Tráfico de pessoas em Moçambique

Transcrição

Tráfico de pessoas em Moçambique
SHS/CCT/2006/PI/H/3
POLICY PAPER
Tráfico
de
Pessoas
No 14.1 (P)
em Moçambique:
86JH6HEG>C8>E6>H
:G:8DB:C96vÁ:H
Tráfico de Pessoas,
em Moçambique:
Causas Principais e Recomendações
Documento de orientação (Policy Paper) N° 14.1 (P)
Série de Relatórios sobre a Pobreza
Paris 2006
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AGRADECIMENTOS E CONTRIBUIÇÕES
Parte das conclusões registadas no presente documento de orientação (policy paper) são baseadas num estudo de pesquisa, não publicado, realizado pela
UNESCO sobre o tópico “Tráfico de Pessoas, especialmente de Mulheres e Crianças na África Austral (Lesoto, Moçambique e África do Sul) coordenado por Elize
Delport da Mhlava Consulting Services (África do Sul).
A escolha do material contido neste relatório bem como as opiniões aqui expressas não reflectem, necessariamente, os pontos de vista e opiniões da UNESCO e
não comprometem, de forma alguma, a Organização.
Equipa de Pesquisa:
Lea Boaventura, Coordenadora da organização Terres des Hommes para a
África Austral na área de Acção contra o Tráfico de Crianças
Carlos Manjate, Coordenador da Campanha de Moçambique Contra o Tráfico de
Crianças
Angela Mackay, Consultora Internacional sobre o Tráfico de Pessoas
Equipa Editorial da UNESCO:
Caroline BACQUET, Manilee BAGHERITARI, Antoine PÉCOUD, Juliette RUBENSTEIN, Eunice SMITH, Saori TERADA
Tradução por Elizabete Soares
Contactos:
Saori Terada, Coordenadora da Equipa
UNESCO Project to fight human trafficking in Africa
(Projecto da UNESCO para a luta contra o tráfico de seres humanos em África)
1, rue Miollis 75732 Paris Cedex 15
Tel.: 33 (0)1 45 68 40 86
Fax: 33 (0)1 45 68 55 97
Email: [email protected]
Internet: www.unesco.org/shs/humantrafficking
Design gráfico & reprodução
Soledad Munoz Gouet & Marina Taurus
[email protected]
© UNESCO 2006. Todos os direitos reservados.
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préambulo
Préambulo
A
UNESCO contribui para a luta global contra
o tráfico de pessoas encorajando reacções culturalmente apropriadas sensíveis aos géneros e
às idades com base na pesquisa e participação comunitárias.
O presente policy paper concentra-se no tráfico de mulheres e crianças em África.
Enquanto que cada grupo tem a sua situação específica, ambos grupos demonstram,
de forma clara, sérias violações de direitos humanos em situações de tráfico de
pessoas. O presente estudo destaca as formas como a falta de reconhecimento pelos
direitos das crianças e a posição marginalizada e discriminatória das mulheres a
nível público como privado posicionaram estes dois grupos em maior risco de
serem traficados.
A utilização por parte da UNESCO de uma abordagem baseada nos direitos
humanos com relação ao tráfico de pessoas reflecte a sua escolha de focar a sua
atenção sobre os grupos que revelam sérias violações dos direitos humanos em
situações de tráfico humano, ou seja, com relação a mulheres e crianças em
Moçambique.
Este documento de orientação baseia-se numa combinação da análise qualitativa
de entrevistas realizadas, entre 2004-2005, com partes intervenientes e de
interesse, juntamente com uma avaliação e análise críticas da literatura disponível
relativamente ao tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e crianças na África
a sul do Sahara.
Foi apresentada uma primeira versão deste documento de orientação a várias
partes intervenientes e de interesse durante a realização de um seminário regional
sobre “O Tráfico de Pessoas na África Austral (Lesoto, Moçambique e África do
Sul): Causas Principais e Recomendações para a Definição de uma Política”
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
organizado pela UNESCO em Pretória, África do Sul, entre 22 e 23 de Novembro
de 2005. Com base nos comentários recolhidos durante o referido seminário, foram
adicionados melhoramentos ao presente documento através de pesquisa e análise
complementares efectuadas entre Março e Maio de 2006.
O presente documento visa servir como uma ferramenta para a defesa, apoio
e conscientização para a luta contra o tráfico de pessoas em Moçambique, com
recomendações concretas a serem implementadas por vários intervenientes
envolvidos na luta contra o tráfico de pessoas em Moçambique (incluindo o governo
e organizações internacionais e locais).
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índice
1. INTRODUÇÃO................................................................................................... 9
1.A. Sumário...................................................................................................... 9
1.B. Factos Chave............................................................................................. 11
2. CONTEXTO E QUESTÃO................................................................................ 17
2.A. Qual é o contexto do Tráfico de Pessoas em Moçambique?........................ 20
2.B. Quais são as Causas Principais do Tráfico de Pessoas em Moçambique?.... 31
3. POLÍTICAS E PROGRAMAS............................................................................. 45
3.A. Actuais Quadros Legislativos..................................................................... 45
3.B. Programas e Projectos Actuais................................................................... 48
4. RECOMENDAÇÕES......................................................................................... 57
5. CONCLUSÃO................................................................................................... 63
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 65
ANEXO 1.............................................................................................................. 68
ANEXO 2.............................................................................................................. 69
ANEXO 3.............................................................................................................. 71
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Acrónimos
ADDC:Associação dos Defensores dos Direitos da Criança
ASI:Anti-Slavery International (Anti-Escravatura Internacional)
CCM:Conselho Cristão de Moçambique
CERPIJ:Centro de Reabilitação Psicológica Infanto-Juvenil
DRC:República Democrática do Congo
ECPAT:End Child Prostitution, Child Pornography and Trafficking of Children for Sexual Purposes (Organização internacional orientada
para o Fim da Prostituição e Pornografia de Crianças bem como do Tráfico de Crianças para Objectivos Sexuais)
FDC:
Fundação para o Desenvolvimento Comunitário
FECIV: Fórum de Educação Cívica
ILO: International Labour Organization (na sigla em Português
- OIT - Organização Internacional do Trabalho)
IOM: International Organization for Migration (na sigla em Português - OIM - Organização Internacional para a Migração)
NCACA: National Campaign Against Child Abuse (Campanha Nacional Contra o Abuso de Crianças)
ONG: Organização Não Governamental
OMM: Organizaçao da Mulher Moçambicana
PRSP: Poverty Reduction Strategy Paper (Estratégias para Redução de
Pobreza)
SADC:Comunidade de Desenvolvimento da África Austral
SAMP:
Southern African Migration Project (Projecto deMigração da África Austral)
SANTAC: Southern African Network Against Trafficking and Abuse of Children (Rede da África Austral contra o Tráfico e Abuso de Crianças)
SNJ: Sindicato Nacional de Jornalistas de Moçambique
UNICEF: United Nations Children’s Fund (Fundo das Nações Unidas para
a Infância)
UNIFEM: United Nations Development Fund for Women (Fundo de
Desenvolvimento das Nações Unidas para as Mulheres)
ZAR:Rand Sul-africano
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Mapa de Moçambique
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introduçÃO
1
Introdução
1.A. Sumário
O
tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e de
meninas, não constitui nada novo. Historicamente,
este realizouse sob diferentes formas, mas no
contexto da globalização, adquiriu novas e chocantes
dimensões. É um fenómeno complexo, multi-facetado que
envolve múltiplas partes de interesse a nível institucional
e comercial. Constitui uma actividade comercial a nível
global, orientada pela procura, com um mercado enorme
para mão-de-obra barata e sexo comercial confrontado,
muitas vezes, por quadros legislativos e políticas
reguladoras insuficientes ou não experimentadas e sem
pessoal adequadamente treinado para lhe fazer frente.
Moçambique é somente um de entre um número estimado de 10 países (Angola,
Botswana, DRC, Lesoto, Malawi, Moçambique, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e
Zimbabué) que abastecem o mercado de tráfico de pessoas que fornece a África do
Sul, o íman regional. A recente história de conflito armado, situações extremas de
deslocação e de perda, reconstrução, disrupção política e profundas marcas sociais,
juntamente com a geografia específica do país e a pandemia da SIDA fazem com que
Moçambique seja um alvo convidativo para o crime organizado. O impacto destes
eventos sobre as mulheres e crianças, juntamente com a discriminação sistémica
de géneros e a ausência de legislação de protecção tornam-nas particularmente
expostas ao tráfico humano.
.
UNICEF (2003) Trafficking in Human Beings, Especially Women and Children, in Africa, Innocenti
Research Centre.
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
Moçambique é um país de origem e de trânsito para actividades de tráfico
de pessoas. Existe também evidência de tráfico de pessoas a nível interno. O
destino principal do tráfico moçambicano de pessoas é a África do Sul, a potência
económica desta região. A escala de aumento do tráfico de pessoas de África
para a Europa e para o Médio Oriente sugere que os Moçambicanos, tal como
muitas outras nacionalidades africanas, podem já estar a alimentar este negócio
transnacional. O tráfico de pessoas envolve essencilamente mulheres e meninas,
mas também inclui rapazes, traficados para fins de exploração sexual, trabalhos
forçados e colheita de órgãos humanos. A pobreza é a principal força motriz desta
actividade comercial, empurrando as pessoas marginalizadas para as mãos dos
traficantes, que pertencem tanto a empreendimentos locais de pequena escala
com extensas redes criminosas como a operações comerciais de múltiplos bens
transaccionáveis de larga escala.
Após o Primeiro Congresso Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de
Crianças (na sigla em Inglês CSEC) realizado em Estocolmo em Agosto de 1996, as
organizações moçambicanas da sociedade civil e as instituições governamentais
estabeleceram um programa para ir de encontro às recomendações do congresso
visadas ao combate da exploração comercial das crianças. Como resultado, foi
estabelecido um Grupo Central para pôr em execução a Campanha Nacional
Contra o Abuso de Crianças (na sigla em Inglês NCACA). A partir daí introduziramse mais iniciativas que culminaram no lançamento oficial da Campanha Nacional
Contra o Abuso de Crianças. Moçambique também participou na Campanha
Internacional da Terres des Hommes contra o Tráfico de Crianças e que foi lançada
em 2001. Após estes eventos, foram estabelecidos vários programas focados em
áreas diversas como por exemplo, conscientização, protecção, integração social
e reabilitação. Não obstante a participação do Governo, o tráfico de pessoas
continua a ser um problema crítico em Moçambique. Estas dificuldades podem
ser atribuídas à complexidade do problema, à ambivalência dos responsáveis pela
tomada de decisões e à falta de recursos para assegurar a introdução de legislação
adequada visada a permitir intervenções estratégicas diligentes na luta contra o
tráfico de pessoas.
Para se combater, da melhor forma possível, o tráfico de pessoas em
Moçambique, bem como os resultantes efeitos prejudiciais patentes na sociedade
moçambicana, são necessários esforços, talentos e recursos governamentais, de
organizações internacionais, das ONGs bem como da sociedade civil.
.
UNICEF (2003) Trafficking in Human Beings, Especially Women and Children, in Africa”, Innocenti
Research Centre.
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introduçÃo
1.B. Factos Chave
Perfil do País
População total
19,406,703 (estimativas de 2005)
População urbana
35.6% (2003)
Grupos tribais: 99.6%
Asiáticos: .08%
Europeus: .06%
Grupos étnicos
Expectativa de vida à nascença
Mulheres: 42.7 anos
Homens: 41.1 anos
Mortalidade infantil (com menos de 1 ano)
130.8 mortes/1000 nascidos vivos
Alfabetização de adultos
Mulheres: 31.4%
Homens: 62.3%
População a viver com menos de 1 dólar norte-americano por dia
70% (estimativas de 2001)
Crianças na força de trabalho
32% (10-14 anos)
População afectada pela subnutrição
47%
Crianças com altura inferior à normal para a idade (com menos de
41%
5 anos)
População com acesso sustentável a saneamento melhorado
27%
População com acesso sustentável a fontes melhoradas de água
42%
Partos assistidos por pessoal de saúde profissionalizado
48%
Médicos
2 por 100,000
Mortalidade materna
1000 por 100,000 nascidos vivos
Mulheres no governo a nível ministerial
13%
Meninas no sistema educacional
53% a nível
secundário
primário;
Mulheres em posições legislativas, de gestão, profissionais e Não se encontra
técnicas; grupo de profissionais
informação
Prevalência de HIV/SIDA entre a população adulta
14% (2005)4
Índice de Desenvolvimento Humano
168/177
10%
disponível
a
nível
qualquer
1.B.1. Tráfico de Pessoas: Internacional
• De acordo com as estatísticas do Departamento do Estado dos Estados
Unidos em 2004 cerca de 600,000 a 800,000 mulheres e crianças são
traficadas anualmente através de fronteiras internacionais. Destas, aproximadamente 80% são mulheres e até cerca de 50% são crianças menores.
A vasta maioria das pessoas traficadas com menos de 18 anos de idade são
.
.
A informação providenciada na tabela acima foi extraída conjuntamente do Relatório da UNDP
sobre o Desenvolvimento Humano (2005) http://hdr.undp.org/reports/global/2005/pdf/HDR05_
HDI.pdf e do Livro da CIA sobre Factos Mundiais http://cia.gov/cia/publications/factbook/geos/
mz.html
UNAIDS, Dados sobre HIV por país: Moçambique http://www.unaids.org/en/Regions_countries/
countries/mozambique.asp
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
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meninas. Somente 2% de pessoas traficadas são crianças menores do sexo
masculino.
De acordo com as Nações Unidas o número de pessoas traficadas a nível
internacional e interno situa-se mais em cerca de 4 milhões de pessoas.
As estimativas da UNICEF indicam que cerca de 1 200 000 crianças foram
traficadas a nível global no ano 2000.
Homens e rapazes, mulheres e meninas são traficados para vários fins –
para a exploração sexual, como pedintes, como mão-de-obra explorada e
insuficientemente paga nas indústrias agrícola, de manufactura e de construção, nos serviços domésticos e para extracção de órgãos humanos.
As redes e sindicatos criminosos organizados transnacionais são responsáveis pela grande maioria de tráfico de pessoas, o qual está ligado a várias
outras actividades de tráfico ilegal – drogas, armas de fogo e bens de consumo – e outras actividades criminosas - branqueamento de dinheiro, contrabando e suborno e corrupção política.
O tráfico de pessoas é um negócio vastamente lucrativo. As estimativas dos
lucros situam-se entre, aproximadamente, 7 e 10 biliões de dólares norteamericanos por ano. As redes de crime organizado envolvidas no tráfico
de pessoas são altamente estruturadas, flexíveis e reagem positivamente às
exigências do mercado.
As fracas estruturas estatais, resultantes das disrupções de economias em
transição, contribuem para um ambiente favorável a organizações criminosas predatórias. Estruturas paralelas em substituição das estruturas de
segurança estatal dominam essas economias e prosperam através do medo
e da intimidação.
O poder geral destas redes e a percepção da sua capacidade de retaliação
contra as ‘vítimas’ e suas famílias reforça a sua natureza clandestina, a
dificuldade de investigação e a falta de evidência para processamento jurídico.
Os conflitos armados destroem os meios de subsistência, danificam severamente as economias nacionais e causam movimentações populacionais
em massa. Através de uma segurança cada vez maior, as guerras aumen-
Departamento do Estado dos Estados Unidos (2005) Trafficking in Persons Report.
USAID (1999) “Women as Chattel: The Emerging Global Market in Trafficking” Gender Matters
Quarterly, No 1.
UNICEF (2006) State of the World’s Children: Excluded and Invisible http://unicef.org/sowc06/index.php
Departamento do Estado dos Estados Unidos, ibid.
O termo ‘vítima’ é tipicamente considerado como despotencializador (em inglês disempowering).
O termo ‘pessoas traficadas’ é o termo de escolha no presente relatório e empreenderam-se
todos os esforços para o usar quanto mais possível. Contudo, em algumas circunstâncias foi
considerado apropriado usar-se o termo ‘vítima’.
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introduçÃo
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tam a vulnerabilidade das mulheres e das crianças, promovem estratégias
dramáticas de sobrevivências tais como a prostituição e muitas vezes envolvem o sequestro de mulheres e de crianças para grupos/facções armadas. O aumento da pobreza para os sobreviventes, particularmente para
as viúvas e aglomerados familiares chefiados por mulheres, constitui uma
característica endémica dos conflitos armados.
A migração como reacção ao conflito armado e à insegurança resulta em
vastas populações de refugiados, expondo os mais marginalizados a um
variedade de perigos – discriminação, violência sexual, intimidação, recrutamento para as forças armadas e tráfico ilegal.
Requisitos rigorosos de entrada aumentaram a regulação da movimentação das populações.·Quando os possíveis migrantes não conseguem ir de
encontro a estes requisitos, podem recorrer a meios irregulares, dando
origem ao contrabando e ao tráfico ilegal.
O aumento na procura de mão-de-obra barata continua a atrair os fluxos
de pessoas desde os locais mais pobres aos mais prósperos. Como resultado, com a movimentação das populações à procura de emprego, juntamente com as oportunidades associadas para exploração, existe muitas
vezes uma sobreposição entre a fonte do tráfico ilegal, locais de trânsito e
de destino. 10
A indústria de sexo comercial teve um aumento significativo à medida que
se globalizou e se tornou integrada com outros aspectos da modernização.
Os factores de procura que dominam o sexo comercial exigem um fornecimento constante de mulheres e crianças. A indústria de sexo comercial
está muitas vezes inextrincavelmente ligada ao turismo, tanto doméstico
como estrangeiro, e alguns países são especificamente promovidos pelo
“sexo-turismo”.11
A discriminação geral de géneros que nega às mulheres os seus direitos,
para além de atitudes que consideram as mulheres e as meninas como
inferiores e fracas e por isso as consideram como objectos, e toleram a violência contra as mulheres, apoiam a existência de práticas de tráfico ilegal
que atiram as mulheres para condições de vida e de trabalho pavorosas.
As famílias pobres, incapazes de sustentar os seus filhos são marginalizadas e pressionadas a vender ou disponibilizar os serviços desses filhos, e
as meninas são as mais vulneráveis à exploração comercial.
10. D’Cunha, Jean (2002) Expert Meeting on Trafficking in Women and Girls, Glen Cove, New York.
11. Corner, Lorraine (2002) A Gender Perspective to Combat Trafficking, Strategy Paper on an Integrated Approach to Livelihood Options for Women & Girls, Seminar on Promoting Gender Equality to Combat Trafficking in Women and Children, Bangkok. (Estratégia para uma Abordagem
Integrada às Opções de Sustento para Mulheres e Crianças, Seminário sobre a Promoção da
Igualdade de Géneros para Combater o Tráfico de Mulheres e Crianças, realizado em Bangkok).
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
• Não obstante convenções internacionais, continua a existir indiferença e uma
falta de compromisso a nível doméstico para proteger aqueles que mais se
encontram em situação de risco, através de legislação adequada, conscientização e informação, bem como através da formação das autoridades responsáveis por providenciar protecção.
1.B.2. Tráfico de Pessoas: Moçambique
• Não obstante sendo uma das economias com melhor desempenho em África,
Moçambique é um dos países mais pobres do mundo, dependente de vasta
ajuda estrangeira.12 13
• É um país de origem, trânsito e destino para o tráfico de pessoas14
• Os padrões tradicionais de migração de mão-de-obra para a África do Sul;
a prática de se emprestarem/enviarem as crianças para serem criadas por
membros familiares em melhor situação; e os existentes procedimentos fronteiriços imprevidentes contribuem para a aceitação e expectativas de um
movimento desregulado.
• As mudanças nas necessidades da mão-de-obra migrante na África do Sul e o
declínio em contratos contribuem para uma redução no intercâmbio entre os
homens migrantes e as suas famílias em casa, uma vez que estes se mantêm
ausentes na esperança de manterem ou de encontrarem novos empregos.
• Os resultados práticos da destruição da guerra incluem famílias separadas e
deslocadas, morte de membros familiares, crianças órfãs e abandonadas, perda de infra-estruturas e de serviços sociais, fluxo para as cidades de mulheres
que perderam os seus bens e as suas propriedades, um aumento significante
de aglomerados familiares chefiados por mulheres, um nível altíssimo de
desemprego, particularmente entre a juventude.
• A pobreza é a causa mais visível da vulnerabilidade das mulheres e das crianças.
• A discriminação com base nos géneros tanto em termos da prática e dos direitos estatutários e consuetudinários resulta no abuso dos direitos humanos
das mulheres e a sua prolongada posição de desvantagem na sociedade.
12. Freedom House 2005.
13. O crescimento económico atingiu em média 8 por cento durante os últimos 11 anos, o que constitui
um dos níveis mais rápidos no mundo. Estimulado por duas instâncias de alívio de dívida, calculada
em cerca de USD 57 milhões (83.4 milhões de dólares australianos) – prevê-se que o crescimento
rapidamente aumente ainda mais. (jornal New Zealand Herald, 09/07/05).
14. Organização Internacional para as Migrações (2003) Seduction, Sale and Slavery: Trafficking of
Women and Children for Sexual Exploitation in Southern Africa.
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introduçÃo
• As práticas culturais como por exemplo o casamento precoce, o lobolo15, o
levirato16, e a iniciação feminina podem ser prejudiciais à saúde das mulheres
e as restrições associadas com relação às escolhas por parte das mulheres e
das meninas, bem como a sua marginalização da participação e determinação
dos aspectos sócio-culturais, políticos e económicos da sociedade em que se
encontram inseridas.
• As estimativas relativamente à prevalência de HIV, a nível nacional, entre
adultos (15 a 49 anos de idade) indicam um aumento de 14% para cerca de
16% entre 2002–2004, sendo que o nível de seropositividade tem vindo a
aumentar mais rapidamente nas províncias que têm as principais ligações de
transporte com o Malawi, a África do Sul e o Zimbabué. Até finais de 2003
aproximadamente 1 300 000 moçambicanos vivem com HIV.17
• As estimativas indicam que existem cerca de 470 000 órfãos como resultado
de mortes relacionadas com a SIDA.18
• As extensas fronteiras terrestres e marítimas são difíceis e dispendiosas de
patrulhar de forma adequada.
• Os períodos de transição de um regime socialista totalitário para uma democracia multipartidária e uma economia de mercado providenciaram um
ambiente propício para o alargamento do crime organizado. O relaxamento
dos controlos sociais sem o estabelecimento correspondente de forças de
segurança adequadas, e o progresso lento para uma sociedade com base no
domínio da lei e no respeito pelos direitos humanos, contribui para lacunas
em termos de segurança que são exploradas pelo crime organizado.
• Os grupos locais de crime organizado, que negociam essencialmente com
drogas e produtos contrabandeados, e os sindicatos locais menos organizados
de tráfico de pessoas para fins múltiplos, estão firmemente estabelecidos.
• Não existe em Moçambique qualquer legislação doméstica contra o tráfico
de pessoas.
• Moçambique ainda não ratificou a Convenção das NU Contra o Crime Organizado Transnacional e o Protocolo das NU para Prevenir, Suprimir e Punir
o Tráfico de Pessoas, Especialmente de Mulheres e Crianças (o Protocolo de
Palermo) 2000.
15. Bens que o noivo entrega à família da noiva, a prática do futuro marido contribuir com gado, dinheiro, panos e/ou outros bens materiais culturalmente apropriados como compensação para a família
da noiva. O lobolo pode tornar-se uma questão contenciosa em alturas de dissolução de casamentos ou de viuvez.
16. A prática da viúva se casar com um irmão do falecido marido.
17. http://www.unaids.org/en. Actualização sobre a Epidemia da SIDA, Dezembro 2005.
18. UNAIDS, UNICEF, USAID (2004) Children on the Brink 2004: a joint report of new orphan estimates
and a framework for action (Relatório conjunto sobre as novas estimativas sobre órfãos e um quadro
para tomada de acção): www.unicef.org/publications/index_22212.html
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2
Contexto e questÃO
Contexto
e Questão
O QUE É O TRÁFICO DE PESSOAS?
A primeira definição de tráfico de pessoas acordada a nível internacional
encontra-se expressa no Protocolo das NU para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico
de Pessoas, Especialmente de Mulheres e Crianças, que Suplementa a Convenção
das NU contra o Crime Transnacional Organizado (2000) seguinte forma:
O recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por
meio de ameaça ou uso de força ou por quaisquer outras formas de coerção, de rapto,
de fraude, de decepção, do abuso de autoridade ou de uma posição de vulnerabilidade
ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para
uma pessoa ter controlo sobre outra pessoa, para o propósito de exploração.
A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de ouros ou outras
formas de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão, servidão ou
práticas semelhantes à escravidão, servidão ou a remoção de órgãos”.
O consentimento de uma vítima de tráfico por parte das pessoas da intencionada
exploração ... será considerada como irrelevante onde tenham sido usados quaisquer
dos ... meios [acima mencionados].
O recrutamento, transferência, abrigo ou recebimento de uma criança para fins de
exploração será considerado como ‘tráfico de pessoas’ mesmo nos casos em que
não envolva ... [qualquer dos meios acima mencionados].
“Criança” significa qualquer pessoa menor de 18 anos de idade (Art. 3).
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
Pontos-chave do Protocolo:
• Define o tráfico de pessoas como um crime contra a humanidade, marcado pela intenção de enganar e explorar;19
• Expande o âmbito de acções consideradas como parte do processo de tráfico – recrutamento, transporte, transferência, abrigo e recebimento
de pessoas nas instituições finais;
• Aborda um âmbito variado de meios usados, desde força óbvia a persuasões subtis que tiram proveito da vulnerabilidade para alcançar ‘consentimento’;
• Considera o consentimento à exploração intencionada como irrelevante, nos casos em que qualquer dos meios descritos nesta definição
seja usado;
• Reconhece que os homens também são traficados, destaque o tráfico
mulheres e crianças (Artigo 2);
• Identifica uma variedade de finalidades do tráfico de pessoas, para além
da exploração sexual;
• Contém medidas com base nos direitos humanos bem como medidas
protectoras de ordem social, económica, política e legal para prevenir o
tráfico, proteger, auxiliar, assegurar o regresso e reintegrar as pessoas
traficadas bem como penalizar os traficantes e toda a conduta relacionada (Artigos 6, 7, 8, e 9);
• Pede a cooperação internacional de forma a prevenir e combater o tráfico
de pessoas (Artigos 9, 10, 11).
Apesar das disposições relativas aos direitos humanos possam ser alargadas,
melhoradas e tornadas obrigatórias para os Estados, o Protocolo constitui apesar
de tudo um passo importante na identificação do tráfico de pessoas num contexto
de direitos humanos.20
A tabela a seguir providencia dados adicionais sobres os direitos violados no
contexto do tráfico de pessoas e instrumentos legais correspondentes.21
19. Consultar o ‘International Criminal Court, Rome Statute: Article 7: Crimes Against Humanity’
(Tribunal Criminal Internacional, Estatuto de Roma: Artigo 7: Crimes Contra a Humanidade)
20. UNIFEM Asia (2002) “Trafficking in Persons: A gender and rights perspective,” Briefing Kit.
21. Esta tabela foi adaptada do Human Rights Standards for the Treatment of Trafficked Persons
publicada pela Global Alliance Against Trafficking in Women (GAATW) e extraída da International
Perspectives and Nigerian Laws on Human Trafficking por Olaide Gbadamosi Esq, Rede para a
Justiça e Democracia
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contextO e questÃo
Direitos Humanos Geralmente
Violados no Contexto do Tráfico de
Pessoas
Instrumentos Legais e Artigos Internacionais correspondentes
• Artigos 22 e 25 (1) da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(UDHR)
• Artigo 12 da Convenção Internacional dos Direitos Económicos,
Sociais e Culturais (ICESCR)
Direito à Saúde e aos Serviços Sociais • Artigo 24 da Convenção sobre os Direitos das Crianças (CRC)
• Artigo 12 da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres (CEDAW)
• Artigo 5 (e) (iv) da Convenção Internacional para a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD)
Direito à Educação e Formação
• Artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (UDHR)
• Artigo 13 da Convenção Internacional dos Direitos Económicos,
Sociais e Culturais (ICESCR)
• Artigo 18 da Convenção Internacional sobre os Direitos Civis e
Políticos (ICCPR)
• Artigos 28, 29 da Convenção sobre os Direitos da Criança (CRC)
• Artigo 10 da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres (CEDAW)
• Convenção da UNESCO Contra a Discriminação em Educação
Direito à Liberdade de Movimento
e Liberdade de Escolher a Sua
Residência
• Artigo 13 (1) da Declaração Universal dos Direitos Humanos (UDHR)
• Artigo 12 (1) da Convenção Internacional sobre os Direitos Civis e
Políticos (ICCPR)
Direito ao Trabalho Decente
• Artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (UDHR)
• Artigo 8 (3) da Convenção Internacional sobre os Direitos Civis e
Políticos (ICCPR)
• Organização Internacional do Trabalho Convenção 29
• Artigo 23 (1) da Declaração Universal dos Direitos Humanos (UDHR)
• Artigo 7 da Convenção Internacional dos Direitos Económicos, Sociais
e Culturais (ICESCR)
• Artigo 11 da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres (CEDAW)
Direito à Liberdade Contra a
Escravatura
• Artigo 4 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (UDHR)
• Artigo 8 da Convenção Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos
(ICCPR)
• Convenção das Nações Unidas contra a Escravatura Complementar
à Convenção para a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e
das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura
Direito a não ser Torturado e/ou
Sujeito a Outros Tratamentos ou
Castigos Cruéis, Desumanos ou
Degradantes • Artigo 5 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (UDHR)
• Artigo 7 da Convenção Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos
(ICCPR)
• Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Castigos Cruéis,
Desumanos ou Degradantes Direito à Paz e à Segurança
• Artigo 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (UDHR)
Direito à Não-Discriminação
• Artigos 1, 2 e 7 da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(UDHR)
Direito ao Acesso à Justiça
• Artigo 6 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (UDHR)
• Artigos 19 e 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos
Direito à Liberdade de Expressão e de
(UDHR)
Participação
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
2.A. Qual é o contexto do Tráfico de Pessoas em
Moçambique?
2.A.1 Características Principais do Tráfico de Pessoas em Moçambique
De acordo com o Relatório de 2003 da Organização Internacional para as
Migrações intitulado “Sedução, Venda e Escravatura: O Tráfico de Mulheres e Crianças
para Exploração Sexual na África Austral” a exploração sexual e o trabalho forçado
são os principais fins do tráfico de pessoas em Moçambique. Existem em operação
várias redes de tráfico de pessoas mais ou menos em pequena escala que utilizam
carrinhas táxi para passar clandestinamente tanto migrantes como mulheres pela
fronteira. Estas redes têm a sua base em casas de trânsito estabelecidas na região
fronteiriça entre Moçambique, Suazilândia e África do Sul e operam através de
uma rede de cúmplices em Joanesburgo, Maputo e na região do Lebombo onde
recrutam, alojam e transferem mulheres. As frotas de carrinhas táxi viajam entre
Maputo e Joanesburgo várias vezes por semana. Estas transportam moçambicanos
que visitam as famílias ou que procuram trabalho, e que utilizam os táxis como
uma forma de transporte bem como de assistência para aqueles que atravessam a
fronteira sem a necessária documentação.
As moças jovens esperançadas em encontrar trabalho na África do Sul
ou que se visitam familiares, mas que acabam como vítimas do tráfico de
pessoas são recrutadas passivamente quando se aproximam dos postos de
táxis. Aqui os agentes de tráfico seleccionam as jovens que lhes podem
trazer melhor preço de venda e persuadem-nas a utilizar os serviços do táxi.
As vítimas assim logradas de nada suspeitam à partida. Estas entram na África
do Sul de forma irregular entre os seus companheiros de viagem – aparentemente
como migrantes comuns que procuram trabalho. Uma vez no alojamento de
trânsito, as vítimas são separadas dos seus companheiros de viagem, e começa
então o processo de isolamento, intimidação e exploração.
Os traficantes moçambicanos estabelecidos em Maputo também recrutam, de
forma activa, jovens que trabalham no sector informal, nos mercados e comércio
locais e que são usadas como trabalhadoras sexuais e não só. Esta é ajudada por
uma cúmplice – possivelmente conhecida da vítima – que tipicamente oferece
às moças emprego como empregadas de restaurante ou empregadas domésticas
na África do Sul. As trabalhadoras do sexo de Maputo são especificamente
recrutadas para serem vendidas a casas de prostituição nas províncias de Gauteng
e de KwaZulu-Natal.
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contextO e questÃo
“Foram detidos seis homens em Maputo, Moçambique, por alegadamente tentarem
traficar pessoas para a África do Sul. Estes foram apreendidos quando tentavam
transportar 43 pessoas entre Maputo e Witbank. Algumas das supostas vítimas estão
a auxiliar a polícia na sua investigação sobre a forma como funciona o sindicato. O
porta-voz do Ministro do Interior, Ilídio Miguel afirmou que havia largos números de
pessoas a serem traficadas das áreas pobres de Moçambique para a África do Sul,
aliciadas pela promessa de bons empregos. Na realidade muitas delas estavam a ser
vendidas para a prostituição comercial e trabalho forçados.”
(SABC News, 22/02/06)
Para além de Maputo e das províncias do sul de Moçambique, a província
de Nampula constitui outro centro principal de recrutamento de jovens para
a indústria do sexo. A prostituição é comum, essencialmente como resultado
da ocupação pré-independência por parte do exército português. As moças
são também envolvidas em actividades sexuais numa idade muito jovem e a
prostituição, tal como noutros lugares, torna-se uma estratégia de sobrevivência.
Pouco se sabe sobre a forma como estas moças são recrutadas, ou se estão
incluídas tanto aquelas já estabelecidas como trabalhadoras do sexo como as que
não possuem qualquer experiência a este respeito.
Suspeita-se também que moçambicanos do norte do país sejam traficados
através do Zimbabué para a África do Sul.22
….o comércio de mulheres moçambicanas continua a prosperar, e é bem conhecido por
muitas pessoas ao longo do corredor de Maputo. Já não existe guerra em Moçambique
mas a sua geração mais jovem parece estar tão desesperada por oportunidades e
emprego como durante a guerra, o que faz com que muitas moças jovens aceitem falsas
ofertas de emprego na África do Sul, onde são vendidas para a escravatura sexual,
primariamente como concubinas de homens sul-africanos.
(OIM (Maio de 2003) Seduction Sale and Slavery: Trafficking in Women and Children for
Sexual Exploitation in Southern Africa)
A África do Sul está a emergir, cada vez mais, como um país de destino no
tráfico de crianças para a exploração sexual e trabalhos forçados.
Existem registos sobre crianças com meramente oito anos de idade a serem
transportadas diariamente em camiões para o Parque Nacional Kruger ou para a
fronteira com a Suazilândia, algumas delas tendo sido vendidas a indivíduos sulafricanos por entre $30 a $50 dólares por criança. Entre os indivíduos envolvidos
22. UNICEF (2003) Trafficking in Human Beings, Especially Women and Children, in Africa”, Innocenti
Research Centre.
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
encontram-se oficiais do governo, proprietários de bordéis, pessoal das forças
policiais ou de segurança e sindicatos de crimes.
Um relatório apresentado pela organização Molo Songololo no ano 2000 sobre
o tráfico de crianças na África do Sul sugere que existem mais de 20 000 crianças
trabalhadoras, muitas delas refugiadas moçambicanas, a trabalhar em fazendas
agrícolas onde recebem pagamentos miseráveis e trabalham em troco de alimentação
e alojamento.23
Uma menina de dezasseis anos, Tobi, limpa as lágrimas ao mesmo tempo que conta
como foi arrancada da sua casa, forçada a uma longa caminhada pelo mato e então
vendida a um agente de recrutamento na África do Sul.
Fica horrorizada ao recordar a forma como foi entregue a um comprador interessado
em mão-de-obra barata para a agricultura, como foi ama de crianças e escrava sexual
daqueles que a abusaram por meses até que ela conseguiu escapar.
Tobi é uma de centenas de jovens moçambicanas raptadas ou seduzidas pelo dinheiro
e que acabam, na sua maioria, todos os anos na África do Sul ou então são enviadas
por barco para a Europa para uma indústria que está a crescer a ritmos extremamente
perigosos.
(Relatório da Molo Songololo publicado no jornal Sunday Herald,10/09/02)
Muito embora seja evidente que muitas mulheres e crianças sejam traficadas
especialmente para a prostituição forçada, e outras sejam recrutadas para trabalhar na
agricultura, na indústria manufactora ou nas indústrias de serviços por pagamentos
mínimos sob condições terríveis, as distinções entre as duas actividades tornou-se
confusa, especialmente no caso de meninas e de jovens recrutadas para trabalharem
como domésticas e que são alvo de abuso sexual pelos seus empregadores.
Enquanto que tráfico de pessoas para a exploração sexual e trabalhos forçados
constitui a vasta maioria dos incidentes, existe um aumento no tráfico de pessoas
para órgãos humanos, ou recolha de órgãos. Este tipo de actividade comercial
tanto acontece a nível internacional, na sua maioria para a África do Sul como
também a nível interno e devido a duas razões distintas. Em primeiro lugar, partes
específicas do corpo humano como por exemplo os órgãos sexuais, coração, olhos
e crânio são usados em medicina tradicional, designada por ‘muti’24 onde se crê que
estes órgãos curam males e doenças desde impotência à SIDA e à infertilidade, e
aumentam a influência e a riqueza.
O comércio mais lucrativo a nível internacional envolve a recolha de órgãos para
transplantes. Naquilo que é predominantemente um sistema sul/norte, os órgãos
(tipicamente os rins) são armazenados em temperaturas frias e transportes por ar
23. Molo Songololo (2000) The Trafficking of Children for Purposes of Sexual Exploitation in South Africa.
24. Termo frequentemente usado para se referir a medicina tradicional.
22
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contextO e questÃo
para os centros de recepção. Existem numerosos países de todos os continentes,
incluindo entre outros a Europa, África e Ásia, que estão implicados neste complexo
comércio de procura e oferta.25 As facilidades de alojamento nas clínicas sulafricanas de transplantes em hospitais privados têm a reputação de oferecer a mais
alta qualidade. À medida que a diálise e as operações de transplante se tornam cada
vez mais acessíveis na área do sector privado, consequências negativas causadas pela
desigualdade social podem permitir que aqueles com meios financeiros adquiram
órgãos humanos à custa de pessoas pobres ou mesmo sendo-lhes disponibilizados
por essas pessoas por meramente alguns dólares.
Casos de Tráfico de Crianças em Moçambique
• Em 2003 registou-se o desaparecimento de 52 crianças em Nampula e
foram encontrados alguns cadáveres onde faltavam órgãos e/ou partes
do corpo. A unidade de Anti-corrupção deteve uma mulher dinamarquesa, um cidadão sul-africano e outros europeus não identificados.26
• Após o rapto de um rapaz de 9 anos de idade foram detidos em Chimoio27, três adolescentes. Os órgãos genitais do rapaz tinham sido removidos e oferecidos para venda a um preço de 160 milhões de meticais (aproximadamente ZAR 47 000 ou US$ 7,833)
• Em Maputo, algumas mulheres denunciaram o rapto dos seus filhos
por vizinhos. Após uma investigação conjunta entre a polícia moçambicana e sul-africana, uma das crianças foi eventualmente resgatada e
trazida para casa.28
• Uma criança de 3 anos de idade foi encontrada morta no meio do
mato em Changalane, 30 km a sul da cidade de Maputo. Tinham sido
removidos os seus órgãos genitais, a língua e a perna esquerda.29
• A polícia30 deteve dois jovens vendedores ambulantes que foram
apanhados em flagrante a venderem duas crianças com 13 anos e 16
anos por um preço de 30 milhões de meticais (aproximadamente ZAR
14,000 ou US$ 2,333). O comprador era um curandeiro que estava a
tentar comprar as crianças para as usar como parte das suas actividades de cura tradicional. É bem possível que estas actividades envolvessem a utilização de partes do corpo como parte do ritual.
25. Scheper Hughes, Nancy (2001) The Global Traffic in Human Organs, (Relatório apresentado à Subcomissão Interna sobre Operações Internacionais e Direitos Humanos, Congresso dos Estados Unidos, 27 de Junho de 2001
26. Jornal Notícias, 30 de Dezembro, 2003.
27. Relatório do Procurador-geral da República de Moçambique, 2004, pág. 45.
28. Idem, pág. 50.
29. Jornal Notícias, 17 de Julho 2004.
30. Jornal Notícias, 17 de Setembro 2003.
23
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
• Um proprietário de um bar foi contactado por duas mulheres que
foram detidas pela polícia após o proprietário do bar Macamo ter notificado a polícia de que estas duas mulheres planeavam raptar um
filho31 do seu pai viúvo e vendê-lo por 50 milhões de meticais (aproximadamente ZAR 21,430 ou US$ 3,571.
Há registo de refugiados terem sido tanto vítimas como perpetradores
de tráfico de pessoas para a África do Sul. Grande parte do tráfico de pessoas
de Moçambique é controlado por refugiados moçambicanos organizados e que
vivem legalmente na África do Sul. Os seus alvos principais são moças jovens
que trabalham na indústria de sexo comercial em Maputo e crianças com idades
compreendidas entre os 3 e 12 anos de idade das áreas rurais nas províncias de
Gaza, Inhambane, Maputo e Nampula. As crianças são mandadas para famílias
moçambicanas refugiadas que vivem na África do Sul, bem como para cidadãos
sul-africanos e redes de prostituição em Joanesburgo.32 De facto, descobriu-se
que numerosas crianças traficadas através do Lesoto para a África do sul são de
nacionalidade moçambicana.33
À medida que os homens refugiados se deparam com o desemprego e a xenofobia
na África do Sul, optam por recrutar mulheres da sua família dos seus países de
origem para a África do Sul. Estas mulheres têm geralmente 25 anos ou mais,
são casadas e têm filhos. Os traficantes refugiados individuais são auxiliados por
sindicatos com base étnica que entregam em seu nome uma carta de recrutamento
à vítima no seu país de origem, a acompanham até à África do Sul, e a assaltam
sexualmente como um tipo de iniciação ao trabalho sexual, caso esta resista após
a chegada. O traficante refugiado fica com o dinheiro que a mulher ganha como
trabalhadora do sexo, e para proteger o seu investimento auxilia-a a pedir o estatuto
de refugiada de forma a evitar a deportação caso a polícia a detenha. No entanto,
o nível desta prática específica entre os moçambicanos requer uma investigação
adicional.
Os refugiados de outras partes de África, como por exemplo da DRC e dos
Grandes Lagos Africanos são dos principais participantes nesta população, em cujo
caso Moçambique é usado como um país de trânsito para a movimentação destas
vítimas.34
Moçambique é também identificado como um país de trânsito para os cidadãos
da Somália que são traficado e que chegam a Nacala por barco para fazer a ligação
com as principais rotas listadas.35
31. Jornal Notícias, 6 de Maio 2004.
32. “Child Trafficking between Mozambique and South Africa,” Indian Ocean Newsletter, 17 de Janeiro
de 2004.
33. UNICEF (2003), Trafficking in Human Beings, Especially Women and Children, in Africa”, Innocenti
Research Centre.
34. International Organization for Migration (2003) Seduction, Sale and Slavery: Trafficking of Women
and Children for Sexual Exploitation in Southern Africa.
35. Idem.
24
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contextO e questÃo
2.A.2. Principais Protagonistas no Tráfico de Pessoas
Traficantes
Tanto para fins legais como práticos, este grupo inclui todos aqueles envolvidos
na cadeia de tráfico de pessoas desde o ponto de recrutamento até ao ponto de uso
e de re-uso da mão-de-obra. Inclui os recrutadores – quer que por meios seja – bem
como os transportadores, os receptores, os proxenetas, os donos dos bordéis, os
guardas fronteiriços corruptos e aqueles que produzem documentação falsa, todos
eles beneficiando à medida que as pessoas traficadas passam pelas suas mãos.
O traficante é o elo de ligação entre a procura e a oferta, por um lado aumentando a
oferta através do recrutamento, decepção, transporte e processo de exploração e por
outro lado aumentando a procura através da disponibilização do acesso fácil às ‘vítimas.’
Qualquer que seja a escala e os meios de operação para os traficantes,
o processo é um fenómeno económico sistemático e bem organizado que
envolve a deslocação e movimentação de pessoas puramente para fins de lucros
(directa ou indirectamente) através da exploração da mão-de-obra da pessoa
traficada. Todos são perpetradores directos do crime do tráfico de pessoas.
Os traficantes africanos enfrentam baixos riscos em termos de detenção,
processamento judicial ou outras consequências negativas. Estes exploraram a
falta do domínio da lei, a não-implementação de leis anti-escravatura existentes
e a corrupção por parte dos sistemas judiciais.36 Estes lapsos permitem que os
perpetradores não sejam punidos. As acções judiciais são raras e carregadas de
dificuldades.
Crime Organizado
Nível Nacional
Conforme já indicado, os traficantes locais com redes transfronteiriças,
organizações de ex-refugiados, recrutadores com ligações familiares em Moçambique,
parecem ser os principais actores no comércio do tráfico de pessoas de Moçambique
para a África do Sul. Não está claro qual é a localização do comércio interno.
O salário de um agente da polícia que investiga o crime organizado é menos de 4 milhões
de Meticais por mês – aproximadamente 180 dólares norte-americanos. Os promotores
superiores de justiça a nível provincial ganham salários de aproximadamente 8 milhões
de Meticais ou seja cerca de 360 dólares norte-americanos por mês. Os níveis muito altos
de desemprego significam também que os empregos têm alto valor, particularmente no
sector estatal onde a pessoa tem basicamente assegurado o emprego.
(Gastrow, P. e Mosse, M., “Mozambique: Threats posed by the penetration of criminal
networks”)
36. Fitzgibbon, Kathleen (2003) Modern Day Slavery? The Scope of Trafficking in Persons in Africa, Africa
Security Review Vol. 12 N° 1.
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
Enquanto que as limitações das remunerações salariais constitui a realidade do
pessoal dos serviços policiais e de aplicação da lei, os riscos continuam alto e as
recompensas são limitadas em termos da severidade de perseguição e processamento
dos traficantes.
Nível Internacional
Nos anos 90 foi-se cada vez mais reconhecendo que grupos criminosos eram
os principais intervenientes no crescente nível de crime da África do Sul. A partir
do comércio original em barbatanas de tubarão e abalone, emergiram nas cidades
portuárias, em Joanesburgo e em Pretória, várias tríades com base em Hong Kong.
Até ao ano de 2001 existia uma rede bem desenvolvida de tráfico em narcóticos,
branqueamento de dinheiro e prostituição. Dentro destas estruturas rígidas, as
actividades com base no tráfico ilegal estavam divididas entre três grupos – um dos
quais se concentrou nos jogos de azar e na prostituição.37
Continua pouco clara a forma como o território é partilhado, como é o comércio
internacional em pessoas organizado entre a África do Sul e Moçambique, e o nível
de outra incursão e interesses internacionais.
Nível Transnacional
Tanto a presença documentada como a presença alegada de operações
transnacionais de tráfico ilegal ligadas à máfia e a outros grupos de crime organizados
na Rússia, Brasil, China e Europa são motivo de séria preocupação. O tráfico de
pessoas entre a África, por um lado, e a Europa e o Médio Oriente por outro, é
significante e está a aumentar. O mercado de órgãos para transplante está a crescer
e é um mercado extremamente lucrativo e difícil de detectar.38
As ligações do crime organizado são, por definição, difíceis de seguir e de
confirmar. É uma área perigosa de investigação por razões óbvias, mas a necessidade
de se fazer pesquisa detalhada é vital para assegurar a prevenção relevante e
oportuna.
Ligações. As vastas ligações entre as redes de traficantes e os sectores da indústria
e comércio do crime conspiram contra a perseguição e processamento com sucesso
dos traficantes enquanto que ao mesmo tempo asseguram rédeas livres para os
traficantes. A obstrução da justiça, muitas vezes envolvendo as redes criminosas
organizadas, constitui uma das práticas mais prejudiciais com que se depara a
sociedade moçambicana e o seu sistema de justiça criminal.39 Caso se desenvolva
a percepção de infiltração das estruturas estatais ou comerciais por parte das redes
37. Gastrow, Peter (2004) Trafficking in Persons, South Africa Law Commission, Issue paper 25, Project
131. (Comissão de Direito da África do Sul, Edição 25, Projecto 131).
38. Anedotas sobre órgãos, empacotados em gelo em pequenos recipientes, transportados nas cabines
dos aviões, como bagagem de mão.
39. Gastrow P, and Mosse M. (2002) Mozambique: Threats posed by the penetration of criminal networks, Institute for Security Studies.
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contextO e questÃo
criminais organizadas, tal danificará seriamente a confiança pública e aumentará as
dificuldades ligadas ao combate do tráfico de pessoas.
Pessoas Traficadas
Estas são as ‘vítimas,’40 todas as mulheres, crianças e homens que são enganados,
transportados e entregues às mãos daqueles que os exploram para fazerem lucro.
Utilizadores
Inclui as seguintes categorias de pessoas:
Indústria do sexo: compradores do sexo, clube de strip, clube nocturno,
restaurante/bar, bordel etc.
Empregadores: agricultura, trabalhos domésticos, construção, comércio a
retalho, mercados, mendigar.
Pessoal médico: curandeiros, indústria de transplante de órgãos.
Os utilizadores podem actuar como indivíduos ou são ligados através de uma
rede a acesso a outras actividades ilegais – prostituição e abuso sexual de crianças e
trabalhos forçados. Podem não estar cientes ou não estar preocupados com o tráfico
ilegal ou não se consideram como parte da rede de tráfico ilegal.41
2.A.3. Rotas e Transporte
Duas operações distintas de tráfico de pessoas fazem uso de três rotas diferentes
para transportas as vítimas de Moçambique para a África do Sul.42
A primeira rota usada é para Gauteng através de Ressano Garcia. Com base
na pesquisa efectuada entre 19 de Janeiro de 2004 e 6 de Fevereiro de 2004,43
de um total de 2.260 pessoas traficadas, 282 mulheres e 163 crianças foram
contrabandeadas44 para a África do Sul através da fronteira do Lebombo ou de
Ressano Garcia.
A segunda rota de tráfico que introduz mulheres traficadas tanto para as
províncias de Gauteng como do KwaZulu-Natal atravessa a fronteira de Ponta de
Ouro para a África do Sul. O transporte continua então para o sul da Suazilândia e
40. Neste documento o termo ‘vítima’ é considerado como um termo apropriado para reflectir as condições de vida que expõem uma pessoa a tal vulnerabilidade extrema.
41. UNICEF (2003), Trafficking in Human Beings, Especially Women and Children, in Africa”, Innocenti
Research Centre.
42. Idem.
43. Relatório sobre o Ponto de Situação em Massungulo, ONG Moçambicana sita em Ressano Garcia,
Fevereiro 2004.
44. “O contrabando de pessoas’ no sentido de obtenção e aquisição, de forma a obter, directa ou indirectamente, um benefício financeiro ou material, através da entrada clandestina de uma pessoa
num Estado do qual essa pessoa não seja cidadão ou residente permanente (Protocolo das NU
contra o Contrabando de Migrantes por Terra, Mar e Ar).” (UN Protocol against the smuggling of
migrants by land, sea or air).
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
directamente para Joanesburgo e Pretória, ou rumo a sul em direcção a Durban e
Pitermaritzburg.
Pensa-se que a facilidade de acesso por parte dos traficantes a estas rotas seja
resultado da sua ligação com grupos criminais organizados que negoceiam em
outras mercadorias como por exemplo viaturas roubadas.
A cumplicidade das autoridades fronteiriças nos principais postos de fronteira
entre a África do Sul e Moçambique deve constituir um elemento na liberdade de
movimentação dos traficantes. No mínimo, o facto de “fecharem os olhos” ou não
exigirem toda a documentação legal ou de não patrulharem as rotas em que as
atravessam a fronteira a pé, devem ser práticas comuns que facilitam a movimentação
dos traficantes.
As rotas no interior de Moçambique incluem tipicamente a entrada para o norte
do país através da Tanzânia e/ou do Malawi por pessoas que vêem da região dos
Grandes Lagos Africanos e da África Ocidental. Outros, que porventura viajem
por mar, podem desembarcar nos portos moçambicanos antes de continuarem a
jornada por terra.
Exploração e Transferência
Depois de atravessarem a fronteira do Lebombo as mulheres e outros migrantes são
levados para as casas de trânsito situadas no ‘township’ de Tonga nas proximidades
do posto fronteiriço de Jeppe’s Reef que faz fronteira com a Suazilândia. Começa aqui
a sua exploração sexual ao serem forçadas a ter relações sexuais com os traficantes
‘como forma de demonstrarem a sua gratidão pelos empregos bem remunerados que
os traficantes alegadamente organizaram para essas mulheres em Joanesburgo.’45
Esta prática está em linha com o tratamento universal de jovens que são apanhadas
na armadilha dos traficantes e começa o processo de lhes quebrar a resistência e
vontade própria enquanto ao mesmo tempo introduzir medo e sofrimento físico se
estas se recusarem à submissão.
É uma forma de ‘retirar a vontade própria das mulheres’ e de as consciencializar
sobre aquilo que está planeado para o seu futuro, quando estas serão vendidas
como ‘esposas.’46 Também é possível que as casas de trânsito proporcionem
aos traficantes uma oportunidade para vender as suas jovens vítimas aos
homens locais como esposas e empregadas domésticas. Para além deste negócio
próspero de venda de mulheres moçambicanas no mercado das minas do
West Rand, existem informações sobre a venda destas mulheres nas áreas
próximo das casas de trânsito na região oriental da província do Mpumalanga.
45. International Organization for Migration (2003) Seduction, Sale and Slavery: Trafficking of Women
and Children for Sexual Exploitation in Southern Africa.
46. Idem.
28
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contextO e questÃo
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Rotas em Moçambique
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
Estas mulheres são também forças a ‘casar’ com homens sul-africanos, que
abusam delas, as obrigam a fazer os trabalhos domésticos e muitas vezes as
abandonam quando já não as querem.47
A operação de tráfico de pessoas que utiliza a rota da Ponta do Ouro não parece
fazer uso de casas de trânsito. Os traficantes moçambicanos que exploram as casas de
trânsito em Tonga e em Joanesburgo vendem as suas vítimas nas proximidades das
minas do West Rand, perto de Carletonville. Existem registos sobre a organização
de ‘paradas’ de jovens que são exibidas a possíveis compradores que pagam ZAR
650 por cada. As “esposas” podem ser também encomendadas conforme a procura.
Uma vez vendidas as mulheres são consideradas como pertencendo aos seus novos
‘maridos’, mineiros moçambicanos ou sul-africanos. O sentido de propriedade
parece ser legitimizado na mente dos compradores através da distorção da prática
tradicional do pagamento do lobolo antes do casamento. Na mente dos compradores
o preço de compra é na realidade o pagamento do lobolo e consequentemente as
mulheres são então consideradas como suas esposas (Weekly Mail, 1990b).
Existem ainda poucos dados recolhidos com relação à exploração das mulheres
traficadas para o país via o posto fronteiriço da Ponta do Ouro. Os traficantes que
usam esta rota específica estão associados com vários bordéis em Hillbrow e em
Pretória bem como em Pietermaritzburg na província do KwaZulu-Natal para os
quais vendem, regularmente, mulheres moçambicanas pelo preço de ZAR 1000.48
As mulheres são obrigadas a trabalhar como trabalhadoras do sexo durante um
período de aproximadamente três meses antes de serem encomendadas novas
mulheres moçambicanas aos traficantes.
As estimativas indicam que cerca de 1000 mulheres moçambicanas entram por
ano na África do Sul através das duas operações de tráfico descritas acima - (através
das rotas de Lebombo e da Ponto do Ouro.)49
O processo de recrutamento, transporte e rotas de transferência usados para
o tráfico de crianças não está tão bem documentado. Há contudo certeza de que
muitas crianças são marginalizadas e que as crianças moçambicanas são usadas
para exploração sexual e trabalhos forçados bem como para a prática de medicina
tradicional designada por ‘muti’.
Há evidência de crianças a serem recrutadas para trabalhar nas fazendas
agrícolas na província de Mpumalanga na África do Sul, em troca de remunerações
muito baixas e exploradoras. Muitas vezes, em vez de recebem pagamento pelo seu
trabalho árduo, as crianças acabam por ser denunciadas à polícia pelos fazendeiros,
sendo então detidas como imigrantes irregulares.
47. Idem.
48. Idem.
49. Idem.
30
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contextO e questÃo
A prostituição de crianças é prevalente em Maputo, Nampula e Beira, bem
como nas vilas fronteiriças e pontos de pernoitamento para motoristas ao longo das
principais rotas de transporte.50
No final de 2003, as autoridades de imigração em Lusaka, Zâmbia, andavam em
perseguição de um grupo de etíopes e congoleses suspeitos de traficar jovens sulafricanos no estrangeiro. Aparentemente havia jovens com idades compreendidas
entre 18 e 25 anos que estavam a ser levados através do poro de Mpulungu no
norte da Zâmbia para Moçambique; a partir daqui estes jovens eram enviados para
vários países. As autoridades suspeitavam que algumas dessas pessoas tinham sido
aliciadas com promessas de empregos no estrangeiro mas que na realidade estavam
a ser traficadas para a prostiuição forçada.51
Enquanto se reconhece que as mulheres e crianças constituem a maioria das
pessoas traficadas, é necessário fazer-se muito mais pesquisa com relação ao nível
de tráfico de homens adultos e para que fins.
2.B Quais são as Causas Principais do Tráfico de Pessoas em
Moçambique?
A equação de procura e oferta é tipicamente descrita em termos dos factores
de “atracção” e de “pressão” (em inglês “pull” e “push”). Estes factores têm uma
ressonância global, mas variam em termos de ênfase e de escala local. Enquanto
que o conflito armado distorce e aumenta as condições de dificuldades e de
insegurança e cria condições vantajosas para o tráfico ilegal de todos os produtos
de consumo, o alto nível de desemprego e a falta de oportunidade – a busca de
meios de sobrevivência – são os motores accionadores do tráfico de pessoas. Os
factores da pressão/atracção – dois lados da mesma moeda – que fazem com
que as mulheres e meninas particularmente marginalizadas estão enraizados na
discriminação sistémica dos géneros. É importante lembrar que estes factores
explicativos podem ser mutuamente reforçados e que algumas das causas podem
ser também as consequências de outros. É necessária mais pesquisa com relação aos
mecanismos destas causas.
As mulheres e as meninas são mais susceptíveis de caírem no tráfico ilegal
devido aos factores seguintes:52
50. US State Department: Bureau of Democracy, Human Rights and Labor, Fevereiro de 2005.
51. “Zambian Authority Hunting for Human Traffickers,” Xinhua General News Service, 26 Outubro de
2003.
52. UNIFEM Asia (2002) Trafficking in Persons: A gender and rights perspective, Briefing Kit.
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
Factores que contribuem para a procura
• a aparente adaptabilidade das mulheres para trabalharem nas actividades de mão-de-obra intensiva de produção e cultura no sector
informal que é caracterizado por salários muito baixos, emprego esporádico, condições perigosas de trabalho e a falta de mecanismos de
negociação colectiva;
• a procura cada vez maior de trabalhadores estrangeiros para os
trabalhos domésticos e de prestação de cuidados, bem como a falta de
estruturas reguladoras adequadas para apoio nesta área;
• o crescimento da indústria do sexo e do entretenimento que envolve biliões de dólares, tolerada como um ‘mal necessário’ enquanto
que as mulheres na prostituição são criminalizadas e discriminadas;
• a natureza de baixo risco – altos lucros do tráfico de pessoas encorajado por uma falta de vontade por parte das agências policiais e de
segurança de processar os traficantes (o que inclui os proprietários e
gestores das instituições para as quais as pessoas são traficadas);
• a facilidade de controlar e manipular as mulheres vulneráveis;
• a falta de acesso, por parte das vítimas dos traficantes, a recurso ou
apelo legal; e
• a desvalorização dos direitos das mulheres e das crianças.
Factores que contribuem para a oferta
• acesso diferenciado à educação o qual limita as oportunidades das
mulheres de aumentarem o seu rendimento através de melhores habilitações para actividades de especialização profissional;
• falta de oportunidades de emprego mais legítimas e em que se
sentem mais realizadas particularmente nas comunidades rurais;
• políticas de migração com diferenciação de géneros e políticas/leis
de emigração restritivas muitas vezes instituídas como uma medida de
“protecção”, o que limita a migração legítima das mulheres. A maioria
dos canais de migração oferece oportunidades em sectores predominantemente dominados pelos homens (trabalho de construção e agricultura);
• menos acesso a informação no respeitante a oportunidades de migração ou de trabalho, e uma falta mais notável de conscientização
com relação aos riscos da migração em comparação com os homens;
• disrupção dos sistemas de apoio devido a catástrofes naturais e criadas pelo homem; e
32
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contextO e questÃo
• atitudes e práticas comunitárias tradicionais que toleram a violência contra as mulheres.
Procura e oferta
A extensão e escala global do tráfico de pessoas constituem a ‘desvantagem da
globalização.’53 A globalização criou um mercado poderoso de procura de mão-deobra barata e pouco especializada em sectores como a agricultura, o processamento
de alimentos, construção, serviços domésticos, manufactura com mão-de-obra
intensiva, cuidados de saúde domiciliários, trabalho do sexo, o sector de serviços
em geral54 (e o sector de entretenimento (circos, mendigar, jóquei em corridas de
camelos). Esse tipo de procura existe tanto nos países industrializados como nos
países em desenvolvimento. Os tipos de trabalho onde se utiliza a mão-de-obra
traficada tendem a situar-se em sectores onde é mais fácil manter condições de
trabalho altamente exploradoras e que constituem enormes violações dos direitos
humanos e das normas laborais, em locais e sob condições difíceis de serem
monitorizadas. Nas regiões de origem em Moçambique, existem fortes factores
de pressão que compelem as populações a considerarem a emigração como uma
opção. Os mecanismos legais para gerir a movimentação dos candidatos de migração
podiam portanto reduzir os incentivos para formas irregulares de movimentação de
pessoas dado que o tráfico de pessoas é, em parte, o produto de uma governança
imperfeita de migração.
Altos lucros
A escravatura de hoje em dia os prospera devido ao alto nível de lucros.55 As
estimativas das NU indicam que esta indústria produz anualmente entre 7 a 10
biliões de dólares norte-americanos, o que constitui o terceiro maior nível de lucros
a seguir ao comércio de armas e comércio de narcóticos. Também é mais fácil
movimentar-se a mercadoria humana através das fronteiras em comparação com as
drogas ou armas que são apreendidas quando encontradas. Os seres humanos são
constantemente re-usados e re-traficados – o que não acontece com as drogas. O
tráfico de pessoas é, por definição, um negócio complexo, clandestino e secreto, que
está em constante mudança e evolução por um lado como reacção à procura e por
53. Stopping Forced Labour: Global Report under the follow-up to the ILO Declaration on Fundamental Principles and Rights at Work, International Labour Conference, 89th session 2001, ILO Geneva.
(Conferência Internacional do Trabalho, 89ª sessão 2001, ILO Genebra).
54. Taran and Moreno-Fontes (2002) Getting at the Roots. Stopping Exploitation of Migrant Workers by
Organized Crime, (Comunicação apresentada no simpósio internacional sobre a Convenção das NU
Contra o Crime Transnacional Organizado: Requisitos para uma Implementação Efectiva), Torino,
Itália, 22-23 de Fevereiro 2002, ILO.
55. Os proxenetas podem fazer entre 5 a 20 vezes mais do que aquilo que pagaram por ela, de acordo
com uma fonte (Katerina Levchenko, (1999) Combat of Trafficking in Women and Forced Prostitution: Ukraine, Country Report, Vienna: Ludwig Boltzmann Institute of Human Rights).
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
outro mantendo-se suficientemente flexível para evitar a prisão e o processamento
jurídico.
Baixo risco
A própria natureza do tráfico ilegal é secreta e perigosa, (o que ajuda a explicar
a inadequação de informação fiável). As vítimas têm receio de retaliação por parte
dos traficantes ou recriminação por parte das suas famílias e aldeamentos (que
muitas vezes providenciaram os fundos para a jornada que, de acordo com as
suas previsões, irá levar a mulher ao emprego que ajudará a suportar a família)
e têm medo do estigma da prostituição. Como resultado poucas vítimas dão o
seu testemunho contra os traficantes. O medo e a desconfiança na polícia, a falta
de documentação e o medo da cumplicidade também contribuem para manter
o silêncio da vítima. A maior parte das vítimas são pobres, analfabetas, provêm
de populações marginalizadas e são ignorantes com relação aos seus direitos. Os
traficantes exploram não só o corpo mas também as profundas inquietações e
condições de vida desvantajosas das vítimas.
Fronteiras facilmente penetráveis
A tradição de movimentação e migração para a África do Sul para fins comerciais
e de trabalho, para além do facto de se ignorarem actividades ilegais como por
exemplo o contrabando de mercadorias, vital à sobrevivência nos anos da guerra,56
contribuem para uma aceitação e antecipação de movimentações não reguladas. O
facto de as fronteiras serem facilmente penetráveis, juntamente com os distúrbios
civis e políticos para além da falta de oportunidades económicas asseguram um fluxo
constante, em direcção a sul, tanto de migrantes legais como irregulares na África
Austral. É difícil distinguirem-se as vítimas do tráfico ilegal no meio destes fluxos.
Pensa-se que os oficiais policiais e guardas fronteiriços estejam cúmplices com os
traficantes, aceitando subornos para deixar passar viajantes sem a documentação
necessária.
As mulheres moçambicanas são trazidas clandestinamente em táxis devido à corrupção
existente nas forças de imposição da lei ou nos sistemas judiciais e que auxiliam os
traficantes a nível transfronteiriço. Os oficiais das forças policiais da África do Sul
“raramente recebem relatórios factuais sobre o tráfico ilegal, e as pessoas não são
muito propensas a facultar informação sobre os traficantes,» de acordo com a portavoz da polícia Sra. Mary Martins-Engelbrecht. [De acordo com o jornal IRIN NEWS
23/04/04]
56. Chingono, M.F. (1996) The State, Violence and development: the political economy of war in Mozambique, 1975-1992.
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contextO e questÃo
”A polícia ……..são soldados sul-africanos ou moçambicanos que patrulham a área da
fronteira. O traficante tem um contacto com estes elementos a quem paga ZAR 150 para
que estes deixem passar o grupo todo“ o que é muito mais barato do que passarem pelo
posto fronteiriço. [Os traficantes] riem-se dos passaportes.” Os soldados muitas vezes
tiram quaisquer artigos de valor e dinheiro às jovens e aos migrantes, dos quais, de
acordo com uma fonte, os traficantes recebem uma porção.
(IOM (2003) Seduction Sale and Slavery: Trafficking in Women and Children for Sexual
Exploitation in Southern Africa)
Feminização da migração
Historicamente os homens da região sul de Moçambique migravam. As
mulheres eram marginalizadas e obrigadas a ficar nas áreas rurais, ocupadas com a
reprodução e a mão-de-obra comunitária com um aumento na carga de trabalho,
enraizando dessa forma os valores patriarcais. Dado o aumento na mobilidade das
populações, a falta de oportunidade em casa e melhores oportunidades de sustento
em outros lugares, as mulheres estão cada vez mais a migrar. A migração pode levar
ao alargamento ou ampliação dos poderes (empowerment) das mulheres. Contudo,
dado que as políticas de migração são mais favoráveis aos homens e o facto de que o
recrutamento é feito em sectores dominados pelos homens, as mulheres estão mais
expostas e vulneráveis a serem traficadas.
2.B.1. Factores de Pressão / Atracção
Pobreza
A pobreza como elemento motivador de estratégias arriscadas de sobrevivência
e a atracção do íman económico da vizinha África do Sul juntamente com as
oportunidades associadas estão inextrincavelmente entrelaçadas.
A combinação da luta pela independência, as secas e as inundações, a guerra
civil e o ajuste em termos de estruturas, levaram a um profundo empobrecimento
e grandes deslocações da população. De acordo com estimativas da Fundação para
o Desenvolvimento Comunitário uma média de 69.4% da população vive em
condições de pobreza,57 sendo esta percentagem mais alta nas áreas rurais.
Sobrecarregadas com um legado histórico de direitos fundiários e patrimoniais
secundários, bem como com um acesso relativamente fraco à educação, mãode-obra remunerada ou aconselhamento legal, as mulheres camponesas, que
dependem essencialmente da agricultura de subsistência para assegurar o seu meio
de vida, estão particularmente em desvantagem.58 Muito embora a Lei de Terras de
57. Fundação de Desenvolvimento Comunitário, www.fdc.org.mz
58. Waterhouse, Rachel (2001) Women’s land rights in Post-war Mozambique UNIFEM 2001: Reader
- Women Land and Property Rights in Situations of Conflict and Reconstruction (Direitos Fundiários
e de Propriedade das Mulheres em Situações de Conflito e de Reconstrução)
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
1997 confirme o direito igual aos géneros em termos de ocupação e utilização das
terras, a lei e prática consuetudinárias, o estatuto social da mulher que a coloca
em desvantagem bem como a falta de informação resultam em 5 a 10% de terras
sob controlo das mulheres, enquanto que estas constituem 75% da força laboral
rural. Sem títulos de propriedade de terras ou de bens as mulheres têm pouca
oportunidade de acesso a financiamento para fins de empreendimentos comerciais
ou para outras actividades de sobrevivência.
Quer no sistema predominantemente matrilinear existente no norte, onde o
acesso a terras por parte das mulheres é feito através do tio materno, que no sistema
patrilinear existente no sul onde este acesso é através da família do marido, as
mulheres rurais têm sempre estado dependentes da relação com os homens para
a sua sobrevivência. Para além disso, com o final dos anos da guerra registou-se
um aumento significante em aglomerados familiares chefiados por mulheres onde
as mulheres se tornaram as únicas provedoras de renda familiar e assumiram a
responsabilidade pelos vários padrões de habitação em mudança. De acordo com as
estimativas da International Women’s Health Coalition (Coligação Internacional para
a Saúde da Mulher) 27% dos aglomerados familiares são chefiados por mulheres.59
Tendo perdido os seus direitos de propriedade, muitas das mulheres mudaramse para os centros urbanos onde as percepções enraizadas com relação ao acesso
a emprego por parte dos homens, especialmente no caso de empregos com alta
remuneração, excluíram as mulheres do sector formal. O sector informal de vendas
ambulantes ou de emprego não-especializado faz com que as mulheres sejam
marginalizadas. Nestas circunstâncias as estratégias de sobrevivência muitas vezes
incluem a mendigagem ou o trabalho do sexo – tanto para as mulheres como para
as crianças.
O recente encerramento de minas e redução de pessoal no sector mineiro na
África do Sul resultou num declínio dramático em oportunidades de emprego.
Tal deu origem a um aumento na migração irregular, expondo dessa forma jovens
moçambicanos que procuravam emprego, à exploração como vítimas de tráfico de
pessoas.
Para além disso, as reduções nos serviços e subsídios estatais significam que
dentro dos sistemas sociais assentes numa divisão rígida de tarefas com base
nos géneros, os trabalhos domésticos e cuidados comunitários são atribuídos às
mulheres. Este facto aumenta ainda mais a sobrecarga da pobreza e as mulheres
são obrigadas a diversificar as suas fontes de rendimento como reacção à realidade
económica. 60
59. Ver a Coligação Internacional para a Saúde da Mulher: Mozambique at a glance (Moçambique num
relance) com fontes da Agência de Referência Populacional.
60. Truong, Thanh-Dam (2006) Poverty, Gender and Human Trafficking in Sub-Saharan Africa: Rethinking Best Practices in Migration Management, UNESCO.
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contextO e questÃo
Não obstante as garantias constitucionais de igualdade de géneros, as
práticas e atitudes consuetudinárias têm uma influência forte, promovendo uma
lacuna acentuada entre a situação jurídica e a situação de facto. As mulheres
e as meninas encontram-se sistematicamente numa situação desvantajosa
enquanto defrontadas por um pobreza extrema. Isso leva-as a fazerem
escolhas para sobreviverem o que as torna vulneráveis ao tráfico de pessoas.
Em 1997, de acordo com as estimativas das NU, 250 000 crianças foram
deslocadas, 15 000 encontravam-se separadas das suas famílias e 7% de crianças
com menos de 15 anos não tinham pais. Em 2004, existiam cerca de 470 000
órfãos da SIDA. Estes números quando combinados com a violência estrutural da
pobreza, a falta de educação escolar (metade das 3200 escolas primárias foram
destruídas pela guerra), a erosão das estruturas tradicionais de apoio, o alto nível de
desemprego, a migração urbana e a vida familiar disfuncional, indicam as realidades
que pressionam as crianças para a prostituição, mendigagem ou para o crime, que
pode eventualmente expô-las a serem traficadas.
A maior parte delas são forçadas a ganhar dinheiro sem nunca terem tido o
benefício de qualquer tipo de educação que lhes proporcione arranjarem um trabalho
que lhe garanta um rendimento monetário. Tal como acontece na maior parte do
mundo, criar-se uma filha na África Austral significa ainda prepará-la para ser uma
boa mulher e mãe. Assim, as meninas aprendem as tarefas domésticas, ajudam a
criar os irmãos, e acima de tudo a satisfazer os homens. Consequentemente, para as
meninas sem qualquer formação profissional (particularmente quando vivem num
ambiente urbano) a prostituição é uma forma de ganharem a vida.61
Dadas as suas limitadas oportunidades educacionais, muitas moças dão-se conta
de que as suas possibilidades de obterem bons empregos são fracas. A educação
informal e as oportunidades recreativas praticamente não existem. Todos estes
factores contribuem para uma falta de optimismo com relação ao seu futuro.
Para as meninas as escolhas são limitadas – o casamento precoce com homens
mais velhos é uma estratégia. A média de idade para o primeiro casamento de uma
mulher são 17 anos. A prostituição é outra escolha – muitas vezes incluída como
parte da rotina das actividades diárias, combinada com actividades comerciais,
agricultura para subsistência, serviços domésticos e cuidar da família.
61. Perschler-Desai, Viktoria, “Childhood on the market: Teenage prostitution in Southern Africa”, African Security Review, Vol. 10, No.4, 2001.
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
A história da Mariazinha (Mariazinha tem 9 anos de idade, perdeu uma perna num
acidente de carro e usa muletas)
‘Procuramos dinheiro para comprarmos roupas, vestidos, saias, tecido para capulanas.
Às vezes a polícia leva-nos à esquadra da polícia para fazermos limpeza, varrermos
as suas instalações, lavarmos os carros deles. Quando temos dinheiro connosco eles
tiram-nos o dinheiro. Um dia fui levada por um homem branco. Fui com ele e ele disseme que se eu fosse para a cama com ele dava-me cem mil meticais (pouco mais de oito
dólares norte-americanos). Não posso mentir. Fui para a cama com ele e ele deu-me o
dinheiro.’ (BBC 2001)
Uma moça de Nhamatanda…contou que antes de trabalhar como prostituta, esteve
a trabalhar, durante dois anos, como empregada doméstica para ajudar a pagar as
despesas em casa. Depois de dois anos, parou de trabalhar para cuidar da mãe que
estava doente. Sem dinheiro para comprar comida ou medicamentos para a mãe
começou a vender amendoins em bares e quiosques. Enquanto vendia os amendoins os
homens faziam-lhe ofertas. Ela concordou porque ganhava muito mais vendendo o sexo
do que vendendo amendoins. Numa única noite ela tinha, por vezes, dois ou três clientes
e ganhava entre 6 a 9 dólares norte-americanos. Podia então passar os dois ou três dias
seguintes sem trabalhar à noite, porque tinha suficiente para as suas necessidades.
(Perschler-Desai, Viktoria, Childhood on the market: Teenage prostitution in Southern
Africa)
Muito embora haja também rapazes que se prostituem, a prostituição em
Moçambique parece ser ainda uma área predominantemente feminina.62 Os rapazes
beneficiam dos preconceitos de género em termos de preferências educacionais,
e uma vez adolescentes podem fazer escolhas em termos de meios de vida que
os coloca em menos risco do que as meninas. Também é possível que a escala de
prostituição masculina e o trabalho de sexo sejam desconhecidos dados os rigorosos
tabus culturais a este respeito.
HIV/SIDA
Moçambique depara-se com “uma epidemia que está a piorar dramaticamente”63
com o aumento da prevalência de HIV e de SIDA em todas as regiões, muito
embora de forma mais significante nas províncias que formam parte das principais
cadeias de transporte com a África do Sul, Zimbabué e Malawi. De acordo com as
estimativas do Instituto Nacional de Estatística de Moçambique (INE) uma em cada
cinco pessoas no grupo etário dos 15 aos 49 anos é provavelmente seropositiva e
para cima de 600 000 crianças são órfãs como resultado do HIV e da SIDA. O INE
62. Ibid.
63. http://www.unaids.org/en. AIDS Epidemic Update, December 2005 (Actualização sobre a Epidemia
da SIDA, Dezembro 2005).
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contextO e questÃo
indica também que até ao final do ano 2005, se previa que cerca de um milhão de
crianças ficassem sem um ou ambos pais como resultado da SIDA.
A SIDA desempenha um papel importante na procura cada vez maior por
trabalhadoras do sexo mais jovens, presumivelmente não infectadas, muitas vezes
das áreas rurais.64 Velhas tradições tornaram a ressurgir com relação à procura
de jovens, especialmente de jovens virgens que são consideradas como ‘limpas’ e
portanto capazes de curar ou de retardar qualquer infecção.
As mulheres e jovens traficadas são mais vulneráveis à infecção por HIV:
• É bem provável que as pessoas traficadas, particularmente as crianças, sejam
incapazes de negociar o uso do preservativo.
• As pessoas traficadas podem ser forçadas a práticas sexuais, como o sexo
anal, mais associado coma transmissão do HIV.
• As pessoas traficadas podem ser ou muitas vezes são forçadas a ter relações
sexuais com múltiplos parceiros.
• A violência no sexo comercial é muito comum, especialmente quando as mulheres ou as crianças são forçadas a terem relações sexuais contra a sua vontade. Os ferimentos sustidos como resultado do sexo
forçada podem aumentar a vulnerabilidade à transmissão do HIV.
• Os corpos fisicamente imaturos das crianças jovens tornam-nos extremamente vulneráveis a ferimentos. Esses ferimentos aumentam o risco de infecção.
• Muitas das pessoas traficadas podem ter outras doenças de transmissão sexual. Tal aumenta o risco de contraírem HIV até um factor 10.65
A vulnerabilidade das pessoas traficadas a doenças de transmissão sexual é
agravada pela sua incapacidade de fazerem testes médicos, receberem tratamento,
aconselhamento ou outros serviços de saúde. A sua incapacidade de compreenderem
ou falarem a língua num país estrangeiro, o alto nível de pobreza e a falta de liberdade
podem também impedir o seu acesso a cuidados de saúde.66 Estas tornam-se assim
um risco de infecção para futuros parceiros e quaisquer filhos que venham a ter.
À medida que os pais infectados se tornam incapazes de cuidar dos seus filhos,
e os familiares se afastam ou são também incapazes de suportar as crianças, estas
são obrigadas a deixar os seus lares. Tal é de particular significância quando são as
mães e outras ‘cuidadoras’ que estão doentes. Como consequência as crianças ficam
mais expostas aos traficantes e ao tráfico de pessoas – e eventualmente ao HIV e à
SIDA e podem ser infectadas e afectadas em grande escala.
64. Altman, Dennis (2003) Global Sex, University of Chicago Press.
65. Burkhalter, Holly (2003) Sex Trafficking and the HIV/AIDS Pandemic, Physicians for Human Rights,
before the House International Relations Committee (Médicos para os Direitos Humanos, testemunho apresentado à Comissão ‘House International Relations’) www.phrusa.org/campaign/aids/
news062403
66. Idem.
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
Práticas e crenças culturais discriminatórias
Em Moçambique os direitos das mulheres há muito que são violados e negados.
Não obstante as disposições constitucionais67 que estipulam a igualdade formal entre
os géneros e as leis e políticas que declaram como ilegais as práticas tradicionais,
estas continuam muitas vezes a ser valorizadas e toleradas, e são tipicamente
ressuscitadas em alturas de stress e de ameaça de mudanças no clima ideológico,
como forma de reafirmação da identidade ou devido ao facto de que as limitações
sociais que limitam a sua prática deixam de existir. Enquanto que as origens dessas
práticas estão enraizadas em sistemas de crenças e de percepções de moralidade
e de comportamentos em linha com as exigências sociais, muitas vezes ligados
a necessidades de sobrevivência, a sua prática actual é muitas vezes prejudicial,
particularmente para as meninas e mulheres. É vital efectuar-se pesquisa na área de
ressurgimento e discernimento actual dessas práticas.
• O lobolo,68 uma característica da região sul de Moçambique, implica que o
futuro marido paga uma soma de dinheiro, joalharia e roupas, ou como era
feito antigamente, oferece cabeças de gado à noiva, pais e sua família em troca pela mulher. Um casamento resultante desta prática, permite aos homens
escolherem69 uma cunhada mais nova para substituir a mulher, no caso desta
não o satisfazer sexualmente.
• O casamento precoce é uma característica normal das comunidades rurais,
que constituem a maioria da população. Uma vez que muitas vezes é negado
às jovens o acesso a educação nas comunidades rurais, estas são empurradas
para o casamento logo que sejam consideradas “adultas”70. A idade adulta é
considerada como tendo sido alcançada na altura em que estas jovens são
submetidas às cerimónias de iniciação ou quando iniciam a menstruação.
As características demográficas do pós-conflito, como a escassez de homens,
podem também contribuir para esta prática.
• A prática do Kupita Kufa (levirato), uma característica da região central de
Moçambique, exige que a viúva, após a morte do marido, tenha relações sexuais com o cunhado como forma de assegurar a aceitação para ela e para os
67. Constituição de Moçambique, Parte II, Direitos, Deveres e Princípios Fundamentais, Capítulo 1,
Princípios Gerais, Artigo 67.
68. Durante o período de pós-independência a prática do Lobolo foi banida pois era considerada com
uma prática prejudicial pois estava associada à tradição e este conceito era considerado como sendo um recuo ou impedimento ao desenvolvimento social. Contudo, hoje em dia é aceite como um
casamento oficial de acordo com a nova Lei da Família.
69. Barros, J. & Taju, G. (1999), Prostituição, Abuso Sexual e Trabalho Infantil em Moçambique: o caso
específico das províncias de Maputo, Nampula e Tete, Maputo, Gabinete da Campanha Contra o
Abuso Sexual.
70. Em ambiente rurais algumas crianças com 12 anos são consideradas adultas. Barros & Taju, Ibid.,
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seus filhos. Na região sul existe uma prática semelhante conhecida por Kutxinga. Com o advento do HIV/SIDA, esta cultura está a começar a mudar.71
• Perante o falecimento do marido /pai, por exemplo, como resultado da SIDA,
a viúva e os seus filhos72 muitas vezes perdem os direitos de herança dos
bens. Estes ficam à mercê dos familiares que fazem acusações de bruxaria,
ou de que a saúde do homem for a negligenciada. A viúva e os filhos perdem
o direito de herdar parte dos bens, ou os bens na totalidade, em favor dos
irmãos ou parentes do falecido.
• Uma vez que as jovens são consideradas como sendo mais eróticas do
que as mulheres adultas, estas estão expostas ao abuso por homens adultos.
(Também existe a crença de que as meninas mais jovens são seronegativas).
Os homens que namoram moças jovens são considerados pela sociedade
como sendo ricos, de tal forma que esses relacionamentos adquirem um reconhecimento social maior tanto para os homens como para as moças. Esses
relacionamentos inter-gerações são mais aceitáveis do que os relacionamentos
com prostitutas e as jovens não exigem nada dos homens que abusam delas.
Esses relacionamentos não envolvem o compromisso e obrigações da família
que geralmente caracterizariam os relacionamentos entre homens e mulheres
adultos. A jovem pode também ser forçada a tomar parte na “Okaka”73 ou seja
uma cerimónia recomendada pelos curandeiros para homens com doenças
de transmissão sexual. Esta cerimónia implica que o homem deve ter relações
com uma menina jovem sem usar o preservativo de forma a se livrar da doença.
[...] os estereótipos culturais [...] sugerem que é importante para os homens terem
frequentemente relações sexuais com parceiras diferentes, e que o sexo não é
importante para a mulher. No entanto, o que é importante para a mulher é que o homem
providencie o necessário para cuidar das suas necessidades. A mulher pode conseguir
isso tendo relações sexuais com um ou vários homens, o que pode levar à prostituição.
“Estes estereótipos constituem a base da ideologia de géneros, de acordo com a qual
as relações sexuais estão interligadas, mas onde existe também interligação entre as
relações de poder económico e relações entre pessoas. Estes estereótipos transmitem
uma imagem da mulher, particularmente da jovem, como um objecto sexual. Esta
imagem desvaloriza e rebaixa e estabelece os mecanismos da subordinação sexual e
económica da mulher em relação ao homem.”
(Bagnol, Brigitte (1997) Appraisal of sexual abuse and commercial sexual exploitation of
children in Maputo and Nampula, Maputo, Royal Netherlands Embassy)
71. Esta investigação foi realizada com o Sr. N. Muhoro, Director para a Juventude e Desportos no Distrito de Nhamatanda, Sofala, 7 de Julho de 2004.
72. National Campaign, UNICEF and Terre des Hommes (12 March 2004) Report of the Meeting for
the formulation of the National Action Plan for Prevention of child trafficking, Maputo. (Campanha
Nacional, UNICEF e Terre des Hommes, Relatório sobre o Encontro para a formulação do Plano de
Acção Nacional para a Prevenção do tráfico de crianças, Maputo, 12 de Março de 2004).
73. Palavra do idioma Chuabo.
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Tráfico de Pessoas em Moçambique: causas principais e recomendaçÕes
• O Unyago um ritual de iniciação do Niassa, uma província a norte de
Moçambique consiste na mobilização em massa de moças jovens que são
levadas para o meio do mato onde são sujeitas à inserção de ovos na vagina
para as preparar para a actividade sexual. As jovens envolvidas chegam a ter
11 anos de idade. É bem provável que estes rituais de iniciação tenham também impacto no atendimento escolar das meninas.
“O abuso sexual das meninas constitui violência contra a mulher e é uma expressão
da desigualdade das relações de poder entre homens e mulheres, que impedem o
desenvolvimento completo das meninas. Esta violência deriva, essencialmente, dos
padrões culturais e práticas tradicionais que perpetuam uma imagem degradante da
mulher e o seu baixo estatuto na sociedade e na família. E para além disso, conforme
indicado por uma mulher em Nampula, as meninas são instruídas a se agarrarem a um
homem e a usar a sua sexualidade para melhorarem a sua qualidade de vida.”
(Perschler-Desai, Viktoria, “Childhood on the market: teenage prostitution in Southern
Africa” African Security Review, Vol 10 N° 4, 2001)
• Nas famílias pobres, os pais muitas vezes decidem dar prioridade à educação dos rapazes excluindo quaisquer oportunidades educacionais às filhas. A obrigação dos rapazes é contribuir para o rendimento familiar e perpetuar o nome da família, enquanto que as meninas devem envolver-se na
reprodução, nos serviços domésticos e agrícolas.
• A adopção informal74 de crianças para trabalharem para famílias ricas75
como empregados domésticos é uma ocorrência comum nas áreas rurais pobres. As famílias ricas geralmente prometem aos pais de tais crianças que os
seus filhos receberão uma educação e terão um melhor nível de vida. Estas
promessas muitas vezes não são cumpridas. Esta situação facilita o aumento
do tráfico ilegal e da exploração.
• A mão-de-obra infantil é uma prática há muito enraizada nas sociedades africanas e é considerada essencial para a sobrevivência da família. As crianças
são pressionadas a contribuir para a renda familiar envolvendo-se no sector
informal/comércio ambulante de forma a aumentar o rendimento familiar.
De um ponto de vista legal a mão-de-obra infantil nunca foi considerada
como um problema. Os traficantes muitas vezes exploram esta tradição para
atrair as crianças.
• A perversão por agentes organizados do tráfico de pessoas da prática tradicional de se colocarem crianças em aglomerados familiares mais ricos e dos
74. Os muçulmanos em Nampula dizem que o Islão rejeita a adopção pois as crianças adoptadas podem perder os seus apelidos originais de família. Se o apelido original de família for perdido, pode
acontecer que familiares acabem por casar uns com os outros pois não se dão conta dos existentes
laços familiares.
75. IOM (2003) Ibid, pág. 53.
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padrões, há muito existentes, de mão-de-obra migratória sazonal onde a
família, os amigos, os familiares ou os membros do aldeamento encontram
trabalho e/ou encaminham a criança para a educação, tem vindo a contribuir para o tráfico de pessoas e para a escravatura. Os pais muitas vezes não
sabem onde se encontram os seus filhos e os filhos acabam por viver em
condições de escravatura, expostos a todos os tipos de abuso físico e sexual,
privados de cuidados de saúde, de educação e da sua própria infância.
• O uso de órgãos e partes do corpo para fins de ‘muti’ ou medicina tradicional e as práticas rituais resultam em riscos específicos para as crianças
que ficam órfãs, desapropriadas ou de outra forma expostas aos predatórios
curandeiros tradicionais.
• Falta de conhecimentos e de informação. Enquanto que existe um aumento na conscientização internacional com relação ao problema de tráfico e os
governos, incluindo o de Moçambique, juntamente com todo um conjunto
de partes envolvidas e de interesse, estejam a providenciar informação, a organizar campanhas de publicidade e de formação, o nível de conscientização
no seio da população permanece baixo. A crença comum de que “não me
pode acontecer a mim” continua forte não obstante a familiaridade local com
o contrabando transfronteiriço. As ofertas de emprego a jovens, as ofertas
para colocar crianças em melhores circunstâncias, são geralmente aceites de
acordo com o seu aspecto exterior.76 A familiarização com os recrutadores
para tráfico de pessoas que podem na realidade ser vizinhos ou familiares,
reduz ainda mais o reconhecimento do risco do tráfico de pessoas.
• Falta de legislação. O facto de que Moçambique não ratificou o Protocolo
de Palermo e não instituiu reformas na lei doméstica de forma a colocá-la
em linha com o Protocolo constitui um dos maiores impedimentos ao desenvolvimento de políticas para lidar com o tráfico de pessoas. (Para mais
detalhes consultar a parte 3).
76. IOM (2003) Seduction Sale and Slavery: Trafficking in Women and Children for sexual exploitation in
Southern Africa.
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