procuradoria da república no município de blumenau-sc

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procuradoria da república no município de blumenau-sc
Revista Eletrônica PRPE, Dezembro de 2004
PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO MUNICÍPIO DE
BLUMENAU-SC
“Justiça Pública”
João Marques Brandão Néto
Procurador da República em Blumenau/SC
EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) JUIZ(A) FEDERAL DA
VARA CRIMINAL DE BLUMENAU-SC
Processo no 2004.72.05.000315-0
Autor: Ministério Público Federal
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da República
signatário, vem ante Vossa Excelência, nos autos do procedimento epigrafado, dizer e
requerer o que segue:
1. O primeiro código ibérico de que se tem noticio foi o Código Visigótico,
derivado, em parte,das leis romanas.
2. Do Século V ao Século VIII o atual território português foi dominado pelos
Visigodos, em decorrência de uma aliança destes com os romanos. Os
godos eram um povo germânico originário das regiões meridionais da
Escandinávia. (...) O povo godo abandonou a região do rio Vístula, que
corresponde à atual Polônia, durante o reinado de Filimer, na segunda
metade do século II, e chegou ao mar Negro após muitas aventuras. (...)
Durante o século III, foram muitas as incursões godas nas províncias
romanas da Anatólia e da península balcânica: eles saquearam as costas
asiáticas, destruíram o templo de Éfeso, chegaram a penetrar em Atenas
e avançaram sobre Rodes e Creta. Durante o regime de Aureliano (270275), obrigaram os romanos a se retirar da província da Dácia, no outro
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lado do Danúbio. Os godos que viviam entre os rios Danúbio e Dniester
receberam o nome de visigodos. Os do outro ramo, que no século IV se
haviam estabelecido na área que viria a ser a Ucrânia, foram
denominados ostrogodos (...). Ostrogodos. O reino ostrogodo, que se
estendia do mar Negro até o Báltico, alcançou o poderio máximo com
Ermanarico, mas foi dominado pelos hunos por volta do ano 370. Após o
colapso do império huno em 455, dois anos depois da morte de seu chefe
Átila, os ostrogodos penetraram na Panônia (Danúbio central) e dirigiramse para a Itália (...). Visigodos. (...) Conquistaram, no século III, a Dácia,
província romana situada na Europa centro-oriental. No século IV, ante a
ameaça dos hunos, o imperador Valente concedeu refúgio aos visigodos
ao sul do Danúbio, mas a arbitrariedade dos funcionários romanos os
levou à revolta. Penetraram nos Balcãs e, em 378, esmagaram o exército
do imperador Valente nas proximidades da cidade de Adrianópolis. Quatro
anos depois, o imperador Teodósio I o Grande conseguiu estabelecê-los
nos confins da Mésia, província situada ao norte da península balcânica.
Tornou-os federados do império e deu-lhes posição proeminente na
defesa. Os visigodos prestaram uma ajuda eficaz a Roma até 395,
quando começaram a mudar-se para oeste. Em 401, chefiados por Alarico
I, que rompera com os romanos, entraram na Itália e invadiram a planície
do Pó, mas foram repelidos. Em 408 atacaram pela segunda vez e
chegaram às portas de Roma, que foi tomada e saqueada em 410. Nos
anos seguintes, o rei Ataulfo estabeleceu-se com seu povo no sul da Gália
e na Hispânia e, em 418, firmou com o imperador Constâncio um tratado
pelo qual os visigodos se fixavam como federados na província de
Aquitania Secunda, na Gália. A monarquia visigoda consolidouse com
Teodorico I, que enfrentou os hunos de Átila na batalha dos Campos
Catalâunicos. Em 475, Eurico declarou-se monarca independente do reino
visigodo de Tolosa (Toulouse), que incluía a maior parte das Gálias e a
Espanha. Seu reinado foi extremamente benéfico para o povo visigodo:
além da obra política e militar, Eurico cumpriu uma monumental tarefa
legislativa ao reunir as leis dos visigodos, pela primeira vez, no Código de
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Eurico, conservado num palimpsesto em Paris. Seu filho Alarico II
codificou, em 506, o direito de seus súditos romanos, na Lex romana
visigothorum, mas carecia dos dotes políticos do pai e perdeu quase todos
os domínios da Gália em 507, quando foi derrotado e morto pelos francos
de Clóvis, na batalha de Vouillé, perto de Poitiers. Desmoronou então o
reino de Tolosa e os visigodos foram obrigados a transferir-se para a
Espanha. O reino visigodo na Espanha estava inicialmente sob o domínio
dos ostrogodos da Itália, mas logo tornou-se independente. Para
conquistar o domínio da península ibérica, os visigodos enfrentaram
suevos, alanos e vândalos, povos bárbaros que haviam ocupado o país
antes de sua chegada. A unificação quase se concretizou durante o
reinado de Leovigildo, mas ficou comprometida pelo problema religioso:
os visigodos professavam o arianismo e os hispanoromanos eram
católicos. O próprio filho de Leovigildo, Hermenegildo, chegou a sublevarse contra o pai depois de converter-se à religião católica. Mas esse
obstáculo para a fusão com os hispano-romanos se resolveu em 589, ano
em que o rei Recaredo proclamou o catolicismo religião oficial da Espanha
visigótica. (...). Fonte: Encyclopaedia Britannica.
3. O Código de Eurico, depois Lex romana visigothorum,“ Código Revisado”
por Leovegildo e o “Livro dos Juízes”, de Recesvindo dos reis visigodos),
sofreu acréscimos e modificações, parte delas em decorrência da
proclamação do catolicismo como religião oficial da Espanha visigótica.
Estes acréscimos e modificações foram efetuados pelos Concílios de
Toledo (IV – 633, V – 636, VI – 638 e VIII - 653). Foi este Código
modificado (o Livro dos Juízes – Fuero Juzgo) que a Real Academia
Espanhola publicou em 1815, sendo uma edição fac-similar desta obra
que hoje se encontra no mercado (Editora Lex Nova, Madri, 1ª. Edição,
1990, 242 páginas) e disponível na íntegra (em latim e espanhol) na
Internet. Deste código são extraídas as informações que seguem.
4. No Fuero Juzgo (Código Visigótico) não é clara a distinção entre “justiça
pública” e “justiça privada”, pois o Juiz era pago pelas partes e poderia ser
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juiz quem fosse mandado pelo príncipe ou eleito pelas partes, com o
testemunho dos homens bons. O poder de julgar era recebido do príncipe,
do senhor da cidade ou de outros juízes (estes podiam transferir o poder
de julgar) – Livro 2,Título1, XIII. Havia uma justiça cível e criminal (Os
juízes devem ser estabelecidos de tal maneira que tenham poder de
terminar os pleitos, tanto das malfeitorias, quanto das outras coisas). E o
rei poderia mandar mandatários para colocar a paz entre as partes (L2T1,
XV). Quem fosse chamado em juízo e não comparecesse, deveria pagar
cinco soldos de ouro ao autor da demanda e cinco soldos de ouro ao juiz.
E se persistisse na recusa, receberia 50 açoites na frente do juiz. Não
vindo a juízo e não tendo onde pagar os cinco soldos, o réu receberia 30
açoites. Se o réu jurasse que não pôde vir a juízo, não receberia as penas
da revelia. Se um bispo não respondesse ao chamado do juiz, nem
nomeasse procurador, pagaria 50 soldos, dos quais 20 seriam para o juiz
e 30 para o autor da demanda (os números, no Fuero Juzgo, são sempre
grafados em algarismos romanos). Sacerdotes, diáconos, subdiáconos,
clérigos e regulares em geral que não atendessem ao chamado dos
juízes, receberiam a mesma pena que os leigos. E se não tiverem onde
pagar, o bispo os obrigaria a jejuar por 30 dias, jejum este que consistia
em receber um pouco de pão e um pouco de água à tarde. Se o revel
fosse fraco ou doente de modo a não poder suportar a pena, esta seria
aplicada de modo a não causar grande enfermidade ou morte (L2T1,
XVII). Aos juízes já se aplicava o que hoje se conhece por princípio da
impessoalidade: não deviam julgar por amor ou por ódio. Os juízes
podiam folgar em suas casas dois dias por semana, ou todas as tardes,
quando não haveria pleitos. Fora destes horários de folga, os juízes
deviam ouvir os pleitos e sentenciá-los, sem maiores dilações (L2T1,
XVIII). Se o juiz julgasse torto e privasse alguém de seus bens, o próprio
juiz deveria devolver o que recebeu indevidamente e pagaria o mesmo
tanto de seus bens; e se o juiz não tiver bens para entregar, receberia 50
acoites publicamente. Mas se o juiz jurasse que julgou torto por ignorância
e não por amor, nem por cobiça, nem para atender a pedidos, não sofreria
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pena alguma (L2T1, XIX). Os juízes eram exortados a não prolongarem
muito as demandas e não criar muitas dificuldades às partes, de modo
que um pleito não durasse mais do que oito dias. Se o juiz tivesse que
julgar um pleito maior do rei ou do conselho, deveria dizer às partes para
voltarem em data certa, para então demandarem (L2T1, XX). Poderia
haver apelação para o príncipe (L2T1, XXII). Há um tabelamento dos
“serviços judiciais”, com as penas para quem os desrespeitasse: Por que
viemos ya muchos iuezes é muchos merinos, é muchos sayones que por cobdicia
pasavam el mandado de la ley, é tomavam la tercia parte de la demanda del pleyto:
por ende estabelecemos en esta presente ley, por toller esta cobdicia de los iuezes,
que nieguen iuez de pleito que sea iudgado, ó tratado antel, non ose tomar de XX.
sueldos mas de uno por su trabaio, assim cuemo es dicho en la ley de suso, é si
alguno tomar mas desto que nos avemos dicho, pierda todo loque devia aver
segund la ley, é quanto tomó mas contra derecho, que non mandava la ley, pechelo
en duplo a aquel á quien lo tomó. Otrosi porque entendemos que los sayones, que
andan en los pleytos, tomavan mas que non devien por su trabaio: por ende
establecemos en esa ley que non tomen mas de la décima parte de la demanda: é si
mas tomaren, pierdan lo que deven aver segund la ley, é demas lo que tomó péchelo
em duplo á aquel á quien lo tomó. (Por que já vimos muitos juízes, meirinhos
e saiones, que, por cobiça, excediam o mandado da lei, e tomavam a
terça parte do requerido no pleito, estabelecemos na presente lei, para
afastar esta cobiça dos juízes, que nenhum juiz do pleito que seja julgado
ou tratado perante ele, não ouse tomar mais de vinte soldos por seu
trabalho, assim como diz a lei. E se algum tomar mais que isto, perca tudo
que deveria receber segundo a lei e quanto tomou a mais contrariamente
ao direito e pague em dobro àquele a quem tomou. Outrossim, porque
entendemos que os saiones que fazem as diligências do pleito, tomam
mais do que devem receber por seu trabalho, estabelecemos nesta lei que
não tomem mais do que a décima parte da demanda; e se mais tomarem,
percam o que deveriam receber segundo a lei e o mais que tomaram
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paguem o dobro àquele de quem tomou.)
5. Segundo CONDE1, saihon ou sayon tem origem no germânico sagjo, que
significa aquele que executa a sentença; magistrado judicial subalterno,
com funções policiais; verdugo. Também segundo CONDE, soldo vem do
latim solidus (moeda de ouro). O solidus ou soldo era uma unidade de
conta no sistema monetário carolíngio. Correspondia a 1/20 da libra e a 12
dinheiros. Mas a única unidade de conta que efetivamente se cunhava
nos reinos cristãos era o dinheiro. Merino, por seu turno, originou
“meirinho” no português, originando-se ambos os vocábulos do latim
“maiorinus”, que significaria “maiorzinho”, pois estaria subordinado ao
“majordomo”, termo que originou “mordomo”. O merino era encarregado
da administração dos bens da coroa2 mas também poderia ter funções de
juiz. O pagamento ao juiz e ao sayon seria feito deduzindose da coisa
objeto da demanda ou de quem deveria entregá-la ou não o fez; mas se o
pleito fosse entre herdeiros ou se não fosse apurado de quem era a culpa
pelo pleito, ambas as partes pagariam ao juiz e ao sayon. Em caso de
revelia, o revel pagaria o trabalho do juiz e do sayon. Se o sayon não
quisesse fazer o que o juiz mandou, pagaria um soldo de ouro por cada
onça de ouro que valesse o pleito. Se o sayon fosse plebeu, receberia
duas cavalgaduras emprestadas para o serviço e, se fosse nobre,
receberia não mais do que seis cavalgaduras (L2T1, XXIV). Os juízes
podiam julgar por mandado do rei ou por vontade das partes. O duc, o
conde e o “vicário” (= lugartenente, substituto, delegado) podiam julgar por
mandado do rei ou por vontade das partes. E uma vez recebido o poder
de julgar, deviam ter o nome de juiz, suportando os ônus e os bônus de tal
condição, segundo manda a lei (L2T1, XXV). Se os juízes julgassem torto,
o pleito nada valeria. Note-se que, na ementa do artigo, o juiz é chamado
de alcaide. Eram também nulos os julgamentos ocorridos por pressão dos
poderosos: quando os juízes julgassem torto (ou seja, nem conforme o
1CONDE, Manuel Sílvio. Os forais tomarenses de 1162 e 1174. in Revista de Guimarães, n.º 106, 1996, pp. 193-249
(obtido no site www.cs.uminho.pt)
2REILLY, Bernard. Cristãos e Muçulmanos – A Luta Pela Península Ibérica. Tradução de Maria José Giesteira. Lisboa,
Teorema, 1992, p. 75.
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direito, nem segundo a lei) a mando dos príncipes ou por medo. E mesmo
que nada valesse o julgamento, os juízes não sofreriam penas se
jurassem que não julgaram torto por sua vontade, mas por medo do rei
(L2T1, XXVII). Na ementa do item XXVIII se declarava que os bispos
tinham poder sobre os juízes que julgassem torto: XXVIII. Do poder que
têm os bispos sobre os juízes que julgam torto Nós admoestamos aos
bispos de Deus, que devem ter guarda sobre os pobres e sobre os
coitados, por mando de Deus; que eles admoestem os juízes que julgam
torto contra os povos, para que melhorem e que façam boa vida e que
desfaçam o que julgaram mal. E se eles não quiserem atender a
admoestação dos bispos, e quiserem julgar torto, o bispo em cuja terra
está, deve chamar o juiz que dizem que julgou torto, e outros bispos, e
outros homens bons, e emendar o pleito com o juiz, segundo o que é de
direito. E se o juiz for tão desleal que não queira emendar o julgamento
com o bispo, então este pode julgar por si, e faça um escrito de como
emendou o julgamento e envie este escrito ao rei, juntamente com a
pessoa que estava agravada, para que o rei confirme o que lhe parecer
que é direito. E se o juiz impedir que vá ao bispo aquele homem que antes
era agravado por ele, juiz, com torto, pague o juiz duas libras de ouro ao
rei..
6. É interessante notar que há, no Fuero Juzgo, um germe do Ministério
Público ibérico: após asseverar que quanto mais os senhores julgam os
pleitos, mais se devem guardar de os estorvar, o Fuero Juzgo determina
que quando o bispo ou o príncipe entram em alguma demanda com outro
homem, devem nomear procuradores para figurarem na demanda por
eles. Isto porque pareceria desonra a tão grandes homens se algum
homem que lhes fosse inferior contestasse o que dissessem na demanda.
E se o rei quisesse estar em pessoa na demanda, quem ousaria contestálo? Assim, para que por medo do poder não desfaleça a verdade,
mandamos que não tratem eles (bispos e príncipes) o pleito por si, mas
por seus mandatários3(L2T3, I).
3 Los sennores quanto mas devem iudgar los pleytos, tanto mas devem guardar de los destorbar. Onde si el obispo ó el
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7. Os muçulmanos dominaram a península ibérica de 711 a 1492. Mas por
volta do ano 1000 os cristãos já dominavam quase a metade da
península. Do que é hoje Portugal, a parte norte – até Coimbra – era já
cristã e, o sul, incluindo Lisboa, ainda estava sob domínio muçulmano.
Lisboa, então, pertencia à Taifa de Badajós. Pois bem, entre os
muçulmanos, a justiça era feita pelo Cádi, um cargo “público”. A palavra
Cádi originou Alcaide em português que, em alguns momentos da história,
exerceu a magistratura.
8. Já em Portugal (depois que se tornou independente), a separação entre
administração e justiça só se fez, com nitidez, em 1832. A palavra juiz, até
então, era empregada comumente na acepção de presidente ou
autoridade principal, apesar de denotar, prevalentemente, o sentido de
administrador de justiça. Mas já no reinado de Afonso II (1211) havia
juízes municipais (também chamados juízes da terra) e juízes designados
pelo rei. Entretanto a instrução dos processos que era oral, segundo
CAETANO - e a definição do direito aplicável era feita por homens bons
escolhidos de uma assembléia judicial, composta por vizinhos de um
concelho. Os concelhos eram formados por diversas povoações. Os
homens-bons eram os vizinhos mais sisudos e experientes, com mais tempo
disponível e mais interesse pelas coisas públicas (CAETANO, 1992: 215 a 224).
9. No tocante às leis criminais, também segundo CAETANO, o início de
Portugal conheceu a justiça pública (aplicada pelo rei, juízes, senhores e
concelhos) e a justiça privada (exercida pelos ofendidos: vítima, parentes,
vizinhos ou grupo protetor). Dentre as formas de justiça privada, havia a
composição: pecuniária, mediante indenização; corporal ou por açoites,
em que o agressor entrava às varas, ou seja, era surrado com varas; por
missas, em que o ofensor pagava a celebração de missas pelo ofendido;
por prisão, ou seja, em cárcere privado. Após a composição, havia um
principe an pleyto con algun omne, ellos deven dar otros personeros, que trayan el pleyto por ellos. Cadesondra semeiarie á
tan grandes omnes, sí algun omne rafez les contradixiesse lo que dixiessen en el pleyto. Hy el rey si quisiere traer el pleyto
por si, ¿quien le osará contradecir? Onde que por el miedo del poderio non desfalezca la verdad, mandamos que non tracten
ellos pleyto por si, mas por sus mandaderos.
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ritual de reconciliação. A vingança privada, porém, passou a ser coibida já
em 1211, pelo Rei D. Afonso II. A execução da justiça privada só era
permitida fora das povoações: era a paz urbana. Ademais, era exigido
maior polimento dos costumes na urbs, donde veio a expressão
urbanidade. Esta manutenção da ordem nas povoações chamava-se paz
urbana. Mais importante do que a paz urbana era a paz doméstica: a casa
era asilo inviolável, servindo inclusive para proteção de criminosos que
nelas se refugiassem. A violação de domicílio já era delito grave em
legislação portuguesa do ano de 1211. No tocante à justiça pública, de se
lembrar que a justiça era um dos primeiros, senão o mais importante,
deveres do rei. Mas justiça privada e justiça pública ainda coexistiam,
sendo esta última exercida pelo rei (por meio dos juízes régios), pelos
senhores (por meio dos juízes senhoriais) e pelas assembléias municipais
(que eram presididas por juízes municipais, os quais também, às vezes,
julgavam de forma singular) (CAETANO, 1992:248).
10.Nas Ordenações Filipinas (com vigência a partir de 1603), o Estado tinha
duas atividades, a administrativa (Fazenda) e judiciária (Justiça), como se
vê do seguinte trecho: Ordenações Filipinas (Primeiro Livro, Título 99 - p.
237 da edição utilizada): Porquanto por confiarmos de algumas pessoas,
que nos serviram bem e fielmente, e como cumpre a nosso serviço e bem
da Justiça, descargo de nossa consciência e proveito da nossa Fazenda,
os encarregados de alguns Ofícios da Justiça, ou da nossa Fazenda, e
assim por lhes fazermos mercê (a qual porém lhes não faríamos, posto
que boa vontade lhes tenhamos, se não fosse a confiança, que neles
temos),e depois de os assim termos encarregados nos tais Ofícios, vêm
às vezes à nossa notícia que os não servem como são obrigados, e
conforme a confiança, que neles tínhamos, quando dos tais Ofícios os
provemos. E posto que nas coisas, que assim dos sobreditos sabemos, e
que à nossa notícia vem, às vezes não há provas tão claras, porém há
quanto basta para sermos certo, que somos deles mal servido, e eles
errarem nos ditos Ofícios, de maneira que será mais serviço de Deus e
nosso serem-lhes tirados, que deixá-los estar neles. Pelo que, e por
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outros respeitos, que nos movem, de muito serviço de Deus e nosso, bem
da Justiça e governo de nossos Reinos e Senhorios, determinamos que
quaisquer Ofícios, que dermos, assim da Justiça, como de nossa
Fazenda, ou de qualquer outra sorte e qualidade que seja, quando quer
que nós soubermos, e nos certificarmos em nossa consciência, que
alguns dos ditos Oficiais nos servem neles mal, e fazem o que não
devem, ou danificam e roubam nossa Fazenda, lhos possamos tirar e dar
a quem nossa mercê for, sem por isso lhes sermos em obrigação alguma,
assim no foro da consciência, como no foro judicial, para por isso haverem
de demandar nosso Procurador, nem requerer a Nós satisfação, porque
de todo os excluímos.
11.A Justiça era exercida por diversos órgãos: a Casa da Suplicação era o
maior tribunal (Livro 1, Título 1), seguindo-se o Desembargo do Paço
(L1T3), os Corregedores da Corte dos Feitos Crimes (L1TVII), os
Corregedores da Corte dos Feitos Cíveis (L1TVIII), os Juízes dos Feitos
do Rei da Coroa (L1TIX), os Juízes dos Feitos do Rei da Fazenda (T1LX)
e outros. Pois bem, dentre os Desembargadores da Casa da Suplicação,
um servia como Promotor da Justiça (notese: Promotor da Justiça e não
Promotor de Justiça) – Livro1, Título XV. A este promotor cabia requerer
todas as causas que tocam à Justiça, formar libelos contra os seguros ou
presos, que por parte da Justiça hão de ser acusados na Casa da
Suplicação. Mais adiante, no item 6 do mesmo Título XV, havia a seguinte
disposição: E mandamos que, em nenhuma cidade, vila ou lugar haja
Promotor da Justiça, salvo nas Casas da Suplicação e do Porto e assim,
nas Correições, em cada uma haverá um Promotor dado por Nós. Porque
nas outras cidades, vilas e lugares o Tabelião, ou Escrivão, que for do
feito, fará o libelo e dará as testemunhas... E esta mesma ordem de dar
as testemunhas terão os ditos Promotores. E do que o Tabelião ou
Escrivão fizer como Promotor, não lhe será contado salário de Promotoria,
somente lhe contarão as regras, como outra escritura do feito, que como
Tabelião escreve.
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12.No Império, havia crimes em que a acusação era feita pela Justiça e
outros em que o Promotor a fazia (Código Criminal do Império – 1831, art.
312). A situação pouco mudou na Primeira República, pois a ação penal
iniciaria de ofício, ou seja, pelo Juiz, nos crimes inafiançáveis e quando
não fosse apresentada a denúncia pelo Ministério Público nos prazos da
lei (Código Penal de 1890, art. 407, § 3o). A mesma disposição havia no
art. 407, § 4o, da Consolidação das Leis Penais de 1932. O Código de
Processo Penal em vigor (Decreto-Lei no 3.689/1941) manteve a
possibilidade do Juiz dar início à ação penal nas contravenções penais
(artigos 26 e 531).
13.Somente com o advento do artigo 129, I, da Constituição da República
Federativa do Brasil, em 1988, é que o Ministério Público passou a deter o
monopólio da ação penal pública. Assim, desde 1988, não há como se
falar – sem incorrer em erro – em “Justiça Pública” como autora de
processos e procedimentos criminais: primeiro, porque não há uma
Justiça privada; segundo, porque a “justiça” no caso é o Juiz – que não
pode intentar ação penal; terceiro, porque o nome do órgão que promove
a ação penal, que é o autor da ação penal, é Ministério Público e não
“Justiça”.
EM FACE DO EXPOSTO, o Ministério Público Federal requer seja
determinada a retificação da autuação, para que conste, como “autor” o Ministério Público
Federal e não a “Justiça Pública”; requer, ainda, seja determinado à Secretaria deste Juízo
que se abstenha de colocar na autuação de processos e procedimentos criminais a “Justiça
Pública” como autora; requer, finalmente, seja remetida cópia desta petição à Distribuição,
para que, igualmente, se abstenha de autuar processos e procedimentos criminais
colocando a “Justiça Pública” como autora.
Nestes Termos
Pede Deferimento.
Blumenau, 1 de Dezembro de 2004
João Marques Brandão Néto
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Procurador da República