o psicanalista - A Esfera dos Livros

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o psicanalista - A Esfera dos Livros
O PSICANALISTA
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John Katzenbach
O PSICANALISTA
Tradução de
José Pinto de Sá
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A Esfera dos Livros
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Reservados todos os direitos
de acordo com a legislação em vigor
Título da edição original: The Analyst
© John Katzenbach, 2006
© A Esfera dos Livros, 2006
1.a edição: Março de 2007
Capa e ilustrações: Alejandro Colucci
Tradução: José Pinto de Sá
Revisão: Eda Lyra
Paginação: Segundo Capítulo
Impressão e Acabamento: Tilgráfica
Depósito legal n.° 255 337/07
ISBN 978-989-626-056-9
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ÍNDICE
PRIMEIRA PARTE................................................................................
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SEGUNDA PARTE................................................................................ 269
TERCEIRA PARTE............................................................................... 367
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Para os meus parceiros de pescarias:
Ann, Peter, Phil, e Leslie
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PRIMEIRA PARTE
UMA CARTA MAL ACOLHIDA
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CAPÍTULO UM
N
o ano em que estava certo de morrer, passou a maior parte do
quinquagésimo terceiro aniversário como passava quase todos
os dias, ouvindo gente a queixar-se das mães. Mães insensíveis, mães
cruéis, mães sexualmente agressivas. Mães mortas que continuavam
vivas na mente dos filhos. Mães vivas que os filhos desejavam matar.
O Sr. Bishop, sobretudo, juntamente com a menina Levy e o genuinamente infeliz Roger Zimmermann, que partilhava o apartamento e, ao
que parecia, a totalidade da vida consciente e dos vívidos sonhos, com
uma mulher hipocondríaca, manipuladora e rabugenta, que aparentava
dedicar-se a arruinar todas as débeis tentativas de independência do filho
único – nesse dia, todos empregaram a totalidade das suas horas a destilar amargo vitríolo sobre as mulheres que os trouxeram ao mundo.
Escutou em silêncio as grandes vagas de rancor assassino, apenas
interpondo ocasionalmente os comentários benignos mais modestos,
sem interromper uma só vez o vómito de rancor oriundo do divã, sempre à espera que um dos pacientes, ao menos, respirasse fundo, assumisse algum recuo em relação à sua raiva, e visse do que realmente
se tratava: fúria contra si próprio. Sabia, por experiência e formação,
que eventualmente ao cabo de anos a verbalizar amargura no universo
estranhamente desprendido do consultório do psicanalista, todos eles
atingiriam essa compreensão de si mesmos, incluindo até o pobre,
desesperado e mutilado Roger Zimmermann.
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Mesmo assim, a ocorrência do aniversário, recordando-lhe muito
directamente a sua mortalidade, fazia-lhe pensar se lhe restaria tempo
suficiente para ver qualquer um deles atingir aquele momento de aceitação que é o eureka do psicanalista. O seu pai morrera pouco antes
de fazer cinquenta e três anos, com o coração debilitado por anos de
stresse e cigarros seguidos, um facto que, bem o sabia, se ocultava
subtil e malevolamente debaixo do seu consciente. Assim, enquanto o
desagradável Roger Zimmermann passava a gemer e a choramingar
os minutos finais da última sessão do dia, o psicanalista estava ligeiramente distraído, sem prestar toda a atenção devida, quando ouviu o
discreto triplo toque da campainha que instalara na sala de espera.
A campainha era o sinal que lhe indicava a chegada de um paciente.
Antes da primeira sessão, os novos clientes eram todos informados
que, ao chegarem, deviam dar dois toques curtos, em rápida sucessão,
seguidos de um terceiro repique, mais prolongado. A medida desti­
nava‑se a distinguir, pelo toque, os pacientes dos vendedores, leitores de
contadores, vizinhos, ou serviços de entrega ao domicílio que pudessem
chegar à sua porta.
Sem mudar de posição, lançou uma vista de olhos à agenda, pousada junto ao relógio na mesinha que se achava por trás da cabeça
do paciente, e fora da sua visão. O espaço correspondente às 18h00
estava em branco. O mostrador do relógio indicava 17h48, e a posição de Roger Zimmermann, no divã, pareceu tornar-se mais hirta.
– Pensei que o último do dia era eu.
Não reagiu.
– Nunca veio ninguém depois de mim, pelo menos que me lembre.
Nem uma só vez. Tornou a alterar a sua agenda sem me dizer?
Voltou a não responder.
– Não gosto da ideia de que vem alguém depois de mim – disse
Zimmermann, com decisão. – Quero ser o último.
– O que acha que o faz sentir assim? – perguntou por fim.
– À sua maneira, o último é sempre o primeiro – respondeu Zimmermann, com uma rispidez de tom que implicava que qualquer
idiota teria visto o mesmo.
Acenou que sim com a cabeça. Zimmermann fizera uma observação
precisa e intrigante. Porém, o desgraçado fizera-a no momento final da
sessão, como parecia sempre condenado a fazer. Se fosse no princípio,
ainda poderiam ter arranjado uma conversa proveitosa para os cinquenta minutos que sobravam.
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– Tente trazer esse pensamento consigo amanhã – disse-lhe. – Podíamos começar por aí. Lamento, mas por hoje já não há tempo.
Zimmermann ainda hesitou, antes de se levantar.
– Amanhã? Corrija-me se estou errado, mas amanhã é o último dia
antes do senhor desaparecer para o raio das suas estúpidas férias de
Agosto, como faz todos os malditos anos. O que ganho eu com isso?
Voltou a ficar calado, deixando a interrogação a flutuar no espaço,
por cima da cabeça do paciente. Zimmermann resfolegou ruidosamente.
– Seja como for, quem é que há por aí de mais interessante que eu,
hein? – disse com amargura. Depois tirou os pés do divã e olhou para
cima, na direcção do médico. – Não gosto quando alguma coisa é
diferente – disse de súbito. – Não gosto mesmo nada. – Levantou-se,
com um rápido e acerado relance ao clínico, sacudindo os ombros e
deixando que um rosnar pérfido lhe cobrisse o rosto.
– Devia ser sempre a mesma coisa. Entro, deito-me e começo a falar.
Último paciente todos os dias. Assim é que deve ser. Ninguém gosta de
mudanças. – Suspirou, mas dessa feita mais com um toque de zanga,
e não de resignação. – Muito bem. Então, amanhã. A última sessão
antes de levantar voo para Paris, Cape Cod, Marte, ou lá para onde
vai e de me deixar para aqui sozinho. – Zimmermann deu meia volta,
abruptamente, atravessou a passos largos e decididos o pequeno consultório e saiu pela porta fora sem olhar para trás.
Durante um momento deixou-se ficar na poltrona, a escutar o
som esbatido dos passos do homem zangado ressoando na entrada
do prédio. Depois levantou-se, consciente da idade que lhe emperrara as articulações e lhe inteiriçara os músculos ao longo da longa
e sedentária tarde passada atrás do divã, e dirigiu-se para a entrada,
outra porta que conduzia à modesta sala de espera. Em alguns aspectos, aquele consultório onde iniciara a prática clínica há décadas era
singular, com a sua forma estranha e improvável, e constituíra a única
razão para arrendar o apartamento logo no ano a seguir a concluir o
internato, e para lá permanecer há mais de um quarto de século.
O consultório tinha três portas: uma conduzia ao vestíbulo, onde
improvisara uma minúscula sala de espera; a segunda ligava directamente ao corredor do prédio; e a terceira levava ao resto do apartamento, com a modesta cozinha, sala de estar, e quarto de dormir.
O consultório era uma espécie de ilha particular, com portais ligando
a esses outros mundos. Muitas vezes considerava-o um espaço de pro15
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fundeza, uma ponte entre realidades diversas. Isso agradava-lhe, porque acreditava que a separação entre o consultório e o vasto universo
exterior ajudava a facilitar-lhe de alguma forma o trabalho.
Não fazia ideia de qual dos pacientes se apresentara sem consulta
marcada. De imediato, não conseguia lembrar-se de um único caso
de um paciente agindo desse modo, em todos os anos de exercício da
psicanálise.
Tão-pouco era capaz de imaginar que paciente estaria a atravessar
uma crise suficientemente forte para provocar uma alteração tão inesperada na relação entre analista e analisando. Era com base na rotina
que ele construía, com base na rotina e na longevidade, numa situação
em que o simples peso de palavras proferidas na santidade artificial
mas absoluta do consultório do analista que acabava por pavimentar
as estradas da compreensão. Nesse aspecto, Zimmermann tinha razão.
A mudança ocorria sempre a contrapelo. Por isso, animou-se e cruzou
o consultório numa passada que a curiosidade acelerava modestamente, um pouco inquieto com a ideia de que qualquer coisa talvez
urgente penetrara na sua existência, que, como amiúde temia, se tornara demasiado calma e de todo previsível.
Abriu a porta que dava para a sala de espera e olhou em frente.
A sala estava vazia.
Por um instante ficou confuso, e pensou que talvez tivesse imaginado o toque da campainha, mas o Sr. Zimmermann também o
ouvira, e também reconhecera o toque característico que assinalava a
presença de uma pessoa conhecida na sala de espera.
– Quem é? – perguntou, embora, claramente, não houvesse ninguém para o ouvir.
Sentiu a testa enrugar-se de surpresa, e ajeitou os óculos de aros
metálicos empoleirados no nariz. «É curioso», disse em voz alta.
E foi então que reparou no envelope abandonado no assento na única
cadeira de espaldar direito disponibilizada aos pacientes à espera de
consulta. Respirou lentamente, abanou a cabeça para a frente e para
trás, e pensou que tudo aquilo era um pouco melodramático de mais,
mesmo tendo em conta o tipo de gente que então fazia parte da sua
lista de pacientes.
Aproximou-se e pegou no envelope, que trazia o seu nome dactilografado.
«Que estranho», comentou em voz alta. Hesitou antes de abrir
a carta, encostando-a à testa à maneira de Johnny Carson quando
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fazia de Carnac, o Magnífico, e tentando, nesse instante, adivinhar
qual dos pacientes a deixara ali. Porém, tratava-se de um gesto que
parecia pouco comum entre a dúzia de clientes que via com regularidade. Todos gostavam de verbalizar, directa e frequentemente, as suas
queixas contra aquilo que consideravam ser os numerosos defeitos e
insuficiências do analista, e isso, embora às vezes fosse irritante, não
deixava de ser parte integrante do processo.
Rasgou o envelope e retirou duas folhas de papel dactilografadas.
Leu apenas a primeira linha:
Um 53.º aniversário muito feliz, senhor doutor. Seja bem-vindo
ao primeiro dia da sua morte.
Inspirou vivamente, como se o ar viciado do apartamento lhe causasse tonturas, e deitou as mãos à parede, para se amparar.
O Dr. Frederick Starks, profissional da introspecção, vivia sozinho,
assombrado pelas recordações dos outros.
Dirigiu-se à pequena secretária, uma peça de antiquário em madeira
de bordo que recebera de presente da mulher, há quinze anos. Ela já
morrera há três, mas quando se sentava à secretária ainda lhe parecia
ouvir a sua voz. Estendeu as duas folhas da carta à sua frente, sobre o
papel mata-borrão da secretária. Ocorreu-lhe que passara uma década
desde a última vez em que, de facto, sentira medo, e isso fora quando
o oncologista diagnosticou a doença da mulher. Agora, aquele sabor
seco e ácido de novo na língua era tão indesejado como a aceleração
no coração, que sentia a galopar no peito.
Esperou um segundo ou dois, tentando acalmar a rápida batida, e
aguardou pacientemente que as pulsações abrandassem. Estava muito
consciente da sua solidão nesse momento, e odiava a vulnerabilidade
que ela criava dentro de si.
Ricky Starks – raramente mostrava quanto preferia a sonoridade do diminutivo informal, evocativa de parque infantil e lar
de estudantes, à mais sonora designação de Frederick – era um
homem que precisava de rotina e ordem. Empenhava-se numa
regularidade que raiava a religião e com certeza chegava à obsessão. ­ Achava que impor tanta racionalidade à vida quotidiana era
o único modo ­ seguro de tentar dar um sentido ao tumulto e ao
caos que os pacientes lhe transmitiam diariamente. Fisicamente era
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franzino, com ­quase um metro e oitenta. Tinha um corpo magro e
ascético, ajudado por uma enérgica caminhada diária a ocupar a
hora do almoço, e por uma firme recusa em se entregar aos doces
e gelados que, em segredo, adorava.
Usava óculos, o que não era invulgar num homem da sua idade,
embora se orgulhasse do pormenor de ainda manter a graduação
mínima. Também tinha orgulho no cabelo, que embora mais fraco,
ainda se erguia no escalpe como trigo na pradaria. Já não fumava, e
só raramente bebia um copo de vinho, numa ou noutra noite, para
ajudar a dormir. Era um homem que se habituara à solidão, e não
temia ir sozinho jantar a um restaurante, ou assistir a um espectáculo
na Broadway, ou a um filme em cartaz. Considerava que o inventário
do corpo e do espírito se achava em excelente estado. Na maior parte
dos dias, sentia-se mais jovem do que realmente era. Porém, tinha a
clara consciência de que a idade que atingia era aquela que o pai não
conseguira ultrapassar, e apesar da falta de lógica nessa observação,
também pensava que não passaria dos cinquenta e três, como se essa
acção fosse injusta, ou algo imprópria. E no entanto ainda não estou
preparado para morrer, pensou contraditoriamente, voltando a fixar
as primeiras palavras da carta. Depois foi lendo devagar, fazendo
uma pausa após cada frase, permitindo que o pavor e a inquietação se
enraizassem dentro de si.
Existo algures no seu passado.
O senhor destruiu-me a vida. Pode não saber como, nem porquê, nem sequer quando, mas destruiu. Desgraçou e entristeceu
cada segundo da minha existência. Destruiu-me a vida. E agora eu
tenciono destruir a sua.
Ricky Starks voltou a respirar fundo. Vivia num mundo onde eram
correntes as ameaças falsas e as promessas fingidas, mas apercebeu-se
logo de que as linhas à sua frente eram muito diferentes do palavreado
tortuoso que estava habituado a ouvir todos os dias.
De início, pensei simplesmente em matá-lo, para ajustar contas.
Depois reparei que era simplesmente fácil de mais. O senhor doutor
é um alvo pateticamente fácil. Durante o dia não fecha as portas à
chave. De segunda a sexta dá o mesmo passeio pelo mesmo percurso.
Ao fim‑de-semana permanece espantosamente previsível, inclusive na
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saída matinal de domingo para comprar o Times, um pãozinho de
cebola, e um café com avelã, duas de açúcar, sem leite, na cafetaria que
fica dois quarteirões a sul da sua casa, e está na moda.
Fácil de mais. Persegui-lo e caçá-lo não seria grande desafio.
E, dada a facilidade em perpetrar esse crime, não estava certo de
que me garantisse a necessária satisfação.
Decidi que preferia que fosse o senhor a matar-se.
Ricky Starks agitou-se no assento, pouco à vontade. Sentia vagas
de calor irradiando das palavras à sua frente, como fogo a pegar num
fogão de lenha, acariciando-lhe a testa e as faces. Tinha os lábios
secos, e foi em vão que passou a língua sobre eles.
Mate-se, doutor.
Salte de uma ponte. Dê um tiro de pistola nos miolos. Atravesse‑se diante de um autocarro. Atire-se para a frente do metropolitano. Ligue o forno a gás e apague a luz-piloto. Arranje uma viga
jeitosa e enforque-se. O método fica inteiramente à sua escolha.
É a melhor oportunidade que lhe resta.
Dadas as circunstâncias exactas da nossa relação, o suicídio
será muito mais adequado. E, para si, será certamente um método
muito mais satisfatório de saldar a sua dívida para comigo.
Portanto, vamos jogar o seguinte jogo: O senhor tem exactamente quinze dias, a contar das seis horas de amanhã, para descobrir quem sou. Se conseguir, tem de colocar um daqueles pequenos
anúncios a uma coluna publicados diariamente em rodapé na primeira página do New York Times, com o meu nome impresso. Só
isso: Simplesmente o meu nome impresso.
Se não conseguir, então… essa é que é a parte divertida. Repare
que a segunda folha desta carta contém os nomes de cinquenta e
dois membros da sua família. Em termos etários, vão desde um
recém-nas­cido que mal tem seis meses, filho da sua sobrinha‑bisneta, até ao seu primo, investidor na Wall Street e capitalista extraordinário, que está tão mirrado e bronco como o senhor. Se não
conseguir colocar o anúncio tal como descrito, resta-lhe a seguinte
escolha: Ou se mata imediatamente, ou eu destruo um desses inocentes.
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Destruir.
Como a palavra é intrigante! Pode significar ruína financeira.
Pode significar desgraça social. Pode significar violação psicológica. E também pode significar assassinato. Deixo-o a adivinhar.
Talvez seja alguém jovem, ou alguém velho. Masculino ou feminino. Rico ou pobre.
Tudo o que prometo é que será o tipo de acontecimento de
que essas pessoas – e os seus entes amados – nunca recuperarão,
por muitos anos que gastem em psicanálise. E seja o que for, o
senhor viverá cada segundo de cada minuto que ainda lhe resta
nesta terra com o conhecimento de que foi o seu único causador.
A não ser, é claro, que assuma a abordagem mais honrosa e se
mate primeiro, salvando ao seu destino o alvo que escolhi.
A sua escolha é essa: o meu nome ou o seu obituário. No mesmo
jornal, é claro.
Para provar a abrangência do meu alcance e a extensão dos
meus planos, contactei hoje um dos nomes da lista através de uma
pequena mensagem muito modesta. Convidá-lo-ia a passar o resto
do serão investigando quem terá sido contactado, e de que modo.
Poderá então abordar a verdadeira tarefa logo pela manhã, sem
mais delongas. É claro que eu, sinceramente, não espero que consiga adivinhar a minha identidade.
Assim, para demonstrar que sou do género desportivo, decidi
fornecer-lhe de tempos a tempos uma pista ou duas, ao longo dos
próximos quinze dias. Isto só para tornar as coisas mais interessantes, porque um indivíduo esperto e intuitivo como o senhor já terá
presumido que toda esta carta está repleta de pistas. No entanto,
aqui vai uma antevisão, a título de bónus.
A vida era liberdade e festança,
Para a mãe, para o pai, para a criança.
Mas o bom tempo logo dissipou
Quando o meu pai navegou.
A poesia não é o meu forte. O ódio, sim.
Pode colocar-me três perguntas, só para respostas de Sim e Não,
por favor. Utilize a mesma via, os pequenos anúncios da primeira
página do New York Times. Responderei, à minha maneira, num
prazo de vinte e quatro horas.
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Boa sorte. Também poderá ir já arranjando tempo para tratar
dos preparativos do seu funeral. Talvez a cremação seja preferível
a um enterro mais elaborado. Sei bem como detesta igrejas. Acho
que não seria uma ideia muito inteligente contactar a polícia. Provavelmente fariam troça de si, e suspeito que a sua vaidade teria
dificuldade em lidar com isso. Além disso, provavelmente só me
irritaria ainda mais, e, nesta altura, o senhor deve estar algo incerto
quanto ao meu real grau de instabilidade. Poderei fornecer respostas extravagantes, de uma série de formas bastante malévolas. Mas
de uma coisa pode estar absolutamente certo:
A minha cólera não conhece limites.
A carta estava assinada em caixa alta:
rumplestiltskin
Ricky Starks inteiriçou-se na cadeira, como se a fúria emanando
da página que tinha à frente o tivesse atingido no rosto como um
punho. Forçou-se a levantar, caminhou para a janela e escancarou-a, deixando que os sons da cidade irrompessem no silêncio da
pequena sala, transportados por uma inesperada brisa de finais de
Julho que prometia a aproximação de trovoada nocturna. Inspirou, pro­curando no ar alguma coisa que concedesse uma sensação
de alívio do calor que se apossara de si. Chegou-lhe aos ouvidos o
miado estridente de uma sirene da polícia a alguns quarteirões de
distância, e a cacofonia constante das buzinas dos carros que é o
ruído de fundo de Manhattan. Respirou profundamente duas ou
três vezes, depois fechou a janela, deixando lá fora todos os sons da
vida urbana normal.
Regressou à carta.
Estou metido em sarilhos, pensou. Porém, de início não sabia ao
certo até que ponto.
Dava-se conta de que estava a ser profundamente ameaçado, mas
os parâmetros da ameaça ainda eram imprecisos. Uma parte significativa de si insistia que ignorasse o documento pousado na secretária.
Que pura e simplesmente se recusasse a jogar aquilo que não parecia
ser grande jogo. Resfolgou, deixando florir o pensamento. Toda a sua
formação e experiência sugeriam que a atitude mais razoável seria não
fazer nada. Afinal de contas, os psicanalistas consideram muitas vezes
que guardar silêncio e não responder ao comportamento provocador
e injurioso de um paciente é a forma mais inteligente de atingir a ver21
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dade psicológica desses actos. Levantou-se e deu duas vezes a volta à
secretária, como um cão farejando um odor estranho.
À segunda passagem, estacou e voltou a fitar a folha coberta de
palavras.
Abanou a cabeça. Isso não resulta, apercebeu-se. Por um instante, sentiu um arroubo de admiração pela sofisticação do autor
da missiva. Ricky compreendeu que, tratando-se de uma ameaça
do tipo «vou-te matar», a teria acolhido com um desprendimento
próximo do tédio. Afinal de contas, tivera uma vida longa, e bastante boa, pensou. Ameaçar de morte um homem de meia-idade
não significava grande coisa. Mas não era isso que tinha pela frente.
A ameaça era mais oblíqua. Se nada fizesse, outra pessoa estava destinada a sofrer. Uma pessoa inocente, e, com mais probabilidades, uma
pessoa jovem, porque os jovens são mais vulneráveis.
Ricky engoliu em seco. Iria sentir-me culpado e viveria o resto da
vida num verdadeiro martírio.
Quanto a isso, o remetente tinha toda a razão.
Ou então mato-me. Sentiu na língua um súbito amargor. O suicídio seria a antítese de tudo aquilo que defendera ao longo da vida.
Suspeitou que isso fosse do conhecimento da pessoa que assinava
Rumplestilskin.
Abruptamente, sentiu-se como se o tivessem posto a prova.
Recomeçou a calcorrear o consultório, avaliando a carta. Uma voz
muito forte dentro de si queria rejeitar, encolher os ombros, ver nela
um exagero e uma fantasia sem qualquer base na realidade, mas Ricky
sentiu que não era capaz de o fazer. Censurou-se: Só porque alguma
coisa te incomoda, não quer dizer que a devas ignorar.
Mas de facto não sabia bem como reagir. Cessou o calcorreio e
voltou a sentar-se. Loucura, pensou. Mas uma loucura com um toque
claramente inteligente, porque me levará a juntar-me à loucura.
«Devia chamar a polícia», disse em voz alta. Depois parou. E dizer
o quê? Ligar à polícia e dizer a um sargento escriturário, aborrecido
e sem imaginação, que recebera uma carta de ameaça? E ouvir o
homem perguntar E depois? Tanto quanto sabia, nenhuma lei fora
infringida. A não ser que sugerir a alguém que se mate fosse uma
infracção. Extorsão? Que tipo de homicídio seria?, perguntava‑se.
Passou-lhe pela cabeça falar com um advogado, mas depois apercebeu-se de que a situação colocada pela carta de Rumplestilskin
não era do foro jurídico. Fora abordado no terreno que conhecia.
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O jogo sugerido era de intuição e psicologia, acerca de emoções e
medos. Abanou a cabeça e disse para si: «Nessa arena, eu sou capaz
de jogar.»
«O que é que já sabes?», perguntou-se, no vazio do consultório.
Alguém conhece as minhas rotinas. Sabe como faço entrar os
pacientes para a sala de espera. Sabe a que horas é a minha pausa de
almoço e o que faço ao fim-de-semana. Também foi suficientemente
esperto para conseguir elaborar uma lista dos meus parentes. Isso
exigiu algum engenho.
Conhece o meu aniversário.
Voltou a inspirar vivamente. Fui estudado.
Sem eu o saber, alguém tem andado a observar-me. A medir-me.
Alguém dedicou um tempo e um esforço consideráveis a criar este
jogo, e não me deixou muito tempo para contramovimentos.
Continuava com a língua seca e os lábios ressequidos. Tinha, de
súbito, muita sede, mas nenhuma vontade de trocar o refúgio do consultório pela cozinha e um copo de água.
«O que fiz eu para alguém me odiar assim?», questionou-se.
A pergunta foi como um rápido soco no estômago. Ricky sabia que
gozava da arrogância de muitos profissionais da saúde, que pensam
prestar bons serviços ao seu cantinho do mundo por compreenderem
e aceitarem a existência de uma pessoa. A ideia de que causara uma
espécie de monstruosa infecção de ódio em alguém algures era extremamente perturbadora.
«Quem és tu?», perguntou à carta. Pôs-se de imediato a percorrer
o ficheiro de pacientes, mas, rapidamente, parou. Percebera que talvez
viesse a precisar de fazer aquilo, mas teria de ser sistemático, disciplinado e persistente, e ainda não estava preparado para dar tal passo.
A princípio, Ricky não se considerava muito capacitado para ser o
seu próprio polícia. Mas sacudiu a cabeça, dando-se conta de que isso,
de uma forma muito especial, não era verdade. Durante anos fora
uma espécie de detective. Na verdade, a diferença residia na natureza
dos crimes que investigara e nas técnicas que utilizara. Ligeiramente
escorado por esse pensamento, Ricky Starks tornou a sentar-se à secretária, abriu a gaveta de cima, do lado direito, e retirou de lá um velho
livrinho de endereços com a capa em couro, tão gasto nas arestas que
precisava de um elástico em volta para não se desfazer. Para começar,
disse para si, podemos descobrir o parente que esta pessoa contactou.
Deve ser algum antigo paciente, pensou, é alguém que interrompeu
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a análise e mergulhou na depressão. Uma pessoa que escondeu uma
fixação quase psicótica durante um certo número de anos. Ricky
calculou que, com um pouco de sorte e talvez um indício ou dois na
direcção certa da parte do familiar contactado, fosse capaz de identificar o ex-paciente descontente. Com compreensão, tentou pensar que,
na verdade, o autor da carta – Rumplestiltskin – se voltava para ele em
busca de ajuda. Depois, quase ao mesmo tempo, descartou esse pensamento insípido. Com o livrinho de endereços na mão, reflectiu sobre a
personagem de contos de fada cujo nome o autor escolhera para assinar a carta. Cruel, comentou. Um gnomo mágico de coração negro,
que não é vencido pela astúcia, e só perde a prova por falta de sorte.
A observação não o fez sentir melhor.
Em cima da secretária, à sua frente, a carta parecia brilhar.
Sacudiu a cabeça lentamente. Esta carta diz muita coisa, insistiu.
Junta as palavras nesta página com aquilo que o seu autor já fez, e
estarás provavelmente a meio caminho de descobrir quem é.
Assim, afastou a carta para o lado e abriu o livrinho de endereços,
à procura do número de telefone da primeira pessoa na lista das cinquenta e duas. Com uma vaga careta, começou a martelar os números no teclado do telefone. Durante a última década pouco contacto
tivera com qualquer membro da família, e desconfiava que nenhum
deles teria muita vontade de o ouvir. Sobretudo dada a natureza da
chamada.
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