Eternidade SA – E-Book

Transcrição

Eternidade SA – E-Book
DANIEL ROSSI
ETERNIDADE S.A.
São Paulo – 2013
1ª Edição
© Daniel Rossi
Rossi, Daniel
Eternidade S/A / Daniel Rossi. - Cordeirópolis/SP, 2013.
110 p.
1. Conto. 2. Fantasia.
ETERNIDADE S.A.
ILUSTRADOR
CEBES DE MARTIN JUNIOR
www.animartesestudios.com.br
REVISOR E EDITOR
ALEXANDRE GARCIA DE CARVALHO
www.paranerdia.com.br
CONTATOS DO AUTOR
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DISPONÍVEL PARA VENDA NA AGBOOKS
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Para Daize, o amor da minha vida.
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SUMÁRIO
SOBRE A LEITURA DESTE LIVRO ...............................................11
PRÓLOGO ...................................................................................13
QUEBRANDO A ROTINA ..............................................................27
O PRIMEIRO CLIENTE ................................................................47
SANTOS PECADOS ......................................................................67
RESPOSTAS ................................................................................87
DE VOLTA DO INFERNO ........................................................... 111
DECLARANDO GUERRA ............................................................ 123
FUGITIVOS ............................................................................... 139
CAMPO DE BATALHA ................................................................ 157
PELA ETERNIDADE ................................................................... 175
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Sobre a leitura deste livro
Você provavelmente não me conhece. Ou talvez me conheça do site Paranerdia, onde eu lanço meus contos. Este é o
meu segundo livro publicado de forma independente. O
primeiro, chamado “Crônicas Nerds” é um apanhado dos
textos que publiquei no site citado acima. Mas este livro é
diferente. É o meu primeiro romance, ou tentativa pelo
menos. Vamos falar um pouco sobre ele antes de você começar a lê-lo.
A narrativa deste livro pode lhe parecer um pouco diferente do que você está acostumado. Aliás, você pode odiá-lo,
mas acho sinceramente que você deveria dar uma chance
a ele. E a mim também. Sempre gostei de ler livros criando
um filme em minha cabeça. Faço isso desde que li “O Mistério do Cinco Estrelas”, escrito pelo fantástico Marcos
Rey, um ídolo e influência até hoje. E foi assim que tentei
escrever Eternidade S.A.: imaginando os personagens como atores de cinema, com cada parte da história como cenas em um filme.
O seu Albert Kyrkman pode ser qualquer ator que você
goste. O meu é o Idris Elba. Meu Arthur Sanders é um
Danny DeVito jovem, o seu pode ser o Joe Pesci jovem. Ursula poderia ser Gemma Artenton.
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Enfim, espero que você consiga ver o “filme” de Eternidade
S.A. na sua cabeça assim como eu vi quando escrevi este
livro. Talvez o seu seja até melhor que o meu. Boa leitura!
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Prólogo
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Hiroshima, 6 de agosto de 1945.
A manhã de segunda-feira começara com clima agradável.
Por todo lado, a cidade industrial se agitava com o rotineiro vai e vêm de seus habitantes rumo aos seus trabalhos
depois do final de semana. Era apenas mais um dia normal, de céu aberto e claro. Os ventos da guerra ainda não
haviam soprado sobre Hiroshima, mas eles suspiravam a
todo o momento no ouvido de seus habitantes a desconfiança de que eles seriam os próximos. Um homem, porém,
observava a toda àquela agitação com certa apreensão.
Escondido na cidade há alguns dias, contemplava em sua
mente o passado e o futuro de um conflito que pouco tinha
a ver com os transeuntes que ele observava pela janela.
Era alto e magro, aparentando estar chegando à casa dos
cinquenta anos, mas o rosto enganava, pois guardava uma
estranha jovialidade. Os cabelos negros e lisos emolduravam o rosto branco e alongado, com queixo fino e proeminente. Não fossem as roupas simples que vestia, lembraria
a figura de algum lorde inglês saído de histórias medievais.
Os olhos azuis pareciam observar atentamente a tudo o
que acontecia do lado de fora da casa.
Ela havia sido escolhida a dedo para não chamar a atenção. Era simples, porém bem arrumada, e sua posição no
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topo de uma colina da cidade lhe dava uma visão privilegiada para prever uma possível emboscada. Era uma construção antiga, toda feita de madeira. Os cômodos estavam
praticamente vazios, e os poucos móveis tinham sido adquiridos no próprio comércio local pelo seu assistente, que
viajara para cá antes dele, para providenciar tudo o que
fosse necessário para o esconderijo.
Mesmo com o iminente final da guerra, o Japão ainda estava em guerra com os aliados, e era preciso ter precaução. O país oriental havia sido escolhido, pois era o mais
longe possível das tropas que o caçavam. Informações privilegiadas, conseguidas a custo da vida de vários aliados
seus garantiam que permaneceria assim. Aproveitara
aqueles dias para alinhavar o acordo entre o Conselho e a
cúpula inimiga. Um armistício estava próximo de se tornar
realidade. A guerra dos homens não lhe interessava. Tinha
um conflito secular para encerrar, e finalmente havia convencido seu irmão de sangue a aceitar as condições impostas pelo inimigo.
- Eles se tornaram maiores do que nós. – divagava em silêncio. – Os humanos em breve nem precisarão mais serem protegidos. É hora de nos recolhermos e tornarmos
meros espectadores.
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Recostou-se em uma janela, tomando o cuidado de não se
expor ao sol. Ouviu o som de algumas crianças que passavam na rua, cantando uma música tradicional. De repente
sentiu-se incomodado. Sabia que não muito longe dali,
uma cidade como aquela deixaria simplesmente de existir
no que ele acreditava ser agora questão de horas, talvez
minutos.
- Eles talvez apenas precisem se proteger de si mesmos.
Sempre fomos encarados como demônios, mas nunca fizemos nada como o que eles irão fazer. Será que realmente
somos uma ameaça? – os pensamentos voavam em sua
mente.
Os humanos poderiam ser criaturas muito mais monstruosas do que ele e seus irmãos. Porém aquela hedionda
ação humana havia lhe proporcionado o esconderijo perfeito. O serviçal que o acompanhava entrou silenciosamente
na sala. Percebeu o semblante introspectivo do seu senhor
e manteve-se em silêncio.
- O que você deseja Luca?
- Perdão, não queria incomodar o senhor. Posso lhe servir
sua refeição? – O assistente, um rapaz que aparentava
pouco mais de vinte anos, vestido com um terno negro ti-
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nha as mãos cruzadas à frente do corpo, aguardando as
ordens de seu mestre.
- Sim, por favor. – O homem meneou com a cabeça e deu
um longo suspiro.
O serviçal saiu da sala e retornou em seguida com uma
pequena bandeja. Nela havia uma garrafa de cristal cheia
com um líquido vermelho reluzente e um cálice, também
de cristal. Posicionou-a sobre um pequeno aparador próximo a poltrona onde o mestre costumava sentar-se para
meditar. Luca serviu o líquido no cálice e pousou a garrafa
de volta na bandeja.
- Deseja mais alguma coisa senhor?
- Não Luca, obrigado. – Virou-se para o criado com um leve
sorriso.
Foi nesse momento que o introspectivo homem percebeu
pela primeira vez o ponto reluzente ao longe no céu. Sua
forma alongada lhe lembrara a de uma flecha prateada. A
princípio não ligou os fatos, mas conforme o pequeno ponto ia se movendo e aproximando, começou a ficar intrigado. Nenhum alarme de bombardeio foi soado, o que o deixou ainda mais confuso. Poderia ser um ataque, mas um
único avião não seria capaz de causar muito estrago. Pro18
vavelmente destruiria alguma ponte, que seria reconstruída no dia seguinte.
Mas não demorou muito para que ele, finalmente, percebesse o que estava acontecendo. Um sentimento confuso,
misto de tristeza e raiva tomou conta de seu peito. Havia
sido traído pelos seus irmãos de sangue. Ou pelo menos
alguns deles, que não compartilhavam seu anseio por paz.
Sua visão sobre humana lhe permitiu ver o pequeno artefato caindo dos céus, descendo lentamente como uma
mensagem vinda direto das chamas do inferno. Uma pílula
prateada, tão pequena e insignificante ao longe, reluzindo
os raios de sol milenares do Japão. Mesmo para ele, um
ser amaldiçoado pela eternidade, pareceu demorar séculos
para que o artefato cumprisse a sua trajetória descendente. Os segundos pareciam ter se tornado anos. Em sua
mente o homem simplesmente tentava compreender a razão para aquilo. A mistura de sentimentos deixou de existir e deu lugar a uma imensa apatia.
- Vlad, por quê? – Sussurrou entre dentes. Uma lágrima
rubra desceu-lhe pelo rosto branco.
Houve então um momento de profundo silêncio. O serviçal
entrou na sala novamente, e contemplou o pranto silencioso de seu mestre. Este estava tão alheio a tudo que nem
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percebia os raios de sol que entravam pela janela começando a queimar sua pele alva. Segundos depois, a pequena casa, junto com toda a cidade estava sendo obliterada
pelas chamas nucleares.
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Washington, DC, décadas depois.
O ginásio lotado fervia de empolgação. A torcida, embalada
pela canção “We Will Rock You” fazia a arquibancada de
concreto tremer. Era o tipo de empolgação que havia ficado
guardada por anos, pois o time local não fazia uma campanha tão boa no campeonato universitário de basquete
há muito tempo. Mas naquele ano as coisas pareciam ter
mudado, e uma sequência incrível de vitórias tinha devolvido o entusiasmo aos torcedores.
O time de basquete da Universidade George Washington
estava realmente irresistível. Simplesmente ganhando tudo, e em grande parte graças a este espetacular jogador,
um estudante de direito negro. O bolsista tinha sido descoberto pelo treinador do time em uma peneira com colegiais, e lhe oferecera uma bolsa de estudos quase que imediatamente. Era tão bom que já havia despertado a atenção até mesmo de olheiros experientes do basquete profissional. Eles estavam agora no ginásio da universidade,
acompanhando mais uma incrível vitória do time, misturados na multidão de pessoas que acompanhavam o jogo.
Porém, eles eram observados neste momento com ainda
mais atenção por duas figuras que pareciam deslocadas
naquelas arquibancadas alegres e coloridas. Dois homens,
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aparentando trinta e poucos anos, vestidos em alinhados
ternos negros como a noite e de óculos escuros. Poderiam
ser facilmente confundidos com algum tipo de seguranças,
se seus ternos não fossem de finíssimo corte italiano. Eles
viram o jovem estudante dar mais uma enterrada e a torcida se agitar em delírio.
- Ainda não entendi por que temos que fazer isso... Não
seria mais fácil simplesmente oferecer um emprego ao garoto? – perguntou o primeiro homem misterioso.
- Ele se destacou muito. E ele é um alvo em potencial. Se
for para a NBA terá exposição demais e tornará a nossa
missão praticamente impossível. Ele tem que aceitar vir
para o nosso lado voluntariamente, lembra-se?
- Sim. E a melhor forma é transformar a vida dele num
inferno, eu presumo.
- Sem dúvida. E é para isso que o mestre nos mandou
aqui.
Os dois homens se entreolharam com um sorriso sinistro.
O jogo continuou por mais alguns minutos, até que a vitória de Washington fosse definitivamente concretizada.
Pouco mais de uma hora depois, o ginásio já estava silencioso, e a barulhenta torcida havia partido. A maioria dos
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jogadores e torcedores, na sua maioria estudantes, sairia
dali direto para alguma comemoração da vitória. Mas o
menino prodígio, principal responsável por ela, não.
Saiu por uma porta lateral, evitando o tumulto e assédio
de torcedores (e torcedoras) mais exaltados. Tinha uma
importante entrevista para estágio bem cedo no dia seguinte, e como o pai vivia lhe dizendo, a glória do basquete
poderia ser passageira. Queria descansar para estar no
seu melhor para ela. O que também não seria difícil, pois
era um aluno brilhante. Tinha um grande sorriso no rosto
e a sensação de que, qualquer que fosse o caminho que
decidisse seguir, seria bem sucedido. Com seus pouco
mais de vinte anos, sentia-se no topo do mundo.
Ele dirigia agora por uma larga avenida, rumando para
casa. Achou que ela estava estranhamente deserta, mas
devia ser por causa do jogo, que havia desviado o tráfego
dali. A sua tranquilidade foi interrompida, porém quando o
carro deu uma guinada descontrolada, como se tivesse sido atingido por uma força descomunal que ele simplesmente não compreendia de onde havia vindo. Pisou violentamente no pedal do freio, mas o carro simplesmente se
recusava a obedecer aos seus comandos. Ele somente parou quando se chocou violentamente contra uma árvore à
beira da larga avenida.
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Com o impacto, sua visão se tornou turva e ele perdeu a
consciência alguns segundos depois. Por isso ele não viu
os dois homens misteriosos do ginásio se aproximando,
caminhando pela avenida deserta. Pararam ao lado do carro e observaram o seu ocupante.
- Ele está inconsciente, mas vai ficar bem. Acho que você
exagerou um pouco na força desta vez. É melhor usar o
amuleto, não quero que ele acorde berrando.
O outro homem retirou um pequeno amuleto e colocou sobre a fronte do jovem, que seguia desacordado. Verificaram
em seguida que ele estava realmente bem, apenas inconsciente pelo impacto.
- Acho que está tudo conforme planejado. Vamos terminar
o serviço e sair daqui.
Colocou então o braço para dentro do carro e segurou o
joelho esquerdo do jovem com a mão. Em seguida, ouviuse o som de ossos sendo esmigalhados por uma força fora
do comum. Certamente o garoto teria acordado aos berros
não fosse o feitiço que o mantinha em silenciosa inconsciência.
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Os dois homens então desapareceram na noite. Ao longe
se podia ouvir o som de sirenes da polícia que se aproximava do local do “acidente”.
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Quebrando a Rotina
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Nova York, alguns anos depois.
O prédio, situado em uma parte pobre da cidade já tinha
visto dias melhores. Prostitutas e seus respectivos cafetões
perambulavam livremente na rua em frente, assistidos por
toda sorte de marginalizados. Bêbados, drogados, pequenos traficantes, a vizinhança era fértil para esse tipo de
gente. Mesmo a polícia tinha medo de patrulhar a área, e
aparecia muito raramente por lá, geralmente apenas
quando existia um corpo ou mais no asfalto para serem
recolhidos. Mas, alheio a tudo e a todos, existia este rapaz
negro.
Todos que o viam sair cedo para trabalhar ficavam intrigados. Tinha boa aparência e diziam que havia frequentado
boas escolas. O que ele estaria fazendo morando num
bairro como aquele? Simpático, brincava com as crianças
da vizinhança e até arriscava algumas partidas de basquete com os jovens da escola dos arredores. Parecia jogar
muito bem, mas sempre muito pouco. Sempre acabava
com a mão sobre o joelho esquerdo, com dores. Poucos
realmente chegaram a trocar mais do que algumas palavras com ele, e para todos os efeitos ele era o rapaz do 11B. É nele que ele estava agora.
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O alarme do rádio relógio ecoou pelo acanhado apartamento. De olhos abertos, fitando o teto, Albert Kyrkman já estava acordado há tempos. Passara a noite em claro pensando em problemas do trabalho. Este vinha consumindo
sua vida nos últimos tempos. Havia se formado em direito
em uma boa faculdade, com muito esforço, e com as melhores notas. Era de família muito pobre, porém graças a
uma bolsa conseguida por jogar bem basquete no colegial,
tinha tido a oportunidade de concluir a faculdade de Direito. Poderia até ter sido jogador profissional, caso um acidente de carro não tivesse deixado um de seus joelhos
comprometido. Mas, apesar de toda a boa formação, a única oportunidade que havia surgido era no escritório de um
coreano obeso e calvo chamado Kyong.
Este lhe impunha uma rotina de semiescravidão, em troca
de um salário de fome. Sonhava em conseguir um emprego
melhor, mas a recessão na economia americana naqueles
dias não deixava muitas possibilidades. Apesar disso, uma
oportunidade havia lhe batido a porta, e esta também era
uma das razões de sua insônia.
Ela veio através de um velho amigo de escritório que havia
prosperado repentinamente em uma firma que havia se
estabelecido há alguns meses na cidade, vinda de Chicago.
Ele lhe passara um cartão misterioso em branco que se30
gundo ele lhe seria muito útil caso ele aceitasse fazer “certas concessões”.
Pensou logo em tramoias jurídicas ou
corrupção política, mas o conhecido tinha lhe garantido
que não era o caso. Não que não tivesse chegado a cogitar
isso, pois a vida que vinha levando o estava impelindo a
aceitar praticamente qualquer coisa. Porém tinha um senso de moral muito elevado e abandonou a ideia. Os pais,
falecidos há algum tempo, o tinham ensinado bem.
Pegou o telefone e ligou para o Sr. Kyong. Mentiu que estava doente e que não poderia trabalhar naquele dia. O
coreano não acreditou, pois ele era astuto demais e Kyrkman um péssimo mentiroso, ou simplesmente por ter ficado furioso em ser acordado tão cedo. A única opção foi
desligar o telefone antes que o coreano pudesse terminar a
rajada de impropérios contra ele. Não suportava mais sequer ouvir a voz do, se tudo desse certo, futuro ex-chefe.
- Será que estou me precipitando? Ah, dane-se, não vou
aguentar mais um dia trancafiado naquele escritório fedorento!
As instruções que o amigo havia lhe dado eram no mínimo
estranhas, mas a sua vida estava tão monótona e insuportável que os dias estavam difíceis de diferenciar. Qualquer
coisa que lhe retirasse da rotina modorrenta daquela vida
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miserável era bem vinda. Abriu uma gaveta da escrivaninha amontoada de papéis e com um computador velho e
pegou o pequeno cartão de visitas branco, sem absolutamente nada escrito. Suspirou, e pensou por um instante
se aquilo não seria uma brincadeira do velho Arthur, que
era notório por infernizar o Sr. Kyong com pegadinhas.
- Juro por Deus que te arrebento se isto for uma brincadeira de mau gosto, Arthur!
No final das contas, nada tinha a perder. Lembrou-se cuidadosamente das instruções que o colega havia passado:
com uma pequena agulha que usava para costurar de volta os botões de suas surradas camisas, fez um pequeno
furo na ponta do dedo indicador da mão esquerda. Uma
pequena gota de sangue apareceu e ele a derrubou sobre o
cartão.
A princípio, nada aconteceu. Começou a sentir-se um idiota.
- Eu sou uma besta mesmo... – sentiu o estômago revirar.
Mas este sentimento repentinamente desapareceu quando
a pequena gota vermelha começou a reagir com o papel do
cartão. Formou-se primeiro um borrão avermelhado, que
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lentamente foi tomando forma para finalmente formar uma
sentença.
Fascinado pelo cartão, quase caiu da cadeira quando o
telefone tocou. Recuperou o fôlego, ajeitou os óculos de
aros grossos e com um longo suspiro disse um tímido alô.
- Eu gostaria de falar com o Sr. Albert Kyrkman.
- É ele. – temeu que fosse do escritório avisando que tinha
sido demitido.
- Olá Sr. Kyrkman. Meu nome é Samantha Rogers e eu
sou Diretora Executiva da Eternidade S.A. e estou recrutando novos talentos para a nossa firma. O seu nome nos
foi indicado pelo seu amigo Arthur Sanders para uma vaga
no nosso setor de advocacia. O senhor teria um tempo
disponível para conversarmos?
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Estava atônito. Que coincidência maluca era essa? Assim
que a palavra se formara pintada com o seu sangue no
cartão o telefone tocara e agora estava falando com a própria empresa, que lhe oferecia uma entrevista de emprego.
- Sr. Kyrkman? – A voz da mulher no telefone o fez voltar à
realidade.
- Claro... Hoje é um bom dia para mim. – As palavras
saiam trôpegas de sua boca.
- Eu imaginei. – Kyrkman nem reparou na afirmação estranha. – Nós temos um horário de funcionamento não
muito ortodoxo. O que me diria de 9 da noite?
- Claro, por mim, tudo bem. – Tinha pressa em encerrar
aquela conversa maluca. A entrevista, que era o que lhe
interessava, já estava marcada.
Samantha lhe passou o endereço do escritório onde a entrevista seria realizada. Ele o anotou em um pedaço de
jornal velho e os dois se despediram. Começava a se sentir
bem, como se uma porta lhe havia sido aberta, mesmo que
de uma forma extravagante. Olhou pela janela do apartamento e se deu conta que tudo aquilo tinha acontecido em
questão de minutos depois que havia se levantado da cama, e ainda eram pouco mais do que 6 da manhã e o sol
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ainda nem tinha saído direito. Acostumara-se a levantar
sempre bem cedo para conseguir chegar a tempo no trabalho. Tinha que tomar dois ônibus para sair do seu bairro.
Finalmente tomou consciência que podia ser por causa
disso que Kyong ficara tão furioso. Deu uma gargalhada.
- O horário deles é realmente não ortodoxo.
Voltou para a cama e dormiu bem como há muito não
dormia.
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Tirou com pesar a nota de dentro da carteira. Chegou até
mesmo a suspirar para ela. O motorista o observava com
cara de poucos amigos, e não entendia porque o jovem estava tão sentimental em relação àqueles trocados. Não sabia que Albert tinha limpado os últimos vinte dólares de
sua conta bancária para pagar um táxi para o centro da
cidade. Provavelmente passaria o resto do mês à base de
macarrão instantâneo e água da torneira. Mas ele não
queria arriscar amassar o melhor terno que tinha dentro
de um ônibus ou metrô abarrotado de gente. Nem fazia
ideia de como iria embora para casa, pois nem dinheiro
para o ônibus havia lhe restado. Poderia pedir emprestado
algum para Arthur, caso tivesse a sorte de encontrá-lo na
empresa.
O que importava é que agora estava entrando no elegante
saguão de um proeminente edifício comercial, aguardando
pela tão esperada entrevista que poderia lhe dar um emprego novo e uma nova perspectiva. Subiu pelo elevador
até o décimo terceiro andar, onde era aguardado. Identificou-se com a secretária de Samantha Rogers e sentou-se
em uma poltrona para esperar.
Estava ansioso e preocupado em passar uma boa impressão. Levantou-se e perguntou a recepcionista onde era o
banheiro. Ela era uma ruiva sensacional que não tirava os
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olhos dele desde que ele chegara. Indicou-lhe uma porta
no final de um corredor. Até então não havia percebido
como ela o engolia com o olhar. Não que ele não levasse
jeito com as mulheres, muito pelo contrário. Era um negro
de quase um metro e noventa de altura, porte atlético e
olhos verdes que arrancavam suspiros. A cabeça raspada
dava um ar de jovialidade aos seus trinta e três anos. Porém, com a vida que vinha levando, tinha deixado de lado
até as aventuras românticas, pois não lhe sobrava muita
coisa do salário para gastar em baladas.
Dirigiu-se até o banheiro, onde para sua surpresa não havia espelhos. Percebeu pelas marcas na parede que os
mesmos haviam sido arrancados há pouco tempo. Como já
estava ali mesmo, passou uma água no rosto e se arrumou
o melhor que pode no reflexo de um toalheiro de metal.
Voltou pelo corredor e perguntou casualmente o que havia
acontecido com os espelhos à secretária. Ela pareceu se
divertir muito com a pergunta, como se esta lhe soasse de
alguma forma absurda.
- Aconteceu um... acidente e eles precisaram ser trocados.
O pessoal da manutenção deve vir colocá-los de volta em
breve.
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Apesar de sentir atraído pela bela ruiva, começou a sentir
um frio na espinha. Preferiu calar-se e voltar a sentar-se
em sua poltrona. Ficaria ali por mais alguns minutos saciando os olhares dela, até que o telefone na mesa dela tocasse.
- A senhorita Rogers vai atendê-lo agora Sr. Kyrkman. Fez uma menção com a cabeça para que ele a acompanhasse.
Seguiram por um corredor até uma porta que tinha o nome de Samantha na porta. Ela foi à frente, dando a oportunidade a Kyrkman de admirar toda a sua beleza, agora
não mais escondida atrás da mesa de secretária. Ela era
mesmo sensacional, pensou Albert. A ruiva abriu-lhe a
porta e ele entrou no escritório mais elegante que já tinha
visto na vida.
Havia estantes com livros enormes, que pareciam ter muitos anos de idade e serem caríssimos. Os móveis eram todos de aparência clássica, e a iluminação indireta da sala
dava um ar todo especial ao ambiente. Ele a achou até um
pouco escura demais, porém muito aconchegante. No fundo do escritório, atrás de uma enorme mesa estava Samantha Rogers, a mulher com que havia conversado ao
telefone.
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Era uma morena extremamente atraente, assim como a
recepcionista. Ela lhe estendeu um aperto de mão firme
como ele não experimentava há muito tempo. Sentiu a pele
sedosa e fria escorregar em sua mão, o que o fez sentir um
calafrio. Estava realmente gelado ali, provavelmente por
causa do ar condicionado.
Ela pediu que se sentasse e ficasse à vontade. Acomodouse em uma poltrona à frente da mesa da executiva, mas
uma coisa em particular o despertou certa desconfiança.
Apesar de toda a postura de executiva em seu tailleur e a
maquiagem carregada, vista de perto e com atenção, não
aparentava ter mais do que dezesseis ou dezessete anos.
Aquilo o intrigou, mas não estava ali para questionar a
idade de sua contratante.
- O seu currículo é impressionante. - ela começou a conversa.
- Eu não me lembro de ter enviado um, na verdade... - Absolutamente não se lembrava de ter enviado nada para
aquela empresa.
Os únicos contatos que havia tido eram uma conversa casual com Arthur e o telefonema misterioso pouco depois de
mexer com o "cartão de visitas mágico". Mas havia enviado
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tantos currículos naqueles últimos dois anos que era possível que algum tivesse acabado caindo nas mãos deles.
Vale dizer que apesar do respeitável currículo, nenhuma
das entrevistas de emprego que havia feito tinha dado em
alguma coisa. O mais perto que chegou de ter um emprego
de verdade foi ser contratado como assistente de uma famosa advogada. Mas no dia seguinte a entrevista ela fora
misteriosamente assassinada. Chegou inclusive a ter que
prestar depoimento à polícia, mas o caso acabou arquivado por falta de provas.
- Pode ficar tranquilo Sr. Kyrkman. Nós sabemos tudo sobre o senhor e devo dizer, ficamos muito impressionados. Ela percebera que ele havia ficado desconfortável.
- Deixe-me explicar para o senhor sobre a natureza dos
negócios de nossa firma. Nós atendemos um tipo muito
restrito de cliente Sr. Kyrkman. São pessoas que acumularam fortunas enormes durante as suas... vidas. - Ela enfatizou estranhamente a palavra vida. - Porém, estes mesmos clientes necessitam, eventualmente, desaparecer.
Albert seguia o raciocínio da executiva com atenção, e esta
percebeu o seu olhar desconfiado. Ela continuou:
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- Nosso trabalho é fazer com que seus bens continuem
lhes pertencendo, mesmo depois que eles sumam de vista
e retornem. Faz parte do nosso trabalho, também, providenciar-lhes novas identidades. Existe também toda a
questão logística, mas essa é bem menos interessante... ela sorriu para ele.
Kyrkman ficou atônito. Com que tipo de gente estaria se
envolvendo? Seriam mafiosos? Estava com medo.
- Com todo o respeito, Srta. Rogers, mas não me parece
que a natureza dos negócios de sua firma seja... lícita. escolheu as palavras com cuidado. Tinha a impressão que
a qualquer momento um russo ou italiano entraria na sala
com uma arma para matá-lo. A executiva franziu o cenho,
porém sem deixar o ar jovial de lado.
- Posso lhe garantir que não há nada de ilícito em nossos
negócios. Bem, pelo menos não no sentido que o senhor
está imaginando. A necessidade de nossos clientes por
uma nova identidade nada tem a ver com crimes, de qualquer natureza. Digamos que certo aspecto referente à longevidade de nossos clientes poderia despertar... como direi... questionamentos na sociedade. - abriu uma gaveta
da enorme mesa de madeira nobre e retirou o que parecia
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ser um álbum de fotos antigas. Ela o colocou sobre a mesa
e o empurrou na direção dele.
- Talvez isto lhe ajude a entender melhor...
Albert pegou o álbum sobre a mesa e o abriu. A princípio,
tratava-se apenas de uma xilogravura de uma família que
parecia ter vivido na época vitoriana. Porém, quando começou a folhear as outras páginas, começou a perceber o
que de fato acontecia. A mesma foto de família se repetia
pelo que pareciam ser décadas. Às vezes com um membro
a menos, às vezes com um membro novo. Porém, praticamente não havia diferenças entre a família vitoriana com
uma em uma foto dos anos setenta, por exemplo. A semelhança não era simplesmente de indivíduos da mesma família: eram as mesmas pessoas, vivas durante o que seriam centenas de anos.
- Isto é impossível... - balbuciou incrédulo.
- Realmente é Sr. Kyrkman? - Ela o observava com um
olhar calmo.
Enquanto ansiava por tirar a sua vida da rotina, nunca
havia imaginado uma coisa como aquela. Estava aterrorizado e ao mesmo tempo encantado com tudo aquilo.
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- Não tenha medo Albert. - Ela o chamou pelo primeiro
nome. Parecia ter lido seu pensamento. Ou será que estava deixando transparecer o quanto estava petrificado?
Fechou o álbum de fotografias e o colocou lentamente sobre a mesa. Levantou-se e começou a caminhar em direção
a porta. Samantha não fez nenhuma menção em impedilo, apenas observou. Ele chegou a colocar a mão na maçaneta, mas não conseguiu girá-la. De repente começou a
lembrar-se da vida que vinha levando, da solidão e da
mesmice, do dinheiro contado e da falta de perspectivas
com o futuro.
Fechou os olhos e inclinou a cabeça até que sua testa tocasse a porta. Virou-se e voltou a sentar-se na poltrona em
frente à mesa da executiva. Esta lhe sorriu tentando acalmá-lo.
- Vou lhe dar uns minutos para pensar, meu caro. – Enquanto falava, empurrou uma pasta em sua direção. – Tudo o que precisa saber sobre o cargo está dentro desta
pasta. Analise com cuidado.
A executiva saiu em seguida, deixando Albert sozinho na
sala. Ele pegou a pasta e começou a examinar os papéis
dentro dela. Viu que ganharia uma vultosa quantia em dinheiro, fora inúmeros benefícios, como por exemplo, mo43
radia e carro custeados pela empresa. Era muito mais do
que o normal para a função que exerceria. Segurando um
documento que explicava sobre os benefícios do cargo, pegou-se tremendo. Estava extremamente tenso. Começou a
se lembrar da pocilga onde morava. Não tinha mais família
e, tirando Arthur, não tinha praticamente amigos. Divagou
por mais alguns minutos.
Deu um pulo na cadeira quando levantou os olhos e percebeu que Samantha estava novamente sentada na cadeira a sua frente. Deu-se conta que pouco mais de uma hora
havia se passado.
- E então senhor Kyrkman, chegou a uma decisão? – Samantha o observava com interesse.
- Se eu aceitar trabalhar na sua empresa, eu serei um de
vocês, certo?
- Uma vez dentro, não haverá como voltar atrás. – Samantha respondeu séria.
- Eu... aceito. - Samantha lhe sorriu. Levantou-se e caminhou lentamente até atrás da poltrona onde ele estava
sentado e apoiou as mãos nos seus ombros. Percebeu o
suor escorrendo pela fronte dele, e o seu corpo trêmulo. O
longo cabelo dela esparramou-se sobre as suas costas, en44
quanto ela descia a cabeça até perto de sua orelha. Sussurrou na voz mais sensual que ele tinha ouvido até então.
- Bem vindo, Albert.
Samantha cravou os caninos fundos no pescoço de Albert.
Ele, porém não sentiu nenhuma dor. Poucos segundos depois já estava inconsciente.
Estava contratado.
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O Primeiro Cliente
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Albert Kyrkman estava radiante. Retornava a Nova York
após alguns meses em uma instalação especial da firma,
em treinamento. Nele, aprendera mais sobre os “negócios”
da firma, e um pouco mais sobre o que se tornara entrando para ela. A parte que mais o fascinou foi descobrir a
história secreta das criaturas que agora eram seus irmãos
de sangue. Aprendera como pelos séculos eles lutaram entre si e contra os lobisomens, ou lupinos, como seu tutor
preferia lhes chamar. Aprendera que durante a Segunda
Guerra um acordo de paz entre as duas raças quase havia
sido alcançado, mas os vampiros haviam sido traídos e um
dos primordiais, vampiros mais antigos que mantinham o
poder de todos eles havia sido destruído.
Com a evolução da humanidade, tornou-se perigoso demais tanto para vampiros quanto lupinos serem descobertos. Era para isso que a Eternidade S.A. existia: prover
meios para que os vampiros pudessem viver incógnitos no
mundo, longe da ameaça humana e de seus inimigos lobos. Não lhe deram uma razão consistente para a guerra
entre vampiros e lupinos, mas tinha tomado um lado e ficaria com ele a partir de agora. Desde que os vampiros não
matassem mais humanos, um acordo de trégua havia sido
feito, através do Conselho.
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Este era um grupo de vampiros mais antigos, que dividiam
o poder de decisão sobre todo o grupo com os primordiais.
Eles decidiam quem deveria ser realocado para evitar
chamar a atenção, e julgavam aqueles que cometessem
alguma infração. Eram uma espécie de corte dos vampiros,
e o modo como eles tratavam as coisas de uma forma “profissional” agradou Albert.
Houve também o treinamento mais prático, onde Albert
aprendera como usar os seus novos poderes de forma adequada. Podia facilmente matar uma pessoa agora com as
próprias mãos, dada à força descomunal que adquirira.
Teve que aprender autocontrole, concentração e a como
usar a agilidade que agora dispunha. E como era bom que
o maldito joelho não doesse mais. Chegara até mesmo a
jogar basquete com alguns outros “alunos”, mas a brincadeira acabou interrompida quando ele se empolgou e destruiu uma tabela com uma enterrada.
Tudo isso se passava na cabeça de Albert Kyrkman agora.
Estava começando uma nova vida. O voo noturno o havia
trazido de volta à cidade, e ele deveria seguir direto do aeroporto para o apartamento que a firma havia lhe designado. Pegou um táxi e passou o endereço ao motorista. Ficou
espantado quando ele parou a frente do luxuoso New York
Palace. Fez o check-in na recepção e subiu para o seu
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quarto. Ficou embasbacado com o luxo em que iria morar.
Sentiu-se feliz pela primeira vez em meses. Sentia-se novamente no topo do mundo.
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Ursula, sua secretária, tinha acabado de lhe passar a ligação. Samantha Rogers engoliu em seco, hesitou por um
segundo e finalmente pediu para que a ruiva passasse a
ligação. O presidente da firma em pessoa estava do outro
lado da linha. Ele não costumava ligar com frequência para ela, apenas quando tinha algum assunto importante
para tratar. E nesta noite em especial, o assunto importante era Albert Kyrkman.
- Boa noite Vlad. – A voz de Samantha era confiante, apesar da tensão que percorria o seu corpo. Do outro lado da
linha, o presidente da Eternidade S.A. começou a interrogá-la sobre o mais novo funcionário da empresa.
- Sim senhor. Realmente acho que o potencial dele é muito
bom. – O magnata parecia empolgado com o desempenho
de Kyrkman nos treinamentos a que vinha sendo submetido naqueles meses desde a sua contratação. Queria lhe
dar enfim, um primeiro cliente. Porém a sugestão deste
cliente em especial pareceu absurda para Samantha.
- Senhor, com todo o respeito, acha realmente que é uma
boa ideia? – A voz de Samantha se tornou um pouco mais
trêmula. Do outro lado da linha, o magnata a persuadiu a
não questionar as suas ordens:
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- Ah Samantha... Já tinha até me esquecido da sua deliciosa petulância. Faça o que o que estou dizendo querida,
tudo será explicado em seu devido tempo. A não ser que
você queira que eu envie alguns executores para discutir o
assunto com você pessoalmente...
A executiva sentiu um calafrio lhe percorrer a coluna.
– Mas é claro que não será necessário, senhor. Tomarei as
providências imediatamente. – Ela tropeçava nas palavras
agora. Despediu-se o mais rápido que pôde.
Repousou o telefone no gancho lentamente e se recostou
na poltrona. O que seu chefe estava pretendendo, passando aquela missão a um novato como Kyrkman? Ele tinha
insistido muito com ela para que os agentes da firma tornassem a vida de Albert miserável, para que ele aceitasse
de qualquer forma o convite para entrar para a empresa.
E agora aquilo. Para ela, era inédito o todo-poderoso Vladimir Tepesov se interessar por um funcionário assim. Ela
mesma gostaria de cuidar daquele maldito “cliente”, mas
Vlad a impedira por anos. Formulava agora uma teoria em
sua mente, e se ela fosse realmente verdadeira, teria que
ter uma conversa bem séria com sua secretária. Vlad talvez quisesse mostrar a seu velho inimigo que finalmente
encontrara o que tantos procuraram durante décadas.
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Acontecimentos extraordinários poderiam estar a sua frente.
Levantou-se, andou até o frigobar em um canto do escritório e tirou uma linda garrafa de cristal com um delicioso
tipo “O” que Vlad lhe tinha mandado como reconhecimento
pelos serviços prestados por ela há algum tempo. Derramou o líquido em um copo e bebeu, olhando pela janela
enorme.
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Algum lugar no interior do estado de Washington, alguns
dias depois.
Via a paisagem idílica. No horizonte, a flecha de prata aparecia novamente, incólume, avançando lentamente em sua
direção. Ouvia as crianças cantando. A música o intoxicava, fazia-lhe perder o ar. Até que ela sumia em tenebroso
silêncio. Em seguida veio o clarão e o calor infernal, e sentiu a pele começar a despregar-se do próprio corpo.
Albert Kyrkman acordou assustado de seu pesadelo recorrente. Vinha-o tendo constantemente desde que havia sido
transformado. Porém, nunca se lembrava do que tinha sonhado, apenas acordava com a impressão de que estava
morrendo. Seu amigo Arthur, que roncava na cama ao lado, dizia que era normal, e que em algum tempo eles deveriam cessar. Pegou o celular no criado mudo para ver as
horas. Já era de manhã, deveriam levantar. Apesar de serem vampiros, teriam que cumprir esta missão durante o
dia.
Este era o procedimento padrão quando a missão se passava em cidades muito pequenas, para não levantar suspeitas. E ele até preferia assim, pois vinha tendo muitas
dificuldades em trocar o sono da noite pelo do dia. E, afi-
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nal de contas, até os mortos precisavam descansar de vez
em quando.
Levantou-se e cutucou o amigo na cama do lado, que
acordou no meio de um ronco engasgado. Arthur Sanders
era completamente diferente de Kyrkman. Era um baixinho branquelo e rechonchudo, de cabelos pretos e olhos
castanhos. Era o oposto do que se poderia imaginar de um
vampiro clássico.
Ele se virou na cama e procurou os óculos no criado mudo. Albert soltou um leve sorriso de deboche e balançou a
cabeça.
- Até quando você vai continuar com esta palhaçada?
Não entendia por que o amigo continuava a colocar os óculos todo dia de manhã, já que como vampiro tinha a visão
melhor do que qualquer ser humano. Arthur dizia que era
para ajudar no disfarce.
- Eu sou como um Clark Kent, amigo.
Kyrkman achava graça, mas respeitava o amigo desde os
tempos em que trabalhavam no escritório do Sr. Kyong.
Apesar do jeito bonachão e de viver pregando peças, era
um excelente advogado.
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Ele se levantou e foi até a sua mala num canto do quarto,
de onde tirou um frasco. Virou-se para Albert e fez uma
careta:
- Eu odeio este negócio. – O pequeno frasco brilhava na
sua mão. – Feliz é você, que não precisa tomar esta porcaria. Por isso a firma está contratando tantos “escurinhos”
como você.
Kyrkman ficou um pouco ofendido com o comentário deveras racista, mas sabia que não havia maldade. Na verdade,
perdoou o amigo completamente quando o ouviu gemendo
no banheiro por causa do conteúdo do frasco. Como eles
sairiam durante o dia, Arthur precisava tomar um preparado que evitava que sua pele sofresse queimaduras severas por causa do sol. Porém ele provocava um certo “desconforto” durante alguns minutos após ser ingerido.
Por ser negro, Kyrkman não precisava dele, a não ser que
fosse sair durante o dia em algum paraíso tropical. O que
não era o caso daquela cidadezinha perdida entre a floresta e a montanha, onde o tempo nublado predominava quase sempre. Ele esperou mais alguns minutos enquanto o
amigo estrebuchava no banheiro.
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- Centenas de anos e aqueles magos bestas não inventaram nada melhor que esta mer... – Arthur teve a frase,
berrada de dentro do banheiro, interrompida pelo vômito.
Quando saiu, mais branco do que o costume e com cara
de que havia sido atropelado, acabaram de se arrumar e
tomaram um pequeno “lanchinho”, que os dois traziam
camuflado em garrafas de bebidas especialmente preparadas. Pagaram a conta do pequeno motel de beira de estrada onde passaram a noite e partiram.
Alguns minutos depois já estavam em uma estreita estrada de terra que se estendia floresta à dentro, alguns quilômetros fora da pequena cidade. Poderiam facilmente
chegar ao seu destino simplesmente pulando pelas árvores, porém a discrição era um requisito básico da função
deles, e seria ridículo se algum caçador os visse voando
por entre os galhos das árvores. Albert estava curioso com
aquela situação.
- Pensei que nossa clientela fosse apenas de milionários,
não de gente morando em cabanas no meio do nada.
- Este é um cliente muito especial. Ele é, ou era, funcionário do governo. – Kyrkman ficou surpreso com a informação. Vampiros sendo mantidos pelo governo era novidade
para ele.
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– Ele já deveria ter sido realocado há algum tempo, mas ele
tem fama de ser um pouco “difícil”.
Seguiram pela estrada de terra batida por mais alguns minutos, até que avistaram a cabana. Desceram e caminharam até a porta. Arthur bateu duas vezes. Antes que pudesse bater pela terceira vez, ambos sentiram uma coisa
gelada atrás de suas cabeças. O dono da casa, sorrateiramente os havia emboscado, e agora pistolas estavam encostadas em suas nucas.
- Senhor, nós somos advogados da Eternidade S.A. e só
queremos falar com o senhor. – A voz de Arthur era trêmula. Apesar de um tiro na cabeça não ser capaz de matá-los,
a não ser que as balas fossem de prata, eles sabiam que a
recuperação era lenta e extremamente dolorosa. Fora que
ficavam totalmente vulneráveis neste meio tempo.
- Eu sei quem vocês são. – O homem falava rispidamente.
- Então o senhor sabe que de nada adiantará puxar o gatilho. – Arthur manteve-se firme.
Neste ínterim, uma mulher apareceu à porta. Aparentava
já ter uma idade relativamente avançada, e se locomovia
com a ajuda de uma bengala. Os óculos escuros denunci-
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avam que ela era cega, ou tinha problemas graves de visão.
- James, quem está ai com você?
- São dois vendedores de seguros querida. Pode deixar que
eu os atendo. – A voz do homem agora era terna.
- Ok. Vou me deitar um pouco. – A mulher fechou a porta.
Arthur e Albert estavam impressionados com ela. Não era
incomum que vampiros simulassem deficiências físicas
para incrementar seus disfarces, mas a atuação da mulher
era realmente convincente. Arthur ficou desconfiado por o
marido não os ter apresentado pelo que eles realmente
eram, mas tinha preocupações maiores como a pistola
apontada para sua cabeça. James, o marido, abaixou as
armas.
- O que vocês querem? – A rispidez voltara. Arthur o encarou com um ar de seriedade que Albert dificilmente testemunhava.
- Está na hora de você e sua família fazerem a transferência James. Já passou da hora, na verdade.
- Mas eu não entrei em contato com vocês...
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- Sim. Mas não adianta fazer-se de inocente. Você sabe
que o Conselho observa a todos nós. Seu tempo já se esgotou. Vocês precisam ser realocados. Vocês colocam em risco a segurança do nosso segredo. – Arthur tentava escolher as palavras com cuidado. James pensou por alguns
segundos.
- Venham por aqui. Não é seguro falar destes assuntos
aqui fora.
Caminharam em direção a um pequeno celeiro atrás da
cabana. Somente agora Albert conseguira olhar direito para o homem. Ele usava uma roupa de moletom grossa,
com o capuz cobrindo-lhe a cabeça. Provavelmente vestiase assim para se proteger da luz solar. Aparentava ter
aproximadamente entre setenta e oitenta anos, mas caminhava com firmeza juvenil. Mas foi quando entraram no
celeiro que Kyrkman finalmente viu seu verdadeiro rosto.
O velho retirou um pequeno amuleto do bolso, levou-o a
boca e sussurrou algo. De repente seu rosto mudou, e ele
agora tinha a aparência de um homem com pouco mais de
trinta anos, idade que provavelmente tinha sido transformado.
- Você sabe o quanto eu já sofri pelo Conselho e por este
país? – havia rancor em sua voz. – Eu perdi a conta de
61
quantos agentes da KGB me “mataram” durante a Guerra
Fria para que eu trouxesse as malditas informações de que
eles tanto precisavam.
Albert começou lentamente a entender quem aquele homem era. Havia ouvido falar dele em seu treinamento, alguns meses atrás. Ele era um espião americano que fora
transformado para cumprir missões militares que não podiam fracassar. Ele havia atuado por todo o leste europeu
e até mesmo dentro da própria mãe Rússia.
- Eu compreendo senhor. Mas o que nossos contratantes
não compreendem é a sua relutância. O senhor não tem
nada a perder. Vai ganhar uma vida nova para o senhor e
sua mulher. Se o senhor me der à oportunidade de lhe
mostrar estes memorandos... – Antes que Arthur pudesse
completar a frase, a pistola voltou a encostar-se a sua cabeça, desta vez na sua testa.
- Vocês não entendem mesmo não é? Eu vim para este fim
de mundo para fugir de todo este tormento. Vocês realmente acham que eu teria me deixado transformar se soubesse dos suplícios que eu teria que passar? – O homem
fez uma pausa. Os olhos de Albert estavam arregalados, e
pulavam do rosto de Arthur para a mão com a arma.
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- Eu vim para cá para fugir de tudo isso. Queria me isolar.
Mas ai eu conheci Amanda. Eu sabia que não deveria me
envolver com ninguém, mas era tão fácil com ela... E eu a
amo tanto... – Lágrimas grenás começaram a cair de seus
olhos. – A visão dela facilitou as coisas... Por anos ela não
percebeu que eu não envelhecia... – Arthur piscou como se
de repente tudo se tornasse claro.
- Quer dizer que...
- Eu nunca a transformei. Eu a amo tanto que simplesmente não tive coragem. Eu não quero esta maldição para
ela. Ela é tão inocente... Não faz ideia da existência de gente como nós, advogado.
O semblante de Arthur se fechou. Não havia mais traço
algum de humor. O drama do ex-espião era uma novidade
para ele. Kyrkman por sua vez começava a sentir-se mal
por James, e uma ponta de dúvida havia se instalado em
sua alma. Onde havia se metido? Neste momento o homem
já havia baixado novamente a arma. O rosto estava rubro
com as lágrimas de sangue, e seu semblante não mostrava
mais raiva, apenas tristeza. Arthur olhou para o rosto
amedrontado de seu amigo novato e viu que ele estava
atônito.
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- Acho que é melhor você esperar lá no carro, Albert. –
Prontamente, Albert se levantou e saiu do celeiro. Em seguida, Arthur encarou o ex-espião. Tomou fôlego para continuar a conversa.
- Você sabe o que tem que ser feito então... – A voz de Arthur era pausada e baixa. James não respondeu. Apenas
assentiu com a cabeça. Arthur então abriu a sua pasta e
sacou de lá de dentro um pequeno pacote de veludo vermelho.
- Eu gostaria de me despedir dela... Mas será melhor assim...
- Eu lhe garanto que tomarei todas as providências para
que ela fique amparada. – Arthur desenrolou o pacote de
tecido e retirou uma adaga de prata. Hesitou por um segundo, mas em seguida a entregou para James. Ele não
disse nada. Apenas pegou a adaga e a apontou contra o
próprio peito.
- Obrigado... – a voz de James mal pode ser ouvida. A lâmina entrou fundo em seu peito, e ele soltou um guincho
de dor tão alto que nenhum humano foi capaz de ouvir.
Albert, que esperava há alguns metros dali se assustou,
mas permaneceu imóvel, sentado em um banco que havia
próximo de onde haviam parado o carro. De repente tinha
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se dado conta que toda a farra que vinha vivendo descobrindo suas novas habilidades e participando de um clube
tão seleto de criaturas tinha se tornado algo obscuro.
Dentro do celeiro, agora não havia mais som algum. James
estava no chão, e sua aparência agora era a do velho que
ele deveria ser devido a sua idade. Os traços jovens tinham
se esvaído assim como a vida em seu corpo. Arthur recolheu a adaga do chão, e viu o ferimento feito por ela se fechar imediatamente. Sua morte deveria parecer com a de
qualquer outro velho cujo coração inadvertidamente resolveu parar de bater. Guardou-a com cuidado no veludo e a
colocou em sua pasta. Caminhou em seguida em direção
aonde o amigo Albert o esperava, sentado de costas para
ele. Ele se aproximou, e antes que pudesse dizer qualquer
coisa, Albert se pronunciou.
- Nós não somos simples advogados, não é?
Arthur colocou a mão em seu ombro.
- Nós nunca fomos.
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Santos Pecados
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O novo apartamento de Albert Kyrkman era completamente diferente da pocilga em que ele vivia alguns meses atrás.
Ele estava deitado na cama king size, mas o que lhe chamava atenção agora não era a opulência do imóvel que a
firma havia lhe designado. Estava embasbacado mesmo
era com a beleza da ruiva dormindo ao seu lado. Ursula, a
secretária de sua chefa, estava ali nua ao seu lado, depois
de uma noite de luxúria e prazer. Era a primeira vez que
ele experimentara o sexo depois de transformado, e sem
sombra de dúvida era a experiência mais espetacular que
já havia vivido. Basta dizer que o lençol estava todo cheio
de respingos de sangue provenientes das loucuras que os
dois haviam feito. Levantou-se e foi até cozinha. Estava
sedento. Voltou e se encostou no batente da porta do quarto, de onde ficou bebendo e admirando a beleza nua de
Ursula. Porém, como um flash, sua mente retornava ao
assunto que lhe vinha perturbando-o há algum tempo.
Lembrou-se novamente do caso do espião americano, e de
como ele havia se sacrificado para manter a esposa a salvo
de sua maldição. Ressentia-se de não ter feito nada, de
não ter pensando em alguma solução para aquela situação. Sua hesitação fora encarada de forma diferente pelos
seus chefes. Eles acharam que ele não agira como tantos
outros novatos em situação parecida porque "ele fazia o
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que deveria ser feito". O que era uma grande bobagem. Tinha simplesmente ficado com medo.
Seus pensamentos foram interrompidos quando ouviu baterem na porta de seu apartamento. Olhou para o rádio
relógio sobre o criado mudo e viu que eram duas e meia da
manhã. Voltou pelo corredor e conferiu em um monitor de
segurança quem estava à porta. Era seu amigo Arthur.
- Hora de trabalhar. - O risonho gorducho vestia um terno
que lhe dava um ar de cafetão.
- Mas é minha noite de folga... - Albert ficou meio irritado.
Não queria a sua noite arruinada.
- É coisa rápida, uma pequena ida até o Bronx. A chefia
quer que você me acompanhe para se inteirar de alguns
assuntos novos...
- Albert, quem está ai? - Ursula havia acordado.
- Seu filho da mãe, tá comendo a secretária da chefa! - Arthur exultou com a descoberta. Albert encabulado fechou
a porta na cara do amigo.
- É só o Arthur... Vou ter que acompanhá-lo em uma missão. Pode voltar a se deitar... - Ursula concordou, trocou
um beijo cinematográfico com ele e voltou para a cama. O
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inconveniente Arthur estava batendo à porta novamente.
Albert abriu-a rapidamente. Arthur se espremia no vão
entre a porta e o batente, tentando ver, mesmo que de relance, a estonteante ruiva que passeava nua pelo apartamento.
- Me espera lá embaixo! - e bateu novamente a porta. Ele
ainda conseguiu ouvir a risada do amigo do lado de fora.
Alguns minutos depois, Albert já estava na frente de seu
prédio. Deu uma olhada meio nervosa para Arthur, que o
ignorou solenemente.
- Meu carro está logo ali.
Qualquer raiva que Albert estivesse sentido do amigo evaporou na hora que ele viu o reluzente Cadillac 1960 conversível parado alguns metros da entrada do hotel, em
uma vaga para idosos.
- Pensei que a discrição fosse imperativa para o nosso negócio... - Não conseguia tirar os olhos do carro. Lembrarase de ter visto carros assim apenas em filmes. Um especialmente, em que o veículo era possuído. O vermelho sangue dele o deixava exatamente igual ao da história de
Stephen King em que o filme se baseava.
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- Do que vale a vida, ou melhor, a morte, sem estilo, meu
amigo. E hoje nossa missão é bem diferente. Não vamos
visitar nenhum ermitão em uma cabana na floresta. Vamos até o Bronx conversar com o Padre Sydow.
- Um padre?! - Albert estava atônito.
- É meu amigo. Entra ai que logo você vai entender. - Arthur balbuciava as palavras agora, pois acendera um
enorme charuto. O reluzente Cadillac seguiu deslizando
pelas ruas em direção à igreja de São Nicolau de Tolentino.
- Nunca imaginei um padre vampiro... – Albert estava curioso sobre o padre. Arthur se divertiu com a ideia de um
sacerdote sugador de sangue.
- Você é muito ingênuo mesmo não é? Para manter o nosso segredo, precisamos ter aliados não transformados.
Eles são mantidos fiéis a nós com um tipo muito especial
de magia...
- Que tipo de magia?
- Dinheiro meu amigo, dinheiro! – Arthur estava especialmente engraçadinho naquela noite. Empurrou para dentro
do tape deck do carro uma fita de B. B. King e continuaram os dois pelas ruas de Nova York ao som de “The Other
Night Blues”.
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Alguns minutos depois, estavam em frente da igreja de São
Nicolau de Tolentino. Como uma rocha, ela se erguia imponente, em contraste com a vizinhança pobre que a rodeava. Em uma das faces laterais do templo havia uma pequena galeria que abrigava algumas obras da igreja, que
iam desde distribuição de sopa para os sem-teto a reuniões dos Alcoólicos Anônimos. Os dois vampiros pararam
em frente a uma obra de caridade em particular, que deixou Albert surpreso.
- Você só pode estar brincando. Um banco de sangue?!
- É claro meu amigo. De onde você acha que vem todo o
sangue que consumimos? Há tempos que os vampiros não
caçam mais. É perigoso demais. Pessoas desaparecidas
sem deixar vestígios ou com gargantas dilaceradas costumam chamar muito a atenção. Nós temos milhares de
pontos de doação remunerada como estes espalhados por
todos os Estados Unidos, Europa e principalmente em países miseráveis da América Central e do Sul, funcionando
vinte e quatro horas por dia. Pode-se dizer que até temos
um caráter social. – O último comentário foi feito em tom
de ironia.
Enquanto Arthur falava, Albert via várias pessoas saindo
do ponto de doação, todas elas contando algumas notas de
73
dólares. Eram desde mendigos até prostitutas ou pessoas
comuns desesperadas por alguns trocados. Alguns estavam tão fracos (bêbados ou drogados, em alguns casos
ambos) que acabavam desabando ali mesmo no meio fio.
- Ainda bem que não precisamos nos preocupar com doenças, não é Albert. – O comentário de Arthur revirou um
pouco mais o estômago de Kyrkman, mas este resolveu
permanecer em silêncio, pois o Padre Sydow se aproximava deles.
- Deus te abençoe, meu querido Arthur! – O padre vestia
uma batina surrada e suja, que lhe dava mais o aspecto de
um açougueiro do que um homem santo. Arthur riu da
benção jocosa de Sydow e apertou a sua mão.
- Como andam as coisas por aqui “vossa santidade”?
- Tudo correndo na mais perfeita paz de Nosso Senhor. – O
padre os levou para dentro, onde se podiam ver várias
pessoas sentadas nas poltronas doando sangue. Os dois
vampiros pararam e olharam para as saborosas bolsas que
subiam e desciam para extrair o líquido precioso.
Foram interrompidos, porém, por Sydow que os levou para
um escritório no fundo do salão. Lá dentro, uma velha senhora obesa separava uma pilha de trocados, recompensa
74
pelas doações dos maltrapilhos da sala anterior. Sydow fez
um gesto com a cabeça e ela os deixou a sós no escritório.
Arthur então começou a conversa.
- Que falta de educação a minha. Padre, este é Albert
Kyrkman, a mais nova aquisição de nossa firma. Ele será o
responsável pelos contatos com vossa santidade daqui para frente.
- Oh, que bom, Deus lhe abençoe filho. – Albert deu um
sorriso amarelo para o padre e lhe apertou a mão.
- Bem, como sabe padre, nossa firma está deveras satisfeita com os seus... “trabalhos sociais”. Gostaríamos que
aceitasse uma nova contribuição para que eles continuem
funcionando com a devida eficiência.
Arthur tirou de sua pasta um cheque, nominal à Sebastian
M. Sydow e o entregou para o padre. Este abriu um sorriso
que beirava a obscenidade.
- Como vossa santidade pode ver, o valor é um pouco maior que o de costume. Uma pequena demonstração de como
estamos satisfeitos com a sua “obra”.
O padre tirou uma garrafa de uísque da gaveta da escrivaninha e bebeu um gole no gargalo. Estava efusivo, feliz
com a gorda “contribuição” oferecida pela Eternidade S.A.
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- Eu ofereceria um gole para vocês, mas sei que não iriam
aceitar. – O padre tirou um lenço imundo de dentro da batina e enxugou o suor da testa rugosa. Os dois vampiros
se levantaram e se despediram de Sydow. Quando já estavam na calçada, Albert não resistiu a um comentário.
- Cara, que figura.
- Nem me fale. É um escroto, mas é também um dos nossos melhores colaboradores. O ano passado ele se envolveu em um problema com algumas crianças da escola que
a paróquia mantém e tive que intervir para “persuadir” algumas pessoas a retirarem as queixas. Ele é valioso demais para ir para a cadeia, entendeu?
Albert estava atônito. Como advogado, estava acostumado
a defender causas que nem sempre eram absolutamente
corretas, mas nunca num nível tão baixo. Suas dúvidas
começaram a aumentar ainda mais. Estava descendo cada
vez mais fundo, um degrau de cada vez.
- Me lembrei de uma coisa. Depois deste beco mora um
“xicano” que contrabandeia uns charutos cubanos excelentes. Vamos dar um pulo até lá. Albert não disse nada,
apenas acompanhou o amigo pelo beco. Estava imerso
demais em seus questionamentos.
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A caminhada dos dois seguiu silenciosa pelo beco escuro.
Arthur aproveitou para acender mais um de seus fedorentos charutos. A fumaça deles parecia com a mente de
Kyrkman, enevoada de dúvidas. Repentinamente, porém,
sua reflexão foi interrompida por um criminoso que pulou
de trás de uma lixeira, e os ameaçava agora com um canivete.
- Aí suas bichas, podem ir passando as carteiras e os relógios.
Os dois vampiros se entreolharam, quase rindo. Arthur
olhou para o meliante, e balbuciou:
- Tem certeza que quer fazer isso garoto?
- Eu vou furar vocês, suas bichas.
A audição aguçada de Arthur e Albert permitiu aos dois
ouvir um pequeno rosnado atrás do assaltante. O rosto
deles mudou repentinamente. O ar confiante deu lugar a
olhos esbugalhados e de espanto. Não por causa do mexicano com o pequeno canivete, mas pelos dois olhos vermelhos como chamas do inferno que apareceram atrás dele
por entre as sombras. O charuto caiu da boca de Arthur.
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- Tão com medinho agor... – Antes que o assaltante pudesse completar a frase, um golpe, vindo sabe Deus de onde
praticamente o cortou ao meio.
- São eles... Corre Albert, corre! – Arthur entrou em pânico.
A fera enorme pulou ferozmente sobre os dois.
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Arthur rolava no chão do beco agora, atracado com o
enorme "homem lobo" que pulara das sombras em cima
dos dois amigos. Albert preparava-se para pular sobre os
dois para ajudar o amigo, mas este berrou em sua direção.
- Pra dentro da igreja, corre, agora! - Albert ouviu as palavras no mesmo momento que viu outro par de olhos vermelhos surgindo na escuridão do beco. Saiu em desabalada carreira pelo beco, derrubando latas de lixo para tentar
atrasar a fera que o perseguia. Um pouco a frente viu uma
porta lateral que dava acesso ao prédio principal da igreja.
Aproveitou a velocidade que vinha correndo e se jogou em
direção a ela, arrebentando-a e caindo em um corredor
lateral que dava acesso a sacristia e em seguida ao salão
principal. A fera continuava atrás dele, vinda do corredor
estreito. Quando chegou ao salão principal, começou a
sentir algo que não sentia desde que havia sido transformado: cansaço. O ambiente sagrado gradualmente lhe retirava os poderes, e sentia os pulmões em fogo pelo extremo esforço que tinha acabado de fazer.
Deu-se conta que estava encurralado. A ideia do amigo de
entrar na igreja parecia loucura agora, pois estava enfraquecido e encurralado. Correu até a porta principal, mas
esta estava trancada, e ele não tinha forças para arrombála. Virou-se, costas encostadas contra as grossas camadas
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de madeira e aço e vislumbrou a fera parada, olhando para
ele. Ela rosnava enraivecidamente, fitando-o com o que
parecia ser uma mistura de ódio e ressentimento. Os olhos
da fera olharam diretamente para os seus, e ele sentiu a
cabeça formigar por um instante. Pensou estar louco, pois
começou a ouvir uma voz dentro da sua cabeça.
- Seu amigo foi muito inteligente fazendo você vir até aqui.
Ele sabe que não pode haver conflito em território sagrado.
Mas eu não estou aqui para matá-lo. - A fera estava dentro
da sua cabeça agora. Tinha estabelecido um elo psíquico
com ele. - Eu realmente não sei o que Tepesov tem planejado, mas não deveria ter deixado a sua peça mais preciosa tão exposta.
Subitamente, Albert sentiu como se todas as suas lembranças viessem à tona dentro de sua cabeça. Desde a
mais tenra infância até os últimos minutos começaram a
passar vertiginosamente pelo seu cérebro, fazendo a cabeça latejar. Instantes depois, o turbilhão de memória terminou tão repentinamente quanto começou. Caiu de joelhos,
exausto. Levantou os olhos e fitou a criatura, que agora se
apoiava apenas nas patas traseiras, dando-lhe ainda mais
a aparência monstruosa de um ser meio homem, meio lobo.
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- Não é possível, você não sabe de nada... - A voz dentro da
cabeça de Albert parecia desapontada. - Você nem faz ideia
do que é a "sanguis renascentis"... A profecia é verdadeira,
mas você não a conhece...
Um estampido seco ecoou pelo enorme salão. O elo mental
entre o vampiro e o lobisomem foi rompido violentamente
quando o peito da fera foi arrebentado por um tiro de escopeta. A fera uivou em agonia, caindo em seguida no
chão de mármore da igreja. Albert, assustado, apenas viu
o padre Sydow de pé, com a arma na mão, ainda com o
cano fumegante.
- Malditas bestas, tive que derreter dois lindos cálices de
prata para fazer estas balas.
Albert tentou recuperar o fôlego. Ficou de pé e tentou andar em direção ao padre. Por trás do sacerdote, vindo do
corredor por aonde ele mesmo viera, Arthur apareceu, todo
rasgado e sangrando, cambaleante. Arthur correu em direção ao amigo para auxiliá-lo. Olhou para ele, que tinha a
boca ainda sangrando.
- Você está bem, garoto? - Arthur cuspia sangue enquanto
falava.
81
- Eu? Perto de você eu estou em excelente forma! - Albert
estranhou a demasiada preocupação do amigo. Ele estava
claramente bem melhor que Arthur, que teria que passar
alguns dias em um caixão para se recuperar da surra que
tomara do lobisomem. Arthur olhou em seguida para o
padre Sydow.
- Que "você sabe quem" lhe abençoe Padre! - o padre
Sydow deu um sorriso sarcástico.
- Espero que sua firma se lembre-se de que caça não é
uma das minhas atribuições, quando me enviarem outra
"contribuição".
Arthur riu e deu mais uma golfada de sangue no chão da
igreja. Despediram-se do padre e foram se encaminhando
para o corredor por onde Albert tinha entrado na igreja.
Tiveram tempo de ver o padre Sydow jogando um líquido
amarelado sobre o corpo do lobisomem. Este começou
imediatamente a se decompor, até que alguns segundos
depois desapareceu completamente. Voltaram pelo beco,
em direção ao carro de Arthur. Perceberam que não havia
sinal algum do outro lobisomem ou do assaltante. Padre
Sydow devia ter cuidado deles também. Albert colocou o
amigo no banco de trás do carro. Este olhou para ele e sorriu com a boca toda arrebentada.
82
- Vou manchar o couro... - Desmaiou em seguida.
Arthur deu partida no carro e rumava agora rapidamente
para a sede da firma para poder colocar o amigo em "recuperação". Agora com a adrenalina baixando e se sentindo
mais forte por estar se distanciando do terreno sagrado da
igreja, começou a colocar as ideias no lugar. O incidente
com os lobos apenas havia jogado mais trevas sobre a sua
já conturbada mente. O que seria a tal "sanguis renascentis"? Por que o lobisomem pensava que ele era tão importante, ou ainda mais, por que este o considerava a "peça
mais preciosa"? O Cadillac vermelho deslizou pelas ruas de
Nova York levando o pensativo Kyrkman.
83
Algum lugar da Ucrânia, algumas horas depois.
O serviçal veio correndo pelo corredor enorme do castelo.
Deteve-se ante a uma imensa porta, apoiou a mão na parede e recobrou o fôlego. Pôs-se em ordem e bateu suavemente duas vezes na porta, entrando no aposento em seguida. O magnífico quarto era decorado como algo da era
vitoriana, e possuía uma enorme poltrona, quase um trono, em frente a uma igualmente gigante vidraça, de onde o
dono do aposento observava o pôr do sol com uma taça na
mão.
- Os lobos o encontraram senhor. Mas ele está em segurança.
O homem na poltrona não esboçou reação. Levou a taça à
boca, sorveu um gole e a repousou em uma pequena mesa
ao lado.
- Temos uma traidora. - A voz era pausada e calma, mas
mesmo assim cheia de fúria.
- Sim, meu senhor, é o que parece. – O criado se amedrontou quando o homem se levantou. Porém, ele não olhou
para o criado, continuou a fitar o sol morrendo entre as
montanhas no horizonte.
84
- Esta é sem dúvida uma situação inesperada. Teremos
que apressar os nossos planos. Traga-o até mim.
- Como quiser meu senhor.
O criado apressou-se em sair do aposento. Sacara um celular do bolso e já transmitia as ordens de seu senhor para
que fossem executadas. Dentro do aposento, Vladimir Tepesov sorriu.
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Respostas
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Arthur repousava agora em um “caixão”, uma estrutura
especialmente preparada para recuperar os vampiros de
ferimentos adquiridos em batalha. Segundo o vampiro responsável pela sala de recuperação, ele teria que ficar ali
por alguns dias. Com o amigo a salvo, Albert resolveu procurar Samantha, para tentar entender o que acontecera
naquela noite. Parou na porta do escritório da superiora,
que estava sem secretária naquela noite, pois era noite de
folga de Ursula, que agora deveria estar dormindo no apartamento de Albert.
Quando se preparava para abrir a porta, escutou a chefe
falando ao telefone. Ela estava alterada, e discutia com
alguém que aparentemente a tinha passado ordens com a
qual ela não concordava. Albert aguçou sua audição, para
que pudesse escutar quem estava do outro lado da linha.
- Você não pode ter certeza absoluta que Ursula é a traidora! - Samantha esbravejava.
- Ela é a única com poderes capazes de identificá-lo por aí.
Você sabe que ela teria uma atração incontrolável pelo renascido. - O interlocutor tinha uma voz nervosa, porém
firme.
- É claro que ela está sob o domínio dos lupinos e deve ser
destruída imediatamente.
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- Você tem noção que está pedindo para eu eliminar uma
das vampiras mais antigas e valiosas da minha equipe. Samantha tentava argumentar.
- Você não está entendendo Samantha. Não estou lhe pedindo nada. Esta é uma ordem direita do senhor Vladimir.
E chega de conversa. Transmita a ordem aos executores. E
lembre-se, o renascido deve ser enviado a nós o mais rápido possível. - Neste momento, a ligação foi abruptamente
cortada, e finalmente Samantha começou a sentir uma
presença a sua porta. Moveu-se lentamente até a porta e a
abriu rapidamente. Porém, não havia ninguém.
Albert corria agora contra o tempo. Os executores eram
vampiros que eliminavam rebeldes que colocavam em perigo o segredo milenar das criaturas da noite. E eles estavam agora atrás de Ursula, que repousava tranquilamente
no apartamento de Albert. Deixara o Cadillac vermelho para trás, e usava as suas habilidades agora para voar pelos
telhados da cidade, na ânsia de chegar logo ao seu destino.
Não sabia como faria para enfrentar um executor, pois eles
eram conhecidos por serem muito mais poderosos do que
vampiros comuns, mas ele tinha uma carta na manga.
Chegou ao topo do New York Palace apenas alguns minu90
tos mais tarde. Desceu rapidamente pelas escadas até
chegar ao seu andar, passou por uma saída de emergência
e agora corria pelo corredor. Chegou até a porta de seu
apartamento. Percebeu que ela estava entreaberta. Engoliu
em seco e entrou o mais silenciosamente que seus poderes
lhe permitiam.
Foi aí que viu uma cena aterrorizante. Um enorme vampiro
loiro, de mais de dois metros de altura segurava Ursula
pelo pescoço, pressionando-a contra uma parede da sala
do apartamento. O enorme executor tinha uma adaga de
prata com lâmina longa na outra mão, e preparava-se agora para desferir o golpe de misericórdia em Ursula, que
aparentemente havia lutado pela vida, a julgar pela bagunça no apartamento. Albert pegou um pequeno objeto
no bolso da calça, segurando-o com firmeza entre os dedos. Quando se preparava para usá-lo, o celular em seu
bolso tocou. Era Samantha, preocupada com seu paradeiro.
O executor virou rapidamente e antes que Albert pudesse
fazer qualquer coisa, a lâmina estava agora apontada para
ele. O celular parou de tocar. O executor fixou o olhar nos
olhos de Albert. Quando este percebeu quem ele era, falou.
91
- Renascido, nada tenho contra você aqui. Esta execução
não lhe diz respeito.
- Eu não sei nada sobre esta história de renascido. Só sei
que você está prestes a matar a minha... amiga. - Ursula
pendia pelo pescoço, as mãos tentando livrá-la da poderosa força que a estrangulava. Estava completamente nua.
- Ela é uma traidora e deve morrer. - o executor deu-lhe as
costas novamente. Iria enterrar a enorme adaga de prata
no corpo de Ursula. Albert não hesitou. Com toda a força
que tinha, lançou a pequena adaga de prata, que havia
recolhido das coisas de Arthur no Cadillac.
Ela voou pelo ar em uma velocidade incrível, mas Albert
parecia enxerga-la perfeitamente mover-se em direção a
base do crânio do executor. Ela entrou por ali, atravessou
a cabeça e saiu pelo outro lado em um jorro de sangue,
acabando enterrada na parede, a alguns centímetros da
cabeça de Ursula. O executor soltou um grunhido engasgado, e então a pressão no pescoço da vampira cedeu.
A longa adaga caiu da mão do enorme vampiro, que cedeu
e caiu de joelhos, tombando de lado em seguida. Ursula
caiu pesadamente para o outro lado, tossindo e levando as
mãos ao pescoço, que exibia um hematoma enorme, algo
92
muito raro para vampiros. Tinha estado próxima de encerrar a sua existência.
Albert envolveu seu corpo nu em um sobretudo que pegou
jogado em seu quarto e com ela nos braços, saiu por uma
janela que dava para a saída de incêndio. Alguns frenéticos segundos depois estavam no topo do prédio. Olhou para a rua lá embaixo e viu que mais executores rodeavam o
prédio, e começavam a se mover, talvez intrigados com a
demora do companheiro que jazia agora no apartamento.
Ursula estava desmaiada, então ele a colocou sobre um
dos ombros e saltou para o telhado do prédio ao lado.
93
Apartamento de Arthur, alguns minutos depois.
Ursula estava deitada agora na cama do apartamento do
amigo, que estava vazio aquela noite enquanto seu dono
recuperava-se em um caixão na sede da Eternidade S.A.
Albert sentou-se ao seu lado na cama e pegou delicadamente a sua cabeça e ergueu um pouco. Levou um cálice
até a boca dela, e a serviu de um pouco de sangue. Repetiu a ação algumas vezes, até que percebeu que o hematoma no pescoço da vampira começou a diminuir. Suas
pálpebras começaram a se mexer e alguns instantes depois, ela começou a recobrar a consciência. Estava muito
fraca ainda, mas abriu os olhos.
- Albert... Desculpe-me... - Sussurrava em uma voz rouca,
fitando os olhos de Albert.
- Ursula, você precisa me contar o que está acontecendo. Albert estava confuso, e apesar de consternado com a situação, precisava de respostas.
- Você não entende não é? Não faz ideia de quem você é... Ursula engoliu com dificuldade novamente, mas o hematoma em seu pescoço estava clareando pouco a pouco. Ela
se sentou na cama, percebendo agora que estava vestida
apenas com o sobretudo. Estava fraca e sentia frio.
94
- Albert, você não foi contratado apenas por ser um excelente advogado. – Parou um segundo para tossir. - A Eternidade S.A. é apenas uma fachada para operações que
vem sendo executadas a centenas de anos. Houve uma
época em que os vampiros eram senhores da aristocracia e
detinham o poder. Eles queriam escravizar os humanos.
Mas este poder foi desafiado pelos lupinos...
- Os lobisomens?
- Sim... Houve conflitos entre eles durante centenas de
anos, maquiadas como as guerras travadas pelos humanos normais. A Guerra dos Cem Anos, Revolução Francesa, Primeira Guerra Mundial... Todas elas foram à verdade
pano de fundo para o conflito entre nós e os lobos. – Fez
uma pequena pausa para recobrar o fôlego.
- E no final, nós perdemos... Os lobos destruíram os dois
primordiais...
- Eu aprendi um pouco sobre eles. Mas quem são eles afinal? - Albert se esforçava para acompanhar toda aquela
loucura.
- São os primeiros vampiros... Os primeiros a carregar a
maldição da imortalidade. Mas um deles na verdade não
95
estava realmente morto. Ele fugiu e criou uma sociedade
secreta para nos esconder.
- Mas que diabos eu tenho a ver com isso tudo?
- Vladimir Tepesov é um dos primordiais. Há uma profecia
que conta que o primordial morto voltaria como um renascido, e sua alma estaria presa no corpo de um humano.
Este humano teria que ser transformado voluntariamente,
para que se tornasse capaz de liberar a alma do primordial
de volta.
- Espere um minuto... – De repente a mente de Albert começou a clarear. - Vladimir Tepesov... É Vlad Tepes? O
Empalador? - A cabeça de Albert rodava, e ele se sentia
dentro de um livro de Bram Stocker.
- Sim... Ele quer o poder do outro primordial para exterminar os lupinos e escravizar os humanos... E ele sabia
que apenas algumas vampiras especiais poderiam... Identificar aquele que portava a alma do outro primordial. Por
isso ele distribuiu essas vampiras pelas sedes e filiais da
Eternidade S.A. pelo mundo...
- Como assim identificar?
- Estas vampiras teriam... Sentimentos especiais pelo renascido... - Albert fitou os olhos de Ursula. Viu uma pe96
quena lágrima grená se formar no canto de seu olho direito.
- E por que você traiu a firma? Por que me traiu?
- Você não entende... Para que o primordial volte... Você
teria que morrer... Eu... Eu me apaixonei por você Albert...
- Havia desespero em sua voz.
- Mas os lobos, eles me atacaram! E quase mataram Arthur também! - Albert estava confuso.
- Eu fiz um pacto com eles... Disse a eles que você era inocente e que não sabia nada sobre o "sanguis renascentis".
- Albert entendeu que este era o nome da profecia. - O lobo
não leu a sua mente? Eles iriam te esconder, e de alguma
forma encerrar a existência do primordial, para que ele
nunca mais possa voltar. Mas parece que tudo deu errado.
- A tristeza no rosto de Ursula cortou o coração de Albert.
Ele contou a ela tudo o que tinha acontecido na igreja horas antes.
- E quanto a Arthur... Ele sabia de tudo isto?
- Ele não faz ideia... Inclusive ele não faz nem o perfil dos
"contratados" da firma... Acredito que a contratação dele
tenha sido apenas para poder atrair você.
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Albert ficou alguns minutos em silêncio. Começou a encaixar as peças em sua cabeça. A morte precoce dos pais, a
falta de oportunidades mesmo tendo cursado uma boa escola, o bizarro acidente de carro, a vida que vinha levando
antes de ser transformado. De repente, a imagem do quebra-cabeça começou a se formar. Tudo era parte do "plano" para levá-lo a aceitar de livre e espontânea vontade ser
transformado.
- Não é possível... Tepes já sabia que eu era o escolhido
então?
- Na verdade havia seis potenciais no mundo todo. Dois na
América, um na África e três na Europa. São pessoas que
nasceram numa determinada data e horário preciso, calculado pelos astrólogos de Vlad.
- Bem, se Arthur não sabe de nada disso, então ele corre
perigo.
- Você não está pensando em ir até lá, não é? – Ursula segurou o braço de Albert.
- Ele me salvou a vida Ursula... – Albert estava de cabeça
baixa, pensativo.
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- Mas é perigoso demais! Eles vão te pegar e levá-lo até Tepes! Por favor, vamos fugir! Sumir deste lugar! Eu conheço
pessoas e os lupinos vão nos ajudar!
- Eu... Não posso deixá-lo para morrer... - Ursula escondeu
o rosto com as mãos. Observou enquanto Albert rasgava
com as mãos um pequeno embrulho e lhe estendia algumas roupas.
- Roubei no caminho para cá... Mais um dos pecados que
terei que prestar contas... - Ursula se trocou em silêncio.
De vez em quando Albert a ouvia soluçar um choro contido. Ele olhava pela janela, vendo o sol nascer. Aquele sol
lhe deu uma falsa sensação de segurança. Teriam algum
tempo para pensar no que fazer?
Foi até o quarto de Arthur e abriu um pequeno compartimento dentro do armário. Uma placa deslizou e mostrou
um pequeno arsenal de armas preparadas com munição
de prata, letal tanto para vampiros quanto para os lupinos. Ele municiou uma das espingardas com cartuchos de
prata e a apoiou sobre o ombro. Nos seis meses que tinha
"treinado" antes de entrar em serviço, tinha aprendido a se
defender de vários tipos de ameaças. Mas nada como o que
parecia lhe aguardar nas próximas horas.
99
Ursula se vestiu e veio em sua direção. Ela parecia não
saber direito o que fazer, não sabia se ele a odiava agora.
Albert respondeu a questão passando a mão pelo seu rosto
e a beijando com ternura. Sentira-se igualmente atraído
por ela desde aquele primeiro encontro na antessala de
Samantha. Por um momento os dois se desligaram do
mundo e ela se aconchegou nele. Mal imaginavam que do
lado de fora do apartamento, executores já os haviam cercado, e estavam prontos para atacar.
100
Ursula foi a primeira a perceber a presença dos executores. Era uma vampira experiente nas artes da guerra, e
havia lutado inúmeras vezes contra inimigos poderosos
antes de a Eternidade S.A. existir. Percebeu que havia dois
inimigos na porta do apartamento, e mais dois agarrados
ao edifício à espreita na janela do quarto onde estavam.
Mesmo aconchegada nos braços de Albert, seus sentidos
aguçados a tinham alertado sobre a presença deles muito
antes do que Albert poderia pressentir.
Outrora havia sido surpreendida por um deles no apartamento de Albert, pois este tinha a habilidade de assumir
outras formas, se disfarçando de seu amado. Mas agora
era diferente. A centenária vampira conhecia deliciosos
métodos de trucidar seus perseguidores, e não seria surpreendida novamente. Tinha agora uma motivação nova,
um sentimento que não experimentara em seus séculos de
idade. E também tinha raiva. Muita raiva.
Antes que Albert pudesse ter qualquer reação, ela pegou
duas pistolas que ele havia municiado com balas de prata
e colocado em cima da cama e partiu em direção a janela.
Com um movimento extremamente rápido, enrolou parte
do corpo na cortina que pendia e em um segundo já estilhaçava a janela se projetando no vazio, de braços abertos.
Albert pode ouvir apenas os dois disparos, que atravessa101
ram cada um a cabeça de um dos executores que estavam
do lado de fora do prédio.
Os dois executores que estavam esperando para o bote à
porta do apartamento entraram abruptamente, alertados
pelo barulho vindo do lado de dentro. Mas Ursula completava o pêndulo que havia feito na cortina do apartamento e
era lançada agora para o lado de dentro. Ela os recebeu à
porta do quarto também com dois tiros certeiros, entre os
olhos. Albert assistia tudo de boca aberta, vendo a ruiva
que agora retirava um caco de vidro da janela da testa.
Como um animal acuado que ganha força para resistir, a
vampira guerreira estava de volta. Seus olhos cintilavam
como duas esferas coruscantes, o que indicava que seu
corpo tinha febre de batalha. Os executores do lado de fora
acabavam de atingir o solo lá embaixo. Um deles caiu sobre um carro, e o alarme do carro disparado fazia estardalhaço.
- Estes malditos me surpreenderam uma vez. Não vai
acontecer de novo. – Ursula deixou o caco que retirara da
testa cair no chão. Foi até Albert e o beijou. Ele estava
completamente atônito. Ela havia saído de um estado em
que parecia frágil e assustada para uma erupção de violência acrobática.
102
- Agora a polícia virá atrás de nós também. – Se referiu aos
vampiros mortos na rua lá embaixo. Albert piscou várias
vezes rapidamente, como que voltando à realidade. Não
falou nada.
Colocou a espingarda e o restante das armas que estavam
no armário secreto de Arthur em uma mochila e junto com
Ursula saíram pela mesma vidraça estilhaçada. Ouviam ao
longe as sirenes dos carros de polícia que se dirigiam
apressados em direção ao pequeno tumulto que os dois
vampiros estraçalhados causaram. Na verdade os dois já
haviam se tornado dois velhos humanos comuns antes de
atingirem o meio-fio. Mas mesmo assim eles, mais os outros dois “idosos” mortos no aparamento de Arthur chamariam a atenção dos policiais.
Albert pensou então como aquilo desmoronaria a vida de
Arthur. Mesmo sem querer, o amigo estava envolvido na
sua história até o pescoço agora. Será que ele o perdoaria
se eles conseguissem resgatá-lo?
Corriam contra o tempo agora. Ele percebeu que os primeiros raios de sol da manhã já começavam a criar algumas manchas na pele alva de Ursula. Não havia como ela
o acompanhar agora, a luz do dia. A pele negra de Albert
era resistente ao sol fraco daquela manhã de inverno, mas
103
ela só poderia continuar com ele caso tomasse o preparado
especial que permitia que os vampiros circulassem a luz
do dia. E não havia como consegui-lo agora. Os dois saltaram rapidamente pelo topo de mais alguns prédios, até
que pararam em um que julgaram seguro.
Ele arrombou uma porta de serviço que dava acesso as
escadas do prédio e Ursula se escondeu na escuridão. Iria
precisar de algum tempo ali para recuperar as queimaduras que apesar de pequenas, poderiam se tornar letais caso a exposição direta fosse maior.
- Você fica aqui até eu voltar... Tenho que resgatar Arthur.
- Mas Albert, como você vai entrar na sede da firma sozinho? É loucura! Espere até a noite e eu te acompanho...
- Daí pode ser tarde demais. – Ela tentou argumentar, mas
ele a calou com um beijo. Levantou-se e saiu pela porta
que arrombara, deixando Ursula dentro da pequena sala,
descansando sentada na escadaria. Desceu rapidamente
pela escada de incêndio do prédio até a rua. Parou por um
segundo, suspirou e pôs-se a caminho da sede da Eternidade S.A.
Albert não demorou muito para chegar ao centro da cidade. Do topo de um prédio, via do outro lado da larga ave104
nida o monstro de vidro e aço que se erguia em direção ao
céu, e que agora servia de sede para a empresa que supostamente iria lhe dar uma vida (ou eternidade) melhor. Ficou ali parado, introspectivo por quase duas horas. Fitava
as enormes vidraças e pensava em um jeito de entrar no
prédio e resgatar Arthur. A missão parecia impossível.
O prédio quase não tinha ninguém naquele horário, dado
aos hábitos noturnos de seus funcionários. Mas com certeza devia estar cheio de executores esperando por ele. Sabia que eles não o matariam, pois precisavam dele, mas
ser capturado naquela altura dos acontecimentos poderia
ser um destino pior que a morte. Porém um golpe do destino iria mudar a sua sorte.
105
O guarda de segurança da recepção do prédio lia tranquilamente o jornal, recostado confortavelmente em sua poltrona quando percebeu alguém em seu balcão. Abaixou o
jornal e viu uma cena insólita. Um padre, de batina e tudo,
o observava. Atrás dele, uma freira do que ele achou serem
quase dois metros de altura, lia furiosamente uma bíblia.
- Bom dia meu filho. Eu sou o padre Sydow. Vim entregar
uma encomenda para os seus patrões. – O guarda de segurança não disse nada. Teclou alguma coisa em seu
computador e viu que realmente havia uma encomenda
agendada para ser entregue naquele dia. Ele imprimiu
uma folha e pediu para o padre assinar. O padre Sydow fez
um rabisco qualquer no papel e o devolveu.
- Meu caminhão já está posicionado na doca de sempre, no
beco ai atrás.
O guarda assentiu com a cabeça e conferiu pelo sistema de
câmeras. Teclou mais alguma coisa e um portão de metal
começou a se abrir nos fundos do prédio, por onde um
funcionário do padre Sydow começara a descarregar engradados disfarçados, cheios de bolsas de sangue. Observando toda aquela cena, dois executores, postados em
pontos estratégicos do saguão, começavam a desconfiar da
freira enorme acompanhando o padre.
106
Ela tinha o rosto oculto pelo capuz de sua roupa, e sabiam
que por estar com um crucifixo, poderia ser muito bem
Albert e eles não o detectariam. Mas sabiam também que
ele estaria enfraquecido, e seria uma presa fácil para eles.
Eles observaram atentamente quando o padre Sydow foi
liberado para entrar no prédio, acompanhado pela freira.
Ele iria pegar o elevador para o departamento de “logística”, onde prestaria contas da entrega que viera fazer.
Mas os executores começaram a se mover no exato momento que as duas figuras religiosas começaram a caminhar pelo saguão. Em segundos estavam os dois posicionados atrás deles. Eles sorrateiramente se aproximaram, e
o primeiro se adiantou e puxou o capuz da freira, para revelar a sua identidade.
A tensão tomou conta do ar. Ecoou pelo saguão do prédio
um grito de terror digno de filmes antigos de monstro. Os
executores, atônitos, fitavam agora o rosto por baixo do
capuz: o de uma religiosa alemã de quase setenta anos que
acompanhava o padre Sydow por ser também uma das
contratadas da firma. A velha histérica se assustou tanto
com a ação dos executores que berrava a pleno pulmões,
enquanto os executores tentavam acalmá-la dizendo que
tudo havia sido um engano. O padre Sydow também questionava, aos berros a ação dos vampiros.
107
O guarda de segurança, que nem era vampiro, apenas trabalhava ali, correu em direção à confusão. Tinha dito a
seu chefe que não gostava da presença daqueles dois “seguranças” e sabia que eles acabariam arranjando confusão. Talvez se estivesse em sua mesa teria visto, mesmo
que sem identificá-lo, Albert Kyrkman, vestido de entregador, entrando pela doca lateral do prédio empurrando um
carrinho cheio de engradados.
Ele corria freneticamente pelos corredores e escadas agora,
tentando chegar ao “mausoléu”, a sala onde os caixões
com vampiros feridos ficavam para se recuperarem. Estranhou que não cruzasse com nenhum executor, mas a urgência de sua missão não lhe permitia perder tempo com
desconfianças. Alguns minutos alucinantes se passaram e
ele finalmente chegou ao seu destino.
Encostou o ouvido na enorme porta para tentar ouvir se
havia alguma movimentação do outro lado. Nada ouviu.
Seus sentidos aguçados também não detectaram nenhuma
presença, mas ele sabia que suas habilidades não eram
apuradas o suficiente para detectar executores treinados.
Mesmo assim, engoliu em seco e girou com cuidado a maçaneta da porta e entrou. O recinto estava completamente
escuro, mas subitamente dois holofotes jogaram luz diretamente sobre ele.
108
Ela o cegou por alguns instantes, mas quando a visão lhe
retornou, o terror tomou conta de seu coração. Samantha
estava de pé, no fundo da sala. Arthur estava acorrentado
atrás dela, todo ensanguentado, porém vivo e vigiado por
dois executores.
- Bem vindo Albert. – Samantha sorriu.
109
110
De Volta do Inferno
111
112
Estava seguindo Albert Kyrkman há alguns dias. Em toda
sua existência como vampiro, havia percebido que a magia
era uma aliada poderosa, assim como o rifle de assalto em
suas mãos e as táticas aprendidas em suas décadas como
militar. Fora a magia que o ajudara a identificá-lo como o
renascido no momento em que colocara os olhos sobre ele.
Dalí para frente sabia que sua vida mudaria drasticamente.
Havia chegado a hora de pôr em prática o que vinha planejando há décadas. A Eternidade S.A., ou melhor, seu dono,
Vlad Tepes, o tinha alcançado, e neste jogo de gato e rato,
não havia mais escapatória. E Vlad devia ter se divertido,
sabendo que ele morreria com o conhecimento que o renascido havia sido encontrado. Não havia outra explicação
para o fato de ele o ter mandado a sua casa. Vlad iria se
apoderar do poder do renascido, trazendo calamidade para
a humanidade. E não havia nada que ele poderia fazer. Ou
melhor, até poderia, mas teria que abandonar tudo e a todos que amava. O que para ele agora, era pior que a morte.
Isso o trouxe até ali. Empoleirado no topo de um prédio,
observava o renascido olhar por horas para a sede da
Eternidade S.A. Sabia que o plano de Kyrkman, se é que
ele tinha um, era loucura. Mas sabia também que se ele o
113
tentasse impedir agora, ele não aceitaria lutar a seu lado.
Era arriscado demais, mas necessário. Conferiu novamente o TAR-21 municiado com balas de prata. Vestia um uniforme militar completo de cor bem escura, com munição
suficiente para começar uma pequena guerra.
Era exatamente o que esperava agora, enquanto observava
Kyrkman colocando o empregado de padre Sydow para
dormir com uma coronhada na cabeça no beco abaixo e
tomando o seu lugar. Ele realmente iria entrar no prédio.
- Pelo menos está armado. – Pensou.
Vestiu uma máscara que deixava apenas os olhos à vista e
colocou-se na beirada do prédio. Em seguida, simplesmente deixou o corpo cair. Quando estava a apenas alguns metros do chão, rodopiou no ar e aterrissou suavemente. Pegou um pequeno dispositivo de um bolso de seu uniforme
militar e o jogou pela porta por onde Kyrkman entrara. O
dispositivo cintilou uma luz vermelha que subitamente ficou verde com um pequeno zunido. As câmeras de segurança do prédio simplesmente pararam de funcionar, agora transmitindo apenas uma imagem chuviscada.
Com a certeza de que não seria visto, e de que ganhara
certa vantagem para o renascido, seguiu Kyrkman pelo
corredor. Alguns minutos depois, o observava entrando
114
por uma porta grande que segundo as plantas que tinha
memorizado era o mausoléu, local onde os vampiros feridos se recuperavam. Recorrendo a mesma planta, esgueirou-se em um duto de ar de onde conseguiria ver o que
acontecia dentro da sala sem ser notado. Subiu rapidamente e se posicionou.
Viu Kyrkman frente a frente com Samantha, e esta tinha
Arthur Sanders como refém, ladeado por dois executores.
- Bem vindo Albert. – Os olhos de Samantha brilhavam. –
Eu realmente não imaginei que você fosse tão previsível.
Mas nada disso precisa terminar mal. É só você se entregar e seu amigo nada sofrerá.
- Eu sei muito bem o que vocês querem comigo. – Albert
apontava a espingarda para Samantha agora. – E sei também que vocês não podem me matar. Pelo menos não agora.
- É uma pena. A sua inútil resistência custará muito caro
para a nossa firma. Teremos trabalho por meses para acobertar tudo o que você expôs aos humanos com suas ações
sem propósito.
- Elas tiveram um propósito sim. Impedir que vocês escravizem a humanidade.
115
- Basta! - Os caninos de Samantha estavam à mostra agora e ela olhou com olhos coruscantes para ele. - Eu tenho
que levá-lo vivo, mas isso é uma linha bem tênue Albert. E
já que não posso persuadi-lo a juntar-se a nós, acredito
que Arthur não tenha mais propósito aqui. – Virou-se para
um dos executores. – Matem-no.
- Não! - Albert apontou a espingarda, mas não haveria
tempo para salvar o amigo.
O executor sacou um sabre de prata e colocou-o na altura
do pescoço de Arthur. Antes que Albert pudesse ter qualquer reação, escutou o estampido vindo da direita acima
de sua cabeça. A cabeça do executor explodiu em uma bola vermelha de sangue e pedaços de carne. Aproveitando a
total surpresa que causara, o militar desceu por uma abertura do duto de ventilação no teto. A reação de Samantha
e do executor foi instantânea, e em segundos estavam com
armas nas mãos.
Kyrkman foi empurrado pelo seu herói misterioso para
trás de um dos caixões de metal. Antes que seus inimigos
pudessem ter qualquer reação, lançou uma granada de luz
que carregava. Os dois malignos vampiros guincharam
raivosos, agora cegos como verdadeiros morcegos. Kyrkman se ergueu e atirou com a espingarda no executor, que
116
voou para trás com o impacto. Ouviram-se mais dois tiros.
O misterioso salvador de Albert acertara os dois joelhos de
Samantha, que agora gritava ajoelhada no chão. Albert
então correu em direção a Arthur. Libertou-o das correntes
que o prendiam e passou o braço pelas costas do amigo,
de forma que conseguisse carregá-lo.
O homem de roupa militar aproximou-se de Samantha,
que guinchava de dor, com o sangue vampiro contaminado
pelo ferimento feito com bala de prata. A vampira fitou os
olhos pelo buraco do capuz que o militar vestia e subitamente o reconheceu. Quis pular em seu pescoço, mas estava fraca demais, prostrada de joelhos a sua frente.
- Isto é por me fazer perder Angela.
Retirou um crucifixo de prata de um bolso do uniforme e o
segurou com firmeza na mão enluvada. Em seguida segurou a cabeça de Samantha e o forçou contra o rosto dela. A
carne do rosto da vampira instantaneamente começou a
arder em chamas, e ela soltou um pavoroso grito de terror.
Alguns momentos depois o grito cessou e o militar soltou o
corpo inerte no chão. Encaminhou-se para a porta onde
Albert arrastara o amigo.
- Tem mais deles vindo. – Albert sentia a presença de mais
executores se aproximando. Seu estranho aliado manteve117
se calado. Retirou uma granada e a rolou para dentro do
mausoléu. Os dois corriam agora pelo corredor. A explosão
foi tão forte que parte do teto do andar começou a desabar,
o que com certeza retardaria um pouco os executores. Voaram pelas escadas do prédio até chegarem ao topo.
Quando estavam para sair por uma porta de serviço, Albert parou.
- Não posso sair com ele assim, o sol o matará.
Seu misterioso aliado então tirou um pequeno frasco de
um bolso da calça e fez que Arthur o bebesse. Ele instantaneamente começou a tossir e tremer e sua pele se tornou
gradativamente mais rósea, sinal que a poção de proteção
estava fazendo efeito. Saíram finalmente pela porta de serviço apenas para avistar mais três executores os esperando.
- Para dentro, rápido. – A voz do militar pareceu estranhamente familiar a Albert. Ele voltou rapidamente pela
porta de serviço. Lá dentro, teve que fazer uso da espingarda para acertar dois executores que se adiantaram e os
seguiram pelas escadas. Arthur, inconsciente, estava sentado desajeitadamente ao seu lado, protegido por uma coluna de concreto.
118
Do lado de fora, os executores fitavam agora o homem todo
vestido de negro. Ele por sua vez jogou o rifle de assalto no
chão. Os executores riram com os sabres de prata na mão.
O riso cessou rapidamente, porém, quando o militar levou
as duas mãos as costas, de onde sacou dois machetes prateados.
- Isso vai ser divertido. - sussurrou entre dentes.
Por uma fresta na porta, Albert via atônito o misterioso
homem partir para cima dos executores, enquanto rechaçava outro executor que tentava chegar a eles pelas escadas. O primeiro tentou acertar o militar com um golpe de
sabre apenas para ver seu braço ser amputado em uma
ceifada certeira. Emendado no mesmo golpe, num rodopio
digno de um artista marcial, o outro machete cortou a
perna do segundo executor na altura do joelho. O movimento foi finalizado com os dois enormes facões atravessando o peito do terceiro executor. Entre os gemidos dos
executores no chão, ele viu Albert saindo pela porta carregando Arthur.
- Estou sem balas. E tem mais deles vindo.
O militar se abaixou e colocou um pouco do sangue dos
executores em um pequeno frasco. Albert não entendeu
porque ele fez aquilo, mas não havia tempo para explica119
ções. Saltaram rapidamente para o topo de um prédio ao
lado, de onde viram uma dezena de executores emergirem
pela saída de serviço. Eles, porém não podiam vê-los.
Aguardaram alguns minutos em silêncio.
As sirenes da polícia se ouviam nas ruas lá embaixo. Deviam ter sido alertados por vizinhos do prédio assustados
com a explosão da granada. Era seguro para eles agora
prosseguirem.
- Me leve até a sua amiga. – Albert continuava tentando
lembrar-se de onde conhecia a voz de seu anjo da guarda.
Não sabia se podia confiar realmente nele, mas àquela altura dos acontecimentos não tinha mais muita opção. Algum tempo depois encontraram Ursula escondida no topo
do prédio onde Albert a tinha deixado, e aguardaram o sol
se pôr. Na escuridão, pegaram um carro, um Audi A8 blindado que o militar tinha escondido em um beco da cidade
e rumaram para um antigo depósito do pai de Albert, nas
docas da cidade.
Era o único lugar que havia sobrado para eles naquele
momento. Ele o mantinha ainda, mesmo depois de contratado pela Eternidade S.A. por motivos sentimentais. O falecido pai comprara o depósito para uma pequena loja de
tintas que tentara abrir depois que Albert se formou na
120
faculdade. Ele e a mãe de Albert faleceram logo após em
um acidente de carro, e o imóvel comprado foi uma das
únicas heranças que recebera, e o único lugar que, talvez,
a Eternidade S.A. não os procuraria naquele momento.
Acomodaram Arthur, que continuava inconsciente em uma
cama improvisada com algumas caixas de papelão estendidas no chão. Ele gemeu de dor, abriu os olhos por um
momento e sorriu para eles, desmaiando novamente em
seguida. Ele precisava desesperadamente de sangue agora.
O militar deu a ele uma mistura de sangue de animais
com alguns outros compostos curativos, que o manteria
vivo por algumas horas, mas não salvaria a sua vida. Fora
do caixão, o seu tempo estava extremamente limitado. Albert e Ursula também estavam sedentos, mas a situação
de Arthur era a mais urgente.
- Eu tenho uma ideia. Se o seu amigo ai puder cuidar de
Arthur por um tempo. – Ursula falou. O estranho assentiu
com a cabeça. Porém, Albert tinha uma questão a esclarecer.
- Acho que antes disso você poderia nos contar quem é você.
O estranho então retirou o capuz. A surpresa foi tamanha
que Albert sentiu a cabeça girar.
121
- James McGuiness, ao seu dispor.
Tratava-se do mesmo vampiro que Albert e Arthur haviam
visto escolher a morte a transformar a esposa em um deles. O “primeiro cliente” de Albert. Renascido do inferno.
122
Declarando Guerra
123
124
Ursula empurrava a maca com certa apreensão. Deitado
sobre ela, escondido sob um lençol que lhe cobria da cabeça aos pés, Albert tentava manter-se o mais imóvel possível. Haviam conseguido um uniforme para Ursula colocando para dormir uma incauta enfermeira que saíra para
fumar um cigarro no terraço do Mount Sinai Medical Center. Ela agora repousava tranquilamente, só de calcinha e
sutiã dentro de um depósito de produtos de limpeza. Era
uma japonesa bem menos voluptuosa do que Ursula, e por
isso a irresistível ruiva chamava bastante a atenção agora,
com as roupas bem justas. Isso lhes deixava em uma situação arriscada. Albert mesmo, debaixo das cobertas, não
conseguia tirar a sua imagem sensual da cabeça.
Porém, os pensamentos libidinosos desapareceram quando
a maca deteve-se.
- Tem um faxineiro no fim do corredor. Vou ter que distraílo. - Ursula sussurrava.
- Cara de sorte! - Gracejou Albert, que recebeu um tranco
na maca em desaprovação.
Pelo fino tecido, ele observou Ursula caminhar sensualmente em direção ao faxineiro, que parou de varrer e fez
uma cara tão engraçada ao ver Ursula se aproximando que
Albert teve que conter a risada. Ela trocou duas palavras
125
com ele, e usando o mesmo amuleto usado na enfermeira,
colocou-o também para dormir. Guardou o pequeno amuleto presenteado por James de volta no decote generoso e
se encaminhou de volta a maca onde Albert estava escondido.
Albert então saiu debaixo das cobertas e viu que a maca
estava parada bem em frente ao destino dos dois: o banco
de sangue. Passaram o crachá roubado da enfermeira no
painel eletrônico que controlava o acesso e entraram.
- Lembre-se, apenas as bolsas com sangue contaminado. Albert fazia questão que ninguém fosse prejudicado pelo
roubo que perpetrariam.
- Eu sei, eu sei. - Ursula lia as papeletas nas portas das
geladeiras para identificar o que queriam. Quando encontraram, começaram a carregar o máximo de bolsas que
conseguiram na parte debaixo da maca. Antes de saírem,
Albert rasgou uma delas com os dentes, bebeu metade e
deu metade à Ursula. Estavam famintos.
Albert voltou a deitar-se sobre a maca e cobriu-se, novamente da cabeça aos pés com o lençol. Ursula saiu rapidamente da sala empurrando a maca e continuaram pelo
corredor. Alguns minutos e dois guardas de segurança
postos para dormir depois, conseguiram sair pelos fundos
126
do Hospital. Colocaram o carregamento de sangue no carro de James e seguiram de volta para o esconderijo.
- Não vejo a hora de me livrar destas roupas. - Ursula estava incomodada.
- Eu posso providenciar isto. - Albert fitou-a com malícia.
- Eu vou guardá-la... Quem sabe quando isto tudo acabar.
- Ursula respondeu com um sorriso. Alguns minutos depois, já estavam tratando Arthur com o sangue. Estava
extremamente fraco, mas tinha uma chance agora. Albert
ficou ao seu lado aquela noite toda.
O dia já começava a amanhecer quando Albert percebeu
que o amigo começava a despertar. Recostou-o em uma
caixa, para que ele ficasse numa posição entre deitado e
sentado.
- Como você se sente? - Albert perguntou.
- Considerando pelo que passei, acho que me sinto até
bem.
- Então você deve saber tudo o que está acontecendo. E
deve saber que é tudo por minha causa... - Albert tinha a
cabeça baixa agora.
127
- É, enquanto estava entre um desmaio e outro no mausoléu posso dizer que me inteirei da situação.
Houve um minuto tenso de silêncio entre os dois. Albert
olhou nos olhos de Arthur.
- Sua vida nunca mais será a mesma... Será que você vai
conseguir me perdoar?
Arthur abaixou a cabeça por um instante e suspirou. Seu
rosto era sério e compenetrado como Albert dificilmente
tinha visto antes. Ele então levantou a cabeça e olhou para
Albert.
- Posso, mas com uma condição. - Albert ficou extremamente tenso com a frase do amigo. - Vou lhe fazer uma
pergunta, e você tem que me responder com a máxima
sinceridade.
Albert engoliu em seco.
- Claro, pode falar.
- A ruiva ali... - Arthur fez uma menção com a cabeça em
direção a Ursula, que os observava de longe. - A cortina
combina com o carpete? - Arthur quase não conseguia
conter a gargalhada.
128
- Seu tarado miserável! - Os dois amigos se abraçaram.
Ursula olhou para os dois e sorriu. Na situação miserável
que se encontravam aqueles pequenos momentos de alegria tornavam tolerável continuar lutando.
James observava aquilo tudo em silêncio, limpando seu
rifle. Arthur se assustou quando o viu.
- Eu te vi morrer. Como é possível?
- Vlad sabe que eu conheço toda a verdade. E sabia também da minha... Fraqueza... - James deu um longo suspiro. A imagem de Angela, a esposa que recusara transformar em vampira veio a sua cabeça.
- Eu me preparei e investiguei o máximo que pude. Um
bom soldado tem que escolher a arma certa. Eu escolhi a
magia. Ela me permitiu enganar vocês dois aquele dia. Na
verdade, nem foi tão difícil. - Olhou para Arthur e sorriu.
Ele sorriu um sorriso amarelo de volta.
- Que verdade é esta que você está falando? - Albert queria
saber.
- Todos pensam que a Eternidade S.A. é apenas para proteger a nossa segurança. Na verdade, ela foi a forma que
Vlad encontrou para facilitar o seu trabalho de encontrar o
renascido quando ele surgisse.
129
- E parece que funcionou. - Ursula concordou.
- Sim. Mas o que todos desconhecessem é o seu real propósito. É necessário o poder dos dois primordiais para que
seja colocado em prática o que Vlad pretende.
- Por isso ele o quer trazer de volta... - Albert interrompeu.
- É preciso do poder dos dois. Não da existência dos dois. A frase de McGuiness fez Albert engolir em seco. - Ele quer
trazer de volta apenas o poder do outro primordial, para
que ele seja definitivamente exterminado. Na verdade, no
final da Segunda Guerra Mundial, nós havíamos perdido a
guerra contra os lupinos. Todos os vampiros mais poderosos foram exterminados pelos lobos, sobrando apenas os
dois primordiais.
- Sim, eles tiveram que fugir. Mas ninguém nunca me contou o que aconteceu ao outro primordial. - Arhtur interviu.
- Na verdade, este é um segredo mais bem guardado do
que o nosso.
- O que descobri - James continuou. - é que eles fugiram
para o lugar onde as forças lupinas teriam menos alcance.
Todos os envolvidos do alto escalão sabiam que o Japão
seria bombardeado com ogivas nucleares, então não era
um lugar onde haveria tropas aliadas. Ou seja, lobos.
130
James seguiu explicando a eles como os vampiros haviam
descoberto as cidades que seriam bombardeadas. Contou
como Vlad articulou para que a cidade de Kokura, alvo
principal de uma das bombas, fosse substituída por Hiroshima, local onde o segundo Primordial estaria escondido. Enquanto isso, Vlad estaria seguro em Tóquio.
- Não é o que está escrito nos livros de história, mas foi o
que realmente aconteceu. A explosão pulverizou o segundo
primordial, mas ela não conseguiu dissipar sua essência.
O Conselho então tomou providências para que ela conseguisse voltar da única maneira possível. Atrelada à alma
de um ser humano. Eles eram bem mais do que as marionetes de Vlad que são agora.
Albert, Ursula e Arthur estavam atônitos. Vlad era pior do
que eles imaginavam.
- Ele simplesmente não quer dividir o controle sobre os
humanos? - Arthur questionou.
- Com toda a carnificina na Grande Guerra, tanto o conselho quanto o outro primordial estavam dispostos a um
acordo de paz com os lobos. Aceitaríamos não caçar mais
os humanos, e os lobos não nos caçariam mais. Mas Vlad
nunca aceitou a ideia. - James se serviu de um pouco de
131
sangue de uma das bolsas que Albert e Ursula haviam trazido.
- Nossa única opção é fugir então? - Arthur se levantou e
aproximou-se mais deles. Recobrava as forças rapidamente agora.
- Não poderemos fugir para sempre. - Ursula retrucou.
- Não, não podemos. - James ficou em silêncio por alguns
segundos, pensativo. - Mas vocês, com exceção de Ursula,
não têm condições de enfrentar os executores. Precisamos
dar um jeito nisso.
Os três lançaram um olhar de interrogação para o espião.
Todos sabiam que os executores eram vampiros que passaram por um extremo regime de treinamento, que chegava a durar mais de uma década. Como se tornariam guerreiros assim em tão pouco tempo?
- Eu sei o que estão pensando. - James devolveu o olhar. –
Mas Vlad precisava formar um exército com rapidez. E ele
tinha um segredo. Um segredo para tornar um vampiro
comum em um executor em questão de minutos. E só era
necessário uma coisa.
- O que? - Os três falaram quase ao mesmo tempo.
132
- Sangue de um executor. Felizmente enquanto eu os enfrentava no topo da Eternidade S.A., tive a oportunidade
de coletar um pouco. - Tirou um pequeno frasco de um
dos bolsos da roupa militar e mostrou a eles. Em seguida,
pegou dois copos que estavam em um pequeno armário no
fundo da sala. Colocou um pouco do sangue dos executores em cada um. De outro bolso, sacou um pequeno livro,
de onde leu, sussurrando, algumas palavras. Os dois copos começaram a tremer levemente sobre a mesa, e o líquido deles começou a borbulhar. Pegou então um pequeno frasco com um líquido azul e despejou nos copos. O
sangue dentro deles se tornou preto como piche, e o tremor dos copos cessou.
- Bebam. - Olhou para Albert e Arthur. Os dois não pareciam estar gostando muito da ideia, mas aproximaram-se
e pegaram um copo cada um.
- No três? - Arthur riu para Albert. Viraram os copos ao
mesmo tempo. Mal tinham acabado de engolir e já se contorciam no chão, como se uma dor agonizante os tivesse
tomado conta. Ursula quis socorrê-los, mas James a impediu. Os dois urravam agora, saliva escorrendo de suas
bocas. Longos três minutos se passaram, e então finalmente a estranha metamorfose cessou. Os dois recobravam o fôlego lentamente, até que finalmente conseguiram
133
se colocar em pé. Sentiam-se diferentes, mais fortes ainda
do que já eram. Sentiam que seus reflexos estavam apurados e que poderiam executar proezas que nunca haviam
imaginado antes.
- De agora em diante, não há mais volta. - James falou em
tom solene.
A guerra estava declarada.
134
A lua criara um bonito cenário, refletida no mar a frente
do esconderijo nas docas da cidade. Albert observava
aquele cenário enquanto seus amigos repousavam lá dentro. O primeiro turno de guarda havia ficado com ele. Mantinha os sentidos aguçados, e ouvia até mesmo os ratos
que mexiam em uma lata de lixo a quarteirões de distância
do velho armazém.
A “transformação em executor” os tinha deixado ainda
mais apurados. Mas segundo James, somente isso não
seria suficiente. Ele e Arthur estavam mais fortes e ágeis
do que nunca, mas isso ainda não seria suficiente para
enfrentarem o exército de Vlad. Teriam que buscar ajuda
em diversos locais do mundo, para aprimorar suas habilidades e descobrirem o que seria necessário para derrotar o
poderoso primordial. Havia uma longa jornada à frente, e
ele tinha muitas dúvidas em sua mente.
Subitamente os pelos de sua nuca se arrepiaram quando
percebeu um levíssimo movimento de passos atrás de si.
Virou rapidamente, já preparado para se defender. Porém,
do meio das sombras quem apareceu foi Ursula.
- Seus sentidos estão realmente melhores. Eu não queria
assustá-lo. - A ruiva caminhou em sua direção e sentou-se
ao seu lado, na beirada da marquise, de onde também co135
meçou a observar o belo cenário. Ela tentou se aconchegar
nele, mas ele a impediu com um movimento gentil.
- Ursula, nós precisamos conversar... - A fisionomia de Albert mesclava preocupação e tristeza.
- O que foi? O que está acontecendo? - Ursula se surpreendeu.
- É sobre nós dois. Nós estamos junto há algum tempo já,
mas tem uma coisa que vem me incomodando. É sobre a
profecia.
- O que foi? – O sorriso de Ursula dera lugar a uma expressão preocupada.
- Você disse que de alguma forma estava predestinada a se
sentir atraída por mim. Será que o que você sente por mim
não é apenas mais um feitiço? Talvez esses sentimentos
sejam apenas mais uma maldição...
Ursula não esboçou reação. Deu um suspiro e engoliu em
seco.
- Eu tenho que lhe contar algumas coisas Albert... Eu fiquei tão transtornada quando soube que você estava conosco apenas para ser sacrificado por Vlad... Eu me de-
136
sesperei. Não sei se este desespero foi causado pela profecia ou não. Mas o meu desespero era real.
Albert olhou sério para ela, e o olho no olho dos dois parecia soltar faíscas.
- Eu venho de uma família de vampiros muito antiga Albert. E nós sempre compartilhamos a ideia de convivência
pacífica com os humanos. Queríamos viver no anonimato,
sem causar mal a eles. Infelizmente quando isso pareceu
possível, algo terrível aconteceu.
- Você foi obrigada a se ajustar...
- Sim, mas quando conheci você tudo mudou. Foi por isso
que procurei os lupinos. Eles me retiraram a maldição imposta pela profecia, e em troca eu indicaria a eles o "Sanguis Renascentis". Eles iriam te capturar e protegê-lo de
Vlad.
- Por isso eles estavam na igreja àquela noite... Mas se eles
lhe retiraram a maldição, por que você não fugiu? Você
devia saber que eles iriam saber que você era a traidora.
- Para um advogado tão brilhante você realmente demora
em entender as coisas... - Ela lhe sorriu com ternura.
137
A ficha de Albert ainda não tinha caído. O belo sorriso havia retornado ao rosto de Ursula e ele o observava com cara de interrogação. Ela o beijou com ternura e acariciou o
seu rosto.
- Mesmo livre da maldição, eu continuei apaixonada por
você... Eu te amo Albert Kyrkman!
Um sentimento de alegria e euforia invadiu o peito de Albert.
- Eu também te amo Ursula... - A frase, porém foi interrompida por um uivo ao longe. Ursula se levantou rapidamente.
- Eles estão nos avisando. Há executores a caminho.
Os dois se levantaram rapidamente e desceram pelas escadas. Acordaram os amigos e colocaram tudo o que podiam no carro de James. A firma havia descoberto seu esconderijo, e precisavam colocar o pé na estrada.
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Fugitivos
139
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Aquele pântano da Louisiana era um dos lugares mais nojentos em que já tinham estado. Beirando o Rio Mississipi,
ele era infestado por mosquitos, que insistentemente lhes
picavam. Era nesse lugar que Albert e James caminhavam
agora, voltando de um encontro muito especial que tiveram.
- Rapaz, eu nunca imaginei que encontraria uma figura
como aquela. – Albert ainda estava impressionado.
- Esta região é famosa por seus curandeiros vodu. Só que
muito poucas pessoas conseguem diferir o que é realidade
do que é simplesmente superstição e charlatanismo. – James já estivera brevemente naquela região, mas retornara
agora com seus novos amigos, em busca de mais conhecimentos que os ajudariam em sua guerra recém-declarada.
- Para mim é um pouco estranho estar visitando todos estes lugares místicos com você James... – Já haviam, no
caminho até ali, passado pela igreja de um padre exorcista
aposentado e a de um bruxo versado em tradições celtas.
- Pouco antes de ser transformado eu acho que estava
meio em negação com toda esta coisa espiritual. – Albert
concluiu.
141
James olhou para o novo amigo e pareceu se interessar
pelo que ele dizia. Então Albert continuou:
- Minha mãe era muito religiosa. Eu cresci nesse ambiente, e por muito tempo eu acreditei ter uma fé bem sólida.
Mas a minha vida acabou me levando a ficar bem cético
em relação a isso.
- Bem Albert, eu posso lhe garantir que Deus nada tem a
ver com todas as coisas ruins que te aconteceram...
James fez uma pausa. Parecia estar refletindo sobre ele
mesmo. Então continuou:
- Aliás, nem tenho pretensão de lhe dizer se ele existe ou
não, porque isso eu também não sei. O que posso lhe dizer
com certeza é que existem a luz e a escuridão, e uma
grande sombra entre elas. Você pode perambular pelas
sombras por um tempo, mas chega uma hora que inevitavelmente você vai ter que escolher um lado.
Albert concordou com um aceno de cabeça. Pensou por
alguns instantes e então falou:
- Nós estamos do lado da luz, não?
- Neste exato momento? Acho que sim. – Respondeu James com um sorriso sarcástico.
142
Albert achou graça da resposta do amigo. A conversa ficou
mais escassa, pois o caminho pelo pântano estava ficando
ainda mais difícil. Chegaram a um local que as botas militares que usavam entravam quase todas na terra úmida e
fofa. Havia chovido um pouco mais cedo naquela noite, o
que tornara o caminho ainda mais complicado. Albert
olhou para o relógio e viu que eram três da manhã. Deveriam se apressar para evitar o nascer do sol, e tinham um
longo caminho até a cidade mais próxima, onde Arthur e
Ursula os aguardavam. E teriam que fazê-lo a pé.
- Este maldito bruxo não podia morar num lugar mais
acessível? – Albert reclamou.
- Quando chegarmos ao bosque o caminho melhora bastante. E você ainda não viu nada meu amigo. Daqui vamos
para o Himalaia.
Albert arregalou os olhos para James com um misto de
surpresa e desânimo. Porém, a conversa dos dois foi interrompida quando perceberam um pouco à frente de onde
estavam vozes vindas de dentro do bosque mais fechado
pela vegetação. Aguçaram seus sentidos, e puderam perceber que por entre as árvores, uma luz bruxuleante que
aparecia e sumia entre as árvores. Aproximaram-se com
cuidado, sem fazer barulho algum. Com um salto, chega143
ram ao topo de uma árvore, de onde puderam observar o
que acontecia.
As luzes que viam entre a vegetação eram das tochas de
um grupo de pouco mais de dez homens. Eles estavam todos vestidos com longas vestes brancas com detalhes vermelhos, e suas cabeças eram cobertas por longas máscaras com a parte de cima pontuda. Ao fundo, havia uma
cruz de madeira montada de forma rudimentar, de onde
pendia uma jovem negra que devia ter por volta de quatorze anos. Estava amordaçada, mas os dois vampiros podiam ouvir os seus gemidos de desespero. Um dos homens
parecia discursar palavras desconexas sobre supremacia
ariana e anticomunismo.
Albert e James se entreolharam por um instante, e este
último percebeu que os olhos do amigo ardiam de ódio.
- Nós não deveríamos nos expor, você sabe... – James instigou o amigo. Os olhos de Albert ficaram ainda mais vermelhos, como se ele estivesse se segurando para não explodir em ódio.
- Mas parece que chegou a hora de você sair das sombras,
Albert.
144
James tinha dito tudo o que Albert precisava ouvir. Mal ele
acabara de falar, Albert já estava no ar, num salto fantástico para cair bem no meio dos homens encapuzados.
Houve um segundo de surpresa e confusão, e em seguida
o homem que parecia ser o líder começou a berrar como
louco:
- Peguem esse maldito crioulo!
Os desavisados racistas correram para cima de Albert. Do
alto da árvore, James não interferiu. Viu o amigo simplesmente desmembrar, um a um, cada integrante do grupo,
com extrema facilidade. A garota pendurada na cruz estava em frenesi, e a mordaça havia se soltado de sua boca.
Seus gritos se confundiam com o dos homens sendo dilacerados sistematicamente por Albert. Mas subitamente,
apenas os gritos agudos da garota podiam ser ouvidos.
Não havia mais palavras racistas. Os doze homens, ou o
que sobrara deles estava espalhado pelo chão da clareira.
James finalmente desceu da árvore de onde observara o
massacre. Aproximou-se da garota que berrava em desespero e com um amuleto que trazia no bolso, fez um encantamento para fazê-la dormir. Desamarrou-a com cuidado e
a desceu até o chão, colocando-a numa posição confortá-
145
vel. Virou-se então para Albert, que banhado em sangue,
observava a tudo.
- Ela não se lembrara de nada pela manhã. Aliás, bom trabalho... – James lançou outro de seus sorrisos sarcásticos.
Os jornais do dia seguinte estampavam a manchete de
como uma jovem da comunidade havia sido milagrosamente salva de um grupo racista por um ataque de animais selvagens. Mas Albert e James não leram a matéria.
Já estavam em um avião, rumo ao Tibete.
146
Japão, algumas semanas depois.
O carro alugado subia por uma ladeira deserta. Era tarde
da noite, e os quatro amigos rumavam para uma área
afastada da cidade, onde um velho conhecido de James os
aguardava. Este dirigia o carro, com Arthur ao seu lado.
Albert e Ursula seguiam no banco de trás. Eles conversavam animadamente, relembrando as aventuras que tiveram nas cordilheiras traiçoeiras do Himalaia. A viagem ao
Tibete tinha sido proveitosa, pois um velho monge, versado
em várias técnicas de magia os havia ensinado vários truques novos. Em seguida, rumaram para o Japão, onde
uma parte crucial do aprendizado, principalmente para
Albert teria lugar.
O conhecido de James era um japonês chamado Moroboshi. Rezava a lenda que ele era o último samurai vivo, e que
tinha descoberto o segredo da imortalidade. Havia combatido e derrotado centenas de vampiros durante os séculos,
mas quando o seu clã foi praticamente dizimado, havia se
recolhido e vivia a sua vida eterna como um nômade, mudando constantemente de lugar. Mesmo James havia tido
dificuldades em contatá-lo, dada à forma como ele, com
maestria, se escondia. Estavam perto agora.
147
Foi quando o carro passou por uma pequena praça, quase
no topo da ladeira. Albert deu um pulo no banco e arregalou os olhos. Sentiu um calafrio percorrer todo o seu corpo. Sua respiração ficou ofegante, e gotas de suor, algo
raríssimo para um vampiro, começaram a brotar de sua
testa.
- Para o carro! Para o carro!
James, surpreso, encostou o carro no meio fio. Albert saiu
rapidamente, meio trôpego e parou a alguns metros de um
pequeno totem de madeira da praça. Nele havia uma pequena fotografia em preto e branco mostrando a vizinhança antes do ataque nuclear na segunda guerra ao lado de
um pequeno texto em memória dos que haviam morrido
naquela ocasião.
Albert prostrou-se diante dele e começou a chorar convulsivamente, com lágrimas de sangue escorrendo pelo rosto
pálido. Os amigos observavam atônitos.
- Querido, o que está acontecendo? – Ursula adiantou-se
para abraça-lo, mas James a impediu delicadamente. Parecia que ele havia compreendido a situação.
Kyrkman por sua vez não ouvia nada do que os amigos
estavam dizendo. Estava imerso em um mundo próprio,
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revivendo memórias que não eram suas. Viu enormes castelos, cheios de pessoas elegantemente vestidas em trajes
de época. Batalhas em inúmeras guerras, onde enxergava
de sua perspectiva a luta contra humanos e lupinos. As
imagens eram acompanhadas por torrentes de sentimentos conflitantes, de terror e euforia. Vivenciou centenas de
anos em minúsculos segundos, gotas ínfimas de tempo
perdidas em um oceano de vida e morte.
A experiência terminou como em seus pesadelos recorrentes. O silêncio, a flecha prateada cortando o céu, o pequeno artefato cumprindo a sua trajetória descendente em
direção à ponte. A luz, o calor, o impacto. E então, o nada.
Neste instante, Albert voltou a si.
- Foi aqui! Foi aqui! – Albert repetia, soluçando.
- O que Albert? Desembucha cara! – Arthur esbravejou.
- Era aqui que o primordial estava quando a bomba caiu...
Vejam a foto! Eu sinto como se a sua alma estivesse queimando dentro de mim!
- Foi por isso que escolhi este caminho. – James interveio.
Os três se voltaram para ele com olhares inquisitórios.
- Você precisava ter a noção de quem você é Albert. Do que
carrega dentro de si. Foi um pedido de Moroboshi. Aparen149
temente o que ele vai te ensinar teria mais efeito se você se
“inteirasse” melhor do assunto.
- E que jeito de conhecer a si mesmo! – Arthur limpava o
rosto ensanguentado do amigo com um lenço. O rosto de
Albert ficou com uma tonalidade rubra.
- Sugiro que sigamos viagem. Não é seguro parar aqui. –
James se encaminhou de volta ao automóvel. Albert já
começara a se recuperar, e amparado por Ursula e Arthur,
sentou-se no banco de trás do automóvel. Seguiram viagem em silêncio por mais alguns minutos.
150
O velho pagode japonês estava mal iluminado. O carro
com os quatro vampiros se aproximou e a luz do farol
permitiu que eles vissem, de pé em frente a porta principal, a silhueta de um homem alto e magro, vestido no que
parecia ser uma roupa cerimonial antiga. Desceram do
carro e caminharam até ele.
- Moroboshi San. – James cumprimentou.
- James. – O rosto longo e cheio de cicatrizes do guerreiro
japonês não esboçou emoção nenhuma.
- Estes são...
- Eu sei quem eles são. – Moroboshi o cortou. – Vocês esperam aqui. Você vem comigo. – Apontou para Albert.
Os amigos se entreolharam, e Albert seguiu o japonês, que
já havia lhes dado as costas e começava a entrar pelo jardim da casa. Os dois seguiram em silêncio por um caminho de pedra até a entrada principal. A construção não era
grande, e aparentava certo descuido de seu dono com sua
manutenção. Era claramente uma pousada temporária. A
única coisa que despertou a atenção de Albert é que a casa
era circundada pelo que parecia um pequeno rio de água
corrente. Moroboshi, que seguia a frente atravessou a pequena ponte de pouco mais de um metro e Albert o seguiu.
151
Só que quando este tentou atravessar, foi jogado longe por
uma força invisível. O japonês virou-se, e pela primeira vez
esboçou alguma fisionomia diferente, esboçando um quase-sorriso.
- Me desculpe por isso... não costumo receber muitas visitas de pessoas como você.
Albert sabia exatamente o que havia acontecido. O monge
tibetano havia mencionado que ensinara a James um forte
encantamento de cerco, que impedia a entrada e a saída
de criaturas amaldiçoadas de dentro de um ambiente circundado por água corrente. Moroboshi obviamente compartilhava do mesmo conhecimento. O japonês proferiu
algumas palavras em voz baixa, e finalmente Albert pode
entrar. Outras palavras foram proferidas em seguida, reativando o encantamento. Certamente não queria ser surpreendido por visitas inesperadas.
- Sente-se. – Moroboshi indicou uma almofada no chão, ao
lado de uma pequena mesa, onde um chá estava servido.
Albert se acomodou e o japonês sentou-se frente a frente
com ele.
- Chá? Acho que nunca bebi chá com um vampiro.
- Não, obrigado. – Albert respondeu.
152
- Então, por que você veio até mim?
Albert pensou por um segundo, deu um longo suspiro e
então respondeu à pergunta:
- Estivemos em inúmeros lugares. Aprendemos muita coisa. Mas ninguém foi capaz de me responder como eu posso
destruir Vlad. Dizem que o único que sabe é você.
Moroboshi olhou nos olhos de Albert.
- De fato, Vlad se tornou muito poderoso. Acho que mesmo
um lupino não seria capaz de derrota-lo. Mas quando descobri o segredo da imortalidade, descobri também os segredos para findá-la.
- É isso que eu preciso. Eu sei que por mais que eu treine
ou aprenda, não sou páreo para o poder de um primordial.
– Albert estava eufórico.
- Entendo. Eu mesmo gostaria de fazê-lo, mas sou um só,
e apesar de imortal, ainda posso ser morto.
Albert, afoito, interrompeu o centenário guerreiro.
- Então me diga, como posso destruir Vlad?
153
O guerreiro se levantou e andou até um pequeno altar no
fundo da sala. Acendeu um incenso. Parecia meditar sobre
alguma coisa. Então falou:
- Você não pode.
Albert se exaltou.
- Como assim? Então toda esta jornada foi em vão? – Se
levantou rapidamente, alterado. O japonês, de costas para
ele, seguiu impassível.
- Como eu disse, você não pode. Mas o que existe dentro
de você pode. Você presenciou hoje a alma que existe dentro da sua forma mundana. Só ela detêm poder suficiente
para eliminar Vlad.
Albert estava confuso, porém lentamente começou a entender. Moroboshi se virou com um pequeno embrulho de
veludo nas mãos. Andou até onde Albert estava, e colocouo em suas mãos.
- Quando a hora chegar, você já sabe o que tem de fazer. –
Encarou Albert novamente nos olhos.
O japonês deu-lhe as costas de novo, andou até o altar e
se ajoelhou diante dele. Albert ficou ali parado por alguns
momentos, então virou-se e saiu.
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Quando chegou a pequena ponte, certificou-se que o feitiço
não estava agindo e caminhou em direção ao lugar onde
seus amigos o aguardavam.
Ajoelhado a frente do altar, Moroboshi sussurrou:
- Eu sinto muito.
O guerreiro então teve certeza que o “Sanguis Renascentis”
havia sido encontrado.
Albert não disse palavra alguma aos seus amigos naquela
noite.
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156
Campo de Batalha
157
Dois anos se passaram desde aquela noite no esconderijo
em Nova York, onde uma declaração de guerra havia sido
feita. Haviam viajado pelos quatro cantos da Terra, da cordilheira do Himalaia até as profundezas da floresta amazônica. Procuravam recursos, treinavam e aprendiam tudo
o que podiam. E eventualmente enfrentavam executores.
Muitos executores.
Vlad Tepes em seu castelo na Ucrânia urrava constantemente pelos corredores, matando sistematicamente serviçais que lhe traziam más notícias. Não entendia como os
quatro vampiros escapavam-lhe pelos dedos.
Enquanto isto, Albert, Arthur, Ursula e James estavam
cada vez mais preparados. O espião tinha contatos espalhados por toda parte, o que lhes garantiram movimentação livre por praticamente todos os lugares. Houve mestres
de todos os tipos, que ensinaram a Albert e Arthur técnicas de batalha, sejam do manuseio de armas ou magia.
Até mesmo Ursula, experimentada guerreira, aprendera
alguns truques novos.
James também fez o trabalho de inteligência, distribuindo
centenas de pistas falsas que faziam com que o inimigo
dispersasse suas forças cada vez mais no intuito de captura-los. E o momento em que estas forças estavam mais
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espalhadas pela louca obsessão de seu mestre em encontrar os fugitivos, e principalmente o renascido, foi escolhido para dar a sua cartada decisiva.
Vlad estava em seu aposento olhando pela enorme janela.
Imaginava formas de trazer até ele os seus inimigos. Mesmo o vampiro mais poderoso de todos se surpreendeu com
a explosão que surgiu no horizonte. Um enorme dique foi
posto abaixo pelos quatro vampiros renegados. As águas
caudalosas preencheram rapidamente os leitos secos que
contornavam a fortaleza de Vlad. Este compreendeu instantes depois, a intenção de seus inimigos. Porém, já era
tarde demais.
- Mandem os executores! Mandem todos eles! Eu quero
todos eles! - Vlad urrava com ódio. A ousadia dos seus
inimigos o tinha surpreendido.
Alguns quilômetros dali rodeado por seus três amigos, às
margens do novo rio que nascia, James invocava agora um
antigo encantamento. Tão antigo que nem mesmo Vlad
lembrara mais dele. Porém James era obstinado, e recolhera com um velho monge tibetano a forma perfeita de
estabelecer um campo de batalha para eles. A água corrente, em conjunto com a força da magia criara uma barreira que envolvia o castelo, e não permitia que nenhuma
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criatura amaldiçoada pudesse entrar ou sair. Havia criado
uma cela para os inimigos e também para eles mesmos.
Tinham chegado ao ponto sem retorno.
- Está feito. - James olhou para os amigos e sorriu.
- Estão vindo. Posso sentir o fedor deles. - Arthur percebia
a chegada dos executores, que se embrenhavam na floresta fechada que circundava o castelo a procura deles. Sacaram seus sabres de prata, menos James, que preferia os
dois machetes.
- Não devem ser mais do que cem, se nossas informações
estiverem corretas. Vocês sabem o que fazer. - Albert falou
com confiança. Sua voz refletia as mudanças que passara
nestes dois anos. Além do sangue de executor agora correndo em suas veias, havia aprendido a ser um guerreiro
e, além disso, um estrategista.
A floresta estava repleta de armadilhas, e os primeiros
executores a se embrenharem nela morreram, às vezes decapitados, outras vezes empalados por setas de pratas. Os
que escaparam, eram sistematicamente emboscados pelos
quatro vampiros.
Vlad observava seus asseclas de um terraço do castelo, e
cada grito de executor caído o enfurecia cada vez mais.
160
Seus olhos estavam ardentes de ódio, e sua figura magnífica nas roupas de aparência vitoriana se tornava cada vez
mais obscura, enquanto uma névoa de escuridão subia de
seus pés e lhe dava uma aparência fantasmagórica.
Tentava entender como aquele mero advogado negro do
subúrbio de Nova York tinha a audácia de desafia-lo. O
confinara em seu próprio castelo, e seus executores tombavam sistematicamente no tabuleiro de xadrez estabelecido por seus inimigos.
Dentro da floresta fechada, eles corriam e rodopiavam entre as árvores, saciando com sangue as lâminas de prata
de suas armas.
- Tragam Samantha. Agora! - Vlad urrou com um dos seus
serviçais. Este saiu correndo pelo corredor que dava acesso ao terraço onde Vlad estava afoito em cumprir a missão
lhe dada pelo mestre. Desceu por uma escada de pedra em
espiral até um escuro e fétido calabouço. Abriu uma pesada porta de madeira de uma das celas e entrou no aposento.
- O mestre a está chamam... - antes que conseguisse terminar a frase, seu corpo foi jogado violentamente contra a
parede de pedra. Dentro da cela, uma risada demoníaca foi
ouvida, e Samantha saiu da cela. A figura adorável da ga161
rota que parecia nova demais para ser uma mulher de negócios havia sumido completamente.
Vlad, irado com a sua falha em lhe trazer o renascido, não
permitiu que ela morresse quando James enterrou o crucifixo de prata em seu rosto. Para puni-la, havia a transformado naquilo que um vampiro mais temia: uma lamiae, a
forma mais aterradora que uma vampira podia assumir.
O corpo de contornos delicados e sensual agora era um
amontoado de músculos horrendos e inchados, de onde
brotavam pústulas e tumores cheios de pus. Os cabelos
negros agora eram escassos na cabeça deformada. Possuía
apenas um olho, já que o outro fora engolido pela enorme
cicatriz em forma de crucifixo. Em contrapartida, uma lamiae era o ser mais poderoso conhecido pelas criaturas da
noite, e ela sempre era controlada por um vampiro mais
poderoso ainda. Era uma arma de guerra, que não era
mais vista desde que os vampiros tiveram sua derrota decisiva na Segunda Guerra Mundial.
Este demônio agora vagava pelas escadarias do castelo, em
direção a sua entrada principal.
Alheios a tudo isso, os quatro vampiros lutavam com os
executores na floresta. Ursula havia desistido das armas
brancas, e agora atirava com uma espingarda nos poucos
162
executores que ainda resistiam. Avançavam lentamente
em direção ao descampado que havia na frente do castelo
de Vlad. Este continuava impassível no topo do castelo,
observando a tudo. Mais alguns minutos se passaram, e
finalmente, incólumes emergiram da floresta ao longe as
quatros figuras em roupas militares salpicadas de sangue.
Os gritos dos executores haviam cessado, e o que se ouvia
agora era apenas o som do rio que havia se formado,
ilhando o castelo amaldiçoado. Caminharam para dentro
do descampado, até que puderam ver, emoldurado pela
enorme lua cheia acima de uma das torres do castelo, a
figura de Vlad. A névoa negra o envolvia completamente
agora, e ele possuía um sorriso no rosto. Albert se adiantou alguns passos do grupo e falou tão alto que apenas os
vampiros puderam escutar.
- Acabou Vlad. Seus executores não poderão entrar e você
não poderá sair.
- Quem é você para me fazer ameaças, seu meio humano
desprezível? Vocês vieram para atender aos seus próprios
funerais! E antes do sol nascer o poder que está dentro de
você será meu!
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Albert hesitou por um momento com a confiança de Vlad.
Ele estava encurralado em seu castelo, e mesmo assim
mantinha a empáfia. Resolveu então lançar um ultimato.
- Se entregue agora, ou seremos obrigados a matá-lo!
- Me matar? Me matar? Já estamos todos mortos, seu inseto miserável. E em breve todos os humanos servirão
apenas para garantir que continuemos assim.
Neste momento a visão horrenda de Samantha emergiu do
portão principal do castelo. Apesar de sua disforme aparência, os amigos a reconheceram imediatamente. Ursula
virou o rosto por um momento e segurou o choro, pois
Samantha, apesar de tudo o que havia feito, tinha sido sua
amiga.
O olho de Samantha que ainda existia em seu rosto olhou
diretamente para eles, fitando-os lentamente e finalmente
repousando sobre James. A boca destruída e com apenas
os caninos balbuciou um grunhido de ódio.
- Maldito! Maldito!
James percebeu que aquilo era direcionado diretamente
para ele, porém não se abalou. Caminhou até o lado de
Albert.
164
- Você tem esta criatura, mas nós somos quatro Vlad. Nem
ela e nem você serão suficiente para nos deter. Vocês terminarão mortos. – Desafiou James.
- Vocês falam muito de morte. Quem sabe eu não deva
mostrar a vocês a verdadeira natureza dela.
Vlad então se virou de costas para eles e abriu os braços.
A névoa que o envolvia começou a se mexer, formando um
redemoinho em volta dele por alguns segundos. Depois,
desceu velozmente pela torre do castelo e se dispersou,
cobrindo boa parte do descampado. Então a voz de Vlad se
fez ouvida novamente.
- Ergam-se!
James engoliu em seco. Começaram a ouvir sons abafados, com se o solo a frente deles estalasse e se partisse.
Momentos depois já podiam ver os primeiros montes de
terra se formando e abrindo. Deles surgiam mãos e braços
putrefatos, que erguiam em seguida cadáveres cujas caveiras exibiam olhos com orbitas de uma luz vermelha maligna.
Vlad havia invocado um exército de mortos vivos, antigos
guerreiros que tombaram enfrentando-o, e foram aprisionados em seu solo, aguardando o dia que seu algoz os tra165
ria de volta para servi-lo. Albert e James recuaram até onde Ursula e Arthur estavam e sacaram armas.
Eles que estavam encurralados agora, e por inimigos muitos mais perigosos que executores, pois estes não possuíam fraqueza alguma as suas lâminas e balas de prata.
Samantha foi a primeira avançar pelo meio dos zumbis
malditos, urrando com uma fera ensandecida em direção a
eles. Arthur fraquejou por um momento.
- Estamos perdidos... – Sussurrou com pesar.
A massa com mais de duzentos mortos vivos avançou furiosamente.
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Duas figuras misteriosas observavam a batalha, incógnitos
embrenhados na floresta. Mesmo os quatros poderosos
vampiros e os diversos executores que haviam estado ali
alguns minutos antes não conseguiram perceber a presença deles e dos seus irmãos. Observavam o cerco que se
armara, aguardando o seu desfecho sem interferir. A única
coisa que se poderia observar deles agora na escuridão era
o brilho dos dois pares de olhos vermelhos.
- Nós devíamos intervir. – conversavam em suas mentes,
sem emitir som algum.
- Não sei. A ideia de me aliar a um vampiro ainda não me
soa muito bem. – a segunda figura respondeu, também
telepaticamente.
- A mulher já se aliou a nós no passado. E tudo o que eles
fizeram nestes dois anos não deixa sombra de dúvida sobre a intenção deles.
- Nisso você tem razão irmão. O fato de terem se encurralado aqui para enfrentar Vlad diz muito sobre eles.
- E então, o que me diz? – O primeiro queria uma resposta
do irmão.
- Vamos esperar mais um pouco.
167
Já fora da floresta, bem à frente de onde as duas figuras
misteriosas trocavam pensamentos, os quatro vampiros
renegados encaravam o seu destino. Do alto do castelo,
Vlad, o único vampiro primordial encarnado invocava seus
poderes das trevas para erguer os guerreiros que jaziam no
descampado à frente. Dezenas de figuras horrendas e apodrecidas se ergueram de suas covas rasas. Uma mais grotesca ainda, Samantha, transformada por seu mestre em
um monstro guerreiro parecia comandar a horda infernal,
que partiu em uma carga desenfreada em direção aos quatros amigos.
Por mais habilidosos que houvessem se tornado, não seriam páreo para o exército de criaturas amaldiçoadas. Não
tinham estratégia nem armadilhas para enfrentar aquilo.
Em campo aberto, estavam entregues à própria sorte. Porém, na floresta atrás deles, uma decisão foi tomada.
Um uivo, a princípio solitário ecoou pelo vale. Os mortos
vivos, liderados por Samantha interromperam a carga, e
até mesmo Vlad teve a atenção despertada. Aquele agudo
grito animal cessou. Porém foi seguido por um coro de dezenas de outros, que foi ganhando força gradualmente até
se tornar ensurdecedor. Podia se ver agora as copas das
árvores se mexendo, e um som como o de uma tropa avançando foi ouvido.
168
Apenas alguns segundos depois se revelaram as causas de
tal estardalhaço. Uma alcateia enorme de lobisomens
emergiu da floresta, para a surpresa tanto dos quatro amigos quanto dos seus infames inimigos. Os enormes lobos
avançaram ferozmente, passaram pelos quatro vampiros
atônitos e investiram sobre as criaturas demoníacas. Uma
batalha sem precedentes se iniciou. Os quatros amigos se
engajaram também na batalha, seguindo em direção a
Samantha, que rechaçava os ataques lupinos com golpes
dos seus poderosos membros.
- Temos que pará-la! Deixem os mortos vivos com os lobos.
– Albert berrou aos amigos enquanto avançavam.
Uma espécie de clareira se abriu no meio do combate, e os
lobos, compreendendo a estratégia de Albert e seus amigos, se concentraram nos zumbis. Os quatro estavam agora frente a frente com a lamiae. Ela agora estava mais furiosa ainda, arranhada e sangrando pelos ferimentos infringidos pelos lupinos. Esta aparente fraqueza levou Albert e seus amigos a um erro logo de início: partir para
cima da fera com tudo.
Ela jogou com um único golpe os quatro a uma distância
considerável, e finalmente eles tiveram a noção do poder
contido na grotesca criatura. Era muito mais poderosa que
169
um executor, sua pele tinha resistência impressionante até
os golpes de armas de prata, que apenas a arranhavam.
Perceberam então que teriam que usar de força extraordinária, muito maior do que já haviam empregado contra os
inúmeros inimigos que haviam enfrentado até ali. Circundaram a criatura, agora cautelosos quanto ao próximo
passo na batalha.
Enquanto isso, a volta deles uma batalha sangrenta entre
os lobos e os seres mortos-vivos continuava. Apesar de terem várias baixas, os lobos lentamente iam sobrepujando
os cadáveres infernais um a um. Chegaram até mesmo a
jogar alguns na água do rio encantado. Os esqueletos, por
se tratarem de seres amaldiçoados, rompiam em chamas
no momento que seus corpos decrépitos tocavam a água
corrente, como se mergulhados em ácido.
Alguns lobos também caíram eventualmente na água, mas
não se feriam. Albert reparou isso e entendeu o que Ursula
havia lhe dito algum tempo atrás: Eles não se tratavam de
seres amaldiçoados como os vampiros. Eram mais como
animais sagrados presos a corpos de homens. Por isso em
todos estes séculos eles estiveram ao lado dos humanos,
mesmo que secretamente, contra a dominação que Vlad e
seus asseclas queriam impor.
170
Agora os nobres animais lutavam lado a lado com eles, e
que aliados formidáveis eles eram. Mas os pensamentos de
Albert eram sempre subitamente interrompidos pelas investidas de Samantha.
Sabia que Vlad o queria vivo, mas não tinha dúvida que a
fera não hesitaria em arrancar a sua cabeça em sua fúria
descontrolada. Tentavam agora cercar a criatura por todos
os lados, desferindo ataques coordenados que apenas arranhavam a superfície da pele do monstro, o que deixava
Samantha apenas mais furiosa. E as armas brancas eram
a sua única opção de ataque, pois Ursula tentara acertar
um tiro na cabeça do monstro, mas este foi ricocheteado
por algum tipo de magia.
Tentaram um ataque coordenado, com os quatros avançando ao mesmo tempo, apenas para serem rechaçados
novamente com poderosos golpes que os jogavam longe.
Estavam exaustos da batalha, e lentamente ficando desesperados pela falta de opções para derrotar o oponente terrível.
Estavam agora Albert, Ursula e Arthur prostrados de joelhos, tentando recuperar o fôlego, enquanto que James
havia sido jogado ainda mais longe pelo golpe. Tinha sido
lançado em monte de quatro corpos putrefatos à direita do
171
monstro, que olhava para eles com o único olho ardendo
em ódio. Albert percebeu que James se demorou a levantar. Quando o fez, estava todo desajeitado, com se manipulado como uma marionete. Deveria estar certamente
mais enfraquecido que os outros, pois ofegava furiosamente. Albert o viu então pegar uma espada do chão, que nem
mesmo era de prata e partir para cima do monstro. Teria
enlouquecido?
- Não James! Não faça isso! – A voz de Albert quase não lhe
saia da boca, e os pulmões queimavam pelo cansaço.
Mas o espião pareceu não ouvir. Estava cego por algum
tipo de ira descontrolada contra a besta infernal. Correu e
saltou sobre ela. Desferiu um golpe pífio com a espada,
que nem ao mesmo chegou a acertar o monstro. Este por
sua vez agiu diferente das outras vezes que fora atacado.
Ao invés de acertar um golpe no atacante, o aceitou de peito aberto, o recebendo em um abraço mortal. A criatura
segurou James com força, girando-o e agora o segurando
pela perna esquerda, de ponta-cabeça. Este não possuía
nem mais força para se debater. Parecia entregue à mercê
da criatura.
172
Os três amigos estavam em pânico, de pé a alguns metros
do monstro, tentando achar uma brecha para atacar e libertar o amigo. Mas era tarde demais.
Para o horror dos três amigos, a fera lentamente desmembrou James. Primeiro arrancou-lhe o braço direito e parte
do braço esquerdo. Revirou-o e arrancou-lhe agora as pernas, de onde um jorro de sangue espirrou até próximo de
onde eles estavam. O corpo desmembrado se contorcia em
agonia, a cabeça pendendo para os lados em desespero.
Não emitia som algum, além de gemidos roucos e abafados
de desespero. Mas não por muito tempo. A besta medonha
olhou diretamente para os olhos moribundos de James e
esboçou um sorriso de escárnio na boca deformada. Pegou
uma lâmina de prata caída ao seu lado e finalmente, mais
em um ato de vingança do que misericórdia decepou a cabeça do espião. Esta rolou alguns metros à frente e Albert
pode ver os olhos revirando em suas órbitas até pararem
completamente.
Albert olhou para Ursula e Arthur. Viu seus rostos atônitos e as lágrimas que corriam profusamente agora no rosto
da amada.
173
174
Pela Eternidade
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A fera ensandecida regozijou-se da hedionda cena do corpo
desmembrado de James. Albert e seus amigos observavam
a dantesca visão de certa distância, confusos e assustados. A fera deixou então o que sobrara do corpo desabar
no chão. O único olho infernal fitou os amigos com ódio.
Eles seriam os próximos. Porém, o que ela não reparou foi
que no momento em que os restos do torso tocaram o solo,
ele e os membros arrancados ganharam uma tênue luminosidade, e o que eram os restos mortais de James se tornaram a ossada de uma das criaturas infernais que haviam brotado das profundezas do descampado onde a batalha tinha lugar.
Albert foi o primeiro a ouvir, como se todo o som da batalha se abafasse o som dos passos vindos de trás da criatura. Eram passos apressados, correndo. Eles cessaram e
Albert viu o brilho refletido da lua subir em o que pareciam dois relâmpagos que se erguiam por trás de Samantha.
Eles ganharam certa altura e começaram a descer, abertos
no ar. O golpe foi certeiro. Os dois machetes, um vindo da
direita e outros da esquerda acertaram a besta na altura
da têmpora. Mas eles não simplesmente feriram: os dois se
encontraram no centro da cabeça do monstro.
O monstro não emitiu som algum. Simplesmente caiu de
joelhos, e a parte de cima da cabeça escorregou lentamen176
te para o lado, até cair e rolar pelo chão. Segundos depois
o monstro desabou completamente, eclodindo em chamas
logo em seguida. Do meio das chamas os três amigos viram James, tal qual uma fênix renascida das chamas novamente, mesmo sem nunca ter estado realmente morto.
Exaurido pelo encantamento feito para enganar Samantha, e mais ainda por ter transferido todas as suas forças
para os golpes mortais dos machetes, James caiu desfalecido no chão, à frente do corpo deformado que ardia em
chamas. Os amigos correram até ele. Arthur foi o primeiro
a chegar, colocando-o em uma posição mais confortável no
chão e amparando a sua cabeça.
- Você precisa parar de fazer isso! É a segunda vez que te
vejo morrer! - Arthur ria, mas tinha os olhos marejados.
Albert e Ursula chegaram em seguida, e suspiraram aliviados quando perceberam que apesar de exaurido, o amigo
continuava vivo.
- Eu sou um espião... Já morri inúmeras vezes... - James
sussurrava as palavras através de um meio sorriso.
Neste momento, a batalha dos lupinos chegava ao fim. Os
últimos mortos-vivos haviam sido jogados nas águas encantadas do riacho criado pelos vampiros renegados. Os
177
animais guerreiros orgulhosos uivaram em uníssono, como
se entoassem um cântico de guerra. Porém, ao mesmo
tempo os quatro sabiam que havia ainda uma última batalha a ser vencida. E que ela teria que ser travada por Albert.
Na margem do lado de fora do cerco, centenas de executores chegavam de todas as partes, mas impedidos de entrarem na luta, vagavam de um lado para o outro como animais acuados, apesar deles estarem de fora do cativeiro.
Mas não eram eles os inimigos a serem vencidos. Os olhares estavam dirigidos agora à torre do castelo onde ficava o
terraço de onde Vlad havia observado toda a batalha. Ele
não estava mais lá. Havia se recolhido para a sua câmara
particular.
Albert se ergueu e começou a caminhar em direção a entrada principal do castelo. Sem olhar para os amigos apenas disse:
- Cuidem de James. - Deu mais alguns passos.
- Albert! - Ursula correu e abraçou Albert, o beijando com
paixão. Depois olharam um para o outro por longos segundos.
178
Nenhuma palavra foi pronunciada. Aqueles olhares faiscantes de paixão diziam tudo o que precisava ser dito. Albert então a segurou pelos braços, como que se tentasse
carinhosamente a afastar. Ela tocou o seu rosto uma vez
mais, virou-se e caminhou, tentando controlar o choro incontrolável. A dor de esta poder ser a última vez que veria
o seu amor tomou conta.
Albert entrou no castelo e usou seus poderes para se guiar
pelos corredores desertos. Eles eram magníficos, como se
estivessem paralisados no tempo por séculos. Na antessala
da câmara principal, onde Vlad se refugiava agora, enormes quadros mostravam as feições garbosas de figuras
que Albert estudara durante os anos. Eram membros do
conselho dos vampiros, figuras proeminentes entre as criaturas da noite, mas que hoje em dia não passavam de meras marionetes sob o controle unilateral de Vlad.
Sem o segundo primordial para equilibrar a balança de
poder, Vlad se tornara absoluto, e o conselho, impotente.
Mas havia um quadro em especial que chamou a atenção
de Albert. Ele retratava um homem que apesar da elegância dos trajes mostrava um rosto longo e fino, com uma
aparência de tristeza imensa. Albert conhecia como ninguém aquele homem: ele trazia dentro de si agora a sua
essência, a sua alma.
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- Conde Orlok... - Albert passou os dedos pelo adorno em
ouro puro no rodapé do quadro que ostentava o nome do
retratado. Num segundo todas as memórias que ele vislumbrara nos pesadelos que tinha logo que fora transformado voltaram a sua cabeça.
Estes sonhos mostravam sempre como Orlok havia lutado
internamente com Vlad e o Conselho para tornar a convivência de vampiros e homens pacífica. Porém os sonhos de
Albert terminavam sempre da mesma forma: a obliteração
de Orlok em Hiroshima. Albert despertou do pequeno
transe e vislumbrou a enorme porta de madeira que dava
acesso a câmara particular de Vlad.
Aproximou-se e a abriu cuidadosamente. Vlad estava de
costas, em frente a uma enorme vidraça de onde olhava
para o campo de batalha, agora silencioso, lá embaixo.
- Você é muito atrevido de vir aqui sozinho. Sabe que posso tirar de você o que quero agora.
A porta atrás de Albert fechou, batendo violentamente nos
seus portais. Vlad levou um cálice aos lábios, sorveu um
pouco do seu conteúdo e o repousou de volta em um aparador. Virou-se e fitou Albert com desprezo. A aparência de
Vlad era magnífica: vestia-se com garbo, com roupas de
180
aparência secular, mas que eram obviamente novas em
folha.
- Vocês me criaram um grande inconveniente. Todo este...
Circo que criaram aqui hoje será inútil quando eu esmagar
você como o inseto que você é.
- Basta! - Albert ergueu o tom de voz de uma forma que
deixou Vlad desconfortável. Como este meio humano poderia ser tão insolente?
- Todo este tempo você sempre quis este poder que trago
dentro de mim. Pois bem, Vlad. Eu estou aqui para entregá-lo a você! - Albert sacou uma adaga de prata da roupa
militar. Era magnífica, mas não era mais do que uma faca
de caça.
- Bastardo insolente! Pensa que eu tenho medo desta patética adaga ritual? Acha que ela terá algum poder contra
mim?
- Ela não é para você! - Albert virou a adaga contra o próprio peito e a enterrou fundo.
- Não! Seu maldito humano! O que você fez? - Vlad lançouse sobre Albert e os dois rolaram no chão. Quando pararam, Albert olhou nos olhos de Vlad nos últimos segundos
de vida que lhe restavam.
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- Adeus Vlad. Te vejo no inferno!
A vida se esvaiu do corpo de Albert, mas seus olhos não se
fecharam. Eles assumiram um brilho intenso azulado e o
corpo de Albert sofreu um espasmo tão violento que jogou
Vlad longe. A boca de Albert se escancarou, e de lá o que
parecia a princípio ser uma névoa espessa começou a sair
em profusão. Ela tomou conta de toda a sala, até que começou a se agrupar em um único lugar. Ela tomou uma
forma humana fantasmagórica. Quando a forma chegou a
sua forma definitiva, seus olhos se abriram e olharam para
Vlad, que se erguia da queda.
- Vlad... - o sussurro ecoou pela sala.
- Orlok seu maldito! O seu poder tinha que ser meu!
- Vlad... - o sussurro começou a se repetir, cada vez mais
rápido e alto, até se tornar ensurdecedor.
A figura fantasma começou a se desfazer e a envolver Vlad,
que tentava se desvencilhar, mas em vão. Sua luta desesperada o levou até a enorme vidraça, de onde ele saltou em
desespero. Quando atingiu o chão, vários andares abaixo,
a figura magnífica de Vlad tinha dado lugar a uma forma
cadavérica.
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Arthur, Ursula e James correram até lá apenas para ver a
névoa deixar o corpo morto de Vlad e começar a subir serpenteando pela torre do castelo, chegando à vidraça estilhaçada. Ela formou um redemoinho no ar, até tomar novamente a forma de Orlok. O espectro aproximou do local
onde o corpo de Albert jazia e o observou por longos minutos. Parecia tentar entender o sacrifício que aquele meiohumano havia feito.
Um sacrifício que tinha posto fim a batalha que Orlok havia travado durante toda a sua existência física. Ele então
estendeu o braço direito, com a mão espalmada sobre Albert. Seu corpo lentamente se ergueu no ar até cerca de
um metro de altura. A adaga em seu peito começou a se
mover lentamente, até ser removida completamente, deixando apenas a ferida exposta.
Neste momento Arthur e Ursula chegaram correndo pela
antessala. O fantasma olhou para seus rostos atônitos,
parados à porta da câmara e esboçou o que parecia um
sorriso. O espectro começou então a perder a forma e a
entrar no peito de Albert pela ferida aberta. Quando a névoa se dissipou completamente, a ferida no peito de Albert
estava completamente fechada, e o corpo que levitava caiu
pesadamente no chão. Os amigos correram até ele, e Arthur tentou reanimá-lo sacudindo-o.
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- Albert! Albert! Fala comigo amigo!
Os olhos de Albert, fechados agora, não se abriram. Porém
seus lábios se moveram lentamente, e emitiram um pequeno sussurro:
- Ursula...
- É, ele está vivo mesmo. - Arthur saiu de lado rindo e deixou Ursula o abraçar.
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Alguns minutos depois estavam de novo na entrada do
castelo. Albert amparado por Arthur estava um pouco
mais consciente, mas muito fraco. James, que também se
recuperava lentamente estava sentado no chão, encostado
em uma pedra. Os lobos haviam sumido.
- Onde os nossos bichinhos de estimação foram? - Arthur
brincou.
James olhou para ele com um ar de desaprovação, mas
respondeu.
- Meu feitiço no rio fraquejou. Eles tiveram que afugentar
os executores que estavam do lado de fora do cerco. Mas
pode ter certeza que ouviremos falar deles novamente.
- Então é isso? É o fim da Eternidade S.A.? - Ursula parecia ansiosa. Arthur e James pareciam concordar que sim,
mas Albert discordou, para a surpresa deles.
- Não. Isto é apenas o começo...
Os amigos olharam para ele com semblante de interrogação.
- Existem vários vampiros que compartilham as ideias de
Vlad espalhados por aí... E existem mais ainda vampiros
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que vão precisar da ajuda da firma para se manterem incógnitos e seguros. Este trabalho tem que ser feito.
Albert fez uma pausa para recobrar o fôlego.
Eu estou disposto a fazê-lo. O que me dizem... sócios?
- FIM –
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