal of World Investment, Volume 1, July 2000, Number 1.
(21) A. DAES, ERICA IRENE, in the National Native Title Conference, in
Adelaide,
on
03.06.2004,
http://www.hreoc.gov.au/about/media/speeches/social_justice/natual_resources.html
ALFREDO RUY BARBOSA, A natureza jurídica da concessão para a exploração
de petróleo e gás natural, Temas de Direito do Petróleo e do Gás Natural II,
organized by PAULO VALOIS PIRES, Lúmen Juris Publisher, Rio de Janeiro,
2005, pages 1-23.
(22) TORDO, SILVANA, Fiscal Systems for Hydrocarbons – Design issues, World
Bank Working Paper, no. 123, cit., pages 14-15.
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(23) QUINTANS, LUÍS CEZAR P., A cláusula de estabilidade tributária nos
contratos publico-privados, Jus Navigandi, Teresina, Year 9, no. 561.
(24) SCHEUER, CHRISTOPH, Consent to Arbitration, TDM, 2, Nº. 5, November
2005.
(25) ORTINO, FREDERICO, Latest developments in investor- state dispute, IIA
Monitor n° 1 (2008) International Investment Agreements, United Nations
Conference on Trade and Development, Geneva, TODD WEILER, International
Investment Law and arbitration, Leading cases from ICSID, NAFTA, Bilateral
Treaties and Customary International Law, Cameron May Ltd. International Law
and Policy, 2005, England.
(26). SCHEUER, CHRISTOPH H, The concept of expropriation under the ECT and
other Investment Protection Treaties, TDM, 2, No.5, November 2005, pages 105169.
(27) YANNACA-SMALL, CATHERINE, Indirect Expropriation and the Right to
Regulate in international Investment Law, OECD, Working Papers on international
investment, No. 2004/4, September 2004, pages 3-4.
(28) PRYLES, MICHAEL, Lost Profit and Capital Investments, 2008, page 1,
http://www.arbitration-icca.org/articles.html?author=Michael_Pryles&sort=author,
ROBERT J. INCOLLINGO, Liability: Where does is come from and where does it
end?, http://www.irinfo.org/articles/article_2_2004_incolingo.html.
(29) ICSID no. ARB/03/28 (Argentina Germany BIT), Award, 6.02.2007.
(30) ICSID no. ARB/02/5, Award, 19.01.2007.
(31) ICSID no. ARB/01/3 (Argentina- United States BIT), Award, 22.05.2007.
66
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(32) M.C.I. Power Group L.C. and New Turbine, Inc vs. Equador, ISCID Case no.
ARB/03/6 (Equador – United States BIT), Award, 31.07.
(33) ICSID no. ARB/05/08 (Lithuania Norway BIT), Award, 11.09.2007.
(34) GABBA, CARLO FRANCESCO, Teoria della retroattività delle leggi, I, 3rd
edition, Torino 1891-99, page 19, TEREZA APARECIDA ASTA GEMIGNANI, O
direito adquirido e a republicização do Estado, Multidisciplinary study, Revista do
Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, São Paulo, no. 10, page
68, 2000 in http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/19109
(35) quoted by CHARLLES ROCHA, Direito adquirido e estabilidade, November
1995,
libertas, informative agency of UFPI,
1,
no.1, 01.11.1996 in
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp/id=378.
(36) SZKLAROWSKY, LEON FREJDA, Irretroatividade da lei, Jus navigandi,
Teresina, 7, no. 66, June 2003, in http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4190
(37) GRANIER( 1815) quoted by TEREZA APARECIDA ASTA GEMIGNANI, O
direito adquirido e a republicização do Estado, cit.., page 68, 2000 in
http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/19109.
(38) DOLZER, RUDOLF and CHRISTOPH SCREUER, Principles of International
Investment Law, February 2008, Oxford University Press.
(39) MAHNAZ MALIK, The Expanding Jurisdiction of Investment-State Tribunals:
Lessons for Treaty Negotiators, Issues in International Investment Law, Background
Papers for the Developing Country Investment Negotiators’ Forum, Singapore, 1st
and 2nd October 2007, THOMAS WÄLDE, The umbrella clause in investment
arbitration- A comment on original intentions and recent cases, The Journal of
world Investment and Trade, 6, no. 2, April 2005, Geneva and A.C. SINCLAIR, The
origins of the umbrella Clause in the International Law Investment Protection”,
Arbitration International 2004, Volume 20, 4, pages 411-434.
67
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(40) GILL, GEARING e BIRT, Contractual Claims and Bilateral Investment
treaties: A comparative Review of the SGS Cases (20040 21:5 J. Int Arb. 307),
corroborated by MAHNAZ MALIK, The Expanding Jurisdiction of InvestmentState Tribunals: Lessons for Treaty Negotiators, cit., especially page 6 (vide
comments
on
pages
8-11)
in
<http://www.iisd.org/investment/capacity/dci_forum_2007.asp>.
(41) BROWN, ROLAND, Contract stability in international petroleum operations,
The CTC Reporter, Number 29, Spring 1990, page 57.
(42) YUKIO GOTANDA, JONH, Renegotiation and adaptation clauses in
Investment Contracts, revisited, Vanderbilt Journal of Transnational Law, Volume
36, 2003, pages 1461-1473.
(43) MANIRUZZAMAN, A.F.M., State Contracts in Contemporary International
Law: Monist versus Dualist Controversies, European Journal of International Law,
volume 12, number 2, 2001, pages 309-328.
(44) P. SUBEDI, SURYA, International Investment Law: Reconciling Policy and
Principle, Hart Publishing Ltd, Oxford and Portland, 2008.
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Análise de correlação versus regressão linear?
Uma lição básica para jovens investigadores das Ciências Sociais
João E. Van Dunem
Professor na Universidade Católica de Angola
Introdução
O título do artigo que o leitor tem em mãos é sugestivo quanto ao seu teor e
público-alvo. Tomando como ponto de partida a aprendizagem das técnicas empregues
em toda a parte para quantificar a força da relação entre fenómenos socioeconómicos,
aos olhos de qualquer jovem investigador das ciências sociais pode afigurar-se tentador
questionar se a opção pela análise de correlação torna a regressão linear inútil ou viceversa. Ao fim ao cabo, merecem estes dois instrumentos que os métodos estatísticos
proporcionam ao tratamento da informação ser tratados como instrumentos alternativos?
Este ensaio ambiciona pois, entre outras coisas, oferecer ao leitor uma resposta
convincente a esta interrogação. Iremos deixar bem patente que a resposta favorece um
não: quer isso dizer que não devemos subestimar nem um nem outro método de análise.
Antes pelo contrário, é essencial encarar ambos os métodos como instrumentos de
análise indissociáveis, que se entrosam numa lógica de complementaridade. Ora, é
justamente isso que procuraremos pôr aqui em prática, com uma lição sobre como fazer
o estudo formal do grau de associação entre duas variáveis pertencentes à esfera das
ciências sociais.
Na perspectiva do leitor, esta lição tem a vantagem de ser breve e de fácil
abordagem. Iremos passar em revista alguns conceitos chave como a co-variância da
amostra e o coeficiente de correlação, demonstrar de que forma os dois conceitos estão
relacionados entre si e, finalmente, introduzir aquilo que em métodos estatísticos é
conhecido como o método de regressão linear. Trata-se de uma abordagem que será
realizada em três etapas e em que o exemplo escolhido é hipotético, apresentando dados
meramente fictícios sobre as vendas de um certo produto alvo e seus respectivos
anúncios televisivos na véspera. Talvez seja oportuno insistir que qualquer investigador
sério e empenhado que se dedique ao estudo de problemas relacionados com as ciências
sociais tem a obrigação de estar familiarizado com estes conceitos.
1. Etapa nº 1: A Co-variância e o Coeficiente de Correlação
Podem ser variadas as situações, no âmbito das ciências sociais, em que um
investigador ou analista procura apurar o grau de associação entre duas variáveis.
Importa pois frisar que, em tais casos, a análise de correlação pode ser um instrumento
de enorme utilidade. O ponto fundamental que devemos reter no que toca a este método
de análise é que não permite aferir nada sobre causalidade (ou seja, estabelecer o
sentido da relação de causa e efeito), e deste modo, apenas proporciona ao analista um
esclarecimento sobre a força da relação entre duas variáveis. Além disso, é preciso não
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desprezar o facto da análise de correlação só ser eficaz no contexto de relações lineares,
não sendo portanto apropriada para detectar relações entre variáveis cuja natureza não
seja do tipo linear.
Concentremo-nos, em primeira instância, na co-variância, uma das duas noções
usadas por excelência em análise de correlação. A fórmula para a co-variância da
amostra é dada pela seguinte expressão:
(A)
Nota: A fórmula para a co-variância da população (de tamanho N) é a seguinte:
(B)
Nas fórmulas para (A) e (B) apresentadas acima, note-se que cada observação X
tem como par uma observação Y correspondente. A soma dos produtos dos desvios de
X e Y em relação às médias respectivas é, assim, dividida por N ou n - 1, consoante
estejamos a lidar com uma população ou amostra.
De forma a facilitar um melhor entendimento sobre a aplicação destes conceitos
estatísticos, prestemos atenção a um exemplo concreto. Assume-se que a variável X
indica o número de spots comerciais que vão para o ar num canal de Televisão numa
sexta-feira à noite. Y representa as vendas (em milhares de Kwanzas) do produto alvo
no dia seguinte, ou seja, Sábado.
Tabela 1. Cálculos para o valor da co-variância da amostra
(
2
5
1
3
4
1
5
24
28
22
26
25
24
26
∑ = 21
∑ = 175
-1
2
-2
0
1
-2
2
4
25
1
9
16
1
25
∑=0
∑ = 81
-1
3
-3
1
0
-1
1
∑=0
48
140
22
78
100
24
130
∑ = 542
A partir deste exemplo, utilizando os dados da tabela 1,
)(
1
6
6
0
0
2
2
)
∑ = 17
e
. Usando (A), obtemos então:
=
O termo da co-variância aparentemente indica uma relação positiva e forte entre
os anúncios comerciais e as vendas. Nesta fase, convém contudo acolher este resultado
com alguma prudência. A magnitude do termo da co-variância pode facilmente induzir
em erro visto que o seu valor é influenciado pelas unidades de medida escolhidas. Por
70
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exemplo, se a variável X é medida em termos do número de anúncios e a variável Y
medida em termos de centenas de Kwanzas, a medida da co-variância será sensível a
estas novas unidades. De facto, é possível constatar que quanto mais pequenas forem as
unidades, maior será o valor da co-variância quando objectivamente não existe nenhuma
diferença na relação subjacente.
É inevitável, portanto, reconhecer que este termo da co-variância não é robusto a
variações nas unidades de medida e por isso necessita de ser corrigido ou, como é hábito
dizer-se na gíria mais técnica, “estandardizado”. Para tal, faz-se apelo ao conceito do
coeficiente de correlação de Pearson, definido para dados numa amostra pela fórmula
seguinte:
(C)
onde
= coeficiente de correlação da amostra,
desvio-padrão de X na amostra,
= co-variância da amostra,
=
= desvio-padrão de Y na amostra.
Aviso: O coeficiente de correlação de Pearson para dados de uma população de
tamanho N é dado pela expressão:
onde
= coeficiente de correlação da população,
= desvio-padrão de X na população,
= co-variância da população,
= desvio-padrão de Y na população.
(C) é geralmente referido como o coeficiente de correlação de Pearson da
amostra. Este instrumento estatístico é calculado dividindo a co-variância da amostra
pelo produto do desvio-padrão de X e do desvio-padrão de Y. É possível usar os dados
da tabela 1 para efectuar o cálculo do coeficiente de correlação. O desvio-padrão de X e
o desvio-padrão de Y vão ser dados pelas expressões:
=
= 1.7321
=
= 1.9149
O coeficiente de correlação de Pearson pode, finalmente, ser calculado com a
seguinte fórmula:
=
= 0.854
O coeficiente de correlação pode situar-se entre -1 e +1. Um coeficiente de
correlação de uma amostra precisamente igual a +1, implica que todos os pontos de um
conjunto de dados localizam-se numa recta com declive positivo. No caso do
coeficiente de correlação ser exactamente igual a -1, todos os pontos localizam-se numa
71
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recta de declive negativo. Neste caso específico, o valor estimado para o coeficiente de
correlação de 0.854 sugere uma relação muito forte, positiva e linear entre os anúncios
de televisão à Sexta e as vendas ao Sábado.
O coeficiente de correlação é seguramente um indicador estatístico que suscita
interesse já que pode ser usado para estudar inter-relações lineares entre variáveis
embora, em última análise, não deixe de ser um instrumento quantitativo questionável
em alguns aspectos do estudo das variáveis em questão. Primeiro, não existe
possibilidade de se retirar conclusões quanto à causalidade (qual das variáveis exerce
influencia sobre a outra?); segundo, a sua aplicabilidade está reservada para relações
cuja forma é estritamente linear, não podendo assim servir para detectar relações não
lineares; terceiro, a possibilidade para se testar outras hipóteses sobre o coeficiente de
correlação para além deste ser igual a 0 é bastante limitada.
2. Etapa nº 2: Análise de Regressão Simples
A etapa anterior, a análise de correlação, permite pôr em prática um método
estatístico com o qual é possível conhecer o grau de associação linear entre duas
variáveis. Ora, a análise de regressão pretende ser mais ambiciosa, indo mais longe e
procurando determinar a relação funcional (natureza e forma), entre duas (ou
eventualmente mais) variáveis. A análise de regressão baseia-se na formulação de um
modelo matemático que supostamente permitiria representar o comportamento do
fenómeno sob estudo. O modelo de regressão mais básico é o modelo de regressão
simples que é um modelo de regressão linear com duas variáveis: uma das variáveis é
prevista através do uso de uma outra e será necessário recorrer à teoria para determinar
a direcção da causalidade, um requisito que não era necessário quando estudámos a
análise de correlação.
A variável que é prevista tem o nome de variável dependente ou variável
explicada e é convencionalmente designada por Y. A outra variável, por costume
designada por X, é conhecida como variável independente ou variável explicativa. O
método de regressão simples baseia-se na escolha da recta que melhor se adequa
linearmente aos dados.
Para exemplificar o uso da análise de regressão, vamos agora utilizar os mesmos
dados da tabela 1. A equação para uma recta é dada pela expressão seguinte:
Y= mX+c
onde m é o declive da recta e c é a intercepção da recta. Consideremos no diagrama de
dispersão abaixo os dados sobre anúncios de TV (X) e as vendas correspondentes (Y).
A relação positiva entre as duas variáveis é bem patente. O objectivo da análise de
regressão linear é, no fundo, descobrir a recta que melhor descreve os dados observados.
72
LUCERE
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Os modelos matemáticos podem ser determinísticos ou probabilísticos. Desde
logo, convém prestar aqui um esclarecimento relativamente a estes dois termos. Os
modelos determinísticos visam produzir um resultado exacto para um determinado
input. O modelo probabilístico, ao invés, consiste numa equação, recuperando de novo
o nosso exemplo, que procurará relacionar as vendas ao Sábado com a publicidade à 6ª
feira e que não irá produzir uma previsão exacta das vendas ao Sábado. Isto acontece
mercê da existência de outros factores importantes envolvidos na explicação das vendas,
contudo negligenciados pela relação matemática. Desta forma, o modelo probabilístico
irá certamente gerar previsões com uma componente de erro. O modelo probabilístico
de regressão para uma determinada população pode exprimir-se da seguinte forma:
A componente
representa a parte determinística do modelo
probabilístico enquanto a componente
representa a parte aleatória do modelo. A
verdade, porém, é que a análise de regressão usa tipicamente dados de uma amostra e
não de uma população o que leva a que α e β não sejam facilmente alcançáveis e devam
ser estimados a partir das estatísticas e , estas sim resultantes da amostra. Sendo
assim, podemos re-escrever:
73
LUCERE
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Em análise de regressão, assume-se um número importante de pressupostos
sobre o termo , termo incluído na recta de regressão da população. São eles:
a)
(o valor esperado de
é igual a 0, logo a média é 0)
b)
(o valor esperado de
ao quadrado é uma constante)
c)
onde ≠
(a co-variância entre
é igual a 0; isto é, as
componentes residuais na regressão da população são totalmente independentes,
temporalmente ou espacialmente)
d)
(as componentes residuais na regressão da
população têm uma distribuição normal com média de 0 e variância constante;
este pressuposto está conforme os 2 primeiros pressupostos mas com a
introdução explicita do pressuposto da normalidade)
Não faz parte dos objectivos do artigo explorar estes pressupostos. Contudo,
convém lembrar que se os distúrbios violarem qualquer um destes pressupostos, as
consequências para os valores estimados do modelo de regressão poderão ser
prejudiciais. Por exemplo, se o pressuposto de normalidade for violado, poderá ser um
sinal da existência de valores extremos (“outliers”), o que por si exige uma investigação
mais aprofundada.
Voltemos agora ao assunto da estimação. Os valores para
e podem ser
obtidos com o método dos mínimos quadrados. A recta “ajustada”, representada pela
intercepção e pelo declive é a recta que minimiza a soma dos erros ao quadrado.
Um erro em análise de regressão é o desvio vertical do valor observado de Y em relação
ao valor de Y estimado pela intercepção e pelo desvio . Uma vez que os erros, os
desvios entre os valores observados e os valores ajustados podem ser positivos ou
negativos, vamos elevá-los ao quadrado para assegurar que estes não se cancelam entre
si. O valor Y estimado pela recta de regressão, ou seja, pela intercepção ɑ e pelo declive
b vai ser dado por:
Os valores previstos de Y são previstos através da recta de regressão. O resíduo
ou erro é simplesmente a diferença entre o valor de Y e o valor previsto de Y e pode ser
definido pela expressão
. Chegamos finalmente à soma dos erros ao quadrado,
definida por:
pois
74
LUCERE
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Há vários métodos para estimar os coeficientes da recta de regressão e . Um
deles, bastante divulgado devido às suas propriedades, consiste em minimizar a soma
dos erros ao quadrado (SEQ). Como devemos proceder? É simples, basta usar a
diferenciação parcial da SEQ com respeito a e . Para maior simplicidade, vamos
suprimir nas derivações seguintes os subscritos .
A. Escrever a derivativa parcial de SEQ com respeito a
e
e igualá-la a 0.
(condição de primeira ordem)
(condição de primeira ordem)
Estas duas equações constituem em conjunto aquilo que em métodos quantitativos
se conhece por condições de primeira ordem. Como temos 2 equações e 2
incógnitas ( e
estas equações podem ser solucionadas!
B. Vejamos de seguida a primeira equação.
Se multiplicarmos por –( ) obtemos:
=0
sendo que
Procurando uma expressão para
C. Temos deste modo uma expressão para a intercepção da recta
Olhemos agora
para a segunda equação. Multipliquemos então a equação por –( ):
Expandindo, obtemos:
Substituindo a expressão encontrada para
na equação:
Multiplicando por -1 e rearranjando a equação, temos:
Estamos agora mais perto de encontrar uma solução para :
75
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É possível demonstrar que
E também que:
Deste modo, uma alternativa à fórmula anteriormente encontrada para o declive
da recta é:
Embora esta nova fórmula seja sem dúvida alguma mais compacta, a fórmula
anterior é mais fácil para efeitos de implementação do cálculo. Se aproveitarmos os
dados reportados na tabela 1, podemos facilmente encontrar valores para estimar o
declive e a intercepção da recta. Se o leitor reparar com atenção, há duas colunas
que não foram utilizadas em cálculos anteriores e que contribuem para calcular o
coeficiente . Sendo assim:
Naturalmente, agora é mais fácil encontrar o valor para a intercepção :
Em suma, a estimativa para a intercepção com a aplicação do método dos
mínimos quadrados é igual a 22.18 e a estimativa para o coeficiente do declive da recta
é 0.94. Como interpretar estes coeficientes? A interpretação para é simples: é o nível
autónomo de vendas que ocorrem mesmo sem publicidade televisiva. No caso da
interpretação para o outro coeficiente, indica o efeito de um anúncio extra no volume
das vendas. Assim, um aumento à 6ª feira para mais um anúncio aumenta o volume de
vendas em 0.94 Kwanzas × 1000, ou seja, 940 Kwanzas.
3. Etapa nº3: O Coeficiente de Determinação (R²)
Ninguém pode negar que o método dos quadrados mínimos possibilita uma
aproximação linear à relação entre as variáveis X e Y, como se viu através do exemplo
utilizado neste artigo. Mas a grande questão que se coloca diante de nós neste momento
e que vai merecer tratamento nesta terceira etapa consiste em saber até que ponto esta
aproximação poderá ser considerada boa.
Já definimos SEQ no ponto anterior.
76
LUCERE
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A esta quantidade mensurável dá-se muitas vezes a denominação de componente
inexplicada. Além do mais, é possível aproveitar a nuvem de pontos e medir uma outra
quantidade, a soma total dos quadrados (ou, em alternativa, soma do quadrado dos
desvios totais), adiante designada por SQT, em que a preocupação doravante seria
apenas quantificar a soma das distâncias entre as observações de Y e o valor da média
de Y (e não Y previsto pela regressão), previamente elevadas ao quadrado. O leitor
atento terá presumivelmente dado conta que esta medida, divida pelo número de
observações, resultará no cálculo da variância:
Finalmente, a partir da nuvem de pontos, podemos chegar a uma medida idêntica
que permita quantificar a parte da variação de Y em relação à média de Y que pode ser
explicada pela variável X. A esta medida, que podemos considerar a componente
explicada pela regressão, chamaremos de variação explicada de Y (VEY).
Assim fazendo, é possível apresentar uma particularidade na relação entre as três
quantidades, SEQ, SQT e VEY:
SQT = VEY + SEQ
Sem grande dificuldade, pode-se calcular então as previsões para as sete
observações do nosso exemplo (usando a recta de regressão), medir a diferença entre os
valores actuais e previstos pela recta de regressão e, por fim, estimar o valor de SEQ. A
tabela seguinte reúne resumidamente os cálculos efectuados.
77
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Tabela 2. Os cálculos de SEQ e SQT
X
Y
Previsão de
Y
Y – Previsão de Y
(Y – Previsão de Y)²
2
24
24.06
-0.06
0.0036
1
5
28
26.88
1.12
1.2544
9
1
22
23.12
-1.12
1.2544
9
3
26
25.00
1.00
1.0000
1
4
25
25.94
-0.94
0.8836
0
1
24
23.12
0.88
0.7744
1
5
26
26.88
-0.88
0.7744
1
Σ = 21
Σ = 175
Σ = 5.976
Σ = 22
A partir dos resultados apresentados na tabela acima, SEQ é igual a 5.976, SQT
é igual a 22 e VEY (22 – 5.976) é igual a 16.024. Verifica-se, pois, que estamos agora
numa posição privilegiada para avaliar a qualidade do ajustamento da recta de
regressão. O coeficiente de determinação (R²), definido como a proporção da variação
de Y que pode ser atribuída à variação da variável X, é precisamente a medida principal
para esclarecer este tipo de questões. No caso do coeficiente de determinação atingir um
valor elevado, não só a qualidade do ajustamento será boa como também a proporção da
variação de Y explicada pela variável X será significativa. O coeficiente de
determinação é definido pela expressão:
Em jeito de balanço, pode-se concluir que cerca de 73% da variação nas vendas
pode ser explicada pela variação em publicidade. Mais curioso ainda: é possível
demonstrar que o coeficiente de correlação calculado na primeira etapa, quando elevado
ao quadrado, é aproximadamente idêntico ao valor estimado para o coeficiente de
determinação. O valor do coeficiente de correlação encontrado é igual a 0.854 e depois
de o elevarmos ao quadrado é igual a 0.729. Diante da evidência aparente de uma
relação causal entre vendas e publicidade, deve-se no entanto acautelar o leitor contra a
grave tentação de se falar em causalidade em contextos em que o método de análise
78
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posto à disposição do investigador circunscreve-se àquele que foi apresentado na
primeira etapa do presente artigo.
4. Observação final
Este ensaio tem uma simples finalidade: sintetizar alguns princípios básicos para
uma abordagem quantitativa do grau de relação entre dois fenómenos, sejam eles de
natureza social ou económica. Fazendo recurso a uma linguagem acessível, o ensaio é
concebido para corresponder eficazmente às necessidades das novas gerações de
estudantes angolanos das ciências sociais e humanas, prestes a vir a desempenhar
funções de alta responsabilidade enquanto economistas, gestores ou investigadores em
Angola.
Devemos sempre encarar os factos como eles se apresentam. Para alcançar a
verdade dos factos, é preciso analisá-los com método e rigor científico, sem qualquer
tipo de rodeios ou tendenciosidade: tudo se joga no reconhecimento da importância de
dispormos de instrumentos práticos como aqueles que aqui vimos que, em última
análise, possam permitir uma tomada de consciência da realidade em que vivemos.
Referências
R L Thomas – Modern Econometrics (Addison Wesley)
Jack Johnston, John Din Nardo – Econometric Methods (McGraw Hill)
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LUCERE
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DA IMPORTÂNCIA DA UTILIZAÇÃO DE CULTIVARES DE QUALIDADE E
DO MELHORAMENTO DE PLANTAS EM ANGOLA
J.M. Peres do Amaral
Eng.º Agrónomo
I. DO PESO DAS BOAS CULTIVARES NA PRODUÇÃO AGRÍCOLA
A produção agrícola compensadora é condicionada por determinados princípios
que não actuam isolados, mas de modo interdependente, que se conjugam numa lei dita
dos factores limitantes. Segundo esta lei, o mais baixo nível de um factor impede o
efeito positivo de todos os demais, ainda que estes abundem.
Em escritos anteriores discorremos sobre dois factores fundamentais no
condicionamento da produção e da produtividade agrícola: a fertilidade do solo e as
disponibilidades hídricas.
No presente artigo trataremos de uma terceira questão básica para o aumento da
produção e melhoria dos rendimentos unitários, e que é, também ela, um factor
restritivo do desenvolvimento agrícola: a qualidade das sementes e propágulos usados
no cultivo.
O reconhecimento do peso das boas cultivares na produção agrícola vem de
longe. Em 1600, Oliver de Serres já afirmava que “a escolha de boas sementes é um dos
factores mais importantes para a produção de cereais, porque colheita mais que
miserável se pode esperar de sementes de má qualidade”.
As exigências que se põem relativamente à qualidade das cultivares utilizadas na
cultura colocam-se, no geral, no quadro dos seguintes quesitos:
i) Produtividade, traduzida na aptidão para proporcionar um rendimento elevado,
quando colocada em meio conveniente e lhe são dispensadas as melhores
técnicas culturais.
ii) Regularidade de rendimento, aplicada à capacidade de atenuação das oscilações
nas condições do meio, e que confere uma certa aptidão de adaptação da cultivar
à relação clima x solo, ao meio biológico e às técnicas culturais.
iii) Qualidade do produto, referida esta característica, actualmente e cada vez mais,
ao meio biológico e às técnicas culturais.
Cada cultivar é, portanto, caracterizada pela sua produtividade, pela expressão
da sua adaptabilidade, e pela qualidade da produção que fornece.
A cultivar ideal não existe, porque impossível reunir num só individuo os
inúmeros atributos atrás compendiados. Não sendo possível dispor de uma cultivar
muito produtiva, fornecedora de um produto de grande qualidade e, simultaneamente,
80
LUCERE
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resistente às adversidades do meio e a todos os inimigos, a melhor cultivar será a que
proporciona o melhor rendimento médio de um produto de qualidade.
A observação da produtividade actual das principais culturas praticadas no País
leva à conclusão que todas, tanto alimentares como comerciais, apresentam índices
muito baixos, relativamente ao que se verifica noutros países africanos, alguns com
condições naturais menos favoráveis.
Entre os principais factores que limitam as produções dessas culturas, para além
da problemática da fertilização dos solos e nutrição das plantas e da disponibilidade de
água, coloca-se sem dúvida, a questão da utilização de sementes e propágulos de
qualidade, certificados, problema, em geral, com maior incidência nos cereais (milho,
massango, massambala, arroz, trigo), hortofrutícolas, batata, mandioca e algodão.
II.
DOS PROCESSOS DE MELHORAMENTO DE PLANTAS
O homem sempre perseguiu o objectivo da obtenção de plantas de qualidade,
tendo em vista a utilização de cultivares adaptadas aos diferentes sistemas agrícolas,
com maiores e melhores produções e com menos custos.
O emprego de cultivares importadas – diferentes das existentes em determinada
região – por razões de volume da produção, da geração de bens de qualidade, ou de
resistência a pragas e doenças locais, é frequente e tão assíduo que não há, praticamente,
país algum que não lance mão desse recurso. Isto pode considerar-se, já por si, como
uma prática de melhoramento.
Mas pese embora a existência de uma extensa bibliografia descrevendo inúmeras
experiências com cultivares exóticas, levadas a cabo em diversas partes do globo, que
permite inferências sobre espécies e variedades a eleger, a opção final a favor desta ou
daquela tem que apoiar-se em resultados de uma experimentação “in loco”, o que, como
é evidente, impõe uma série de averiguações de ordem agronómica e carrega diversas
contingências.
Outra forma de incrementar o emprego de melhores cultivares, também já muito
generalizada, é a do recurso a material local geneticamente melhorado, que se revela
mais eficiente e capaz de tirar maior proveito das condições e factores de produção
disponíveis.
O melhoramento genético utiliza a biotecnologia, campo de actividade em que
diversas áreas científicas e tecnológicas se interligam para conseguir, por exemplo, o
aumento da produtividade, a melhoria da qualidade, o maior tempo de conservação dos
produtos, a resistência às pragas, doenças e infestantes.
A técnica tradicional do melhoramento genético recorre à hibridação
compreendendo o cruzamento entre entidades genéticas diferentes, tais como: espécies,
variedades, proveniências e linhas seleccionadas. Trata-se de um procedimento moroso,
nem sempre permitindo uma previsão do produto final e que não garante que as
características de interesse se revelem integralmente da forma desejada.
Uma intervenção relativamente recente da biotecnologia na agricultura consiste
na produção de plantas geneticamente modificadas (variedades geneticamente
modificadas – V.G.M.). A informação genética nestas V.G.M. resulta de alterações de
uma forma que não ocorre na natureza por meio de recombinação natural. Através da
manipulação do ácido desoxirribonucleico (DNA) introduz-se um fragmento genómico
de interesse num hospedeiro adequado, tornando possível combinar sequências de DNA
de animais e plantas ou destes com microorganismos.
81
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
O desenvolvimento de culturas geneticamente modificadas operou-se com
alguma rapidez, mas assiste-se, ultimamente, a uma certa oposição social, que clama
pela adopção do princípio da precaução em virtude de dúvidas que se põem quer no que
respeita à preservação da natureza e meio ambiente como no que se refere à saúde.
III. DO MELHORAMENTO DE PLANTAS EM ANGOLA
O melhoramento de plantas em Angola teve início, praticamente, nos séculos
XV / XVI, dinamizado pelos religiosos empenhados no estabelecimento de Missões e
pelos colonos que, tentados pela actividade agrícola, trouxeram e mandaram vir da sua
terra sementes e estacas. Desde cereais às fruteiras e hortícolas, passando pelas
oleaginosas, plantas forrageiras e produtoras de fibra, missionários e colonos
experimentaram o cultivo de formas que lhes eram familiares.
O estabelecimento de explorações agrícolas de maior ou de menor dimensão
levou ao aumento das importações de sementes e propágulos, muitas vezes induzido
pelo insucesso de algumas formas lançadas no cultivo. Da Europa, da América do Norte
e do Sul, da Ásia, vieram sementes e propágulos de inúmeras cultivares para Angola, e,
assim, ainda que empiricamente, se contribuiu, sem dúvida, para o melhoramento.
Mas o recurso a forma importadas, se bem que processo cómodo e, de certo
modo, económico, nunca se mostrou capaz de contornar o inconveniente, de ocorrência
frequente, de resultados muito falíveis. Na verdade, não é de todo expectável que
sementes e propágulos importados mostrem plasticidade bastante para uma inteira
adaptação a condições diferentes daquelas em que e para que foram criados ou
produzidos.
Foi essa conclusão que acabou por conduzir à decisão do desenvolvimento de
projectos locais de melhoramento de plantas e reprodução de sementes para a
agricultura angolana.
A primeira tentativa estruturada de melhoramento de plantas no território foi
realizada por volta de 1920, pelo Engº Seromenho Romão, na intenção de resolver a
problemática do “trigo das chuvas”, que consistia no facto das searas desenvolvidas
durante a quadra pluviosa serem frequentemente devastadas por violentas epidemias de
ferrugem. Mas foi nos anos 30, porém, que o melhoramento e reprodução de sementes e
plantas registou progressos palpáveis, graças ao desenvolvimento de um trabalho
persistente e com carácter de continuidade, modelado por determinações estabelecidas
em regulamentos.
No quadro das Bases Orgânicas dos Serviços de Agricultura da Colónia, fixadas
em 1927, foi aprovado, em 1934, o “Regulamento das Estações de Melhoramento e
Reprodução de Sementes e Fruteiras dos Planaltos de Angola”, que visava,
fundamentalmente, a produção em larga escala “de sementes seleccionadas, de enxertos,
plantas enxertadas e de cavalos frutícolas e de plantas de café arábica”, para distribuição
gratuita aos agricultores. A este objectivo aliava-se o da melhoria e multiplicação de
diversas plantas consideradas de interesse agrícola, tais como, as forrageiras, as de
sombra e abrigo, as fibrosas, as oleaginosas e as destinadas a siderações. Para além dos
objectivos referidos, pretendia-se que as Estações abrigassem Escolas Práticas
destinadas à preparação de capatazes e monitores agrícolas indígenas, e que servissem
de modelo a núcleos de colonização europeia a instalar em redor.
Ao abrigo do Regulamento citado foram criadas as Estações de Sementes do
Cuíma (no planalto do Huambo), de Malanje e da Huíla (Humpata). Simultaneamente, e
82
LUCERE
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com vista ao alcance dos objectivos expressos, beneficiaram-se as Estações
Experimentais do Algodão (Catete) e do Café (Cazengo), já existentes.
Em 1936, em termos de material melhorado, e gratuitamente, a Estação do
Cuíma distribuiu cerca de 26 toneladas de sementes, a de Malanje 45 toneladas de
sementes e, aproximadamente, 9.000 plantas, e a da Huíla 1 tonelada de semente e cerca
de 12.000 plantas (de fruteiras).
Sem retirar o valor e o mérito das iniciativas relatadas, foi, contudo, a Junta de
Exportação dos Cereais das Colónias que desempenhou um papel determinante no
melhoramento sob bases técnico-cientificas mais elevadas, pelo menos que diz respeito
aos cereais.
No princípio dos anos 40, sob financiamento da Junta, com colaboração dos
Serviços de Agricultura e sob a direcção do Eng.º Agrónomo Saraiva Vieira,
começaram a ser dados passos determinados no melhoramento do trigo, do milho, e de
culturas que, com estes cereais, poderiam intervir na rotação. Numa perspectiva de
trabalho persistente e da viabilidade deste ramo de investigação, instalaram-se, em
1942, algumas colecções vindas de Elvas (Portugal), da Estação de Melhoramento de
Plantas. A colecção incluía 1.800 formas de trigo, cerca de 400 de aveia, 300 de
cevadas, aproximadamente, e um pequeno número de forragens.
Desde início, o programa de melhoramento de trigo visou a obtenção de formas
resistentes às ferrugens – Puccinia graminis tritici Eriks & Henn. e Puccinia triticina
Eriks – causadoras de prejuízos elevados, por vezes totais, e que colocavam em dúvida a
viabilidade do cultivo do “trigo das chuvas” nos planaltos angolanos. De 1940 a 1944,
os trabalhos centraram-se, principalmente, em estudos de adaptação e lançamento na
cultura de algumas variedades, designadamente as Kruger, Kota x Webster e 3606
Kénya. Realizaram-se, também, no período, alguns cruzamentos no propósito de
melhorar a espiga do Kruger, utilizando-se como genitores alguns trigos italianos de
grande densidade de espiga.
Relativamente ao milho, o trabalho de melhoramento centrou-se, até 1944, na
selecção massal rigorosa da variedade angolana branco redondo, a mais carecida de
intervenção, porquanto a interferência de milhos dentados e amarelos obstava o
aparecimento no mercado de lotes sem mistura.
A aveia mereceu, entre 1940 e 1944, pouca atenção: algumas observações das
colecções, e uma selecção natural de certa utilidade, determinada por um virulento
ataque de puccinea coronata.
No que respeita à cevada, cujo programa de melhoramento objectivava a
obtenção de variedades produtoras de elevados teores de malte, os trabalhos realizados
até 1944 limitaram-se ao estudo da colecção e a esporádicos enriquecimentos do
número de formas que a compunham.
No domínio das forragens, em que se perseguia a eleição de formas rústicas
bastante produtivas capazes de garantir alimentação verde no cacimbo, de 1940 a 1944
os trabalhos repartiram-se entre o estudo das colecções, o seu enriquecimento com
novas formas anuais e permanentes, a realização de ensaios comparativos de produção
segundo esquemas estatísticos, e a apreciação do comportamento de alguns capins, em
talhões submetidos a pastagem directa, tidos como prometedores – designadamente dos
géneros MELLINIS, PANICUM e PASPALUM.
A soja foi, também, até 1944, objecto de algumas observações e de ensaios
comparativos de produção.
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Em 1944, a Junta de Exploração dos Cereais das Colónias resolveu adquirir os
terrenos da Chianga, nas vizinhanças da cidade de Nova Lisboa, hoje Huambo, e
instalar aí uma “Estação de Melhoramento de Plantas”.
Em 1945 visitou Angola o Professor Engenheiro Domingos Rosado Victória
Pires, então Director da Estação de Melhoramento de Plantas de Elvas (Portugal), para
observação dos trabalhos sobre o melhoramento de cereais, iniciados em 1942, pelos
Serviços Técnicos da Junta de Exportação dos Cereais das Colónias. Na sequência dessa
visita e de solicitação que lhe foi feita, o Professor Victória Pires traçou um Plano de
Trabalhos visando o Melhoramento de Cereais de Auto-Fecundação (Trigos, Cevadas,
Aveia e Arroz) e de Fecundação Cruzada (Milho e Centeio), de Forragens e, ainda,
Estudos de Adaptação e Multiplicação, de Afolhamentos, e Ensaios de natureza
agronómica.
A esfera de acção da Estação de Melhoramento de Plantas de Angola viu-se
limitada a partir dos anos 50, até 1961, por insuficiência de meios humanos e materiais.
A actividade desenvolvida passou a centrar-se na manutenção das colecções, em estudos
de tecnologia de fertilização em solos do Planalto Central angolano, e, principalmente,
em trabalho de lançamento de novas cultivares de trigo e de melhoramento do trigo e do
milho. Relativamente ao trigo, prosseguiu-se com o programa visando a obtenção de
formas de valor cultural perante as variações das populações de raças de ferrugem, em
consequência de fenómenos de mutação, hibridação e pela introdução de esporos
carreados pelas correntes aéreas; em relação ao milho, deu-se continuidade ao
melhoramento e à produção de sementes das variedades do Branco Redondo e do
Amarelo Maria e a trabalhos de auto-fecundação para a produção de híbridos.
Em 1962 é criado o Instituto de Investigação Agronómica de Angola (IIAA),
ficando a sede e os principais laboratórios instalados na Chianga (na propriedade que
era pertença da Junta de Exportação de Cereais das Colónias, onde se instalara a
Estação de Melhoramento de Plantas), e tendo adstrita uma rede de mais de 12 Centros
de Estudos Regionais.
A estrutura da Instituição compreendia, fundamentalmente, 7 Departamentos
Especializados: Mesologia e Fertilidade do Solo, Biologia Agrícola, Agricultura,
Estudos Florestais e Tecnologia Florestal, Sanidade Vegetal, Engenharia e Tecnologia
Agrícolas e Economia, Sociologia e Planeamento Agrícolas.
O programa de actividade distribuía-se por 21 projectos de investigação
planificada sobre grandes temas, entre os quais 4 no domínio do Melhoramento
Genético e Cultural: Projectos de Melhoramento de Trigo, do Milho, da Palmeira de
Dendém e do Cafeeiro.
O projecto de Melhoramento do Trigo tinha como objectivo a criação e a eleição
de melhoras formas cultivadas de trigo, guiadas fundamentalmente pela resistência às
doenças e por um ciclo vegetativo de resposta às condições ecológicas de Angola, e,
complementarmente, atendendo às questões de produtividade, da qualidade para a
panificação, da resistência à acama, desgrana e a acidentes de diversa natureza. Em,
síntese, o método de melhoramento adoptado constava do uso da hibridação artificial,
estudo e selecção das descendências durante as gerações heterozigóticas, e o estudo
detalhado, em ensaios de campo, do material homozigótico achado prometedor.
No inicio dos anos setenta foram lançados na cultura quatro trigos produzidos
pelo Instituto de Investigação Agronómica de Angola – IIAA: Maia do Vale, Saraiva
Vieira, Bairrão e Pinto.
O melhoramento do milho perseguia os objectivos já antes traçados no tempo da
Estação de Melhoramento de Plantas da Junta de Exportação de Cereais das Colónias:
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a) Obtenção de milhos com maior capacidade produtiva e bem adaptados
às várias zonas de cultura, através do melhoramento das variedades
locais de polinização livre (criação de variedades sintéticas) e da
consecução de boas linhas auto fecundadas e seu uso em programas de
milhos híbridos;
b) Obtenção de formas de milho resistentes ao Helminthosporium
Turcicum Pass., problema preocupante em diversas regiões do País
importantes no contexto da produção e consumo do milho.
O melhoramento da palmeira dendém – Elaeis Guineensis, Jacq. – seguia um
paradigma que atendia os aspectos da quantidade e qualidade do óleo produzido e o
aperfeiçoamento das técnicas culturais, e pretendia beneficiar duas zonas principais do
território: a da média altitude e a faixa litoral.
No domínio do melhoramento genético, o objectivo incidia no cruzamento do
tipo DURAxPISIFERA, com vista à obtenção de sementes híbridas de TENERA, mais
ricas em polpa e capazes de uma maior produção de óleo, e à sua difusão na cultura.
No que se refere ao melhoramento da técnica cultural, o projecto perseguia o
afinamento dos métodos de forçagem de sementes e o estudo e a difusão dos melhores
procedimentos culturais e tecnológicos.
Quanto ao Programa do Café, o objectivo perseguido era o melhoramento
genético e cultural do cafeeiro. O melhoramento genético privilegiava o C. arábica, em
virtude da sua grande susceptibilidade ao ataque de pragas e doenças e do seu maior
valor comercial. O IIAA criou algumas variedades que se revelaram de elevada
produtividade e resistentes à “ferrugem alaranjada”, provocada pela H. vastratix, Bark
& Br.
O melhoramento do arroz e do feijão passou, durante os últimos anos do período
colonial, a ser objecto de alguns procedimentos preliminares por parte do Instituto dos
Cerais.
Em matéria de arroz procedeu-se a selecções massais sistemáticas e à
multiplicação e distribuição de duas cultivares angolanas de muito interesse comercial,
mas altamente degeneradas por uma utilização repetida – o Ruivo de Angola e o Cristal
de Angola, ambas do tipo carolino – e à introdução no cultivo de duas variedades do
tipo agulha, procedentes de Moçambique: Faia e Chibiça.
Relativamente ao feijão, também sob à orientação do Instituto dos Cerais,
buscou-se a selecção e difusão de variedades cuja cultura já se praticava em Angola, e
tinham certo valor comercial enquanto produto de exportação, designadamente de
branco grado, raiado grado, calembe ou verdinho e manteiga.
Para além dos programas referidos, integrados na acção do Instituto de
Investigação Agronómica de Angola, a instituição desenvolvia, também, alguns outros
dedicados aos estudos florestais, apícolas e piscícolas, que não podem deixar de ser
considerados sob a óptica de melhoramento. Os estudos relativos à floresta abrangiam a
introdução e adaptação de espécies exóticas, selecção de proveniências, selecção de
indivíduos, ensaios de descendência de clones seleccionados, processos de condução
técnica/exploração, aproveitamento de espécies florestais autóctones, e os estudos
laboratoriais visando inovações na tecnologia do lenho.
Numa síntese do que tem sido o Melhoramento de Plantas após a Independência,
poder-se-á dizer o seguinte:
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Até 1992, realizaram-se algumas acções nos domínios do melhoramento
genético do milho e da adaptação de diferentes variedades de feijão, amendoim e trigo,
sob a orientação de alguns técnicos expatriados. Há o registo da ineficiência dessa
colaboração, considerada, posteriormente, como um processo incorrecto de cooperar no
plano científico.
No final de 1993, foi proposto um novo sistema nacional de investigação,
assente em Programas de Investigação subdivididos por grupos de culturas. Foram
criados, inicialmente, 4 Programas de Investigação: dos Cerais, de Raízes e Tubérculos,
de Leguminosas e de Hortofrutícolas.
Com o decorrer do tempo estes programas de investigação ganharam uma
abrangência nacional e passaram a abarcar um mais vasto leque de culturas. O Programa
Nacional de Investigação de Cerais passou a incorporar as questões relativas às culturas
do milho, massambala, massango, trigo, arroz, centeio e cevada; o Programa Nacional
de Investigação de Raízes e Tubérculos passou a integrar as culturas da mandioca,
batata doce, batata comum *, inhame e taro; o Programa Nacional de Investigação de
Leguminosas passou a contemplar as culturas do feijão, amendoim e soja; e o Programa
Nacional de Investigação de Hortícolas e Frutícolas passou a privilegiar o tomate,
cebola, pepino, pimento, gindungo e quiabo, e as culturas da banana, manga e citrinos.
A informação recolhida dá conta que a actividade científica no domínio de tais
programas tem sido bastante restrita por razões que se prendem com a disponibilidade
de investigadores/especialistas e com a falta de meios para dinamização das
infraestruturas de apoio à investigação (Estações, Postos e Campos Experimentais)
Relativamente a resultados alcançados no domínio do Melhoramento, a
informação disponível refere a criação, sobretudo sob financiamento de algumas
entidades estrangeiras, de algumas variedades de milho, e estudos visando a introdução
de formas de feijão – também de milho – , de variedades diversas de mandioca, batata
doce e de batata comum, e de variedades de tomateiros com interesse para o cultivo no
País.
Cremos que os trabalhos realizados não se referem, na sua maior parte, a
melhoramento genético, mas sim à introdução, multiplicação e distribuição de novos
clones e variedades e à multiplicação de algumas espécies.
Certamente que estes programas de adaptação/multiplicação terão limitações no
seu cumprimento, pois é notória a falta de pessoal científico qualificado, capaz de
constituir a massa crítica necessária e preencher as exigências dos trabalhos de
condução da experimentação que se intenta realizar.
Para além disso, a maior limitação de tais programas reside no facto de não
resolverem a contento o problema das plantas necessárias para as condições agroecológicas de Angola. Veja-se, por exemplo, a problemática do trigo relativamente à
ferrugem: os trigos tidos como altamente resistentes em determinado país e em
determinado tempo, mostram-se totalmente susceptíveis quando cultivados noutro país,
e noutro tempo, dado que as raças fisiológicas de uma espécie de ferrugem variam de
região para região e novas e mais virulentas raças fisiológicas de Puccineas surgem com
o decorrer dos anos.
* Em Angola, a batata comum – também chamada de inglesa ou europeia – , é
hoje habitual e impropriamente designada, mesmo em documentos oficiais, por
batata rena . Isto decorre da corruptela “ reino” (Reino referido a Portugal, no
tempo da monarquia, de onde os primeiros colonos recebiam o tubérculo para a
sua alimentação, e assim o designavam por batata do reino para destrinçar de
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outros tubérculos ou mesmo rizomas tuberosos então cultivados e consumidos
na Colónia).
IV.
CONCLUSÕES
Um dos requisitos para que os agricultores possam alcançar maiores e melhores
produções é o da utilização de sementes e propágulos de qualidade. Pese embora a
inserção no Plano de Acção do Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural e
das Pescas de um Programa Nacional de Produção de Sementes e Propágulos, cujo
objectivo é o da satisfação das necessidades nacionais em sementes e material de
propagação vegetativa, a introdução de novas espécies e variedades, o controlo da
qualidade varietal e sanitária do material distribuído, o estabelecimento e a certificação
de uma rede de multiplicadores de sementes e viveiristas, a realidade é que o País
continua a registar uma enorme fragilidade em tal domínio.
Seja por recurso a procedimentos tradicionais, seja pela via de manipulações
técnicas mais complexas, o desenvolvimento de programas que levem à utilização de
variedades melhoradas, certificadas do ponto de vista genético e sanitário, adaptadas a
diversas condições, é determinante para os agricultores poderem obter maiores e
melhores produções por unidade de superfície cultivada.
Dado que a agricultura angolana se serve, principalmente, de cultivares
procedentes do exterior, afigura-se conveniente caminhar no sentido do melhoramento e
da produção local de sementes e propágulos próprios para as variadas condições do
País, e da sua certificação do ponto de vista genético e sanitário.
A investigação agrária angolana deverá, portanto, preparar-se de modo a poder
recorrer às modernas tecnologias de melhoramento de plantas, salientando-se, contudo,
que, neste domínio, haverá que graduar as pretensões, dado que a complexidade de
alguns domínios da pesquisa na área da biotecnologia requerem recursos humanos e
materiais de que o País só gradativamente poderá dispor.
Importa não desvalorizar o cunho eminentemente científico do trabalho dirigido
para uma agricultura de baixa utilização de factores. A procura de novas cultivares
susceptíveis de proporcionar bons rendimentos sem grande onerosidade dos factores a
empregar é um dos desafios que o País deve encarar.
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ASIMILADOS E CRIOULOS: MESTRES E APRENDIZES OU COMO O PASSADO DE
PRESENTIFICA
Elizabeth Ceita Vera Cruz
Professora da Universidade Católica de Angola
Resumo
Este texto tem como objectivo desmitificar a ideia-feita relativamente à passividade dos
africanos no concernente à situação colonial. Para o atestar e, no caso dos angolanos,
socorremo-nos da categoria de assimilado e da de crioulo e mais propriamente do seu
papel (de alguns, bem entendido) no âmbito das associações. A partir da situação
colonial, entender como os tentáculos da mesma se fazem sentir na Angola de hoje.
Palavras-chave
assimilados
crioulos
indígenas
colonização
alienação
encarnação
associações
I – Preâmbulo
Se é certo que a política colonial portuguesa teve na assimilação o seu ponto alto
constituindo, deste modo, a pedra de toque da arquitectura colonial, não é menos certo
que o Estatuto do Indigenato foi o seu corolário por ter estatuído e instituído a categoria
de assimilado ao indígenaiii. Foi com base na legislação que a discriminação foi
legitimada, uma política impregnada de ambiguidades e paradoxos sendo que, aqui,
importa salientar o impacto da mesma junto das gentes. Apesar de a política colonial,
com todas as suas matizes, ter sido uma imposição dos colonizados junto dos
colonizadores, importa desmitificar a enraizada ideia de que, os colonizados, terão sido
um elemento passivo em todo este processo. Dito de outro modo, que os colonizados,
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alguns, também eles, não somente terão “colaborado” de forma activaiii como, em
outros tantos casos, terão utilizado essa “colaboração” como estratégia em seu proveito.
Sim, porque no concernente ao papel de resistentes e ao seu contributo na luta de
libertação nacional, melhor ou pior, ele é conhecido. Ora, quanto aos aspectos menos
abordados, mas nem por isso menos importantes, aspectos dir-se-ia subterrâneos por
não se ousar discuti-los mas que foram um elemento incontornável na história de uma
boa parte dos sécs. XIX e XX de Angola, aspectos que, ainda hoje, enformam e
perturbam a sociedade angolana, são estes aspectos a trave mestra deste texto. E porque
a cristalização destes elementos minam o espectro social, uma reflexão em torno das
estratégias de sobrevivência, de adaptação, mas também de assumpção de um “novo
estilo e uma nova visão do mundo” emergem. O colonizado apropriou-se da língua, é
sabido, mas apropriou-se, também, do discurso e de algumas práticas.
Entre os conceitos de papel e o de identidade
O que define o conceito de papeliii, mais do que a posição social ocupada pelo
actor social, são as expectativas e as características individuais dos actores, é o que é
esperado, são as expectativas geradas por essa teia, mais precisamente pela posição
social. Desde logo porque é a sociedade que determina os papéis gerando expectativas
que subjazem aos referidos papéis. Assim, temos que não existe papel sem acção, do
mesmo modo que não existe acção sem papel. A incorporação do papel por parte do
actor, dos múltiplos papéis associados às suas múltiplas funções, não significa, em
última análise, que os actores se identifiquem necessariamente com os mesmos. No
palco da vida, o actor social é um protagonista que não escolhe propriamente os papéis
que desempenha, mas que é por eles e consequentemente pela sociedade, escolhido – o
indivíduo representa. O papel tem uma concepção normativa e é ela – a norma – que faz
com que se possa inferir que este é um dos estádios, é uma das componentes da(s)
identidade(s), se por identidade se entender «o emaranhado que constitui o ser, o estar e
o sentir dos indivíduos, na confluência do individual e do social».
Para Martuccelli (2002: 216 e seg.), o papel tem duas representações, a saber: a
encarnação e o distanciamento. Enquanto no primeiro o social, a sociedade e a
socialização, uma vez interiorizados, passam a constituir uma fonte de satisfação sendo
que estes indivíduos que encarnam os papéis pretendem, em geral, ter direito a uma
consideração maior, superior à dos outros, no segundo o indivíduo é mais tolerante,
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mais permissivo, menos autoritário. Estas diferentes maneiras de habitar (Id., ibd: 218)
os papéis sociais «dão aos indivíduos um sentimento de superioridade subjectiva muito
particular» (Id., ibd.: 220). O papel surge, assim, como uma armadura, uma máscara,
funcionando como uma forma de resistência (Id., Ibd.: 221) – acrescente-se, que, a
leitura de Martuccelli parece sugerir que é o distanciamento aquele onde a máscara é,
assume um papel de relevo já que, na encarnação, o indivíduo deixa de ser um
“fingidor”, assumindo e sentindo-se bem na sua nova pele.
A identidade, ainda que tenha elementos comuns ao papel – tal é o caso dos
diferentes palcos em que o indivíduo se movimenta, do político ao social, passando pelo
cultural (entre tantos outros) –, congrega uma dimensão individual relevante, pois ela
«permite garantir a permanência do indivíduo no tempo, o que faz com que,
independentemente das mudanças, ele, o indivíduo, é sempre o mesmo», pois «l’identité
est ce qui permet dans un seul et même mouvement à la fois de souligner la singularité
d’un individue et de nous rendre, au sein d’une culture ou d’une société données,
semblables à certains autres» (Id., Ibd.:343). Parece ser consensual, pelo menos a este
nível, que quando se fala de identidade(s), fala-se de uma dimensão em construção,
fluida. E, se por um lado ela é marcada pela diferença, por outro é relacional
(Woodward:2003), ainda que, “na linguagem do senso comum, a identificação seja
construída a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de características
que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo
ideal” (Hall: 2003, 106).
A leitura de autores como Hall, Hunting, entre outros, estabelece que: i) a
diferença é o elemento fundador das identidades; ii) é a alteridade que consubstancia as
identidades; iii) as identidades são plurais. Seja ela individual, colectiva ou nacional, o
discurso da identidade é um discurso que contém, na sua tessitura, a exclusão – por ser
seu elemento primacial – do outro em relação ao mesmo. A questão da identidade só se
coloca no confronto, e é face a ameaça da exclusão, é na altercação que paira a
identidade. Por isso ela é construída, por isso se refaz, se reconstrói. É neste jogo de
sedução, nesta guerra aberta, neste permanente conflito que o discurso das identidades
lança as sementes da altercação, podendo tornar-se, na célebre expressão de Amin
Maalouf, «identidades assassinas».
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Porque o espaço do papel é um espaço iminentemente social, o espaço da
identidade parece comprometido se considerado o seu aspecto psico-individual. Parece,
pois, poder avançar-se com a seguinte tese: o indivíduo «revela a sua “identidade”», no
que ela tem de mais intrínseco, no espaço de liberdade que o papel permite. Este espaço
de liberdade que é um atributo da identidade e que esta conquista no seu confronto com
o papel é que faz, da identidade, um elemento primacial do indivíduo.
O assimilado: uma identidade assassina?
E porque as identidades remetem para a problemática do poder – o espaço da(s)
identidade(s), ainda que discursivamente plural, é avaro no que tange à dimensão psicoindividual. As estratégias que se podem considerar de resistência, mas também de
adaptação (e de assumpção, como se verá mais adiante) dos assimilados angolanos
(certamente válidas para assimilados de outras geografias), inscrevem-se no quadro de
um período e contexto político e ideológico: o colonial. Para o presente caso, e
retomando a tese de Martuccelli, associamos o assimilado angolano à encarnação e ao
distanciamento, fixando-nos no primeiro, a encarnação, mercê do seu papel enquanto
aliado do poder colonialiii.
Se o pensamento é socialmente condicionado, como defende Mannheim, tese
que vem na linha de Marx, não é menos verdade que o inverso também pode ser
verdadeiro, como defende Weber. Parece poder afirmar-se, para já, que se num primeiro
momento e em todas as sociedades existe de facto um condicionamento social do
pensamento, num segundo, quando os papéis e os valoresiii são intuídos e instituídos, o
peso da estrutura como que se esbate mercê da “adjudicação”dos valores pelos
indivíduos e pela sociedade. É neste palco no qual se degladiam os actores e as
instituições, os actores e o poder político, que se pode observar o papel das associações
na Angola colonial. E é nesse palco que surge o assimilado, uma categoria que é criada
precisamente com o propósito de encarnar não somente os papéis mas, também, os
valores coloniais.
As Associações em Angola: resistência e ambiguidades
No seu trabalho sobre “Movimentos Associativos na África Negra”, o Prof.
Silva Cunha destaca três tipos de associações, a saber: associações místico-religiosas,
associações com fins materialistas ou cooperativistas e associações com fins políticos
(Cunha: 1956).
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Segundo o autor, as duas primeiras já existiam nas “sociedades negras
primitivas”(Id., Ibid.: 7) e se as segundas tinham carácter profissional, as primeiras
tinham ou tiveram, primitivamente, um carácter político. No período colonial, outras
foram surgindo «de base étnica, que tentam agrupar com fins de previdência e
assistência imediatos todos os elementos da mesma tribo» (Id., Ibid.: 8). As associações
com fins políticos, produto da Europa, são constituídas por “partidos políticos de
negros”(Id., Ibid.: 8) entretanto formados em África.
Para Silva Cunha, os factores que estão na origem dos movimentos sociais
estudados são: «a) transformação em curso dos sistemas económicos tradicionais; b) a
perda de crenças religiosas sem que lhes corresponda a convenção real e profunda às
religiões ensinadas pelos colonizadores; c) a transformação da sociedade familiar e a
sua crescente instabilidade; d) a destruição das estruturas políticas; e) os obstáculos
opostos à integração dos nativos nas sociedades dos colonos; f) o desejo de compensar a
falta de segurança individual, proveniente da perda das crenças tradicionais e da
destruição das estruturas familiar e tribal; g) o desejo de compensar uma situação de
inferioridade social» (Ibid.: 48-50).
Diferentes são os tipos de associações existentes, que podem ir dos sindicatos e
cooperativas, passando pelas associações (em geral) e pelos grupos informais. Para além
da natureza específica de cada uma delas, falar-se de associações no período anterior ao
25 de Abril de 1974 e mais exactamente da independência, significa desde logo a
ausência de sindicatos, pela carga não só reivindicativa como política que lhes estava
subjacente. Assim, restam os outros três tipos, sendo que as cooperativas, à semelhança
dos sindicatos, tinham como objectivo o progresso material e laboral, mas também
cultural e educativo, enquanto os grupos formais são normalmente considerados
voláteis, tendo uma natureza efémera e muito restrita, (cabe neste grupo tudo o que não
se enquadre nos já referidos). Quanto às associações, estas têm objectivos
essencialmente culturais, suficientemente vastos onde é possível inscrever igualmente a
educação.
No presente caso, interessam-nos as associações mercê do papel que as mesmas
tiveram ao longo do período colonial. É assim que, no que diz respeito às associações
que são objecto deste texto, o destaque vai para a Liga Nacional Africana porquanto a
mesma acabou por plasmar as reivindicações dos nativos angolanos no que diz respeito
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à sua identidade, por via do progresso material e laboral, cultural e educativo, não
deixando de parte o carácter recreativo de que também se revestia, como se pode
perceber através de leitura da Revista Angola, órgão da Liga. Mas as sociedades
populares angolanas descritas por Óscar Ribas, ainda que com (um) carácter
embrionário ou, dir-se-ia, mais “popular” relativamente ao da Liga, não deixaram de ser
importantes (e não somente na tomada de consciência dos nativos), na medida em que
estas representaram e tipificaram a sociedade dicotomizada que era a angolana (e todas
as outras colonizadas), motivo/razão da criação e sucesso das mesmas. O pendor
identitário marcou indelevelmente a trajectória das mesmas e, deste modo, a questão
nacionalista, mas o seu discurso não está isento de ambiguidades.
A emergência das elites nativas: tradição e modernidade
As sociedades populares angolanas
«São três, os tipos que caracterizam as sociedades populares angolanas. Em
Luanda, onde, pelo seu maior desenvolvimento cultural, mais se acentua o
associativismo nativo, instituíram-se as seguintes espécies de associação: recreativoespirituais, espirituais e materialistas» (Óscar Ribas: 1965: 27). Assim começa Óscar
Ribas a obra sobre associativismo e recreio, “Izomba”, onde o autor traça uma
panorâmica das mesmas, através da caracterização e descrição dos seus objectivos e
associados.
Como se pode desde logo entender, estas associações (sociedades populares
angolanas) foram constituídas essencialmente por e para nativos, apesar de não ter
«apenas gente negra mas também mestiça. Até europeus, na falta dos clubes actuais,
nela se comprazeram» (Id., Ibid.: 27).
No que diz respeito às sociedades recreativas, paralelamente à assistência
prestada, «dedicavam-se estas sociedades à dança» (Id., Ibid.: 27), sendo que estas
associações estavam organizadas segundo um regulamento interno, onde as sanções
assumiam papel de destaque, pois era geralmente a «coibição de dançar» (Ibid.: 29), a
alma mater das associações recreativas e dos seus associados, o elemento aglutinador
das mesmas. Mas, se por um lado as sanções eram reguladoras, o aspecto aglutinador, já
referido, constituía sem sombra de dúvida um dos pilares da mesma – é preciso não
esquecer que era/foram as (nas) associações que de um modo mais ou mesmo directo
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participaram na emergência e cristalização de uma elite urbana angolana, elite essa que
por via destas mesmas associações acabavam por divulgar e durante um tempo puderam
preservar (Id., Ibid.: 29) os valores da “sociedade e cultura nativa” – tal é o caso do
género musical, a massemba, das músicas em quimbundo e da indumentária feminina.
A lista das várias associações (recreativo-espirituais), dá disso conta –
emergência de uma elite nativa (entenda-se negra e mestiçaiii) – através da referência a
alguns dos seus fundadores, boa parte, deles, funcionários públicos. A mais antiga das
associações, referida por Ribas, data de 1900 (sociedade dos Quipacas), indo as datas
até 1945. Relativamente às sociedades espirituais, a referência mais antiga é de 1925, e
talvez a mais célebre a “Tristeza Carmona, Alegria Craveiro Lopes”(Id., Ibid.: 34), cuja
promotora foi a não menos célebre Maria Esquerquenha, popularizada numa música de
Teta Lando.
Ainda segundo Ribas, de entre as sociedades mutualistas que se encontram até
aos anos 40 do século XX, as mais antigas remontam ao século XIX (por volta de
1880).
Quanto às sociedades assistenciais, estas eram exclusivamente femininas.
Talvez, por isso, a assistência das mesmas era «espiritual: visitas a doentes, (...),
condolências a família, celebração da missa de sufrágio» (Ibid.: 30). A importância
disso reflecte-se não só na assistência, mas igualmente e sobretudo, no presente caso,
nas manifestações rituais que acompanhavam estas celebrações.
Para ele, de as descrições de Óscar Ribas permitirem que se ateste da existência
de diferentes tipos de associações, aquilo para que Izomba também aponta é sobretudo
para a importância que as referidas associações tinham para as populações (e não
somente para os seus associados). O facto de existirem associações se não somente de
nativos, entenda-se negros, quase exclusivamente de nativos e o facto de assumirem a
necessidade de preservar os valores da sociedade e da cultura nativa – e, desta forma, a
sua existência – permite aquilatar não somente que se estava em presença de uma
sociedade segregada como, também, da existência de uma elite nativa.
A Liga Nacional Africana: esboço de uma trajectória
Se as três faces da Liga são a social, a educativa e a recreativa, a leitura de
«Angola, Revista Mensal de doutrina e propaganda instrutiva» cujo primeiro número
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remonta a 1930, permite que se fique com uma visão não só de quem eram os seus
sócios, mas também de quem representava a Liga Nacional Africana, quais os seus
objectivos (este último claramente exposto pelo Cónego Manuel das Neves, Presidente
em exercício da Liga aquando do seu XVII aniversário, onde o mesmo prometia, na sua
alocução, «outras realizações em curso para melhoria não só da vida associativa como
intelectual dos africanos cujos interesses a “Liga” se propôs defender».
Os sócios da Liga nacional Africana contavam-se entre a elite de Angola – entre
brancos, negros e mestiços. Funcionários públicos na sua grande maioria, os mesmos
eram cultores do saber, em que pontuavam as artes e a literatura. Ainda que
oficialmente defensores da mãe pátria (portuguesa, bem entendido) – ou talvez por isso
mesmo –, é possível entrever-se no seu discurso sobretudo o amor pela sua terra,
Angola, pelo seu chão. É assim que a linguagem, ainda que colonial – ideologicamente
preconceituosa, em que a colectividade (a Liga) surge como constituindo um mundo à
parte –, reflecte preocupações que dizem respeito ao progresso da colónia (Angola) e
das suas gentes (os indígenas), de que boa parte era originária. À palavra nativo e/ou
indígena, associava-se estoutra: a dos deserdados. Expediente ou não, o certo é que os
artigos mais incisivos são de um modo geral assinados com pseudónimo. Tais são os
casos de “Lumenção” e “Abafejo”, onde a valorização dos indígenas assume especial
destaque, sendo que a revista vai, ao longo dos tempos, assumindo mais claramente o
seu “sentido de missão”, por exemplo quando reclama a necessidade duma imprensa
“nossa”, e onde se diz a dado momento do artigo que «é lamentável averiguar-se que
entre nós, primitivos e ingénuos, haja quem, obcecadamente, queira inculcar certas
ideias exigindo que elas sejam encaradas e resolvidas pelos outros da maneira como eles
as encaram, sem atender a factores de vária ordem e aos “prós” e “contras” a que tais
ideias estão, geralmente, subordinadas. (...) Colaboremos, pois, com ela para a
realização da ideia que preconizamos – a Imprensa Angolana».
A partir de meados da década de 50 e ao longo da década seguinte, o tom do
discurso foi-se rarefazendo, passando de algum modo a literatura – na página dedicada à
poesia e aos poetas angolanos e mesmo a alguma prosa – a ser a via da acusação, do
libelo, da resistência. A isso não é alheio o início da luta armada, a revogação do
Estatuto do Indigenatoiii e, naturalmente, como correlato, a censura e o cerco cada vez
mais apertado que entretanto se vai fazendo sentir. Aquilo que parece um paradoxo – de
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paradoxos foi a colonização feita – a aparente institucionalização da cidadania igual
para todos, acabou por ser a via por excelência da operacionalidade do garrote
entretanto imposto.
As ambiguidades e contradições que dão título a este trabalho, que mais não são
e espelham as ambiguidades e contradições do discurso colonial, encontram eco no
discurso dos próprios colonizados. A revista da “Liga” expressa bem estas
ambiguidades e contradições, se não da sua linha política, da de alguns dos seus
associados – o uso das expressões indígena e assimilado (o mesmo que gentio e nativo),
a referência a si próprios enquanto civilizados, instruídos, em oposição à grande massa
dos indígenas, trabalhadores braçais, sem instrução, é bem disso exemploiii. São
precisamente esses civilizados que, não obstante o seu libelo em prol de melhores
condições de vida para os indígenas, aqueles que encarnam o papel mais do que de
assimilados, de cidadãos portugueses exemplares. Também eles, objecto de
discriminação e, talvez (também) por isso, a sua revolta que se traduzia na defesa dos
“indígenas”, explicando-se deste modo o discurso ambíguo.
É claro que, sempre se pode dizer que esses discursos correspondem a um
tempo-espaço que acabou por ser determinante para a natureza dos mesmos, mas não é
menos verdade que estas ambiguidades e contradições plasmaram a mentalidade de
muitos angolanos, de tal modo que, ainda hoje é possível encontrar-se por via da
cristalização das mesmas mentalidades no que se poderá considerar e chamar, alienação.
Passado e presente: do discurso às práticas assimilacionistas
Segundo Adriano Moreira, o estado de indígena definia-se em face de três
coordenadas: o território, a raça e a cultura. Assim, indígena era todo o indivíduo
nascido nos territórios portugueses de África, negro e primitivo (não civilizado), daí o
poder concluir-se que era toda a população negra. Mas os legisladores sabiam que
precisavam de uns quantos negros que lhes fossem fiéis e que lhes dariam estabilidade e
credibilidade junto da grande massa dos negros, sem esquecer a comunidade
internacional. Por isso, “criou” o assimilado, do mesmo modo que “criou” o
mestiço/mulatoiii.
Afinal, quem era o assimilado? Juridicamente, o assimilado era o negro,
convertido em semi-branco (semi-branco porque, para muitos colonialistas, os
assimilados e os destribalizados eram arremedos grotescos e, por conseguinte, nunca
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poderiam ser equiparados a brancos não somente por causa da cor da pele que era a
marca distintiva por excelência e da qual não se podiam livrar, mas também porque, por
muito que se esforçassem, os negros, ainda que assimilados, nunca poderiam ser
equiparados aos brancos). O assimilado era negro, sim, que teria abraçado os valores
ocidentais – da instrução (ter no mínimo a 4ªclasse, o que era uma boutade
considerando que a esmagadora maioria dos brancos portugueses eram iletrados,
analfabetos) que passava pelo domínio da língua portuguesa, passando pela posse de
habitação “condigna” e adopção de práticas consideradas válidas, civilizadas (como a
posse e o uso de mesa, cadeiras e talheres), à indumentária, múltiplos foram os novos
papéis e valores que fizeram do assimilado um “distanciado” ou um “encarnado”
(Martucelli). Àqueles que “encarnaram” o papel, que o assumiram na íntegra, não se
pode chamar, como faz Martuccelli, resistentes. Estes serão, antes, os alienados iii que,
entre outras práticas e comportamentos eram: i) aqueles que tinham vergonha de
compreender, saber e falar uma língua de Angola, um dialecto, como então se dizia; ii)
aqueles que, mestiços, tinham vergonha das suas mães negras; iii) aqueles que tudo
faziam para ter pronúncia portuguesa, apagando todos os vestígios da sua “pretitude”;
iv) aqueles que consideravam que o casamento com um indivíduo de tez clara – quanto
mais claro, melhor! – era sinónimo de apuramento da raça; v) aqueles ainda, para quem,
comer funje era “coisa de preto” ou um exotismo; vi) aqueles para quem, o uso de
tranças e de indumentária não ocidental – os célebres “panos” – era desprestigiante; vii)
aqueles que consideravam que só os cabelos lisos, desfrisados, assim podiam ser
chamados – os demais eram as “quindumbas”, as carapinhas; viii) aqueles, ainda, para
quem, quanto maior o número de brancos que fizessem parte das suas relações, em
melhor conta se tinham e pensavam ser tidosiii.
Entre assimilados e crioulos: a (re)encarnação
Vestígios deste discurso e práticas encontramo-los, ainda hoje, no quotidiano,
com excepção da gastronomia, esta sim a única a ganhar foro de cidadania com a
independência.
Os papéis reproduzem-se, tais como as sociedades. A(s) identidade(s), por serem
espaços de liberdade conquistados (aos papéis), permitem aferir que, no caso angolano,
o presente ainda se encontra refém, ancorado no passado. A liberdade, esta, encontra-se
ainda condicionada e, nessa medida, a(s) identidade(s)
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dos angolanos também se
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encontram minadas das teias do passado. Um exemplo claro e recente (do pósindependência) é a apologia, por parte de uma elite, relativa à existência de uma cultura
crioula em Angola. Uma cultura sediada no passado e que se terá estendido pelo
presente. Ora, os defensores da existência de uma cultura crioula em Angola, ontem e
hoje, reivindicam-na e revêem-se, no presente, certamente com o que consideram serem
os “valores crioulos”iii que mais não são do que os associados aos assimilados. É assim
que, não será de estranhar o seguinte exemplo paradigmático: o da língua. Quem e
quantos são os jovens que falam as línguas nacionais (para além do português)? Num
inquérito realizado junto de jovens universitários em Luanda (2006), inquérito esse
cujas conclusões se encontram a ser apuradas, num universo de 172 inquiridos, cerca de
65% dos inquiridos só fala português – e mais, a maioria dos que dizem falar as outras
línguas nacionais são oriundos das províncias do Uíge, do Huambo. Isto é, os
luandenses são aqueles em que o deficit é claro. As (possíveis) explicações serão
múltiplas, mas afigura-se como uma das mais plausíveis o impacto da política colonial e
mais especificamente em Luanda – os mais velhos passaram o testemunho aos seus
filhos: a língua portuguesa é que é «língua de gente».
Sem outro inquérito em que nos possamos apoiar, registe-se, por via da
observação, o facto de, pelo menos nos espaços urbanos, a maioria das mulheres usar
indumentária ocidental – é sobretudo no Norte de Angola, nas províncias de Cabinda,
Zaire e Uíge, porventura mercê da geografia e da própria história de que a influência
dos Congos será o exemplo mais próximo, que se assiste ao maior número de mulheres
com indumentária não ocidental. Quanto ao cabelo e se bem que o as tranças continuem
a ter um peso considerável na beleza feminina, são os cabelos longos, é a tiçagem que se
encontra na linha da frente (uma das manifestações de modernidade).
De aprendizes a mestres, os assimilados de ontem, a cultura assimilacionista,
encontra uma revitalização, dir-se-ia inesperada, nos dias de hoje. O passado
presentifica-se por via das reproduções das práticas do passado, das suas actualizações,
estilizações, como é o caso do mito da mulher “mulata” que, segundo alguns
“desabafos” e notas de imprensa, é uma realidade hoje, em Angola, muito
especialmente na área profissional (o critério é claramente da empresa – instituições e
empresas que têm uma taxa de empregabilidade de mulheres mestiças muito elevada, se
comparada com as mulheres negras).
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Entre tantos estudos e investigações de que Angola carece, a importância,
necessidade e urgência de uma investigação para uma melhor compreensão dos
mecanismos de reprodução dos valores (dos coloniais aos “pós-coloniais”) e os
impactos dos mesmos na sociedade angolana, hoje, é um imperativo.
Referências:
Angola, Revista Mensal de doutrina e propaganda instrutiva.
CUNHA, J. M. da Silva (1956), Movimentos associativos na África negra, Lisboa, JIU.
MARTUCCELI, Danilo (2002), Grammaires de l’individu, Éditions Gallimard.
RIBAS, Óscar (1965), Izomba: associativismo e recreio, Luanda, Tipografia Angolana.
SILVA, Tomaz (org), Stuart Hall e Kathryn Woodward (2003 [2000]), Identidade e
Diferença – A perspectiva dos Estudos Culturais, 2ª ed., Petrópolis, Ed. Vozes.
VERA CRUZ, Elizabeth Ceita (2006), O Estatuto do Indigenato. Angola. A legalização
da discriminação na colonização portuguesa, Luanda, Edições Chá de Caxinde.
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O SISTEMA DE GOVERNO NA NOVA CONSTITUIÇÃO
Nelson Pestana (PhD),
Investigador-coordenador, no Centro de
Estudos e Investigação Científica da
Universidade Católica de Angola
Este artigo resultado da minha participação no ciclo de palestras sobre a nova
Constituição, promovido pelo Instituto Angolano de Sistemas Eleitorais e Democracia,
onde palestrei sobre o sistema de governo, no nosso país, a luz dessa nova Constituição
de 2010. Se atendermos ao facto do quase-debate constituinte se ter polarizado
precisamente em torno do sistema de governo, esta comunicação podia ser vista como
um prolongamento deferido desse momento, já que o processo constituinte (e o debate
que lhe era correlato) foi abruptamente interrompido pela proposta constitucional do
Presidente da República que acabou por ser consagrada.
Esta polarização deveu-se a duas ordens de razões: a primeira factual, a
inesperada quebra da unanimidade existente, pela proposta de dois principais partidos
políticos angolanos ao apresentarem-se como defensores de um sistema presidencial. A
segunda, psicossocial, pelos receios da sociedade civil para quem essa inesperada
conversão ao presidencialismo poderia representar uma redução substantiva das
liberdades públicas e uma descaracterização (quiçá, subversão) do Estado Democrático
de Direito, consagrado na Constituição de 1992. Esta lei fundamental, como é
consabido, consagrava o sistema de governo semi-presidencial e nada levava a crer que
isso fosse mudar, já que todos os partidos políticos reiteraram, nos seus programas
eleitorais, essa escolha.
Malgrado o processo político de que resultou esta Constituição, outorgada pelo
Presidente da República, não deixa de ser interessante interrogamo-nos sobre “o sistema
de governo na nova Constituição” e verificarmos assim se os sobreditos receios de
descaracterização ou subversão do regime democrático tinham razão de ser.
Segundo os inventores da actual Constituição 2010, o sistema de governo que
dela ressalta é uma mescla de elementos do sistema presidencial com elementos do
sistema parlamentar, o que deu origem a uma nova categoria, a juntar as demais já
existentes, designada “Presidencialismo Parlamentar”. Este sistema teria como
característica a existência de um executivo unipessoal forte associado a um parlamento
colaborante, como resultado do sistema de eleição conjunta dos dois órgãos, nas
chamadas “eleições gerais”, que permitem uma convergência entre o Presidente da
República e o partido maioritário, no parlamento.
Importa pois verificar se a actual Constituição comporta uma tal leitura a partir
do confronto das suas características com os traços fundadores desses dois sistemas de
governo dos regimes democráticos mais antigos do mundo moderno (a Inglaterra e os
Estados Unidos).
Para evitar suspeições sobre uma eventual partidarização do debate, que se quer,
nesta sede, estritamente académico, a nossa análise não leva em consideração aspectos
extra-constitucionais. É feita um pouco em termos de “teoria pura do direito” (Kelsen),
isto é, fazendo abstracção da conjectura, da contextualização histórica, política e social,
da praxis de poder, operando apenas a partir da análise hermenêutica da Constituição
2010.
A nossa análise baseia-se, primeiro, na recensão crítica dos traços característicos
dos paradigmas constitucionais de que esta Constituição se reclama (os sistemas
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Presidencial e Parlamentar). Depois alicerça-se na percepção da filosofia de base
subjacente à Constituição de 2010, através do confronto de duas teorias (contratualistas)
sobre a sociabilidade humana e de três paradigmas da autoridade. Finalmente, a análise
escora-se na economia interna do texto constitucional (sobre a sua gramática e o seu
sentido teleológico, como sistema) e sobre a comparação do sistema de governo que
dela ressalta com outro plasmado na constituição bonapartista de 1808,como paradigma
histórico dos sistemas autoritários.
Para o fazer temos dois momentos: um de precisão teórico-conceitual, onde
vamos apurar os conceitos operatórios e teorias de que nos socorremos, e outro de
análise hermenêutica, tirando, por fim, uma conclusão,
Conceitos operatórios
Os conceitos operatórios que pretendo apurar são os de “ sistema de governo”,
sistema presidencial e sistema parlamentar. O sistema de governo é entendido como
sendo a forma como o poder político é repartido pelos órgãos de soberania, e a maneira
como estes se relacionam, no interior do Estado. Nos regimes democráticos e
representativos os sistemas de governo dividem-se em parlamentar e presidencial,
havendo, desde 1918, (com a experiência da República de Weimer) uma forma mista; o
dito sistema semi-presidencial que procura combinar elementos do sistema parlamentar
com elementos do sistema presidencial. Este sistema misto tem duas versões, uma dita
“forte” e outra, “fraca”, consoante a dominante é o Presidente da República (Alemanha
de Weimer, Finlândia, França) ou o Primeiro-Ministro (Islândia, Irlanda, Áustria,
Portugal). Esta dicotomia (e as formas mistas) não se aplicam aos regimes autoritários,
pois aquelas categorias baseiam-se no princípio da separação e equilíbrio de poderes dos
órgãos de soberania, enquanto que os regimes autoritários baseiam-se na fusão de
poderes e na obediência a uma mesma e única linha de comando no aparelho do Estado,
normalmente personificado num individuo que é apresentado como ícone do seu próprio
regime.
a. Sistema Parlamentar
O sistema parlamentar foi adoptou pela Grã-Bretanha, desde cedo, logo a seguir
a revolução constitucional, como sistema político representativo (a duas câmaras) para
assegurar os interesses de todos actores envolvidos e salvaguardar a monarquia que
passou a submeter-se à Nação mas conservou os seus poderes de representação interna e
externa. Mas, se o Monarca continuava a reinar, deixava de governar. A função
executiva passava para um Gabinete, saído da representação nacional e liderado por um
Primeiro-Ministro, politicamente responsável perante o Parlamento. O monarca
conserva o poder de dissolução, como mecanismo de garantia de eficácia do sistema,
em caso de crise.
b. Sistema Presidencial
Depois de cerca de 10 anos de experiência de uma confederação (1776 a 1787),
os Estados Unidos adoptam uma Constituição para a Federação (1787). Recusando o
sistema parlamentar britânico, optaram por um sistema mais forte que permitisse a
emergência à cabeça dos poderes públicos de uma personalidade liderante que
representaria e defenderia os interesses do país. Ao mesmo tempo, os constituintes
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norte-americanos, inspirados na filosofia dos Lumières, queriam adoptar uma estrita e
equilibrada separação de poderes entre o legislativo, o executivo e o judicial. A ideia era
a de separar os poderes, especializando-os, mas também impor uma necessária
colaboração entre eles, permitindo a eficácia do regime político. Uma eficácia fundada
na independência recíproca dos três poderes e na certeza de poderem exercer as suas
funções até ao fim dos seus mandatos, sem a interferência de qualquer um deles.
O sistema de governo presidencial repousa assim na existência de dois poderes fortes
independentes e colaborantes: o Congresso e o Presidente da República. O Congresso
dispõe completamente do poder legislativo, sem nenhuma interferência do Presidente da
República, quer como Chefe de Estado, quer como detentor do poder executivo (salvo o
poder de veto, que é limitado e reversível). O Congresso detém o poder constituinte, o
poder legislativo e de aprovação do Orçamento Geral do Estado. Detém também o
poder de declarar a guerra ou a paz e (o Senado) de rectificação dos tratados
internacionais.
Por seu lado, o Presidente da República dispõe completamente do poder
executivo e da administração para realizar a sua política, sem nenhuma interferência do
Congresso. O PR é o “patrão” da política interna, pois ele é irresponsável politicamente,
perante o Congresso (salvo o caso excepcional de “impeachment”). A sua
responsabilidade é diante da Nação que lhe conferiu mandato em eleições e o torna
ainda mais independente. Esta independência é-lhe garantida também pela equipa de
que dispõe o Gabinete Presidencial (White House Office) e outros órgãos subsidiários. O
Presidente da República é também o Comandante-em-Chefe das Forças Armadas o que
lhe permite, em situação de guerra, conduzir operações militares. É também ele que
orienta a política externa, assumindo-se como o chefe da diplomacia, na medida que
negoceia tratados, mas somente o Senado pode ratifica-los e nenhum embaixador é
nomeado pelo Presidente da República sem o consentimento do Senado. Por outro lado,
somente o Congresso pode “regular o comércio com as nações estrangeiras”.
Assim, o Presidente da República americano, sendo uma figura central da
política do país, partilha estes poderes com o Congresso. Uma partilha de poderes de
maneira a garantir um equilíbrio institucional, garantido por múltiplos sistemas de
controlo recíproco, para que “o poder pare o poder”, como dizia Montesquieu, no seu
célebre livro “O Espírito das Leis”. Este sistema de “pesos e contrapesos” (check and
balances) é um dos fundamentos do sistema presidencial americano. A partilha de
poderes é também garantida, tratando-se de um Estado Federal, nas relações entre a
federação e os Estados federados, nas relações entre estes e as colectividades territoriais.
A garantia das liberdades públicas é também assegurada pela existência de ampla
liberdade de expressão, imprensa, manifestação e associação, pela existência de um
forte espaço público e pelo dinamismo da escolha política, mesmo no interior dos
partidos políticos, com as chamadas primárias.
Análise hermenêutica da Constituição 2010
Há basicamente duas grandes correntes sobre a sociabilidade humana: naturalista
(Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino e outros) e contratualista (Hobbes, Rousseau
e outros). Tanto os jus naturalistas, quanto os contratualistas, reconhecem a necessidade
da instituição de uma ordem que permita ao homem-indivíduo e ao homem-comunidade
o desenvolvimento da sua arte de vida, de sua liberdade física e criativa. A diferença é
que os primeiros dizem que o princípio de organização da sociabilidade humana é
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conforme a natureza, enquanto os segundos defendem que este princípio é o resultado
de uma convenção.
* A filosofia da Constituição de 2010
Malgrado alguns dos parágrafos do seu preâmbulo, não creio que se possa ter
dúvidas sobre o carácter contratualista da Constituição de 2010, já que esta é tida como
o resultado da vontade deliberada do “Povo de Angola” de “construir uma sociedade
fundada” num conjunto de valores, com vista à realização de um projecto de vida
comum (preâmbulo da Constituição de 2010).
Assim sendo, para apurar a filosofia de base da nova Constituição, dispenso os
naturalistas e apenas me debruço sobre os contratualistas, escolhendo dois autores
paradigmáticos e opostos: Thomas Hobbes, no seu livro Leviatão, cujo subtítulo é
bastante expressivo do seu conteúdo, “tratado da matéria, da forma e do poder da
Republica eclesiástica e civil” (1651) e Jean-Jacques Rousseau, na sua celebríssima
obra, Do Contrato Social (1762), cujo subtítulo é também muito eloquente: “princípios
de Direito político”.
Thomas Hobbes parte da ideia de que a vida humana fora da polis é impossível,
devido a maldade do Homem. A ideia inicial segundo a qual o medo da morte está na
origem da comunidade política atravessa toda a obra de Hobbes. Para ele o Estado é
instituído para afastar o perigo de morte violenta. O “estado de natureza” é o lugar da
guerra de todos contra todos. Esta proposição de Hobbes parte de uma antropologia
geral em que o Homem é apresentado como um ser de desejo que procura sempre
adquirir ascendente sobre os outros, i. e., que procura poder sobre os seus semelhantes.
É a partir desta premissa, segundo a qual o Homem é uma presa da paixão de potência
que se deve perceber a descrição antropológica do Leviatão. O estado de “natureza” é o
lugar da igualdade e é esta igualdade fundamental que permite a cada ser desejar o que
melhor lhe parecer que é a causa da guerra de todos contra todos. Pois se cada um faz o
que os seus desejos determinam haverá sempre conflito de desejos incontrolados. E, por
isso, é inevitável que “a luta seja o estatuto da igualdade, sendo a guerra o estatuto da
própria natureza”. A guerra aparece não como uma batalha efectiva mas antes de mais
como uma disposição da natureza humana que resulta do seu desejo de potência. Neste
sentido filosófico, a Paz aparece como simples negação, como um momento provisório
e fugaz de suspensão da guerra efectiva. E, por isso, tornar a Paz positivamente
pensável e historicamente real é o projecto do Leviatão (do Estado). Para isso, Hobbes
reconsidera o estatuto da política. Esta existe já no estado de natureza, na medida que
este se apresenta como uma luta até a morte que tem sua origem no desejo de potência
imanente a condição humana, no desejo de subsistir, na liberdade de todo homem de
agir a favor da conservação da sua própria vida. Mas, se a conservação de nós próprios,
“lei eminentemente natural”, conduz a perda violenta da vida, no acto mesmo de a
defender, torna-se razoável para os homens que era preciso escapar a esse funesto
estado de natureza. Torna-se necessário aos homens dotarem-se de uma lei comum, por
todos desejada e a que todos obedecem pois nela encontram protecção das suas vidas e
bens, e, logo, a garantia dos seus desejos. Somente uma lei positiva, inteiramente
humana (porque querida pelos homens) pode assim satisfazer a própria lei natural que
os empurra para a auto-conservação. Assim a “natureza” sendo sempre um primus
torna-se um momento negativo porque lhe falta uma lei comum. É esta lei comum, e
somente ela, que é capaz de definir uma norma do bem e do mal, do justo e do injusto,
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REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
uma norma geral da equidade. Este tipo de norma não existe na “natureza”. Esta apenas
conhece o desejo, i. e., a força e a potência.
Para Hobbes, o desejo e as demais paixões humanas não são pecados. Não há
falta – e a respectiva interdição – senão quando uma norma positiva (admitida por todos
e a todos imposta) determina uma conduta como falta ou interdita determinada acção. A
existência segundo a natureza aparece, a contrário, como necessidade de recorrer a uma
outra norma que não seja a do desejo ou de potência. É na vida política que se resolve a
contradição da vida natural. A política tem pois um papel de pacificação das relações
sociais. Por isso, Hobbes remodela o conceito de “natureza”, e fá-lo em dois tempos:
primeiro, estabelece uma distinção entre Direito natural (jus naturalis) e Lei da natureza
(lex naturalis) que se opõem, da mesma maneira que a liberdade se opõe a coerção
(submissão). É esta distinção capital, ligada ao conceito de soberania, que torna possível
uma teoria geral do pacto social. Contrato social que é a origem do estado de sociedade
pois é este pacto que permite ao Homem passar do estado de natureza - onde se encontra
entregue aos seus sentimentos primários – ao estado civil. Segundo, estabelece um
pacto social que permite substituir o reino mortal, propriamente dito, da natureza pelo
reino pacificado da política. Enquanto o pensamento político grego via na natureza
(Phusis) o laço que torna possível a comunidade política, Hobbes vê nela a sua negação.
A ordem natural é a ordem das paixões, do livre desejo, é o estado de guerra
permanente, não podendo, por isto, fundar um estado político, i. e., um estado de paz.
Se para o pensamento antigo era preciso viver segundo a lei natural, para Hobbes é
preciso pensar a sociedade política não como o resultado da “natureza” (Aristóteles)
mas como resultante de uma convenção. Assim, o que o pacto social primeiramente vai
instituir é o abandono da morte à natureza. Mas, isto só é possível na condição expressa
de cada um renunciar ao seu direito natural, de tal maneira que do engajamento tomado
mutuamente, resulte uma “pessoa” (individual ou colectiva) na qual repousa o exercício
da soberania. O pacto ligando os homens, primeiramente, entre si e, depois, ao soberano
é, diz Thomas Hobbes, “mais do que um consentimento ou um acordo, trata-se de uma
verdadeira unidade de todos os homens numa só que é como se cada homem devesse
dizer a todo homem: eu autorizo este homem ou esta assembleia de homens, e eu lhes
transmito o meu direito de me governar a mim mesmo, na condição de que tu lhe
transmitas teu direito e autorizes todas as suas acções na mesma pessoa, realizado por
convenção de cada um com o outro, da mesma maneira. Isto realizado, a multitude
assim unida numa só pessoa, é chamado Estado (Common-wealth), em latim Civitas.
Este é o nascimento desse grande Leviatão, ou melhor (para falar com mais deferência)
de esse deus mortal, ao qual nós devemos, sob o deus imortal, nossa paz e nossa
protecção” [capítulo XVII]. Esta instituição artificial da soberania, por contrato ou
convenção, leva os sujeitos a obediência da “lei civil”. Hobbes entende por “lei civil” o
corpo de leis positivas em vigor no Estado de que um indivíduo é membro.
Esta teoria do contrato social ganhou, com Jean-Jacques Rousseau, um
desenvolvimento ulterior, em termos de “soberania do povo”. Rousseau também tem no
centro da sua doutrina a ideia de contrato mas, neste caso, o contrato não é entre uma
comunidade e o Príncipe mas entre todos os membros da comunidade que formando
uma assembleia se constituem em soberano. O Contrato Social foi escrito para fundar
essa nova legitimidade baseada essencialmente na soberania do povo. Para ele o
soberano é o povo e por isso a sua construção teórica vai no sentido de fundar a
autoridade legítima no povo. Para Rousseau a “natureza” não pode jamais servir de
fundamento à autoridade: “natureza” e “autoridade” são termos contraditórios. Para ele
nem um “deus”, nem uma natureza podem ser invocados para fundamentar a autoridade.
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REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
Não há autoridade legítima que não venha dos homens. Para o autor do Contrato Social,
a sociedade civil, face ao estado de natureza, é uma decadência na desgraça mas uma
vez começado o processo de civilização, a cooperação organizada torna-se
indispensável. Ao perderem a “liberdade natural”, os homens, querendo reencontra-la
na sociedade civil, engajam-se mutuamente a respeitar a lei que eles escolhem para si
próprios. Sem que ninguém ceda a sua liberdade a um outro, a dependência torna-se
impossível. É preciso pois, segundo Rousseau, encontrar um fundamento tal que cada
um cuide de ser livre, apesar de submetido a autoridade. E, como a melhor solução, a
garantia mais segura para esse propósito é cada um obedecer a si mesmo, então o povo
aplica a si próprio uma lei que aparece como a expressão do interesse geral. O povo, tal
como o monarca, pode ser soberano no Estado. E, esta soberania do povo, deve ser
estabelecida por uma convenção, por um contrato, i. e., por acto voluntário e livre de
todos, pois “renunciar a sua liberdade, diz Rousseau, é renunciar a sua qualidade de
homem, aos direitos da humanidade, mesmo aos seus deveres” (I, 4).
Rousseau, baseado na distinção de Jean Bodin (1529-1596) entre
soberania e governo, introduz uma inovação que é a noção de “vontade geral”. Noção
capital na teoria rousseauista de povo, pois “a vontade geral”, é a vontade do povo. A
vontade geral exprime o pensamento do povo na medida que exprime o universal.
Porque quando o povo pensa ele pensa o universal, i. e., a liberdade na forma de
universalidade. Sendo a vontade do povo uma vontade geral, não é difícil compreender
porque o poder se pode transmitir mas nunca a vontade. Esta distinção do poder,
susceptível de ser representado, e a vontade, inalienável, (i. e., a distinção entre a
soberania do Estado e a sua realização, o seu “exercício” pelo “Governo”) é a distinção
fundadora da soberania, nos termos em que Jean-Jacques Rousseau a apresenta no
Contrato Social (1762), na sequência do que havia teorizado Jean Bodin, no seu Seis
Livros da Republica (1576). Por isso, no Estado rousseauista, em que o soberano é o
povo, este não pode transmitir a sua vontade mas tão-somente delegar o poder dela
resultante. Sendo também que a vontade do Estado, que é expressa pela Lei, não pode
ser senão a vontade do povo. Caso assim não o seja, o Estado é um poder tirânico. O
poder não é senão uma comissão derivada do princípio original: a vontade do povo, a
soberania.
O direito natural clássico submete a lei positiva ao Direito natural,
fundando assim uma política por natureza. Hobbes submete a lei natural ao direito
positivo do soberano, i. e., limita a liberdade natural à lei civil. Esta submissão é a
formulação teórica, juridico-política da dominação tal qual ela é praticada pelo Estado
moderno. Hobbes, não somente reverte as posições antigas do problema político mas
“constrói” também uma outra “natureza” que justifica a obediência à lei civil e revela o
Estado (“deus mortal”, como lhe chama o próprio Hobbes) como um ser artificial, fruto
da razão dos homens.
Em suma, Rousseau vai a contra-corrente de todas as teorias que
defendem a hipótese de uma sociabilidade que baseie a vida social e política na
natureza. Rousseau é anti-Aristóteles porque recusa a hipótese de uma sociabilidade
natural mas é sobretudo anti-Hobbes pois recusa frontalmente a teoria do “estado de
natureza” do filósofo inglês, na qual não vê lógica. Para Rousseau, a partir do momento
que o Homem deixa de ser o “bom selvagem” (um ser individual, auto-suficiente e
feliz) e passa a viver em sociedade (numa situação de conflito de interesses, onde as
desgraças se multiplicam) tem necessidade de encontrar um artifício coercivo como
instrumento de sobrevivência à guerra (à morte). Por isto, o contrato social, em
Rousseau, é um contrato de cada um com todos os outros membros da sociedade, pois o
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Povo, ao ser desapossado do poder legislativo, torna-se escravo. O rousseauismo
político é o pensamento que mantém o princípio da soberania como forma do Estado
histórico que coloca no centro da sociabilidade humana o Direito, tido como a expressão
da vontade geral e meio de regulação racional das relações sociais consentidas.
* O papel central do Direito na sociedade moderna
O Direito, como sistema de normas abstractas que se impõe a todos, inclusive ao
superior hierárquico que obedece também ele à ordem impessoal da Lei, aparece como
uma das formas de controlo social, a par de outras e para suprir à insuficiência dessas
outras formas, como a religião, a moral, a ética e as convenções sociais. O Direito
aparece como o meio de controlo social mais eficaz por poder ser aplicado
coactivamente com recurso a órgãos especializados de controlo social, como são a
administração, a polícia, e o sistema judiciário. Por isto, é que a norma de Direito é um
dever-ser que seres racionais aceitam colectivamente como garantia da paz civil e da
liberdade de cada um, em vista da realização de uma ideia de justiça. Lacordaire dizia
que “lá onde a liberdade oprime, a Lei liberta”. É esta noção ideal de liberdade e justiça
que faz a crença no Direito e justifica a sua utilidade. Mas, o Direito é um dever-ser não
pela força da consciência (como na moral) mas pela força da coerção física legítima.
Aquela violência que é exercida em nome do bem comum e da paz civil por uma
autoridade a quem a colectividade reconhece essa função. Por isso, o Direito, como
dizia Miguel Reale, é uma unidade constituída do “facto”, do “valor” e da “norma”. O
Direito nasce do “facto” (político, económico, social) “jus ex facto oritur” mas é
portador de um valor cultural e materializa-se numa norma coerciva. João Baptista
Machado considera que “o Direito enquanto postula eficácia ou vigência social,
depende da coação, mas também pode dizer-se que depende da força. Na sua origem,
porque ele é hoje ditado por uma autoridade social (o Parlamento, o Governo) que tem
por detrás de si o poder político, isto é, o poder do Estado. Na sua aplicação efectiva,
porque a efectivação da sanção é garantida pela existência e actuação de uma
instância organizada e integrada no aparelho de Estado”iii. Mas como dizia JeanJacques Rousseau, “ainda o mais poderoso de todos os homens, não será
suficientemente poderoso, se não souber converter o seu poder em Direito e a
obediência dos outros em dever” (Contrato Social, p.). Para este autor a autoridade deve
afirmar-se como sendo “uma autoridade que não é uma autoridade”, isto é, uma
autoridade que não é autoritária, que não se afirma pelas virtudes de uma força exterior
à comunidade mas pela força do seu consentimento. E, por isto, quanto mais esta
autoridade for assente na coesão da vontade social, menos terá necessidade de cooptar a
realidade para o seu projecto quer pela violência física, quer ideológica.
* Os tipos de autoridade
O Direito corresponde à uma autoridade baseada na razão e na lei. Mas não é a
única forma de autoridade que se conhece. Max Weber distingue três tipos de
autoridade: tradicional, carismática e burocrática. Estas formas de autoridade podendo,
nos nossos dias, coexistir, são compreendidas como formas diferentes de
institucionalização da sociedade e, particularmente, do poder político na sociedade.
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A autoridade tradicional assenta na convicção colectiva do carácter sagrado da
tradição e na correlata legitimidade do exercício de poder por aqueles que a
representam, pelo que a autoridade é transmitida por herança. É a autoridade própria das
sociedades onde não há diferenciação entre as estruturas administrativas e as demais
estruturas, nem um processo de secularização entre o poder político e o poder religioso,
não havendo, por isto, uma separação nítida entre a esfera da autoridade e a esfera
particular, entre a esfera pública submetida à autoridade e a esfera privada; a esfera da
competência privada do indivíduo.
A autoridade carismática nasce da pretensão de um chefe em impor a sua
autoridade pessoal como uma espécie de obrigação moral e baseia-se na força simbólica
do chefe. Este impõe a sua autoridade pessoal como uma espécie de obrigação moral
que se fundamenta na submissão do grupo, da comunidade às suas virtudes (heróica ou
exemplar) tidas como fora do comum. O chefe impõe-se e submete os outros às suas
ordens em razão, segundo Maurice Duverger, “do carácter naturalmente emocional da
entrega ao chefe em quem se confia”. O carisma aparece pois como irracional e
afectivo. O chefe carismático deve pois suscitar o entusiasmo pelas promessas, pela
excitação das emoções, das paixões, recorrendo, geralmente, à demagogia como método
de sedução. E quando os meios de convicção são escassos o chefe carismático utiliza o
seu prestígio e o papel que desempenha na estabilidade da organização para defender o
seu poder pessoal (ditatorial). Já que o chefe carismático é, em regra, tido como um
ícone e se presta e alimenta o culto da personalidade para perenizar a sua utilidade
simbólica e prática, logrando o consentimento dos seus seguidores. Por isso,
normalmente, o chefe carismático apoia-se num grupo carismático central,
estabelecendo uma hierarquia do carisma, em que somente o carisma do chefe é pessoal,
sendo o dos demais abstracto e “institucional”. O grupo central carismático aparece
também como um instrumento do chefe para reforçar o seu poder; utilizando a inveja e
acicatando as rivalidades, no seu seio, o chefe aparece como sendo o único capaz de
fazer “a síntese entre os interesses e rivalidades presentes. Por outro lado, o chefe dirige
o grupo central carismático manipulando o desejo e a ambição de todos de fazer parte
da elite, jogando com as suas rivalidades também ao nível das várias mediações
corporativas e da base popular com a qual desenvolve uma relação mística e
demagógica.
A autoridade burocrática deriva de dois processos histórico-sociais
determinados: um de diferenciação entre a esfera política e a económica e outro de
secularização entre o político e o religioso, onde a autoridade é atribuída a instituições
especializadas, geralmente designadas por administração burocrática A autoridade
burocrática (legal ou racional) fundamenta-se na “ordem impessoal da Lei” pois ela
deriva de dois processos de diferenciação e de secularização. É própria de uma
sociedade onde a autoridade é atribuída a instituições especializadas, designadas por
administração burocrática. Esta autoridade repousa na crença na Lei, na existência do
Direito como sistema de normas reguladoras das relações sociais e limitador do
exercício do poder. Por isto, a figura típica desta forma de autoridade é o funcionário,
isto é, um agente que agindo em nome do Estado (poder secular) obedece a regras legais
e procura fazer obedecer os outros a essas (ou outras) regras. Neste sentido, a relação de
obediência, na base de um conjunto de regras abstractas e universais que se impõem a
todos (incluindo os superiores hierárquicos, por exemplo, o Presidente da República
deve obediência à Constituição) não é entre pessoas; não se obedece a um indivíduo
mas a regras. Esta obediência não pode assim fazer-se senão em relação aquilo que a
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Lei prescreve e pressupõe uma autoridade constituída de órgãos administrativos que
aplicam a lei, i. e., uma função pública que seja continua e que obedeça ela própria a
regras anteriormente estabelecidas.
Tipos de Dominação segundo Max Weber
(in Dominique Colas, Sociologie politique, Paris, PUF, 1994, p. 122)
VARIÁVEIS
AUTORIDADE
Carismática
Tradicional
Racional
Base de
dominação
Convicção no
carácter sagrado da
tradição
Reconhecimento da
“empatia”
Obediência à Lei
Faculdade
utilizada
Respeito
Emoção
Razão
Designação do
líder
Senhor
Chefe
Superior
hierárquico
(funcionário)
Designação dos
dominados
Servidores
(associados ou
súbditos)
Partidários
Cidadãos
Recursos
Taxas
Impostos
Regime político
típico
Monarquia absoluta
Espólio
/Dom
Ditadura
Plebiscitária
Democracia
parlamentar
Tipo de Revolução
Revolução
tradicionalista
Revolução radical
--
i.
A gramática do texto constitucional
Os regimes democráticos são organizados segundo o princípio da separação de
poderes (legislativo, executivo e judicial) a fim de evitar a sua concentração numa só
pessoa. Algumas constituições privilegiam a estrita separação dos poderes, outras,
consagrando essa separação, permitem, a níveis distintos, meios de controlo de uns em
relação a outros.
O poder legislativo, órgão colegial, representativo da Nação, é geralmente
exercido por um parlamento, formado por deputados eleitos pelos cidadãos e dispõe do
poder de editar a lei e de controlo do executivo.
O poder executivo que pode ser exercido por órgão colegial ou unipessoal,
materializa as leis em acção governativa e conduz a política nacional para dar satisfação
as necessidades da comunidade. Para este fim dispõe de poder regulamentar e da
administração e das forças de defesa e segurança. O poder judicial é o órgão de
soberania que se encarrega de aplicar a lei para fazer cumprir a ordem estabelecida, para
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decidir sobre conflitos entre o Estado e os particulares, ou entre particulares. A sua
independência é fundamental pois é a garantia da sua imparcialidade. É, normalmente, a
Constituição que define as suas competências e garante a sua independência. Esta define
também a organização dos poderes públicos locais, distinguindo as competências do
Estado (central) e das colectividades territoriais.
Na Constituição angolana interessa-nos, para fins de determinação do sistema de
governo, apreciar a divisão e equilíbrio de poderes entre os dois órgãos de soberania: o
legislativo e o executivo. A parte da Constituição que trata dessa relação é o Título IV.
Este refere-se à “Organização do Poder do Estado”, que surge na organização interna da
Constituição, depois de outros três primeiros títulos sobre os (I) “Princípios
fundamentais”, (II) os “Direitos e Deveres Fundamentais”, e (III) a “Organização
Económica, Financeira e Fiscal”.
O título IV estrutura-se com um primeiro capítulo dedicado aos “princípios
gerais”, em que se definem os órgãos de soberania da República de Angola, como sendo
o Presidente da República, a Assembleia Nacional e os Tribunais (artigo 105º), a forma
de designação do Presidente da República e dos Deputados (artigo 106º) e a
administração eleitoral (artigo 107º) – e pela enumeração sucessiva das atribuições e
competências dos órgãos de soberania, tendo à cabeça o poder executivo (capítulo II),
seguido do “poder legislativo” (capítulo. III) e do “poder judicial” (capítulo IV), o que
pode, desde já, indiciar uma prevalência do executivo sobre o legislativo.
Nesta sede, o Presidente da República, para além de Chefe de Estado, a quem
cabem poderes de representação da Nação, no plano interno e externo, é definido como
“o titular do Poder Executivo e Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas”
(artigo 108º, 1). Por isto, ao Presidente da República cabem competências como “Chefe
de Estado” (artigo 119º), como “Titular do Poder Executivo” (artigo.120º), como
“Comandante-em-Chefe (artigo 122º) e mais detalhadamente sobre matérias das
“relações internacionais” (artigo 121º) e de “segurança nacional” (artigo 123º), sendo
ele que “define a política geral do Estado” (artigo 120º, alínea a) e a administra em todo
o território, através de órgãos consultivos (Conselho da República, Conselho de
Ministros, Conselho de Segurança Nacional…) (artigo 134º ss), e estruturas
governativas auxiliares centrais (Vice-Presidente, Ministros de Estado e Ministros)
(artigo 108º, nº 2)iii e locais (Governadores e Vice-Governadores provinciais) que ele
próprio escolhe e nomeia (artigo 119, alínea k). Mas, para além deste poder executivo e
regulamentar (artigo 120º, alínea h), o Presidente da República - não sendo responsável
politicamente pelos seus actosiii, nem perante a Assembleia Nacional, nem perante a
Nação, que não o elege - goza também de poder legislativo: poder legislativo próprio
que exerce através de “decretos legislativos presidenciais provisórios” (artigo 126º) e
poder legislativo delegado (“autorizado”), que exerce através de “decretos legislativos
presidenciais” autorizados (artigo 125º, nº 2) pela Assembleia Nacional, em matérias de
reserva relativa desta. No mais, conta ainda com a força de pressão de que dispõe, em
relação a actividade legislativa da Assembleia Nacional, através da sua iniciativa
legislativa (artigo 167º, nº 1) e, sobretudo, por força do mecanismo de veto (artigo 124º,
nº 2) que lhe é concedido ao promulgar as leis.
A Assembleia Nacional é definida como “o parlamento de Angola”,
“representativo de todos os angolanos, que exprime a vontade soberana do povo e
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exerce o poder legislativo” (artigo 141º). Nesta condição, as suas competências são
divididas em três domínios: competências no domínio político e legislativo (artigo
161º), em que sobressaem a aprovação das alterações à Constituição, de leis sobre todas
as matérias, do Orçamento Geral do Estado, dos Tratados Internacionais, a concessão de
autorizações legislativas ao Presidente da República, a proposição de referendos e o
pronunciamento e sobre a declaração de guerra ou paz, do estado de sítio ou de
emergência. Competência de controlo e fiscalização (artigo 162º), nomeadamente de
analisar a Conta Geral do Estado e de autorizar o Executivo a contrair ou conceder
empréstimos e de efectuar outras operações de crédito. E, ainda, “competências em
relação a outros órgãos” (artigo 163º), como seja, eleger juízes para o Tribunal
Constitucional, juristas para os Conselhos Superiores de Magistratura Judicial ou do
Ministério Público, membros do Conselho Nacional Eleitoral e de outros órgãos. No
domínio legislativo as suas competências são divididas em competências com reserva
absoluta (artigo 164º) e competências com reserva relativa (artigo 165º). São da
competência da Assembleia Nacional, com reserva absoluta, as questões ligadas à
nacionalidade, aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, às eleições, ao estatuto
dos titulares dos órgãos de soberania, do poder local e de demais órgãos constitucionais.
Tal como o regime de referendo, do estado de guerra, de sítio e de emergência. O
estabelecimento das bases da organização e funcionamento do poder local, da
participação dos cidadãos e das autoridades tradicionais no seu exercício, da
organização dos Tribunais, da defesa nacional, das forças armadas e de segurança
pública e dos serviços de informação, bem como do estatuto dos magistrados e do
Ministério Público, a tipificação dos crimes, a definição das penas e medidas de
segurança e as bases do processo criminal. As competências da Assembleia Nacional,
com reserva relativa, são aquelas que podem ser concedidas ao Executivo para este
legislar sobre elas, como seja, estatuto da função pública, “incluindo as garantias dos
administrados [que deveriam ser entendidos como direitos fundamentais], estatuto dos
funcionários públicos e responsabilidade civil da Administração Pública”, estatuto dos
institutos, empresas e associações públicos, bases do sistema financeiro, bancário e
monetário, do sistema nacional de planeamento, de ensino, de saúde, de segurança
social, do ordenamento do território, do equilíbrio ambiental, do património cultural, do
regime geral de transmissão e concessão da terra, de exploração dos recursos naturais e
da alienação do património do Estado. Definição dos sectores de reserva do Estado, no
domínio da economia e regime dos bens do domínio público, de requisição e da
expropriação por utilidade pública, criação de impostos e sistema fiscal, regime geral de
taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas e também o
regime geral do serviço militar, da punição das infracções disciplinares e de mera
ordenação social e respectivo processo.
É evidente que nesta Constituição de 2010, o legislativo perde poder de controlo
e de fiscalização, perde poder de aprovação de actos do executivo (como seja o Plano
Nacional) e são restringidas (em volume e importância) as matérias submetidas à
reserva absoluta do parlamento. Por exemplo, as matérias sobre a economia nacional
saíram das competências, com reserva absoluta, da Assembleia Nacional e passaram
para as competências do Presidente da República, enquanto titular do poder executivo.
Alguns dos anteriores poderes da Assembleia Nacional, de aprovação de acções do
Presidente da República, são agora transformados em poderes de pronúncia, como
acontece com a declaração do estado de emergência (art. 161, al. h) e a declaração de
guerra ou feitura da paz (art. 161, al. i). Outros anteriores poderes de aprovação são
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transformados num poder de análise, como acontece em relação à Conta Geral do
Estado. A Assembleia Nacional torna-se assim uma mera câmara legislativa sem quase
nenhum papel como órgão político de controlo do executivo. Mesmo como câmara
legislativa vê os seus poderes reduzidos a favor do Presidente da República que para
além da sua “iniciativa legislativa” (artigo 167º, 1), do seu poder de veto (artigo 124º, 2)
partilha a função legislativa através dos sobreditos “decretos legislativos presidenciais
provisórios” e de “decretos legislativos presidenciais” autorizados.
 Sistema consular bonapartista
A nova Constituição estabelece uma evidente concentração de poderes no
Presidente da República que dirige pessoalmente todos os níveis de poderes. Para além
de que sendo titular do executivo, por força do sistema de “eleições gerais”, é sempre o
chefe da maioria parlamentar, sem nenhuma responsabilidade política diante da
representação nacional e detém um poder de dissolução dissimulado numa dita “autodemissão política do Presidente da República” (artigo 128º). O sistema de governo
instituído por esta Constituição desrespeita o princípio da separação de poderes e
consagra uma pirâmide de comando único, no vértice da qual se encontra o Presidente
da República em quem se concentram todos os poderes. Este facto, leva-me a pensar
nos sistemas autoritários, historicamente conhecidos e, em particular, no exemplo
histórico de poder executivo forte que foge ao modelo democrático e aos seus sistemas
de governo e configura um sistema autoritário: o sistema consular bonapartista,
consagrado pela a Constituição francesa do Ano VIII (1796), após o golpe de Estado de
Napoleão Bonaparte. Esta Constituição que é, antes de mais, um texto técnico que
define principalmente os poderes do Primeiro Cônsul, marca uma ruptura com a
constituição democrática anterior, saída da Revolução Francesa (1789) e dá lugar a um
poder pessoal, mantendo a ilusão da democracia. Os poderes do primeiro cônsul são
consideráveis, enquanto os outros dois cônsules têm apenas poderes consultivos. A
diferença, que se justifica pela distância de duzentos anos que separam as duas
constituições, é que a constituição angolana tem um longo e bem elaborado catálogo de
direitos, enquanto naquela constituição francesa não encontramos declaração de direitos
e das liberdades, embora alguns direitos sejam afirmados em disposições gerais, como o
direito da inviolabilidade do domicílio, a segurança das pessoas e o direito de petição. O
sufrágio universal (masculino) é instaurado mas não permite a expressão dos cidadãos.
Em verdade, tal como acontece na nova constituição angolana, em relação a eleição
presidencial que foi suprimida, também na constituição bonapartista, as eleições foram
suprimidas, os cidadãos deixaram de eleger os seus representantes e limitavam-se a
apresentar listas de notáveis. A partir destas listas eram nomeados ou eleitos pelo
Governo ou pelo Senado para cônsules ou funcionários, no espírito da máxima de
Sieyes, segundo a qual “a confiança vem de baixo, mas o poder vem de cima”.
I.
Conclusão
A actual Constituição angolana, segundo os detentores do poder, fecha um ciclo
que teria iniciado em 1991-1992 com as duas sucessivas revisões constitucionais de
Março de 1991 e de Setembro de 1992 que inauguraram um processo de transição para
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a democracia, ao consagrar direitos de cidadania a todos os angolanos, o pluralismo
político e a separação de poderes próprios de um “Estado Democrático de Direito”.
Para os partidários desta Constituição, esta forma de governo, a atribuição exclusiva da
autoridade do Estado ao Presidente da República, subalternizando a representação
nacional, é a resposta à instabilidade política e a garantia de uma “estabilidade
extraordinária”, assente no Presidente da República, como instituição chave do sistema,
a quem cabe o papel determinante na direcção e “comando único” da política nacional.
Para estes, esta forma de governo, conjugada a um largo catálogo enumerativo de
direitos e liberdades fundamentais pode ainda ser, pela sua aparência, apresentada como
uma forma democrática de governo. No entanto, ao conferir ao Presidente da República
plenos poderes, justificados pelos seus promotores como resultado do dinamismo social,
da evolução do pensamento político do partido no poder, como necessários para garantir
o desenvolvimento do país, a Constituição de 2010 fecha um ciclo: um ciclo de
restauração autoritária que sempre coexistiu com a ordem formal do “Estado
Democrático de Direito” que estava consagrado na Lei Constitucional de 1992
(Setembro).
É justo que se entenda a democracia como uma invenção permanente, que ela
não obrigue à adopção de um modelo, de um tipo concreto de organização do poder de
Estado mas não se pode ignorar que ela corresponde a um conteúdo determinado, a um
quadro de valores preciso e que um regime político em que não há partilha de poder,
nem separação de poderes, no qual todos os poderes estão concentrados num indivíduo
(autocracia) ou num grupo (oligarquia) é qualificado como uma ditadura, como um
regime autoritário, sendo tendencialmente um regime arbitrário e coercivo. A grande
diferença entre os regimes democráticos e os regimes autoritários é que no primeiro
observa-se um poder e uma autoridade partilhados, através da separação de poderes,
enquanto no segundo caso o poder e a autoridade está concentrada numa pessoa ou
grupo restrito de pessoas, obedecendo a uma mesma linha de comando único. Daí
decorre também uma diferença fundamental em relação a existência, em democracia, de
um espaço público, onde todos os actores sociais têm a possibilidade de participar
livremente para contribuir para uma melhor gestão da res publica, tendo a oposição, não
somente esta possibilidade mas também um estatuto próprio que é tido como importante
para o desenvolvimento do país, enquanto nos regimes autoritários a participação é
canalizada através de corpos intermédios e visa tão-somente clarificar as escolhas do
Chefe.
Nas democracias antigas, sempre que os poderes dos órgãos representativos, por
razões ponderáveis, eram suspensos e transferidos para uma pessoa, considerava-se que
se vivia em ditadura. Na República romana, a ditadura era entendida como a
magistratura excepcional em que todos os poderes eram atribuídos a um homem só, por
um mandato estritamente limitado. A situação de ditadura estabelecida pela
Constituição, na parte referente a “organização do poder de Estado” (Titulo IV), em
franca contradição com as declarações de princípios fundamentais, do Título I, onde é
consagrado o “Estado Democrático de Direito, baseado na “soberania do povo”, em
linha directa com uma filosofia de base rousseauista, não se apresenta como de
transição, mas tem a pretensão de ser eficaz e desenvolvimentista e, por isto, pretende
ser uma ditadura “de lei”, sem que esta seja a expressão da vontade geral mas a
expressão da soberania do chefe (o poder de Um, segundo a concepção filosófica de
poder de Hobbes) que procura projecção numa classe alta e média-alta que pelo engodo
da igualdade e da participação corporativa, de inspiração hegeliana, ceda a liberdade a
favor do chefe, e satisfeitos os seus interesses pela eficácia da administração, se torne,
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juntamente com extractos das camadas baixas, beneficiárias do clientelismo corporativo
e alimentadas pelo populismo político, o seu sustentáculo e lhe permitam uma
reprodução sem ter que recorrer aos actuais mecanismos mais repressivos e
fraudulentos.
Conforma-se pois um poder que se apresenta como legal e racional, cujo
fundamento é apresentado como sendo a lei – tida como obrigatória para todos – mas
que investe fortemente nos mecanismos de funcionamento da autoridade carismática ou
mesmo tradicional.
Referências
COLAS, Dominique, 1994, Sociologie politique, Paris, PUF.
HOBBES, Thomas, O Leviatão,
MACHADO, João Baptista, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador
REALE, Miguel,
ROUSSEAU, Jean-Jacques, O Contrato Social,
REPÚBLICA de Angola, 2010, Constituição, Luanda, Imprensa Nacional de Angola.
REPÚBLICA de Angola, 1992, Lei de Constitucional, Lobito, Escolar Editora.
WEBER, MAX,
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Os CACSs na esteira da governação local: um olhar sobre o município do
Bailundo
José Maria Katiavala,
Sociólogo e Director da Unidade de Projectos da ADRA.
Introdução
A problemática da desconcentração e descentralização vem preenchendo cada
vez mais o debate político em Angola, mobilizando instituições do Estado, partidos
políticos e organizações da sociedade civil, no quadro da promoção da governação local
que favoreça a participação activa dos cidadãos na vida pública. No centro deste debate,
a análise do funcionamento dos Conselhos de Auscultação e Concertação Social
(CACSs) em implantação nos municípios desde 2008, ao abrigo das reformas operadas
na Administração Local do Estado, tem suscitado enorme interesse e mesmo
entusiasmo, particularmente no seio de militantes e activistas de organizações da
sociedade civil.
O presente artigo resulta da participação do autor, como assistente para o
município do Bailundo, na província do Huambo, no Projecto de Pesquisa sobre os
CACSs, de iniciativa do Centro de Estudos e Investigação Científica (CEIC) da
Universidade Católica de Angola, desenvolvido entre 2009 e 2010, em parceria com o
CMI (Christian Michael Institut) da Noruega e a ADRA (Acção para o
Desenvolvimento Rural e Ambiente). As reflexões e análises que a seguir se
apresentam, para além dos contactos mantidos com alguns membros do CACS do
Bailundo, no quadro da pesquisa, resultam também do envolvimento do autor no debate
sobre a descentralização e desenvolvimento local em Angola no interior da ADRA,
organização a que está ligado há mais de 10 anos e que no seu trabalho de intervenção
social em 22 municípios do país tem contribuído para efectivação desse processo.
Contudo, eventuais juízos de valor emitidos ao longo do texto não engajam
necessariamente a ADRA, sendo, sim, da inteira responsabilidade do autor.
O artigo começa com uma breve contextualização do processo da
desconcentração e descentralização em Angola com incidência nos principais eventos
ocorridos no país nos últimos 10 anos. Segue depois a análise concreta da implantação
do CACS no município do Bailundo com foco na composição, reuniões,
representatividade e dinâmica de participação, terminando-se com algumas reflexões
mais gerais sobre os desafios que se colocam aos CACSs na esteira da governação local.
O contexto geral do processo de desconcentração e descentralização em Angola
Nos últimos tempos a problemática da desconcentração e descentralização
passou a ser objecto de discussão em Angola, no quadro de um processo mais amplo de
reformas políticas, institucionais, sociais e económicas iniciadas no limiar da década de
90 com a adopção da democracia multipartidária e da economia de mercado. Com
efeito, vale a pena destacar as principais referências que marcam as iniciativas voltadas
para a promoção da desconcentração descentralização em Angola.
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A primeira referência data de 1999 com a aprovação do Decreto nº 17/99 de 29
de Outubro que depois veio a ser complementado pelo decreto executivo nº29/00 de 19
de Maio que estabeleceu o paradigma dos governos provinciais e das administrações
municipais e comunais. A implementação deste diploma legal permitiu reforçar a
capacidade institucional dos governos provinciais, conferindo-lhes maior autonomia na
execução de programas públicos, tendo, por isso, sido considerado por especialistas
como o “rosto” do início do processo de desconcentração em Angola, um processo que
ainda “não atingiu, na plenitude, os efeitos desejados em virtude de a mesma não ter
sido acompanhada da transferência de recursos organizacionais, particularmente
financeiros e humanos”, segundo constata o Estudo sobre a Macro- Estrutura da
Administração Local realizado pelo Governo Angolano em 2002 com apoio do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, embora recentemente se
registem melhorias com o estabelecimento de unidades orçamentais nos municípios,
conforme se analisa mais adiante.
A implementação do Plano Estratégico de Desconcentração e Descentralização
Administrativa, a partir de 2001, é a segunda maior iniciativa de destaque levada a cabo
pelas autoridades angolanas, impulsionadas pela necessidade de reformar o
funcionamento do aparelho do Estado, tornando-o mais próximo dos cidadãos.
Concebido e posto em marcha ainda no período de guerra civil, o referido plano
estabeleceu, no essencial, o princípio da transferência gradual das funções do Governo
Central para a Administração Local, num primeiro momento, perspectivando-se, a
médio prazo, a institucionalização de um poder local autárquico.
Entretanto, em paralelo ao Plano Estratégico de Desconcentração e
Descentralização Administrativa surgiram outras iniciativas, principalmente no âmbito
da implementação de projectos de apoio ao desenvolvimento das comunidades locais
promovidos por ONGs nacionais e estrangeiras com apoio de agências internacionais,
como são os casos da União Europeia e do Banco Mundial. A União Europeia, através
do Programa de Apoio à Reconstrução (PAR) apoiou, entre 2003 e 2005, projectos em
alguns municípios das províncias do Huambo, Benguela, Bié e Huíla que introduziram
uma inovação, no contexto das intervenções de desenvolvimento comunitário em
Angola, ao adoptar a estratégia de constituição dos chamados Quadros de Concertação
Municipal (QCM) com ramificações nas comunas, integrando responsáveis da
Administração Local, autoridades tradicionais, associações de camponeses, líderes
religiosos e outros segmentos das comunidades. Os QCM configuravam, por assim
dizer, um potencial para a promoção da cultura do diálogo entre os detentores do poder
político a nível dos municípios e comunas e os representantes das comunidades, mas
este desejo não foi plenamente realizado, ao fim de quase três anos de implementação
da experiência; é que as expectativas geradas pela criação dos QCM não foram
satisfeitas por falta de um mecanismo financeiro para a implementação dos projectos
identificados e elaborados após a realização de longos diagnósticos municipais, numa
altura em que as necessidades de reconstrução de infra-estruturas e as carências
materiais das comunidades eram enormes. Isso acabou, por esvaziar o conteúdo dos
QCM e, obviamente desmobilizou as Administrações Municipais e as populações.
Todavia, alguns analistas que vêm acompanhando o processo de desconcentração e
descentralização em Angola, questionam se nessa altura havia por parte do Governo um
efectivo compromisso político de tornar a iniciativa dos QCM num instrumento político
de promoção da governação local. De qualquer modo, a experiência dos QCM
constituiu um importante contributo conceptual no que toca à promoção da cultura do
diálogo no seio das Administrações Municipais, vindo posteriormente a inspirar um
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conjunto de iniciativas que despoletaram um pouco por todo país nos últimos cinco
anos.
A dinamização de fóruns municipais pelo Fundo de Apoio Social (FAS) é outra
iniciativa que perfila nas tentativas de estimular a participação social no quadro da
governação local. Agência do Governo, criada em 1994, para apoiar a implementação
de projectos voltados à melhoria do acesso aos serviços sociais básicos pelas
populações mais carentes, o FAS adoptou a estratégia de constituição de fóruns
municipais com a pretensão de promover uma governação participativa nos municípios.
As ONGs nacionais e estrangeiras também têm vindo a incorporar nas suas
estratégias de intervenção, a componente do apoio à descentralização nos municípios,
defendendo a bandeira da participação, da inclusão social e da cidadania. Do leque de
ONGs envolvidas na implementação de projectos de apoio à descentralização, a ADRA,
a DW, a Care International e a Save The Children são as mais activas, com intervenções
centradas no reforço da capacidade organizativa das organizações comunitárias de base
para que se tornem actores fundamentais da governação local. No caso da ADRA, o seu
interesse na promoção da governação local remonta desde meados dos anos 90 dentro
do debate sobre o desenvolvimento local no seio da organização, a partir da experiência
do município pastoril dos Gambos, na província da Huíla, onde a dado momento o
trabalho realizado com as comunidades locais viu-se confrontado com uma actuação
junto das instituições do Estado no município, na perspectiva de assegurar a
sustentabilidade das acções de desenvolvimento comunitário, então em curso na região.
A aprovação do Decreto nº02/07 de 3 de Janeiro que estabeleceu o quadro das
atribuições e competências e regime jurídico de organização e funcionamento dos
Governos Provinciais, das Administrações Municipais e Comunais veio a conferir um
novo impulso à implementação do Plano Estratégico de Desconcentração e
Descentralização e às várias iniciativas das organizações da sociedade civil. Este
diploma cuja elaboração resultou de estudos e reflexões sobre a estrutura e
funcionamento da Administração Local do Estado e da contribuição das ONGs e
agências internacionais engajadas em projectos de promoção da governação local
trouxe, na opinião de analistas e militantes da sociedade civil angolana, dois
significativos ganhos para o processo de desconcentração e descentralização em
Angola. O primeiro ganho a relevar é, sem dúvida, a constituição dos Conselhos de
Auscultação e Concertação Social (CACS) nas províncias, municípios e comunas, um
importante avanço na institucionalização do diálogo entre as Administrações Locais do
Estado e as comunidades, como pressuposto crucial para a existência de uma
governação local que se pretende democrática, como vêm advogando, nos últimos anos
as organizações da sociedade civil, na esteira do debate mais amplo sobre a
democratização da sociedade angolana. Conforme estabelece o decreto, o CACS, a
todos os níveis, tem por finalidade apoiar os órgãos da Administração Local do Estado
na apreciação e tomada de medidas de natureza política, económica e social, em
sintonia com o princípio da participação e colegialidade, um dos vários previstos no
diploma, que devem reger a organização e funcionamento da Administração Local do
Estado. Contudo, na prática, o caminho a percorrer para que os CACS sejam espaços
privilegiados de participação democrática dos cidadãos na governação local, é ainda
longo. Volvidos dois anos após a implantação dos CACS, o seu funcionamento, na
maior parte dos casos, está muito dependente da abertura e visão de cada líder do
município.
O segundo ganho tem que ver com o estabelecimento das unidades orçamentais
nos municípios, tendo-se seleccionado numa primeira fase 68 municípios. Em 2008, o
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Governo Central aprovou uma linha de financiamento para os municípios, criando o
Fundo de Apoio à Gestão Municipal (FUGEM) através do decreto nº 8/08 de 24 de
Abril, instrumento de “suporte ao exercício das competências das administrações
municipais, decorrentes do Decreto-Lei nº2/07. De acordo com o referido decreto, o
FUGEM “tem por finalidade dotar as administrações municipais com recursos
financeiros adequados a uma rápida e eficaz intervenção na resolução dos problemas
urgentes que afectam as populações”.
O quadro jurídico decorrente da entrada em vigor da nova Constituição trouxe
novos elementos para a descentralização e a promoção da governação local, ao
aprofundar a questão do poder local, principalmente no que toca à institucionalização
das autarquias locais, gerando uma certa expectativa em relação à realização de eleições
municipais nos próximos tempos. Em face deste novo quadro constitucional foi criada a
Lei da Organização e do Funcionamento dos Órgãos de Administração Local do Estado
(Lei nº 17/10 de 29 de Julho) que foi praticamente uma adaptação do Decreto Lei nº
2/07 com a introdução de alguns elementos novos, sendo de relevar a integração dos
partidos políticos com assento parlamentar nos CACS.
A implantação do CACS no Bailundo: a representatividade em questão
O Bailundo foi dos primeiros municípios da província do Huambo a constituir
formalmente o CACS no início de 2008, um ano após a entrada em vigor do Decreto
nº02/07. O Bailundo fez parte dos 68 municípios abrangidos pela fase experimental de
desconcentração financeira e isso terá funcionado como factor de motivação para a
dinamização do CACS municipal, na medida em que a mobilização dos diferentes
actores sociais do município, tendo em vista a sua integração neste espaço decorreu na
expectativa de existirem recursos para responder às demandas das comunidades locais.
Nas linhas que se seguem debruçamo-nos sobre os aspectos essenciais que
marcam a dinâmica do CACS no Bailundo, dando ênfase aos limites e desafios que esta
experiência configura no que toca à democratização da governação local. Antes, porém,
são apresentadas algumas informações gerais sobre o município.
Informações gerais sobre o município
O município do Bailundo ocupa uma superfície de 7.065 quilómetros quadrados,
representando 20 % do território da província do Huambo. Tem uma população
estimada em 237.160 habitantes distribuídos em cinco comunas: Sede, Luvemba,
Lunge, Bimbi e Hengue. É dos municípios mais populosos da província depois do
Huambo e Caála.
Á semelhança de outros municípios do interior do país, o Bailundo ficou muito
afectado durante o período de guerra civil, principalmente na sua última fase, entre
finais de 1998 e princípios de 2002 quando se transformou num dos principais palcos de
confrontos militares entre o exército nacional e as forças militares da UNITA.
Com o fim da guerra, o município do Bailundo tem conhecido várias
intervenções de programas públicos, o que está a permitir a recuperação gradual das
suas infra-estruturas sociais e económicas. Nos últimos três anos o Governo central
implementou no município projectos de reabilitação de estradas e dos edifícios da
Administração Municipal, o que contribuiu significativamente para a melhoria das
ligações com a capital provincial e outras localidades de Angola; antes, a ligação entre
Bailundo e a cidade do Huambo, por exemplo, era feita quase em três horas e hoje faz120
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se apenas em uma hora. O edifício da Administração está completamente reabilitado e
equipado com mobiliário moderno, telecomunicações e outros meios.
Em 2008, no quadro da desconcentração financeira, Bailundo beneficiou dos
cinco milhões de dólares. Esta medida permitiu alargar as acções de reabilitação para as
outras comunas, com destaque para os edifícios administrativos, escolas e postos de
saúde.
O que dizer sobre o CACS?
Composição
Segundo o figurino que o Decreto nº02/07 estabelece e agora reforçado pela Lei
nº 17/10 de 29 de Julho com a incorporação de novos actores, com destaque para os
partidos políticos representados na Assembleia Nacional, o CACS integra, todos os
membros da Administração Municipal (administrador e o seu adjunto, administradores
comunais e chefes de repartições), representantes das autoridades tradicionais, do sector
empresarial público e privado, das associações de camponeses, das igrejas reconhecidas
por lei e das ONGs.
No Bailundo, a composição inicial do CACS foi de 30 membros, tendo mais
tarde aumentado para 40. Um aspecto a reter é que o Bailundo não esperou pela Lei nº
17/10 para alargar o número de conselheiros; de acordo com um entrevistado, a dada
altura sentiu-se a necessidade de envolver mais representantes, como foi o caso dos
partidos políticos, do aumento de sobas e da integração de todas as igrejas representadas
no município e reconhecidas por lei. No caso particular das igrejas, inicialmente
estavam representadas apenas a Igreja Católica e a Igreja Evangélica Congregacional de
Angola, as duas mais influentes no município, o que terá criado alguma indignação nos
círculos de outras denominações cristãs.
Contudo, a escolha de representantes dos diferentes segmentos para os CACS
tem suscitado algum debate, tudo porque na maior parte dos casos, os critérios de
selecção não existem ou são pouco claros. Um dos aspectos mais cruciais que se levanta
quando se analisa a composição dos CACS é como, por exemplo, equacionar a
representação das autoridades tradicionais. No caso do Bailundo, a situação ficou, de
algum modo resolvida, fazendo recurso a figura do Rei Ekuikui IV como representante
das autoridades tradicionais, ao lado de dois sobas grandes. Porém, na prática, o rei tem
apenas uma função simbólica, tendo pouco contacto com a vida quotidiana das
comunidades. Comentando sobre este assunto da representação das autoridades
tradicionais nos CACS, o responsável do Gabinete de Apoio e Controlo das
Administrações Municipais e Comunais do Huambo, afirmou ser um aspecto
problemático porque “cada autoridade tradicional é autónoma”. Provavelmente esta é
uma situação que poderá ser solucionada quando se imprimir maior dinâmica ao
funcionamento dos CACS ao nível das comunas.
Reuniões
Desde a sua constituição, o CACS municipal do Bailundo realizou sete sessões,
das quais uma extraordinária. Em 2008, o CACS reuniu-se por quatro vezes e esse foi o
ano “mais produtivo”, porquanto a dinâmica de implementação do Plano de Intervenção
Municipal dava conteúdo de trabalho e substância à actividade da Administração
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Municipal e impunha-se a necessidade de manter informado este órgão sobre o grau de
realização dos projectos e aplicação dos recursos alocados ao município.
Em 2009, o funcionamento do CACS abrandou e foram realizadas apenas duas
reuniões das quatro previstas, de acordo com o que estipulava o Decreto nº02/07 no
artigo 54º ponto 6 segundo o qual “ O Conselho Municipal de Auscultação e
Concertação Social reúne-se ordinariamente de três em três meses e extraordinariamente
sempre que o Administrador o convocar. São apontadas três razões fundamentais que
estão na base do funcionamento irregular do CACS municipal do Bailundo em 2009.
Em primeiro lugar, a crise financeira levou o Governo a reduzir drasticamente os apoios
financeiros previstos para os municípios, sendo que grande parte dos projectos que
haviam sido elaborados pela Administração Municipal não foram implementados, o
que, por arrasto, condicionou o funcionamento do CACS. É que sem projectos
concretos em marcha não havia muitos motivos para reunir os membros.
Em segundo lugar, Bailundo viveu um período de cerca de sete meses, sem
Administrador Municipal, depois da anterior titular ter tomado posse na Assembleia
Nacional, integrada no grupo de deputados do MPLA pelo círculo provincial do
Huambo, após a realização das eleições legislativas de Setembro de 2008. Além disso, o
município também não tinha um Administrador Adjunto em funções, em virtude de a
pessoa que exercia o cargo ter sido dispensada, por problemas de saúde. Deste modo,
não havia no município, uma figura com competência legal para convocar o CACS, mas
ainda assim foram realizadas duas sessões, uma das quais dedicada à análise do Plano
de Intervenção Municipal para 2010.
Em terceiro lugar, assinale-se a interferência das estruturas governamentais a
nível provincial no funcionamento da Administração Municipal que muitas vezes vê-se
forçada a pôr de lado a sua programação normal de actividades para dar resposta às
orientações superiores. Um destacado membro da Administração Municipal do
Bailundo caracterizou tal interferência nos seguintes termos:“Às vezes acontece que os
convites já foram distribuídos, os membros mobilizados e aparece uma convocatória
dirigida ao Administrador, às 17 horas, para participar no dia seguinte numa reunião
do Governo Provincial, exactamente na mesma altura em que foi programada a sessão
do CACS. E como é ele que tem que presidir o CACS adia-se a sessão.”
Na senda da mesma reflexão, o referido membro critica o facto de o Governo
Provincial prestar pouca atenção ao funcionamento dos CACSs a nível dos
municípios:“O Governo não solicita a prestação de contas sobre o funcionamento dos
CACSs. Tem de haver maior coordenação do Governo Provincial com a Administração
Municipal.” Este depoimento é indicador de que as estruturas centrais não têm dado a
devida importância política aos CACS enquanto espaços privilegiados para a promoção
de uma governação local democrática, fundada na construção do diálogo entre
governantes e governados. Isso explica, em parte, as dificuldades que vêm sendo
vividas, um pouco por todo país no processo de implantação dos CACS. Uma maior
intervenção das estruturas centrais no apoio às Administrações Municipais na
dinamização do funcionamento dos CACS, afigura-se, de resto, como um dos desafios a
encarar no futuro, prestando assistência técnica e metodológica para que estes espaços
cumpram com os propósitos para os quais foram previstos na estrutura orgânica dos
órgãos da Administração Local do Estado.
Em 2010 até a data da realização das últimas entrevistas com os membros da
Administração Municipal, apenas tinha sido realizada uma sessão do CACS. A entrada
em vigor da nova constituição e o subsequente processo de adaptação da legislação
ordinária sobre a Administração Local do Estado e de outros sectores da vida nacional
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criou um certo ambiente de indefinição no funcionamento das instituições e, no caso das
Administrações Municipais esta situação acabou por condicionar também a realização
das sessões do CACS. Daí que no Bailundo a primeira sessão do CACS tivesse somente
ocorrido no mês de Agosto, durante a qual os conselheiros tomaram conhecimento do
processo de elaboração do Programa Municipal Integrado de Desenvolvimento Rural
Integrado e Combate à Pobreza, uma iniciativa da Casa Civil da Presidência da
República que veio a substituir os Planos de Intervenção Municipal.
Representatividade
Ao abordamos a composição do CACS fizemos alguma referência sobre a
questão da representação, particularmente no que diz respeito às autoridades
tradicionais e tal como sublinhamos, no Bailundo houve um alargamento de membros,
antes mesmo das últimas reformas legais operadas com a entrada em vigor da Lei 17/10
de 29 de Julho. Com a referida lei, a composição do CACS foi alargada, integrando
agora representantes de partidos políticos com assento parlamentar e do Conselho da
Juventude. Com efeito, lendo a relação nominal de membros do CACS Municipal do
Bailundo a que tivemos acesso, datada de 20 de Maio de 2010, o aspecto da
representatividade suscitou-nos algumas preocupações.
Primeiro é que os membros da Administração Municipal estão em maioria,
representando 35%, seguindo-se o sector empresarial com 20%, as igrejas com 12,5% e
as ONGs com 10%; as autoridades tradicionais e as associações de camponeses
representam 7,5% e 5% respectivamente. Os partidos políticos representam 5% dos
membros do CACS que integra ainda um médico que dirige o Hospital Municipal do
Bailundo e o representante dos registos (5%). Um dado a reter aqui é que num
município predominantemente rural, a representatividade das autoridades tradicionais e
das associações de camponeses, entidades mais próximas das comunidades locais, é
bastante limitada e isso pode ter reflexos, por exemplo, no momento de decidir sobre os
investimentos no município.
O segundo aspecto a considerar é que analisando, sociologicamente, a
composição do CACS em termos de representatividade percebe-se que é a “classe
dirigente” do município que domina o espaço, acabando por ter um peso significativo
no processo de tomada de decisões. As classes populares não estão suficientemente
representadas no CACS, tomando em consideração o reduzido número de autoridades
tradicionais e membros de associações de camponeses no CACS. Este é de resto, um
dos limites dos CACS quando vistos na perspectiva da promoção da participação
popular na governação local. Há aqui um desafio no sentido de se buscar outros
mecanismos de participação social fora dos CACS mas que sirvam de seu
complemento. A experiência nos países da América Latina, principalmente do Brasil, de
criação de conselhos populares, e entre nós, as comissões de bairros, poderia ser uma
alternativa para contornar esta limitação dos CACSs. Não se trata aqui de transformar o
CACS numa assembleia popular, mas é um imperativo democrático desenvolver formas
inovadoras de participação directa dos cidadãos na vida pública.
Uma nota sobre os partidos políticos. Já referimos acima que no Bailundo, o
CACS foi alargado, mesmo antes das alterações registadas recentemente com a nova lei.
A incorporação dos partidos políticos que, em alguns sectores da sociedade civil
angolana foi vista com algumas reservas, por se recear transportar as disputas políticas
para o interior dos CACS, foi referida positivamente por alguns entrevistados. O
representante da UNITA considerou ser uma oportunidade para colocarem as suas
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opiniões e críticas sobre a governação no município, lamentando, no entanto, o facto de
as sugestões do seu partido não estarem a ser consideradas pela Administração
Municipal. Para o Administrador Municipal, a entrada de representantes de partidos
políticos no CACS constitui um ensaio para a implantação das autarquias locais,
conforme estabelece a nova constituição.
Ao terminar estas considerações sobre a problemática da representatividade no
CACS gostaríamos de observar a questão relativa ao género. É que o CACS é
esmagadoramente dominado por homens, havendo apenas duas mulheres (5%), uma
quota bastante diminuta, tendo em conta os compromissos internacionais assumidos
pelo país relativamente à promoção da igualdade de género nos diferentes sectores da
vida nacional. Não pretendemos advogar aqui uma elevação das mulheres no CACS a
qualquer preço, mas simplesmente alertar que este é um aspecto que deve merecer
atenção dos responsáveis das Administrações Municipais.
Participação na tomada de decisões
O CACS não constitui um órgão deliberativo, segundo está estabelecido no
anterior decreto e na actual lei, na medida em que apenas é ouvido pela Administração
Municipal em matérias de natureza social, económica, política e cultura com incidência
directa na vida das populações. Visto neste espírito da lei, o CACS corre o risco de ser
utilizado simplesmente como espaço de legitimação social de decisões já tomadas pelos
tecnocratas e dirigentes da Administração.
No entanto, a concertação tem implicações práticas na tomada de decisões.
Implica dialogar, conciliar pontos de vista e interesses, enfim exige um envolvimento
activo dos actores e não uma mera participação simbólica. No Bailundo ocorreram dois
factos que merecem ser destacados. Na segunda sessão do CACS realizada em Março
de 2008, os membros propuseram à Administração Municipal a revisão da proposta do
Plano de Intervenção Municipal com base nas contribuições dos participantes, tendo
sido criado, para o efeito, um grupo de trabalho composto por técnicos da
Administração Municipal e das ONGs que intervêm no município; a sugestão foi
transformada em decisão e o grupo acabou por ser constituído e trabalhou durante dois
dias na revisão da proposta que viria a ser submetida a apreciação final, numa sessão
extraordinária convocada a propósito.
Num outro desenvolvimento, conta-se que o CACS influenciou a Administração
Municipal a contemplar também as pequenas empresas do município no processo de
adjudicação de obras para favorecer a economia local. Além disso, esta ideia foi
também motivada pelo facto de algumas empresas de fora não honrarem com os seus
compromissos, apresentam orçamentos muito elevados e não são patriotas, conforme
desabafa, o Administrador Municipal Adjunto:“ Só é possível atingir-se o
desenvolvimento com o sentido de compromisso. Alguns empreiteiros só olham para os
objectivos económicos, não apresentam facturas patrióticas, os valores que apresentam
são muito exorbitantes.”
Estes dois factos, embora não possam ser tomados como uma regularidade,
demonstram, em nosso entender, que o CACS pode ter um papel mais interventivo na
tomada de decisões sobre a vida do município, sobretudo no que toca a execução dos
projectos, fiscalizar e exercer o controlo social sobre os actos da Administração
Municipal.
Entretanto, a questão da participação nos CACSs deve ser encarada como um
processo de construção. A sua efectivação plena requer tempo e investimento em acções
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de capacitação que permitam aumentar as habilidades e competências dos conselheiros
no domínio do diálogo e concertação. Neste sentido, parece-nos importante
compreender que a evolução da dinâmica participativa no interior dos CACS
conformará diferentes situações em função do grau de interacção que se estabelecer
entre as Administrações Locais e os restantes segmentos da sociedade que os integram.
Para ilustrar melhor esta constatação vamos recorrer a grelha dos níveis de participação
concebida pelo sociólogo latino-americano Juan Bordenave e que a ADRA adoptou
como modelo teórico para analisar as dinâmicas de participação no âmbito dos projectos
de desenvolvimento comunitário que promove e que pode ser adaptada para a
compreensão do processo de participação no interior dos CACSs. A referida grelha
estabelece quatro níveis de participação, conforme se apresenta no quadro a seguir.
Nível
Informação
Caracterização
A Administração toma as decisões sobre
os programas e os projectos e apenas
informa aos restantes membros do
CACSs
A Administração continua ser o maior
protagonista na tomada de decisões, mas
procura ter em conta as opiniões dos
restantes membros do CACSs
Há uma ampla discussão entre a
Administração e os restantes membros
dos CACSs no processo de tomada de
decisões. É um nível de participação que
pode originar tensões e conflitos e tornar
difícil a tomada de decisões e por isso
requer muita negociação
É o grau mais elevado de participação
sendo que os restantes membros dos
CACSs tornam-se em principais
protagonistas do processo de tomada de
decisões. Aqui o papel da Administração
é fundamentalmente de assessoria e
apoio
Consulta
Co-gestão
Autogestão
Um dos aspectos principais que é preciso reter deste modelo teórico é que a
promoção da participação no quadro do funcionamento dos CACSs dever ser encarada
também como um processo de aprendizagem que implica uma pedagogia própria que
prepare as pessoas para o exercício da cidadania. A experiência do trabalho da ADRA
com as comunidades mostra que o nível de cogestão é muito difícil de alcançar num
período inferior a cinco anos (Pacheco, 2006).
Analisando a situação concreta do Bailundo, à luz deste quadro de referência
teórico, podemos aferir que o nível de participação no CACS situa-se entre a
informação e a consulta, apoiando-nos nas observações feitas durante as sessões
dedicadas à análise da proposta do Plano de Intervenção Municipal a que tivemos a
oportunidade de assistir em que a sugestão apresentada pelos conselheiros permitiu a
revisão da referida proposta através da criação de um grupo técnico.
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REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
O CACS e o Plano de Intervenção Municipal
Durante o ano de 2008, período em que CACS mais se reuniu, a elaboração do
Plano de Intervenção Municipal e a análise do seu grau de implementação dominaram
as sessões. No momento da sua elaboração, conforme já abordamos acima, por sugestão
dos conselheiros, a Administração Municipal decidiu criar um grupo de trabalho para o
ajustamento da proposta inicialmente apresentada pela sua área de estudos e
planeamento. Esta foi uma iniciativa interessante que marcou a diferença com outros
municípios da província do Huambo beneficiados pelo pacote de financiamento do
Governo Central que não procuraram desenvolver um mecanismo de consulta aos
membros dos CACSs.
Nas sessões que se seguiram, os conselheiros centraram as suas atenções na
implementação do plano, chegando mesmo, em alguns casos, a exigir a prestação de
informações detalhadas sobre a aplicação dos fundos. Questionado sobre este assunto,
um responsável eclesiástico pronunciou-se nos seguintes termos:“Os gestores têm
demonstrado transparência. Nas reuniões quando nós exigimos mostram os balancetes.
Nas inaugurações mostram aquilo que se gastou.”
Com efeito, a gestão dos fundos alocados para a implementação dos Planos de
Intervenção Municipal tem levantado algumas inquietações, conhecidas que são as
práticas de corrupção enraizadas na nossa sociedade, em particular nas instituições do
Estado. O próprio Tribunal de Contas revela no seu Relatório Anual de Actividades de
2009, citado pelo Jornal de Angola, na sua edição de 30 de Dezembro de 2009, que “ na
sua generalidade a gestão dos administradores municipais tem sido catastrófica e
danosa”. De acordo com a fonte, “os inquéritos e auditorias feitos concluíram que o
Fundo de Gestão Municipal está ao livre arbítrio dos administradores, na medida em
que o Ministério das Finanças deposita em contas de bancos comerciais indicadas pelos
administradores que detêm a co-titulariddade e em alguns casos titulares únicos dessas
contas.”. Questionado sobre esta revelação do Tribunal de Contas, um quadro superior
da Administração Municipal do Bailundo afirmou que esta está pronta a se submeter a
uma auditoria independente que analise os procedimentos utilizados na aplicação dos
recursos atribuídos ao município no âmbito do FUGEM.
Reflexões finais: os CACS e os desafios da democratização da governação local
A implantação dos CACS nos municípios marca uma importante fase da reforma
da Administração Local do Estado em Angola iniciada na década de 90. Contudo, a
experiência do Bailundo evidencia existirem ainda desafios a enfrentar para que os
CACS estejam efectivamente na vanguarda da promoção da governação local entendida
como processo de interacção permanente do poder público com os diferentes segmentos
da sociedade.
O primeiro desafio é o da representatividade. Este aspecto carece de
aprofundamento tendo em conta os limites que os CACS apresentam a este respeito,
sendo imprescindível outros mecanismos complementares de participação directa dos
cidadãos na vida do município que viabilizem o controlo social da acção governativa
dos órgãos da Administração Local do Estado. Olhando para a realidade do CACS do
Bailundo faz algum sentido pensar numa representatividade mais proporcional, sem pôr
em causa o papel protagonista dos membros da Administração Municipal. A
experiência de constituição de fóruns desenvolvida em alguns municípios do país é uma
referência importante nesta perspectiva.
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Em segundo lugar coloca-se o desafio da articulação entre os diferentes actores
sociais, ou seja precisam de estabelecer plataformas de diálogo, tendo em vista a
construção de propostas de agendas que sirvam de base de interacção com as
Administrações Municipais através dos CACS, conferindo maior qualidade na
participação e contribuir para a democratização da própria governação local.
Em terceiro lugar há um desafio da educação para a participação junto das comunidades
locais no sentido da apropriação dos CACS enquanto recurso político privilegiado para
a apresentação das suas demandas e reivindicações. Este aspecto é particularmente
importante num contexto como o do nosso país, onde as sequelas do colonialismo e da
guerra civil são ainda bem presentes e tendem a criar uma cultura de medo e
distanciamento do debate sobre a governação.
Em quarto lugar, nos parece que o maior desafio diz respeito à informação. É
que é impossível falar-se de participação sem existir informação sobre os actos de
governação, transmitida de forma transparente. As exigências colocadas por alguns
membros do CACS do Bailundo relativamente à prestação de contas sobre o grau de
implementação do Plano de Intervenção Municipal e a distribuição atempada da
documentação a apreciar nas sessões do órgão são manifestação desta relevância da
informação para a participação, pilar fundamental para a efectivação de uma governação
local democrática.
Finalmente, a institucionalização do poder local autárquico prevista na nova
constituição é uma janela aberta para o aprofundamento da democratização da
Administração Local do Estado, submetendo o poder político ao controlo social dos
cidadãos através do incentivo da participação popular nos municípios. Nesta perspectiva
a criação das autarquias afigura-se como o fundamento da governação local pois que
são instrumentos privilegiados para assegurar a participação dos cidadãos na formação
de decisões e deliberações que lhes dizem respeito (Sá, 2000). A constituição dos
CACSs representa um passo nessa direcção e por isso é importante que o seu
funcionamento pleno se transforme num compromisso ético da classe política do país.
Referências
1. Teixeira, Alfredo, Pacheco, Fernando e Fontes Pereira, Virgílio. Estudo sobre a
Macro-estrutura da Administração Local (Contribuição para a descentralização),
in “Desconcentração e Descentralização em Angola,Volume II”. Ministério da
Administração do Território e Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento. Fevereiro 2007.
2. Ministério da Administração do Território e Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento. A Descentralização em Angola. Textos de análise e
Legislação de base. Março 2002.
3. ADRA. Desenvolvimento Local e Ambiente: A experiência da ADRA e o caso
do município dos Gambos. Comunicação apresentada ao Seminário “As ONGs
dos países de língua oficial portuguesa na luta contra a pobreza pelo bem-estar e
cidadania”. ACEP, Lisboa, Setembro de 1999.
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4. Decreto-Lei nº 2/07 de 3 de Janeiro do Conselho de Ministros publicado no
Diário da República, Quarta-feira, 3 de Janeiro de 2007, I Série-N.º 2.
5. LEI DA ORGANIZAÇÃO E DO FUNCIONAMENTO DOS ORGÃOS DE
ADMINISTRAÇÃO LOCAL DO ESTADO (Lei n.º 17/10 de 29 de Julho)
publicada no Diário da República, Quinta-feira, 29 de Julho de 2010, I Série-Nº.
142.
6. Pacheco, Fernando. Algumas Reflexões sobre Desenvolvimento Comunitário.
Luanda, Outubro de 2003.
7. Fórum Nacional de Participação Popular nas Administrações Municipais.
Relatório do Seminário sobre “PODER LOCAL PARTICIPAÇÃO POPULAR
CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA”. Belo Horizonte, Brasil, Fevereiro de 1994.
8. SÁ, LUÍS DE. INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS AUTARQUIAS.
Universidade Aberta, Lisboa, 2000.
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“CARIDADE NA VERDADE” UMA SINFONIA TEOLÓGICA
Frei Luís de França op.
Professor na Universidade Católica de Angola
É de todos conhecido o gosto de Bento XVI pela música, pelo que não se achará
despropositado apresentar a sua encíclica Caridade na Verdade como uma sinfonia
teológica. De facto o papa Bento XVI compôs o seu texto à maneira dos músicos, como
facilmente o reconheceria Mozart seu músico favorito. Com efeito todo o texto é escrito
ao ritmo de um compasso que se repete como um estribilho ou uma coda. Caridade na
Verdade é o mote desta sinfonia. Todas as vezes que Bento XVI termina a abordagem de
um assunto quer seja o desenvolvimento, a finança, ou a ecologia, ele faz questão de
dizer como é que essa temática deve ser enquadrada no seu paradigma – caridade na
verdade.
“A Caridade na Verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena
e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal
para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade
inteira” (§1)
“Há a necessidade de conjugar a caridade com a verdade, não só na
direcção assinalada por S. Paulo da – veritas in caritate – (Ef 4:15), mas
também na direcção inversa e complementar da - caritas in veritate. (§2).
é um princípio à volta do qual gira a doutrina social da
Igreja, princípio que ganha forma operativa em critérios orientadores da
acção moral. Lembro dois em particular, requeridos especialmente pelo
compromisso em prol do desenvolvimento numa sociedade em vias de
globalização: a justiça e o bem comum (§6).
Caritas in veritate
“O amor na verdade – caritas in veritate – é um grande desafio para a Igreja
num mundo em crescente e incisiva globalização. O risco do nosso tempo é
que, à real interdependência dos homens e dos povos, não corresponda a
interacção das consciências e das inteligências, da qual possa resultar um
desenvolvimento verdadeiramente humano. (§6)
Ao terminar o segundo capítulo sobre o – O Desenvolvimento Humano no
nosso Tempo - Bento XVI repete o compasso ao dizer:
“Por isso, a caridade na verdade coloca diante de nós um compromisso inédito
e criativo, sem dúvida muito vasto e complexo. Trata-se de dilatar a razão e
torná-la capaz de conhecer e orientar estas novas e imponentes dinâmicas,
animando-as na perspectiva daquela – civilização do amor – cuja semente
Deus colocou em todo o povo e cultura.” (§33)
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E o terceiro capítulo começa de novo com a invocação do mote como se verifica
ao transcrever as palavras iniciais do mesmo:
A esperança encoraja a razão e dá-lhe a força para orientar a vontade. Já
está presente na fé, pela qual aliás é suscitada. Dela se nutre a caridade na
verdade, ao mesmo tempo manifesta. Sendo dom de Deus absolutamente
gratuito, irrompe, na nossa vida como algo não devido, que transcende
qualquer norma de justiça” (§ 34)
É na explanação sobre as formas de compreender o mercado, para além de
uma visão exclusivamente economicista que Bento XVI mais insiste nas virtudes
da relação caridade e na verdade.
“O princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da
fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da actividade
económica normal. Isto é uma exigência do homem no tempo actual, mas
também da própria razão económica. Trata-se de uma exigência
simultaneamente da caridade e da verdade. (§ 36)
A caridade na verdade significa que é preciso dar forma e organização
àquelas iniciativas económicas que, embora sem negar o lucro, pretendem
ir mais além da lógica da troca de equivalentes e do lucro como fim em si
mesmo” (§38)
Opções de um título
Esta é maior encíclica social de toda história da Igreja. O papa trata de todos os
assuntos que se relacionam com a vida económica e financeira das sociedades actuais e
dos Estados. Defende o mercado e a liberdade individual, mas denuncia o capitalismo
selvagem apelando para os valores éticos que devem guiar a economia e a política.
Pronuncia-se pela necessidade de o Estado recuperar um papel activo sobretudo por
causa da necessidade de regulação dos mercados.
Caridade na Verdade é uma profunda reflexão ou se quisermos uma meditação
sobre os princípios do Evangelho aplicados à economia.
Com efeito, o Evangelho, nos diz, que o fundamental nesta vida é o amarmo-nos
uns aos outros como Deus nos amou. Como viver isto na economia, no mundo dos
negócios e no mundo do mercado livre? Bento XVI vai lembrar que no mundo real em
que vivemos não podem existir dois mundos. Ou seja, haveria o mundo da religião e o
mundo da economia. O papa, diz-nos que a economia não é neutra e que ao viver as
questões económicas temos, de pôr aí o evangelho.
Daí que a ideia central desta encíclica seja a fusão da espiritualidade com a
acção social tendo como pano de fundo o desenvolvimento integral do homem. Este
conceito do “desenvolvimento humano integral” é usado 22 vezes ao longo do texto. É a
ideia chave que atravessa todo o texto.
Querendo comemorar os 40 anos da publicação da encíclica Populorum Progressio
editada em 1967 pelo papa Paulo VI, o actual papa propõe que aquela encíclica tome o
lugar da Rerum Novarum cuja publicação em 1891 assinalou o nascimento da Doutrina
Social da Igreja. As suas palavras não poderiam ser mais claras quanto a essa intenção,
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“Passados mais de quarenta anos da publicação da referida encíclica,
pretendo prestar homenagem e honrar a memória do grande Pontífice
Paulo VI, retomando os seus ensinamentos sobre o desenvolvimento
humano integral e colocando-me na senda pelos mesmos traçados para os
actualizar nos dias que correm. Este processo de actualização teve início
com a encíclica Sollicitudo rei socialis do Servo de Deus João Paulo II, que
desse modo quis comemorar a Populorum progressio no vigésimo aniversário
da sua publicação. Até então, semelhante comemoração tinha-se reservado
apenas para a Rerum novarum. Passados outros vinte anos, exprimo a minha
convicção de que a Populorum progressio merece ser considerada como « a
Rerum Novarum da época contemporânea », que ilumina o caminho da
humanidade em vias de unificação”. (§8)
A crise financeira mundial e os atrasos de uma encíclica
O papa Bento XVI nunca escondeu que o atraso na publicação desta encíclica se
ficou a dever à enorme crise que se abateu sobre o mundo da finança e da economia a
partir de 2007.
Inscrevendo-se nas práticas habituais das chancelarias do Vaticano, o novel papa
fez saber quase a partir do momento da sua eleição, em 2005, de que desejava publicar
em 2007, uma encíclica comemorativa dos 40 anos da publicação da encíclica Populorum
Progressio. Mas isso não aconteceu em 2007, e no avião que em Março de 2009, o
conduziu ao continente africano, e nomeadamente a Angola, o papa foi questionado
sobre esse atraso. Sua resposta não podia ser mais clara:
“Bento XVI admitiu que o atraso na publicação da sua tão esperada
encíclica social tem que ver com a dificuldade em encontrar uma resposta
credível para a crise financeira global “iii
Por outro lado em 26 de Fevereiro, ainda em Roma, o papa também fez saber que
não estava escrevendo a encíclica sozinho e acrescentou: “ durante este longo tempo de
espera verifiquei como é difícil falar com competência, sobre estes assuntos, já que a
realidade económica senão for abordada com competência não será credível”. Mas
desde logo afirmou que a encíclica denunciaria – o pecado humano da ganância – já
que esse foi o erro fundamental que causou o colapso de alguns grandes bancos
americanos e por efeito de ricochete provocou uma crise global.
Temos de fazer uma denúncia razoável e racional dos erros, sem moralismos, mas
com raciocínios concretos que tornem compreensíveis os mecanismos da economia
actual.....grandes moralismos nada ajudam se não estiverem apoiados em
conhecimentos substantivos da realidade”iii
Com tantas ressalvas sobre as consequências da crise financeira não admira que o
papa Bento XVI, ao publicar finalmente a sua encíclica tenha fustigado os responsáveis
da crise com palavras nada doces.
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Finanças e especuladores na Caridade na Verdade
Nunca nenhum texto da doutrina social da Igreja tinha até então dado tanto
relevo às questões financeiras como acontecerá neste texto de 29 de Junho de 2009.
Ao longo do texto, e por mais de 12 vezes o papa alerta, denuncia, corrige, apela a
uma outra visão do mundo financeiro ao serviço da economia global. Respiguemos
algumas dessas referências:
“As forças técnicas em campo, as inter-relações a nível mundial, os efeitos
deletérios sobre a economia real duma actividade financeira mal utilizada e
maioritariamente especulativa, os imponentes fluxos migratórios, com
frequência provocados e depois não geridos adequadamente, a exploração
desregrada dos recursos da terra, induzem-nos hoje a reflectir sobre as
medidas necessárias para dar solução a problemas que são não apenas
novos relativamente aos enfrentados pelo Papa Paulo VI, mas também e
sobretudo com impacto decisivo no bem presente e futuro da humanidade”.
(§ 21)
“É preciso que as finanças enquanto tais — com estruturas e modalidades
de funcionamento necessariamente renovadas depois da sua má utilização
que prejudicou a economia real — voltem a ser um instrumento que tenha
em vista a melhor produção de riqueza e o desenvolvimento. Enquanto
instrumentos, a economia e as finanças em toda a respectiva extensão, e
não apenas em alguns dos seus sectores, devem ser utilizadas de modo ético
a fim de criar as condições adequadas para o desenvolvimento do homem e
dos povos. É certamente útil, se não mesmo indispensável em certas
circunstâncias, dar vida a iniciativas financeiras nas quais predomine a
dimensão humanitária. Isto, porém, não deve fazer esquecer que o inteiro
sistema financeiro deve ser orientado para dar apoio a um verdadeiro
desenvolvimento. Sobretudo, é necessário que não se contraponha o intuito
de fazer o bem ao da efectiva capacidade de produzir bens. Os operadores
das finanças devem redescobrir o fundamento ético próprio da sua
actividade, para não abusarem de instrumentos sofisticados que possam
atraiçoar os investidores.
O desenvolvimento da pessoa degrada-se, se ela pretende ser a única
produtora de si mesma. De igual modo, degenera o desenvolvimento dos
povos, se a humanidade pensa que se pode recriar valendo-se dos
«prodígios» da tecnologia. Analogamente, o progresso económico revela-se
fictício e danoso quando se abandona aos «prodígios» das finanças para
apoiar incrementos artificiais e consumistas. Perante esta pretensão
prometeica, devemos robustecer o amor por uma liberdade não arbitrária,
mas tornada verdadeiramente humana pelo reconhecimento do bem que a
precede”. (§67)
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A Universidade de Bolonha e o ensino papal
Sabe-se que a Universidade de Bolonha teve grande influência na redacção desta
encíclica. Nessa universidade do norte da Itália, desenvolvem-se há vários anos estudos
sobre a economia civil, e sobre a sociologia da relação. Áreas que como veremos mais à
frente serão muito referenciadas em algumas aplicações propostas pelo pensamento
papal na área económica e empresarial.
Ao mesmo tempo, alguns comentadores chamaram a atenção para a forma positiva
como Bento XVI aceitou, na elaboração desta encíclica integrar o chamado diálogo da
teologia, ou seja do pensamento eclesial, com as contribuições das ciências humanas. A
busca da verdade que é uma das tónicas desta encíclica leva a Igreja a aceitar, a verdade
venha ela donde vier, como o teólogo Ratzinger, hoje papa Bento XVI, lembrou numa
passagem do parágrafo nono do seu texto:
“A fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única que é
garantia de liberdade (cf. Jo 8, 32) e da possibilidade dum desenvolvimento
humano integral. É por isso que a Igreja a procura, anuncia
incansavelmente e reconhece em todo o lado onde a mesma se apresente.
Para a Igreja, esta missão ao serviço da verdade é irrenunciável. A sua
doutrina social é um momento singular deste anúncio: é serviço à verdade
que liberta.
Aberta à verdade, qualquer que seja o saber donde provenha, a doutrina
social da Igreja acolhe-a, compõe numa unidade os fragmentos em que
frequentemente a encontra, e serve-lhe de medianeira na vida sempre nova
da sociedade dos homens e dos povos” (§9)
Se tivermos presente que em grande parte do século XX a teologia mais oficial da
Igreja, nomeadamente a chamada teologia da escola romana, manteve sempre uma
grande reserva para com a contribuição das ciências humanas no labor teológico, não
podemos deixar de nos surpreender, e pela positiva, com a frontalidade com que Bento
XVI se exprimiu no seu texto Caridade na Verdade.
Na panóplia de temas abordados na área da economia iremos sublinhar as
considerações que a encíclica faz sobre as concepções e as dinâmicas do mercado
enquanto espaço e instrumento da economia mundial, e seguidamente se abordará a
questão muito inovadora da diversidade de tipologias empresariais.
O mercado e as suas lógicas
Se João Paulo II – nomeadamente na enciclica Centesimus Annus - já tinha exposto
longamente como é que a doutrina social da Igreja encara o mercado enquanto
instrumento global da economia, este papa introduz leituras inovadoras ao apelar para a
gratuitidade como um elemento que deve também ter lugar nas lógicas do mercado.
Alguns economistas criticaram este apelo do texto papal lembrando as análises
de Adam Smith para quem a busca do interesse pessoal é o único motor do agir
económico.
Bento XVI desafia essa visão, que segundo ele é limitada, e avança com aquilo
que ele próprio chama a lógica do dom. Esta lógica seria como que o modo do conceito
cristão de fraternidade se tornar operatório na área económica. Deste modo, Bento XVI
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LUCERE
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recusa que a lógica mercantil possa ser a única dinâmica do mercado. No termo do
parágrafo 34, Bento XVI sintetiza o seu pensamento do seguinte modo:
“Ao enfrentar esta questão decisiva, devemos especificar, por um lado, que
a lógica do dom não exclui a justiça nem se justapõe a ela num segundo
tempo e de fora; e, por outro, que o desenvolvimento económico, social e
político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar espaço ao
princípio da gratuidade como expressão de fraternidade”. (§34)
Esta introdução da fraternidade na vida económica corrente é para o papa uma
necessidade para contrariar a condição humana e que como sabemos segundo a doutrina
cristã está marcada pelo mal chamado pecado original. Esta é uam reflexão onde o saber
teológico procura cruzar com a ciência económica como se depreende da leitura atenta
da citação seguinte:
“A caridade na verdade coloca o homem perante a admirável experiência
do dom. A gratuidade está presente na sua vida sob múltiplas formas, que
frequentemente lhe passam despercebidas por causa duma visão meramente
produtiva e utilarista da existência. O ser humano está feito para o dom,
que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência. Por vezes o
homem moderno convence-se, erroneamente, de que é o único autor de si
mesmo, da sua vida e da sociedade. Trata-se de uma presunção, resultante
do encerramento egoísta em si mesmo, que provém — se queremos exprimilo em termos de fé — do pecado das origens. (§34)
E Bento XVI continuando na sua linha de pensamento reforça ainda a visão
teológica destas realidades humanas ao concluir o seguinte:
“Enquanto dom recebido por todos, a caridade na verdade é uma força que
constitui a comunidade, unifica os homens segundo modalidades que não
conhecem barreiras nem confins. A comunidade dos homens pode ser
constituída por nós mesmos; mas, com as nossas simples forças, nunca
poderá ser uma comunidade plenamente fraterna nem alargada para além
de qualquer fronteira, ou seja, não poderá tornar-se uma comunidade
verdadeiramente universal: a unidade do género humano, uma comunhão
fraterna para além de qualquer divisão, nasce da convocação da palavra de
Deus-Amor” (§34)
Reafirmados estes princípios da antropologia cristã, o papa vai dissertar sobre a
concepção do mercado como instrumento fundamental da economia actual, mas fazendo
propostas inovadoras.
O mercado e os seus limites
Invocando de novo os ensinamentos do seu predecessor de João Paulo II na
Centesiumus Annus (1991), o actual papa lembra que a doutrina social da Igreja, sempre
defendeu a teoria do mercado livre, mas lembra que não há mercado em estado puro e
que o mercado supõe um clima de confiança.
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“Não se deve esquecer que o mercado, em estado puro, não existe; mas toma
forma a partir das configurações culturais que o especificam e orientam. Com
efeito, a economia e as finanças, enquanto instrumentos, podem ser mal
utilizadas se quem as gere tiver apenas princípios egoístas. Deste modo é
possível conseguir transformar instrumentos de per si bons em instrumentos
danosos; mas é a razão obscurecida do homem que produz estas
consequências, não o instrumento por si mesmo. Por isso, não é o instrumento
que deve ser chamado em causa, mas o homem, a sua consciência moral e a
sua responsabilidade pessoal e social.”. (§36)
Ao querer exemplificar uma dessas situações danosas Bento XVI refere que;
“O binómio exclusivo mercado-Estado corrói a sociabilidade, enquanto as formas
económicas solidárias, que encontram o seu melhor terreno na sociedade civil sem
contudo se reduzir a ela, criam sociabilidade.” (§39). Para alguns comentadores da
imprensa internacional esta é uma das afirmações mais radicais que o papa emitiu
ao longo de toda a encíclica. Noutra passagem da encíclica expõe aquilo que
poderíamos considerar, a definição mais completa de mercado, produzida até hoje e
segundo a Doutrina Social da Igreja
“O mercado, se houver confiança recíproca e generalizada, é a instituição
económica que permite o encontro entre as pessoas, na sua dimensão de
operadores económicos que usam o contrato como regra das suas relações e
que trocam bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer as suas
carências e desejos. O mercado está sujeito aos princípios da chamada
justiça comutativa, que regula precisamente as relações do dar e receber
entre sujeitos iguais. Mas a doutrina social nunca deixou de pôr em evidência
a importância que tem a justiça distributiva e a justiça social para a própria
economia de mercado, não só porque integrada nas malhas de um contexto
social e político mais vasto, mas também pela teia das relações em que se
realiza. (§35)
As lógicas e as dinâmicas do mercado
De acordo com muitos pensadores e economistas contemporâneos – Bento XVI –
aceita aquela afirmação segundo a qual hoje não há alternativa à economia de mercado
mas adianta que o mercado tem de ser diversificado nas suas dinâmicas, e nas suas
lógicas de funcionamento
“O mercado tem interesse em promover emancipação, mas, para o fazer
verdadeiramente, não pode contar apenas consigo mesmo, porque não é
capaz de produzir por si aquilo que está para além das suas possibilidades;
tem de haurir energias morais de outros sujeitos, que sejam capazes de as
gerar.” (§36)
A lógica mercantil
“A actividade económica não pode resolver todos os problemas sociais
através da simples extensão da lógica mercantil. Esta há-de ter como
finalidade a prossecução do bem comum, do qual se deve ocupar também e
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sobretudo a comunidade política. Por isso, tenha-se presente que é causa de
graves desequilíbrios separar o agir económico — ao qual competiria apenas
produzir riqueza — do agir político, cuja função seria buscar a justiça
através da redistribuição”. (§36)
Dar sem receber nada em troca materialmente falando é o que se designa como um
dom. É esse comportamento, par além do contratual aquilo que Bento XVI vai propor:
A lógica do dom
“Enquanto dom recebido por todos, a caridade na verdade é uma força que
constitui a comunidade, unifica os homens segundo modalidades que não
conhecem barreiras nem confins. A comunidade dos homens pode ser
constituída por nós mesmos; mas, com as nossas simples forças, nunca
poderá ser uma comunidade plenamente fraterna nem alargada para além de
qualquer fronteira, ou seja, não poderá tornar-se uma comunidade
verdadeiramente universal: a unidade do género humano, uma comunhão
fraterna para além de qualquer divisão, nasce da convocação da palavra de
Deus-Amor. Ao enfrentar esta questão decisiva, devemos especificar, por um
lado, que a lógica do dom não exclui a justiça nem se justapõe a ela num
segundo tempo e de fora; e, por outro, que o desenvolvimento económico,
social e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar espaço
ao princípio da gratuidade como expressão de fraternidade.” (§34)
Mas o mais notável nesta exposição é a confiança que Bento XVI coloca nestas
perspectivas enquanto propostas que podem efectivamente concorrer para democracia
económica assim como para a vitalidade do próprio mercado
As duas lógicas são necessárias para a vitalidade do mercado
“A doutrina social da Igreja sempre defendeu que a justiça diz respeito a
todas as fases da actividade económica, porque esta sempre tem a ver com o
homem e com as suas exigências. A angariação dos recursos, os
financiamentos, a produção, o consumo e todas as outras fases do ciclo
económico têm inevitavelmente implicações morais. Deste modo cada decisão
económica tem consequências de carácter moral. Tudo isto encontra
confirmação também nas ciências sociais e nas tendências da economia
actual. Outrora talvez se pudesse pensar, primeiro, em confiar à economia a
produção de riqueza para, depois, atribuir à política a tarefa de a distribuir;
hoje tudo isto se apresenta mais difícil, porque, enquanto as actividades
económicas deixaram de estar circunscritas no âmbito dos limites territoriais,
a autoridade dos governos continua a ser sobretudo local. Por isso, os
cânones da justiça devem ser respeitados desde o início enquanto se
desenrola o processo económico, e não depois ou marginalmente. Além disso,
é preciso que, no mercado, se abram espaços para actividades económicas
realizadas por sujeitos que livremente escolhem configurar o próprio agir
segundo princípios diversos do puro lucro, sem por isso renunciar a produzir
valor económico. As numerosas expressões de economia que tiveram origem
136
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
em iniciativas religiosas e laicas demonstram que isto é concretamente
possível” (§37)
Inovações empresariais e a civilização da economia
Como é de norma um papa não deve referir num documento de carácter
universal as situações e as realizações concretas, neste caso, na área da economia e das
empresas. Mas quando afirma como o faz no parágrafo 46 do seu texto: “ Nestas
últimas décadas, foi surgindo entre as duas tipologias de empresa uma ampla área
intermédia” podemos admitir que Bento XVI esta suficientemente bem informado
sobre todas as formas de organizações sociais e económicas hoje largamente designadas
como fazendo parte do “terceiro sector”.
Bento XVI quer evocar para além das empresas tradicionais, isto é, daquelas
exclusivamente voltadas para o lucro profit as que se designam como non-profit , ou
sejam, as organizações não lucrativas. É um universo bem conhecido e descrito nas
sociedades economicamente mais desenvolvidas como fez, por exemplo, Peter Drucker
relativamente a situação dessa área no seu país. Mas Bento XVI vai mais longe ao
referir as empresas de comunhão. Certamente, que aqui pensava nos “parques
empresariais” criados pelo movimento católico dos Focolaris. Hoje mais de mil
empresas em todo o mundo, incluindo algumas em países africanos, regem-se pela
lógica do dom sem se apartarem da regra fundamental do mercado – isto é – trabalhar
para obter lucro. iii Conhecedor de todo este universo empresarial, Bento XVI, valorizao ao falar das novas tipologias empresariais
Tipologias empresariais
“Assim, temos necessidade de um mercado, no qual possam operar,
livremente e em condições de igual oportunidade, empresas que persigam
fins institucionais diversos. Ao lado da empresa privada orientada para o
lucro e dos vários tipos de empresa pública, devem poder-se radicar e
exprimir as organizações produtivas que perseguem fins mutualistas e
sociais. Do seu recíproco confronto no mercado, pode-se esperar uma
espécie de hibridização dos comportamentos de empresa e,
consequentemente, uma atenção sensível à civilização da economia. Neste
caso, caridade na verdade significa que é preciso dar forma e organização
àquelas iniciativas económicas que, embora sem negar o lucro, pretendam
ir mais além da lógica da troca de equivalentes e do lucro como fim em si
mesmo.” (§ 38)
Precisamente para dar resposta às exigências e à dignidade de quem
trabalha e às necessidades da sociedade é que existem vários tipos de
empresa, muito para além da simples distinção entre «privado» e
«público». Cada uma requer e exprime um espírito empresarial específico.
A fim de realizar uma economia que, num futuro próximo, saiba colocar-se
ao serviço do bem comum nacional e mundial, convém ter em conta este
significado amplo de espírito empresarial. Tal concepção mais ampla
favorece o intercâmbio e a formação recíproca entre as diversas tipologias
de empresariado, com transferência de competências do mundo sem lucro
para aquele com lucro e vice-versa, do sector público para o âmbito
137
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
próprio da sociedade civil, do mundo das economias avançadas para aquele
dos países em vias de desenvolvimento”. (§41)
E tudo leva a crer que Bento XVI, sem o querer referir, também, conhece a
extraordinária inovação lançada há poucos anos pelo prémio Nobel Muhammad
Yunus ao criar o chamado “negócio social”. A maior multinacional do mundo
fabricante de iogurtes associou-se a empresário Yunus para criar uma empresa de
iogurtes que hoje fornece milhões desse produto às crianças das aldeias pobres do
Bangladesh. Legitimando todas essas iniciativas corporizadas hoje em verdadeiras
alternativas económicas ao sistema económico dominante, o papa advoga que as
empresas de comunhão, e outras com a mesma dinâmica, concorrem para um
mercado mais competitivo e humano.iii
Economia civil e de comunhão para um mundo mais humano e competitivo
Bento XVI informado da pluralidade de formas empresariais antigas – como
as cooperativas, as mutualidades, as fundações - assim como das novas formas
empresariais como sejam – as empresas de comunhão ou os negócios sociais –
tem toda a razão em manifestar a sua confiança na dinamização que esta
pluralidade de tipologias empresariais pode trazer ao mercado, como o diz ao
terminar o paragrafo dedicado a este assunto:
O facto de tais empresas distribuírem ou não os ganhos ou de assumirem
uma ou outra das configurações previstas pelas normas jurídicas torna-se
secundário relativamente à sua disponibilidade a conceber o lucro como um
instrumento para alcançar finalidades de humanização do mercado e da
sociedade. É desejável que estas novas formas de empresa também
encontrem, em todos os países, adequada configuração jurídica e fiscal.
Sem nada tirar à importância e utilidade económica e social das formas
tradicionais de empresa, fazem evoluir o sistema para uma assunção mais
clara e perfeita dos deveres por parte dos sujeitos económicos. E não só... A
própria pluralidade das formas institucionais de empresa gera um mercado
mais humano e simultaneamente mais competitivo” (§ 46)
Desenvolvimento dos Povos, Direitos e Deveres, Ambiente
Este é o título abrangente do capítulo IV desta encíclica. Contudo sendo esta
uma encíclica evocadora da Populorum Progressio - a encíclica do desenvolvimento por
excelência - segundo alguns seria de esperar que Bento XVI fosse mais longe e mesmo
mais percutante na crítica ao modelo económico dominante. Assim se exprimiu o bispo
latino-americano Pedro Casaldáliga. “ Impõe-se também uma recusa crítica ao suposto
triunfo do capitalismo neoliberal. Porque nós, pelo menos, não vemos em lado nenhum
esse triunfo, se nos referirmos à imensa maioria da humanidade. Acrescendo que o
próprio capitalismo neoliberal triunfante não se sente tão seguro de si, frente às
contradições internas. Mas, mesmo que esse triunfo do egoísmo estrutural se tivesse
dado, seria um fracasso ético da família humana, pois estar-se-ia a evidenciar, mais
uma vez, a impossibilidade de uma política e de uma economia honestamente fraternas;
ter-se-ia imposto outra vez, como única possível, a ética dos lobos.iii
138
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
Bento XVI tentou dizê-lo mas talvez sem a força que seria necessário face à
gravidade da situação mundial. Numa ou noutra passagem do texto papal são criticadas
afirmações que a doutrina social da Igreja não pode deixar de recusar como, por
exemplo, quando Bento XVI retomando o ensino do seu antecessor João Paulo II
recorda o seguinte: “Há que considerar errada a visão de quantos pensam que a
economia de mercado tenha realmente necessidade duma certa quota de pobreza e
subdesenvolvimento para poder funcionar do melhor modo” (§35) ou quando mais à
frente diz: “considerar o aumento da população como a primeira causa do
subdesenvolvimento é errado, inclusive do ponto de vista económico” (§44)
Reconheça-se também que ao correr do texto algumas vezes se faz menção da
necessidade de repensar a economia “é necessária uma profunda reflexão sobre o
sentido da economia e dos seus fins”(…) “ é necessário pôr um travão á cobiça
insaciável que suscita lutas e divisões, moderando a obsessão de possuir, para nos
tornarmos disponíveis à partilha e ao acolhimento. “ (§32)
Este capitulo IV termina com uma longa explanação sobre o relacionamento do
homem com o meio ambiente levando o papa a utilizar expressões pouco comuns como
seja a “ecologia humana” ou “estado de saúde ecológica do planeta” . São abordadas
as questões actuais á volta da energia, e das responsabilidades para com as futuras
gerações “os projectos para um desenvolvimento humano integral não podem ignorar
os vindouros, mas devem ser animados pela solidariedade e as justiça entre as
gerações” (§48). E Bento XVI evoca de passagem as temáticas dos “novos estilos de
vida” que João Paulo II já tinha introduzido na doutrina social da Igreja ao escrever em
1991 a Centesimus Annus. “As modalidades com que o homem trata o ambiente influem
sobre as modalidades com que trata a si mesmo, e vice-versa. Isto chama a sociedade
actual a uma séria revisão do seu estilo de vida”. (§51)
Mas mais uma vez faltou aqui uma certa ousadia profética que questionasse
radicalmente o desenvolvimento sem limites. Esta encíclica continua a inscrever-se,
ainda que o seu fio condutor seja o desenvolvimento humano integral, no horizonte do
desenvolvimento sem limites. Não se colocou a questão do “decrescimento” como
forma de mudar os estilos de vida. Parece que continuamos instalados na ideia de um
progresso ilimitado. Pergunta-se, será possível um desenvolvimento sem limites num
mudo limitado? O actual modelo de desenvolvimento não é universalizável. O que
acontecerá quando, por exemplo, os quase três mil milhões de chineses e indianos
quiserem e obtiverem os padrões de vida e consumo ocidentais. Se por um lado é
necessário e urgente promover o desenvolvimento dos países mais pobres, pois tem
direito ao desenvolvimento, esse desenvolvimento é problemático porque o planeta não
aguenta ecologicamente falando. Esta encíclica social tão elaborada, levantou estas e
outras questões, mas não apontou caminhos para uma mudança que tem mesmo de ser
radical.
Num recente encontro sobre esta encíclica promovido pelo Conselho Pontifício
Justiça e Paz na cidade de Accra no Gana, monsenhor António Frontiero avançava na linha
desta preocupação a seguinte ideia: “depois daquilo que o papa expôs na abertura do
segundo capítulo da encíclica sobre o desenvolvimento humano no nosso tempo, talvez
que aquilo que hoje seja necessário seja uma Carta de Responsabilidades. Ou seja um
documento que informe as pessoas sobre as suas responsabilidades para com os outros
e os encoraje a se comprometerem em comportamentos construtores de cidadania. Por
outro lado, também é necessário corrigir a tendência segundo a qual o bem comum não
seria mais de que um dos princípios do pensamento social católico. Ora é preciso
139
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
insistir, que o princípio católico do bem comum está enraizado numa antropologia da
pessoa humana e que como tal diz respeito à moral social e pessoal de todos”.iii
Uma ousada concepção do homem
Depois desta longa exposição sobre as questões económicas e financeiras, Bento
XVI desenvolve no Capítulo V, intitulado – Colaboração da Família Humana - uma das
propostas mais profundas e originais do seu texto. Para lá das questões correntes do
desenvolvimento Bento XVI procura uma fundamentação teológica para o que ele vai
chamar a relacionalidade. Aqui se encontra seguramente a contribuição dos estudos
feitos na Universidade de Bolonha como se referiu acima
Fundamental para esta nova forma de compreensão alargada do conceito de
“desenvolvimento integral do homem” é a relacionalidade, ou seja, o reconhecimento da
nossa natureza inata para a relação social e suas consequências.
Esta focalização nas relações humanas enquanto chave para uma unidade global é
santificada pela comparação directa com a doutrina católica sobre a Trindade, tal como
Bento XVI o desenvolveu nos parágrafos 53 e 54 que citamos a seguir em alguns
extractos mais significativos:
“A humanidade aparece, hoje, muito mais interactiva do que no passado:
esta maior proximidade deve transformar-se em verdadeira comunhão. O
desenvolvimento dos povos depende sobretudo do reconhecimento que são
uma só família, a qual colabora em verdadeira comunhão e é formada por
sujeitos que não se limitam a viver uns ao lado dos outros” (§53)
“Observava Paulo VI que « o mundo sofre por falta de convicções » A
afirmação quer exprimir não apenas uma constatação, mas sobretudo um
voto: serve um novo ímpeto do pensamento para compreender melhor as
implicações do facto de sermos uma família; a interacção entre os povos da
terra chama-nos a este ímpeto, para que a integração se verifique sob o
signo da solidariedade, e não da marginalização. Tal pensamento obriga a
um aprofundamento crítico e axiológico da categoria da relação. Trata-se
de uma tarefa que não pode ser desempenhada só pelas ciências sociais,
mas requer a contribuição de ciências como a metafísica e a teologia para
ver lucidamente a dignidade transcendente do homem”. “ (§53)
procura definir as condições para aquilo que se designa como o
“desenvolvimento de todo o homem e de todos os homens”, e sustenta, defende que isso
deve estar baseado numa avaliação mais profunda e critica da categoria de relação.
A opção pela relacionalidade significa cortar com o individualismo das Luzes, que
hoje, e particularmente, em certos meios universitários, ainda permanece muito
influente sobretudo na área das ciências sociais.
Numa dessas escolas de pensamento promove-se o “homo economicus”, ou seja a
concepção privilegiado pelos economistas neo-liberais. Desta forma de conceber o ser
humano resulta num indivíduo solitário, que não está verdadeiramente socializado mas
antes preocupado unicamente com a maximização das suas preferências com o fim de se
tornar cada vez melhor, e cada vez mais um homem de sucesso.
Uma outra escola ou corrente de pensamento é a do “homo sociologicus”, isto é, o
homem organizado - socializado, onde tudo é dado pela sociedade. Quer isto faça dele
Caridade na Verdade
140
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
uma criatura sociologicamente normalizada, ou um pos-modernista bem realizado,
acabará por ser um criatura das circunstâncias, um relativista que nada partilha com a
humanidade enquanto família universal, e logo incapaz de solidariedade com essa
família.
Porque o “homo economicus” é antropocêntrico, e o “homo sociologicus” é
sociocentrico nestas concepções ou visões não há lugar para a transcendência. Bento
XVI assume a mais recente corrente de pensamento antropológica a do “homo relatus”
– o homem da relação. E no texto dos referidos parágrafos diz o que entende por
homem de relação e qual o seu fundamento:
“De natureza espiritual, a criatura humana realiza-se nas relações
interpessoais: quanto mais as vive de forma autêntica, tanto mais
amadurece a própria identidade pessoal. Não é isolando-se que o homem se
valoriza a si mesmo, mas relacionando-se com os outros e com Deus, pelo
que estas relações são de importância fundamental. Isto vale também para
os povos; por isso é muito útil para o seu desenvolvimento uma visão
metafísica da relação entre as pessoas. A tal respeito, a razão encontra
inspiração e orientação na revelação cristã, segundo a qual a comunidade
dos homens não absorve em si a pessoa aniquilando a sua autonomia, como
acontece nas várias formas de totalitarismo, mas valoriza-a ainda mais
porque a relação entre pessoa e comunidade é feita de um todo para outro
todo.
…………………………………………………………………………………………
O tema do desenvolvimento coincide com o da inclusão relacional de todas
as pessoas e de todos os povos na única comunidade da família humana,
que se constrói na solidariedade tendo por base os valores fundamentais da
justiça e da paz. Esta perspectiva encontra um decisivo esclarecimento na
relação entre as Pessoas da Trindade na única Substância divina. A
Trindade é absoluta unidade, enquanto as três Pessoas divinas são pura
relação. A transparência recíproca entre as Pessoas divinas é plena, e a
ligação de uma com a outra total, porque constituem uma unidade e
unicidade absoluta. Deus quer-nos associar também a esta realidade de
comunhão: «para que sejam um como Nós somos um» (Jo 17, 22). A Igreja é
sinal e instrumento desta unidade. As próprias relações entre os homens, ao
longo da história, só podem ganhar com a referência a este Modelo divino.
De modo particular compreende-se, à luz do mistério revelado da Trindade,
que a verdadeira abertura não significa dispersão centrífuga, mas profunda
compenetração. O mesmo resulta das experiências humanas comuns do
amor e da verdade. (§54)
Alguns críticos disseram que esta encíclica era muito longa, o que é verdade, e que
por vezes tinha repetições, o que também é verdade. Como se sugeriu no início deste
texto a encíclica Caridade na Verdade pode ser entendida como uma sinfonia, e quase que
se poderia dizer que a quatro mãos, como em certos concertos para dois pianos.
Mas, se a música, que foi arte primeira, tem por fim elevar o espírito, esta longa sinfonia
consegue levar-nos das praias batidas pelos ventos das tormentas financeiras às alturas
dos melhores ideais de fraternidade e de realização humana.
Assumindo, e fazendo reflectir sobre o que há de mais dinâmico no mundo
contemporâneo, o papa Bento XVI deixa avisos à navegação sobretudo para os seus
141
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
fiéis que são os membros da Igreja católica. Termino com dois dos seus avisos que
espero possa ressoar em nossos corações:
“A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos.”
“Os modelos económicos sózinhos não conseguirão resolver a injustiça que esta crise
revelou. A Justiça só acontece se existirem Homens Justos.
Luanda, 7 de Fevereiro de 2011
142
LUCERE

REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
Recensão crítica
“Desigualdades e Assimetrias Regionais em Angola – Os Factores de Competitividade
territorial”
Manuel Alves da Rocha
Edições do CEIC-UCAN
Luanda, 2010
No dia internacional do professor e em que fazia 100 anos que a República foi
proclamada no espaço de língua portuguesa, foi lançado, na sala Magna da
Universidade Católica de Angola, mais um livro de Manuel Alves da Rocha,
economista e professor desta instituição. O título deste livro é ele próprio todo um
programa: “Desigualdades e assimetrias regionais em Angola - factores de
competitividade territorial”. Trata-se de um estudo de caso sobre uma realidade que
está à vista de todos, mesmo do observador mais desatento mas que não tem merecido
uma atitude pró-activa, nem mesmo reactiva dos poderes públicos, quer a nível
estratégico, quer da política economia (seja macro ou micro), quer ainda da promoção
do desenvolvimento empresarial (p. 11).
Mas, o desenvolvimento de uma política de equilíbrio regional é necessária e
carece de uma vigilância permanente em relação a política de planeamento (ascendente
e descendente) pois como é consabido o crescimento económico, presidido pela “mão
invisível”, é gerador de desigualdades provocadas pela “natural” procura de uma
afectação racional e eficiente dos recursos e factores de produção. Por isto, este estudo
justifica-se como sendo “uma primeira abordagem da regionalização em Angola, da
localização das infra-estruturas e do estado actual do debate e reflexão teórica sobre a
economia regional” (p. 19).
O corpus de análise do estudo serviu-se apenas de informação oficial, o que
permite afastar suspeições e fazem das justas conclusões do estudo, mais do que
considerações críticas, verdadeiras evidências dificilmente refutáveis. De entre os
documentos utilizados preponderam o “Recenseamento Geral de Empresas e
Estabelecimentos” e as “Estatísticas do Ficheiro de Unidades Empresariais 2003-2006”,
publicado pelo INE, em 2008. Outros documentos e publicações utilizados no estudo
foram: o Orçamento Geral do Estado (para 2003, 2006 e 2007), os programas gerais do
Governo e seus respectivos “Relatórios de Balanço” (nomeadamente os de 2003-2004,
2005-2006 e de 2007-2008), o Plano Nacional de 2009 e o de 2010-2011, os relatórios
do MAPESS sobre o emprego; o Programa de Investimentos Públicos e respectivos
relatórios de execução, de 2006 e 2007 e alguma informação contida no jornal oficioso
que é o “Jornal de Angola”.
Tendo como período de análise, o de 2000/2007, o estudo pretende perceber as
dinâmicas de transformação ocorridas em relação a progressão ou regressão das
desigualdades, dos índices de concentração, da relação entre assimetrias regionais e os
movimentos migratórios, no país, particularmente o êxodo em direcção ao litoral, com
maior incidência para a capital que provocou a macrocefalia de Luanda, onde se
143
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
concentra mais de 70% do rendimento nacional, 75% da produção industrial, 65% da
actividade comercial.
Para proceder a sua análise, o autor dividiu o país em cinco regiões:





Região Luanda/Bengo (províncias Luanda e Bengo);
Região Norte (províncias Cabinda, Zaire, Uíge e Kuanza-Norte);
Região Centro/Leste (Malanje, Lunda-Norte, Lunda-Sul, Moxico e KuandoKubango);
Região Centro/Oeste (Kuanza-Sul, Bié, Huambo, Benguela e Namibe);
Região Sul (Huíla e Cunene).
Esta agregação das províncias, nas cinco regiões, foi determinada por razões de
contiguidade geográfica a que se juntaram os critérios da existência de recursos naturais
iguais e da interacção do desenvolvimento com a reconciliação nacional pela via interétnica. Porque a contiguidade territorial facilita o lançamento de obras de recuperação
de infra-estruturas de incidência interterritorial, favorecendo, por exemplo, as vias
secundárias e terciárias de comunicação. A dotação de recursos naturais permite
configurar vantagens comparativas, levando em consideração a similitude de estádios de
desenvolvimento económico e social actual e a reconciliação nacional não pode ser
efectiva se todos os angolanos não participarem e beneficiarem do desenvolvimento.
A partir daqui o livro faz uma avaliação geral da política pública de crescimento
económico mas também, e por meio dela, uma denúncia social, uma proposta
epistemológica e uma proposta de boa governação.

Uma avaliação geral da política pública de crescimento económico
Para fazer a sua avaliação da política pública de crescimento económico, o autor
parte da ideia de que era expectável que a independência trouxesse a consolidação das
importantes performances económicas conseguidas pela potência colonial nos anos
1960 e 1970. No entanto, devido a vários factores conjugados, deu-se uma deterioração
da economia e a um desaproveitamento das oportunidades e potencialidades de
desenvolvimento, instalando-se um grande desequilíbrio nos sectores produtivos, com
uma progressiva desindustrialização do país e uma cada vez maior dependência do
crescimento do sector minério (com predominância do petróleo e dos diamantes, sendo
as rochas ornamentais pouco expressivas e o ferro, o cobre, o magnésio, o ouro, a prata
e os fosfatos abandonados). O que provocou uma evidente degradação da capacidade
produtiva herdada da potência colonial ou adquirida, sem critério, durante o período de
voluntarismo colectivista. O meio rural, não tendo sido objecto de uma política de
reformas e desenvolvimento, depois das mal-sucedidas iniciativas de colectivização das
médias e pequenas propriedades e de estatização das grandes empresas agrícolas, foi
votado ao abandono, permitindo uma progressão da guerra que trouxe ainda uma maior
destruição.
Os números, referidos neste estudo, mostram de forma implacável que os
primeiros 25 anos de independência não houve praticamente crescimento económico
suficiente para distribuir pelo interior do país. Entre 1990 e 2000, o PIB registou uma
taxa média de crescimento (a preços de 1995) de 0,7%. Este panorama provocou a
degradação das condições de vida da população e a instalação de uma vulnerabilidade
estrutural das famílias angolanas, fazendo emergir a pobreza como estrutural, com
indicadores da ordem dos 68% para a pobreza e de 25% para a pobreza extrema.
144
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
A partir de 2002, grandes investimentos foram dirigidos para as infra-estruturas
da economia e do desenvolvimento social mas a sua concentração em Luanda e no
litoral, levou a uma série de incongruências regionais e provinciais e afastou muitas
zonas, total ou parcialmente, dos benefícios do crescimento económico e da atenção dos
agentes públicos. Situação agravada pelo facto de que os empresários privados tem
evitado investir onde as externalidades são inexistentes, a preparação da mão-de-obra
fraca e o poder de compra é baixo.
As demonstrações são muitas, no interior do livro, mas basta a título de
exemplo, olhar para os quadros sobre a estrutura regional dos investimentos públicos
(vertical e horizontal) (gráficos das páginas 101 e 103) para constatarmos as assimetrias
regionais.
2003
Sectores Sociais
Infra-estruturas
Economia Real
Sectores Institucionais
Defesa e Segurança
Governo Provincial
Total
2006
Sectores Sociais
Infra-estruturas
Economia Real
Sectores Institucionais
Defesa e Segurança
Governos Provinciais
Total
2007
Sectores Sociais
Infra-estruturas
Economia Real
Sectores Institucionais
Defesa e Segurança
Governo Provincial
Total
2003
Sectores Sociais
Infraestruturas
Economia Real
Sectores Institucionais
Desfesa e Segurança
Governos Provinciais
Total
2006
Sectores Sociais
Infraestruturas
Economia Real
ESTRUTURA REGIONAL VERTICAL DOS INVESTIMENTOS PÚBLICOS
Luanda/Bengo
Norte Centro leste
Centro oeste
Sul Total
14,4
0,0
4,8
3,4
0,0
6,9
24,2
6,7
2,8
10,9
0,0
13,4
6,9
1,7
1,1
6,1
6,1
4,7
16,7
1,9
1,4
4,3
6,4
8,4
3,6
0,0
0,0
0,9
0,0
1,6
34,3
89,7
89,9
74,4
87,5 65,1
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0 100,0
5,9
74,9
1,4
8,4
0,2
9,2
100,0
16,6
21,7
0,0
2,2
0,0
59,5
100,0
18,6
60,1
0,9
1,9
0,0
18,5
100,0
12,4
79,8
1,3
0,4
0,0
6,0
100,0
25,5 12,5
45,3 69,2
10,2
1,8
2,2
3,1
0,0
0,0
16,8 13,3
100,0 100,0
9,5
38,4
1,5
14,4
0,1
36,1
100,0
1,6
40,4
3,5
2,1
0,0
52,3
100,0
12,8
43,6
7,5
1,6
0,0
34,5
100,0
7,4
63,1
4,4
14,0
0,1
10,9
100,0
6,6
7,5
38,7 48,5
13,9
4,4
24,2 11,3
0,0
0,0
16,6 28,1
100,0 100,0
ESTRUTURA HORIZONTAL REGIONAL DOS INVESTIMENTOS PÚBLICOS
Luanda/Bengo
Norte Centro leste
Centro oeste
Sul
82,9
0,0
8,6
8,5
0,0
71,1
12,2
2,6
14,1
0,0
57,8
8,8
3,0
22,3
8,2
78,6
5,7
2,1
8,8
4,9
89,6
0,0
0,0
10,4
0,0
20,8
33,9
17,1
19,7
8,5
39,4
24,6
12,4
17,3
6,3
13,4
30,8
22,3
10,8
2,5
0,0
145
15,7
9,1
5,0
45,6
52,9
33,4
Total
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
14,4 100,0
4,6 100,0
39,3 100,0
LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
Sectores Institucionais
Desfesa e Segurança
Governos Provinciais
Total
2007
Sectores Sociais
Infra-estruturas
Economia Real
Sectores Institucionais
Defesa e Segurança
Governo Provincial
Total
76,6
100,0
19,7
28,5
5,9
0,0
36,2
8,1
6,4
0,0
14,6
10,5
6,2
0,0
20,6
45,9
4,9
0,0
8,8
7,0
100,0
100,0
100,0
100,0
13,4
21,9
9,3
35,2
44,7
35,5
27,7
10,8
14,6
13,9
3,2
0,0
32,5
17,5
15,7
10,1
19,0
1,6
0,0
13,7
11,2
45,6
48,2
37,0
45,9
55,3
14,4
37,1
14,4
5,3
20,7
14,1
0,0
3,9
6,6
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Como aí se diz Luanda/Bengo é a região que mais beneficia de investimentos
nas infra-estruturas. Os investimentos sociais nas regiões não ultrapassam os 9% do
total de investimentos públicos. Pior ainda são os investimentos para criar condições de
estruturação e crescimento da agricultura, da indústria e serviços vários (comércio e
transportes) que não ultrapassam os 4%.

Uma denúncia social
Por isto, se a estabilização económica é o esteio do crescimento económico, ela
não é um fim em si mesmo. Se a associação, com êxito, destes dois factores e a atitude
de recusa de modelos impostos pelo FMI tornou Angola um caso especial, também o
paradoxo da abundância cativa o olhar do outro, pois o crescimento económico feito
sem diversificação da economia, sem disseminação pelo território e com a sua
concentração numa minoria da população - representando dois produtos de exportação,
0,18% do território nacional e 5% da população - contribuiu para uma “estratificação
social indecente e imoral”, num país em que continuam a existir situações de fome
endémica, em muitas zonas, por inexistência de acessibilidade material. Sendo pois “a
elevada taxa de pobreza”, está é, do ponto de vista social, talvez, a maior ofensa que o
país independente e com extraordinárias potencialidades de crescimento pode fazer aos
seus cidadãos” (p. 26).

Uma proposta epistemológica
Uma proposta epistemológica para a academia e outra para o poder político. À
académica é sugerido fazer da redução das desigualdades regionais (quiçá sociais) um
novo caso de estudo. Para o poder político, propõe que a política de regionalização do
desenvolvimento, promotora da modernização das estruturas produtivas e da melhoria
das condições de vida das populações, seja uma condição sine quo non da reconciliação
nacional, seja um dos chamados “ganhos da paz” (p. 27).

Uma proposta de boa governação
Sendo assim, a prioridade em matéria de desenvolvimento regional são (1) os
eixos de transporte rodoviário e ferroviário, (2) a igualização relativa das condições de
acesso à repartição do rendimento nacional (p. 25) de maneira que as dissemelhanças
regionais se confinem às vantagens comparativas de cada província, às diferenças
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LUCERE
REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
culturais e históricas e aos acidentes geográficos. Ou seja, a disseminação do
crescimento económico é o desafio actual.
O desafio da governação é tornar outras províncias e regiões do país
suficientemente atractivas para constituírem um dique de retenção das populações
através do investimento na educação e formação profissional e no incentivo ao
crescimento económico dirigido para o interior do país.
Para o autor, pensar o desenvolvimento económico e, mais ainda, programá-lo
obriga a não perder de vista a ideia (quase trivial) de que é preciso valorizar o potencial
humano do país, integrando-o num vasto esquema de trocas de conhecimento e dos bens
produzidos, associando-o ao estabelecimento de novas estruturas económicas e sociais;
implica entender o desenvolvimento económico, intenso e ordenado, como resultado da
“criação, nas regiões mais favoráveis ou aptas, de infra-estruturas e de incentivos que
tornem viáveis a implementação de um número crescente de indústrias e outras
actividades económicas que possam conduzir a um melhor aproveitamento e
transformação das riquezas naturais, nomeadamente nos domínios dos recursos agropecuários, silvícolas e das pescas dessas regiões (p. 28). Ou seja, uma “nova visão
estratégica do desenvolvimento regional, em Angola, deve ser encarada numa
perspectiva de crescimento equilibrado entre os sectores da pecuária, florestas, pescas e
indústria transformadora, dando a possibilidades de todas as províncias (e regiões)
participarem, com a criação de pólos de desenvolvimento regional.
Esta nova visão estratégica de desenvolvimento regional não pode ignorar a
potencialidade de formas participadas de gestão da res pública, através da
implementação de uma política de descentralização que permita realização prática do
que está consignado na nova Constituição sobre o Poder Local (artº. 213 e ss) que
define as Autarquias Locais, representativas das populações das “circunscrições do
território nacional” como “a organização democrática do Estado ao nível local”.

Conclusão
Este livro, que não vale pelo número de páginas mas pela qualidade do seu
conteúdo, é um trabalho de investigação aplicada absolutamente necessário ao
harmonioso desenvolvimento do país e é também, seguramente, para lá do que já ficou
dito, um contributo para o enriquecimento da nossa massa crítica nacional.
(A propósito, deixem fazer um parênteses, para vos dizer que há dias fui
ofendido moralmente e publicamente condenado ao ostracismo e ao silêncio
obsequioso, por um deputado do regime, porque gostava muito de criticar. A minha
resposta foi lapidar: sem crítica não há academia e eu sou um académico. É claro que
tive que explicar a esse deputado, e aos demais, que a crítica não é sinonimo de falar
mal. Não é “falar mal do executivo” – na expressão actualmente muito usada porque
está em curso a cultura pagã de deificar o chefe, apresentando-o como omnisciente e até
omnipresente que é a ele que cabe decidir tudo. Fecho o parênteses).
A crítica, neste livro, é entendida como um exercício da dialéctica da superação;
um exercício simultaneamente de avaliação da situação actual e de construção de uma
nova existência. A crítica tem assim uma função criativa de possibilidades de acção e de
aspectos alternativos que agem sobre o que existe de contínuo, frágil e imutável na
história, na política, na economia, nas relações sociais tendo por escopo a análise da
sociedade existente. Paulo Freire, pai da pedagogia da libertação e um dos promotores
do programa nacional angolano de alfabetização, defendia que “somente uma teoria
crítica pode resultar na libertação do ser humano” porque “não existe transformação
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REVISTA ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA
da realidade sem libertação do ser humano” [Paulo Freire, O projecto da modernidade
do Brasil, Papirus, 1994, p. 44]. A crítica não é pois, uma banalidade, uma coscuvilhice,
mas é sim um meio de libertação do ser humano.
Poderíamos pois dizer que este livro de Alves da Rocha é a crónica da “Angola
Desfavorecida” - um país que vai mal apesar das aparências.
Nelson Pestana
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