xXI 85 - Morashá

Transcrição

xXI 85 - Morashá
ANO
xXI
edição
85
set
2014
ANO XXI - Setembro 2014 - nº 85
CAPA
TIK (estojo para guardar a Torá)
em madeira revestida de prata, com
RIMONIM (enfeites no feitio de romãs)
Paris, circa 1860
Carta ao leitor
O Povo Judeu sempre se une diante de grandes desafios.
Os últimos meses foram tempos difíceis, tanto para os
judeus que vivem em Israel como para os da Diáspora. Em
Israel, nosso povo luta contra grupos fundamentalistas que
declaram publicamente que visam a aniquilar o Estado
de Israel e exterminar todo o Povo Judeu. Fora de Israel,
os judeus enfrentam o ressurgimento do antissemitismo
ostensivo e violento. Não há mais como negar que
antissionismo é uma forma disfarçada de antissemitismo.
O atual conflito entre Israel e as organizações terroristas que
controlam Gaza se iniciou com o sequestro e assassinato de
três jovens judeus, seguido pelo lançamento de milhares de
mísseis contra as principais cidades israelenses. O Estado
Judeu viu-se obrigado a iniciar uma operação militar para
garantir a segurança de seus cidadãos.
Ao longo do conflito, Israel tem polarizado a atenção
mundial. Muitas pessoas apoiaram a operação militar
israelense, pois estão cientes de que Israel tem não apenas
o direito, mas a obrigação de defender seus cidadãos contra
chuvas de mísseis lançados de Gaza contra a população
civil israelense. Em Gaza, mesquitas, hospitais e escolas
são utilizados para esconder foguetes e lançá-los contra as
cidades israelenses.
Entretanto, são inúmeras as acusações divulgadas pela mídia
de que Israel não se importa com a morte de civis. Mas,
qualquer pessoa familiarizada com a história do povo
judeu sabe quão profundamente os judeus respeitam a
vida humana. A verdade é que, em toda a história militar,
nenhum exército envolvido em conflito armado tomou tanto
cuidado para proteger a vida de civis quanto Israel o faz,
diariamente, chegando mesmo a pôr em risco a vida de seus
próprios soldados.
Não há outra nação que lamente mais a perda de vidas
humanas, israelenses ou palestinas, do que Israel. Como bem
o disse o Nobel da Paz, Elie Wiesel, “Os pais palestinos,
assim como os israelenses, almejam um futuro promissor
para seus filhos. E ambos deveriam estar unidos pela paz”.
Nos últimos meses, presenciamos a eclosão do
antissemitismo, principalmente na Europa, mas o Povo
Judeu viu que pode contar com o apoio de bons amigos
ao redor do mundo, inclusive no Brasil. Muitos jornalistas
defendem o direito e a obrigação de Israel de se defender.
As cartas de leitores enviadas aos principais jornais do
país revelam que o povo brasileiro também compreende a
situação de Israel. Somos muitos gratos a todos aqueles que
estão ao nosso lado durante esta época difícil.
É importante ressaltar que, durante o conflito em Gaza,
muitos países árabes, que costumam condenar Israel de
antemão, mantiveram-se em silêncio. Vários deles, que
nem sequer reconhecem a existência do Estado de Israel,
culparam os grupos que controlam Gaza pelo conflito. Essa
mudança de postura política é resultado das atrocidades
que ocorrem, atualmente, no Oriente Médio. Os líderes
árabes moderados finalmente se conscientizaram de que o
terrorismo e o fundamentalismo representam uma ameaça
não apenas a Israel e ao Ocidente, mas também ao mundo
árabe. Os dirigentes da maioria dos países árabes sabem,
ainda que não o admitam publicamente, que Israel luta
contra organizações que ameaçam não apenas o Estado
Judeu e o Oriente Médio, mas o mundo todo.
Nós, judeus que vivemos fora de Israel – junto com
nossos amigos e aliados – defenderemos Israel contra
as mentiras criadas e disseminadas por antissemitas. Ao
mesmo tempo, o Estado de Israel continuará a defender os
judeus da Diáspora na luta contra o ódio, a intolerância e o
antissemitismo. O ex-Primeiro-Ministro da Espanha, José Maria Aznar,
declarou: “Se Israel tombar, todos nós tombaremos”. Israel
não tombará. E o restante do mundo também não. Cedo ou
tarde, a verdade prevalecerá sobre a mentira, a luz sobre a
escuridão, a paz sobre a violência e a vida sobre a morte.
Aproximam-se os dias sagrados de Rosh Hashaná, em que
D’us decide o futuro de todas as Suas criaturas. Que neste
novo ano judaico, D’us abençoe o Estado de Israel, os
judeus da Diáspora e o mundo todo com uma paz que seja
verdadeira e duradoura.
SHANÁ TOVÁ UMETUCÁ!
NOSSAS FESTAS
Rosh Hashaná:
Dia de Novos Começos
A Haftará lida no primeiro dia de Rosh Hashaná conta a
história de Hanna. Trata-se da história de uma mulher estéril,
que se tornou um dos modelos históricos do fervor da
oração. Em resposta à sua súplica, do fundo do coração,
D’us a fez mãe de Shmuel, o maior dos Juízes, um profeta
comparado a Moshé e Aaron.
s
hmuel se tornou o
líder da nação durante um
de seus períodos
mais difíceis e ele a trouxe
de volta à sua glória
anterior. De sua casa em Ramah,
ele viajou por toda a Terra de Israel,
ensinando, julgando e inspirando.
Além disso, foi o profeta que ungiu
os primeiros dois reis do Povo Judeu
– Shaul e David.
durante uma visita a Shiló,
Hanna foi ao Tabernáculo para
abrir seu coração a D’us. Eli,
o Cohen Gadol, estava sentado
no umbral da porta, de onde
a observava. “Ela estava
profundamente amargurada”, contanos o Livro de Samuel (Shmuel,
1:10), “e ela orou ao Eterno,
chorando muito”. Hanna chorava
porque, como ensinam nossos Sábios,
os portões das lágrimas nunca se
O Livro de Shmuel se inicia com a
fecham (Talmud, Berachot 32b).
história de Hanna, mulher de Elkaná. E ela faz um voto: “Eterno, Senhor
Ela era uma mulher que desejava um dos Exércitos! Se olhares para a
aflição da Tua serva, Te lembrares
filho mais do que tudo no mundo.
Mas, há dez anos ela tentava, em vão, de mim e não Te esqueceres da
Tua serva, e deres à Tua serva um
engravidar. O Tanach nos conta que
descendente, eu o darei ao Eterno
Elkaná e sua família costumavam
por todos os dias da sua vida...”
fazer peregrinações a Shiló, onde
havia um Tabernáculo, um Mishkan – (ibid 1:11). Hanna prometeu que se
o predecessor do Templo Sagrado de fosse abençoada com um filho, ela o
Jerusalém. O líder da nação, à época, dedicaria exclusivamente a D’us.
Os Sábios nos dizem que Hanna
que oficiava nesse Santuário, era
pediu por um filho que fosse notável
Eli, o Cohen Gadol, um dos maiores
juízes, sucessor de Sansão. Certa vez, por sua sabedoria e piedade.
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Eli, o Cohen Gadol, observava
Hanna enquanto ela orava. Somente
seus lábios se moviam, mas sua voz
não se fazia ouvir. Eli, então, pensa
que ela estivesse bêbada. Ele fica
perplexo com sua conduta – Hanna
era uma das mulheres mais justas
à época – e ele se volta aos Urim
v’Tumim buscando uma resposta.
Urim v’Tumim eram 12 pedras
preciosas afixadas no peitoral usado
pelo Cohen Gadol, nas quais estavam
gravados os nomes das tribos.
De acordo com o Zohar, os Urim
v’Tumim eram os Nomes de D’us
de 42 e de 72 letras, colocados nas
dobras do peitoral, que faziam com
que as letras gravadas nas pedras
se acendessem sequencialmente, de
modo a emitir uma resposta a uma
pergunta feita pelo Sumo Sacerdote.
Eli consultou os Urim v’Tumim
e quatro letras se acendem: Shin,
Resh, Kaf, Hei. Eli supôs que as
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letras soletrassem a palavra Shikorá
– bêbada. Mas, na realidade, as letras
deveriam ter-se alinhado para soletrar
a palavra KeSará – como Sara. As
pedras Urim v’Tumim indicaram a
Eli que a mulher que estava diante
do Tabernáculo era como a Matriarca
Sara, que, como Hanna, era estéril
e orou pedindo um filho. As quatro
letras significavam também Kesherá
– ela é digna. O Gaon de Vilna
explica que o erro de Eli em ler os
Urim V ’Tumim indicava que a Divina
Providência o havia destituído de
Inspiração Divina naquele momento.
Eli disse a Hanna, “Durante quanto
tempo você ficará bêbada? Remova
esse vinho de seu corpo!” Hanna
protesta dizendo que não estava
bêbada. “Não bebi vinho nem bebida
alguma forte, e derramei minha alma
perante o Eterno. Não julgue que Sua
serva seja uma mulher vulgar – pois
foi movida por muito sofrimento e
raiva que falei até agora”.
Eli, que erroneamente atribuíra a
Hanna uma conduta imprópria –
profanar o Tabernáculo com sua
embriaguez – além de acalmá-la, a
abençoa. “Vai-te em paz”, diz-lhe. “O
D’us de Israel te concederá o pedido
que lhe fizeste” (ibid 1:17).
O Livro de Samuel nos conta que
“Assim a mulher seguiu seu caminho,
e comeu, e não mais era triste o seu
semblante”. O Maharal de Praga
explica que o rosto de uma pessoa
é a janela de sua alma: Quando
Hanna estava tão amargurada com
sua esterilidade, sua infelicidade se
refletia em sua face; mas quando
recebeu a bênção do maior homem
de sua geração, o brilho em sua face
fazia transparecer seu júbilo.
Pouco depois a bênção é cumprida.
“Elkaná conheceu a Hanna, sua
mulher, e o Eterno se lembrou
dela. E aconteceu, com a passagem
do período de dias em que Hanna
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concebera, que ela deu à luz um
filho. Ela o chamou de Shmuel, e
assim disse: ‘Eu o pedi ao Eterno’ ”.
Conta o Midrash que Ele a atendeu
por causa da fé e confiança de
Hanna em D’us (Bereshit Rabah
56:2). Nossos Sábios nos ensinam
que as bênçãos são difíceis de se
cumprir se a pessoa não tem fé
n’Aquele que é a Fonte de todas as
bênçãos.
Segundo nossos Sábios, D’us
“lembrou-Se” de Hanna e ela
concebeu em Rosh Hashaná, que
é chamado de Yom HaZikaron, o
Dia da Recordação. E ensinam
que o mesmo ocorreu com Sara,
nossa primeira Matriarca – mãe de
Yitzhak, nosso segundo Patriarca
– que concebeu em Rosh Hashaná.
Esses nascimentos, que mudaram
o curso da História Judaica, são
frequentemente mencionados na
liturgia desse dia. Como dissemos
acima, a história de Hanna é lida
SETEMBRO 2014
NOSSAS FESTAS
como Haftará do primeiro dia de
Rosh Hashaná.
O legado de Hanna ao
Povo Judeu
Hanna trouxe ao mundo não apenas
Shmuel, mas também outros filhos.
Além de ter-nos dado um dos
maiores profetas e juízes, Hanna
se tornou o paradigma da prece
sincera. Algumas das leis da oração
do Shemonê Esrê (a Amidá) derivam
das rezas que ela murmurou no
Tabernáculo, em Shiló: que se deve
orar em silêncio e que as palavras
devem ser enunciadas, mas não em
voz alta ao ponto de serem ouvidas
pelos demais.
O Livro de Shmuel registra a Canção
de Reza de gratidão de Hanna, que
ela compôs após dar à luz a Shmuel.
Sua canção é considerada uma das
dez maiores canções proféticas da
História. Trata-se de uma série de
profecias acerca de futuros milagres
de salvação.
O tema central é a constatação de
que o triunfo e a derrota, riqueza
e pobreza, grandeza e degradação,
não são condições permanentes,
pois as boas ações e a oração podem
produzir mudanças na condição
humana. Esse é um dos temas
fundamentais de Rosh Hashaná.
A Canção de Hanna inclui uma
prece por seu filho Shmuel: “Eterno,
que os que lutam contra ele sejam
destroçados. Que os Céus caiam
sobre eles. Possa o Eterno julgar até
os confins da terra; possa Ele atribuir
poder a Seu rei e causar orgulho
àqueles que Ele ungiu” (ibid 2:10).
Shmuel ungiu Saul e David – os
primeiros reis de Israel – e Hanna
orou por seu sucesso. Mas, mais do
que uma prece por Shmuel e os reis
a quem ele diretamente elevou à
grandeza, a Canção de Hanna é uma
oração pela Nação Judaica: segundo a
Targum Yonatan, ela rezou por todos
os judeus ao longo da história, e pelo
Mashiach, que é chamado de “ungido
por Shmuel” porque ele descenderá
do Rei David, a quem Shmuel ungiu
(Yalkut Shimoni).
Assim, Hanna, mulher estéril que
durante muitos anos chorou e
pediu por um filho, tornou-se não
apenas a mãe de Shmuel – um de
nossos maiores profetas e aquele
que ungiu nosso maior rei, David,
que é um antepassado do Mashiach
– mas a mãe de todo o Povo Judeu,
para todas as gerações. Não é mera
coincidência o fato de que, como
nossa Matriarca Sara, estéril,
Hanna também concebeu em
Rosh Hashaná – a início do Ano
Judaico –, dia no qual os judeus
de todo o mundo proclamam nas
sinagogas a soberania de D’us e
se dedicam a Seu serviço, assim
como Hanna prometeu que seu
primogênito o faria.
Rosh Hashaná:
a oportunidade de um
novo começo
shmuel é dedicado por hanna, no templo. frank w. w. topham, final séc. 19.
mary evans picture gallery, londres
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Rosh Hashaná, literalmente, a
“cabeça do ano”, é o início de um
novo ano. É a oportunidade de cada
pessoa de começar sua vida de novo.
Certamente, a cada dia – ou mesmo,
a qualquer momento em nossa vida –
podemos optar por tomar diferentes
caminhos na vida – melhorar o que
é preciso – mas Rosh Hashaná é o
momento mais auspicioso do ano
para fazê-lo. Trata-se de um novo
começo. Um novo ano representa
novas possibilidades.
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Muitos de nós se acostumam com o
mundo e com a vida do jeito que está.
Muitos são pessimistas sobre o futuro
do mundo, especialmente à vista dos
recentes eventos. Muitos indivíduos
e mesmo nações se veem presa de
círculos viciosos, e às vezes parece não
haver saída.
Rosh Hashaná nos ensina que nada
na vida é predeterminado – e que
o futuro pode ser radicalmente
diferente do presente. A história de
Hanna nos faz lembrar que é possível
não apenas uma mulher estéril
conceber, mas dar à luz um profeta.
A história de Hanna trata de uma
completa reversão do futuro.
De fato, não foram apenas nossa
primeira Matriarca, Sara, e Hanna
que foram lembradas por D’us
em Rosh Hashaná. Yossef, filho de
Yaacov, também foi lembrado em
Rosh Hashaná. Depois de passar
12 anos em uma prisão egípcia,
depois de ser acusado de um crime
que não tinha cometido, Yossef foi
libertado em Rosh Hashaná. Naquele
dia, além de ganhar a liberdade, ele
foi elevado da prisão à autoridade
suprema. Como relatam as porções
finais do Livro de Gênesis, Yossef,
após interpretar corretamente os
sonhos do Faraó, foi nomeado
Vice Rei do Egito. Consideremos,
então: na manhã de Rosh Hashaná
daquele ano, ele acordara em uma
prisão egípcia; naquela noite ele
adormeceu como o líder de facto da
superpotência da época...
A Torá não visa a ser um livro de
História Judaica Antiga. É o modelo
para a vida de qualquer judeu: suas
histórias se aplicam a qualquer judeu.
A Torá nos conta a história de Sara,
Hanna e de Yossef, porque estas
se aplicam a todos nós – em Rosh
Hashaná, D’us se lembrou deles e
Ele também se lembra de todos nós,
Seus filhos. Por meio da oração, do
arrependimento – corrigindo nossos
erros e fazendo um empenho para
melhorar – da tzedaká e da prática
de boas ações – atos de santidade
e bondade – cada um de nós pode
mudar o curso de sua vida. Cada um
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de nós pode ser elevado da tristeza
à alegria, do fracasso ao sucesso,
da carência à riqueza – material
e espiritualmente. O conceito de
destino é estranho ao Judaísmo: em
qualquer momento de nossa vida,
mas especialmente em Rosh Hashaná,
podemos mudar nosso destino.
Ao recitarmos as preces neste
Rosh Hashaná, ao ouvirmos a Haftará
no primeiro dia da festividade,
relatando-nos a história de Hanna,
levemos a sério as lições por ela
transmitidas. Explicamos acima
– e isso merece ser repetido – que
Hanna concebeu porque tinha fé
na bênção de Eli de que o D’us de
Israel concederia seu pedido. Nós,
também, devemos ter fé – de que se
fizermos um esforço honesto, D’us
nos abençoará e concederá todos os
pedidos de nossos corações.
BIBLIOGRAFIA
Nevi’im Rishonim - The Prophets
- The Book of Shmuel. Edição Rabino
Nosson Scherman - The Artscroll Series.
Mesorah Publications, Ltda.
SETEMBRO 2014
NOSSAS FESTAS
Algumas leis relacionadas
com Yom Kipur
Neste ano, Yom Kipur se inicia no dia 3 DE OUTUBRO, sexta-feira,
às 17:46h, e termina na noite do dia 4 DE OUTUBRO, ÀS 18:40H.
.
C
ostuma-se fazer caparot
– abate de um galo,
para um homem, e de
uma galinha, para uma
mulher, no dia 9 de
Tishrei de madrugada, 3 de outubro,
por um shochet qualificado.
Também é possível cumprir este
costume com dinheiro, doando-o
para tzedacá.
É proibido jejuar no dia que precede
Yom Kipur, mesmo se este jejum por
Taanit Halom. É, ao contrário, uma
mitzvá fazer uma refeição adicional.
A refeição que antecede o jejum deve
ter pão e pratos de fácil digestão e
ser concluída 20 minutos antes do
pôr-do-sol. Bebidas alcoólicas são
proibidas.
As mulheres devem acender as
velas antes de ir à sinagoga, dizendo
a bênção “Lehadlik Ner Shel Shel
Shabat Veshel Yom HaKipurim”. Se
a mulher quiser locomover-se de
automóvel ou usar o elevador antes
do início de Yom Kipur, deverá,
antes de acender as velas, fazer
uma ressalva dizendo que não está
recebendo Yom Kipur com o ato de
acendimento das velas.
É, porém, necessário antecipar o
recebimento de Yom Kipur para antes
do pôr-do-sol.
É costume os pais abençoarem
os filhos, pedindo que estes
sejam selados no Livro da Vida
e que, em seus corações, permaneça
sempre o amor a D’us. Convém
também ir à sinagoga antes do pôrdo-sol, para poder participar do Kol
Nidrei, a “anulação dos votos”.
Restrições durante
Yom Kipur
Yom Kipur é o Shabat dos Shabatot
e, portanto, todo trabalho profano
deve cessar e todas as leis do Shabat
devem ser respeitadas. Assim como
no Shabat, é proibido carregar sobre
si qualquer objeto durante Yom Kipur.
Além de observar as leis do Shabat,
em Yom Kipur outras cinco restrições
são acrescidas:
“Não comer, não beber, não trabalhar,
não se lavar e nem massagear a
10
pele (perfumes, cremes etc.), não
calçar couro, não ter relações
conjugais”.
O jejum diz respeito tanto aos
homens quanto às mulheres,
mesmo grávidas ou amamentando.
Só em caso de doença ou onde
haja algum perigo à vida, o jejum
pode ser suspenso (consulte seu
rabino). As crianças de 9 a 10
anos podem jejuar algumas horas,
e, a partir dos 11 anos, conforme
avaliação dos pais, podem jejuar
o dia todo. Mas o jejum tornase obrigatório aos 12 anos, para
meninas, e aos 13, para meninos.
O uso de sapato, sandálias ou
tênis de couro é proibido tanto
para homens como para mulheres.
As crianças também devem ser
orientadas neste sentido.
Ao término de Yom Kipur,
a Havdalá deve ser feita sem
bessamim, e a Bênção da Luz deve
ser feita sobre uma vela que
permaneceu acesa desde o dia
anterior.
nossas festas
As Quatro Espécies de Sucot
e o que nos ensinam
Um dos principais mandamentos da festa de Sucot diz respeito
às Quatro Espécies: Lulav, Etrog, Hadáss e Aravá. Cumprimos
esse mandamento porque a Torá assim nos ordena. O fato
de entendermos a razão para o seu cumprimento – e por
que devemos reunir e segurar essas quatro espécies – tem
importância secundária. A importância primária é a percepção
de que fazê-lo é cumprir a Vontade de D’us.
n
o entanto, a Torá nos
estimula a descobrir
o significado de seus
mandamentos.
A raiz da palavra Torá
é Hora’á – ensinamento. Cada
passagem, lei e mandamento da Torá
oferece ensinamentos atemporais e
universais.
O mandamento das Quatro Espécies
de Sucot é um dos mais enigmáticos
no Judaísmo. No entanto, transmite
muitas lições, especialmente à luz
dos ensinamentos do Midrash sobre
o simbolismo de cada uma das
espécies.
Segundo o Midrash, o Lulav – a
folhagem fechada da palmeira, que
é a mais alta das quatro espécies –
simboliza o estudioso da Torá: o
judeu que passa a maior parte de seu
tempo estudando os livros sagrados.
Essas pessoas geralmente levam uma
vida isolada: passam a maior parte de
seu tempo na sinagoga, na ieshivá e
nas escolas – estudando e ensinando
Judaísmo. Como a maior parte de
seu tempo, energia e recursos são
dedicados a estudar e a ensinar
a Torá, eles muito dificilmente
deixarão sua Torre de Marfim para
realizar um grande número de boas
ações. Pouquíssimos dentre eles têm
os recursos financeiros para promover
grandes atos de benemerência. Muito
raramente o rabino de uma sinagoga
é quem a mantém financeiramente.
É muito raro que um grande erudito
em Torá tenha os meios de fundar
e financiar escolas e ieshivás, de
doar grandes somas a hospitais e
refeitórios públicos. Muitos desses
eruditos nem passam muito tempo
rezando: sua missão na vida é
absorver o máximo possível da Torá
– a Vontade e a Sabedoria Divina
– para depois transmitir o que
aprenderam por meio de palestras,
livros e aulas.
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Vale ressaltar que nem todos os
judeus personificados pelo Lulav são
iguais: um pode ser um grande Sábio
e Cabalista, enquanto outro pode ser
um professor. Mas, essencialmente,
todos eles estão engajados na mesma
atividade: por meio de seu estudo,
servem de canal para trazer à Terra a
Sabedoria Divina, ajudando, assim, a
difundi-la entre outros.
O Hadáss – ramo da árvore de
murta – é outro elemento das
Quatro Espécies. De certa forma,
é a contraparte do Lulav: um
possui o que falta ao outro. O
Hadáss representa o judeu que não
tem tanta inclinação intelectual
ou que simplesmente é muito
ocupado para passar horas a fio
estudando a Torá. Personifica os
judeus que são homens de ação:
líderes comunitários, jornalistas,
empresários, profissionais, filantropos
e ativistas. É raro encontrarmos
pessoas desse tipo que tenham tempo
SETEMBRO 2014
NOSSAS FESTAS
de passar muitas horas estudando
a Torá. Eles são muito ocupados
trabalhando ou realizando boas ações
para poderem passar dias e noite
estudando o Talmud ou mergulhando
nos segredos da Cabalá. O Hadáss
é o judeu que se ocupa ajudando os
demais. Ele pode ser um médico que
salva vidas, um cientista que pesquisa
a cura das doenças, o soldado que
ajuda a proteger os cidadãos de
Israel ou o empresário que fornece
produtos ou serviços que melhoram
nosso mundo. A maioria dos judeus
se enquadra nessa categoria. Não
importa se a pessoa faz um pequeno
donativo mensal para os necessitados
ou doa e subsidia sinagogas, escolas e
hospitais – se é membro do governo
de Israel ou líder de um clube judaico
local. O que importa é que a pessoa
doa seu tempo ou seus recursos em
benefício de outros seres humanos.
O Etrog – a cidra amarela, outra das
Quatro Espécies – representa o judeu
que é um erudito em Torá e um
homem de grandes feitos.
Tais pessoas são muito raras, mas
existem. O Rabi Yehudah HaNassi,
conhecido no Talmud como Rebi,
foi o maior erudito de sua geração.
Foi quem transcreveu a Mishná,
resumo da Torá Oral. Ele também
era o homem mais rico de Israel
e amigo íntimo do imperador
romano, à época, Marco Aurélio
Antonino. Rebi passava seus dias
estudando e ensinando a Torá
– e ao transcrever a Mishná,
garantiu que a Torá Oral nunca
se perdesse. Ao mesmo tempo,
Rebi usou sua fortuna e influência
para melhorar a vida do Povo Judeu,
cujos membros viviam na Terra de
Israel sob ocupação romana.
Rabi Yehudah HaNassi foi um
homem singular na História Judaica,
mas houve e há algumas pessoas
extraordinárias que foram abençoadas
com os poderes intelectuais e
espirituais de se tornarem eruditos
em Torá e com os recursos
financeiros para realizar grandes
atos de benemerência. A Torá
chama o Etrog de um belo fruto, e
pode-se compreender por que:
a pessoa que é tanto um estudioso
quanto um líder comunitário é uma
bela pessoa, completa.
A quarta espécie é o Aravá –
um ramo folhoso do salgueiro.
Representa o judeu que não é um
estudioso nem tampouco um líder
ou benfeitor – alguém que não tem
riqueza espiritual nem material.
Enquanto as três outras espécies
representam judeus que possuem e
doam algo de si – sabedoria, riqueza
ou influência – o Aravá
representa aquele que não dispõe
desses atributos e, portanto,
necessita recebê-los de terceiros.
Aparentemente, o Aravá é o oposto
do Etrog.
À primeira vista, ninguém ia querer
ser um Aravá e todos gostariam de
ser um Etrog. No entanto, na falta do
Aravá, o mandamento das Quatro
Espécies não pode ser cumprido.
Essa espécie não pode ser substituída
por nenhuma das outras. Podemos
possuir os Etroguim mais belos e
um lindo campo de Lulavim e de
Hadassim de onde escolher, mas se
faltar o Aravá, não podemos cumprir
o mandamento da Torá.
Deve-se notar, também, que a bênção
feita sobre as Quatro Espécies
menciona não o Etrog, mas o Lulav:
termina com as palavras “al netilat
Lulav”, e não “al netilat Etrog”.
Em vista do que dissemos acima,
seria de esperar que o Aravá fosse
desnecessário para o cumprimento
do mandamento e que a bênção fosse
feita sobre o Etrog, que representa o
judeu em sua totalidade.
12
Por que, então, é o Aravá uma
das Quatro Espécies e por que é
necessário para o cumprimento da
mitzvá? E, ainda, por que a bênção
menciona o Lulav e não o Etrog?
As respostas a essas perguntas nos
ensinam importantes lições sobre o
judaísmo e sobre como nos devemos
relacionar com outros judeus.
O estudo da Torá
e a prática de seus
mandamentos
O judaísmo é, basicamente,
dividido em duas ramificações: o
estudo da Torá e a prática de seus
mandamentos. Apesar de o estudo da
Torá ser, por si só, um mandamento,
ele se destaca dos demais porque
envolve especialmente a mente,
enquanto os demais envolvem o
corpo. Quando alguém estuda
os comentários da Torá, como os
de Rashi, ou o Talmud, ou estuda
uma obra do misticismo judaico, é
necessário fazer grande empenho
intelectual para entender bem o que
se está estudando. Mandamentos
tais como colocar os Tefilin, acender
as velas do Shabat ou dar dinheiro
a alguém necessitado não requerem
muito esforço mental.
O Judaísmo sempre deu imenso
valor ao estudo e à educação. Como
escreveu Maimônides, alguém que
ensina a Torá a crianças não pode
interromper o que faz mesmo
se for convocado para construir
o Terceiro Templo Sagrado de
Jerusalém. Não há nada mais
importante do que a educação das
crianças. Analogamente, o Talmud
compara aquele que estuda a
Torá com o Cohen Gadol, o Sumo
Sacerdote, quando entrava no Kodesh
HaKodashim em Yom Kipur.
Há inúmeras razões para o Judaísmo
dar tanta importância ao estudo da
REVISTA MORASHÁ i 85
sinagoga portuguesa de amsterdã durante hoshaná rabá, gravura de bernard picart, 1725
Torá. Uma dessas razões é que sem
o conhecimento não pode haver
ações adequadas. Isso é óbvio, não
apenas em questões de fé e moral,
mas mesmo em assuntos seculares:
para ser médico, é necessário estudar
Medicina; para ser engenheiro, é
necessário estudar Engenharia. A
prática da Medicina ou Engenharia
sem o conhecimento necessário
pode ter consequências catastróficas.
Da mesma forma, para cumprir
propriamente os mandamentos da
Torá – para saber o que D’us espera
de nós, tanto em relação a Ele
quanto em relação aos seres humanos
– precisamos estudá-los.
No entanto, há uma enorme
diferença entre o estudo da Torá e
o dos assuntos seculares. Quando se
estuda Contabilidade na faculdade, é
por um propósito prático.
O estudo da Torá, por outro lado,
não precisa necessariamente ser
prático. Estudamos certos assuntos
da Torá que não têm valor prático
algum. E o fazemos porque, como
ensinam nossos Sábios e místicos,
a Torá não é apenas uma obra de
autoria Divina ou um livro de leis
e ensinamentos morais: é a própria
Vontade e Sabedoria de D’us.
E como D’us é indivisível, Ele e
sua Vontade e Sabedoria são unos.
Portanto, sempre que assimilamos
algo da Torá, estamos, por assim
dizer, apreendendo algo do Próprio
D’us. Como o descreve o Ba’al
HaTanya: quando compreendemos
um tema da Torá, nossa mente se
torna interligada com D’us: a mente
humana abraça e é abraçada pela
Mente Divina. Essa fusão entre a
Mente Divina Infinita e a finita
mente humana ocorre apenas por
meio do estudo da Torá.
Ademais, a mente é a maior
faculdade do homem. Como bem o
sabemos, a mente é o sistema central
13
do organismo: não conseguimos
sequer mover um dedo ou dar um
suspiro sem nossa mente. Não
surpreende que os Cabalistas
ensinem que a mente é a sede da
alma humana. Mediante o estudo da
Torá, ligamos nossa faculdade mais
preciosa a D’us: fundimos nossa alma
com Sua Raiz e Essência.
Pode-se argumentar que a Filosofia
também é um tema essencialmente
intelectual e carente de espírito
prático, que trata de assuntos
profundos. Contudo, a diferença
entre o estudo de Filosofia e de
Torá é que o primeiro é a sabedoria
humana – se origina na mente
humana – ao passo que a Torá é a
Sabedoria Divina. Não podemos
comparar a sabedoria do homem
com a de D’us. Fazê-lo sequer é
blasfemar – é simplesmente tolice.
À luz do que explicamos acima,
podemos entender por que a
SETEMBRO 2014
NOSSAS FESTAS
sucot, 1894-95. obra de leopold pilchouski. jewish museum, nova york
bênção feita antes de cumprir o
mandamento das Quatro Espécies
menciona o Lulav. O estudo da Torá
é a base do Judaísmo e o meio pelo
qual o homem realiza a maior união
possível entre sua alma e D’us.
Um de nossos Sábios que
personificou o Lulav foi Rabi
Shimon Bar Yochai. Ele foi um
mestre tanto das dimensões
exotéricas (ou reveladas) quanto das
esotéricas (ou obscuras) da Torá.
Ele é um dos pilares da Lei Judaica
– praticamente todos os capítulos
do Talmud fazem menção ao seu
nome – e ele também foi o autor
do Zohar, o “Livro do Esplendor”,
obra fundamental da Cabalá.
Rabi Shimon cumpriu muitos
mandamentos da Torá, obviamente,
mas sua principal atividade na vida
era estudá-la e ensiná-la. Em virtude
de sua dedicação ímpar ao estudo da
Torá, em especial às suas dimensões
místicas, ele revolucionou o Judaísmo
e trouxe muita luz ao mundo – para
judeus e não judeus.
Como a Torá é a Luz Divina, quanto
mais a pessoa a estudar e ensinar,
mais estará ajudando a iluminar o
mundo. De fato, a Torá é a fonte
de energia do mundo. Os místicos
ensinam que se o estudo da Torá
fosse completamente suspenso
por um segundo sequer, o mundo
deixaria de existir. Se, em algum
momento, nenhum judeu estudasse
a Torá, os Céus e a Terra deixariam
de existir. Os Sábios da Torá – os
verdadeiros eruditos em Torá, não
os oportunistas e charlatões, que
a utilizam por motivos políticos e
financeiros – sustentam o mundo.
Isso significa, então, que D´us quer
que todos os Filhos de Israel sejam
o tipo de judeu personificado pelo
Lulav? Considerando a suprema
importância do estudo da Torá,
deveríamos, então, almejar ser como
Rabi Shimon Bar Yochai? Não,
e não apenas pela razão óbvia –
porque nem todos têm a inclinação
intelectual, a capacidade e o desejo
de passar os dias estudando e
14
transmitindo os ensinamentos da
Torá –, mas porque, como ensina o
Midrash: “D’us criou o mundo para
que Ele possa ter uma morada aqui
embaixo”. A simples explanação
dessa enigmática declaração é que
D’us deseja que o homem – todos os
seres humanos, não apenas o Povo
Judeu – aperfeiçoe o mundo. D’us
não criou o homem para que este
passasse seus dias buscando prazer
e entretenimento – “comer, beber e
farrear” – mas, Ele tampouco quer
que a maioria dos seres humanos
passe toda a sua vida orando e
estudando a Torá: Ele já tem
miríades e miríades de anjos no Céu
que o fazem. D’us criou o homem –
uma criatura que é uma mistura dos
Céus e da Terra – para se aperfeiçoar
e aperfeiçoar o mundo. E a maneira
de o fazer é realizando a Vontade de
D’us – cumprindo os mandamentos
da Torá.
Há dois tipos gerais de
mandamentos na Torá – entre o
homem e seu Criador, e entre o
homem e os outros seres humanos.
Mandamentos como colocar Tefilin,
comer Matzá em Pessach e segurar
as Quatro Espécies em Sucot fazem
parte da primeira categoria. Os
outros, como honrar pai e mãe,
professores e idosos; ajudar os
necessitados – financeira, psicológica
e emocionalmente; e realizar atos de
bondade e justiça são exemplos do
outro tipo de mandamentos.
O Hadáss simboliza os judeus que
se ocupam cumprindo o propósito
Divino ao criar o mundo. Cada
vez que uma pessoa cumpre um
mandamento, ela traz uma nova luz
ao mundo. Cada vez que um judeu
cumpre corretamente o mandamento
dos Tefilin, ele atrai a Shechiná – a
Presença Divina – tornando-se,
portanto, um canal para bênçãos
Divinas e abundância para nosso
REVISTA MORASHÁ i 85
mundo físico. Quando um judeu
doa de si – de sua riqueza, de seu
tempo, de seus talentos – para ajudar
os demais, ele está transformando o
mundo em um lugar melhor e mais
Divino – uma morada adequada para
seu Criador.
De certa forma, o Hadáss é superior
ao Lulav. Este aperfeiçoa aqueles a
quem consegue ensinar; o Hadáss
aperfeiçoa o mundo como um
todo. O primeiro tipo de judeu
melhora o mundo espiritualmente,
ao passo que o segundo, o melhora
fisicamente. Precisamos dos dois, é
claro, e é por isso que, como dissemos
acima, o Judaísmo é dividido em
duas vertentes principais: o estudo
da Torá e o cumprimento de seus
mandamentos. Uma complementa a
outra. O mundo precisa de grandes
mentes, mas também necessita
de grandes corações. Necessita
de Sábios, eruditos, místicos e
professores, mas também necessita
de filantropos e líderes, médicos e
cientistas. O homem necessita de
alimento espiritual, que é o estudo
da Torá, mas necessita, também, do
alimento físico, que se torna mais
abundante à medida que mais e mais
pessoas se incumbem de melhorar o
mundo.
natureza morta, com objetos do cultojudaico. Issachar ryback.
óleo e colagem sobre tela. museu de israel, jerusalém.
À vista do que explicamos acima,
deveria ser claro por que o Lulav e
o Hadáss se auto-superam em vários
aspectos. Mas não seria o Etrog
superior a ambos? Se este simboliza
as virtudes tanto do Lulav quanto
do Hadáss, não deveria naturalmente
ser a opção preferencial? Em outras
palavras, na presença do Etrog,
para que se necessita do Lulav e do
Hadáss?
história – um ser humano não pode
ser um extraordinário erudito em
Torá e um homem de grandes atos
benemerentes. Exceto homens como
Moshé Rabenu e Rabi Yehudah
HaNassi, um judeu não pode ser o
maior dos Sábios e um grande líder
de sua geração. A maioria das pessoas
tem que fazer escolhas na vida: não se
pode ser o Rabino Chefe e ao mesmo
tempo Primeiro Ministro de Israel.
A resposta é que exceto para
homens como o Rabi Yehudah
HaNassi – e tais homens foram
extremamente raros em toda a
Somos limitados pelo tempo e
espaço e energia: se a pessoa opta por
dedicar todo o seu tempo e energia
ao estudo e ensino da Torá, ela não
15
A maior lição do
mandamento das
Quatro Espécies: que
a força do Povo
Judeu – física e
espiritual – depende
de nossa união. Cada
um de nós, judeus,
é absolutamente
necessário para
nosso povo
SETEMBRO 2014
NOSSAS FESTAS
terá condições de se dedicar a outras
coisas com o mesmo afinco. Poderá
herdar uma fortuna, ganhar a loteria
ou mesmo investir em uma empresa
e se tornar multimilionária – e, com
sua riqueza, contribuir para tornar o
mundo um lugar melhor. Mas se ela
passa todo o seu tempo na sinagoga
ou na ieshivá, não terá condições de
sair pelo mundo para melhorá-lo.
Por outro lado, aquele que segue
uma carreira profissional pode ser
abençoado em seu estudo da Torá –
pode adquirir muito conhecimento
em relativamente pouco tempo – mas
é pouquíssimo provável que se torne
um grande especialista na Halachá
ou um místico. O Etrog é a mais
bela das Quatro Espécies porque
nada lhe falta. Simboliza o equilíbrio
da vida: sabedoria e boas ações;
conhecimento que leva à ação. Mas o
Etrog não é tão especializado quanto
o Lulav e o Hadáss, e, portanto,
não é necessariamente superior às
demais espécies. O tipo de judeu
simbolizado pelo Etrog pode
conhecer menos da Torá que o judeu
personificado pelo Lulav e pode
realizar um menor número de boas
ações do que a pessoa personificada
pelo Hadáss.
reuníssemos nove dentre os maiores
Sábios de todos os tempos, não
bastaria para formar um Minyan.
Na ausência de um Minyan, a Torá
não pode ser lida em público e as
orações do Kadish, Barechu e Kedushá
não podem ser recitadas. Por outro
lado, se 10 dos judeus mais simples
e incultos jamais vistos se reunissem,
estes sim, poderiam constituir um
Minyan. O que 10 judeus simples – o
que 10 Aravot – conseguem fazer
– 9 Etroguim – 9 Moshé Rabenus
– não conseguem. Sem o Aravá, o
mandamento das Quatro Espécies
não pode ser cumprido.
De modo similar, se qualquer
segmento do Povo Judeu fosse
excluído, nós nos tornaríamos um
organismo deficiente.
Há outra lição fundamental que
nos ensina o Aravá: o bitul – autoanulação. O Talmud ensina que
nada desagrada mais a D’us do que
a arrogância. Nossos Sábios dizem
que o Todo Poderoso pode mesmo
suportar um pecador, mas não uma
pessoa arrogante. A arrogância é a
antítese da Divindade: uma pessoa
que é cheia de si não deixa espaço
para os demais – nem mesmo para
D’us. E como D’us preenche toda
a Terra, a pessoa arrogante ocupa
espaços que não lhe pertencem.
O Judaísmo enfatiza que o conceito
de bitul é uma marca de santidade, ao
passo que a arrogância é um símbolo
de idolatria e profanação. Como
atesta a Torá, Moshé, o maior dos
profetas – o homem mais realizado
de todos os tempos, o único que
falou com D’us face a face – também
foi o mais humilde que jamais
viveu. Chama atenção o fato de que
na Torá, Moshé não é chamado
de o maior dos eruditos nem de o
melhor dos líderes, mas do homem
mais humilde que já existiu. Ele, o
maior de todos os homens – o Etrog
supremo – considerava-se um Aravá.
Um judeu que é um Aravá não está
mais distante de D’us do que quem é
um Etrog, Lulav ou Hadáss.
Na verdade, sua humildade abre
espaço para que a Luz Divina
brilhe dentro dele. Como ele não é
orgulhoso de seus conhecimentos
nem de seus feitos, ele não é
arrogante, o que seria a antítese da
santidade.
E o Aravá? Aparentemente, é
inferior às outras três espécies.
Podemos até perguntar-nos por
que é uma das Quatro Espécies. No
entanto, não apenas é necessário para
o cumprimento desse mandamento,
mas, de certa maneira, é superior às
demais três espécies, pois nos ensina
que um judeu não necessita estudar
a Torá nem mesmo praticar os
mandamentos para ser um judeu.
O Talmud ensina que Rabi Yehudah
HaNassi, Rebi, que, como dissemos
acima, exemplificou o Etrog, era a
personificação da humildade. Para
se tornar um verdadeiro Etrog, como
ele, a pessoa primeiro tem que se
considerar um Aravá.
As Quatro Espécies
e a Unidade Judaica
O Aravá transmite um conceito
fundamental no Judaísmo: que o
judeu não é definido pelo que ele
sabe ou faz, mas pelo que é. Esse
conceito tem ramificações práticas
sobre a Lei Judaica. Por exemplo, se
O mandamento das Quatro Espécies
é uma lição de unidade judaica.
O Povo Judeu não pode estar
16
REVISTA MORASHÁ i 85
completo na ausência de qualquer
judeu – mesmo se for um daqueles
que são vistos pelos outros como
Aravot. Precisamos de irmãos nossos
que sejam Lulavim, Hadassim,
Etroguim e Aravot. Todo judeu tem
sua missão na Terra – tanto
em relação a D’us quanto em
relação aos demais homens e ao
mundo, em geral. Não é coincidência
que o mandamento das Quatro
Espécies se aplique apenas durante
os sete dias da festa de Sucot,
conhecida como a “época de nosso
júbilo”. Isso porque a unidade
judaica leva à paz e à força, que
por sua vez leva ao júbilo genuíno,
enquanto que a divisão e o
desentendimento entre judeus
levam a conflitos, fraqueza e derrota.
Há uma passagem no Talmud que
discute de que forma o mandamento
das Quatro Espécies é uma expressão
da necessidade da unidade judaica.
O Talmud ensina (Menachot, 27a),
acerca das Quatro Espécies: duas
delas (Etrog e Lulav) dão frutos e
duas delas (Hadáss e Aravá) não
dão frutos. As que dão frutos
necessitam das que não dão e as que
não dão frutos necessitam daquelas
que os dão… E, assim também,
quando o Povo Judeu suplica a
D’us, somente é atendido se estiver
unido em um único grupo, como
está escrito: “É Ele quem constrói
suas câmaras superiores nos Céus e
fundou Seu arco na Terra” (Amos
9:6). Rashi, o comentarista clássico
da Torá, explica esse verso bíblico:
“Somente quando Seu grupo (o
Povo Judeu) está unido, eles são
encontrados sobre a Terra”: ou seja,
apenas quando os judeus estão
unidos, há base para que seus pedidos
sejam aceitos nos Céus.
Rashi vai mais longe: Em tempo de
necessidade, é declarado um jejum
comunitário e a eficácia do jejum
depende da participação unida de
toda a comunidade judaica – tanto
os justos quanto os não justos –
assim como o mandamento das
Quatro Espécies requer o produto
17
das árvores frutíferas quanto das
infrutíferas.
Essa é talvez a maior lição do
mandamento das Quatro Espécies:
que a força do Povo Judeu – física
e espiritual – depende de nossa
união. Cada um de nós, judeus,
é absolutamente necessário para
nosso povo. Quer nos consideremos
como um Lulav, um Hadáss,
um Etrog ou um Aravá, somos
indispensáveis para a Nação Judaica.
Cabe, portanto, a cada judeu
fortalecer seus vínculos de amor
com outros judeus, em Israel e na
Diáspora, para que as súplicas de
nosso povo por paz, segurança
e sucesso possam ser aceitas nos
Céus.
BIBLIOGRAFIA
Rabi Menachem Mendel Schneerson Likutei Sichot
Rabi Shneur Zalman m’Liadi - Likutei
Amarim (Tanya)
Talmud Bavli (Menachot)
SETEMBRO 2014
HISTÓRIA
OPERAÇÃO SECRETA
POR zevi ghivelder
Num domingo de intenso verão, dia 1º de julho de 1945,
o jovem americano Rudolf G. Sonnenborn, 47 anos,
providenciou a colocação de vinte cadeiras na sala de
estar de sua espetacular cobertura, na Rua 57 Leste de
Nova York, e que fossem preparados sanduíches e sucos
para as visitas que receberia naquela manhã.
d
judeus: organizações sionistas,
líderes religiosos, grupos de jovens,
líderes comunitários e filantropos
conhecidos por suas fortunas e
passíveis de futuras generosidades.
O primeiro a chegar foi David Ben
Gurion, então com 59 anos de idade,
colarinho branco aberto sobre as abas
do paletó, a cabeça já coberta por
revoltos cabelos brancos. Somente o
anfitrião sabia sua origem, ninguém
mais. Ben Gurion se encontrava
há cerca de um mês nos Estados
Unidos, onde se dedicava dia e
noite a reuniões com incontáveis
A comunidade judaica americana já
tomara conhecimento do Holocausto
e se mostrava disposta a estender
toda ajuda possível aos sobreviventes
refugiados, inclusive fazendo
pressão junto à Casa Branca para
a concessão de vistos. Sonnenborn
fez uma breve apresentação daquele
homem que lhes falaria, vindo
da remota Palestina. As pessoas
presentes estavam a par do que havia
acontecido naquela parte do mundo,
tinham conhecimento da Declaração
Balfour (documento britânico de
1917 que admitia a existência de
um lar nacional na Palestina para
os judeus), sabiam que milhares
de judeus ali haviam estabelecido
colônias agrícolas coletivas, os
kibutzim, mas suas prioridades
escendente de uma
abastada família judaica
de origem alemã,
radicada em Baltimore,
ele atuava como
diretor-executivo de uma empresa
multimilionária do ramo do petróleo
e servira como aviador da marinha
americana durante a 1ª Guerra
Mundial. Os convidados para o dito
encontro haviam sido convocados
através de telegramas enviados para
diversas cidades dos Estados Unidos
e do Canadá. Seus destinatários eram
conhecidos milionários judeus.
18
estavam focadas nas questões da
comunidade judaica americana ainda
submetida a surtos de antissemitismo
e, só em segundo lugar, no problema
dos refugiados. Ben Gurion começou
fazendo referência justamente aos
seis milhões de judeus assassinados
pelo nazismo. Os principais centros
judaicos do leste europeu, disse
ele, haviam sido dizimados e os
refugiados não tinham para onde ir,
não havia países dispostos a abrigálos e as portas da Palestina estavam
trancadas por força do White Paper
(documento que banira a imigração
para a Palestina) emitido pelos
mandatários britânicos. Portanto,
acentuou Ben Gurion, só um lugar
no planeta poderia absorver aqueles
despojados: a então Palestina, a Terra
Santa, a Terra de Sion, Eretz Israel.
Prosseguiu: “Vou lhes ser sincero. Lá
somos 600 mil judeus contra mais de
um milhão de árabes. Só poderemos
ter um Estado judaico se viermos a
ser a maioria.
REVISTA MORASHÁ i 85
Navio da Haganá, com sobreviventes do Holocausto a bordo, no porto de Haifa. 1947
Não vou entrar no mérito do
sionismo como doutrina ou como
movimento nacional. Preciso
da ajuda de vocês para termos
o nosso país e para acolhermos
nossos irmãos. Quando os ingleses
terminarem seu mandato, haverá
um vácuo na Palestina, um vácuo
que nós precisaremos preencher.
Sei que seremos atacados pelos
árabes e teremos que lutar. Para isso
contaremos com a Haganá, o exército
clandestino que estamos formando.
Tenho muitas dúvidas sobre tudo,
mas também tenho uma certeza: sem
a participação de vocês, nada será
alcançado”.
certamente havia sensibilizado
suas mentes e corações, acrescido
de um rigoroso compromisso de
confidencialidade. Anos mais tarde,
Sonnenborn anotou em seu diário:
“Naquele dia memorável nós fomos
convocados para nos tornarmos o
braço americano de uma organização
Alguns dos presentes fizeram
perguntas a Ben Gurion, que as
respondeu com absoluta clareza,
mas a reunião terminou de forma
quase sombria. Ninguém foi
instado a declarar qual seria a sua
contribuição em dinheiro, mas o
relato do emissário da Palestina
19
clandestina chamada Haganá.
Não sabíamos quando nem como
seríamos chamados, mas sabíamos
que tínhamos que estar a postos”.
Um jovem judeu chamado Philip
Alpert obtivera sua graduação em
Berkeley e ganhava alguns trocados
trabalhando no departamento
de engenharia mecânica daquela
universidade. Em busca de uma
situação melhor, foi para Nova York
onde passou a morar na casa de um
tio. Vasculhava os classificados dos
jornais e encontrava oportunidades
de emprego em Connecticut e Nova
Jersey, mas preferia permanecer em
Manhattan. Um dia, encontrou-se
por acaso com um amigo que,
como ele, havia pertencido anos
antes a um grupo de jovens sionistas.
Disse o amigo: “Phil, há um trabalho
que pode te interessar. É no ramo
da engenharia e tem alguma coisa a
ver com a Palestina. É só o que eu
sei para te informar”. Marcaram um
SETEMBRO 2014
HISTÓRIA
segunda-feira”. Slavin foi categórico:
“Nada disso. Você começa amanhã”.
Slavin alugou um apartamento com
cinco quartos no número 512 da rua
112 Oeste, perto da Universidade de
Colúmbia.
encontro para o dia seguinte num
apartamento perto da Grand Central
Station. Quando bateram numa
porta do 12o andar, esta foi aberta
por um sujeito de aparência eslávica,
com cara amarrada, quarenta e
poucos anos. Era Chaim Slavin,
nascido na Rússia, que chegara à
então Palestina em 1924. Ali se
formou em engenharia elétrica e
obteve emprego como responsável
pela estação geradora de energia de
Tel Aviv.
Foi atraído pela Haganá e
encarregado por Ben Gurion para
implantar uma oficina de produção
de armas que serviriam para
abastecer a Haganá, trabalhando
sem levantar suspeitas dos ingleses.
Habilidoso, transformou sucatas
e peças metálicas numa linha de
produção com potencial industrial.
Logo após o término da 2ª Guerra
Mundial, foi mandado para os
Estados Unidos com a missão de
adquirir maquinário destinado a fins
bélicos: armamentos e munições
restantes do conflito na Europa e
no Pacífico, além de se dedicar à
fabricação de armas por iniciativa
própria. Slavin não falava uma só
palavra de inglês e, com a ajuda do
amigo de Alpert, revelou que antes
Rudolf G. Sonnenborn
de mais nada precisava comprar
tubos de ferro e aço com os quais
pretendia manufaturar morteiros.
Ao término da explanação, o
jovem de Berkeley perguntou:
“Isto é proibido pela lei americana?”
Slavin foi fiel à verdade. Respondeu
que a legislação dos Estados
Unidos, no tocante ao excedente
de armamentos, era complexa,
contraditória e imprevisível em
função dos rumos da política externa
do país. Assim, a atividade seria ao
mesmo tempo legal e ilegal. Alpert
hesitou alguns minutos e disse:
“Tudo bem. Posso começar na
A primeira tarefa de ambos consistia
em elaborar em papel vegetal os
projetos dos quais se valeriam após a
aquisição dos materiais necessários.
Usando o codinome Auerbach, Slavin
mandava telegramas semanais para
a Agência Judaica informando sobre
o desenvolvimento dos trabalhos.
Alpert contava com fornecedores no
Bronx que lhe vendiam cartuchos
com munições. Mas, decorrido
algum tempo, seu trabalho ficou
mais fácil. O governo americano
criou um departamento chamado
Administração de Bens de Guerra,
encarregado de vender em leilão,
somente para empresas legalmente
estabelecidas, algumas de suas
fábricas de materiais bélicos e outros
suprimentos militares.
Alpert e Slavin fizeram uma lista de
todas as empresas que participariam
dos leilões e quais delas poderiam
estar interessadas em revender os
itens que tivessem arrematado e
que lhes pudessem ser úteis. Nessa
tarefa, Alpert e Slavin percorreram
os Estados Unidos de costa a costa,
de alto a baixo, fazendo compras
a preços muito mais acessíveis do
que os de mercado. De posse de
materiais portáteis e dos projetos
bem desenhados e finalizados, eles
cruzaram a fronteira para o Canadá,
de onde conseguiram despachar
tudo para a Palestina antes do prazo
previsto.
O casal Ruby e Fannie Barnett
havia comprado em 1944, num
leilão federal de falência, um hotel
situado no número 14 da Rua 60
Leste. Deram um dinheiro vivo
Membros do primeiro curso de pilotos da Haganá. 1938
20
REVISTA MORASHÁ i 85
como entrada e assumiram uma
hipoteca no valor de 800 mil dólares,
importância salgada para aquela
época. Ele já tinha trabalhado
como advogado e contador e ela era
uma loura bonita já engajada em
atividades sionistas.
Durante a guerra, quando Chaim
Weizmann foi a Nova York, Fannie
trabalhou como sua secretária. Assim
que o prédio foi reformado, o Hotel
14 passou a abrigar hóspedes ilustres
como residentes permanentes. No
subsolo do hotel ficava a boate
Copacabana, a mais concorrida
de Nova York, frequentada pela
alta sociedade de Nova York e
celebridades como o famoso
jornalista Walter Winchell. Parte
dos espetáculos ali apresentados
contava com dois astros: Groucho
Marx e Carmen Miranda. Ao piano,
quem comandava o show era o
comediante Jimmy Durante. Certa
ocasião, o hotel recebeu um hóspede
chamado Reuven Zaslani, que, por
sua discrição e mutismo chamou
a atenção de Ruby. Ele perguntou
à mulher se ela sabia de quem se
tratava. Fannie respondeu: “Sei que
veio da Palestina e parece que foi
espião infiltrado nos países árabes”.
Num domingo à tarde, Ruby viu
o misterioso hóspede se encontrar
na porta do hotel com David Ben
Gurion, que estava justamente
vindo da reunião no apartamento de
Sonnenborn. Perguntou à mulher se
aquela ligação com palestinos não
lhes traria problemas e ela informou
que, em breve, acolheriam um dos
mais importantes líderes da Agência
Judaica, sediada em Jerusalém.
Tratava-se de Jacob Dostrovsky,
cuja família havia imigrado para a
então Palestina depois do pogrom
(massacre) perpetrado pelos russos
em Odessa, em 1905. Depois de
servir na Brigada Judaica durante a
Combatentes da Haganá. Dezembro, 1947
guerra, ele havia estudado engenharia
na Bélgica e regressado a Tel Aviv,
em 1926, quando se filiou à Haganá
e passou a chefiar as atividades da
organização na cidade de Haifa. Em
1939 foi nomeado chefe do estado
maior da Haganá, posto que manteve
durante sete anos, até ser enviado
para os Estados Unidos com a
missão de adquirir armamentos.
No quarto que ocupou no Hotel
14, Dostrovsky se manteve fiel
à disciplina militar a que estava
acostumado. Colou na parede um
grande mapa dos Estados Unidos,
pontilhado por pinos de cores
diferentes: uma cor para reuniões
e encontros reservados, outra para
personalidades, outra para planos e
outra para resultados. Oficialmente,
dedicava-se à arrecadação de fundos
e mantinha um escritório na sede
da Agência Judaica em Nova York.
Fannie atuava como sua secretária.
Ele passava quase todo o tempo
ditando cartas, que, de forma gentil,
porém insistente, pediam às pessoas
que honrassem as contribuições
prometidas. As respostas eram
desalentadoras e isto apenas
contribuía para que ele dobrasse a
quantidade de cartas. Ao mesmo
tempo, criou uma série de empresas
fantasmas, todas destinadas ao
transporte de refugiados, desafiando
o bloqueio imposto pelos britânicos
que, depois da guerra, só haviam
permitido a entrada de 100 mil
judeus na Palestina.
Os nomes das companhias eram,
entre outros, curiosos: Caribbean
Atlantic Steamship e Pine Tree
Industries. Dostrovsky e Slavin se
reuniam regularmente no Hotel 14.
Passavam em revista a situação dos
armamentos e tomavam providências
no sentido de adquirir dezenas de
diferentes materiais necessários para
a Haganá e para os pioneiros da
21
SETEMBRO 2014
HISTÓRIA
reposição fosse feita. Como se não
bastasse, os ingleses desfecharam
o chamado Sábado Negro, no qual
prenderam todos os líderes da
Agência Judaica.
Combatentes da Haganá treinam no vale de Yizreel. Março,1948
Terra Santa. Um de seus principais
achados na América foi um jovem
engenheiro eletrônico chamado
Dan Fiderblum, 21 anos de idade,
morador de Yonkers, perto de Nova
York. Como era muito moço para
servir durante a guerra, fizera um
curso ministrado na Universidade
de Nova York pelo Corpo de
Sinaleiros do exército americano.
A pedido de Dostrovsky, o rapaz
convocou um grupo de jovens judeus
talentosos, alguns veteranos do
Corpo de Sinaleiros, familiarizados
com as mais modernas inovações
eletrônicas. Sua missão era fabricar
o maior número possível de rádios
portáteis que serviriam para a
comunicação entre os kibutzim e os
centros da Agência Judaica na então
Palestina, operando numa frequência
que não pudesse ser detectada pelos
ingleses.
Tudo funcionou a contento e foi
enviado para Jerusalém. Finda essa
tarefa, dias depois Ruby Barnett
e Jacob Dostrovsky dirigiram-se
ao Hotel McAlpin, no centro de
Manhattan. Junto à porta de um
dos salões, um pequeno dístico
informava: almoço em homenagem a
Rudolf. G. Sonnenborn.
Desde a reunião em seu apartamento,
Sonnenborn enfatizava com seus
amigos e amigos dos amigos a
grave situação em curso na então
Palestina. Os mandatários britânicos
haviam descoberto e confiscado
em esconderijos da Haganá mais
de 600 rifles, pistolas, morteiros e
metralhadoras. Era urgente que uma
coronel david “mickey” marcus
22
Ben Gurion escapou porque se
encontrava em Paris. O grupo
reunido em torno da mesa intitulouse Instituto Sonnenborn. Acertaram
que eles se reuniriam ao meio-dia de
todas as quintas-feiras, no mesmo
hotel. Sonnenborn acentuou de
forma dramática que, doravante,
tudo deveria ser guardado no mais
absoluto segredo porque o FBI
começava a se aproximar de seus
passos. A prioridade seria a aquisição
de navios de quaisquer calados para
transportar armas e refugiados a par
de uma miríade de produtos que
sempre seriam úteis para a Haganá.
Na reunião do dia 16 de outubro
de 1946, ficou combinado que, a
cada quinta-feira, a soma arrecadada
deveria atingir a soma de 100 mil
dólares, de modo a poderem contar
com 1 milhão de dólares no fim do
ano. Sonnenborn insistia em dizer
que eles não eram uma organização
formal, não havia comitês, nem
comissões, nem pessoas privilegiadas
e muito menos papéis timbrados.
Entretanto, o Instituto havia se
transformado numa verdadeira e
operosa instituição. O último almoço
do qual Dostrovsky participou, foi na
primavera de 1947. Tinha recebido
ordens para regressar a Jerusalém e
reassumir seu posto na Haganá.
O Instituto Sonnenborn buscava
ajudas, sem cessar, em todos os
cantos do país. Assim entraram
em contato com o coronel David
“Mickey” Marcus, graduado de
West Point, que servira no quartelgeneral de Eisenhower em Londres,
durante a guerra. Ele se voluntariou
para atuar como conselheiro da
Haganá e chegou à então Palestina
REVISTA MORASHÁ i 85
em março de 1948. Jerusalém estava
bloqueada pelos árabes e o grande
feito de Marcus foi comandar a
abertura de uma estrada alternativa
que recebeu o nome de Burma
Road, referência a uma complicada
estrada construída pelos ingleses na
Birmânia. Ben Gurion destacou-o
para um dos comandos da Haganá.
Certa noite, em junho, nas cercanias
da Jerusalém já desbloqueada,
Marcus foi abordado à distância por
um sentinela que a ele se dirigiu
em hebraico. Como não soubesse
responder, o rapaz tomou-o por
inimigo e deu-lhe um tiro mortal.
O corpo de David Marcus foi
transportado para ser sepultado
em West Point. Em sua guarda
de honra se encontrava um jovem
representante da Haganá chamado
Moshe Dayan.
No verão de 1947, o Instituto
entrou em contato com Nahum
Bernstein, um dos mais respeitados
advogados de Manhattan.
Durante a guerra ele havia atuado
na OSS, o serviço de inteligência
americano que antecedeu a CIA.
Ele compareceu a um dos almoços
das quintas-feiras e fez amizade
instantânea com Sonnenborn,
que lhe disse: “Precisamos de uma
pessoa como você para uma tarefa
que ninguém é capaz de executar
nos Estados Unidos”. Essa tarefa
consistia em criar uma espécie de
escola que ensinasse sistemas de
códigos e a difícil habilidade para
elaborar e decifrar mensagens
criptografadas.
Bernstein encontrou obstáculos
para encontrar judeus especialistas
naquelas matérias. Acabou entrando
em contato com um antigo colega
da OSS, Geoffrey Mort-Smith,
cristão evangélico que se dizia
descendente de índios. Era um
gênio na criptografia e também
na matemática, jogos de bridge e
de xadrez, além de um profundo
conhecedor da obra de Bach. Ele
concordou de imediato em ser o
professor dos professores na escola
de Bernstein, que já contava com
60 alunos. Estes foram incumbidos
de uma missão especial: elaborar
um código à prova de ser decifrado
que servisse para a comunicação
entre o Instituto e a Haganá, na
então Palestina. Decorridas algumas
semanas, o novo código começou a
funcionar com perfeição e totalmente
blindado.
No dia 25 de outubro de 1947,
faltando pouco mais de um mês
para a votação sobre a partilha
da Palestina nas Nações Unidas,
realizou-se no Hotel Waldorf Astoria
mais um almoço em homenagem
a Rudolf G. Sonnenborn. Estavam
presentes 55 convidados vindos de
diversos estados americanos.
O anfitrião tomou a palavra e fez
um relato referente às difíceis
atividades dos representantes da
Agência Judaica na sede da ONU,
então localizada em Lake Success,
perto de Nova York, no sentido de
conseguir dois terços dos votos da
yehuda arazi
Assembleia Geral para a aprovação
da partilha.
Em seguida, apresentou um
convidado especial, que vestia uma
farda do exército inglês e falava com
um impecável e sofisticado sotaque
de Cambridge. Era o major Audrey
Ebban, mais tarde mundialmente
conhecido como Abba Ebban.
Este focou seu breve discurso num
ponto fundamental: se a partilha
não fosse aprovada, não haveria
um Estado Judeu. Informou que os
Membro da Haganá lendo as notícias no transmissor ilegal. 10 de abril de 1948
23
SETEMBRO 2014
HISTÓRIA
Estados Unidos e a União Soviética
se mostravam a favor da partilha,
mas era preciso conquistar os votos
de pelo menos 23 países. Portanto,
os presentes, donos e diretores de
empresas multinacionais, deveriam
estender seus contatos mundo
afora para obter o engajamento dos
governos aos quais tinham acesso.
Àquela altura, hospedou-se no
Hotel 14 mais um jovem palestino
chamado Yehuda Arazi. Seguindo
instruções diretas de Ben Gurion, a
ele competiria a tarefa de adquirir
determinados tipos de armamentos
que até então eram indispensáveis e
faltavam à Haganá. No decorrer de
sua missão secreta, Arazi usou vários
nomes: Joseph Tenembaum, José de
la Paz, rabino Leflowitz, Dr. Scwartz,
Dr. Oppenheim e Albert Miller.
Seu êxito foi notável nessa tarefa,
sobretudo no suborno de capitães
de navios mercantes de inúmeras
nacionalidades, que transportavam os
armamentos para a então Palestina.
Tudo ficou ainda mais complicado
quando os Estados Unidos, após a
aprovação da partilha, declararam
um embargo para as exportações
para a Palestina, cientes de que as
armas eram embaladas sob diferentes
disfarces. Mesmo assim, Arazi não
desistiu e foi dando voltas por cima.
Em seguida, registrou-se um novo
hóspede no Hotel 14, chamado
Teddy Kollek, nascido em Budapeste,
criado em Viena, e um dos pioneiros
fundadores do kibutz Ein Guev,
às margens do Mar da Galileia.
Teddy já possuía vasta experiência
em tratativas internacionais e,
inclusive, negociara diretamente
com Eichmann, durante a guerra,
a libertação de mais de 1.000
judeus húngaros. Ele tinha uma
vocação inata para fazer amigos e
Reuven Zaslani “Shiloah”
24
seduzir as pessoas, além de ser um
incomparável coletor de doações.
Coube-lhe também o encargo de
ampliar os contatos da clandestina
Haganá na América Latina. No
Brasil, seu representante era um
judeu de origem polonesa-alemã
chamado Menashe Shepitsky, de
quem fui amigo. Certa madrugada,
Teddy precisava mandar um envelope
com alguns milhares de dólares para
o capitão de um navio de bandeira
panamenha ancorado em Nova York.
Olhando pela janela de seu quarto,
percebeu um carro estacionado perto
do hotel que, com certeza, era do
FBI e seguiria qualquer pessoa que
saísse do hotel àquela hora. Desceu,
então, até a boate Copacabana e
pediu a um jovem cantor que ali se
apresentava, seu conhecido, e pediulhe que levasse o envelope até seu
destino. O rapaz aquiesceu e, após
o fechamento da boate, dirigiu-se
sem ser seguido ao cais do porto
e entregou a encomenda. Ele se
chamava Frank Sinatra.
Um dos mais valiosos colaboradores
da Haganá em Nova York foi um
judeu chamado Adolf Schimmer,
fisgado por Teddy Kollek. Al, como
era chamado, 30 anos, servira em
bombardeiros durante a guerra como
piloto e engenheiro de vôo, e depois
como comandante nas linhas aéreas
TWA. Depois da partilha, Arazi
foi ao seu encontro e deu-lhe uma
vultosa quantia em dinheiro para
a aquisição de aviões de quaisquer
espécies. O novo país não poderia
sobreviver sem uma força aérea, por
mais limitada que fosse. Na fábrica
da empresa Lockheed, localizada
na Califórnia, Al descobriu quinze
aviões do tipo Constellation, todos
paralisados no solo como excedentes
de guerra e necessitando alguns
reparos de peças e manutenções.
Como fachada, criou uma empresa
chamada Schwimmer Aviation e
REVISTA MORASHÁ i 85
outra, meses mais tarde, a Service
Airways. O primeiro avião que
comprou foi um DC-3 e depois
quatro aeronaves Curtiss-46.
Finalmente, depois de incontáveis
idas e vindas, conseguiu adquirir
quatro Constellations e, com a ajuda
de amigos veteranos de guerra,
pilotos e mecânicos, voou todos eles
até a então Palestina sem apresentar
os necessários planos de voos às
autoridades. Enquanto isso, sob o
beneplácito da ex-União Soviética
que queria ver as potências ocidentais
fora do Oriente Médio, o Estado de
Israel comprou na Checoslováquia
tudo que precisava em matéria de
armamentos. Agora, sim, o novo
país teria condições militares para
enfrentar os invasores árabes.
Com a estabilização de Israel, Rudolf
G. Sonnenborn deu por encerrada
sua missão na Haganá e passou a
presidir a representação dos Bônus
de Israel nos Estados Unidos.
Aposentou-se de suas atividades
comerciais e morreu em junho de
1986.
O misterioso Reuven Zaslani
hebraizou seu nome para Reuven
Shiloah. Representou Israel em
Rhodes, em 1949, nas negociações
com parte dos invasores árabes. Foi
diretor-geral do primeiro Ministério
das Relações Exteriores de Israel,
embaixador em Washington e
também diretor do serviço de
inteligência Shin Bet. Morreu em
1959.
Phil Alpert implantou uma indústria
de máquinas pesadas nos Estados
Unidos e só esteve em Israel como
turista, onde pôde ver de perto
as instalações da indústria bélica
de Israel, que começara, com sua
participação, naquele apartamento
em Manhattan.
Eliezer Kaplan, com Moshe Shertok-Sharett e David Ben-Gurion sentados,
e Zeev Sharef de pé, na assinatura da Declaração da Independência de Israel,
no Museu de Tel Aviv, 14 de maio de 1948
Chaim Slavin não quis participar do
primeiro governo de Israel, alegando
não suportar a burocracia. Tornou-se
industrial de uma empresa de casas
pré-fabricadas. Morreu em 1980.
Daniel Fliderblum foi viver em
Israel, onde mudou o sobrenome
para Avivi. Foi um proeminente
engenheiro no campo da eletrônica.
primeiro chefe do Estado-Maior das
Forças de Defesa de Israel. Morreu
em 1973.
Yehuda Arazi abandonou as
atividades militares e estabeleceu um
hotel tipo resort de pouco sucesso.
Morreu em 1959, sem obter o
reconhecimento que merecia.
Teddy Kollek, antes de chegar ao
Hotel 14, atuara como representante
da Agência Judaica na Europa.
Serviu na embaixada de Israel em
Washington. Voltou para Israel em
1952, trabalhando como chefe de
gabinete do primeiro-ministro até
1964. No ano seguinte, foi eleito
Al Schwimmer emigrou para Israel,
prefeito de Jerusalém, cargo que
onde atuou durante 24 anos como
manteve durante 40 anos. Morreu aos
diretor da Israel Aerospace Industries. 95 anos de idade, em janeiro de 2007.
Por ter contrabandeado aviões
David Ben Gurion, profeta do povo
para fora dos Estados Unidos, foi
de Israel, morreu no dia
processado pelo FBI e teve cassada
sua cidadania americana. Recebeu um 1º de dezembro de 1973.
perdão especial no fim do mandato
do presidente Clinton. Recebeu o
Prêmio Israel em 2006 e morreu em
BIBLIOGRAFIA
2011, aos 94 anos de idade.
“The Pledge”, de Leonard Slater, Editora
Nahum Bernstein voltou a praticar
a advocacia em Nova York e deu
sucessivas palestras para os serviços
americanos de inteligência. Foi
presidente do Jerusalem Fund, nos
Estados Unidos. Morreu em 1983.
Jacob Dostrovsky hebraizou seu
nome para Yacov Dori e foi o
25
Simon and Schuster, EUA, 1970.
zevi ghivelder é escritor e jornalista.
SETEMBRO 2014
ARTE
ALEXANDER BOGEN,
RESISTÊNCIA COM ARMAS E TINTA
POR REUVEN FAINGOLD
Experimentar sons, tatear e sentir o gosto da obra artística
ao limite, transbordar tensões e mergulhar nas sensações
do mundo à sua volta, todas estas experiências fazem de
Alexander Kazenbogen uma figura ímpar. Só um artista que
se dispõe a abraçar a arte e respirá-la até seu último suspiro
consegue aventurar-se por diversos sentimentos, mesmo que
estes sejam momentos de extremo perigo e dor.
VIDA DE PARTISAN
Alexander (Shura) Katzenbogen
(1916-2010) nasceu em Durpat, na
Estônia, e cresceu em Vilna, cidade
conhecida na história judaica como a
“Jerusalém da Lituânia”. Filho de um
casal de médicos, pelo lado materno
Alexander era neto do rabino Tuvia
de Wolkovysk, um erudito da Torá
e personalidade destacada entre os
55 mil judeus que constituíam a
comunidade de Vilna no início do
século 20. Desde cedo frequentou a
Universidade de Vilna, aprendendo
os rudimentos da pintura e da
escultura.
Com 23 anos, no começo da
2ª Guerra, Alexander Bogen,
nome que adotou, juntou-se aos
“partisans”, guerrilheiros das florestas
que circundavam o lago Naroch,
localizado nos frondosos bosques da
Bielorrússia, a 200 km de Vilna. Ao
encontrar preconceito e provocações
antissemitas entre os partisans da
resistência antinazista (especialmente
entre russos, estônios e bielorrussos),
Bogen conseguiu formar um seleto
grupo de 30 combatentes judeus,
denominado “Nekamá”, que em
hebraico significa “vingança”.
de Vilna antes que fosse totalmente
destruído. Foi precisamente nessa
época que Alexander Bogen
conheceu o combatente Abba
Kovner (1918-1987), uma figura
central na heroica revolta do gueto
de Vilna.
O objetivo desses judeus era vencer
as treinadas forças alemãs da
Wehrmacht. O grupo “Nekamá”
era responsável por ações especiais,
como dinamitar vias férreas por
onde passariam comboios repletos
de soldados, causar sabotagem nas
encomendas de armas direcionadas
aos nazistas, contrabandear alimentos
e disseminar a informação nos guetos
sobre o extermínio em massa de
judeus.
Os dois combatentes tiveram
duas formas diferentes de avaliar
a maneira em que deveriam lutar
contra os alemães em Vilna. Para
Abba Kovner, desde o início havia
que realizar ataques em grande
escala, mesmo que a revolta resultasse
em inúmeras baixas, um verdadeiro
“al Kidush Hashem” (Santificação
em Nome de Deus). Já Alexander
Bogen argumentava que a ideia de
Kovner era impraticável, pois não
havia forma de combater (muito
menos de vencer) os nazistas com
armas primitivas e escassas. Portanto,
seria necessário ir até as florestas
para obter armas melhores e poder
enfrentá-los. Encerrada a guerra,
Por volta de 1943, durante o
atribulado período da 2ª guerra,
Bogen serviu como comandante
chefe de uma unidade, auxiliando
no transporte de judeus do gueto
26
REVISTA MORASHÁ i 85
Partisans, judeus. óleo. 1981
ambos emigraram da Europa para
Israel, cultivando uma forte amizade.
Abba Kovner se tornou um grande
poeta e, por sua rica obra literária
relacionada com o Holocausto,
recebeu em 1970 o Prêmio Israel de
Literatura.
do espaço. Seu traço forte, muitas
vezes nervoso, vai-se unindo às partes
mais sensíveis e poéticas. Suficiente
lembrar que este artista judeu criou,
num ambiente de guerra, sofrimento
e sobrevivência, como forma de
valorizar ainda mais sua obra.
Entre os anos 1939-1942, Bogen
colocou em seus desenhos aquele
olhar forte e característico que
nascia a partir da simples observação
da vida de seus companheiros e
colegas guerrilheiros, momentos
de tranquilidade de dor e luta.
Surpreendentemente, ele achava
pedaços de papel largados no meio
da floresta, pedaços de embrulhos,
outros ainda queimados e pedaços
de carvão das fogueiras que utilizava
para desenhar.
Encerrada a guerra, em 1945,
Alexander Bogen retorna à
Universidade e, dois anos depois,
completou seus estudos de arte;
torna-se professor titular na Escola
de Estudos Avançados em Artes de
Lodz, na Polônia.
Seus traços são fluidos e intensos,
mostrando quase sempre uma
dramaticidade única, revelando, no
desenho, pleno conhecimento do uso
Em 1951, Bogen, sua esposa
Rachel (Rela) e seu filho pequeno,
Michael, emigram para o jovem
Estado de Israel, ainda incipiente. Lá,
o combatente sobrevivente continuou
seu trabalho como artista e professor
na Universidade Hebraica de
Jerusalém, inspirando-se em pintores
clássicos como Henri Matisse,
Marc Chagall e Pablo Picasso.
27
ALEXANDER BOGEN em israel
SETEMBRO 2014
ARTE
Entre os anos 1969-1981,
assumiu o cargo de “Diretor
da Associação de Pintores e
Escultores de Israel”. Em vida,
recebeu numerosos prêmios:
em 1950, o “Prêmio do Governo
da Polônia”; em 1961, o “Prêmio
Histadrut” (Confederação Geral
dos Trabalhadores); em 1962,
o “Prêmio do Ministério da
Educação”; 1983, o “Prêmio
Neguev”, e, em 1992, o “Prêmio
Sholem Aleichem”.
Em 9 de abril de 2008 foi
inaugurado um “Monumento aos
Partisans” na localidade de Latrun,
de autoria de Alexander Bogen.
Catálogos com suas principais
obras foram publicadas pelo Kibutz
“Lochamei Haghetaot”, Museu de
Yad Vashem e Museu do Holocausto
de Washington.
A OBRA “REVOLTA”
Alexander Bogen detém uma
produção artística norteada por
uma força retirada do próprio
âmago, é um artista cru e verdadeiro.
Transmite ao apreciador de sua
arte algo notável e essencialmente
inspirador. Todas estas afirmações
aparecem claramente em seu
livro “Revolta”, em hebraico,
“Mered”, uma obra na qual reflete
profundamente sua função de
comandante e artista, de lutador e
herói da resistência judaica contra os
nazistas.
O livro de Bogen traz vários
desenhos a carvão, nanquim, gravuras
de metal e outras tantas técnicas
artísticas, todos eles produzidos no
decorrer da 2ª Guerra Mundial.
Trata-se de uma artista plástico
que não se contentou apenas em
acalentar ideais poéticos de liberdade,
mas teve um papel fundamental
como comandante, combatente e
escritos por colegas combatentes ou
pessoas que o conheceram. Nesses
textos memoriais fica bem clara a
perspectiva de seu processo criativo e
a visão de mundo também retratada
em sua arte.
Alexander BogeN, comandante da
unidade Nekamá.
pensador de uma resistência judaica
embrionária que surgia nas florestas
da Europa.
Infelizmente, a obra “Revolta” não
informa as datas de suas gravuras,
portanto fica extremamente difícil
determinar quando foram realizadas,
se durante a 2ª Guerra ou já em
Israel. As diversas técnicas e os
nomes dos desenhos, sim, aparecem
no livro. Além dos trabalhos,
existem também trechos literários
Um dos depoimentos mais bonitos
a ser lembrado é o do sobrevivente
Itzhak Rudnicki, depois conhecido
como General Itzhak Arad,
Diretor do Museu Yad Vashem, em
Jerusalém, entre 1972 e 1993. Dez
anos mais jovem que Bogen, Arad
confessa: “Durante o Holocausto,
Alexander Bogen serviu comigo
na unidade militar. Ele foi um
guerrilheiro das florestas e um
comandante dos guerrilheiros.
Apesar de todos os deveres
encomendados e as funções a ele
impostas, jamais esqueceu sequer por
um minuto que era um artista. Nós
(os partisanim) nunca conseguimos
entender como ele conseguiu,
naquelas condições, literalmente a
partir do nada, produzir os materiais
para seu trabalho. Tudo é um enigma
para nós, (especialmente) o que o
inspirou a produzir aqueles esboços
relâmpagos, mesmo em momentos
de perigo ou no meio da ação contra
o inimigo”.
VIVÊNCIAS DE CINZAS
Kovner discursa aos membros da
Haganá no Kibutz Yad Mordechai,
17 de maio de 1948
28
O que chama a atenção na arte de
Bogen são as precárias condições de
trabalho que tinha à sua disposição.
Se muitas vezes é difícil criar
trabalhos artísticos e deixar fluírem
as sensações em um confortável
ateliê, ou em algum lugar com uma
estrutura física boa, o que dizer de
produzir em tempos de guerra, de
movimentação e deslocamentos
permanentes. Borgen nutria uma
vontade enorme de desenhar a
partir de suportes simples, sem
nenhuma opção de escolha ou
ideia preconcebida. Praticamente,
REVISTA MORASHÁ i 85
criou uma arte própria com base
no seu fôlego de batalha, sua aura
de desbravador em meio a um caos
assumidamente dilacerante.
Outro ângulo que certamente
desperta nosso interesse é a
cumplicidade de Bogen com
o aspecto processual de seus
trabalhos, encarando a traumática
vivência da 2ª Guerra Mundial
em fusão permanente com sua
intrínseca expressão pictórica. Ele
não se limitou apenas a pintar em
momentos de descanso, mas também
em situações de confronto e luta.
Como já disse Arad, para serem
retratadas, muitas dessas situações,
“não possuíam o menor respiro
de tranquilidade e, mesmo assim,
Bogen retirou das profundezas de
seu coração artístico força quase
tátil para poder transformar aquelas
vivências em arte”.
Encerrada a 2ª Guerra Mundial,
os trabalhos artísticos de Bogen, a
maioria deles expostos no Kibutz
“Lochamei Haghetaot” e no “Museu
de Arte de Yad Vashem” continuam
a evocar traços de maior segurança,
vestígios de um olhar sumamente
crítico diante da devastação e das
atrocidades causados pela guerra.
O artista judeu é, sem sombra de
dúvida, uma figura que surgiu das
cinzas de um conflito, e como tal
decidiu repensar e filosofar seu
lugar no mundo, codificando sua
sensibilidade através de linhas,
manchas e, sobretudo, muito suor.
Existe outro depoimento, desta vez
do sobrevivente Yehuda Leib Bialer,
que nos remete a aspectos centrais da
obra de Bogen: “Ele (Bogen) estava
imbuído com o espirito de Vilna. Por
ela lutou e pelo bem dela completou
sua missão artística, enquanto
mantinha a fé em seu lado mais
humano e judeu. Além de pintar
Partisans judeus. Tinta em papel, 1943
imagens de homens em situações
variadas, ele retratou aquela cidade
judaica que não existe mais”.
As telas de Alexander Bogen
não evocam somente o “partisan
judeu” (perfil similar aos irmãos
Bielski), o combatente do gueto
(perfil de Mordechai Anilevich, em
Bogen e sua esposa Rachel, Israel
29
Varsóvia) ou guerrilheiros em fuga
rumo às florestas da Europa. Seus
trabalhos, mais especificamente
as gravuras, retratam edifícios e
fachadas de sua querida Vilna. A
forte caracterização da angústia e
do sofrimento subsistem no traço
caótico dessas representações,
pulsando diretamente no cuidadoso
olhar do espectador, segurando
velhos vestígios de um vilarejo em
ruínas com poucos monumentos
arquitetônicos que sobreviveram. São
prédios e construções que emergem
de um emaranhado de linhas
como manifestos de resistência e
perseverança em meio à destruição
ocasionada pela guerra
O artista possui uma plasticidade
única e uma posição bem nítida em
relação a seu processo artístico, que
podem ser facilmente vinculados a
trabalhos de outros artistas, como
William Kentridge e Lasar Segall.
Tanto o lituano Segall como o sulafricano Kentridge sustentam suas
obras através de aspectos incisivos
de suas vidas para logo desenhar
e demarcar suas aflições e paixões
em determinado período, gerando
SETEMBRO 2014
ARTE
Ele escreve: “Recentemente, tenho
indagado muito acerca do
motivo pelo qual desenho, mesmo
havendo combatido dia e noite.
Há aqui algo intimamente
relacionado com a continuidade
biológica. Cada ser humano, cada
povo, precisa vivenciar isto uma
vez... Ser criativo durante o
Holocausto era também uma forma
de resistir. Cada homem que se
encontra frente a frente com
seu inimigo, cruel e perigoso,
age de forma pessoal. Assim, o artista
tem seu próprio caminho para agir,
pois essa (arte) é sua própria arma.
Isso nos ensina porque os alemães
não conseguiram destruir nosso
espírito”.
Alexander Katzenbogen morreu
em 2010 e hoje está enterrado no
cemitério judaico de Kyriat Shaul,
em Tel Aviv. Este artista colocou sua
vida em sua arte de forma explícita,
sem máscaras, e isso é o que faz dele
um verdadeiro sobrevivente, não
apenas da 2ª Guerra, mas também do
mundo artístico em geral.
A deportação. óleo, 1996
“Tenho indagado
muito acerca do
motivo pelo qual
desenho, mesmo
havendo combatido
dia e noite (....) Ser
criativo durante o
Holocausto era
também uma forma
de resistir”.
Alexander Bogen
experiências artísticas próprias e
reutilizando características pictóricas
e poéticas em seus trabalhos
plásticos, tal qual Bogen fez no
período da 2ª Guerra Mundial.
Independente de qualquer tipo
de posição política, é inegável que
Alexander Bogen tem sido um
artista excepcional, infelizmente
pouco conhecido dentro do cenário
artístico. Tive a grande felicidade de
poder estudar sua produção através
de trechos do livro “Revolta”; uma
obra ímpar tanto pela força de seu
nome como pelo seu rico conteúdo.
Durante a pesquisa encontrei uma
frase de Alexander Bogen que me
marcou profundamente e resume
a verdadeira essência de sua arte.
30
BIBLIOGRAFIA
Bogen, Alexander, Revolt. Publicado por
Yehuda Leib Bialer, Jerusalém, 1974
Blater, Janet & Milton, Sybil, Art of the
Holocaust. Ed. Pan Books. Londres , 1982
Constanza, Mary S., Living Witness: Art in
the Concentration Camps and Ghettos. The
Free Press. Nova York, 1982
Norvitch, Miriam, Resistenza Spirituale
(Spiritual Resistence 1940-1945: 120
Drawings from Concentration Camps
and Ghettos). The Commune of Milan,
Milão,1979.
Prof. Reuven Faingold é historiador
e educador, PHD em História Judaica pela
Universidade Hebraica de Jerusalém.
É sócio fundador da Sociedade
Genealógica Judaica do Brasil e membro
do Congresso Mundial de Ciências
Judaicas de Jerusalém.
música
Enrico Macias, símbolo
da música árabe-andaluz
Uma notícia apareceu com destaque na mídia israelense nos
últimos meses: a decisão do cantor Enrico Macias de emigrar
da França para Israel. O ícone da música árabe-andaluz
anunciou suas intenções em uma entrevista à emissora
israelense Canal 2, dizendo que o crescente antissemitismo
na Europa está por trás desta mudança.
e
m Israel, me sinto livre,
eu me sinto em casa.
Há muito tempo queria
partir, mas sinto que
agora chegou o momento.
Acredito que o antissemitismo na
França crescerá e que devo ensinar
algo aos meus filhos e netos. Então,
darei o exemplo de partir para viver
em Israel”, ressaltou o artista.
Internacionalmente consagrado
e intensamente aplaudido nos
palcos europeus, na América do
Norte, na antiga URSS e no Japão,
entre outros, Enrico Macias tem
transmitido em suas canções uma
mensagem universal de paz e
solidariedade entre os povos. O disco
“Oranges amères” lançado em 2003 e
produzido por seu filho, Jean-Claude
Ghernassia, é fruto desse universo
que, justamente, é o que nele a todos
encanta e seduz.
Sua atuação em prol da paz foi
reconhecida pelo governo da França,
que, em 1985, concedeu-lhe a
Legião de Honra do país. Em 1997,
foi indicado pelo Secretário Geral
das Nações Unidas, Kofi Annan,
como Embaixador Mundial para
a Paz e Proteção das Crianças.
Em novembro de 1981, o então
secretário geral das Nações Unidas,
Kurt Waldheim, concedeu-lhe o
título “Cantor da paz”, após Macias
ter doado os royalties da canção
“Malheur à celui qui blesse un
enfant” para a Unicef.
Sua posição de apoio a Israel vem
de longa data. Em 1973, durante a
Guerra de Yom Kipur, cantou para
os soldados nas frentes de batalha
e atravessou o Canal de Suez com
alguns batalhões. Em 1978, foi
convidado pelo então presidente
Anuar el-Sadat a fazer um show aos
pés das pirâmides para celebrar o
acordo de paz assinado com Israel.
Em 2006, recebeu uma medalha
especial do então ministro da Defesa
de Israel, Shaul Mofaz, pelo seu
31
apoio às tropas israelenses.
Ao longo de sua carreira, Macias
apresentou-se mais de 40 vezes em
Israel, levando às lágrimas muitos
que, através de suas canções, reviviam
momentos felizes de seu passado
nos países árabes dos quais foram
obrigados a partir.
Após 1948, como consequência
da fundação de Israel, da guerra
deflagrada pelos países árabes contra
o Estado Judeu e do recrudescimento
das perseguições, centenas de
milhares de judeus do Egito, Síria,
Iraque, Argélia, Marrocos, Iêmen e
Tunísia deixaram seus respectivos
países. Partiram para Israel; outros
para a Europa, Estados Unidos e
América do Sul. Deixaram para
trás recordações, séculos de história
e um valor incalculável em bens
individuais e comunitários.
Embora consagrado como um dos
grandes artistas internacionais da
música andaluz, Macias jamais
SETEMBRO 2014
música
abandonou suas raízes argelinas,
nunca perdeu a sua simplicidade e
o sorriso fácil e sincero que cativou
tantos amigos e público, sendo
o porta-voz de todo um povo
desarraigado da África do Norte
durante a década de 1960.
Sua vida
No dia 11 de dezembro de 1938,
nascia em Constantina, na Argélia,
em uma tradicional família judaica,
Gaston Ghernassia, que, décadas
mais tarde, seria consagrado como
Enrico Macias. As tradições e
valores judaicos eram cultivados
por seus pais – a mãe descendia de
uma boa família de judeus locais,
enquanto os familiares de seu pai
vinham de Granada, na Andaluzia. A
música fez parte da sua vida desde a
infância, pois seu pai era violinista da
orquestra do grande mestre Cheikh
Raymond Leyris, uma das mais
representativas da mais pura tradição
musical do maaluf, canto tradicional
árabe-andaluz. Anos mais tarde, o
jovem Gaston casa-se com Suzy,
filha do grande mestre.
Sua história de amor com Suzy
começou quando ele tinha 15 anos
e ela, 13. Suzy sofria de problemas
cardíacos e, aos 18 anos, submeteuse à primeira cirurgia cardiovascular
realizada em Paris. Apesar de ter
sido alertada pelos médicos de
que não poderia engravidar, ela
conseguiu dar à luz uma menina e
um menino, enfrentando grandes
adversidades. Em 23 de dezembro
de 2008, Suzy faleceu, após longa
enfermidade.
A música maaluf ou andaluz, tocada
em instrumentos tradicionais, é
a forma mais comum da música
oriunda da Andaluzia, na Espanha,
e chegou à Argélia no século 15,
logo após a expulsão dos árabes
daquele país. Desde sua juventude,
“Gaston-Enrico” tocava violão e
logo passou do violão à harmônica.
Sua musicalidade era um dom
e costumava dizer: “Em termos
musicais, eu poderia ser comparado
a um homem que fala muito
bem, mas não sabe escrever. Tudo
brotou por intuição”. Aos oito anos
aprendeu sozinho a tocar mandola,
tipo de bandolim. Seu pai, querendo
preservá-lo das dificuldades da
profissão, preferiu não ser seu mestre.
Mas ele tocava escondido. Até que,
aos 12 anos, no Bar-mitzvá de seu
irmão, o pai lhe pediu para tocar algo
para os convidados. Acompanhado
por Cheikh Raymond, bastou que
começasse a dedilhar o violão para
revelar seu talento. Ao final do
dueto, impressionado com o jovem,
o mestre do maaluf o convida para
integrar sua prestigiosa orquestra.
Em 1956, após terminar seus
estudos, candidatou-se ao cargo
de professor em uma escola, pois a
música não parecia ter futuro. Como
as escolas precisavam de professores,
foi contratado, mas jamais deixou de
tocar.
A realidade da Argélia harmoniosa,
onde católicos, judeus e muçulmanos
compartilhavam a mesma terra,
estava acabando. Começava uma
era de instabilidade política. O
movimento Frente Nacional de
Libertação (FLN), fundado em
1954 por Ahmed Ben Bella, lutava
pela independência do país, que era
colônia francesa há mais de 130
anos. Foi criado na mesma época
o Exército de Libertação, braço
armado da FLN. Inicia-se a Guerra
de Independência (1954-1962), que
acaba sendo prolongada e muito
sangrenta, em virtude da resistência
dos colonos franceses, os Pieds Noirs,
senhores das melhores terras.
Entre as vítimas do conflito estava
Cheick Raymond que, no dia 22 de
junho de 1961, fora assassinado de
forma selvagem em Constantina.
Naquele momento, o jovem
Gaston se deu conta de que a única
alternativa para ter um futuro era
o exílio na França. Chegava ao fim
uma era de calma e tranquilidade
para os judeus argelinos. No mesmo
ano, Gaston embarca com a esposa,
Suzy, na companhia de toda a sua
família e amigos no navio Ville
d’Alger, que os levaria à França.
Deixar a Argélia foi um duro golpe
32
REVISTA MORASHÁ i 85
para uma comunidade que tinha
construído a vida na África, ainda
que suas raízes estivessem na Europa.
Ao chegar a Paris, Gaston decidiu
apostar na carreira musical. Como
uma criança prodígio da música
maaluf, resolveu adaptar o estilo ao
gosto do público francês, traduzindo
partes das músicas que conhecia para
o francês, mas não ficou satisfeito
com as versões. Então construiu um
repertório baseado em suas próprias
experiências. Mas, enquanto o sucesso
não vinha, aceitou vários trabalhos
tocando e cantando em cafés.
Ele foi contratado pela d’Or em
1962. Gravou seu primeiro disco
com a canção “Adieu mon pays”, que
compusera no navio quando saía
da Argélia. Em outubro do mesmo
ano, aparece em um programa de
televisão sobre os expatriados da
Argélia, “Cinq colonnes à la une”, e,
a partir de então, é o início da fama.
Faz a sua primeira turnê em 1963,
ano do nascimento de sua filha Jocya
(o filho Jean-Claude nasceria pouco
depois). Em 1964, Gaston adota
definitivamente o nome artístico
de Enrico Macias, apresenta-se no
Teatro Olympia e conquista um
sucesso fenomenal com hits como
“Enfants de tous pays”, “Les filles de
mon pays” e “La musique et moi”.
Começam também as intermináveis
turnês ao redor do mundo.
Embora seus primeiros fãs tenham
sido os “Pés Negros”, que se
identificavam com as canções de
Macias, também cativou o público
mais amplo e suas canções passaram
a ser cantadas por todos. Em 1965,
recebeu o Prêmio Vincent Scotto
e compôs a canção “Les Gens du
Nord” e “Non, je n’ai pas oublié”.
No ano seguinte, apresentou-se para
uma plateia de 120 mil pessoas no
Dinamo Stadium, em Moscou, e em
outras 40 cidades soviéticas. Sucesso
após sucesso, ele gravou, também, em
espanhol e italiano.
33
A década de 1960 foi uma
verdadeira roda-viva de gravações e
turnês. Em 1968, foi intensamente
aplaudido no Carnegie Hall, em
Nova York, Chicago, Dallas, Los
Angeles e outras cidades dos
EUA e Canadá. Entre os prêmios
acumulados ao longo de sua carreira
estão o Disco de Outro pelo álbum
“Melisa”, que incluiu o sucesso
“Malheur à celui qui blesse un
enfant”. Em 1978, foi convidado
pelo presidente Anuar El-Sadat a
se apresentar no Egito, como vimos
acima. Um momento marcante para
Enrico Macias, banido dos países
árabes durante anos.
Ao longo de décadas, Macias
escreveu um capítulo importante
da história dos judeus forçados ao
exílio. Através de suas canções, revela
a trajetória comum de milhares de
judeus que, mesmo reconstruindo
suas vidas em outras paragens, jamais
arrancaram de seu coração seus
países de origem.
SETEMBRO 2014
ATUALIDADE
Tempos difíceis para os
judeus da Ucrânia
Não é a primeira vez, em sua história longa e turbulenta,
que a Ucrânia é palco de sangrentas lutas, nem a primeira
em que se defronta com uma guerra civil ou que enfrenta a
Rússia em questões territoriais. Tampouco é a primeira vez
que a população judaica do país se vê em meio a uma feroz
disputa de poder entre Kiev e Moscou.
n
o passado, as lutas internas foram desastrosas
para os judeus, pois, além do antissemitismo
estar no DNA da Ucrânia, a violência contra
os judeus sempre tende aumentar em épocas
conturbadas. Simon Wiesenthal disse, certa
vez, que “onde a democracia é forte, é bom para os judeus,
e onde é fraca, é mau para os judeus”.
Hoje vivem na Ucrânia cerca de 70 mil judeus praticantes
e entre 300 e 400 mil ucranianos têm origem judaica.
A pergunta que paira é o que eles vão fazer perante
a questão da Ucrânia versus Rússia. O Rabino Chefe
de Odessa, Abraham Wolff, diz que os judeus estão
divididos sobre essa questão, assim como a comunidade
mais ampla.
Conflito interno
Para entender a crise ucraniana, é preciso lembrar que
a Ucrânia é um país dividido tanto do ponto de vista
étnico quanto cultural. A população da Ucrânia do Sul e
Oriental têm maioria russa, fala russo e tende a ser próMoscou. Já a da Ucrânia Central e Ocidental é ucraniana,
nacionalista, fala ucraniano e, desde que o país se tornou
independente, em 1991, com o fim da União Soviética,
deseja fazer parte da União Europeia.
34
A crise que está dilacerando o país e preocupando
o Ocidente teve início em 21 de novembro de 2013,
quando protestos espontâneos irromperam na capital,
Kiev, após Viktor Yanukovych, presidente ucraniano
de etnia russa, ter sustado os preparativos para a
assinatura de um Acordo de Associação e de um
Acordo de Livre Comércio com a União Europeia,
em favor de relações econômicas mais estreitas com
a Rússia. A violência das forças do governo na
repressão das manifestações levou um número
crescente de manifestantes às ruas – chegando
a 800 mil na primeira semana de dezembro. Os protestos
foram alimentados pela crise econômica, a falta de
emprego e a corrupção generalizada em todas as esferas
do governo.
Inicialmente conduzida por estudantes universitários,
a Euromaidan, como passou a ser chamada, acabou
reunindo amplos setores da população ucraniana,
inclusive elementos de direita, de extrema-direita e
simpatizantes do fascismo e do nazismo.
São numerosos os membros do partido ultranacionalista
Svoboda1 e da coalizão de grupos neonazistas,
denominada Setor Direita. Líderes desses partidos têm
expresso abertamente suas ideias antissemitas.
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1
2
3
4
5
5
Em fevereiro deste ano de 2014, o presidente
Viktor Yanukovich é removido do poder, assumindo um
governo de coalizão que inclui grupos pró-Europa e de
extrema direita. Nas eleições realizadas em regime de
urgência, a população vota a favor do novo governo
pró-Ocidente. Petro Poroshenko, um dos pilares dos
protestos Euromaidan, assume a presidência do país.
De tendência pró-Ocidente, apoia as ações militares
contra o movimento separatista pró-Rússia e adere
à UE. Empresário bilionário especialista em relações
econômicas internacionais, Poroshenko já ocupou o
Ministério da Economia e das Relações Exteriores, bem
como a presidência do Banco Central.
e cidades de maioria russa também manifestaram sua
intenção de se separar da Ucrânia. Separatistas próRússia acabam criando áreas autoproclamadas como
“repúblicas populares independentes”. Em maio, a
República Autoproclamada de Donetsk e a de Lugansk
unificaram-se sob o nome de Novorossia (Nova Rússia). Moscou e Kiev têm trocado sérias acusações.
Moscou não reconheceu como legítima a troca de
governo, enquadrando-a como golpe de Estado.
As populações ucranianas da fronteira com a Rússia
alinham-se com Putin, e denunciam a legitimidade do
novo governo. Ao mesmo tempo, milhares de soldados
sem identificação tomam bases militares na Península
da Crimeia, dando apoio aos separatistas pró-soviéticos.
As tensões culminaram com a anexação da Crimeia
pela Rússia, em março deste ano, quando um referendo
realizado – não reconhecido nem pelo governo ucraniano
nem internacionalmente – deu a vitória aos separatistas.
Após a anexação da Crimeia pela Rússia, outras regiões
A crise foi agravada com a queda do Boeing-777 da
Malaysia Airlines, e a morte dos 289 ocupantes, na região
à leste de Donetsk, palco dos combates separatistas.
Após a queda, autoridades de todas as partes envolvidas:
o governo russo, o ucraniano, além do representante
de Donetsk, negaram ter abatido o avião. Mas, os
especialistas dizem que apenas os mísseis terra-ar, guiados
por calor, fornecidos pela Rússia aos separatistas, seriam
capazes de abater um avião daquele porte.
O governo da Ucrânia acusa o presidente russo Vladimir
Putin de apoiar e armar os rebeldes separatistas, o que
ele nega. Já Moscou diz que as “operações punitivas”
do governo ucraniano contra os separatistas são “atos
criminosos”.
Contra esse pano de fundo, os conflitos entre tropas
oficiais e separatistas pró-russos já deixaram mais de
35
SETEMBRO 2014
ATUALIDADE
400 mortos. Por causa dos combates na região leste da
Ucrânia, centenas de judeus são hoje refugiados. Eles
sobrevivem graças à assistência de grupos judaicos
locais e estrangeiros que, nas últimas semanas, iniciaram
importantes operações de auxílio e resgate.
A Comunidade Judaica
Apesar de não ser o centro da luta pelo futuro da
Ucrânia, a comunidade judaica têm funcionado como
um conveniente instrumento político e uma importante
peça no xadrez político entre Ucrânia e Rússia.
Em discurso realizado no Kremlin, em março,
Putin declarou que a derrubada do presidente ucraniano
Yanukovych havia sido um golpe armado e executado
por nacionalistas, neonazistas, russófobos e antissemitas.
Nas semanas iniciais do Euromaidan, a televisão russa e
a mídia impressa relataram que o estado ucraniano estava
sendo “atacado por neonazistas, fascistas e bandidos”.
A Liga Anti Difamação da B’nai B’rith conclamou todas
as partes envolvidas no conflito para se absterem de
uma “exploração cínica e politicamente manipulativa do
antissemitismo “. No entanto, ninguém pode negar que o
espectro do antissemitismo voltou à Ucrânia.
Apesar de a mídia do Ocidente não ter coberto a ameaça
neonazista à comunidade judaica na Ucrânia, essa ameaça
é real. (O completo blecaute da mídia é confirmado
pelo Google News search, pois é virtualmente ausente
a cobertura da grande mídia à ameaça à comunidade
judaica na Ucrânia).
Caricaturas antissemitas, suásticas e outras imagens
nazistas têm aparecido com frequência em manifestações,
jornais e revistas, e em muros de várias cidades. Em
Donetsk, por exemplo, judeus da comunidade local têm
relatado que grafites antissemitas começaram a surgir
assim que enfraqueceu o Estado de Direito. “Começamos
a ver suásticas pintadas nos bancos das praças e nos
edifícios”.
Elementos antissemitas têm aproveitado o caos
político para cometer atos de violência contra judeus
e instituições judaicas. Segundo o Rabino Chefe
do leste da Ucrânia, Shmuel Kaminezki, quando os
protestos contra Yanukovych começaram em novembro,
embora muitos judeus compartilhassem as aspirações
pró-europeias dos manifestantes, havia um grande
temor sobre a atuação dos grupos de extrema direita
nas manifestações. Alguns deles são neonazistas ou
neofascistas, pessoas sem pejo algum de manifestarem
abertamente seu ódio aos judeus. O Svoboda causava a
maior preocupação por causa das declarações antissemitas
feitas por seus líderes no passado e pela importância
que atribuem aos “heróis” nacionalistas ucranianos,
considerados verdadeiros carrascos pelos judeus. Entre
eles, Bohdan Chmielnicki, responsável pelos massacre de
1648- 1649, quando morreram cerca de 100 mil judeus;
Symon Petliura, considerado responsável pelos pogroms
de 1917-1921; Stepan Bandera, que criou as Waffen
SS Ucranianas da Galícia e as Divisões Nichtengall e
Roland, que participaram do assassinato de judeus.
Em fevereiro último, dois importantes rabinos ucranianos
alertaram a comunidade judaica sobre o perigo que seus
membros corriam. O Rabino Moshe Reuven Asman
recomendou à sua comunidade que abandonassem a
região central de Kiev, ou se mudassem de cidade e, se
possível, abandonassem o país! O Rabino Asman disse
ao jornal israelense Maariv: “Há alertas constantes sobre
planos de atacar as instituições judaicas”.
O Rabi Yaacov Dov Bleich, que, desde 1990, é o Rabino
Chefe de Kiev e da Ucrânia, abordou a delicada situação
da comunidade judaica durante uma entrevista no
programa de rádio de Aaron Klein, da WABC, em Nova
York. Ele afirmou ter recomendado à comunidade que
fosse vigilante e evitasse locais onde estivessem ocorrendo
manifestações.
vladimir putin
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REVISTA MORASHÁ i 85
1
2
1. Manifestantes pró Rússia diante de um edifício do governo em Donetsk 2. Grupo de Chassidim chegam ao túmulo do Rabi
Nachman de Bratslav, em Uman, aldeia a 200 Km de Kiev
Desde o início da crise, cresceu o número de
ataques contra indivíduos judeus. Em janeiro,
um professor de escola judaica foi atacado em
Kiev. Em fevereiro, desconhecidos atiraram
coquetéis molotov na entrada da sinagoga
Chabad Giymat Rosa, em Zaporozhye,
localizada a 400 km a sudeste de Kiev – não
houve feridos. Essa sinagoga foi inaugurada
em 2012 – sinal da retomada do judaísmo na
Ucrânia – e foi construída no local onde os
judeus da comunidade receberam ordens para
se reunir antes da deportação nazista para os
campos de extermínio. Em março, os muros da
sinagoga em Simferopol, capital da República
da Crimeia - anexada nesse ano de 2014
pela Federação Russa, foram pichados com
suásticas e as palavras “morte aos judeus”.
União PanUcraniana,
“Svoboda”
Liberdade, é um
partido político
ucraniano
ultranacionalista
de extrema direita
considerado por
muitos fascista
e antissemita. É,
atualmente, um
dos cinco maiores
partidos do país
e sua filiação foi
restrita apenas aos
ucranianos étnicos.
Três membros do
partido ocupam
posições no governo.
1
Em abril, surgiu um panfleto em Donetsk, à
leste da Ucrânia, que trouxe tristes lembranças
dos idos de 1941 aos judeus da cidade. Com o
selo de “República de Donetsk” – o selo usado
pelos separatistas da região – o panfleto pedia
aos habitantes judeus que se registrassem
junto à Prefeitura para pagar um imposto
per capita. Para causar maior impacto, foi
pregado em uma árvore bem em frente de uma
sinagoga, para garantir que a congregação o
visse ao sair dos serviços religiosos. A pequena
comunidade de Donetsk ficou aterrorizada.
A Liga Anti Difamação mostrou ceticismo
quanto à autenticidade do folheto ter sido obra
dos separatistas, mas, qualquer que fosse a sua
origem, as instruções claramente recordativas
da época nazista tiveram o efeito de intimidar a
comunidade judaica local. Também em abril a
sinagoga de Nikolayev, no sul da Ucrânia,
foi atacada com bombas incendiárias.
37
Essa cidade é famosa por ser o local de
nascimento do Rabi Menachem
M. Schneerson, o Lubavitcher Rebe.
Em junho, Oleksandr Feldman, jurista
ucraniano e presidente do Comitê Ucraniano,
foi ameaçado em Kiev por homens
uniformizados que bradavam insultos
antissemitas. Feldman, que usa kipá, é um dos
judeus mais conhecidos na Ucrânia. Homens
armados e mascarados também ameaçaram
incendiar a casa de um dos Rabinos Chefes do
país, o Rabino Yaakov Dov Bleich, presidente
da Confederação Judaica da Ucrânia, mas
foram impedidos a tempo.
Obviamente as instituições judaicas reforçaram
sua segurança e alguns eventos públicos foram
cancelados. Por sua vez, a Agência Judaica
informou que forneceria auxílio na segurança
às instituições judaicas.
É importante ressaltar que manifestações
de cunho antissemita e atentados contra a
comunidade judaica na Ucrânia são perpetrados
tanto por nacionalistas ucranianos como
pelos separatistas pró-Rússia. Nessa região o
antissemitismo é secular, estando impregnado
na cultura ucraniana. Os perpetradores dos
incidentes relatados nesta matéria e de outros
contra judeus ou instituições judaicas são, em
sua maioria, membros de grupos antissemitas
ou são oponentes políticos. Os motivos
diferem; alguns simplesmente odeiam os
judeus, outros querem “provar” ao mundo o
cunho fascista do novo governo ucraniano ou
o antissemitismo russo. As vítimas, porém, são
sempre os judeus.
SETEMBRO 2014
DESTAQUE
margem protetora
POR jaime spitzcovsky
Ao iniciar mais um ciclo de violência no Oriente Médio, em
julho passado, o grupo terrorista Hamas buscou perpetuar
uma estratégia em curso há décadas. Trata-se de impor a
Israel a necessidade de se envolver num conflito assimétrico,
no qual o Estado judeu, em busca da segurança de seus
habitantes, tenha de enfrentar inimigos que utilizam
população civil como escudo humano e empregam escolas,
hospitais, mesquitas e suas cercanias como bases para
lançamento de foguetes e esconder armamentos.
N
esse cenário, ao atrair
o combate para áreas
densamente povoadas,
grupos como o Hamas
apostam na morte de
civis palestinos e cenas de escombros
para abalar a imagem do Estado
judeu e tentar isolar Israel no cenário
global.
O roteiro trágico é seguido desde
meados dos anos 1970. Grupos
como o Hamas e Hezbolá criam
situações insustentáveis para Israel,
colocando-o diante de um dilema:
enfrentar um cenário de grave
ameaça à sua segurança, por um lado
e, por outro, entrar numa operação
militar que trará dividendos na
área de segurança, mas certamente
significará alto custo político e
diplomático. Essa costuma ser a
natureza das chamadas guerras
assimétricas, quando um país, com
forças armadas regulares, enfrenta
terroristas e milicianos que se
escondem em meio à população civil.
Para entender a dificuldade dos
governos israelenses nas últimas
décadas, basta analisar as origens
da Operação Margem Protetora,
iniciada a 8 de julho. A escalada de
violência, na sua fase mais recente,
começa com o sequestro e assassinato
de três jovens israelenses, em junho,
pelo Hamas. Apesar das negativas
iniciais, o grupo acabou admitindo,
por meio de seu líder principal,
Khaled Meshal, a autoria do crime.
Em seguida ao sequestro, o Hamas
apostou na intensificação da crise,
imaginando que uma escalada militar
lhe permitiria arrancar concessões
de Israel na hora de negociar um
cessar-fogo. De imediato, o governo
israelense mostrou que preferia
não embarcar num confronto
bélico. Chegou a propor a fórmula
“quiet for quiet” (tranquilidade por
tranquilidade) na fronteira entre
Israel e Gaza. O Hamas, no entanto,
seguiu disparando foguetes. Foram
mais de 400 em duas semanas.
38
Nenhum país do mundo ficaria
inerte diante de uma chuva de
foguetes atingindo sua população
civil. Os disparos permanentes
condenam os israelenses, sobretudo
nas áreas mais próximas a Gaza, a
viver em permanente situação de
estresse psicológico, pois quando
soa o alarme antimíssil, contam com
escassos 15 segundos para chegar
à segurança de um bunker. Com
frequência, aulas em jardins de
infância e escolas são interrompidas
pelo som estridente que anuncia a
aproximação de um foguete oriundo
de Gaza.
Nos últimos dez anos, mais de
12 mil projéteis foram disparados
contra Israel, que amealhou
expressivas vitórias contra a estratégia
terrorista ao investir pesadamente na
construção de abrigos antimísseis e
na construção do Iron Dome (Domo
de Ferro), um sofisticado sistema de
defesa que destrói foguetes inimigos
em pleno voo.
REVISTA MORASHÁ i 85
Sistema de defesa aéreo antimísseis Domo de Ferro- de fabricação israelense contra-atacando um foguete
Israel, no entanto, não podia tolerar
a intensificação dos bombardeios,
que provocou mortes e obrigou parte
expressiva de sua população nas
proximidades de Gaza a abandonar
suas casas. Teve, a contragosto,
de embarcar em mais uma guerra
assimétrica, enfrentando um grupo
baseado no terrorismo, com objetivo
de neutralizar suas plataformas
de lançamento de foguetes e
destruir a sofisticada rede de túneis
subterrâneos, construída para infiltrar
terroristas em solo israelense.
A Operação Margem Protetora
representou mais um capítulo nefasto
das explosões cíclicas de violência
nas cercanias de Israel. Em 2012, foi
a vez da Operação Pilar de Defesa e,
na virada de 2008 para 2009, ocorreu
a Operação Chumbo Fundido. Todas
elas envolvendo o Hamas. Em 2006,
um comando do Hezbolá atacou
uma patrulha israelense na fronteira
norte do país, matando três soldados
e iniciando a Segunda Guerra
do Líbano. Mais uma vez, Israel
enfrentou um grupo terrorista, em
outra guerra assimétrica e altamente
destrutiva. Foram mais de 30 dias de
encarniçados combates em território
libanês, em meio à população civil.
Uma triste radiografia mostra
que Israel foi arrastado a mais
conflitos assimétricos, além dos
quatro registrados nos últimos
oito anos. Entre 2000 e 2004, a
Segunda Intifada e seus homensbomba atingiram o Estado
judeu, assassinando cerca de
1 mil israelenses, mais de 120
deles menores de idade. E, entre
1987 e 1991, jovens palestinos
protagonizaram a Primeira
Intifada, quando o cenário clássico
apresentava civis lançando pedras
contra alvos israelenses.
A constatação: todos os conflitos
que envolveram Israel nas últimas
décadas colocaram-no contra um
adversário de natureza diferente,
39
numa guerra assimétrica. Sempre
um Estado constituído, com forças
armadas regulares, enfrentando
grupos terroristas e milicianos
infiltrados na população civil.
Nesses conflitos, os adversários de
Israel naturalmente não esperam
vitória militar. Sabem que não
contam com a capacidade para
destruir o Estado judeu por meios
bélicos. O objetivo é impor derrotas
políticas, obrigar um Exército bem
equipado e bem treinado a combater
num cenário desfavorável, em meio
a zonas urbanas e população civil.
Certamente cenas de destruição
vão correr o mundo, ainda mais
na era da internet e da revolução
tecnológica. E a disseminação dessas
fotos e vídeos tem alvo certo: corroer
e imagem de Israel e fortalecer a
estratégia de isolar o Estado judeu.
A Guerra do Yom Kipur,
em 1973, foi um divisor de águas.
Representou o fim da etapa em que
SETEMBRO 2014
DESTAQUE
e jordanianas, e conseguiu um
formidável triunfo militar.
Cartaz pede a volta de Naftali Fraenkel, Gil-Ad Shaer e Eyal Yifrah,
sequestrados e assassinados pelo Hamas em junho
Israel se viu em guerras simétricas,
ou seja, quando um país, com
forças armadas regulares, enfrenta
outro país, igualmente com forças
armadas regulares. No conflito
iniciado no dia mais sagrado do
calendário judaico, Egito e Síria
invadiram Israel, que repeliu os
agressores e venceu o embate.
Antes disso, o jovem Estado
Judeu havia participado,
por exemplo, em mais dois conflitos
simétricos. Em 1956, enfrentou,
com apoio de britânicos e franceses,
o Egito, do presidente Gamal Abdel
Nasser. Onze anos depois, na
Guerra dos Seis Dias, Israel
combateu tropas egípcias, sírias
Soldado israelense explora um dos túneis do Hamas para Israel
40
Em 1973, Cairo e Damasco
desejavam reverter os resultados
da guerra anterior. Fracassaram.
E constataram que Israel havia se
transformado, um quarto de século
após sua fundação, em realidade
que não poderia ser riscada do
mapa numa guerra simétrica. O
presidente egípcio Anuar Sadat,
diante do diagnóstico, desistiu do
projeto nasserista de destruir Israel,
visitou Jerusalém em 1977 e assinou
o acordo de paz de Camp David
em 1979, o primeiro entre um país
árabe e Israel. Pagou pela ousadia
com a própria vida, assassinado num
atentado em 1981.
Lideranças árabes e seus aliados,
convencidos de que Israel não
poderia ser derrotado no âmbito
militar, decidiram mudar a estratégia.
E se espelharam no conflito mais
emblemático da Guerra Fria,
encerrado em 1975: a Guerra do
Vietnã. Numa guerra assimétrica, os
vietcongues comunistas impuseram
uma derrota ao poderosíssimo
Exército norte-americano, que
se retirou do front vietnamita em
1973. A retirada se deu sobretudo
devido à crescente pressão da opinião
pública norte-americana, cada vez
mais inclinada a rejeitar as imagens
de mortes de civis. A estratégia
vietcongue levava claramente em
conta a importância de provocar,
na população dos EUA, indignação
com o sangrento conflito no sudeste
asiático.
Os adversários de Israel decidiram
embarcar num roteiro semelhante.
Com força militar inferior,
optaram por levar o conflito à
arena política e diplomática, com
ênfase na disputa pela opinião
pública internacional. Ou seja, se
REVISTA MORASHÁ i 85
Família israelense refugiou-se em abrigo após ter tocado a sirene que alerta a
população da chegada de mísseis vindo de Gaza
aniquilar Israel militarmente se
mostrou inalcançável, a ideia a
partir de meados dos anos 1970
passou a visar o conflito assimétrico,
gerando consequências políticas e
diplomáticas que levem ao crescente
isolamento de Israel no cenário
global.
Portanto, nas últimas quatro
décadas, Israel não se envolveu
mais em guerras simétricas. Grupos
terroristas e milícias, em meio à
população civil, passaram a impor
desafios a Jerusalém, com o intuito
de deslanchar conflitos sangrentos
e obter dividendos políticos, com a
exploração de imagens de mortes e
de destruição.
Com a busca por apoio na opinião
pública internacional, organizações
anti-Israel aproveitam para também
lançar campanhas voltadas a boicotar
e isolar o Estado judeu, como a
infame BDS (Boycott, Disinvestment
and Sanctions; boicote,
desinvestimento e sanções). Nesse
cenário, o discurso antissionista
ganha força, impulsionado por
ações de claro caráter antissemita.
Importante lembrar que a estratégia
de deslegitimação de Israel também
se alimenta de um antiamericanismo
de setores importantes da esquerda
global que, em paradoxo histórico, se
associam a grupos fundamentalistas
muçulmanos.
Um jornalista norte-americano,
veterano em coberturas no Oriente
Médio, costuma relatar a seguinte
história: entrevistava um líder da
OLP durante a Segunda Intifada,
num bar na Cisjordânia. De golpe,
41
um palestino se aproxima da mesa,
esbaforido, e conta, sem pausa para
respirar, que num vilarejo próximo
há um confronto entre civis
palestinos, lançando pedras e
coquetéis molotov, contra soldados
israelenses. O dirigente que havia
interrompido a entrevista ouve a
história com atenção, e, impassível,
pergunta: “A CNN está lá?” “Sim”,
respondeu o afobado mensageiro.
“Então está tudo ok, podemos
continuar a entrevista”, disse o
líder palestino ao jornalista norteamericano, antes de, calmamente,
sorver mais um gole de chá.
A transmissão ao mundo, daquela
cena de uma guerra assimétrica,
era o objetivo. Para Israel, portanto,
além da frente para garantir paz e
tranquilidade à sua população, abriuse, há vários anos, a frente de batalha
por corações e mentes na opinião
pública internacional.
JAIME SPTIZCOVSKY, foi editor
internacional e correspondente da
Folha de S. Paulo em Moscou
e em Pequim.
SETEMBRO 2014
PERSONALIDADE
ron dermer
Assessor mais influente de BINYamin Netanyahu, Ron Dermer
ocupa desde o ano passado o posto de Embaixador de Israel
em Washington. Jovem, carismático e articulado, seu rosto
tem aparecido cada vez com mais frequência nas emissoras de
televisão, pois ele tem combatido incansavelmente as críticas
contra Israel na mídia e defendido seu país no Capitólio.
e
conomista formado pela
Wharton e político teórico
formado em Oxford
com extraordinários
instintos políticos, Ron é
o principal estrategista do primeiro
ministro Binyamin “Bibi” Netanyahu.
Conhecido como “Bibi’s Brain’’,
o cérebro de Bibi, observadores
políticos têm dito que, em várias
ocasiões, quando Bibi Netanyahu
discursa, o mundo vê o rosto do
primeiro-ministro, mas muitas das
palavras que se ouve são de Dermer.
Usando uma pequena kipá de
crochê, shomer Shabat, Ron que se
autodenomina ortodoxo moderno,
é o melhor porta-voz no combate
ao ataque contra o Estado e o
Povo Judeu. Desde os seus dias em
Oxford, ele vem demolindo seus
oponentes nos debates, com um
domínio incomparável dos fatos e
uma apresentação eletrizante. Ainda
em Oxford, ele conseguiu persuadir
alguns de seus mais brilhantes alunos
com o ponto de vista de Israel sobre
o conflito árabe-israelense. Desde
então, suas aptidões só fizeram
aumentar.
Ao longo dos anos, Dermer tem
mostrado não ter receio algum de
denunciar o tratamento injusto
de Israel na mídia. Para ele, não
devemos permanecer em silêncio
diante da tendenciosidade da mídia
e das visões distorcidas sobre o
conflito.
Sua vida
O caçula de Jay e Yaffa Dermer, Ron
nasceu em Miami Beach, em 1971.
Jay Dermer, advogado nova-iorquino
de tribunal, mudara-se para a Flórida
e, em 1967, foi eleito prefeito de
Miami Beach, derrotando Elliot
Roosevelt, um dos filhos do expresidente Franklin D. Roosevelt.
Sua mãe, Yaffa Rosenthal, que
nascera na então Palestina sob
48
Mandato Britânico, mudara-se
com toda a família para os EUA
alguns anos após a independência
do Estado de Israel. Os Dermer
iam frequentemente a Israel,
principalmente após a morte de
Joseph, o avô de Ron, quando ele
ainda era um bebê, e sua avó,
Rivka, decidiu retornar a Israel.
Em 1984, duas semanas antes de seu
Bar-mitzvá, seu pai morreu, aos 54
anos, vítima de um ataque cardíaco.
Ron sempre foi um ótimo aluno,
superdotado, e excelente atleta, pois
amava esportes. Extremamente
competitivo, enquanto cursava o
Ensino Médio ganhou o prêmio
de melhor jogador de basquete e
também o Prêmio American Legion
por seu desempenho acadêmico e nos
esportes.
Após completar o Ensino Médio,
entrou para a Wharton School of
Business, na Pennsylvania. Assim
que ingressou na faculdade, ajudou
REVISTA MORASHÁ i 85
embaixador de israel nos eua apresenta credenciais ao presidente Barack Obama na casa branca. Dezembro de 2013
a fundar o Jewish Heritage Program,
uma organização cujo objetivo era
fortalecer a identidade judaica dos
estudantes universitários. Também
começou um pequeno negócio,
vendendo “reforço para exames”,
uma forma de auxiliar alunos a se
prepararem para os exames, com
as provas de anos anteriores e suas
respostas.
Em Wharton, teve aulas com Frank
Luntz1, pesquisador de opinião
pública e consultor político. Luntz
sempre o considerou o aluno mais
talentoso e brilhante que já tivera.
Nessa época, Dermer já possuía um
verdadeiro dom para o debate. Jeffrey
Pollock, importante pesquisador
democrata, seu colega de classe,
costumava dizer: “É melhor não
entrar em discussão com ele, porque
com certeza vai sair perdendo...”.
O relacionamento com Luntz foi
crucial para a vida de Dermer, pois
o professor o aproximou do Partido
Republicano e o introduziu na
política israelense. Embora seu pai
tivesse sido democrata e seu irmão
ter seguido seus passos, Ron se
alinhou com a Direita.
Assim que se formou em Wharton,
em 1993, foi para Washinton e se
tornou assistente de Luntz. No ano
seguinte, 1994, Luntz arquitetou a
campanha para a Câmara, “Contract
with America”2, para Newt Gingrich.
Foi Luntz quem convenceu Dermer
a continuar seus estudos em Oxford,
onde ele obteria o mestrado em
filosofia, política e economia. Assim
que chegou à Oxford, pendurou na
parede uma bandeira de Israel que
seu pai ganhara de uma Miss Israel,
durante um concurso de beleza, em
Miami Beach. Ele era um americano
cujo coração estava em Israel. A
bandeira provocou calorosos debates.
Em 1995, Natan Sharansky tentava
lançar um partido de imigrantes que
49
viria a se chamar Yisrael B’Aliyah
– Israel para a Imigração. Luntz
apresentou Ron a Sharansky. Conta
Dermer sobre esse encontro: “Eu
não o conhecia, mas lera seu livro e
meu primeiro instinto me dizia para
não trabalhar com ele. Então eu o
conheci e mudei de ideia em menos
de 10 minutos”. Naquele mesmo ano,
ainda estudando em Oxford, Dermer
ajudou Sharanksy a se preparar para
as eleições de 1996 para o Knesset.
No dia da votação, Dermer fazia um
exame final em Oxford.
Logo depois, Ron vai para Israel.
Não queria voltar para os Estados
Unidos, queria morar no Estado
Judeu e, em 1997, começou o
processo para se tornar cidadão
israelense. Ron chegou a Israel após
a assinatura dos Acordos de Oslo e
do assassinato de Yitzhak Rabin.
Ele encontrou um país dividido.
Não apenas entre direita e esquerda,
mas entre judeus seculares e
religiosos, asquenazitas e sefaraditas,
SETEMBRO 2014
PERSONALIDADE
Barak renuncia ao cargo de primeiroministro e mais uma vez tiveram
que ser antecipadas as eleições.
Houve uma polarização entre Barak
e Sharon, e este último acabou
tornando-se primeiro-ministro.
Desta vez, porém, Netanyahu não
estava no páreo. Enquanto isso,
Dermer passou a escrever uma
coluna semanal no The Jerusalem
Post, denominada “The Numbers
Game”, que estreou em janeiro de
2001. Ele escrevia sobre política e
suas preocupações sobre o futuro de
Israel.
Dermer e Bibi Netanyahu
entre sabras e imigrantes recémchegados da ex-União Soviética.
“Quando cheguei em Israel”, lembra
ele, “estava empolgado porque sabia
que as futuras decisões tomada por
meu país seriam importantes para o
futuro do Estado Judeu e o do meu
Povo”.
Em agosto de 1998, Dermer se casou
com Adi Blumberg, uma artista
que crescera na Cidade Velha de
Jerusalém e cujo pai era o presidente
do Banco de Jerusalém. O casamento
de Adi e Ron foi celebrado por um
dos maiores eruditos da atualidade,
o Rabino Adin Steinsaltz. Mas a
felicidade do casal foi muito breve,
pois sua esposa faleceu dois anos
mais tarde, em fevereiro de 2000.
Adi tinha apenas 29 anos.
No final daquele mesmo ano, após
três anos no poder, o governo de
Netanyahu entra em colapso. Com
uma coligação desfeita, o primeiroministro de Israel pede a antecipação
das eleições previstas para o ano
2000. Sharansky ofereceu a expertise
de Dermer para a campanha de
Bibi. O jovem já era conhecido
como o principal especialista do
país sobre o voto russo. Ao lembrar
o encontro entre Ron e Netanyahu,
Sharansky diz que Bibi não gostou
das duras constatações sobre a
campanha expostas por Dermer.
“Bibi me chamou e disse, ‘este sujeito
(Dermer) realmente me odeia’. Mas
da próxima vez que se encontraram,
apaixonaram-se”, relata Sharanky.
Netanyahu e Dermer se
encontraram novamente no
início do verão israelense daquele
ano de 2000.Ambos haviam
sofrido grandes perdas: Bibi fora
arrasadoramente derrotado por
Ehud Barak nas eleições, além de
perder a liderança do Likud para
Ariel Sharon, e Dermer enviuvara.
Mas estavam determinados a ir
em frente. Era o início de um
grande relacionamento. Netanyahu
e Dermer compartilhavam, e
compartilham, as mesmas visões
políticas em termos de segurança
do Estado de Israel, diplomacia e
economia, entre outras.
Com a eclosão da Segunda Intifada,
em outubro daquele mesmo ano,
50
Ron conheceu sua atual esposa e mãe
de seus filhos, Rhoda Pagano, em
um jantar, em Jerusalém, oferecido
pelo chefe de Rhoda, Aharon Barak,
então presidente da Suprema Corte
de Israel. Rhoda, formada em
Direito pela Universidade de Yale,
retornou pouco depois a Nova York
para trabalhar em um escritório de
advocacia. Ela resistiu aos pedidos
de Ron para que mudasse para
Israel, pois dizia estar receosa com os
ataques terroristas. Mas, o atentado
ao World Trade Center, em 11 de
setembro de 2001, a fez mudar de
opinião. Rhoda foi para Jerusalém
e se casou com Dermer. A mãe de
Dermer deu de presente ao casal
coletes à prova de balas! O casal tem
cinco filhos.
Após o fatídico 11 de setembro,
Dermer retornou aos EUA por um
breve período para ajudar seu irmão
David que concorria às eleições para
a prefeitura de Miami Beach. David
Dermer venceu a disputa, numa
vitória de último minuto, com a
ajuda do ex-governador da Flórida,
Jed Bush, irmão do presidente
George W. Bush. Embora seu pai
e seu irmão fossem democratas, a
família Dermer tinha fortes vínculos
com a família Bush, especialmente
com Jed Bush.
REVISTA MORASHÁ i 85
Ron Dermer foi coautor com
Sharansky do livro “The Case
for Democracy: The Power of
Freedom to Overcome Tyranny
and Terror”, publicado em 2004.
O livro aborda a disputa entre a
liderança israelense e palestina como
uma frente na luta global entre
sociedades livres e tirânicas. Traça
uma distinção entre sociedades livres
e sociedades tirânicas, ou “sociedades
aterrorizadas”, como são chamadas
no livro – expressão que Sharansky
credita a Dermer. No final, há
uma lista de dissidentes árabes que
merecem o apoio do Ocidente em
seus esforços para levar seus países ao
caminho da liberdade.
George W. Bush ficou entusiasmado
com o livro e convidou os autores
ao Salão Oval alguns dias após
sua reeleição. O livro se tornou
uma pedra fundamental do que
é atualmente conhecido como a
“Doutrina Bush”.
Dermer e Bibi Netanyahu
Ron Dermer assumiu seu primeiro
cargo governamental em 2005.
Netanyahu, que então era ministro
das Finanças na gestão de Ariel
Sharon, indicara-o para ocupar o
posto de Ministro da Economia na
Embaixada de Israel em Washington,
D.C. Para assumir o cargo, Ron
teve que desistir de sua cidadania
americana.
Na campanha de Netanyahu para
primeiro ministro, Dermer foi o
principal estrategista. Durante os três
anos que passou em Washington,
observou com grande interesse a
estratégia adotada pela equipe de
Obama para lidar com milhões
de eleitores insatisfeitos – novos,
ou já existentes, e lhes transmitir
uma mensagem de mudança. Esta
estratégia Ron replicou na campanha
em política externa e estrategista
– requisitado frequentemente e a
qualquer hora para consultas.
de Bibi, chegando mesmo a contratar
dois assessores para comunicação
com a mídia que tinham atuado na
campanha de Obama.
Após ser eleito primeiro-ministro
de Israel, Netanyahu fez de Dermer
seu principal assessor, cargo que
ele ocupou até 2013, quando se
tornou embaixador em Washington.
Durante esse período, ele trabalhou
no círculo mais íntimo de Bibi. Seu
cargo abrangia virtualmente tudo
o que dizia respeito ao primeiro
ministro. Ele se tornou o principal
redator dos discursos, pesquisador de
opinião pública, principal conselheiro
Ele atuou, também, como ligação
com a Casa Branca e foi uma
presença constante nas reuniões em
Washington ao lado do primeiroministro. Além de Netanyahu,
Dermer tem feito mais para moldar
o relacionamento entre Israel e os
EUA, seus vizinhos árabes e com
os palestinos nos últimos anos do
que qualquer outro homem do
governo. Algumas de suas posições
políticas chegam a ser ainda mais
conservadoras do que as de Bibi.
Em várias ocasiões expressou seu
ceticismo sobre a real vontade dos
palestinos de ter seu próprio estado
e sobre a viabilidade de serem um
parceiro para a paz.
Embaixador em
Washington
Ron Dermer substituiu o embaixador
israelense em Washington, Michael
Oren, em 2013. Entre as tarefas
hercúleas que ele tem diante de si,
Ronald S. Lauder com o embaixador Ron Dermer e sra. Rhoda Dermer. janeiro de 2014
51
SETEMBRO 2014
PERSONALIDADE
Israel, em especial para o sistema
antimíssil Domo de Ferro, e
para revogar a proibição da FAA
americana de voos para Israel. Foi
também ele quem orquestrou o
encontro do ex-Prefeito de Nova
York, Bloomberg, com Bibi.
ele terá que apresentar as reservas
de Israel a negociação que está
sendo discutida com o Irã, algo
que tem preocupado Israel, e tentar
influenciar o governo americano.
Sobre ele, disse Sharansky ao jornal
The Times of Israel, “Ron tem um
senso extremamente profundo das
bases da ligação entre Israel e a
América. Ele estudou, escreveu e
viveu essa ligação e os valores que
as duas nações compartilham.
Ron será extremamente importante
para Washington e para a Casa
Branca porque eles sabem que ele é
muito próximo do primeiro-ministro
e que falar com ele é como falar
diretamente com Netanyahu: isto
é algo muito raro”. Muitas pessoas
próximas a Obama confirmam as
palavras de Sharansky, pois quaisquer
suspeitas sobre as tendências políticas
de Dermer são superadas pelo
benefício de ter um embaixador que
faça parte do círculo íntimo de Bibi.
Embora tenha vínculos fortes com
os republicanos e tenha apoiado
Mitt Romney em 2012, Ron tem
boa penetração também entre os
democratas. Neste ano, o secretário
de Estado John Kerry participou
do Seder de Pessach na residência de
Dermer.
Dermer e a Operação
Margem Protetora
Enquanto o papel da maioria dos
embaixadores é influenciar a política
dos países onde atuam em relação
a seu próprio país, os de Israel têm
mais um papel: procurar influenciar
a opinião pública e os meios de
comunicação nesses países. Embora
Israel seja a única democracia que
floresce no Oriente Médio, o país
continua a perder a batalha da
opinião pública, a guerra na mídia,
passo a passo. A opinião pública
Dermer é articulado, rápido e dono
de uma fluência política difícil de
enfrentar. Ele pode se confrontar
com qualquer repórter e provar
o ponto de vista de Israel. Suas
entrevistas estão em todas as mídias
sociais e ele se tornou a voz da
razão em meio a uma campanha de
desinformação.
certamente não é a “frente de
batalha” mais importante que Israel
precisa vencer quando é atacado por
seus inimigos, mas é, sem dúvida, de
grande importância.
Por causa dos recentes combates
entre Israel e o Hamas, em Gaza,
Dermer tem combatido as críticas
a Israel pela invasão de Gaza e
pelas vítimas civis. Participou em
mais de 55 entrevistas de televisão,
rádio e mídia impressa. Tem ido às
emissoras de televisão e debatido
com seus âncoras, apresentando os
fatos de forma objetiva, esclarecendo
o público e denunciando a
tendenciosidade ou a desinformação
da mídia na cobertura do conflito.
Tem, também, defendido Israel no
Capitólio, participado de reuniões
com membros da Administração
americana, conferências e outros
eventos.
Tem atuado, também, na busca de
mais recursos para a segurança de
52
Dermer tentou traduzir a situação
real de Israel em termos com os
quais o público americano pudesse
se relacionar. O diplomata procura
demostrar aos americanos que o
único desejo dos israelenses é se
defender, algo que os Estados Unidos
não titubeariam um segundo em
fazer. Foi lançada uma campanha
de mídia nos EUA com a pergunta:
“O que você faria se Nova York
e Washington estivessem sendo
atacadas por mísseis?”, e a afirmação
“O Hamas não é em nada diferente
da al-Qaeda”.
Em uma entrevista à CNN, Dermer
pediu aos telespectadores que
imaginassem uma situação em que
ouvissem sirenes em Nova York e
em Washington e a necessidade
das pessoas terem que correr para
bunkers. “Isto é o que acontece hoje
em Israel”.
Ao falar em um encontro no
Capitólio, ele fez a mesma
abordagem, ressaltando que,
atualmente, em termos proporcionais,
a população israelense que está
na mira dos mísseis e foguetes
seria equivalente a 200 milhões de
americanos. “Como alguém que
REVISTA MORASHÁ i 85
1. ron dermer COM Steve Israel. 2. com Jeremy Ben-Ami. 3. COM José Miguel Insulza, secretário geral da
oea 4. com o porta voz John Boehner NO CAPITÓLIO.
nasceu e cresceu neste país (EUA), não me
é difícil imaginar o que o povo americano
esperaria de seu governo se 200 milhões de
pessoas tivessem que ir para os bunkers”,
ressalta.
Frank I. Luntz
é um consultor
político americano,
pesquisador e “guru
de opinião pública”,
mais conhecido
por desenvolver
temas de debate e
outras mensagens
para várias causas
republicanas.
1
“Contract with
America” foi
um documento
distribuído pelo
Partido Republicano
durante a campanha
para o Congresso
de 1994, detalhando
as ações que os
republicanos
prometiam realizar
se obtivessem a
maioria na Câmara
pela primeira vez,
em 40 anos.
2
Essa explicação procura desmistificar o
principal desafio das relações públicas de
Israel – a acusação de ação desproporcional.
“As pessoas precisam entender que não se
trata de contar corpos de cada lado”, explica
Dermer. E ele faz outra analogia através
da qual o povo americano pode entender
a situação na qual se encontra Israel.
Durante a 2ª Guerra Mundial, o número de
vítimas alemãs foi 20 vezes maior do que as
americanas, no entanto “este fato não torna a
ação dos nazistas aceitável”.
Ele ainda afirma: “O Hamas está usando
escudos humanos, não apenas por causa da
natureza do seu regime, mas porque é uma
estratégia que parece funcionar. O Hamas
confia em que as fotos (dos civis mortos em
Gaza) levem à pressão contra Israel”.
Durante uma recente palestra ele disse: “Israel
merece mais do que o apoio da comunidade
53
internacional; merece a sua admiração.
Não houve, na História, forças armadas
que tenham sido mais cuidadosas do que
as FDI na proteção de inocentes do lado
oposto (...) Israel não precisava ter enviado
seus soldados a muitos dos lugares onde eles
hoje lutam (...). Estamos, hoje, enviando
nossos soldados a esse vespeiro de terror
palestino, todo armado com minas e
explosivos e permeado de túneis. Israel tem
demonstrado uma auto-contenção que ainda
não foi vista (...). E eu não posso aceitar críticas
ao meu país numa hora em que os soldados
israelenses estão morrendo para que os
palestinos inocentes possam viver”.
Quaisquer que sejam as opiniões sobre a linha
política de Dermer, é fato que ele traz inegáveis
habilidades retóricas à qualquer mesa de
discussão. Nos círculos políticos israelenses, ele
é conhecido por seu vasto conhecimento, seu
humor afiado, espírito argumentativo
e por observações espertas e curtas que
defendem Israel. Numa hora em que a
reputação de Israel está sofrendo terrivelmente
em todo o mundo, Ron Dermer é o melhor
porta-voz para combater o ataque maldoso ao
Estado Judeu.
SETEMBRO 2014
SHOÁ
O MASSACRE DE BABI YAR
Em setembro de 1941, Babi Yar, ravina existente em Kiev, capital
da Ucrânia, foi o local de um dos maiores massacres de judeus
em um único lugar, durante a 2ª Guerra Mundial. Em dois dias
apenas, 34 mil judeus, homens, mulheres, crianças e velhos,
foram mortos a tiros. Babi Yar se tornou símbolo do cruel
assassinato de judeus perpetrado pelos Einsatzgruppen
e do persistente não reconhecimento da memória judaica.
e
m 1961, o poeta russo
Yevgeny Yevtushenko,
em seu poema “Babi
Yar”, fez um apelo
para que os terríveis
acontecimentos não fossem relegados
ao esquecimento.
“(..) A erva selvagem murmura
sobre Babi Yar. As árvores olham
agourentas como os verdugos. Aqui tudo grita em silêncio, e,
tirando meu boné, sinto-me grisalho,
lentamente. E eu, também, tornei-me
um berro tonitruante, sem som, pelos
muitos milhares aqui enterrados. Eu
sou cada velhinho aqui abatido a
tiros. Eu sou cada criança aqui abatida
a tiros. Nada será esquecido, dentro de
mim...”
Holocausto na Ucrânia
A Operação Barbarossa, invasão
da antiga União Soviética por Hitler,
lançada em 22 de junho de 1941, foi
decisiva no Holocausto,
pois deu início ao genocídio de
judeus. A matança sistemática
de judeus no leste da Europa
começou no primeiro dia da invasão
alemã.
As forças nazistas rapidamente
ocuparam a Ucrânia, o leste da
Polônia, a Letônia, Estônia e
Lituânia, a Bielorrússia e o oeste
da República Russa. Assim que o
exército alemão ocupava alguma
área da ex-União Soviética, os
Einsatzgruppen (Esquadrões da
morte móveis das SS) entravam
em ação, fuzilando os judeus.
Estima-se que mais de
1,5 milhão foram executados
dessa forma. Uma das “tarefas”
dos Einsatzgruppen era organizar,
entre a população local, indivíduos
dispostos a perpetrar ou a participar
do assassinatos em massa de
judeus. Na Ucrânia não foi difícil;
centenas de milhares colaboraram
entusiasticamente com os nazistas.
Sem tal participação, teria sido
54
impossível que as matanças
atingissem a escala que de fato
tiveram.
Antes mesmo de os nazistas ir em
frente com a “solução radical do
problema judaico através da execução
a tiros de todos os judeus”, milhares
de ucranianos foram os responsáveis
por sangrentos pogroms. Outros
milhares tornaram-se guardas nos
campos de extermínio. A ajuda
da polícia ucraniana permitiu aos
nazistas rapidamente identificar e
reunir os judeus que, a seguir, eram
conduzidos para locais ermos onde,
um a um, família após família –
homens e mulheres, velhos e crianças
– eram brutalmente assassinados a
tiros.
Kiev
A cidade de Kiev acabou caindo
em mãos alemãs após 45 dias de
batalha, em 19 de setembro de 1941.
Acredita-se que cerca de 70% dos
REVISTA MORASHÁ i 85
1
2
1. memorial babi yar 2. memorial das crianças que pereceram em Babi Yar
225 mil judeus (20 % da população
da cidade) que viviam em Kiev
conseguiram deixar a cidade a tempo.
A maioria dos que ficaram eram os
que não tinham condição de fugir:
mulheres, crianças, velhos e doentes.
Desde o primeiro dia da ocupação,
os judeus perceberam as “faces
radiantes” de muitos ucranianos,
como recordou mais tarde uma
testemunha ocular, Konstantin
Miroshnik1, então com 16 anos.
Um dos vizinhos ucranianos dissera
a seu avô, “Leib, seu poder judaico
chegou ao fim, uma nova ordem
começará agora, portanto tenha em
mente, você terá contas a acertar...”.
No segundo dia da ocupação,
policiais ucranianos apareceram
nas ruas portando braçadeiras e
anunciando que faziam parte da
“Organização de Nacionalistas
Ucranianos” (OUN), organização
liderada por Stepan Bandera.
(ver artigo Judeus na Ucrânia no
século 20, pág. 65).
Por alguns dias os judeus não
foram molestados. Em 21 de
setembro, após ter sido submetido
a humilhações públicas, foi
assassinado Shlomo Glozman,
um dos líderes comunitários de
Kiev, junto com nove outros dos
mais respeitáveis membros da
comunidade.
Durante os primeiros dias da
ocupação alemã, duas grandes
explosões, aparentemente
desencadeadas por engenheiros
militares soviéticos, destruíram o
prédio onde havia se instalado o
quartel-general alemão e parte do
centro da cidade. Os alemães usaram
esses atos de sabotagem como
pretexto para dar início à matança
dos judeus de Kiev.
Em 27 e 28 de setembro, os
nazistas colocaram cartazes em
russo e ucraniano por toda a cidade,
convocando os judeus para o
“reassentamento”.
55
“Ordena-se a todos os judeus
residentes de Kiev e suas vizinhanças
que compareçam à esquina das ruas
Melnyk e Dokterivsky, às 8 horas da
manhã de 2ª feira, 29 de setembro
de 1941, portando documentos,
dinheiro, roupas de baixo, etc.
Aqueles que não comparecerem serão
fuzilados. Aqueles que entrarem
nas casas evacuadas por judeus e
roubarem pertences destas casas
serão fuzilados”. Mais de 30 mil se
apresentaram.
Nos dias 29 e 30, véspera de Yom
Kipur, os judeus foram levados a
Babi Yar, uma ravina nos arredores
da cidade. Acreditavam que
seriam embarcados em trens para
um reassentamento. A multidão
de homens, mulheres e crianças
era grande o bastante para que
ninguém se desse conta do que
estava para acontecer, a não ser
tarde demais. Um dos comandantes
do Einsatzkommando chegou a se
gabar, dias mais tarde, que, por causa
SETEMBRO 2014
SHOÁ
pseudônimo de A. Anatoli.
Dina contou que enquanto estava
ainda soterrada ouvia por todo lado e
por baixo ela, sons abafados, gemidos,
pessoas se sufocando
e chorando. A massa de corpos
movia-se ligeiramente conforme
se acomodava e se espremia,
através do movimento dos que
ainda viviam. Lembrou como
os soldados iam até a borda e
iluminavam os corpos com suas
lanternas, atirando com seus
revólveres sobre os que ainda
pareciam vivos.
judeus de kiev, a caminho da morte em Babi Yar
de “nosso talento especial para a
organização, os judeus acreditaram,
até o momento de serem executados,
que estavam realmente sendo
enviados para um reassentamento”.
do grupo logo à frente, percebiam
o que os esperava, mas não tinham
mais como escapar. Ao chegar à
boca da ravina, encontravam-se na
beira do precipício, a 20, 25 metros
de altura, e do outro lado havia
O massacre foi realizado em dois dias, metralhadoras alemãs disparando.
pela unidade C do Einsatzgruppen,
(...). Então os próximos
apoiada por membros de um batalhão 100 eram trazidos, e tudo se repetia.
Os policiais pegaram as crianças
das Waffen-SS. Unidades da polícia
pelas pernas e as jogaram vivas
ucraniana foram usadas para agrupar
dentro do Yar. Naquela noite, os
e conduzir os judeus até o local de
alemães fizeram desmoronar as
fuzilamento.
paredes da ravina e enterraram as
Logo após a guerra, um cidadão não
pessoas sob uma espessa camada de
judeu, o vigia do velho cemitério
terra. Mas a terra moveu-se ainda
judaico próximo a Babi Yar, contou
por muito tempo, porque judeus
que testemunhara “cenas horríveis
feridos e ainda vivos se moviam,
de dor e desespero”. Ao relatar os
desesperados”.
fatídicos acontecimentos contou:
“Eu vi policiais ucranianos formarem Dina Pronicheva foi uma dentre
um corredor e levar os judeus
os poucos judeus a escapar com
apavorados para a enorme clareira,
vida. Assim como centenas dos que
onde, com bastões, aos gritos e
foram alvejados, não morreu. Mas
utilizando cães que arrancavam
diferentemente da maioria dos que
pedaços dos corpos das pessoas, os
caíram vivos na vala, ela conseguiu
judeus eram forçados a se despirem
evitar ser sufocada e escapou. Após
totalmente, a formar filas e, então,
a guerra, Dina contou os horrores
dirigir-se em colunas de dois para
de Babi Yar ao escritor russo
a boca da ravina. Ao escutarem o
Anatoli Kuznetsov, que publicou
barulho das metralhadoras
a história, primeiro na Rússia, em
que estavam abatendo os judeus
1966, e na Inglaterra em 1970, sob o
56
Ao se referir ao massacre,
Elie Wiesel escreveu que
“testemunhas oculares disseram
que, por meses após as mortes,
o solo de Babi Yar continuava a
esguichar guêiseres de sangue”.
Após dois dias de assassinatos,
a unidade do Einsatzkommando
mandou para Berlim um relatório
sobre a ação: em dois dias,
33.771 judeus haviam sido
exterminados em Babi Yar e os
“operadores” das metralhadoras
haviam sido auxiliados pelos
milicianos ucranianos.
Nos meses seguintes, os nazistas
utilizaram Babi Yar como um local de
execução para prisioneiros de guerra
soviéticos e para “ciganos”. O número
de executados talvez jamais seja
conhecido.
Destruindo provas
Em março de 1944, a ex-URSS
inicia a ofensiva na Bielorrússia.
À medida que os exércitos alemães
iam batendo em retirada frente
ao inexorável avanço russo, eram
instruídos a destruir as evidências
dos assassinatos em massa.
Um comando especial foi incumbido
de ir aos locais dos massacres
realizados pelos Einsatzgruppen.
REVISTA MORASHÁ i 85
Teriam que exumar e queimar
cadáveres e ossos e espalhar as
cinzas. Na maioria dos locais foram
construídas piras maciças. Cada pira
podia consumir 3.500 corpos
e ardia até dez dias. Mas a
quantidade de mortos enterrados
na ravina de Babi Yar não permitia
esse “modus operandi”. Lembrou
posteriormente o comandante da
operação: “A terra sobre a imensa
cova comum foi removida; os
corpos foram cobertos com material
inflamável e incendiados. Demorou
cerca de dois dias para que a tumba
ardesse até o fundo”.
A terrível tarefa foi realizada
por mais de 400 judeus e prisioneiros
de guerra soviéticos. Eles sabiam
que assim que o trabalho se
encerrasse todos seriam mortos,
sabiam que os nazistas não iriam
deixar testemunhas de seus crimes.
As mortes já vinham ocorrendo; no
primeiro mês, 70 dos prisioneiros
foram mortos em execuções
realizadas toda a noite pelos guardas,
para se divertirem.
Os prisioneiros famintos e doentes
trabalhavam com grilhões nos
tornozelos, guardados por SS
armados com submetralhadoras e
acompanhados por cães treinados
para matar. Os guardas dirigiam-se
aos judeus chamando-os de
“Leichen”, cadáveres. Mas, como
escreveu o historiador Reuben
Ainsztein, um dos principais autores
ingleses sobre o tema do Holocausto,
“naqueles homens seminus
impregnados de carne putrefata,
cujos corpos estavam comidos por
sarna e cobertos com uma camada
de lama e fuligem, e nos quais
restava tão pouca força física,
sobrevivia um espírito que desafiava
tudo o que os nazistas tinham
feito ou poderiam fazer-lhes. Nos
homens em quem as SS viam apenas
policial alemão revista as roupas de judeus assassinados. outubro de 1941
cadáveres andantes, maturava uma
determinação de que ao menos um
deles precisava sobreviver para contar
ao mundo o que haviam visto em
Babi Yar”.
Eles traçaram planos. Entre os
idealizadores, havia um soldado
judeu do Exército Vermelho,
Vladimir Davydov, que acabou
testemunhando em Nuremberg.
A escala de represália eliminava
fugas individuais. Após a fuga de
um soldado não judeu do Exército
Vermelho, Fyodor Zavertanny,
os alemães fuzilaram 12 dos
prisioneiros e o SS encarregado
dos guardas, que tinha
supervisionado o grupo de
Zavertanny. Uma fuga em massa
era a única esperança. Mas os
prisioneiros precisariam de um
milagre, pois para poder fugir
teriam que encontrar uma chave que
pudesse abrir o cadeado do bunker
onde eram trancafiados a noite.
Eles passaram a procurar por
quaisquer chaves que tivessem
sobrado dentre os milhares de
cadáveres apodrecendo e suas
roupas em decomposição. Em 20
de setembro, o milagre aconteceu:
57
um dos prisioneiros encontrou uma
chave que servia no cadeado.
Nove dias depois, no 3º aniversário
do massacre, 325 judeus e
prisioneiros de guerra soviéticos
fugiram. Desses, 311 foram
fuzilados durante a fuga e apenas
14 alcançaram esconderijos, quatro
ficaram por 20 dias em uma chaminé
de uma fábrica desativada e dois
foram escondidos sob o galinheiro
por duas ucranianas, Natalya e
Antonina Petrenko.
Em 6 de novembro, cinco semanas
após a fuga, os 14 sobreviventes
estavam entre os que recepcionaram
o vitorioso Exército Vermelho que
entrava em Kiev. Todos eles se
juntaram às fileiras. Quatro deles,
todos judeus, foram posteriormente
mortos em ação contra os alemães,
e dez sobreviveram à guerra. Dois
judeus, Vladimir Davydov e David
Budnik, prestariam depoimento, em
1946, no Tribunal de Nuremberg,
sobre o massacre de Babi Yar.
Atitude soviética
Na Kiev libertada, judeus
sobreviventes e familiares dos judeus
SETEMBRO 2014
SHOÁ
1
2
1. VANGOROD, UCRÂNIA. soldado ALEMÃO APONTA SEU RIFLE PARA UMA MULHER E SEU FILHO, 1942 2. VINNITSA, UCRÂNIA. SOLDADO ALEMÃO
ATIRA EM UM JUDEU EM UMA COVA COMUm, PROvaVELMENTE EM 1941
massacrados foram até a ravina,
no local da execução. Lembra
uma testemunha: “Descemos até o
fundo. Ficamos parados, chorando.
Juntamos os ossos queimados de
braços, pernas”. Após o Exército
Vermelho retomar o controle de
Kiev, Babi Yar foi transformado num
local de internamento de prisioneiros
alemães e operou até 1946, quando
foi totalmente demolido.
Nos anos seguintes ao término da
2ª Guerra, os judeus que retornaram
a Kiev, assim como os demais na
antiga União Soviética, quiseram
erguer um memorial em homenagem
aos judeus assassinados em Babi
Yar, mas essas tentativas foram
sistematicamente rechaçadas pelas
autoridades soviéticas.
Desde a retomada da cidade, o
governo desestimulou qualquer
ênfase ao massacre de Babi Yar como
sendo uma barbárie direcionada
apenas aos judeus – queriam que a
tragédia fosse lembrada como um
crime cometido contra a população
de Kiev e o povo soviético todo.
A primeira versão do texto sobre o
terrível massacre ocorrido em Kiev
mencionava os judeus. “Os bandidos
hitleristas cometeram assassinato em
massa da população judaica. Eles o
anunciaram em 29 de setembro de
1941, dizendo que todos os judeus
deveriam estar na esquina das ruas
Melnikov e Dokterev portando seus
documentos, dinheiros e valores.
Os carniceiros os conduziram a pé
para Babi Yar, apossaram-se de seus
pertences e lá os abateram a tiros”.
Mas ao ser oficialmente publicado, os
judeus não eram mais mencionados:
“Os bandidos hitleristas trouxeram
milhares de civis à esquina das ruas
Melnikov e Dokterev”.
Diversas tentativas de se erguer
um memorial judaico no local
dos massacres foram adiadas. Em
outubro de 1959, o escritor Viktor
Nekrasov publicou um artigo
protestando contra a intenção de
erguer um parque com um estádio de
futebol em Babi Yar e construir uma
represa na outra ponta da ravina.
Nos anos após o término da guerra,
Babi Yar enchera-se de entulho,
lama e água, formando, na descrição
de uma testemunha, “um lago
profundo imóvel... De longe, parecia
esverdeado, como se as lágrimas das
pessoas que lá tinham sido mortas
houvessem brotado do solo”.
As autoridades municipais de Kiev
concordaram, a princípio, em erguer
58
um monumento, mas insistiam em
que fosse dedicado aos cidadãos
soviéticos, sem mencionar o fato de
serem judeus. No final, até mesmo
essa decisão não foi levada adiante e
as obras da represa foram iniciadas.
Uma noite, em 1961, a represa
construída pela prefeitura ruiu e
torrentes de água, argila líquida e
lama, misturadas com restos de ossos
humanos, jorraram nas ruas de Kiev
abaixo. A enxurrada provocou vários
incêndios, destruiu uma garagem e,
ao atingir a estação de bondes, virou
os bondes, enterrando vivos todos os
que estavam na estação e a
bordo dos bondes. Nessa noite,
enquanto os soldados estavam
ocupados escavando em busca dos
mortos e procurando sobreviventes
na lama, uma segunda onda de argila
líquida irrompeu de Yar, causando
mais estrago e morte. Nos dois
desastres, 24 pessoas foram mortas.
Alguns dias depois, quando um
bonde passou pelo local do desastre,
uma velha ucraniana começou
repentinamente a gritar: “Foram os
judeus que fizeram isso. Estão se
vingando de nós”.
À medida que as décadas passaram,
muitos sobreviventes e os parentes
dos sobreviventes procuraram
REVISTA MORASHÁ i 85
1
2
1. MASSACRE DE BABI YAR 2. Dina Pronicheva foi dos poucos judeus a escapar com vida. aqui ela dá seu testemunho
retornar aos cenários de seu próprio
sofrimento ou de sua família. Para
os judeus da antiga União Soviética,
Babi Yar, assim como outros locais
de assassinato em massa de judeus,
tornaram-se lugares de peregrinação
solene. Visitar locais como Babi Yar,
em Kiev, Rumbuli, perto de Riga,
Ponar, fora de Vilnius, ou a cova da
Rua Ratomskaya, em Minsk, tornouse um meio de renovar e afirmar seu
sentido de identidade judaica.
Em setembro de 1966, decorridos
25 anos do massacre, Babi Yar se
tornou ponto de encontro para os
ativistas judeus. Nos anos seguintes,
os ativistas de várias partes do país
vinham participar do evento em
memória dos judeus assassinados,
atendendo às convocações,
a despeito do empenho das
autoridades em evitar qualquer
manifestação. Em 1971, no mínimo
1.000 pessoas participaram da
cerimônia de recordação.
O interesse em Babi Yar atingiu
seu ponto alto em 1961, no
Os testemunhos estão documentados
na obra de Martin Gilbert, “Holocausto,
História dos Judeus da Europa na Segunda
Guerra Mundial”.
1
20o aniversário do massacre, quando
o poeta russo Yevgeny Yevtushenko
publicou seu poema “Babi Yar”
na Literaturnaia Gazeta.
O poema se identificava com o
sofrimento judeu, particularmente
com as vítimas judias do nazismo,
insistindo que enquanto existisse
antissemitismo na ex-URSS
sua sociedade não poderia ser
genuinamente internacionalista.
O trabalho evocou um amplo
protesto, inclusive uma censura
do Premier Nikita Khrushchev.
A intelligentsia liberal, no entanto,
recebeu-o com aplausos, e o
compositor Dimitri Shostakovich
musicou-o em sua 13a Sinfonia,
que logo foi banida pelas
autoridades.
Somente em 1976, ergueu-se
um monumento, mesmo assim,
sem fazer qualquer menção específica
às vítimas judias, referindo-se apenas
“aos cidadãos de Kiev e prisioneiros
de guerra”. Apenas após o advento
da Perestroika, a política soviética
mudou. No final da década de 1980,
colocou-se uma placa em iídiche,
sem, no entanto, haver menção
especial aos judeus. Em 1988, o
aniversário da aktion de setembro
de 1941 foi relembrado em grande
escala em uma manifestação em
59
Moscou e outra em Babi Yar.
Em setembro de 1991, grupos
ucranianos e judaicos, patrocinados
pelo governo da Ucrânia,
organizaram em Kiev um evento de
grande porte em memória dos judeus
assassinados em Babi Yar.
Nas principais ruas foram colocadas
fotos dos judeus mortos, houve
vários dias de conferências,
encontros, exposições, concertos e
discursos, além da publicação de
um livro-memorial. No dia 29 foi
inaugurado um monumento em
feitio de menorá.
Em junho de 2013, o Fórum
Mundial de Judeus de Língua Russa
anunciou que um novo complexo
memorial será erguido no local do
massacre de Babi Yar. Além de um
centro judaico e de uma sinagoga,
haverá uma exposição de material
histórico com roupas e pertences dos
judeus assassinados, documentos dos
arquivos nazistas e entrevistas com
sobreviventes.
BIBLIOGRAFIA
Brandon, Ray (Editor), Lower, Wendy
The Shoah in Ukraine: History, Testimony,
Memorialization , Indiana University Press
Gilbert, Martin “Holocausto,
História dos Judeus da Europa na Segunda
Guerra Mundial”, Editora Hucitec
SETEMBRO 2014
ISRAEL
O drama dos refugiados:
palestinos e judeus
POR Sergio D. Simon
A recente guerra de Israel contra o Hamas em Gaza
chamou novamente a atenção do mundo para a situação
dos refugiados palestinos. Inúmeras personalidades
políticas, artísticas e da imprensa, de todos os continentes,
pronunciaram-se sobre o assunto, muitas vezes com
pouquíssimo conhecimento de causa, censurando Israel pelo
tratamento que tem sido dado aos refugiados palestinos.
E
squecem-se estas pessoas
que a situação atual
não pode ser isolada
de todo um contexto
histórico que a precedeu
e que levou ao explosivo estado
atual. A situação de hoje não é de
responsabilidade exclusiva de Israel,
mas sim de vários personagens da
política do Oriente Médio.
A rainha Rania al Abdullah da
Jordânia publicou recentemente
um artigo em vários jornais do
mundo, inclusive n’ O Estado de
São Paulo, condoendo-se pela
situação dos refugiados palestinos
e exortando os leitores a apoiar
a causa e fazer doações para as
entidades internacionais que cuidam
desses refugiados. Em uma resposta
espontânea, escrevi à rainha Rania
uma carta aberta na qual sustento
que a situação dos palestinos não
é de responsabilidade exclusiva do
Estado judeu, mas em grande parte
é devida ao tratamento que o Reino
Hachemita da Jordânia dispensou a
eles desde a fundação do Estado de
Israel, em 1948. Para minha surpresa,
essa carta espalhou-se rapidamente
pela internet, tendo sido traduzida
e publicada em inúmeros países e
causando uma enxurrada de e-mails
que entopem minha caixa postal
há 3 semanas. Creio que o que
tocou as pessoas nessa carta foi
uma pequena explanação histórica
sobre o papel do reino da Jordânia,
em especial do rei Hussein (sogro
da rainha Rania), na criação
e manutenção dos refugiados
palestinos. Gostaria aqui de discorrer
um pouco mais sobre o assunto,
mostrando também o que se passou
com os refugiados judeus de países
árabes que foram absorvidos pela
sociedade israelense.
Passei o ano de 1968 morando em
Israel, no Machon le Madrichei
Chutz Laaretz. Eram tempos
60
gloriosos para Israel, logo após
a Guerra dos Seis Dias, com a
reconquista da santa Cidade Velha de
Jerusalém pelo exército de Israel.
Se por um lado estávamos todos
exultantes com a recente vitória,
um incidente me tocou fortemente:
durante uma excursão do Machon,
nosso ônibus foi cercado na cidade
de Jenin (Shchem) por uma multidão
de mulheres e meninas adolescentes,
que furiosamente erguiam seus
punhos contra nós e gritavam slogans
contra os invasores. O olhar de ódio
que presenciei naqueles rostos me
fez entender que o problema do
território palestino teria que ser
resolvido rapidamente por Israel, sob
o risco de este se tornar o grande
entrave para o desenvolvimento do
Estado de Israel. Desde então tenho
lido e me interessado constantemente
pelo assunto, sempre surpreso pela
inabilidade dos países árabes em pelo
menos tentar resolver esta situação.
REVISTA MORASHÁ i 85
Imigrantes judeus chegando a Haifa, vindo dos campos de detenção britânicos em Chipre, 1949
A manutenção dos refugiados
palestinos como párias da sociedade
sempre foi de interesse político
para os vizinhos de Israel. Quando
da Declaração da Independência
de Israel, seguida da Guerra da
Independência, em 1948, cerca de
70% da população que vivia no
território declarado como Estado de
Israel refugiou-se em países árabes
vizinhos, alguns por medo, muitos
por orientação das rádios árabes
vizinhas e uma parte expulsa pelo
próprio exército de Israel. Estimase que o total chegasse a mais de
700.000 pessoas, na época. Quase
todos se refugiaram na Jordânia
(principalmente na margem
ocidental), em Gaza, na Síria e no
Líbano, com muito poucos tendo
conseguido chegar ao Egito. A
United Nations Relief and Works
Agency (UNRWA) contabilizou
na época 711.000 pessoas como
refugiados palestinos, sendo que a
resolução 194 da ONU, de dezembro
de 1948, reconhecia o direito de
retorno a estes refugiados e a todos
os seus descendentes em linha
patrilinear. Dos 711.000 refugiados
originais de 1948 restam atualmente
apenas cerca de 30.000 pessoas vivas,
mas seus descendentes diretos por
linhagem patrilinear alcançam hoje
quase 5.000.000 de pessoas.
Ao invés de abrigar estes refugiados,
a maioria desses países sempre os
tratou não como “irmãos”, mas como
cidadãos de segunda categoria, sem
possibilidade de absorção em suas
sociedades. Em especial no Líbano,
em Gaza e na Jordânia os refugiados
palestinos foram instalados em
“campos provisórios” de refugiados,
que nada mais eram do que campos
de concentração, cercados por arame
farpado, onde condições desumanas
de vida eram oferecidas. Estes
campos, quase todos ao longo da
fronteira com Israel, serviram por
décadas como uma arma política útil
61
para se conseguir concessões políticas
e doações da ONU. Jamais se propôs,
para estes refugiados, um plano de
educação, capacitação e absorção
progressiva na sociedade local.
Estas condições subumanas de vida
eram o caldo ideal para a criação
dos movimentos terroristas entre os
refugiados. O mais conhecido deles,
sem dúvida, é a Organização para
a Liberação da Palestina (OLP).
Fundada no Cairo durante a Cúpula
da Liga Árabe, em 1964, e dirigida
a partir de 1969 por Yasser Arafat, a
Carta original da OLP pedia a luta
armada contra Israel e o direito de
retorno para os refugiados palestinos.
Montada com forte estrutura
de guerrilha (seus combatentes
guerrilheiros conhecidos na época
como “fedayin”), a OLP realizou
sangrentos atentados contra Israel,
atacando frequentemente kibutzim e
moshavim, além de escolas infantis,
ataques em estradas e o famoso
SETEMBRO 2014
ISRAEL
pacificamente com o Estado
judaico. Foi criada, nessa ocasião,
a Autoridade Nacional Palestina,
órgão que governaria os territórios
palestinos da Cisjordânia e de Gaza.
a autoridade real. Em nome da
estabilidade política local, o Rei
Hussein atacou diretamente a
população palestina na Jordânia, em
setembro de 1970, no episódio que
ficou conhecido como Setembro
Negro. Nesta luta, que durou 10
meses, cerca de 20.000 palestinos
foram mortos pelos jordanianos,
segundo Arafat (os números variam
de acordo com as fontes, mas foram
muitos milhares de palestinos,
seguramente). A direção da OLP
teve que deixar o país, instalando-se
então em Damasco e Beirute.
O acordo de Oslo progrediu
lentamente nos meses subsequentes,
mas foi seriamente comprometido
pelo assassinato de Yitzhak
Rabin, em 1995 (por Ygal Amir,
um ultranacionalista da direita
israelense). Esta sequência de
conversas de paz entre palestinos
e israelenses terminou em julho
de 2000, quando Arafat e Ehud
Barak, então primeiro ministro de
Israel, não conseguiram chegar a um
acordo na Cúpula de Camp David,
novamente sob os auspícios de Bill
Clinton. A péssima administração
de Arafat e da Autoridade Palestina,
com inúmeras acusações de
corrupção, nepotismo, ligações com
o terrorismo palestino e absoluta
falta de um mínimo de princípios
de democracia fez com que Arafat
perdesse a confiança de Israel e dos
Estados Unidos. Em 2004, Arafat,
por forte pressão internacional,
passa o poder para Mahmoud
Abbas, considerado um líder pouco
expressivo, mas moderado, e que até
hoje lidera a Autoridade Palestina.
A OLP-Fatah, ao longo dos anos,
acabou mudando sua postura em
relação à destruição do Estado
de Israel, tendo Arafat passado a
aceitar a coexistência de um Estado
palestino ao lado do estado judaico.
Em 1993, Yasser Arafat e Yitzhak
Rabin, então primeiro ministro de
Israel, terminaram por assinar, sob as
vistas do presidente americano Bill
Clinton, os Acordos de Oslo. Neste
documento, Israel se comprometia
a gradualmente retornar o território
conquistado em 1967 para as
mãos da OLP e os palestinos se
comprometiam a aceitar e conviver
O Hamas, por sua vez, é
uma organização de caráter
fundamentalista islâmico de origem
sunita, proveniente da Irmandade
Muçulmana, tendo sido fundada em
1987 pelo Sheik Ahmed Yassin.
O Hamas conta com um braço
armado terrorista conhecido como
Brigadas Izz ad-Din al-Qassam
(ou Brigadas Al-Qassam). O Hamas
prega em sua Carta de Princípios
a eliminação completa do Estado
judaico, o estabelecimento de um
Estado islâmico fundamentalista
e o direito de retorno para todos
os descendentes de palestinos ao
Árabes da Galileia em uma estrada na Alta Galileia, outubro de 1948 (David Eldan)
massacre da delegação israelense
aos Jogos Olímpicos de 1972,
em Munique, levada a cabo pela
organização Setembro Negro. Ao
longo do tempo, a OLP tornouse uma organização complexa,
abrigando vários outros grupos
palestinos de diversas tendências,
tais como a PFLP - Frente Popular
para a Liberação da Palestina (de
orientação marxista-leninista,
fundada pelo Dr. George Habash,
um palestino cristão, em 1967) e a
DFLP - Frente Democrática para a
Liberação da Palestina (de orientação
ainda mais esquerdista, maoísta,
fundada por Nayef Hawatmeh em
1969), além de vários outros grupos
menores, de orientação política
variada.
Esta mistura ideológica resultou
em dificuldades, evidentemente.
Ao Reino Hachemita da Jordânia
não interessava toda essa ebulição
política dentro de seu território. A
OLP (que se juntara ao movimento
Fatah em 1967) passara a ser uma
força civil que dominava importantes
áreas da Jordânia, fazendo controles
e bloqueios de estradas e tentando
sempre humilhar os soldados e
62
REVISTA MORASHÁ i 85
que é hoje o território israelense.
A Carta nega ainda a possibilidade
de conversações de paz com Israel,
alegando que a Jihad é a única
opção possível na luta pelo Estado
islâmico. Conclama todo palestino
a lutar contra o “inimigo que age
como os nazistas”, condenando todos
os judeus à morte, sejam militares,
idosos, mulheres ou crianças. Em
vários de seus capítulos, a Carta fala
da influência maligna dos judeus
sobre a história da humanidade,
culpando-os por todos os grandes
eventos históricos recentes (inclusive
a Revolução Francesa!), numa clara
posição racista anti-judaica e não
apenas anti-Israel. Esta Carta de
Princípios nunca foi modificada e,
devido aos seus ataques terroristas
contra a população civil de Israel,
tanto o Hamas como as Brigadas
Al-Qassam são consideradas
organizações terroristas pelos
Estados Unidos e pela Europa.
Além de seu braço político, o Hamas
mantém uma rede de assistência
social para os empobrecidos
palestinos, oferecendo escolas
e creches. Isto fez com que
ganhasse apoio da população
local, principalmente em Gaza,
e consequentemente vencesse as
eleições locais em 2006, derrotando
o Fatah. Desde 2007 o Hamas
governa Gaza e o Fatah governa
a Cisjordânia, com altos e baixos
no relacionamento entre os dois
grupos. Agora, em 2014, o Hamas e
o Fatah anunciaram que novamente
estavam se unindo pela luta do povo
palestino, mas na prática esta “união”
foi interrompida pela guerra de Israel
contra o Hamas.
date dos tempos bíblicos, da época
do exílio babilônico, há quase
3.000 anos. Os primeiros judeus
chegaram ao Marrocos há 2.000
anos, quando da destruição do
Segundo Templo pelos romanos,
no ano 70 E.C., tendo influenciado
profundamente a cultura berbere
local. E há também indícios de que
os judeus não sairam todos do Egito
com Moisés, tendo restado algumas
cidades judaicas no sul do país, por
volta de 1250 A.E.C.
Em todos esses países de crença
muçulmana os judeus viviam
geralmente como uma categoria
especial de cidadãos, às vezes
protegidos pelo governante local, às
vezes perseguidos. Mas raramente
se observava migrações maciças por
perseguição em massa. Uma exceção
talvez tenha sido o êxodo dos judeus
do Marrocos no séc. 19, quando as
perseguições contra eles se tornaram
constantes e ameaçadoras. Isto, aliado
à pobreza e falta de perspectiva para
os jovens, fez com que boa parte da
população judaica emigrasse a partir
de 1810 para lugares distantes como
a Amazônia brasileira, o Peru e a
Venezuela.
Os refugiados judeus
Os judeus habitaram os países árabes
desde tempos imemoriais. Estima-se
que o judaísmo no Irã (antiga Pérsia)
Imigrante se movendo para uma nova
casa em Yahud, 1948 (Kluger Zoltan)
63
Assim como populações de
árabes foram deslocadas com o
estabelecimento do Estado de
Israel, as enormes comunidades
judaicas dos países árabes também
terminaram expulsas. Muito antes
do estabelecimento de Israel, as
populações judaicas passavam por
constrangimentos e perseguições,
muitas vezes similares aos pogroms
da Europa (inúmeras matanças em
Shiraz, Alepo, Fez, entre outras).
Calcula-se que perto de 1.000.000
de judeus de países árabes e
muçulmanos acabaram expulsos
de sua terra natal após a criação
de Israel, sendo que a maior parte
terminou migrando para Israel. A
França recebeu cerca de 250.000
desses refugiados.
As primeiras ondas migratórias
substanciais para o Estado de Israel
se deram a partir do Iêmen e do
Iraque. Calcula-se que entre 1948
e 1951 chegaram a Israel cerca de
250.000 refugiados destes países. Em
1970, mais de 600.000 imigrantes
judeus de países árabes já haviam se
estabelecido em Israel. Estas ondas
migratórias não foram simultâneas.
Enquanto Iraque e Iêmen foram
as grandes imigrações iniciais, a
expulsão dos judeus do Egito foi
um pouco mais tardia, com seu pico
em 1956, durante e logo após a
Campanha do Sinai. Desta mesma
época data o êxodo maior dos judeus
do Marrocos.
O Líbano foi o único país árabe a
ver um aumento de sua comunidade
judaica nos anos 50, com imigrantes
vindos principalmente da Síria. Já
em 1947, após a queima de sinagogas
e do assassinato de 75 judeus por
muçulmanos em Alepo, cerca de
metade da população judaica deixara
o país, principalmente em direção a
Beirute. Logo após a independência
SETEMBRO 2014
ISRAEL
menos de 15 anos toda aquela
multidão foi absorvida pela sociedade
israelense. No censo de 2003, os
descendentes desses imigrantes
judeus de países árabes somavam
cerca de 60% da população total de
Israel.
2
Imigrantes do Iêmen celebram seu primeiro “Tu Bishvat” em Israel
de Israel em 1948, o então presidente
sírio Husni al Zaim permitiu a saída
pacífica de grande número de judeus,
novamente a maioria indo em direção
ao Líbano e cerca de 5.000 chegando
a Israel. Esta passagem pelo Líbano,
no entanto, foi transitória, e após
a Guerra Civil libanesa, nos anos
70, já praticamente não havia uma
comunidade judaica em Beirute.
Os judeus chegaram a Israel sem
nada possuir, uma vez que todos os
bens materiais, como imóveis, terras,
dinheiro e jóias, foram proibidos de
deixar a maioria dos países árabes.
Muitos chegavam com um nível
social e educacional muito baixo,
como os judeus iemenitas e, mais
tarde, os etíopes, porque assim eram
as condições destas comunidades
nesses países. Mas muitos tinham
algum grau de educação e uma
pequena quantidade deles chegavam
a ter um ótimo nível educacional,
apesar de educação universitária não
ser uma tradição entre eles, como era
em algumas comunidades européias.
Israel foram inicialmente alojados
em acampamentos temporários,
que eram chamados de Ma’abarot
(do hebraico ma’avar = em trânsito;
aliás, a mesma raiz da palavra Ivrim,
hebreus). A intenção do Estado de
Israel, no entanto, era absorver e
integrar rapidamente estes refugiados
à nova sociedade israelense. As
ma’abarot tinham serviços contínuos
de saúde, higiene, alimentação e
educação, e várias destas ma’abarot
transformaram-se em novas
cidades (Kiriat Pituach = cidade
em desenvolvimento), modernas e
totalmente urbanizadas (as cidades
atuais de Kiriat Shemona, Sderot
e Migdal HaEmek, por exemplo,
começaram como ma’abarot). Apesar
das condições difíceis desse início
da imigração dos refugiados judeus
(aliás, toda a sociedade israelense
passava por enormes dificuldades
no início da criação do Estado) e da
vida sofrida dentro de tendas de lona
ou de lata, sob o calor escaldante
de Israel, o modelo de absorção de
imigrantes revelou-se um sucesso.
Tal como os palestinos, os cerca
de 700.000 refugiados judeus em
A última ma’abará foi finalmente
fechada em 1963 – ou seja, em
64
A perda material dos refugiados
judeus foi enorme, evidentemente.
A World Organization of Jews from
Arab Countries (WOJAC) estimou
em 2007 que estes bens somariam
cerca de 300 bilhões de dólares, em
valores atualizados. Jamais houve
qualquer menção de compensação
financeira por parte dos governantes
de países árabes.
Não há paralelo possível entre os dois
grupos de refugiados, árabes e judeus.
As condições históricas que levaram
à formação destas duas populações
foram totalmente diferentes.
Enquanto os palestinos saíram do
território israelense por incitação dos
líderes de países árabes vizinhos, por
medo e por expulsão pelo exército
de Israel, os judeus deixaram os
países árabes em condições mais
complexas: muitos almejavam uma
vida melhor na Terra de Israel,
concretizando o seu sonho sionista,
enquanto outros foram expulsos em
curto prazo de tempo, de maneira
violenta. Um grupo não serve de
“moeda de troca” do outro – tal
comparação não seria justa. O que se
pode comparar, sim, foi o processo de
absorção e acolhimento que as duas
populações receberam: os palestinos
continuam como refugiados há
quase 70 anos, sem solução à vista
para seu problema, enquanto que
os refugiados judeus se mesclaram
e se integraram numa sociedade
moderna, dinâmica e em constante
transformação.
Sergio D. Simon é médico e presidente
do Museu Judaico de São Paulo.
COMUNIDADES
Judeus na Ucrânia
no século 20
No início do século 20, os judeus viviam em quase todas as
cidades da Ucrânia. Segundo o primeiro censo geral, realizado
no Império Russo em 1897, 1 milhão e 930 mil judeus viviam
no território da atual Ucrânia sob o domínio dos czares,
representando 9,2% do total da população. Os maiores grupos
populacionais viviam no oeste e sudoeste do país. Mais de um
terço da população judaica da Ucrânia Ocidental e Central
ainda vivia em shtetls, onde era maioria absoluta .
n
o início do século
20, a Rússia czarista
passava por uma
grave crise políticosocial. O império, que
desde o final do século 19 vivia uma
abrupta transição do feudalismo para
o capitalismo e uma rápida
industrialização, ainda era governado
por uma monarquia autocrática,
sistema político arcaico que se
chocava com o modelo econômico
de capitalismo. Ademais, eram
insustentáveis as desigualdades entre
a privilegiada e poderosa classe de
nobres e o restante da população do
Império, composta em sua maioria
por camponeses paupérrimos que, até
sua emancipação, em 1861, haviam
vivido em regime feudal de servidão.
A falta de condições de sobrevivência
no campo levara um número cada
vez maior deles a abandonar a zona
rural. Nas cidades, eles se juntavam
às fileiras das descontentes massas
operárias urbanas submetidas a
condições de trabalho e de vida
extremamente duras. A burguesia
também estava insatisfeita com
o status quo, em especial face aos
entraves impostos pelo governo às
suas atividades e a falta de acesso
à vida política. E, à medida que as
ideologias socialistas e liberais iam
permeando o país, crescia a convicção
de que a situação econômica e social
só seria resolvida através de radicais
mudanças políticas.
A situação dos judeus russos era a
mais precária. Além da pobreza e dos
problemas econômicos e sociais, o
antissemitismo e os pogroms eram
sancionados pelo governo czarista.
Os que moravam no território da
atual Ucrânia não eram exceção, pelo
contrário, pois o ódio dos ucranianos
pelos judeus conseguia superar o
antissemitismo russo.
65
Os pogroms de 1881-1884,
ocorridos em grande parte em
terras ucranianas, e as Leis de Maio
haviam abalado profundamente os
judeus de todo o Império. Ademais,
o czar Nicolau II manipulava o
sentimento antijudaico das massas,
tentando convencê-los de que todos
os “males da Rússia” eram causados
pelos judeus. Panfletos e jornais
com propaganda antissemita eram
impressos, em sua maioria, nas
tipografias do governo, inclusive os
famigerados Protocolos dos Sábios
de Sião, que eram distribuídos por
todo o Império.
Entre os judeus também crescia
a convicção de que sua situação
só melhoraria se houvesse uma
mudança política. O despertar social
das massas judaicas deu origem
a um grande número de partidos
socialistas judeus. Entre eles, o Bund
e o Poalei Tsion (Trabalhadores de
SETEMBRO 2014
COMUNIDADES
sinagoga de Drohobych
Sion), um partido socialista-sionista.
Surge também o Movimento
Autonomista (também conhecido
como Nacionalismo da Diáspora).
Sua meta era criar uma forma
secular e modernizada de autonomia
nacional judaica na Ucrânia do
século 20.
intelectual judaico. Um grande
número de intelectuais e ativistas
se reunia em torno do Movimento
Sionista e participava ativamente no
trabalho de suas instituições. Entre
os pensadores sionistas da época se
destacavam Lev Pinsker e Achad
Ha’am.
Havia muitos judeus, porém, que
acreditavam que não havia futuro
para os judeus no Leste Europeu,
qualquer que fosse o sistema
político. Acreditavam que os judeus
só poderiam viver dignamente em
Eretz Israel. Os primeiros passos
do sionismo moderno foram,
efetivamente, dados na Ucrânia,
articulados principalmente pelo
Movimento Bilu1. Em Odessa,
o Movimento Sionista funda uma
influente organização, que atraiu
grupos de jovens intelectuais de
todas as partes da Zona de
Residência2. Odessa, que contava
com uma numerosa e influente
comunidade, tornara-se um centro
A Revolução de 1905
No ano de 1905, o
descontentamento, as greves e as
manifestações que se alastraram por
todo Império czarista culminaram
na Revolução Russa de 1905. Em
janeiro daquele ano, uma marcha
espontânea, contando com mais
de um milhão de pessoas, dirigiuse ao Palácio de Inverno do czar
Nicolau II, em São Petersburgo. Os
manifestantes reivindicavam, entre
outros pontos, liberdades civis e o fim
da censura. Os guardas do palácio
metralharam os manifestantes
para impedir que a multidão se
aproximasse, originando um terrível
66
massacre que ficou conhecido como
“Domingo Sangrento”.
Diante do clima de revolta, o czar
lançou um manifesto que garantia
liberdades civis básicas e criava a
Duma – uma Assembleia Legislativa
que congregava representantes de
todas as classes sociais e permitia
a ação de partidos políticos. Dois
anos antes, em 1903, ainda na
clandestinidade, o Partido Operário
Social Democrata Russo (POSDR),
o mais importante dentre os
partidos russos, havia-se dividido
em dois: o Partido Menchevique e o
Bolchevique. Esse acontecimento foi
crucial para o futuro da Rússia. Mais
moderado, o Partido Menchevique
adotara uma interpretação
ortodoxa do pensamento marxista
e defendia uma reforma política e
econômica gradual, com o apoio
da burguesia. Por outro lado,
o Partido Bolchevique, mais radical e
majoritário, defendia uma revolução
proletária na qual o governo seria
REVISTA MORASHÁ i 85
diretamente controlado pelos
trabalhadores.
Para os judeus, a crise de 1905 teve
consequências dramáticas. O governo
czarista passou a instigar a violência
contra os judeus e, bandos de rua
armados (as Centúrias Negras)
atacaram judeus em dezenas de
cidades e vilarejos. No período de
1903 a 1907 ocorreram 691 pogroms
que deixaram milhares de vítimas.
Cerca de 660 ocorreram na Ucrânia e
Bessarábia, o mais violento em Kiev.
Na época viviam em Kiev cerca de
80 mil judeus. A violência só cessou
em 1907, mas continuou a campanha
antissemita do governo czarista,
incitando o ódio aos judeus.
O caso Beilis
O Caso Beilis, ocorrido na Ucrânia
entre 1911 e 1913, foi uma clara
demonstração dos sentimentos
antijudaicos do governo czarista.
No dia de Tisha B’Av de 1911,
Mendel Beilis, um judeu de Kiev,
é preso sob a acusação de matar
um jovem cristão por “motivos
religiosos”. A prisão ocorreu dois
meses após ter sido encontrado o
corpo mutilado de um garoto cristão
de 12 anos, Andrei Yushchinsky.
Os verdadeiros assassinos – uma
gangue de ladrões – já estavam na
custódia da polícia, no entanto,
as forças reacionárias haviam
conseguido que o então ministro
da Justiça, I.G. Schcheglovitov,
declarasse que o assassinato
havia sido perpetrado por “razões
religiosas”. A Procuradoria de
Kiev manda libertar os verdadeiros
assassinos e, publicamente, acusa
Beilis e todo o Povo Judeu pelo
crime hediondo. Nicolau II, ao
receber a notícia da prisão de Beilis,
demonstra, publicamente, sua
profunda satisfação em saber que um
judeu fora acusado.
A imprensa de direita orquestra uma
intensa campanha difamatória contra
os judeus. Não era a primeira vez,
nem a última, que as autoridades
os usavam como bode expiatório,
nem tampouco era a primeira vez
que explorava uma acusação para
fins políticos. Mas nunca antes uma
campanha de difamação atingira
tamanha intensidade. Em outubro
de 1913, logo após Yom Kipur,
inicia-se, em Kiev, o julgamento de
Beilis. Supreendentemente, porém, e
apesar das pressões e manipulações,
um júri popular, composto em sua
maioria por camponeses, declara
Beilis inocente. Mas as suspeitas de
que os judeus eram “maus e traidores”
estavam profundamente arraigadas
no subconsciente da população.
A imprensa de direita
orquestra uma intensa
campanha difamatória
contra os judeus.
Não era a primeira vez,
nem a última. em que as
autoridades os usariam
como bode expiatório,
nem tampouco era
a primeira vez que
se explorava uma
acusação para fins
políticos
A 1ª Guerra Mundial
A Ucrânia foi palco de sangrentas
batalhas durante a 1ª Guerra, com
intensos combates na Ucrânia
Ocidental. A entrada da Rússia
na Guerra acelerou o colapso do
Império Czarista. Os exércitos do
czar, que não estavam preparados
para enfrentar o poderio militar
da Alemanha, sofrem uma derrota
atrás da outra. Na frente ucraniana,
à medida que as forças russas iam
debandando, seus soldados atacavam
as populações judaicas.
Em fevereiro de 1917, a miséria
e as derrotas sofridas nos campos
de batalha levaram o povo a se
revoltar. Em 15 de março, as forças
de oposição (liberais, burguesas e
socialistas) depuseram Nicolau II,
dando início à Revolução Russa
de 1917. Nessa primeira fase,
conhecida como Revolução de
Fevereiro ou Revolução Branca, foi
estabelecida uma república de cunho
liberal. Mas teve vida curta, pois,
em novembro daquele mesmo ano,
o Partido Bolchevique derrubou
67
mendel BEILIS
SETEMBRO 2014
COMUNIDADES
No início da 1ª Guerra Mundial viviam nessa cidadezinha ucraniana 15 mil judeus
o governo provisório. A Revolução
de Outubro, como é chamada, impôs
o governo socialista soviético.
A implantação do regime bolchevique
desencadeou uma guerra civil. Para os
judeus, com a Revolução Bolchevique
foram abolidas as restrições que os
confinavam à “Zona de Residência”.
Apesar dos bolcheviques serem
contrários à religião – fosse ela cristã
ou judaica – eles se opunham, em
teoria, ao antissemitismo e a qualquer
forma de discriminação contra os
judeus ou contra qualquer outra
minoria. Em 1918 o Conselho dos
Comissários do Povo adotou um
decreto condenando todo tipo de
antissemitismo e conclamando os
operários e camponeses a combatê-lo.
Uma batalha pela
Ucrânia – 1917 a 1921
A 1ª Guerra Mundial viu o colapso
dos Impérios Austríaco e Russo e o
crescimento do movimento nacional
pela autodeterminação da Ucrânia.
Logo após a Revolução Bolchevique
inicia-se, na Ucrânia, uma luta
militar pelo controle da região entre
forças ucranianas nacionalistas próindependência e os bolcheviques
ucranianos que queriam estabelecer
na região o domínio soviético. Uma
luta semelhante à que hoje está sendo
travada na região.
Do conflito participaram, também,
forças militares de outras nações: o
Exército Branco anti-bolchevique
e o Exército Vermelho que se
enfrentavam na guerra civil russa, os
exércitos da Alemanha, da ÁustriaHungria e da Polônia, além de vários
bandos anarquistas de cossacos.
Os ucranianos nacionalistas
estabeleceram-se em Kiev, onde
criaram um Conselho Nacional
(Rada), que, em janeiro de 1918,
proclamou a independência da
República Nacional da Ucrânia
(RNU) e sua separação da Rússia.
As facções ucranianas bolcheviques,
no entanto, boicotaram as iniciativas
do governo e instigaram conflitos
armados, querendo estabelecer o
poder soviético na região.
Em dezembro de 1917, um exército
de 30 mil homens da Guarda
68
Vermelha3 russa pôs-se em
marcha em direção à Ucrânia
para ajudar as facções pró-soviéticas.
A República Socialista Soviética
da Ucrânia (RSSU), pró-soviética,
é criada em 1919, tendo Cracóvia,
ou Kharkiv, como capital. Naquele
mesmo ano, o território ucraniano
é invadido a leste pelos soviéticos e,
em 1920, a oeste pela Polônia. Em
1921, o Exército Vermelho já havia
conquistado dois terços da Ucrânia e
a RNU é anexada à RSSU.
A luta pela independência nacional
ucraniana terminou com uma
Ucrânia dividida e subjugada
por outras nações. A República
Socialista Soviética da Ucrânia passa
a integrar a ex-URSS. E a Polônia
anexa a República Nacional do Oeste
da Ucrânia, inclusive Lviv, que havia
sido criada na Galícia, em 1918.
Com esse desmembramento do
território ucraniano, um número
considerável de judeus ficou sob
domínio polonês, mas a grande
maioria, mais de 1,5 milhão, ficam
sob domínio soviético.
REVISTA MORASHÁ i 85
Os judeus e a guerra
pela independência
A guerra pela independência constitui
um capítulo especial na história dos
judeus da Ucrânia. Muitos haviam
aderido ao movimento nacionalista
ucraniano, o que fez com que fosse
substancial a participação judaica na
luta pela independência ucraniana.
Na Galícia Oriental, por exemplo,
ucranianos e judeus lutaram
conjuntamente contra as forças
polonesas.
Os partidos políticos judaicos das
mais diferentes ideologias – dos
socialistas judaicos aos revisionistas
sionistas – uniram-se à Rada.
Querendo melhorar as relações com a
população judaica, e manter seu apoio
na luta pela independência, políticos
ucranianos comprometeram-se a dar
aos judeus igualdade plena, direitos
comunitários e individuais, e uma
autonomia comunitária. Prometeram,
também, a indicação de um ministro
de Assuntos Judaicos no Gabinete
ucraniano, a destinação de uma
parcela de impostos estaduais para
programas educacionais judaicos e
outros propósitos, e a declaração do
iídiche como um idioma oficial do
Estado.
Após a declaração de independência
da República Nacional da Ucrânia, os
judeus passaram a ser representados
na Rada por 50 delegados; foi
estabelecida uma Secretaria de
Assuntos Judaicos, nomeado um
ministro e aprovada uma lei sobre
“autonomia pessoal nacional”. Mas,
em julho de 1918, a autonomia foi
revogada e a Secretaria dissolvida.
Ademais, desde outubro de 1917
uma onda de violência contra a
população judaica alastrara-se
por toda Ucrânia, só terminando
em maio de 1921. Nesse período,
foram atacadas 530 comunidades
judaicas, na sequência de 887
pogroms, e mais de 156 mil judeus
foram brutalmente assassinados.
Todas as facções que lutaram durante
a guerra pela independência da
Ucrânia participaram, em maior
ou menor grau da violência, mas a
maior parte dos pogroms, cerca de
40%, foram perpetrados por tropas
ucranianas.
Durante o governo nacionalista
de Symon Petliura (1919-1920),
os pogroms foram uma constante.
Ao invés de coibir suas tropas,
Petliura fechou os olhos para a
violência antijudaica. Em 1926,
ele foi assassinado em Paris, onde
se refugiara, por um judeu da
Bessarábia, Sholem Shvartsbard,
que o considerava responsável
pelos pogroms. Após um julgamento
polêmico e controverso, ele foi
libertado. (Ver Morashá 77).
Hoje na Ucrânia Petliura é
considerado um herói nacional que
lutou pela independência ucraniana.
A Guerra Civil de 1918-21 trouxe
em seu bojo a maior violência,
não vista desde o século 17, contra
os judeus da Ucrânia. E, apesar
desses horrores hoje parecerem
mínimos perante o terror do
Holocausto, e, serem às vezes
relegados ao esquecimento, foram
das piores catástrofes da História
Judaica.
Poder soviético
Sob domínio soviético, a República
Ucraniana Socialista Soviética, a
Ucrânia, passou a ser uma das
15 repúblicas, que, em 1922,
formaram a União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS).
Era a segunda mais poderosa
república, econômica e politicamente,
superada apenas pela República
Socialista Federativa Soviética
da Rússia. No entanto, apesar
disso, ou talvez por causa disso,
era vítima de um tratamento
particularmente duro por parte do
governo central.
Viviam, então, na Ucrânia 1,5 milhão
de judeus, que representavam cerca
de 5% da população total. E, apesar
de 300 mil judeus terem deixado
a República para se estabelecer
delegação da comunidade judaica em Kolomyya recebe carlos i, imperador da
áustria e rei da hungria
69
SETEMBRO 2014
COMUNIDADES
em outras partes da então União
Soviética, representavam 60% do
total dos judeus que viviam na
URSS.
Era grande o número deles
nos grandes centros urbanos,
principalmente, em Kiev, Mykolaiv,
Kharkiv, Donetsk, Odessa e
Dnipropetrovs, que abrigava então
a segunda maior população judaica
da Ucrânia, depois de Kiev.
Na década de 1920, os judeus já
representavam 22% da população
urbana ucraniana.
O iídiche era o idioma falado por
97% dos judeus locais em 1897 e, em
1926, 76,3 % ainda o consideravam
a língua-materna. Nos primeiros
anos do domínio soviético, a Ucrânia
(juntamente com a Bielorrússia)
tornou-se um centro de cultura
iídiche desprovida de qualquer
conteúdo religioso. Escolas, teatros,
jornais e editoras foram fundados
como, também, o “Instituto
Judaico de Cultura Proletária na
Ucrânia”, vinculado à Academia
Ucraniana de Ciências. Coleções
judaicas etnográficas foram criadas
e ampliadas. No final da década de
1930, durante os expurgos stalinistas,
quase todas essas instituições foram
eliminadas.
A Ucrânia sempre foi vista com
desconfiança por Moscou. Os
líderes soviéticos sabiam que a
nacionalidade e a língua ucraniana
eram um elemento de grande peso,
e que teriam que enfrentar uma
contínua resistência e incessantes
insurreições, a menos que fizessem
grandes concessões à autonomia
cultural ucraniana.
No início da década de 1920,
o regime soviético, querendo
harmonizar seu relacionamento
com as repúblicas da ex-URSS,
adotou uma política chamada
korenizatsiya, cujo significado
era “nativização” ou, no sentido
literal, “arrancar raízes”. Sob o
lema “nacionalista em sua forma,
mas socialista em seu conteúdo”,
encorajava o desenvolvimento
das artes e da cultura das diversas
minorias, principalmente dos
idiomas reprimidos pelos governos
czaristas. Permitia, também, às
lideranças locais, ocuparem postos
administrativos nos governos
e na burocracia das respectivas
repúblicas. O objetivo era prevenir
o desenvolvimento de movimentos
antissoviéticos.
Apesar da ideologia marxista
questionar a legitimidade de uma
identidade nacional judaica, os judeus
foram incluídos na korenizatsiya.
Essa política gerou conflito entre
os judeus e os ucranianos. Sendo
eles a nacionalidade predominante,
os soviéticos encorajaram a
“ucranização” da República. Entre
outros, o idioma ucraniano tornouse o idioma oficial e aumentou o
percentual de ucranianos no Partido
Comunista local.
Os judeus optaram por se aproximar
dos russos, uma minoria nessa
república, mas a nacionalidade
dominante na então URSS.
Essa aproximação e o fato de
muitos judeus terem tido
participação na Revolução Russa
fez com que eles passassem a ser
associados com os bolcheviques e
a opressão soviética. Surge, então,
mais um elemento no imaginário
antissemita ucraniano: a figura do
“judeu-bolchevique”, isto é, do
“opressor judeu-comunista”.
Era Stalinista
1927 a 1953
A partir da subida ao poder de
Joseph Stalin, em 1927, a ex-URSS
70
sofreu uma transformação radical.
Stalin procurou reformar a sociedade
através de um planejamento
econômico agressivo realizado através
de planos quinquenais, que visavam
a coletivização da agricultura e uma
industrialização de base acelerada.
Com poder quase ilimitado, seu
governo, um brutal regime totalitário,
foi marcado por execuções e
expurgos múltiplos. Há historiadores
que acreditam que o número de
vítimas da era stalinista pode ter
chegado a 20 milhões. Todas as
armas eram utilizadas para eliminar
os “inimigos”. Se verdadeiros ou
imaginários, isto era irrelevante; a
sobrevivência do sistema de poder
criado por Lênin e Stalin dependia
de sua existência.
Para Stalin, a Ucrânia tornou-se um
laboratório de testes para o processo
de reestruturação soviética. Ademais,
ele estava decidido a eliminar o
sentimento nacionalista ucraniano,
que considerava uma ameaça ao
regime, e pôr um fim “ao problema
da lealdade ucraniana dividida”.
É indiscutível o antissemitismo de
Stalin, bem como a sua determinação
de se livrar, de alguma forma, dos
judeus enquanto judeus. Mas, até a
década de 1940, ele manteve uma
atitude pública cautelosa, já que
muitos dos principais bolcheviques
eram judeus ou casados com judias.
O que não o impediu, no entanto, de
perseguir qualquer manifestação do
espirito judaico.
Em 1929, Stalin dá início a uma
campanha contra a cultura ucraniana
e judaica, reprimindo brutalmente
os aspectos “nacionais” das duas
culturas. O russo, por exemplo,
substituiu o ucraniano em todos os
estabelecimentos oficiais. Os judeus
viram suas instituições culturais,
teatros e escolas serem fechados; e
REVISTA MORASHÁ i 85
as publicações judaicas reduzidas
ao mínimo. As atividades religiosas
e sionistas tiveram que ir para a
clandestinidade. No final da década
de 1930, a maioria dos envolvidos na
propagação da religião judaica ou do
sionismo haviam sido presas.
As perseguições contra opositores
políticos, intelectuais e escritores
– judeus e não judeus – atingiram
proporções absurdas. Milhares
foram presos, enviados ao exílio
ou executados. Após ter retirado
de circulação todas as pessoas
que poderiam se transformar em
líderes de qualquer movimento de
resistência, Stalin passa a atacar
o campesinato, o real núcleo das
tradições ucranianas. A “guerra”
travada contra os camponeses
ucranianos era, de certa forma,
empreendida contra a consciência
nacional ucraniana.
Em 1928, ele implantou uma
política de requisição compulsória
de cereais, que autorizava o
governo a se apropriar de todo o
cereal cultivado pelos camponeses,
pagando um preço muito abaixo
dos custos de produção. Em
seguida, deu início à coletivização
forçada das propriedades agrícolas.
Foi na Ucrânia que a política de
coletivização deparou-se com a
mais violenta resistência – que não
impediu, entretanto, que o processo
já estivesse praticamente completo
por volta de 1932.
Stalin também impôs metas de
produção e de confisco de grãos,
se fosse necessário, para atingir
tais metas, que só poderiam ser
alcançadas caso os ucranianos
parassem de se alimentar.
O resultado não deve surpreender: a
fome se alastrou e por volta de
5 milhões4 de ucranianos morreram
de fome entre 1932-1933.
em toda a ucrânia, judeus demonstram seu dinamismo comercial
Ainda na década de 1930, as
autoridades soviéticas estabeleceram
quatro distritos judaicos autônomos
no sul da Ucrânia e na Crimeia.
Foram implantadas amplas fazendas
coletivas, cujos membros eram, em
sua maioria, judeus. Sua criação
causou mais uma vez um grande
atrito entre judeus e nacionalistas
ucranianos. As fazendas funcionaram
até a 2ª Guerra Mundial, quando
forças alemãs as ocuparam e
mataram seus habitantes.
A Shoá
Na Ucrânia, entre 1,4 e 1,5 milhão
homens, mulheres e crianças foram
assassinados – a maioria executados a
tiros pelos Einsatzgruppen5.
Para os judeus da República
Ucraniana, o pesadelo nazista
teve início no dia 22 de junho
de 1941, quando a Alemanha deu
início à Operação Barbarossa, a
invasão da União Soviética. Esse
acontecimento foi decisivo no
Holocausto, pois deu início ao
genocídio sistemático de judeus, com
a destruição metódica e organizada
de comunidades inteiras, mesmo
antes de entrarem em funcionamento
as câmaras de gás.
71
O avanço para o Leste das forças
nazistas foi rápido; em apenas dois
meses conquistaram a Ucrânia, o
leste da Polônia, a Letônia, Estônia
e Lituânia, a Bielorrússia e o oeste
da República Russa. À medida
que os alemães avançavam e forças
soviéticas batiam em retirada,
milhões de militares e civis – judeus
e não judeus – eram evacuados ou
fugiam mais para o Leste. Mas nem
todos conseguiram. Historiadores
acreditam que cerca de 2,4 milhões
de judeus – em sua maioria mulheres,
idosos e crianças – ficaram presos nas
áreas sob domínio nazista.
A Ucrânia foi a primeira das
repúblicas soviéticas a ser ocupada
pelos nazistas – Kiev caiu em 19
de setembro. À véspera da invasão
viviam na República Ucraniana
Socialista Soviética (incluindo
os recém-anexados territórios da
Galícia Oriental e Volínia Ocidental)
aproximadamente 2,3 milhões de
judeus. Como grande parte deles
viviam na região ocidental, eles
não conseguiram escapar antes da
chegada da Wehrmacht, tampouco
conseguiram fugir os judeus que
viviam nos shtetls. Apenas os que
estavam no sul e na parte oriental
da Ucrânia tiveram tempo de fugir.
SETEMBRO 2014
COMUNIDADES
Sob olhar de nazistas e guardas ucranianos , mulheres e meninas judias são levadas para trabalho forçado. Ucrânia, 1943
Até recentemente, não havia sido
possível confirmar os números. As
poucas informações se deviam, em
grande parte, à política soviética que
procurava ignorar o fato de que a
maioria das vítimas dos massacres era
composta por judeus.
Desde os primeiros dias da ocupação
da Ucrânia, os nazistas iniciaram a
perseguição e matança de judeus.
Unidades de Einsatzgruppen,
passaram a cercar judeus, comunistas
e outros grupos e a executá-los a
tiros. Eles contavam com a ativa
e entusiástica colaboração da
população. Os alemães sabiam
que, no Leste Europeu, durante
séculos, os judeus haviam sido
odiados e amaldiçoados, perseguidos
e mortos e uma das “tarefas” dos
Einsatzgruppen era organizar,
entre a população local, grupos
de assassinos. Estavam confiantes
de que os antissemitas poderiam
facilmente perpetrar assassinatos
em massa, e estavam absolutamente
certos. Sem tal participação, teria
sido impossível que as matanças
atingissem a escala que de fato
tiveram.
Em toda a Ucrânia, antes mesmo de
os nazistas iniciarem a matança, a
população local foi responsável por
sangrentos pogroms. Para muitos
ucranianos a invasão nazista foi
vista como a libertação do jugo
soviético, na percepção de muitos, o
“opressor judeu-comunista”. Ainda
não se tem certeza se a eclosão desta
violência fez parte nas discussões
pré-invasão entre a Inteligência
Alemã (Abwehr) e membros da
Organização de Nacionalistas da
Ucrânia (OUN), liderada por Stepan
Bandera6. Sob a liderança militante
de Bandera, a OUN organizou as
Waffen SS Ucranianas da Galícia e
as Divisões Nichtengall e Roland,
que participaram do assassinato de
judeus. (Em 2010, o ex-presidente
ucraniano Yushchenko elevou Stepan
Bandera a “herói da Ucrânia”, que é
hoje o maior ícone político da direita
nacionalista). Além desses grupos
militantes, milhares de ucranianos se
voluntariaram para ajudar os nazistas
participando da perseguição e do
assassinato de judeus. Milhares se
tornaram guardas nos campos de
extermínio. O fato de a polícia alemã
ter mais de 120 mil membros da
72
polícia ucraniana à sua disposição,
permitiu aos nazistas, rapidamente,
identificar e reunir os judeus em
grandes grupos que, a seguir, eram
conduzidos para locais ermos onde,
um a um, família após família –
homens e mulheres, velhos e crianças
– eram mortos a tiros.
Poucos foram os ucranianos que
protestaram, entre eles, Andrei
Sheptytsky, da Igreja GregoCatólica-Ucraniana, que condenou
publicamente a violência contra
os judeus e resgatou crianças,
escondendo-as em sua rede de
conventos e mosteiros.
Em novembro de 1941, dois terços da
Ucrânia estavam sob a administração
civil alemã – o Reichskommissariat
Ukraine (RKU). Rapidamente, os
nazistas impuseram sobre os judeus
as medidas adotadas em outros países,
colocando-os fora da jurisdição da
lei e obrigando-os a usar a Estrela de
David. Os homens eram levados aos
campos de trabalho forçados e foram
criados guetos na Ucrânia Ocidental.
Quando os judeus eram despojados
pelos alemães de seus pertences,
REVISTA MORASHÁ i 85
ucranianos tentavam se aproveitar
da situação, passando a se apossar e
saquear propriedades de judeus.
O primeiro assassinato em massa
de mulheres e crianças ocorreu
em julho de 1941, em Ostrih, na
Volínia. O genocídio assumiu uma
nova dimensão após o massacre
organizado em agosto pelo líder SS,
Friedrich Jeckeln, em KamianetsPodilskyi. Entre os dias 27 e 29
desse mês, os nazistas mataram a
tiros 23.600 judeus. Em setembro, os
assassinatos em massa continuaram
na Ucrânia Oriental. O maior
massacre aconteceu em Babi Yar,
ravina nos arredores de Kiev,
onde mais de 30 mil judeus foram
assassinados. (Ver artigo pág. 34).
Na primavera de 1942, os nazistas
passaram a “organizar” os que haviam
sobrevivido às chacinas – a maioria
na Ucrânia Ocidental, de acordo
com sua capacidade de trabalho.
Consequentemente, intensificou-se
o assassinato de mulheres e crianças.
Judeus da Galícia selecionados
para destruição foram deportados
no campo da morte em Betzec,
e recomeçaram as execuções em
massa na Volínia e em Podília e na
região de Mykolaiv. Em julho de
1942, aproximadamente 600 mil
judeus ainda estavam vivos. Mas, a
maioria foi vítima da campanha de
assassinatos executada entre julho e
novembro daquele mesmo ano.
O terror nazista pegara os judeus
ucranianos totalmente desprevenidos.
Essa foi a principal razão pela
qual os nazistas não enfrentaram
maiores obstáculos durante a primeira
onda de matança. Mas, a situação
mudou em 1942, principalmente
durante os ataques aos guetos. Houve
tentativas de fuga em massa em
direção às florestas e, quando ficou
claro que os nazistas pretendiam
liquidar os guetos, iniciou-se a
resistência armada, inicialmente. na
Volínia Ocidental e, em 1943, também
na Galícia.
De 1944 a 1991
No final da guerra, pouco restara
da comunidade judaica ucraniana
e os judeus que sobreviveram
defrontaram-se com um violento
antissemitismo ao tentarem recuperar
suas casas e propriedades.
A preservação pública da memória
do Holocausto durou pouco,
desaparecendo completamente das
comemorações oficiais. Os anos do
pós-guerra foram caracterizados
pelo silêncio oficial soviético em
relação ao sofrimento singular dos
judeus durante o Holocausto. As
autoridade davam ênfase ao mito
da “Grande Guerra Patriótica” e aos
comunistas mortos, negligenciando
completamente o fato da identidade
judaica de 1,5 milhão de vítimas. A
linha oficial referia-se a eles como os
“pacíficos cidadãos soviéticos”. Foi
somente a partir do final de 1980
que começaram a surgir esforços
governamentais e, posteriormente,
públicos para manter a memória do
Holocausto e integrar esse período à
história da Ucrânia.
Na Ucrânia, o antissemitismo oficial,
algumas vezes encoberto com um
leve verniz de anti-sionismo, assim
como da população em geral, era
especialmente proeminente. Em
1963, por exemplo, a Academia
de Ciências da Ucrânia publicou
um trabalho de Trokhym Kichko,
Iudaizmbez prykras ( Judaísmo
sem Embelezamento), uma obra
abertamente antissemita.
No início de 1960, dissidentes
ucranianos e judeus intensificavam
suas atividades, os primeiros pedindo
mudanças políticas e os últimos
defendendo a livre emigração para
Israel. Embora suas demandas
fossem diferentes, a necessidade por
mudanças era algo que os dois grupos
compartilhavam e havia contatos
informais entre os movimentos.
Com o início da Era da Glasnost, o
movimento ucraniano predominante
na luta por mudanças era o Rukh,
que adotara uma postura amistosa
em relação aos judeus da Ucrânia
quanto do Estado de Israel. Quando,
em maio de 1990, o Pamiat,
organização de extrema direita russa,
clamou pela violência antissemita,
o Rukh fez uma exitosa campanha
contra tais ataques, convencendo
comemoração de simchat torá em sinagoga do séc. 19; bershad, UCRÂNIA, 1997
73
SETEMBRO 2014
COMUNIDADES
1
2
1. antiga sinagoga de Uzhgorod, Transcarpátia, ucrânia 2. sinagoga de Kharkov coral
muitos ucranianos judeus de que o
movimento nacional democrático
merecia o seu apoio.
Após 1991
A Ucrânia tornou-se oficialmente
independente em 1991, com o
colapso da então União Soviética.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Movimento Bilu – um acrônimo do
versículo bíblico de Isaías: Beit Ya’akov
Lechu Venelcha (“Ó Casa de Yaakov,
subamos (à Terra de Israel)”, era um
movimento cujo objetivo era a colonização
agrícola da Terra de Israel. 1
Zona de Residência - Zona de assentamento
judeu na Rússia Imperial (1791-1917). Este
termo designava uma determinada região do
Império Russo destinada exclusivamente aos
judeus, sendo a sua residência proibida no
restante da Rússia.
2
Guarda Vermelha ou Exército Vermelho é
o nome abreviado do “Exército Vermelho
dos Operários e dos Camponeses”. Criado
por Leon Trotsky, bolchevique, durante
a guerra civil russa, foi desmantelado em
1991. O nome faz referência à cor vermelha,
símbolo do socialismo, e ao sangue
derramado pela classe operária em sua luta
contra o capitalismo.
3
De acordo com os dados oficiais do
governo ucraniano foram 7 milhões
4
Einsatzgruppen - esquadrões especiais
homicidas preparados pelos líderes da SS
em antecipação à invasão.
5
Ao longo dos anos 1990, o país
enfrentou uma dura trajetória
na transição da economia socialista
planificada para uma de mercado.
No final do período soviético, os
judeus tinham começado a emigrar
rapidamente, principalmente
para os Estados Unidos e Israel.
Segundo o censo de 2001, cerca de
380 mil judeus escolheram partir.
Representavam três quartos da
população judaica do país.
No entanto, o judaísmo ucraniano
mostrava impressionante vitalidade.
Uma comunidade forte permaneceu
em Kiev, inicialmente organizada
sob a liderança de Yaakov Dov
Bleich, um chassídico americano
que se tornou rabino-chefe da
Ucrânia durante os últimos anos
de dominação soviética. Uma rede
de escolas judaicas e sinagogas
surgiu nos centros mais importantes,
principalmente em Kiev, L’viv e
Dnipropetrovs’k, e muitos edifícios
que haviam sido confiscados pelo
regime da URSS foram devolvidos
à comunidade. Jornais judaicos
em russo circulavam e instituições
culturais foram reavivadas, como
o Museum Tkuma do Holocausto
e o Centro de Pesquisa em
Dnipropetrovs’k.
74
A comunidade judaica ucraniana é
hoje uma das mais numerosas da
Europa. Vivem no país cerca de
70 mil judeus praticantes e mais
de 300 mil ucranianos têm origem
judaica. Até a atual crise Ucrânia
versus Rússia, eles constituíam uma
comunidade florescente. Mas, a
crise política que está dilacerando
o país também esta afetando a vida
dos judeus. Muitos se perguntam
até que ponto as lutas internas vão
alimentar o enraizado antissemitismo
ucraniano, e se serão obrigado a
deixar o país...
BIBLIOGRAFIA
Dubnow, Simon, History of the Jews in
Russia and Poland: From the Earliest
Times Until the Present Day, Ed. Nabu
Press, 2010
Heifetz, Elias,The Slaughter of the Jews
in the Ukraine in 1919: [1921] Cornell
University Library, 2009
Brandon, Ray (Editor), Lower, Wendy
The Shoah in Ukraine: History, Testimony,
Memorialization, Indiana University
Press
Levine, Naomi, Jews in Soviet Union (Vol.
1): A History From 1917 to the Present,
NYU Press
Meir,Natan M. Kiev, Jewish Metropolis:
A History, 1859-1914 (The Modern Jewish
Experience), Ed. Indiana University Press,
2010
REVISTA MORASHÁ
CARTAS
Fico feliz por poder receber a revista Morashá, cujas
reportagens são bastante interessantes. Com ela é
possível manter as tradições e ter uma fonte de leitura
sobre o judaísmo, além de nas festividades ter histórias
que são contadas e que podemos passar para as próximas
gerações através do conteúdo lido e absorvido.
Alexandre Sztejnman
Rio de Janeiro, RJ
Lendo o artigo “A Terra de
Israel: pátria eterna do Povo
Judeu”, não tem como ficar inerte.
Recebo a revista Morashá desde
2008 e estou impressionado com a
firmeza e autoridade deste artigo.
Parabéns, parabéns. Abençoado seja
o idealizador deste artigo, que soube
buscar na profecia de Rashi e na clara
evidência da Torá fatos incontestes.
Finalizando, faço coro com o
ministro Binyamin Netanyahu:
‘... o Povo de Israel voltou para
casa para nunca mais ser expulso
de lá”.
Ricardo Fortuna
Belo Horizonte, MG
Gostaríamos de receber a
Morashá, pois é uma revista
que promove a identidade judaica
através da exposição das tradições
milenares, bem como das reflexões
sócio-históricas, fortalecendo
nossos laços com a cultura e religião
judaica.
Estou morando, temporariamente,
em uma pequena cidade na
Alemanha na divisa com a
Suíça, onde só há uma pequena
comunidade judaica, composta
principalmente por russos. Não
há sinagoga, nem rabino, mas
um site para o qual escrevo como
colaboradora de artigos sobre judeus
no mundo. Escrevo, em principio,
para valorizar nosso povo e mostrar
o quanto construímos e participamos
do desenvolvimento de todos os
países em que nos encontramos.
Eu pesquiso muito na Morashá; a
revista é de um valor inestimável
para mim, pois é confiável. Com a
mudança, trouxe algumas edições e
gostaria de receber outras, ainda que
antigas.
Hoje, 24 Julho 2014, já posso
respirar aliviada. Morashá
chegou. A edição 84, linda e
emocionante. Principalmente
pelo momento que estamos
passando, a Morashá é um alento
e um suporte para cada judeu
aqui desta terra. Moro numa
cidade, atualmente, onde eu sei
que só somos três judeus.
Então, só quero agradecer esse
suporte e alento. A cada edição que
recebo, aqui, tão isolada,
é um grande alívio. Recebam a
minha gratidão.
Yvonne Kikoler
Por email
Quero novamente parabenizar toda
a equipe e os colaboradores desta
maravilhosa revista, como também
pela excelência dos artigos nela
publicados e agradecer o envio da
Morashá há anos.
Muito grato pelo envio da edição
84 da revista Morashá. Despertoume interesse especial a reportagem
de Reuven Faingold sob o
título “Médicos Cristãos Novos
abandonam Portugal em 1614”.
A citada matéria aguçou-me o desejo
antigo de sugerir à revista uma
reportagem sobre o saudoso médico
Isaac Izecksohn, autor do livro
“Os Marranos Brasileiros”, composto
e impresso na INPRES, em 1967.
Estava procurando on-line
informações sobre a Ucrânia e
entrei no site da Morashá.
Já tinha entrado outras vezes e
sempre admirei o trabalho de
vocês. Achei extraordinários os
artigos dessa edição, especialmente,
no momento que os judeus do
mundo estão vivendo. Quero
parabenizar a equipe pelo
conteúdo de cada matéria.
Queria destacar vários artigos,
além da matéria sobre os judeus
da Ucrânia até o século 20,
Terra de Israel, Heróis Judeus
e o avanço do antissemitismo na
Europa.
Maurício C.S.Falk
São Paulo, SP
miguel ribeiro gomide
Juiz de Fora, MG
Juliana Weiss
Por email
Hugo Vainer Viegas
São Paulo, Sp
Chaya Zinderstein
Alemanha, Por email
75
setembro 2014

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