A LETRA DE MÚSICA NO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA

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A LETRA DE MÚSICA NO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA
A LETRA DE MÚSICA NO LIVRO DIDÁTICO
DE LÍNGUA PORTUGUESA
*Ana Lúcia Colodetti Gada
RESUMO: O objetivo deste trabalho é olhar criticamente para as letras de músicas contidas
numa coleção de livros didáticos, tendo como foco a forma como são apresentadas as propostas
de exercícios a serem desenvolvidos com os alunos e as orientações dadas aos professores. Os
critérios utilizados para a análise são o contexto, o uso das questões visando propiciar a reflexão
e a interação e o aproveitamento dado às letras de música. Os resultados apontam que a coleção
contempla uma diversidade significativa de textos, entre eles as letras de música, como um
material precioso para o ensino-aprendizagem da língua materna. Vista sob a ótica da proposta de
levar o aluno, através do texto, à reflexão, o faz com propriedade. Porém, as letras de músicas
contidas no livro recebem tratamento diferenciado de outros textos e de outras formas de manifestação artística que não a música, pois, não é levado em consideração o elemento musical a elas
associadas. Se, ao lado das músicas e compositores escolhidos, estivessem presentes autores
mais populares, a contribuição ao ensino da língua materna teria sido maior e a reflexão enriquecida.
PALAVRAS-CHAVE: Letra de música; livro didático; língua materna.
ABSTRACT: The objective of this work is to analyze the lyrics of songs in a collection of text
books critically, bearing in mind how the exercises proposed are presented to be developed by
students and the guidelines given to teachers. The criteria used for the analysis are the context, the
use of questions that demand reflection and interaction, as well as the good use of the lyrics. The
results indicate that the collection deals with a significant diversity of texts, lyrics of songs among
them, as precious material for the learning-teaching of Portuguese language. In the viewpoint of
leading the students to reflection by using the text, it is satisfactory. However, the lyrics of songs
contained in the books receive a different treatment from other texts, and of forms of artistic
manifestation other than music, since it is not taken into consideration the musical element associated
to them. If there were more popular authors included in the books, the contribution to the teaching
of mother tongue would be greater and the reflection would be enriched.
KEY-WORDS: Song lyrics; text book; mother tongue.
Considerações iniciais
O livro didático tem se preocupado cada vez mais com a diversidade
dos textos que são utilizados no ensino da língua materna. Esta
preocupação vem da necessidade de oferecer ao aluno textos que
proporcionem a reflexão. Entre eles, encontramos comumente os “poemas
cantados”, como são chamadas as letras de músicas por alguns autores
de livros didáticos. O universo de exploração que estes textos
proporcionam é muito amplo; porém, acredito que seu uso é ainda muito
limitado, tanto quantitativa quanto qualitativamente.
MATHESIS - Rev. de Educação - v. 5, n. 1 - p. 43 - 64 - jan./jun. 2004
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A expressão “poema cantado” se refere à letra de música, ou seja, o
elemento lingüístico que, ao lado da melodia, elemento musical, compõe a
canção brasileira. Por considerá-la uma expressão um tanto restritiva, por
sugerir que somente aquilo que está escrito na forma de poema pode ser
cantado, vou me utilizar da expressão “letra de música”, que penso ser mais
abrangente, popular e fácil de ser assimilada.
Ao analisar o uso que é feito deste tipo de texto, apresentado numa
coleção de livros didáticos destinados ao ensino da Língua materna, sob o
prisma da Lingüística Aplicada, pretendo fazê-lo com o olhar de uma
professora com formação e experiência em Educação Artística, com
habilitação em Música, que ministra aulas no ensino fundamental e médio
há mais de 20 anos.
O principal objetivo deste trabalho é olhar criticamente para as letras
de músicas contidas na coleção de livros didáticos Análise, Linguagem e
Pensamento (ALP – Maria Fernandes Cócco e Marco Antônio Hailer,
editora FTD S.A.), especificamente no volume correspondente à quinta série
do ensino fundamental, sob três aspectos: 1) a maneira como são
apresentadas as letras de música; 2) as propostas de exercícios a serem
desenvolvidos com os alunos; 3) as orientações dadas aos professores que
serão os mediadores entre os alunos e o livro.
Os critérios utilizados para esta análise levam em consideração,
basicamente: 1) o contexto em que os textos são apresentados; 2) o uso das
questões visando propiciar a reflexão e a interação dos alunos leitores,
considerando que são letras de músicas, portanto, associadas a uma melodia;
3) o aproveitamento dado às letras de música, enquanto portadoras de
elementos lingüísticos e extralingüísticos e exemplos das diversidades
temporais e regionais da língua brasileira.
Além de apontar aspectos positivos e negativos, proponho-me também
a apresentar sugestões que, a meu ver, podem levar a um melhor
aproveitamento na utilização desse tipo de texto para o processo de ensinoaprendizagem da língua materna – objetivo maior deste trabalho.
Língua, Linguagem e Livro Didático
A língua é um sistema de signos específicos, históricos e sociais, que
possibilita a homens e mulheres significarem o mundo e a sociedade. Aprendêla é aprender não somente palavras e saber combiná-las em expressões
complexas, mas apreender pragmaticamente seus significados culturais e,
com eles, os modos pelos quais as pessoas entendem e interpretam a realidade
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e a si mesmas. O domínio da linguagem, como atividade discursiva e
cognitiva, e o domínio da língua, como sistema simbólico utilizado por uma
comunidade lingüística, são condições de possibilidade de plena participação
social. Pela linguagem homens e mulheres se comunicam, têm acesso à
informação, expressam e defendem pontos de vista, partilham ou constroem
visões de mundo, produzem cultura (BRASIL, 1998, p. 19-20).
A língua é o meio que favorece a interação entre os homens. [...] A escola se
revela, pois, como o espaço formalizado para a realização dessa interação. No que
tange à língua materna, o seu ensino parte do ponto em que se prevê a
concretização de seus objetivos: o texto. A sua produção advém de um processo
contínuo de ensino-aprendizagem, cuja metodologia permite integrar a construção
do conhecimento com as reais necessidades dos alunos (Zanini, 1999, p.84).
Envolvem-se aí, continua Zanini, “as atividades que fortalecem a
competência lingüística de seus autores: leitura crítica, a escrita com objetivo e
leitor definidos, a compreensão e interpretação do mundo, a reflexão sobre a
própria linguagem.” A partir do momento que entendemos a linguagem como
uma forma de interação humana, estamos assumindo uma concepção
interacionista do processo ensino-aprendizagem de língua materna. Esta postura
vem sendo inserida nas nossas escolas desde os anos 90 até os dias de hoje.
Araújo (2001, p.23) pondera que “...como elemento componente do
processo de ensino e de aprendizagem escolares, as variadas técnicas
possibilitam variadas intermediações entre o professor e o aluno.” E, como
parte desta intermediação professor-aluno, aparece o “livro didático”, recurso
auxiliar, muitas vezes, indispensável, do qual o professor lança mão para
nortear o seu procedimento nesse mecanismo de interação recíproca que é
o processo ensino-aprendizagem.
De acordo com o Guia de Livros Didáticos do Programa Nacional do
Livro Didático - PNLD-(2003, p.35), “o livro didático de Língua Portuguesa
deve pautar-se pela clareza e correção, quer dos conceitos, quer das
informações que transpõe”. Ainda, é importante que os livros didáticos
“propiciem a reflexão também sobre as variedades regionais e sociais da
língua, de maneira a situar a norma culta nesse universo heterogêneo de falares,
que é o dos alunos” (idem, p.38). Continuando, o PNLD, ao alertar sobre a
natureza do material textual do livro didático, ressalta que:
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[...] é indispensável que a coletânea, respeitado o nível de ensino a que se
destina, ofereça ao aprendiz uma amostra o mais possível representativa desse
universo [...] a escolha de um texto justifica-se pela qualidade da experiência de
leitura que possa propiciar, e não pela possibilidade de exploração de algum
conteúdo curricular (PNDL, p.38).
O PNLD argumenta que “O conjunto de textos que um livro didático
apresenta é um instrumento privilegiado – às vezes único – de acesso do
aluno ao mundo da escrita.” Em seguida, também recomenda que “...os
gêneros discursivos e os tipos de textos selecionados para o livro didático
devem ser o mais diversos e variados possíveis, manifestando também
diferentes registros, estilos e variedades (sociais e regionais) do português”
(p.38). Mattos (2000), também atento a essa visão, afirma:
Sem negar a importância dos textos que respondem a exigências das situações
privadas de interlocução, é preciso selecionar, para as aulas, textos que, por
suas características e usos, favoreçam a reflexão crítica, o exercício de formas de
pensamento mais elaboradas e abstratas, bem como a fruição estética dos usos
artísticos da linguagem, ou seja, os mais vitais para a plena participação numa
sociedade letrada (p. 65).
Essas posições todas estão assentadas em pressupostos claramente
explicitados nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Segundo estes
(p.7, 8), os objetivos do ensino fundamental preconizam que os alunos devem
ser capazes de utilizar as diferentes linguagens - verbal, musical, matemática,
gráfica, plástica e corporal - como meio para produzir, expressar e comunicar
suas idéias, interpretar e usufruir das produções culturais, em contextos públicos
e privados, atendendo a diferentes intenções e situações de comunicação.
Mais adiante, ao se referir ao texto como unidade e a diversidade de gêneros,
nos PCNs adota-se uma postura bem abrangente:
Toda educação comprometida com o exercício da cidadania precisa
criar condições para que o aluno possa desenvolver sua competência
discursiva.Um dos aspectos da competência discursiva é o sujeito ser capaz
de utilizar a língua de modo variado, para produzir diferentes efeitos de sentido
e adequar o texto a diferentes situações de interlocução oral e escrita. É o que
aqui se chama de competência lingüística e estilística (PCNs, 1998, p.23).
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Um outro aspecto do texto didático, observado nos PCNs e bastante
enfatizado, refere-se aos diferentes contextos sociais e de uso que faz dele.
Nesse sentido, alerta que:
A importância e o valor dos usos da linguagem são determinados historicamente
segundo as demandas sociais de cada momento. Atualmente, exigem-se níveis de
leitura e de escrita diferentes dos que satisfizeram as demandas sociais até há bem
pouco tempo - e tudo indica que essa exigência tende a ser crescente. A necessidade
de atender a essa demanda, obriga à revisão substantiva dos métodos de ensino e
à constituição de práticas que possibilitem ao aluno ampliar sua competência
discursiva na interlocução. Nessa perspectiva, não é possível tomar como unidades
básicas do processo de ensino as que decorrem de uma análise de estratos - letras/
fonemas, sílabas, palavras, sintagmas, frases - que, descontextualizados, são
normalmente tomados como exemplos de estudo gramatical e pouco têm a ver com
a competência discursiva. Dentro desse marco, a unidade básica do ensino só pode
ser o texto. Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza
temática, composicional e estilística, que os caracterizam como pertencentes a este
ou aquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto, precisa ser
tomada como objeto de ensino. Nessa perspectiva é necessário contemplar, nas
atividades de ensino, a diversidade de textos e gêneros, e não apenas em função de
sua relevância social, mas também pelo fato de que textos pertencentes a diferentes
gêneros são organizados de diferentes formas (PCNs, p.23).
Finalmente, ao olhar para o aluno do terceiro e quarto ciclos (quinta a
oitava séries), visto como um indivíduo entrando definitivamente na
adolescência, deve-se ter o cuidado de levar em consideração o seu
comportamento, o conjunto de valores e a forma de interação social:
[...] é preciso considerar o fato de que os adolescentes desenvolvem um tipo de
comportamento e um conjunto de valores que atuam como forma de identidade,
tanto no que diz respeito ao lugar que ocupam na sociedade e nas relações que
estabelecem com o mundo adulto quanto no que se refere a sua inclusão no
interior de grupos específicos de convivência. Esse processo, naturalmente,
tem repercussão no tipo de linguagem por eles usada, com a incorporação e
criação de modismos, vocabulário específico, formas de expressão etc. São
exemplos típicos as falas das “tribos” - grupos de adolescentes formados em
função de uma atividade (surfistas, skatistas, funkeiros etc.). É possível, assim,
falar em uma linguagem de adolescentes, se se entender por isso não uma língua
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diferente, mas sim um jargão, um estilo, uma forma de expressão. Tal linguagem
é apropriada e explorada pela mídia, como, por exemplo, em propagandas voltadas
para jovens, em programas televisivos específicos, na fala de disc-jóqueis, nos
suplementos de jornais, revistas e nos textos paradidáticos e de ficção para
adolescentes (PCNs, p. 46, 47).
O livro didático e as letras de músicas
O alcance das variedades de formas, estruturas e estilos de textos dos
quais o livro didático pode se utilizar é quase que incalculável. Entre eles
encontramos as letras de músicas. “O universo de repertórios concernidos
pela “palavra cantada” (outra denominação para letra de música) compreende
um amplo espectro de modalidades de vocalização musical do discurso
poético” (Matos et al. 2001, p.7).
Na estrutura da canção popular brasileira, melodia e letra são
componentes essenciais.
Na letra, os quesitos pertinentes são a seleção lexical, o uso de rimas, a
estruturação sintática, o uso retórico e poético da linguagem – isto é, o modo
particular como o sistema lingüístico é captado através do recorte, pelo texto
verbal (Siqueira, 1999, p.117).
A coleção de livros didáticos ALP5: Análise, Linguagem e
Pensamento (Cócco e Hailler, 1993) é composta de oito volumes,
correspondendo às oito séries do ensino fundamental. Essa coleção é utilizada
por várias escolas da rede pública e privada do estado do Paraná. O uso do
ALP se deve ao conceito de “uma coleção de bom nível enquanto livro
didático para o ensino fundamental”. Esse conceito também se deve à
classificação da coleção como “livro didático recomendado pelo PNLD”.
A coleção se autodefine como uma proposta socioconstrutivista, tendo
como objetivos um trabalho de linguagem que: 1) leve o aluno a observar,
perceber, descobrir e refletir sobre o mundo e interagir com seu semelhante
através do uso funcional de linguagens; 2) desenvolva a competência do
educando no uso da língua para a solução de problemas cotidianos; 3)
possibilite o acesso à produção cultural da humanidade e a participação
plena no mundo letrado em que vivemos. Esses objetivos se enquadram na
proposta interacionista de ensino-aprendizado da língua materna.
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Neste trabalho é analisado o volume de Língua Portuguesa
correspondente à quinta série do ensino fundamental - Livro do Professor editado no ano de 1993. O livro, objeto deste estudo, contém 51 textos de
diferentes formas e estilos dos quais quatro (7,84%) são letras de músicas.
Todos os volumes da coleção são divididos em unidades. Ao descrever
a forma de exploração, de acordo com os autores, o volume da quinta série
está dividido em três unidades temáticas, a saber: Unidade I – “Lugares e
pessoas”; Unidade II – “O tempo através do tempo” e Unidade III –
“Curiosidades”. Ainda segundo os autores,
Nessas unidades trabalha-se a linguagem com textos diversificados, explorados
em atividades que enfatizam os eixos específicos do componente curricular da
Língua Portuguesa: linguagem oral, leitura, produção, gramática e literatura.
As atividades com os textos são organizadas em tópicos denominados
exploração, extrapolação, produção, gramática textual e avaliação. Entretanto,
nem todos os textos são explorados por todos os tópicos propostos.
Como poderá ser observado ao longo deste trabalho, essa divisão
em tópicos nem sempre fica bem clara quando as questões são
apresentadas aos alunos.
Os autores definem exploração como a fase de estudo onde as
questões ou propostas levam à leitura e à compreensão do texto em
profundidade e englobam conteúdo, estrutura e discurso. Extrapolação diz
respeito a questões que trabalham com a temática, embora não abordem o
conteúdo específico do texto.
Na produção textual, os autores recomendam que o aluno deve redigir
levando em consideração a macroestrutura e a superestrutura esquemática
do texto, não esquecendo aspectos da microestrutura. (...) a produção de
texto narrativo é uma proposta que se repete algumas vezes, por ser um
trabalho que possibilita o desenvolvimento do pensamento lógico.
O desenvolvimento da gramática textual, segundo os autores, segue
dois caminhos, a saber: atualmente, pesquisas e estudos sobre análise
lingüística apontam para uma nova maneira de desenvolver o processo ensinoaprendizagem de gramática: reflexão, investigação, exploração, construção
e aplicação de conceitos gramaticais. Outra forma é desenvolvendo um
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trabalho de gramática textual, isto é, atividades que levam à reflexão sobre
os vários assuntos gramaticais a partir da exploração e da comparação de
tipos diversificados de textos. Na seqüência, exemplificam como fazer
sugerindo que o aluno pode analisar o uso dos tempos verbais, a relação
da morfologia com a sintaxe, as figuras de linguagem etc., observando
como os autores usaram esses aspectos em seus textos.
A seguir faço uma análise descritiva das músicas, seguida de reflexões
e sugestões, em função do contexto em que elas são utilizadas em cada
uma das unidades em que estão inseridas, levando-se em consideração
somente as questões contidas nos tópicos exploração e extrapolação, por
serem itens que se encontram relacionados mais diretamente à leitura,
interesse pessoal no momento desta análise.
Análise: descrição, reflexões, sugestões
As duas primeiras músicas, “Nomes de gente” (Geraldo Azevedo e
Renato Rocha) e “Conversa de Botequim” (Noel Rosa), estão inseridas
na Unidade I: “Lugares e pessoas”.
“Nomes de gente”
Tem muito nome de gente
Muito significado
Prudêncio que é prudente
Tibor que é honrado
Hugo que é previdente
Reinaldo que é ousado
Tem muito nome de gente
Muito significado
Ataulfo é nobre lobo
Arnaldo águia potente
Arnoud é águia e lobo
Arlindo águia e serpente
Leandro homem leão
Leonardo leão forte
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Catulo pequeno cão
Bernardo é urso forte
Tem nome de toda sorte
Luci quer dizer doce
Lia que é trabalhadora
Olga que é nobre moça
Berenice é vencedora
Tâmara é estrangeira
Estela que é estrela
No meio de todas elas
Só Vera que é verdadeira
Natalice e Natalino
Nasceram os dois no
Natal
Domingos foi num domingo
Na Páscoa nasceu Pascoal
Genaro foi em janeiro
Em março nasceu Marçal
Aurora porque nasceu
Na hora que nasce o sol
Tem muito nome e a gente
Cantou somente um bocado
É muito nome de gente
Prum verso de pé quebrado
A gente fica contente
Se ninguém ficar zangado
Se nesse quase repente
Seu nome não foi cantado
Nesse texto, são trabalhadas, principalmente, a exploração e
extrapolação sem abordagem gramatical. O trabalho de exploração do texto
consiste em fazer o aluno retirar do mesmo idéias interessantes, palavras que
rimam e buscar o significado do seu nome. Por exemplo, pergunta 1: “Escreva
as idéias do texto ‘Nomes de gente’ que você considerou mais interessantes”,
pergunta 3: “Releia a 5ª estrofe do poema(“Luci.../...verdadeira) e destaque
as palavras que rimam e as que não rimam.”. Ainda dentro da proposta de
exploração do texto, é inserida uma pergunta (pergunta 4) com propriedades, a
meu ver, muito mais de extrapolação do que exploração: “Em ‘Nomes de Gente’
você conheceu o significado de alguns nomes. E o seu nome? Você conhece
o seu significado? Sabe qual foi o motivo da escolha? Pergunte a seus
familiares e reúna as informações que conseguir.”
Na extrapolação, o livro mostra uma carteira de identidade em frente
e verso e pede para que o leitor (aluno) identifique todos os dados que ela
contém. Finalmente, no tópico produção, pede-se para que o aluno crie a
sua carteira de identidade com assinatura e impressão digital.
“Conversa de Botequim”
Seu Garçom faça o favor de me trazer
depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d’água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol
Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto e nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro, um envelope e
um cartão
Não se esqueça de me dar palito
E um cigarro pra espantar mosquito
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste uma revista, um
cinzeiro e um isqueiro
Telefone ao menos uma vez
Para 34-4333
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
aqui pro nosso escritório
Seu garçom me empreste algum
dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure essa despesa no cabide
ali em frente
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O trabalho de exploração consiste na comparação desse com o texto “No
botequim” (Jô Soares), que o precede no livro, escrito em forma teatral: “‘No
botequim’ está escrito em forma de texto para teatro e ‘Conversa de botequim’
tem forma poética. Identifique características nos textos que comprovem
essa afirmação.” (pergunta 1). Solicita que os alunos identifiquem semelhanças e
diferenças entre os dois textos, palavras e expressões que mostrem a linguagem
coloquial de cada época, bem como os trajes das personagens dos textos. Por
exemplo: “O texto de Noel Rosa foi escrito na primeira metade do século 20 e
o de Jô Soares em 1992. Dê exemplos de palavras ou expressões que mostram
a linguagem coloquial de cada época.” (pergunta 4).
Diferentemente do texto “Nomes de gente”, no qual a gramática textual
parece-me que, pretensa ou inadvertidamente, não foi trabalhada, aqui ela é o
aspecto mais explorado, sendo contemplada com questões direcionadas às
pontuações, formas de se escrever, significados e sinônimos entre outros conceitos.
O trabalho é feito sempre em comparação com o outro texto, de Jô Soares,
aproveitando todos os conceitos gramaticais que oferecem, um com sua forma
de texto teatral e o outro com sua forma poética. Um exemplo: “Por que no
texto ‘No botequim’ aparecem vários pontos de interrogação e de
exclamação e em ‘Conversa de botequim’ eles não aparecem?” (pergunta
6). Acredito poder apontar aqui um exemplo de um texto com indícios de estar
sendo utilizado como pretexto para o ensino da metalinguagem. Principalmente,
pelo fato de os autores não terem se preocupado em contextualizar (situar) a
época e o autor dessa música, nem tampouco realizar um trabalho de leitura.
“Duas estações” (Jorge Mello), está inserida na Unidade II: “O tempo
através do tempo”.
O lugar onde moro
Tem quatro estações por dia
Inverno, verão, primavera e outono
Dando baile na ecologia
Inverno, verão primavera e outono
Todo mundo se resfria
O lugar de onde eu vim
Só tem duas estações, meu bem
Uma é o verão e a outra
É a estação do trem
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Essa letra de música é trabalhada (extrapolação e produção) dentro
de uma integração de três textos: em comparação a um mapa de previsão do
tempo que aparece anteriormente e com o texto que vem em seguida, “O
Tempo”, extraído de um livro de geografia da quinta série. O tópico exploração
se restringe a perguntas específicas do texto “Duas estações”, e a maioria
delas pode ser respondida com comprovação textual: “Quais os dois
significados dados no texto para a palavra ‘estação’”? (pergunta 3).
“Eduardo e Mônica” (Renato Russo) é a última letra de música
apresentada nesse volume, estando, portanto, inserida na Unidade III:
“Curiosidades”.
Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?
Eduardo abriu os olhos mas não quis se levantar
Ficou deitado e viu que horas eram
Enquanto Mônica tomava um conhaque,
Noutro canto da cidade, como eles disseram
Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer
E conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer.
Foi um carinha do cursinho do Eduardo que disse:
Tem uma festa legal e a gente quer se divertir.
Festa estranha, com gente esquisita:
Eu não estou legal, não agüento mais birita.
E a Mônica riu e quis saber um pouco mais
Sobre o boyzinho que tentava impressionar
E o Eduardo, meio tonto, só pensava em ir pra casa:
É quase duas, eu vou me ferrar.
Eduardo e Mônica trocaram telefone
Depois telefonaram e decidiram se encontrar.
O Eduardo sugeriu uma lanchonete
Mas a Mônica queria ver o filme do Godard
Se encontraram então no parque da cidade
A Mônica de moto e o Eduardo de camelo
O Eduardo achou estranho e melhor não comentar
Mas a menina tinha tinta no cabelo.
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Eduardo e Mônica eram nada parecidos
Ela era de Leão e ele tinha dezesseis.
Ela fazia Medicina e falava alemão
E ele ainda nas aulinhas de inglês.
Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus,
De van Gogh e dos Mutantes, de Caetano e de Rimbaud
E o Eduardo gostava de novela
E jogava futebol-de-botão com seu avô.
Ela falava coisas sobre o Planalto Central,
Também magia e meditação
E o Eduardo ainda estava no esquema
”Escola-cinema-clube-televisão”.
E, mesmo com tudo diferente,
Veio mesmo de repente, uma vontade de se ver
E os dois se encontravam todo dia
E a vontade crescia, como tinha de ser.
Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia,
Teatro e artesanato e foram viajar.
A Mônica explicava pro Eduardo
Coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar.
Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer
E decidiu trabalhar;
E ela se formou no mesmo mês
Em que ele passou no vestibular
E os dois comemoraram juntos
E também brigaram juntos, muitas vezes depois.
E todo mundo diz que ele completa ela e vice-versa,
Que nem feijão e arroz
Construíram uma casa uns dois anos atrás,
Mais ou menos quando os gêmeos vieram Batalharam grana e seguraram legal
A barra mais pesada que tiveram.
Eduardo e Mônica voltaram pra Brasília
E a nossa amizade dá saudade no verão.
Só que nessas férias não vão viajar
Porque o filhinho do Eduardo ‘tá de recuperação.
Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?
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Esse texto, como a maioria dos outros já apresentados, também é
trabalhado nos tópicos de exploração e extrapolação, sendo, inclusive, o que
contempla o maior número de questões, que se referem ao conteúdo do próprio
texto, sem ser comparado com outros, como ocorre nas outras letras de música.
Pela primeira vez, o livro usa o termo “letra de uma música” para identificar
o texto. Isso acontece no tópico exploração, pergunta 2: “Eduardo e Mônica é
a letra de uma música. Em que veículo de comunicação ela foi publicada?”
Outro aspecto positivo a ser ressaltado é que nas atividades de
extrapolação, pela primeira vez também, a letra é vista como uma canção e
é feita referência ao grupo musical que compôs a música. Somente agora
aparece a primeira sugestão para que os alunos tragam discos para serem
ouvidos. Parece haver a intenção de se unirem as duas linguagens da canção
brasileira: a musical e a verbal (Siqueira, 1999).
Discussão
Todos os textos referentes a letras de músicas são trabalhados nos
tópicos exploração e extrapolação, segundo os critérios definidos pelos
autores, exceto a música “Conversa de Botequim”, que não contempla a
extrapolação. Os textos também são coerentes com os temas propostos nas
unidades em que estão inseridos e a condução das questões propostas para
as atividades referentes à leitura levam à reflexão e à interação, pois, quando
trabalhados, em cotejo com outros textos e com o mundo, propiciam a crítica
por parte do aluno, conforme os objetivos definidos pelos autores. Essa
postura pode ser observada em questões como: “Por que o texto tem o
nome de ‘Duas estações’?” (p. 68); ou ainda, “Na sua opinião, existe
razão ‘nas coisas feitas pelo coração’? Justifique sua resposta”. “Você
gostaria de visitar e conhecer o Eduardo e a Mônica? Por quê?” (p.104)
que incentivam a reflexão e suscitam o posicionamento dos alunos, exigindo
coerência no momento em que solicitam justificativas para as respostas.
Outros exemplos de questões que ampliam a visão de mundo dos
leitores são vistos nas questões: “Em ‘Nomes de gente’ você conheceu o
significado de alguns nomes. E o seu nome? Você conhece o seu
significado? Sabe qual foi o motivo da escolha? Pergunte a seus familiares
e reúna as informações que conseguir.” (p.13); “Observe: ‘Ela gostava
do Bandeira e do Bauhaus, / de Van Gogh e dos Mutantes, / de Caetano e
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de Rimbaud’ pesquise em enciclopédias, revistas ou perguntando para
amigos, quem foram as pessoas de quem Mônica gostava. Escreva no
seu caderno as informações principais a respeito de cada uma delas e
compare suas anotações com as de seus colegas” (p.104).
As duas últimas questões, apresentadas acima, estão inseridas no
tópico exploração referentes aos textos “Nome de gente” e “Eduardo e
Mônica”, respectivamente. Nesse caso, percebo uma dificuldade dos
autores em respeitar os limites dos tópicos na hora de explorar ou
extrapolar o texto. A meu ver, essas duas questões, considerando as
próprias definições dos autores, se referem muito mais à extrapolação
do que exploração do texto, uma vez que, segundo os mesmos,
extrapolação “São questões que trabalham com a temática, embora não
abordem o conteúdo específico do texto”.
É importante chamar a atenção para alguns aspectos que se referem,
tanto ao uso que é feito das letras assim como do aproveitamento das
mesmas, considerando que o que as torna diferentes é o fato de conterem
as melodias associadas.
As letras de músicas aqui analisadas recebem tratamento diferenciado
de outros textos e de outras formas de manifestação artística que não a
música. As canções são apresentadas nos livros sem nenhuma identificação,
com exceção de “Eduardo e Mônica”. Não há nenhum enunciado que as
introduzam. Isto não acontece com outros textos do livro. Ao compará-las
com o texto “A soma de nossos dias” (p.51) que se trata de uma escultura,
e, “Escultura” (p.53), texto descritivo sobre essa forma de manifestação
artística, percebe-se que há um tratamento diferenciado. Este é só um exemplo
entre vários. Trata-se de uma postura assumida pelos autores. Todos os
textos que fogem daqueles de natureza convencional: “Carnê de crediário”
(p.59) – um carnê de pagamento de crediário, um outro exemplo, recebem
um enunciado que os identifica quanto a sua natureza. Por que não fazer o
mesmo com as letras de música?
A única maneira de se comprovar, no livro, que o texto se refere a
uma canção é uma pequena nota, em fonte minúscula, situada no rodapé da
página, contendo informações sobre os autores, o nome do disco no qual se
encontra a gravação, o intérprete, a gravadora, a cidade e o ano da mesma.
Exemplo: “Geraldo Azevedo e Renato Rocha. Do disco ‘Adivinha o que
é’, MPB-4. São Paulo, Ariola, 1983.”(p.12).
56
Neste ponto, faço alguns questionamentos e algumas considerações.
Quem são Geraldo Azevedo e Renato Rocha? Qual o significado da palavra
“Ariola”? Quem é “MPB-4”? Eu, enquanto professora de Educação Artística,
com habilitação em Música, para fazer a seleção das músicas contidas nesse
livro, tive de fazer uso, além da habilitação formal, de meu conhecimento de
mundo como cantora e, portanto, bastante acostumada a ouvir uma grande
diversidade de gêneros e estilos musicais. As informações dadas ao final do
texto só permitem deduzir indiretamente que se trata de música, e, somente
em função de minha vivência musical, pude concluir, em muitas situações,
que se tratava de uma letra de música. A pergunta final é: uma criança de 11
anos saberia, ao ler “Ariola”, que isso é uma gravadora e que, portanto, a
letra pode se tratar de uma música? Vou mais longe em meu questionamento:
será que o aluno é maduro o suficiente para ler essa nota de rodapé? Se o
leitor já foi trabalhado e exercitado a olhar para além do texto, ou seja,
considerar como texto todo tipo de informação, ele tem condições de
“deduzir” que se trata de uma música.
Quando são usadas pinturas como texto, todas as telas apresentadas
são identificadas quanto à época e recebem um breve resumo sobre o
contexto em que elas foram produzidas; os artistas também recebem uma
pequena descrição para que possam ser identificados pelo aluno. Um exemplo
disso aparece logo no início do livro. É mostrada uma tela de Di Cavalcanti
(Cinco moças de Guaratinguetá, p.8) e é apresentada como tal. Logo em
seguida, como segundo texto, vem uma biografia de Di Cavalcanti. Pode-se
deduzir que o texto “Di Cavalcanti” vem complementar e contextualizar o
primeiro que é a estampa da tela.
Por que o tratamento diferenciado dado a duas formas de manifestação
artística: a pintura e a música?
A única resposta que me vem, quando faço esse questionamento, é que,
aparentemente, os autores partem do pressuposto que os seus leitores alvo
conhecem tanto os compositores quanto as letras das músicas, portanto, não
necessitando de nenhuma apresentação. A meu ver, isso até poderia ser justificado,
se os textos escolhidos fossem de compositores e intérpretes mais conhecidos e
suas músicas executadas comercialmente. Ao contrário desta sugestão, os autores/
cantores escolhidos são tirados do “fino da bossa” (elite intelectual) dos
compositores brasileiros, indicando, para mim, um certo elitismo por parte dos
autores do livro, o que pode ser confirmado, se se levar em consideração o
quanto essas músicas são (pouco) executadas pela mídia pertinente.
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Reportando-me novamente aos PCNs que sugerem que os textos
sejam compatíveis com a faixa etária do público-alvo, aqui no caso alunos
da quinta série, portanto, com idade em torno dos 11 anos, pois, segundo os
PCNs, “Os alunos do terceiro e do quarto ciclos do ensino fundamental,
idealmente, apresentam-se na idade entre 11 e 15 anos, ainda que, infelizmente,
muitas vezes, por causa das dificuldades que enfrentam na vida e na escola,
os estudantes possam ser mais velhos.” (p.45), é pouco provável que esses
alunos, em sua maioria, tenham conhecimento ou já tenham ouvido essas
músicas utilizadas nesse livro. Isso pode levar a um distanciamento entre a
realidade do leitor e o texto.
Uma forma de atenuar essa defasagem entre o aluno alvo e as letras
de músicas aqui utilizadas com objetivos didáticos é oferecer o maior número
de informações possíveis para contextualizar esse tipo de texto. Isso significa
caracterizar o texto enquanto uma letra de música que possui também melodia,
que foi composta por determinado compositor, numa determinada época e
realidade social. Acredito que isto contribui, consideravelmente, para o
enriquecimento da compreensão e interpretação no processo de leitura
enquanto parte da aprendizagem da língua materna.
As duas primeiras músicas apresentadas no livro: “Nomes de gente”
e “Duas estações” são pouco conhecidas. Contudo, a meu ver, isso não
compromete o desenvolvimento do trabalho proposto no livro, uma vez que
elas abordam uma temática que por si só atraem o interesse do aluno dessa
faixa etária. Isso fica enriquecido na estrutura em rima desses textos. Porém,
existem outras músicas mais conhecidas e cantadas pelos alunos dessa idade
que também tratam dos mesmos temas (por exemplo: a banda Skank com a
música Quatro vezes você) que facilmente poderiam ser cantadas e ouvidas,
o que, acredito, enriqueceria muito o trabalho de leitura.
O mesmo não acontece com a música “Conversa de botequim”. Em
relação a esta música, quando ela é trabalhada, cotejada com o texto de Jô
Soares, um problema a se colocar é que, embora o livro situe os autores dos
textos como sendo, respectivamente, da primeira metade do século vinte e
da década de noventa, os textos não dão pistas de seus contextos temporais,
de ambiente e de hábitos e costumes, podendo dificultar a resposta dos
alunos. Quando é formulada a questão número três no tópico exploração:
“Imagine como as personagens desses textos poderiam estar vestidas.
Descreva-as detalhadamente”, ao se consultar as orientações que o livro
do professor oferece vemos comprovada essa dificuldade. Ao mesmo tempo
em que sugerem “Resposta livre”, continuam os autores: “Se os alunos
tiverem dificuldade, o professor pode dar um exemplo...” e, literalmente,
58
“tiram da cartola” uma sugestão detalhada de trajes para os interlocutores
do texto, contrariando a proposta de resposta livre. Se os alunos tiverem
maiores informações sobre a biografia de Noel Rosa (como fizeram com Di
Cavacanti), os hábitos, costumes e até mesmo fotos da época em que viveu,
acredito que seria mais fácil responderem às questões propostas.
Um fator de grande importância que poderia justificar o uso da letra
de música e contribuir ainda mais para a compreensão e interpretação desse
tipo de texto é o aspecto musical, com a riqueza de seus elementos melódicos
e rítmicos, não necessariamente implicando numa inserção do professor de
língua materna nas artes.
A execução da música em sala de aula, se possível de uma versão em
“disco de vinil” da época em que foi mais executada, associada a figuras
com imagens contendo pessoas em seus trajes típicos, poderiam favorecer
muito mais a contextualização e a resposta livre de exercício de imaginação
e criatividade do aluno. Além disso, levar a canção para ser ouvida pela
classe, mostraria que é um samba que tem até breque (interrupção
momentânea em determinadas passagens da melodia-letra) e que este ritmo
é utilizado para “demonstrar”, retratar a “malandragem” dos botequins da
época, ou seja, ajudaria a contextualizar, tornando mais fácil responder as
perguntas da exploração do texto. Para Severiano e Mello (1997):
Não existe em nossa música popular crônica mais espirituosa sobre uma cena
do cotidiano que a realizada por Noel Rosa em ‘Conversa de botequim’.
Localizada em um café, ambiente que o autor conhecia como ninguém, a crônica
tem como personagem principal um freguês desabusado que, ao preço de uma
simples média com pão e manteiga, acha-se no direito de agir como se estivesse
em sua casa... Completa esta obra-prima uma melodia sincopada de Vadico que
se casa com a letra de uma forma primorosa, como se as duas tivessem sido
feitas ao mesmo tempo, por uma mesma pessoa. ...No seu jeito simples de cantar,
ele “diz” a letra com a naturalidade com que um malandro daria todas aquelas
ordens a um garçom de botequim (p. 135).
Levar essas informações aos alunos permitiria uma maior interação no
processo ensino-aprendizagem sem caracterizar uma imposição do professor,
dissimulada em uma sugestão de exemplo, além de ser mais um recurso em
sala de aula. Acredito que o professor tem uma grande oportunidade de
levantar uma discussão quanto à interpretação do texto, de acordo com a
visão de cada aluno, etapa importante no processo de ensino-aprendizagem
da língua materna, uma das propostas da Lingüística Aplicada.
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Reforço aqui mais uma exceção que tem que ser feita para a música
“Eduardo e Mônica”. Esta é a canção que melhor representa o “tipo” de
música que, a meu ver, deveria ser utilizada, considerando vários aspectos:
ser bastante executada na mídia pertinente e cantada por uma ampla faixa
etária; abordar um tema presente na vida desses adolescentes; conter um
ritmo apreciado tanto por crianças quanto jovens e adultos; marcar em versos
o gênero narrativo e seu linguajar fazer parte do contexto da língua falada
desse universo de público ao qual é destinado um livro elaborado para a
quinta série do ensino fundamental.
De acordo com o PNLD:
A coleção se organiza em torno de atividades de leitura de um conjunto de bons
textos verbais e não-verbais. As atividades lidam com diferentes habilidades
necessárias à formação do aluno como leitor. O material textual envolve uma
gama considerável de gêneros, que circulam em diferentes veículos e em
diferentes espaços sociais, favorecendo aos alunos maior compreensão da
sociedade em que vivem (p. 182).
Na análise da proposta pedagógica da coleção, ainda segundo o PNLD
(p.183), “A obra revela uma fundamentação eclética, que procura integrar o
construtivismo de Emília Ferreiro ao interacionismo sócio-histórico de
Vigotsky, associando-os a estudos lingüísticos contemporâneos das áreas
do texto e do discurso...”. Mais adiante nessa análise:
São textos literários, práticos, informativos e os chamados de extraverbais,
estes vinculados a formas de expressão não-verbais, como a pintura, a escultura,
a fotografia, a música, entre outras, explorados por meio de diferentes atividades
de reconstrução dos sentidos (idem, p.183).
Contudo, ao final de sua análise, o PNLD, entra em contradição com
sua análise inicial ao afirmar:
Falta à coleção uma visão mais complexa do universo sociocultural. A realidade
é tratada de forma muito homogênea, como se fosse linearmente constituída,
(cf. início do parágrafo anterior) desconsiderando-se a pluralidade e as
disparidades existentes. O fenômeno da variação lingüística, por exemplo, não
é levado em conta. Os modos de falar de diferentes segmentos sociais e os tipos
de linguagem utilizados em diferentes situações de comunicação não são
apontados, nem explorados como recursos lingüísticos legítimos nos contextos
em que são adequados (PNLD, 2003, p.184).
60
A música popular brasileira é composta de um material riquíssimo que
pode contribuir para o ensino da língua materna, pois, envolve um número
grande de estilos, gêneros, ritmos e compositores, oriundos das mais diversas
regiões do Brasil, trazendo as mais variadas peculiaridades lingüísticas. Só
para exemplificar essa diversidade, cito: “Mamonas Assassinas”, “Adoniran
Barbosa”, grupos de “pagode”, músicas caipiras e sertanejas, bandas como
“Capital Inicial”, “Titãs” e “Skank”, músicas regionalistas e folclóricas. Todos
com uma rica bagagem de contrastes das linguagens musical e textual.
Todos os exemplos apresentados são de compositores, intérpretes e
bandas atuais muito veiculados e cantados na mídia e, por isso, alguns deles
não se enquadram no círculo popular e, comumente denominado, de “elite
musical”. Ao me referir a compositores como sendo da elite musical, faço-o,
portanto, levando em consideração, principalmente, o quanto ele é executado
pelos meios de divulgação de massa, que, no caso da música, é o rádio.
Faço-o também, com base na minha experiência, como alguém que trabalha
a música didática e artisticamente. Assim sendo, fica claro que algumas canções
são consideradas adequadas ou não enquanto recursos textuais e musicais.
Isso faz com que existam músicas e compositores rotulados como bons e
ruins para serem ouvidos, cantados e analisados. Ao se oferecer essa
diversidade qualitativa de textos, permite-se que o leitor – o aluno - estabeleça
parâmetros de comparação, uma das condições necessárias para se
desenvolver o espírito crítico. Entendo que seja necessário dar oportunidade
para que o aluno tenha contato com o que é considerado bom ou ruim, pois,
somente ampliando o olhar vai poder enxergar o mais longe possível e, então,
decidir e escolher aquilo que ele vai considerar bom ou não.
Uma coleção que se autodefine como socioconstrutivista, com o
objetivo de formar leitores críticos e que se preocupou em contemplar letras
de músicas como recurso didático, não poderia ter deixado de estender o
alcance deste olhar.
Entrar no mérito do que é considerado bom ou não, depende - além da
maneira como o livro didático apresenta a música, enquanto portadora de melodia
e texto - da habilidade do professor em intermediar a comunicação livro-aluno.
Nesse sentido, é de suma importância que o professor de Língua Portuguesa
tenha sensibilidade para avaliar a necessidade de ampliar o seu conhecimento.
Ele deve ter a iniciativa de buscar recursos fora da sua área específica de atuação.
Em se tratando de um professor que vai fazer uso de letras de música é importante
que tenha a iniciativa de procurar, pelo menos, se inteirar do maior número de
recursos possíveis que a linguagem musical permite utilizar.
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Azambuja e Souza (2001), abordam essa importância com bastante
clareza:
Antes de qualquer estudo de texto, é preciso preparar o aluno para a leitura.
Grande parte do sucesso desse estudo está nessa fase de predisposição para a
leitura, na qual o professor motivará o aluno despertando nele o interesse pelo
texto a ser estudado. Motivar é predispor alguém a fazer alguma coisa, é aguçar a
curiosidade, é impulsionar alguém para a realização de alguma tarefa, enfim, ativar
o conhecimento.
Sugerimos, pois, que o texto não seja entregue “secamente” ao aluno. É
importante que haja uma preparação prévia, partindo-se de experiências já
vivenciadas pelo mesmo até se chegar ao texto propriamente dito.
Para isso, o conhecimento prévio do aluno, quer seja lingüístico – conhecimento
dos recursos que a língua oferece – quer seja extralingüístico – tudo que não se
enquadra à exigências gramaticais – deve ser ativado pelo professor, para que
possa haver um engajamento entre o leitor e o texto a ser estudado (p. 52).
Esse posicionamento vem fundamentar a importância, por mim
apontada neste trabalho, do elemento musical como uma preparação e um
enriquecimento da atividade de leitura. Convidar os alunos para cantar ou
simplesmente ouvir as melodias das letras de músicas apresentadas no livro
didático, pode ser uma prática regular em sala de aula que, certamente,
levará o leitor a um melhor aproveitamento das mesmas.
Considerações finais
Ao finalizar esta análise é importante registrar o reconhecimento aos
autores da coleção de livros didáticos ALP por terem se preocupado em
utilizar letras de músicas como textos didáticos, embora o aproveitamento
das mesmas tenha deixado a desejar, pois, houve uma preocupação somente
com o texto verbal desconsiderando o aspecto musical que esse tipo de
texto contempla em sua estrutura. Pode-se inferir que a maioria dos textos
aqui analisados foi utilizada como pretexto para o ensino de metalinguagem
– ensino de gramática – ou porque continha um tema adequado às unidades
de estudo em que o livro se divide. As evidências em se querer aliar a
linguagem verbal com a musical para a formação da canção são mínimas.
62
Conforme recomendação dos PCNs, dentro de uma proposta
interacionista, o gênero textual canção, composto de dois elementos,
lingüístico e musical, também deve ser contemplado e, como tal, estudado e
compreendido. O não desprezo do elemento musical muito contribuiria para
que esta interação ocorresse não somente entre dois textos, mas, também,
entre duas linguagens: a musical e a verbal.
Finalmente, esses textos são chamados “poemas cantados”, mas não
são assim tratados.
Fala-se do “poema cantado” que não é cantado.
Diante desse procedimento e por todos os motivos já aqui
argumentados, torna-se um pouco difícil identificar qual foi o real objetivo ao
se utilizarem as letras de música. Parece que os autores se viram frente a uma
obrigação em incluí-las nos livros para cumprir algum requisito exigido.
Nota
1
Orientada pelo prof. Dr. Renilson José Menegassi – UEM
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63
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7 Letras.
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ZANINI, M. (1999) Uma visão panorâmica da teoria e da prática do ensino de Língua Materna. Acta Scientiarum v.21 (1) p.79-88.
*Aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras - UEM
[email protected]
64