A estética armorial na microssérie “A Pedra do

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A estética armorial na microssérie “A Pedra do
A estética armorial na microssérie “A Pedra do Reino”
The armorial aesthetics in micro-serie “A Pedra do Reino”
Jane Aparecida Marques* & Franciele Busico Lima**
*Professora Doutora em Ciências da Comunicação, pertencente ao Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP e Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil ([email protected]).
**Mestranda do Programa de Pós-graduação em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil ([email protected]).
Resumo
A transposição para a televisão da obra literária de Ariano Suassuna “Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do
Sangue do vai-e-volta”, realizada pelo diretor Luiz Fernando de Carvalho, originou a microssérie “A Pedra do Reino”, veiculada em 2007 pela Rede Globo. Foi uma produção bastante elaborada, porém não atingiu nem o mínimo
da audiência esperada para o horário. Esse artigo analisa alguns elementos ligados à estética armorial utilizada na
produção que podem ter gerado dificuldades de compreensão e apreciação por parte dos telespectadores.
Palavras-Chave: Movimento Armorial; Estética; Transposição; Microssérie; “Pedra do Reino”.
Abstract
The transposition of Suassuna’s literary work “Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do vai-e-volta”
to television, by Luiz Fernando de Carvalho originated the serial “A Pedra do Reino”, aired by Rede Globo in 2007.
It was a really elaborated production, but its ratings weren’t as high as expected for the timeslot. This article analyses some elements that are connected to the armorial aesthetic used in the production that could have generated a
comprehension and appreciation difficulty for its viewers.
Keywords: Armorial; Aesthetic; Transposition; Serial; “Pedra do Reino”.
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A
microssérie “A Pedra do Reino” foi realizada e veiculada pela Rede Globo de Televisão no
período de 12 a 16 de junho de 2007, às 22h30, com texto de Luiz Fernando Carvalho, Luís
Alberto de Abreu e Braulio Tavares, fruto de uma transposição realizada pelo diretor Luiz
Fernando de Carvalho da obra literária de Ariano Suassuna (1971) “Romance d´A Pedra do Reino e
o Príncipe do Sangue do vai-e-volta”.
A referida série foi fruto de um projeto maior da Rede Globo de Televisão, assinado pelo
diretor Luiz Fernando de Carvalho, intitulado “Projeto Quadrante”. Esse Projeto consistia em transpor para a linguagem televisiva quatro obras literárias, a saber: “Romance d´A Pedra do Reino e
o Príncipe do sangue do vai-e-volta”, de Ariano Suassuna; “Dom Casmurro”, de Machado de Assis;
“Dois Irmãos”, de Milton Hatoum; e “Dançar tango em Porto Alegre”, de Sergio Faraco. Até o presente
momento, o processo de transposição das obras para microsséries televisivas ocorreram somente nos
dois primeiros casos, sendo intituladas, respectivamente, de “A Pedra do Reino”, já mencionada, pois
será objeto deste artigo, e “Capitu”i.
Mas por que “transposição” de obras literárias para a TV e não “adaptação”? O diretor Luiz
Fernando Carvalho explica: “recuso a ideia de adaptação. Ela me parece sempre redutora. Nos melhores momentos, seja trabalhando para a TV ou para o cinema, talvez tenha alcançado uma espécie de
resposta aos textos, ou, no meu modo de sentir, um diálogo, uma reação criativa à literatura” (PORTAL GLOBO, 2012)ii.
Esse diálogo que o diretor estabelece com as obras produz sempre um “novo”: já não se trata
mais daquilo que o autor originalmente escreveu, mas algo que foi sentido, compreendido, ressignificado e recontado por meio de imagens, que não necessariamente seguem a lógica da narrativa original, pois dialogam com a mesma por meio de confluências e acréscimos (BALOGH, 2005).
Nesse sentido, o que Luiz Fernando Carvalho nomeia como “reação criativa à literatura” se constituiu
especificamente na microssérie A Pedra do Reino, como uma possibilidade de narrativa televisiva não
habitual, algo como uma epopeia visual, com elementos tais como cenários, figurinos, gestualidade
dos personagens, escolha da trilha sonora, da luz e do movimento das câmeras, dentre tantos outros,
absolutamente diferenciados daqueles que, diariamente, os telespectadores entram em contato por
meio da televisão comercial aberta. Essa pode ter sido uma das causas da baixa audiência: habituados
a uma narrativa linear, de fácil compreensão e com elementos recorrentes, cotidianos, a ousadia das
escolhas visuais do diretor pode ter tornado incompreensível a transposição realizada e distanciado
o público.
Quando dirigiu A Pedra do Reino, Luiz Fernando Carvalho já havia transposto para o cinema
outra obra da literatura, Lavoura Arcaica (2001), do livro de Raduan Nassar, extremamente bem avaliada pela produção, roteiro, montagem e edição de som que realizou.
O alcance e a avaliação das produções cinematográficas e televisivas, no entanto, não são da
mesma natureza, o que colocou A Pedra do Reino numa posição de baixa audiência para o horário em
que foi veiculada (22h30). A microssérie atingiu nos cinco capítulos uma média de 11 pontos de audiência, quando o mínimo esperado seriam 15, sendo que outras microsséries veiculadas no mesmo
horário já haviam ultrapassado 30 pontos.
Detalhando o processo de trabalho com o livro para a criação do roteiro de filmagem de A
Pedra do Reino, realizado em parceria com Luis Alberto Abreu e Bráulio Tavares, Luiz de Fernando
Carvalho afirma:
Fiquei muito animado com a dinâmica que foi dada ao texto por Bráulio e Abreu,
que estiveram muito mais à frente deste trabalho com o romance do que eu. Pedi
aos dois para criar um diálogo com a circularidade do livro, que é todo dividido em
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folhetos que vão e voltam no tempo. Na transposição para as imagens, me agarrei às
entrelinhas do próprio texto, onde há uma boa dose de alquimia ungindo aquilo tudo
(PORTAL GLOBO, 2012).
O diretor explica também a escolha pela estética Armorial para a produção televisiva, estética
presente em todas as obras de Ariano Suassuna, uma vez que foi esse escritor quem idealizou o Movimento Armorial, no qual foram estabelecidos os pressupostos da arte que frui em “A Pedra do Reino”:
O nosso sentimento é o de realizarmos uma aproximação com o universo Armorial com muita delicadeza. Mas não vou apenas pelo psicológico, pois existe muito
mistério e magia que não se explicam. Trabalhamos com os restos das coisas, com o
que aos olhos dos outros está morto. Isso nos interessa. Vou pela Imaginação, pelo Sangue e pelo Sonho (PORTAL GLOBO, 2012).
No site Memória Globo (2012a) consta também a deferência dessa microssérie ao escritor paraibano: “Homenagem aos 80 anos do escritor paraibano Ariano Suassuna, ‘A Pedra do Reino’ narra
as aventuras e os delírios de um sertanejo contador de histórias.”
Há uma avaliação por parte da crítica especializada (e, também, por parte do próprio autor
da obra literáriaiii) que a microssérie realmente conseguiu levar as singularidades da estética ligada ao
Movimento Armorial para a tela da TV.
Breve Apresentação do Projeto Armorial
Ariano Suassuna, ao criar o Movimento Armorial, na década de 1970, tinha como objetivo
principal criar uma arte erudita genuinamente brasileira, a partir de elementos da cultura popular.
Segundo o escritor, ao contrário do que normalmente acontece, a Arte Armorial precedeu o Movimento: “porém, que ela só foi reunida de maneira deliberada e consciente depois que se tornou o
principal elemento dinamizador dos trabalhos do Departamento de Extensão Cultural da Universidade
Federal de Pernambuco” (SUASSUNA, 1977, p. 2).
Pode-se afirmar que a primeira manifestação da Arte Armorial, ocorreu em 18 de outubro de
1970, na Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife (MORAES, 2000). Nessa ocasião, Suassuna escreveu o programa do concerto e da exposição de Artes plásticas que ocorreram (CARVALHO, 1998),
justificando o emprego da palavra Armorial não mais como substantivo, mas sim adjetivo:
Em nosso idioma, “armorial” é somente substantivo. Passei a empregá-lo também
como adjetivo. Primeiro, porque é um belo nome. Depois, porque é ligado aos esmaltes
da Heráldica, limpos, nítidos, pintados sobre metal ou, por outro lado, esculpidos em
pedra, com animais fabulosos, cercados por folhagens, sóis, luas e estrelas (SUASSUNA, 1977, p. 2).
E Suassuna (1977, p. 2) explicitou as situações em que passou a utilizar o adjetivo criado:
Foi aí que, meio sério, meio brincando, comecei a dizer que tal poema ou tal estandarte de Cavalhada
era “armorial”, isto é, brilhava em esmaltes puros, festivos, nítidos, metálicos e coloridos, como uma
bandeira, um brasão ou um toque de clarim. Lembrei-me, aí, também, das pedras armoriais dos por-
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tões e frontadas do Barroco brasileiro, e passei a estender o nome à Escultura com a qual. sonhava para
o Nordeste. Descobri que o nome “armorial” servia, ainda, para qualificar os “cantares” do Romanceiro, os toques de viola e rabeca dos Cantadores – toques ásperos, arcaicos, acerados como gumes de
faca-de-ponta, lembrando o clavicórdio e a viola-de-arco da nossa Música barroca do século XVIII.
Já a sistematização desse conceito, ou seja, a definição do que viria a ser Arte Armorial, Suassuna indica que apareceu na mídia pela primeira vez:
(...) no “Jornal da Semana” do Recife, em 20 de maio de 1973, nos seguintes termos:
a Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação
com o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura
de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus “cantares”,
e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das
Artes e espetáculos populares com esse mesmo romanceiro relacionados. (SUASSUNA,
1977, p.1).
Segundo Idelete Muzart Santos (1999, p. 37), não há uma tentativa de Suassuna em conceitualizar as práticas artísticas do Movimento Armorial. Para essa pesquisadora a busca de uma intitulada
“armorialidade” se dá pela preocupação dos artistas com três principais pontos de convergência: “a
literatura popular nordestina, como modelo poético e uma via privilegiada da criação de uma arte nacional e universal; os modos de recriação da literatura oral; as relações estreitas entre as artes”. E esses
aspectos, típicos da obra de Suassuna, também estão registrados na microssérie A Pedra do Reino.
A proposta é resgatar a arte erudita sem perder a base das raízes populares da cultura nordestina, como parte da cultura nacional. Em uma separata da Revista Pernambucana de Desenvolvimento
de 1977, Ariano explica a opção pelo nome “armorial”:
O Movimento Armorial pretende realizar uma Arte brasileira erudita a partir
das raízes populares da nossa Cultura. Por isso, algumas pessoas estranham, às vezes,
que tenhamos adotado o nome de “armorial” para denominá-lo. Acontece que, sendo
“armorial” o conjunto de insígnias, brasões, estandartes e bandeiras de um Povo, no
Brasil a Heráldica é uma Arte muito mais popular do que qualquer outra coisa. Assim,
o nome que adotamos significava, muito bem, que nós desejávamos ligar-nos a essas
heráldicas raízes da Cultura popular brasileira (SUASSUNA, 1977, p. 2).
O propósito deste artigo é demonstrar como Luiz Fernando Carvalho intencionalmente se
enfronha no universo Armorial, como trataremos a seguir. Valendo-se de referências tanto da cultura
popular quanto da erudita, exatamente como concebeu Suassuna, o diretor produz um espetáculo
visual de formas e cores barrocas, míticas e faz da tela da TV seu palco, em ato inédito e ambicioso.
O Movimento Armorial passará, um dia; como é da natureza de qualquer movimento. Isso demorará porém, porque, como ficou demonstrado por estas palavras, estamos, ainda, em plena atuação
e com muitas áreas de realização a preencher. Mas, mesmo quando ele se extinguir como Movimento,
ficarão as obras armoriais que tiverem qualidade para resistir ao tempo e ficará sua influência, seu
rastro na Cultura brasileira. (SUASSUNA, 1977, p. 20).
Luiz Fernando Carvalho e a Estética Armorial na Produção Televisiva
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Os seres humanos são apegados às narrativas de qualquer natureza, com elas se identificam e
percebem sua própria vida, ressignificando suas ações cotidianas, podendo por meio dessas histórias
se autoanalisar e fazer o exercício de colocar-se no papel de outrem. Como observam as pesquisadoras Nora Mazzioti e Gerlinde Frey-Vor (1996, p. 47): “os primeiros estudos sérios de telenovelas reconheceram que, ao mesmo tempo em que elas são ficção, são também fundamentais na estruturação da
realidade de seus espectadores”.
Para reconhecer essa necessidade e proximidade com as narrativas ficcionais, pode-se refletir
sobre o quanto as ficções televisivas, em especial as telenovelas, caminham nessa direção diariamente,
tratando de temas atuais, influenciando no modo de agir e de pensar, trazendo pautas de discussão
para as famílias propiciadas pelo ambiente ficcional televisivo:
O telespectador registrará de algum modo as histórias a que assiste diariamente
no horário nobre com graus variáveis de nitidez em razão da intensidade de seu envolvimento com as questões tratadas, que podem dizer respeito à situação, ao ator, à personagem, enfim, à imensa variedade de fatores estruturais ou conjunturais imbricados
na telenovela, aí incluídos os seus, de caráter subjetivos, entre os quais suas próprias
lembranças do passado. (MOTTER, 2001, p. 77).
Mas, percebe-se também que, por vezes, há a aceitação de uma narrativa que esteja tanto mais
distante do dia a dia, da crônica que trata de um cotidiano verossímil e próximo ao dos telespectadores, para se fixar numa modalidade muito mais próxima a dos contos, que foi o que ocorreu com a
comovente e poética história da menina órfã de Hoje é dia de Mariaiv , microssérie também dirigida
por Luiz Fernando Carvalho.
Sendo assim, pode-se dizer que em Hoje é dia de Maria e, também na microssérie A Pedra do
Reino, Luiz Fernando procurou tocar o telespectador por meio de uma estética singular, pouco ligada
a elementos realistas, mas a uma atmosfera onírica, com características armoriais:
(...) a redescoberta dos tempos inaugurais, a sedução do mítico e das origens arcaicas
que se expressam sob a forma de fadas ou do maravilhoso. Entendemos o maravilhoso, o fantástico, o onírico não como uma mentira, uma fantasia inconsequente, e sim
como frinchas e brechas por onde nos espiam – e possíveis de serem capturadas – algumas de nossas verdades humanas. (VIDAL; MARQUES, 2007, p. 42).
Especificamente na estruturação de A Pedra do Reino, objeto deste trabalho, observa-se que
o diretor utilizou a singular estética armorial aliada às narrativas míticas e com muitas referências
artísticas, numa “costura barroca” que não chegaram a muitos dos telespectadores. Em Hoje é dia de
Maria a aceitação pode ter sido mais tranquila, pois a trama estava mais diretamente relacionada ao
conhecido universo dos contos infantis.
Outro diretor que atua na TV Globo, Guel Arraes, também realizou adaptação para a TV (e
para o cinema) de uma obra de Suassuna, no caso, O Auto da Compadecidav . A produção de Guel
Arraes não teve os problemas de recepção que se notou em A Pedra do Reino, pelo contrário, foi um
sucesso absoluto de crítica. Infere-se que, apesar de alguns elementos da estética armorial serem perceptíveis nas escolhas cênicas de Guel, esse diretor usou elementos muito mais acessíveis e compreensíveis ao telespectador televisivo, como, por exemplo, o picaresco. Segundo o próprio diretor:
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(...) as referências ao universo armorial não são diretamente o resultado de uma pesquisa realizada sobre o Movimento, e sim uma conseqüência de seu já mencionado
mergulho nos mesmos elementos que integraram as bases estéticas do Movimento: os
elementos picarescos, usados para compor o João Grilo ou as características medievais
atemporais conservadas no Nordeste do país, por exemplo (CAMPOS, 2008, p. 274).
Pode-se, portanto, justificar a pouca aceitação de A Pedra do Reino por seu rompimento com
a estética habitualmente veiculada no meio televisivo. Nesse sentido, para Renato França (2008):
Alegórica, mítica, homérica, quixotesca, armorial, sebastianista, enfim suassunense, em transe contínuo entre o belo e o sublime (...), a transposição conduz o telespectador para além do gosto cartesiano,
do imaginário sob controle. Narrada como uma literatura de cordel, ora trágica e ora cômica, incursiona por uma magia estética sonoro-visual ribombante, operística, onde os planos de real, ficcional,
fantástico e onírico são imbricados uns nos outros por fronteiras espaciais, temporais e narrativas
tênues, sutis, dialéticas.
Acredita-se que foi uma ruptura radical com a recepção televisual habitual, especialmente pela
narrativa entrecortada de o que causou estranhamento e desistência por parte do público. Infere-se
que as referências utilizadas pelo diretor na produção e na montagem da produção televisiva não sejam imediatamente decifradas, requeriam uma mediação, ou algumas explicações/explicitações.
Narrada como uma literatura de cordel, ora trágica e ora cômica, incursiona por uma magia
estética sonoro-visual ribombante, operística, onde os planos de real, ficcional, fantástico e onírico
são imbricados uns nos outros por fronteiras espaciais, temporais e narrativas tênues, sutis, dialéticas
(FRANÇA, 2008).
É a partir dessa constatação que se pode analisar o diálogo que Luiz Fernando procura estabelecer com diferentes manifestações artísticas, numa busca pela estética dita armorial, barroca,
complexa, com elementos eruditos e popularescos sendo apresentados simultaneamente.
Profusão de imagens, de diálogos e de personagens; fluxo de imagens em ritmo frenético e
delirante; dimensões temporais e espaciais que se superpõem; textual que se impõe sem respiros: teria
sido demais para um telespectador formado e conformado por uma exclusivista e recorrente ficção
estrutural e discursivamente linear, horizontalizada, sob total e completo controle estético, espetacular? Não bastasse tudo isso, construiu sua força dramática a partir de uma trupe de novos atores,
prescindindo dos semideuses platinados pela mística da celebridade. (...) Teria sido então uma ruptura demasiado radical com a normalidade da recepção da ficção televisual de produção nacional?
(FRANÇA, 2008, p. 8)
Nota-se que, fugindo do lugar-comum e da simplória lógica da narrativa linear, trouxe certo
desconforto e estranhamento ao telespectador, contudo, também, a possibilidade de lidar com o mágico, ilógico. Além das propositais e claras marcas de ruptura com a “novela nossa de cada dia” e de
suas brasilidades, que se pretendem representativas de uma nação, mas que notadamente se restringem, na maioria das vezes, ao eixo Rio de Janeiro e São Paulo:
(...) não seria o caso de, acima de tudo, exclamar como bendito esse hermetismo que
nos leva a pensar, a refletir, a constatar que sabemos e conhecemos pouco da nossa história, da nossa cultura, da nossa trajetória política e da nossa capacidade de leitura;
um bendito hermetismo que poderia nos impulsionar a querer saber mais, a conhecer
mais sobre nós mesmos e, quiçá, a nos conformarmos menos? (FRANÇA, 2008, p. 9).
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O processo de produção de A Pedra do Reino foi todo documentado por meio de diários e
anotações nos roteiros dos cinco capítulos, atualmente publicados com os títulos Fac-Símile dos Cadernos de filmagem e Diário de Elenco e Equipe, pela Editora Globo, num projeto intitulado “Memória Globo” (TAVARES, CARVALHO, ABREU, 2007). Esse material foi amplamente consultado e por
meio dele puderam-se conhecer algumas referências específicas do diretor que o direcionaram para a
construção da microssérie, o que se pode constatar na sua apresentação desse trabalho: “Trata-se de
uma tentativa de um modelo de comunicação, mas também de educação, onde a ética e a estética andam
juntas. Estou propondo, através da transposição de textos literários, uma pequena reflexão sobre o nosso
país”.
Análise da sequência inicial da microssérie A Pedra do Reino
Considerando os elementos anteriormente discutidos e apresentados, partimos para a análise
da sequência inicialvi da microssérie A Pedra do Reino, como forma de exemplificar alguns elementos
estéticos armoriais, adotados pelo diretor Luiz Fernando de Carvalho.
A sequência em questão foi composta por várias cenas. Começa com uma vista aérea do “sertão”, facilmente percebido por meio da chapada, do descampado cor ocre, pela pouca presença de
água, aspectos também destacados por Feldman (2012). Nesse espaço árido entra Quaderna (personagem principal) no centro da cena e começa a andar, dançar e vai sendo seguido por crianças.
Com duração aproximadamente dois minutos, nessa sequência acontecem muitas coisas. A
cena que introduz o personagem principal (Quaderna Velho) é uma clara referência ao folguedo popular conhecido como “Cavalo Marinho”, pois logo podem ser vistos Mateus e Bastião, dois personagens desse brinquedo, abrindo o portão da cidade. Essa cidade foi chamada de “cidade tumular”
pela produção, pois as fachadas das construções eram inspiradas em túmulos. Quaderna continua
brincando com o Cavalo Marinho pela praça central da cidade e, depois que o grande portão é aberto,
vários casais adentram o espaço cênico, em fila de pares, e há muitos movimentos de câmera para
apresentar a constituição da roda de abertura da microssérie.
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Figura 1 – Roda de abertura – sequência inicial
Há muitas outras referências que podem ser depreendidas dessa sequência inicial que tem,
como principal objetivo, apresentar na forma de uma mandala os personagens principais da trama,
que vão aparecendo em close durante a realização da dança, mas para que essas referências fossem
entendidas e/ou apreciadas, seria necessário que o telespectador passasse por uma educação visual
não cartesiana, com ampliação de seu universo cultural em relação tanto à cultura popular, quanto à
erudita, para que conseguisse estabelecer relações e decifrações, em vez de desistir e mudar de canal,
ou desligar sua televisão.
Conclui-se, portanto, que A Pedra do Reino, microssérie dirigida por Luiz Fernando Carvalho
é uma obra audiovisual armorial, uma epopeia visual, planejada de maneira cuidadosa e repleta de
referências de diferentes elementos artísticos populares e eruditos o que, de certa maneira, não favoreceu sua compreensão e avaliação por parte dos telespectadores.
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Referências
Figura 2 – Imagem extraída do fac-símile dos cadernos de filmagem da versão final do Capítulo 1:
A Pedra do Reino (com anotações e desenhos de Luiz Fernando Carvalho)
No planejamento das tomadas que pode ser conhecido nos fac-símiles dos cadernos de filmagem com os esboços da direção (TAVARES, CARVALHO, ABREU, 2007), é possível observar as
várias referências de distintas linguagens artísticas que Carvalho utiliza: só pelas anotações ao lado do
desenho do que imaginou ser essa roda, o diretor faz menção ao teatro medieval, à obra “Circo” do
artista Calder, e coloca, na página seguinte, a seguinte anotação: “esta abertura eu a pensei depois de
rever ‘Trono manchado de sangue’, de Kurosawa”.
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Acesso em: 20 out. 2012.
Notas de rodapé
Capitu é uma microssérie apresentada em cinco capítulos, com roteiro de Euclydes Marinho, texto final
e direção geral de Luiz Fernando Carvalho. Exibida pela TV Globo, no período de 09 a 13/12/2008, no
horário das 23h (MEMÓRIA GLOBO, 2012a).
i
Depoimento do diretor extraído do sítio do Projeto Quadrante, na página da “Pedra do Reino”. Disponível em: <http://quadrante.globo.com/Pedradoreino/upload/main.html>. Esse sítio foi acessado em
2012, mas como a produção da página é contemporânea ao lançamento da microssérie (2007) e nem
todos os links estavam funcionando adequadamente.
ii
Ariano Suassuna disse que considerou excelente o trabalho de Luiz Fernando de Carvalho na microssérie A Pedra do Reino, em entrevista concedida a uma das autoras deste artigo, em 30 maio 2012.
iii
Hoje é Dia de Maria é uma minissérie apresentada em oito capítulos, de autoria de Luiz Fernando Carvalho e Luís Alberto de Abreu e direção de Luiz Fernando Carvalho. Exibida pela TV Globo, no período
de 11 a 21/01/2005, no horário das 23h (MEMÓRIA GLOBO, 2012c).
iv
O Auto da Compadecida é uma microssérie apresentada em quatro capítulos, de autoria de Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcãoe direção de Guel Arraes. Exibida pela TV Globo, no período de 05 a
08/01/1999, no horário das 22h30 (MEMÓRIA DA GLOBO, 2012d). Baseada na obra homônima, de
Ariano Suassuna (1955), combina elementos de seus outros livros: O Santo e a Porca e Torturas de um
Coração. No cinema, o filme foi lançado em 2000, pela Globo Filmes. “Em 2000, a minissérie foi reeditada e levada às telas de cinema, contabilizando mais de 2 milhões de espectadores, um marco para os
padrões brasileiros. O Auto da Compadecida foi reapresentada em formato de filme em janeiro de 2002,
no Festival Nacional, durante a faixa noturna de programação da TV Globo dedicada à produção de
cinema brasileiro. Em outubro do mesmo ano, o filme foi mais uma vez reapresentado numa tarde de
domingo” (MEMÓRIA GLOBO, 2012d).
v
A sequência inicial que está sendo analisada pode ser acessada em : <http://www.youtube.com/
watch?v=DV-ydqfD2dQ>. Licença Padrão do YouTube, 2’05’’.
vi
Recebido em 24 de Fevereiro de 2014.
24
Antonio Manuel and Osvaldo Goeldi: the graphic construction of the world
Tatiana Martins
Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Escola de Belas Artes, Especialista em História e Crítica da Arte, e Artes Visuais, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Resumo
A relação entre as produções de Antonio Manuel e Oswaldo Goeldi não é direta, no entanto, é possível perceber
afinidades e afetos. O correlato poético entre os dois artistas se apresenta sob a visualidade gráfica. Sob a perspectiva da historiografia da arte brasileira, o artigo analisa a produção artística que enlaça a trajetória de ambos os
artistas. O desejo pela margem acentua as afinidades entre as poéticas e é através dele que se investigam outras
possibilidades de narrativa da história da arte.
Palavras-chave: Arte Brasileira; Crítica de Arte; Contemporaneidade; Romantismo
Abstract
The relationship between the productions of Manuel Antonio and Oswaldo Goeldi is not straightforward, however,
one can see affinities and affections. The poetic correlative between the two artists is presented in graphical visuality. From the perspective of the historiography of Brazilian art, the article examines the artistic production that links
the trajectory of both artists. The desire for the bank emphasizes the affinities between the poetic and it is through
it that we investigate other possible narrative of art history.
Keywords: Brazilian Art; Critic of Art; Contemporaneity; Romantism
Aprovado para publicação em 16 de maio de 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1, p. 14-24, 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1 , p. 25-32, 2014.
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A
formação artística de Antonio Manuel foi profundamente marcada pela interlocução com
Hélio Oiticica. Porém, outra influência da modernidade brasileira, a meu ver, impulsionou a
poética do artista. De uma forma indireta, mas nem por isto, desimportante, há uma interessante relação entre as poéticas de Antonio Manuel e de Oswaldo Goeldi. O romantismo patente e a
expressão gráfica marcante de Goeldi inspiram a construção do mundo de Antonio Manuel. Os seus
trabalhos iniciais, a partir desta sintonia, quase secreta, concentram a força expressiva da imagem. As
imagens impactantes, legado direto das violentas e banais cenas cotidianas, preenchem e completam
os planos geométricos dos flans e jornais. A força da imagem, seu apelo comunicativo, decorre de
um expressionismo singular. Sua especificidade liga-se diretamente à imersão do sujeito-artista em
seu próprio tempo. Goeldi preocupa-se com o conteúdo de verdade da forma plástica moderna, sem
contudo fazer parte daquela modernidade brasileira compromissada com um nacionalismo cultural.
Antonio Manuel, intuitivamente, sensibilizou-se com esta intensa expressão de vida e de arte, para
aplicá-la à época da massificação dos meios de comunicação.
Na produção de Antonio Manuel, concentra-se um nexo imagético derivado da tentativa de
equacionar a entropia do mundo contemporâneo à sua pronta comunicabilidade. A imagem prima,
de um modo geral, por estabelecer uma relação imediata com o espectador. Nela, o mundo se estrutura graficamente, operando a síntese perceptiva (e uma síntese intelectiva) de um mundo banal e
superficial. O artista parte do momento em que a exacerbação das subjetividades dentro das pesquisas
neoconcretas estava no ápice, e opera um desvio, contornando um sentido existencialista já algo pasteurizado, apontando assim para um novo tipo de vivência reflexiva em nossa arte contemporânea.
A imagem contém o recorte obviamente fragmentário da síntese, apontando para uma aparente fragilidade. Tal aspecto encontra força como agente mediador para a comunicação entre interior
e exterior. Ora, como espelho do mundo, a imagem tem impregnada à superfície a sua complexidade,
podendo torná-la visível. A imagem pode construir o espaço, indicando um certo reducionismo, e
trabalhar sob a égide do impacto imediato e do apelo comunicativo. A imagem existe no espaço e no
tempo, pois, constitui um lugar e uma simultaneidade. No caso de Antonio Manuel, não se trata de
uma redução matemática, reguladora e gerenciadora de limpeza e arrumação do espaço; trata-se, na
verdade, da profusão de imagens que nos orienta – a partir do próprio caos - para eliminar o lugar
entrópico do mundo. O artista recorta, com seu olhar singular, aspectos do mundo e da arte, transformando essa imagem em visão1, tornando-a a expressão genuína da experiência. Antonio Manuel não
explica o mundo pelas imagens, convoca-nos a recriá-lo e a revivê-lo.
As telas posteriores e as instalações partilham a estrutura gráfica das primeiras obras de Antonio Manuel. A ordem gráfica aparece contudo mais difusa, confundindo-se com uma noção labiríntica. O espaço construído por Mondrian – labiríntico por excelência - ecoa na formulação nuclear,
por mim atribuída, da produção de Antonio Manuel: o flan. Mondrian, rompendo com o sentido
perspectivo da pintura, chega à dimensão planar. Essa operação sintetiza as questões funcionais da
tela, trazendo à tona sua verdade bidimensional. Sua síntese comporta tudo o que uma pintura pode
ter: linha, ponto, cores, relação com espaço externo e estrutura. O plano bidimensional da tela revela,
a partir do essencialismo plástico de Mondrian, a sua própria realidade. Essa verdade consolida-se a
partir da reflexividade plástica – esse elemento participava, naquele momento, da pesquisa visual moderna. Antonio Manuel, nesta rápida apreensão intuitiva, devora vorazmente as demandas modernas
que consolidam as verdades próprias da sua produção, livrando-se das amarras de grupos ou gerações
e colocando-se como integrante do projeto de arte autônomo brasileiro dado pela tendência construtiva equacionada ao experimentalismo e ao entendimento da forma moderna.
O material básico da pesquisa visual de Antonio Manuel parece ser os elementos apreen-
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1, p. 25-32, 2014.
didos a partir de sua interação visceral com o mundo cotidiano. Ao acaso, na imprevisibilidade da
vida, o artista sensibiliza-se com um mundo tangencial ao ritmo frenético do dia-a-dia, o seu ritmo
contudo é determinado por sua percepção de artista, como se houvesse uma concatenação estranha
entre os dois ritmos. Assim, propõe uma circularidade singular em que o sentido de presente, às
vezes urgente, às vezes mais relaxado, é predominante. Neste aspecto, pretendo cotejá-lo a Oswaldo
Goeldi. Vale notar um possível contato entre o artista e as gravuras de Goeldi. Havia de fato entre os
artistas neoconcretos uma grande admiração pela obra de Goeldi. A prova disso são as xilogravuras
neoconcretas de Lygia Pape que somam o traço expressivo característico da técnica à sensibilização
espacial. Talvez, por esta razão, Antonio Manuel já pudesse assimilar algo daquela poética. Ao tentar
essa aproximação, não tenciono justificar ou inserir a obra de Antonio Manuel dentro de uma história
factual ou numa narrativa cronológica da arte brasileira. Tento, sim, partindo da experiência da obra,
extrair do cenário artístico brasileiro alguns fios condutores da nossa modernidade. Goeldi revestiu
a modernidade brasileira da visualidade expressionista moderna. O seu princípio criativo era buscar
nos elementos marginalizados da sociedade um sentido autêntico de universalidade.
Ao tratar desta comparação, pretendo averiguar a formação artística como primeiro componente, em estado latente, ou talvez, inconsciente, a matéria da qual o artista, instintivamente, retira
suas questões e seus padrões. Em sentido lato, essa formação torna-se o seu reservatório imaginário e
conceitual. Acredito que a concepção romântica-expressionista de Goeldi, surpreendentemente compareça, obviamente modificada, na estrutura construtiva e expressiva de Antonio Manuel. O mesmo
arsenal imaginativo oriundo de um mundo excluído toma parte da poética dos dois artistas. A construção de um espaço moderno constituído por elementos noturnos e, em alguns casos, sombrios é o
móvel inicial de Goeldi. A luminosidade que reverbera dos veios cavados amplia ou diminui, expande
ou contrai, o espaço. Há uma aura de nostalgia que penso encontrar em alguns momentos da obra de
Antonio Manuel, a tentativa de constituição de um sujeito íntegro a partir, justamente, de fragmentos.
No primeiro caso, o sujeito construído por Goeldi vem do próprio florescer moderno; para o segundo
artista, este sujeito está fatalmente imiscuído no mundo da cultura de massa, na explosão das individualidades e na consequente opressão das mesmas.
Antonio Manuel trata o elemento urbano já inserido numa cultura de massa, mas seu olhar
ainda passeia livre, apreendendo os elementos ordinários do cotidiano. O uso da imagem como recorte do urbano dos dois artistas é de grande apelo comunicativo, privilegia a reconstrução de um
imaginário imediatamente dado. O uso do negativo/positivo fotográfico ilumina a gravura, no caso de
Goeldi, e os desenhos, os flans e as telas no caso de Antonio Manuel. Ambos recortam aspectos do Rio
de Janeiro, fragmentando a realidade para depois transpô-la como sintoma do anonimato. O recurso
gráfico de Antonio Manuel, nos seus primeiros desenhos ou na apropriação do flan, não sintetiza apenas o espaço, mas o constrói como projeto. O desenho é o momento sem mediação entre o fazer e o
pensar, é o Atual. Nesta noção de autenticidade e de profundidade, encontra-se o fator diferencial da
apreensão romântica e expressiva de ambos os artistas.
As semelhanças entre estas duas poéticas convergem para o aproveitamento espacial mediante
linhas desenhadas ou gravadas. Os pretos dominantes da composição estrutural, sulcados por rachaduras de luz, ostentam a discreta síntese cubista no tratamento plástico. Quando Goeldi emprega a
xilogravura, alude às raízes expressionistas, à busca de um sujeito marcado pelo estranhamento do
mundo, por uma inédita solidão existencial. O retorno ao primitivo acentua a poética do desterro e da
finitude. A formação de Goeldi, interseção entre Europa e Brasil, alimenta o olhar singular do artista:
o Brasil pelo seu viés moderno é de uma exuberância simples, contida, expressamente discreta. O emprego da madeira - do tosco, do assimétrico - compõe o quadro da busca de uma origem
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que, em Goeldi, são os trópicos abafados e soturnos. O elemento vital do artista - seu traço, seu risco,
seu espaço, a matriz - diz muito sobre a sua poética: coloca-a no desvio, no atalho que o faz singular,
comporta o canhestro cenário no qual a arte se faz visível, regula, pelo exercício do olhar, os atributos
de uma modernidade pária.
Em Goeldi, a matéria é espírito, é o conteúdo expressivo da arte; em Antonio Manuel a matéria será, desde logo, carne. O suporte-flan confere à poética de Antonio Manuel um fio condutor: a
fusão arte e vida, e vida de um sujeito integrante do universo da cultura de massa. A construção do
sujeito numa cultura de massa não prescinde da solidão. O sujeito é inominado, partilha do pathos
do abandono. Este último, parceiro dos pescadores do cais do Rio de Janeiro de Goeldi, retorna – de
fato, nunca deixou a cena – explodindo, agora, as fronteiras individuais para demarcá-las contundentemente. Fazer parte da indistinção, prover uma realidade anônima, escapar do lugar-comum massificado e orquestrar a entropia compõem o quadro sinóptico da cultura de massa. A aceitação destas
contingências e suas transformações em matéria-viva da arte colocam Antonio Manuel como um dos
primeiros artistas brasileiros a formar-se numa época que já escapa, em larga medida, ao nosso histórico patriarcalismo cultural.
Conduzido pela entrópica cultura de massa, Antonio Manuel dilui as fronteiras da sofreguidão e do tédio. Vagar a esmo, observar ao redor, cultivar o comum são as primeiras atividades para a
formação do seu olhar. Sua poética adota a síntese rápida, a simultaneidade, o movimento. O jornal
participa da composição de um mundo que não pára, que perverte a ordem do dia, pois traz à tona,
num mesmo tratamento descritivo e formal, realidades díspares: o subúrbio das tragédias domésticas e o sistema econômico mundial. Na ânsia de comunicabilidade, Antonio Manuel tenta resolver a
entropia retirando a própria máscara: o planeta é entrópico; a realidade, multifacetada; há um hiperrealismo que irradia irrealidades, pequenos absurdos. Desmascara a suposta neutralidade do jornal,
mostrando que seu discurso está entremeado de absurdos e de má fé.
Ao andar solitário de Goeldi pelo cais do porto corresponde o vagar de Antonio Manuel pelas ruas da Lapa. Ambos perscrutaram a sordidez encoberta pela promessa de um luminoso mundo
moderno2 saído da luz, produto sadio do esclarecimento. Ambos perseguem a via da diferença, do
singular, desconfiam da certeza radiante exalada pelo mundo objetivo da ciência. Desconfianças que
não se transformam contudo em denúncia retórica. Em ambos os trabalhos, o cunho sociológico
sobre a situação dos marginalizados, dos excluídos, vem imerso na própria empatia estética. São personagens, por assim dizer, que expressam a matéria bruta; neles, eles revelam a condição da existência
do homem inserido no mundo moderno. Para Goeldi, a condição de existência só pode ser a de um
sujeito inconformado com o mundo em formação, contudo, mesmo marginalizado, esse sujeito está
em relação carnal com este mundo. O estar-no-mundo de Goeldi tem um enfático sentido existencial:
refratário ao inumano mundo moderno. Em suma, há sombras onde deveria haver luz.
Antonio Manuel não carrega, por certo, o peso existencialista de Goeldi. A sua solidão constitui-se na medida em que sua voz ecoa e não reverbera. A cacofonia do mundo da cultura de massa
impede um diálogo coerente, em geral, não há interlocutores. A miséria do mundo é mostrada através
de figuras vampirescas, saídas não apenas da imaginação do artista. A dura realidade da vida censurada torna-se a matéria que inspira o artista a recriar o mundo povoado de toda irrealidade encontrada
na própria realidade. São soldados da ditadura trazidos para um universo que já não é da ordem do
real empírico, em seus rostos uma promessa de morte, mas é do real mesmo que o artista extrai seu
material. Através da realidade, delineia-se um universo expressivo correspondente à fusão característica, de viés romântico, entre arte e vida como condição de possibilidade do fazer arte.
As similitudes entre os dois artistas aludem ao elemento marginal, presente em ambas as po-
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éticas, tão essencial que acompanha suas trajetórias artísticas. Ser marginal é a condição do artista.
Suas vidas foram determinadas, até certo ponto, por esta condição cultural. Goeldi carregou o exílio
consigo, descortinando um mundo que amolda-se a seu inadequado mundo particular. Seu comportamento era esquivo, fugia das aventuras modernistas brasileiras; sua arte pressente a vida eclipsada,
imersa no ermo inaudito, esta vida é vivida em tons dissonantes, num ritmo estranho. Antonio Manuel é um brasileiro por convicção, que extrai da sua vivência, da sua brasilidade, os elementos constitutivos de sua arte. Em certo momento, tenta estar fora do contexto artístico para poder produzir arte.
Partilha da solidão do artista brasileiro contemporâneo, que deslocado do sistema de arte, empreende
eterna busca por um meio artístico seguro de si e articulado. Antonio Manuel assumia a marginalidade como premissa de liberdade.
Tanto para Antonio Manuel quanto para Oswaldo Goeldi a experiência pessoal é tudo, ou seja,
o vivido é condição de possibilidade do fazer arte. A experiência em Goeldi articula-se com o pathos
da solidão; viver em constante exílio leva o artista a achar o apátrida nas figuras de desolação. Sua poética é o exercício de eloqüência dos mudos, seu eco surdo desnorteia a visão do espectador. Aliás, o
espaço sintético e a geometrização aguda dos elementos plásticos seguram o olhar fugidio habituado
a percorrer o fundo, encontrar o horizonte estável. Os negros agigantam o espaço delimitado por leves
cesuras que arranjam graficamente as figuras. A perspectiva é ligeira, mas constantemente distorcida
para conferir o sentido de irrealidade tão recorrente em sua obra.
Antonio Manuel já experimenta o real a partir da sua interação com o cotidiano. Percorre as
questões da arte – desde sua gênese até sua circulação, passando pelo universo do cotidiano, buscando
uma insuspeita liberdade. O presente e as questões prementes da ordem do dia são os dados manipulados nas experimentações do artista. Não há resignação perante a solidão. Ela existe, mesmo num
mundo exponencialmente agigantado, e isto, o artista sabe. Estas questões ecoam na produção de Antonio Manuel sem, no entanto, virarem estandarte político ou investigação sociológica. A planaridade
da obra de Antonio Manuel é a mesma encontrada na superfície do jornal.
Estes trabalhos nasceram de minha paixão pelo jornal enquanto meio de captar a realidade imediata, tornar possível a criação poética e sobretudo a idéia de síntese entre o verbal
e o visual contida no veículo. A maneira como os jornais são expostos nas bancas, o tipo
de diagramação e paginação, com aquele apelo poético, dramático, serviu de material para
elaboração dos trabalhos – poemas visuais -, que a princípio eram desenvolvidos no ateliê e
depois realizados nas próprias oficinas de jornais, junto ao barulho constante da redação e da
rotativa. Tudo ali era criação, a transformação do vivido em algo gráfico-visual, com toda a
carga desse vivido. Um ruído dinâmico que imprimia assim uma força viva ao trabalho.3
Neste depoimento, Antonio Manuel descreve seu olhar primeiro para o jornal, assinala o que
representa a apreensão deste veículo: a síntese gráfica do mundo. A referência ao mundo impregnado
numa superfície que é ao mesmo tempo rigorosamente estruturada e composta de material ordinário,
efêmera. São os dois elementos essenciais que se desdobram, incessantemente, na poética do artista.
A sua produção oscila entre o rigor formal dado pela estruturação planar e gráfica e a expressão do
cotidiano matizado pela monocromia do jornal.
As ilustrações de Goeldi para os livros de Dostoiévski4 exibem os rostos vazios dos presidiários – permanência da referência ao marginal – que solitariamente convivem na massa, anônima. Em
determinada gravura, os rostos preenchem o espaço obliquamente, tendo dois focos de iluminação,
como se dessa maneira o espectador partilhasse da experiência dos homens retratados. A figura de
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destaque tem as costas iluminadas, os outros homens que estão de frente também. Seus rostos exprimem, por ranhuras de luz, apatia e sensação de desterro. Os degradados conhecem o seu elemento,
suas faces apenas confirmam e evidenciam as suas condições. A matriz da xilogravura, o objeto que
centraliza as operações do artista - a madeira - mantém o contato, a tensão entre arte e vida – leia-se,
natureza.
Em lugar de constituir uma realidade autônoma e auto-satisfeita, essa imaginação revelava uma oposição entre subjetividade e as agruras da existência. Monstros pesadelos e
aflições de toda sorte deixavam ver que as opressões do dia a dia a dilaceravam. Ainda assim,
porém, ela mostrava uma exuberância difícil de conceber em meio a tantas adversidades. As
mazelas da vida torturavam a sensibilidade dos homens que, contudo, logravam resguardar
sua fantasia de toda e qualquer contaminação que diminuísse os poderes dela.5
Nesta mesma acepção, acrescida de uma variante - a saber, a introdução da banalidade típica
da cultura de massa que subtrai o clima existencialista da modernidade de Goeldi - Antonio Manuel
produz a partir de superfícies e suportes que originariamente estabelecem um vínculo entre arte e
vida. No caso, os elementos para a confecção do jornal impregnados do cotidiano, a fonte de vida.
Seus primeiros desenhos se assemelham bastante à apreensão da realidade em Goeldi. Constrói um
universo particular de seres irreais que expressam a pura realidade. São os rostos que não se quer ver,
que dizem o que não se quer ouvir. Desolação, desespero e apatia, eis os sentimentos que invadem
esses desenhos. São corpos transparentes encarnados numa planaridade estrutural e gráfica: o jornal.
A realidade que marca o encontro entre o realizado e o irrealizável. Seu traço a nanquim encobre e
contorna pontos de luz que são os próprios seres apagados pelo mundo massificado e homogeneizador.
Não há uma verdade profunda e metafísica em Antonio Manuel como a encontramos em
Goeldi e sim a verdade da superfície e do plano. Em ambos há a experiência restituidora do mundo,
pois não pode haver um mundo dado antes de qualquer experiência sensível dos artistas. A sombra da
cidade exercia um fascínio e, como que, acalmava a inquietude dos dois artistas. A atração de Goeldi
e de Antonio Manuel por figuras marginais adquire então um novo sentido, sustentando com a vida
uma relação mais autêntica.
O Salto para o vazio: Frutos do Espaço.
A mesma transparência dos seres emblemáticos dos primeiros desenhos de Antonio Manuel
encontra-se materializada nos Frutos do Espaço. Esculturas de ferro vazadas que apresentam a mesma estrutura ortogonal e planar dos flans. Ordenam o espaço para abarcar o mundo O mundo que
perpassa o espaço vazado das esculturas é composto pelas linhas, pelas palavras, pelas imagens que
compõem a notícia por trás dos rostos das figuras desenhadas. A transubstanciação para o espaço
aberto obedece a lógica do flan. Do papel ao ferro, extensa experimentação material que se coaduna
com a poética vital do artista. Tudo serve como pesquisa, a apreensão do material segue o exercício de
liberdade experimental sem sacrifício da poética. O contorno, agora duro, do ferro não rivaliza com
as linhas de nanquim ou crayon que contornam desenhos e gravura.
O entrelaçamento, o quiasma, entre o real e o virtual chega ao ápice com os Frutos do Espaço.
São frutos maduros que precisam ser colhidos pelo espectador. O preenchimento do espaço é de or-
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dem poética; o artista precisa do espectador, a obra não renuncia ao olhar. Preenche-se o espaço com
qualquer coisa, uma paisagem, um fato, uma cor, um brilho; o artista somente orquestra, prevê, incita.
A fusão entre o precário e o rígido, em contraste de textura, reaparece nessas esculturas. À
transparência contrapõe-se a opacidade numa dança sutil do olhar. A estrutura rígida comporta o ar
poluído da cidade sempre crescente e saturada. A marca do artista é o seu recorte, basta conceber as
arestas de ferro para que se juntem o dentro e fora, interioridade e exterioridade, planaridade e profundidade, numa incessante e eterna reversibilidade.
As páginas dos jornais, com sua monocromia, com seu contraste imagético, com sua pertinente denúncia, estão agora vaporizadas, movimentando-se ao sabor do vento, do sopro ou da respiração.
É uma pulsação etérea que se sintoniza com o ritmo frenético das rotativas acentuando a exploração
livre das tensões da arte. As estruturas funcionam como uma janela entreaberta, um vasculhante de
uma casa da favela, bem de acordo com a temática herdada dos projetos de constituição de uma brasilidade contemporânea de Hélio Oiticica. Pode-se ver o mundo e, a partir dele, construir seu olhar
para, num movimento de reversibilidade, reconstruí-lo. É o que há de visível na invisibilidade do ar,
do espaço e da atmosfera.
A escolha do espaço no qual as esculturas foram expostas pela primeira vez tem sua importância. As obras foram colocadas no Parque da Catacumba, no Rio de Janeiro, após a remoção de
uma favela. Na efervescência do momento, seguindo sua própria lógica de apreensão crítica dos fatos
cotidianos sem, no entanto, conjeturar um projeto de arte engajada, Antonio Manuel funde as duas
paisagens: a urbana e a natural. O espaço entre as arestas de ferro corresponde à fusão destas duas
paisagens, é o seu abraço urbano. Talvez, numa semelhança curiosa com análise hegeliana da pintura
holandesa onde a aparente tranquilidade das cenas cotidianas fora conquistada por diversas intempéries e batalhas. O embate entre o efêmero e o perene está presente para garantir a tessitura poética e
artística. Na adequação entre forma e conteúdo, elementos fundamentais da estética de Hegel, estão
as singelas cenas diárias das aldeias holandesas, somente possível por conter subjacente à serenidade,
disputas e lutas. O espaço efêmero e etéreo e a tranquilizadora transparência dos Frutos do Espaço
foram conquistados depois de uma grande disputa social, na qual perdeu a favela. Neste sentido,
fundem-se os elementos poéticos do universo do artista com a preocupação inevitável do dia-a-dia.
Estas esculturas que primeiro atingiam uma escala humana, bem adequada à presença do
corpo, um dos temas centrais da sua produção, se multiplicaram em pequenos frutos, dentre os quais
destaco o HO, que opera como um coringa, ou seja, pode-se colocá-lo em diversas posições e lugares.
Pode ser uma escultura que se desdobra em várias outras– remete assim aos célebres Bichos de Lygia
Clark – pode ser um relevo, um quadro se colocado na parede e uma escultura conforme o posicionamento escolhido. O caráter múltiplo das pequenas estruturas tem dois aspectos: o primeiro, na
própria multiplicidade do conjunto; o segundo, na multiplicidade das funções. Ora, cada peça é única
e múltipla em essência, pois uma obra é única como objeto, mas cada espectador vai lhe conferir um
certo sentido. Antonio Manuel, reafirmando sua verve irônica, propõe um jogo entre múltiplo e único
que aponta para a rica ambigüidade característica de toda verdadeira obra de arte.
Além dos aspectos estruturais, Antonio Manuel desvela os espaços dessas estruturas com a
cor. O recurso mondrianiano às cores primárias encontra-se aí. São vermelhos, amarelos e azuis que
rivalizam com o ambiente caótico da paisagem urbana. Não creio, porém, que haja um sentido essencial, platônico, como há em Mondrian. Acredito, sim, que o seu modelo seja o procedimento jornalístico da fototipia, os fotolitos do jornal: os pretos e as três cores primárias, magenta, cyan e amarelo. A
sua linguagem poética, a linguagem dos meios de comunicação, mais precisamente, dos jornais, adere
ao espaço virtual dos Frutos.
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É surpreendente como uma poética que sintoniza com o caos, ou antes, que se constrói a
partir do mesmo, consiga apresentar-se de forma tão elegante. A síntese que opera a obra de Antonio
Manuel não é somente a síntese entre arte e vida, mas a síntese de todos os elementos aparentemente
opostos – o artista está aí para dizer que não são opostos, que na verdade realizam as combinações
possíveis dos componentes da arte e tentam solucionar as suas questões, são complementos de um
mesmo todo – a elegância do precário, a superficialidade da essência.
Antonio Manuel desestrutura a lógica corrente do mundo para fundi-lo – o mundo atordoado – à arte. Na verdade, a configuração de um novo flan permite uma nova experiência: a pintura.
Essa passagem pelos saborosos Frutos representa o aprofundamento e a confirmação desta poética
integrada do homem como cogito e corpo, se se quiser, corpo e alma. O corpo é o corpo da arte, seu
material e sua composição, que entrelaçam o espectador e o artista numa construção sensível pensante. Percorre-se o olhar pelo objeto vazado que deixa visível o que há no mundo e dentro de cada um.
Geometric concepts of perception and representation of the shape of the drawing
Ailton Cesar Ribeiro*, Roberto Alcarria do Nascimento**
& Maria Antonia Benutti***
*Aluno especial da Disciplina “Estruturas Geométricas, Computação Gráfica e Educação” do Programa de Pós-Graduação em Design da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista, Unesp,
câmpus de Bauru, SP, Brasil.
**Professor voluntário do Programa de Pós-Graduação em Design da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista, Unesp, câmpus de Bauru, SP, Brasil.
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Notas de rodapé
1. No sentido em que visão é pensamento. Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito IN: Os Pensadores. São
Paulo: Abril, 1981.
2. Esta distinção segue a linha demarcada pelo crítico Ronaldo Brito no texto O moderno e o Contemporâneo.
3. ANTONIO MANUEL. IN: BRITO, Ronaldo et alii. Projeto Arte Contemporânea: Antonio Manuel. RJ: Funarte, 1983.pp.
45.
4. Coleção José Olympio.
5. NAVES, Rodrigo. Goeldi. São Paulo: Cosac & Naify, 1999. pp. 20.
Recebido em 24 de Maio de 2014.
32
Concepções Geométricas de Percepção
e Representação da Forma no Desenho
***Professora do Depto. de Artes e Representação Gráfica da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da
Universidade Estadual Paulista, Unesp, câmpus de Bauru, SP, Brasil.
Resumo
Um estudo sobre meios de desenvolvimento da percepção e leitura da forma pela concepção e desenvolvimento
de uma metodologia de ensino do Desenho com ênfase nas suas fases iniciais, seu desenvolvimento e aplicação nas
primeiras etapas do processo de projeto em Design, dissecando-o como processo mental e físico. Abordaremos a
contribuição da geometrização como meio de simplificação das dinâmicas de leitura e materialização de configurações como alguns indicadores para se pensar o ensino do Desenho no referido curso.
Palavras-chave: Desenho; Ensino; Ensino do Desenho; Geometria; Percepção; Design
Abstract
A study on means of developing of perception and reading of the form by the conception and development of a
Teaching Methodology of Drawing with emphasis in its early stages, its development and application in the initial
stages of the Design process, dissecting it as a mental and physical process. We will be addressing the contributions
of Geometry as a mean of simplification of the reading and materializing configurations as some pointers for
addressing the Drawing teaching in the reported course.
Keywords: Drawing; Teaching; Drawing Teaching; Geometry; Perception; Design
Aprovado para publicação em 30 de Junho de 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1, p. 25-32, 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 33-44, 2014.
33
Introdução
N
ão é raro acontecer que o aluno ingressante nos cursos de Design, Artes ou Arquitetura nem
sempre vem dotado de grande habilidade voltada para o desenho. Mesmo onde se verifica
grande número de candidatos por vaga, o que determina sua aprovação tem sido a combinação de conceitos ou notas. Ora é favorecido pelo desempenho na prova de habilidades, ora pelas
demais, apesar da exigência mínima, se existe, em cada uma delas. Entretanto, noutras Instituições,
em geral particulares, quando o número de candidatos por vaga diminui, frente à demanda, observa-se com maior frequência o ingresso de alunos com nível básico em desenho.
Com efeito, foi a constatação quando ministrei aulas de Desenho Artístico, matéria obrigatória no Curso Bacharelado de Design de uma Instituição particular de Bauru, entre 2005 e 2010. Nesta,
que aponta para as mesmas características acima descritas, apresentara grande diferença entre os
alunos com menor e aqueles com maior habilidade. Sabe-se, portanto, que essa diferença tende a diminuir na medida em que fatores como critérios de avaliação, notas de corte e número de candidatos
por vaga aumentam, a exemplo das estatísticas apresentadas no site da Unesp – Universidade Estadual
Paulista Julio de Mesquita Filho - Campus Bauru que apontam para 11 candidatos por vaga para o
período noturno e 16 candidatos por vaga para o período diurno do curso de Design no mais recente
processo seletivo. Apesar disso, essa diferença, maior ou menor, vai sempre existir numa sala de aula,
e o professor deverá aplicar uma metodologia através da qual possa atender a todos.
Observam-se paralelos entre as ementas e os objetivos das disciplinas de Desenho, nos seus
níveis mais básicos, oferecidas para os Cursos de Design dessas Instituições no que tange a questões
de desenvolvimento da capacidade da percepção visual e da representação dos seus elementos no plano bidimensional, de conceitos de expressão e da gramática da linguagem do desenho. Desse modo,
indicam que os alunos sejam capazes de representar basicamente a forma, suas proporções e estrutura
entre os demais elementos e princípios de representação gráfica.
Nesse propósito, como aplicar atividades e exercícios que atendam aos anseios e necessidades
reais dos diferentes alunos frente aos objetivos da Disciplina de Desenho nos cursos de Design? Sem
dúvida esse questionamento com frequência nos leva a avaliar os procedimentos e estratégias acerca
das metodologias aplicadas. No entanto, em se tratando de uma disciplina prática, a relação do professor com o desenho contribui de modo significativo no ato de ensiná-lo, e este foi um fator importante
para incitar tal questionamento. A docência, quando em concomitância com a experiência prática
pessoal do professor, os seus ensinamentos partem do ponto de vista não só das teorias, mas também
das reflexões advindas da sua própria vivência com o desenho, que contribuem para a definição das
melhores estratégias que possam promover e construir o saber de modo compartilhado. (MOROSINI,
2006)
Nos caminhos da Percepção
Segundo Gombrich (1959) “O familiar será sempre o ponto de partida para a representação
do desconhecido” (p. 72). Essa afirmação reforça a ideia, segundo a qual um desenhista por mais que
desenvolva a capacidade de representar a forma o faz pelo uso de schemata1, em geral mais simples
do que a que pretende alcançar. De fato há procedimentos advindos das escolas tradicionais, baseados
nesse princípio e que defendem o desenvolvimento e uso de esquemas resultantes da substituição
gradual de símbolos e estereótipos, presentes com frequência no desenho dos ‘principiantes’, com o
34
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1, p. 33-44, 2014.
argumento de que podem auxiliar no sentido de se alcançar maior êxito na leitura e representação da
forma.
Para John Berger (1972), “a maneira como vemos as coisas é afetada pelo que sabemos ou pelo
que acreditamos”. Isso revela a real necessidade de incluir nos conteúdos programáticos das aulas de
desenho tais atividades e as que contemplem o desenvolvimento da percepção visual. Hallawell (1994)
considera que a substituição simultânea de um símbolo por outro mais próximo da realidade, auxilia
no seu desenvolvimento por fazer a transição entre o conceito pré-existente da figura, enquanto estereótipo, e que atrapalha no processo, e sua representação “realística” - no sentido de que apresente
características cada vez mais próximas da forma e das proporções reais do objeto. Assim, vão se configurando gradualmente em schemata cada vez mais particulares, partindo do princípio de que o desenho, no curso do seu desenvolvimento, tende, e ao menos é o que se espera, a tomar características
próprias do autor. (HALLAWELL, 1994; EDWARDS, 1984)
Nessa perspectiva, antes de representar a forma, o uso de esquemas podem e devem estar presentes nos estágios que a antecedem. Desenvolver o desenho significa antes desenvolver a capacidade
de ver, de perceber as coisas – de compreendê-las visualmente. O desenho enquanto linguagem visual
pressupõe a existência de uma gramática e, portanto, com seus elementos e princípios que são visuais.
Fazer uso dessa gramática para representar ‘figurativamente’ ou expressar sobre o mundo que nos cerca, implica em conhecer o mundo em termos visuais, e então fazer tal transposição para o desenho no
seu estágio de materialização. Nesse processo, a apreensão das formas mais complexas, pela tendência
do espírito humano em buscar a sua configuração mais simples, facilita a transição. (ARNHEIM,
1979)
A Simplicidade como caminho da apreensão
A mente humana quando se depara com uma forma, segundo Arnheim (1979), opta por sua
configuração mais simples. Partindo desse princípio, ao reduzir a forma, no que se refere ao repertório humano ligado às suas relações visuais com o mundo, a comunicação tende a ocorrer com maior
facilidade entre o que se faz entender, o professor, e o aluno na relação de ensino e aprendizagem. Do
mesmo modo dá-se entre aquele que desenvolve o desenho, o aluno, e o objeto enquanto modelo no
momento em que busca desvendar as características de uma determinada forma, como ela se apresenta ou pode se apresentar. Essa propriedade não é exclusiva das artes visuais, mas é corrente também
em outras esferas, como a linguística, exemplo dado por Francastel (1983) quando discorre sobre os
“fonemas” - elementos fundamentais que constituem a linguagem humana:
“Trata-se, para nós, em primeiro lugar, de saber, quando vemos imagens, quando olhamos
para obras de arte, se podemos encontrar, como base da expressão e da compreensão, elementos tão simples quanto os fonemas, ou se temos de enfrentar, desde logo, elementos constitutivos da imagem, que sejam mais complexos, mais diferenciados, mais institucionalizados que
os fonemas (...).” (FRANCASTEL, 1983, p.48)
Segundo esse autor, do mesmo modo ocorre com as formas mais elementares dos objetos ou
imagens. Sobre o fonema, ressalta que “a emissão do mesmo som por toda a gente, é, efetivamente,
uma função primária da natureza e que todas as aventuras da linguagem não passam de variações
sobre esta função, tão antiga quanto o próprio homem” (ibdem, p. 48). Ora, nota-se na base do aprendizado da linguagem humana, a emissão de fonemas arbitrários, que vão sucessivamente se consPoéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 33-44, 2014.
35
tituindo em palavras, a partir das quais, e associadas entre si no que se refere aos seus significados,
vão sendo articuladas cada vez com mais sentido. Analogamente, para compreendermos a idéia de
redução da forma a uma configuração simples, elementar, basta imaginarmos a redução de uma simples palavra ou expressão à simples fonemas, que estão na base do seu “desenho sonoro”. Essa ‘síntese
fonética’, portanto, corresponde à síntese estrutural de uma forma, no âmbito visual, cada vez mais
elementares e universais, independentemente do seu nível de complexidade. (FRANCASTEL, 1983;
ARNHEIM, 1979)
Tal constatação nos leva a encontrar no processo de ensino e aprendizagem do desenho, uma
maneira de desenvolver a percepção, por meio da qual a apreensão da forma se dá não somente por
suas características particulares, mas por configurações simples e universais que não se limitam a um
determinado objeto.
Mas até que nível de simplicidade dever-se-ia considerar como ideal de redução da forma para
se desempenhar de modo competente o que se propõe enquanto percepção? Com efeito, tão simples
quanto possível se alcance menor será o nível de dificuldade em apreendê-la e, por conseguinte, expressar sobre ela na sua fase adjacente de materialização. É importante considerarmos o fato de que o
desenho não se limita a essa última, como se julga em grande medida, sobretudo aqueles em fase de
aprendizado.
Leonardo da Vinci dizia que o desenho era cosa mentale. Nesse caso, a sua ocorrência se dá
desde o momento da percepção visual da forma. De fato, todo processo criativo, segundo Hallawell
(1994), tem início em sua primeira etapa denominada concepção e pressupõe-se que esta coincida, ao
menos nesse exemplo, com o ato de “perceber” o objeto. Ali começamos a ‘desenhar’ mentalmente. No
modo como se dá a leitura do objeto, o desenho já acontece em sua precondição mental. Entretanto
a concepção da idéia, como fase primeira do processo criativo não deve atrelar-se ao fato de se ter
um objeto à frente a ser observado nem tampouco ao ato de ‘observar’ um determinado modelo, pois
pode ocorrer tanto antes quanto ao longo do processo. (DWORECK, 1999; HALLAWELL, 1994)
“Geometria” – O caminho da simplicidade
Neste ponto a pesquisa encontra novamente apoio na afirmação de Gombrich (1959), segundo
a qual “o familiar será sempre o ponto de partida para a representação do desconhecido”. Para ele nós
“vemos o que conhecemos”. Isso nos leva a crer que ao reduzir a forma a uma configuração geométrica
simples, a facilidade com que esta será apreendida será maior pelo fato de a ‘conhecermos’. Arnheim
(1979) ressalta que “as características estruturais globais são os dados primários da percepção (...)
uma experiência direta e mais elementar do que o registro de um detalhe individual” (p.38). Tal abstração, em principio pode parecer difícil por partirmos da forma desconhecida, mas reconhecemos
em seguida a figura geométrica resultante da sua abstração.
Segundo a afirmação de Gombrich (1979), é providencial fazer tal transfiguração geométrica,
pois passamos para um campo que ‘conhecemos’. As formas geométricas passam a agir como arquétipos. Posso apresentar dificuldade em apreender a forma de uma determinada montanha, mas se esta
apresenta uma estrutura triangular passo a ter facilidade em fazê-lo por razão de conhecer triângulos.
Como exemplo, digamos que num objeto complexo observa-se uma estrutura geral como um qua, p. 33-44, 2014.
quadrática por ser mais simples apreendê-la. Isso porque, entre uma forma orgânica com estrutura
quadrática e outra geométrica – o próprio quadrado, a tendência será antes reconhecer o quadrado,
simplesmente por já o conhecermos. Assim, a configuração mais simples de uma forma complexa,
onde se reconheça uma estrutura como o quadrado, não limitar-se-á a uma forma orgânica no seu
processo de simplificação, por mais que esta também apresente tal estrutura, mas no quadrado como
tal. (GOMBRICH, 1959, p. 72)
Arnheim (1979) ressalta que essa tendência humana de optar pela simplificação ocorre com
frequência. Ele afirma ainda que “no mundo feito pelo homem são frequentes as paralelas, os retângulos, os quadrados e os círculos, e na natureza há também uma tendência à forma simples”. (p.260)
É evidente que o que está sendo dito aqui não tem nada de novo, sobretudo entre aqueles que já
desenham. Mas é importante ressaltar a idéia de que não se reduz a forma tão somente por meios
geométricos, mas também por abstrações orgânicas, de formas livres. O que se objetiva argumentar
neste artigo, por meio das pesquisas acerca das práticas de ensino que adotam métodos e exercícios
compatíveis com esse propósito, é fundamentar a viabilidade da adoção desses recursos, de modo que
contemplem uma metodologia visando melhor atender às necessidades dos alunos em fase de desenvolvimento do desenho, nos seus níveis mais básicos, nos cursos de Design.
Doczi (1981), em sua pesquisa, revela a beleza matemática existente em todas as coisas, considerando a geometria estrutural das formas. Entretanto, para o desenhista, e o que é relevante para
este trabalho, é a “visão concreta” (EDWARDS, 1984) sobre a forma, o modo como ela se estrutura
no campo visual. A cada posicionamento do objeto e/ou do ponto de observação determinam-se
configurações geométricas particulares da mesma forma, conforme sua orientação espacial, passíveis
de serem desvendadas naquele momento. Vale lembrar também, que ao inserirmos uma fonte de luz,
conforme sua direção de origem, sua incidência sobre o objeto produzirá outros padrões próprios dos
efeitos de “claro e escuro” que, não menos importantes, se configuram também como formas, as quais
exigem a mesma atenção, senão ainda maior, por se revelarem desconhecidas pelo fato de não corresponderem aos símbolos visuais e significados associados ao objeto e por seu caráter não–figurativo,
sendo necessário simplifica-las com o mesmo intuito, o de facilitar sua apreensão.
A Obra de Doczi (1981) parece revelar que a geometria não faz distinção, por estar presente
nas estruturas de todas as formas. Por necessidade de espírito, o homem é quem as divide em grupos.
Grosso modo, podemos dividi-las entre as ‘livres’ (ou orgânicas) e as geométricas. Estas últimas mostram com maior evidência a matemática da sua construção, porém quando se tem por intenção representar o mundo a nossa volta, as coisas da natureza, o desenho na sua evolução busca a simplificação
da forma e não o contrário, e neste caso devemos considerar existir exceções raras. Nessa perspectiva
não é difícil apontar evidências nas obras de artistas como Piet Mondrian no inicio do Séc XX. Ele
próprio nos mostra, no curso da sua obra, um processo de abstração claramente geométrica e plana. O
pintor abre mão dos efeitos de volume, da ilusão de profundidade e busca representar a forma “vista”
na sua síntese geométrica. Pelo ponto de vista da pesquisa deste artigo, não há como não traçar analogias entre a abstração da forma apresentada por Mondrian e os ‘esquemas’ de construção do desenho
utilizados por artistas de diversos períodos e aplicados em métodos de ensino, pela necessidade de se
fazer entender quanto aos modos de “ver”. Assim, perceber formas mais complexas ou orgânicas de
maneira simples, numa configuração geométrica, facilita muito a sua apreensão, e consequentemente
sua posterior representação. Ver as seqüências das figuras 1, 2, 3 e 4.
, p. 33-44, 2014.
drado. Dessa forma, será mais simples representa-lo se o fizermos a partir do traçado de uma forma
36
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1, p. 33-44, 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 33-44, 2014.
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Figuras 1 e 2: exemplo de exercício de percepção plana da forma
qual se atribuem as emoções e o ‘raciocínio’ sensitivo – não lógico) que entre outros atributos, “percebe as coisas de maneira que as agrupa para formar um todo” e “concebe cada uma como se apresenta no
momento”. (EDWARDS, 1984)
Richard Wollheim (1994), no seu segundo ensaio sobre a visão de representação, aborda o assunto. Ele discorre sobre a natureza do gênero e defende que essa visão pode ser mais bem explicada
ou entendida por meio de dois fenômenos distintos: em termos do ver-como e em termos do ver-em,
e estes diferem pelo modo como se relacionam com algo que chama de “percepção direta”, definida
pelo autor como “... a capacidade que nós, seres humanos, e outros animais, temos de perceber coisas
que se apresentam aos sentidos” (p.187). Esta capacidade está diretamente ligada ao ver-como por ser
parte essencial dela. Já o ver-em a pressupõe e a ultrapassa por derivar de uma capacidade perceptiva
especial e por nos permitir experiências de coisas que não se apresentam aos sentidos.
Ao aplicarmos esses termos nas questões aqui abordadas, por entendermos o desenho figurativo como representação, consideremos todo o processo em que envolve a percepção e a apreensão da
forma até sua materialização, como dois momentos distintos: chamaremos primeira fase de representação, nas figuras 6 e 7, a que compreende a percepção, e que portanto corresponde ao fato de observar
a forma (x) e reduzi-la, encontrando por abstração sua correspondente geométrica (y) mais simples. A
outra como segunda fase de representação, a que se refere a sua posterior materialização no momento
em que esta – a forma geométrica simples (x) - é traçada sobre o suporte, e que segue até sua conclusão
conferindo os devidos detalhamentos (y). Veja as figuras 8 e 9.
Figuras 3 e 4: Exemplo de exercício de percepção volumétrica da forma
Poder-se-ia pensar, contudo, que isso implica em tomar um curso eminentemente racional ao
processar as informações desde o ato da percepção, mas não é bem assim. Note-se que antes de reconhecer uma determinada forma geométrica, na sua fase precedente, houve um processo de abstração
na leitura da forma, como esta se apresenta e que teve como origem, através do qual chegou-se a sua
simplificação. Edwards (2000) atribui essa fase à ‘modalidade D’ (Hemisfério direito do cérebro – ao
38
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1 , p. 33-44, 2014.
Figura 5: Fotografia de Silvio Serrano
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1 , p. 33-44, 2014.
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Figura 6
Fotografia de Silvio Serrano (detalhe)
Figura 7
O triângulo como síntese da forma
Na primeira fase, figuras 6 e 7, a percepção pode se manifestar em termos do ver x como y com
poucas variáveis para ver x em y. Nesses termos posso ver a montanha como um triângulo, frente à
gama de possibilidades como as quais posso vê-la, e no curso pelo qual optei, o de reduzi-la a uma forma geométrica simples, o faço de modo que a encontrada corresponda ao que se propunha enquanto
resultado de um processo que teve início na observação, e somente da montanha. Entretanto posso
fazê-lo também em termos do ver-em, embora com menor frequência, mas, se o quiser ou encontre
situação que me leve a proceder como tal, ao mudar o centro de gravidade do problema, levando em
consideração a gama limitada de possibilidades sobre como x – a montanha ou outro elemento do
modelo ou objeto em questão – pode ser visto. Assim, a julgar sobre quais ou até quantas configurações geométricas simples se tem como possibilidades, é preciso considerar que já tenho em mente
uma predisposição em encontrar algum elemento ou parte da composição com a qual corresponda
uma entre elas. Isso consiste no fato do interesse se voltar não para a montanha, mas para padrões
geométricos, como que levando consigo possíveis abstrações antes mesmo de encontrar algo por abstrair. Portanto, ao me deparar com a montanha, pelas características da sua forma posso ver nela a
estrutura triangular.
Essa variável não se aplica à segunda fase de representação, a qual convém atribuir o fenômeno
ver y em x. Note nas figuras 8 e 9, que nesse momento, em posse da forma triangular que é previamente traçada, e diga-se a traços leves, pois serve apenas para estruturar o que vem a seguir enquanto
“desenho”, incorre que o desenhista não mais tem em mente tal forma (x), ou outra, senão a visão da
própria montanha (y). A partir desse momento, seu interesse se volta integralmente a ela por estabelecer diretamente ligação com as características presentes no seu modelo em x da primeira fase de
representação.
40
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1 , p. 33-44, 2014.
Figura 8: Traçado da estrutura triangular
Figura 9: O desenho da montanha
Ora, nem sempre o desenhista se deixa enganar ao observar algo. No âmbito do Design, ao
menos quando a proposta é desenvolver o desenho enquanto capacidade de representar realisticamente um objeto, a faculdade de mudar a configuração da forma ocorre por mero recurso de percepção. Vê-se uma montanha como um triângulo, e em seguida, a partir do seu traçado, volta-se a
atenção para as peculiaridades da montanha. Desse modo, e a partir da visão holística, convém seguir
do “todo” para as partes. Há forma no “todo”. Portanto, o primeiro passo é defini-la em essência, numa
configuração geométrica tão simples quanto possível. Em seguida, na sequência das figuras 10, 11 e
12, o mesmo procedimento se aplica na direção das partes. A próxima forma encontrada é determinada pelo mesmo critério – que decide por partir novamente da sua visão do “todo”.
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1 , p. 33-44, 2014.
41
Figura 10: As próximas formas são igualmente abstraídas
Figura 12: O desenho em seus detalhamentos finais
Mesmo nas partes menores da “composição”, no caso de uma forma complexa, pelo mesmo
critério e ao lançar a visão holística, as nuanças do contorno e os detalhes irrelevantes à percepção da
sua síntese são igualmente abstraídos em favor da simplicidade. Da irregularidade para a regularidade
da curva e da reta, surgem as características geométricas básicas, com as quais nos identificamos ao
reconhecer nelas indícios visuais daquelas que nos são familiares.
Nesse exercício duas coisas contribuem para a apreensão da forma: primeiro, o seu “desenho”
é definido pelo próprio aluno, e segundo, porque o faz na busca da sua simplicidade geométrica. Em
ambos os casos, são indicações de existir maior consciência sobre a forma encontrada.
Conclusão
Figura 11: Toda a composição simplificada geometricamente
42
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1, p. 33-44, 2014.
Partindo da necessidade real de reavaliar as práticas de ensino do Desenho no âmbito do Design, por sua relevância no currículo e no processo de projeto, este trabalho procurou salientar alguns
pontos de dificuldade relativos ao ensino e/ou aprendizagem e a abordar alguns ensaios e atividades
com ênfase nos níveis mais básicos do ensino do Desenho. Tendo em mente os objetivos da Disciplina
a serem alcançados, o que se propõe a partir desses dados, como num curso natural, é a formulação
de uma Metodologia baseada na percepção, e por meio desta, encontrar nas formas geométricas apoio
para vencer as dificuldades a ela mesma relacionadas, e com isso atender de modo eficaz às exigências
mínimas da referida área.
Nesse viés, a ordem em que compreende o curso do aprendizado indica adotar com frequência
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 33-44, 2014.
43
a visão holística desde o modo de perceber, e mantê-la durante o estágio de materialização. As teorias
da Gestalt apontam para a importância da visão do “todo” em relação às partes. Assim, vale ressaltar
que a idéia de geometrização transcende a forma isolada, como o faz a maioria, para não dizer a totalidade dos alunos iniciantes. Convém, portanto, que se aplique a visão holística no intuito de apreender
não uma, mas todas as formas nas suas situações mais diversas em que podem se configurar, desde a
noção do todo até as menores partes da composição.
Procurou-se salientar e apresentar como contribuição, portanto, um fundamento científico a
todo esse conhecimento advindo das escolas tradicionais. Os ensaios aqui apresentados têm um princípio simples, e como já mencionei, não tem nada de novo no léxico do desenho. No entanto, com
base nas experiências em aulas ministradas no referido curso e pelo perfil do aluno nele ingressante,
constatou-se como muito eficaz um modelo de Metodologia formulada a partir desse princípio. Ademais, não há a pretensão de defendê-la como a melhor entre todas, sabendo que a sua eficácia consiste
não somente no seu ‘modelo’, mas no modo como é aplicada.
O desenho antes de tudo é um processo mental. As mãos, com o auxilio de um instrumento,
ao traçar uma linha, registrar um movimento, revelar visualmente uma forma, é parte de um todo. A
habilidade das mãos que “desenha”, a destreza, é uma questão de prática, de treino. Mas o desenho se
desenvolve verdadeiramente no cérebro. É uma questão que implica muito mais no desenvolvimento
da percepção, no modo de ver, de conhecer e dominar a linguagem visual do que meramente técnica.
É comum alunos perguntarem sobre como podem desenhar aquilo que vêem. Entretanto, por essa
perspectiva somos levamos a reformular tal questionamento com o propósito de levar o aluno a refletir, antes, sobre o modo como deve ver aquilo que se propõe a desenhar, e não como deve desenhar
o que vê. Nota-se, ao mudarmos o foco, que o problema passa a ser outro. Ao mesmo tempo incorre
que mais facilmente entendemos o desenho como um processo mais amplo e que se inicia no ato de
perceber.
O digital como locus da cultura participativa
The digital as locus of the participaroty culture
Alan César Belo Angeluci
Pesquisador do Centro Interdisciplinar de Tecnologias Interativas da Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, SP.
Pós-doutor pelo Department of Radio-Television-Film, College of Communication, The University of Texas at Austin
(EUA). Doutor em Ciências pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, SP, com período
sanduíche na University of Brighton, Inglaterra, Reino Unido.
Resumo
Neste artigo, busca-se discutir a cultura contemporânea a partir dos aportes conceituais explorados por Murray
(2003) e Jenkins (2006), fundamentalmente no que tange ao digital como locus de uma cultura pautada pela
participação coletiva dos indivíduos. Partindo da perspectiva da convergência das mídias e das literacias digitais,
essa discussão centra-se nas transformações das práticas comunicativas dentro dos sistemas de mídias, em que determinadas características e habilidades são condições sine qua non para a participação efetiva na cultura digital.
No que tange às características, discute-se principalmente o digital como procedimental, participativo, espacial e
enciclopédico. Em relação às habilidades, é dada ênfase às de experimentação, flexibilidade, simulação, apropriação, multitarefa, cognição distribuída, inteligência coletiva, julgamento e navegação transmídia.
Palavras-chave: Arte Urbana; Arte Pop; Reprodutibilidade; Representatividade; Popularidade.
Referências
ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: pioneira, 1979.
EDWARDS, Betty. Desenhando com o lado direito do cérebro. Trad.: Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Ediouro,
1984.
WOLLHEIM, Richard. A Arte e seus Objetos. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
BERGER, John. Modos de ver. Lisboa: Edições 70, 1972.
GOMES, J. F. Gestalt do Objeto. São Paulo: Scipione, 1990.
DOCZI, G. O poder dos limites: harmonias e proporções na natureza. São Paulo:
Mercuryo, 1981.
HALLAWELL, Philip. À mão livre: A linguagem do desenho. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1994.
DWORECKI, S. Em busca do traço perdido. São Paulo: Edusp, 1999.
DAVINCI, Leonardo. El Tratado de la Pintura – Versão espanhola. Buenos Aires: Editorial More Mere, 1942.
MOROSINI, M. C. Enciclopédia de pedagogia universitária: glossário vol. 2. Brasília: Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2006.
Nota de Rodapé
1. Schemata são padrões ou modelos individuais pré-existentes e que auxiliam, no sentido cognitivo, na interpretação ou assimilação de informações novas, e neste caso, visuais. Imagens e formas são reproduzidas com base em
um esquema com o qual se está familiarizado. (GOMBRICH, p. 55-79)
Recebido em 24 de Maio de 2014.
44
Abstract
In this paper, the contemporary culture is discussed from conceptual approach of Murray (2003) and Jenkins
(2006), fundamentally regarding the digital as the locus of a culture based on the collective participation if individuals. From media convergence and digital literacies perspective, the center of this discussion is on the transformation of communication practices within the media systems, in which some characteristics and abilities are mandatory conditions for an effective participation in digital culture. In relation to the characteristics, the discussion is
mainly about the digital as procedural, participatory, spatial and encyclopedic. In terms of abilities, the emphasis
is on the play, performance, simulation, appropriation, multitasking, distributed cognition, collective intelligence,
judgment, transmedia navigation, network and negotiation.
Keywords: Street Art; Pop Art; Reproducibility; Representativeness; Popularity.
Aprovado para publicação em 12 de Julho de 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1, p. 33-44, 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 45-54, 2014.
45
Introdução
A
compreensão do cenário cultural contemporâneo passa, ao menos em parte, pelo esforço de
mapeamento de uma complexa relação que tem se estabelecido entre os indivíduos e os conteúdos digitais nos últimos anos, sobretudo a partir das mudanças socioeconômicas aventadas
pela disseminação das redes de Internet no mundo. Mais recentemente, o terreno convergente das
novas mídias alavancado pela era da Internet das Coisas (IoT) tem trazido novos desafios, já que os
usuários são expostos, de maneira cada vez mais intensa, a várias experiências inovadoras em seus
cotidianos, sejam elas através de novos dispositivos, novas plataformas ou novas aplicações.
A literatura busca situar essa cultura do digital por meio de diversas abordagens. Alguns autores (LEMOS, 2002; SANTAELLA, 2003; PRIMO, 2007) se reportam à cibercultura e aos modelos
cognitivos que se ressignificam neste ambiente, dando destaque ao aspecto de coletivo participativo
que pauta as práticas comunicativas. Neste artigo, busca-se localizar esta cultura participativa dentro
da perspectiva da convergência das mídias e das literacias digitais, suscitando sua discussão com foco
nas características do digital descritas por Murray (2003): o procedimental, o participativo, o espacial
e o enciclopédico. Ademais, a visão de Jenkins (2006) sobre as habilidades necessárias neste ambiente
é explorada, buscando nas transformações das mídias contemporâneas traços que revelem processos
de experimentação, flexibilidade, simulação, apropriação, multitarefa, cognição distribuída, inteligência coletiva, julgamento e navegação transmídia.
Espera-se, que a presente discussão contribua para melhor moldurar os futuros desafios e
oportunidades em um futuro próximo, em que plataformas de mídia e indivíduos se plasmam em um
processo perene de retroalimentação, aprendizado e construção de novas perspectivas e culturas.
A perspectiva das literacias digitais
O campo do hibridismo contemporâneo parece se estabelecer como espaço importante de
discussão sobre as habilidades e características dos indivíduos em localizar uma informação e transformá-la em conhecimento para benefício próprio. Ora, se as literacias da era do capitalismo industrial estavam relacionadas, sobretudo, às leituras de livros e jornais, no espaço híbrido contemporâneo
ela se expressa a partir das novas mídias e dos novos dispositivos de comunicação móvel e das redes,
mudando, então, o foco da literacia de expressão individual para a do envolvimento coletivo.
Se partirmos de uma definição mais pragmática da literacia digital, podemos invocar a abordagem de Gilster (1997), que a definiu como uma extensão lógica do conceito original de literacia, da
mesma forma sendo o hipertexto uma extensão da experiência tradicional de leitura. No entanto, o
cenário contemporâneo exige um olhar mais caleidoscópico sob os eventos relacionados às habilidades dos indivíduos em acessar uma informação e transformá-la em conhecimento.
Tal qual destacam Passarelli & Angeluci (2013), as literacias emergentes propiciadas a partir
dos ambientes web levam a processos de produção e recepção coletivos em direção a um conhecimento em rede. As características e habilidades relacionadas ao mundo digital se estabelecem então a
partir da interação e comunicação dos indivíduos com as TVs interativas, games, smartphones, apps
e tantas outras mídias tangíveis e intangíveis. Finalmente, ainda se faz válida sua definição mais expandida e pluralística que considera as várias práticas de literacia embarcadas em diferentes processos
culturais, circunstâncias pessoais e estruturas coletivas (UNCTAD, 2004).
Novas práticas comunicativas, novas mídias convergentes
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Se na contemporaneidade emergem literacias potencializadas pela prática colaborativa e em
rede, estas práticas se tornam significativamente evidentes no âmbito da interação e comunicação.
Manovich (2005) destaca a função das novas mídias nesse ambiente, catalizadoras da (re)construção
de relações entre o indivíduo, suas práticas culturais e o computador. Aliás, este último exercendo
uma função de destaque já que é a síntese do paradigma tecnológico atual. É a partir dele que novas
formas de expressão do indivíduo e do coletivo passaram a ser factíveis, já que o conceito de conteúdo
expandiu-se nas formas de bits e de dados digitais, mutáveis, reproduzíveis, rearranjáveis, remixáveis,
em síntese, líquidos (BAUMAN, 2001).
O contexto das novas mídias também traz à tona a discussão das plataformas interoperáveis e
convergentes. A transformação pela qual os sistemas de mídia tem experienciado passa não somente pela ótica da plena superação dos antigos modelos comunicacionais (funcionalista-pragmático,
crítico-radical, entre outros), mas, também, pelas novas possibilidades técnicas que permitem o uso
convergente de plataformas e trocas síncronas e/ou assíncronas de conteúdos, individuais e/ou em
grupo.
Observa-se, portanto, a possibilidade da interatividade e do compartilhamento, em diversos níveis,
entre indivíduos e máquinas. O fenômeno da segunda tela, por exemplo, pode ser um bom exemplo
de como a atenção do indivíduo é competida por diversas telas (games, TV interativa, smartphones),
gerando distintos usos, apropriações e comportamentos por parte dos usuários (ANGELUCI, 2013).
As características do digital na concepção de Janet Murray
Vemos, então, que as literacias digitais encontram terreno fértil no campo das novas mídias, já
que coloca o indivíduo em interação contígua com o computador. Este aparato tecnológico acaba por
atuar como facilitador de práticas comunicacionais mais efetivas e criativas. Murray (2003) também
aborda o digital com perspectiva similar a de Manovich (2005), quando trata o aspecto da convergência como resultado de um avanço computacional exponencial:
“O computador ligado em rede atua como um telefone, ao oferecer comunicação pessoa-a-pessoa em tempo real; como uma televisão, ao transmitir filmes; um auditório, ao reunir
grupos para palestras e discussões; uma biblioteca, ao oferecer grande número de textos de referência; um museu, em sua ordenada apresentação de informações visuais; como um quadro
de avisos, um aparelho de rádio, um tabuleiro de jogos e, até mesmo, como um manuscrito, ao
reinventar os rolos de textos dos pergaminhos.” (MURRAY, 2003, p.41).
No entanto, poderia ser um equívoco dizer que o lugar do digital na cultura contemporânea
se encerra em si mesmo. O ambiente digital vai além da mera existência do conteúdo em dados de
bits, reproduzíveis e flexíveis, e introduz na cultura participativa experiências inovadoras no campo
do interativo e do imersivo – também identificados por autores como Lévy (2005). Produtos mercadológicos que exploram realidade virtual e aumentada, o 3D, o intercâmbio e compartilhamento de
conteúdos via banda larga ou bluetooth são evidências dessas duas grandes bases da cultura participativa e que buscam explorar o sentido de agência1 nos indivíduos. Segundo Murray (2003), o ambiente
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 45-54, 2014.
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digital, portanto, se expressa a partir de quatro principais características: o procedimental, participativo, espacial e enciclopédico.
a)
Procedimental
Vistos simplistamente como máquinas, os computadores parecem se resumir a um aparato
capaz de realizar ações pré-ordenadas, disparando um conjunto de regras e métodos racionais que
garantem seu devido funcionamento diante de uma demanda programada. Sua natureza procedural,
de execução de cálculos precisos e rápidos, encontra na interação com o homem a reatividade, já que,
para além da transmissão de informações estáticas, ele é capaz de assimilar comportamentos complexos e aleatórios, reagindo e respondendo às ações de interação com o usuário. Murray (2003) afirma
que essa característica dos computadores os tornam cativantes, já que mimetizam a interlocução que
ocorre entre os indivíduos no mundo real – até com um grau maior de acurácia, já que são dotadas de
mecanismos de engenho maquinário.
Recentemente, o filme “Ela” (“Her”, Spike Jonze, 2013) explora este potencial procedimental
das novas mídias a partir de uma perspectiva surreal da sociedade contemporânea sócio-técnica. Seguindo uma perspectiva similar de “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, publicado em 1932,
o filme de Spike Jonze por sua vez centra-se nos conflitos de uma sociedade submetida às práticas
programadas e de uma inteligência artificial de sistemas operacionais, que passam a interagir com
os indivíduos em níveis cada vez mais profundos (Imagem 1). A eficiência e o caráter procedimental
da máquina extrapolam as fronteiras do participativo e da interação, o que suscita a discussão sobre
um futuro mensurado por configurações de relacionamento entre homem-máquina um tanto quanto
polêmicas.
b)
Participativo
O exemplo de “Ela” nos leva a um segundo aspecto do ambiente digital, que é a capacidade de
reação aos dados que nele inserimos. O digital, portanto, reconstitui codificadamente respostas dos
comportamentos humanos. Neste ponto, destacamos a ideia de Lévy (2005) que enfatiza a “participação ativa do beneficiário de uma transação de informações”. O potencial participativo permite, por
exemplo, a exploração do sentido de agência no indivíduo, uma vez que suas ações trazem respostas
às demandas do mesmo.
O uso do filtro no aplicativo Instagram, por exemplo, ilustra a participação ativa do indivíduo
na construção de uma realidade a partir do potencial participativo do ambiente digital: a coloração do
céu (Imagem 2) adquire sentidos diferentes de acordo com as reações do indivíduo ao sistema.
Imagem 2: Exemplo das possibilidades de filtros no Instagram
Imagem 1: Cena do filme “Her” em que o SO Samantha busca diálogo com o seu “dono”.
Fonte: www.techtudo.com.br
Fonte: Trailer disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=WzV6mXIOVl4>.
Acesso em 11 Fev 2014
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c)
Espacial
O caráter espacial talvez se revele como o mais evidente do ambiente digital, visto que toca
no âmbito da navegabilidade dos sistemas digitais e se configuram como um dos aspectos distintivos
do virtual. Para Murray (2003), o fluxo não-linear, com diferentes pontos de partidas e chegadas, cria
uma experiência de navegação diferente da dos livros e filmes, que também tem a possibilidade de
criar estes espaços através do verbal e do imagético. O digital, no entanto, coloca o indivíduo na centralidade das ações e, como ocorre com o uso da web através dos browsers dos computadores desktops
ou dispositivos móveis, permite o indivíduo construir seu próprio sentido e narrativa, amparado em
seu repertório.
d)
b)
Flexibilidade
A habilidade de flexibilidade se revela quando são adotadas identidades alternativas com foco
na improvisação e descobertas. Partindo do mesmo exemplo do game, desta vez usando o Second
Life como base, o jogador passa a assumir características de um personagem fictício e o assume como
si mesmo durante o desenrolar da narrativa. Toda a complexidade de construção e elaboração dessa
identidade deve ser considerada, visto que quanto maior o detalhamento, melhor o nível de criação e,
portanto, de imersão na realidade virtual.
Enciclopédico
O caráter enciclopédico identificado por Murray (2003) situa-se no campo do acesso aos conteúdos, já que as representações do mundo tem migrado para o formato eletrônico e uma gama de
dados passam a se tornar disponíveis na nuvem e consultáveis de qualquer parte do globo terrestre.
Bancos de dados, bibliotecas de conteúdos, ferramentas de gestão e interação e tantos outros conteúdos se expandem em termos de acesso e quantidade, já que, da mesma forma, computadores e redes se
disseminam e se multiplicam em quantidade e variedade, em uma perspectiva exponencial rizomática
e não-linear de expansão potencializadas pela conectividade.
c)
As habilidades do digital na concepção de Henry Jenkins
d)
Na cultura participativa enunciada por Jenkins (2006), há uma clara preocupação em se discutir o digital superando questões meramente tecnológicas de acesso em direção às oportunidades
de participar do desenvolvimento cultural de competências e habilidades sociais necessárias para seu
pleno envolvimento. Recuperando, portanto, o conceito de literacias, Jenkins (2006) propõe o que se
define como New Media Literacies (NML), evidenciando competências concernentes às novas mídias
imersas no ambiente digital.
Apropriar-se de um conteúdo de mídia com vistas à sua experimentação e reorganização dentro do ambiente digital parece ser uma habilidade bastante recorrente no ambiente digital. A cultura
do mash up exponenciada pelo potencial de disseminação das mídias sociais de vídeo – o Youtube,
por exemplo – traz à tona a figura do prosumer preconizada por Toffler (2007).
Dentro da mesma lógica, a habilidade de observar, inserir-se, decodificar e remixar modelos
dinâmicos de processos do mundo real evidenciam a capacidade do indivíduo que interage bem com
sistemas de simulação de realidade. Sistemas de simulação são capazes, por vezes, de expandir , capazes de expandir competências cognitivas.
e)
a)
Experimentação
A habilidade de experimentação resume-se à capacidade de um indivíduo em explorar um
ambiente a fim de resolver problemas. Navegar na web pura e simplesmente, por exemplo, não colabora para a compreensão do conceito, já que o “experimentar” pressupõe uma atitude pró-ativa do
indivíduo em localizar a fonte adequada para cada objeto de busca, bem como o uso do dispositivo
adequado para determinadas situações.
Como exemplo, um indivíduo poderá ter mais sucesso na busca de cheats e codes para um
game dentro de fóruns especializados do que em artigos científicos. No entanto, sua capacidade de
exploração de novos ambientes pode ajudá-lo a garimpar e identificar informações em áreas que, a
princípio, pareciam em nada colaborar em sua busca.
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Simulação
Apropriação
Multitarefa
O jovem contemporâneo carrega em seu repertório a habilidade de escanear o ambiente e
mudar o foco, conforme a necessidade, para detalhes de seu interesse. Desta forma, o uso de múltiplas
delas de interação coloca a habilidade de multitarefa em destaque, já que, capaz de migrar rapidamente de uma tela a outra, o jovem tende a construir uma realidade baseada na aquisição de informações
por variadas e alternadas fontes.
f)
Cognição Distribuída
O uso de ferramentas de EaD, moodle, fóruns de discussão e aplicativos interativos colaborativos evidenciam a habilidade de interagir significativamente com ferramentas que ampliam capaciPoéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 45-54, 2014.
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dades mentais. A percepção de cognição distribuída inclusive contaminou instituições tradicionais de
ensino, que têm investido em ferramentas de educação on-line diante da configuração desta paisagem
digital.
g)
Inteligência coletiva
A habilidade da inteligência coletiva associa-se a outras já previamente listadas, visto que toca
na capacidade de coletar e reunir conhecimentos, comparar dados com coletivos e direcionar-se a
objetivos comuns.
h)
Julgamento
Discernir e avaliar a confiabilidade e credibilidades de diferentes fontes de acesso à informação torna-se uma relevante habilidade no ambiente digital, visto que o crescimento exponencial da web e dos
servidores coloca à disposição do indivíduo uma gama imensa de informações que demandam filtros
e seleções criteriosas.
i)
Navegação transmídia
Conteúdos transmídias são a expressão das mais evidentes do ambiente digital. A capacidade convergente das plataformas, ubiquidade e pervasão de suas mídias geram possibilidades de interação e
compartilhamento de conteúdos em diferentes níveis e esferas. Demanda, desta forma, a habilidade
de seguir o fluxo de histórias e informações por meio de múltiplas modalidades. A estratégia transmídia tem se revelado como o grande “coringa” da contemporaneidade no campo das novas mídias.
Considerações Finais
O locus do digital na cultura participativa revela-se quando da sua efetiva prática se evidencia
suas características e as habilidades necessárias para se atuar neste ambiente. Murray (2003) e Jenkins
(2006) contribuem com essa reflexão ao descrever a experiência do digital tomando como um ponto
de partida comum a ideia do interativo e do imersivo como inescapáveis práticas contemporâneas.
Terreno em que o indíviduo encontra-se também no coletivo e vice-versa, em que as figuras do produtor e receptor se plasmam e se apoiam no processo de criação e compartilhamento; terreno em que
barreiras à expressão artística e engajamento se tornam mais facilmente transponíveis.
O digital dessa forma parece encontrar-se na expressão de um cenário cultural contemporâneo
em que produção, distribuição e recepção de conteúdos estão submetidas a uma lógica participativa.
Uma lógica, por um lado, meramente modular, automática, representável numericamente, variável e
transcodificável; mas de outro, espaço de representação de um coletivo humano, repleto de sentidos,
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emoções, sentimentos, vida.
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SANTAELLA, L. Cultura e artes do pós-humano. SP: Editora Paulus, 2003.
REGIS, F.; TIMPONI, R.; MAIA, A. Cognição integrada, encadeada e distribuída: breve discussão dos
modelos cognitivos na cibercultura. Revista Comunicação, Mídia e Consumo. São Paulo, ano 9, Vol.9,
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 45-54, 2014.
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A Semelhança nos Retratos
n.26, p.115-134, nov. 2012.
UNCTAD. Measuring the impacts of information and communication technology for development.
New York: United Nations. 2011.
The similarity in the portraits
Notas de Rodapé
1.Segundo Murray (2003), agência trata-se da “capacidade gratificante de realizar ações significativas e
ver os resultados de nossas decisões e escolhas”.
Recebido em 27 de Março de 2014.
Iara Inchausti Ribeiro Vilhena
Doutoranda na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil.
Área de concentração “Arte e Tecnologia da Imagem”. Mestre em Artes pela Escola de Belas Artes da UFMG, Belo
Horizonte, MG, Brasil. Área de pesquisa em que atua “O retrato e as questões que envolvem sua imagem”.
Aprovado para publicação em 25 de Maio de 2014.
Resumo
O presente artigo se propõe a analisar a semelhança nos retratos pintados em relação a seus modelos. O estudo
parte dos apontamentos de Jean-Luc Nancy sobre retratos e sobre a cena bíblica Noli me Tangere, que se articulam
às noções de « ar » em Roland Barthes, de « as duas versões do imaginário » em Maurice Blanchot e às noções
propostas por Georges Didi-Huberman em seu livro O que vemos o que nos olha. Através dessa articulação, somos
levados a uma desestabilização da noção de semelhança, reafirmada pela ambiguidade inerente à imagem.
Palavras-chave: Retrato; Semelhança; Pintura; Imagem; Nancy; Blanchot; Barthes; Didi-Huberman.
Abstract
The purpose of the following article is to analyse the resemblance of the portraits painted in relation to their models. This study begins of Jean-Luc Nancy’s notes on portraits and the Noli me Tangere biblical scene, which articulate the concepts of « air » in Roland Barthes, of « the two versions of the imaginary » in Maurice Blanchot and
the notions proposed by Georges Didi-Huberman in his book Ce que nous voyons, ce qui nous regarde. Through
this linkage, we are taken to a desestabilization of the notion of resemblance, restated by the ambiguity intrinsic to
the image.
Keewords: Portrait; Resemblance; Painting; Image; Nancy; Blanchot; Barthes; Didi-Huberman.
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Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1 , p. 55-66, 2014.
55
A
expectativa perante a pintura de um retrato é a de que ele esteja parecido, tenha alguma semelhança com a pessoa retratada. Esta é uma das suas condições primeiras, como nos mostra
Jean-Luc Nancy, em seu ensaio Le Regard du Portrait1, ao destacar que a semelhança parece
ser a questão do retrato, e que este pode aparecer como o único gênero da pintura que teria uma finalidade prática bem determinada2: “[...] a semelhança imperiosamente desejada com a singularidade
individual [...]”3. A ligação entre semelhança e retrato sempre foi tão grande, que, como refere o autor,
no século XVI a palavra semelhança significava também retrato, e ele cita o exemplo da expressão
“semelhança feita ao vivo”4.
Como o retrato alcança essa semelhança? A princípio, espera-se que, se copiarmos com habilidade técnica precisa as formas do rosto e os traços físicos do modelo, estaremos garantindo ao retrato
a verossimilhança desejada. Logo, essa semelhança dependeria em grande parte da capacidade técnica
do pintor. Mas, isso seria suficiente para o retrato configurar-se semelhante à origem? É somente a
correspondência física que importa, ou seria necessário um algo a mais?
Para estudar estas questões, recorro à análise de Nancy sobre a cena Bíblica Noli me Tangere,
na qual ele destaca o paradoxo da imagem quanto à semelhança. Para acompanhar o pensamento de
Nancy, cito aqui o fragmento do Evangelho de São João que narra o momento em que Jesus aparece
ressuscitado para Maria Madalena:
Maria, entretanto, permanecia junto à entrada do túmulo, chorando. Enquanto chorava,
abaixou-se, e olhou para dentro do túmulo, e viu dois anjos vestidos de branco, sentados onde
o corpo de Jesus fora posto, um à cabeceira e outro aos pés.
Então eles lhe perguntaram: Mulher, por que choras? Ela lhes respondeu: Porque levaram o
meu Senhor, e não sei onde o puseram.
Tendo dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus em pé, mas não reconheceu que era Jesus.
Perguntou-lhe Jesus: Mulher, por que choras? A quem procuras? Ela, supondo ser ele o jardineiro, respondeu: Senhor, se tu o tiraste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei.
Disse-lhe Jesus: Maria! Ela, voltando-se, lhe disse, em hebraico: Rabôni (que quer dizer Mestre).
Recomendou-lhe Jesus: Não me detenhas, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai ter
com os meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus.
Então saiu Maria Madalena anunciando aos discípulos: Vi o Senhor! E contava que ele lhe
dissera estas cousas.5
O que interessa a Nancy nesta cena é o fato de Maria Madalena não reconhecer Jesus de imediato. Ela o confunde com o jardineiro. Por que ela não o reconhece? Ele estaria diferente? Alguma
mudança no seu semblante, algo que justificasse o engano de Maria Madalena? Nancy propõe duas
hipóteses: uma na qual Maria Madalena, sabendo que Jesus estava morto, não mais esperava vê-lo
vivo, “[...] nem sequer dispunha desta ‘pré-visão’ ou desse conceito anterior à imagem que permite ou
que impõe a identificação”. E a outra hipótese seria a de que Jesus não estava inicialmente reconhecível,
“sendo ao mesmo tempo e de fato ele próprio”.6
De acordo com a primeira hipótese, percebo que a semelhança não diz respeito só ao objeto
e a seu referente; diz respeito também a quem o observa, a quem está diante dele. Por mais que fosse
Jesus quem estivesse lá, Maria Madalena não o reconheceu, pois ela não estava mais preparada para
encontrá-lo, para vê-lo, já que não estava mais entre os vivos. Na verdade, não podia ser ele, este era
um encontro impossível de acontecer. E como Madalena nem contava com essa possibilidade, a apa-
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1, p. 55-66, 2014.
rência física não importou nesse momento. Portanto, o não reconhecimento acontece devido a quem
observa, à Maria Madalena, a uma ideia já assimilada de que Jesus não poderia mais ser visto.
A segunda hipótese também nos leva à questão da semelhança. Como, sendo ele próprio, ele
não estava reconhecível? Algo havia mudado no seu semblante? Uma diferença essencial ele carregava: não estava mais vivo. Por mais que a aparência fosse a dele, ao mesmo tempo já não era mais
ele. Era apenas a sua imagem, tal como nos esclarece Maurice Blanchot, ao tomar como exemplo a
imagem do despojo7(um corpo morto) para trabalhar a ambiguidade da imagem com relação à semelhança e dessemelhança: “algo está diante de nós, que não é bem o vivo em pessoa, nem uma realidade
qualquer, nem o mesmo que o que era em vida, nem um outro, nem outra coisa”8. A morte transforma a pessoa em um desconhecido, em um estranho que guarda o paradoxo de ainda ser ele, mas não
mais como era em vida.
É importante destacar como as reflexões de Blanchot sobre o despojo estão inteiramente em
sintonia com as de Nancy em Noli me Tangere. Cristo, embora ressuscitado, em seu “corpo glorioso”9,
passou pela experiência da morte, e portanto, carrega essa estranheza inerente ao despojo, uma dessemelhança dentro da própria semelhança:
Tudo acontece como se sua semelhança a si mesmo fosse por um momento suspensa e
flutuante. Ele é o mesmo sem ser o mesmo, ele está alterado em si mesmo: não é assim que
aparece um morto? Não é esta alteração ao mesmo tempo insensível e impressionante – o
aparecer daquilo ou daquele que propriamente não aparece mais, o aparecer de um aparecido
e desaparecido – que traz o mais propriamente e o mais violentamente a marca da morte? O
mesmo que não é mais o mesmo, a dissociação do aspecto e da aparência, a ausência do rosto
diretamente sobre a face, o corpo se afundando no corpo, deslizando sob ele. A partida inscrita
na presença, a presença apresentando sua licença. Ele já partiu, ele não está mais lá onde ele
está, ele não é mais como ele é. Ele está morto, quer dizer que ele não é aquilo nem aquele que
ao mesmo tempo ele é ou ele apresenta. Ele é sua própria alteração e sua própria ausência. Ele
não é nada mais do que sua própria impropriedade.10
Esse novo estatuto que a morte impõe coloca o morto como que em suspensão, ele não se
encaixa mais nas categorias mundanas, ele não é uma coisa ou outra, ele carrega em si a ambiguidade
que a morte lhe trouxe: ele é e ele não é ao mesmo tempo.
A semelhança é nesse caso abalada pela morte, pois, por mais que ainda conservasse sua imagem, ou melhor, por mais que Cristo agora fosse apenas sua imagem, isto não foi suficiente para que
Maria Madalena o reconhecesse. Ela só foi reconhecê-lo quando ele a chamou pelo nome. O reconhecimento é realizado por um algo a mais, que escapou à visibilidade, que foi além da aparência. Pela
sua voz? Mas ele já havia falado com ela antes, lhe perguntado por que chorava. Se fosse só pela voz
ela já o teria reconhecido. Talvez ao ouvir o seu nome: “Maria”, nome dito por aquele que tantas outras
vezes a havia chamado. Algo naquele chamado a fez reconhecê-lo, a fez coincidir novamente a voz e a
aparência naquele que ela conhecia.
Nancy cita outro episódio bíblico, o de Emaús, em que Jesus ressuscitado também não é reconhecido por dois discípulos que caminham ao seu lado e conversam com ele, como podemos ler no
trecho a seguir:
Naquele mesmo dia, dois deles estavam de caminho para uma aldeia chamada Emaús, distante de Jerusalém sessenta estádios.
E iam conversando a respeito de todas as cousas sucedidas. Aconteceu que, enquanto converPoéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 55-66, 2014.
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savam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e ia com eles.
Os seus olhos, porém, estavam como que impedidos de o reconhecer.
[...]
Quando se aproximavam da aldeia onde iam, fez ele menção de passar adiante.
Mas eles o constrangeram, dizendo: Fica conosco, porque é tarde, e o dia já declina. E entrou
para ficar com eles.
E aconteceu que, quando estavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o e, tendo-o partido,
lhes deu;
então, se lhe abriram os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles.
E disseram um ao outro: Porventura, não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos
falava, quando nos expunha as Escrituras?
E, na mesma hora, levantando-se, voltaram para Jerusalém, onde acharam reunidos os onze e
outros com eles, os quais diziam: O Senhor ressuscitou e já apareceu a Simão!
Então, os dois contaram o que lhes acontecera no caminho e como fora por eles reconhecido
no partir do pão.11
Os discípulos só vão reconhecer Jesus através do gesto de sua mão ao repartir o pão. Sua semelhança é dada nesse caso pelo gesto, e em Noli me Tangere pela palavra que pronuncia. A aparência
física, nesses dois casos, configura-se como uma “[...]12 semelhança que não se deixa reconhecer [...]”
, sendo necessário algo a mais para que o reconhecimento seja efetuado.
Portanto, o físico é apenas um dos dados a se levar em conta. Existe um algo a mais que vai fazer a imagem assemelhar-se ou não com o objeto referente. No caso dos retratos, algo talvez no olhar,
talvez num gesto, algo que dependa da experiência pessoal do observador frente ao objeto retratado.
Algo que está além da aparência formal: “A semelhança fiel consiste em mostrar outra coisa além da
correspondência dos traços”.13 O retrato deve mostrar uma pessoa, ao invés de só os traços de um modelo.
Para discutir sobre a semelhança nos retratos, Nancy analisa o Autorretrato de Johannes Gumpp (FIG. 01), no qual o pintor aparece de costas, pintando seu retrato através de um espelho. Vemos
o seu rosto refletido no espelho e pintado no quadro. De acordo com o autor, o quadro é consagrado
mais ao pintar, do que ao pintor que se pinta, e a pintura é que é o tema do quadro, “ela é, muito ostensivamente, o tema de sua semelhança”.14
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FIGURA 01. Johannes Gummp. Autorretrato. Óleo sobre tela, 1646.
No quadro há duas representações do rosto do pintor: a do espelho e a do quadro. Temos duas
vezes a semelhança, e duas semelhanças distintas. “O quadro mostra a dessemelhança das semelhanças”.15
Nancy questiona então, onde se configura a verdadeira semelhança: no espelho ou no retrato?
Para o autor, o próprio quadro nos fornece a resposta através dos dois animais domésticos que aparecem na cena: o cachorro abaixo do retrato está no primeiro plano e simboliza a fidelidade, enquanto
que o gato sob o espelho apresenta-se um pouco mais atrás e indica uma fidelidade menos clara. Em
outro detalhe podemos ver o nome Johannes Gumpp escrito em um papel sobre o retrato, como se
estivesse indicando onde ele se encontra realmente. Logo, tudo colabora para mostrar o retrato como
sendo o portador de uma semelhança mais genuína, em detrimento da imagem refletida no espelho.
O autor demonstra-nos que a semelhança formalmente exata, que o reflexo do espelho fornece apesar da inversão de lados, não é a mesma semelhança fornecida pelo retrato pintado, que vai além da
reprodução fiel das formas: “O reflexo (ou o duplo) só acontece in praesentia, o retrato está in absentia:
ele é por essência e em todo sentido exposto à ausência”.16
Para um reflexo no espelho, o objeto refletido tem que estar presente. Assim que ele se ausenta,
o reflexo também se perde. Já para o retrato, não: ele se configura justamente na ausência do retratado,
ele precisa dessa ausência para se constituir, e é nessa ausência que ele sobrevive.
Nancy assinala ainda a diferença instaurada pelos dois olhares presentes no quadro. A imagem
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 55-66, 2014.
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do espelho olha para o pintor, e a do quadro olha de lado, olha para quem olha a tela (e consequentemente olha – olhou – para o pintor enquanto pintava verdadeiramente o quadro). O olhar da imagem
refletida no espelho é um olhar técnico, preocupado em se observar para reproduzir suas formas,
enquanto que o olhar do retrato está fora dali, ele espreita. Segundo Nancy, esse olhar mobiliza todo o
rosto a partir de alguns traços discretos, ele mostra mais uma pessoa do que só traços de um modelo.
Ainda sobre esse jogo de olhares representado no quadro, poderíamos supor que ele aponta
para a impossibilidade de existência de um único ponto de vista sobre uma pessoa: esta está sempre
sujeita a uma pluraridade de olhares, e cada qual a vê de determinado ângulo, o que leva a diferentes
formas de se ver a mesma pessoa, e consequentemente a sua imagem.
Nancy vai apontar por fim uma outra forma de semelhança que o quadro apresenta, que são
as costas do pintor que aparece pintando, a cujo olhar só temos acesso pelos reflexos e efeitos (espelho
e retrato). Segundo o autor, é aí que reside “[...] a semelhança em sua extrema verdade [...]17”. A representação mais direta do pintor é o seu vulto de costas, e é nele, na sua presença velada, na ausência do
seu rosto real, que a semelhança é mais verdadeira. As imagens que aparecem dos seus rostos estão
mediadas por um espelho e por uma tela. O seu verdadeiro rosto não aparece, está ausente.
Esta ausência significa para nós que o quadro só é semelhante à medida em que expõe
esta ausência, a qual por sua vez não é nada mais do que a condição pela qual o sujeito se
relaciona consigo mesmo e assim se assemelha. “Assemelhar-se” não é nada mais do que ser si
mesmo ou o mesmo que si”.18
Neste sentido, a semelhança, no retrato de Joahnes Gummp, se relaciona com a ausência do
rosto. É preciso que o rosto realmente não esteja ali, para que sua imagem possa ser semelhante a ele,
e neste retrato encontramos justamente essa ausência que permite a semelhança. Não vemos o nosso próprio rosto a não ser em algum espelho, foto, ou retrato. Temos nossa própria imagem sempre
mediada por um outro suporte. Nosso rosto nunca foi realmente visto por nós mesmos. “Eu só me
‘assemelho’ em um rosto sempre ausente a mim e fora de mim, não como um reflexo, mas como um
retrato levado ao meu encontro, sempre adiantado em relação a mim”.19
Essa ausência de rosto reforça a ausência real do retratado: ele realmente não está no retrato,
temos ali só uma imagem, e Gummp afirma essa ausência ao representar a si mesmo de costas: no
retrato, nem o retratado, nem o pintor estão realmente presentes.
As semelhanças apontadas por Nancy no Autorretrato de Johannes Gummp nos mostram
como a semelhança pode se desdobrar em um retrato, em uma imagem. Didi-Huberman destaca que
“nunca se consegue acabar com uma semelhança: ela envia sempre para uma outra, ao menos”.20 Segundo o autor, o reino da imagem compreende uma remissão perpétua de semelhança a semelhança:
traços vão remeter a outros traços, fazendo da semelhança “um meio impessoal, fluido mas opaco,
espécie de intangível drapeado que envolveria todas as coisas e não teria fim”.21
Sob esse sentido, portanto, a semelhança mais uma vez não seria um dado exato, fechado e
concluído, e sim, algo que escapa, ela se constituiria de semelhanças que se ligam, se separam, e estabelecem entre si um movimento interminável, como nos confirma Didi-Huberman: “A semelhança
como tal, não seria, portanto, nada mais do que seu próprio movimento interminável, de semelhança a
semelhança [...]”.22
Diante de um retrato, podemos sentir esse reenvio de semelhanças: ora é a semelhança física
que salta aos olhos, ora é uma semelhança dada por um gesto, por uma voz, por uma lembrança, ora
é uma semelhança genealógica, ora não vemos nele semelhança nenhuma.
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Cabe observar que as pessoas se modificam e envelhecem. Logo, a fisionomia sofre alterações
ao longo do tempo. Como, portanto, se assemelhar a algo que está em constante transformação? Um
retrato vai captar um aspecto do modelo, em um dado momento de sua vida, mas com o passar do
tempo ele vai se desassemelhando da imagem real da pessoa, que estará mais velha, com traços mais
marcados, com outras feições. Ao olharmos um retrato de alguém que conhecemos, pintado há alguns anos ou a partir de uma foto antiga, podemos sentir um estranhamento quanto à semelhança,
pois a pessoa já mudou, e portanto, não “coincide” tanto com a imagem pintada. O retrato pode guardar alguma semelhança com seu modelo na atualidade, porém esta é uma semelhança paradoxal, pois
o seu referente já não existe mais da forma como existiu no momento em que a imagem foi pintada
(ou, quando o retrato é pintado a partir de uma fotografia, no momento em que a foto foi tirada). Não
existe um referente absoluto, ele se transforma com o tempo. Isso faz com que, “[...] a semelhança interminável seja uma interminável falha, uma interminável lacuna, portanto uma interminável infelicidade”.23 Sob esse olhar, a semelhança não é um dado exato, ela se constrói de ausências, de resquícios,
de algo que está além ou aquém da exatidão das formas físicas.
Sobre essa semelhança trazida por falhas e ausências, torna-se importante destacar as reflexões
de Roland Barthes a respeito, ainda que seu objeto de análise esteja circunscrito ao campo da fotografia. Porém, suas discussões são pertinentes para se pensar também os retratos pintados, que, em sua
maioria, são feitos atualmente a partir de fotografias do modelo.
Barthes procura esse algo a mais que ultrapassa a semelhança puramente formal, pois esta o
deixa insatisfeito, decepcionado e cético, já que ela remete apenas à identidade do sujeito, que para
ele torna-se insignificante. Na verdade, o que Barthes quer é encontrar o ser por inteiro, em essência,
que escapa à fotografia enquanto reflexo e reprodução de uma imagem. O autor chama esse algo que
escapa à reprodução técnica de uma foto de ar. Este ar não é um dado esquemático, intelectual, como
uma silhueta, nem tampouco uma simples analogia, como a semelhança. “[...] O ar é essa coisa exorbitante que induz do corpo à alma [...] pequena alma individual [...]”.24 Essa pequena alma individual
exprime o sujeito, e faz coincidir o retrato ao retratado. O ar é “[...] como que o suplemento intratável da
identidade [...]”.25
Interessante ressaltar que o ar é justamente o que é necessário para a respiração, o homem depende dele para viver. Não é à toa, portanto, que Barthes chama de ar esse algo a mais que vai permitir
a identificação do modelo em uma foto: o que ele busca nas fotografias é justamente uma “vida”, algo
que “salve” o modelo da morte e da fixidez em que a fotografia o insere.
De acordo com Barthes, é o ar que faz o retrato permanecer, levando o autor a se questionar
sobre o que vem a ser uma foto “parecida”:
[...] ao refletir sobre isso, sou obrigado a me perguntar: quem parece com quem? A semelhança
é uma conformidade, mas a quê? A uma identidade. Ora, essa identidade é imprecisa, imaginária mesmo, a ponto de eu poder continuar a falar de “semelhança”, sem jamais ter visto
o modelo. [...] Vejo-os todos, posso espontaneamente dizer que são “parecidos”, já que estão
conformes ao que espero deles.26
Assim, achamos um retrato parecido quando ele está conforme o que esperamos dele, conforme a imagem que temos da pessoa, a identidade que se formou dessa pessoa em nós. De acordo
com o autor, essa identidade é imaginária e imprecisa, o que significa dizer que cada um constrói
uma identidade para o outro de acordo com a relação que se tem com esse outro. É a convivência e as
experiências vividas que permitem constituir o sujeito não só por suas características próprias, mas
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 55-66, 2014.
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também a partir do nosso olhar e da nossa percepção em relação a ele.
O trabalho com retratos permite observar como as experiências reafirmam as questões levantadas por Blanchot e Nancy quanto à idéia de semelhança que muitas vezes traz o estranhamento do
não reconhecimento. Por vezes, ao mostrar um retrato a algumas pessoas, ou ao entregá-los àqueles
que o encomendaram, a semelhança é questionada por alguns, enquanto por outros é julgada completamente satisfatória. Trata-se de uma mesma imagem de uma mesma pessoa. Como então uns podem
achar parecido, e outros não? O que está em jogo na semelhança é esse algo a mais incapturável pelo olhar, designado por
Barthes de ar. E esse ar não é percebido por todos da mesma maneira, ele depende da percepção de
cada um a respeito do outro.
Barthes relata ter sido fotografado diversas vezes, e os fotógrafos “erraram” seu ar. Ou seja, ele
não se viu realmente retratado ali. As fotos não estavam conforme o que ele esperava de sua imagem,
conforme ele se via, conforme a imagem que ele gostaria de dar de si mesmo. Como vimos em Nancy,
nós não vemos a nós mesmos: “[...] meu rosto invisível como me é sempre”.27 Ver uma imagem do
nosso próprio rosto causa uma estranheza, é sempre uma indagação: como saber se um retrato nosso
está parecido realmente ou não, já que nunca vimos nosso rosto realmente? Nesse caso julgamos a
semelhança conforme a imagem que acreditamos ser a nossa, conforme a imagem que gostaríamos
de dar de nós mesmos. E também através do algo a mais, do ar, que está além da aparência física. Essa
estranheza de ver o próprio rosto retratado pode ter contribuído para que Barthes não se reconhecesse nas fotos, mas talvez o mais determinante tenha sido o fato de a identidade que ele construiu de si
mesmo não coincidir com a que o fotógrafo percebeu e dele captou.
No retrato pintado está implícita uma multiplicidade de olhares sobre uma mesma pessoa, o
que implica também uma multiplicidade de percepções sobre ela, devido às diferentes formas de ver
e às diferentes formas que a coisa vista se dá a ver. O retratista pode evidenciar mais um determinado aspecto do que outro no modelo que tem diante de si: “cada retrato meu identificará uma outra
semelhança”.28 Fica claro que a semelhança está envolvida numa rede intrincada de percepções e na
dependência de aspectos muitas vezes mutáveis. Uma mesma pessoa pode ser retratada mais de uma
vez, (por dois retratistas diferentes, ou até por um só) e ter dois retratos completamente distintos entre
si. Logo, um rosto não é uma imagem fechada, exata, sempre igual. Ele configura inúmeras variações
– que vão depender do ângulo sob o qual ele se dá a ver, da iluminação, das diferentes expressões que
pode apresentar. Um retrato capta somente algumas dessas variações.
Sobre essa multiplicidade de olhares e diferentes formas de se ver a mesma imagem, trago as
formulações teóricas de Didi-Huberman sobre o que vemos e o que nos olha. Para o autor, “[...] o ato
de ver só se manifesta ao se abrir em dois”29: tudo que vemos também nos olha, nos devolve o olhar,
e o que é devolvido com esse olhar tem a ver conosco, com nossa vivência, e vai além do que é visto
fisicamente ali.
A expressão em francês ce qui nous regarde significa o que nos olha, mas também pode significar o que tem a ver conosco, o que nos diz respeito, o que nos concerne. Didi-Huberman trabalha
com a dualidade desta expressão30 , dualidade que é perdida na tradução para o português, mas que é
essencial para um melhor entendimento do pensamento do autor. Quando olhamos alguma coisa, o
que nos olha de volta é o que está intrinsecamente relacionado às nossas experiências e nossas sensações.
A semelhança nos retratos tem a ver com o que nos olha, o que nos diz respeito, o que tem a
ver conosco, o que nos cerca, determinando, irremediavelmente, a relação que temos com a pessoa
retratada. O que nos olha, o que é fisgado pelo nosso olhar, ultrapassa a visibilidade. Portanto o pintor,
62
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1 , p. 55-66, 2014.
ao fazer o retrato, estará submetido a essa trama do olhar. O que olha para ele enquanto pinta o modelo, diz respeito só ao pintor. Desta forma, ele pinta o retrato a partir do modelo e a partir de si próprio.
E essa percepção é individual, ela pode ou não coincidir com a percepção de uma outra pessoa sobre
esse modelo. Da mesma forma, quem vê um retrato vai achá-lo semelhante ou não devido ao que esse
retrato lhe devolve com o olhar, o que por sua vez, também estará com ela relacionado.
O exemplo das reflexões de Barthes, após a morte de sua mãe, elucida-nos sobre essa trama a
que o olhar está submetido irremediavelmente. Ao procurar reconhecer sua mãe recém-falecida nas
fotos de família, Barthes só a reconhecia aos pedaços, nunca alcançava todo o seu ser. Só foi encontrá-la verdadeiramente em uma foto antiga, a Fotografia do Jardim de Inverno, de quando ela era ainda
criança, ou seja, numa época que ele nem existia, num rosto que ele não conheceu, que não se parece
com o que ele se lembra dela, mas foi nesse rosto que ele a encontrou: “[...] brusco despertar, fora da
‘semelhança’ [...]”.31 As fotos em que ela aparecia adulta, da forma como era quando conviveram, não
lhe diziam nada, não correspondiam à sua mãe. Fica claro que a semelhança física também não foi
fundamental para Barthes a reconhecer. A imagem de sua mãe criança foi a única que coincidiu com
a ideia que dela possuía em suas lembranças, com os seus sentimentos em relação a ela, ou seja, foi a
única foto que entrou em ressonância com a imagem que o autor guardava de sua mãe, e que só pertencia a ele próprio. E essa “imagem” compreendia, mais do que sua aparência física: compreendia o
afeto, o sentimento, a relação mãe e filho, o ar de sua mãe.
Barthes opta por não mostrar a foto do Jardim de Inverno em seu livro, pois, para os outros,
ela seria só mais uma foto qualquer: “Não posso mostrar a Foto do Jardim de Inverno. Ela existe apenas
para mim. [...] nela, para vocês, não há nenhuma ferida”.32 Essa afirmação do autor reafirma o pensamento de Didi-Huberman: o que olha Barthes nessa foto olha só para ele, ninguém mais veria essa
imagem da forma como ele a via, forma relacionada com todas as experiências vividas ao lado de sua
mãe, em sua convivência e em sua perda:
[...] Cada coisa a ver, por mais exposta, por mais neutra de aparência que seja, torna-se inelutável quando uma perda a suporta – ainda que pelo viés de uma simples associação de ideias,
mas constrangedora, ou de um jogo de linguagem –, e desse ponto nos olha, nos concerne, nos
persegue.33
A perda da mãe é primordial para determinar a forma como Barthes agora enxerga a Fotografia do Jardim de Inverno, e cujo reconhecimento remete à existência do semelhante naquilo que não
é apreensível apenas pela forma física, mas por algo que ultrapassa a visibilidade, algo insubstancial,
imaterial, que emerge das imagens e que vai além da cópia do referente.
Sobre esse algo que ultrapassa a visibilidade, retomo Blanchot, para reafirmar na imagem seu
estatuto de ambiguidade. Em seu texto As duas versões do imaginário34, o autor analisa a dualidade
da imagem que lhe confere o poder de se desdobrar em duas versões: aquela que parece nos trazer o
objeto de volta e aquela que nos traz a ausência deste, como podemos ver no fragmento a seguir: “A
imagem pode, certamente, ajudar-nos a recuperar idealmente a coisa [...] mas corre também o constante
risco de nos devolver não mais a coisa ausente, mas a ausência como presença[...]”.35
Levando em consideração o fato de a convenção comum estipular que a imagem seja a continuação do objeto, surja depois dele, o retrato seria então, sobre esse aspecto, totalmente ligado ao seu
referente: primeiro existe a pessoa, e depois o seu retrato. Porém, o autor nos mostra que a imagem é
ambígua, que o imaginário tem duas versões, e que ao mesmo tempo em que ela vem a partir de um
objeto, tendo-o como referente, ela também é independente dele, ela aparece onde o objeto já não
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 55-66, 2014.
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mais existe, e portanto, ganha autonomia em relação a ele. Importante esclarecer que embora Blanchot utilize o termo duas versões para abordar a ambiguidade da imagem, ele não as hierarquiza em
primeira e segunda, pois na verdade, para o autor, uma não exclui a outra, são como faces da mesma
moeda, que se alternam simultaneamente.
A imagem pode existir com ou sem o objeto como pano de fundo. Podemos pensar que o
retrato pode existir sem estar vinculado apenas ao seu modelo. Este pode ter existido e ter sido importante durante sua elaboração, mas a partir do momento em que o retrato está pronto, o modelo se
retira, e a imagem retratada existe por si só. O referente não está lá, não está presente mais. A imagem
dispensa-o e funda-se na ausência dele.
Portanto, a imagem, ainda que se assemelhe ou não ao seu referente, torna-se independente
dele. Um retrato, antes de ser o retrato de alguém, é um retrato, uma pintura. Quando vemos um retrato de alguém que não conhecemos, que nunca vimos antes, sentimos essa independência. Vemos
sem a comparação, sem relacioná-lo com uma pessoa determinada. Vemo-lo como imagem somente.
E é essa talvez a melhor forma de ver um retrato, sem interferências. Quando conhecemos a pessoa
retratada, na maioria das vezes, a primeira coisa que fazemos é comparar, constatar uma semelhança.
Nancy reconhece que a identificação do modelo pode até ser essencial ao retrato que é feito
com o objetivo do reconhecimento, mas não é essencial à arte do retrato, ou seja, um bom retrato não
é somente aquele que é parecido com o referente.36 O autor chega mesmo a dizer que o “modelo é
inessencial ao retrato, ou mais exatamente, ele é o essencialmente ausente do retrato, do qual só importa a ausência, e não o reconhecimento. A semelhança não tem nada a ver com o reconhecimento”.37
Nancy nos lembra de que desconhecemos os modelos da maioria dos retratos que contemplamos, e cita como exemplo a Monalisa, o “arquétipo dos retratos”, cuja identidade do modelo nos é
desconhecida. Talvez seja essa incerteza que lhe confere seu lugar lendário. O autor nos aponta ainda
o fato de muitas vezes gostarmos de retratos que foram julgados insatisfatórios sob o ponto de vista
do reconhecimento.38
De acordo com Nancy, o retrato:
[...] não se assemelha a um original, mas ele se assemelha à Ideia de semelhança a um original – ou de preferência, ele é ele mesmo o “original” da semelhança consigo, de um sujeito em
geral, mas cada vez também de um sujeito singular.39
As formulações teóricas de Nancy, Blanchot, Didi-Huberman e Barthes reafirmam que a semelhança não é dada apenas pelo referente. Desta forma, o retrato está além e/ou aquém da associação que se faz com relação ao seu modelo e que de certa forma, até o dispensa. Uma vez pintado ele
ganha autonomia, porque como ressalta Nancy “[...] ‘Semelhança’ difere de ‘’reprodução’ ou de ‘cópia’
por um valor de aproximação. É somente o ‘semblante’ que ‘assemelha’, é um ‘além’, um ‘ar’ ou um ‘aspecto’ [...]”.40
Assim, por mais que se busque capturar a semelhança ao retratar uma pessoa, o que se tem, de
fato, são “[...] atitudes aproximativas da ausência que retratamos”41. O pintor, tomando emprestadas
as palavras de Nancy constata, enfim, que “a semelhança gira em torno de sua própria ausência: e girar
em torno assim, é propriamente o gesto da mão do pintor.”42
Referências
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
64
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1, p. 55-66, 2014.
BIBLIA SAGRADA. Tradução: João Ferreira de Almeida. Revista e atualizada no Brasil. 2. ed. São
Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
DIDI-HUBERMAN, Georges. De semelhança a semelhança. Alea, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 26-51,
jan.-jun. 2011.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.
NANCY, Jean-Luc. Le Regard du portrait. Paris: Galilée, 2000.
NANCY, Jean-Luc. Noli me tangere : essai sur la levée du corps. Paris: Bayard, 2003.
NANCY, Jean-Luc. Partir – Le départ. Paris: Bayard, 2011.
Notas de Rodapé
1.NANCY, 2000.
2. Esta finalidade levou o retrato a enfrentar julgamentos em relação ao seu valor artístico. Cf. NANCY, 2000, p.
38.
3. NANCY, 2000, p. 38, tradução nossa
4. NANCY, 2000, p. 49, tradução nossa
5. Jo 20, 11-18
6. NANCY, 2003, p. 47, tradução nossa
7. Cf. BLANCHOT, 1987, p. 257-259
8. BLANCHOT, 1987, p. 258
9. Termo cristão usado para descrever o corpo de Cristo após a ressurreição. Segundo Nancy, “glorioso” designa
“[...] a própria matéria do corpo que se torna completamente outra. Ela não é mais material, não é mais um corpo.” (NANCY, 2011, p. 35, tradução nossa)
10. NANCY, 2003b, p.48-49, tradução nossa
11. Lc 24, 13-35
12. NANCY, 2003, p. 81, tradução nossa
13. NANCY, 2000, p. 43, tradução nossa
14. NANCY, 2000, p. 41, tradução nossa
15. NANCY, 2000, p. 41, tradução nossa
16. NANCY, 2000, p. 45-46, tradução nossa
17. NANCY, 2000, p. 46, tradução nossa
18. NANCY, 2000, p. 47, tradução nossa
19. NANCY, 2000, p. 48, tradução nossa
20. DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 31
21. DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 32
22. DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 32
23. DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 38
24. BARTHES, 1984, p. 159
25. BARTHES, 1984, p. 160
26. BARTHES, 1984, p. 150
27. NANCY, 2000, p. 48, tradução nossa
28. NANCY, 2000, p. 49, tradução nossa
29. DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 29
30. O próprio nome do livro de Didi-Huberman Ce que nous voyons, ce qui nous regarde (traduzido como O que
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vemos, o que nos olha), traz em si essa dualidade da expressão em francês, que é o que realmente se trata no livro:
o que vemos também nos olha, e esse olhar vai nos remeter a algo que nos diz respeito.
31. BARTHES, 1984, p. 160
32. BARTHES, 1984, p. 110
33. DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 33
34. BLANCHOT, 1987. p. 255-265
35. BLANCHOT, 1987, p. 264
36. NANCY, 2000, p. 39-40
37. NANCY, 2000, p. 40, tradução nossa
38. NANCY, 2000, p. 40, tradução nossa
39. NANCY, 2000, p. 48-49, tradução nossa
40. NANCY, 2000, p. 49 (Em rodapé no 1), tradução nossa
41 NANCY, 2000, p. 49 (Em rodapé no 1), tradução nossa
42. NANCY, 2000, p. 49 (Em rodapé no 1), tradução nossa
Recebido em 24 de Fevereiro de 2014.
Aprovado para publicação em 18 de Maio de 2014.
Glitch: a arte visual do erro digital
Glitch: the visual art of the digital error
Cleber Gazana
Mestrando em Artes Visuais na Universidade Estadual Paulista, Unesp, São Paulo, SP, Brasil, como bolsista CAPES/
DS. Especialista em Criação Visual e Multimídia pela Universidade USJT. Professor da Universidade Paulista, UNIP,
São Paulo, SP, e artista visual e sonoro com obras expostas no Brasil e no exterior. Área específica de pesquisa: artes
visuais com ênfase em arte e tecnologia, e na estética do erro digital.
Resumo
Este artigo discute o surgimento e as principais características estéticas visuais da Glitch art, um dos desdobramentos estéticos da arte digital. Iniciamos com a definição do termo glitch e apresentação da Glitch art e suas
duas classificações: Pure Glitch e Glitch-alike. Descrevemos suas características estéticas visuais, fragmentação,
repetição, linearidade e complexidade, e mostramos artistas glitch que possuem propostas atuais no campo da arte
digital visual e que utilizam a estética do erro em suas obras. Acreditamos, assim, ter apresentado um panorama
teórico sobre a estética contemporânea visual do erro digital.
Palavras-chave: Erro digital; Estética do digital; Glitch art; Arte visual; Arte e tecnologia.
Abstract
This work discusses the beginning and the main visual aesthetic characteristics of the Glitch art, one of the aesthetic
outcomes of digital art. We begin with the glitch term definition, the Glitch art presentation and your two classifications: Pure Glitch and Glitch-alike. We describe their visual aesthetic characteristics, fragmentation, repetition,
linearity and complexity, and show glitch artists with actual proposals in the field of visual digital art and that use
the error aesthetic in their works. Thus, we believe we have presented a theoretical overview of contemporary visual
aesthetics of the digital error.
Keywords: Digital error; Digital aesthetic; Glitch art; Visual art; Art and Technology.
66
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1, p. 55-66, 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 67-82, 2014.
67
Introdução
I
nterpretar a arte é situá-la em um contexto de ideias, conceitos, acontecimentos sociais e, atualmente, também em um contexto tecnológico. Porém, sabemos que este tema possui uma embaraçada trama de relações, conceitos interdisciplinares e fazeres tão variados, que simplesmente não
se consegue esgotar o assunto, demandando estudo dos fenômenos e teorias que conduzem o contágio da arte e da tecnologia, para então resultar nas conclusões de como a Glitch art atua neste universo.
Nosso objetivo neste artigo é examinar as características da Glitch art, suas definições, seu
surgimento e sua relação com a crescente aplicação da tecnologia e novas mídias nas artes digitais
visuais contemporâneas. Ainda como delimitação deste trabalho, não nos importa discutir de forma
minuciosa as tecnologias em si, adentrando a sua descoberta e funcionamentos técnicos, como linguagens e códigos de programação, softwares, análise de dados informáticos digitais etc, mas apenas
sua influência na criação e resultado estético.
Nosso trabalho analisa e correlaciona as teorias da Glitch de Iman Moradi, Ant Scott, Rosa
Menkman e Nick Briz, além de utilizarmos entrevistas com artistas da Glitch art com o objetivo de
construir argumentos válidos sobre o tema.
Vale ressaltar que nossa pesquisa foi realizada por meio de buscas em base de dados na área
da arte, teses, dissertações, livros, artigos e websites, com discussões e conceitos específicos da Glitch
art visual. Demos ênfase na tese Gtlch aesthetics [sic], de Iman Moradi, publicada em 2004, por ser a
principal e talvez a primeira obra acadêmica sobre o tema.
De lá pra cá poucas obras de igual importância foram produzidas, reduzindo nossa fonte de
buscas por informações mais completas sobre o assunto. Como exemplo, em pesquisa no website
Google acadêmico1 com o termo “glitch art”, assim entre aspas, apresentou apenas 133 resultados em
01 de maio de 2014.
Também inserimos neste trabalho uma breve apresentação de alguns artistas expressivos na
arte Glitch visual como Nick Briz, Notendo, Pixelnoizz, Rosa Menkman e Ant Scott.
A motivação para a realização deste trabalho nasce da curiosidade e da necessidade de investigação quanto à estética visual resultante da chamada Glitch art e também de conhecermos o conceito
da estética do erro, apropriada por eles.
Assim, este artigo espera servir de agente para futuros debates e ampliar a oferta de referências
para a atuação e apoio à pesquisa na área da arte e tecnologia.
2. Definindo o glitch
Segundo o Oxford dictionaries online (2014, texto digital), a palavra glitch é definida como
uma súbita irregularidade ou mau funcionamento, geralmente temporário, do equipamento. E no
Dictionary.com unabridged (2014, texto digital) como um defeito ou mau funcionamento de uma
máquina, quaisquer erros ou problema. (Traduções nossa)
Conforme Iman Moradi (2004, p. 9), talvez o primeiro teórico da Glitch art, a palavra glitch
“[…] foi registrada pela primeira vez em inglês em 1962, durante o programa espacial norte-americano
nos escritos de John Glenn, onde ela era usada para ‘descrever os problemas’ que eles estavam tendo [...]”.
(Tradução nossa)
De qualquer maneira, o glitch é definido como um resultado inesperado de um mau funcionamento, um erro, um defeito, uma falha. Está associado ao significado de problema, sendo usada para
68
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1 , p. 67-82, 2014.
definir uma situação de quando algo errado acontece, um resultado imperfeito.
A Glitch art é um gênero que utiliza a tecnologia para trabalhar com a computação, corrupção
de dados e erros de transmissão e recepção digitais.
É creditada a Ant Scott a criação da expressão Glitch art, pois foi em seu artigo chamado Anti-fractal,
de 2001, que a palavra glitch apareceu pela primeira vez se referindo as obras artísticas visuais. (FERNANDES, 2010, p. 22)
Mesmo assim, o termo ficou primeiramente mais conhecido no mundo da Música eletrônica
por causa do artigo The aesthetics of failure, de 2002, escrito por Kim Cascone, onde ele faz a primeira
formalização da estética do erro.
“Cascone discute o erro na música eletrônica, mas sua influência estendeu-se para a Arte Digital em
geral.” (FERNANDES, 2010, p. 21)
Moradi (2004, p. 12, 14, 16, 17) coloca como conceitos relacionados à Glitch art, a falha de
comunicação e de tradução de dados digitais, a transmissão de significado por meio da estética do
erro, a fetichização da tecnologia, o “não-desejado”, onde erros indesejados que acontecem no mundo
perfeito do digital, devido seu resultado e falta de função, dão ao Glitch um status único na arte, além
da “estética retro” onde algumas obras nos fazem lembrar que a comunicação do passado era “imperfeita” se comparada às da atualidade.
Outra característica importante é o processo exploratório e experimental que a Glitch art utiliza em suas criações. Para ele, erros, acidentes e seu aspecto de incerteza, são usados como ferramentas
no processo criativo ou deixados a acontecer livremente, e que não devem ser ignorados, nem vistos
como algo negativo. Eles devem ser entendidos como uma estética da arte digital. (MORADI, 2004, p.
52)
2.1. Pure glitch e Glitch-alike
Nas diferentes obras da Glitch art, Moradi classificou dois modos de criação que julgou abranger estes trabalhos até aquele momento, chamando-os de Pure glitch e Glitch-alike.
O Pure glitch é “o resultado de um mau funcionamento ou erro”. (MORADI, 2004, p. 9) (Tradução
nossa). Aqui o Glitch puro, o glitch propriamente dito, é o resultado de um erro não intencional e
acidental.
Já o Glitch-alike são “[...] conjuntos de artefatos digitais que se assemelham aos aspectos visuais de erros reais encontrados em seu habitat original”. (MORADI, 2004, p. 10) (Tradução nossa)
O Glitch-alike é, portanto, uma representação planejada e intencional manipulada pelo artista.
Em sua dissertação o autor ainda apresenta o seguinte quadro resumo, aqui traduzido por Fernandes.
Glitch Puro
Acidental
Fortuito
Apropriado
Encontrado
Real
Como o Glitch2
Deliberado
Planejado
Criado
Projetado
Artificial
Quadro 1. Resumo de comparação. (FERNANDES, 2010, p. 23)
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 67-82, 2014.
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O Pure glitch ou o Glitch-alike são muitas vezes o resultado de uma falha de comunicação ou
falha de interpretação de um dado digital quando transferido de um ambiente para outro.
Na estética Glitch não existe o compromisso de criar uma ponte entre conteúdo e significado,
nem mesmo de criar um significado inteligível para quem o vê. A criação da estética Glitch não tem
essa preocupação, ela pode simplesmente satisfazer a um processo de criação para si mesmo ou para
uma satisfação de uso e sentido próprio.
Assim, o Glitch-alike muitas vezes é usado como um elemento de estilo visual.
2.2. Estética da Glitch art
Baseado em suas observações e contato com artistas da Glitch art, Moradi definiu quatro características visuais da estética da Glitch art. Vale lembrar que estas características abarcam tanto o
Pure glitch como o Glitch-alike já descritos anteriormente neste trabalho.
A primeira é a fragmentação. Para Moradi (2004, p. 28) “as vezes na Glitch art tudo é reduzido a seus
elementos individuais ou partes da imagem são transferidos e traduzidos incorretamente”. (Tradução
nossa)
Em seu sistema de leitura visual da forma, Gomes Filho (2009, p. 93) coloca a fragmentação
como uma “decomposição dos elementos ou unidades em peças separadas que se relacionam entre
si, porém, conservando seu caráter individual”, onde existe um fracionamento, divisão, excitação e
variedade visual.
Figura 1. Frame de GIF animado de Recyclism chamada Sarkorrupt
A segunda é a repetição. Consideramos a categoria da repetição os padrões que o erro digital
ou computacional gera, repetindo de maneira única, imprevista, acidental e complexa, partes da imagem, tudo por meio de um processo computacional casual. (MORADI, 2004, p. 30)
Figura 2. Arte digital de Ant Scott chamada Glitch #18-void*.
A terceira é a linearidade. Moradi coloca esta característica como um efeito visual que é parcialmente resultado de como a tecnologia trabalha para exibir uma imagem em um monitor, sendo
um item marcante da estética Glitch.
Sem entrar em qualquer nível de detalhe técnico, esses componentes individuais podem ser
pixels, camadas de separação de cor, ou grânulos de grafite sobre o papel. Em alguns glitches, estes
elementos [pixels] têm uma tendência para fundir um ao outro em fileiras para formar linhas. (MORADI, 2004, p. 31) (Tradução nossa)
Figura 3. Frame de vídeo de Pixelnoizz, sem título.
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A quarta e última característica é a complexidade. Moradi diz que tanto o Pure glitch como o Glitch-alike podem ser visualmente complexos.
Segundo Gomes Filho (2009, p. 80) a complexidade “implica, quase sempre, uma complicação visual
graças à presença de numerosas unidades formais na organização do objeto, tanto das partes como
do todo em si”.
As imagens que possuem complexidade têm a leitura dificultada e mais lenta por esse excesso de unidades formais, exige maior atenção e concentração do observador e possui baixa pregnância visual.
Figura 4. Obra de Max Capacity chamada X1689-00004.
3. [Des]organização da Glitch art
Ao que parece, a Glitch art não nasceu como um grupo organizado, em um lugar, época ou por
alguém específico. Quando o pioneiro e artista da Glitch art Ant Scott utilizou o termo pela primeira
vez, não havia ainda uma sistematização dessa arte, nem uma sistematização da estética do erro e nem
existia uma discussão formal de suas características estéticas e visuais. Até então, a Glitch estava sendo
“discutida” em fóruns abertos na Internet e sendo executada, muitas vezes, por artistas amadores em
uma cultura colaborativa, que não participava do circuito “reconhecido” das artes digitais, nem de
exposições.
Esses artistas, normalmente, se conhecem, se definem e se relacionam na Internet, formando
uma comunidade complexa que se interinfluencia. “Parece que a esfera da Glitch art está intimamente
ligada às esferas organizadas em torno de ferramentas digitais, plataformas e softwares [...]”. (MENKMAN, 2011, p. 63) (Tradução nossa)
Em 2002, em Oslo, Noruega, surgiu o primeiro evento sobre a Glitch chamado Glitch festival
and symposium. Neste evento, além de palestras sobre o tema, houve também apresentações e exposições de arte.
Os artistas participantes nos três dias do evento foram: Maja Kuzmanovic, Tony (Ant) Scott,
72
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Espen Sommer Eide, Gisle Hannemyr, Grethe Melby, Gisle Frøysland, Andi Freeman, Cecilia Parsberg, Anne Hilde Neset, John Dummett, Toastgirl, Verdensteateret, Jørgen Larsson, Jeff Mann, Motherboard, Per Platou, Amanda Steggell, Staffan Hjalmarsson, Nik Gaffney, Tøyen e Harald Fetveit.
Figura 5. Apresentação durante o Glitch festival and symposium, em 2002,
na cidade de Oslo, Noruega.
Até 2010 existiram outros eventos que de uma forma ou de outra trouxeram artistas Glitch
entre seus participantes e, em 2010, durante os meses de setembro e outubro, aconteceu o primeiro
GLI.TC/H festival em Chicago, EUA. Um evento que trazia para o público performances audiovisuais em tempo real, exibição de vídeos, filmes e jogos com corrupção de dados e arquivos destruídos,
workshops que explicavam como construir ferramentas para criar/gerar glitches, exposição de arte,
instalações, artigos, entre outros. Esses projetos foram apresentados na forma de Glitch art, Software
art, vídeos, filmes, jogos, capturas de tela, websites, instalações, impressos, leituras, artigos, entre outros.
Em 2011, aconteceu sua segunda edição nas cidades de Chicago, EUA; Amsterdã, Holanda e
Birmingham, Inglaterra. Além da exposição de artes, contou com conferências e 100 artistas de 12
países. Em 2012 e 2013 tivemos a terceira e quarta edição do GLI.TC/H festival, somente Chicago,
EUA.
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4. Visualizando erros e ruídos
Figura 6. Frame de vídeo do trailer do GLI.TC/H festival 20111 [sic] durante apresentações
no evento, produzido por Marta Blicharz.
Dentro deste item apresentamos alguns artistas da Glitch art que já conseguiram certo destaque com suas obras. Evidentemente que não seria possível cobrirmos todos estes milhares de artistas,
um campo realmente vasto de criação, além disto extrapolar em muito os objetivos deste nosso trabalho.
Deste modo, focamos nos artistas que possuem propostas atuais do campo da arte visual digital, selecionando os que nos parecem mais interessantes pelo próprio objetivo e de nosso interesse
pela Glitch art e pela estética do erro.
Nosso primeiro nome é Nick Briz. Artista de novas mídias, escritor, pensador, educador e organizador de eventos. É mestre em belas artes focado em filmes, vídeos, novas artes e animação pela
School of the Art Institute of Chicago. Como educador desenvolveu cursos sobre New media art, Internet art e música experimental. Como organizador é co-fundador e coorganizador do festival GLI.
TC/H e também coorganizador do Upgrade! Chicago. Nick já teve trabalhos exibidos em festivais e
galerias ao redor do mundo como o FILE – Festival internacional de linguagem eletrônica, o Sydney
underground film festival, o European media arts festival, entre outros. As principais obras informadas pelo artista são A Charge For Privacy, the Glitch Codec Tutorial, theNewAesthetic.js, entre outros.
A fim de mostrar o quanto esta manifestação artística contemporânea vem crescendo, em
comparação aos dados que Fernandez colocou em sua dissertação, em 2009, atualizamos os dados
fornecidos por ele.
Google
Termo pesquisado
Data
“glitch art”01/05/2009
01/05/2014
Resultados (páginas)
15.800
195.000
Quadro 2. Comparação de retorno do termo “glitch art”, assim entre aspas.
Flickr
Grupo
Data
Participantes Imagens
Glitch Art
05/08/2009
2.698
4.175
05/05/2014 8.30412.228
Figura 7. Frame de vídeo de Briz chamado A New Ecology for the Citizen of a Digital Age.
Quadro 3. Comparação de retorno no grupo Glitch Art.
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O segundo nome é Jeff Donaldson, americano que atua nas artes Glitch com o nome artístico
de Notendo.
Ele produz vídeos, imagens estáticas, áudios, instalações, entre outros, utilizando a linguagem
da estética do erro.
Notendo também é VJ e já expôs suas obras em diversos eventos e países ao redor do mundo
como Espanha, EUA, Brasil, Bélgica, Holanda, entre outros. Suas principais obras são.
[…] videogames preparados, mixers de vídeo preparados, glitch têxteis, série de instalação
Reset Glitch Environment. [...] Donaldson é um artista audiovisual que trabalha com sistemas
de feedback desde o final da década de 1980. No início do novo milênio, Donaldson começou
a aplicar o conceito de feedback para videogames, transformando-os em instrumentos audiovisuais generativos. [...] (DONALDSON, 2013, texto digital) (Tradução nossa)
Figura 9. Frame de GIF animado de Pixelnoizz chamado Mutations.
Rosa Menkman, de Arnhem, Holanda. É artista, teórica, organizadora e curadora de festivais,
mestre em artes, novas mídias e estudo das mídias pela University of Amsterdam, e cursa o doutorado
na KHM em Colônia, Alemanha.
Seu trabalho é focado nos artefatos visuais criados por acidentes nos meios de comunicação
analógicos e digitais, sendo resultado de falhas, compressões e outras formas de ruído. É organizadora
do festival GLI.TC/H e já se apresentou em diversos festivais pelo mundo. Escreveu o artigo Glitch
studies manifesto e o livro The glitch moment/um. Suas principais obras são The collapse of PAL e
Dear mister compression.
Figura 8. Frame de vídeo de Notendo chamado The punch-out! variations.
Pixelnoizz é o nome artístico de David Szauder, de Budapeste, Hungria. Além da arte Glitch,
também se interessa por estruturas generativas, experimentos com design visual interativo, audiovisual, New media art, cinema experimental e ao vivo. Já teve trabalhos expostos em diversos países e
Irresistible patterns e CurlyCode-Screenplay são suas principais obras.
Figura 10. Frame de vídeo de Menkman chamado The Collapse of PAL.
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Tony (Ant) Scott, Ant Scott ou Beflix. Esses são os nomes do artista Glitch que vive e trabalha
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em Bournemouth, Inglaterra. Ant Scott já palestrou, publicou e exibiu diversos trabalhos em inúmeros eventos, festivais, livros e revistas, além de websites. Scott é um dos mais importantes artistas e
um dos pioneiros desta arte, possuindo inúmeras obras importantes para a Glitch art como a serie
Repetitive beats, Skyscrapers e Generatives, só para citar algumas.
Frequentemente utiliza em seu trabalho erros de softwares e de dados para criação de suas imagens
e vídeos. É influenciado por videogames antigos e pelos erros que provoca em seu funcionamento, o
que faz seu trabalho ser nostálgico em alguns momentos.
Scott desenvolveu algumas técnicas bem particulares de criação Glitch, como o Flat panel
luminogram, em que um papel sensível à luz é colocado sobre a tela do computador, assim, imagens
glitch são produzidas diretamente da luz emanada da tela do monitor. O artista também gera imagens
e visualizações de dados da memória do computador, além da introdução de erros nos códigos binários de imagens. Outro modo utilizado por ele é fazendo a transposição e recodificação repetidamente
de informação original em diferentes máquinas, introduzindo erros nos códigos binários de imagens.
No final, suas obras são sempre reconhecidas como produtos de estados de erros.
5. Considerações finais
Este trabalho se propôs a discutir a Glitch art, seu surgimento e suas principais características
estéticas visuais e sua relação com a crescente aplicação da tecnologia e novas mídias nas artes digitais
visuais contemporâneas, mantendo nosso foco de estudo nas questões relacionadas à estética do erro
digital.
Com este artigo pudemos compreender que a Glitch art é um gênero artístico recente, não
organizado, que se interrelaciona por meio da Internet e festivais e que vem crescendo nos últimos
anos.
Verificamos que sua prática e seus interesses são caminho natural e fruto da estética do erro
digital e da aplicação da tecnologia nas artes visuais.
Ainda, que segundo Iman Moradi, existem duas classificações dentro da prática da Glitch art:
o Pure Glitch, onde existe o resultado de um erro não intencional e acidental para a construção da
obra de arte e o Glitch-alike, que é um processo de desenvolvimento consciente e projetado do artista,
onde a estética Glitch é um efeito desejado e artificial.
De forma geral, vimos que ela é um gênero artístico que utiliza a tecnologia para trabalhar
com a computação, corrupção de dados e erros de transmissão e recepção digitais. Que são muitas
vezes o resultado de uma falha de comunicação ou falha de interpretação de um dado digital quando
transferido de um ambiente para outro, além do conteúdo da obra sugerir e transmitir significado por
meio da estética do erro.
Verificamos também que outros conceitos relacionados a esta arte são a fetichização da tecnologia, o “não-desejado”, onde erros indesejados que acontecem no mundo perfeito do digital, devido
seu resultado e falta de função, dão ao Glitch um status único na arte e a “estética retro” onde algumas
obras nos faz lembrar que a comunicação do passado era “imperfeita”.
Outra característica importante é o processo exploratório e experimental que a Glitch art utiliza em suas criações e, ainda, que erros e acidentes, e seu aspecto de incerteza, não devem ser ignorados, nem percebidos como algo negativo, mas sim, compreendidos como uma estética da arte digital.
Como características visuais típicas desta arte vimos que até agora foram classificadas apenas
quatro: fragmentação, repetição, linearidade e complexidade.
Com esses apontamentos finais conseguimos enxergar a possibilidade de propor no futuro,
num trabalho de pesquisa ainda mais profundo, uma ampliação das qualidades estéticas visuais dessa
arte por meio da aplicação dos conceitos da linguagem visual bidimensional.
Enfim, a Glitch art nos mostrou que é a arte da imperfeição, erro e falha e que nós achamos
isso belo por diferentes razões.
Referências
Figura 11. Luminograma de Scott chamado Repetitive beats #6.
78
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Acesso em: 01 mai. 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 67-82, 2014.
81
Notas de Rodapé
1. http://scholar.google.com
2. Traduzimos livremente o termo Glitch-alike para “parecido com o Glitch”, “como o Glitch”.
3. Recyclism é o nome artístico do francês Benjamin Gaulon. Artista, pesquisador, palestrante e diretor do programa de Arte, mídia e tecnologia da Faculdade Parson Paris. Sua pesquisa se concentra sobre os limites e as falhas
das tecnologias da informação e comunicação, obsolescência programada, consumismo e outros.
4. O americano Max Capacity utiliza a estética do erro trabalhando com a tecnologia e mídias defeituosas, como
videogames antigos, aparelhos VHS com mau funcionamento, Circuit bending de eletrônicos e brinquedos, entre
outros. Seu trabalho já apareceu em diversos eventos e publicações.
Melodrama em falso e pedagogia social de Capitu,
de Luiz Fernando Carvalho:
a adaptação de Dom Casmurro para o audiovisual em três lições
Melodrama in false and Capitu´s social pedagogy by Luiz Fernando Carvalho:
The adaptation of Dom Casmurro to the audiovisual in three lessons
Gabriela Kvacek Betella
Recebido em 8 de Maio de 2014.
Aprovado para publicação em 12 de Agosto de 2014.
Professora Assistente do Departamento de Letras Modernas da Universidade Estadual Paulista, câmpus de Assis,
Assis, SP, especialista em relações entre audiovisual, literatura e história. Doutora em Teoria Literária e Literatura
Comparada pela Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.
Resumo
Particularidades estéticas da microssérie de Luiz Fernando Carvalho revelam no Brasil do século XXI a capacidade dos discursos literário e audiovisual de representar singularidades da vida social brasileira do passado, bem
como apontam problemas existenciais do representante de classe que conduz o enredo, provocando reflexões no
presente. O tratamento oferecido à luta de classes pela narrativa machadiana e pela adaptação da Rede Globo, assim como o modo através do qual o drama existencial é exposto, revelam um tipo de recepção entre leitores/espectadores, capazes de rever o passado histórico em tempos que pedem tal revisão, ainda que a série televisiva aposte
forçosamente no anticonvencional. Machado apresentou a tensão entre representação e verdade (bem como entre
produção de emoção e de reflexão) com a transfiguração do pathos de tragédia e a mobilização da figura patriarcal
para o viés melodramático. Embora acrescidas de uma ironia orquestrada pelos elementos cênicos na versão audiovisual, tais soluções machadianas tenderiam a perder a força de desmascaramento dos sujeitos sociais, contudo
a intensificação do melodrama pode evidenciar o que Machado disfarçou com intenções narrativas menos óbvias.
Palavras-chave: Literatura e televisão; Machado de Assis; Dom Casmurro; Luiz Fernando Carvalho.
Palavras-Chave: Literatura e televisão; Machado de Assis; Dom Casmurro; Luiz Fernando Carvalho.
Abstract
Some esthetical particularities of Luiz Fernando Carvalho’s micro-series reveal, in the nineteenth century Brazil,
the capacity of the literary and audiovisual discourse to represent some singularities of the Brazilian social life
from the past, as well as pointing to existential problems of the class representative that leads the plot, instigating
reflections in the present. The treatment offered to the class struggle by the Machadian narrative and by the Rede
Globo’s adaptation, just as the way in which the existential drama is expounded, disclose a kind of reception among
readers/viewers which is capable of reviewing the historical past in times that ask for such a revision, even though
the television series bets on the non-conventional. Machado presented the tension between representation and
truth (as well as between emotion production and reflection) with the transfiguration of the tragic pathos and the
mobilization of the patriarchal figure to the melodramatic bias. Although increased by the irony orchestrated by
the scenic elements, in the audiovisual version such Machadian solutions would be apt to lose their strength to unmask the social subjects; on the other side, the intensification of the melodrama can make evident what Machado
disguised with less obvious narrative intentions.
Keywords: Literature and television, Machado de Assis, Dom Casmurro, Luiz Fernando Carvalho.
82
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1 , p. 67-82, 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 83-94, 2014.
83
E
2008, em meio às homenagens prestadas pelos diferentes meios a Machado de Assis, por ocasião
do centenário de sua morte, a minissérie Capitu destacou-se como uma das realizações mais
ousadas. A concepção de cenário teatral, figurinos com inspiração do barroco ao romântico e
uma linguagem que conseguiu adequar passagens literais do romance à montagem e às interpretações
rebuscadas ainda contaram com uma trilha sonora que pôde misturar clássicos de Giuseppe Verdi a
Jimi Hendrix ao metal de Black Sabbath. Grafismos e elementos visuais como as cartelas de intertítulos para anúncio de capítulos, fotos e filmagens antigas, são outros ingredientes que atravessam a
narrativa visual, muito analisada por trabalhos acadêmicos competentes, que ressaltaram desde as
relações intersemióticas com o romance de Machado de Assis, até o caráter pós-moderno e o diálogo
com o Neobarroco. Mais que um exercício de adaptação e contemporização de um dos mais famosos
romances da literatura nacional, contudo, a série televisiva apresentou uma proposta de revelação do
projeto literário machadiano por meio de uma releitura..
Capitu reafirma aspectos da linguagem e da visão de mundo que se contrapõe sutilmente à
lógica da elite, sem vencê-la, porém deixando a marca da inteligência perturbadora. É possível ver esse
movimento no âmbito da trama, através da ascensão dos representantes das classes sem meios privilegiados de origem – seguida pelo infortúnio que provoca a morte da personagem Escobar, o self-made
man, e a manobra em nome do bom-tom que resulta no afastamento da heroína Capitu, menina
pobre que se torna uma Santiago com o casamento, um meio possível para uma mulher de meados
do século XIX melhorar de vida. Capitu consegue, ao menos por bons anos de sua vida, aquilo que
foi tão desejado por Helena, e ao mesmo tempo impedido para Estela e Eugênia, embora tenha sido
conseguido por Iaiá e Guiomar, para citar algumas das protagonistas machadianas. Se a inteligência e
o cálculo de Capitu e Escobar ameaçam ou não a pose da elite, o que temos é a tentativa de disfarce de
uma desestabilização no romance de Machado de Assis. Já na minissérie de Luiz Fernando Carvalho,
os efeitos estão menos velados: um Bentinho patético, alquebrado, desfeito e fantasmático recompõe
sua história e nos conta delícias e desgraças por meio da encenação de alguns capítulos. De início,
somos apresentados à imagem da degradação através de um sujeito ridicularizado, como se as cenas
devolvessem ao texto uma verdade escondida.
Em momento propício para a sociedade brasileira refletir sobre si mesma, no qual os parâmetros de classe parecem se dissolver, sublimando diferenças que ainda persistem, a adaptação audiovisual reflete sobre o quadro dissecado por Machado no romance. Com essa atitude, revitaliza alguns
dilemas sociais que podem afetar o desenvolvimento nacional e, nesse sentido, toma posição quanto
às exigências da produção cultural, levando em conta o diálogo com novas formas de encenação e
discurso no audiovisual, bem como atende necessidades de discussão sobre tendências estéticas e de
representação, motivando o debate sobre o contexto ao qual se referem as manifestações culturais.
Ainda que as atenções da cultura contemporânea se voltem para crises de identidade e a literatura tenha assumido a questão através da composição de inusitados pontos de vista, ainda é válido
comentar um foco narrativo modelar, expressão de um sujeito ficcional que conhece bem o seu lugar,
se for permitido o trocadilho com a posição social. Se não for demais outra brincadeira, a análise da
adaptação do romance do final do século XIX para a série televisiva dos nossos dias pode ajudar a visualizar uma evolução curiosa de Bento Santiago, que passa de escritor recluso na trama de Machado
de Assis a apresentador em rede nacional na atração global. Examinando as duas formas de encenar
a própria vida, nossa proposta é verificar os diferentes sentidos da exposição do eu, ao mesmo tempo
em que traços do melodrama possam revelar intenções e traições dessa exposição.
A literatura contemporânea desenvolve formas de representação cada vez mais inovadoras,
dispostas a dar conta de complicados processos sociais da atualidade ou de releituras do passado.
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Para tanto, os escritores abandonaram e vêm recusando padrões convencionais, discutindo-os, como
aconteceu com o romance e suas fórmulas usuais até o século XX, entre as quais a essência do folhetim
e a presença do melodrama. Os problemas contemporâneos, afinal, pediam expressões artísticas (em
vários campos além da literatura, como o do audiovisual) livres de clichês, mais “autorais”, almejando
transparecer e estimular uma consciência crítica. A poética contemporânea assimilou uma dimensão
política investindo alto na construção de uma linguagem nova, capaz de desenvolver os temas com
estruturas que não permitem interpretações redutoras e reproduções banalizadas de questões sociais
ligadas, por exemplo, à família, aos gêneros, às classes.
No melodrama tradicional ou na comédia de costumes do século XIX já apareciam algumas
questões sociais, o que certamente continua a acontecer na ficção posterior, incluindo o cinema. Contudo, os novos cineastas de meados do século XX não se satisfaziam com as soluções melodramáticas
e procuravam representar experiências históricas utilizando modelos diferentes, com tendências mais
analíticas - esse cinema, com raras exceções, além de ressaltar a diferença entre cinema popular e
cinema crítico, sentiu muita dificuldade de comunicação com o público, o que levou boa parte dos
realizadores a retornar às fórmulas convencionais e aos esquemas dramáticos tradicionais (XAVIER,
2003, p. 131). Alguns resultados atestam a eficiência de mercado, a competência do formato e do conteúdo, graças à capacidade de certos filmes na denúncia de verdades encobertas, na representação da
realidade de cada país. Guardadas as proporções, a minissérie Capitu investe nas duas frentes, como
se devesse manifestar uma herança que resultasse na linguagem audiovisual nova e ao mesmo tempo
pudesse conservar a essência melodramática que faz boa parte dos brasileiros se recordar do enredo
em que o viúvo supostamente traído rememora sua história de amor.
O discurso de Bento Santiago em Dom Casmurro é permeado de melodrama, disposto a convocar o leitor para compactuar com o sofrimento do filho de Dona Glória. Na minissérie, Luiz Fernando Carvalho mantém o narrador, no entanto mostra a encenação do delírio dele, com requintes
exagerados de cenarização, figurino e interpretação onde cabem as marcações melodramáticas mais
típicas. A realidade é recalcada pela forma nos dois discursos, ou seja, tanto a fala de Bentinho no romance quanto a encenação da minissérie estão capitaneadas por um raciocínio conservador, de classe.
Por isso, é necessário revirar a forma das obras pelo avesso.
Para organizar o mundo em forma de representação, é possível escolher entre o confronto das
contradições, que leva o homem a reconhecer suas responsabilidades sobre ações e efeitos, através do
realismo ou da tragédia, e uma organização mais simples, disposta a evidenciar os projetos humanos
em seus êxitos graças ao mérito e à Providência e em seus fracassos devidos à conspiração exterior,
como faz o melodrama. O narrador de Dom Casmurro escolhe justamente esta segunda via, narrando sua história para isentar-se de culpa e transformar-se em vítima. Machado de Assis aproveita para
confundir o leitor, que imagina conviver com uma forma simples.
Na minissérie, deparamo-nos com a trama um pouco distanciada do melodrama canônico,
pois aparecem traços melodramáticos através dos quais notamos a penetração da ironia na explícita
encenação da ordem instaurada pelo romance. Assim, notamos certos exageros pensados justamente
para debochar da matéria representada ou para se apropriar de um imaginário cuja principal vertente
é o culto da personalidade. Luiz Fernando Carvalho promove uma união frutífera entre o melodrama
(aproveitado do discurso de Bentinho) e os efeitos audiovisuais (da cenografia, da montagem e dos
recursos gráficos, especialmente) para tornar ainda mais claros os excessos de Bentinho e, notoriamente, o grau de invenção (e de mentira, de calúnia) que a teatralidade de sua história atinge. Estão
presentes recursos capazes de qualificar a medida de imaginação, como a maior parte das cenas dispostas no velho teatro abandonado composto para o cenário, configurando o espaço de representação
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e delírio do narrador, que pretende dar à sua história o status operístico. No entanto, as majestosas
cortinas vermelhas, os elementos cenográficos rebuscados e demais recursos que fazem o memorialista recordar a casa materna convivem com elementos típicos do teatro mambembe, com a improvisação dos espaços cênicos à maneira desconstruída, com a simplicidade de cenários desenhados a
giz. Essa simultaneidade que povoa a imaginação de Bentinho pode ser o retrato do enigma que ele
não conseguiu resolver durante a vida toda – não se trata da resposta à pergunta sobre a verdade ou
mentira da traição de Capitu, mas da dúvida sobre a garantia da superioridade de uma classe, no caso,
representada por quem conta a história.
1. Primeira lição: “um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo”
Publicado em 1899, Dom Casmurro conta em 148 capítulos uma história reconstruída por um
homem de classe alta mergulhado em suas memórias após desistir de escrever sobre jurisprudência,
filosofia, política e depois de abandonar a pesquisa para compor uma “História dos Subúrbios”. Ele
supostamente nos revela a sua história a partir do presente de que compartilham a velhice e um final
de século, voltando ao passado da sua infância e adolescência e conduzindo o enredo por meio dos
acontecimentos envolvidos pelo cenário da casa materna, na presença de seus comensais, passando
pelo namoro e o casamento com a vizinha Capitu, a amizade com Escobar, até revelar o ciúme e a suspeita do narrador de ter sido traído pela esposa e pelo amigo. Compõem a trama diversos episódios
monitorados pela primeira pessoa: o nascimento do filho Ezequiel, a morte de Escobar, o afastamento
da esposa, do filho e o desaparecimento de ambos. Ao final da narrativa, voltamos ao presente do
sexagenário solitário, com inúmeros exemplos de narrativa autorreflexiva, em que “o estilo se corrige
a si próprio”, dissecando a expressão, muitas vezes com uma autoironia (STAM: 1981, p. 69) passível
de interpretações diversas que incluem a manipulação da verdade pelo narrador e, noutro extremo, as
especulações sobre o autoengano. De qualquer forma, a presença do narrador é fortemente marcada
pelo seu tom de comentário em todo o livro.
O papel de Bentinho na série Capitu muda de lugar, como se liderasse o coro das personagens
ou anunciasse cada cena. No entanto, ele preserva a função explicativa e condutora. Essencialmente,
a postura do narrador concebido em 1899 e a do corifeu1 forjado em 2008 representam parte de um
comportamento autoritário e conservador, digamos “preso à sua classe e a algumas roupas” e, não
bastasse isso, “sem problema resolvido, sequer colocado”, se é possível torcer os versos de Drummond
para definir a ausência de verdadeira mea-culpa em Bentinho.
Observamos que a trama se inicia em 1899, com o solitário viúvo explicando que o título do
livro que escreve tem origem num apelido seu, dado recentemente por um jovem poeta ofendido com
a soneca do velho enquanto lhe recitava versos durante um curto percurso de trem. A cena é narrada
na abertura do livro e transposta para a microssérie de Luiz Fernando Carvalho com ajustes que valem alguns comentários. O final do primeiro capítulo explica como o apelido vingou sob tolerância do
apelidado, hábil em tirar proveito do que poderia ser humilhante e em perverter o sentido a favor da
manutenção do domínio da situação. Bentinho suaviza o nome de etimologia controversa e se apropria de um novo caráter oferecido pelo alto título honorífico:
No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Cas
murro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e
eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: “Dom Casmurro, domingo vou jantar
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com você.”--”Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renania; vê se deixas
essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo.”--”Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe
camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça.”
Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no
que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me
fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha
narração - se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem
ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá
cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.
(ASSIS, 1992, p. 809)
O casmurro faz questão de hierarquizar suas relações: próximo dele, com o direito de convidá-lo utilizando o epíteto por escrito estão os amigos da cidade, mais distantes são os vizinhos fofoqueiros e muito longe, incapaz de novo contato, está o inventor do apelido, colocado em seu devido
lugar e esvaziado de força crítica. Como se dissesse algo parecido com a expressão-título da canção de
Johnny Alf, “o que vem de baixo não me atinge”, Bentinho manipula o que poderia ser uma afronta
e a transforma em elemento importante dentro das relações de subordinação instauradas em todo o
romance. Esse jogo aparentemente ingênuo traduz uma atitude típica da gente de Bentinho, conforme
parte da crítica machadiana demonstra2. Na verdade, o texto é regido por um movimento consciente,
que minimiza a importância de um acontecimento e manipula o seu significado. Ao contrário do que
se afirma sobre a fúria ciumenta e histérica do narrador, reacesa nesse momento, o motor quizilento
é tremendamente racional. Se, por um lado, a leitura corre o risco de perdoar os excessos do narrador
(incluindo sua verve melodramática ao representar sua realidade), por outro também pode captar a
astúcia da dissimulação no discurso. Nos dois casos, é possível ver força literária. Quanto à capacidade
de reprodução da matéria social, ou seja, de conteúdos repletos de preconceito de classe, de exercício
de poder, de zombaria, vale circunstanciar a leitura para evitar identificações entre a recepção de Machado no início do século XX e no início do século XXI.
Nesse sentido, a proposta renovadora da adaptação teledramatúrgica do romance surpreende,
pois aparentemente se livra da discussão sobre o compromisso ideológico firmado entre os conteúdos
da obra e seus espectadores. Inclui uma linguagem audiovisual capaz de mesclar elementos novecentistas e contemporâneos, dialoga com vários gêneros teatrais (desde os mais elitizados como a ópera,
até os mais populares como o melodrama, a farsa, teatro de bonecos, mambembe, etc.), com o cinema
antigo e recente, pontua cenas com referências atemporais e escolhe uma trilha sonora que, embora
não tenha sido composta para a série, apresenta alguns momentos de interesse, como a canção-tema
da personagem Capitu3, cuja melodia reaproveita ritmos da Europa Oriental, como uma espécie de
empréstimo de acordes típicos de canções ciganas, especialmente vindos de instrumentos específicos,
uma luva para a personagem-título da série, descrita como “cigana oblíqua e dissimulada” na definição consagrada por José Dias, o agregado que se esforça talvez ainda mais que Bentinho na manutenção de certa ordem familiar. Curiosamente, tanto a definição quanto a insistência em reforçar características enganadoras da menina de Matacavalos esconde um tipo de manifestação preconceituosa
que atravessou os tempos, o livro e os espaços. Portanto, a canção que se tornou tema promocional da
série corre o risco de sedimentar uma hostilidade étnica – Capitu era quase uma cigana – que cresce
quando entra em cena a jovem atriz Letícia Persiles, com seus grandes e derramados olhos verdes.
A ambientação das primeiras cenas de Capitu na microssérie, por sinal, reflete bastante a cenarização e figurinos de certos filmes de Emir Kusturica, especialmente Underground4, mentiras de
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guerra (Podzemlje, 1995) e as cenas do casamento, sobretudo a atmosfera de sonho em que se movem
os personagens, ainda que sob uma farsa. A dimensão cigana também vem emprestada de alguns
momentos de Vida cigana (Dom za vesanje, Emir Kusturica, 1988), longa-metragem cuja origem é
a série televisiva de cinco horas de duração. A trama desta produção, assim como a de Bentinho, é
uma espécie de “formação às avessas” e uma das cenas marcantes é o sonho do jovem protagonista, de
forte conotação sexual, que envolve dois adolescentes durante uma celebração tradicional. Além das
imagens tocantes, a música penetrante da trilha sonora composta por Goran Bregovic – que compôs
para Underground – também nos dá uma impressão de influência indireta, pois o músico bósnio está
muito presente na fase inicial do grupo Beirut, quando Elephant gun é composta.
O primeiro capítulo do seriado transforma o encontro entre Bento Santiago e um poeta de
trem numa manifestação revoltada do moço que não tem a atenção do vizinho de assento no vagão
de subúrbio. A alcunha aqui é pronunciada em tom desafiador e ofensivo, com gestos exagerados de
manifestante. Na nova versão, o confronto de gerações é ousadamente mais explícito que no romance.
Há uma operação curiosa envolvendo forma de narrar e conteúdo de significados: o casmurro continua apático e o rapaz verborrágico, no entanto este passa de subordinado pelo discurso de Bentinho
a insolente, desrespeitador dos mais velhos, revoltado com a falta de consideração... O registro audiovisual dá voz e gesto a quem não pôde responder ao casmurro livresco, colocando o protagonista em
situação vexatória real e, por que não dizer, situando-o em novos tempos em que seu domínio parece
menor. A adaptação relê Machado e mantém a arrogância de Bentinho, mas arrisca uma vingança sobre o protagonista no resultado da recepção produtiva, enfiando o velho senhor num decrépito trem
de subúrbio a ouvir insolências.
No romance, quando nos conta sobre seus hábitos antigos e explica suas intenções de memorialista, através de um capítulo (o segundo) cujo final retrocede o tempo para a década de 1850, ao
início da história de amor do protagonista, há índices reveladores do presente recluso, abastado, nostálgico e cheio de fantasmas. Ao confessar seu propósito de “atar as duas pontas da vida, e restaurar na
velhice a adolescência” e o fracasso da tarefa, o narrador não esconde o tédio, disfarce perfeito para o
incômodo das lembranças. Por isso dá voltas até dizer-nos que está disposto a escrever suas memórias.
A leitura do fragmento pode despertar nossa piedade (pela perturbação disfarçada de tédio)
ou, no mínimo, é capaz de produzir no leitor a cumplicidade necessária para o efeito da narrativa em
primeira pessoa, em parte devido à proximidade entre seres humanos vulneráveis que todos somos.
Há consequências medidas pela extensão objetiva atingida pelas justificativas, pelos desvios e pela
presunçosa visão subjetiva do narrador. Bentinho não quer desfazer as impressões do passado, quer
refazê-las, então subverte as lembranças e nos convence de que a sinceridade guia sua pena. Inspirado
pela presença esfíngica dos bustos de figuras do passado greco-romano5, Bento Santiago toma coragem
e admite deixar a pena deslizar as reminiscências, abrindo mão do ofício de historiador em favor do
memorialista. Quando o leitor se dá conta, percebe que o efeito conseguido por Machado é quase
holográfico: no fundo, a subjetivação do ponto de vista promove o esclarecimento objetivo do leitor.
Bentinho revela seu apego ao passado, sua vontade de expor episódios constrangedores, sua autocomiseração, sua falsa modéstia, sua displicência na escrita e seu desprezo pela intelectualidade, e ao
mesmo tempo menciona que havia desejado restaurar sua adolescência, portanto, desejara reescrever
a própria vida, refazer o caminho, repetir o passado. Como confiar plenamente numa narrativa como
essa, que não faz o mea-culpa e se utiliza de gestos confessionais para driblar a falta de arrependimento6? O narrador parece demonstrar a serenidade dos velhos que desejam compartilhar sua experiência
igualando-se aos seus leitores, porém vai tecendo a mais genuína manifestação de ego desmedido e de
imenso egoísmo.
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Contudo, podemos aprender algo com este senhor? No âmbito da forma literária, talvez sim,
se pudermos notar os procedimentos melodramáticos a contaminar o discurso, recalcando a realidade, enquanto se arma uma “tragédia sem sangue” e se enfatiza a boa fé do narrador e seu heroísmo
sobrevivente. A revelação das verdades é responsabilidade da leitura, que precisa perceber o giro em
falso e imaginar a engrenagem. De certo modo, esta é a proposta da microssérie da Rede Globo enquanto leitura do romance.
Mesmo que se divirta com a nova versão de Bentinho decrépito e possa se vingar com essa
visão, o espectador ainda deve repensar as intenções de um sujeito que expõe suas lembranças em
forma de representação operística. É possível acreditar na encenação de um delírio (corroborado pela
postura do protagonista, encarnado por Michel Melamed à maneira de um Dom Quixote pós-moderno7) como busca da verdade. Se pensamos no confinamento espacial8 e no controle de marcação
teatral, podemos concluir que há uma transposição visual do caráter restrito do ponto de vista e dos
acontecimentos. Se Bentinho continua casmurro nesta adaptação, sua reclusão é traduzida aqui pela
exposição dos limites de sua competência, notoriamente reduzidos a um velho teatro. Se a escolha do
cenário decadente traz problemas para o tom da narrativa que, originalmente, reconstitui um passado
redentor, por outro lado, a degradação do espaço refere-se à velhice e ao ensimesmamento do narrador, que não contempla, em momento algum, qualquer coisa fora dos seus domínios carcomidos.
Aqui o audiovisual encontra uma transposição ajustada, por conter uma nota crítica, embora as cenas
de rua percam um pouco o sentido. No entanto, elas se compõem na minissérie através de objetos de
cena e cenários notoriamente ambientados como teatro de rua ou espetáculo improvisado, mantendo
o caráter artificial e arranjado, como se pudessem mostrar o que acontece fora dos domínios do narrador como uma encenação produzida pelo seu delírio, interpretada pelas mesmas personagens que
encenam na casa. A rua se mantém, desse modo, como uma continuidade da casa.
2. Segunda lição: o disfarce da cena objetiva para as atrocidades subjetivas
A partir do terceiro capítulo do livro, a ação do romance se desloca para o passado e para Matacavalos, espaço da infância e adolescência de Bentinho. Sob o comando do narrador memorialista e
somente através de sua recordação, de seu discurso e seleção de cenas, como acontece nos romances
desse gênero, passamos a saber o que se passou na casa de Dona Glória. Essa perspectiva parcial foi
uma escolha acertada de Machado de Assis, pois ela sustenta a ambiguidade que perpassa o livro todo.
A transposição para o audiovisual manteve o narrador na condução dos fatos, muito embora tenha
perdido algo da ambiguidade, preço pago pelo showing, já que o ponto de vista de Bentinho é deslocado para a posição de corifeu, enquanto os fatos aparecem objetivamente. A série televisiva representa
não somente um modo reconfortante escolhido pelo narrador como comparação ao andamento de
sua vida (“a vida é uma ópera”, ele repete com veemência), mas também espelha o domínio sobre os fatos e suas marcações oferecidos ao espectador. Assim, o grau de subjetividade consagrado pelo modo
machadiano em Dom Casmurro9 pode ser “desmascarado” se prestamos atenção em algumas cenas de
Capitu nas quais a adaptação mostra seu caráter de recepção produtiva. Não se pode esquecer de que
além de escrever suas memórias o narrador concebido por Luiz Fernando Carvalho encena, monta e
atua de acordo com o seu interesse.
O ângulo limitado de visão como efeito nefasto da subjetividade do romance se mantém na
série televisiva no sentido de deixar claro que o narrador/condutor não pode relativizar as posições
das personagens da sua história, incluindo o seu posto de marido traído. Caso pudesse relativizar,
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Bentinho enxergaria erros, maldade e corrupção de valores nos outros e nele mesmo. Por isso prefere
o espírito nostálgico e conservador, sem interesse pelo “mundo lá fora”, ou pelas modificações que a
vida lhe oferece. Esse narrador mostra, no presente de sua narrativa (e de seu espetáculo encenado)
que não mudou. Portanto, o Bento do Engenho Novo já existia no Bentinho de Matacavalos – coisa
que o narrador não admite e muito menos lamenta, ao contrário do que faz quanto a equação é parametrizada por Capitu. Algumas atitudes do menino permanecem no adulto que reconstrói a casa da
mãe e no condutor das cenas, ambos dispostos a “atar as duas pontas” e a se bater para chegar ao sentido da vida, tentando conciliar a alegria do passado vivido e a melancolia do presente num momento
derradeiro, a proximidade da morte.
Contudo, é no viés de seus próprios métodos operísticos que descobrimos o mapeamento de
atitudes, com dramatizações eficientes na série. Vale a pena destacar a sequência correspondente aos
capítulos III, IV e V do romance, em que o agregado José Dias confabula com Dona Glória a respeito
do namorico de Bentinho e Capitu. A tradução da “denúncia” é quase literal, assim como a descrição
da entrada de José Dias na vida da família. O que nos parece importante nas cenas é a inserção do
círculo familiar obedecendo a um balé coreografado de acordo com as falas das personagens, respeitando a influência momentânea de cada um sobre “a patriarca de saias”10.
Cada membro desse pequeno sistema organizado ao redor do poder dá sua fala ao mesmo
tempo em que utiliza o genuflexório trazido para a devota Dona Glória. Assim, revezam-se de acordo
com a importância de suas opiniões para a avaliação dela, reproduzindo os círculos da parentela sutilmente definidos no romance, especialmente ao longo da primeira parte do livro. O dinamismo do
balé encenado na série de Luiz Fernando Carvalho traduz a competição dos membros pela atenção do
centro do poder, além de acrescentar o efeito visual necessário para refletir a bajulação e a sustentação
da estrutura.
O corifeu mantém-se destacado da representação e nenhum comentário acerca da hierarquia
aparece. A objetividade dos gestos e a permanência dos “fiéis” em devoção à “santa Glória” dizem
tudo. A cena pode atestar que sutilezas objetivas do narrador machadiano podem existir e se manifestar em favor de uma leitura que acredita nele – com algumas restrições, contudo. Vale dizer que o
excesso de precaução com o narrador/corifeu pode mascarar forças representativas importantes.
Uma conclusão mais simplória finalizaria o tópico comparando o casmurro do romance de
Machado a um bacharel bem nascido, calculista e obcecado pela reputação, enquanto o casmurro da
série de Luiz Fernando Carvalho não passaria de um ser meio fantasmático, atemporal, preso a uma
espécie de transe provocado pela eterna perturbação da traição, que só pode ser contada em delírio. O
narrador de Machado revive o passado num tempo em que acredita convencer seu leitor da integridade de sua história. O narrador de Capitu precisa chamar mais a atenção, então oferece o “espetáculo”
de suas lembranças, sabendo que seus recortes partem de um ponto de vista restrito.
De qualquer modo, Bentinho escreve o livro para entender o que viveu, talvez para tentar
explicar porque sua vida deu nisso. Então se fecha no mundo das recordações, pois o passado parece
mais interessante que o presente. Parte para conhecer o sentido da vida, mas não é capaz de dar nem
ouvir conselhos em nenhum momento da jornada. Só consulta os próprios sentimentos – e talvez não
tivesse mesmo com quem contar. Talvez por isso o resultado é extremamente duvidoso. Bentinho não
nos conta tudo, ele arma uma narrativa para justificar a sua vida. Nas palavras de Roberto Schwarz
(1997), estamos diante de um narrador cheio de credenciais, mas privado de credibilidade. Por motivos justificados pela sua própria formação de rapaz instruído e bom filho, é um personagem pouco
exemplar, cuja experiência só ensina de modo contrário. Não ensina como devemos ser e agir, mas
como não devemos ser. Ele termina o livro sem sabermos se a melancolia que motivou a escrita era
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verdadeira ou se foi fruto da imaginação exacerbada, assim como chegamos ao final de Capitu desconfiando da verossimilhança do espetáculo anunciado pelo corifeu.
O leitor moderno não se espelha nos heróis do romance como poderia se espelhar nos heróis
épicos que eram exemplares ainda que errassem, já que os deuses justificavam tudo. Os heróis de
romance, dos quais Bentinho é um dos mais representativos, encarnam a experiência da desilusão, e
mostram em que não devemos nos mirar, como não devemos ser e, talvez por isso, mostram como
nós somos. Com Bento Santiago, a situação é bem particular: o representante da classe privilegiada
pode ser desmascarado, pois
(...) os excelentes recursos vinculados a Bento Santiago não representam uma contribuição
a mais para a civilização do país, e sim, ousadamente, a cobertura cultural da opressão de
classe. Longe de ser a solução, o refinamento intelectual da elite passa a ser uma face – com
aspectos diversos, positivos e negativos – da configuração social que o romance saudosamente
relembra, ou desencantadamente põe a nu. (SCHWARZ, 1997, p. 13)
Na leitura de Luiz Fernando Carvalho, parte-se do princípio de que uma decadente figura do
século XIX tem imaginação suficiente para reviver o passado em grande estilo. O espetáculo-narrativa
(ou delírio) idealiza pessoas e acontecimentos, porém deixa marcas mais evidentes (na cenografia e
nos figurinos, especialmente) da parcialidade da narrativa e do caráter das personagens. Não por acaso, Bento aparece nas últimas cenas recoberto por elementos de outras personagens: brincos de Dona
Glória, maquiagem e roupas de Capitu, cavanhaque de Escobar, terço de prima Justina – roupas, adornos, adereços e caracterização alheios exteriorizam a falta de si mesmo, conforme o próprio narrador
adiantara nas cenas iniciais.
3. Terceira lição: As divisões de um livro e as posições de Capitu
Examinando o andamento da narrativa de Bentinho, poderíamos dividi-la em duas partes
bastante assimétricas, se tivermos por referência a quantidade de capítulos e a velocidade da ação.
Assim, a primeira parte do romance vai do início ao centésimo primeiro capítulo, mais precisamente
da justificativa do livro até o casamento de Bento e Capitu. Trata-se de um bloco movido pela ação
intensa, são muitos acontecimentos, não obstante tomar dois terços da narração. A segunda parte,
correspondente ao último terço, é marcada pela lentidão da ação e por certa monotonia resultante de
um movimento narrativo mais introspectivo, ruminante de sentimentos.
A primeira parte poderia ser confundida facilmente com uma “crônica de saudades” ou mesmo com um fragmento de romance de formação. Na segunda parte, o narrador parece tender para o
melodrama e aguçar os sentidos da pedagogia desta. Para isso, manipula os fatos e, consequentemente, interfere na recepção deles pelos leitores, aproveitando-se da flexibilidade da forma narrativa escolhida e do imaginário capaz de corporificar valores, explicações, subentendidos. O tão mencionado
processo instaurado pelo narrador contra sua falecida esposa11 toma corpo nesse segundo movimento
do livro, no qual o conflito aparece sem nuances, embora catalisado pelo ciúme: o conluio de Capitu
e Escobar é o mal que transforma a vida de Bentinho, que representa o bem.
É bom ressaltar, sempre que necessário, o fato de estarmos diante de uma narrativa armada
e tecida por Bento Santiago, responsabilidades das quais o autor Machado de Assis se livra, graças às
artimanhas do foco narrativo em primeira pessoa. Assim, enquanto o narrador reorganiza seu mundo de forma relativamente simples, confessando que seu projeto de história de amor não se concluiu,
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apontando a conspiração da esposa e do melhor amigo, da qual sai vítima e não pode evitar as consequências, o autor expõe cada vez mais o absurdo sobre o qual a narrativa se constrói e se empenha em
provar. Enquanto Bentinho aposta na pedagogia do melodrama e na identificação com os sentimentos
do indivíduo, Machado transcreve a hipocrisia de uma ordem social que insistia em sobreviver.
Tais associações tornam-se mais instigantes quando lembramos que a primeira parte da narrativa de Bentinho representa a força da memória de juventude como variante da procura do “eu”, típica
das narrativas em primeira pessoa (memórias, diários, epistolografia) cujo propósito é apresentar
experiências dos anos de formação para associá-los de algum modo à maturidade, época em que se
narra - e na qual se procura algo. O motor é, portanto, uma espécie de busca interior cujo percurso
refaz o tempo da existência do indivíduo ou, pelo menos, uma parte significativa dessa existência, ou
do passado. Além disso, os acontecimentos cobrem uma história de amor de infância que se realiza
após vencer obstáculos práticos, religiosos (que são expostos de modo minucioso pela narrativa) e de
classe (que não estão explícitos, embora apareçam em capítulos memoráveis que envolvem situações
externas ao casal).
A leitura da segunda parte será visivelmente influenciada pela recepção do primeiro bloco, em
que o gracioso namoro acontece em meio à ameaça da separação. Instaurado o conflito básico do seu
melodrama, Bentinho pode abusar nas manifestações de ciúme, preconceito, amargura e rancor, pois
o tom fora de época (porém ainda válido) dá cor à sua narrativa. Bentinho é um homem da geração
romântica – tem 15 anos em 1857. Com seu mundo desabado em pleno 1899, às portas de um novo
século que deverá impor a condição problemática para o ser humano e para os narradores em geral,
o filho de dona Glória recorre aos seus velhos conhecidos parâmetros melodramáticos para oferecer
à própria vida (ou a parte dela) uma solidez no resultado do balanço da velhice.
Em Capitu, há correspondência na proporção de capítulos e cenas que tomam a infância e
juventude de Bentinho em relação à representação da maturidade. Há também efetivo empenho melodramático e mais atenção ao discurso nos primeiros capítulos. À medida que o espectador fica mais
exposto à “poesia envenenada” do narrador, também é capaz de desvendar o caráter patético que se
intensifica ao longo dos cinco capítulos da série. Na transposição para o audiovisual, a atitude de desprezo pelas qualidades do tempo (a iniciativa, a independência, o arrivismo) sustentada por Bentinho
é mostrada de modo mais didático, embora seja contaminada em diversos momentos pelas intenções
de minar a empáfia do narrador com o excesso de recursos dramáticos e melodramáticos.
O representante da classe abastada conduz as cenas da minissérie exasperando-se no drama
existencial e, embora disfarce os aspectos de luta de classes, a produção conta com os elementos melodramáticos para denunciar a postura caprichosa do narrador e a condescendência de sua formação. O
melodrama, que girava em falso na narrativa de Dom Casmurro, com o narrador posto em situação, à
maneira de Henry James (SCHWARZ, 1997, p. 12), é executado com primor na encenação de Capitu.
A minissérie reforça a memória do cerne melodramático – a suspeita da traição, a angústia da não-solução do enigma – e a espetacularizam, enquanto dexa em segundo plano a agudeza de crítica ao
comportamento brasileiro hábil em transformar menosprezo em culto à honra.
Contudo, a contemporaneidade traz aos pontos de vista literários algo que Bentinho jamais
poderia ter: a expressão da frustração com a própria vida “madura”, seja por causa da invasão das
lembranças perturbadoras do passado, seja pela presença cortante dos fatos insolúveis e desafiadores
(individuais e sociais) do presente. Essa concepção de voz narrativa, presente na poesia de um Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, não vem explicitada na fala em primeira pessoa criada
por Machado de Assis (o que inviabilizaria seu projeto de desmascaramento e ridicularização do
narrador, além de colocá-lo em sintonia com o leitor, provocando neste certa solidariedade) nem na
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adaptação de Luiz Fernando Carvalho, porém vem sinalizada na minissérie, através dos traços de decadência física e material, do isolamento da trama sob um cenário irreal e do diálogo com elementos
cênicos do século XXI.
Referências
AGUIAR, Joaquim Alves de. Sob as ordens de mamãe: aspectos da pedagogia doméstica em Dom
Casmurro. In: BOSI, Viviana et al (orgs.). Ficções: leitores e leituras. Cotia: Ateliê, 2001, p. 151-173.
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992, v. 1.
BETELLA, Gabriela Kvacek. Narradores de Machado de Assis. A seriedade enganosa dos cadernos do
conselheiro (Esaú e Jacó e Memorial de Aires) e a a simulada displicência das crônicas (Bons dias! e A
semana). São Paulo: Edusp/Nankin, 2007.
BROOKS, Peter. The Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James, Melodrama and the Mode of
Excess. New Haven: Yale University Press, 1995.
CAPITU. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Rio de Janeiro: Globo Marcas, 2009.
2 DVDs.
GLEDSON, John. Machado de Assis: Impostura e realismo. Trad. Fernando Py. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
SCHWARZ, Roberto. A poesia envenenada de Dom Casmurro. In: _____. Duas meninas. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997, p. 7-41.
STAM, Robert. O espetáculo interrompido. Literatura e cinema de desmistificação. Trad. José Eduardo Moretzsohn. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
XAVIER, Ismail. Melodrama ou a sedução da moral negociada / Cinema político e gêneros
tradicionais:a força e os limites da matriz melodramática. In: _____. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 85-99 e 129-141.
Notas de Rodapé
1. No século VI a.C., na Grécia, surge o primeiro ator quando o corifeu Téspis destaca-se do coro e, avançando até
a frente do palco, declara estar representando o deus Dionísio. O personagem mostrado na série televisiva assume
a postura do que teria sido o primeiro passo para o teatro como o conhecemos hoje.
2. Na conferência de abertura da Feira Literária de Paraty de 2008, cuja edição homenageava Machado de Assis,
Roberto Schwarz analisou o episódio que abre Dom Casmurro, ressaltando aspectos e seguindo orientação bastante coerente com a leitura desenvolvida pelo crítico desde o final dos anos de 1980, e que também nos influencia
neste trabalho principalmente através do ensaio capital sobre Dom Casmurro (SCHWARZ, 1997).
3. A canção do gênero indie folk é Elephant Gun, do grupo norte-americano Beirut, cujo líder, Zachary Francis
Condon, ou simplesmente Zach Condon, é autor de todas as faixas gravadas no EP (Extended Play) Elephant
Gun, de 2007. Natural do estado do Novo México, nos EUA, Condon aprendeu a tocar vários instrumentos, entre
os quais o acordeão, o ukelele, o trompete e o bandolim, presenças obrigatórias em certas melodias folclóricas, especialmente da música cigana. O álbum Gulag orkestar (2006) é declaradamente resultado das influências que o
líder do grupo teria recebido dos filmes de Federico Fellini, dos metais tocados em funerais sicilianos e da música
dos Bálcãs, sobretudo de Goran Bregovic.
4. Além dos três filmes de Kusturica cuja trilha foi assinada por Bregovic, o músico bósnio compôs para muitos
filmes, mas entre os mais conhecidos no Brasil estão Kika (Pedro Almodóvar, 1993), A rainha Margot (La reine
Margot, Patrice Chéreau, 1994) e Trem da vida (Train de vie, Radu Mihaileanu, 1998).
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5. John Gledson analisa a passagem de modo interessante, investigando a história das figuras retratadas nos bustos
(Cesar, Augusto, Nero e Massinissa), aceitando o registro como uma espécie de fonte para a composição de Dom
Casmurro, especialmente no tocante ao que se passou por volta de 203 a.C., após o casamento do poderoso Massinissa com Sofonisba, cartaginesa e mulher do rei Sifax, derrotado pelos romanos, aos quais se aliava Massinissa.
Temendo a influência da bela mulher sobre o aliado, o general Cipião convenceu Massinissa a se arrepender do ato
precipitado e matar Sofonisba. Assim, o preço da aliança com Roma, bem como o custo da manutenção da confiança é a renúncia ao elemento ameaçador, a mulher, e é a perda da liberdade. Para Gledson, Bentinho também
presta contas para os valores de sua classe, à qual se apega tanto (GLEDSON, 1991, p. 136-140). Vale lembrar que
Bentinho não decifra os bustos na sua parede, porque isso inviabilizaria a construção do ponto de vista ingênuo
que empreende. Do modo análogo, a relação que o narrador quer estabelecer entre a sua vida e a peça Otelo permanece como uma leitura em benefício próprio, distorcida e incompleta.
6. Veja-se a seguinte frase do capítulo II: “A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um
desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá.” (ASSIS, 1992, p. 809) A confissão do receio em mostrar
que sua casa da velhice reproduz a casa de Dona Glória é legítima, porém a vexação assume mais de um sentido.
7. À parte da interpretação overacting do jovem ator, a postura de homem fraco, esquálido, de voz enrouquecida
se contrapõe às descrições de Bentinho de seus hábitos à altura de suas seis décadas bem vividas, “comendo e dormindo bem”.
8. A microssérie é encenada num ambiente que reproduz um teatro abandonado, repetindo de certa forma a
solução cenográfica de Hoje é dia de Maria (Luiz Fernando Carvalho, 2005), em que a história se passava numa
redoma visível, semelhante às miniaturas natalinas cobertas pelo vidro circular.
9. Machado apurou este modo de narrar em três romances escritos após 1880: Memórias Póstumas de Brás Cubas
(1880), Dom Casmurro (1899), Memorial de Aires (1908). A utilização da primeira pessoa empresta o prestígio
alcançado pela narrativa memorialística durante os séculos XVIII e XIX. Com onisciência limitada, a narrativa
em primeira pessoa traz, por outro lado, forte impressão de veracidade, graças ao fundamento de revelação, ao
ato confessional a que o narrador se submete, desfiando sua vida e, normalmente, tentando aproximar os acontecimentos da vida de seus leitores. Temos a sensação de que o que acontece com o memorialista poderia ter acontecido conosco.
10. A expressão é de Joaquim Aguiar, mencionada em aula de Introdução aos Estudos Literários na FFLCH-USP,
em 1991.
11. Vale lembrar que John Gledson ressalta o fato de Bentinho ser advogado, o que lhe dá elementos preciosos para
fundamentar a narrativa como um processo de acusação (GLEDSON, 1991, p. 83).
Integração do mapa cognitivo e poema dos desejos:
Aplicação ao lugar “Ilha dos Mineiros”
Integration of cognitive map and wish poem:
Application to the place “Ilha dos Mineiros”
Denise Santos Crespo Ferreira* & Francisco Renato V. da Costa Ferreira*
* Arquiteta, Especialista em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional, e Mestranda de Arquitetura e Urbanismo,
pela Universidade Federal Fluminense, UFF, Niterói, RJ, Brasil. Área de pesquisa específica dentro das artes: Desenho. Neste trabalho, foi responsável pela Pesquisa Etnográfica de Campo, Avaliação Pós-Ocupação, Mapa Cognitivo
e Poema dos Desejos.
** Economista, Especialista em Gestão em Logística Portuária e Especialista em Meio Ambiente e Desenvolvimento
Regional. Pesquisador da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, UENF, Campos dos Goytacazes, Goyatacazes, RJ, Brasil. Grupo de pesquisa. Área de pesquisa: Ciências Sociais Aplicadas/Planejamento Urbano
e Regional. Neste trabalho, foi responsável pela “estruturação” deste, pela elaboração da Matriz de Integração do
Olhado e pela obtenção dos Graus de Compreensão, de Satisfação, de Expectativa e da Integração de Compreensão,
Satisfação e Expectativa.
Resumo
Procura-se integrar a arte, a técnica e a ciência, na perspectiva dialógica de uma realidade concreta de pequena escala: o bairro “Ilha dos Mineiros”.
O objetivo deste trabalho é compreender como é que a gente desse bairro olha a sua casa, a sua vizinhança e o seu habitat. A metodologia usada
serve-se fundamentalmente de duas ferramentas teóricas da Avaliação Pós-Ocupação na Pesquisa Etnográfica de Campo: o Mapa Cognitivo, com
o Grau de Compreensão dessa gente relativamente à sua própria realidade; e o “Poema” dos Desejos, com o Grau de Satisfação dessa gente relativamente a essa realidade, e o Grau de Expectativa deles relativamente a uma realidade melhor para eles. Para compreender e obter sistemicamente
esses três tipos de graus assim como o Grau da Integração de Compreensão, Satisfação e Expectativa, criou-se uma Matriz de Integração do Olhado.
Palavras-chave: Avaliação Pós-Ocupação; Pesquisa Etnográfica de Campo; Mapa Cognitivo; Poema dos Desejos; Grau de Compreensão; Grau de
Satisfação; Grau de Expectativa; Grau da Integração de Compreensão; Satisfação e Expectativa; Matriz de Integração do Olhado.
Abstract
This work seeks to integrate art, technology and science, in a dialogical perspective of a small-scale concrete reality: the burgh “Ilha dos
Mineiros”. The objective of this work is to understand how the people of that burgh look at their own home, neighborhood and habitat. The
Recebido em 12 de Maio de 2014.
Aprovado para publicação em 15 de Setembro de 2014.
methodology used utilizes fundamentally two theoretical tools of the Post-Occupancy Evaluation in the Ethnographic Field Research: the
Cognitive Map, with the Grade of Understanding; and the Wish “Poem”, with the Grade of Satisfaction of that people with respect to their
own reality and the Grade of Expectation of them with respect to a better reality for them. In order to understand and get systemically
those three types of grades as well as the Grade of Integration of Understanding, Satisfaction and Expectation, it was created a Matrix of
Integration of the Looked.
Keywords: Post-Occupancy Evaluation; Ethnographic Field Research; Cognitive Map; Which Poem. Grade of Understanding; Grade of
Satisfaction. Grade of Expectation; Grade of Integration Understanding, Satisfaction and Expectation; Matrix of Integration of the Looked.
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Introdução
L
imena (2001, p.42, grifos do autor) afirma que deve-se “[...] pensar a cidade do futuro não a
partir de perspectivas dualistas, mas colocando em relação dialógica a sensibilidade artística e a
racionalidade técnica.”
Este trabalho é uma apropriação de instrumental teórico-conceitual da ciência, com o propósito de abordar criticamente uma paisagem cultural vigente num bairro chamado Ilha dos Mineiros. E
aponta para a fundamentação de ações políticas democráticas, transparentes e efetivas de uma “nova”
paisagem cultural na anteriormente existente (mas ainda latente) “velha” paisagem natural.
Porém, essa apropriação científica não significa aqui mencionar - nem tampouco aprofundar
e criticar - quer a discussão da relação entre os conceitos paisagem e ambiente, quer as origens destes
e sua integração no pensamento filosófico e científico, quer a relação deles com outros conceitos ou
categorias espaciais.
Essa apropriação científica significa tão somente olhar de outra forma um lugar que existe no
mundo. Um olhar que capte “um novo fenômeno da paisagem urbana: a combinação de cityscape e
landscape que deve se traduzir por um vocabulário capaz de descrever os fenômenos que circunscrevem
novas situações híbridas.” (LIMENA, 2001, p.40, grifos nossos)
Essa apropriação científica e hibridismo dos fenômenos urbanos emergem dialeticamente da
dicotomia de uma paisagemnambiente de muitos e variados lugares e olhares, e transformam essa
dicotomia nestas duas tríades complexas ordenadas recursivamente:
...espaço casa n espaço bairro n espaço habitat...
...espaço físico n espaço olhado n espaço vivido...
Neste trabalho, procura-se, inicialmente, destacar ferramentas teórico-práticas que possam
contribuir para a avaliação do desempenho desse espaço duplamente triádico, apresentando algumas
teorias sobre elas. Para, posteriormente, integrá-las num lugar que existe, com identidade, pensamentos e comportamentos próprios, à escala de bairro de pequena localidade do litoral brasileiro. Um lugar que interage num ambiente peculiar, em constante mutação intrínseca e extrínseca, de velocidades
e ritmos, distintos ao olhar (ou não).
Nesse lugar, a paisagem natural em si mesma é um processo de autotransformação que afeta
as velocidades e os ritmos desse lugar. Enquanto, vai sendo transformada em paisagem cultural - pela
ação humana, local ou não, espontânea ou não, que também afeta as próprias velocidades e os próprios ritmos desta.
Acredita-se neste trabalho que nessa transformação:
“A arte, a técnica e a ciência, em perspectiva dialógica, podem contribuir para a constituição
de procedimentos mentais capazes de apontar a emergência de modelos da realidade urbana,
visando a restituir formas de sociabilidade pautadas pela apropriação e fruição de espaços e
temporalidades múltiplas e reafirmando o direito à cidade como apelo, como exigência [...]”
(LIMENA, 2001, p.43, grifos nossos)
Por isso, este trabalho procura integrar a arte, a técnica e a ciência, na perspectiva dialógica de
uma realidade concreta de pequena escala: o bairro “Ilha dos Mineiros” (IM). Tentando compreender
como é que a população desse bairro olha a sua casa, a sua vizinhança e o seu habitat.
Usando uma metodologia que se serve fundamentalmente de: duas ferramentas teóricas da
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Avaliação Pós-Ocupação (APO), na Pesquisa Etnográfica de Campo (PEC); e de uma Matriz de Integração do Olhado (MIO), na determinação, para a gente local, do Grau de Compreensão (GC), do
Grau de Satisfação (GS), do Grau de Expectativa (GE) e do Grau da Integração de Compreensão,
Satisfação e Expectativa (GICSE).
Neste trabalho, para além desta introdução, o item 2 mostra duas das ferramentas da metodologia APO aplicadas à PEC, escolhidas a partir de aulas e de indicação bibliográfica de disciplina de
programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo de uma universidade brasileira. Enquanto
que o item 3 destaca a sistematização e a integração dos dados obtidos através dessas duas ferramentas
teóricas para compreender um lugar chamado “Ilha dos Mineiros” através de uma MIO. Finalmente,
o item 4 trata das considerações finais deste trabalho apresentando a conclusão de parte de pesquisa
etnográfica de campo feita recentemente por um dos autores.
Lembrando que: “[...] uma nova forma de urbanismo, cuja missão ‘já não seria dispor ordenadamente sobre o território objetos mais ou menos permanentes, senão colocar em cena a incerteza e o
caos do momento’.” (LIMENA, 2001, p.40, grifos nossos)
2. Avaliação Pós-Ocupação (APO)
[...] as crises urbanas não podem ser pensadas como resultado de um processo linear ou determinado, mas como processo complexo, que requer uma visão macroscópica [...] uma ampliação dos operadores cognitivos, estabelecendo o diálogo interdisciplinar que busca superar os
limites entre ciência, técnica e arte [...]” (LIMENA, 2001, p.37, grifos nossos).
Para se observar a qualidade de um lugar, segundo Rheingantz et alii (2009, p.11, grifos do
autor) existe um conjunto de oito ferramentas (e respectivos procedimentos) de avaliação pós-ocupação, já consagradas pela sua utilização em trabalhos de campo e que coloca(m) “a[s] fala[s] do[s]
observador[es] para andar”, que são: walkthrough; mapa comportamental; poema dos desejos; mapeamento visual; mapa mental [mapa cognitivo]; seleção visual; entrevista; e questionário. E essas oito
ferramentas são complementadas por outras duas: matriz das descobertas; e observação incorporada.
A Avaliação Pós-Ocupação (APO), na medida em que consiste em um conjunto de métodos
e técnicas para a análise do desempenho de ambientes construídos e em uso do ponto de vista tanto
de especialistas como dos seus usuários (CAMBIAGHI, 2007), contribui de forma significativa para a
compreensão da relação pessoa-ambiente.
A APO surgiu no período de 1940 a 1950 nos EUA, quando, pela primeira vez, a opinião dos
usuários passou a fazer parte de trabalhos exploratórias executados por geógrafos e psicólogos (COSTI, 2010).
“[...] as artes realizam o que Jameson denomina ‘mapeamento cognitivo’, expressando um desejo de totalidade, constituindo imagens capazes de fornecer um sentido de tempo e de lugar a
partir do qual pode-se construir não apenas um sentido de orientação para movimentação no
espaço da cidade, mas também formas de compreensão da realidade cultural e sociopolítica
que esta representa.” (LIMENA, 2001, p.42, grifos do autor)
Neste trabalho, com a finalidade de contribuir para a avaliação do desempenho de um espaço
construído e construir tanto um sentido de orientação para movimentação no espaço ocupado quanto formas de compreensão da realidade cultural e sociopolítica que esse espaço representa, em termos
de satisfação e expectativas desse espaço, o ‘mapeamento cognitivo’, de ideias, imagens e falas, é feito
mediante o uso destas duas ferramentas teóricas da APO: Mapa Cognitivo ou Mental, para perceber a
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orientação e a compreensão da gente que habita nesse espaço sobre seu próprio espaço; e “Poema” dos
Desejos, para captar tanto as necessidades dessa gente (satisfeitas ou não satisfeitas) quanto as suas
expectativas para melhorar o espaço em que vivem.
E, a partir dos dados obtidos através dessas duas ferramentas já consagradas no meio acadêmico, substituindo as ferramentas complementares “matriz das descobertas” e “observação incorporada” pela Matriz de Integração do Olhado (MIO) criada e desenvolvida por um dos autores, para um
“espaço vivido” onde fluem, (as)sincronicamente, orientação, compreensão, necessidades e expectativas da gente desse espaço.
Os dados obtidos por essas duas ferramentas são classificados em diversas categorias nessa
MIO - uma planilha eletrônica que faz parte de um livro eletrônico EXCEL repleto de tabelas dinâmicas, que permitem perceber e integrar estas duas tríades complexas:
...espaço casa n espaço bairro n espaço habitat...
...espaço físicon espaço olhadon espaço vivido...
Em que a primeira tríade aponta os três focos de desenvolvimento da Pesquisa Etnográfica
de Campo (PEC): casa, bairro e habitat. Esta tríade relaciona o viver de cada família (espaço casa), o
conviver de cada família com a vizinhança (espaço bairro) e o subsistir / sobreviver (espaço habitat):
E a segunda tríade aponta os três “(re)agentes “autônomos” dessa PEC: físico, olhado e vivido. Esta tríade relaciona o objeto de estudo delimitado (espaço físico) e olhado pelo observador da PEC (espaço
olhado) ao olhado por quem ali vive (espaço vivido).
2.1. Mapa Cognitivo
O Mapa Cognitivo (MaCo) ou Mapa Mental (MaMe) é uma ferramenta teórico-prática baseada na elaboração de desenhos ou relatos de memória representativos de ideias ou imageabilidade
que cada pessoa (ou um grupo de pessoas) tem de um determinado ambiente (RHEINGANTZ et alii,
2012, p.56). Em que essa imageabilidade é a capacidade de percepção da cidade através de elementos
físicos e legibilidade a habilidade de leitura dos elementos urbanos, reconhecidos e organizados de
modo coerente (LYNCH, 1982). E os principais elementos estruturadores da imagem ambiental marcos, nós, limites, setores e percursos - podem ser identificados nos mapas e, a seguir, agrupados com
vistas a identificar as imagens públicas, comuns à maioria dos habitantes de uma cidade (LYNCH, 1982,
grifos nossos).
O MaCo ou MaMe, para Rheingantz et alii (2012, p.57, grifos nossos), é caracterizado por
imagens que combinam os espaços urbanos (vias, ruas, praças) a outros aspectos e elementos físicos
relacionados em um espaço de ação detalhado. E o MaCo define o ambiente percebido pelo respondente e indica a importância de um elemento físico em relação a outro, em que a combinação deles
possibilita a condução de ações cotidianas na cidade.
O MaCo é considerado por Rheingantz et alii (2012, p.58, grifos nossos) como sendo muito
útil: na arquitetura; no desenho urbano; na geografia; em projetos de equipamentos urbanos comunitários; no planejamento de áreas públicas de lazer; na definição de limites administrativos ou políticos; em áreas externas (cidade, parques, praças); e em ambientes internos (casa ou áreas de trabalho,
estudo ou lazer). Isso porque, continuando com Rheingantz et alii (2012, p.58), o MaCo facilita a identificação de áreas ou aspectos urbanos que possuem imagem forte ou fraca, permitindo a obtenção das
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visões de mundo de pessoas residentes e de como estes conhecem o seu ambiente [sua casa, bairro ou
habitat]. Mas devem ser relativizados cultural, social e psicologicamente porque a consciência espacial
e a consciência temporal diferem entre grupos sociais ou povos.
Na aplicação do MaCo, Rheingantz et alii (2012, p.58-59, grifos nossos) dizem que o observador [da PEC] deve estimular o uso de material colorido para enriquecer a ferramenta e sua análise,
e deve solicitar ao respondente que desenhe de memória, em folha de papel branco, um croquis ou
um mapa de um determinado ambiente utilizado ou frequentado regularmente pelo respondente,
contendo um mínimo de instruções sobre que tipo de elementos (ruas, avenidas, praças, edifícios,
monumentos, acidentes geográficos ou outros aspectos ou elementos que esse observador considere
relevantes) ou informações devem ser incluídos.
Segundo Appleyard (1980, apud RHEINGANTZ et alii, 2012, p.60, grifos nossos), os MaCo ou
MaMe, que podem ser simbólicos, semi-estruturados ou estruturados, devem ser separados por categorias - que devem ser cruzadas com dados relacionados a tempo de vivência, idade, sexo [gênero],
proximidade do local de moradia, de modo a apreender o quanto e como o ambiente afeta a cognição
e compreensão e estruturação do lugar dos usuários.
Rheingantz et alii (2012, p.59, grifos nossos) afirmam que existem duas abordagens com diferentes procedimentos de aplicação da MaCo. A primeira, designada como modelo interpretativo
ou comportamental, é mais estruturada e baseia-se em pressupostos e categorias de análise definidos
com distanciamento e previamente à aplicação da MaCo. A segunda, designada como modelo sócio-interativo ou experiencial, é menos estruturada porque: o observador (da PEC) deve acompanhar
todo o processo de aplicação da MaCo, procurando interagir com os respondentes para informar-se e/
ou registrar as explicações e comentários que são produzidos na elaboração do desenho, mas evitando
qualquer atitude ou comentário. representativos dos interesses e intenções dos respondentes; e não
trabalha com categorias de análise previamente definidas à aplicação da MaCo.
Ainda seguindo Rheingantz et alii (2012, p.59, grifos nossos), em qualquer uma dessas duas
abordagens é importante que o observador (da PEC) registre a ordem sequencial de elaboração dos
desenhos e elementos gráficos pelos respondentes. Levando em conta que, segundo del Rio (1991), os
elementos que são desenhados em primeiro são os mais significativos.
Neste trabalho, optou-se pelo modelo sócio-interativo ou experiencial e elegeu-se esta expressão para
colocar no topo da folha em branco: “(Minha casa ou Meu bairro ou Meu habitat) é ...”.Tendo um dos
autores o cuidado de estimular o uso da cor pelo respondente, e de anotar os elementos à medida que
iam sendo desenhados por este.
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 95-112, 2014.
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Figura 1 - Ilha dos Mineiros: MaCo com Foco na CASA
terminado ambiente, ignoradas ou sublimadas pela burocracia das grandes organizações e instituições públicas. Possibilitando a obtenção de um perfil representativo dos desejos e demandas desse
conjunto, ao permitir que se conheça o imaginário dos usuários. Pode ser empregado na forma de
desenho ou como sentença escrita. Quando aplicado a crianças é recomendável o uso do desenho e a
oralidade infantil.
Rheingantz et alii (2012,p. 43 e 45, grifos nossos), ao contrário de Sanoff com a sua abordagem por processo iniciado com a construção de um “poema colaborativo”, opta por uma abordagem
experiencial pela qual o processo de elaboração dos “poemas” desenvolve-se mediante a interação do
observador (da PEC) com cada usuário do ambiente objeto de estudo, principalmente se a resposta
for na forma de desenho.
Figura 2 - Ilha dos Mineiros: PoDe com Foco no BAIRRO
Fonte: respondente nº 17
Dessa forma, como resultado da aplicação do MaCo ao bairro “Ilha dos Mineiros” (IM) e por meio de
procedimentos sistemáticos e objetivos, neste trabalho conseguiu-se obter este indicador qualitativo e
quantitativo: Grau de Compreensão (GC_IM).
2.2. “Poema” dos Desejos
“(...) o Poema dos Desejos é considerado um instrumento de grande utilidade para
aprofundar o conhecimento e a compreensão dos valores, emoções, afetos, simbolismos
presentes nas interações pessoa-ambiente, além da importância e significado socio-histórico-cultural para os diferentes grupos de usuários” (RHEINGANTZ et alii, 2012,p.
49)
Fonte: respondente nº 55
O Poema dos Desejos (PoDe) - Wish Poems – segundo Sanoff (apud RHEINGANTZ et alii,
p.43) é uma ferramenta consideravelmente eficaz quando a intenção é valorizar um caráter mais global e exploratório da observação das necessidades e expectativas do conjunto de usuários de um de-
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O PoDe, segundo Rheingantz et alii (2012,p. 45-46), é não estruturado e aplica-se usando uma
ficha padronizada para cada respondente, na qual devem constar: um cabeçalho para identificação;
os objetivos da pesquisa; instruções e explicações para seu preenchimento; uma sentença que induz a
obtenção da resposta esperada - neste trabalho, “Eu gostaria que (Minha casa ou Meu bairro ou Meu
habitat) fosse...”; e um espaço em branco para a resposta de cada usuário.
Rheingantz et alii (2012,p. 46 e 47, grifos nossos) dizem que um mesmo “poema” pode conter
mais do que um desejo e, por isso, tem que ser classificado em mais de uma categoria. Para este trabalho, quando isso aconteceu, optou-se por considerar a categoria que tivesse mais desejos representativos (a que se chamou “categoria preponderante”).
Dessa forma, como resultado da aplicação do PoDe ao bairro “Ilha dos Mineiros” (IM) e por
meio de procedimentos sistemáticos e objetivos, neste trabalho conseguiu-se obter este indicador
qualitativo e quantitativo: Grau de Satisfação (GS_IM) e Grau de Expectativa (GE_IM).
2.3. Matriz de Integração do Olhado
com uso de fórmula para lançamento automático a partir da classificação nominal)
15. APO (Ferramentas) - com entrada de dados controlada para garantir
que a mesma ferramenta não seja escrita de modo diverso.
Na coluna “Observador_Classificação_Numérica”, mediante o uso de fórmulas apropriadas
da própria aplicação EXCEL, destacam-se aqui estas células: TOTAL, MÁXIMO, MÍNIMO, MODA e
MÉDIA.
E na coluna “Observador_Classificação_Nominal”, mediante o uso de fórmulas apropriadas
da própria aplicação EXCEL, mas agora a partir daquelas células, destacam-se aqui estas células: MÁXIMO, MÍNIMO e MODA. Isso, porque, obviamente, nenhum TOTAL ou MÉDIA se aplicam a elementos qualitativos.
Dessa forma, como resultado da aplicação da MIO ao bairro “Ilha dos Mineiros” (IM) e por
meio de procedimentos sistemáticos e objetivos, neste trabalho conseguiu-se obter este indicador
qualitativo e quantitativo: Grau de Integração de Compreensão, Satisfação e Expectativa (GICSE_IM).
Figura 3 - Ilha dos Mineiros: MaCo/PoDe com Foco AMBIENTE (HABITAT)
Por conveniência ligada à PEC, tanto o MaCo quanto o PoDe foram aplicados em simultâneo
através de um mesmo instrumento, com destaque a negrito das duas frases desencadeadoras das respostas dos entrevistados:
A do MaCo, “(Minha casa ou Meu bairro ou Meu habitat) é ...”
A do PoDe, “Eu gostaria que (Minha casa ou Meu bairro ou Meu habitat) fosse...”
Os elementos entre parêntesis são o foco deste trabalho e serviram para agrupar eletronicamente (por tabela dinâmica do EXCEL, desenvolvida apropriadamente por um dos autores) as respostas obtidas na PEC da IM. Um exemplo de cada “resposta focada” é dado pelas figuras de 1 (casa),
2 (bairro) e 3 (habitat)...
A Matriz de Integração do Olhado (MIO) foi criada mediante o uso de uma planilha eletrônica EXCEL, com estes 15 (quinze) campos:
1. Resposta nº (uso de fórmula)
2. Entrevistados_Respostas (conforme o Maco ou o PoDe)
3. Categoria_Preponderante (entrada de dados controlada para garantir que a mesma categoria não seja escrita
de modo diverso)
4. Entrevistados_nº (para garantir o sigilo do nome do entrevistado)
5. Entrevistados_Idade (uso de fórmula)
6. Entrevistados_Naturalidade (uso de fórmula)
7. Entrevistados_Atividade (uso de fórmula)
8. Entrevistados_Formação_Ano (uso de fórmula)
9. Entrevistados_Data (uso de fórmula)
10. Entrevistados_Gênero (uso de fórmula)
11. Entrevista_Perguntas (uso de fórmula)
12. Entrevistados_Foco (entrada de dados controlada para garantir que o mesmo foco
não seja escrito de modo diverso)
13. Observador_Classificação_Nominal (Excelente, Bom, Razoável, Ruim e Péssimo, como avaliação do observador da PEC relativamente à resposta do entrevistado e `categoria preponderante dela emergente, e entrada de
dados controlada para garantir que a mesma classificação não seja escrita de modo diverso)
14. Observador_Classificação_Numérica (10, 7, 5, 3 e 1, na mesma ordem da classificação nominal acima, e
102
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1 , p. 95-112, 2014.
Fonte: respondente nº 60
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 95-112, 2014.
103
3. Um Lugar chamado Ilha dos Mineiros
“[...] outra forma de pensar [...], não mais a partir de padrões normativos ideais, mas no
alargamento da imaginação, que deve contribuir para a apropriação do tempo, do espaço,
da vida e do desejo, de modo a introduzir o rigor na invenção e o conhecimento na utopia.”
(LIMENA, 2001, p.43, grifos nossos)
A “Ilha dos Mineiros” (IM) é fruto de uma outra forma de pensar!
Uma forma de pensar que, pela perspectiva dos que aí habitam, não considerou os padrões
normativos “ideais” para “gente de fora” (órgãos das municipalidades - primeiro de São João da Barra
e, depois, de São Francisco de Itabapoana-, do Estado Rio de Janeiro e da Federação Brasil), mas considerou o alargamento da imaginação da “gente de dentro” (os habitantes da IM) na compreensão da
apropriação possível do seu espaço-tempo, na satisfação de suas necessidades básicas e na expectativa
de melhores condições de vida terrena.
E uma forma de pensar que, pela perspectiva do observador da PEC, alargou a imaginação (do
observador) para não soçobrar nos padrões normativos ideais (da academia), buscando contribuir
para a (re)construção de um “ESPAÇO-VIDA” que seja considerado minimamente digno para um
indivíduo ou grupo humano em seu habitat; ouvindo parte significativa de gente diretamente interessada (habitantes da IM) de modo a introduzir o rigor (Matriz de Integração do Olhado - MIO) na
invenção e o conhecimento (Mapa Cognitivo e Poema dos Desejos - MaCoPoDe) na utopia.
Assim, este trabalho mostra esse Conhecimento Rigoroso e Artístico (ConRigArt) do Espaço-Vida da IM (EVIM), mediante os recursos teóricos de uma análise “tridimensional” (Espaço Físico,
Espaço Olhado e Espaço Vivido) e uma síntese do “real uni-tridimensional” (Espaço Integrado).
3.1. Espaço Físico
“[...] as referências locais clássicas desaparecerão, entrando em cena a cidade ‘genérica’, que
‘será uma libertação, em comparação com identidades demasiado fortes e demasiado confinadas, em benefício de situações bastante mais vagas e portanto mais fáceis de controlar por
aqueles que nelas habitam’.” (LIMENA, 2001, p.41, grifos nossos)
Figura 4 - Ilha dos Mineiros: um lugar global
Fonte: um dos autores
104
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1 , p. 95-112, 2014.
As referências locais “clássicas” podem consubstanciar-se num dos mapas convencionais já
existentes...
Porém, transcendendo um desses mapas convencionais,a dimensão espaço-físico da Ilha dos
Mineiros (IM) é representada neste trabalho (Fig 4) como um lugar “global” com uma identidade
fraca, mas não confinada. Numa situação bastante vaga e, portanto, mais fácil de controlar pelos seus
habitantes.
Trata-se aqui de um lugar de viver em ambiente vulnerável: um conjunto de moradias, e respectiva vizinhança, no bairro Ilha dos Mineiros (IM). Com cerca de 2.500 ha e cerca de 5 km da sede
municipal, na localidade litorânea de Guaxindiba, no jovem município de São Francisco de Itabapoana (desanexado de São João da Barra em 1995) – com o segundo pior índice de desenvolvimento
humano e maior em extensão territorial do Estado do Rio de Janeiro (extremo nordeste), no Brasil.
3.2. Espaço Olhado
“[...] desenvolvimento da tecnologia, da natureza e da sociedade constituem elementos fundantes de um projeto de cidade de cidadãos, que necessita um olhar macroscópico, capaz de
superar as disjunções entre lugar e não-lugar, territorialização e desterritorialização, natureza
e cultura (...) a cidade não pode ser pensada apenas como projeto, espaço produzido, conjunto
finito de bens e funções visíveis, mas como um sistema aberto.” (LIMENA, 2001, p.42-43,
grifos nossos)
O envolvimento de agentes sociais é muito estudado em termos de interesses sociais direcionados pela lógica de Estado e/ou lógica de Mercado, bem como das respectivas práticas. Todavia, os
interesses sociais de grande parte dos agentes atuando num lugar são direcionados pela lógica da Necessidade, definida como sendo, “simultaneamente a motivação e a instrumentalização social que permitem a coordenação das ações individuais e/ou coletivas dos processos de ocupação do solo urbano”,
e, portanto, não exigem capital, segundo ABRAMO (2011, p. 219). As práticas motivadas pela lógica
da Necessidade têm sido por processos de ocupação informal em áreas de vulnerabilidade ambiental
e social.
Ora, à semelhança de muitos outros “lugares de viver” em ecossistemas ao longo do litoral
brasileiro, a IM é uma área de vulnerabilidade ambiental tanto física quanto social. É considerada área
de risco e de proteção ambiental e paisagística (manguezais e brejos). Trata-se de um lugar de restinga,
com solo pobre, parcialmente aterrado, entre canais e o pequeno rio Guaxindiba, à beira das estradas
RJ196 e RJ232. Pertence a um “setor especial” da localidade Guaxindiba, no qual apenas cerca da
metade encontra-se transformada por processos de ocupação (in)formal de caráter (aparentemente)
irreversível, de “exclusão” social, requerendo uma “nova arquitetura” das habitações e uma (re)integração social das famílias de baixa renda: “unidades” habitacionais construídas precariamente e não
ajustadas ao tamanho das respectivas famílias; “unidade” bairro onde predomina uma vizinhança em
situação dominial irregular, insegura, desintegrada em “guetos de pobres”; e “unidade” habitat sofrendo grave impacto em seu ecossistema natural de interações localnregionalnglobal.
Essas famílias, oriundas do próprio município ou de outros municípios, em geral passaram (e
passam) da condição “rural” para a “urbana”; e têm um grau de instrução que, em média, corresponde
à terceira série do ensino fundamental. Essas famílias aparentam ter um estilo simples de viver e um
espírito solidário, enquanto trabalham em condições precárias e na informalidade com renda incerta,
de aproximadamente um salário mínimo por mês.
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1 , p. 95-112, 2014.
105
Neste trabalho, a Ilha dos Mineiros foi olhada pelos autores como um “sistema aberto”...
18
2
19
4
33
2
35
2
37
2
38
2
39
4
53
2
57
2
Não informado 16
Total Geral
130
3.3. Espaço Vivido
“Ética, estética e política devem e podem andar juntas para pensar o habitar ou o viver na
cidade, desde que se desvencilhando das alternativas de modelização.” (LIMENA, 2001, p.43,
grifos nossos).
A vulnerabilidade da IM parece emergir de processos de ocupação in(formal),que resultaram
em espaços ocupados sobre ambientes considerados frágeis – por canais com problemas de vasão,
estradas, ruas, construções e pessoas, em sua maioria, de baixa renda.
Essa fragilidade da Ilha dos Mineiros existe tanto para a fixação humana (áreas de risco) quanto para a fixação de outras espécies (áreas poluídas), criando problemas de sustentabilidade e ambientais. Porém, o enorme problema que se tem observado é que por um lado, a satisfação mínima
de grande parte das necessidades básicas dessas pessoas de baixa renda depende significativamente
de sua fixação nessas áreas de risco ou poluídas; mas, por outro lado, os instrumentos de desenvolvimento urbano são negociados entre os agentes sociais que seguem as suas lógicas (ou melhor, suas
próprias conveniências individuais) num jogo de forças desproporcionais.
Portanto, nem a Ética nem a Estética nem a Política andaram juntas para pensar o habitar ou
o viver na IM. Embora devessem e pudessem...
Fonte: os autores
Um indicador qualitativo e quantitativo desse reconhecimento é o Grau de Integração de
Compreensão, Satisfação e Expectativa da IM (GICSE_IM), obtido a partir de 130 respostas obtidas
na PEC (112 respostas em 16/04/2013 e 18 em 18/04/2013) a amostra populacional de 65 habitantes
da IM. Nessa amostra - cujo grau de representatividade “foge” ao escopo deste trabalho, por se tratar
de um mero posicionamento inicial para um trabalho mais profundo e mais integrado - observou-se
que 37 (56,923 %) são pessoas do gênero feminino e 28 (43,077 %) são do gênero masculino.
Tabela 2 - PEC na IM: Naturalidade dos respondentes
3.4. Espaço Integrado
Entrevistados_Naturalidade
Contagem de Respostas
Bom Jardim
2
Búsios
2
Cabo Frio
4
Campos dos Goytacazes
44
Ilha dos Mineiros
4
Macaé
2
Não informado
36
Niterói
2
Nova Belém (Ponto de Cacimba)
2
Pingo D´água
2
Ponto de Cacimba
12
Rio de Janeiro
2
RJ
2
Santa Luzia, Deserto Feliz
2
São Francisco
4
São Francisco de Itabapoana
4
São João da Barra
2
Travessão de Barra
2
Total Geral
130
“(...) torna-se condição necessária o reconhecimento da diferença, da singularidade e da universalidade, fazendo emergir o jogo das temporalidades e das incertezas presentes no contexto
das metrópoles contemporâneas.” (LIMENA, 2001, p.43, grifos nossos).
A Matriz de Integração do Olhado (MIO) permitiu o reconhecimento da diferença, da singularidade e da universalidade, em tempos de incertezas, na Ilha dos Mineiro (IM).
Tabela 1 - PEC na IM: Idade dos respondentes
Entrevistados_Idade Contagem de Respostas
7
14
8
8
9
2
10
10
11
20
12
2
13
10
14
10
15
6
16
2
17
8
106
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1 , p. 95-112, 2014.
Fonte: os autores
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 95-112, 2014.
107
Nessa amostra pesa positivamente terem sido 41 respondentes (63,077 %) com idade abaixo
dos 16 anos (a partir da tabela 1, 82 respostas a dividir por 2, pois cada respondente atendeu a duas
perguntas, uma do MaCo e outra do PoDe), porque sinalizam um bom “grau de inocência” e “grau de
verdade”. Destacando-se ainda mais as crianças com 11 e 7 anos de idade, que justificam plenamente
o uso do desenho e da cor na PEC em questão.
Nessa amostra pesam negativamente os 18 respondentes que não informaram sua naturalidade (a partir da tabela 2, o número de respostas, 36, deve ser dividido por 2). Principalmente, porque
os que nasceram na Ilha dos Mineiros foram apenas 2 (4 a dividir por 2). O fato da grande maioria,
22 respondentes (44 a dividir por 2), ter “nascido” em Campos dos Goytacazes deve ter como causa
principal o fato de que ali se encontram a melhor qualidade e maior quantidade de hospitais na região
Norte/Noroeste do Estado do Rio de Janeiro .
Fonte: os autores
Nessa amostra pesam positivamente os 56 respondentes que têm a atividade de estudantes (a
partir da tabela 4, o número de respostas, 112, deve ser dividido por 2), porque, em sua irreverência,
sinalizam também um bom “grau de inocência” e “grau de verdade”. E pesa ainda positivamente o
fato de apenas 2 respondentes que não informaram a sua atividade (a partir da tabela 4, o número de
respostas, 4, deve ser dividido por 2).
Verificou-se que o foco de preocupação dos respondentes (52) é majoritariamente a casa onde
habitam - (a partir da tabela 5, o número de respostas, 103, deve ser reduzido de 1 unidade, dividido
por 2, e acrescido de uma unidade).
Tabela 5 - PEC na IM: Foco de preocupação maior dos respondentes
Tabela 3 - PEC na IM: Nível de escolaridade dos respondentes
Entrevistados_Formação_Ano
2º
3º
4º
5º
6º
7º
8º
9º
Não informado
Analfabeto
Total Geral
Contagem de Respostas
20
20
14
8
12
16
2
6
28
4
130
Fonte: os autores
Nessa amostra pesam também negativamente os 14 respondentes que não informaram o seu
nível de escolaridade (a partir da tabela 3, o número de respostas, 28, deve ser dividido por 2). Destacando-se ainda mais os 20 respondentes no 2º e 3º (a partir da tabela 3, o número de respostas, 20
mais 20, deve ser dividido por 2), que justificam também plenamente o uso do desenho e da cor na
PEC em questão.
Entrevistados_Foco
Ambiente
Mapa mental
Poema dos desejos
Bairro
Poema dos desejos
Casa
Mapa mental
Poema dos desejos
Total Geral
Fonte: os autores
E a contribuição mais efetiva das duas ferramentas de APO para esse foco de preocupação veio
de 29 Mapas Cognitivos (MaCo) (a partir da tabela 6, o número de respostas, 58, deve ser dividido por
2). Enquanto, que apenas 23 Poemas de Desejo Cognitivos contribuíram para o foco dessa preocupação (a partir da tabela 6, o número de respostas, 45, deve ser reduzido de 1 unidade, dividido por 2, e
acrescido de uma unidade).
Tabela 6 - PEC na IM: Contribuição quantitativa das ferramentas de APO utilizadas dos respondentes
APO (Ferramentas)
Mapa cognitivo
Ambiente
Casa
Poema dos desejos
Ambiente
Bairro
Casa
Total Geral
Tabela 4 - PEC na IM: Atividades dos respondentes
Entrevistados_Atividade
Empregada
Empregado
Estudante
Não informado
Total Geral
108
Contagem de Resposta
8
6
112
4
130
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1 , p. 95-112, 2014.
Contagem de Respostas
14
7
7
13
13
103
58
45
130
Contagem de Respostas
65
7
58
65
7
13
45
130
Fonte: os autores
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1 , p. 95-112, 2014.
109
Finalmente, a tabela 7 revela que a categoria preponderante que mais se destacou foi o tamanho da habitação para 28 respondentes (a partir da tabela 7, o número de respostas deve ser dividido
por 2), seguida das categorias vias de acesso, Limpeza pública, estrutura da habitação e espaços de
entretenimento.
O GICSE_IM assim obtido atingiu a pontuação 352 (27,077 %) e está a 948 pontos (72,923 %)
do máximo que seria esperado para um nível de excelência (130 x 10 = 1.300). A amostra observada
de forma participativa apresentou estas estatísticas gerais: MÉDIA 3 (ruim); MODA 1 (péssimo - apareceu 56 vezes); MÁXIMO: 10 (excelente); e MÍNIMO 1 (péssimo)
Tabela 7 - PEC na IM: Categorias Preponderantes nas respostas obtidas
Categorias_Preponderantes
Água Potável
Coleta de esgoto
Conforto Térmico
Creches
Drenagem de águas pluviais
Entretenimento_Atividades
Entretenimento_Espaços
Escolas
Fornecimento de luz e força
Habitação_Estrutura
Habitação_Tamanho
Limpeza pública
Segurança Pública
Superfície habitável por pessoa
Tráfico de drogas
Vias de acesso
(vazio)
Obras de habitação
Total geral
Contagem de Respostas
2
5
1
1
1
2
10
1
2
10
56
12
4
2
5
13
2
1
130
Fonte: os autores
Mediante esse GICSE_IM, pode-se afirmar que se “está” no início de um percurso conjunto de, pelo
menos, Ética, Estética e Política...
110
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1 , p. 95-112, 2014.
4. Considerações Finais
O envolvimento de agentes sociais quer na cooperação, nas intenções e nas iniciativas internacionais, quer na soberania do Brasil e respectivas campanhas nacionais, tem sinalizado e formalizado
que o direito à habitação social em ambiente não-vulnerável é um direito humano fundamental.
Este trabalho serviu-se de fundamentos teóricos “já consagrados” e de uma pesquisa etnográfica de
campo no bairro “Ilha dos Mineiros” (IM), com foco nestas categorias interativas: “habitação”, “vizinhança” e “habitat”. No intuito de integrar tanto a compreensão da apropriação possível do espaço-tempo (físico, olhado e vivido) de alguns dos habitantes da IM, quanto o “estágio” de satisfação de
necessidades básicas (nossas contemporâneas recentes) dessa gente e da expectativa dessas pessoas
relativamente a melhores condições das respectivas vidas terrenas, em termos de vivência, convivência, subsistência e sobrevivência.
Encontraram-se indicadores qualitativos e quantitativos que permitem apenas delimitar um
“marco zero” ou um “ponto de partida” na busca de eventuais equilíbrios dinâmicos, que leve em
conta: um ambiente vulnerável (natural e social); um direito humano fundamental (o da habitação); e
uma política que promova o acesso à infraestrutura de saneamento básico, à regularização da propriedade fundiária e à integração de assentamentos informais ao urbano oficial (formalização do status
quo, num ambiente em que impera a “liberdade de construir” e o “vale tudo”).
5. Referências
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grandes cidades brasileiras: Notas para delimitar um objeto de estudo. In: Território e Planejamento:
40 anos de PUR/UFRJ. NATAL, Jorge Luiz Alves, (org.). 1ª ed.- Rio de Janeiro: Letra Capital: IPPUR,
2011 (p. 217-236).
APPLEYARD, Donald. Why Buildings are known - a Predictive Tool for Architects and Planners. In:
BROADBENT, G. et al. Meaning and Behaviour in the Built Environment. Londres: John Wiley and
Sons, 1980
AZEVEDO, Giselle Arteiro. N. et alii. Avaliação de desempenho do ambiente construído - Escola
Municipal Tenente Antônio João, Cidade Universitária - RJ- Relatório final. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio De Janeiro (UFRJ), Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), Programa de
Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura (PROARQ), FAP 715 / 815, Junho / 2012. Disponível em
http://www.gae.fau.ufrj.br/arq_pdf/trab_acad/relat_final_apo/Relat%C3%B3rio%20E.M.%20Tenente%20Antonio%20Jo%C3%A3o.pdf. Acesso em 23/02/2014.
CAMBIAGHI, Silvana. Desenho Universal: Métodos e técnicas para arquitetos e urbanistas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007.
COSTI, Marilice. Avaliação pós-ocupação (apo): monitorando a arquitetura! In: Infohabitar, ano VI,
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DEL RIO, Vicente. Desenho Urbano e Revitalização na Área Portuária do Rio de Janeiro. São Paulo:
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo), 1991.
LIMENA, M.M.C. Cidades complexas no Século XXI: cidade, técnica e arte. São Paulo:São Paulo
Perspectiva, 2001 (jul/set).
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1 , p. 95-112, 2014.
111
LYNCH, Kevin. A imagem da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
RHEINGANTZ, P.A. et alii. RHEINGANTZ, P.A. (Org). Observando a Qualidade do Lugar: Procedimentos para a avaliação pós-ocupação. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Pós-Graduação em Arquitetura, 2009. 117 p.: il. Collor 21cm.
- (Coleção PROARQ). Disponível em http://www.fau.ufrj.br/prolugar/arq_pdf/livros/obs_a_qua_lugar.pdf. Acesso em: 22/fev/2012.
Recebido em 24 de Fevereiro de 2014.
Bioarte:Inferências e aplicabilidades no campo da arte
e suas intersecções biotecnológicas
Bioart: investigations and applicability in the field of art
and its biotechnological intersections
Cássia Carinhato Munhoz* & Ricardo Nicola**
Aprovado para publicação em 21 de Setembro de 2014.
*Bolsista de Pesquisa pela Fapesp na Fundação Amaral Carvalho (2011-12), Jaú, SP, tendo Graduação em Ciências
Biológicas (2009-12) pela Faculdade de Ciências (FC) da Universidade Estadual Paulista, Campus de Bauru, SP.
Como Bióloga, tem desenvolvido experiências nas áreas correlatas da intersecção entre Biologia, Artes e Comunicação, com ênfase em Bioarte e Processos Biotecnológicos, fruto de suas pesquisas no campo da Visualidade e da
Imagem.
**Professor doutor do Departamento de Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista, Unesp, câmpus de Bauru, SP, Brasil. Pós-doutor pela Universidade de Toronto, UofT,
Toronto, Canadá. Desde 2004, é Senior McLuhan Fellow.
Resumo
Inspirada pelos reflexos das constantes interações interdisciplinares entre arte e ciência, este projeto intenta desenvolver instrumentos de investigação e de análise do papel dos multimeios na visualidade dos objetos biotecnológicos com vistas à aplicação dos conceitos híbridos, ou seja, agora transdisciplinares, do caráter transversal da
recém bioarte. De posse de amplo material investigativo, a pesquisa delineia para a apreensão dos sujeitos e objetos
bioartísticos com vistas a sua aplicação no projeto “New Leonardos eSciences Institut of Innovation for living systems”, já submetido à chamada 016/2014 = MCTI/CNPq/CAPES/FAPS.
Palavras-chave: Bioarte; Arte; Biotecnologia; Estudos Transdisciplinares; Hibridismos; eCiências
Abstract
Inspired by the effects of constant interdisciplinary interactions between art and science , this project intends to
develop research instruments and analysis of the role of multimedia objects on visuality of biotechnology with a
view to the application of hybrid concepts , ie transdisciplinary now , the cross-sectional nature of the newly bioart
. Armed with broad investigative material, the research outlines for the apprehension of the subjects and objects
bioartísticos with a view to their application in the project “ New Leonardos eSciences Institute of Innovation for
living systems”, submitted to the call 016/2014 = MCTI / CNPq / CAPES / FAPS.
Keywords: Bioart; Art; Biotechnology; Trasndisciplinary studies; Hybridisms; eSciences
112
Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1 , p. 95-112, 2014.
Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1 , p. 113-120, 2014.
113
“É inegável, contudo, que novas tecnologias abrem campo de grande magnitude para a pesquisa em arte, favorecendo novas aplicações ao repertório. Mesmo sendo óbvio, vale a afirmação de que hoje se pode gerar
em vídeos e computadores imagens impossíveis de serem produzidas em
épocas passadas, em razão da falta de condições tecnológicas”.
Introdução
A
nalisando-se a citação de Zamboni (2006) referenciada acima e disponibilizada em seu livro
“A pesquisa em Arte, um paralelo entre arte e ciência”, é possível propor uma analogia, ou
mesmo uma reflexão, acerca do uso da tecnologia nas ciências, e, principalmente, onde e em
que dimensão, ou ainda, de quais formas, a arte está presente e influenciando os procedimentos científicos em sua totalidade. No caso do presente artigo, tratando mais precisamente da Biologia, o mesmo
irá trabalhar um conceito relativamente novo, a chamada Biarte.
Voltando um pouco à ciência, sua história se amálgama a exemplos de avanços e progressos
vindos por meio da tecnologia; aliás, as inovações tecnológicas se constituem em um poderoso instrumento tanto para a ciência, quanto para a arte, Zamboni enfatiza:
“... a holografia e a computação gráfica são poderosos instrumentos para o tratamento da poesia concreta (...) a própria invenção do telescópio não anulou ou modificou as descobertas de
Galileu, apenas se constituiu numa preciosa ferramenta para que seus olhos tivessem a visão
ampliada para poder comprovar mais facilmente suas teorias.”
Figura 1 - Marta de Menezes. “ Natureza?” Live Bicyclus anynana borboleta
com padrão de asa modificada.
Criando uma ponte com Galileu, pode-se começar a desenvolver aqui, a citada anteriormente
Bioarte; inicialmente, com um breve histórico de como esta se deu, e, posteriormente, e, principalmente, de que forma a arte está presente na Biologia, através da Biotecnologia, e demonstrando sua
importância na divulgação das descobertas biológicas.
A primeira obra de Bioarte de que se tem registro é a de 1936, e foi apresentada no Museum
of Modern Art, Moma, em Nova York, criada por Edward Steichen. Porém, foi no final do século
XX, que alguns artistas deixarem de usar “formas mais convencionais” de se fazer arte, para utilizar a
biotecnologia em suas obras. Pode-se citar como exemplo Marta de Menezes, com a criação em 1999,
de padrões em asas de borboletas, coexistindo em cada animal; um padrão resultante da evolução da
espécie e outro da manipulação artística. De grande importância para essa área, está a exposição em
13 de Março de 2003 em Nantes, na França, L’art Biotech, onde a obra mais conhecida e lembrada é
a da imagem de Alba, uma coelha geneticamente modificada para expressar um gene de medusa, de
Eduardo Kac, citado como o “bioartista mais famoso do mundo” (Lipton, Art Imitates Life Science, p.
1).
Figura 2 - Marta de Menezes. “Natureza?” Live Heliconius melpomene
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1 , p. 113-120, 2014.
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borboleta com padrão de asa modificada.
As duas imagens mostram a instalação pública feita com a imagem da coelha Alba em Nantes,
França, vista no decorrer da exposição, por cerca de 1,5 milhões de telespectadores.
Como muito bem conceitua Araújo (2010), o bioartista é alguém que troca telas, madeiras e
pedra por material biológico como proteínas, DNA, células estaminais, neurônios, entre outros.
Gomes, na sua pesquisa sobre esse tema, cita:
“... deparei-me inúmeras vezes com referências ao monstro criado por Victor Frankenstein no
romance de terror gótico de Mary Shelley. A manipulação daquilo que eventualmente possamos compreender como essencial, ou até mesmo sagrado, é-nos primeiramente desconfortável.
Até Hauser descreve como tal a primeira vez que contactou com a Bioarte. Com a manipulação de um meio vivo – e, por conseguinte, de vida – são levantadas questões que mais do que se
relacionar com a sociedade em abstrato, podem relacionar-se com a forma como viveremos a
nossas vidas; mais do que despertar debates científicos ou artísticos per se, a bioarte levanta
questões éticas que ultrapassam estes domínios.”
Ao longo do tempo, a Biologia foi cada vez mais se relacionando com outras áreas, podendo-se
assim enxergá-la agora como uma ciência que faz intersecção com muitos outros campos do conhecimento, como por exemplo, a bioquímica, a biofísica, biosociologia, biopsicologia, ou até biopolítica.
“Esta ascensão do vivo e seus mecanismos não podia deixar de afetar também a arte. Numa
primeira fase, essa influência resultou numa abordagem essencialmente ilustrativa ou exclusivamente ligada ao corpo humano, em particular o do artista, a qual ainda se mantém e é
dominante. Mas a partir da década de 90 para alguns artistas a bio-inspiração deixa de ser
representacional para se tornar experimental. Ou seja, mais do que representar, alguns artistas passaram a trabalhar diretamente na criação de novas formas de vida” (ARAÚJO, 2010).
Figuras 3 e 4 - Exposição de Bioarte e Detalhe
Num conceito mais antigo, diz-se que o papel do cientista é de interpretar o mundo e o do
artista de representá-lo, porém há que se fazer uma relação entre as formas de representação e a Biologia, chegando então no ponto principal de debate deste artigo, que é a busca dos meios da visualidade
e de que forma são aplicados, sendo assim uma nova abordagem da Bioarte, utilizando-se um outro
campo de intersecção dos citados acima: a Biotecnologia, e como esta ajuda a elucidar as Ciências Biológicas.
“A relação entre a cultura artística e a cultura científica não é algo de novo. Ela tem
mesmo uma longa história que entrecruza diversos artistas e distintas áreas científicas. A sua
importância é particularmente relevante na história das representações do corpo humano.
Neste domínio, deve não só assinalar-se a crescente importância, desde o renascimento, da
anatomia na formação artística, como também a estreita colaboração entre artistas e médicos
na ilustração de tratados de anatomia.
O mais emblemático e influente destes tratados é sem dúvida “De humani corporis fabrica” (1543) de Andreas Vesalius, para cujo sucesso contribuíram as imponentes ilustrações de
Stephen Calcar, discípulo de Tiziano.
A relação fundamental entre arte e anatomia perdurou ao longo da história da visualização do corpo humano e as tradições estabelecidas ainda hoje influenciam artistas contemporâneos. É ainda de salientar a importância da componente visual e estética na história da
botânica, da zoologia e da geologia. Nestes domínios do saber, as imagens desempenharam um
papel crucial não só na difusão do conhecimento como também no próprio entendimento do
mundo vivo.
(...) As artes visuais podem ajudar a explicar e popularizar ciências muitas vezes obscuras, ao
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 5, n. 1 , p. 113-120, 2014.
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traduzirem informação difícil e ao ilustrarem assuntos sociais complexos de um modo persuasivo e culturalmente significante” (COSTA, 2007)”.
2.1 Descrição do papel da visualidade em Ciências
Na Biologia, a arte é amplamente adotada para demonstrar, pesquisar, reelaborar campos da
visualidade, potencializar a legibilidade dos objetos investigativos etc., porém, o reconhecimento dessas atividades não é ainda significativo, tanto da parte das ciências biológicas, como da parte das artes;
e nessa questão é que emerge a recente Bioarte, que, analisando-se seu histórico, também há poucas
inferências que debruçam-se sobre a aplicabilidade nos objetos biológicos e artísticos em uma forma
híbrida, delimitando-se mais à exposição pura e simples. Portanto, a questão central a ser apresentada
e debatida neste artigo consiste na construção de um arcabouço conceitual que amplie os horizontes
da pesquisa bioartística.
2.1 Levantamento das inferências e objetividade em ciências
O presente projeto, que demarcam as principais fronteiras deste artigo, pretende demonstrar
como a arte pode ser usada na Biologia. Acreditamos que identificar e destacar como a arte auxilia a
elucidação da Biologia será o papel central do projeto Bioarte, que será possível elencar e discutir os
procedimentos bioartísticos na demonstração das descobertas biológicas.
2.1.1 Especificidade do campo de abordagem bioartística
De posse do projeto, este artigo se propõe a apresentar a futura organização de um dossiê dos
multimeios utilizados no processo de construção da chamada geografia das enfermidades, ou seja
estabelecendo um campo da mobilidade visual do mapa das mais diversas biopatologias, o que tão
somente a intersecção entre a biologia e a arte, detro de um recorte tecnológico poder-se-á efetivar.
Perguntas como “quais as potencializações que aprimoram as ferramentas da visualidade no
campo da Biologia” pretedem ser respondidas, considerando a construção de um verdadeiro arcabouço teórico com vieses bioartísticos, conferindo um status de aplicabilidade nas subáreas biotecnológicas.
3. Metas e estabelecimento da geografia da pesquisa
A pesquisa “Bioarte: Inferências e Aplicabilidades” será implantada em Bauru – SP, mas especificamente na Universidade Estadual Paulista (Unesp), câmpus de Bauru(SP), como constribuição à
futura implantação do New Leonardos eSciences Institute of Innovation for Living Systems, num pool de quatro importantes universidades, sendo elas: a Universidade Estadual Paulista, Unesp; a Universidade
Estadual de Campinas, Unicamp; a Universidade de Brasília, UnB, e o Instituto Politécnico Renssealer
(EUA).
lizar uma varredura sistêmica em sitiografias específicas sobre o tema bioarte e conexões. Para tanto,
serão efetivados um amplo levantamento de instrumentos visuais para posterior análise, observando
um recorte - o mais rigoroso possível - do uso das artes na Biologia, com vistas à organização do já
referenciado mapa da enfermidades. Isso permitirá o apontamento e a catalogação das novas mídias
na aplicação da Bioarte.
4. Considerações Parciais
Diante do exposto, é esperada uma mudança - a mais significativa possível - dos paradigmas do
uso dos instrumentos multimidiáticos na biotecnologia.
Cada vez mais torna-se imperativo o uso dos multimeios na transformação do mapa cognitivo, o que vem acontecendo rapidamente ante à rápida expansão das conexões entre arte e ciências.
Acreditamos que a criação e a posterior acessibilidade aos banco de dados em bioarte - como
estratégias da transformação da representatividade para a aplicabilidade - pode - e deverá ser - um dos
grandes ganhos que esta pesquisa pretenderá legitimar, o que este artigo procurou apresentar no decorrer de sua exposição. O futuro, com certeza, nos dirá.
Referências
Bibliográficas
BOOTH, W. C.; COLOMB, G.G.; WILLIAMS, J. M. A Arte da pesquisa. 2ª edição. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. 350p. (Coleção Ferramentas).
COSTA, P. F. Ciência e Bioarte: encruzilhadas e desafios éticos. Portugal: Caleidoscópio, 2007. 128p.
ZAMBONI, S. A pesquisa em Arte: um paralelo entre arte e ciência. 3ª edição. Campinas, SP: Autores
Associados, 2006. 123p. (Coleção polêmicas do nosso tempo).
Periódicos
ARAÚJO, D. L. C. O DNA Semiótico: análise semiótica sobre a bioarte. Revista Anagrama: revista
científica interdisciplinar da graduação, São Paulo, v.3, n.2, p.1-13, 2010.
HAUSER, J. Gènes, génies, gênes , in: Jens Hauser, ed. L’Art Biotech. Catalog. (Le Lieu Unique, Nantes,
France, 2003), p. 9-15.
Sitiográficas
GOMES, M. Bioarte e a Relação do(s) Público(s) com a Ciência.
Disponível em: <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5995.pdf>. Acesso em: 02/09/2014
3.1 Metodologia ser Implementada
LIPTON, S. T. Art Imitates Life-Science - The Bio-Art Movement Finds
(Cultures & Grows) Its Wings in France, 2003.
Disponível em <http://www.shanatinglipton.com/bio-art-1.html>. Acesso em: 14/09/2014
VITA-MORE, N. Brave BioArt 2: shedding the bio, amassing the nano, and cultivating posthuman
Por meio de intensa revisão literária, o projeto já está iniciado e tem como meta central rea-
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life. Technoetic Arts: A Journal of Speculative Research, v.5, n.3, p.171-186, 2007.
Disponível em: <http://hplusmagazine.com/2012/02/02/brave-bioart-2-shedding-the-bio-amassing-the-nano-and-cultivating-emortal-posthuman-life/>. Acesso em: 02/09/2014.
Principais sites
Timothy McVeich
O condenado à morte: a defesa do poeta abjeccionista na
narrativa visual de Mário Cesariny
Timothy McVeigh - The Condemned to Death: The defense of the
Abjeccionist poet in the visual narrative of Mario Cesariny
www.ekac.org/
http://martademenezes.com/
Recebido em 24 de Fevereiro de 2014.
Aprovado para publicação em 31 de Agosto de 2014.
Michelle Coutinho Rocha
Pesquisa Pós-Doc em Ciências da Arte na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa - bolsista da Fundação
para a Ciência e a Tecnologia - , Doutora em Belas-Artes/Pintura e Mestre em Teorias da Arte pela mesma Faculdade.
Resumo
O artigo tem como objeto de estudo o livro Timothy McVeigh - O condenado à morte de Mário Cesariny, uma
narrativa visual próxima da novela-colagem, que constitui uma declaração pública do autor contra a pena de
morte. Partindo da análise formal e interpretação do conteúdo subjacente às representações, e através de uma articulação entre o plástico e o verbal, pretende-se determinar de que forma a apropriação e integração de mensagens
icónicas e verbais sobre um acontecimento real, amplamente difundido nos meios de comunicação social, cumpre
o propósito de afirmação do pensamento poético e da posição Abjeccionista. O estudo confirmou a identificação
do condenado com a imagem da “menina poesia”, entendida como metáfora da identidade poética do autor, bem
como uma aproximação do condenado ao poeta abjeccionista, subversivo e interventor, impulsionador da ação e
da transformação.
Palavras-chave: Mário Cesariny; Surrealismo Português; Narrativa visual; Pintura; Poesia
Abstract
This article studies Mario Cesariny´s book - Timothy McVeigh - The condemned to Death - a visual narrative not
far from a collage novel, that represents the public position of the author against the death penalty. Departing from
a formal analysis and the interpretation of the content behind the representations, and through an articulation
between the plastic and the verbal, one tries to understand how the appropriation and integration of iconic and
verbal messages relating to a real life event - vastly known through the Media - fulfils the purpose of reaffirming
the poetic thinking and a clear abjeccionist statement. The research confirmed the identification of the condemned
with the image of the “Poetry girl”, a metaphor of the poetic identity of the author, as well as an association of the
condemned to the abjeccionist poet, in its subversive, pro active role as agent of action and change.
Keywords: Mário Cesariny; Portuguese Surrealism; Visual narrative; Painting; Poetry
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Poéticas Visuais, Bauru, v 5, n. 1, p. 121-136, 2014.
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