relações internacionais contemporâneas

Transcrição

relações internacionais contemporâneas
RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS
2012/2
José Miguel Quedi Martins (Org.)
Relações internacionais
contemporâneas 2012/2:
estudos de caso em política externa e de
segurança
Primeira edição
Porto Alegre, 08 de maio de 2013.
Série Cadernos ISAPE
Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE)
Rua 24 de outubro, 850/310
Bairro Moinhos de Vento
CEP: 90510-000
Porto Alegre, RS, Brasil
Fone: (51) 30846175
Capa: Rômulo Barizon Pitt
Editoração: Bruno Gomes Guimarães
Revisão técnica: Bruno Magno, Pedro Vinícius Pereira Brites, Athos
Munhoz Moreira da Silva e Walmir Françoes Júnior
Impresso pela Liro Editora Livre
© 2013 Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia
Martins, José Miguel Quedi, 1964
Relações internacionais contemporâneas 2012/2: estudos de caso
em política externa e de segurança / organizado por José Miguel
Quedi Martins. — Porto Alegre, Instituto Sul-Americano de
Política e Estratégia (ISAPE), 2013.
vi 198p. ; 21cm
ISBN 978-85-65135-06-1 (impresso)
ISBN 978-85-65135-07-8 (ebook)
1. Relações internacionais 2. Política externa 3. Segurança (militar)
CDD 327
Sumário
Agradecimentos
1
Apresentação
José Miguel Quedi Martins
2
Introdução
Marco Cepik
4
Capítulo 1
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DOS ESTADOS UNIDOS
7
André França, Bruna Jaeger, Francine Ferraro, Giordano Bruno
Antoniazzi Ronconi, Guilherme Simionato, Henrique Acosta & Lucas
Santos
Capítulo 2
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA REPÚBLICA POPULAR DA
CHINA
31
Giovana Esther Zucatto, João Arthur da Silva Reis, João Gabriel
Burmann da Costa, Marília Bernardes Closs, Mirko Levis Gonçalves
Pose, Osvaldo Alves Pereira Filho & Renata Schmitt Noronha
Capítulo 3
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA RÚSSIA
48
Ana Paula de Mattos Calich, Jéssica da Silva Höring, Klei Medeiros,
Leonardo Albarello Weber, Wagner Augusto Silveira & Willian Moraes
Roberto
Capítulo 4
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA ÍNDIA
72
Angela Gallina Brandalise, Helena Marcon Terres, Júlia Simões
Tocchetto, Livi Gerbase, Luiza Costa Lima Corrêa, Matheus Machado
Hoscheidt & Pedro Felipe da Silva Alt
Capítulo 5
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DO JAPÃO
93
Eric Feddersen, Lucas da Rocha Rodrigues, Victor Merola & Vinícius
Lanzarini
Capítulo 6
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA ALEMANHA
109
Laís Helena Andreis Trizotto, Mariele Laís Christ, Patrícia Assoni
Grechi & Luísa Saraiva Bento
Capítulo 7
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA FRANÇA
126
Andressa Cristina Gerlach Borba, Luciana Costa Brandão, Maximilian
Dante Barone Bullerjahn, Marina Soares Scomazzon, Natasha Pergher
Silva & Valentina Assis Arnt Andreazza Rossi
Capítulo 8
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DO REINO UNIDO
142
Glaúcia de Siqueira Noronha, Jéssica Delabari de Lima, Marina Lua
Vieira dos Santos & Matheus Schneider Gebhardt
Capítulo 9
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA TURQUIA
157
Aércio Artur Mateus, Anaís Brum Medeiros, Bernardo Rolim Soares,
Gustavo Hack de Moura, Maud Trutta, Pedro Perfeito da Silva &
Pedro Hercz Merlo
Capítulo 10
CONSIDERAÇÕES FINAIS: RECOMPOSIÇÃO HEGEMÔNICA E INSERÇÃO
INTERNACIONAL DO BRASIL
174
José Miguel Quedi Martins
Agradecimentos
Agradecemos à União Federal à qual dirigimos todo o nosso esforço
de pesquisa, pois, sem ela, a existência deste trabalho não teria nenhum
significado.
Reconhecemos, também, a importância dos seus órgãos de fomento,
que através de suas políticas de financiamento, viabilizaram a execução
desta pesquisa. Especificamente às seguintes instituições: à UFRGS, por
intermédio da Pró-reitoria de Pesquisa (PROPESQ), pelas bolsas de
iniciação científica; à Pró-reitoria de Extensão (PROREXT), pelas bolsas
de extensão que viabilizaram as atividades de extensão, a orientação dos
grupos de trabalho e a gestação dos textos do livro. Agradecemos à
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
pela bolsa do programa de incentivo à iniciação científica Jovens Talentos
para a Ciência. Além dessas, agradecemos à Faculdade de Ciências
Econômicas, ao Departamento de Economia e Relações Internacionais;
ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais e,
especialmente, ao CEGOV, pela parceria e estímulo constante.
Naturalmente, agradecemos ao Instituto Sul-Americano de Política e
Estratégia, pelo envolvimento ativo na formulação, produção, editoração
e publicação dessa obra.
Agradecemos, ainda, aos Professores Paulo Visentini, Coordenador
do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais;
Marco Cepik, Diretor do Centro de Estudos Internacionais sobre
Governo; André Reis, Coordenador do Curso de Graduação de Relações
Internacionais, pelo incentivo à produção e autonomia intelectual
discente.
Os colaboradores Bruno Magno, Helena Terres, Walmir Françoes,
Athos Munhoz, João Gabriel Burmann, Luiza Corrêa, João Arthur Reis,
Giovana Zucatto, Laís Trizotto, Gustavo Hack, Pedro Brites, Natasha
Pergher, Osvaldo Alves e Pedro Perfeito pelo apoio fundamental na
finalização do livro. Agradecemos também a Bruno Guimarães,
responsável pela editoração, e a Rômulo Pitt, que desenvolveu a arte da
capa.
Por fim, prestamos gratidão aos estimados familiares e amigos que
foram privados da companhia dos alunos e envolvidos para que esse
projeto fosse realizado.
Os Autores
Porto Alegre, abril de 2013.
1
Apresentação
Preliminarmente, cabe reconhecer que este Caderno é tão somente o
que promete: uma compilação dos relatórios finais da disciplina de
Relações Internacionais Contemporâneas do curso de graduação em
Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Em suma, dos trabalhos feitos em sala de aula. Quaisquer que
sejam suas limitações, acredita-se que sejam perfeitamente
compreensíveis. Os trabalhos servem para testemunhar o esforço
empreendido na formação do internacionalista na UFRGS. Como
Professor que ministrou a disciplina e que organizou a publicação,
assumo a responsabilidade por todos eventuais equívocos ou omissões
contidos nas análises.
Também gostaria de reconhecer que o mérito da realização das
pesquisas, das formulações e do esforço de análise cabem exclusivamente
aos seus autores — os estudantes da turma de Relações Internacionais
Contemporâneas do semestre 2012/2. A todos, agradeço por seu empenho
na disciplina e, além disso, por sua dedicação para viabilizar este livro, o
que lhes custou horas de sono, lazer e convívio com aqueles que lhes são
caros.
A Universidade procura, através de seus cursos de graduação em
Relações Internacionais, do Programa de Pós-graduação em Estudos
Estratégicos Internacionais (PPGEEI) e das atividades de pesquisa e
consultoria do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo
(CEGOV), promover a formação integral do profissional e do cidadão.
Como tal, projeta-se uma multiplicidade de valores: o autossacrifício
como condição para o exercício da verdadeira solidariedade; a autonomia
intelectual como fundamento da cidadania e a importância da iniciativa; o
empreendedorismo, imprescindíveis para a atuação profissional no setor
público e privado. Em suma, a Universidade procura preparar o indivíduo
para a sua inserção na transição tecnológica e na sociedade do século
XXI.
Em nosso país infelizmente disseminou-se uma cultura de
minoridade política. Trata-se do Estado — e, por extensão, de todos os
ramos do serviço público, entre os quais a Universidade — como uma
fonte permanente e inesgotável de recursos. A cidadania parece ter
perdido a noção de que aos direitos correspondem responsabilidades, e
que é através do exercício do dever, da prestação dos serviços para o bem
comum, que se atinge a maioridade política. O adolescente chega ao
2
estado adulto, o homem se converte em cidadão e adquire o seu
sentimento de pertencimento à comunidade política: o Brasil.
Nesse sentido, o lançamento do livro “Relações Internacionais
Contemporâneas 2012/2” sugere um novo momento nas relações entre
docentes e discentes: mais do que reivindicar, trata-se de realizar, fazer
acontecer. É enaltecedor ver que os alunos assumem sua parcela de
responsabilidade em sua própria formação e, de forma solidária, auxiliam
a incrementar a proposta pedagógica criando, através dessa linha de
publicações, uma conexão entre a sala de aula e o mercado de trabalho.
Com isso, o Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia
(ISAPE) encorpora-se a própria proposta didático-pedagógica, chegando
à sala de aula, estimulando a produção intelectual no âmbito da
graduação e disseminando desde cedo a cultura da solidariedade, do
empreendedorismo e da autonomia intelectual. Em suma, incentivando os
futuros internacionalistas a tomar parte na construção de nosso país.
A iniciativa desta publicação demonstra o esforço do corpo discente
em contribuir para a afirmação do perfil da profissão de internacionalista.
Trata-se de efetuar a análise das Relações Internacionais para os setores
público e privado, contribuindo nos diferentes níveis de governo para
formação de parcerias internacionais e estimulando, no setor privado, a
internacionalização de empresas e o comércio exterior. Sobretudo,
permitir que cada um dê sua contribuição para a inserção internacional do
Brasil.
Por isso, saúdo o ISAPE e os autores dos trabalhos aqui expostos,
em particular a turma 8 do curso de Relações Internacionais da UFRGS.
Esperamos que os textos sirvam como testemunho, para os próprios
graduandos, acerca dos valores que adquiriram em sua formação: a
primazia do filtro do interesse nacional, a afirmação da soberania do
Brasil ao qual deve submeter-se todo esforço de análise; a importância do
processo de integração da América do Sul e a relevância da cooperação
inter-regional, materializada no eixo sul-sul. Mais importante que o
mérito da análise, cumpre ao internacionalista guardar seus valores, saber
quem é e a quais interesses serve.
José Miguel Quedi Martins
3
Introdução
Este volume reúne os trabalhos de conclusão elaborados no segundo
semestre de 2012 pelos alunos da disciplina de Relações Internacionais
Contemporâneas, no curso de graduação em Relações Internacionais da
UFRGS.
A disciplina foi ministrada pelo professor José Miguel Quedi
Martins, meu amigo de longa data, quem também estimulou seus alunos a
compilarem seus trabalhos aqui. Os textos aqui reunidos, despretensiosa
porém responsavelmente, dão testemunho do esforço empreendido por
discentes e docentes na formação do profissional de Relações
Internacional na UFRGS.
Mas, afinal, o que são Relações Internacionais? Pode-se dizer que
essa disciplina tem como um de seus principais objetivos o estudo do
comportamento das unidades soberanas, os Estados, que compõem o
Sistema Internacional. E o que é Sistema Internacional? É possível
conceituá-lo como a matriz em que se dão as relações entre os Estados.
Importa entender que o Sistema Internacional se caracteriza tanto por seu
número de polos (polaridade ou equilíbrio), quanto pelos padrões de
comportamento que estes mantém entre si (polarização). Ambos
(polaridade e polarização) constituem o cerne da política Internacional
que, como nos ensina Kenneth Waltz, é a política das grandes potências.
Mas, e o que são grandes potências?
Bem, cada grande potência corresponde a um polo no sistema
internacional. Uma dimensão central da estrutura do Sistema
Internacional é dada pelo número de polos, ou seja, de grandes potências.
Podemos dizer que, se o Sistema Internacional é dominado por uma única
potência (nesse caso uma superpotência), ele é unipolar; se a hegemonia
do sistema é disputada por duas grandes potências, ele é bipolar; e caso a
direção do sistema fique a cargo de três ou mais potências, ele é
multipolar. Qual dessas formas de equilíbrio é a mais estável? Qual é a
vigente hoje? Os teóricos dividem-se a esse respeito. Suas conclusões
refletem, ao menos em parte, suas inclinações individuais ou preferências
nacionais. Para William Wohlforth, por exemplo, preferível é o sistema
unipolar que, no entender do autor, é a forma de equilíbrio atualmente
vigente e os indicadores econômicos internacionais indicariam
indisputável preponderância dos Estados Unidos. Kenneth Waltz, por sua
vez, acredita que a bipolaridade é a forma de equilíbrio mais estável,
posto que mais simples. Ele reconhece, contudo, os traços pronunciados
4
de unipolaridade do sistema e considera que, atualmente, ele se inclina
para a multipolaridade. Já para Henry Kissinger, a multipolaridade é
apontada como a forma mais desejável e estável de equilíbrio. Ele a
associa ao chamado Concerto Europeu, que assegurou o século de paz
entre 1818 e 1914. O autor também aponta a proeminência dos Estados
Unidos e da China, mas reconhece as capacidades da Rússia, a
importância da Europa e dos novos polos de poder emergentes. Quem
tem razão?
Esse tem sido o principal dilema, prático e teórico, no estudo das
Relações Internacionais no último quarto de século. Desde o final da
Guerra Fria, o Sistema Internacional tem assistido a formas híbridas e
sobrepostas de equilíbrio. Assim, dizia-se, com alguma propriedade, que
o mundo era unipolar do ponto de vista militar, bipolar do ponto de vista
econômico e multipolar do ponto de vista político-cultural. Contudo,
hoje, com a ascensão econômica da China, o surgimento da Organização
de Cooperação de Xangai (OCX) e o declínio europeu simultâneo à
ascensão dos BRICS, novas realidades exigem que os futuros
profissionais da área tenham capacidade de produzir respostas originais,
ou pelo, sejam capazes de fazerem perguntas abrangentes e relevantes.
Afinal, a ausência de resposta para a pergunta sobre “quantos polos
existem no sistema internacional contemporâneo?” implica reconhecer
que o sistema não está em equilíbrio. Se nenhuma forma de polaridade é
claramente dominante, então estamos diante de uma crise hegemônica,
em que a ascensão e o declínio de potências dificultam caracterizar a
hierarquia internacional. Grosso modo, estamos diante de duas
possibilidades, ou a recomposição hegemônica, mediante concertação
entre as grandes potências e uma liderança com novo conteúdo ético, ou
algum tipo de confrontação militar que cumpra o papel de guerra central,
definindo a hierarquia do sistema.
Desde o surgimento do sistema internacional de estados após os
Tratado de Vestfália (1648), entretanto, todas as recomposições da
liderança hegemônica foram realizadas mediante a guerra, não de forma
pacífica. Como regra, a guerra central tem sido a forma de redefinir o
equilíbrio, quando o declínio e a ascensão incerta de potências
multiplicam o número de polos para além de uma governança possível.
Por outro lado, os humanos e suas criaturas, os Estados, têm sido
capazes de criar soluções e engendrar fórmulas que não aquelas
consagradas ou conhecidas em várias áreas. Permanece incerto, pois,
como se dará a definição do equilíbrio internacional: se por uma
5
recomposição hegemônica lenta e pactuada, ou se através da guerra
central — ainda que, dada a capacidade destruidoras dos arsenais
termonucleares, esta guerra central possa ser travada de forma indireta,
através das guerras locais aparentemente desconectadas entre si.
A dificuldade envolvendo o número de polos do Sistema
Internacional refletiu-se nas escolhas dos estudos de caso, que também
foi constrangida pelas limitações do calendário acadêmico. Nesse caso, a
ausência mais sentida é a do Brasil que, contudo, esteve no cerne de todas
as preocupações. Desde a agenda de temas estudados pelos autores
(estudo da infraestrutura, comércio exterior, transição tecnológica) até as
preocupações envolvendo as formulações de cenários, todas foram
presididas pelo crivo do interesse nacional brasileiro. Parabéns aos
autores e ao professor coordenador pela iniciativa.
Marco Cepik
6
Capítulo 1
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DOS
ESTADOS UNIDOS
André França
Bruna Jaeger
Francine Ferraro
Giordano Bruno Antoniazzi Ronconi
Guilherme Simionato
Henrique Acosta
Lucas Santos
Introdução
Este capítulo procura estudar e definir tendências da política externa
e de segurança dos Estados Unidos, polo líder do Sistema Internacional.
Parte-se da hipótese de que o país se alterna, historicamente, entre dois
conteúdos éticos: a Doutrina Monroe e o Destino Manifesto. Dessa
dualidade surgem cenários possíveis para os próximos anos, cada qual em
conformidade com um dos tipos ideais sugeridos ou uma combinação dos
dois tipos: (a) comando estadunidense de um mundo multipolar nucleado
regionalmente, exercido através do exemplo e do conhecimento; (b)
liderança através da força, do unilateralismo e da disseminação do caos; e
(c) concomitância de práticas ora semelhantes à Doutrina Monroe, ora
compatíveis com o Destino Manifesto, alternando-se entre buckpassing e
burden-sharing e configurando um cenário intermediário entre (a) e (b).
A análise das características gerais do país permite compreender
quais seus desafios atuais e futuros, de modo que ela se torna
fundamental para entender o atual momento em que os EUA se
encontram e as suas potencialidades futuras. O vasto território norteamericano (3º no mundo) corporifica um Estado Região capaz de se
voltar tanto para o Oceano Atlântico quanto para o Pacífico. Mesmo com
os seus mais de 12 mil quilômetros de fronteiras, os EUA não se
ressentem de ameaças terrestres, beneficiando-se do poder parador da
água de dois oceanos (MEARSHEIMER, 2007). Além disso, os EUA
7
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
foram capazes de tirar proveito também de suas capacidades produtivas e
de construir a maior marinha do mundo — a única que, indubitavelmente,
pode ser considerada de águas azuis.
Os EUA possuem o maior PIB do mundo — aproximadamente US$
14,5 trilhões (2011). O setor de serviços responde por 79,6% do PIB, a
indústria por 19,2% e a agricultura 1,2%. Contudo, devido a crise de
2007, o comportamento da economia tem sido objeto de debate. Em
termos absolutos, o PIB se mantém muito alto, mas tem apresentado uma
tendência declinante, com taxas de crescimento cada vez menores. Em
2009 o PIB apresentou crescimento de 3,1%, caindo para 2,4% em 2010
e, finalmente, de apenas 1,8% em 2011 (U.S. BUREAU OF ECONOMIC
ANALYSIS, online).
1. DUALIDADE: EXPLICANDO A TIPOLOGIA
É possível estabelecer dois tipos ideais que formam o dualismo das
relações internacionais dos EUA — decorrentes da Doutrina Monroe e do
Destino Manifesto. O primeiro tipo ideal representa os valores do
autogoverno, de promoção da cidadania e de exercício da liderança pelo
exemplo. Os princípios básicos do direito dos povos ao autogoverno e à
autodeterminação foram expressos ainda em 1823, pelo presidente James
Monroe. O segundo tipo ideal tem características de dominação
civilizatória, derivada da crença de que o povo dos EUA é excepcional,
está destinado a guiar o mundo. Sua formulação se encontra em artigo do
jornalista John O'Sullivan e, por isto, daremos a este tipo ideal o nome de
Destino Manifesto — o título de seu artigo (MANTOVANI, 2006).
Ambos os tipos ideais perpassam a história dos EUA e incorporamse em sua ação de política externa até os dias de hoje. São tipos ideais
porque na realidade misturam-se, intercambiam-se e mimetizam-se.
Contudo, na medida em que encarnam polaridades opostas da alma
estadunidense, servem como instrumento para se aferir em que direção
vai a política externa e de segurança dos EUA.
2. BREVE HISTÓRICO
O texto escrito pelo federalista Alexander Hamilton no final do
século XVIII já demonstra a importância que a Marinha viria a ter para o
8
Política externa e de segurança dos Estados Unidos
país, com sua capacidade de projetar poder em qualquer lugar do planeta
e de carregar e transportar elevadas tonelagens de suprimentos. Hamilton
enfatiza a importância de uma Marinha forte para afastar as potências
europeias da região do Caribe.
Em 1823, o presidente James Monroe, ao lançar a Doutrina Monroe,
explicitou a ideia da regionalização sob a égide dos Estados Unidos e
afirmou o repúdio a uma nova colonização europeia. Desta forma,
almejou-se a formação de uma esfera de influência sobre as Américas, o
que veio a impactar os processos de independência ocorridos por volta
deste período.
Por sua vez, a conquista do oeste norte-americano se deu em
conformidade com a ideia de Destino Manifesto, segundo a qual Deus
havia fixado aquele imenso território para o povo estadunidense. Em
1848, minas de ouro foram descobertas na Califórnia e Karl Marx (1850)
escreveu que este fato representaria o deslocamento do centro de
gravidade mundial da Inglaterra para a América do Norte, o que de fato
veio a acontecer. É nesse período que os EUA se estabeleceram como um
Estado Região que abarcava todo um continente e, sem rivais terrestres
ameaçadores, viram-se beneficiados pelo poder parador da água dos
oceanos — que teriam de ser transpostos por qualquer potência capaz de
atacá-los.
Na Guerra Hispano-Americana, em 1898, coloca-se em prática a
ideia de defesa da região, concebida pela Doutrina Monroe. Mais do que
isso, a conflagração representou a chegada efetiva dos estadunidenses ao
Pacífico, graças à conquista das Filipinas e de outras pequenas ilhas. Com
a política de portas abertas em relação à China, os EUA marcam de vez
sua presença no Oriente e, ao manifestar desejo de aumentar sua
influência na região, expandem a Doutrina Monroe para além das
Américas.(CUMMINGS, 2009; SENISE, 2008)
Percebe-se na Carta do Atlântico, de 1941, vários princípios do
nosso tipo ideal de Doutrina Monroe, com ideias de autogoverno e de
não-conquista de outros países (novos colonialismos). Por isso, entendese a Carta como a globalização da Doutrina Monroe. Mais adiante, no
período da Guerra Fria, a Doutrina Nixon expressa várias características
da Doutrina Monroe, como a negação do Império Americano, ao
viabilizar o século do Pacífico em cooperação com os novos países
industrializados (NICs), como — e principalmente — a
9
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
China.(MANTOVANI, 2006)
A ascensão neoliberal, na década de 1970, cujo ícone é Ronald
Reagan, e a neoconservadora da década de 2000, simbolizada por George
Bush, têm em comum o retorno ao Destino Manifesto. Desta vez, porém,
em uma forma específica dele, a partir da interpretação das ideias de John
Boyd. Ele foi um defensor da guerra moral que se baseia em atordoar o
adversário ininterruptamente, disseminando o caos sempre que possível e,
a partir disso, gerenciar esse caos, de acordo com o interesse dos EUA.
(OSINGA, 2005) Como exemplos dessas práticas estão o financiamento
de guerrilhas no Afeganistão na década de 1970 e as Guerras do Golfo. O
resultado final da efetivação das ideias de Boyd seria a condição de
guerra permanente.
3. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS
A desigualdade de renda nos EUA — que cresce desde a década de
1970, mas que apenas virou tema de debate político após a crise de 2007
— tem produzido como efeito o surgimento de movimentos políticos de
uma classe média que se vê diminuir em número e que busca uma forma
de reverter essa tendência.
A partir deste problema comum, nasceram dois movimentos com
alinhamentos políticos tão incompatíveis quanto o Tea Party e o
movimento Occupy. Cabe ressaltar aqui que ambos questionam de
alguma forma o papel político da União, deslegitimando a ação do
governo federal. O Tea Party o faz através da luta por um Estado mínimo,
com baixíssima cobrança de impostos; o Movimento Occupy, pelo ideal
de gestão local através da democracia direta.
Estes movimentos são a materialização da divergência do conteúdo
ético no seio da classe social-símbolo dos EUA. De um lado, a parte da
população que crê que o Estado mínimo e a Livre Iniciativa são, mais do
que uma resposta para a crise, os verdadeiros valores da América; de
outro, a parte que acredita nos programas governamentais de
transferência de renda e no Estado de Bem-Estar Social, mesmo que
mínimo, como meios de promover a justiça social que já caracterizou sua
10
Política externa e de segurança dos Estados Unidos
1
nação .
O que se seguiu a derrota de Mitt Romney à presidência, em uma
eleição cuja vitória era dada como certa pelos Republicanos, foi o
questionamento sobre os rumos que a oposição terá nos próximos quatro
anos de governo: manterá e reforçará seu alinhamento com as alas mais à
direita do partido ou rumará ao centro? O que se pode perceber pelos
formadores de opinião de caráter mais conservador2 é a convicção de que
a atual linha do partido deve se manter, o que acabará por dificultar a
aprovação de medidas por parte do Executivo no Congresso. Ao mesmo
tempo, comprovou-se a impossibilidade demográfica dos Republicanos
voltarem a eleger presidente contando apenas com os votos de
protestantes brancos da zona rural3. Surge aí um desafio para um partido
que até agora vinha abraçando causas muitas vezes racistas e
xenofóbicas: conquistar as minorias, em especial os latinos. A própria
consciência do partido quanto a esta realidade indica que seu alinhamento
com as forças do Tea Party deve se dar enquanto durarem os problemas
econômicos dos EUA (visto que apoiam as mesmas medidas econômicas
frente a crise) e que, quando o debate envolver temas de caráter nacional,
devem surgir atritos entre os dois.
Na esteira das eleições americanas, outro assunto que ganhou
atenção da mídia foram as petições feitas no canal online oficial da Casa
Branca pela secessão de diversos estados da União. Apesar da baixa
adesão — as assinaturas representam cerca de 0,46% dos habitantes dos
oito Estados que atingiram o mínimo de 25 mil assinaturas4 — o que
merece nossa atenção é o fato das petições apontarem um suposto nãocumprimento do papel concernente à União. Este movimento soma-se ao
empreendido pelo Tea Party e o Occupy no questionamento do papel da
Federação. Ao mesmo tempo, os Estados “secessionistas” possuem
1
2
3
4
Para uma interpretação conservadora deste fenômeno, consulte Brooks, Americas New
Culture War.
Ver Pearce, The Future Rise of the Grand Old Party, Huffington Post; Antle, After
Romney's loss, Republicans need a rethink but not reinvention, The Guardian.
Para declarações de Republicanos moderados sobre a necessidade de abraçar as
mudanças demográficas no Estados Unidos, ver as notícias veiculadas em The Raw
Story e The New York Times.
Cálculo feito pelos autores com base no número de assinaturas no canal online
petitions.whitehouse.gov e nos dados do censo de 2010 disponibilizados pelo portal do
U.S. Census Bureau.
11
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
histórico de problemas sociais com negros, hispânicos e mulheres —
sugerindo que talvez a divisão do conteúdo ético americano possa ser não
apenas geograficamente localizável mas, eventualmente, também
etnicamente identificável.
Ao contrário do Brasil — em que a unidade da Federação é cláusula
pétrea da Constituição — nos EUA há a possibilidade legal para que a
secessão permaneça como opção política legal. Em 1868, no caso Texas
versus White, a Suprema Corte julgou ilegal a secessão unilateral; mas
claramente deixou aberta a possibilidade desta ocorrer pelo consenso
entre os Estados ou pela revolução5.
Os atuais movimentos de crítica à União refletem não somente as
divergências de conteúdo ético quanto ao papel do Estado na economia,
mas em última instância refletem a encruzilhada quanto à política externa
e de segurança dos Estados Unidos. Mais do que o questionamento ao
papel da União (expresso pelos movimentos de crítica como o Occupy, o
Tea Party, os incipientes movimentos secessionistas e uma certa
desconfiança do estadunidense médio com relação a seu governo), está
em jogo a governabilidade do poder Executivo e sua capacidade de
comandar a política externa e de segurança.
Longe de se afirmar que a secessão americana se avizinha, busca-se
jogar luz sobre o que parece ser um desgaste no tecido social americano.
Em um cenário hipotético de médio prazo, em que a economia americana
não se recupera e uma Administração decide pelo enfrentamento direto
com China ou Rússia, estaria a unidade americana assegurada? Mesmo
que os Estados Unidos saíssem vitoriosos de um enfrentamento nuclear,
quantas bombas seriam necessárias para que um sério debate sobre a
conveniência de se manter na União surgisse nos estados que hoje já
sinalizam insatisfação? É legítimo supor que uma guerra total, muito
provavelmente termonuclear, possa catalisar estes movimentos e
promover a fragmentação dos Estados Unidos.
Em um período de fortes mudanças na correlação de poderes no
Sistema Internacional, questionamentos como estes — apesar de ousados
— são válidos na busca de antecipar-se à mudanças significativas na
ordem política e social americana que acarretem desdobramentos graves e
desfavoráveis para o Brasil e o Ocidente.
5
Para o texto completo do julgamento da Suprema Corte americana, acesse
supreme.justia.com/cases/federal/us/74/700/case.html
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Política externa e de segurança dos Estados Unidos
4. ECONOMIA
O principal objetivo da análise da situação econômica dos EUA é
responder se há um declínio relativo na maior economia do mundo. Levase em conta o contexto pós-crise de 2007 em que o país tende à
estagnação econômica, ao aumento da interdependência e a crescente
pobreza interna.
A crise que se iniciou em 2007 representa uma ruptura no padrão de
crescimento do PIB dos EUA. Apesar de verificar-se certa recuperação,
ela se apresenta lenta e insuficiente, para evitar o declínio econômico,
agravado pelo ao aumento crescente da inflação.
A partir da Teoria dos Ciclos Sistêmicos de Acumulação de Giovanni
Arrighi, pode-se dizer que os EUA têm uma economia baseada no setor
financeiro, o que confere ao país sensibilidade à instabilidade suscitada
pelas crises financeiras globais recorrentes. Como pode ser visto a partir
da crise econômica atual, o setor produtivo estadunidense é muito mais
prejudicado, pela diminuição do crédito e do investimento na indústria,
somando-se à declinante taxa de lucro do país, a qual, nos países
emergentes, aumenta juntamente ao investimento.(ARRIGHI, 1996;
2001)
A balança comercial dos EUA se mantém há muitos anos negativa e
o valor absoluto de suas exportações é baixo para uma economia da sua
dimensão. Os EUA importam muitos bens de baixo valor agregado da
Ásia — principalmente da China — o que contribui para o comércio intra
industrial, enquanto exportam bens de alto valor agregado —
majoritariamente para os países do NAFTA.
Quanto ao investimento estrangeiro direto (IED), apesar de ser o país
que mais faz e o que mais recebe, os EUA mantêm um saldo negativo e
que tende a se agravar, visto que sua economia mostra-se cada vez menos
atrativa, ao contrário dos países emergentes. Além disso, mais da metade
do IED que faz e que recebe é da União Europeia, o que representa uma
expressiva interdependência com uma economia ora em decadência. Por
outro lado, o fluxo de IED com os países emergentes é baixo, o que vai
contra a tendência global. Ainda, o IED que os EUA recebem tem baixo
impacto no PIB e no emprego, o que se verifica como mais um indicador
de declínio econômico.
Atualmente, os imigrantes representam em torno de 14% da
população total dos EUA e crescem mais do que a população nativa.
13
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
Devido às piores condições de emprego e educação, representam um alto
gasto para o país e uma parcela significativa do saldo negativo em
Transações Correntes Unilaterais. Além disso, crescem a concentração de
renda, a desigualdade e a taxa de pobreza nos EUA, o que torna muito
difícil manter o nível de desenvolvimento do país, de forma a ser
necessário que aumentem os gastos sociais para a recuperação econômica
como um todo.
Os EUA possuem a maior dívida pública do mundo, de US$ 16,4
trilhões em 2012, sendo US$ 5,3 trilhões de dívida externa. A China
possui um pouco mais de US$ 1 trilhão em títulos da dívida dos EUA e
aproximadamente seis vezes mais em reservas de dólares, o que garante
alto grau de interdependência entre os dois países. A situação da dívida se
sustenta devido ao fato de que os EUA tem a prerrogativa de controlar a
taxa de juros dos seus próprios dividendos e também em razão do temor
da desvalorização do dólar, o que mantém a China comprando títulos da
dívida dos EUA. Entretanto, visto que os chineses compram cada vez
menos (devido à possibilidade de calote), há um grande risco de
aprofundamento da crise econômica atual, caso os EUA não recuperem
sua economia mais rapidamente e não haja reformas no sistema
monetário internacional.
5. INFRAESTRUTURA
Detentores da melhor infraestrutura do mundo6, os Estados Unidos
dominam os investimentos no setor quando comparados aos outros
países. Contribuem para isso o governo dos Estados Unidos ser o maior
investidor mundial em infraestrutura e o país hospedar o maior número de
empresas da área.
Os Estados Unidos também possuem uma das maiores redes de
transportes — hidrovias, ferrovias e rodovias — do mundo. A rede
hidroviária norte-americana é altamente desenvolvida, conectando o país
de norte a sul através da bacia do Mississipi e contando com mais de mil
terminais aquaviários (OLIVEIRA, 2012).
Além de hidrovias e ferrovias, importam as infovias, as estradas
eletrônicas do século XXI. Os EUA possuem uma notável rede de fibra
6
Dados de 2012 retirados de http://www.bentley.com/en-US/.
14
Política externa e de segurança dos Estados Unidos
óptica que atravessa grande parte do seu território e abrange a maioria
dos grandes centros urbanos. Além dos benefícios, como velocidade de
sinal e maior quantidade de informação transmitida, a utilização de cabos
de fibra ótica em vez de cabos convencionais propicia resistência a pulsos
eletromagnéticos — tanto os provenientes de ataques que utilizam
diretamente esses meios, quanto os que acompanham explosões
nucleares7. Essa fantástica rede permite que os Estados Unidos
mantenham sua infraestrutura digital e seus sistemas de comunicação, o
que aumenta a sua capacidade de reação após ataques estratégicos de
grande proporção8.
No que tange ao setor energético, o país é o maior consumidor de
petróleo do mundo e apenas o terceiro maior produtor. Dados de 20119
indicam que os Estados Unidos apresentam um déficit de
aproximadamente 9 milhões de barris diários. Esse saldo negativo poderá
ser alterado, no entanto, por volta de 2020, segundo o relatório World
Outlook 2012 da U.S. Energy Information Administration (EIA, online).
Desse modo, os Estados Unidos se tornariam autossuficientes em
hidrocarbonetos e reduziriam a sua dependência externa. Atingir esta
meta depende da manter o desenvolvimento extraordinário da exploração
de hidrocarbonetos não-convencionais como o shale gas e o tight oil
(respectivamente, gás e petróleo extraídos de formações rochosas pouco
porosas).
Nos últimos anos, o governo norte-americano tem incentivado novas
fontes de energia, como os biocombustíveis — especialmente o etanol
produzido a partir de milho — e as energias eólica e solar. Durante o
governo Obama, o consumo de energias renováveis10 passou de 7% a
10% do consumo nacional (EIA, online).
Neste sentido, pode-se dizer que o projeto mais ambicioso é o do
elevador espacial, uma construção que atravessa a órbita terrestre e
absorve a energia do sol. A ideia, que data de 1965, partiu do britânico
7
Mais em Highland Communication Services. Benefits of Fiber Optics. Disponível em:
<http://www.ci.highland.il.us/public_documents/highlandil_hcs/hsc_services/Benefits>
Acesso em: 13 Jan. 2013.
8
Mais em EMANUELSON, Jerry. Nuclear Electromagnetic Pulse. Disponível em:
<http://www.futurescience.com/emp.html> Acesso em: 13 Jan. 2013.
9
Dados retirados de http://www.eia.gov/.
10
A fonte consultada (EIA) considera como energias renováveis a hidroeletricidade, a
energia geotérmica, a energia solar/fotovoltaica e a energia eólica.
15
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
Arthur Clarke, o qual a defendeu em um de seus livros de ficção. A
NASA, o MIT e dezenas de outros centros de alta tecnologia, dentro e
fora dos EUA, a trouxeram para a realidade. O custo estimado do projeto
varia entre US$ 8 e 20 bilhões e seu aspecto crítico é o domínio da
tecnologia de nanotubos de carbono e de propulsão a laser. Estejamos a
anos ou décadas do elevador espacial, se os EUA não abandonarem a
iniciativa, o pioneirismo será americano. Mais, ela poderá revigorar de
modo inusitado sua economia. Nesta hipótese, os EUA poderão tornar-se
senhores (e fornecedores mundiais) de uma fonte virtualmente
inesgotável de energia.
6. TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA
Antes de abordar a posição dos EUA na transição tecnológica, devese ter em mente alguns conceitos e ideias importantes. Primeiro, deve-se
entender que o gerenciamento do conhecimento é vital para o país liderar
ou estar no topo da competição pelas inovações. É por meio deste ciclo
de inovações, caracterizado por forte competição entre os atores, que se
procura engendrar a melhor capacidade inovativa, que tem de se mostrar
eficiente tanto em termos qualitativos como quantitativos (para futura
produção). Segundo, após a inovação, ocorre a difusão do produto por
vários meios (roubo, doação, barganha) e assim nesse meio termo o
progresso técnico desacelera. Todavia, é necessário perceber que estes
ciclos são dinâmicos: enquanto ocorre a difusão, o ciclo de inovações
continua acontecendo, incorporando cada vez mais conhecimento e
procurando inovar cada vez mais. Assim, percebe-se alguns pontos
importantes: primeiro, o que importa é dominar e acelerar o ciclo de
inovações por meio do gerenciamento do conhecimento; segundo, é
necessária uma base organizacional que incorpore cada vez mais
conhecimento; terceiro, as forças de mercado por si só não conseguem
direcionar o limite do conhecimento, pois não existe uma demanda
concreta — é necessária a presença estatal11.
11
É pela competição interestatal (militar) que se procura inovar, criando armamentos
superiores tática e estrategicamente. Cabe também salientar que, em termos
schumpeterianos, a inovação é o motor que impulsiona o capitalismo. Dessa forma, não
16
Política externa e de segurança dos Estados Unidos
No caso dos EUA, após a Segunda Guerra, surgiu um sentimento,
entre os militares, de que estar tecnologicamente superior aos outros seria
determinante para ganhar guerras. Assim, ocorreu um esforço militar em
institucionalizar o ciclo de inovações juntando todas as forças da
sociedade, criando assim um complexo militar-industrial-acadêmico
(MEDEIROS, 2004). Por essa lógica, com seus laboratórios bancados
pelo governo, as universidades se transformam no centro vital da
pesquisa acadêmica; o Legislativo aprova valores bilionários para serem
investidos em P&D — graças à doutrina de superioridade tecnológica —;
e as inovações oriundas deste processo são difundidas para firmas
emergentes que trabalharam em cooperação (e.g.: IBM, Intel).
As atuais restrições orçamentárias devem ser devidamente
matizadas. A imprensa alardeia os valores nominais dos cortes. Contudo,
dificilmente se destaca que a economia em custeio permitirá a
recuperação da capacidade de investimento estadunidense. E, raramente,
alude-se que os EUA, sozinhos, respondem por quase um terço do
investimento mundial em P&D — um montante nominal de quase meio
trilhão de dólares. A vantagem estadunidense é ainda mais confortável se
comparada a alguns de seus competidores. A Rússia participa com 24,9
bilhões de dólares e a Índia, com US$ 38 bilhões para os 427,2 bilhões de
dólares dos EUA. Dentre estes competidores, a China é a única que
apresenta um crescimento de P&D superior ao percentual do PIB; ainda
assim, com um valor nominal de apenas US$ 174,9 bilhões. Constata-se
que o investimento dos EUA em P&D permanece 144 % maior que o
chinês, segundo colocado no ranking mundial. (GRUEBER e STUDT,
2011: online).
A Agência de Projetos Avançados de Pesquisa de Defesa (DARPA) é
uma das maiores instituições que representa a gestão integrada entre
defesa, produção e disseminação de conhecimento. O objetivo da
DARPA é sustentar projetos que produzam inovações voltadas para a
segurança nacional12. A Agência está associada à liderança tecnológica
são os custos econômicos que irão direcionar as inovações, mas sim os custos
estratégicos de um país caso ele se atrase tecnologicamente.
12
O melhor exemplo, oriundo da ARPA (que depois se transformou na DARPA), é a
ARPANET. Esse projeto tinha como objetivo criar uma rede de comunicações que
mantivesse o comando e controle em caso de um ataque nuclear. Para isso seria
necessária uma rede de computadores descentralizados e não-hierárquicos em todo o
país (bases militares e universidades). A internet surgiu a partir deste projeto.
17
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
dos EUA. Em grande medida, a ela se deve o quase monopólio em
produção de superprocessadores. Em média, os EUA produzem oito dos
dez superprocessadores mais rápidos do mundo (os demais pertencem a
China e Japão). Os superprocessadores importam, pois permitem a
prototipação virtual, proporcionando simulações que reduzem os custos
de desenvolvimento e de manter a liderança na inovação.
De fato, os projetos da DARPA — robótica em gravidade zero,
nanotecnologia — apontam os rumos da fronteira do conhecimento, ou
seja, como se dará o próximo salto tecnológico13. Destaca-se o já
mencionado elevador espacial, o qual abre novas possibilidades no
campo energético, mas também com relação ao próprio comando do
espaço. Projetos relacionados à fusão nuclear controlada em reator
também demandam grande investimento em P&D e, como o elevador
espacial, prenunciam a libertação da humanidade das formas de energia
não renovável.
Na esfera de motores, a tecnologia hipersônica, revelada em projetos
como o X-51, contém o germe de uma nova fronteira tecnológica,
expressa na produção de aeronaves que se deslocam a mais de cinco
vezes a velocidade do som (Mach 5). O veículo orbital X-37B ilustra a
conexão desta forma de propulsão com o domínio do espaço. Importa é
que os hipersônicos irão promover a interação entre os domínios do ar e
do espaço: percorrendo o globo em minutos, derrubando os preços dos
fretes, promovendo a efetiva globalização. Atualmente os projetos ainda
estão voltados para sua interface militar. Entre os mais avançados está o
Force Application and Launch From Continental US (FALCON), cuja
meta é produzir um veículo hipersônico com capacidade de ataque global
a partir do território dos EUA. A ideia é reduzir a dependência de bases
no exterior, o que na esfera da política externa permitirá aos EUA
associar simultaneamente universalismo e isolacionismo, podendo ter
uma atitude mais flexível frente às regiões. Em suma, a propulsão
hipersônica prenuncia para o século XXI transformações análogas às
cumpridas pelo computador e a rede no século XX.
13
Observando a história capitalista, entende-se que os grandes saltos tecnológicos estão
relacionados com a fonte energética com a qual se supre as capacidades produtivas.
Com a escassez próxima dos hidrocarbonetos, entende-se a energia verde como o futuro
do crescimento econômico e do desenvolvimento de um país no sistema internacional.
18
Política externa e de segurança dos Estados Unidos
7. SEGURANÇA E DEFESA
As prioridades de defesa dos EUA para o século XXI estão definidas
no Strategic Guidance de 2012 (DOD, 2012c). No documento reconhecese que os EUA vivem um ponto de inflexão na sua estratégia de defesa:
após uma década de guerra, deve-se moldar forças menores e mais
enxutas, porém mais flexíveis, ágeis e tecnologicamente avançadas. No
entanto, isso não é uma novidade; o que esse documento tem de inovador
é a ideia de rebalanceamento da Ásia. Atenta-se para as crescentes
capacidades antiaéreas e antinavio da China (A2/AD)14, que podem
bloquear o fluxo internacional de comércio e, assim, limitar a liberdade
de ação dos EUA no Sistema Internacional. Nesse sentido, o documento
enfatiza a importância crescente da Índia como parceiro estratégico dos
EUA na região sul da Ásia, além de fazer algumas sugestões para lidar
com o A2/AD: a) desenvolvimento de um novo bombardeiro stealth15; b)
manutenção das capacidades submarinas estadunidenses; c)
aprimoramento das capacidades espaciais; d) adoção do Joint
Operational Access Concept (JOAC).
A JOAC seria, basicamente, a resposta estratégica estadunidense ao
A2/AD (DOD: 2012a). Ela é baseada em uma sinergia de domíniocruzado, ou seja, a integração profunda de todos os domínios — exército,
força aérea, marinha, cibernética e espaço — a fim de que sejam
complementares. Taticamente, para passar por defesas A2/AD, deve-se
desenvolver várias linhas de ataque, cada uma independente da outra —
inclusive em comunicação e controle. Os ataques seriam em
profundidade, diretamente nas capacidades-chave da defesa adversária.
Para isso, seriam necessárias diversas bases avançadas, a fim de suprir
essas linhas independentes e deixar obscura a origem da ofensiva.
Naturalmente, o aspecto crítico da JOAC é a penetração em profundidade
no território chinês; por isso a diretriz deve ser tomada como uma
formulação de transição, depende da efetivação de tecnologias tais como
as armas de energia direta e a propulsão hipersônica para tornar-se
taticamente sustentável.
Por este percurso dedutivo, constata-se que documento nos informa
14
15
A2/AD — Capacidades de Anti-Acesso e de Negação de Área.
Tecnologia que permite diminuir a assinatura eletrônica das aeronaves: dificulta o
reconhecimento pelos radares inimigos.
19
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
que nos próximos anos a tecnologia hipersônica se tornará realidade —
ao menos para fins militares. Afinal, as atuais aeronaves disponíveis,
como o F-22 e, em breve, o F-35 — apesar de serem furtivas (stealth),
não asseguram mais a penetração em profundidade em território inimigo,
ao menos impunemente. Isto se deve à disseminação de radares de microondas que conseguem identificar e alvejar as aeronaves 5ª geração a
despeito de sua furtividade16. Além disso, o preço dessas aeronaves é
muito superior às de 4ª geração, o que dificulta sua produção em larga
escala e, portanto, a capacidade de custear perdas.
Nem por isso os EUA estão indefesos, importa lembrar que mantêm
uma confortável liderança em aeronaves de 4ª geração possuindo um total
que excede a soma de seus potenciais adversários. Contudo, elas estão
sendo retiradas de serviço em um ritmo imprudente, o que pode vir a
alterar este panorama nos anos vindouros. Isto está implicitamente
reconhecido no Strategic Guidance de 2012 e nas avaliações sobre os
custos de desenvolvimento do F-35 (DOD, 2012b: 6).
O balanço sobre os limites da furtividade demonstra que os EUA
vêm investindo erroneamente nos últimos anos — bastou o
desenvolvimento de uma nova geração de radares para contrarrestá-la.
Além do caso das aeronaves, suprarreferido17, temos o caso do destróier
stealth BGG-1000, que demandou muitos recursos na década passada, até
que, enfim, percebeu-se que seria mais proveitoso investir nos modelos já
em uso (Classe Arleigh Burke). O comissionamento do RIM-161 (SM-3)
— anti-ICBM18 — nos navios desta classe demonstra que ela ainda tem
um decisivo papel a cumprir no serviço ativo. Rússia e China estão
empenhados, justamente, em produzir belonaves com as características
dos destróieres estadunidenses.
O mesmo se deu com a Classe Seawolf: foram construídos três
exemplares ao custo unitário de US$ 2,8 bilhões — pela primeira vez um
submarino revelou-se mais caro que um porta-aviões — para se descobrir
que a atualização Classe Los Angeles em serviço, ainda possuía
16
Mais em MILLS, Chris. F-35 Joint Strike Fighter vs Russia's New Airborne CounterStealth Radars. Air Power Australia NOTAM, 2009. Disponível em
<http://www.ausairpower.net/APA-NOTAM-140909-1.html>
17
Mais em GOON, Peter. Is the JSF Affordable? An Australian’s Perspective. Air Power
Australia NOTAM, 2010. Disponível em <http://www.ausairpower.net/APA-NOTAM170710-2.html>
18
Sigla em inglês para Míssil Balístico Intercontinental.
20
Política externa e de segurança dos Estados Unidos
capacidades muito superiores às de seus competidores. A solução
intermediária, encontrada entre o governo e os fabricantes — entre voltar
a produzir a Los Angeles ou partir-se para a Seawolf — resultou na
criação da a Classe Virginia A intenção era que fosse mais barata que a
Seawolf, que o custo unitário ficasse na casa dos US$ 1,8 bilhão mas, até
agora, não se conseguiu baixar de US$ 2,0 bilhões. O problema maior foi
a decisão de cancelar encomendas da Los Angeles, como os cascos em
serviço estão no limite da vida útil, poderá haver uma crise em 2028-29.
Quaisquer que sejam seus problemas, a Marinha dos EUA ainda não
possui, ou terá, rival no mundo em um horizonte predizível de eventos.
Continua apta a seu papel: o de sustentáculo da projeção global do
poderio estadunidense. Seja por intermédio de seus porta-aviões, pelos
submarinos Los Angeles, pelo destroyers e cruzadores ou pelos
submarinos estratégicos Ohio.
Na esfera da estratégia também se percebe uma ruptura da gestão
Obama com sua predecessora. Os EUA assinaram com a Rússia o New
Start, em abril de 2010, reduzindo a quantidade de armas estratégicas
para preservar as vulnerabilidades recíprocas. Ocorre que a Rússia
simplesmente não podia mais sustentar suas forças estratégicas em franca
deterioração. Tratou-se de um claro sinal de que o novo governo não
desejava obter a primazia nuclear. Contudo, como ficou evidente nas
negociações envolvendo a ratificação do New Start no congresso, Obama
não conseguiu encarrar a Defesa Antimíssil (DAM). Ainda assim,
restringiu o comissionamento de mísseis antibalísticos aos vasos de
superfície e declarou que os europeus também devem pagar a conta. O
assunto veio à tona na Cúpula de Lisboa da OTAN (2010), quando se
decidiu que, caso a Europa deseje uma defesa antimíssil baseada em terra,
ela terá de ser financiada pelos próprios europeus. Fica nítido que, para os
democratas, a DAM permanece apenas como mais um recurso de poder
dos EUA, sem mais se perseguir a primazia nuclear. (PICCOLI, 2012).
8. SITUAÇÃO E CONJUNTURA
Em 2008, o democrata Barack Obama foi eleito e, com ele, a política
externa e de segurança dos Estados Unidos retomou ideias mais
compatíveis com o conteúdo ético da Doutrina Monroe. O novo
presidente adotou uma abordagem que preza pelo multilateralismo e
21
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
parece favorável a investimentos em economia verde, como comprovam
os investimentos do país em biocombustíveis e em pesquisas relacionadas
ao elevador espacial, por exemplo. No entanto, muitas de suas ações são
dificultadas por um Congresso de maioria republicana e pela crise
econômica global. Esta última provocou o crescimento ou mesmo a
criação de organizações de oposição como o Tea Party, o Occupy e os
movimentos separatistas.
Em 2012, com a reeleição de Obama, abriu-se uma nova situação.
Até o momento, o Presidente tem dado continuidade a algumas de suas
políticas. No Afeganistão e na Síria, percebe-se que o governo
estadunidense promove buckpassing, reduzindo seus gastos de custeio no
Oriente Médio e conferindo responsabilidade à Turquia; em consequência
disso, cresce a integração regional entre turcos, afegãos e paquistaneses.
Quanto ao Irã, os Estados Unidos adotaram uma política de sanções e não
manifestam desejo de auxiliar Israel na hipótese configura-se uma
confrontação militar não tenha sido provocada pelos iranianos
(Resolution 65/2013 US Senate Committee on Foreign Relations). No
que diz respeito à Rússia e à Europa, destaca-se a entrega do projeto do
escudo antimísseis para mãos europeias, como forma de reduzir custos e
tensões com os russos.
As ações norte-americanas com relação à Península Coreana, no
começo do ano de 2013, demonstraram, contudo, uma queda de braço
entre a alta cúpula do Poder Executivo e o Comando do Pacífico
(PACOM). Os primeiros buscavam aliviar as tensões e promover o
diálogo, posição exemplificada pelo tom conciliador do secretário de
Estado John Kerry em sua visita ao Leste Asiático. O PACOM, por sua
vez, atuou na contramão, tendo, inclusive, enviado bombardeiros B-2
para sobrevoar a Península Coreana. Desse modo, a disputa quanto à PES
dos Estados Unidos não se dá apenas pela via eleitoral, mas também em
manobras que podem desautorizar a política externa do governo Obama.
Em relação à Ásia, percebe-se uma preocupação em buscar parceiros
internacionais a fim de criar bases terrestres avançadas. A JOAC preza
pela diversificação das bases, pode-se perceber isso na prática com o
desembarque dos fuzileiros navais americanos na Austrália no final de
201219, bem como nos diversos treinamentos conjuntos com Índia,
19
São planejados que até 2017 estejam 2500 Marines no norte da Austrália, em Darwin.
Mais em http://www.defense.gov/news/newsarticle.aspx?id=66098.
22
Política externa e de segurança dos Estados Unidos
Malásia, Filipinas, Indonésia e Tailândia. Nesse sentido, para os EUA,
importa especificamente a Índia, que recebe tecnologia de radares dos
EUA e Japão. A política estadunidense para o país se confunde entre
burden-sharing e buckpassing, atualmente pendendo mais para o último,
de modo que o país é considerado como vital para os interesses
estadunidenses na região.
As políticas de desengajamento dos EUA levam em conta a
realidade fiscal do país. O país esteve próximo do Abismo Fiscal, um
mecanismo automático acionado quando o déficit atinge marca de US$
2,1 trilhões, o resultado é a retirada de US$600 bilhões no orçamento dos
EUA. O déficit foi gerado pelos altos gastos militares e pela baixa
arrecadação, principalmente entre a população de alta renda. As
negociações para evitar o Abismo Fiscal demonstraram grandes impasses
políticos. O acordo realizado na virada de 2012 para 2013 incluiu um
aumento de impostos para as famílias que ganham mais de US$450 mil
ao ano e indivíduos que ganham mais de US$ 400 mil ao ano.
Permaneceu em aberto, contudo, a definição sobre a elevação do teto para
a dívida pública estadunidense, o que poderá gerar novo impasse já no
ano de 2013.
9. CENÁRIOS
A partir do estudo desenvolvido, pode-se delinear pelo menos três
possíveis cenários para os próximos anos de política externa e de
segurança dos EUA. Cada um deles sintetiza aspectos passíveis de serem
combinados entre si e mais compatíveis com um ou outro tipo ideal da
dualidade proposta.
O melhor cenário consiste no avanço da construção de uma
economia baseada no conhecimento e de um novo pacto social mundial,
em que a governança seja nucleada em regiões. O condicionante principal
é a extensão das práticas de buckpassing pelos estadunidenses, reduzindo
seus gastos de custeio e permitindo maior aceleração da recuperação
econômica. Por consequência, o país readquiriria grande capacidade de
produção de conhecimento em larga escala, direcionando-a para
investimentos em economia verde e avançando no projeto do elevador
espacial. A liderança estadunidense seria praticada, mais do que tudo,
pela força do exemplo, como sugere a Doutrina Monroe.
23
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
O cenário intermediário consiste, em linhas gerais, na manutenção
de uma situação semelhante à atual. O governo estadunidense colocaria
em prática, concomitantemente, práticas de buckpassing e de burdensharing, a depender do contexto e da localidade específica. Como
resultado, os processos de regionalização ao redor do globo seriam
estimulados, ainda que indiretamente e de maneira mais vagarosa do que
no melhor cenário. O país manteria uma lenta recuperação econômica,
bem como os impasses já verificados entre Executivo e Legislativo.
O pior cenário para os próximos anos consistiria nos seguintes
fatores: a eleição de um candidato nos moldes do que foi visto na última
eleição (Mitt Romney); o retorno das tensões com a Rússia; a volta de
uma economia baseada nos hidrocarbonetos e o unilateralismo. Em
outros termos, seria o retorno do Destino Manifesto ao poder. Nesse
contexto, em um primeiro momento, os EUA buscariam incansavelmente
a primazia nuclear, direcionando o foco para o Escudo Antimísseis
(DAM) europeu baseado em terra, na Polônia e na República Tcheca,
iniciando uma corrida armamentista com a Rússia. Com o
desenvolvimento do hipersônico, os EUA poderiam dispensar qualquer
tipo de parcerias regionais, visto que o unilateralismo por si só já bastaria.
Portanto, haveria um retorno a Boyd e ao gerenciamento do caos, cujo
resultado líquido seria a guerra permanente.
Considerações Finais
O declínio relativo na economia dos EUA se dá no contexto póscrise de 2007, em que o país se recupera lentamente, enquanto outras
economias mostram um expressivo crescimento econômico. Adiciona-se
a isso a forte interdependência da economia estadunidense com a
decadente União Europeia em termos de IED; o deficit cambial e fiscal
que caracterizam a crise hegemônica desde o Vietnã ao Iraque.
Por outro lado, há que se notar a grande interdependência com a
China, o volume de títulos torna os dois países menos propensos à
confrontação. O aumento do comércio bilateral, mesmo em um contexto
de crise, aponta o caminho mais provável para a recuperação
estadunidense: intensificar sua inserção nos mercados mais dinâmicos da
Ásia.
24
Política externa e de segurança dos Estados Unidos
Importa notar que a pesquisa convalidou a percepção de Giovanni
Arrighi, para quem os EUA teriam ingressado na fase de expansão
financeira ainda na década de 70. Cabe lembrar que, para o autor, o que
caracteriza esta fase não é apenas um crescimento maior da economia
simbólica em relação à economia real, mas também a expansão do setor
bancário às custas do setor industrial. Neste sentido, a recuperação da
competitividade das empresas americanas na década de 80, constatada
por Alfred Chandler, não teria sido suficiente para conter a tendência da
expansão financeira, uma vez que a Ásia permaneceu sendo polo
dinâmico da economia mundial. China e Índia substituíram os Tigres
Asiáticos, mas a região permaneceu como líder no desenvolvimento do
PIB industrial e das demais capacidades produtivas.
Contudo, é prematuro considerar que o êxito da Ásia se dará às
expensas dos EUA. Talvez pretender que os EUA recuperem o papel da
indústria na composição do PIB seja uma utopia reacionária — apenas
possível mediante um nível de empobrecimento em umbrais muito
superiores aos atuais. Aliás, como explica o próprio Arrighi, muitas das
indústrias na China e Índia são de procedência americana. Ao menos em
certa medida, a crise estadunidense é fruto do virtuosismo de seu modelo
de transnacionalização. Seu aprofundamento parece ser a chave para
saída da crise: convertendo os EUA em exportador de Tecnologia Verde.
Esta inserção beneficia o setor de serviços, o carro chefe da economia.
Naturalmente, exige um sistema de seguridade a assistência social, que
terá de ser custeado com impostos.
Se, por um lado, não parecem existir problemas intransponíveis para
os EUA, por outro lado, seria prematuro ignorar os desafios do presente.
Em grande medida, a transposição das atuais dificuldades está
relacionada à transição tenológica. Na sociedade do conhecimento e da
informação, deter um terço do P&D mundial parece ser garantia
suficiente que os Estados Unidos não irão se converter numa nova
Inglaterra. Por outro lado, verifica-se um declínio relativo20: na década de
80, os EUA respondiam por metade do P&D mundial. Embora os EUA
contem com um grande e diversificado complexo acadêmico-militarindustrial, pode-se observar que o governo reduz sua demanda de
produtos com alta tecnologia e as empresas aportam menos recursos em
P&D. Se prolongada, esta situação poderá acelerar a decadência relativa,
20
Se diz relativa, porque no caso, trata-se de comparar os EUA com si próprios.
25
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
ameaçando a liderança tecnológica dos EUA. Em qualquer hipótese, a
presente situação exige a recuperação econômica do país e reformas
profundas.
O dilema atual, definido, no âmbito deste texto, nos termos da
oposição entre o buckpassing e o burden-sharing, atesta a manutenção da
dualidade típica da PES estadunidense, mas não autoriza qualquer tipo de
conclusão acerca de seu perfil cabal no século XXI. Para além das
disputas dos grupos de pressão internos, existem condicionantes externos
que impedem os EUA de decidir livremente entre “passar o balde” e
“dividir o fardo”. O mais provável é que, em algum grau, ambas se
combinem.
No momento atual, enquanto a crise econômica persiste, a tecnologia
do hipersônico não é lançada e, por conseguinte, a JOAC não se torna
totalmente operacional, os EUA tendem a buscar parcerias e dividir o
fardo (burden-sharing) da segurança global com potências regionais, vide
Índia. Outra opção é o clássico buckpassing, como nos casos de
Afeganistão e Síria. Importa lembrar que ambas as políticas fortalecem
pivôs regionais e, consequentemente, aceleram processos de integração
regional.
Os Estados Unidos ainda são a maior potência do Sistema
Internacional e nenhum outro país ou região é capaz de lhe fazer frente.
Se, por um lado, esta condição impõe aos EUA o ônus de introjetar os
principais problemas do sistema internacional, por outro, demonstra que
são capazes de influenciar decisivamente seus rumos. De fato, observa-se
uma persistente crise da hegemonia americana que não pode se manter
nos termos vigentes anteriores a década de 70, mas também não se
observa um desafiante à hegemonia global americana.
As relações com a China, a despeito de seus graves pontos de
estrangulamento, não são aquelas características de potências rivais —
como as EUA-URSS durante a Guerra Fria — mas as de economias
profundamente interdependentes. É impossível determinar o quanto o
crescimento produtivo chinês é tributário de capitais e tecnologias
americanos, dada à ausência de um sistema de estatísticas de IED
organizado na China e a prática, comum na Ásia, de triangulação de
investimentos e subcontratação. Ademais, as deficiências estruturais da
China não são muito diferentes das que comprometeram, no passado, o
26
Política externa e de segurança dos Estados Unidos
Japão como candidato a hegemon21. Desse modo, não é difícil predizer
que os EUA irão se recuperar da Guerra do Iraque como fizeram frente ao
Vietnã.
O declínio relativo dos EUA, contudo, parece pronunciado suficiente
para que se afaste do horizonte a perspectiva seja de um Império
Universal, seja de um Estado Mundial. Isso, entretanto, já era uma
tendência observável antes da crise mundial de 2007. Como observou
ainda em 2005 o ex-assessor de Segurança Nacional da presidência,
Brzezinski: “Mesmo que o fosse desejável, a humanidade não está sequer
remotamente preparada para o governo mundial, e o povo americano
certamente não o quer”22. A observação de Brzezinski lamentavelmente
tem sido negligenciada por alguns formuladores de política e estadistas
nos Estados Unidos. E, esta incompreensão, materializada na manutenção
da DAM, mantém em aberto o espectro da guerra mundial.
Do exposto, pode-se concluir que se os Estados Unidos não podem
manter sua hegemonia como era, mas tem capacidade suficiente para
incidir decisivamente sobre qualquer processo de reconstrução
hegemônica. O mais provável é que, qualquer seja o rearranjo, os EUA
permaneçam como potência dirigente — a menos que ela seja operada
através da guerra quando, então, seu desdobramento é imprevisível,
talvez este seja único obstáculo intransponível para um novo século
americano.
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21
22
Para mais informações, consulte o capítulo sobre China deste livro.
No original: “Even if it were desirable, mankind is not remotely ready for world
government, and the American people certainly do not want it”. BRZEZINSKI, 2005
online.
27
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Relações internacionais contemporâneas 2012/2
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05/01/2013.
30
Capítulo 2
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA
REPÚBLICA POPULAR DA CHINA
Giovana Esther Zucatto
João Arthur da Silva Reis
João Gabriel Burmann da Costa
Marília Bernardes Closs
Mirko Levis Gonçalves Pose
Osvaldo Alves Pereira Filho
Renata Schmitt Noronha
Introdução
Este artigo analisa a política externa e de segurança da República
Popular da China, tendo como objetivo central demonstrar como o
comportamento do país, em nível interno e regional, afeta seu
posicionamento no Sistema Internacional. Dessa forma, o foco do
trabalho é na estrutura interna do país e nas suas relações regionais.
A China possui a maior população do mundo, distribuída no quarto
maior território nacional, detém a posição de segunda maior economia do
mundo e o segundo maior gasto em defesa. Seu PIB, de mais de US$ 8
trilhões, é um dos que mais cresce no mundo, tendo alcançado a taxa de
9,3% ao ano em 2011 (CIA, 2013). Essa análise preliminar de suas
capacidades permite classificar o país como um dos polos do Sistema
Internacional
Adota-se, neste trabalho, a hipótese de que a China se debate entre
duas tendências diferentes. Uma é mais voltada à multilateralidade e às
reformas internas, identificada aqui como Mandarinato Meritocrático. A
outra é associada ao reacionarismo e manutenção das instituições do
passado e, no plano externo, ao unilateralismo. Intitula-se essa categoria
de Milenarismo Igualitarista. Essas duas orientações derivam de uma
dualidade intrínseca à identidade coletiva do país. Ambas coexistem nas
ações e na estrutura chinesa, sendo que, em determinados momentos, uma
adquire preponderância sobre a outra.
31
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
Tendo sido explicitado e delimitado o desenho da pesquisa, cabe
demonstrar como esta se estrutura. Primeiramente, será feita uma análise
da estrutura do país, buscando identificar determinantes da política
externa e de segurança nas capacidades e na configuração interna do país.
É nesta seção que será também definida a dualidade da China. Em
seguida, serão delimitadas a situação e a conjuntura do país, explicitando
os condicionantes regionais da atuação chinesa e seu posicionamento no
Sistema. A partir da estrutura, situação e conjuntura, serão estabelecidos
três cenários nos quais são projetados os desdobramentos da dualidade.
Na conclusão preliminar, serão apontados os indicadores que permitirão
um acompanhamento dos cenários projetados.
1. ESTRUTURA
1.1. Esclarecimentos sobre a Dualidade Chinesa
A trajetória chinesa é pautada pela seguinte dualidade: (i) o
Mandarinato Meritocrático; e (ii) o Milenarismo Igualitarista. Ambas
categorias coexistem e possuem implicações para a política interna e
externa chinesa, podendo ser observadas ao longo da história. É
importante mencionar que esses devem ser considerados como categorias
abstratas.
A primeira face da dualidade propõe a organização da sociedade em
hierarquias baseadas no mérito, e tem seu nome derivado dos exames
imperiais chineses, nos quais eram selecionados os mandarins, a
burocracia governamental da época. No campo externo, essa ideia está
relacionada com o conceito de “autoridade humana”, tal como proposto
por Yan Xuetong (2011). De acordo com o autor, esta se pautaria pela
liderança através da moralidade política e da subsequente adesão dos
demais. É reconhecido algum nível de hierarquia entre os Estados,
demandando que os mais fortes assumam responsabilidades maiores que
os mais fracos e, ao mesmo tempo, aceitando regulações discriminatórias.
Assim, a liderança e as normas estabelecidas pelo líder são aceitas de
forma espontânea pelos demais Estados (YAN, 2011). Atualmente, essa
face se expressa através de políticas multilaterais e de reformas
econômicas e políticas internas que democratizam o governo chinês e
aumentam a participação política.
32
Política externa e de segurança da República Popular da China
Já o milenarismo igualitarista, a segunda face da dualidade, acarreta
a existência de um líder superior, que crê ser incumbido por alguma
determinação divina de liderar os demais. A origem disso remonta ao
“mandato dos céus” na civilização tributária chinesa e à Rebelião
Taiping, tendo encontrado sua expressão moderna em alguns aspectos do
maoismo. O igualitarismo dessa face, apesar de parecer nobre, se levado
ao extremo, pode conduzir à perda da ideia de indivíduo e,
consequentemente, à supressão das liberdades e direitos individuais. Esse
lado da dualidade representa o excepcionalismo chinês e tem como
objetivo reeditar a civilização tributária chinesa, ao mesmo tempo que
mantém a estrutura interna herdada do período maoista. Por esse motivo,
atualmente tal perspectiva justifica o reacionarismo nas instituições
internas e o unilateralismo nas relações internacionais.
1.2. História
A China é originalmente uma civilização tributária, o que significa
dizer que mantinha relações hierárquicas com sua periferia, que lhe
prestava tributo como sinal de submissão. As dinastias alternavam-se em
ciclos: uma dinastia perdia o “mandato dos céus” devido ao mau governo,
derrotas militares ou corrupção generalizada. Seguia-se um momento de
divisão interna e guerra civil até que uma nova dinastia reestabelecesse a
ordem, recebendo um novo “mandato dos céus” (ROBERTS, 2012:1214). Verifica-se nessa ideia uma expressão do milenarismo. Por outro
lado, os exames públicos de admissão à burocracia estatal, uma espécie
de concurso público da época, era a materialização original do
mandarinato meritocrático.
Esse sistema se manteve isolado do resto do mundo até a Dinastia
Qing entrar em declínio no século XIX. Isso ocorreu em virtude da
abertura forçada para o exterior, causada por uma série de tratados
desiguais impostos pelas potências europeias. Uma série de rebeliões
causadas pelo declínio do sistema imperial assolou a China, destacandose a Rebelião Taiping, movimento de caráter messiânico. A revolta durou
mais de 10 anos e se expandiu para quase metade do território chinês,
distribuiu terras equitativamente e deu papel de igualdade para as
mulheres (SPENCE, 1996). É o milenarismo igualitarista em sua máxima
expressão. A revolução foi derrotada, mas seu legado perdurou. Como
33
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
reação a isso, os funcionários mais progressistas do Império buscaram
restaurar o poder da dinastia através da modernização, no processo
conhecido como Reforma dos Cem Dias. Ou seja, industrializar o país era
a maneira de reafirmar a ordem imperial como condutora do processo de
modernização, garantindo à China um lugar no novo sistema
internacional que lhe era imposto. É o mandarinato meritocrático em sua
expressão mais clara. As reformas foram interrompidas pelos setores mais
conservadores do governo.
A Revolução Republicana de 1911 derrubou o Imperador, mas não
conseguiu unificar o país, divido entre esferas de influência estrangeiras e
senhores locais. Surge, nesse período, o Guomindang, partido
nacionalista que congregava alas de diferentes orientações políticas. Em
1924, com a ajuda da União Soviética, foi fundada a Academia Militar de
Whampoa, que treinava e doutrinava os quadros do Guomindang, criando
um Exército com o intuito de unificar o país. A despeito das diferenças
ideológicas entre eles, todos os oficiais eram subordinados a um projeto
nacional. Com a criação do Partido Comunista Chinês (PCCh), alguns
anos depois, egressos da Academia vieram a integrá-lo (SPENCE, 1996:
331).
Paralelamente ocorria o processo de modernização japonesa,
iniciado pela Restauração Meiji, que incidiu diretamente sobre a trajetória
chinesa. Na década de 1930, o Japão ocupou parte do território chinês e
instaurou o regime fantoche de Manchukuo (1933). A partir de 1937, teve
início a guerra total entre China e Japão, com a conflagração da Segunda
Guerra Sino-Japonesa. Pode-se dizer que este é marco inicial da II Guerra
Mundial para a China. O quadro em que a China encontrava-se àquela
altura era o seguinte: na esfera interna, o país enfrentava uma guerra civil
que opunha o Partido Comunista Chinês (PCCh) e o Guomindang; na
esfera regional, a guerra com o Japão que estava inserida em contexto
geopolítico mais amplo de uma guerra global que envolvia a URSS,
Estados Unidos e Grã-Bretanha.
A guerra se encerrou em 1945, com a rendição do Japão, e teve
como consequências imediatas para a China a ascensão do PCCh ao
poder e a criação de um bloco sino-soviético. Isto se deve a 2 fatores. O
primeiro diz respeito ao uso do anticomunismo como a ideologia de
legitimação do domínio japonês, o que acabou fortalecendo o PCCh
enquanto defensor do nacionalismo. O segundo fator diz respeito aos
34
Política externa e de segurança da República Popular da China
Estados Unidos, basicamente por terem apostado na vitória do
Guomindang tanto na guerra civil, quanto na resistência ao Japão. Essa
estratégia se demonstrou equivocada, já que, em 1949, o PCCh triunfou
sob a liderança de Mao Zedong. Dessa forma, a China migrou para a
esfera soviética de influência.
A vitória da Revolução se confunde com movimento de Libertação
Nacional, ideal perseguido desde a Rebelião Taiping. Entretanto, o braço
armado comunista, nascido na Academia de Whampoa, precedeu a
própria revolução. Esse fato garantiu um caráter autônomo do Exército
em relação ao Partido nas décadas subsequentes. Isto explica porque, de
maneira diferente de outros países de governo comunista, o Exército não
é um subordinado dócil do Partido e, ainda hoje, atua como árbitro nas
disputas entre as diferentes facções do PCCh.
Apesar da definição dos conflitos na esfera local (guerra civil) e
regional (guerra sino-japonesa), persistiram as disputas no nível global. A
guerra da Coreia (1950-1953), na qual a China entrou em confronto com
os Estados Unidos, foi expressão disto. Como consequência dessa
conflagração para a China, manteve-se o bloco sino-soviético e o país foi
temporariamente excluído do Sistema Internacional, devido à chantagem
nuclear imposta pelos EUA ao governo de Pequim1 (KISSINGER, 2011).
Após um período de consolidação do regime, seguiu-se o “Período
Soviético”,
fase que durou até 1958, caracterizado por rápida
industrialização e modernização nos moldes socialistas (ROBERTS,
2012: 364-365). No fim da década de 1950, a radicalização do governo
chinês, expressa no Grande Salto Adiante2, levou ao afastamento da
URSS. Mao se retirou do poder, mas retornou com mais força em meados
da década de 1960, através da Revolução Cultural. As instituições
políticas foram destruídas, devido à estratégia de jogar os partidários mais
fanáticos de Mao contra seus opositores no Partido. O resultado foi a
1
2
A chantagem nuclear consistia na ameaça de uso direto de armas nucleares contra a
China. Isto ocorreu durante a Guerra da Coreia, bem como durante a Guerra FrancoVietnamita, durante as duas primeiras crises do Estreito de Taiwan. Mesmo a URSS
cogitou fazer o uso dessas armas contra os chineses durante o confronto de fronteiras
sino-soviético de 1969 (YAO, 2009: 69).
O Grande Salto Adiante (1958-1960) foi uma campanha lançada por Mao Zedong que
visava ao aumento da produção agrícola e industrial em tempo recorde. O deslocamento
forçado de pessoas e a inflexibilidade das metas causaram a morte de mais de 20
milhões de pessoas, em sua maioria por fome.
35
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
imersão do país em um caos que perdurou até meados da década de 1970.
Este período foi a expressão da faceta mais radical do Milenarismo
Igualitarista.
Após o arrefecimento da Revolução Cultural, a China se aproximou
dos Estados Unidos para balancear a União Soviética, que passara a ser
percebida como ameaça por Pequim. O realinhamento estratégico marcou
o retorno chinês ao Sistema Internacional. A Doutrina Nixon3, que
permitiu a aproximação entre os dois países e entre China e Japão, de
certa maneira inaugurando uma nova fase de regionalização nas Relações
Internacionais (KISSINGER, 2011).
Após a morte de Mao Zedong, em 1976, ascendeu ao poder Deng
Xiaoping, que empreendeu uma série de reformas, com a campanha das
“quatro modernizações”: na agricultura, indústria, tecnologia e forças
armadas. Em linhas gerais, foi um processo de abertura econômica
controlada. Essas mudanças retomaram o legado do Mandarinato
Meritocrático, tal qual as “Reformas dos Cem Dias”. Ao enfrentar a
oposição da ala mais conservadora, Deng se utilizou de sua proximidade
com os militares para garantir a continuidade de suas políticas.
A abertura econômica trouxe à tona contradições na ordem
econômica e social, que culminaram nos Protestos na Praça da Paz
Celestial. O movimento cresceu em escala, e passou a ser percebido como
uma ameaça ao regime. O Exército interviu e as manifestações foram
reprimidas ao custo de centenas de vidas. A reação internacional só não
foi mais assertiva devido ao posicionamento do Japão, que se opôs às
sanções baseadas em noções abstratas de direitos humanos.
A década seguinte, sob o governo de Jiang Zemin, viu crescimento
econômico do país, somado ao aprofundamento das desigualdades sociais
(NETO, 2005; NONNENBERG, 2010), especialmente entre cidade e
campo. Seu sucessor, Hu Jintao, deu seguimento às reformas econômicas
e sociais, buscando fortalecer as instituições do país de modo a conciliar a
manutenção do Partido no poder com o crescimento econômico. Foi
durante seu governo que a China se tornou a segunda maior economia do
mundo e empreendeu um processo de modernização militar. Em 2012, Xi
3
Corolário da política externa norte-americana durante o governo de Richard Nixon,
presidente dos Estados Unidos entre 1969 e 1974. Pregava uma aproximação estratégia
e pragmática com a China, de modo a criar um contrapeso estratégico à União
Soviética.
36
Política externa e de segurança da República Popular da China
Jinping se tornou o novo Secretário-Geral do Partido e Presidente do país.
1.3. Instituições Políticas
O processo decisório chinês dá-se, em última instância, internamente
ao Partido Comunista. O Congresso Nacional do Partido, que se reúne a
cada cinco anos, é o responsável pela indicação do Secretário-Geral do
Partido e do seu vice, os quais exercem as funções de Presidente e de
Primeiro-Ministro, respectivamente. O Congresso Nacional também
elege os 350 membros do Comitê Central do PCCh, que constitui o corpo
executivo do Partido e que elege a composição do Politburo, do seu
Comitê Permanente e da Comissão Militar Central. O Comitê Permanente
do Politburo é o órgão superior na hierarquia do PCCh e seus 7 membros
encabeçam o processo decisório nacional, sendo as decisões do Politburo
e do Comitê Permanente consensuais. Importa, também, o Congresso
Nacional do Povo, órgão unicameral legislativo chinês, que tem 70% de
deputados filiados ao PCCh em sua composição. Cabe apontar, ainda, a
influência dos membros mais antigos — os “anciãos do Partido” — dos
herdeiros dos heróis da revolução e dos militares — os quais ocupam
20% das cadeiras do Comitê Central — no processo decisório do PCCh.
O PCCh possui, majoritariamente, duas grandes facções: o Grupo de
Xangai e a Liga da Juventude Comunista. A primeira possui um viés mais
elitista, preocupando-se em manter um modelo de crescimento
econômico baseado nas exportações, o que privilegia as províncias mais
desenvolvidas do litoral chinês. Esse grupo se considera herdeiro do
legado maoista e é a facção mais conservadora no que se refere à
manutenção das instituições e privilégios instituídos para membros do
Partido. A segunda, por sua vez, é entusiasta da melhor distribuição
interna de renda, através da centralização política e da diminuição das
desigualdades entre cidade e campo. Tem um caráter mais vanguardista e
reformista, representando o ideário de Deng Xiaoping (VISENTINI,
2012). Grosso modo, pode-se associar o Grupo de Xangai às
características do Milenarismo Igualitarista, e a Liga da Juventude
Comunista ao Mandarinato Meritocrático.
Em novembro de 2012, no 18º Congresso Nacional do PCCh, foram
eleitos os membros dos órgãos-chave do Partido. Como Secretário-Geral,
foi nomeado Xi Jinping, integrante do Grupo de Xangai. O restante do
37
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
Comitê Central, majoritariamente, foi composto por membros desta ala.
As exceções são Li Keqiang, que ocupará o cargo de Premiê, e Liu
Yunshan, ambos da facção de Hu. Já o Politburo ficou claramente
bipolarizado, com cerca de metade dos integrantes de cada facção.
Xi não é da facção mais radical e conservadora do Grupo de Xangai.
Seu discurso no Fórum de Boao para a Ásia, em abril de 2013, demonstra
uma apropriação de determinadas plataformas e propostas da ala da Liga
da Juventude Comunista, como a defesa de uma política externa de
concertação e a continuidade das reformas internas (CHINA, 2013).
Dessa maneira, pode-se afirmar que a concertação externa na China
reflete a própria concertação interna, entre as diferentes facções do
Partido.
1.4. Economia
Impulsionada por inúmeras reformas econômicas, a China é hoje a
segunda maior economia do mundo. Baseada no IED e voltada à
exportação, a economia chinesa cresceu a uma taxa média de 10% do PIB
ao ano nas últimas três décadas (IPEA, 2011).
As exportações chinesas possuem como destino, majoritariamente,
países com maior poder econômico, visto que grande parte de sua pauta é
composta por produtos de maior valor agregado: usualmente, o país
importa bens intermediários, principalmente do Japão e da Coreia do Sul,
e exporta o bens finais. Esse aspecto regional do comércio é muito
importante, imprescindível para a integração do Leste Asiático
(ACCIOLY, ALVES, LEAO, 2009).
Além disso, a China não consegue suprir a crescente demanda
energética nacional. Por isso, vem construindo uma nova forma de
relação com países “periféricos” ricos em recursos energéticos, e “tem
adotado uma ênfase [...] na valorização da soberania nacional, bem como
na aproximação das respectivas agendas políticas nos organismos
multilaterais, [...] assumindo déficits econômicos” (PAUTASSO &
OLIVEIRA, 2008: 384). Isso se evidencia no tipo de IED proveniente da
China e nos seus receptores: majoritariamente, países abundantes em
recursos naturais, onde constrói a própria infraestrutura para exploração
destes.
As reformas econômicas, iniciadas no século passado, garantiram
38
Política externa e de segurança da República Popular da China
um prolongado saldo positivo na balança comercial chinesa, fazendo com
que o país acumulasse enorme quantidade de divisas internacionais:
atualmente, é o maior detentor de reservas do mundo. As divisas
possibilitaram lastrear uma moeda internacional e controlar a taxa de
câmbio, sendo possível notar uma relativa valorização do yuan frente ao
dólar nos últimos anos.
Nos últimos anos, nota-se certa desaceleração no crescimento
econômico chinês, acarretada pelo esgotamento do modelo exportador
empreendido até então. Considerando esse fato, o governo decidiu
implementar uma série de medidas de incentivo ao consumo interno.
Claramente, o governo de Hu Jintao adotou uma postura de reformulação
do modelo econômico chinês, reafirmadas no 18º Congresso Nacional do
Partido. Mesmo com a ascensão de Xi Jinping ao poder — que pertence à
facção do Partido Comunista defensora do modelo exportador — várias
declarações foram feitas afirmando o seguimento dessas políticas (XI,
2013). Resta acompanhar o prosseguimento, ou não, de tais políticas.
1.5. Infraestrutura
As questões de infraestrutura e segurança energética são tidas como
prioritárias para a política externa da China. O país é o maior consumidor
de energia do mundo e precisa garantir seu abastecimento caso pretenda
manter as elevadas taxas de crescimento. Atualmente, o carvão e o
petróleo correspondem a quase 90% de sua matriz energética.
Nos investimentos externos em infraestrutura, destaca-se o projeto
da Nova Rota da Seda, que visa ligar o país, saindo da província de
Xinjiang, ao extremo oeste da Europa. A intenção de se projetar
internacionalmente pela Ásia Central baseia-se num amplo leque de
objetivos: o desenvolvimento econômico de Xinjiang, estabilidade
política interna; segurança energética; e a criação de um corredor
alternativo para a Europa (SWANSTRÖM, NORLING e LI, 2007). É
importante notar aqui a correspondência entre os projetos externos e
internos. A China ainda carece de infraestrutura interna, já que a maior
concentração econômica e populacional, assim como de ferrovias,
rodovias, portos e aeroportos, fica na região leste, enquanto as províncias
mais promissoras em termos energéticos ficam no oeste. Para fomentar a
integração territorial do país, o governo chinês tem promovido um boom
39
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
na construção de dutos, rodovias e aeroportos, que se conectarão com a
infraestrutura externa, podendo vir a garantir estabilidade interna para o
país e desviar o abastecimento de petróleo do Estreito de Malaca.
O escopo da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) também
é utilizado para promover a integração econômica e energética entre os
países-membros. Evidencia-se, assim, os esforços chineses em diminuir a
preponderância dos EUA nas regiões que lhes são estratégicas,
apresentando-se como um parceiro mais propício, ao passo que garante os
recursos para a sua escalada rumo ao posto de potência mundial, ao lado
dos EUA (PAUTASSO & OLIVEIRA, 2008).
2.6. Segurança e Defesa
A doutrina de defesa chinesa de 2010 estabelece como prioridade
para o país a aquisição e o desenvolvimento de capacidades militares que
o possibilite operar guerras locais em ambiente de informatização (IISS,
2012: 211). Esse aspecto da doutrina deixa claro a preocupação chinesa
com a estabilidade do Leste Asiático, com a integridade de seu território e
soberania sobre suas águas territoriais nos Mares do Leste e do Sul
(GLOBAL SECURITY, 2010: online).
Os gastos militares chineses vem em ascensão desde 1989. Hoje, o
país detém o 2º maior orçamento de defesa do mundo, de US$ 129
bilhões em 2011. Isso se deve em grande parte aos esforços do país em
desenvolver internamente tecnologias fundamentais nos conflitos atuais:
satélites de Inteligência Eletrônica e Inteligência de Sinais
(ELINT/SIGINT); Radares de Abertura Sintética (SAR), numa tentativa
de competir pelo comando do espaço; caças de 4ª e 5ª geração (J-10, J11B e J-20 e J-31); aeronaves de AEW&C (Alerta e Controle Aéreo
Antecipado), como o KJ-2000; entre outros (CEPIK, 2011).
A China detém em seu arsenal cerca de 240 ogivas nucleares e sua
doutrina nuclear é a de “não uso em primeiro ataque”. Esse aspecto da
doutrina encontra respaldo na composição do seu arsenal, visto que a
China possui uma grande quantidade de mísseis convencionais em seus
sistemas terrestres, marítimos e aéreos, para não precisar fazer uso das
armas nucleares.
Com 2,285 milhões de homens, o efetivo militar ativo da China é o
maior do mundo. De 2000 a 2009, esse número significou um aumento de
40
Política externa e de segurança da República Popular da China
US$ 20 bilhões em gastos com pessoal. Para diminuir esses custos, tem
se diminuído o efetivo ativo e aumentado a 1ª Milícia (para 10 milhões de
membros), que pode combater em conflitos, e 2ª Milícia (com 100
milhões), responsável pela manutenção da infraestrutura do país em caso
de guerra nuclear. Tais aumentos permitem à China uma maior facilidade
para mobilizar as reservas dentro de uma burocracia militar, sem fazer
uso de poderes políticos regionais ou nacional.
Importa também notar os indícios de A2/AD (anti-acess/area denial)
que aparecem na doutrina chinesa com o conceito de “maça assassina”. A
ideia é simples: em um ambiente de confronto com uma potência de
maiores capacidades militares, a China não buscaria igualar essas
capacidades, mas sim, responder assimetricamente a essa ameaça, a partir
da construção de capacidades que afetem o acesso e a livre-circulação do
inimigo no teatro de operações. Essa doutrina se materializa através de
diversos sistemas, como mísseis anti navio (DF-21), bombardeiros e
caças de interdição, submarinos e navios de minagem, e armas anti
satélite. A saturação destes tornariam proibitivos os custos de uma
invasão ao território chinês.
O perfil das forças e das capacidades chinesas indica um elemento
de duplicidade: se por um lado, a aquisição de capacidades A2/AD indica
o aprimoramento das capacidades defensivas, por outro, o investimento
na modernização de modo mais geral permite ao país atuar em diferentes
teatros de operações na região.
2.7. Transição Tecnológica
A China, apesar de não ter “saído na frente” na disputa pela
primazia do domínio de tecnologias estratégicas da Era Digital, tem se
saído bem em seu intento de diminuir o gap que a separa das Grandes
Potências (SAUNDERS, 2011: 48). O país aproveita-se dos menores
custos de desenvolvimento de tecnologias já dominadas por outros
países, beneficiando-se da distância que ainda possui da fronteira
tecnológica de certas indústrias para realizar sua transição tecnológica.
Dessa maneira, é de grande importância as políticas empreendidas por
Hu Jintao, baseado em sua vertente guia de “sociedade harmônica” e
“desenvolvimento científico”, no sentido de diminuir a dependência de
tecnologias externas e consolidar a China como um polo tecnológico e de
41
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
produção científica de alto nível.
No que tange ao desenvolvimento científico, a China têm investido
maciçamente em P&D — cerca de US$ 154 bilhões em 2009. Da mesma
maneira, foram vertiginosos os aumentos em número de publicações
científicas e registros de patentes, contabilizando, em 2010, 118.108
artigos (MCTI, 2013) e 293.066 pedidos, respectivamente. Já na questão
das tecnologias de ponta, o país
possui 4 dos mais rápidos
supercomputadores do mundo. Em 2011, entrou em operação o primeiro
supercomputador de fabricação 100% chinesa — incluindo o
superprocessador ShenWei SW 1600 —, o Sunway Bluelight. Tal fato
marcou um grande salto tecnológico para a inovação nacional em termos
de desenvolvimento e utilização de computadores de alta performance
(CHINA DAILY, 2012).
Com relação a minerais estratégicos, importa notar que a China é
hoje a maior produtora e consumidora mundial de alumínio. Porém, o
país ainda apresenta déficits desse material, necessitando importá-lo. O
grande “trunfo” chinês, em termos de recursos minerais, no entanto, está
no monopólio de 95% da produção de terras raras do planeta, além do
controle de boa parte das outras fases da cadeia de produção e utilização
desses minerais — não sendo majoritária apenas na última delas, a
transformação. Terras raras importam porque são utilizadas em muitos
equipamentos eletrônicos atuais — o que inclui a indústria de defesa. O
reflexo disso aparece nos cortes nas taxas de exportação — o governo
chinês controla a cadeia interna de terras raras, visto que as empresas são
grandes estatais e os fluxos são rigidamente fiscalizados -, e no
direcionamento para o desenvolvimento de um mercado interno mais
forte.
2. SITUAÇÃO E CONJUNTURA
A China passa por um momento de ambiguidade situacional.
Embora os primeiros meses do governo de Xi Jinping tenham sido
marcados pela reafirmação dos canais de diálogo e cooperação
multilaterais, construídos desde o final da década passada, a
(re)emergência de novos focos de tensão tornam o ambiente regional
mais propenso à instabilidade.
Basicamente, a evolução das relações regionais esteve pautada por
42
Política externa e de segurança da República Popular da China
duas esferas distintas. Na esfera econômica, houve grandes avanços
derivados do aumento da interdependência econômica de todo o Leste e
Sudeste Asiático, representados pela Cúpula Trilateral com Japão e
Coreia do Sul e culminando com o lançamento do projeto da Comunidade
do Leste Asiático em 2009. Ainda nessa esfera, mais recentemente, podese destacar o anúncio das negociações acerca da criação de uma área de
livre comércio entre os países da ASEAN com China, Índia, Coreia do
Sul, Japão, Austrália e Nova Zelândia, excluindo os Estados Unidos
(SPENGLER, 2012).
Porém, na esfera securitária, o ano de 2012 foi marcado por uma
série de disputas territoriais que levaram ao aumento de tensões no Mar
do Leste e Mar do Sul da China. O anúncio de “compra” das ilhas
Diaoyu/Senkaku pelo governo japonês foi recebido com protestos de
massa na China e as relações com o Japão ficaram abaladas. Já no Mar do
Sul da China, região de enorme importância por ser corredor de passagem
de petróleo e bens de exportação, as tensões se elevaram com o Vietnã e
as Filipinas, que disputam a posse de uma série de ilhas com a China.
Mais recentemente, a crise coreana4 evidenciou a fragilidade da
estabilidade regional.
A despeito das aparentes tendências conservadoras do governo
formado no 18º Congresso Nacional do PCCh, o discurso do presidente
Xi Jinping no Fórum de Boao para a Ásia reafirmou a disposição chinesa
em participar de maneira construtiva do estabelecimento de uma ordem
regional pautada na cooperação e concertação (XI, 2013).
Esses acontecimentos mais recentes têm como plano de fundo uma
situação geopolítica mais geral na qual a China se insere. Nesse sentido,
importa o retorno do foco estratégico dos Estados Unidos para o Pacífico,
o que torna incertas as relações entre as duas potências. Soma-se ainda a
atuação de outros atores regionais, como a Índia e a Rússia. A Índia teme
um possível cercamento por parte da China, o que leva a uma estratégia
de balanceamento e à modernização de sua Marinha de águas azuis. No
que concerne às relações com a Rússia, o panorama é de uma
aproximação cautelosa, apesar de essa ser uma tendência da Rússia com
4
A crise coreana teve início após o terceiro teste nuclear norte-coreano, em fevereiro de
2013 que desencadeou um escalonamento das tensões na península. Cabe destacar a
suspensão do armistício entre as duas Coreias e o anúncio de Estado de Guerra da parte
da Coreia do Norte.
43
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
todos os principais países da região.
No Mar do Sul da China, a China tem disputas territoriais com uma
série de países da ASEAN, devido à posição estratégica que a posse das
ilhas em litígio tem para a manutenção da segurança das linhas marítimas
de suprimento5. Neste contexto, importa sobremaneira o Vietnã, que tem
se aproximado de outras potências visando a um balanceamento da
China. Para tanto, firmou acordos de cooperação militar com Rússia,
Japão e Coreia do Sul, tratados de comércio com os Estados Unidos e de
exploração conjunta de petróleo em alto-mar com a Índia.
3. CENÁRIOS
A análise da política externa e de segurança da China permite a
elaboração de três cenários distintos. Estes refletem os desdobramentos
que podem advir dos dilemas representados pela dualidade chinesa e suas
implicações para a inserção do país no Sistema Internacional.
No melhor cenário, a China daria continuidade ao processo de
concertação e cooperação regional. Uma maior interdependência
econômica poderia conduzir ao uso das próprias moedas locais para as
transações intrabloco. Ocorreria ainda a definição das questões
securitárias. Uma solução para o problema das Coreias, ou no Mar do Sul
da China e do Leste, passaria necessariamente por uma mediação em
nível regional. A hipótese de guerra seria mais remota.
No caso intermediário, ocorreria um processo de relativa
manutenção do status quo. Isso significa o incremento dos laços
econômicos e comerciais, acompanhada de uma vagarosa concertação nas
disputas territoriais, mas sem definição. Ou seja, as disputas
permaneceriam latentes, originando crises pontuais. Essa ideia se reforça
com recentes anúncios ocorridos na Cúpula do ASEAN +3. Seria mantida
a indefinição na questão das ilhas do Mar do Sul da China, uma vez que
os custos de um confronto seriam muito altos para China, Vietnã ou
Índia.
O terceiro e pior cenário seria o da eclosão de uma guerra local, ou
de uma guerra regional de média intensidade, que poderia ser lutada em
mais de uma frente. O estopim para o início da guerra seria
5
Também conhecidas pelo acrônimo SEALOCs: Sea Lines of Communication.
44
Política externa e de segurança da República Popular da China
provavelmente uma disputa territorial. Para a compreensão deste cenário,
vale lembrar a existência de vários focos de tensão, como a península
coreana, o Mar do Sul da China, o Mar do Leste e a fronteira com a Índia.
Conclusão
Como conclusão, cabe apontar tendências a serem observadas para
um acompanhamento dos cenários projetados. Se as relações entre a
China e o resto dos países da região retornarem aos termos que deram
início à Cúpula Trilateral é crível que os impulsos integracionistas
retomem força, tal como proposto no primeiro cenário. A depender da
atuação chinesa, ao menos pelo que indicou o discurso de Xi Jinping no
Fórum de Boao, a tendência do governo chinês parece ser essa.
Em contrapartida, as recentes mudanças no cenário político da
Coreia do Sul e do Japão dificultam a viabilidade disso. Ou seja, por mais
que a China busque nuclear esse processo de maior cooperação na região,
a (re)emergência de tensões em algum grau independem da sua atuação.
Em outros termos, ainda não existe um sistema de governança regional
que torne previsíveis ou controláveis as consequências de litígios
pontuais.
Esse panorama de ausência de governança é corroborado pela
percepção de ameaça que permeia as relações regionais. Países como
Índia, Japão, Vietnã, Coreia do Sul e mesmo a Rússia não veem a
ascensão chinesa sem inquietação. Por essa razão, políticas de
balanceamento são uma estratégia recorrente.
O retorno do pivô estratégico dos Estados Unidos para o Pacífico
redimensiona a geopolítica regional e fomenta o surgimento de projetos
concorrentes de integração na região. Cabe observar que a presença dos
Estados Unidos é um fato, e que independentemente do perfil de
polarização regional que venha a prevalecer, será necessário algum nível
de concertação com os EUA. Dessa forma, é fundamental observar se o
comportamento do novo governo Obama com relação à China será
pautado pela busca pela cooperação ou pelo balanceamento.
Para o curto e médio prazo, o cenário intermediário parece ser o
mais provável. Isso porque, por um lado, a China tem buscado evitar uma
escalada nas tensões regionais - como pode ser observado na sua atuação
diante da crise coreana — e, por outro, não parece haver um novo
45
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
impulso integracionista que revolucione as relações na região. Essa
afirmação, contudo, não exclui a possibilidade de concretização dos
outros dois cenários no médio e longo prazo.
A China pode ser considerada hoje uma grande potência, pelo
tamanho de sua população, economia e poderio militar. Se o país
conseguir manter seu crescimento econômico elevado e continuar
investindo no setor de tecnologia, tende a manter essa posição. Nesse
sentido, importa o monopólio de terras raras que o país detém. Porém,
para manter o nível de crescimento, serão necessárias mudanças no
modelo econômico, que trarão modificações como o incentivo ao
consumo interno. Para isso faz-se necessário observar como o governo de
Xi Jinping irá se posicionar no cenário regional e global.
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46
Política externa e de segurança da República Popular da China
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47
Capítulo 3
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA
RÚSSIA
Ana Paula de Mattos Calich
Jéssica da Silva Höring
Klei Medeiros
Leonardo Albarello Weber
Wagner Augusto Silveira
Willian Moraes Roberto
Introdução
O presente trabalho visa a analisar a Política Externa de Segurança
(PES) da Rússia. Parte-se da hipótese de que a Rússia debate-se entre
duas tendências, consideradas tipos puros na denominação de Max
Weber: Europa e Ásia.
No que tange ao tipo puro Europa, a Rússia comporta-se como um
Estado-nação, mais um dentre o cenário europeu; enquanto no tipo puro
Ásia, Moscou constrói-se como um Estado tributário frente aos outros
países, com uma maior capacidade de manobra. Pela Europa, há uma
interdependência complexa, com a Rússia exportando bens primários e
importando bens de capital, enquanto a Ásia é tratada como esfera de
influência, com maior exploração pela Rússia, mas também para onde
pode exportar bens de maior valor agregado. Aplica-se, na Europa, a
teoria da dependência associada, onde seria necessário capital externo
europeu para o desenvolvimento do país, devido à falta de uma burguesia
nacional própria que lidere esse processo. Na Ásia, em contrário, tenta-se
uma integração econômica para fortalecimento das economias nacionais,
principalmente através da formação de cadeias produtivas entre tais
países. Por fim, nota-se que a Europa é sempre o foco de atração primária
para a Rússia, enquanto a Ásia serve de espaço para diversificação de
parceiros.
Para traçar as tendências e indicadores desses dois tipos puros pelos
quais a Rússia manobra sua PES, se fará uma análise estrutural da
48
Política externa e de segurança da Rússia
formação russa, explorando sua história e suas instituições políticas, bem
como sua economia, infraestrutura, além das questões de segurança e
defesa e de sua posição na atual transição tecnológica. Após, se observará
a situação russa atual, através de um marco por nós definido, construindo
então cenários conclusivos como possíveis tendências que apontem para
qual direção caminha a Rússia.
A Rússia ocupa um lugar de destaque no Sistema Internacional (SI)
atual por diversas de suas características. É o país com o segundo maior
arsenal termonuclear do mundo e o segundo maior comando do espaço,
além de ser o maior produtor mundial de hidrocarbonetos. É o maior
produtor e possui a maior reserva de gás natural do mundo, além de ser o
segundo maior produtor de petróleo do globo, atrás apenas da Arábia
Saudita. Com um PIB de 2,509 trilhões de dólares, é a sétima maior
economia do mundo, com um PIB per capita de 17.700 mil dólares —
ocupando a 71ª posição no ranking mundial. Da composição do PIB, 58%
provêm do setor de serviços, 37,6% do setor industrial, e apenas 4,4% do
setor agrário. É o país com a maior extensão territorial, possuindo
17.098.252 km² de território. Entretanto, apesar de ser populoso, com
142.517.670 milhões de habitantes — a 9ª maior população do mundo —,
é pouco povoado — apenas 8,3 hab/km², o 217º país nesse ranking global
—, havendo grandes vazios demográficos pelo país (EUA, 2013a).
1. ESTRUTURA
1.1. História e Instituições Políticas
Algumas características são recorrentes na história russa. Dentre elas
está: (i) a centralização de poder, que devido à sua geografia e ao seu
território imenso, mostrou-se imperativa em diversos momentos; (ii) a
ideia de cerco, atrelada à ideia de que seu território está cercado por
diversos polos de poder, correndo risco de invasão constante; e (iii) a
busca por autonomia e por consolidar-se como uma grande potência.
O território russo fez parte do Império Mongol ao longo do século
XIII. A expansão deste império, com o intuito de proteger a Antiga Rota
da Seda, ocorreu até o século XIV, quando se fragmenta em quatro
grandes canatos. É interessante notar que cada um desses quatro canatos
pode ser associado aos blocos de poder atuais na região: Rússia, China,
49
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
Ásia Central e Oriente Médio.
No período imperial russo, destacam-se dois czares. O primeiro
deles foi Pedro, o Grande, no século XVIII, que ficou conhecido pela
modernização do Estado russo, baseada no modelo europeu. Ele foi o
responsável pela criação de um exército nacional — não formado por
mercenários; construiu, assim, a ideia de inclusão do indivíduo como
parte do Estado. Pedro também deslocou a capital para São Petersburgo,
lugar de projeção para a Europa, além de ter conquistado o território
adjacente ao Mar Báltico da Suécia, outra potência da época. Com a
conquista, além de projeção na Europa, a Rússia eleva-se ao status de
grande potência. O segundo líder relevante foi Catarina, a Grande, que
conquistou a região da Criméia, obtendo acesso ao Mar Negro. Não
dominou, contudo, os estreitos de Bósforo e Dardanelos, que dariam
passagem ao Mar Mediterrâneo. Os dois czares, então, se enquadram no
viés europeísta da dualidade, e destacam-se pela conquista de territórios
estratégicos à Rússia até hoje.
Em 1917, logo após a Revolução Socialista, Lênin implanta a
Política das Nacionalidades. Esta previa que os povos deveriam escolher
entre a independência completa do Estado russo e a consequente
separação do resto da Rússia, ou se tornar parte de um Estado socialista
unitário que garantiria todos os direitos civis e culturais ao trabalhador
(SUNY, 1998), tendo em vista que uma das principais bandeiras do
socialismo russo era o fim do Estado absolutista do czarismo. Lênin
acreditava que o separatismo seria reduzido pela tolerância russa, o que
não ocorreu de fato, havendo, logo em seguida, as independências da
Polônia, Finlândia e Ucrânia. Fez-se necessário então, tomar as rédeas
novamente e passar a uma recentralização do poder visando à
manutenção da unidade do Estado. Assim, essa política pode ser
considerada paradoxal, uma vez que o objetivo do governo era acabar
com os moldes czaristas de administração, mas é constatada a
necessidade da Rússia de centralização estatal para manter seu território
integrado.
Importa falar na história russa o ano de 1936, quando da assinatura
da Convenção Internacional de Montreux. Essa convenção assegurou a
soberania turca sobre os estratégicos estreitos de Bósforo e Dardanelos1,
1
A importância estratégica dos estreitos à época era inegável. Os britânicos e franceses,
por exemplo, não desejavam navios soviéticos passando por ali porque poderiam cortar
50
Política externa e de segurança da Rússia
valorizados pelos russos porque garantem a passagem do Mar Negro ao
Mar Egeu e, consequentemente, ao Mediterrâneo. Após a II Guerra
Mundial, Stalin começou a pressionar os Aliados para ter acesso aos
estreitos e pediu a revisão da Convenção em 1947, sob a alegação de que
havia exercido papel fundamental na luta contra o Eixo, sobretudo na
frente oriental. Entretanto, Truman nega a demanda soviética e trás a
Turquia para o lado ocidental, inclusive inserindo-a na OTAN em 1952.
Assim sendo, é possível associar o início da Guerra Fria com a disputa
pelos estreitos no Mediterrâneo2.
Durante o processo de desmantelamento da União Soviética (URSS),
Iéltsin colaborou para o seu fim ao exigir a independência unilateral da
Rússia desta. Nota-se tal ação como mais uma recorrência do tipo puro
Europa em virtude da vontade de Iéltsin de tornar a Rússia um Estadonação aos moldes dos europeus. Em seguida, tal presidente promove
reformas liberalizantes, privatizando grandes estatais e cedendo terras aos
oligarcas locais, que ganham grande poder. Em consonância com tal
processo, a Nova Constituição de 1993 garantiu um maior poder às
regiões3. Em termos de política externa, Iéltsin adotou uma postura de
bandwagoning automático com os EUA na esperança de que receberia
uma retribuição por isso. Todos esses fatores somados geraram um
Estado fraco e inoperante, além de uma enorme concentração de renda,
gerando uma crise política e econômica interna que atinge o ápice em
1998.
Dentro dessa conjuntura de crise interna e mudança, começaram a
surgir diversos partidos que se opunham às políticas da Era Iéltsin.
Dentre eles, destacam-se dois partidos: o Pátria Toda a Rússia e o
Unidade,4 que se aglutinaram formando o Rússia Unida em 2001, o qual
2
3
4
rotas para Egito, Índia e Extremo Oriente.
Vale ressaltar que atualmente, o Mar Negro perdeu a importância relativa para o Mar
Báltico, e isso explica, em parte, a recente aproximação entre Turquia e Rússia. A
própria construção do gasoduto South Stream, que passa pelo Mar Negro em águas
territoriais turcas, não tem recebido tanta oposição por parte de Istambul.
Uma das consequências dessa medida constitucional foi que os entes federados russos
criavam leis próprias, que muitas vezes eram concorrentes às leis nacionais (estima-se
que, à época, 1/3 das leis das regiões eram contraditórias com as leis centrais) (COLIN,
2007).
O Partido Unidade foi criado em 1999 pelo próprio Iéltsin para lhe servir de sustentação
no Parlamento. Com o tempo e com os fracassos de Iéltsin, tornou-se também oposição,
fundindo-se com o Pátria Toda Rússia para formar o Rússia Unida em 2001.
51
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
apoiou a candidatura independente de Vladimir Putin à presidência — e
de todos os presidentes eleitos desde então -, sendo maioria no
Parlamento desde 2007. Caracteriza-se como um partido sem uma
plataforma ideológica própria, pois agrupa diversas tendências políticas
— atualmente representadas pelas lideranças de Putin, de um lado, e
Medvedev, de outro —, como se fosse um sistema partidário dentro de
um só partido5.
Em termos de política interna, Putin enfraquece a maioria das
oligarquias locais e promove a recentralização do poder em Moscou.
Exemplo disso foi seu decreto presidencial determinando que os
governadores fossem nomeados pelo presidente e confirmados pelos
parlamentos regionais. Na prática, esse decreto apontava a prevalência de
sua indicação, visto que seu partido, o Rússia Unida, era maioria também
nesses parlamentos6. No âmbito da política externa, o presidente retoma a
ideia de Rússia como Grande Potência. Dentro desse contexto, a busca
pela primazia nuclear por parte de George W. Bush acabou aproximando
Rússia e China, que juntas criaram a Organização de Cooperação de
Xangai (OCX) em 2001, demonstrando o viés mais autônomo da nova
política externa russa7.
Medvedev, seu sucessor, retomou algumas reformas liberais
similares às de Iéltsin e agia de uma forma “esquizofrênica”: ao mesmo
tempo em que buscava se aproximar da OTAN, em uma política
europeísta, atacava a Geórgia em 2008, a contragosto dos EUA e da
China. O conflito no Cáucaso demonstrou que a Rússia possui a última
palavra em termos de infraestrutura energética no âmbito regional.
Através de mísseis balísticos de curto alcance baseados na Ossétia do Sul,
5
6
7
Em 2008, três clubes políticos foram oficialmente formados dentro do partido: o SocialConservador, o Liberal-Conservador e o Estado-Patriótico. Seu objetivo é funcionar
como uma válvula de segurança para conter a dissidência interna do partido (EILEEN
KUNKLER, 2012). Isso corrobora a ideia de que há sim dentro do Rússia Unida
correntes diferentes e muitas vezes opostas.
Após sua eleição em 2012, Putin determinou a retomada das eleições diretas para
Governadores. Entende-se que essa foi uma medida necessária à época, devido à
instabilidade herdada de Iéltsin, e que se torna desnecessária hoje.
Vale ressaltar a importância de Primakov, primeiro-ministro russo ao final da Era Iéltsin,
como antecessor à política externa de Putin. Ele procurava fortalecer a imagem da
Rússia no exterior e melhorar seu status no SI — exemplos: II Guerra da Chechênia; o
“não” ao reconhecimento de Kosovo, etc. —, caracterizando um retorno ao
bandwagoning seletivo.
52
Política externa e de segurança da Rússia
seria possível destruir gasodutos e oleodutos do Cáucaso em direção ao
Mar Negro, mantendo uma margem crível de negabilidade da Rússia. A
Guerra da Geórgia foi um choque na unipolaridade norte-americana. Os
EUA silenciaram durante o conflito e a Rússia agiu de forma
independente, dando o recado de que a expansão da OTAN para o Leste
deveria ter um limite.
Embora Putin e Medvedev pertençam ao mesmo partido, a postura
de Medvedev em seu governo não representou uma continuidade da
política externa de Putin. Medvedev tentou aproximar a Rússia do
Ocidente, embora sem sucesso. Seu fracasso na tarefa o debilitou no
plano doméstico, assim como o fez à corrente mais liberal do Rússia
Unida. Desse modo, possibilitou-se a emergência da figura de Putin como
opção à Presidência, representando a ala mais centrista.
Com essa análise, percebemos a presença da dualidade entre Europa
e Ásia durante toda a história russa. Em sua política externa recente, é
possível percebê-la, sobretudo, nas políticas dos governos de Iéltsin e
Medvedev em contraposição às de Putin. Nesse sentido, as instituições
russas acompanharam e refletiram esse processo. Constata-se ainda a
recorrência de características condicionantes da política externa de
segurança: a centralização de poder e o medo constante devido à ideia de
cerco, além do objetivo russo de manter-se como grande potência.
1.2. Economia
A economia russa, após uma profunda deterioração na Era Iéltsin,
recuperou-se no início do século XXI, acompanhando o boom dos preços
do petróleo e do gás. Esses produtos permanecem como a base de suas
exportações, sendo cerca de dois terços destas (RUSSIA, 2012a).
Atualmente, o PIB da Rússia figura como o sétimo maior do mundo, mas
continua oscilando de acordo com a variação nos preços dos
hidrocarbonetos. Seguindo esse perfil, os principais destinos das
exportações russas são países europeus, com destaque para a Holanda
(12,2%), a Itália (5,6%), a Alemanha (4,6%) e a Polônia (4,2%). A China
é a grande exceção, ocupando a 2ª posição, com 6,4% (EUA, 2013a).
Quanto às importações, a Rússia compra principalmente maquinário,
equipamentos e meios de transporte, totalizando 45% de sua pauta de
importações (RUSSIA, 2012b); os principais parceiros são Alemanha
53
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
(10%), Ucrânia (6,6%) e Itália (4,3%). Neste quesito, também a China
destaca-se, ultrapassando a Alemanha nos últimos anos e atualmente
respondendo por 15,5% das importações russas (EUA, 2013a).
Quanto ao Investimento Externo Direto (IED), segundo a ONU
(2013), a Rússia, que era receptora líquida de investimentos desde 2002,
passa a ter a partir de 2009 um saldo negativo de investimentos. Contudo,
em 2011, a Rússia era a 13ª maior receptora de IED do mundo, ficando
atrás apenas da China dentre os países emergentes (EUA, 2013b). Os
principais países que investem na Rússia são a Suíça, com 48,2% do IED
total em 2011, o Chipre, 10,6%, Holanda, 8,8%, Reino Unido, 6,9% e
Alemanha 5,4%. Percebe-se a presença de paraísos fiscais como os
principais investidores da Rússia, o que possivelmente representa a volta
de investimentos realizados pelos próprios russos de maior poder
financeiro, de forma ilegal (RUSSIA, 2012c). Moscou, por sua vez, tem
como principais destinos de seu IED o Chipre, recebendo 34,6% do seu
total em 2010, seguido pela Holanda, com 13,1% e Luxemburgo, com
5,7%. Como antes, percebe-se a existência de uma triangulação, ou seja,
a utilização de um intermediário para a realização do IED russo em
outros países. Como dito antes, é provável que parte desse dinheiro
investido pela Rússia volte ao país, no que é chamado de round tripping
(ALVES, 2011).
Cabe, por fim, fazer uma breve análise a partir dos investimentos
russos entre a Europa e Ásia. Nota-se que em 2010 a Rússia investia
cerca de 219 milhões de dólares na Europa, medido em estoque, e apenas
5 milhões de dólares na Ásia. A quantidade de investimento na região da
Comunidade de Estados Independentes (CEI) também é baixa, cerca de
15,9 milhões de dólares. Da mesma forma, a região que mais investiu na
Rússia no mesmo período foi a Europa, com um montante de 342,73
milhões de dólares. A Ásia investiu apenas 6 milhões de dólares na
Rússia e a CEI 2 milhões de dólares (KUZNETSOV, 2011). Diante disso,
é válido notar que tanto a Rússia investe bastante na Europa quanto a
Europa investe na Rússia, enquanto a Ásia tem participação baixa nesse
aspecto. Conforme demonstrado anteriormente com as exportações, os
grandes parceiros comerciais russos também estão na Europa, com
exceção da China.
Conclui-se, então, que Moscou possui uma economia fortemente
dependente da exportação de recursos energéticos e que há uma relação
54
Política externa e de segurança da Rússia
econômica de interdependência complexa entre a Europa e a Rússia, com
a primeira importando matérias-primas russas — energia — e exportando
a ela bens de capital. Entretanto, é possível que esse quadro altere-se.
Caso Moscou passasse a buscar uma reorientação nas relações
econômicas com a Ásia, principalmente através da União Eurasiática,
poderia exportar bens de maior valor agregado, rompendo com a
interdependência complexa europeia e fomentando a construção de uma
economia nacional completa e com setores de manufaturas em grande
escala. Neste terceiro mandato de Putin, deve-se ficar atento se os
investimentos russos passarão a fluir a essa região. Caso ocorra,
demonstrar-se-á que o setor privado acompanha os passos da política
externa do governo. Se não, seguirá sendo uma tentativa de Putin sem
repercussão prática. Deve-se atentar também para o papel ocupado pela
China na economia russa. A aproximação com esse país pode ser
fundamental na determinação do foco de política externa da Rússia. Em
recente visita do presidente chinês Xi Jinping ao país, firmaram-se
acordos em diversos setores da economia, principalmente no setor
energético e bancário (ARIS 2013, online). A principal petrolífera russa
passará a fornecer cerca de um milhão de barris por dia à China. Até 2018
a China deve se tornar o primeiro destino das exportações russas de
hidrocarbonetos.
1.3. Infraestrutura
A análise da infraestrutura energética e logística russas tem especial
importância para a compreensão de sua relação com a Europa e a Ásia, a
integração nacional do território e a manutenção da Rússia como uma das
maiores economias do mundo. A Europa é o principal destino de suas
exportações energéticas. A principal rota dos recursos até os países
receptores é através da Ucrânia, por onde passa 80% do gás da Rússia8.
Desse modo, a instabilidade da política ucraniana é crítica e motiva a
busca por rotas alternativas à União Europeia, destacando-se os
gasodutos Nord Stream e South Stream (PICCOLLI, 2012).
O projeto South Stream teve sua construção iniciada em dezembro
8
Além desse montante de gás, também se localiza na Ucrânia o oleoduto Druzhba que
transporta 30% do petróleo russo à Europa.
55
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
de 2012, e rivaliza com o projeto turco-alemão Nabucco, cujo objetivo é
trazer o gás azerbaijano à Europa, para amenizar a dependência
energética que a UE tem da Rússia. Entretanto, as fontes do Azerbaijão
têm capacidade duvidosa e põem em questão o custo-benefício do
projeto. O Turcomenistão é visado como o principal fornecedor
complementar ao Azerbaijão. Entretanto, para conectar o sistema ao
território turcomeno seria necessário atravessar o Mar Cáspio ou usar o
sistema existente entre Irã e Turcomenistão. A primeira ideia é
improvável, pois as águas do Mar Cáspio são disputadas pelos países que
ali têm fronteira, incluindo a Rússia; a segunda possibilidade requereria a
aproximação com o Irã (gerando desgaste com os Estados Unidos) ou a
defesa da mudança no governo iraniano. Importa destacar que,
recentemente, a empresa alemã RWE vendeu suas ações no projeto
Nabucco para uma empresa austríaca. Paralelamente, as obras do South
Stream já foram iniciadas. Em conjunto, os fatos podem significar o
alinhamento de ideias entre a Alemanha, antes o maior defensor do
Nabucco, e a Rússia, que sai beneficiada da disputa. Além disso, cabe
ressaltar que o gasoduto gêmeo Nord Stream vem a corroborar a hipótese
de cooperação russo-alemã, uma vez que o projeto conecta diretamente os
dois países.
Quanto aos projetos existentes na parte asiática do país, as
discussões em torno das versões competidoras da Nova Rota da Seda têm
central importância para o rumo da Ásia e da posição da Rússia no século
XXI. O país tem o plano de fazer a Rota passar integralmente por seu
território, tornando-se a artéria do continente — conectando a costa do
Pacífico à Europa — e deixando a China à margem do trajeto. Para tanto,
é necessário o desenvolvimento dos distritos da Sibéria e do Extremo
Oriente, que fortaleceriam a posição da Rússia na região Ásia-Pacífico,
inserindo-a no redimensionamento político-econômico pelo qual o globo
passa nesse início de século.
Apesar de seu potencial em hidrocarbonetos, minérios e água, o leste
do país é muito pobre, encontrando uma série de obstáculos ao seu
desenvolvimento, como a corrupção do funcionalismo público, que
desfavorece novos investimentos. Além disso, o país como um todo,
desde o fim da Era soviética, apresentou um declínio demográfico
acentuado causado pela deterioração das condições socioeconômicas da
população. Diante destes problemas e da insuficiência de capital, à
56
Política externa e de segurança da Rússia
primeira vista investimentos chineses seriam bem-vindos para a
industrialização e desenvolvimento da infraestrutura regional. No entanto,
o problema no leste é mais complexo, visto que a região já é
historicamente pouco povoada e contrasta-se com o gigante demográfico
chinês, ameaçador aos olhos russos devido à migração chinesa já
existente na fronteira.
Apesar de todos os desafios do leste, o maior deles é o posto pelo
derretimento do permafrost — solo permanentemente congelado —,
cujas previsões matemáticas apontam até 2050 em uma redução de 13% a
29% deste (SMITH, 2011). Uma vez que dois terços do território russo
estão sobre o permafrost, os riscos subjacentes às mudanças climáticas
dizem respeito ao comprometimento de toda a rede de infraestrutura do
território russo, e, como decorrência disso, o fim da conexão LesteOeste9. Analisar o derretimento do permafrost, por sua vez, não significa
afirmar que até o final do século XXI o território russo afundará. A
construção civil demonstra avanços importantes na área de construção
sobre este tipo de solo, mas com um custo muito elevado, como se vê na
ferrovia chinesa Qinghai-Tibet. Uma vez que a Rússia não detém capital
suficiente para financiar o desenvolvimento da Sibéria e enfrentar o
desafio do permafrost, será necessário o investimento estrangeiro, sendo
a escolha do parceiro fundamental para o futuro do país.
Se por um lado as mudanças climáticas trazem um desafio, há um
reverso através dos ganhos econômicos e regionais que a Rússia
possivelmente adquiriria com o degelo do Oceano Ártico. O potencial
deste em reservas de gás natural pode significar à Rússia o domínio de
três quartos de toda a produção mundial (YENIKEYEFF & KRYSIEK,
2007). Ainda mais relevante vem a ser a abertura da Rota do Mar do
Norte durante alguns meses do ano e a possibilidade de conexão
hidroviária entre o interior do país e o Oceano Ártico graças à abertura
dos rios siberianos à navegação (ANTRIM, 2010). Em especial, destacase a oportunidade única em toda a história russa de, através do Oceano
Ártico, alcançar os mares quentes, evento que significaria o aumento em
importância da Região do Báltico em relação ao Mar Negro.
A principal decorrência das mudanças climáticas e das
9
Isto é, com o derretimento, “o terreno cede, as estradas vergam e os alicerces racham.
Os oleodutos e trilhos de trem [tornam-se] torcidos e ondulados, quando deveriam ser
retos” (SMITH, 2011: 138).
57
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
comunicações pelo Ártico seria o surgimento do que Laurence Smith
(2011) denomina NORCs — Países do Anel Setentrional10—, grupo
composto por Noruega, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Islândia, Rússia,
Canadá e EUA. Atualmente esses países já respondem por um PIB de
US$ 20,7 trilhões, o que perfaz 29,5% do PIB mundial em números de
2012 (EUA, 2013a)11. Para efeitos de comparação deve ter-se presente
que a UE responde por 22,43% (US$ 15,7 trilhões) e os BRICS por 19%
(US$ 13,32 trilhões) do PIB mundial, segundo dados de 2011.
1.4. Segurança e Defesa
O documento que rege a atual política securitária da Federação
Russa é sua Doutrina Militar de 2010, adotada durante a presidência de
Dmitri Medvedev. Diferentemente dos documentos securitários
anteriores, este apresenta um caráter mais brando em relação aos Estados
Unidos, embora os perigos militares à Rússia ainda estejam ligados ao
bloco ocidental, com destaque às ameaças globalizantes da OTAN, em
clara referência à expansão do bloco para países como Geórgia e Ucrânia
(HAAS, 2011). No que diz respeito à Doutrina Nuclear, a política
securitária russa continua voltada para a manutenção de suas capacidades
estratégicas e de um poder de dissuasão nuclear elevado. O que mais se
destaca é o fim do princípio de não realização do primeiro ataque nuclear,
ou seja, a Rússia agora se permite utilizar as armas nucleares em resposta
a possíveis ataques de armas de destruição em massa ou mesmo a ataques
com armas convencionais (RÚSSIA, 2010)12.
Destaca-se a existência de um escudo antimíssil a serviço do bloco
ocidental, o qual põe em risco a capacidade de dissuasão nuclear russa e
sua própria existência enquanto Grande Potência. O escudo antimíssil, ou
10
Do original em inglês: Northern Rim Countries.
PIB dos NORCs: Noruega: US$ 278,1 bilhões; Suécia: US$ 395,8 bilhões; Finlândia:
US$ 198,1 bilhões; Dinamarca: US$ 208,5 bilhões; Islândia: US$ 12,95 bilhões; Rússia:
US$ 2.509 bilhões; Canadá: US$ 1.446 bilhões; EUA: US$ 15.660 bilhões (EUA,
2013a).
12
A possibilidade de uso de armas nucleares como ataque preventivo, algo rumorizado
antes do lançamento da Doutrina em 2010, é silenciada na própria, muito embora em
conjunto à aprovação da Doutrina Militar em 2010 também tenham sido aprovados os
“Principles of State Nuclear Deterrence Policy to 2020” que, em razão de serem
mantidos em segredo, podem conter a cláusula de ataque preventivo (HAAS, 2011).
11
58
Política externa e de segurança da Rússia
National Missile Defense (NMD), é uma continuidade da Strategic
Defense Initiative (SDI), proposta pela administração Reagan em 1983.
Seu desenvolvimento significou o rompimento do equilíbrio de
vulnerabilidades mantido até então pela doutrina MAD (do inglês,
Destruição Mútua Assegurada), e pelo Tratado ABM de 1972, com o
objetivo claro de, através da primazia nuclear, tornar a vitória na guerra
termonuclear possível (PICCOLLI, 2012). Apesar de a SDI ter sido
renomeada como NMD em 1999, é somente na administração Bush, após
os atentados de 11/09, que ela começa a ser de fato desenvolvida, sob a
justificativa de contenção do Eixo do Mal (Irã, Iraque e Coreia do Norte),
os quais supostamente estariam fortalecendo suas capacidades
missilísticas a favor do terrorismo internacional. Ainda em 2001, o
governo iniciou o desenvolvimento do projeto para a Europa, que seria
baseado na instalação de 10 bases terrestres com mísseis interceptadores
na Polônia e um radar na República Tcheca, com o suposto objetivo de
conter os mísseis iranianos, embora a capacidade de alcance destes seja
relativamente curta em relação à Europa (PICCOLLI, 2012).
Enquanto a política de Bush era direcionada à primazia nuclear, a
administração Obama modificou linhas centrais do projeto. Em 2009,
adotou o EPAA (European Phased Adpative Approach), o qual estabelece
que seria a Europa, e não mais os Estados Unidos, quem arcaria com os
custos do escudo. Além disso, durante a Cúpula de Lisboa em 2010, o
projeto passou a ser desenvolvido no âmbito da OTAN (BBC, 2010). O
projeto de Obama se baseia no emprego de sistemas Aegis embarcados
em cruzadores Ticonderoga e destróieres Arleigh Burke, e interceptadores
RIM-161 como principal vetor terrestre (BBC, 2012; PICCOLLI, 2012;
THE ECONOMIST, 2012). Até o final de 2012, a maior parte dos cascos
ainda não tinha o sistema RIM-161 capaz de interceptar os mísseis, e a
própria utilização de navios deixa entender que o sistema não será
operacional a toda hora. O escudo antimíssil “passou a andar em passo de
tartaruga” (PICCOLLI, 2012: 31) e, a princípio, as mudanças adotadas
deixam uma lacuna para que a Rússia desenvolva suas capacidades e
possa superar o bloqueio missilístico13.
13
A crise econômica torna duvidosa a capacidade e a intenção da Europa em financiar o
projeto, sem mencionar o fato que, para a Rússia, as negociações com a Europa são
muito mais fáceis e não carregam consigo todo o peso em se negociar com os Estados
Unidos (PICCOLLI, 2012).
59
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
Frente ao escudo antimíssil europeu, a Rússia respondeu de diversas
formas, algumas mais consistentes e sustentáveis e outras de certa
maneira tomadas por um sentimento de urgência. Primeiramente, houve
um aumento nos gastos de defesa, indo de cerca de pouco mais de 20
bilhões de dólares em 1999 para mais de 60 bilhões hoje em dia14.
Entretanto, a principal resposta russa seria a criação de uma nova classe
de submarinos, Borei, e de mísseis balísticos intercontinentais lançados
de submarinos, os Bulava (versão para submarinos da classe Topol-M).
Essa seria uma boa e sustentável estratégia à Rússia, visto que com tais
mísseis Moscou poderia manter sua capacidade de segundo ataque
através de submarinos lançadores de mísseis das próprias águas russas.
Outras medidas tomadas, envoltas em um sentimento de urgência e com
certa precariedade de cálculo, envolvem a criação de mísseis balísticos
intercontinentais de combustível líquido — uma tecnologia instável, cara
e de difícil manuseio —, que viria a substituir os mísseis SS-18 (Satan).
Estes, no longo prazo, poderiam pesar no orçamento militar russo, visto
que seriam de valor mais elevado que os mísseis Bulava (PICCOLLI,
2012).
Aqui vale destacar que as forças estratégicas russas estão
concentradas em mísseis balísticos intercontinentais terrestres (ICBMs),
estando quase metade das ogivas estratégicas totais — 1087 — neles
localizados. Cerca de 70% dessas forças terrestres são mais antigas,
sendo grande parte constituída pelos SS-18 — os quais juntos somam
metade das ogivas estratégicas localizadas em ICBMs, visto que cada um
carrega 10 ogivas. Os 28% restantes das forças estratégicas terrestres já
foram modernizados, substituídos pelos mísseis Topol-M (uma ogiva), e
Yars (seis ogivas). Em submarinos, a Rússia possui 528 ogivas
estratégicas, dentro de 6 submarinos Delta IV e 3 submarinos Delta III, os
quais são antigos e estão sendo substituídos pelos Borei — cuja 3ª
unidade está entrando em uso. São os Borei que receberiam os ICBMs
marinhos — SSBMs —, capazes de perpassar o escudo de forma mais
barata que possíveis novos ICBMs terrestres de combustível líquido. Por
fim, cerca de 820 ogivas estratégicas estão em bombardeiros, 59 Tu-95 e
13 Tu-160 (KRISTENSEN & NORRIS, 2012). Porém, esses teriam suas
14
Nota-se que em 2011 a Rússia era o 5º país em gastos militares em números absolutos, e
em 2012, com um aumento no orçamento, alcançou a 3ª posição no ranking mundial.
60
Política externa e de segurança da Rússia
capacidades anuladas pelo escudo antimíssil15.
Sob a mesma visão de modernizar suas capacidades estratégicas e de
garantir o controle do espaço, a Rússia construiu seu sistema de satélites
de cobertura mundial, o GLONASS, que é composto de 24 satélites e
operante desde 2011. O GLONASS possui como principal função militar
a orientação e guiagem das armas estratégicas. Em 2011, com a criação
das Forças de Defesa Aeroespaciais, colocaram-se sob o mesmo ramo das
Forças Armadas o controle do espaço e as forças estratégicas russas,
demonstrando a simbiose necessária entre essas duas áreas para a defesa
da Rússia.
No que diz respeito às capacidades convencionais, desde 2008 são
empreendidas reformas militares com intuito de modernizar as Forças
Armadas russas. Essas reformas deram-se pela redução do tamanho do
exército, visto que as unidades foram todas substituídas por brigadas
sempre prontas para o combate. As capacidades terrestres também
decaíram, principalmente os tanques16. Quanto às capacidades navais
russas, destaca-se a presença de um navio aeródromo (NAe 063), o
Almirante Kuznetsov, já de idade avançada. No que tange às capacidades
aéreas, a Rússia possui o segundo maior número de caças de quartageração, como o Su-35, bem como o segundo maior número de
helicópteros de combate, atrás apenas dos EUA em ambas as categorias.
Destaca-se o processo de desenvolvimento dos caças russos de quinta
geração: o Sukhoi T-50 PAK FA, munido de tecnologia stealth (IISS,
2012).
Apesar de Moscou somar esforços para modernizar suas forças
convencionais em direção à guerra moderna, parece bastante claro que
apresenta uma ambiguidade: busca manter e modernizar,
15
Nota-se a importância das armas estratégicas para a Rússia tanto por uma questão de
sobrevivência do Estado frente à ameaça do escudo europeu quanto para a manutenção
do status de Grande Potência, visto que são nessas capacidades que Moscou se baseia,
agora que suas capacidades convencionais estão enfraquecidas frente a outros países. A
mudança na doutrina militar russa que derrubou o princípio de evitar o primeiro ataque
nuclear demonstra o mesmo.
16
Na época da URSS os tanques de combate passavam de 50.000 unidades e agora
contabilizam pouco mais de 3.000. Isso está em consonância com a vontade de reforma
para guerra moderna, visto que esse grande número de capacidades convencionais era
algo do tempo soviético, quando a URSS estava preparada para travar longas guerras
em grandes extensões territoriais, exposta à intensa e contínua fricção.
61
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
simultaneamente, suas capacidades estratégicas. Esse aspecto implica em
uma divisão do orçamento de defesa, fazendo com que mais recursos
venham a ser gastos em todos os planos de defesa. Isto impede a
possibilidade de investimentos em outras áreas necessárias ao
crescimento da Rússia, além de impossibilitar a conclusão de todos os
projetos ligados à segurança.
1.5. Rússia na transição tecnológica
A análise de alguns indicadores permite concluir que em termos de
transição tecnológica, a Rússia encontra-se atrasada em relação a outras
grandes potências, especialmente à China e aos EUA. Segundo o Battelle
Memorial Institute (2010), a Rússia é o 10º país com maiores gastos reais
absolutos em Pesquisa & Desenvolvimento. Em número de pedidos de
patente, o país fica apenas na 7ª posição mundial (WIPO, 2010).
Em termos de recursos minerais estratégicos, os russos possuem
destaque. Seu território abriga a segunda maior reserva de Terras Raras
do mundo, as quais, entretanto, são pouco exploradas e comercializadas
atualmente. Mesmo assim, possuem grande potencial de serem utilizadas
nas próximas décadas. Quanto aos metais importantes no processo de
transição tecnológica destaca-se, primeiramente, o silício, usado na
fabricação de semicondutores e metalurgia e com produção russa atual de
610 mil toneladas. Já o alumínio é de ainda maior importância, não só por
ser essencial para as indústrias aeronáutica e de defesa, mas
especialmente por ser a Rússia detentora da Rusal, maior empresa do
mundo na produção desse metal, com 4,7 milhões de toneladas
produzidas ao ano. Esta é também responsável por 9% da produção
mundial e já busca matéria-prima nos cinco continentes para suprir sua
demanda.
Quanto aos processadores, a Rússia fabrica o Elbrus, que hoje
funciona na velocidade de 300 MHz, enquanto o último processador da
IBM funciona à 5,5 GHz, o que mostra a defasagem russa em relação ao
desenvolvimento de alta tecnologia. Este fato nos leva a questionar se a
Rússia estaria seguindo os mesmo passos da URSS, uma vez que o
colapso desta pode ser atribuído ao não-desenvolvimento de tecnologia
de ponta. A Rússia também possuí um supercomputador, o Lomonosov,
62
Política externa e de segurança da Rússia
que, todavia, é montado nos EUA17. Ainda como iniciativa de Medvedev
está a construção do Centro de Inovação de Skolkovo, uma espécie de
“Vale do Silício russo”, que aglutinará investimentos de grandes
empresas europeias (como a EADS, a Siemens e a SAP AG).
Recentemente ressalta-se a iniciativa de Putin de criar a Fundação Russa
para Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa da Indústria (apelidada de
“DARPA russa”, em referência à organização similar de pesquisa militar
dos EUA). Tal iniciativa representa uma tentativa de envolver os
parceiros europeus de Skolkovo para cooperação militar e criação de um
clima de maior confiança com a Europa, além de ser fruto da percepção
de que a Rússia carece de um modelo de negócios e serviços no setor de
defesa, o qual é atualmente muito centralizado e pouco competitivo
(PICCOLLI, 2012).
Assim, através de uma análise do momento em que a Rússia
encontra-se em termos de transição tecnológica, nota-se que o atraso
russo é inegável e que isso pode prejudicar seu futuro de inserção no
cenário internacional. Porém, podemos perceber Skolkovo e a “DARPA
russa” como tentativas para superar essa defasagem tecnológica, notando
também que seu potencial de terras raras é ainda subutilizado.
2. SITUAÇÃO
O delimitador de situação é o novo governo de Vladimir Putin,
iniciado em 2012. Primeiramente, é necessário compreender por que não
ocorreu um segundo mandato de Dmitri Medvedev, fato que se explica
através da Cúpula de Lisboa (2010) entre OTAN e Rússia. Nela,
Medvedev propôs que fosse desenvolvido um sistema antimíssil conjunto
(EuroDAM), o que surpreendeu a OTAN. Apesar de promessas de
cooperação durante a Cúpula, meses depois a OTAN negou
categoricamente a possibilidade desta ideia ser realizada. Assim, o projeto
de política externa de Medvedev de aproximação com a Europa
fracassou, juntamente com sua popularidade no país. Essa perda de
popularidade culminou com a retirada de sua candidatura à reeleição.
17
Destaca-se que, em 2009, Medvedev lançou um programa para construir um
supercomputador inteiramente russo, com previsão de início da montagem em 2013,
mesmo não havendo ainda notícias da viabilidade do projeto.
63
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
Com isso, Putin concorreu novamente, retornando à presidência em 2012.
Também se faz necessário abordar os recentes desenvolvimentos no
Oriente Médio, particularmente na Síria e no Irã, após o início da
Primavera Árabe. A Rússia deu relativo apoio à Síria durante certo tempo,
pelo fato da base naval russa de Tartus estar localizada em seu território,
sendo esta a única base que a Rússia ainda mantém fora da região da exURSS. Soma-se a isso a possibilidade de uma eventual queda do atual
regime na Síria, com um consequente avanço dos interesses anglofranceses na região: um governo favorável à Inglaterra e à França poderia
fornecer petróleo à Europa diretamente pelo Mediterrâneo, prejudicando
as exportações russas de energia. Entretanto, no horizonte predizível de
eventos, Moscou não protegeria a Síria, uma vez que não é de seu
interesse nacional entrar em guerra por este país.
3. CENÁRIOS
Convencionou-se que o melhor cenário para Rússia seria o da
GeRússia, que consistiria de uma aproximação da Rússia com a
Alemanha, possibilitando um sistema de multipolaridade mais
equilibrada. Com um alto grau de aproximação, este cenário possibilitaria
a criação de um novo polo, equivalente a uma nova superpotência. Com
um nível menor de interação, a parceria inter-regional serviria para
atender às dificuldades de curto e médio prazo dos dois países.
A parceria com a Alemanha teria o papel de suprir a Rússia de
capital e tecnologia. Os investimentos alemães são cruciais no setor
energético, como é exemplificado pela participação alemã em 31% do
Nord Stream. Esses investimentos importam também para a transição
tecnológica e para a manutenção da infraestrutura de transportes. Este
último aspecto se torna particularmente relevante dados os problemas
decorrentes do degelo do permafrost. A parte alemã pode beneficiar-se da
interdependência complexa com a Rússia, adquirindo também maior peso
nas decisões acerca da Europa Leste, Oriente Médio e Ásia Central. Além
disso, para a Alemanha importa a disseminação de serviços bancários e
de telecomunicações.
Os aspectos críticos relacionados à possibilidade de configuração do
GeRússia parecem estar relacionados às dificuldades nas relações
bilaterais. Alemanha e Rússia possuem discursos diferentes: o da
64
Política externa e de segurança da Rússia
Alemanha, universalista, baseado na defesa dos direitos humanos; e o da
Rússia, de tom defensivo reativo utilitário (PICCOLLI, 2012: 52), mais
próximo ao realismo.
Apesar de suas dificuldades, o GeRússia permanece válido: os
problemas alemães no âmbito da UE — Entente Frugale e crise
econômica — a impelem em direção a parcerias inter-regionais. No longo
prazo, o principal benefício do GeRússia para a Rússia é a possibilidade
de que a estabilidade na Europa Leste, Cáucaso e Oriente Médio permita
a realocação de suas forças militares, hoje voltadas para a porção
ocidental do território russo, para então dar maior atenção às
vulnerabilidades da região siberiana.
Mesmo em caso de configuração de tal cenário, de parceria interregional relativamente fluída, entende-se que ele dificilmente se
constituiria em uma união político-econômica. De qualquer modo,
mesmo uma aproximação limitada entre Rússia e Alemanha converge em
direção à multipolaridade no SI. Conforme George Friedman (2011: 156):
Mesmo que a relação [entre Alemanha e Rússia] possa ser
informal no início, ela irá solidificar-se em algo mais
substancial ao longo do tempo, simplesmente porque as partes
se encaixam bem demais para que ocorra de outro modo. Esta
seria uma redefinição histórica das relações EUA-Europa, uma
mudança fundamental não só na balança de poder regional,
mas também na global, com resultados que são altamente
imprevisíveis18.
Nesta modelagem, considerou-se que o pior cenário para a Rússia
seria o do predomínio dos NORCs e o estabelecimento de uma
unipolaridade. Este cenário representaria o fracasso de qualquer projeto
nacional russo. Os danos decorrentes do derretimento do permafrost
seriam alarmantes para a Rússia. A condição de unipolaridade se deveria
à conjugação da força centrípeta da economia dos NORCs enquanto
bloco, associada ao efeito multiplicador de uma hegemonia, na qual os
18
No original: “However informal the relationship might be at the beginning, it will
solidify into something more substantial over time, because the parts simply fit together
too neatly for it to be otherwise. This would be a historic redefinition of U.S.-European
relations, a fundamental shift not only in the regional but also in the global balance of
power, with outcomes that are highly unpredictable”.
65
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
EUA não possuiriam competidores. A parceria com a Alemanha não se
realizaria ou, frente às novas dificuldades, tornar-se-ia insuficiente. A
região siberiana, isolada do resto do país pelo colapso da infraestrutura de
transportes, seria o principal problema de segurança. O bloqueio da
conexão desta região com o resto da Rússia, somado à pressão
demográfica chinesa, levariam o país a crer que está diante do risco de
perder parte significativa de seu território19. Neste contexto, a OCX tornase nula como mecanismo de segurança, e os EUA, através dos NORCs,
convertem-se na única alternativa de segurança, com a Rússia sendo
incorporada na hegemonia norte-americana. Assim, o país passaria a atuar
como um gendarme do capital estadunidense em sua periferia, enquanto
abasteceria os EUA com energia.
Por fim, convencionou-se como cenário intermediário a hipótese da
manutenção da indefinição sobre o tipo de equilíbrio dominante no SI —
se unipolar, bipolar ou multipolar. Neste caso, a OCX se converteria em
uma aliança militar formal, sobretudo em virtude de dois fatores.
Primeiro, fazer frente à primazia nuclear estadunidense — reforçado pelo
fracasso russo no desenvolvimento do míssil Bulava, da qual depende a
capacidade de segundo ataque do país — e ao escudo antimíssil na
Europa Leste e no Japão. Depois, devido à percepção de ameaça iminente
aos interesses da Rússia na Síria20, Geórgia e Irã, por parte de paísesmembros da OTAN.
Conclusão
A Rússia é a mais longeva das Grandes Potências. Desde sua
ascensão em 1721, após a Grande Guerra do Norte, a Rússia atravessou
19
20
A Sibéria, enquanto região, responde por 58% do território russo.
O que poderia vir a acontecer, caso o regime sírio caísse, seria a Rússia responder em
outro lugar mais tarde, conforme já fez em outras ocasiões, como a Guerra da Geórgia
após ingerências na região dos Bálcãs — Bósnia e Kosovo. O local de possível resposta
poderia ser o Irã, que flerta para entrar tanto na OCX quanto na OTSC. É pouco
provável que a OCX faça do Irã um membro, mas a Rússia pode considerar a entrada
dele em sua aliança militar. Caso isso ocorresse e se o Irã viesse a fazer parte dessa
aliança, a Rússia poderia legitimamente desdobrar tropas no território iraniano, o que
lhe daria acesso ao Mar Índico e ao Golfo Pérsico.
66
Política externa e de segurança da Rússia
quatro “guerras mundiais” — além da Guerra Fria — três mudanças de
regime político e diversas alterações na polaridade do Sistema
Internacional, mantendo intacta sua condição. Além disso, suas
capacidades falam por si mesmo: detém a segunda posição mundial em
arsenal termonuclear, Força Terrestre, Força Aérea, e Comando do
Espaço (apenas depois dos EUA); além de ser o maior produtor mundial
de hidrocarbonetos e deter a maior reserva de gás natural e de petróleo do
mundo.
Por certo, a Rússia enfrenta graves problemas resultantes da
transição da era soviética e da mudança climática. Entretanto, cabe
lembrar que o país já atravessou vicissitudes antes: foi arrasado pelas
forças de Napoleão (1812) e Adolf Hitler (1941-45) e dilacerado pela
guerra civil (1918-21), conseguindo recuperar-se vigorosamente.
Contudo, pareceu recuperar-se mais rápido depois da guerra civil e da
invasão alemã do que da transição da era soviética. Em 1925, a Rússia já
era a maior Força Aérea e o maior Exército da Europa, no pós Segunda
Guerra ostentou por 25 anos os maiores índices de crescimento mundiais.
Esse não parece ser o caso atual.
Permanece incerta a inserção russa na transição tecnológica. Em
matéria de defesa, seus principais projetos ainda datam da era soviética,
ainda que tenha que se reconhecer que foram efetivados graças a sua
inserção na economia mundial. Os projetistas russos de processadores são
disputados avidamente pelo Vale do Silício. A Rússia está comprometida
no esforço de produzir supercomputadores — ainda que com êxito
limitado —, e seus softwares tem reconhecimento mundial. Todavia, a
Rússia tem demonstrado extrema dificuldade em empreender a produção
de superprocessadores. Isto tem comprometido a prototipação virtual,
com impacto considerável sobre a capacidade de produção civil, a gestão
do comando do espaço (três satélites GLONASS perdidos) e a guiagem
de armas (parece ser o caso do Bulava). Mesmo seu último litígio com os
EUA, envolvendo a elaboração de “listas negras” de personalidades e
empresas, tem como plano de fundo a produção de supercomputadores e,
portanto, a inserção favorável da Rússia na transição tecnológica. Caso se
21
21
Para efeitos deste trabalho, consideram-se como guerra mundial aquelas em que se
criam ou se desconstituem polos do Sistema Internacional. O texto refere-se: a Guerra
dos Sete Anos (1756-1763); as Guerras da Revolução Francesa (1792-1815); Primeira
Guerra Mundial (1914-1918); e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
67
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
considere o que o computador e a rede desempenham para a economia
hoje, na era digital (graças ao papel que desempenham os serviços
bancários e de telecomunicações), o mesmo papel que no fordismo
tiveram a siderurgia do aço e refino do petróleo, as dificuldades da Rússia
em matéria de tecnologia poderiam explicar, ao menos parcialmente, a
lentidão de sua recuperação. Naturalmente, o maior óbice com o qual a
Rússia ainda se depara é a guerra permanente e o terrorismo islâmico, que
podem estar associados à queda da taxa de natalidade: o país ainda não
teve um baby boom, que normalmente se sucede às grandes guerras ou
crises.
A despeito da vitória de Barack Obama nos EUA, as pressões
sistêmicas — dentre as quais se destaca o escudo antimísseis (DAM) —
tem impelido a Rússia em direção à China. A primeira viagem ao exterior
do recém-empossado presidente chinês, Xi Jinping, foi para a Rússia.
Nesta visita, os dois países retomaram a cooperação militar encerrada
desde 2008 (Guerra da Geórgia). Espera-se que em 2018, a China se
torne o principal destino das exportações de hidrocarbonetos da Rússia22.
Em qualquer caso, como destaca Waltz, as alianças não constituem, por si
mesmas, polaridades. A aproximação entre Rússia e China não parece
ameaçar o processo de triangulação com os EUA. Pelo contrário, parece
refletir a reação desses países ao risco da primazia nuclear. Nem por isso,
entretanto, prenuncia-se a confrontação: o empenho dos três países na
recente crise coreana assim o atesta.
Fica em aberto saber qual será o comportamento da Rússia frente às
ações de países ocidentais feitas à revelia dos EUA, ou mediante seu
consentimento relutante. Este parece ser o caso da Líbia e, agora, da
Síria. Importa destacar que a Rússia tem fortalecido suas posições
militares no Mar Negro e no Mediterrâneo Leste — dispondo-se,
inclusive, a reconstruir a frota do Mediterrâneo (desfeita com o colapso
da URSS). Além disto, estudos futuros deverão monitorar a inserção da
Rússia na transição tecnológica — deve-se acompanhar o processo de
desenvolvimento de supercomputadores e superprocessadores —, além
do status específico dos programas missilísticos e aeroespaciais russos.
22
Em recentes conversas, Rússia e China demonstraram interesse em ampliar o fluxo de
petróleo através do oleoduto Sibéria Oriental-Oceano Pacífico, próximo da fronteira
chinesa (RIA NOVOSTI 2013, online). Isso é um possível indicador que corrobora a
configuração do cenário intermediário.
68
Política externa e de segurança da Rússia
Aqui, o destaque é a tecnologia hipersônica, que pode confrontar o
mundo com um impacto tão grande quanto aquele suscitado pelo
computador e a rede.
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71
Capítulo 4
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA
ÍNDIA
Angela Gallina Brandalise
Helena Marcon Terres
Júlia Simões Tocchetto
Livi Gerbase
Luiza Costa Lima Corrêa
Matheus Machado Hoscheidt
Pedro Felipe da Silva Alt
Introdução
O presente trabalho pretende analisar os principais aspectos da
Política Externa de Segurança (PES) da Índia, respondendo ao problema
de pesquisa — como se estrutura a PES da Índia — a partir da interrelação entre as variáveis História, Economia, Infraestrutura, Instituições
Políticas, Segurança e Defesa e Transição Tecnológica. Com isso em
mente, utilizamos o recurso da tipificação de uma dualidade como
ferramenta classificatória e compreensiva. Como hipóteses preliminares,
apontamos que 1) os polos da dualidade indiana são o Universalismo
Comunitário e o Chauvinismo Territorial. Enquanto o primeiro tipo ideal
está baseado na liderança pelo exemplo, no sincretismo e na atuação
como potência amigável; o Chauvinismo Territorial está baseado na
idealização de uma Civilização Hindu folclórica, discurso que possibilita
a atuação como potência territorial expansionista. E, também, 2) cremos
que, nos últimos anos há, na Índia, uma tendência de atuação de acordo
com os atributos do Universalismo Comunitário. Neste estudo, portanto,
pretendemos esboçar: 1) a dualidade que rege a ação indiana na sua PES;
2) possíveis variáveis explicativas dos padrões de oscilação do
comportamento indiano no espectro da dualidade; e, por fim, 3) as
tendências atuais de aproximação com os polos da dualidade.
A dualidade entre o Universalismo Comunitário e o Chauvinismo
Territorial se reflete na formação da identidade indiana e a dicotomia está
72
Política externa e de segurança da Índia
presente na construção social do indivíduo indiano. Assim, não podemos
afirmar que existe uma divisão entre um grupo social chauvinista e outro
universalista. Pode-se entender, contudo, a partir da conjuntura, qual
posição predominantemente se manifesta. É possível, ainda, relacionar a
dualidade com as diferentes plataformas políticas dos principais partidos
indianos.
Os dados gerais apresentados abaixo evidenciam importantes
aspectos sobre o país e procuram contribuir para avaliação da Política
Externa de Segurança (PES) indiana no cenário atual. A Índia localiza-se
no sul da Ásia, é banhada pelo Oceano Índico e faz fronteira com seis
países: Paquistão, China, Nepal, Butão, Bangladesh e Myanmar. A
população total é de 1,2 bilhões de habitantes, a segunda maior do
mundo, sendo que apenas 30% desta vive na zona urbana. O território do
país é o 7º maior, com 3,3 bilhões de km². Seu exército é o 3º maior do
mundo, com um efetivo de 1,155 milhões. O PIB nominal indiano, de
USD 1,8 trilhão em 2011, é o 10º maior, estando seu valor per capita de
USD 1.514, em 139º lugar no ranking mundial. Os serviços
correspondem a mais de metade do PIB (56,4%), a indústria representa
26,4% e a agricultura, 17,2%. O índice Gini1 de desigualdade de renda é
de 36,8. Seu IDH é baixo, valorando 0,547. A principal e majoritária
religião na Índia é o Hinduísmo (80%); seguida pelo islamismo (13%) e
pelas minorias cristã e sikh.
A Índia é um país em processo de modernização, que busca manter o
crescimento econômico e diminuir seus custos sociais por meio do
avanço no desenvolvimento humano. A natureza e a rapidez das
transformações que ocorrem na Índia são os desafios de uma potência
emergente. Pode-se dizer, portanto, que a Índia concentra, em um espaço
limitado e em tempo relativamente curto, as questões essenciais para um
mundo no qual novos países despontam como polos mundiais e o centro
de poder está se deslocando. Observar a engenharia não-física interna do
país para gerenciar essa realidade, portanto, importa para o Sul
econômico e mesmo para os países desenvolvidos, visto que a maioria da
população mundial habita países da semiperiferia ou periferia. A Índia é,
por fim, esse “microcosmos” que replica as condições mundiais e testa as
soluções para as grandes querelas da humanidade (KAMDAR, 2008).
1
O índice varia de 0, quando não há desigualdade, a 100, quando a desigualdade de renda
é extrema.
73
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
A atuação regional da Índia, por sua vez, também possui implicações
mundiais, dada sua importância no Oceano Índico. Tal oceano, de acordo
com Kaplan (2011), será o grande centro das transformações do Século
XXI, devido à sua nuclearização, às suas sociedades voláteis e à sua
importância comercial e energética.
1. HISTÓRIA
A Índia, como civilização tributária baseada no vale do Indo, teve
seu apogeu sob domínio Mogul e seu auge com o Imperador Akbar que
proporcionara unificação e prosperidade a partir de uma política de
sincretismo. Com o ocaso do Império Mogul e a fragilização do governo
central, o subcontinente tornou-se permeável à Companhia das Índias
Orientais, companhia marítima de comércio britânica que colonizou a
região a partir da costa. O Raj britânico manteve-se sob regime de
colonização direta de 1858 a 1947. A preocupação do Império britânico
com o controle direto e essencialmente estatal da colônia indiana deu-se a
partir à Revolta dos Cipaios, que pode ser considerada a primeira guerra
de independência2.
Durante a Segunda Guerra Mundial, floresceram sentimento
nacionalista e movimentos anticoloniais, os quais evidenciaram
deslealdade à Inglaterra. Um indicador do descontentamento indiano com
a coroa britânica é a formação de um grupo de dissidentes liderados por
Bose, que se autodenominou “Exército Nacional Indiano”. Tal grupo
lutou ao lado dos japoneses contra os britânicos na Birmânia3, território
de extrema importância para os Estados Unidos, já que era a única rota de
acesso à China. Apesar da vitória Aliada na Segunda Guerra, a Inglaterra
2
3
Os Cipaios eram funcionários da coroa os quais se rebelaram contra a exploração
britânica. Pode-se identificar a atuação da classe dominante local em tal movimento,
uma vez que buscavam retomar maior controle político na região. Podemos, assim,
reconhecê-la como uma Primeira Guerra de Independência, e possível princípio de um
movimento nacionalista indiano.
E lutavam também contra os próprios indianos os quais serviam o exército organizado
pela metrópole para lutar ao lado aliado na Segunda Guerra. As batalhas de Impal e
Kohima representaram uma vitória aliada, com destaque para a atuação indiana. Tais
batalhas proporcionaram orgulho à colônia tanto em função do desempenho indiano que
lutava ao lado aliado quanto pelo “Exército Nacional Indiano”.
74
Política externa e de segurança da Índia
viu-se sem condições de manter seu governo na colônia eficaz. Dá-se
início às negociações relativas à independência, nas quais a Inglaterra
eleva a posição da Liga Muçulmana pelo apoio recebido na guerra. Isso
concedeu à Liga um status sem precedentes, o que possibilitou a
fragmentação do antigo Raj em dois Estados independentes. Nasce,
assim, com a Índia, seu principal rival — o Paquistão. Durante o processo
de independência, crescem sentimentos religiosos extremistas, que
permeiam as interações atuais dos dois países e dificultam a cooperação
regional.
As guerras indo-paquistanesas do Século XX mostram que guerras
convencionais não foram capazes de definir a correlação de forças na
região, principalmente acerca da questão da Caxemira4. Outro importante
condicionamento histórico para a concepção indiana de força foi a Guerra
Sino-indiana de 1962, a qual resultou no entendimento distorcido de que
a China precisa ser vencida para que a Índia se estabeleça como uma
Grande Potência5.
Um primeiro sinal da integração regional, essencial para o
fortalecimento da Índia, verifica-se no acordo Simla, de 1971, firmado
com o Paquistão, como um início de conversas entre agentes locais para
resolverem suas questões. Tais iniciativas preconizam a criação da
SAARC em 1985 (Associação Sul-Asiática para Cooperação Regional).
2. ECONOMIA
A economia da Índia tem como caráter distintivo seu elevado
crescimento, evidente na primeira década deste século, com média de
7,13% de 2000 a 2011 — ainda que já apresentasse taxas razoáveis desde
a década de 1980. A Índia é o segundo país que mais cresceu entre as dez
maiores economias do mundo — perdendo apenas para a China. Importa
salientar que o crescimento ocorreu, principalmente, pelo aumento da
4
5
A guerra irregular-complexa que incide sobre a região não pode ser combatida com a
força, uma vez que o motor de tal tipo de guerra é o ódio, o qual se mantém após o
conflito e ainda incita movimentos separatistas (Clausewitz, 2003, p.30).
Além disso, resultou na percepção de que a derrota se deu em função da impossibilidade
de mobilização da força aérea indiana, o que explica o padrão atual de gastos militares.
Cabe salientar a utilização atual da compra militar como diplomacia dos meios de
pagamento.
75
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
formação bruta de capital fixo e não por um grande superávit de
exportações, uma vez que a Índia tem tido déficit comercial desde a
década de 1990. Assim, seu crescimento é pouco abalado por crises e
recessões globais. Evidência disso é o alto crescimento verificado em
20096, 5,9% (IMF, 2013; SCHATZMANN, 2010). A taxa de investimento
interno também é destacada, tendo sido de 29,5% do PIB em 2011, a 19ª
economia que mais investe (CIA, 2013). O investimento é extremamente
importante para consolidar as taxas de crescimento indianas e criar uma
base concreta para sua indústria e produção.
A partir da análise dos principais parceiros comerciais da Índia,
importa citar as intensas relações comerciais com a China (com a qual
tem déficit comercial no valor de 20% do total de seu déficit de
mercadorias, pois é a principal fonte de suas importações) e com o
Oriente Médio, principalmente os Emirados Árabes Unidos, de onde
advém seu abastecimento de petróleo (EXIM INDIA, 2013).7 Não existe
nenhum acordo de livre-comércio entre eles; têm ocorrido, todavia,
negociações para criar o maior bloco comercial do mundo, o RCEP
(Regional Comprehensive Economic Partnership), com 16 membros,
entre eles os gigantes industriais China, Japão e Coreia do Sul, outros
países da ASEAN, a Austrália e a Nova Zelândia (THE ECONOMIC
TIMES, 2013). A participação das exportações, em relação ao total
exportado, para o Oriente Médio e Norte da África cresceu de 2000 a
2011 (nove pontos percentuais) e decresceu para a Europa e,
principalmente, para a América do Norte (de 22% a 11%), demonstrando
uma mudança nos padrões de amizade e inimizade (DEA, 2012).
A partir da década de 2000, o PIB nominal deu um salto, devido à
maior onda de liberalização interna (maior privatização de empresas
estatais) e externa (redução acentuada das taxas de importação). A
economia só reagiu bem à abertura (lenta e gradual), pois já havia
consolidado boa parte de sua produção durante o período protecionista e
de intervencionismo estatal que vigorou desde a independência. A saída e
entrada de IED aumentaram significativamente, principalmente depois de
2006 (SCHATZMANN, 2010). Os fluxos de IED têm como principais
6
7
Ano em que muitas economias tiveram baixíssimos crescimentos ou mesmo recessões.
As relações econômicas com a China são assimétricas. As importações oriundas do país
são de manufaturados, enquanto as exportações para este são de, principalmente,
algodão e minerais. (THE ECONOMIST, 2013).
76
Política externa e de segurança da Índia
origens países que fazem triangulação do investimento, seguidos pelo
Japão com 8% e o Reino Unido, a Alemanha e a França somando 11%8
(DIPP, 2012). Metade do investimento indiano no exterior é concentrada
na Europa, praticamente 1/3 na Ásia e aproximadamente 12% na África
(PRADHAN, 2011). Seus investimentos são principalmente em fusões e
aquisições de grandes empresas em países desenvolvidos (os principais
acordos foram de metalurgias, telecomunicações, automotivo, geração de
energia, entre outros) (IPEA, 2012).
Há que se destacar, além do panorama da economia, um fenômeno
sociológico inter-relacionado tanto com o processo de industrialização
inicial indiano, quanto com o seu sucesso. A construção das capacidades
industriais da Índia deveu-se, em certa medida, à subcontratação e à
transnacionalização de capitais de países desenvolvidos. Esse sistema
implicava que a coordenação da “distribuição” de setores e
direcionamento do produto das empresas indianas estava centralizado no
país de origem da empresa que subcontratava, ou seja, no país exportador
de capital. Cabia à elite industrial indiana, nesse sistema, viabilizar
internamente condições burocráticas e materiais para a instalação das
empresas. Decisões centrais de gerenciamento da empresa e de
distribuição do mercado internacional eram, contudo, tomadas pela
empresa estrangeira. Pela característica do sistema de expansão
transacional de redes produtivas, o transbordamento do know-how e a
dinamização da economia nos países subcontratados gerou ambiente
favorável para o florescimento de empresas independentes do capital e
gerenciamento estrangeiro. Tais empresas sustentam novas elites que se
articulam como um novo grupo de pressão político, o qual apresenta nova
agenda para a política doméstica e externa. A nova agenda pode deverá
ser absorvida pela plataforma de partidos já estabelecidos ou engendrará
o surgimento de novas frentes na disputa pelo poder.
O caso das parcerias com o Japão elucida o fenômeno. Tanto Índia
quanto China se beneficiavam da associação com empresas japonesas,
que se expandiram transnacionalmente distribuindo as suas múltiplas
8
Esses fluxos são importantes, pois a entrada de IED tem sido para a infraestrutura e
construção civil, mas também se direcionarem para a indústria manufatureira e serviços.
(DIPP, 2012).
77
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
camadas de produção9. Essas empresas, que antes participavam da mesma
rede de produção na Índia e na China, mas eram “geridas” no Japão,
passaram a agir autonomamente e, muitas vezes, buscar novos mercados
em regiões que se sobrepõem geograficamente. Esse parece ser um dos
fatores que contribui para o acirramento da disputa pela influência no
Sudeste Asiático.
3. INFRAESTRUTURA
O setor energético é, sem dúvida, o mais preocupante para o
desenvolvimento da infraestrutura e da economia indiana. O melhor
exemplo é a sequência de blecautes que dificultam o desenvolvimento de
uma base industrial sólida. A importância da energia hidráulica muitas
vezes condiciona o fornecimento energético interno a períodos de
abundância ou escassez de chuvas. Independente da causa do problema,
entretanto, a ampliação das fontes energéticas é objeto de projetos
governamentais e empresariais (THE NEW YORK TIMES, 2013).
A construção conjunta de infraestrutura energética tem se mostrado
um bom indicador do padrão de alianças na região. Assim, em 23 de maio
de 2012, representantes dos governos turcomeno, afegão, paquistanês e
indiano assinaram acordo para realização do gasoduto TAPI
(Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia), com mais de 1.600
quilômetros de extensão e orçado em R$7,6 bilhões (THE HINDU,
2013). O projeto recebeu forte apoio americano, especialmente por ser a
principal alternativa ao IPI (Irã-Paquistão-Índia), outro projeto de
gasoduto com proporção similar ao TAPI. O apoio americano vai ao
encontro da política de isolamento de Teerã e da estratégia de alienar a
tarefa de estabilizar o Afeganistão. As negociações para dar
prosseguimento ao IPI não parecem avançar, apesar de pressão iraniana
para dar continuidade ao projeto (THE EXPRESS TRIBUNE, 2013).
Independente da escolha ou não pelo IPI, a construção do TAPI já
9
Cabe apontar aqui, que pela extensão das linhas de subcontratação, nem sempre se pode
identificar nos dados oficiais acerca da economia a participação japonesa na
industrialização indiana. A característica do sistema permite que o capital ou associação
do Japão com empresas indianas, por exemplo, apareça como investimento advindo de
Cingapura ou Malásia.
78
Política externa e de segurança da Índia
demonstra um maior grau de confiança e disposição cooperativa entre a
Índia, seu vizinho paquistanês e os EUA.
4. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS
A República da Índia possui um regime parlamentarista bicameral
onde a Câmara Baixa, eleita diretamente, tem muito mais poderes do que
a Alta. O Presidente, ao contrário do Primeiro-Ministro e de seu gabinete,
é meramente formal e eleito de forma indireta, embora seja legalmente o
Comandante em Chefe e assine tratados mesmo antes de serem
ratificados pelo Parlamento. O Comando da Autoridade Nuclear é
majoritariamente civil e subordinado ao premiê, e o Gabinete pode
solicitar um Estado de Emergência, quando o Primeiro-Ministro governa
por decreto. A dualidade indiana reflete-se muito bem na política, opondo
os dois maiores partidos: Congresso Nacional Indiano (CNI) e Bharatiya
Janata Party (BJP), representando o Universalismo Comunitário e o
Chauvinismo Territorialista, respectivamente. No entanto, principalmente
através da lógica do “partido antissistema” e do uso massivo da mídia por
parte do BJP — além de Bollywood —, muitas vezes há um intercâmbio
pontual de características entre os dois lados da política10. O CNI prioriza
o consenso e foi criado como um movimento de libertação nacional,
sendo confundido com a própria independência da Índia, além de ter
governado por maior parte de sua história. O BJP, por sua vez, foi o único
partido, excetuando-se o CNI, a conseguir consolidar uma maioria
parlamentar e completar o governo (1999-2004). Este possui um discurso
reacionário e defensor da hindutva11.
A peculiaridade do sistema eleitoral indiano é a importância dos
partidos regionais. Oriundos da reforma constitucional de 1956 — o
10
Por exemplo, quando o CNI iniciou gradualmente a abertura econômica no início dos
anos 1990, ou, atualmente, ao aumentar a compra de artefatos militares. Cabe definir
aqui a estratégia denominada triangulação, utilizada pela situação que, para manter-se
no poder, incorpora em seus discursos a plataforma da oposição.
11
Hindutva é a corrente de pensamento (principalmente de revisionismo historiográfico)
que apresenta a Índia como uma nação fundamentalmente hindu, com um passado
civilizacional de glória, prosperidade e isolamento. Essa interpretação contamina o
sentimento anticolonialista com nacionalismo exacerbado terminando por suscitar
xenofobia, principalmente em relação aos muçulmanos (METCALF, 2006: 301).
79
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
chamado “Federalismo Linguístico”, que dividiu a Índia em províncias e
territórios de próprias culturas ou idiomas —, os partidos regionais têm
agendas muito específicas e, ao obter cadeiras no Parlamento, têm voz
nacional (LIJPHART, 1996). Estes partidos têm de ser cooptados pelas
alianças nacionais para maioria parlamentar, emperrando um projeto
nacional devido aos seus vetos de minoria. O apoio da elite indiana é
majoritariamente do CNI, principalmente pela manutenção de um
“estamento burocrático”12 e de práticas clientelistas. Tais práticas
perpetuam a corrupção endêmica que assola o partido. O histórico
político indiano nos permite observar que mudanças no partido central se
dão após campanhas que, de alguma forma, se fixaram fortemente na
questão moral. Atualmente, três escândalos são utilizados massivamente
pelo BJP como plataforma para as eleições de 2014: o Coalgate, o 3G
Telecom e, mais recentemente, os crimes sexuais ocorridos nos últimos
meses. No entanto, pesquisas apontam tendência de queda ou estagnação
de CNI e BJP, acompanhadas de ascensão de partidos regionais (GUHA,
2012). O Primeiro-Ministro é Manmohan Singh e o Presidente é Pranab
Mukherjee, ambos do CNI.
5. SEGURANÇA E DEFESA
O Livro Branco (INDIA, 2004) enfatiza os esforços internos
militares ainda necessários para a Índia em caso de confrontos. Apoiados
no histórico de guerras com Paquistão e China, a doutrina presente no
documento a necessidade de uma mudança estrutural nas Forças Armadas
a partir: 1) da melhoria da mobilização indiana, que demorou 27 dias para
se realizar na Operação Parakram; 2) da importância de melhor vigiar
suas fronteiras, que são vastas e porosas; 3) da percepção das forças
aéreas como de grande importância para a definição de uma guerra,
legado principal das guerras de 1962 e Kargil. A partir desses pontos
principais, é possível perceber que os grandes potenciais de conflito estão
definidos em China e Paquistão, ambos países nuclearizados. Em relação
à doutrina nuclear, sua posição é de “somente retaliação” (No First Use).
O Paquistão, por outro lado, afirma que responderia nuclearmente a um
12
Oriundo de uma lógica patrimonialista agrária, o estamento se caracteriza por conseguir
fazer seguir dentro da burocracia estatal as antigas lógicas de poder (FAORO, 2001).
80
Política externa e de segurança da Índia
ataque convencional indiano, com o propósito de dissuadir as
capacidades extremamente superiores das Forças Armadas indianas
(FEDERATION OF AMERICAN SCIENTISTS — FAS, 2012). Com
relação às capacidades nucleares, o relatório de 2012 da FAS indica de 30
a 35 ogivas indianas, 30 a 55 paquistanesas e 145 chinesas.
É possível identificar a Dualidade nas estratégias indianas recentes a
partir das ações governamentais da última década. De um lado, o
Chauvinismo Territorial pode ser mais bem exemplificado através da
Doutrina Cold Start, uma doutrina que mistura mito com realidade, pois
nunca fora confirmada nem pelo BJP (suposto arquiteto da doutrina) nem
pelo CNI. De acordo com essa doutrina, a Índia responderia a um ataque
terrorista com inserções rápidas (de apenas 48 horas) e sistemáticas ao
território paquistanês, com uma mobilização de 72 horas. Essa doutrina
não propõe maneira de resolução do conflito Índia-Paquistão, mas sim
retaliação à Guerra Irregular Complexa paquistanesa. Em relação ao
Universalismo Comunitário, este propõe a melhora das relações bilaterais
com China e Paquistão, conquistada e sustentada em longo prazo. Para
isso, teria de existir um esforço consciente por parte do Estado visando o
projeto de desenvolvimento para a região de fronteira que integre as
populações locais ao arcabouço nacional através da presença estatal com:
infraestrutura de uso dual (militar e civil) nas áreas de risco, projetos de
infraestrutura em geral, incentivos à produção militar interna e programas
que fomentem o crescimento econômico. Estas ações criariam uma força
dissuasória que ponderariam tanto o uso de poder duro — presença
militar, construção de capacidades — quanto poder brando — melhora
dos índices de desenvolvimento humano, promoção do nacionalismo.
Iremos, agora, comparar a doutrina e a dualidade com uma rápida
exposição dos gastos militares e do inventário indiano. A Índia afirmou-se
nas últimas décadas como um dos líderes do Terceiro Mundo em
capacidades militares, podendo atualmente ser comparada a potências
militares tradicionais, como Grã-Bretanha e França. Como principais
triunfos do inventário tem-se a frota aérea, o porta-aviões (INSS Virat, de
28.700 toneladas), o maior exército voluntário do mundo e a iminente
tríade de sistema de entrega nuclear com o lançamento do INS Airhant,
de produção própria. Em relação aos seus principais rivais em potencial,
suas capacidades são muito inferiores à da China e muito superiores às do
Paquistão. Os principais investimentos indianos recentes vêm ocorrendo
81
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
na Força Aérea, a partir da fabricação conjunta do avião de quarta
geração Sukhoi Su-S30MKI com a Rússia, e em compras multivetoriais,
visando estreitamento das relações com diversos países. Essa tentativa de
barganha dos meios de pagamento (VISENTINI, 2011) também se reflete
em outros setores militares: radares israelenses, treinamentos militares
com a China e o com IBAS, tanques e aviões russos, aviões
estadunidenses e europeus, entre outros. Esses esforços multilaterais são
importantes para a manutenção da Índia como potência regional e para a
consolidação da doutrina militar direcionada ao Universalismo
Comunitário.
Existem, contudo, entraves internos à consolidação de uma política
externa de segurança que tenda ao Universalismo Comunitário. O mais
importante é a falta de investimento em P&D militar e produção nacional
de inventário (e na manutenção do inventário existente) cujo resultado é
ainda incerto (o avião Tejas e o tanque Arjun são os melhores exemplos).
Essas debilidades das Forças Armadas podem fazer as decisões
estratégicas penderem para o lado dos ataques rápidos, como os propostos
pela Doutrina Cold Start. Os líderes políticos, no entanto, já perceberam a
necessidade de aumentar a produção interna e estão propondo esforços de
modernização (INDIAN DEPARTMENT OF DEFENCE, 2011).
6. TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA
A Índia é internacionalmente reconhecida como país inovador líder
na produção de Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC). No
quesito posse de recursos naturais, embora a Índia possua a 5ª maior
reserva mundial de terras raras, isso pouco representa na condição
extremamente concentrada de distribuição desse composto pelo mundo (a
China possui 98% de todas as reservas). A atual política chinesa de
restrição das exportações, no entanto, ao subir o preço internacional das
terras raras, viabilizou a exploração de algumas reservas na Índia. Além
de terras raras, a Índia possui poucas ou inviáveis reservas dos outros
minérios e compostos estratégicos. Apesar de tardiamente ter reconhecido
a importância da questão, o governo indiano, no último plano quinquenal,
criou um grupo de estudos acerca do tema. O grupo destacou os minerais
estratégicos dos quais a Índia é dependente de importações e apontou
possíveis relações bilaterais que devem ser fortalecidas para que o
82
Política externa e de segurança da Índia
fornecimento dos minérios seja assegurado. Destacam-se, nesse contexto,
a importância das relações com os países vizinhos e com a África13. A
Índia se destaca na produção de alumínio. Atualmente é a quinta
produtora mundial de óxido de alumínio e pretende expandir sua
produção para chegar ao terceiro lugar em 2015 (SATCHITANANDA,
2012).
Nas análises dos índices utilizados para mensurar as capacidades de
produção de alta tecnologia e do capital humano indiano, o país se
destacou quando comparado com países da região e do Sul econômico
(excetuando-se a China), mas tem desempenho baixo quando equiparada
com países que tradicionalmente detém esses conhecimentos (EUA,
Japão, UE). Onde está, então, a posição internacional de vantagem
tecnológica indiana que o senso comum atesta? O vale do silício indiano
existe. A cidade de Bangalore está entre as dez cidades do mundo mais
atrativas para empreendimentos e concentra as empresas que lideram o
setor de tecnologia da informação e comunicação na Índia e no mundo,
tendo um PIB que cresce 10,3% ao ano (THE ECONOMIC TIMES,
2012). Os indianos, portanto, inovam, mas em um setor específico,
descolado do resto da economia do país e, mais importante, dentro de
empresas estrangeiras. O aumento da subcontratação, no entanto, é tão
grande que certos autores (NIRMALAYA KUMAR, 2012) afirmam que,
cedo ou tarde, as grandes empresas como a IBM terão diretores indianos,
e essa capacitação interna às empresas se tornará um ativo baseado em
conhecimento a serviço do país. Em suma, a Índia pode estar pronta para
a transição tecnológica, mas só usufruirá dela plenamente se conseguir
que a dinâmica desses setores-ilha de alta tecnologia transborde para toda
a economia e se transformem em capacidades a serviço do Estado e do
povo indiano.
7. SITUAÇÃO E CONJUNTURA
O marco de Situação aqui utilizado são as eleições para a Câmara
Baixa de 2009. Nessas eleições, o Partido do Congresso confirmou a
reeleição e o apoio popular a seu projeto para Índia. O BJP manteve-se
13
Fosforite e Carvão Metalúrgico (Bangladesh e Nepal) e Cobalto (Congo, Zaire, África
do Sul) (GOVERNMENT OF INDIA, 2012
83
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
como principal oposição dentro da câmara. Ocorreu, portanto, a
conquista, pelo Partido do Congresso, de maioria confortável e
marginalização relativa do BJP. Em relação ao cenário externo, cabe fazer
uma breve análise das relações bilaterais e multilaterais indianas que
permitem a identificação de tendências na PES. Para tal, estruturamos
nossa apreciação a partir da classificação das Ordens Securitárias de
Beukel (2008). A Primeira Ordem Securitária compreende as relações
Estados Unidos-Índia. Os EUA ainda enxergam a Índia como principal
candidato ao “buckpassing” na região, seja tanto para permanecer como
contrabalanceadora do controle chinês na Ásia (CLINTON, 2011: 56-63),
quanto desempenhar possível papel estabilizador no Sul da Ásia e na Ásia
Central.14 Contudo, a Índia mantém seu discurso de não-alinhamento
aproximando-se, por exemplo, do Irã em projetos energéticos e de
infraestrutura. Na Segunda Ordem Securitária, as relações analisadas são
Índia-Paquistão e Índia-China, relações que definem, em grande parte, a
estabilidade na Ásia. No que toca o Paquistão, as relações, embora
tenham melhorado significativamente, avançam em aspectos não
controversos, visto que os dois países dependem, de certa forma, da
existência do inimigo externo para a manutenção da integração nacional.
Pode-se conjecturar que, num contexto de avanço na integração regional
(SAARC), os problemas dos dois países seriam relegados a segundo
plano, na medida em que um projeto de desenvolvimento conjunto se
viabilizasse. No que toca as relações sino-indianas há a possibilidade de
hostilidade ou do estabelecimento de uma rivalidade amigável. Tanto o
projeto indiano quanto o chinês de estabelecimento como Grande
Potência, quando interpretados pelos países pela perspectiva
essencialmente territorialista, esbarram na soberania um do outro, e
alimentam as hostilidades dessa relação bilateral. Já sob a óptica que
percebe a posição de Grandes Potências emergentes como importante ao
equilíbrio internacional, o papel de estabilização da região se desvela
essencial e a colaboração torna-se necessária e, conforme os esforços dos
dois países para a criação de confiança mútua, possível.
Recentes episódios15 indicam maior comprometimento da Índia com
14
Além disso, a partir do apoio ao projeto TAPI, evidencia-se a tentativa norte-americana
de passar à Índia a função de estabilizar o Afeganistão com sua retirada do país.
15
Em quatro de dezembro de 2012, o Vietnã denuncia a ação de navios pesqueiros
chineses nas ilhas disputadas no Mar do Sul da China, Segundo a acusação, os navios
84
Política externa e de segurança da Índia
o Sudeste Asiático. A natureza dos episódios desvela uma estratégia
territorialista de expansão para essa região, que se direciona, ao que tudo
indica, à confrontação com a China. Tais atitudes podem suscitar um
escalonamento da tensão entre os países e deflagrar grave conflito. A
posição da Índia é arriscada, na medida em que ela disputa uma região
que já é de grande controvérsia entre os países do Sudeste Asiático. Essa
parece, no entanto, ser a forma indiana de sustentar a política de “Olhar
para o Leste”16. O reforço dessa política pode ser relacionado com o
surgimento da nova burguesia indiana, a qual detém, atualmente, posição
de comando de suas empresas e direciona, de certa forma, o país para a
busca de mercados no Sudeste Asiático. A Índia, ao manter tal política,
também desempenha o papel de contrabalança regional almejado pelos
EUA. Não há garantia, no entanto, de que a execução dessa função
indique um comprometimento incondicional estadunidense com os
interesses da Índia na região. Um conflito direto com a China não parece
ser um cenário interessante aos EUA e, caso as pretensões indianas
extrapolem o limite tênue entre a contrabalança e a confrontação, a Índia
corre o risco de se encontrar desamparada. Os setores de direita (centro
nacionalista hindutva), no entanto, parecem estar dispostos a arriscar a
estabilidade na região, caso isso mantenha os EUA do lado indiano,
mesmo que em médio prazo.
A possibilidade do alinhamento indo-estadunidense torna-se mais
crível no cenário atual devido a um fenômeno que pode ser caracterizado
como a erosão dos princípios da Conferência de Bandung. A vocação
indiana para o não-alinhamento, para a associação com os países do sul e
perseguição de uma via nacional-socialista de desenvolvimento, arrefeceu
na medida em que esse país se consolidava como uma Grande Potência.17
teriam cortado cabos de embarcações vietnamitas que faziam pesquisas sísmicas na
região. A Índia afirmou, após o ocorrido, estar comprometida militarmente com a
proteção do direito de extração de petróleo nas ilhas detido pela estatal indiana e por
uma empresa vietnamita. O chefe da marinha indiana, almirante D.K.Joshi, declarou
que a força indiana tem a obrigação de defender os interesses soberanos da Índia caso
estejam ameaçados e que está disposto e preparado para intervir na região
16
Enunciada pelo primeiro ministro Narashimha Rao (1991) a política de Look East
representa um esforço indiano para o cultivo de relações econômicas e estratégicas com
o Sudeste Asiático a fim de beneficiar-se com o crescimento da região e, além disso,
contrabalançar a influencia da China.
17
Enquanto o país cresce economicamente e começa a agir como uma potência os novos
desafios que surgem no horizonte não necessariamente mantém o clima de solidariedade
85
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
As questões relacionadas ao passado colonialista e à necessidade de
construção da unidade nacional parecem ter sido resolvidas mais ou
menos satisfatoriamente pelos “ex- não-alinhados”. Dentro desse novo
momento de desenvolvimento indiano é que se estabelecem dilemas para
a formulação da PES, dentre os quais podemos salientar. (i) o fim do
sistema de subcontratação japonês18; (ii) a força centrípeta do mercado
estadunidense, que, pela sua robustez e disponibilidade de créditos para
importação, facilita a busca por parte das novas empresas nacionais
indianas de um destino à sua produção, o que condiciona a PES à posição
favorável a maior alinhamento com os EUA; (iii) o novo mercado
africano, uma nova fronteira de competição entre Índia e China, que,
diferentemente do Sudeste Asiático ou Ásia Central, não pertenceu
historicamente à esfera de influência de nenhum dos dois países.
Tais fatores constrangem as forças políticas internas a procurarem
novas formas de interação no cenário internacional. O BJP sustenta a
agenda de liberalização e relacionamento mais estreito com as potências
tradicionais e o Partido do Congresso, se quiser continuar sendo o partido
que viabiliza uma política nacional integrada e um plano de
desenvolvimento de longo prazo, terá que lidar com atitudes que
acomodem o país na sua nova posição. Há possibilidade de uma transição
mais atenuada da política externa indiana, que se processa de forma mais
lenta, porém não rompe com os laços tradicionais e importantes com os
países da periferia e semi-periferia. A opinião pública, no entanto, parece
não estar plenamente ciente da necessidade do estabelecimento indiano
como “potência amigável” e pressiona os formuladores a soluções mais
drásticas. Por esse motivo, parece viável que o Partido do Congresso seja
condescendente com atitudes territorialistas. Mesmo percebendo o risco
do enfrentamento, talvez a experiência seja necessária para que se
dissolva a ideia de solução através da força (que seria rápida e efetiva,
hipoteticamente) para problemas que essencialmente tratam de política e
da construção intrincada de uma PES condizente com a atual posição
indiana. Essa estratégia de aceitação da perspectiva Chauvinista é uma
e cooperação que existia quando os países emergentes ainda processavam suas
revoluções nacionais.
18
Como já abordado, mantinha as empresas subcontratadas num esquema garantido de
oferta e demanda que se desfez e pôs em competição fornecedores dos mesmos serviços
e produtos.
86
Política externa e de segurança da Índia
solução contingencial para a manutenção de governabilidade e
estabilidade interna. Contingencial, pois ainda percebe-se — através da
iniciativa do Partido do Congresso de criar um programa de
redistribuição de renda unificado e eficaz, por exemplo — que a
perspectiva do Universalismo Comunitário permanece vigente.
Por não ser um projeto estatal plenamente articulado e
autoconsciente, no entanto, o Universalismo Comunitário avança sob
constantes percalços. Os crimes sexuais recorrentes19, os quais provocam
a mobilização nacional e, mais recentemente, internacional, são uma
amostra dessas dificuldades. Os acontecimentos chamam a atenção do
país e da opinião pública internacional a se questionarem acerca das
incongruências da modernização indiana, que, apesar de sustentar índices
altos de crescimento econômico e uma melhora relativamente
significativa nos índices de desenvolvimento, ainda mantém regras de
conduta antiquadas e julgamentos morais que atentam à dignidade
humana. O desempenho da burocracia e lideranças indianas, no entanto,
não tem se mostrado satisfatório para solucionar essas importantes
questões internas20. A resolução dessas questões é pre-requisito para o
desempenho legítimo da liderança através do exemplo, tanto na região,
quanto no âmbito internacional.
8. CENÁRIOS
A análise dos elementos estruturais, situacionais e conjunturais nos
permite especular acerca de três cenários possíveis para o futuro da PES
indiana. O exercício de formulação de cenários, e especificamente do
melhor e o pior cenário, serve para que enxerguemos com mais clareza
quais variáveis identificadas na PES influenciam positivamente ou
negativamente a condição do país como Grande Potência. Seguem,
portanto, as três construções hipotéticas. (1) No melhor cenário,
19
Uma das notícias diz respeito ao estupro ocorrido em Déli, dia 16 de dezembro, no qual
uma moça de 23 anos foi violentada por 6 homens e, devido a complicações causadas
pela violência, faleceu dias depois.
20
Os nacionalistas hinduístas tentam relacionar a violência sexual com a
“ocidentalização” do país e sugerem que o casamento seja permitido a partir de 15 ou
16 anos da mulher, ao invés dos 18 anos hoje estabelecidos. Já a aliança do partido do
congresso (UPA) mobilizou uma comissão legislativa para revisar leis criminais que
dispõe sobre crimes sexuais.
87
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
estabelecer-se-ia uma pentarquia de relação multilateral com Estados
Unidos, China, Rússia e Turquia. Tal panorama é mais provável com o
Partido do Congresso no poder e com esforços internos indianos para a
melhoria das condições institucionais e sociais. Algo que tornaria tal
cenário crível seria o avanço da Área de Livre Comércio do Sul da Ásia,
a qual viabilizaria à Índia maior acesso aos mercados desses países,
diminuiria a tensão com a China pelos mercados do Sudeste Asiático e
facilitaria relações comerciais com a ECO (sendo o Paquistão elo das
duas zonas econômicas). Por esse percurso, haveria fortalecimento da
posição indiana também no Oriente Médio. (2) No cenário intermediário,
analisando primeiramente o aspecto doméstico, o crescimento da terceira
e da quarta frente se efetivaria, mas como uma é a exacerbação à
esquerda e outra à direita do Partido do congresso, o peso de suas
votações se neutralizaria e as decisões da Aliança Unida continuarão
sendo implementadas. Em relação ao aspecto externo, no entanto, haverá,
por parte do sistema político, maiores constrangimentos à formulação de
uma PES que assegure a continuidade de um projeto de desenvolvimento
nacional. A PES indiana, portanto, continuaria a alternar atitudes que
reforçam o multilateralismo e a regionalização com ações unilaterais que
comprometem a estabilidade regional e internacional. (3) O pior cenário,
por fim, seria decorrente do direcionamento da PES indiana ao
contrabalanceamento da China de acordo com os propósitos
estadunidenses, o que poderia provocar inimizades na região e promover
uma resposta chinesa agressiva. Esse cenário é extremamente arriscado
para a Índia uma vez que o confronto Sino-indiano pode não implicar
definição de uma posição dos EUA pró-Índia. Em uma contingência
extrema, o pior cenário poderia evoluir para uma guerra em duas frentes:
guerra irregular complexa com Paquistão e guerra convencional com a
China. Os cenários podem acontecer com os dois partidos no poder,
porém o alinhamento com os Estados Unidos com o BJP na situação (ou
mesmo com um partido que responda aos anseios territorialistas da nova
elite indiana, como a Quarta Frente) configuraria um contexto mais
propenso à guerra.
Conclusões
Após todas as apreciações feitas, acreditamos que a Índia pode ser
considerada uma Grande Potência. Possui capacidade militar comparável
88
Política externa e de segurança da Índia
com o primeiro mundo, posição geoestratégica relevante, a segunda
maior população do mundo e crescimento econômico robusto. Ademais,
sustenta a legitimidade como líder do terceiro mundo e exemplo para a
semiperiferia.
Por ter alcançado tal posição, a Índia é impelida interna e
externamente a tomar atitudes condizentes com esse novo estágio. Ela é
hoje um ator computado no cálculo de política internacional e seus atos
de política externa interferem no equilíbrio do SI como nunca antes.
Apesar de sua proeminência, a Índia ainda se vê arcando com os custos
da modernização (urbanização, industrialização) e da ocidentalização
(valores seculares, instituições políticas estáveis). A PES indiana se
tornará coerente na medida em que as prioridades do desenvolvimento
social e do comprometimento com o equilíbrio forem incorporadas ao
projeto de nação e articuladas com seu desempenho externo.
Referências
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Vozes, 1997.
CAPOCCIA, Giovanni. “Anti-System Parties: a Conceptual
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92
Capítulo 5
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DO
JAPÃO
Eric Feddersen
Lucas da Rocha Rodrigues
Victor Merola
Vinícius Lanzarini
Introdução
Este capítulo tem como objetivo central analisar a Política Externa e
de Segurança do Japão. Para tanto, busca-se verificar os principais
indicadores que pautam a inserção internacional do país no Sistema
Internacional. Basicamente, pretende-se analisar como as dinâmicas
internas e as dinâmicas regionais influenciam na trajetória histórica do
país, especialmente, no Leste Asiático.
O Japão destaca-se por ter a terceira maior economia no mundo,
possuindo um PIB de US$ 5.850.000 milhões em 2011 — composto em
71,6% por serviços, 27,3% pela indústria e 1,2% pela agricultura — e
PIB per capita de US$ 0,034 milhões (estando em 37º no ranking
mundial). Possui 62,5% da população em áreas urbanas (conforme dados
de 2010; logo, 37,5% estão no meio rural), a 10ª maior população
absoluta (127.368.088 pessoas, segundo estimativa de julho de 2012), um
IDH de 0,901 (13º na lista) e um índice GINI de 37,6% (sendo o 75º país
no ano de 2008). Apesar disso, seu déficit público só não é maior que o
dos Estados Unidos, sendo de 205,5% do PIB. Por ser uma ilha, o país
possui pouco território (377,9 km², o 62º colocado). Possui um
contingente ativo nas Forças de Autodefesa de 247.746, tendo o 29º
maior efetivo do mundo.
A partir da identificação dos princípios norteadores da Política
Externa de Segurança (PES), serão estabelecidos três cenários que visam
sumarizar os dilemas que o Japão enfrentará nos próximos anos. Por fim,
conclui-se que o Japão enfrenta uma dualidade que opõe polarizados
perfis de inserção internacional: um ligado a uma visão regionalista (que
93
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
visa o fortalecimento dos laços econômicos e políticos com os vizinhos);
e outro de viés globalista-liberal (que prioriza o reforço da aliança com os
Estados Unidos). Nesse contexto, os principais indicadores que permitem
que se avalie qual dos perfis prevalecerá são a inserção econômica
internacional do país, a definição do debate político interno e o
equacionamento das carências energéticas.
1. DESENVOLVIMENTO
1.1. O problema da dualidade
A análise da Política Externa e de Segurança do Japão indica que,
basicamente, a inserção internacional do país é pautada por uma
dualidade. Essa dualidade consiste na oposição entre a opção regionalista
e a opção globalista. A primeira traduz os planos de inserção
internacional baseados na integração regional da Ásia; ou seja, visa à
ascensão coletiva. Para tanto, o Japão não competiria comercialmente
com a China pela liderança em exportações, optando por um sistema
associado de gestão de marcas e patentes — através da transferência de
tecnologia nipônica aos seus vizinhos. Já, o globalismo é o ímpeto de
inserir-se como potência a nível global e manter sua posição de
plataforma exportadora, aproximando-se dos Estados Unidos. Neste
último caso, seus vizinhos passariam a ser competidores.
A origem dessa dualidade está na Restauração Meiji, de 1868, e na
Rebelião de Satsuma, de 1877. O legado social dos samurais, baseado na
honra e tradição, ainda manteve-se muito presente após a Restauração.
Em termos políticos, ele gerava uma ética colonialista e retrógrada. Com
o fim dos Samurais, seu legado se une ao Exército, que o perpetua através
da autonomia militar. Assim, dois planos de inserção internacional
passam a se chocar: um baseado na Democracia Taisho, que lançava
bases para a inserção pacífica com seus vizinhos, e outro, baseado no
legado de Satsuma, que pretendia a ascensão pela conquista. Essa
polarização histórica, pode-se dizer, encontra respaldo nos dilemas atuais,
contrapondo o regionalismo, herdeiro da integração de Taisho, e o
globalismo, herdeiro da competição de Satsuma.
94
Política externa e de segurança do Japão
1.2. Histórico
Desde cedo, o Japão focou-se no papel das potências estrangeiras,
pois conhecia as consequências dos interesses de tais nações
(PANIKKAR, 1965: 214). O Japão do século XIX já se dividia entre o
progresso e aproximação com o Ocidente, e o isolacionismo e conflito
com o estrangeiro, posição essa representada pela classe de samurais. A
Restauração Meiji demarcou o fim do isolacionismo, mas não dos ideais
feudais e da ética colonialista, pois as bases sociais do Estado não se
transformaram por completo. Esta transformação somente prosseguiria
com a vitória contra os samurais na Rebelião de Satsuma, abrindo
caminho para a Democracia Taisho. Contudo, o exército absorveu os
valores dos samurais de Satsuma, e se constituiu como instituição de
grande força política no Japão (WOLFEREN, 1989). Por resultado, a
Restauração não estabeleceu uma vitória de um projeto sobre o outro,
nem definiu a postura do Japão na Ásia, que passará a oscilar entre a
competição e a cooperação regional.
Desde o final do século XIX, o Japão buscou ordenar o sistema
regional asiático. Esse processo estava intimamente ligado à
modernização econômico-industrial que era empreendida pelo país àquela
altura. A guerra russo-japonesa (1904-5) estava claramente associada à
busca por liderança regional. Já nesse período, fica clara a importância da
questão de escassez de recursos para estratégia regional do país, já que
essas disputas com China e Rússia tinham como plano de fundo a busca
por controle dos recursos da região da Manchúria e culminariam tanto na
ascendência e posterior colonização da Coreia, quanto na ocupação da
China em 1931. Esses desdobramentos no âmbito regional corroboram a
ideia de que o Japão, a partir desse período, consolida-se como EstadoRegião. E que, nesse contexto, os desenvolvimentos regionais estão
intrinsecamente ligados à evolução dos processos internos do país.
Na década de 1910 e 1920, grosso modo, o Japão passou por um
realinhamento da sua esfera política. Huntington (1997) define esse
modelo como “ocidentalização” da política. Esse período, conhecido
como democracia Taisho, marcou a busca pela ampliação de direitos, de
criação de instituições similares às do ocidente. Entretanto, esse projeto
foi fortemente antagonizado pelo exército japonês. A principal razão era o
revanchismo em relação ao fracasso da intervenção na Sibéria (1918-25)
e o corte de gastos militares previstos nesse período. Essa disputa acabou
95
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
por culminar na militarização da política externa japonesa, que resultou
na segunda Guerra Sino-japonesa (1937) e leva o país a entrar na II
Guerra Mundial.
Após a rendição japonesa na Segunda Guerra Mundial, Shigeru
Yoshida foi nomeado Primeiro-ministro. O seu governo caracterizou-se
por uma administração pragmática, que acabou viabilizando a
manutenção da soberania no pós-guerra. Essa manutenção foi
conquistada,
essencialmente,
ao
evitar
um
processo
de
desindustrialização que era defendido pelo Comandante Supremo das
Forças Aliadas que ocupavam o Japão, o General estadunidense Douglas
por MacArthur. A aliança securitária com os Estados Unidos levou o país
a direcionar sua atenção à reestruturação da sua economia e à
reconstrução do país (WOLFEREN, 1989: 41). Para tanto, o Japão tornase uma plataforma exportadora associada aos EUA, que compete
regionalmente. Pode-se dizer que essas são as bases do modelo
globalista-liberal que é defendido atualmente.
Porém, foi nesta época, a partir de 1950, que começaram a se criar as
condições para o que vai ser o principal motor do regionalismo japonês a
partir da década de 70: a subcontratação transfronteiriça e a transferência
de capital regionalmente. O Plano Colombo, equivalente ao Plano
Marshall na Ásia, iniciou uma transferência de patentes e licenças dos
EUA para empresas japonesas, além do estímulo a exportação japonesas
ao seu mercado (ARRIGHI, 1996: 76). O alto valor agregado das
exportações intensivas em tecnologia passaram a financiar o surgimento
do Japão como novo fenômeno econômico. A estrutura política,
denominada como “Triângulo de Ferro” (partidos, corporações e
burocracia) criava a governança necessária para administrar o
crescimento econômico incentivado pelo parceiro americano (UEHARA,
2003: 31). No final da década de 60, já se dava a regionalização do
milagre japonês e a transferência de indústrias de menor valor agregado.
A década de 1970 representou uma inflexão no relacionamento
japonês com seus vizinhos, especialmente, a China. A atuação
estadunidense na região, que delimitava o centro gravitacional regional,
alterou-se significativamente. Nesse período, paulatinamente, os EUA
foram afastando-se de uma posição assertiva no Leste Asiático. Isso
permitiu que China e Japão iniciassem um processo de reaproximação,
emblematizado pelo Comunicado Conjunto de 1972 e pelo Tratado de
96
Política externa e de segurança do Japão
Paz de 1978.
A década de 1980 sugeria o Japão como o principal desafiante à
hegemonia estadunidense (ARRIGHI, 1996). Entretanto, a crise de 1987
foi um baque na ascensão japonesa. Os acordos de Plaza criam um grande
fluxo de investimentos japoneses para os EUA com a compra de dólares,
criando uma bolha de investimentos, de forma a contaminar o mercado
imobiliário em ambos os países, e fazendo subir astronomicamente o
preço dos terrenos japoneses. A solução à vista seria investir na China,
apesar de acentuar o crescimento do competidor (VISENTINI, 2012:
190).
No final da Guerra Fria, o Japão, por um lado, buscou reforçar os
laços regionais econômicos e políticos e, de outro, renovar sua parceria
estratégica com os Estados Unidos. Cabe destacar que essa parceria era a
fiadora da manutenção das linhas de comunicação e de suprimento do
país. Na Guerra do Golfo (1991), quando da instauração do mandato das
Nações Unidas, o Japão buscou fornecer apoio aos Estados Unidos.
Todavia, isso gerou um grande debate interno e limitou-se à esfera
financeira. Em linhas gerais, pode-se afirmar que esse debate remete ao
dilema regionalista versus globalista que permeia a história japonesa.
A década de 1990 representou o início do desgaste do sistema de
governança que geriu o país desde a década de 1950, o Triângulo de
Ferro. A formação de gabinete anti-PLD (1993) exemplifica essa fase de
reacomodação das forças internas e do nascimento do embrião do PDJ
(Partido Democrático do Japão), partido que viria a ser central para a
inflexão política ocorrida na década seguinte. Porém, foi com a ascensão
de Junichiro Koizumi que o Triângulo de Ferro foi definitivamente
enterrado. A agenda neoconservadora, o programa neoliberal, de
alinhamento automático com os Estados Unidos e a adesão à Guerra ao
Terror levaram o país a se afastar dos vizinhos, a piorar seus índices
socioeconômicos e comprometer a sua soberania, processos que
permitiram ao PDJ chegar ao poder.
O governo de Yukio Hatoyama (2009) chegou ao governo com uma
plataforma de revisão da parceria com os Estados Unidos, de
revitalização dos laços regionais e distribuição equilibrada de renda.
Nesse sentido, uma divisão do capital seria feita regionalmente, onde o
Japão seria responsável pela produção de P&D (pesquisa e
desenvolvimento) e administração de marcas e patentes, enquanto seus
97
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
vizinhos ganhariam pela produção e montagem dos produtos de alta
tecnologia em larga escala. Esse panorama levaram aos acordos de 2009
com China e Coreia do Sul, e o aumento da institucionalização das
relações no Leste Asiático. Entretanto, com a queda de Hatoyama (2010)
e o incidente de Fukushima (2011) a capacidade de governança do PDJ,
bem como seu projeto regionalista, acabaram sendo enfraquecidos. Esse
processo teve dois efeitos significativos: por um lado, gerou relativa
desaceleração no processo de aumento da cooperação regional, marcado
pelo acirramento das tensões com a China, sobre a posse das ilhas
Senkaku/Diaoyu; e, por outro, internamente propiciou o retorno do PLD
ao poder. Com a chegada de Shinzo Abe ao governo, no final de 2012, as
dúvidas acerca do futuro das relações sino-japonesas ganharam nova
dimensão, já que, apesar da filiação partidária, Abe não pertence à ala
mais radical do PLD.
1.3. Economia
Os aspectos econômicos vêm a reforçar as evidências quanto ao
dilema japonês entre o Globalismo e o Regionalismo. Se por um lado o
Japão tem sua balança comercial fortemente atrelada à China, por outro
pesa o histórico da parceria nipo-americana com décadas e bilhões
investidos nos Estados Unidos. Apesar de sustentar o posto de terceira
maior economia do planeta, o Japão possui o segundo maior deficit
público — que atingiu a marca de 205,5% do PIB em 2011 (CIA, 2012).
Muito disso se deve à questão energética que assola o país, assim como
aos gastos crescentes com a previdência por conta da população
envelhecida.
Os principais parceiros comerciais do Japão são a China e os Estados
Unidos, com grande destaque para a China que no ano de 2011 foi o
destino de 25% (somando Hong Kong) do total das exportações nipônicas
e origem de 22% das importações, contra 15% e 9%, respectivamente,
dos Estados Unidos (JETRO, 2012). A alta dependência japonesa de
recursos naturais oriundos do exterior, que correspondem a 49% das suas
importações (Ibidem), aliada à extrema importância que o gigantesco
mercado interno chinês representa para os produtos japoneses são
indícios de uma relação de forte interdependência entre os dois países
asiáticos.
98
Política externa e de segurança do Japão
Já se levarmos em consideração o Investimento Externo Direto
(IED), verificamos que o Japão faz altos investimentos nas principais
potências mundiais e possui um saldo bastante positivo na relação de
fluxos de investimentos, fato que lhe confere grande influência
econômica em nível global. O Japão possui um estoque de IED com saldo
na casa de US$200 bilhões em relação aos Estados Unidos e na casa de
US$82 bilhões em relação à China, sendo os Estados Unidos o principal
destino do IED japonês, com montante próximo a US$275,5 bilhões em
estoque acumulado até 2011 (Ibidem). Tal fato sugere uma sólida
estabilidade dos laços entre japoneses e estadunidenses.
1.4. Infraestrutura
Em relação à infraestrutura japonesa, cabe realizar as seguintes
perguntas: Que impactos a dependência de recursos naturais estrangeiros
causa no país? Como a administração da infraestrutura pode ter reflexos
nas políticas Globalistas ou Regionalistas? Como resultado desta
administração, para que viés estará voltada a transição tecnológica
japonesa?
Anteriormente ao desastre nuclear de Fukushima, uma parcela de
mais de 80% da matriz energética era composta de queima de
combustíveis fósseis. Entretanto, os recursos escassos exigiam a
importação destes, grande parte vinda de países do Oriente Médio. Os
altos custos para a realização destas compras levam o Japão a procurar
por parceiros mais próximos, notavelmente a Rússia. O governo japonês
tem se mostrado interessado na construção do oleoduto russo ESPO, que
vai da Sibéria Oriental até o Oceano Pacífico, bem como nas obras da
GAZPROM que desenvolve planos de construção de um gasoduto de
Sakhalin até o porto de Vladivostok. Todavia, a questão das Kurilas é um
grande obstáculo para essa aproximação entre os dois países.
A energia nuclear é para o Japão uma alternativa para a diminuição
dos custos energéticos, e, antes de Fukushima, havia planos para sua
expansão para até metade da composição da matriz energética. Todavia, o
incidente resultou em pressão da opinião pública acerca do investimento
na matriz nuclear. O fato de o Japão estar na vanguarda do processo de
transição tecnológica tem feito o país em investir em Pesquisa e
Desenvolvimento (P &D) na busca por avanços na aquisição de
99
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
capacidades energéticas de próxima geração. A busca por materiais
supercondutores, fontes de energia renováveis, estão no centro da procura
por autonomia energética e por diminuição da dependência externa de
suprimento energético.
A logística interna do país encontra-se em ótima situação, com
rodovias expressas eficientes e trens-bala em suas ferrovias. A logística
externa conta com aeroportos e portos em excelentes condições e
posicionamento para projeções externas. Outros grandes planos de
integração regional incluem a construção de túneis submarinos com
ligação aos projetos da Rota da Seda russos e chineses.
Pelo caráter insular do Japão, suas rotas marítimas (SLOCs, no
acrônimo em inglês) possuem uma importância vital para as linhas de
logística externas. A comunicação pelo Pacífico e Índico garante o
fornecimento de recursos naturais, a realização do comércio marítimo e
as linhas de suprimentos em caso de guerras no Leste. Sobre a segurança
das SLOCs, os estreitos servem como ponto de estrangulamento,
principalmente o de Malacca.
1.5. Instituições Políticas
O Triângulo de Ferro, que durou praticamente cinquenta anos, dava
ao país um sistema de governança equilibrado, e que permitia uma gestão
amparada no partido, burocracia e empresariado. A Dieta Japonesa que é
composta pela Câmara dos Representantes (baixa) e a Câmara dos
Conciliadores (alta) serviu como um referendador das decisões tomadas
no âmbito do Triângulo de Ferro. Ainda que as duas sejam importantes, a
que ganha destaque é a primeira — o partido que obtiver a maioria das
300 vagas em disputa (em um total de 480) ganha o direito de indicar o
primeiro-ministro, o qual tem liberdade total para a constituição de seu
Gabinete. Para que leis sejam instituídas, devem ser aprovadas por
maioria nas duas câmaras. Um desafio que se percebe desde 2007 é que o
partido vencedor das eleições gerais (Câmara Baixa) não costuma atingir
escore similar na Câmara Alta, ficando, assim, sem obter a maioria nas
duas casas da Dieta, o que compromete a governabilidade.
A dificuldade de consolidar uma oposição ao PLD, deriva da
destituição do Triângulo de Ferro e da transição política por que passa o
país internamente. A oposição, hoje é constituída pelo PDJ, nascido do
100
Política externa e de segurança do Japão
Gabinete anti-PLD, que passa gradualmente a definir uma postura
política própria, mas ainda não tem popularidade considerável. A outra
força que emerge no cenário político japonês é o Partido da Restauração
Nacional, cujos principais líderes são Shintaro Ichihara e Toru
Hashimoto. Esse partido representa em linhas gerais, um reavivamento
dos princípios defendidos pela via militarista no período da II GM.
1.6. Segurança e Defesa
A constituição pacifista implementada após a Segunda Guerra rege
as diretrizes das Forças de Autodefesa do Japão — segmentadas em
Terrestre, Marinha e Aérea. Por meio desta, ficou definido que o
orçamento destinado aos gastos militares ficaria limitado a 1% do PIB do
país, com o objetivo de compor uma modesta força de defesa que não se
constituísse em ameaça aos países vizinhos. No entanto, esse dispositivo
se mostrou ineficaz devido ao elevado PIB japonês — 1% deste
representou cerca de US$54 bilhões, 5º maior orçamento mundial em
2011 (SIPRI, 2012). A Doutrina determina ainda uma política
exclusivamente defensiva, bem como um forte posicionamento contrário
aos armamentos nucleares e ressalta a importância da cooperação com os
Estados Unidos.
Em 2010, foi publicada uma revisão do Guia do Programa Nacional
de Defesa (GPND), documento chave que revela uma forte tendência de
reforma da doutrina e normalização das forças armadas japonesas no
médio prazo. O GPND traz ainda o conceito de forças de defesa
dinâmicas com maior capacidade para uma resposta rápida, explicitando
a preocupação japonesa com a questão das ilhas mais afastadas da costa,
que são motivo de litígios com a China e com a Coréia do Sul (IISS,
2012: p. 220).
Por tratar-se de um país insular, as forças de autodefesa marítima e a
força aérea a serviço da marinha são de fundamental importância para a
política externa e de segurança do Japão. Analisando o inventário
japonês, fica evidente uma configuração voltada para complementar as
forças armadas dos Estados Unidos buscando um contrabalanceamento
em relação à marinha chinesa, que adota a estratégia de negação de área
(A2/AD — baseada na utilização de minas e submarinos táticos), que
representa uma grande vantagem chinesa (IISS, 2012: p. 235-236).
101
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
As Forças de Autodefesa do Japão possuem um contingente total de
aproximadamente 248 mil ativos e em torno de 56 mil reservistas. O
inventário militar da marinha é composto por: 18 submarinos táticos, 2
porta-aviões, 6 cruzadores, 25 destróieres, 15 fragatas e 33 vasos antiminas. A força aérea possui um total de 551 helicópteros e 525 aviões —
os principais destaques são os helicópteros SH-60J (antissubmarino) com
86 unidades e MH-53E (caça minas) com 7 unidades a serviço da
marinha. Já as forças terrestres possuem 980 blindados e 760 tanques
(IISS, 2012: p. 251-254).
A configuração de forças apresentadas combinada com uma forte
tendência à modernização das forças militares nipônicas caracteriza um
viés claramente globalista das Forças de Autodefesa do Japão que
funcionam, na prática, como uma extensão das forças armadas
estadunidenses, defendendo seus interesses na região. Além de sabotar
qualquer projeto de integração asiático, esse posicionamento militar entra
em contradição com a doutrina pacifista japonesa, de modo que sua
reforma parece iminente e inevitável. Apesar de esse perfil militar estar
consolidado, no curto prazo, isso poderia ser alterado. Caso o Japão
revisasse as limitações internas em direção à aquisição de forças militares
autônomas, evitando manter-se apenas como um apêndice das forças
militares estadunidenses na região, isso fortaleceria o projeto de
integração regional. Portanto, não há uma oposição entre autonomização
da SDJF e o processo de aprofundamento das relações regionais.
1.7. Transição Tecnológica
A indústria japonesa conta com um maquinário excepcionalmente
avançado e com a utilização de tecnologia de ponta. O Japão é líder
absoluto em robótica, tendo metade dos robôs industriais do mundo.
Tendo tais condições em vista, suas exportações possuem um alto valor
agregado. Ademais, o caráter especial do país o torna um dos principais
produtores e exportadores de semicondutores.
O Japão possui a segunda maior siderurgia do mundo, com destaque
para as empresas Nippon Steel e JFE. O aço é utilizado principalmente na
indústria de maquinário, naval e automobilística — esta última se
destaca, como é observado no poder econômico das gigantes Toyota,
Mitsubishi, Honda e Nissan. Para a produção de bens de alta tecnologia,
102
Política externa e de segurança do Japão
porém, o país é dependente da China para o fornecimento de terras-raras.
Diversos indicadores demonstram o avanço da transição tecnológica
japonesa. O país investe fortemente em pesquisa e desenvolvimento,
tendo gasto na última década entre 15 e 17 trilhões de ienes (em torno de
3,5% do PIB). Dois dos 20 supercomputadores mais potentes do mundo
possuem processadores japoneses e foram montados em solo local. O país
está muito bem inserido em uma vasta rede de conexão de fibra ótica, que
permite que metade dos internautas navegue com banda-larga proveniente
desta, acesso cinco vezes maior que a média da OCDE.
Nesse sentido, uma parceria sólida com a China torna-se central sob
vários aspectos. Primeiro, porque a importação de materiais terras-raras
seria altamente benéfica para o país. Além disso, as regiões do Leste e
Sudeste Asiático possibilitariam um extenso mercado consumidor para as
exportações japonesas de alto valor agregado. Além disso, permitiria ao
país, em caso de uma conflagração, unir o fornecimento em larga escala
de aço para a produção de armamentos pesados, com constantes
inovações tecnológicas derivadas do alto nível de P&D. O uso dos
supercomputadores também traria vantagens ao Japão no advento de uma
guerra cibernética.
1.8. Situação e Conjuntura
A partir do choque entre um barco chinês e um japonês no entorno
das ilhas Senkaku/Diaoyu, modifica-se a situação do país. A postura
negativa de Seiji Maehara, então Ministro de Infraestrutura (2010), sobre
um conflito pela posse das ilhas provocou um boicote aos produtos
japoneses e grandes prejuízos financeiros, pois a China e o Japão estão
entre os principais parceiros comerciais entre si.
A presença crescente de patrulheiros chineses na região faz com que
os japoneses recorram ao tratado de segurança mútuo assinado com os
Estados Unidos, em 1960, para a defesa do seu território. Isso permite
uma maior interação com os norte-americanos, desde a possível entrada
na Aliança Transpacífica (TPP), até a possível aquisição de aeronaves
como o Osprey MV-22. O afastamento gradual dos países asiáticos
tornaria plausível a reutilização dos reatores de energia nuclear — que
estão parcialmente desligados desde o incidente de Fukushima, em 2011
— demonstrando o caráter de isolamento e globalismo da dualidade.
103
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
Por outro lado, a atual situação energética do país o empele à
integração regional. Com o desativamento da planta energética nuclear, o
governo viu-se obrigado a buscar novas fontes de energia em países da
Ásia Central. A decorrência de maior relevância para a integração
regional é a possibilidade de transferência das indústrias japonesas para a
região, de forma análoga ao que já fora feito na transferência tecnológica
para os Tigres Asiáticos nos anos 70, além da busca por terras-raras.
Assim, os conflitos acerca das ilhas ficam, em parte, subjacentes à
política energética dos países da região: Kurilas, com os russos
(culminando no Tratado de Paz, que não foi assinado desde a Segunda
Guerra Mundial e com aberto desejo de resolver o impasse pelos países),
e Dokdo/Takeshima, com os sul-coreanos (através do bom
relacionamento entre os seus representantes diplomáticos).
A situação com a China também se reflete na política interna do
Japão. O incidente de Fukushima, somando-se às tensões com os vizinhos
e a dificuldade em recompor uma economia de grande déficit público e
que caminha a passos lentos, fez com que a popularidade de Naoto Kan e
Yoshihiko Noda — dois dos primeiros-ministros do PDJ que assumiram o
país após meio século ininterrupto de governo pelo PLD — decaísse. Isso
culminou na volta de Shinzo Abe (PLD) ao poder. Entretanto, desde sua
posse é possível notar algumas mudanças na política externa e de
segurança do país. Em dezembro de 2012, uma disposição a solucionar o
problema com os russos, oposição à Aliança Transpacífica e cobranças
aos chineses por estarem ultrapassando os limites de seu território de
forma desautorizada.
2. CENÁRIOS
A análise da Política Externa e de Segurança do Japão (PES) permite
a projeção de três possíveis cenários para a inserção internacional do país.
No melhor cenário a tendência de cooperação e concertação regional
prevalece. Em um cenário intermediário persiste a competição, porém
apenas no nível econômico. O terceiro cenário consiste em uma possível
escalada da competição que resultaria em guerra.
A melhor projeção se centra no cenário de melhores relações com a
região, dentro das possibilidades atuais. O mandato de Shinzo Abe
mantém-se em bases estáveis, garantindo estabilidade política ao Japão.
104
Política externa e de segurança do Japão
Embora a plataforma do PLD seja pautada por um globalismo liberal, o
atual governo tem mantido as iniciativas de cooperação defendidas pelo
governo anterior do PDJ. Isto pode ser dar por vários motivos, a começar
com a herança de três anos consecutivos de governos regionalistas, do
PDJ. Contudo, o fator mais proeminente é o gargalo energético, agravado
pelo incidente de Fukushima que resultou no desativamento das usinas
nucleares japonesas, causando um grande baque à capacidade industrial
do país. Neste sentido, a cooperação e a integração econômica regional
aparecem como alternativas para a manutenção da indústria japonesa,
criando cadeias de off-shoring e integração produtiva. Além disso, tornase viável a integração energética e infraestrutural que pode ser central
para amenizar a vulnerabilidade energética do país. No médio longo
prazo, este cenário permitiria o Japão alterar seu perfil industrial:
migrando dos modelos fordista/toyotista, baseado no uso intensivo de
hidrocarbonetos, para o modelo voltado para a produção de informação,
tecnologia e conhecimento, baseado no uso de energias renováveis.
No cenário intermediário, a competição econômica regional
persistiria, porém não transbordaria para outras esferas. Este cenário
somente é crível se a dependência energética japonesa de fornecedores
externos não aumentar. Com isto, o Japão retoma o modelo globalista
liberal, baseado na plataforma de exportação, defendido pela ala mais
conservadora o PLD e da extrema-direita. Dessa forma, caso se
intensifique a competição com a Coreia do Sul e China, em termos
empíricos isto representaria uma adesão à Parceria Trans-Pacífica (TPP).
Entretanto, mesmo neste cenário, seria pouco provável um rompimento
completo com a China e demais vizinhos no Leste asiático.
No cenário mais extremo, o partido de extrema-direita, Partido da
Restauração do Japão de Shintaro Ishihara, assume o governo do país e
abre caminho para um globalismo de veia militarista. A competição seria
o traço marcante da PES japonesa, o que poderia tornar qualquer
incidente passível de escalada. Neste contexto, empiricamente, este
cenário seria representado pela eclosão de uma guerra local, que
comprometeria as linhas de comunicação e suprimentos (SLOCs).
Considerações Finais
Projetar o futuro da PES do Japão indica que as possibilidades
105
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
limites são bastante amplas, posto que variam desde a cooperação até a
conflagração regional. Resumidamente, os grandes dilemas que balizam a
política externa do país são decorrentes da inserção econômica
internacional, da definição do debate político interno e do
equacionamento das carências energéticas.
O Japão sempre foi, historicamente, um país fundamental para o
equilíbrio regional. Desde a Restauração Meiji, em meados do século
XIX, o Japão sempre se viu como Estado-Região, e sua ascensão no
sistema internacional esteve umbilicalmente ligada à dinâmica regional.
Nesse sentido, parece pouco provável que a capacidade do país de
manter-se como uma grande potência, seja por sua pujante economia, por
possuir vantagem na transição tecnológica e por suas capacidades
militares, independa dos vizinhos. Apesar de anti-intuitivo, a autonomia
japonesa, hoje, parece passar mais pela capacidade de lidar com as
dinâmicas asiáticas do que, simplesmente, afastar-se delas.
O debate entre a via regionalista e a via globalista, que se verifica na
polarização política interna, reflete assim a dicotomia que se apresenta
para o futuro da trajetória internacional do país. Nesse sentido, as
respostas que o Japão buscará para retomar o crescimento econômico e
reformular sua matrize energética podem arrastar o país tanto para a
competição desmedida com os vizinhos, quanto para o aprofundamento
do processo de aproximação com os vizinhos. Em termos econômicos, o
Japão, hoje, não pode abdicar da China. Em termos energéticos, o país
busca, no longo prazo, uma transição que lhe permita diminuir sua
vulnerabilidade externa; entretanto, no curto e médio prazo a solução para
isso parece estar no aumento da competição por recursos ou na integração
infraestrutural regional. A resolução da questão energética não é um
problema exclusivo do Japão e por isso incide diretamente sobre o perfil
de interação regional que prevalecerá. Afinal, os mesmos dilemas por que
passa o país, são enfrentados por China e Coreia do Sul.
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108
Capítulo 6
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA
ALEMANHA
Laís Helena Andreis Trizotto
Mariele Laís Christ
Patrícia Assoni Grechi
Luísa Saraiva Bento
Introdução
A Alemanha importa para o estudo da política internacional dada a
sua Capacidade Estatal individual e, principalmente, como esteio da
União Europeia. Suas decisões diante dos avanços e retrocessos da
integração servem como condicionantes para a viabilidade da Europa
enquanto grande potência.
O objetivo deste estudo é analisar em que direção aponta a Política
Externa e de Segurança (PES) da Alemanha. A principal questão da
pesquisa é saber qual será a PES da Alemanha, visto os impactos da crise
de 2008. A pergunta é relevante dado que, desde 1951, a integração
europeia tem sido o principal motor da política externa alemã e, em
virtude da crise econômica, a própria integração da Europa está em
questão.
Isso pode ser facilmente verificado considerando-se os problemas
que a União Europeia recentemente vem enfrentando: a gestão da crise
econômica e a ausência de mecanismos institucionais europeus —
realçada pelo fracasso na aprovação da Constituição em 2005 e posterior
instituição do Tratado de Lisboa e da PESC em 2009 e, não menos
importante, a criação de uma aliança militar entre a Inglaterra e a França
(Entente Frugale, 2010)1.
Para responder provisoriamente o problema da pesquisa, os cenários
1
Para além dos marcos securitários comuns existentes — a OTAN (à qual a Alemanha
aderiu em 1955) e o Eurocorps, criado em 1992 e declarado operacional em 1995, do
qual a Alemanha é um dos fundadores —, a Entente Frugale é a única aliança militar
europeia da qual a Alemanha não participa.
109
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
que seguem foram elaborados: (1) manutenção do contorno básico da
União Europeia (U.E), baseado no eixo franco-alemão; (2) reconstrução
hegemônica: a manutenção da U.E debilitada pela afirmação de parcerias
bilaterais inter-regionais da Alemanha; (3) retorno à forma de soberania
do tipo Independência (WATSON, 2004).
Tendo em vista os cenários, o ponto de partida do trabalho foi
estabelecer uma tipologia acerca da dualidade básica da PES da
Alemanha enquanto Estado nação, aqui caracterizada nos termos de uma
tensão entre o que denominamos vocação atlantista e vocação eurasiana.
A isso se segue um breve histórico e um estudo sobre a economia, a
infraestrutura, a política, e a segurança e defesa. Agregou-se uma análise
sobre o posicionamento da Alemanha frente à transição tecnológica rumo
à digitalização e à crise econômica de 2008 (situação e conjuntura). Por
fim, sistematizam-se três cenários (melhor, intermediário e pior) e uma
breve conclusão.
Importa destacar que a República Federal da Alemanha possui uma
área de 357.022 km² (63º maior do mundo), povoada por,
aproximadamente, 81.305.856 habitantes. A segunda maior população do
continente, de maioria étnica germânica (91%), possui atualmente uma
taxa de crescimento de -0,2% ao ano e situa-se em grande parte nas zonas
urbanas (75%). O PIB alemão é de U$3.577 trilhões (em 2011, e
considerando a taxa real de conversão) e seu PIB per capta é de
U$38.400, o 26º país no ranking mundial. A economia está baseada
principalmente no setor de serviços (70,6%). A atividade industrial vem
em segundo lugar, representando 28,6% do PIB nacional e a agricultura
representa apenas 0,8%. Em termos de qualidade de vida, a Alemanha
está muito bem colocada, com o 9º melhor IDH do mundo.
1. A DUALIDADE ALEMÃ
A localização da Alemanha na Europa central, fazendo fronteira com
um número maior de países do que qualquer outro do continente,
permitiu que, no curso de sua história, sua diplomacia oscilasse entre dois
grandes eixos, o atlântico e o eurasiano, nos quais reside a dualidade
básica alemã.
A centralidade geográfica da Alemanha, por outro lado, também é
uma das maiores vulnerabilidades do país. A Alemanha viu-se, desde
110
Política externa e de segurança da Alemanha
sempre, diante da contingência de relacionar-se com grandes potências a
leste e a oeste e do pesadelo da guerra em duas frentes, ilustrado pela
Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Doravante, para elidir esta
perspectiva, sempre que a Alemanha se projetou em uma direção,
procurou previamente assegurar-se da estabilidade na outra. O seu
próprio surgimento resultou desse aprendizado: obteve a neutralidade da
Rússia para vencer a Áustria (1866) e a França (1871) e passar a existir
enquanto país. Trata-se de uma clara ilustração da vocação eurasiana —
estabilizar-se no leste e projetar-se em direção ao oeste. Por outro lado, a
aliança da Alemanha com a Inglaterra que vigorou até 1914, quando os
capitais ingleses financiaram a construção do Império Alemão, representa
a vocação atlantista, que consiste em se estabilizar no ocidente para
projetar-se ao oriente. Nas duas ocasiões em que a Alemanha não pôde ou
não quis aplicar o aprendizado de evitar a guerra em duas frentes, foi
derrotada ou destruída, como ilustram as duas guerras mundiais.
Naturalmente, alianças implicam valores. A vocação eurasiana,
caracterizada na diplomacia de Bismark, relaciona-se mais aos aspectos
do poder duro e à perspectiva realista, na qual importa a correlação de
forças. Por sua vez, o atlantismo baseia-se no idealismo, no liberalismo e
na ideia de comunhão de valores ocidentais — o que vai desde o “fardo
do homem branco” no século XIX até os direitos humanos no século
XXI.
Entre as duas vocações surgiu o integracionismo. Inicialmente como
perspectiva subalterna, quase marginal, materializada na obra de Eduard
Bernstein (1850-1932), defensor das “colônias civilizatórias”, e Conde
Richard Eijiro Coudenhove-Kalergi (1894-1972), criador do europeísmo,
ambos complementados por Victor Hugo (1802-1885), proponente dos
“Estados Unidos da Europa”. As duas guerras mundiais que conduziram a
Alemanha à miséria e à destruição encarregaram-se de converter o que
antes era uma tendência improvável em principal política de Estado: a
integração europeia, que teve início com a Comunidade Europeia do
Carvão e do Aço (Tratado de Paris, 1951).
Qual é, pois, o sentido atual da dualidade alemã representada pelas
vocações atlantista e eurasiana? Ele é dado pela crise econômica, iniciada
em 2008, e que hoje se apresenta como uma ameaça existencial à União
Europeia.
111
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
2. HISTÓRICO
O território da atual Alemanha era composto, até o século XIX, por
diversos pequenos reinos. O nacionalismo prussiano foi instigado na
Guerra dos Sete Anos, na qual a futura potência alemã do século XX
começou a ser forjada pelos ingleses, como forma de contenção da
França. No Congresso de Viena, em 1815, a fragmentação do território
foi deliberadamente mantida pelas potências, com a criação da
Confederação Germânica. A Unificação alemã só veio a ocorrer em 1871,
quando a política externa do país passou a ser conduzida pelo chanceler
Otto von Bismarck, de uma visão mais eurasiana, voltada para o
equilíbrio entre diversos polos de poder e com ênfase nas relações com a
Rússia e a China.
Em 1890, Guilherme II, o último Kaiser alemão, demitiu Bismarck e
não soube dar continuidade ao seu complexo sistema de alianças, criando
animosidades que contribuíram para a Primeira Guerra Mundial. Hitler
radicalizou essa tendência com o estabelecimento de áreas de influência e
domínios nos países fronteiriços. Vencida na Segunda Guerra Mundial, a
Alemanha foi dividida em quatro setores de ocupação pelos Aliados e, em
1949, dividida em dois países: Alemanha Ocidental, de cunho capitalista,
e Alemanha Oriental, socialista. Nesse período, a política externa da
Alemanha Ocidental foi de alinhamento com as potências ocidentais
como forma de readquirir a confiança dos Aliados. A reunificação ocorreu
em 1990, e o Chanceler da Alemanha Ocidental, Helmut Kohl, assumiu o
poder com uma política híbrida, que envolveu tanto o apoio aos
separatismos nos Bálcãs — procurando aumentar sua influência entre os
países recém-independentes e favorecendo o atlantismo —, como
também uma visão eurasiana, estreitando relações no Oriente. A
integração europeia sintetizou o atlantismo e o eurasianismo. Como
expressou o próprio Kohl, “a integração alemã e a integração europeia
passaram a ser duas faces de uma mesma moeda”.
A Alemanha foi um dos artífices de primeira ordem na União
Europeia. Em 1951, assinou o Tratado de Paris, criando, em conjunto
com a França e outros países, a Comunidade Europeia do Carvão e do
Aço (CECA). A partir de 1962, suas instituições fundiram-se com as da
Comunidade Econômica Europeia (CEE), criada em 1957, consolidando
uma ambição continental de integração. Ainda em 1955, a Alemanha
tornou-se membro pleno da OTAN e o principal pilar terrestre de defesa
112
Política externa e de segurança da Alemanha
do hemisfério ocidental. Do mesmo modo, junto à França, foi pioneira no
processo de transformação da CEE em União Europeia, com o Tratado de
Maastricht, em 1992.
Em Maastricht, dentre outras coisas, foi expressa a ambição da
criação de um aspecto de defesa para a União Europeia — a Política
Externa de Segurança Comum (PESC), uma ideia que já havia sido
debatida quando da tentativa de estabelecimento da Comunidade
Europeia de Defesa, em 1952. Em 2005, o fracasso da Constituição
Europeia, rejeitada pelas populações de França e Holanda em plebiscitos,
colocou a criação do Estado Europeu em cheque e foi considerado uma
derrota para o processo de integração pela Alemanha, já que Merkel se
empenhou muito para que ela fosse aprovada. Como alternativa à
Constituição, surge o Tratado de Lisboa, em 2007, que, com um caráter
mais técnico, conseguiu a institucionalização da PESC através da criação
do cargo de Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e
a Política de Segurança, uma espécie de "Ministro dos Negócios
Estrangeiros da União Europeia”, com responsabilidade em assuntos
militares. Em vigor desde 2009, o Tratado também institui a Política de
Defesa e Segurança Comum (PDSC): um organismo intergovernamental,
ou seja, no qual os Estados-membros são representados, que abrange a
defesa e os aspectos militares. Assim, pelo menos teoricamente, a União
Europeia tem sua própria política externa e de segurança, que a permite
falar e agir em uníssono em questões mundiais.
É importante mencionar aqui a criação da Entente Frugale, em 2010,
para o desenrolar dos acontecimentos da situação europeia atual, pois
acredita-se que o veto alemão à proposta de fusão das duas maiores
fornecedoras de material bélico da Europa — a BAE (inglesa) e a
EADS/Airbus (majoritariamente francesa e alemã) —, em 2012, tenha
relação com a criação dessa aliança militar estabelecida entre Inglaterra e
França.
O papel de liderança que a Alemanha tem exercido na União
Europeia, desde a crise internacional de 2008 e, especialmente, desde que
a zona do Euro entrou em recessão, vem sendo exercido principalmente
através da proposição das chamadas políticas de austeridade fiscal, a
serem abordadas quando tratarmos da situação alemã propriamente dita.
113
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
3. ECONOMIA
Desde o século XIX, a economia da Alemanha já demonstrava seu
potencial de crescimento e competitividade. A expansão econômica e
financeira mudou seu status de nação devedora para uma nação credora
das dívidas de países da América Latina e Europa. O protecionismo,
marca desse século segundo Hilferding, ao favorecer economias
desenvolvidas, também contribuiu para o crescimento alemão, garantindo
maior poder de competição e escala de produção. O Zollverein, aliança
aduaneira que precedeu a unificação alemã, foi forjado com o intuito de
fortalecer o mercado interno da região e torná-lo um impulso para o
desenvolvimento. Com a tática econômica de proteger o mercado interno
e conquistar o mercado europeu, que continua sendo aplicada até hoje, a
Alemanha foi capaz de, no século XIX, adentrar o mercado europeu a
ponto de rivalizar com a Inglaterra, hegemonia da época, e, junto aos
EUA, subjugá-la.
Esse pequeno recorte da história alemã permite compreender o papel
de liderança econômica desempenhado atualmente na União Europeia e a
solidez de sua economia, se comparada com as demais do continente.
Após derrotas nas duas Guerras Mundiais, a Alemanha conseguiu, e até
com certa rapidez, reconstruir sua economia, que hoje é a maior da
Europa. Em 2011, foi o segundo país em volume de exportações
mundiais, perdendo apenas para a China. Devido à existência da União
Europeia e suas facilidades de comércio intra-bloco, muitos dos dez
principais parceiros comerciais da Alemanha são europeus e alguns países
como a Áustria possuem uma pauta de importação com 42% de
dependência dos produtos alemães. É válido destacar a importância das
exportações para a França, que representam 10,2% do total exportado,
figurando como principal parceira da Alemanha nesse quesito. (World
Bank; 2012)
Em relação às importações, a Alemanha detém a quarta posição no
mundo, atrás de Estados Unidos, União Europeia e China. Assim como
nas exportações, o padrão de importação alemã é majoritariamente intrabloco, mas países como Rússia e China também aparecem em posição de
destaque. As importações da Rússia são majoritariamente de
combustíveis e demonstram uma relação de dependência alemã,
especialmente no setor energético, que é reforçada pela construção de
oleodutos e gasodutos entre os dois países.
114
Política externa e de segurança da Alemanha
O Investimento Externo Direto é um indicativo do padrão de
dependência entre países; no caso alemão, esse padrão novamente se
mostra mais voltado para a Europa. Os principais investidores no país são
membros da União Europeia e os Estados Unidos aparecem apenas em
sétimo lugar. Os investimentos alemães também tendem a se concentrar
no bloco, com Estados Unidos e China como terceiro e sétimo lugares em
2009. O fato de grande parte desses investimentos se darem em um
contexto intra-bloco mostra certa interdependência, o que tornaria uma
possível ruptura do bloco ainda mais improvável.
4. INFRAESTRUTURA
A Alemanha dispõe de uma excelente infraestrutura, com todas as
regiões do país interligadas e portos modernos, facilitando o escoamento
da produção industrial. O Vale do Ruhr é a região industrial mais
importante, base da forte indústria automobilística — maior produtora do
mercado europeu, encabeçada pelas gigantes BMW e Mercedes Benz —
e da siderúrgica, responsável por mais de 50% das importações de aço da
União Europeia. Embora haja forte concentração nas cidades do norte, o
parque industrial alemão está bastante espalhado pelo território e abriga
indústrias líderes em diversos segmentos, como a Bayer e a BASF, líder
do mercado mundial na indústria química, na qual a Alemanha é a maior
produtora e exportadora do mundo.
Mas o que vem se mostrando de crucial importância nos últimos
tempos é a questão energética, em duas frentes principais: o crescimento
das energias renováveis em substituição ao uso de energia nuclear e a
grande dependência alemã em relação à Rússia para a obtenção de
petróleo e gás natural. A Alemanha é o país que mais importa e consome
petróleo e gás natural em toda a Europa, além de ser o 7º importador de
petróleo no mundo todo. Estimativas do ano de 2005 mostraram que
essas importações vêm majoritariamente da Rússia (34%), seguida pela
Noruega (15%), Reino Unido (13%) e Líbia (12%). A partir,
principalmente, do oleoduto Druhzba — também conhecido como
“oleoduto da amizade”, por ter sido construído para ligar leste e oeste da
Europa em meio à Guerra Fria — a Rússia fornece aproximadamente
32% do consumo total da União Europeia.
A questão de maior destaque atualmente, no entanto, tem sido a dos
115
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
gasodutos. Em 2012, passou a funcionar o segundo ramal do gasoduto
Nord Stream, construído em parceria com a Rússia (principalmente, mas
com capitais de outros países também). Ligando os dois países através do
Mar Báltico, o Nord Stream veio a reforçar ainda mais a dependência em
relação à Rússia, que fornece cerca de 40% do consumo da União
Europeia; uma única companhia russa, a Gazprom, fornece cerca de 25%
desse total.
A Alemanha vem percebendo a necessidade de diminuir essa
dependência e demonstrou isso ao apoiar a construção de gasodutos
alternativos ao fornecimento russo, em especial o projeto Nabucco que,
desde a concepção de sua ideia, foi também apoiado pela União Europeia
e Estados Unidos. Esse gasoduto passaria pela Turquia, Áustria,
Romênia, Bulgária e Hungria e, a partir daí, o gás seria redistribuído pela
Europa. Porém, problemas com atrasos (a ideia surgiu ainda em 2002),
falta de recursos, dificuldades em estabelecer acordos com os possíveis
fornecedores (Azerbaijão, Turcomenistão, Iraque e Egito) e até mesmo a
concorrência com outros projetos parecem ter ajudado a estagnar o
andamento do Nabucco, de certa forma.
Possivelmente por esses motivos, ao final de 2012, perto da data do
início da construção do gasoduto South Stream, a Alemanha
surpreendentemente anunciou que apoiaria este projeto em detrimento ao
“rival” Nabucco, já que o primeiro é liderado pela Gazprom e será
abastecido pela Rússia, aumentando ainda mais sua projeção e
diversificando suas rotas. Desta forma, o objetivo alemão de não ficar
totalmente dependente da Rússia no suprimento energético mostra-se
cada vez mais distante, apontando para um possível reforço nas relações
entre os dois países. Essa mudança também pode representar um pequeno
afastamento da Turquia, com a qual a Alemanha teria uma oportunidade
de aproximação através do Nabucco.
5. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS
Uma vez que a política externa é também reflexo da política interna
de um determinado país, é de fundamental importância analisar a
estrutura do sistema político alemão e quais são os critérios e os
personagens que influenciam nas decisões de política externa. A
Alemanha é uma república parlamentar federal composta por 16 estados
116
Política externa e de segurança da Alemanha
que possuem grande autonomia decisória. O poder de iniciativa na
política externa é exercido pelo chanceler, atualmente Angela Merkel, no
cargo desde 2005 com mandato até 2013, junto ao Ministério das
Relações Exteriores, que atualmente é comandado por Guido
Westerwelle, no cargo desde 2009.
A Constituição em vigor na Alemanha (Grundgesetz) foi aprovada
em 1949, logo após a II Guerra Mundial. Tal Constituição institui os
direitos fundamentais do ser humano, o regime democrático, o
federalismo e o Estado social como os princípios constitucionais básicos,
de caráter permanente. No que tange ao exercício da política externa,
destacamos três artigos constitucionais que vigoram a respeito. O artigo
24 trata sobre a transferência de direitos de soberania, o qual assegura que
a Federação pode transferir esses direitos para organizações interestatais,
bem como legalmente permite a adesão da Federação em um sistema de
segurança coletiva mútua. O Artigo 25 destaca a preeminência do direito
internacional, ou seja, as regras gerais do direito internacional estão
automaticamente vinculadas ao direito federal. Por fim, o artigo 26 preza
pela paz, aceitando apenas guerras com objetivos pacíficos e regulando o
porte de armas.
A Alemanha possui grande representação de seis partidos, sendo
basicamente três de direita e três de esquerda. Os partidos socialdemocratas cristãos de cunho conservador são os mais representativos,
embora
atualmente
partidos
alternativos
tenham
crescido
substancialmente, como o Partido Pirata e o Partido Verde. Ligada a esta
última ascensão, possivelmente está uma recente e polêmica decisão do
Parlamento alemão de fechar as usinas nucleares da Alemanha até 2022 e
estabelecer o suprimento energético alemão com 80% de participação das
energias renováveis até 2050. Esta crítica decisão do Parlamento pode
estar vinculada às eleições que ocorrerão em 2013 e foi apontada como
uma “manobra política” de Merkel para favorecer os representantes dos
partidos emergentes, uma vez que é o Parlamento quem elege o
chanceler.
Apesar disso, Angela Merkel possui 66% de popularidade entre os
alemães e, nas pesquisas presidenciais, quase 50% da população votaria
em seu partido. Isto indica que Merkel possivelmente permanecerá no
poder e que a população tem apoiado sua política externa de maior
integração regional e de preocupação com a zona do Euro, apontando
117
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
para uma proeminência da vocação atlantista nas questões políticas.
6. SEGURANÇA E DEFESA
Como potência, a Alemanha utiliza-se mais de liderança política e
econômica do que de seus recursos duros como modo de efetivar sua
posição dominante dentro da União Europeia. O que, em parte, serve para
justificar sua menor ênfase na preparação militar. O panorama atual devese, em grande medida, à situação estabelecida após a Segunda Guerra
Mundial, quando a Alemanha foi dividida e completamente
desmilitarizada. Mesmo após o ingresso da parte Ocidental na OTAN em
1955 e da grande responsabilidade que adquiriu sediando quatro de um
total de 14 comandos da OTAN2, o país nunca mais recuperou a
proeminência militar de outrora. Atualmente, suas capacidades militares
não se destacam em comparação com outros países do continente, como
França e Inglaterra e, pelo contrário, muitas vezes seu inventário fica
aquém desses em números. A diferença aumenta se a compararmos com
outras potências europeias como a Rússia, e até mesmo com a Turquia,
também membro da OTAN. Entretanto, os gastos militares alemães
servem para ilustrar a posição de proeminência do país: estão entre os dez
maiores de 2011, representando 46,7 bilhões de dólares (SIPRI Database,
2012).
A Alemanha, em seu Livro Branco, dá ênfase à cooperação em
segurança e segurança coletiva, sendo que parte da missão do
Bundeswehr — as forças armadas alemãs — diz respeito ao auxílio aos
aliados (Germany’s Federal Minister of Defense, 2006). Isso se faz
evidenciar pela participação alemã em organismos internacionais que
enfatizam a cooperação em segurança e defesa, como o Eurocorps e a
Organização do Tratado do Atlântico Norte. Como já mencionado, a
Alemanha tem sua entrada na OTAN concomitante à remilitarização da
Alemanha Ocidental, em 1955. Posteriormente, quando da reunificação
pelos Tratados Dois Mais Quatro, a Alemanha reunificada escolhe
2
Comando do Grupo de Exércitos do Norte (NORTHAG, acrônimo em inglês);
Comando do Grupo de Exércitos Central (CENTAG, acrônimo em inglês); Comando
das Forças Aéreas Aliadas na Europa Central; e Comando Europeu das Forças Aliadas
de Pronto Emprego (ACE Mobile Force, acrônimo em inglês).
118
Política externa e de segurança da Alemanha
permanecer em tal organização. Já em 1992, uma iniciativa franco-alemã
cria os Eurocorps, corpos de exército multinacionais de cinco países:
Alemanha, França, Bélgica, Luxemburgo e Espanha (além disso, Turquia,
Grécia, Itália, Polônia e Áustria são membros associados). Esses corpos
de exército estão à disposição da União Europeia e da OTAN, e sua base
principal está localizada na cidade francesa de Strasburgo. (Eurocorps
Website, acessado em janeiro de 2013).
De relevância também é a atual reestruturação das forças armadas
alemãs. Além de objetivar cortes orçamentais, essa reestruturação
pretende transformar o Bundeswehr em uma entidade altamente
capacitada, flexível e de grande mobilidade. A reforma trouxe novas
estruturas ao exército, que supostamente aumentariam sua flexibilidade e
capacitação. Além disso, o serviço militar obrigatório foi suspenso em
julho de 2011, embora ainda seja aceito o alistamento voluntário (IISS,
2012).
Entretanto, pode-se dizer que o inventário germânico não condiz
com os objetivos expressos de sua reestruturação, notadamente nos
objetivos de mobilidade e flexibilidade. Excetuando-se o exército, as
outras forças armadas (marinha e força aérea) perdem em inventário para
as principais potências. A marinha alemã não possui de facto navios do
tipo destroyer; os que classifica como destroyer são, na realidade,
fragatas. Também não possui porta-aviões ou submarinos nucleares,
apenas submarinos convencionais. Além disso, em uma comparação com
França, Reino Unido, Turquia e Rússia, tem o menor número de caças de
4ª geração e de aviões sisterna, embora tenha um número razoável de
aviões de transporte quando comparada ao Reino Unido, Turquia e
França. A maior vantagem alemã sobre França e Reino Unido se dá em
relação a tanques de ataque (MBT’s), tendo em vista que possui o melhor
modelo de MBT, o Leopard, em quantidades maiores que as possuídas
pelas duas outras nações (IISS, 2012).
Pode-se dizer, após uma análise de sua preparação militar, que a
Alemanha não apresenta capacidade de intervir além-teatro sem se
associar a outros países, visto que suas forças armadas, hoje, conseguem
sustentar apenas 7.000 soldados no exterior. Além disso, a ênfase dada à
cooperação em segurança sugere uma preferência pela integração
europeia a um possível domínio de outros territórios fora do continente.
119
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
7. TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA
A transição tecnológica representa um grande desafio aos países que
almejam se estabelecer como potência ou se manter como tal. A
Alemanha é conhecida por ser uma grande investidora em pesquisa e
desenvolvimento, perdendo apenas para Japão e EUA (gastos em relação
ao PIB). Isso possibilita que seja líder em inovação e pesquisa:
atualmente, é o país que mais registra patentes na Europa; outro indicador
disso é o alto número de publicações de artigos científicos e técnicos.
O retorno desse investimento em capacitação aparece ao
observarmos os avanços em tecnologia. A Alemanha possui o seu próprio
“Vale do Silício”, especializado em microeletrônica e setores
relacionados, onde cerca de 300 companhias atuam — entre elas a AMD
e a Siemens. Também é a maior produtora de alumínio da União
Europeia, apesar da grande dependência de importações de minerais
metálicos. A rede europeia de fibra óptica de alta capacidade, uma espécie
de espinha dorsal das comunicações, mostra que há uma grande
concentração daquilo que podemos chamar de “estradas eletrônicas” na
Alemanha, ligando tanto as cidades entre si quanto o país ao resto do
continente. O sistema de navegação Galileo vem sendo desenvolvido pela
União Europeia com efetiva participação alemã: o projeto inclui a
instalação de 30 satélites até 2020. Atualmente, está em fase de testes e
quatro já foram lançados. A expectativa é de serviços iniciais a partir de
2014 e de que o sistema tenha interoperabilidade com o GPS e o
GLONASS.
A Alemanha possui o quarto supercomputador mais veloz do mundo,
e outros três entre os 25 mais velozes, mas todos eles foram montados
nos EUA, com processadores americanos. Empresas como a Siemens têm
priorizado muito mais o campo energético em detrimento à
microeletrônica. Fatos como esses podem ser encarados como
indicadores de defasagem no campo tecnológico; por mais que seja um
grande investidor dentre os europeus, o país parece estar ficando para trás
em relação a outras potências, especialmente Estados Unidos e China.
Para manter-se com o status de potência, estar entre as líderes nesse
aspecto mostra-se fundamental.
120
Política externa e de segurança da Alemanha
8. SITUAÇÃO E CONJUNTURA
Nosso Marco de Situação é a crise econômica iniciada em 2008, a
qual gerou grandes mudanças no continente europeu, principalmente no
que se refere à posição ocupada pela Alemanha na região. O país assumiu
uma notável posição de liderança na União Europeia, devido ao tamanho
e à força de sua economia, destacando-se como principal credor para a
reconstrução e reestruturação econômica do bloco. Devido à crise, muitos
países com uma fraca base econômica (turismo, por exemplo)
encontraram dificuldades com a recessão e o endividamento
governamental; Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha, conhecidos
como PIIGS, foram os principais afetados.
Ademais, devido à sua economia sutilmente abalada pela crise, se
comparada às de outros países, a Alemanha estabeleceu para o bloco
medidas de austeridade fiscal, que determinavam cortes nos gastos
governamentais dos países mais afetados. Essas medidas são defendidas
pela Alemanha como a única saída para a salvação das economias em
crise, e devem ser largamente aplicadas.
O ano de 2012 para a Alemanha foi marcado, principalmente, pela
afirmação dessa liderança econômica no âmbito da União Europeia,
destacando-se a ajuda econômica aos PIIGS (notadamente a Grécia) e
pela insistência na manutenção e acirramento das medidas de austeridade
fiscal. Ainda no âmbito da União Europeia, é digno de menção que,
durante as reuniões de Cúpula, muitos dos países se recusaram a ampliar
o orçamento do bloco e procuraram adiar decisões importantes,
demonstrando falta de vontade estatal em investir no mesmo. Também se
destacou uma política alemã mais independente, que pode ser
representada pela abstenção de voto na ONU sobre a questão Palestina.
Além disso, foi relevante a provável desistência alemã do projeto do
gasoduto Nabucco3 e a repentina mudança em relação ao financiamento
do gasoduto South Stream, no final do ano. Por fim, o apoio militar
alemão à Turquia, no tocante à defesa do país contra ameaças da Síria,
com o envio de mísseis Patriot e de uma equipe técnica alemã para sua
instalação na fronteira com o vizinho em conflito, assinala o início de
uma possível cooperação futura maior entre os dois países.
3
Em dezembro de 2012, a segunda maior empresa de energia alemã RWE decidiu
abandonar o projeto de construção do gasoduto Nabucco.
121
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
9. CENÁRIOS
Existem três possíveis rumos para a Alemanha nos próximos anos. O
melhor deles, para o qual as decisões referentes à política externa
demonstram preferência, é a continuidade da integração europeia, nos
moldes atuais, baseada no eixo Berlim-Paris-Londres. Os outros cenários
possíveis são de parcerias inter-regionais com Rússia e Turquia. O último
e pior cenário é a volta à forma de soberania do tipo Independência
(Watson: 2004).
A primeira alternativa é a melhor para o país, tendo em vista que o
mesmo permanece como a nação-líder de um bloco que hoje se apresenta
como uma virtual grande potência. A vontade nacional de persistir nesse
projeto é demonstrada pela busca de uma crescente integração
econômica, mesmo em tempos de crise. Os investimentos feitos pela
Alemanha na União Europeia e na recuperação dos países da Zona do
Euro após a crise mundial apenas reforçam uma tendência integracionista
do país, que unifica tanto a vocação atlantista quanto a eurasiana. Em
resumo, neste cenário a União Europeia se mantém como ator político e
econômico forte no sistema internacional.
O cenário intermediário pode ser descrito como um esforço de
reconstrução hegemônica. Seu fundamento são parcerias inter-regionais,
seja com a Rússia e Turquia — vocação eurasiana — ou com os Estados
Unidos — perspectiva atlantista. A ideia básica é a da Alemanha se
fortalecer no âmbito da U.E através de parcerias inter-regionais na esfera
bilateral. Apesar disso não significar uma ruptura formal de
compromissos com a U.E, muito menos o fim da zona do Euro, há um
enfraquecimento visível da capacidade negociadora da U.E como um
todo, já que a Alemanha passa de fato a responder pela região. No âmbito
das parcerias inter-regionais, pode-se destacar as relações bilaterais da
Alemanha com Estados Unidos, Rússia, China e Turquia. Em meados de
2013, por iniciativa alemã, a União Europeia irá negociar uma Zona de
Livre Comércio com os Estados Unidos. No âmbito das relações
estritamente bilaterais, a Rússia assoma-se como forte parceiro, dada a
interdependência recíproca envolvendo, de um lado, capitais e energia e,
de outro, os hidrocarbonetos. Além disso, a China já é, fora da U.E, o
segundo maior parceiro comercial da Alemanha, com um valor anual de
negócios superior a USD150 bilhões. Mesmo a Turquia — que pertence à
OTAN, mas não à U.E — adquire importância tanto na esfera da
122
Política externa e de segurança da Alemanha
transnacionalização de empresas quanto no âmbito securitário. De fato,
apesar das restrições constitucionais, a Alemanha passa a cooperar em
matéria de segurança de forma crescente com países extra-regionais: com
os Estados Unidos na África, com a Rússia na Ásia Central e com a
Turquia no Oriente Médio. Contudo, é ingênuo supor que as parcerias
bilaterais são uma alternativa à U.E; trata-se de fortalecer a posição
negociadora da Alemanha no próprio bloco, para que também, a partir da
proeminência internacional, fortaleça-se a posição alemã no âmbito da
zona do Euro. Entretanto, em política, muitas vezes expedientes
transitórios acabam por resultar em soluções permanentes. Deve-se
reconhecer a existência de uma transição hegemônica, caracterizada pela
ação parcial da Alemanha como Independência (âmbito bilateral) e que
isso acarretaria o enfraquecimento da U.E. Neste cenário, em seu limite
extremo, EUA, Rússia e China tornam-se tão importantes para a
Alemanha quanto seus parceiros da União Europeia.
O pior cenário proposto é o retorno à forma de Soberania
Independência (Watson; 2004). A Alemanha se vê abandonada pela
França e, uma vez que a Inglaterra nunca fez parte da zona do Euro,
impossibilitada de manter as três âncoras do Euro (fiscal, cambial e
monetária). Diante disso, encontra-se na contingência de relançar o
Marco alemão e construir ou disputar uma área de influência própria na
Europa. Isso parece possível, a princípio, dado o seu potencial econômico
— a Alemanha continuaria como centro dinâmico da região formada por
países economicamente mais fracos, com poder de influência sobre os
mesmos. Entretanto, esta seria uma influência limitada, e ocorreria um
“rebaixamento” do patamar de grande potência mundial (pela sua
liderança no âmbito europeu) para potência regional. Por hora, contudo,
essa perspectiva parece improvável.
Conclusão
Ao final deste estudo, podemos concluir que a Alemanha possui as
condições necessárias para ser considerada uma grande potência, ainda
que, em alguns quesitos, esteja a uma distância significativa das outras.
Apesar de suas evidentes limitações em matéria de defesa, ela é o carrochefe da integração europeia. Seu grande trunfo é ser a mantenedora da
União Europeia, seu suporte econômico, diplomático e político, atuando,
123
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
desde sempre, entre os artífices intelectuais e materiais da integração. Ela
continuará uma grande potência enquanto o bloco permanecer nos moldes
atuais, baseado no eixo franco-germano-britânico.
Resta saber se a União Europeia se manterá na configuração atual.
Em caso negativo, merecem atenção duas hipóteses: uma aproximação da
Alemanha com a Rússia, dada a interdependência comum e o interesse
em reduzir a influência estadunidense na Europa leste. Merece igual
atenção a possibilidade, hoje anti-intuitiva — recentemente a Alemanha
barrou mais uma vez a entrada da Turquia na U.E — de uma
aproximação econômica e política com a Turquia. Naturalmente, essas
possibilidades só fazem sentido em um caso intermediário entre o
segundo cenário e o terceiro ou na configuração do pior cenário
propriamente dito, o de soberania Independência.
Em qualquer hipótese, ainda há muito que estudar acerca da Política
Externa e de Segurança (PES) da Alemanha. Para além de possíveis
insuficiências ou equívocos deste trabalho, permanece o fato de que a
política externa alemã encontra-se em uma fase de transição. Os custos da
recente reunificação ainda não haviam sido integralmente absorvidos
quando eclodiu a crise econômica de 2008. Esta, por sua vez, colocou em
questão o fundamento da PES estabelecida desde o pós-guerra: a
integração. E, a crise da integração europeia recoloca a dualidade entre
atlantismo e eurasianismo, que caracterizaram o Estado nacional.
Permanece em aberto saber qual será o contorno final da PES da
Alemanha, mas, qualquer que seja seu desdobramento, terá importantes
repercussões para a política internacional como um todo.
Referências
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International Institute for Strategic Studies. The Military Ballance 2012.
Routledge USA, 2012.
KHANNA, Parag. O Segundo Mundo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2008.
KISSINGER, Henry. Diplomacia. Rio de Janeiro: Livraria Francisco
Alves Editora, 1999. Capítulos 5, 6, 7 e 8.
KISSINGER, Henry. O Mundo Restaurado. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio, 1973.
124
Política externa e de segurança da Alemanha
MCMEEKIN, Sean. O Expresso Berlim-Bagdá. São Paulo: Globo 2011.
UNESCO. UNESCO Science Report 2010. Paris: UNESCO Publishing,
2010.
WATSON, Adam. A evolução da sociedade internacional: Uma análise
histórica comparativa. Brasília: Universidade de Brasília, 2004.
Endereços Eletrônicos:
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https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/
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http://www.tatsachen-ueber-deutschland.de/de/home1.html
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Stockholm International Peace Research Institute — SIPRI. Disponível
em: http://www.sipri.org/databases
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The World Bank Group. Disponível em: http://www.worldbank.org/
Wikipedia, The Free Encyclopedia. Disponível em:
http://en.wikipedia.org/
125
Capítulo 7
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA
FRANÇA
Andressa Cristina Gerlach Borba
Luciana Costa Brandão
Maximilian Dante Barone Bullerjahn
Marina Soares Scomazzon
Natasha Pergher Silva
Valentina Assis Arnt Andreazza Rossi
Introdução
O presente estudo tem como foco de análise o atual posicionamento
da República Francesa no sistema internacional, atentando para sua
atuação na Europa, no continente africano e no Oceano Índico. Para
tanto, elegemos o seguinte problema como norteador da nossa pesquisa: a
França tem capacidade — militar, econômica e política — para manter-se
como uma das potências do sistema interestatal? Em função da sua
influência no mundo ocidental, parte-se do diagnóstico de que o país
ainda se mantém como uma das potências do século XXI.
O presente artigo instrumentaliza sua análise a partir de uma
dualidade histórica da política externa francesa entre uma vocação ora
direcionada para o Império, ora voltada para a Integração. A dualidade
estará presente em todas as esferas de nossa análise daqui para frente e
configura um elemento chave para os possíveis cenários que
apresentaremos no final do artigo.
1. A DUALIDADE FRANCESA: FRANÇA IMPÉRIO E FRANÇA
INTEGRACIONISTA
O exame da história francesa permite-nos identificar uma dualidade
na essência da atuação do país no cenário internacional, manifestada por
meio de uma política externa que, ora se direciona a uma posição
imperial — de modo a se impor por meio da força e da coerção —, e ora
126
Política externa e de segurança da França
projeta-se através de posições integracionistas — marcadas pelo
compartilhamento de soberania. Tal dualidade pendula entre esses dois
polos sem chegar aos seus extremos, o que significa que, mesmo quando
há preponderância de um, manifestam-se traços do outro.
Para melhor ilustrar essa dualidade recorremos a dois personagens
importantes da história francesa: Napoleão Bonaparte e Charles De
Gaulle. O Império Napoleônico foi um dos momentos em que a França se
expandiu sobre grande parte da Europa, assegurando o controle e a
organização política e militar dos territórios sobre os quais se projetava.
Assentamentos temporários do Império Francês em outros continentes e
os territórios dominados pela França na África e no Índico são exemplos
do polo França-Império.
Já a França-Integracionista se expressa na tentativa de criação de
instituições econômicas e políticas e no estabelecimento de uma liderança
sob os moldes franceses para a Europa, manifestada com clareza durante
a administração de De Gaulle e mantida nos governos posteriores. Cabe
ressaltar, porém, que o conceito aqui utilizado de Integracionismo tem
suas raízes em um momento histórico anterior com a ideia de Federação
exposta no livro O Espírito das Leis (1748), de Montesquieu
(MONTESQUIEU, 1973). A obra trata da construção de uma República
Federativa, como forma de as cidades-Estado unirem-se para resistir ao
controle imperial externo. Para o estudo do caso francês, a noção de
Federação é trazida para o cenário contemporâneo inserida nas ações
políticas de integração europeia desde a década de 1950. Ao longo da
análise histórica, portanto, elementos desta dualidade dialogam com
eventos e tendências políticas adotadas pelo país.
2. HISTÓRICO: RETOMADA DE FATOS E ILUSTRAÇÃO DA DUALIDADE
No início dos anos 50, as lutas por independência, em especial nos
domínios franceses e britânicos, demonstram o esgotamento do modelo
imperial assumido até então pelos países do velho continente e a
necessidade de alteração na política externa do país. A Crise da Argélia
culmina com a independência da colônia francesa em 1954. Em 1956, o
movimento nacionalista anti-imperialista egípcio, comandado por Nasser,
promove a nacionalização do Canal de Suez, construído em meados do
século XIX e ainda sob controle francês e britânico.
127
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
A intervenção Franco-Britânica na Crise de Suez é combatida pelos
EUA, que defendem a retirada das tropas destes países da região. Como
resultado da Crise, ocorre o afastamento da França em relação aos EUA e
um esfriamento das relações Franco-Britânicas, desde que a Inglaterra
havia decidido fortalecer seus laços com os EUA (MAIOR, 2003: p.213).
A partir daí, a Inglaterra e os EUA deixam de ser vistos pela França como
aliados genuínos e esta se volta para a busca de uma unidade europeia
como caminho para recobrar sua projeção internacional abalada após a
Crise. Este processo culmina em 1966 com a saída da França da OTAN,
durante o governo de Charles DeGaulle.
Durante a administração gaullista percebe-se que uma alternativa
para que a França desempenhasse um papel importante no cenário
internacional seria abandonar o seu compromisso moral com o "Império",
em busca de um modelo mais voltado para a Europa (WERTH, 1967:
p.315). O projeto de integração europeia baseava-se nas ideias de assumir
uma autonomia frente aos Estados Unidos e reconciliar-se com a
Alemanha Ocidental, buscando um projeto conjunto liderado pela França.
Ao sair da OTAN, desativar as bases aéreas da organização localizadas
em seu território e desenvolver um programa nuclear autônomo, a França
busca afirmar sua grandeza nacional e independência. A criação da
Comunidade Econômica Europeia (CEE), assim como o veto da França
ao pedido de participação da Grã-Bretanha no Mercado Comum Europeu,
é outro lado da expressão iniciada no governo De Gaulle, voltada para a
integração europeia e comprometida com o afastamento da influência
estadunidense na região. O Tratado de Maastricht, de 1992, é o
documento que consolidará os esforços de integração iniciados com De
Gaulle.
A institucionalização da integração europeia se dá a partir de dois
modelos: o ideal de uma comunidade europeia, expressão de um método
de tomada de decisões supranacional que abrange assuntos referentes à
política comunitária; em oposição ao mecanismo intergovernamental de
decisões referentes à Política Externa de Segurança Comum (PESC) e aos
assuntos internos, mantendo a soberania dos Estados-membros quanto a
aspectos estratégicos. Em 2005 propõe-se uma Constituição Europeia —
uma instituição que seria o passo decisivo para a consolidação da
integração europeia nos termos clássicos do federalismo: a formação de
um "Estado Europeu". A medida não foi posta em prática depois da sua
128
Política externa e de segurança da França
rejeição pelas populações da França e dos Países Baixos. No sentido
oposto, o Tratado de Lisboa de 2007 apenas reafirma o mecanismo de
decisão intergovernamental já estabelecido em Maastricht, não agindo
como real fortalecedor do processo de integração. A Política Externa de
Segurança e Defesa falha, portanto, na capacidade real de atuação, pois a
criação de um acordo de defesa e segurança comuns mantém-se
condicionado ao plano de decisão doméstico.
O direcionamento da política externa francesa para o polo
imperialista ocorre a partir do governo de Jaques Chirac. Nele, há um
endurecimento político francês no cenário internacional principalmente
quanto à administração de suas esferas de influência, aumentando a
projeção de forças para o Índico e instituindo-se a Doutrina Chirac, a qual
permite a utilização de armas nucleares mesmo contra países que não as
possuem. Em paralelo a isto, houve o retorno à OTAN, concluído em
2009 no governo de Sarkozy.
A análise destes eventos históricos evidencia que o padrão de
alinhamento francês convive com um desejo de estabelecer-se enquanto
polo do sistema internacional, mantendo as bases para sua projeção de
força.
3. A ECONOMIA COMO VARIÁVEL INTERPRETATIVA DA DUALIDADE
FRANCESA
A França sempre foi fundamental para o continente europeu, pois,
como polo industrial consolidado, atrai investimentos estrangeiros
independentemente de flutuações econômicas ou políticas. Em 2011, o
PIB do país chegou a 2,7 trilhões de dólares, tornando-se a 10ª economia
do mundo e 3ª na Europa — atrás da Alemanha e do Reino Unido (CIA,
2012). Para o presente trabalho, a relação econômica com esses dois
países é encarada como uma chave de interpretação da dualidade
anteriormente exposta. Por um lado, a aproximação com a Alemanha no
âmbito econômico caracteriza uma postura mais integracionista pela
necessidade de simbiose entre ambos para o êxito da União Europeia. Por
outro lado, o estreitamento dos laços com a Inglaterra configura a
afirmação da autonomia francesa, pautada em uma política externa mais
independente e de expansão da sua área de influência para fora do
continente europeu.
129
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
A Alemanha, principal parceira comercial da França, é responsável
por 16,7% das exportações e 19,1% das importações do país, sendo o
comércio entre eles quase duas vezes maior do que com a Bélgica e com
a Itália (segundos colocados na relação de parceiros comerciais), o que
confirma a interdependência econômica de ambos. A participação do
Reino Unido corresponde a 6,7% das exportações, e 5,1% das
importações francesas, o que demonstra que a França mantém uma
relação mais estreita com a Alemanha do que com o Reino Unido
(BRIDGAT, 2008).
Em 2011 o relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI)
diagnosticou deterioração das finanças públicas francesas causadas por
fatores estruturais e pelo impacto da crise financeira de 2008,
demonstrando os efeitos negativos do aprofundamento da integração.
Além de desequilíbrios fiscais, a perda de competitividade da economia,
as dificuldades estruturais no mercado de trabalho e os gastos com
seguridade social também foram mencionados. As medidas
recomendadas pelo FMI não previam alinhamento no âmbito da UE,
deduzindo que as dificuldades econômicas só seriam convertidas através
de medidas governamentais (IMF, 2011a).
As dificuldades econômicas enfrentadas pela França são um
elemento chave para a compreensão da política externa do país nos
próximos anos. A rejeição da Constituição Europeia se deu, em grande
parte, por fatores econômicos, de modo que uma economia frágil pode
impedir o fortalecimento da parceria franco-alemã e da União Europeia.
A alternativa, nesse caso, seria a busca de parceiros extracontinentais,
seja entre os países em desenvolvimento, seja com os EUA. A partir desta
análise, então, reconhecemos a presença de condicionantes econômicos
na dualidade francesa.
4. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS:
A política francesa possui uma característica determinante: a
autoridade reforçada do executivo em relação ao parlamento. O executivo
é de regime semi-presidencialista, composto pelo presidente da República
e pelo primeiro-ministro. O Parlamento auxilia o Presidente na definição
da estratégia de segurança nacional e autoriza o envio das forças armadas
para o exterior.
130
Política externa e de segurança da França
Duas ideologias divergentes dominam o cenário político francês,
com confrontos que variam ao longo da história. Atualmente, esta
divergência se efetiva por meio de dois grupos políticos opostos: um de
esquerda, centrado no Partido Socialista Francês, e outro de direita,
centrado na União por um Movimento Popular (UMP). Ao analisar os
períodos nos quais a França esteve sob comando de partidos de esquerda
percebe-se uma tendência integracionista européia, através de uma
liderança franco-alemã, e um alinhamento com o terceiro-mundo. Em
governos nos quais a Direita ocupa o poder executivo, existe uma
projeção mais ofensiva da França buscando uma reafirmação do poder e
do status quo nacional francês.
Esta característica da política externa francesa é salientada em
períodos de coabitação, quando o poder executivo é dividido por dois
partidos de oposição, sendo o primeiro-ministro responsável pelas ações
de governo, enquanto cabe ao presidente a política externa. Isto ocorreu
três vezes na história da França, sendo o período de governo MitterrandChirrac (1986-1988) o mais exemplar.
5. SEGURANÇA E DEFESA: ENTRE A HEGEMONIA COLETIVA E O
IMPÉRIO NEOCOLONIAL
A doutrina de segurança e defesa que orienta a política externa da
França pauta-se no Livro Branco de Defesa francês de 2008, o qual
tenciona garantir a posição de potência militar e diplomática da França,
assegurando a independência do país e a proteção de seus cidadãos
(FRANÇA, 2008). Tal doutrina foi elaborada dentro de um contexto
internacional que, segundo seus idealizadores, exige capacidades de
antecipação, de adaptação rápida e de resposta por parte de seus agentes.
Partindo desse novo contexto, o Livro mostra que os desafios à
segurança francesa se assemelham àqueles presentes na Estratégia de
Segurança Europeia, divulgada em 2003, a qual buscava um
enfrentamento conjunto dos riscos à segurança dos Estados europeus e
pretendia, como parte dos objetivos estratégicos, garantir uma ordem
internacional baseada no multilateralismo. É importante lembrar que,
embora haja uma Estratégia de Segurança Europeia e uma Política
Externa de Segurança Comum (PESC) as decisões a respeito do assunto
continuam sendo, em última instância, governamentais e não
131
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
supranacionais.
A Estratégia de Segurança da França ainda enfatiza os desequilíbrios
securitários do norte da África, da Ásia Central e do Oriente Médio,
região denominada como “Arco de Crise”. A presença francesa no Índico
e na África remonta ao período do colonialismo e da partilha da África no
século XIX e faz parte da história política francesa dentro da busca pelo
seu status de hegemonia e reconhecimento como potência. Atualmente o
país tem bases militares permanentes na região do Oceano Índico - nas
ilhas de La Réunion e Mayotte -, nos Territórios Franceses Austrais e
Antárticos, bem como em Abu Dhabi. A localização estratégica na região
possibilita o acesso tanto ao Oriente Médio como à África e o
acompanhamento das rotas de comércio existentes na região,
principalmente de armas, matérias-primas e petróleo. Ademais, cada um
dos territórios franceses no Índico ainda proporciona uma extensão de 11
milhões de km² de Zonas Econômicas Exclusivas, permitindo a
exploração e uso de recursos marítimos, inclusive para produção de
energia.
No continente africano, a França possui bases permanentes apenas
em Djibouti e no Gabão (ZOUBIR; DEGANG, 2011: 101), mas atua em
missões de paz na Costa do Marfim e no Chade, bem como em operações
para conter a pirataria na costa da Somália e auxiliando através de
missões da ONU a reforma no sistema de segurança da República
Democrática do Congo. Apesar de dados apontarem que quase metade
das tropas francesas fora do continente europeu está na África,
argumenta-se sobre uma mudança da mentalidade da ocupação francesa
em direção a uma “europeização” das missões através da cooperação
militar com outros países (ZOUBIR; DEGANG, 2011). Mudança essa
que pode ser compreendida tanto como uma alteração da postura
francesa, ou como uma necessidade estrutural própria.
O foco da política de defesa da França enfatiza as capacidades
móveis, bem como a redução do contingente, do número de aviões de
combate, e do número de estabelecimentos de serviços, com vistas a gerar
recursos para investimento em capacidades (IISS, 2012). Busca-se, com
isso, garantir resultados mais eficientes e racionalizar custos, sem
comprometer o rendimento das forças armadas. Esse esforço de
modernização, através de investimentos em tecnologia e redução dos
gastos em custeio configura um elemento essencial para essa análise, uma
132
Política externa e de segurança da França
vez que é um dos condicionantes da perda de competitividade militar da
França em relação às demais grandes potências.
Em concordância com a proposta de racionalização de custos em
defesa, um acordo de cooperação militar foi firmado entre França e GrãBretanha em 2010. Conhecido como Entente Frugale, visa à coordenação
das forças armadas de ambos os países nos seus diversos níveis de
atuação (exército, marinha, aeronáutica). O desenvolvimento de uma
sólida base industrial de defesa, bem como a consolidação de uma
doutrina militar conjunta, configuraram os eixos norteadores da
aproximação franco-britânica, resultando no estabelecimento de uma
força conjunta expedicionária combinada (CJEF). Programas de
treinamento conjunto, como o Exercise Flandres 2011, foram criados com
vistas a testar os níveis de interoperabilidade entre os exércitos. Esses
acordos militares indicam que o país tem buscado criar sinergias de
projeção, em especial na África Setentrional e Oriente Médio.
A arquitetura marítima da Entente Frugale é formada por três portaaviões: o Charles de Gaulle, francês, e os Queen Elizabeth I e II,
britânicos — estes últimos ainda em fase de construção, com previsão de
entrega para 2016. A cooperação conta com pesquisas conjuntas para
promover avanços tecnológicos, assim como a utilização compartilhada
dos porta-aviões por ambos os países. Finalmente, o acordo previa na
esfera aeronáutica a aquisição de equipamentos, o aprimoramento
tecnológico de sistemas aéreos não tripulados, o desenvolvimento de
armas complexas e de comunicação via satélites, a fabricação de mísseis
(SCALP-EG/Storm Shadow) e o suporte logístico para a aeronave de
transporte A400M, visando ao compartilhamento de gastos de custeio.
Outros projetos colaborativos da França incluem ainda a venda de 4
navios da classe Mistral para a Rússia e a participação em projetos
desenvolvidos no âmbito da OTAN, como o Projeto SCORPION . Cabe
salientar que, a despeito dos múltiplos acordos na esfera militar, há um
esforço por parte do governo francês em fortalecer as empresas militares
nacionais, sendo o principal exemplo a Dassault, de quem o governo se
comprometeu a comprar 11 aeronaves por ano, de 2011 a 2013, para
garantir a linha de produção do Rafale.
Finalmente, o que se pode perceber em termos de cooperação
militar, condizente com a dualidade que norteia o presente estudo, é que a
França tem buscado se consolidar militarmente através desses projetos
133
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
colaborativos, desde que esses garantam o acesso à capacidade e à
tecnologia, como uma maneira de superar o atraso em relação às demais
potências mundiais, a fim de recompor suas capacidades e efetivar a
transição tecnológica.
Se comparada aos Estados Unidos, à Rússia, à China e à Índia as
forças de manobra terrestre francesas são pouco significativas, sendo
similares às do Reino Unido. Tal debilidade, no entanto, não se faz
presente quando se trata de forças aéreas. França e Reino Unido possuem,
conjuntamente, 95 unidades de aviões de transporte pesado (56 e 39,
respectivamente), o que lhes confere ampla capacidade de aerotransporte
inter-regional se comparada com Índia (24) e China (57). Esses números
colocam a Entente Frugale em posição relevante no que tange à
mobilidade estratégica. Em se tratando de aviões de combate, a França
possui 263 aviões de quarta geração. Segundo a RIA Novosti, no entanto,
a França tem acompanhado o movimento da Rússia, dos Estados Unidos
e da China no sentido de produzir um novo complexo de aviação militar.
Os esforços em desenvolver novos aviões de combates, mais modernos e
com tecnologia avançada, são evidentes e configuram a tentativa de
chegar à sexta geração de aviões de combate.
Já em termos de projeção marítima, a França pode ser considerada
uma potência relevante. O porta-aviões Charles De Gaulle, além de ser
um elemento essencial para a arquitetura da Entente Frugale, é capaz de
carregar até 40 aviões de combate, sendo fundamental para a projeção
francesa no Índico e para a consecução da prioridade estratégica
materializada no “Arco de Crise”. Em 2011, o Charles De Gaulle
participou da operação no Mediterrâneo que deu suporte à invasão da
Líbia por parte da OTAN. Cinco meses após o início da missão, o portaaviões teve de abandonar a operação devido à necessidade de
manutenção.
A partir dos dados expostos acima, nota-se que a França possui
capacidade para projeção de forças fora do continente quando focada em
apenas um local. O envio de forças para mais de uma região inviabilizaria
a estratégia francesa e não seria eficaz, dada a desvantagem numérica e
tecnológica de seu efetivo frente ao de outros países que emergem como
potências regionais. Entretanto, também é possível ver que, através de
seus acordos de cooperação com a Inglaterra, o país reforça e moderniza
seu contingente, possibilitando uma estratégia de projeção em mais de um
134
Política externa e de segurança da França
continente.
6. INFRAESTRUTURA E TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA: O FORTALECIMENTO DO PILAR INTEGRACIONISTA
A dependência do petróleo e do gás natural estrangeiro é o elemento
essencial para a análise da PES da França no que tange à infraestrutura,
justificando a intensa rede de oleodutos e gasodutos compartilhados com
seus vizinhos europeus, e o apoio francês a projetos como o gasoduto no
Mar Báltico, o Nord Stream. Atualmente, a França apoia o projeto South
Stream, que parte da mesma origem - a Rússia - porém atravessando o
Mar Negro e fornecendo gás para o centro da Europa.
Devido a essa dependência, a energia nuclear foi a alternativa
adotada pela França. Hoje o país conta com um total de 59 reatores e
administra por volta de 20 usinas nucleares, produzindo cerca de 80% da
eletricidade na França. A sustentabilidade deste modelo no século de
transição para as energias renováveis é, no entanto, questionável.
Os investimentos em infraestrutura de transporte também atuam
como elemento edificador do processo de integração europeu. Dentre os
principais projetos ferroviários, destacam-se o Eurostar e o TGV. O país
tem dado preferência a projetos europeus, a exemplo do Connecting
Europe Facility, que prevê 40 bilhões de euros investidos nas áreas de
transporte, telecomunicações e energia nos países do bloco. Outro caso de
cooperação intraeuropeia é o sistema de navegação por satélite da União
Europeia, o Galileo (ESA, 2012).
A capacidade em realizar a transição tecnológica para a Terceira
Revolução Industrial depende de investimentos na área de Pesquisa e
Desenvolvimento (P&D). Os gastos do governo francês com P&D são da
ordem de 2,1% do PIB - em torno de 43 milhões de dólares (UNESCO,
2010: 166; R&DMAGAZINE, 2011). Estes valores perdem força quando
comparados às economias asiáticas como o Japão e China, e aos próprios
EUA. Em termos de capacidade de inovação, a França é considerada um
"seguidor de inovações" (EUROPEAN COMISSION, 2009: 10),
enquanto Alemanha e Reino Unido ocupam posições de liderança. No
entanto, entre os supercomputadores mais velozes do mundo, a França é o
único país europeu que realiza a montagem dos equipamentos (TOP500,
2012), ao passo que os demais importam seus modelos dos Estados
135
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
Unidos, o que evidencia sua posição de potência.
Quanto às matérias primas primordiais para a Terceira Revolução
industrial, como alumínio, silício e terras raras, nota-se uma preocupação
do governo francês em aperfeiçoar as técnicas de extração e produção,
muito embora, o país não possua em quantidades significativas tais
elementos em seu território. Pode-se dizer que a França possui as
capacidades necessárias para se estabelecer enquanto potência
tecnológica e como uma das líderes ocidentais nesta nova etapa da
produção, desde que sua projeção global seja feita em conjunto com a
União Europeia. Por fim, o continente africano apresenta-se como
elemento chave para que a França lidere o processo de transição
tecnológica, e a manutenção da esfera de influência francesa sobre
Estados africanos que possuem recursos estratégicos é vital.
7. SITUAÇÃO E CONJUNTURA
O marco da situação é a eleição de François Hollande para a
Presidência da França. Hollande concorreu pelo Partido Socialista e
derrotou o então presidente Nicolas Sarkozy, candidato pela UMP.
O novo presidente socialista tem se deparado com desafios tanto no
âmbito doméstico, com o agravamento da crise econômica, como no
âmbito europeu, com os desentendimentos em relação às políticas fiscal e
monetária promovidas pela Alemanha. Outra questão polêmica gira em
torno do Banco Central Europeu, o qual, na visão francesa, deve ser
utilizado como um órgão promotor de políticas macroeconômicas, ao
passo que os alemães defendem a sua neutralidade, elemento que dificulta
o pilar integracionista da PES da França.
A despeito de constituir, em conjunto com a Alemanha, o principal
pilar da integração regional, a França tem projetado sua influência além
da Europa. Como antiga potência colonial, fazem parte da República
Francesa uma série de territórios ultramarinos e, além disso, há um vasto
leque de países — como as ex-colônias situadas no “Arco da Crise” —
que mantêm laços estreitos com a antiga metrópole e dela permanecem
dependentes. A instabilidade na política interna de alguns destes países
tem servido de justificativa para ações militares francesas. São os casos
da Costa do Marfim, do Mali e da República Centro-Africana, que
receberam tropas francesas nos últimos meses. Esses eventos servem para
136
Política externa e de segurança da França
ilustrar que a manutenção da zona de influência francesa extrarregional
está relacionada à sua capacidade de projeção de força além teatro.
A França vive um dilema: por um lado, parece depender das
intervenções para manter sua influência mundial; por outro, isto tem
dificultado o entendimento com a Alemanha no que diz respeito ao futuro
da integração e o rumo dos gastos militares europeus. Assim, cabe à
República Francesa avaliar com precisão as medidas que devem ser
adotadas para que sua condição de grande potência se coadune com seus
propósitos de integração na União Europeia.
8. CENÁRIOS
Nesta modelagem considerou-se que o melhor cenário para a França
seria o fortalecimento da integração europeia, reafirmando sua economia
como um dos sustentáculos do Euro. Deste modo, seria possível alcançar
um consenso quanto ao futuro da União Europeia e superar a crise
juntamente aos outros países europeus. Resta saber o efeito que isso teria
sobre a PES da França, pois a esfera de decisão nacional seria transferida
para uma nova unidade política maior. Igualmente, ficaria em aberto o
caráter da interação francesa com a África. Qualquer que seja o caso, em
um horizonte predizível de eventos, parece que as ex-colônias francesas
permanecerão dependentes de capitais, tecnologia, mercadorias e serviços
da França.
Convencionou-se que o pior cenário seria a retomada do
imperialismo. A Entente Frugale encarrega-se de conferir estatuto de
realidade a essa especulação. Isso traduziria o reforço das ações típicas da
França-Império, emulando o chauvinismo e transmitindo a impressão
dúbia de um poderio ampliado. As capacidades francesas no âmbito da
Entente Frugale autorizam a pensar que sua influência poderá ser
exercida de modo efetivo, simultaneamente, no Oceano Índico e na
África - o “Arco da Crise”. Nesta hipótese resta saber, como esta postura
refletiria na integração europeia. Ademais, fica em aberto os efeitos sobre
o aumento dos gastos com custeio militar e os investimentos necessários
para a transição tecnológica.
Por fim, convencionou-se como o cenário intermediário a hipótese
da França conciliar sua projeção global com o financiamento da transição
tecnológica através do incremento de parcerias interregionais com a semi137
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
periferia. Essa configuração coloca os mercados da semi-periferia como
potenciais parceiros para a França. A principal diferença para o segundo
cenário é que a França procuraria beneficiar-se da exportação de bens e
serviços de alto valor agregado. Desse modo, Brasil, Rússia, Índia, e
China se tornariam os principais focos da PES da França. Caso o esforço
seja bem-sucedido, a França poderia, simultaneamente, reter seu papel de
grande potência e otimizar sua economia como alavanca do Euro,
fornecendo a esses países tecnologia, bens de capital e material bélico.
Conclusão
Indubitavelmente, a França é uma grande potência. Qualquer que
seja o critério (econômico, político e militar) é difícil de colocar em
questão o status internacional da República Francesa. A França possui um
respeitável arsenal nuclear, termo-nuclear, submarinos lançadores de
mísseis balísticos intercontinentais e compartilha com os EUA a condição
única de deter capacidade de projetar forças convencionais em qualquer
recanto do planeta — prerrogativa que nem mesmo a Rússia ou a China
possuem. Trata-se do único país da Europa que produz
supercomputadores, o que, associado ao seu domínio aeroespacial, lhe
insere favoravelmente na transição tecnológica.
Percebe-se que o país vive um dilema entre o integracionismo e o
império. A escala de sua economia é portentosa e, apesar de seu déficit
(comercial e fiscal), bem como da crise econômica europeia, a condição
de país enquanto exportador de capitais e tecnologia se mantém até o
presente. Desse modo, a reestruturação da sua inserção internacional
parece possível. Em estudos futuros, portanto, importa observar a
correlação entre os gastos com custeio e os investimentos de capital.
Talvez, este se constitua em um dos principais indicadores acerca do
status da França na transição tecnológica e de sua manutenção como
grande potência ao longo do século XXI.
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141
Capítulo 8
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DO
REINO UNIDO
Glaúcia de Siqueira Noronha
Jéssica Delabari de Lima
Marina Lua Vieira dos Santos
Matheus Schneider Gebhardt
Introdução
O Reino Unido, junto com França e Alemanha, compõe o tripé que
comanda os destinos da União Europeia (UE). A aliança com os Estados
Unidos permitiu que o país se mantivesse no centro da governança
global, e consistiu em apoio fundamental à liderança americana em nível
global. Por último, constitui por si só uma força política-econômicafinanceira de relevo, com forças armadas modernas e capacidade
dissuasória nuclear consolidada. Neste sentido, buscamos aqui apontar os
principais eixos da Política Externa e de Segurança (PES) britânica,
elencando seus constrangimentos externos e internos, suas possibilidades
e os recursos que se colocam à disposição do país.
O Reino Unido é a unidade política que congrega os Estados da
Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales, estendendo-se sobre
243.610 km2 e organizado sob um sistema parlamentarista comandado
por um monarca (chefe de Estado) e um primeiro-ministro (chefe de
Governo). Hoje, ocupam os cargos a Rainha Elizabeth II e David Donald
Cameron, respectivamente. O Reino Unido está entre as principais
economias do globo, ostentando um Produto Interno Bruto (PIB) de US$
2,3 trilhões (7º) e um PIB per capita de US$ 36.728 (21º). A população
de 61 milhões se concentra basicamente nas cidades (89,9%) em
detrimento do campo (10,1%), o que reflete bem a economia baseada na
atividade de serviços (73%, contra 16,7% da indústria e 10,3% da
agricultura).
142
Política externa e de segurança do Reino Unido
1. HISTÓRICO
1.1. A Aliança Anglo-Americana
A relação especial construída entre Inglaterra e Estados Unidos tem
seu embrião no contexto de II Guerra Mundial, sendo particularmente
sintomáticos a ocorrência da Missão Tizard e seus desfechos: a cessão de
tecnologias britânicas vitais em favor do poderoso complexo industrial
americano; e a "divisão de trabalho" que cedeu aos EUA os louros da
aviação civil-comercial, a qual se desenvolveria amplamente na segunda
metade do século XX (ENGEL, 2005). No período de Guerra Fria, o
Reino Unido apresentou-se como principal aliado norte-americano,
agindo como base avançada na Europa e fazendo uso de suas porções
extraterritoriais em benefício do projeto de "cercamento" da URSS
(ELLIS, 2009, p.34). É nesse contexto que EUA e Reino Unido avançam
também na constituição de uma rede compartilhada de inteligência
(Acordo UKUSA, 1946), que abarcaria mais tarde Canadá, Austrália e
Nova Zelândia, constituindo o grupo dos Five Eyes. Outrossim, faz-se
necessário destacar o crescimento da importância dos Estados Unidos da
América (em oposição ao declínio relativo do RU) para a política externa
e de segurança dos países da Commonwealth, que historicamente tinham
na Inglaterra o seu aliado mais eminente (GARDHAM, 2010)
Findo o período de Guerra Fria, pouco mudou nas relações EUAReino Unido. Já em 1991, George Bush (republicano) e John Major
(conservador) empreenderam a primeira intervenção conjunta no Iraque
de Sadam Hussein. Em 2001, a invasão do Afeganistão contou com apoio
irredutível britânico, apesar do ineditismo da Guerra ao Terror enquanto
conflito não-interestatal. Finalmente, a segunda guerra no Iraque (2003)
reforçou a ideia de relação especial entre EUA e RU face à voz solitária
— mas irredutível — de Tony Blair no suporte à invasão americana. Fato
curioso, mas não menos revelador da hipótese de relação especial, foi a
sinergia verificada entre os governos de Tony Blair (trabalhista) e de
George Walter Bush (republicano), que ocorreu à revelia das
incongruências político-ideológicas: intuitivamente, esperar-se-ia maior
cooperação nos períodos que sobrepuseram democratas e trabalhistas ou
republicanos e conservadores no poder dos Estados americano e
britânico, respectivamente. Verificar que isso não é necessariamente
verdade, no entanto, revela uma disposição institucional e fortemente
143
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
arraigada em torno da cooperação e coordenação (hierarquizada) das
políticas empreendidas pelos Estados americano e britânico.
1.2. O Reino Unido e a Política Externa e de Segurança Comum (UE)
O Tratado de Lisboa, que entra em vigor em 2009, teve como
objetivo reformular o funcionamento da União Europeia. Entre as
reformulações, está a mudança da Política Externa e de Segurança
Comum (PESC) para a Política de Defesa e de Segurança Comum
(PDSC), que engendrou a criação de um acordo de defesa comum da UE.
O Reino Unido, diante das mudanças, preferiu optar por ter direito de
exceção em relação a asilos, vistos e imigração. Nesse âmbito, há apenas
um cargo para os assuntos exteriores, o Alto Representante da União para
os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, representado por
Catherine Ashton, que é britânica. Porém, é o Conselho da UE que aprova
as decisões necessárias à definição e à execução da política externa e de
segurança. De acordo com a pesquisa encomendada pela Comissão
Europeia, feita em 2012, o Eurobarômetro, o Reino Unido tem o menor
índice de confiança na UE (16% da população confiam e 75% não
confiam). Vários partidos apresentam, no mínimo, algum grau de
euroceticismo. O Partido Conservador, por exemplo, fez campanha contra
a adesão à União Monetária, enquanto o Partido Trabalhista já se
apresenta mais dividido internamente nessa questão. É importante
ressaltar que 47% da população apoiam a saída do país da UE e 33%
apoiam a permanência.
1.3. A Aliança Franco-Britânica
Ainda que construída sobre uma base de rivalidades e embates
frequentes, as relações entre os Estados britânico e francês nos últimos
cem anos esboçam um quadro de íntima coordenação das políticas dos
dois países. O marco inicial que permitiu o avanço do diálogo entre
franceses e britânicos foi a instituição da Entente Cordiale (1904), que se
não criou mecanismos profundos de cooperação, logrou antes a
estabilização das relações binacionais, marcadas historicamente pela
guerra. Para além disso, os eventos das duas guerras mundiais fizeram
aprofundar os laços entre França e Reino Unido, que a partir do acordo de
144
Política externa e de segurança do Reino Unido
Sykes-Picot (1916) buscariam em conjunto afirmar-se em regiões
estratégicas como o Oriente Médio (SYKES-PICOT AGREEMENT,
1916). Quase como reeditando Sykes-Picot, franceses e britânicos
negociaram com Israel, em 1956, o estopim da Crise de Suez em uma
sequência de eventos previamente planejados. O acordo, conhecido como
Protocolo de Sèvres, previa uma invasão israelense sobre o Egito,
seguido de uma contra-intervenção franco-britânica expressa por meio de
uma Força-Tarefa composta por militares das duas nacionalidades. O
objetivo, finalmente, seria retomar das mãos de Nasser o controle sobre o
Canal de Suez, reafirmando a presença franco-britânica no Oriente
Médio.
Ainda sobre 1956, especula-se acerca de um pedido de inclusão da
França ao Reino Unido, ocorrido no contexto da Crise de Suez, em
conversas entre o Primeiro-Ministro francês Mollet e seu colega
britânico, Eden. Revelada em 2007 pela British Broadcast Corporation
(BBC), a informação sobre uma "União Franco-Britânica" deriva
alegadamente de documentos secretos recentemente desclassificados, e
aos quais a BBC logrou acesso (THOMPSON, 2007). Como exposto, o
conteúdo do documento não traz à tona fatos novos à historiografia; antes
disso, revela uma disposição maior do que a conhecida para que França e
Reino Unido enveredassem por uma alternativa de aliança especial — ou
mesmo federalismo — contrapondo-se ao projeto europeu e
contrabalanceando a pujança crescente da Alemanha Federal. Mais
recentemente, a parceria entre britânicos e franceses retomou sua
importância a partir do seu Tratado de Cooperação em Defesa e
Segurança (2010), apelidado Entente Frugale, que institucionaliza a
integração das operações militares de França e Reino Unido em áreas
diversas de Defesa e Segurança. Na sessão "Segurança e Defesa",
destacaremos o papel conjunto das capacidades britânicas e francesas
somadas, visto os acordos binacionais entre Reino Unido e França, que
estabeleceram a interoperabilidade de parte importante de seus recursos
de Defesa. Porém, em benefício do rigor metodológico e do corte
temporal que adotamos, o acordo da Entente Frugale em si será
aprofundado na sessão “Situação”.
145
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
2. INSTITUIÇÕES POLÍTICAS
Sendo o Reino Unido um país baseado no Parlamentarismo como
sistema político, quem possui o Poder Executivo realmente é o Chefe de
Governo, que é o Primeiro Ministro, David Cameron. Os principais
partidos políticos do sistema britânico são o Partido Conservador, com
tendências pró livre-comércio e relação especial com os EUA; o Partido
Trabalhista, que inicialmente se apresentava como de esquerda, mas a
partir dos anos 1980 se tornaram adeptos ao livre-mercado, e atualmente
defendem políticas mais conservadoras para ganhar mais votos; e os
Liberais Democratas, que são pró União Europeia.
O órgão responsável pela implementação das relações internacionais
do Reino Unido é o Foreign and Commonwealth Office, chefiado pelo
secretário de Estado William Hague. Entre as suas atribuições estão as
relações com outros países, os assuntos pertinentes à Commonwealth e
aos territórios ultramarinos, a promoção dos interesses britânicos no
exterior e a responsabilidade pelo Serviço Secreto de Inteligência. O
Ministério apresenta quatro objetivos principais: (i) o combate ao
terrorismo e à proliferação de armas; (ii) a prevenção e resolução de
conflitos; (iii) a promoção de uma economia global com diminuição do
uso de carbono e alto crescimento; e (iv) o desenvolvimento efetivo de
instituições internacionais, especialmente a ONU e a UE.
Há, ainda, o Department for International Development, responsável
pelas questões de desenvolvimento internacional. A chefe do DFID é a
Secretária de Estado do Desenvolvimento Internacional, Justine
Greening. Os objetivos do órgão são promover o desenvolvimento
sustentável, eliminar a pobreza mundial, ajudar em desastres naturais,
emergências e apoiar os Objetivos do Milênio da ONU.
A Commonwealth (Comunidade das Nações) é uma organização
intergovernamental composta por 54 países-membros, todos ex-colônias
do Reino Unido, menos Ruanda e Moçambique. Nem todas as excolônias fazem parte, como o Zimbábue e os Estados Unidos. A
organização compartilha valores e objetivos comuns, como a promoção
da democracia, dos direitos humanos, da boa governança, do Estado de
direito, da liberdade individual, da igualdade, do livre comércio, do
multilateralismo e da paz mundial. A Rainha Elizabeth II é a chefe da
Comunidade das Nações e chefe de Estado de todas as monarquias nela
presentes, os “16 Reinos da Commonwealth”.
146
Política externa e de segurança do Reino Unido
3. ECONOMIA
A economia britânica baseia-se, principalmente, no setor de serviços,
que corresponde a 73% do PIB do país, e no setor financeiro. A indústria
ainda é parte significativa da economia do país, tendo destaque a
indústria automobilística, aeroespacial e farmacêutica. As grandes
multinacionais britânicas são principalmente do setor petrolífero, de
extração mineral, bancos e telecomunicações. Constituem-se, portanto,
em companhias de importante peso político e estratégico.
O principal parceiro econômico, em termos de comércio e
investimento, do Reino Unido é os Estados Unidos. Existe entre eles uma
relação desigual de maior dependência por parte do Reino Unido. A
União Europeia, se considerada em seu agregado, possui maior peso
econômico do que os Estados Unidos. Contudo, após a crise de 2008,
observa-se uma tendência declinante dos fluxos de negociação do país
com o Bloco, aumentando a relevância das negociações bilaterais —
tendência também observada nas relações políticas do Reino Unido com
o resto da Europa.
4. INFRAESTRUTURA
A constituição de infraestrutura assume papel fundamental para o
Reino Unido, em especial a partir de sua condição geográfica básica:
insularidade. Neste sentido, grande parte de sua integração comercial
depende do transporte marítimo, tanto de curta, quanto de longa distância.
Em 2011, 730 cargueiros de grande porte estavam registrados sob
bandeira britânica, sendo: 162 cargueiros-tanque; 140 cargueiros Roll OnRoll Off; 114 cargueiros de container; e 78 graneleiros. Os principais
portos do Reino Unido estão localizados em Felixstowe (3,4 milhões de
contêineres/2010) e Southampton (1,54 milhões de contêineres/2010),
respectivamente na costa leste e sul da Inglaterra.
Quanto aos meios ferroviários, o mesmo assume papel relevante,
mas não determinante: atualmente, a principal empresa de transporte
ferroviário de carga no Reino Unido é a alemã DB Schenker. A recente
política de priorização do método rodoviário vem reduzindo a quantidade
de estradas de ferro disponíveis no país (em 2004, eram 17,3 mil
kilômetros (km); em 2010, 16,5 mil) em favor das rodovias. Estas
147
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
últimas, subiram de 371 mil km em 1998, para 395 mil km em 2009,
assumindo maior relevância no transporte da produção britânica.
5. SEGURANÇA E DEFESA
A Política de Defesa britânica sofreu importante revés a partir da
crise econômica que atingiu o país, levando à contenção do orçamento
militar em até 30% para os próximos anos. Atualmente, o orçamento da
pasta é de US$ 62,7 bilhões, representando 2,6% do PIB britânico. O
investimento reflete em um efetivo de 174 mil militares na Ativa
(Exército: 100 mil; Marinha: 34,6 mil; e Aeronáutica: 39,4 mil) e 82 mil
na Reserva, constituindo capacidade expressiva de segundo ataque. Ainda
no contexto de racionalização do orçamento, o Strategic Defence and
Security Review de 2010 estabelece o incremento das Forças Especiais e
do Grupo de Operações Cibernéticas, apontando para um esforço de
modernização das atividades militares. O plano Future Force 2020 inclui,
ainda, o rearranjo das estruturas de comando e da distribuição de oficiais
entre as Forças Armadas, devendo o Exército ceder pessoal em favor da
Marinha e Aeronáutica, que ganharão ainda mais destaque.
MBT
Blindados
Reino Unido
227
526
França
254
232
Entente Frugale
481
758
Índia
568
1.105
China
2.800
2.390
Rússia
1.300
4.960
Estados Unidos
6.302
6.452
148
Política externa e de segurança do Reino Unido
Caças de 4ª
Geração
Helicópteros
(Ataque)
Helicópteros
(Transporte)
Reino Unido
220
66
183
França
263
36
162
Entente Frugale
483
102
345
Índia
280
20
117
China
747
16
294
Rússia
916
355
638
Estados Unidos
3.029
862
2.809
Portaaviões
Submarinos
Táticos
Submarinos
Estratégicos
Cruzadores,
Destróieres e
Fragatas
Reino Unido
-
7
4
18
França
1
6
4
24
Entente Frugale
1
13
8
42
Índia
1
1
-
21
China
-
5
3
78
Rússia
1
25
12
32
Estados Unidos
11
57
14
111
Tabelas elaboradas pelos autores. Fonte: IISS Military Balance 2012.
Ainda no tocante às capacidades navais, dois projetos britânicos
merecem destaque. O primeiro, dos porta-aviões classe Queen Elizabeth,
entregará duas unidades de 65 mil toneladas, comportando até 40
aeronaves: os novíssimos F-35 britânicos (48 unidades foram
encomendadas), além de caças Rafale franceses e helicópteros Chinook,
Apache, Merlin e outros. Cada um dos navios deverá entrar em atividade
em 2016 e 2018, respectivamente. Sob uma perspectiva comparada, a
Entente Frugale passaria a ter 3 porta-aviões, podendo disputar projeção
149
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
de poder contra todas as demais potências, à exceção dos Estados Unidos.
O segundo projeto em execução promete renovar a frota de submarinos
táticos a partir da geração Astute, que já tem uma unidade em operação, e
deverá entregar mais seis para os próximos anos.
Não obstante os investimentos crescentes em recursos para projeção
de poder, a capacidade dissuasória nuclear britânica vem sofrendo cortes
à medida em que se restringe também o orçamento das pastas de Defesa.
O plano de constituir um arsenal mínimo à manutenção da capacidade
dissuasória prevê um máximo de 180 ogivas até 2025, constituindo o
menor arsenal do P5 (EUA, Rússia, China, Reino Unido e França), atrás
inclusive do Paquistão. Atualmente, todo o arsenal nuclear britânico está
vinculado a um único sistema de entrega — mísseis balísticos SLBM
Trident II de fabricação americana — lançados a partir dos quatro
submarinos estratégicos da classe Vanguard à disposição da Marinha
Real.
6. TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA
Quanto à transição tecnológica produtiva, pode-se dizer que o Reino
Unido já alcançou o seu auge. O país liderou as duas primeiras ondas da
Revolução Industrial e hoje tem seu PIB basicamente composto pelo
setor de serviços, principalmente os financeiros. Quanto à transição
tecnológica referente à inovação, considerando os índices que podem ser
usados para sua determinação, o Reino Unido possui um alto número de
artigos científicos publicados, estando na média ou acima das maiores
economias europeias. A indústria de defesa concentra 24% dos gastos em
pesquisa e desenvolvimento, segundo dados da Organisation for
Economic Co-operation and Development (2009), valor próximo ao da
França e menor do que a metade da cota norte americana. O país investe
menos em P&D em relação ao PIB do que grande parte das economias de
mesmo porte, o que diminui o valor efetivo da parcela destinada ao P&D
na área de segurança e defesa.
7. SITUAÇÃO
Arbitrou-se a crise econômica de 2008 como marco da situação do
150
Política externa e de segurança do Reino Unido
Reino Unido. Esta delimitação foi empreendida na medida em que: (i) a
crise econômica fragilizou o principal eixo de política externa para o
Reino Unido, os Estados Unidos da América; (ii) desviou o esforço
europeu para o combate à crise, agindo em detrimento do projeto de uma
política externa e de segurança comum à UE; (iii) fez crescer a distância
entre Reino Unido e o "projeto europeu", visto que a crise do bloco fez
reacender nacionalismos e discursos eurocéticos no país1; e finalmente,
(iv) provou necessária a racionalização das capacidades militares de
França e Reino Unido a partir da contenção dos orçamentos de defesa e
do objetivo de manter o status de potência, o que, em última análise,
levou à construção e efetivação da Entente Frugale como alternativa aos
projetos nacionais individuais.
A Entente Frugale
O Tratado de Cooperação em Defesa e Segurança, assinado entre
França e Reino Unido em 2010, nasce da percepção de que ambos
Estados devem buscar simultaneamente políticas que assegurem seu
status de potência nos anos a seguir, e ainda que se adequem à nova
realidade de corte de orçamento público, em especial nas atividade
militares. Face a isto, os acordos da Entente Frugale preveem: (i) a
interoperabilidade entre porta-aviões franceses e britânicos (um Charles
de Gaulle, francês e já em operação, e outros dois Queen Elizabeth,
britânicos e que operarão a partir de 2016 e 2018); (ii) o gerenciamento
conjunto dos arsenais nucleares, incluindo a construção de plantas
conjuntas para armazenamento e manutenção das ogivas francesas e
britânicas; e (iii) a criação de uma Força Militar Conjunta, que conta com
oficiais das duas nacionalidades e que deverá atuar em situações que
constranjam os dois Estados.
Paralelo ao Tratado, observou-se recentemente a negociação que
envolvia a fusão entre a franco-alemã EADS e a britânica BAE, duas
gigantes da indústria de defesa europeia com atuação no ramo da aviação.
Caso lograsse sucesso, a fusão significaria a criação de uma terceira
empresa planejada para concorrer no mesmo nível da americana Boeing.
1
Em pesquisa de novembro/2012 encomendada pelo jornal The Independent, 54% da
população alegou preferir a saída britânica do bloco.
151
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
Ambicionada por britânicos e franceses, a fusão só não ocorreu devido ao
veto empreendido pelo governo alemão, que controla fatia importante do
grupo EADS. Entre as hipóteses mais prováveis do veto, estaria a
possibilidade de patentes europeias vazarem para o controle americano, o
que poderia ocorrer caso os contratos entre a BAE e o governo dos
Estados Unidos continuassem vigorando com cláusulas de transferência
de tecnologia. Já no campo da suposição, pode-se interpretar o veto como
uma negativa ao plano de aprofundamento da Entente Frugale enquanto
projeto paralelo e excludente, na medida em que desloca a poderosa
Alemanha da liderança do processo de integração.
Como última hipótese a ser verificada, supomos a aliança francobritânica como a "via possível" para a integração das políticas de defesa e
segurança europeias. Se considerarmos a pujança das capacidades
militares de Reino Unido e França comparativamente com as dos demais
países europeus, perceberemos que a Entente Frugale representa unificar
100% das capacidades nucleares da UE, bem como parte muito
expressiva de suas forças convencionais. Contribui para a última hipótese
a análise do discurso de Nicolas Sarkozy ao Parlamento Britânico
(honraria incomum para chefes de Estado estrangeiros), em 2008, quando
da articulação do acordo, e que esclarece a ideia de França e Reino Unido
coordenarem políticas em favor do projeto de integração europeia:
Nunca antes na História, França e Reino Unido mantiveram
relações tão próximas. [...mas,] se quisermos mudar a Europa
— e nós, franceses, queremos —, nós precisaremos da ajuda de
vocês dentro da Europa.
8. CENÁRIOS
Nesta modelagem, considerou-se que o melhor cenário para o Reino
Unido seria o da consolidação de uma PES Europeia. Isto significaria
instituir a Europa como novo polo no sistema de Estados, dado que
conferiria contornos de federalismo ao bloco, pelo menos no tocante à
PES. Nesse horizonte, a Entente Frugale poderia eventualmente assumir
papel de laboratório para coordenação das ações de política externa. Ao
unificar 100% das capacidades nucleares europeias, bem como porção
relevante de suas forças convencionais, a aliança franco-britânica serviria
152
Política externa e de segurança do Reino Unido
como experiência empírica preliminar, sendo o sucesso da coordenação
entre França e Reino Unido absolutamente determinante para a ampliação
do processo para o nível regional.
Convencionou-se que o pior cenário ao Reino Unido seria uma
condição de Soberania Tutelada aos Estados Unidos. Na eventualidade de
falha no projeto da aliança equânime entre Reino Unido e França, e na
ocasião do fracasso do projeto de fortalecimento da União Europeia com
o consequente afastamento do país do bloco, a única alternativa ao Reino
Unido que possibilitasse inserção no SI, seria a tutela dos EUA. Devido
aos relacionamentos históricos na área econômica e de desenvolvimento
de tecnologia, os EUA manteriam o Reino Unido sob sua tutela, provendo
em algum grau a manutenção de suas capacidades no SI.
Por fim, convencionou-se como cenário intermediário a hipótese de
uma aliança franco-britânica. Dados o afastamento crescente dos países
dentro da União Europeia, a posição cada vez mais isolada do Reino
Unido no bloco, e o plano frustrado de construção de uma gigante
europeia da aviação militar — a pretendida fusão entre EADS e BAE —,
a principal alternativa ao Reino Unido surge na figura da Entente
Frugale. Nesta hipótese, Reino Unido e França ainda não se afirmariam
como um polo por si só, mas avançariam em termos de defesa e
segurança de seus Estados, mantendo a condição atual de ambos como
grandes potências do Sistema Internacional.
Conclusão
A Inglaterra pode ser considerada polo do até então incipiente
sistema internacional desde 1588 (Batalha de Gravelines), quando
derrotou a potência dominante da época, a Espanha. Graças às reformas
dos Tudors (religiosa, política, tributária, produtiva e marítima), a
Inglaterra possuía uma diplomacia independente do Vaticano e relações
que seriam aquelas características de um Estado soberano. Passados
apenas três anos após o estabelecimento do SI (em 1648), em 1651 o Ato
de Navegação serve de moldura a uma economia madura que através do
livre comércio e da exportação de capitais erigiu o que, mais tarde,
seriam as denominadas relações centro-periferia ou divisão internacional
do trabalho. Em 1689, a Bill of Rights projetou, mais uma vez, a
Inglaterra e o constitucionalismo inglês como marco e modelo ideal que
153
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
todos os povos do planeta passariam a perseguir até o presente. Nesse
sentido, a Pax Britânica estabelecida após a vitória em Trafalgar em
1805, apenas confirma o percurso de uma grande potência que já tinha
deixado a marca indelével de sua trajetória no SI.
A Independência dos EUA (1776) representou a única derrota militar
de toda a longa história do Império Britânico. Nem por isso o Reino
Unido entrou em declínio, pelo contrário, sobreviveu até mesmo à
ascensão dos EUA à condição de potência industrial. A
transnacionalização de empresas da Inglaterra foi, em grande medida, a
responsável pelo processo. O crescimento estadunidense, antes de
representar um desafio, representava complementaridade, dada a
voracidade do consumo da indústria americana em matérias-primas
industriais, dinheiro e bens de capital. Pode-se até mesmo estabelecer um
paralelo entre a relação mantida entre a Inglaterra e os americanos e dos
EUA com a China, nos dias de hoje. As duas Guerras Mundiais,
sobretudo a segunda, alteraram esse panorama. Dado o que parecia ser
uma invasão das ilhas metropolitanas, em 1940 a missão Tizard
inaugurou um processo maciço de transferência de tecnologia (planos,
projetos e protótipos). Esse processo proveu aos EUA desde a bomba
atômica até o radar de micro-ondas, passando pelo domínio das
supercargas, motores a pistão e turbinas à gás. Desde cedo a Inglaterra
percebeu as consequências dessa transferência. Ainda em 1942, a
comissão Brabazon procurou estabelecer as diretrizes da economia
britânica no que seria o pós-guerra: um mundo dominado pelas
portentosas capacidades industriais dos EUA e da URSS. Contudo, a
atitude britânica reticente em relação à descolonização trouxe a
dependência da logística estadunidense — sobretudo de sua capacidade
naval. Isso permitiu o exercício de veto player da diplomacia dos EUA
sobre as estratégias corporativas de empresas britânicas, dificultando o
processo de transnacionalização das empresas e a transferência de
capitais a outros países. Resultado disso é o aprofundamento das relações
entre Reino Unido e EUA, que se transformaram desde então em
principais parceiros de transferência de capitais e trocas de produtos de
alta tecnologia.
A Inglaterra ainda possui atributos clássicos de uma grande potência
— retaguarda financeira industrial, população ativa e capacidades
militares convencionais e nucleares. Contudo, o Reino Unido parece
154
Política externa e de segurança do Reino Unido
carecer de recursos para que mantenha sua PES plenamente
independente. Talvez seja justamente por isso que o país valha-se da
Entente Frugale para empreender ações em política externa que o
configurem como polo do sistema internacional. A Entente pode ser o
marco da oportunidade da Inglaterra reerguer-se enquanto potência global
e não apenas regional. A despeito do afastamento atualmente existente
entre UE e o governo conservador britânico, a possibilidade de sucesso
da Entente Frugale poderá, na opinião dos autores, agir futuramente
como catalisador do processo de integração regional.
Em estudos futuros deve-se aprofundar a análise sobre a situação da
transição tecnológica na Inglaterra, bem como o comportamento de seu
polo bancário, sobretudo no que tange à sua inserção na Ásia. Também
merecem atenção as relações anglo estadunidenses no que tange à seus
benefícios para o Reino Unido. De qualquer modo, o Reino Unido deverá
continuar sendo objeto privilegiado de atenção em um horizonte
predizível de eventos.
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156
Capítulo 9
POLÍTICA EXTERNA E DE SEGURANÇA DA
TURQUIA
Aércio Artur Mateus
Anaís Brum Medeiros
Bernardo Rolim Soares
Gustavo Hack de Moura
Maud Trutta
Pedro Perfeito da Silva
Pedro Hercz Merlo
Introdução
O presente artigo pretende tratar da política externa e de segurança
da Turquia através de seus indicadores em termos de instituições
políticas, economia, capacidades militares, infraestrutura e transição
tecnológica. O problema é entender em que medida a sua atuação externa
a qualifica enquanto potência regional ou Grande Potência. A hipótese
assumida é que o país, a fim de se qualificar enquanto Grande Potência,
precisa aprofundar sua atuação na Ásia Central e no Oriente Médio. São
elaborados três cenários possíveis: (i) integração a partir da Organização
para a Cooperação Econômica (ECO, em inglês), (ii) intervencionismo e
(iii) manutenção da ambiguidade entre ECO e União Europeia (UE),
todos eles baseados em condicionantes internos e externos.
A política externa turca apresenta uma dualidade no seu modo de
atuação. Por um lado, o kemalismo compreende a modernização como
adoção de valores e instituições tipicamente ocidentais. Por outro, a
vertente neo-otomana aceita a modernização e alguns aspectos ocidentais,
mas visa conciliá-los com a percepção de que a Turquia é herdeira do
Império Turco-Otomano, portanto, um corredor entre Europa e Ásia.
Para compreender o país, é preciso ter em mente alguns dados gerais
que permitam a comparação com outros Estados. Desse modo, o PIB
turco alcança os 773 bilhões de dólares, o que a torna a 17ª economia
mundial. O setor de serviços é o responsável por 64% da economia do
157
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
país, a indústria responde por 27% e a agricultura por 9%. O PIB per
capita alcança de 10.498 dólares e o IDH é 0,699 (92º do mundo). Sua
população é 70% urbana e 30% rural. Seu território é o 37ª em extensão e
suas forças armadas possuem o 6º maior contingente do mundo
(TURKSTATS, online) e (TCMB, online).
1. DUALIDADE
A Turquia está localizada em uma área responsável por conectar a
Europa à Ásia. Isso se reflete na política externa do país, já que esta ora
atua mais voltada e preocupada com a sua conexão com o Ocidente, ora
tende a priorizar sua atuação no Oriente Médio e Ásia Central. A
dualidade alterna-se na sua influência sobre a política turca. Isso significa
que o país em nenhum momento apresenta total sobreposição de uma
visão sobre a outra. Pelo contrário, as duas se complementam e dialogam
constantemente na formulação da política externa e de segurança. Ambas
as visões apresentam um ponto de vista modernizante, ou seja, não há
dicotomia entre o moderno e o tradicional, apenas em como deve se dar a
modernização e como ela deve influenciar a política.
O kemalismo remonta ao processo de independência turco no
imediato pós-Primeira Guerra. Os líderes da época associaram a condição
de não independência com as instituições do próprio Império Otomano:
assim, Kemal Ataturk iniciou um processo de modernização que buscou,
no Ocidente, as bases para a constituição do Estado nacional turco.
Deixou de haver uma preponderância da Turquia enquanto império na sua
região para focar-se no interior de suas fronteiras. A modernização
ocidentalizante é vista pelos seus idealizadores como um processo, cujo
momento culminante de incorporação no mundo ocidental seria a entrada
na União Europeia (UE).
A percepção neo-otomana remonta ao domínio que a Turquia
possuía sobre a região da Rota da Seda na época do Império TurcoOtomano. Para os apoiadores dessa visão, o controle de seu país sobre a
região é antes resultado da legitimidade que o país possui diante dos
demais Estados da região, do que de uma condição gerada pela sua
proximidade aos países ocidentais. Então, a manifestação mais expressiva
desse propósito é a busca pela liderança da ECO e do mundo muçulmano.
158
Política externa e de segurança da Turquia
1.1. História
A formação do Império Turco-Otomano se dá a partir da decadência
do Império Mogol e da herança das rotas de comércio controladas por
este. Durante a Primeira Guerra, os turcos se aliam às potências centrais,
após estes garantirem a integridade dos otomanos depois da guerra. Os
conflitos pelo controle da Rota da Seda com as cidades-estados italianas,
a Questão Oriental durante o Concerto Europeu e a gradual integração ao
sistema capitalista contribuíram para o processo de desintegração do
Império Otomano, que se consumou ao final da Primeira Guerra Mundial.
Com a proclamação da República em 1923, ocorre a revolução
kemalista, que traz uma agenda de modernização altamente
ocidentalizada e secular, com a construção do Estado Nacional a partir da
supressão da herança otomana. Na Segunda Guerra Mundial, o país se
manteve neutro. O alinhamento da política externa turca com o Ocidente
e o objetivo comum de conter a URSS — que disputava com a Turquia o
controle dos estreitos de Bósforo e Dardanelos — resultaram na entrada
do país na OTAN. Neste período, formou-se o Estado Profundo1, que se
utilizava de táticas clandestinas de contraguerrilha e de ramificações do
poder dos militares em diversos setores e instituições nacionais.
A ascensão do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), em
2002, em meio a uma grave crise financeira, remonta à evolução do
islamismo político desde a década de 1980. Tal partido se apresenta como
moderado e nacionalista, capaz de resgatar valores muçulmanos e
otomanos e concluir a ocidentalização através da democratização. De
certo modo, pode-se afirmar que o AKP incorporou o projeto
modernizante kemalista, ou seja, é sua continuação. Ademais, o partido é
resultado da globalização: congrega seus vencedores, os capitalistas
muçulmanos, e seus perdedores, a massa muçulmana de baixa renda. No
plano externo, o AKP estabelece a política de zero problemas com os
vizinhos, uma postura de retomada, ou melhora, das relações com os
países próximos à Turquia, e a diminuição do peso relativo do acesso à
UE na agenda externa turca permitiu um maior interesse na ECO e no
papel de líder regional.
1
Grupo civil-militar, de viés anticomunista, surgido no período da Guerra Fria, que
atuava influenciando a alta política turca de modo não oficial
159
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
1.2. Economia
Para a compreensão de como variáveis econômicas condicionam a
política externa de segurança é necessário aliar a evolução de dados
gerais (como PIB, inflação e etc.) a uma análise das relações econômicas
com o resto do mundo. A economia turca foi seriamente afetada pela crise
econômica de 2008/2009. Isso fica claro na redução do PIB nominal e
dos valores tanto na conta-corrente quanto na conta capital do balanço de
pagamentos, além disso, ressalta-se que as reduções verificadas em 2009
mantiveram-se dois anos ou ainda não foram recuperadas.
Quanto à balança comercial (integrante da conta-corrente), observase que sua natureza estruturalmente deficitária aprofundou-se a partir de
2009. Como é indicado em Röhn (2012, p. 10), o déficit em contacorrente do país é da ordem de um décimo do PIB (dado semelhante ao
verificado na Grécia) e metade desse montante diz respeito a importações
energéticas. As exportações e importações, segundo o Turkstats
(TURKSTATS, online), indicam um padrão de dependência frente a
União Europeia, ainda que se deva destacar o peso das relações com a
Organização do Mar Negro para Cooperação Econômica (BSEC —
destaque para Rússia), com a Organização para Cooperação Econômica
(ECO — destaque para o Irã), com a Organização para Cooperação
Islâmica (OIC — destaque para Arábia Saudita e para os Emirados
Árabes) e com os EUA.
Quanto ao fluxo de investimentos diretos, tanto a entrada quanto a
saída de capitais é fortemente concentrada na Europa (mais de três
quartos) o que fica evidente nos principais destinos e origens (com
exceção para Rússia, Azerbaijão, EUA, Cazaquistão e Macedônia)
(TCMB, online). A composição dos investimentos feitos na Turquia é
hegemonizada por serviços financeiros e de seguros, enquanto que os
investimentos turcos ao redor do mundo são liderados pelo setor
comercial e pelo setor manufatureiro.
O conteúdo exposto nos parágrafos anteriores é o retrato de uma
economia que condiciona a política externa turca à manutenção da
ambiguidade entre a União Europeia (UE) e a Organização para
Cooperação Econômica (ECO). A opção por uma maior atuação regional
(seja pela via diplomática multilateral, seja pela intervenção militar)
esbarra: (i) nos laços comerciais e financeiros com a UE; (ii) na
incapacidade turca de atuar como centro contracíclico regional para
160
Política externa e de segurança da Turquia
momentos de crise; e (iii) nos desequilíbrios verificados na contacorrente2.
1.3. Infraestrutura
A localização geográfica da Turquia a coloca em uma posição
especial no que se refere à infraestrutura. Ela é a ponte entre a Europa e a
Ásia, o que a torna relevante no contexto da Nova Rota da Seda (NRS),
uma rede de infraestrutura que pode ligar a Europa ao Leste Asiático,
cujos projetos concorrentes são liderados por países como China, EUA e
Rússia.
A Turquia enfrenta a necessidade de diversificar sua fonte de
suprimentos energéticos: é dependente de gás e petróleo russos e
iranianos. Os diversos oleodutos e gasodutos projetados para atravessar
seu território podem cumprir esta tarefa. O oleoduto BTC inicia-se na
capital azeri, Baku, atravessa a Geórgia (Tbilisi) e vai até o porto de
Ceyhan na Turquia. Questões securitárias tornam este um oleoduto não
confiável. O gasoduto BTE é paralelo ao BTC e funciona para alimentar
exclusivamente Turquia e Geórgia. O gasoduto Blue Stream vai da Rússia
à Turquia sem passar por terceiros países. O projeto TANAP, idealizado
por Azerbaijão e Turquia, tem o objetivo de ser uma rota alternativa aos
oleodutos russos: levaria gás natural da Ásia Central até a Europa,
atravessando a Turquia e os Bálcãs. Inicialmente o gasoduto carregaria 16
bilhões de metros cúbicos de gás, dos quais 6 bilhões ficariam com a
Turquia (OIL PRICE, online). Seus acionistas são a azeri SOCAR (80%)
e as turcas BOTAS (15%) e TPAO (5%) (SOCCOR, 2012).
A Turquia participa do Projeto da Ferrovia Transasiática, que seria
uma importante conexão de transporte da NRS. A Turquia trabalha no
Projeto Marmaray, importante por ligar a Europa pelo Bósforo. A
Ferrovia Baku-Tbilisi-Kars liga a Turquia à região do Mar Cáspio, rica
em petróleo. A ferrovia Islamabad-Teerã-Istambul é um dos projetos mais
importantes da ECO, uma vez que liga três de seus principais países, e
pode produzir maior aprofundamento de suas relações. Quanto aos
2
Os desequilíbrios são potencializados pela memória inflacionária do país e pelo
conteúdo inerentemente instável da principal pauta de entrada de capitais — serviços
financeiros e de seguros.
161
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
portos, é significativo o fato de que, em 2006, 87,4% do comércio
exterior turco se deu pelo mar (IFEA, online). A siderurgia do país é a 10ª
maior produtora do mundo e a 3ª da Europa (ISPAT, 2010). Sua principal
indústria é a automotiva, que responde por boa parte das exportações do
país.
Nota-se que em 2012 a Turquia foi considerada o 7º país em termos
de penetração de fios de internet de fibra óptica em lares (TURKCELL,
online). O país participa do Projeto Regional Cable Network que visa
melhorar a qualidade da conexão de internet do Oriente Médio. Participa
também do Projeto JADI Link, que visa a ser uma alternativa a cabos que
passam sob os mares Mediterrâneo e Vermelho.
1.4. Transição Tecnológica
A Turquia está construindo um parque tecnológico para pesquisas de
ponta. O objetivo principal do projeto é a transformação da Turquia em
um dos polos de pesquisa e desenvolvimento da Europa: visa a atrair
empresas e universidades, de modo que trabalhem juntas em projetos de
inovação. As tecnologias prioritárias são a aeroespacial, de defesa, naval,
de eletrônica avançada, de automação industrial e de materiais avançados.
Os primeiros prédios devem ser entregues em 2013.
Quanto à existência de elementos químicos estratégicos em solo
turco, ressalta-se que há minas de elementos de terras raras, alumínio,
antimônio (semicondutores e baterias), níquel, (baterias e ligas metálicas)
e tungstênio (ligas e armamentos). Porém, ainda não há exploração
significativa destes elementos.
Apenas uma pequena parcela do PIB turco é destinada à área de
pesquisa e desenvolvimento, comparativamente a outros países e regiões.
No entanto, a Turquia mais do que triplicou seu valor, passando de 2
bilhões, em 1998, para 9 bilhões em 2009. O número de patentes
multiplicou-se em aproximadamente dez vezes, alcançando 5.430. As
publicações científicas multiplicaram-se, aproximadamente, quatro vezes
entre 1998 e 2009. (CONSELHO DE PESQUISA CIENTÍFICA E
TECNOLÓGICA DA TURQUIA, online)
A transição tecnológica na Turquia é mais lenta que em alguns países
emergentes, mas tem sido ampliada nas indústrias pesadas, cujo maior
expoente é a indústria naval, uma das mais importantes do mundo. Cresce
162
Política externa e de segurança da Turquia
no país o número de empresas ativas na área de tecnologia militar. Os
caças F-16, por exemplo, são produzidos pela TAI, estatal de acionistas
turcos e americanos. A empresa foi a responsável pela modernização de
caças F-16 paquistaneses. Os tanques Altay são desenvolvidos pela
empresa turca Otokar. Há também forte cooperação entre empresas turcas
e estrangeiras (a empresa Raytheon participa dos projetos Genesis e TF2000). Desse modo, o gasto em P&D no setor de defesa passou de 58
milhões em 2003 para 672 milhões em 2011 (SSM, online).
Nota-se que o florescimento tecnológico de empresas turcas no setor
militar tem potencial para ser um dos motores da inserção regional turca,
através da cooperação econômica e militar. É possível antecipar que o
desenvolvimento tecnológico turco fará com que os demais países se
aproximem da Turquia com o intento de se modernizarem. Egito e
Paquistão, por exemplo, já buscaram uma abordagem de parceria ou
busca de novos produtos. A tecnologia pode contribuir para sua ascensão
como Grande Potência, já que suas forças armadas estariam entre as mais
bem preparadas do mundo e suas empresas estariam na vanguarda da
inovação.
1.5. Instituições Políticas
A tomada de decisões na Grande Assembleia Nacional determina
oficialmente a política externa. O presidente é o comandante-em-chefe
das Forças Armadas; o primeiro-ministro, o responsável pela
implementação da política externa e o Conselho de Segurança Nacional,
órgão consultivo para o Conselho de Ministros. Os determinantes de facto
da política externa são o equilíbrio de forças no parlamento, a questão
curda e a questão militar e sua relação com a transição democrática. O
AKP não possui a maioria parlamentar qualificada (2/3) para impor
determinadas opções, de modo que a oposição kemalista mantém algum
poder de barganha. Isso favorece a ambiguidade entre voltar-se para a
União Europeia e para o ativismo regional (ECO). O combate ao PKK é
articulado com o discurso de unidade nacional turca, representado
politicamente na elevada cláusula de barreira que limita a participação
institucional da minoria curda (a partir do BDP). A questão curda também
influencia profundamente nas relações dos Estados do Oriente Médio.
Os militares mantêm relevância, ainda que ocorra um processo de
163
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
transição que está em vias de colocar tal grupo sob hegemonia ética e
estrutural da coalizão articulada em torno do AKP. Segundo Arturi
(2001), os processos de transição democrática têm três etapas: i) os
partidos relevantes reconhecem a disputa democrática; ii) não há poder de
veto; iii) não existem instituições autônomas independentes. Entre 2002 e
2007, a eleição e a postura de conciliação do AKP permitiram a
conclusão da primeira etapa. Em 2007, a reeleição do AKP e a eleição do
presidente Gül alteraram a correlação de forças permitindo uma série de
reformas constitucionais que envolvem a eleição presidencial direta, a
possibilidade de processar os militares e o direito ao parlamento e ao
presidente de intervir na Suprema Corte — avanços na segunda e terceira
etapa da transição. Os casos Ergenekon (2008) e Sledgehammer (2012)
são processos-símbolo na diminuição do poder de veto e insularidade dos
militares pelo fato de que lideranças desse grupo foram acusadas de
tentativas de golpe; observa-se que a mudança de postura do AKP entre
os dois processos, oscilando de uma postura demarcatória para uma
postura de conciliação, é um indício da inclusão dos militares no
conteúdo ético da hegemonia do AKP (KARAVELI, 2012).
Por fim, é preciso tratar do Movimento Gullen, organização da
sociedade civil com atuação nacional e internacional nos negócios, nas
comunicações e nas escolas que pode significar um novo Estado
Profundo a partir da decadência relativa dos militares (VELA, 2012;
STELLER, 2010 & ÇAKIR, 2012). Tal organização seria capaz de
influenciar o governo e permitiria que, mesmo em uma democracia
estável e secular, a religião não ficasse à margem da política. Além disso,
ela pode ser um elemento de poder brando capaz de estimular países da
região a adotarem o modelo político-econômico turco. Conclui-se que a
dimensão das instituições políticas traz informações que atestam um
fortalecimento do polo neo-otomano da dualidade e, consequentemente,
da busca por uma maior atuação regional, ainda que haja poder de
barganha kemalista e que a viabilidade de uma democracia estabilizada
resida na possibilidade de superação das oscilações econômicas.
1.6. Defesa e Segurança
Sobre as capacidades do país, importa observar que há uma
crescente indústria bélica e que sua expansão faz parte dos planos do
164
Política externa e de segurança da Turquia
governo turco de tornar o país uma referência na exportação de
equipamentos militares. Não apenas o desenvolvimento militar, como
também a ênfase em produtos de alta tecnologia, abrem a possibilidade
de que suas forças armadas se tornem uma das mais bem preparadas do
mundo em um futuro próximo.
Atualmente, mesmo que a Turquia, por sua localização, seja uma
ponte entre diversas regiões importantes, o Oriente Médio se destaca. Isso
se deve principalmente ao problema interno turco relacionado ao PKK e
questões geopolíticas atuais. Isso se confirma pela mudança de foco do
AKP que passou a explorar mais os possíveis benefícios econômicos e
políticos de sua presença no Oriente Médio.
As forças armadas turcas possuem cerca de 510 mil pessoas a seu
serviço (IISS, 2012:160). A marinha do país é hoje considerada a 8ª maior
do mundo e a 3ª maior da Europa (TURKEY DEFENCE, online). Não
possui nem porta-aviões, nem navios-aeródromo, mas o projeto para a
obtenção de um navio aeródromo está em andamento. A indústria
nacional abastece 80% de suas necessidades (TR DEFENCE, online).
Possui 4 fragatas que apresentam o sistema de lançamento vertical
(vertical launch system, VLS), o qual permite resposta mais rápida,
concentrada e contínua a ataques. A marinha turca também possui os
mísseis cruzadores SOM, além de 14 submarinos táticos, 7 corvetas, 17
fragatas e 108 fast attack ships (TURKEY DEFENCE, online). A força
aérea turca é a 3ª maior da OTAN. O país possui aviões de 4ª geração: os
caças F-16. Em números totais, o país possui 410 aviões de combate. O
exército possui uma grande quantidade de tanques blindados e de armas
de artilharia (4.503 daqueles e pelo menos 7.787 destas)(IISS, 2012:161).
Atualmente, o exército desenvolve o projeto Altay: tanques
blindados de fabricação quase exclusivamente nacional. Na marinha,
merecem destaque os projetos MILGEM e TF-2000. O primeiro promove
a fabricação de oito corvetas e quatro fragatas. O segundo projeto prevê a
construção de seis fragatas com defesa antiaérea e antimíssil. As forças
aéreas, por seu turno, participam do programa internacional que visa a
desenvolver o caça F-35, de quinta geração.
O forte desenvolvimento das forças armadas tem relação direta com
o desejo turco de se firmar como potência regional. A partir disso, ela
poderá afiançar a segurança da região contra ameaças externas,
garantindo a liderança do processo de integração.
165
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
2. SITUAÇÃO
Em fevereiro de 2008, a Turquia lançou uma ofensiva ao PKK. As
forças armadas turcas invadiram o Norte do Iraque, região autônoma
controlada pelo KRG (governo regional do Curdistão, em inglês). O
objetivo alegado pela Turquia era o desmantelamento do grupo terrorista,
o qual visa à formação do Estado curdo. A partir daí, pode-se observar
que a Turquia alterou sua PES para um posicionamento mais assertivo
com relação ao território que, no passado, foi parte do Império Otomano.
A Organização para Cooperação Econômica (ECO) foi fundada em
1985 por Turquia, Irã e Paquistão. É composta atualmente por dez países
da Ásia Central e Oriente Médio. A consolidação desse bloco fortalece a
alternativa neo-otomana de inserção internacional da Turquia como hub
entre Europa e Ásia. Além disso, viabiliza-a como potência regional
fortalecida no mundo árabe e na disputa por mais espaço na antiga área
de influência russa na Ásia Central. A partir de 2008, a ECO avançou ao
ratificar o Acordo de Livre-Comércio com a meta de eliminar barreiras
não-comerciais e reduzir tarifas comerciais para um máximo de 15% até
2015, e ao fundar o Banco de Comércio e Desenvolvimento da ECO.
Em 2012, a Turquia foi aceita como Parceira de Diálogo da OCX.
Essa entrada está inserida no contexto da OCX como organização
provedora de segurança para a Ásia Central, a qual é fundamental para a
Nova Rota da Seda. A Turquia é um forte candidato a exercer esse papel,
visto que possui uma relação estável e crescentes investimentos nos
países da região. A atuação da Turquia já se verifica na intensificação das
suas relações com Afeganistão e Paquistão, relacionada à futura saída dos
EUA do território afegão.
Recentemente, a Turquia aceitou que o projeto South Stream russo
passasse pelas suas águas territoriais. Isso permite a manutenção da
ambiguidade turca em relação a UE e na atuação turca na Ásia Central,
uma vez que diminui as desavenças com a Rússia. A colocação de mísseis
Patriots na Turquia pela OTAN reverberam uma possível postura
intervencionista para acabar com a guerra civil síria, podendo se tornar
modo de atuação padrão da Turquia na região. Memorandos de
entendimento assinados nos últimos meses entre Turquia, Paquistão e
Afeganistão e Turquia e Irã, bem como a aproximação turco-egípia
(empréstimo turco ao Egito e visita de Erdogan), reforçam a possibilidade
166
Política externa e de segurança da Turquia
de que o cenário de integração em torno da ECO ocorra. Importante notar
que o Egito torna-se membro em potencial ao aproximar-se da Turquia.
3. CENÁRIOS
A dualidade turca mostra que o país ora tende a se inclinar para um
modelo mais próximo ao ocidental, ora incorpora a esse modelo
elementos culturais próprios de sua herança otomana. A formulação de
cenários para o país, portanto, deve usar como base tais elementos,
mostrando como as diferentes inclinações alteram a política externa. Não
se deve esquecer, porém, dos indicadores e de como eles influenciam a
política externa do país.
O melhor cenário traz a Turquia como polo de integração da ECO. A
integração de 10 unidades soberanas, com uma população de 416 milhões
de habitantes em uma área de 7.937.197 km² — superior à superfície
contígua dos EUA (7.663.941.7 km²) — é, virtualmente, uma Grande
Potência em gestação. Esta possibilidade não contradiz nem o domínio
otomano de outrora, nem o presente, da moderna Turquia integrada à
OTAN. As dificuldades para consecução deste propósito são, contudo, de
monta considerável. Em princípio, a integração só seria possível graças à
conjugação improvável de três fatores: i) a anuência das Grandes
Potências, ii) a disponibilidade de crédito, e iii) a unanimidade entre os
países da região. A integração afigura-se menos impossível, no entanto, se
considerar-se que a região arca com os custos de três processos: i) da
modernização, ii) da globalização, e iii) do fundamentalismo religioso.
Os problemas sociais gerados por esses fenômenos seriam amenizados
pela integração, uma vez que a Turquia tem a base político-social para
evitar a deterioração interna dos demais países da região.
Os levantes ocorridos entre 2010 e 2012 impactaram a região. A
conjunção dos custos da globalização e da Guerra ao Terror afeta também
a Turquia, que por ora permaneceu fora do mapa das rebeliões. Foi
impossível para a pesquisa dimensionar o impacto dos levantes somado
aos efeitos da crise econômica. Se comparada ao Paquistão e ao Irã, os
outros dois eixos da ECO, a Turquia é uma ilha de estabilidade. Dois dos
maiores dilemas de segurança internacional estão em meio à estruturação
da ECO: a conclusão da Guerra ao Terror e a questão nuclear iraniana. Os
povos da região terão de encontrar um modo de viver; os governantes, um
167
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
novo modo de governar. Em qualquer caso, dificilmente a região poderá
permanecer nos marcos atuais. Excluído o impossível — a manutenção
indeterminada da tensão, da violência e da escassez —, o improvável, por
menos plausível que pareça, torna-se possível. Por isso, a improvável
integração há que ser considerada.
Escolheu-se um hipotético intervencionismo turco para modelar o
segundo e pior cenário. O critério norteador da escolha foram os efeitos
de longo prazo que o intervencionismo pode ter sobre as relações civilmilitares e o próprio tecido social turco. Entretanto, existem indicadores
que tornam o cenário bastante plausível, alguns já referidos no primeiro
cenário acima. O principal deles está relacionado à conclusão da guerra
ao terror e à questão nuclear iraniana. Em virtude de seus problemas
orçamentários, os EUA estão adotando uma PES que pode ser
caracterizada como de burdensharing ou buckpassing3. Em qualquer dos
casos, a política externa estadunidense implica em reduzir os custos de
engajamento no exterior com o mínimo de perda de sua influência. Da
parte turca isso importa (ver cenário acima) para obter o consentimento
para a estruturação da ECO enquanto união aduaneira e atrair capitais de
tecnologia que alicercem o desenvolvimento. O alargamento da demanda,
no caso do intervencionismo, alicerçado também em gastos de custeio,
pode fazer as vezes de um keynesianismo militar perverso — visto que é
baseado na guerra e não na mera competição militar — que pode
mascarar a tendência de ciclos econômicos de curto prazo que
caracterizam a economia turca. Além disso, como descrito no tópico
Situação, a própria Turquia tem revelado disposição de intervir
unilateralmente quando julga que seus interesses estão em jogo — no
caso descrito, tratou-se dos curdos do Iraque. Mais recentemente,
insinuou a possibilidade de intervir na guerra civil síria. De qualquer
modo, a Turquia tem sido essencial para os EUA na manutenção da
estabilidade regional. Esse é o caso de Egito, Paquistão e Afeganistão em
que, seja através de seu poder brando, seja através de seu poder duro, a
Turquia tem algum grau de influência. Quanto ao Irã, em caso de
intervenção da OTAN neste país, os turcos possuem credenciais junto a
ambas as partes para uma solução intermediária de manutenção de paz.
Como se depreende, mesmo em um cenário de intervencionismo, a
3
Para maiores informações sobre esses conceitos, veja o capítulo sobre a Política Externa
e de Segurança dos Estados Unidos da América.
168
Política externa e de segurança da Turquia
Turquia não abdica da manutenção de suas parcerias no âmbito da ECO
(no caso do Irã, fortalecidas pela questão comum curda) e do
consentimento expresso ou tácito da comunidade internacional. Trata-se,
pois, de uma modelagem plausível, conquanto, conforme referido, seus
efeitos de longo prazo sejam imprevisíveis e eventualmente deletérios. A
Turquia possui as credenciais mínimas necessárias no âmbito da ECO
para dar suporte ao intervencionismo caso seja este seu desejo. Além
disso, possui capacidades para tanto (ver tópico Defesa e Segurança).
O cenário intermediário tem maior probabilidade de acontecer.
Nesse caso, a Turquia manteria sua ambiguidade na atuação externa, ou
seja, ora agiria conforme o kemalismo, mais voltada ao Ocidente, ora
incorporaria o neo-otomanismo, priorizando o Oriente Médio. Logo,
haveria uma política semelhante à atual, em que o país mantém as
esperanças de entrar na União Europeia e se relaciona bilateralmente com
os países da ECO. Ademais, o relacionamento das elites internas não se
alteraria: os capitalistas muçulmanos, a elite política secular e os militares
continuariam se opondo mutuamente, sem que um grupo se sobrepusesse
ao outro. Para este cenário se efetivar contam condições internas e
externas. Do ponto de vista interno, a estabilidade econômica deveria
condicionar a manutenção da estabilidade política — sem maiores crises,
o risco de golpes ou mudanças abruptas de governo seria mínimo. Do
ponto de vista externo, seria preciso contar que Israel não ataque o Irã,
que a transição no Egito se dê a contento e que a crise síria permita, senão
um desfecho negociado, ao menos uma intervenção de baixo perfil e
curta duração. Mesmo que se mantenha como predominante o cenário
intermediário, a Turquia permanece como séria candidata, através da
ECO, a constituir-se enquanto Grande Potência. Nesse caso, importa
permanecer estudando e observando tanto os indicadores internos e
externos do país quanto, sobretudo, as pressões sistêmicas em seu entorno
local e regional que podem condicionar, de fora para dentro, o status do
país na hierarquia internacional.
Conclusão
Do exposto, pode-se concluir que a ascensão da Turquia depende de
condicionantes internos e externos. O principal condicionante interno da
Política Externa e de Segurança (PES) turca é sua situação econômica. A
169
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
capacidade de pagamento, os investimentos na região, a modernização
militar e o próprio investimento em P&D dependem da manutenção do
crescimento do PIB e da conquista da estabilidade econômica. O
principal condicionante externo da PES reside na dificuldade da Turquia
em manter a delicada barganha diplomática que tem sustentado entre
EUA, Rússia, China e UE.
Naturalmente, os condicionantes externos e internos atuam
simultaneamente. A construção de cenários feita acima foi uma tentativa
de simular seu desdobramento. Assim, no melhor cenário, o do
multilateralismo presidido pela construção da Economic Cooperation
Organization (ECO), se supõe um posicionamento ótimo tanto em termos
de capacidade de pagamento quanto de relacionamento com as Grandes
Potências e a UE. O pior caso, o intervencionismo, reflete a incapacidade
da Turquia em adquirir poder de alavancagem através dos meios de
pagamento tradicionais, além do reconhecimento tácito da
impossibilidade em manter sua barganha diplomática com os quatro
principais polos do SI. Por fim o terceiro cenário assume a manutenção
da capacidade de pagamento da Turquia e de sua relação com as Grandes
Potencias. Esta última perspectiva, por ora, parece afigurar-se como a
mais plausível.
Ainda que a Turquia possa estar longe de se configurar enquanto
uma Grande Potência, parece forçoso reconhecer que seu papel nos
assuntos internacionais aumentou exponencialmente. A partir de 2008, o
papel da PES turca ganha relevância tornando-se mais que um apêndice
da PESC europeia. Desde o segundo mandato de Erdogan e da invasão do
Iraque, a Turquia adquiriu um papel próprio e autônomo no SI. Em
termos sistêmicos, a disposição turca vem ao encontro das demandas
sistêmicas, caracterizadas pela demanda estadunidense de desonerar-se
de responsabilidades de proteção no âmbito regional. Caso os EUA
adotem o buckpassing ou o burdensharing, a perspectiva estadunidense
vai ao encontro das ambições turcas de um maior papel regional e global.
A recente parceria da Turquia com o Brasil, tendo em vista solucionar a
questão nuclear iraniana, ilustra claramente essa realidade. Em qualquer
hipótese, a PES da Turquia merece, cada vez mais, a atenção acurada de
pesquisadores e analistas.
170
Política externa e de segurança da Turquia
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173
Capítulo 10
CONSIDERAÇÕES FINAIS: RECOMPOSIÇÃO
HEGEMÔNICA E INSERÇÃO INTERNACIONAL
DO BRASIL
José Miguel Quedi Martins
Como conclusão se fará um breve balanço dos estudos de caso,
considerações acerca da guerra no equilíbrio internacional, do papel
cumprido pela diplomacia no período compreendido entre as guerras
mundiais de 1914-18 e 1939-45, por fim, trata-se do processo da
triangulação entre EUA, Rússia e China e da inserção internacional do
Brasil. No decorrer destes temas aborda-se o problema das transições
tecnológicas, da tendência do sistema internacional ao desequilíbrio
(entropia), das soluções simplificadores e da alternativa anti intuitiva do
aumento da complexidade.
BALANÇO ESTUDOS DE CASO
Como se pode depreender da conclusão do último estudo de caso, a
inclusão da Turquia na categoria de Grande Potência só seria válida
mediante o cumprimento de condições que ainda não se realizaram,
dentre elas a constituição da ECO como um efetivo processo de
integração da Ásia Central. Apenas com grandes reservas, portanto,
poderíamos considerar a Turquia uma Grande Potência. De fato, se
levarmos em conta seu posicionamento regional e apenas suas próprias
forças — veja, no capítulo anterior, papel cumprido pelos EUA na
hipótese de sua assunção — a situação da Turquia parece mais próxima a
de uma potência regional.
Embora em situação nitidamente superior à da Turquia — a julgar
pelas conclusões do estudo de caso — a Alemanha só reterá sua condição
de grande potência caso seja capaz de ancorar o Euro e, a partir de suas
parcerias inter-regionais, manter-se como esteio da União Europeia. Em
174
Considerações finais
todo caso, o estudo não parece vislumbrar a possibilidade de uma ação
independente envolvendo projeção de força além teatro por parte da
Alemanha. Parece, antes, estreitar laços com os EUA na África, com a
Rússia na Ásia Central e com a China no Extremo Oriente. Tratam-se de
concertações mais características de uma potência regional que de uma
Grande Potência — da qual a ação militar extrarregional independente é
uma das características. Ainda que sua inserção na atual transição
tecnológica exija estudos mais acurados, chama atenção a ausência da
produção de supercomputadores. Por outro lado, parece igualmente
prematuro retirar a Alemanha do rol das Grandes Potências: ela é o esteio
de uma região que tem o poder dos meios de pagamentos equivalente a
17 trilhões de dólares.
Já no caso do Japão, que, juntamente a EUA e China, está entre os
três produtores mundiais de supercomputadores e superprocessadores, a
inserção favorável na transição tecnológica parece assegurada. No quesito
dos superprocessadores, o Japão tem se revelado especialmente hábil na
inovação, introduzindo novos conceitos de construção e de
processamento dos núcleos. A partir de 2009, na esteira do estreitamento
de relações com a China — fortalecido pela criação da Comunidade do
Leste Asiático — o país retomou o crescimento econômico. Só com a
China seu fluxo comercial chegou a quase USD 400 bilhões (2011), com
superávit de quase USD 20 bilhões1, tendo substituído os EUA como
maior fornecedor da China. Em 2010, esse superávit chegou a USD 37,1
bilhões, constituindo-se no segundo maior da Ásia (perdendo apenas para
a China com os EUA, de USD 273 bilhões). Contudo, em 2012, fez-se
sentir o efeito da tragédia de Fukushima (2011) e o superávit converteuse em déficit (USD 4,4 bilhões) (JETRO e US Census Bureau). Fica em
aberto saber qual será o efeito do litígio em torno das Diaoyu/Senkaku
(2012) sobre as relações bilaterais nos números de 2013. A princípio, a
sorte da economia japonesa parece estar associada ao destino da China, o
que não chega a ser uma tragédia, afinal, o mesmo ocorre com outras
economias da OCDE (EUA e Alemanha) e, obviamente, com a América
Latina. De qualquer modo, a ideia do Japão como superpotência
econômica parece estar superada.
Quanto às suas capacidades militares, as forças terrestres japonesas
se destacam pelo seu notável grau de mobilidade tática e estratégica.
1
Os valores consideram a República Popular da China, Hong Kong e Macau.
175
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
Sobressai-se o aerotransporte, o que é de suma importância para que se
leve em conta o efetivo terrestre de uma potência naval. O que dá
efetividade à capacidade aeroterrestre japonesa é a Marinha (JMSDF),
que possui capacidade anfíbia considerável, associada à competente força
de submarinos e à poderosa força de guerra de minas. Em seu conjunto, o
componente de superfície é portentoso, constituído por vasos de
fabricação própria que perfazem o efetivo de dois porta-aviões, dois
cruzadores e vinte e oito destróieres lançadores de mísseis. Porém, carece
de capacidade de ataque à terra: apesar de aptos, os vasos não carregam
míssil cruzador de longa distância (e.g.: Tomahawk) e o navio aeródromo
não possui aeronaves de asas fixas.
Entretanto, essas limitações podem ser elididas no curto prazo.
Afinal, o Japão investe apenas 1% do seu PIB em defesa, e em caso de
necessidade, esse montante pode ser elevado e adquiridas capacidades
adicionais. Apesar de avançadas, com efetivo de 151.641 homens, 32
combatentes de superfície capazes de lançar mísseis e 374 aviões com
capacidade de combate além do alcance visual (BVR) as SDFJ são
suficientes apenas para seu propósito constitucional. Contudo, talvez
sejam insuficientes para projeção de força na Ásia. Além disso,
evidencia-se que, atualmente, as forças de autodefesa do Japão só
poderiam empreender ações além teatro associadas à outra potência, ou
coalizão, para que suas deficiências sejam compensadas. Ainda assim, o
Japão possui capacidade para, após uma preparação de curto prazo,
empreender ações independentes no Sistema Internacional. Em suma, a
despeito de não se configurar como uma superpotência econômica, o
Japão ainda pode ser considerado uma grande potência por suas demais
capacidades.
Inglaterra e França podem, com maior facilidade, ser classificadas
como grandes potências. Ambas possuem capacidade nuclear e de
projeção de força extrarregional. Este último atributo, no caso da França,
é exercido rotineiramente. As potencialidades da Inglaterra no último
quesito, por sua vez, não são tão claras. Desde 1982, no entanto, ninguém
ousou desafiar suas possessões no Atlântico Sul. Além de bases insulares
através do Atlântico e de boa parte do mundo, a Inglaterra pretende
assegurar sua capacidade de operação independente além teatro com a
entrada em serviço dos porta-aviões da classe Queen Elizabeth, que já
conta com pelo menos duas unidades encomendadas, com entrega
176
Considerações finais
prevista para os anos de 2016 e 2020. Ademais, Inglaterra e França
robusteceram sua capacidade de intervenção por meio da afirmação da
Entente Frugale — basicamente um acordo para ações militares fora da
Europa.
A Inglaterra parece conservar uma capacidade considerável de
exportação de capitais e tecnologia, ainda que restrita predominantemente
aos Estados Unidos: a BAE Systems se mantém entre os seis maiores
fornecedores do complexo militar estadunidense. A França, por sua vez,
tem demonstrado capacidade de inserção favorável na Transição
Tecnológica, destacando-se como único país europeu capaz de produzir
supercomputadores — ainda que com componentes importados dos EUA.
Quaisquer que sejam as limitações do poderio anglo-francês, dificilmente
poder-se-á cogitar retirá-las do rol das Grandes Potências.
A Índia é o único país do mundo que empresta seu nome a um
oceano. No curso da história, o Oceano Índico revelou-se decisivo para a
sorte das hegemonias no Sistema Internacional. Foi assim em 1509,
quando, após a Batalha de Diu, a frota portuguesa destruiu a turca e abriu
o caminho do Pacífico para a Europa. Nas Guerras de Sucessão Austríaca
e dos Sete Anos, o controle do Índico mostrou-se crucial para a
supremacia naval inglesa e a própria conquista da Índia. Nas duas guerras
mundiais, o Oceano Índico foi decisivo para manter as rotas de
suprimento estadunidenses para os beligerantes: a Inglaterra na Austrália,
a URSS através do Irã e a China por intermédio da Birmânia. Sendo
assim, a proeminência internacional da Índia, diferentemente do que se dá
com as demais potências, está assegurada apenas por sua capacidade de
interferência na região, já que sua projeção de poder marítimo domina o
Oceano Índico.
Naturalmente, a Índia possui outros recursos de poder: trata-se de
uma potência termonuclear, dotada de moderna força aérea e um
comando do espaço em construção (65 satélites lançados, 7 de uso militar
exclusivo). Diferentemente do que se dá com suas outras capacidades
(e.g.: aeroespacial, nuclear), contudo, a projeção naval de forças não pode
ser contrarrestada por seus vizinhos no sul da Ásia. A PES na Índia
parece depender de três aspectos críticos: (a) o processo da integração do
sul da Ásia; (b) o caráter da competição militar com a China e (c) o
modelo de negócio e serviços.
Mesmo sendo Grande Potência sem ter previamente concluído um
177
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
processo de integração regional, a Índia depende de seus vizinhos do Sul
da Ásia para não ter suas capacidades comprometidas. Isso se aplica
mesmo em relação ao domínio do mar: Bangladesh domina o vértice do
Golfo de Bengala, e Paquistão o acesso ao Golfo Pérsico. Alianças desses
países com potências extrarregionais podem limitar consideravelmente a
ação da marinha indiana.
Ainda que suas capacidades militares sejam suficientes para
projeção defensiva de forças no âmbito regional, demonstram-se
deficitárias para servir como contrabalança inter-regional, no caso, do
Leste Asiático. Neste caso, o desfecho mais provável seria uma corrida
armamentista com a China. A dificuldade reside em compreender que, a
aquisição adicional de capacidades para cumprir a função de
contrabalança, tem resultado duvidoso e pode ser claramente
contraproducente. O sistema de vasos comunicantes entre o leste e o sul
da Ásia se encarregam de dificultar o gerenciamento da dimensão e do
perfil das capacidades. Ainda não está claro se a Índia seria capaz de
vencer a China em uma a competição militar, mas certamente ela drenaria
recursos tão necessários em outras áreas. O país não pode abrir mão de
investimentos em infraestrutura (energia e capacidade produtiva) para
alavancar sua atração de IED. Isso inviabilizaria o uso de seus meios de
pagamento para integração, um elemento necessário para sua política de
defesa, já que evita o estabelecimento de bases militares extrarregionais
permanentes no sul da Ásia.
Além disso, importa entender o papel da governança corporativa. Há
pouco mais de uma década atrás, uma conflagração envolvendo Índia e
China afigurava-se muito improvável, dado que ambos dependiam dos
mesmos parceiros de subcontratação e partilhavam dos mesmos
mercados. Na medida em que ambos países passaram a operar a fusão
entre o capital bancário e industrial e configuraram-se como exportadores
de capitais, a tendência à cooperação deixou de estar condicionada
favoravelmente pela economia. A interferência da diplomacia na gestão
da infraestrutura inter-regional parece ser o modo de delimitação de áreas
de influência tácitas e o caminho possível para os governos incidirem
sobre os respectivos modelos de negócios e serviços. Nesse sentido, a
governança corporativa permite a interferência política no modelo de
negócios e serviços de modo a configurar uma gestão cooperativa e
associada de fontes de energia extrarregionais e algum tipo de divisão de
178
Considerações finais
mercados.
Sem dúvida, a Índia ainda possui grandes obstáculos em seu
caminho, mas a gestão desses empecilhos pode ser realizada em
conformidade com o status de grande potência.
Considerou-se que China, Rússia e Estados Unidos são claramente
grandes potências. Tampouco cabe aqui ir além do disposto nos estudos
de caso. Deste modo se tratará deles em conjunto, na abordagem acerca
do papel triangulação como mecanismo de governança do SI, o que é
feito adiante, ao fim deste texto.
GUERRA E EQUILÍBRIO
Caso se dê algum crédito ao presente estudo, entre suas conclusões
mais relevantes está a constatação de que o Sistema Internacional atual
possui entre sete e oito grandes potências2. O Sistema Internacional já
possuiu quantidade semelhante de grandes potências em pelo menos duas
ocasiões: entre 1700 e 17633 e entre 1914 e 19454. Ambos os períodos
foram marcados por confrontações militares que podem ser consideradas
guerras centrais ou mundiais. Usualmente, acredita-se que, nestes dois
momentos a governança do SI foi dificultada, senão impossibilitada, pelo
elevado montante de grandes potências em ascensão ou declínio. A
funcionalidade da guerra central seria justamente a de restabelecer a
governança do SI (equilíbrio estável).
Em oposição, o período mais pacífico da existência do SI,
compreendido entre os anos 1815 e 1914 é caracterizado pelo domínio de
apenas cinco grandes potências — a pentarquia de Kissinger e, de resto,
da teoria clássica do equilíbrio na multipolaridade (Edward Carr, Hans
2
3
4
Cumpre lembrar, concluiu-se que a Turquia ainda não é uma grande potência e que a
Alemanha depende do status futuro da União Europeia.
Entre 1700 e 1721 deram-se duas conflagrações simultâneas que alteraram o status da
polaridade. A Grande Guerra do Norte (1700-1721) que retirou da Suécia a condição de
grande potência e que constituiu a Rússia enquanto tal. E a Guerra da sucessão
espanhola (1702-1714) que marcou o declínio da Espanha e Holanda enquanto grandes
potências. A Guerra dos Sete Anos (1756-1763) marcou a ascensão da Prússia enquanto
grande potência na Europa.
Período correspondente às duas guerras mundiais: a 1ª Guerra Mundial (1914-1918) e a
2ª Guerra Mundial (1939-1945).
179
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
Morgenthau, Raymond Aron, Samuel Huntington, entre outros).
Usualmente, considera-se que esta forma de equilíbrio multipolar, quatro
potências e uma quinta com o papel de balanceador, é a forma de
multipolaridade mais estável5. Note-se que a ideia de associar a
estabilidade do SI a um número determinado de grandes potências, está
relacionada à expectativa de governança dos assuntos internacionais.
Contudo, é a noção de governança, de decisão baseada no consenso, que
alicerça a noção de equilíbrio e não a quantidade de polos (grandes
potências). Abstraída esta ressalva, a sugestão subjacente — e, na
literatura de RI, não raro, este argumento assume sua forma explícita — é
a de que, na experiência do SI, tanto na paz quanto na guerra, sete ou oito
potências desequilibram o SI, impedindo sua governança. Nesta linha de
raciocínio, seria forçoso reconhecer que o atual SI traz consigo a
possibilidade da guerra central.
Todavia, nem sempre guerras centrais alteram o número de polos do
SI (polaridade). Este parece ser o caso das guerras da Revolução Francesa
(1792-1815) que, segundo Clausewitz, inauguraram a guerra total ou
absoluta na Europa6. As guerras napoleônicas produziram uma profunda
modificação no conteúdo ético do continente e do próprio SI. Para além
da hegemonia inglesa, importa o registro do papel cumprido pelo
Congresso de Viena: a primeira oposição séria ao sistema anárquico de
Estados soberanos estabelecidos em Vestfália (1648). Ao menos entre
1818 e 1848, o Congresso comportou-se mais como um sistema de
governo mundial do que, propriamente, de governança e concertação do
SI. Para além das mudanças institucionais, veio a Revolução Industrial, o
emprego do vapor de alta pressão (1815), a produção em série de Eli
Whithney (1851) e o processo Bessemer de siderurgia (1855). Mas, a
despeito de todo o seu impacto sobre os valores, o Estado, a sociedade e o
processo produtivo, nem por isso, as guerras da Revolução Francesa
alteraram a polaridade do SI.
Por outro lado, no chamado “século de paz” (1815-1914), houve
uma alteração significativa na polaridade, que, a princípio, parece estar
mais diretamente associada ao Congresso de Viena que à Revolução
5
6
Na época este papel era cumprido pela Inglaterra que geralmente balanceava as tensões
entre as potências continentais (França, Rússia, Prússia e Áustria). WALTZ, Kenneth.
Theory of International Politics. EUA: Waveland Press, 2010. pp 163-164.
CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. pp 831
180
Considerações finais
Francesa e às suas guerras. As guerras de Independência da Grécia (18211832) e a Primeira Guerra Egípcio Otomana (1831-1833) retiraram a
Turquia (Império Otomano) do rol das grandes potências. Mesmo
considerando-se a magnitude das forças reunidas pelas potências de
Viena na batalha de Navarino (1827) para destruir a esquadra turca; ou a
escala da guerra egípcio turca — 100 mil por parte do Egito e 147 mil por
parte da Turquia — não parece razoável supor que se tratou de uma
guerra central7.
A Independência da Grécia, ao contrário, parece se ajustar ao que
atualmente se convenciona chamar de guerra local8. Isso porque a
despeito de relativamente confinada em termos geográficos, mobilizou e
esgotou os recursos do Império Otomano. Igualmente, a Primeira Guerra
Egípcio-Otomana, na melhor hipótese, pode ser considerada uma guerra
regional, dada a participação oficiosa da Rússia, que ironicamente apoiou
a Turquia. A Independência Grega parece ilustrar precocemente (antes do
advento das armas nucleares) o papel da guerra local no equilíbrio
internacional.
Importa notar que as alterações na polaridade do SI ao longo do
“século de paz" são fruto de confrontações ainda menos prolongadas ou
intensas daquelas que ocasionaram a derrocada da Turquia como grande
potência. O surgimento da Itália como grande potência em 18759, foi
precedido pelas Revoluções de 1848, que propiciaram a união das
Repúblicas italianas contra o domínio da Áustria. Mesmo o malogro do
movimento foi suficiente para retirar a Áustria da Santa Aliança e, por
fim, do Congresso de Viena, doravante sucedido pelo Concerto Europeu.
De qualquer modo, em 1859, os italianos, desta feita em aliança com a
França, desafiaram o domínio austríaco, no episódio conhecido como a
segunda guerra de independência italiana. Esta igualmente não foi
coroada de êxito, mas permitiu que o Piemonte se fortalecesse,
constituindo-se como o esteio de unificação da península. Isso acabou por
ocorrer na Terceira Guerra de Independência da Itália em 1866 (parte da
7
8
9
Guerra Central é uma conflagração que ocorre entre as grandes potências, os polos do
Sistema Internacional.
Guerra local é uma conflagração delimitada geograficamente e de intensidade variável.
O ano de 1875, já após a unificação, marca a expansão da influência italiana para os
Bálcãs, evento que demonstrou a maioridade da Itália como uma grande potência.
TERZUOLO, Eric R. The International History Review. Vol. 4, nº 1. Fevereiro de 1982.
Págs 111-126.
181
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
guerra Austro-Prussiana), quando os italianos, desta vez aliados aos
prussianos, conseguiram obter a vitória. Contudo, convenciona-se a data
da Unificação Italiana como 1870, quando em virtude da guerra francoprussiana, os italianos conseguem recuperar Roma10.
Em resumo, o surgimento de duas grandes potências (Itália 1870 e
Alemanha 1871) deveu-se a uma sucessão de conflagrações de curta
duração que, na melhor hipótese, constituem episódios de guerra
limitada11. Dentre as revoluções de 1848, a guerra franco-austríaca de
1859, a guerra austro-prussiana de 1866 e a franco-prussiana de 1871,
apenas esta última pode ser considerada de proporção significativa. O
papel que estes países desempenhariam nas duas guerras mundiais,
sobretudo na segunda, deve ser o suficiente para ilustrar o significado da
alteração da polaridade ocorrida durante a vigência do “século de paz”.
De fato, ambas as guerras mundiais podem ser consideradas como a
soma de duas guerras locais que escalaram no âmbito vertical e
horizontal12, produzindo uma conflagração generalizada. Na Primeira
Guerra temos, de um lado, a confrontação entre a Rússia e a ÁustriaHungria, naquilo que poderia ter sido a Terceira Guerra Balcânica e que,
devido ao sistema de alianças paradoxalmente construído para deter a
guerra, produziu sua generalização. O mesmo pode ser dito sobre a
confrontação entre Alemanha e França envolvendo a região da AlsáciaLorena, uma sequela da guerra limitada de 1871. De modo análogo, a
Segunda Guerra Mundial pode ser considerada a soma da guerra sinojaponesa (1931-1945) e da ocupação da França pela Alemanha —
consumando as guerras de 1871 e de 1914-1918. A diferença neste caso,
foi, de um lado, o ataque japonês a Pearl Harbor, que tornou a guerra
sino-japonesa uma conflagração regional e, de outro, a invasão da URSS
10
Anteriormente, em 1867 as tropas francesas, haviam apoiado os Estados Papais,
impedindo que Roma fosse capturada. Foi só em 1918, já sob os auspícios da Liga das
Nações, que a Itália logrou recuperar os últimos territórios sob o domínio austríaco a
Veneza, Júlia e Trentino.
11
Guerra limitada consiste em uma conflagração confinada não só na geografia, mas
também na duração e na escala.
12
Escalada: o aumento no grau do conflito em situações internacionais. Escalada Vertical:
aumento da intensidade da guerra pelo emprego de mais tropas ou de armamento de
maior poder destrutivo. Escalada Horizontal: aumento da intensidade da guerra em
virtude do concurso de novos beligerantes. KAHN, Hermann. A Escalada. Rio de
Janeiro: Bloch, 1969. pp 23.
182
Considerações finais
e a declaração de guerra aos Estados Unidos feitas pela Alemanha, o que
mundializou a confrontação militar.
DIPLOMACIA E ECONOMIA NO ENTRE-GUERRAS
Costuma-se atribuir a II GM ao fracasso da Liga das Nações (LDN)
em evitar a conflagração devido à ausência dos EUA e da URSS entre os
seus membros13. Este fato, aliado ao discurso do nacionalismo autárquico
e do capitalismo de estado — partilhado tanto pelos regimes corporativos
quanto pelo soviético — alimentam a ideia de que nas décadas de 30 e
40, não havia interdependência e, tampouco, diplomacia multilateral.
Embora a ideia seja confortável, nos dá a sensação de segurança de que a
guerra mundial é impossível em um mundo interdependente e sob os
auspícios do sistema ONU, trata-se de uma simplificação excessiva da
realidade
Os principais beligerantes mantinham relações significativas de
interdependência. As mais conhecidas são as existentes entre o Japão e os
EUA, manifestas na cadeia de eventos que conduziram à Pearl Harbor. O
caso da Alemanha e da Inglaterra é bem conhecido — foi levado às telas
no filme Vestígios do Dia, de James Ivory (1993) —, além de
devidamente abordado na literatura de RI14.Dentre estas relações, talvez a
menos conhecida seja entre os Estados Unidos e a Alemanha. Desde o
período do entre-guerras, o governo alemão se utilizava amplamente da
praça de Wall Street para financiar os seus empreendimentos. As grandes
corporações americanas possuíam participações em empresas como a
Krupp e ainda, empresas como a Standard Oil, General Eletric, AT&T
13
A Liga das Nações foi criada pela Conferência de Paris de 1919, teve entre os seus
principais proponentes o presidente estadunidense Woodrow Wilson, sua primeira
sessão teve lugar em janeiro de 1920. Devido a não ratificação do tratado pelo senado
americano — o senador Henry Cabot-Lodge se opunha ao envio de tropas ao exterior
sem o aval do Congresso —, os EUA não ingressaram na LDN. A Rússia, por sua vez,
estava em guerra civil e viu-se invadida pelas grandes potências da época, os membros
mais proeminentes da LDN, de 1918 à 1925. Em virtude disso, a URSS só pode
ingressar na Liga em 1934, contudo, acabou sendo expulsa em 1939.
14
O filme retrata o círculo de aristocratas que formavam o Grupo de Cliveden: cartel
anglo-francês do carvão e do aço, que buscavam evitar a guerra através de negócios
com os industriais alemães. Cf. VIZENTINI, Paulo Fagundes. História do Século XX.
Porto Alegre: Novo Século, 1998.pp.75, 77, 78, 82 e 84.
183
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
Communications e Ford. Além de fornecer produtos, também
transferirem tecnologias para o país, como a do combustível e da
borracha sintética15.Os Tratados de Rapallo (1922) e Berlim (1926)
documentam a cooperação tecnológica e militar entre a Alemanha e a
URSS. Naturalmente, a interdependência era mais intensa entre os polos
que comporiam o campo aliado na II GM16.
O capitalismo de estado, em suas diferentes matizes e feições, foi a
resposta ao desafio colocado pela transição tecnológica da primeira para a
segunda fase da Revolução Industrial — correspondeu ao período da
aliança dos monopólios com o Estado para custear o processo de
transição tecnológica.17 Desse modo, a despeito dos Estados corporativos
frequentemente valerem-se de um discurso centrado no nacionalismo e na
15
SUTTON, Antony C. The Wall Street and the Rise of Hitler. Nova York: Buccaneer
Books. 2000.
16
Ainda em 1913, a criação do FED nos EUA sob os auspícios do banco N M Rothschild
& Sons Limited da Inglaterra, demonstra a interação anglo-estadunidense devido ao
processo de transnacionalização de empresas britânicas. Tratou-se da materialização do
Pacto de Elites anglo-estadunidense iniciado ainda no século XIX, e que vigorou até o
New Deal e a II GM, quando Roosevelt tentou substituí-lo pelo Pacto Social Mundial.
O tema dos Pactos de Elite e Pactos Sociais Mundiais foi desenvolvido em BUENO,
Eduardo Urbanski. Paradigmas Técnico-Econômicos, Pactos de Elites e o Sistema
Monetário Internacional. Trabalho de Conclusão de Curso de Relações Internacionais,
Faculdade de Ciências Econômicas, UFRGS. Porto Alegre, 2009. A cooperação
estadunidense-soviética antes da Segunda Guerra tornou-se um tema bem conhecido,
sobretudo, após a queda do Muro de Berlim. Contudo, ainda antes do fim da Guerra
Fria, Louis Fischer e Armand Hammer encarregaram-se de remontar as relações russoestadunidenses desde a retirada das tropas estadunidenses da Sibéria em 1920 (chegada
de Hammer em Moscou ), passando pelas relações com Lênin (documentada por
Fischer desde 1922), até a amizade de Stálin com Henry Ford. Ainda à época da
perestroika, publicizou-se a importância da cooperação bilateral durante a II GM:
embora se trata-se de pouco mais de 5% do aportado ela se deu em um momento crítico
de transferência das fábricas para além dos Urais. Sobre as relações EUA e URSS no
pré-II GM ver: FISCHER, Louis. A Vida de Lênin. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1967; HAMMER, Armand. Hammer, um Capitalista em Moscou. São Paulo:
Editora Nova Cultural, 1989; e SUTTON, Antony C. Wall Street and the Bolshevik
Revolution. New York: Buccaneer Books. 2001.
17
Pode-se comparar a primeira e a segunda fase da Revolução Industrial a partir de três
fatores: processo produtivo, geração de energia e o domínio da metalurgia. Na Primeira
Revolução Industrial as inovações foram pautadas pela produção manufatureira
mecanizada, pela energia à vapor e pelas melhorias na produção do ferro. Já na Segunda
Revolução Industrial o progresso foi capitaneado pela produção em série, pelo motor à
explosão e pela produção em escala do aço a partir do advento do processo Bessemer.
184
Considerações finais
ideia de um desenvolvimento autárquico, no mundo real, em seus
fundamentos econômicos (transferência de tecnologia, patentes, capitais)
o capitalismo monopolista de Estado mantinha relações de
interdependência.
A ideia de que a guerra foi causada pela ausência de instituições
multilaterais, igualmente, não é de todo exata: toma a diplomacia por sua
forma e abstrai seu conteúdo. Os fundamentos do Internacionalismo
Conservador18 do entre-guerras foram lançados ainda no século XIX, no
afã de conter a ascensão da Rússia (Crimeia 1853-1856) e de estabelecer
uma governança sobre a China após a Revolta dos Boxers (1900).
A Partilha da China deu-se desde o Tratado de Nanjing (1842),
contudo a decadência da dinastia Qing precipitou-se após a Guerra SinoJaponesa de 1894-1895 — a guerra limitada que converteu o Japão em
potência regional — após a qual aconteceu a Revolta dos Boxers (1900).
Então, graças aos erros de cálculo da Imperatriz Cixi, o exército imperial
foi destruído pelas potências ocidentais. Esse episódio — a destruição do
Exército chinês — estabelece um novo umbral nas relações das potências
ocidentais com a China. Mais que dividir áreas de influência, tratava-se
agora de governá-la. A garantia de lei e ordem passou a depender
fundamentalmente do Ocidente: foi firmado o Tratado das Oito
Potências19, fundamento mediato do Internacionalismo Conservador. Em
sua esteira veio o Tratado Anglo-Japonês de 1902, explicitamente
dirigido contra a presença russa na Manchúria. A Guerra Russo-Japonesa
de 1905 — guerra local que converteu o Japão em Grande Potência — foi
a consequência lógica da gestação do Internacionalismo Conservador,
cujo marco remoto é a Guerra da Crimeia; mediato, o Acordo AngloJaponês; e imediato, a Revolução Russa, cujo embrião também está
associado à Guerra Russo-Japonesa. O Tratado Lansing-Ishii
(02/11/1917) firmado entre Japão e EUA é a continuidade lógica do
Tratado das Oito Potências e o espelho americano do Tratado AngloJaponês. Cinco dias depois (07/11/1917) deu-se a Revolução de Outubro,
18
Internacionalismo Conservador — Categoria utilizada por Robert Schulzinger para
caracterizar o conteúdo da diplomacia do entre-guerras. Neste trabalho, conforme se
explica no texto, o termo é operacionalizado em um contexto mais amplo, procura-se
enfatizar as raízes desta política, lançada ainda no anos anteriores à I GM.
SCHULZINGER, Robert. American diplomacy in the twentieth century. New York:
Oxford University Press, 1990.
19
Inglaterra, EUA, Rússia, França, Alemanha, Áustria, Itália e Japão.
185
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
e já no ano seguinte (11/08/1918) americanos e japoneses invadiram a
Sibéria para combater os bolcheviques. A intervenção dos EUA e do
Japão tipifica o conteúdo programático do consenso existente: manter a
China ocupada e a Rússia (agora soviética) fora dos assuntos
internacionais.
Assim, a despeito dos EUA ficarem à margem da Liga das Nações,
permaneceram no centro da concertação internacional. O fato de
sediarem a Conferência de Washington de 192220 ilustra claramente a
proeminência estadunidense e a capacidade da diplomacia em exercer a
governança do SI. De modo ímpar, o Tratado Naval firmado para limitar
a quantidade de couraçados e a tonelagem das Marinhas — precursor
multilateral dos SALT e START —, denominou e hierarquizou as grandes
potências através da discriminação do perfil de força de suas frotas de
superfície21. Pode-se considerar que a Conferência de Washington foi a
prefiguração do que, após a fundação da ONU, seriam os denominados
regimes internacionais. Além disso, foi precursora do Pacto KelloggBriand de 1928.
20
A Conferência de Washington foi concluída com a assinatura de três tratados. O Tratado
das Quatro Potências, das Cinco Potências e das Nove Potências. Tratado das Quatro
Potências — estipulava a manutenção do status quo na Ásia. Assinado por EUA,
Inglaterra, França e Japão. Considerado uma extensão do Tratado Lansing-Ishii (1917) e
precursor do Tratado Kellogg-Briand (1928). Tratado das Cinco Potências (Tratado
Naval) — estipulava o perfil de forças e a tonelagem de cada frota. Signatários:
Inglaterra, EUA, Japão, França e Itália. Tratado das Nove Potências — garantia a
integridade da China e a continuidade da política de Portas Abertas. Signatários: EUA,
Inglaterra, Japão, China, França, Itália, Bélgica, Holanda e Portugal.
21
Tratado Naval de Washington — estipulou a nomenclatura e a tonelagem máxima por
país dos principais combatentes de superfície: couraçados, cruzadores e porta-aviões.
Foi dividido em duas partes. A que dispunha sobre couraçados e cruzadores e a que
tratava dos porta-aviões — seu conteúdo é de prenhe significado, daí a importância de
sua descrição. Couraçados e Cruzadores — equiparou os EUA à Inglaterra,
distinguindo a ambos com 525 mil toneladas. Colocou o Japão em posição de
proeminência sobre a França e a Itália, com 315 mil toneladas. Por fim, equiparou a
Itália à França, permitindo que ambos construíssem até 175 mil toneladas. Vigorava
para todos o limite máximo de tonelagem por vaso de 35 mil toneladas, e que seu
armamento principal não poderia exceder o calibre de 406 milímetros.(16 polegadas).
Japão e Inglaterra já possuíam canhões navais de calibre superior. Porta-aviões — mais
uma vez se distingue EUA e Inglaterra com 135 mil toneladas. Concede-se ao Japão
construir até 81 mil toneladas. E, por fim procura-se compensar a França e a Itália com
a autorização de construir até 60 mil toneladas. Para todos signatários ficou estipulado
que a tonelagem máxima por casco ficasse limitada a 27 mil toneladas.
186
Considerações finais
Proposto pelos EUA e a França, o Pacto Kellogg-Briand estipulava a
renúncia à guerra como instrumento legítimo de política nacional. Foi
assinado por 55 países — todos os membros da LDN, além de EUA e
URSS. Na ocasião, Alemanha, Itália e Japão ainda faziam parte da LDN.
Portanto, todas as Grandes Potências da época assinaram o Pacto
Kellogg-Briand. Foi a governança das disputas da Ásia, materializada na
Conferência de Washington, que permitiu sua assinatura. Ele antecipa o
artigo 2, parágrafo 4 da Carta da ONU que proscreve a guerra de
conquista como instrumento legítimo de política internacional. A adesão
soviética aos termos do Pacto abriu as portas da LDN ao seu ingresso,
que se efetivou em 1934.
Nesse sentido, pode-se dizer que se a Conferência de Washington
prefigurou os regimes internacionais, o Pacto Kellogg-Briand, por seu
turno, antecipou os instrumentos de governança do sistema ONU 22. Nem
o Congresso de Viena (1815), nem a LDN — a despeito de seus feitos na
governança internacional —, haviam ousado ir tão longe. O Congresso de
Viena não dispunha de nenhum mecanismo formal para evitar
conflagrações. Com exceção de tratados territoriais, todas as disputas
eram solucionadas através de mediações informais ou tratados secretos. A
LDN, por sua vez, apesar do objetivo final de promover a paz apenas
requeria de seus membros que recorressem às instâncias de arbitragem,
sem explicitamente proscrever a guerra como instrumento de política
externa. Do exposto, emerge uma imagem diferente da que usualmente
temos acerca do papel da diplomacia no entre-guerras. Percebe-se o quão
precária é a imagem de que foi a ausência dos EUA e da URSS na LDN o
que inviabilizou a governança do SI, levando à guerra.
Em 1929 veio a crise econômica — que já foi comparada com a de
2008 — e então todas as declarações altissonantes da diplomacia acerca
da proscrição da guerra se desfizeram. Nem mesmo a interdependência
monopolística — acerba nos casos da interação entre EUA e Japão —
cumpriram o papel de contrapeso eficiente à confrontação. Ainda em
1929 foi publicado o Memorando Tanaka que preconizava a conquista da
22
De fato, sua formulação foi ainda mais ousada: pretendeu abolir todo tipo de guerra e
substituí-la por mecanismos de solução de controvérsias. Isso fica claro na rejeição da
emenda francesa que propunha salvaguardar o direito do uso da guerra em legítima
defesa ou em cumprimento das disposições da LDN. Cf. KISSINGER, Henry.
Diplomacia. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1999. p.301.
187
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
China para o êxito do Japão no Leste Asiático. Em 1931 teve início a
invasão da China e a guerra que se prolongaria até 1945. Nos EUA, que
já eram um Estado Região, a crise foi contornada pelo New Deal que
efetivou a expansão para dentro, através de frentes de trabalho, obras de
infraestrutura, e não menos importante, a construção naval. A Alemanha,
mais semelhante ao Japão que aos EUA, também expandiu-se na região.
Em 1936 remilitarizou a Renânia, em março de 1938 anexou a Áustria,
em setembro os Sudetos. Em 1939 invadiu a Polônia e em 1940, a
França.
Como referiu-se anteriormente, caso Hitler não invadisse a URSS ou
declarasse guerra aos EUA em 1941 a II GM poderia ter se apresentado
como duas guerras regionais simultâneas, mas desconectadas entre si.
Como, por exemplo, se deu com a Sucessão Espanhola (1702-1714) e a
Grande Guerra do Norte (1700-1721). Possivelmente, em todo caso,
haveria guerra central. Pouco importa se sincronizada ou desconectada.
Importa pois, saber porque se deu a guerra.
Impossível pretender uma resposta cabal. Contudo, parece legítimo
supor que a guerra está relacionada aos desafios envolvendo a passagem
da primeira para a segunda Revolução Industrial. No caso, aos recursos
para custear essa transição tecnológica, mormente de economia de escala.
Em suma, da capacidade da URSS e dos EUA em constituírem-se
enquanto Estado Região e da dificuldade da Alemanha e do Japão em
fazerem o mesmo. Neste caso, os contrapesos representados pelas
instituições (do mundo da política) e a interdependência (do mundo da
economia) não foram suficientes para conter a determinação sistêmica
que impelia os Estados rumo ao aço e ao petróleo (competição militar e
guerra). Nesta linha de raciocínio, não se trata de desconstruir a
importância da interdependência, mas simplesmente reconhecer a
importância da terceira imagem de Waltz (a guerra) sobre as demais
determinações. Ato contínuo, identificar a transição tecnológica entre os
principais fatores de desequilíbrio, isto é, que criam demandas antes
inexistentes e impelem os Estados a erigirem novas capacidades.
Desta perspectiva há pouca diferença entre a interdependência
liberal e a monopolista, ou ainda entre a diplomacia do Congresso de
Washington e do Pacto Kellogg-Briand com o sistema ONU. E uma
semelhança perturbadora: estamos diante de uma nova transição
tecnológica, desta feita da segunda para a terceira Revolução Industrial.
188
Considerações finais
Entretanto, antes de se vaticinar acerca da suposta inevitabilidade de uma
nova guerra central (que, por certo, pode ocorrer), importa perguntar-se
como se dá o sociometabolismo entre os três mundos: o da política
(instituições/diplomacia); o da economia (mercadoria/dinheiro); e o da
guerra (ou competição militar). Pode-se adotar como ponto de partida a
abordagem de Karl Deutsch23 e propor-se uma interpretação cibernética: a
eclosão ou não da conflagração depende mais do gerenciamento do
sistema do que da diplomacia, da economia, ou mesmo, do número de
polos.
TRIANGULAÇÃO E LIÇÕES PARA O BRASIL
Conquanto, o Sistema Internacional seja fechado, composto por
número limitado e definido de Estados, sua governança é um sistema
aberto, definido pela oscilação do número de grandes potências, isto é,
daqueles Estados cujas capacidades devem ser levadas em conta. Um
problema envolvendo a análise ou o cálculo em política externa, é saber
quem são essas potências e em que medida suas posições devem ser
consideradas.
Esta incerteza deriva, entre outros fatores, do dinamismo
característico do sociometabolismo da política, da economia e da guerra.
Estes três aspectos podem ser considerados como subsistemas com seus
próprios inputs, processamento autônomo e retroalimentação
independentes. Assim, o Sistema Internacional sofre oscilações tanto em
virtude das revoluções de 1848 ou da Primavera Árabe — para efeitos do
subsistema político — das variações demográficas, mudanças climáticas,
da oferta de matérias-primas ou commodities — no que tange ao
subsistema econômico — ou ainda, das transições tecnológicas, no caso
da guerra.
Dada sua extrema complexidade, número de inputs e outputs,
processamento simultâneo de subsistemas, assimetrias (e.g.: sistema
aberto governando sistema fechado), entre outros, a tendência natural é
23
A referência à Karl Deutsch é um tributo ao seu pioneirismo no emprego da teoria da
comunicação para a análise do Sistema Internacional. Isto não significa cingir-se ao seu
enfoque, ou estabelecer qualquer compromisso de sinonímia com a taxionomia, muito
menos no que tange ao conteúdo normativo.
189
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
procurar respostas na simplificação. No caso, a estrutura mais simples de
governança do SI seria a unipolaridade. Com uma única potência ditando
as regras do sistema, sua governança afigura-se como mais exequível.
Contudo, a simplicidade pode ser enganosa: a tarefa de governar todo o
sistema pode converter-se em um fardo insuportável, fazendo com que
todo o peso de suas tensões se façam sentir sobre o polo dirigente. Ilustra
esta perspectiva a crise estadunidense que se seguiu ao momento unipolar
do SI. A bipolaridade contém a mesma estratégia de gestão, procura
governar a complexidade através da simplificação. A partir da ótica dos
dois enfoques precedentes a multipolaridade seria a forma menos estável
de governança, posto que trata-se de muitos, simultaneamente,
pretendendo escrever as regras do sistema. Sem dúvida, o sistema
multipolar é mais propenso a instabilidade. Contudo, não existe evidência
de que esta não seja uma tendência aplicável tanto aos equilíbrios do SI
quanto aos sistemas em geral.
Aqui cabe lembrar que a plausibilidade da pretensão de um Estado
em escrever regras está relacionada às suas capacidades e ao
reconhecimento destas por parte dos demais. Ainda que não se possa
pretender reduzir a política internacional à nenhum dos três campos
(político, econômico e militar) e, muito menos aos particularismos de
cada um deles, pode-se distinguir na projeção de força um fator que com
maior facilidade permite o reconhecimento por parte dos demais Estados
como algo que deve ser levado em conta no seu cálculo. Em suma, o
medo pode não ser o motor da política externa, como pretende o realismo
ofensivo, mas se dissemina com maior facilidade do que a suscetibilidade
à imitação a partir da liderança.
Isto se dá na medida em que o SI não tem uma autoridade central, a
coerção é indireta, baseada no cálculo de interações, feito a partir da
correlação de forças. Portanto, a capacidade de prevenir a guerra, isto é
de dissuadir, pode estar relacionada diretamente com as promessas de
recompensa ou punição. Neste caso, importam as grandes potências,
posto que apenas estas podem ser computadas fora de seu âmbito regional
— estando aptas a aplicar punições. Então, a capacidade de gestão de
crise em um sistema de poder, pode ser legitimamente relacionada às suas
forças navais, já que é por mar que se desloca a tonelagem da guerra.
Considerando-se que o que distingue uma potência regional de uma
Grande Potência é que a esfera de influência da primeira é a região e da
190
Considerações finais
segunda, o mundo, pode-se concluir que a distinção básica entre ambas
reside na capacidade de projeção de força militar além da região (além
teatro). Como a maior parte das interações inter-regionais — mesmo
tratando-se de regiões contíguas — se dão através do mar, parece também
razoável supor que as capacidades navais estão no âmago da distinção
entre a potência regional e a grande potência. Portanto, o inventário
acerca das capacidades navais importa duplamente: (I) para tentar
identificar quem são as Grandes Potências; e (II) para prospectar sua
capacidade em administrar uma crise. Parece, pois, válido comparar:(1)
as capacidades navais da pentarquia do século XIX; (2) das potências do
entre-guerras e (3) das atuais. O que é feito a seguir.
Em 1880, o ranking das frotas das potências expresso em toneladas,
era: (1) Grã-Bretanha, com 650 mil; (2) França com 271 mil; (3) Rússia
com 200 mil;(4) Itália com 100; (5) Alemanha com 88; e (6) ÁustriaHungria com 6024. Tomando-se estes dados fica mais fácil entender a
estabilidade da pentarquia no século de paz. A Inglaterra possuía mais
que o dobro da tonelagem da França e da Rússia, que por sua vez,
guardavam proporção semelhante à Itália, Alemanha e Áustria-Hungria.
A hierarquia de capacidades, expressa neste sistema piramidal, serve para
ilustrar os jogos envolvendo a oscilação de alinhamentos e a formação de
alianças flexíveis que caracterizaram o Concerto Europeu. O líder
encontra-se em posição confortável, há pelo menos duas potências em
situação intermediária e três grandes potências em situação precária. Na
verdade cinco, se considerarmos que na época, Japão e EUA já tinham
forças navais consideráveis, apesar de serem mantidos aparte do Concerto
Europeu.
No argumento anterior, vimos como era a distribuição da tonelagem
por frota na década de 1880. Em 1922 o Congresso de Washington
desenhou um quadro de como o mundo deveria ser: EUA e Inglaterra
com 660 mil toneladas cada; Japão com 396 mil toneladas; e França e
Itália com 235 mil toneladas cada uma. O que chama a atenção no
desenho do Congresso de Washington é que ele não traduz a realidade no
inventário, mas projeção daquilo que os diplomatas consideravam
idealmente possível. Em suma, daquilo que consideravam ser a própria
essência do SI em sua época. A imagem que brota, desta feita, é de uma
24
KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro: Campus,
1989. p. 200.
191
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
ampulheta. Com duas grandes potências no topo (EUA e Inglaterra),
Japão em uma situação intermediária e França e Itália em uma terceira
posição. O desenho facilita a compreensão do internacionalismo
conservador, a semelhança de capacidades no topo e na base das grandes
potências dificulta qualquer hierarquia e, portanto, a percepção de quem
tem legitimidade para escrever regras. Desta perspectiva fica mais fácil
compreender porque o consenso possível no internacionalismo
conservador era baseado na exclusão da Rússia e da China — de certo
modo, esta atitude era preexistente em relação à própria Revolução
Russa. A saída voluntária do Japão da LDN em 1933 e o ingresso da
URSS no ano seguinte, eliminou o único fundamento de consenso
possível para se escrever regras: a exclusão. Desta ótica não é de admirar
que com a crise de 1929 tenha vindo a guerra.
O panorama atual das forças navais das principais grandes potências
é: EUA com 445 navios e 3.416 mil toneladas; a Rússia com 283 navios e
1.261 mil toneladas; China com 275 navios e 834 mil toneladas; Japão
com 99 navios e 340 mil toneladas; Inglaterra com 82 navios e 335 mil
toneladas; França com 72 navios e 330 mil toneladas; e Índia com 118
navios e 283 mil toneladas25. Este desenho de capacidades é claramente
triangular. Há um líder inconteste, seguido por duas grandes potências
que se distinguem o suficiente das demais para constituir-se em uma
classe à parte. A China, situada no vértice mais baixo deste triângulo
escaleno, possui o dobro da tonelagem das grandes potências que podem
ser classificadas em uma terceira posição. Abaixo da Índia vem a Coreia
do Sul, uma potência regional, mas contando com 177 mil toneladas, a
Índia possui aproximadamente 40% de tonelagem acima dela. Este talvez
seja o problema deste terceiro grupo, sua distância para as potências
regionais não é tão clara e pronunciada do que separa o segundo do
terceiro grupo de grandes potências.
De qualquer forma, o SI atual parece ser mais governável do que o
estabelecido no entre-guerras. Talvez por isso, o seu conteúdo ético seja
distinto, possui uma lógica inclusiva. Estados, adotam um
comportamento semelhante ao das empresas e formam conglomerados
(os grupos da OMC) para negociar coletivamente. A agenda varia desde
questões trabalhistas até as mudanças climáticas, passando pelo tráfico de
25
Cf. Total Naval Ship Strength by Country. Disponível em: www.globalfirepower.com .
Dezembro de 2012.
192
Considerações finais
armas leves, proliferação nuclear, terrorismo, separatismo, em suma, há
um processo imperfeito, porém efetivo de governança, o que se dá
também através dos regimes internacionais. Trata-se de responder à
complexidade de processamento de sistema, sem procurar a
simplificação, pelo contrário, aumentando a complexidade dos
mecanismos e processos de gestão e de controle. Conquanto seja antiintuitivo, talvez seja o único equacionamento possível em termos
humanistas — a alternativa é a de acelerar-se a entropia já existente no
sistema através da guerra, mas esta opção não pode ser qualificada deste
modo (ver capítulo sobre os EUA).
Porém, talvez o mais importante, seja o processo de triangulação
estabelecido entre EUA, Rússia e China. A triangulação praticada por
estes países permite que as regras sejam escritas de forma coletiva: O que
é obtido pelo alinhamento de dois destes três polos contra o terceiro.
Quando após a Guerra do Vietnã a URSS pareceu estar ganhando a
guerra fria, e prestes a tornar-se o polo dominante no Sistema
Internacional, os EUA aproximaram-se da China para balanceá-la.
Quando, por sua vez, estabeleceu-se o momento unipolar estadunidense,
Rússia e China deixaram suas diferenças de lado e aproximaram-se
através da criação da Organização de Cooperação de Xangai (OCX). Em
grande medida, a amizade entre os dois países é custeada pelo receio dos
efeitos da defesa antimíssil (DAM) estadunidense e de que estes sejam
capazes de estabelecer a primazia nuclear. Permitindo aos EUA poder
atacá-las nuclearmente sem o receio de que um contragolpe nuclear possa
acarretar a destruição mútua.
Contudo, as assimetrias nos vértices do triângulo talvez sejam
pronunciadas demais. Os EUA possuem em suas forças navais, em
termos de tonelagem, quase o dobro de Rússia e China somados.
Contudo, a perspectiva é enganosa. Do ponto de vista qualitativo a
diferença ainda é maior: Rússia e China possuem apenas um porta-aviões
contra dez estadunidenses e, ainda assim, inferiores à este. Apenas os
EUA possuem aeronaves de 5ª geração e mais aeronaves de 4ª geração do
que ambas somadas. Estas assimetrias dificultam a percepção pela parte
estadunidense de que, conquanto sejam muito mais fortes que Rússia e
China, por outro lado a diferença não justifica a pretensão de que possam
ditar regras nas regiões de suas competidoras. Quando então, as
portentosas capacidades do inventário estadunidense são reduzidas pelas
193
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
possibilidades reais da cadeia de logística e pelo número limitado de
linhas de abordagem. Ademais, os números ficam sujeitos aos azares da
imponderabilidade da guerra, que por esta razão, costuma beneficiar os
defensores. Os que lutam em casa, estão mais aptos a empregar a
plenitude de seu potencial. Nem sempre estas considerações parecem
claras à opinião pública e ao congresso americano. Há uma perigosa
tendência de que possam, a partir apenas dos números do inventário,
exigir de suas forças armadas mais do que elas podem realmente oferecer.
Existem elementos de entropia e entalpia no sistema. Conta à favor
de uma recomposição hegemônica o fato de que a mudança não implica
na troca do hegêmona, mas apenas de seu conteúdo ético, no que tange ao
papel conferido às regiões e ao multilateralismo. Importa também
constatar que a triangulação seja praticada desde 1971, portanto há 42
anos, mais que uma geração bíblica. Ela iniciou-se à época da
bipolaridade, informou a transição que redundou na unipolaridade e, por
fim, tem sido o esteio da atual multipolaridade assimétrica. Contudo,
permanece desejável encontrar meios para reduzir a extensão das
assimetrias na multipolaridade (por definição esta forma de equilíbrio é
assimétrica) ao menos para tornar mais claro quem escreve as regras do
jogo e onde sua opinião não deve ser contestada.
Existem inúmeras razões que conduzem ao aumento da incerteza e
disseminam a insegurança. Entre eles, o elevado número de grandes
potências e a situação incerta de algumas delas, que parecem estar em
trajetória declinante. A ascensão da Índia como grande potência e a do
Brasil como líder inconteste da América do Sul. A emergência dos
Próximos 11 (N-11)26, dentre estes, quatro com perspectivas de liderança
regional (Egito, Indonésia, México e Nigéria) e dois com interesses que
vão além de suas regiões (Turquia e Coreia do Sul). Tudo isto associado a
uma crise econômica prolongada multiplica a percepção acerca do papel
cumprido pelo papel da guerra limitada e da guerra local na definição da
polaridade internacional. Se sua efetividade já revelou-se durante o
século XIX, que dizer do presente quando, graças à digitalização
horizontalizam-se as capacidades militares, disseminam-se equipamentos
de alta tecnologia e multiplicam-se as possibilidades de emprego da
guerra assimétrica.
26
Grupo de países composto por: Bangladesh, Egito, Indonésia, Irã, México, Nigéria,
Paquistão, Filipinas, Coreia do Sul, Turquia e Vietnã.
194
Considerações finais
Para o interesse nacional, importa atentar para uma dupla
possibilidade (1) de que a recomposição hegemônica se dê sem guerra
central, mas definida por guerras limitadas e locais, feitas por intermédio
de proxies, mais com o intuito de arruinar economias do que com o
propósito de violar fronteiras. (2) A possibilidade da guerra central se dar
sem a confrontação direta entre as três principais potências, por
intermédio de guerras locais, mais ou menos intensas, mas prolongadas
(e.g.: EUA vs Irã, China vs Vietnã).
Trata-se de situações que não justifiquem a confrontação direta, mas
que acarretem prolongada mobilização de recursos nacionais, a ponto de
comprometer a posição do país na hierarquia internacional. Em qualquer
casos, importa a capacidade produtiva seja para dissuadir a potência
extrarregional ou para travar a guerra limitada ou local sem colapsar
economicamente.
No passado o impasse colocado para o Brasil era justificar
investimentos em defesa em um país que se considerava isento de
ameaças externas. Este dilema não faz mais sentido. Temos de deter
capacidades à altura de nossas responsabilidades diante da ordem
internacional. O Brasil ainda está longe de constituir-se enquanto grande
potência, mas tampouco é apenas uma potência regional. No exterior
poucos duvidam de que o Brasil é um sério postulante a condição de
grande potência. A liderança do Brasil na América do Sul consolidou-se,
sua voz tem peso nos fóruns internacionais, sua influência política e
econômica projeta-se claramente além da região. O Brasil tem acertado
em decisões estratégicas cruciais. Recusou-se a responder à intensificação
da complexidade com a simplificação, ao protelar diplomaticamente o
seu ingresso na ALCA, enquanto discretamente construía o seu próprio
bloco regional. O Brasil acerta no método: responde aos novos e
crescentes desafios da governança, multiplicando os instrumentos de
interferência nas Relações Internacionais. Na esfera regional criou a
ALCSA (1993), a IIRSA (2000) a CASA (2004) e a UNASUL (2008). No
âmbito inter-regional ingressou no IBAS em 2003 e compôs o BRIC em
2009.
O Brasil diversificou seus parceiros comerciais e, sem prejuízo de
suas relações sul-norte, solidificou seus laços sul-sul, sobretudo na Ásia,
estreitando sua parceria com a China. Em grande medida a posição
privilegiada do Brasil no contexto da crise internacional, espelha o
195
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
crescimento chinês. É graças à elevada demanda por matérias-primas e
produtos agrícolas que os preços destas commodities se mantém elevados
no mercado internacional e o PIB de nosso país se mantém crescendo.
Contudo, os fundamentos deste crescimento são incertos, o Brasil precisa
qualificar suas exportações e inserir-se favoravelmente na transição
tecnológica.
Neste ponto, as demandas políticas e econômicas encontram-se com
as militares. Para preservar sua influência política local o Brasil precisa
ser capaz de honrar os compromissos assumidos no âmbito da UNASUL:
afiançar a proteção no processo de integração. O mesmo vale para o
reconhecimento de sua influência no âmbito inter-regional. Na esfera
econômica, a qualificação das exportações, a geração de emprego e
renda, dependem da aquisição de alta tecnologia. No centro da equação
está a aquisição de capacidades militares. Mais uma vez, o Brasil tem
demonstrado acertar no aspecto conceitual, forjou uma sólida base
legislativa que constitui arcabouço normativo de defesa no Brasil. As
diretrizes para o emprego das Forças Armadas (Decreto 3897/2001), a
Política Nacional de Defesa (Decreto 5484/2005), que pavimentou o
caminho para o acordo militar Brasil-França (Decreto 6011/2007), o mais
ambicioso plano de modernização das Forças Armadas brasileiras.
Contudo, os fundamentos doutrinários que interligam a preparação
militar, a sustentação do processo de integração e o desenvolvimento
econômico, valendo-se das políticas de defesa para a geração de emprego
e renda, vieram com a estruturação do Sistema Nacional de Mobilização
(Decreto 6592/2008), que foi seguido pela Estratégia Nacional de Defesa
(Decreto 6703/2008), onde explicitam-se as diretrizes citadas. Ambos
foram sucedidos pela Política de Mobilização Nacional (Decreto
7294/2010) e, por fim, em 2011 o Brasil publicou seu primeiro exemplar
do Livro Branco de Defesa (Decreto 7438/2011).
O Brasil possui a visão estratégica precisa, equacionamento de
meios adequados e a agenda compatível com as demandas sistêmicas,
impostas pela transição tecnológica. Possui planos de modernização das
três armas e de estruturação do comando do espaço, onde destaca-se a
aquisição de satélite geoestacionário. A Marinha planeja a duplicação da
frota, a aquisição e construção de vasos de superfície, a construção de
submarinos e já goza do domínio da propulsão nuclear. A Força Aérea
Brasileira possui capacitação doutrinária e tecnológica para o combate
196
Considerações finais
além do alcance visual (BVR) e há previsão de modernização da frota,
mediante o programa FX-2. A Força Terrestre opera intenso processo de
modernização, capacitação, informatização, intensificando sua
preocupação com o teatro sintético de guerra, a defesa antiaérea, a
aquisição e produção de blindados e veículos automotores de emprego
militar.
Contudo, à despeito de toda a base legislativa, do planejamento de
modernização das forças e do mérito das conquistas já obtidas, o
projetado ainda está por realizar-se. Em grande medida, trata-se de um
problema de gestão: inexistem especialistas civis versados em assuntos
militares em número suficiente junto ao Ministério da Defesa,
Planejamento, Fazenda, etc. Também fazem falta no do Congresso
Nacional, como assessores do Poder Legislativo, informando,
esclarecendo, disseminado informações da Defesa Nacional. Neste
sentido urge a criação de uma carreira civil que assuma e leve a cabo ao
menos os programas já aprovados — alguns há mais de uma década. Que
possa manifestar-se livremente e fazer ecoar junto a imprensa e a opinião
pública a agenda da Defesa Nacional.
Além disso, é preciso reter o aprendizado de que o aumento da
complexidade dos mecanismos de controle é a resposta possível frente ao
incremento dos desafios. O modelo de integração baseado
exclusivamente no Estado, no empregos de meios de pagamento ligados
aos bancos de fomento e alicerçado na infraestrutura, chegou ao seu
limite. O risco presente de crises, políticas ou sociais, eclodirem em
países sócios do Mercosul, demonstra a necessidade de estender a
integração para a esfera da governança corporativa. Urge o
estabelecimento de um modelo de negócios e serviços em defesa. Que se
articule à um programa de fusões e incorporações de empresas dos mais
diversos ramos. Sem uma burguesia sul-americana, que resulte desse
processo, a integração pode oscilar ao sabor do ritmo plebiscitário da
eleições — que podem trazer surpresas desagradáveis ao Mercosul e a
UNASUL. O processo de articulação da governança corporativa no
âmbito da América do Sul exige marco regulatório comum, fusões e
incorporações, mecanismos de coordenação macroeconômica e crédito. O
processo de integração fica sem defesas profundas diante de inputs
deletérios no âmbito dos subsistemas político e econômico. O
estabelecimento de políticas de governança corporativa pode permitir
197
Relações internacionais contemporâneas 2012/2
negociações sérias no âmbito da liberalização de serviços e compras de
governo no âmbito do Mercosul. Isso pode ampliar exponencialmente o
mercado de serviços bancários e de telecomunicações, criando uma
retroalimentação virtuosa entre bancos e processo produtivo, serviço e
indústria. Mas, esta é apenas uma das tarefas que os internacionalistas
têm para o século XXI.
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