limites entre ficção e realidade. análise de “terra

Transcrição

limites entre ficção e realidade. análise de “terra
O DOCUMENTÁRIO COMO METALINGUAGEM: LIMITES
ENTRE FICÇÃO E REALIDADE. ANÁLISE DE “TERRA DEU,
TERRA COME”1
Andrea Nero 2
Resumo: O objetivo deste artigo é pontuar algumas questões entre dois formatos
midiáticos, documentário e jornalismo, com o propósito de analisar, através dos
gêneros do discurso de ambos, a perspectiva da verossimilhança de cada um com suas
narrativas, já que a princípio ambos mostram, representam, e produzem a realidade e
abordam temas ou assuntos em profundidade a partir da seleção de alguns aspectos
sobre a sua importância histórica, social, política, cultural, científica ou econômica. O
caminho a ser percorrido passa por uma analise sobre a narrativa que orienta a leitura
de documentários e reportagens enquanto índices e parâmetros da realidade. Nesta
direção cabe discutir e desvendar os limites entre não ficção e ficção, já que ambos
compartilham inúmeros pontos de contato nos processos históricos de significação, de
mediação e de legitimação de suas narrativas. A proposta é analisar aproximações e
limites entre filmes documentais e de ficção, afim de que com esta multiplicidade
possamos apontamos características próprias do documentário capazes de diferenciálo de outros gêneros audiovisuais, como o filme de ficção e da reportagem
jornalística.
Palavras-chave: Documentário. Jornalismo. Ficção. Realidade.
Abstract: The aim of this paper is to point out some issues between two media
formats, documentary and journalism, with the purpose of analyzing, through
discourse genres from both the perspective of the likelihood of each with their
narratives, since the principle both show represent, and produce the reality and deal
with themes or topics in depth from the selection of some aspects of its historical,
social, political, cultural, scientific or economic importance. The road ahead goes
through an analysis of the narrative that guides the reading of documentaries and
reports as indices and parameters of reality. In this direction lies unravel and discuss
the boundaries between fiction and nonfiction, as both share many points of contact in
the historical processes of signification, mediating and legitimizing their narratives.
The proposal is to analyze similarities and boundaries between documentary and
fiction films, so that we can aim with this multiplicity own documentary features that
distinguish it from other audiovisual genres such as fiction film and journalistic
reporting.
Keywords: Documentary. Journalism. Fiction. Reality.
Trabalho apresentado no Seminário Temático “Narrativa Audiovisual”, durante a I Jornada
Internacional GEMInIS, realizada entre os dias 13 e 15 de maio de 2014, na Universidade Federal de
São Carlos.
2
Andrea Nero é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da
Universidade de Sorocaba (UNISO), com especialização em Jornalismo Cultural (FMU/SP) e
graduação em Comunicação Social, habilitação em Publicidade e Propaganda (FIAMFAAM Centro
Universitário), E-mail: [email protected]
1
1. Introdução
Este artigo tem como objetivo verificar os pontos de contato entre
Documentário e Jornalismo a partir da análise dos gêneros do discurso de ambos,
levando em consideração o caráter fluido dos diversos formatos que documentários
podem assumir. Ambos, jornalismo e documentário cinematográfico, mostram,
representam e reproduzem a realidade, são categorias permeáveis e variáveis, toleram
formas diferentes de contar a mesma história, seja por meio das transformações
sociais, por relações de interesses comerciais e políticos, por estética, metodologias
ou técnicas. Documentário e jornalismo compartilham inúmeros pontos comuns nos
processos históricos de significação, de mediação e de legitimação de suas narrativas.
O estudo pretende, ainda, observar as aproximações e os limites entre cinema
ficcional e não- ficcional, para construirmos um pensamento sobre realidade e sua
representação, já que também o jornalismo, além do documentário, precisa da
realidade e fundamenta seu discurso no conceito de “verdade”. A construção em
torno do assunto vem em momento oportuno já que tanto jornalismo como
documentário passam uma revisão, o primeiro pela credibilidade e o segundo pela
incidência cada vez maior da utilização da ficção em sua construção e ambos pela
atual discussão do seu papel na sociedade.
A proposta deste trabalho é estudar a convergência entre comunicações e
artes. Como cinema é arte e jornalismo é comunicação de massas, significa dizer que
tentaremos identificar os rumos, que independentes das diferenças, dirijam-se para
territórios comuns. Segundo Lúcia Santaella “(...) embora as eras sejam seqüenciais, o
surgimento de uma nova era não leva a anterior e as anteriores ao desaparecimento.
Elas vão se sobrepondo e se misturando na constituição de uma malha cultural cada
vez mais complexa e densa” (Santaella, 2005, 09). Neste caso vale a pena analisar se
estamos vivendo no Documentário e no Jornalismo efeitos da pós-modernidade,
quando as narrativas e discursos se tornam mais fluidos e menos categorizáveis.
2. A chegada do documentário no Brasil
O advento do Cinema no Brasil também teve início nos filmes de registro, já
que mostravam pontos importantes da cidade do Rio de Janeiro, filmados por Affonso
Segretto. “Esses filmes eram conhecidos como tomadas de vista e prevaleceram assim
até o ano de 1908.” (Gonçalves, 2006, p.80) Neste contexto ousamos afirmar que o
cinema no Brasil também teria origem no documentário, já que como registros, são
documentos ou registros documentais, assim como os primeiros filmes que se
iniciaram na Europa.
Em 1896, apenas sete meses depois da histórica exibição dos filmes dos
Irmãos Lumière em Paris, realiza-se no Rio de Janeiro a primeira sessão de cinema do
Brasil. Um ano depois da primeira exibição, Pachoal Segretto e José Roberto Cunha
Salles inauguram, na Rua do Ouvidor, também no Rio de Janeiro, uma sala
permanente.
Affonso Segretto, irmão de Paschoal Segretto, roda em 1898 o que viria a ser
primeiro filme brasileiro. Algumas cenas da Baia de Guanabara, no Rio de Janeiro,
quando estava a bordo do navio “Brèsil”, que retornava de Paris. Em seguida, são
realizados pequenos filmes sobre o cotidiano carioca e filmagens de pontos
importantes da cidade, como o Largo do Machado e a Igreja da Candelária, todos no
estilo dos documentários franceses do início do século. Outras exibições e aparelhos
de vários tipos, como os animatógraphos, cineógrafos e vitascópios, surgem por
outras cidades do Brasil como, São Paulo, Salvador e Fortaleza.
No final dos anos 1920 e início dos anos 1930, o debate em torno do
fazer Cinema de ficção ou Cinema de Realidade – as prerrogativas
de um ou de outro – atualizou-se aqui ao modo da oposição
“posado” versus “natural”, que se desdobrava no que era a atividade
propriamente “artística”, no caso do primeiro pólo, e a mera
atividade de “cavação”, no caso do segundo. (Teixeira, 2004, p.20).
No Brasil tivemos intensa produção de atualidades, chamadas de cinejornais,
durante todo o período do cinema mudo indo até os anos 1980. Os Cinejornais faziam
parte da programação, passavam antes dos filmes de ficção, que, na verdade, era o
que levava todos ao Cinema. O gênero possuía proteção e regulamentação do Estado
e alguns exemplos recentes são Jean Mazon, Primo Carbonari e Canal 100. “Nos anos
1930, o Governo de Getúlio Vargas investe fortemente no Cine Jornal Brasileiro, que
faz o papel de órgão oficial do regime.” (Ramos, 2008, p.57).
Dentro da tradição que se consolidou com o passar dos anos, o cinema
documentário teve alguns momentos-chaves de reviravolta estilística, que
influenciaram a história do cinema como um todo. A realização documental na
contemporaneidade tem um grande salto quantitativo tecnológico e com isso emerge
com uma multiplicidade de tendências, a obsessão com a reflexibilidade, com os
limites, com o exercício da liberdade, com a confluência que se apropria usufruindo
novos formatos, sempre desafiando a proximidade do limite entre ficção e não-ficção.
Em seu longo caminho, o documentário apostou menos em uma forma fixa e investiu
mais em sua metamorfose. Com isso o documentário se consolida como gênero
híbrido e convergência de novas linguagens.
2.1. Definições e formas de linguagem do cinema documental
O Cinema Documental tem uma inegável importância como modalidade de
registro da forma de expressão, seja individual ou da sociedade. O Documentário é
um gênero cinematográfico que se caracteriza pelo compromisso com a exploração da
realidade. Mas nem sempre ele representa a realidade “tal como ela é”.
Na medida em que o documentário se propõe a estabelecer asserções sobre o
mundo histórico, ele estará lidando diretamente com a reconstituição e a interpretação
de um fato que, no passado, teve a intensidade de presente. A reconstituição poderá
ser valorada positiva ou negativamente, pois a noção de verdade de alguns poderá
muitas vezes se aproximar para outros do que chamamos de interpretação, não
necessariamente de uma pessoa, mas do olhar do diretor sobre o determinado
acontecimento.
O conceito de “Cinema Verdade” dado ao documentário foi teorizado pela
primeira vez por Dziga Vertov (1896-1954), defendendo que a fiabilidade do olho da
câmara, a seu ver, mais fiel à realidade que o olho humano, idéia ilustrada pelo filme
que realizou “Cine-Olho” (1924), sinônimo por algum tempo de Cinema Verdade.
Vertov alia a sua presença no filme e a presença do aparato cinematográfico, à idéia
de registrar as pessoas sem que elas se apercebam.
John Grierson, acredita no potencial do cinema de promover a cidadania e
imprimi ao documentário o valor máximo, chegando ao ponto de chamá-lo de escolha
poética ao fazê-lo em lugar da ficção e o considera um ótimo instrumento de
educação. Usava inovadoramente o cinema como instrumento de educação, foi o
primeiro a usar o termo documentário e escreveu: "sendo um relato visual da vida
cotidiana dos jovens polinésios tem valor documental". Grierson defendeu
duplamente o documentário: como produtor e impulsionador do chamado
“movimento documentarista britânico” e através de textos em que proclamava as
potencialidades do documentário.
Robert Joseph Flaherty, cineasta irlandês, dirige e produz o primeiro sucesso
de longa metragem documentário, “Nanook of the North” (1922), na Baía de Hudson.
O filme não é apenas a história sobre Nanook e sua família, e sim, um registro do
passado do povo Inuit e sua luta pela sobrevivência. Flaherty registrou a vida dos
antepassados de Nanook e seu modo de vida, como caçavam, construíam iglus, etc. O
que o destacou dos demais filmes de viagens da época, é o fato de ele incorporar as
imagens naturais, estratégia própria da narrativa ficcional.
Podemos concluir pelo que foi abordado até então, que desde o surgimento do
cinema, discutia-se a interferência e manipulação no documentário e os limites entre
ficção e não ficção.
Diferenças entre documentário e ficção, certamente, não são da
mesma natureza das que existem entre répteis e mamíferos.
Lidamos com o horizonte da liberdade criativa de seres humanos,
em uma época que estimula experiências extremas e desconfia de
definições (Ramos, 2008, p.22).
No documentário contemporâneo, mais criativo, há uma forte tendência em
trabalhar com a enunciação da primeira pessoa. É geralmente o “Eu” que fala,
estabelecendo asserções sobre a própria vida.
O cinema digital nos traz agora
câmeras levíssimas, com grande autonomia de gravação e imensa sensibilidade à luz,
permitindo registros antes impossíveis sem recorrer à iluminação artificial. Os
princípios são os mesmos, mas o protagonista não. O documentário nasceu retratando
o Outro ou o Desconhecido, agora o foco sai do mundo exterior para outro universo
desconhecido, o do próprio cotidiano. Uma das estratégias contemporâneas de
radicalização da modernidade no documentário é inserir o próprio cineasta no filme
que realiza. O Outro a retratar, é agora “o eu”.
Deleuse afirma que foi fundamental recusar as ficções estabelecidas
para que este cinema pudesse se dirigir, aprender e descobrir uma
realidade distante-exótica, por um lado, próximo-familiar, por outro.
[...] o objetivo e o subjetivo foram deslocados, não transformados; as
identidades se definiam de outra maneira, mas continuavam
definidas; a narrativa continuava veraz, realmente veraz em vez de
ficticiamente veraz. Só que a narrativa não havia deixado de ser uma
ficção. (Teixeira, 2004, p.46-47).
O que se pode concluir ao longo de seu itinerário, é que o documentário
apostou menos em sua forma fixa e mais em sua metamorfose, pois como vimos, para
Deleuse o que esta em questão não é mais a discussão entre ficção e não ficção, mas
as transformações no âmbito da narrativa que afetam ambos os tipos de cinema.
3. Jornalismo como linguagem
Na comunicação humana estão presentes, expressões objetivas sobre os
acontecimentos da realidade ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, se
manifestam implicaturas e elementos simbólicos que ampliam seus significados para
muito além daquilo que é dito explicitamente. A pesquisa parte do pressuposto de que
os relatos das notícias são pré-configurados por categorias simbólicas presas, como a
literatura, por matrizes mitológicas que os conformam. Mônica Martinez fala disso
em seu livro “Jornada do Herói”, onde diz ser o ato de narrar lendas, sagas, tradições
e histórias a gênese do trabalho jornalístico. Enquanto sistema simbólico, os relatos
das notícias contam histórias, delineiam as fronteiras do bom e do ruim, do justo e do
injusto. Por esta perspectiva, as notícias e reportagens assumem a forma narrativa e
invadem regularmente o terreno dos mythos, é como se os jornalistas quisessem
estimular a fantasia, a imaginação, os desejos e as utopias dos leitores, ouvintes,
telespectadores ou internautas através dos dramas e das tragédias da humanidade.
“Isto faz com que sobre também para os observadores da imprensa, os leitores e
telespectadores, uma cota de mal-entendidos e de interpretações ambíguas.” (Roland
Barthes).
O repórter ou Jornalista processa a informação que recebe ou presencia de
acordo com sua percepção do que é dito ou do que acontece, e produz uma nova
mensagem que será levada ao público. Esta informação é passada de acordo com o
que ele acredita que este público quer ou precisa receber. Segundo Nilson Lage (2005,
p. 23) “o repórter, além de traduzir, deve confrontar as diferentes perspectivas e
selecionar fatos e versões que permitam ao leitor orientar-se diante da realidade.”
Repórteres, como todos os seres humanos, têm sua própria tendenciosidade, possuem
crenças e padrões de comportamento que nem sempre se adaptam a tarefa que estão
executando, embora tenham autonomia, habilidade e reações ao meio que estão
pesquisando e escrevendo e com isso sejam mais eficazes que máquinas, como as
câmeras fotográficas ou cinematográficas, são menos exatos e nem sempre relatam ou
delatam como a câmera faria.
A essência do Jornalismo é partir da observação da realidade, esteja ou não
conforme sua teoria ou crença. É tarefa comum dos repórteres selecionar e questionar
fontes, colher dados, depoimentos, situá-los em algum contexto e processá-los dentro
das normas jornalísticas. Vivemos hoje uma guerra de informação, o jornalista é um
intermediário, está onde o leitor não pode estar, tem a autorização de selecionar e
tornar público aquilo que achar interessante e gerir conflitos que sempre andam juntos
com a administração da informação. Dentro do jornalismo atual, existe a busca pela
igualdade de direitos ao acesso a informação, pela objetividade e qualidade de
informação, o que é uma questão controversa, pois há uma tendência dos editores de
sempre apostar numa das versões em detrimento da diversidade de interpretações
alternativas.
Outra questão é o conteúdo emocional numa entrevista, normalmente
suprimido em jornalismo impresso, de rádio e televisivo. Porém são estas
demonstrações de voz esganiçada, choros, testas franzindo, soluço, lágrimas de um
entrevistado que acreditamos serem os mais significantes para passar a realidade do
acontecimento a Imprensa deixa de lado em muitos casos, pelo simples fato de ainda
encontrar dificuldades em contextualizar cada caso usando somente o real, pois tem
pesos e medidas variados e às vezes contraditórios para os muitos casos noticiados.
4. Convergências entre jornalismo e documentário
Convergir não necessariamente significa identificar-se, mas sim aproximarse, tomar rumos comuns, independente de suas diferenças. Visando explorar esta
aproximação e suas diferenças na comunicação de massa e na arte, escolhemos para
analise o Jornalismo e o Cinema Documental, já que ambos aproximam-se de início
por precisarem de fatos reais ou históricos para existir, além de começarem a
entrecruzar-se já a partir da revolução industrial. “Podemos dizer que o documentário
surge nas beiradas da narrativa ficcional, da propaganda e do Jornalismo” (Ramos,
2008, p.55).
Deleuse começa por distinguir as “formas que desde muito cedo
recusavam a ficção”; chama tais formas de “Cinema Realidade” e
cujos propósitos eram “ora fazer ver objetivamente meios, situações
e personagens reais, ora mostrar subjetivamente as maneiras de ver
os próprios personagens, a maneira pela qual eles viam sua situação,
seu meio, seus problemas”. Ambas as preocupações se mesclam nos
pólos, “documentário ou etnográfico” e em “investigação ou
reportagem”[...] (Teixeira, 2004, p.45, grifos do autor).
Nossa intenção é discutir, o que é reportagem, o que é documentário, em que
se distinguem e em que convergem. Entendemos que reportagem é uma forma
narrativa que nada tem haver com a narrativa do Cinema. A reportagem é uma
narrativa que nos apresenta asserções dentro do programa “telejornal” e movimentase de forma dinâmica juntamente com o discurso do âncora, já o documentário é algo
muito próximo do filme, pois é veiculada ao espectador enquanto unidade narrativa
com começo e fim em si mesma.
No telejornal temos o jornalista que apresenta o programa e a figura do
repórter que interage com o âncora e com o telespectador. O programa de telejornal é
composto pela sucessão de notícias, sem uma articulação entre as mesmas, e
vinculado a acontecimentos cotidianos denominados de notícias. Ao contrário dos
programas de reportagens, o documentário é mais denso, tem viés autoral e uma
unidade narrativa com duração temporal variável, mas una.
Podemos dizer que entre 1973 e 1982, documentário e jornalismo exploraram
o mesmo território, estando assim muito próximos. No Globo Repórter desta época,
havia maior espaço autoral, pois os programas eram dirigidos pela geração
cinemanovista do Rio de Janeiro e de São Paulo, que levavam para a televisão,
assuntos encomendados com narrativas e estéticas documentais, aliadas ao suporte
fílmico. A partir de 1984, a produção documentária do Globo Repórter aproxima-se,
cada vez mais, ao formato de reportagem de telejornal, até chegar a atualidade, como
um programa de variedades e curiosidades, totalmente distante à forma documentária
que o dominou até 1982.
Se partirmos do pressuposto de que “narrar é contar uma história”, tanto o
cinema como o jornalismo iniciam pelo mesmo caminho. O Jornalismo num caráter
superficial diante das urgências e o documentário mais reflexivo e aprofundado. A
apreensão da realidade, ou da verdade, passa também pelo vínculo que estabelece
com a objetividade, também vista como elemento caro a ambos. O documentário em
caráter marginal, mais livre para novas possibilidades temáticas e estéticas, podendo
inclusive recorrer à descrição jornalística, ou até mesmo utilizar trechos de matérias
no desenrolar da narrativa. Precisa transformar o inusitado em elemento, mesmo que
se desconstrua o roteiro inicial no meio de um projeto, pois precisa estar aberto ao
inesperado, pois o inusitado sempre pode acontecer quando nos aprofundamos em
alguma história real.
O que é imprescindível nunca esquecer, é que, documentarista, no processo de
montagem e decupagem do material e o repórter na construção de sua narrativa, são o
vínculo ético com os personagens ou entrevistados, a fim de garantir que os
“personagens reais” de suas histórias sejam preservados, pois a vida continua depois
do filme pronto e da reportagem veiculada.
5. Análise do Documentário “Terra Deu, Terra Come”
“Terra Deu, Terra Come”, documentário ganhador do Prêmio de melhor filme
no Festival É Tudo Verdade de 2010, conta a história de Pedro de Alexina,
garimpeiro, negro com mais de 80 anos, excepcional contador de histórias e último
conhecedor de vissungos, cantigas em dialeto banguela cantadas durante os rituais
fúnebres no Quartel de Indaiá, antigo quilombo da região Diamantina, interior de
Minas Gerais, que eram muito comuns nos séculos 18 e 19. Nele se resgata o que
sobra destes cantos na memória dos habitantes locais e enfrenta, de maneira bastante
inventiva, o desgaste do tempo, da memória de seu Pedro e o embaralhamento de uma
tradição oral já misturada com lembranças remotas, que centraremos nossa análise, a
fim de discutir os limites e fronteiras entre documentário e ficção.
Um filme sem roteiro prévio, aberto para o inusitado, baseado e fundamentado
na memória de Pedro de Alexina, tem nas primeiras imagens o velório de João Batista
que morreu com 120 anos, com muito choro, riso, farra, reza, silêncios, tristeza até
seu enterro nos moldes tradicionais do Quilombo desde os tempos de outrora. Seu
Pedro ao lado do corpo do morto, já coberto por um lençol branco, explica que ele
não morreu a míngua, foi bem cuidado e que é preciso esperar para enterrar porque o
corpo ainda esta quente, sempre com aval e confirmação de sua esposa para todas
suas considerações sobre o morto, conforme transcrição dos diálogos abaixo extraídos
do filme em questão.
Seu Pedro: “Ele ta inchando. Deus queira até amanhã, hein.”
Sua esposa: “Amanhã esse trem ta alto assim, e eu hein...Aí
eu...”
Seu Pedro: “É perigoso amanhã ele tá aquela pipa aí, oh. Vai
ficar pesado pra carregar. Será que ele acabou mesmo? Tem
que olhar. Põe a mão aqui Rodrigo procê ver. Tá morno!”
O Velório e sepultamento são mostrados no decorrer do documentário
intercalado com muitas histórias, cantigas ao redor da fogueira, entrevistas, conversas
descompromissadas. Mas saberemos só no final do documentário, que João Batista, o
morto, nada mais é que uma bananeira coberta por um lençol branco para que seu
Pedro possa mostrar ao Diretor Rodrigo, citado no diálogo acima, como é feito um
velório nas tradições do Quilombo. Passamos o filme inteiro assistindo um velório e
ouvindo diálogos como os citados acima imaginando-os reais, quando são na
realidade, uma representação combinada entre o protagonista, Pedro Alexina, seus
familiares e o diretor, já que quando chamado por seu Pedro para por a mão no morto,
o diretor aparece em cena como um personagem. Mantendo-se calado perante a
encenação, não só consente, como se torna cúmplice da farsa montada por seu Pedro
que
afirma e sorri, como que piscando para Rodrigo e para os espectadores,
suscitando ambivalências. Farsa maravilhosa, pois nos traz uma nova visão sobre
como contar uma história dentro de uma história. Uma ficção, estória do velório de
João Batista, dentro de um documentário, história de vida de Pedro de Alexina e suas
crenças africanas, forma esplendidamente bem resolvida.
Temos segredos. Fizemos planos. Garimpamos juntos de alguma
maneira (Siqueira, 2010, p.49). Propus que representássemos algumas
situações para abrir possibilidades de entrarmos nessas histórias
(Siqueira, 2010, p.50).
Intrínseco no documentário tem ainda situações inusitadas como o encontro
com seu Pidrim Pessanha, personagem secundário, é o descendente da ramificação de
brancos do Quartel de Indaiá. Mostra sua surpresa e deslumbramento com a câmera,
tanto que sai da frente da câmera e vai para junto do fotografo ver a imagem e fica
perplexo ao ver os animais que antes estavam ao lado dele, se mexendo no vídeo e
não parados como numa foto, conforme transcrição dos diálogos abaixo extraídos do
filme em questão.
Pedrim voz off: Gente! Mas ocês tem parte com capeta? Que
diabo que é?
Fotografo voz off: [gargalhada]
Diretor voz off: Só meia parte, não é parte inteira não!
Pedrim voz off: É ocês mesmo que inventam esses trem, gente?
Fotografo voz off: Não, a gente compra. É o japonês que inventa pra
gente. Vou pegar o rosto do senhor.
Pedrim: Ê povo fié da puta é japonês né. [...] Ocês é mais sabido que
os negro feiticeiro daqui.
Este momento de interação entre fotógrafo, diretor e entrevistado ressalta o
real e a importância da modalidade de registro como forma de expressão, seja
individual ou da sociedade. O sorriso, o medo, a curiosidade, a proximidade, na frente
das câmeras junto com os diálogos e explicações do fotógrafo sobre o que esta
acontecendo, estimula a credibilidade do espectador em relação ao que acabou de ver
e ao que vem na sequência. O secundário seu Pedrim, torna-se peça fundamental de
ligação com o real e o filme, que tem histórias mirabolantes e longe da realidade de
quem o assiste, tornando-o mais próximo e por tanto mais verossímel.
Longe do formato tradicional de documentário onde diretor entrevista,
pesquisa e questiona os personagens para chegar as histórias ambicionadas, Rodrigo
Siqueira, age como ouvinte curioso querendo aprender de tudo um pouco, interage
não só com seu Pedro mas com sua mulher e familiares, participa como convidado de
uma grande festa, bebe, canta ao redor da fogueira, acompanha as caminhadas de
trabalho de seu Pedro, tanto ao garimpo quanto ao moinho, criando uma intimidade
com o protagonista que transcende a tela e chega a nós espectadores como relato de
importância simbólica. As histórias, as cantigas e tradições trazidas das gerações
passadas, no boca a boca, transmitidas de pai para filho vivem em Indaiá somente
através das memórias de Pedro de Alexina, que contribui para transmissão,
manutenção das tradições e mitos.
Se falarmos de memória, mesmo com a possibilidade de tropeçarmos em suas
falhas, aludimo-nos numa dimensão tanto cognitiva quanto social. Lembrar é um fator
importante para a ideia de continuidade e a narração vem a ser uma forma de
reafirmar a existência de um fato passado. Pensando nesta maneira, se a memória
possui falhas e se altera no decorrer da vida, podemos afirmar que os contos e
histórias de seu Pedro passam a ter uma importância cultural, porém não factual. Um
bom exemplo disso é quando conta a história da morte de seu pai quando ele apenas
tinha sete dias de nascido como se ele tivesse presenciado cada detalhe. Abaixo
transcrição do trecho em questão.
A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão,
agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam
nossa consciência atual. Por mais nítida que possa ser a lembrança de
um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na
infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa
percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de
realidade e de valor (BOSI, 1995, p.55).
Através destas abordagens explicitamos que misturar documentário e ficção
para evidenciar aspectos importantes e vitais de cada um, além de revelar que um não
se encontra tão distante do outro, mostra que Terra Deu Terra Come, é um
documentário que se constrói na frente da câmera, trazendo a tona questões de
metalinguagem.
6. Conclusão
Através deste estudo onde analisamos as aproximações e distanciamentos,
regras impostas e regras transpostas sobre o filme de não-ficção, concluímos que com
o passar das décadas, o documentário, mais do que a ficção sofreu mudanças
profundas em seu conceito, forma, finalidade, conteúdo, realização e aceitação. O
documentário se converteu por méritos próprios, em arquivo vivo do passado, por sua
função social, razões etnográficas, ou resgate de memória, e tornou-se testemunho de
seu tempo.
Em Terra Deu Terra Come que usamos como fruto da analise, vemos o uso da
técnica mista de ficção e não-ficção ou híbrido, como é comumente chamado
ataulamente, já que a contação da história do velório, cortejo e enterro no final nos
revela ser uma representação. Além disso, a narrativa de todo o filme se baseia na
memória de um senhor de mais de 80 anos que conforme já discorremos em outra
oportunidade pode conter verdades e inverdades. Embora tudo possa parecer muito
novo, não o é, já que desde o surgimento do documentário com a dramatização de
personagens foi utilizado por Robert Flaherty, em 1922 com “Nannok of the north”,
onde o personagem vivido pela mulher do Nannok, não é na realidade sua verdadeira
esposa.
Concluímos que um documentário precisa passar suas histórias e visões de
mundo de seus personagens, estimularem a curiosidade e interesse de seus
espectadores, mesmo que para isso precise usar da ambigüidade e que transite entre a
verdade, memória e fantasia. O importante é que se consiga mostrar o que esta por
trás, o infilmável, o desconhecido, as frestas, lacunas e fazer com que o espectador
consiga enxergar o que não esta na tela, a história além da história “Terra Deu Terra
Come”, se não revoluciona, pelo menos questiona os procedimentos estéticos do
documentário contemporâneo pós-moderno.
Referências Bibliográficas
BOSI, Ecléa. Memória e sociedades, lembranças de velhos. Cia das Letras. São Paulo,
1994. Acesso em jan. 2011. Disponível em:
http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?pid=S167851772008000100008&script=sci_arttext
BRASIL, Umbelino. O filme documentário como "documento da verdade". O olho da
história,
n.1.
Acesso
em
20
de
nov.
2010.
Disponível
em:
http://www.oolhodahistoria.ufba.br/01ofilme.html
BUHLER, Maíra Santi. O artesão da memória no Vale do Jequitinhonha. Scielo.
Rev. Antropol. v. 43, n. 2. São Paulo, 2000. Acesso em: janeiro de 2011. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003477012000000200013
CHALUB, Samira, Funções da Linguagem. Série Princípios. Editora Ática. São
Paulo, 1990. Acesso em: dez 2010. Disponível em: http://groupsbeta.google.com/group/digitalsource;
http://www.algosobre.com.br/gramatica/funcoes-da-linguagem.html
DA-RIN, Silvio. Espelho Partido: tradição e transformação do documentário.
Azougue Editorial. Rio de Janeiro, 2008.
DOCUMENTA BRASIL. Programa de fomento a produção de documentários.
Acesso
em
21
de
nov.
2010.
Disponível
em:
http://www.cultura.gov.br/site/2007/11/09/documenta-brasil-3/
EDUARDO, Cléber. Suspense da vida real. Revista Época. São Paulo. Acesso em 11
de jan. 2011. Disponível em:
.http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT446285-1661,00.html
FRIGERI, Vinicius. O ver mundo. Over Blog. Londrina, Paraná. 26 de ag. 2006.
Acesso
em:
11
de
jan.
2006.
Disponível
em:
http://www.overmundo.com.br/overblog/onibus-174-a-realidade-que-supera-a-ficcao
GONÇALVES, Gustavo Soranz. Panorama do Documentário no Brasil. Centro
Universitário do Norte – Uninorte. Doc On-line. n 01, p.79-91. dez. 2006. Acesso em:
20
de
nov.
2009.
Disponível
em:
www.doc.ubi.pt/01/artigo_gustavo_soranz_brasil.pdf
HISTÓRIA DO CINEMA. Curiosidades sobre o cinema. Acesso em 11 de nov. 2010.
Disponível em: www.webcine.com.br/historia1.htm
LABAKI, Amir. É Tudo Verdade: Reflexões sobre a cultura de documentários. W11
editores. São Paulo, 2005.
LAGE, Nilson. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística.
Reccord. Rio de Janeiro, 2005.
LIMA, Julia Lemos. O Cinema Documentário como Documento-Verdade. Escola de
Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – ECO/UFRJ. Acesso em 29
de
out.
2010.
Disponível
em:
http://usinahipermidia.wikispaces.com/file/view/cinema_verdade.pdf
LIMITAÇÕES DA LINGUAGEM JORNALISTICA. Observatório da Imprensa, ano
15, n. 578. fev. 2010. Acesso em: 7 de dez. 2010. Disponível em:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=578IMQ008,
LUMIÈRE, Auguste; LUMIÈRE, Louis. Wikipédia: a enciclopédia livre. Acesso em:
10
de
nov.
2010.
Disponível
em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Auguste_e_Louis_Lumi%C3%A8re
Oliveira, Paulo de Salles. Memória e sociedade: ciência poética e referência de
humanismo. Trabalho do Instituto de Psicologia da USP. Portal de Revistas USP.
Psicol. USP, v.19, n. 1. São Paulo, 2008. Acesso em Janeiro de 2011. Disponível em:
http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?pid=S167851772008000100008&script=sci_arttext
PENAFRIA, Manuela. O Documentarismo do Cinema. Universidade da Beira
Interior-UBI. Portugal. Acesso em 11 de nov. 2010. Disponível em:
www.bocc.ubi.pt/pag/penafria_manuela_documentarismo_cinema.pdf
RAMOS, Fernando Pessoa. Mas Afinal... O que é mesmo Documentário? Editora
Senac. São Paulo, 2008.
RAMOS, Fernando; MIRANDA, Luis Felipe. (orgs). Enciclopédia do Cinema
Brasileiro. Editora Senac. São Paulo, p.181. Acesso em 12 de nov. 2010. Disponível
em:http://books.google.com.br/books?id=cqt35OogAQYC&pg=PA190&lpg=PA190
&dq=primeiro+filme+documental+brasileiro&source=bl&ots=1jPO4RV_J2&sig=Ffq
S41ytI-puk30vLbPIK6FqMC8&hl=ptBR&ei=3bPoSvP6HuWltgetn7j4Bg&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=3&v
ed=0CAwQ6AEwAg#v=onepage&q=primeiro%20filme%20documental%20brasileir
o&f=false
ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Editora Cosac & Naify, p
125.
Acesso
em
12
de
nov.
2010.
Disponível
em:
http://video.google.com/videoplay?docid=-2531992243254208946#
SACRINI, Marcelo. Perspectivas do gênero documentário pela apropriação de
elementos de linguagem da TV Digital Interativa. Universidade Federal de Lavras –
UFLA. Minas Gerais. Acesso em 13 de dez. 2010. Disponível em:
http://www.bocc.ubi.pt/pag/sacrini-marcelo-doc-digital-interativo.html
SOUZA, Gustavo. Gêneros, discurso e gêneros do discruso: contribuições de Caroll,
Nichols e Bakhtin par o estudo do documentário cinematográfico. Revista Fronteiras:
estudos midiáticos, v. X, n. 2, p.104-110, maio/ag. 2008. Acesso em: dez. 2010.
Disponível em: www.unisinos.br/publicacoes_cientificas/images/stories/.../04.pdf
_____________. Fronteiras (in)definidas: aproximações e divergências entre
documentário e jornalismo. Trabalho de Doutorando na Eca, USP. Acesso em: 29 de
out. 2010. Disponível em: www.doc.ubi.pt/06/artigo_gustavo_souza.pdf
STRECK, Carla Fabiana; FRISON, Thirza Baptista. Lembranças de velhos, o mundo
de trabalho na infância. Est. Interdiscipl. Envelhec., v. 1, p. 105-121. Porto Alegre,
1999.
Acesso
em:
jan.
2011.
Disponível
em:
http://seer.ufrgs.br/RevEnvelhecer/article/view/4657
TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (org). Documentário no Brasil: Tradição e
Transformação. Summus Editorial. São Paulo, 2004.

Documentos relacionados