ASPECTOS DA ALOTROPIA NAS LÍNGUAS

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ASPECTOS DA ALOTROPIA NAS LÍNGUAS
ASPECTOS DA ALOTROPIA NAS LÍNGUAS ROMÂNICAS: ESBOÇO DE UMA TIPOLOGIA
(Publicado nos Anais da 43ª Reunião Anual da SBPC, 1991, p. 401-402)
Resumo: O presente trabalho pretende apresentar de forma sucinta os principais processos geradores de
lexemas alotrópicos num universo léxico dado, centrando nossa atenção no fenômeno da alotropia nas
línguas românicas, que têm sua principal fonte de neologismos alogenéticos no léxico do latim.
Palavras-chave: Lingüística; alotropia; línguas românicas; neologia.
Abstract: This paper intends to present in a brief way the main processes generating allotropic lexemes
in a given lexical universe, focusing the phenomenon of allotropy in the Romance languages, that have
their main source of allogenetic neologisms in the lexicon of Latin.
Keywords: Linguistics; allotropy; Romance languages; neology.
Como se sabe, o fenômeno da alotropia consiste na ocorrência, no léxico de uma determinada
língua, de lexemas de mesma etimologia, porém de natureza lexicogênica diversa. Por natureza
lexicogênica (ou estatuto genético, se se preferir), entendemos o processo através do qual um lexema se
incorpora ao léxico. Dentre esses processos, temos:
1.
Processos autogenéticos:
1.1. herança vernácula;
1.2. neologia fonológica;
1.3. neologia sintagmática;
1.4. neologia semântica.
2.
Processos alogenéticos:
2.1. empréstimo sem vernaculização (com ou sem adaptação morfológica);
2.2. empréstimo com vernaculização fonológica (metamorfismo);
2.3. empréstimo com vernaculização sintagmática (tradução);
2.4. empréstimo semântico (também conhecido como empréstimo de sentido);
2.5. refecção.
Os lexemas coetimológicos de diferente estatuto genético são chamados alótropos
(desaconselhamos o uso da denominação formas divergentes, pois, além de sua imprecisão terminológica,
tal termo gera ambigüidade, visto que os homônimos, por exemplo, também são divergentes, do ponto de
vista do significado). Nas línguas românicas, encontramos os seguintes tipos de alótropos:
1) Alótropos simultâneos parassinônimos: coexistem numa determinada etapa sincrônica da língua e
possuem significado e distribuição parcialmente coincidentes.
Ex.: francês raide (herança vernácula do latim rigidu)
francês rigide (empréstimo não-vernaculizado do latim rigidu)
<raide> ∩ <rigide> ≠ ∅
2) Alótropos simultâneos coextensivos (alomórficos): coexistem numa determinada etapa sincrônica e
possuem significado e distribuição coincidentes.
Ex.: italiano rovina (herança vernácula do latim ruina)
italiano ruina (empréstimo não-vernaculizado do latim ruina, refecção do anterior)
<rovina> = <ruina>
OBSERVAÇÃO: Não devemos confundir os alótropos alomórficos (caso de rovina/ruina) com os
alomorfes comuns, do tipo do português coisa/cousa. Este último caso não é de alotropia, visto ambos os
lexemas possuírem o mesmo estatuto genético (vernáculo), e, além disso, não serem coextensivos, pois
apresentam distribuições tópicas, crônicas e fásicas diferentes.
3) Alótropos simultâneos disjuntos: coexistem numa determinada etapa sincrônica e possuem
significado e distribuição disjuntos.
Ex.: português orelha (herança vernácula do latim auricula)
português aurícula (empréstimo não-vernaculizado do latim auricula)
português devesa (herança vernácula do latim defensa)
português defesa (empréstimo vernaculizado do latim defensa)
português defensa (empréstimo não-vernaculizado do latim defensa)
<orelha> ∩ <aurícula> = ∅
<devesa> ∩ <defesa> ∩ <defensa> = ∅
4) Alótropos sucessivos coextensivos: não coexistem na mesma etapa sincrônica da língua, mas
possuem significado e distribuição coincidentes. São o resultado da refecção de formas vulgares, que
podem por sua vez sofrer revulgarização posterior.
Ex.: português chor (herança vernácula do latim flore)
português frol (empréstimo vernaculizado do latim flore)
português flor (empréstimo não-vernaculizado do latim flore)
<chor> = <frol> = <flor>
séc. XII séc. XIV séc. XVI
OBSERVAÇÃO: Podem ocorrer ainda alótropos sucessivos disjuntos ou parassinônimos; entretanto, sua
ocorrência é pouco freqüente e pouco importante para o estudo da dinâmica neológica do léxico.
A alotropia é um fenômeno bastante corrente nas chamadas línguas de cultura, e, como dissemos no
início do presente trabalho, particularmente nas línguas românicas, nas quais tanto o léxico vernáculo
quanto a maior parte dos empréstimos eruditos e semi-eruditos provém da mesma fonte: o latim.
Entretanto, tendo em vista que também parte do léxico vernáculo das línguas germânicas é de origem
latina (por exemplo, inglês cup < latim cuppa, bishop < latim episcopus; alemão kurz < latim curtus,
Pfahl < latim palus, etc.), e tendo essas línguas sofrido a mesma influência latina que as línguas
românicas no que respeita à norma culta (universos de discurso filosófico, religioso, literário, etc.), resulta
que o estudo do fenômeno da alotropia é de interesse para qualquer pesquisa lexicológica que tenha em
vista os processos de lexicogênese das línguas ocidentais
Bibliografia
BARBOSA, M.A. Léxico, produção e criatividade: Processos do neologismo. São Paulo, Global, 1981.
GUILBERT, L. La créativité lexicale. Paris, Larousse, 1974.
MAURER JR., T. H. A unidade da România ocidental. São Paulo, FFCL-USP, 1951.
MULLER, Ch. Statistique linguistique. Paris, Larousse, 1967.
ROSENTHAL, E. T. A língua alemã: Desenvolvimento histórico e situação atual. São Paulo, Herder,
1963.

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