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SABERES LETRAS
ISSN: 1679-33741
SABERES
LNGÜÍSTICA - LÍNGUA - LITERATURA
ORGANIZAÇÃO
Micheline Mattedi Tomazi Tardin
Maria da Penha Pereira Lins
LETRAS
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Diretora Geral: Alacir Araújo Silva
Coordenadora do curso de Letras Português/Inglês: Karina de Rezende Tavares Fleury
Editor: SABERES Instituto de Ensino Ltda
Organizadoras: Maria da Penha Pereira Lins
Micheline Mattedi Tomazi
Conselho Editorial - Membros
Alacir de Araújo Silva
Ana Cristina Carmelino
Maria Amélia Dalvi
Maria da Penha Pereira Lins
Micheline Mattedi Tomazi Tardin
Aline Moraes Oliveira
Vera Márcia Soares de Toledo
Conselho Consultivo
Cleonara Maria Schwartz (UFES)
Lenivaldo Gomes de Almeida (PUC-Rio)
Lúcia Helena Peyroton da Rocha (UFES)
Luis Eustáquio Soares (UFES)
Wilberth Salgueiro (UFES)
Revisão
Kamila Brumatti Bergamini
Rosimere Meireles do Nascimento
Weverson Dadalto
Editoração: José Carlos Vieira Júnior
Revista Saberes Letras: Lingüística, língua, literatura. Faculdade Saberes. – v. 1 n.1.
– Vitória: Saberes Instituto de Ensino Ltda., 2009
Revista Saberes Letras: lingüística, língua, literatura. Faculdade
Saberes. – v.7, n.1. – Vitória: Saberes Instituto de Ensino Ltda.,
2009.
Semestral
ISSN: 1679-3374
1. Lingüística – Periódico. 2. Teoria Literária – Periódico.
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Sumário
I – Estudos sobre Lingüística
1.
Caminhos de intertexto no coração texto
Kamila Brumatti Bergamini
2.
Dicas do Casseta & Planeta para você se dar bem na vida...: em
foco a constituição do humor
Ana Cristina Carmelino
3.
Enunciação proverbial e ironia em “Bom Conselho”
Micheline Mattedi Tomazi
4.
“Gentileza gera gentileza”: a leitura da indeterminação do sujeito
no gênero canção
Aline Moraes de Oliveira
Carmelita Minelio da Silva Amorim
Lúcia Helena Peyroton da Rocha
5.
6.
9
20
33
45
Uma breve introdução à prosódia da fala: padrões rítmicos
afetados pela velocidade da fala
Alexsandro Rodrigues Meireles
66
A ironia na construção do processo de criação do humor: uma
análise de atos de linguagem no confronto em tiras de Mafalda
Maria da Penha Pereira Lins
86
II – Estudos sobre Literatura
7.
A poesia de Drummond e a crítica literária: das décadas de 1930
a 60
Maria Amélia Dalvi
159
4
8.
9.
10.
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A poética da fragmentação do eu e o fenômeno da heteronímia:
uma visão única
Wagner Lacerda
171
Esquivo horizonte: sobre A Fúria do Corpo, de João Gilberto
Noll
Carlos José Lontra Marques
184
A censura da arte, a cesura da história: a ditadura militar na
Feira Brasileira de Opinião
Lucas dos Passos
196
11.
Notas sobre a analítica do Belo de Kant
Antônio Carlos Siqueira
217
12.
O militar na obra de Cacaso
Nelson Martinelli Filho
235
III – Estudos sobre Ensino
13.
A EJA e a alfabetização: uma visão sociolingüística
Maraléia Silva Nogueira
Maria Amélia Dalvi
Talita Oliveira Silva
14.
As contribuições da teoria sócio-cultural para o ensino/
aprendizagem de inglês como língua estrangeira
Rosângela Guimarães Seba
Sávio Silveira de Queiroz
305
310
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15.
16.
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Jogos jogados em sala de aula: os registros de campo e sua
interpretação
Josué Sousa
Márcia Seufetelli
Margareth Caliari
Maria Amélia Dalvi
Maria Beatriz Celestino
Trabalho e aprendizagem na Educação de Jovens e adultos: uma
proposta de intervenção
Luis Eustáquio Soares
5
323
343
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APRESENTAÇÃO
Esta edição da Revista Saberes inaugura o início de sua publicação virtual. Assim, seus editores pretendem que a Revista Saberes tenha um espectro de acessibilidade mais amplo do que pelo meio impresso, uma vez que propiciará fonte
de pesquisa a um número infinito de pesquisadores, já que estará a disposição
de todos, a todo tempo e a todo momento, na rede virtual de computadores.
Neste número, reúne-se uma significativa amostra de resultados de estudos e
pesquisas sobre línguística, literatura e ensino de linguagem, distribuída em
três blocos: Estudos sobre Lingüística, Estudos sobre Literatura e Estudos sobre
ensino.
No primeiro bloco apresentam-se abordagens de pesquisas que focalizam principalmente o discurso em suas miudezas e filigranas. Vêem-se aí a análise do
gênero canção, em que a letra intitulada Gentileza gera gentileza é vista sob
seus aspectos discursivos e seu aproveitamento no ensino das funções da língua
e a canção Bom Conselho é analisada com foco em sua ironia proverbial. Além
disso, mostram-se, de forma didática, os caminhos de intertextualidade no interior de textos e uma breve introdução à prosódia da fala. Também o humor
é contemplado nesta seção: as dicas do Casseta & Planeta e o comportamento
constrangedor de Mafalda, personagem de quadrinhos, estão a serviço de fazer
perceber a graça e a crítica aos costumes.
No segundo bloco os estudos sobre Literatura são os protagonistas. Drummond
encabeça a seção, visto a partir da crítica literária dos anos 30 a 60. João Gilberto
Noll é focalizado em A Fúria do Corpo e Cacaso em seu foco ao militar. Apresentam-se, ainda, estudos sobre a poética da fragmentação do eu e o fenômeno
da heteronímia e sobre a censura da arte e a cesura da história, além da análise
do belo de Kant.
Finalmente, no terceiro bloco, estão presentes estudos sobre ensino, tanto de
língua materna, quanto de língua estrangeira. O processo de ensino/ aprendizagem é focalizado em dois artigos: uma proposta de intervenção e uma visão
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sociolinguística da alfabetização. Ainda, um estudo sobre apropriação da escrita e outro sobre o ensino de inglês, enriquecem esta seção.
Com esta configuração, a Revista Saberes, agora no mundo virtual, se mostra
como uma oferta de contribuição relevante para aqueles que se interessam pelo
campo das Linguagens
Em 30 de novembro de 2009
Maria da Penha Pereira Lins
Micheline Mattedi Tomazi
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Seção I
Estudos sobre Lingüística
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CAMINHOS DE INTERTEXTO NO CORAÇÃO
TEXTO
Kamila Brumatti Bergamini1*
Resumo
Este artigo propõe um olhar para a intertextualidade. Para tanto, faz-se breve
descrição do fenômeno, com vistas à exposição de algumas das principais teorias sobre o assunto. Em um segundo momento, a teoria intertextual coaduna-se
à escrita de Roberto Mazzini (Ivan Borgo). O objetivo é mostrar como a crônica
do escritor capixaba encontra na intertextualidade veículo privilegiado de ampliação dos sentidos gerados pelo texto.
Palavras-chave: Intertextualidade. Roberto Mazzini (Ivan Borgo). Crônica.
O fenômeno da interconexão de textos encontra hoje certa recorrência nas pesquisas dedicadas à exegese da escritura, seja esta de ordem literária ou não.
Sob o nome de intertextualidade, reconhece-se a composição textual como um
eterno retorno de signos e sentidos utilizados por outros autores e em outros
contextos discursivos. A intertextualidade seria assim uma espécie de “princípio de economia linguística”, justificada no diálogo direto que estabelece com a
competência de leitura do interlocutor textual (KOCH, 2006, p. 30).
Dito em outras palavras, a interrelação de textos presume que a mensagem seja
composta por códigos comuns, que fazem parte de uma memória discursiva
coletiva. Quanto mais o leitor conhece esses códigos, tanto mais reconhece sua
*
Especialista em estudos da Linguagem e de seu Funcionamento, Mestre em Estudos
Linguísticos - ambos pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Docente da
Rede Estadual do Ensino Médio e do Departamento de Letras da Faculdade Saberes.
E-mail: [email protected]
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reutilização, enriquecendo assim seu repertório cognitivo em um processo de
suplementação infindável dos signos.
O que chama a atenção nessa capacidade de retorno da linguagem é seu papel de dupla referenciação. Isso porque ao mesmo tempo em que a linguagem
possibilita ao leitor entrar em contato com uma informação não de todo desconhecida, também faz com que quem lê o texto encontre funções originárias
para certos lexemas. Nesse sentido, a intertextualidade é um “‘descolamento’
de enunciados de um contexto para outro [que], indiscutivelmente, provocará
alteração de sentidos” (KOCH, 2008, p. 79).
Peça chave no processo de formação discursiva, o contexto é quem dá as bases para a decodificação e uso dos sentidos. Como o entorno da mensagem, o
contexto prepara as ações sobre a escrita; ações essas que são explicitadas da
seguinte forma por Bazerman:
A produção real e a circulação do objeto discursivo
de um texto escrito fornecem um ponto comum de
atenção para as diferentes ações e atividades que cada
um realiza com respeito ao texto, moldando o papel e
as relações dos vários participantes e orientando suas
percepções e cognições individuais. (BAZERMAN,
2006, p. 123).
Bazerman lança luz para o papel pró-ativo da escritura, indo além no reconhecimento dos efeitos da intertextualidade. O autor chama a atenção para uma
interação, baseada em ações anteriores suscitadas junto ao resgate de códigos. A
questão faz pensar nos alcances e limites da intertextualidade. Como o texto é
um “mosaico de citações” (KRISTEVA, 1974) e como esses dizeres impactam socialmente, a relação entre textos parece desembocar em um abismo de ligações
capilares, dando a impressão de que palavras e coisas estão sempre conectadas,
seja explícita e/ou implicitamente.
Ainda entra em pauta o fato de que nenhum leitor consegue resgatar plenamente as referências do texto lido. Seria irrealizável tal manobra por dois motivos
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básicos: a) não é possível um único sujeito armazenar e rememorar todos os
textos já produzidos, incluindo seu léxico e semântica e; b) o texto é, muito mais
que produto, uma produção em constante atualização, o que faz com que seus
signos ganhem novas formas interpretativas ao longo de sua existência sob forma de texto.
Diante da perspectiva intertextual, cabe-nos a pergunta indireta de como lidar
com os vários graus da perene recuperação semântica entre textos – a chamada
intertextualidade. Já se sabe que o leitor atua diretamente nesse processo, estando em pé de igualdade com a importância do autor na composição textual.
De fato, a divisão autor/leitor perde parte de sua estabilidade se se pensa que o
leitor é também autor da mensagem (com a qual) lida.
Em primeiro lugar, a questão do estudo sob os graus de intertextualidade deve
partir de um horizonte de leitura específico, previamente demarcado. É assim
que surge a necessidade de se especificar o tipo de texto de onde se observará o
fenômeno intertextual.
Muito interfere o tipo de texto a se analisar. Isso graças à perspectiva dos gêneros textuais e de necessidades específicas de elaboração de cada gênero. Não
obstante ao gênero, cada texto esboça uma natureza particular, que o faz mais
ou menos afeito à recuperação intencional21 de códigos linguísticos. Ou seja, uns
textos se diferenciam de outros no aspecto intertextual porque utilizam mais
fortemente como estratégia de criação essa perspectiva.
Ao falar da intertextualidade, Koch e Elias (2008) destacam ao menos dois tipos
de intertexto: o implícito e o explícito. Alguns teóricos vão mais longe, como é
o caso de Genette (1989), capaz de discriminar algumas dezenas de graus de
intertexto.
Como já dito, a intertextualidade é um aspecto próprio da linguagem, seja ela
de ordem literária ou não, histórica ou não, intencionada pelo autor ou não.
Por isso mesmo, tanto Linguística quanto Literatura – como campos do saber
21 - Nem sempre a intertextualidade é intencional. Aliás, escapa ao próprio autor do
texto grande parte das intertextualidades que sua escrita sugere. É baseada nisso que
hoje a teoria hermenêutica descola a interpretação “correta” de um texto da visão do
autor sobre sua produção. Em literatura, essa visão ganha o polêmico nome de “A tese
da morte do autor” (Cf. BARTHES, s.d., p. 49).
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– dedicam-se à observação da intertextualidade e em muito se assemelham no
trato do intertexto. Não à toa, muitos dos teóricos mais conhecidos sobre o assunto são utilizados por ambas as linhas de pesquisa. Assim, Bakhtin (1992) e
Kristeva (1974) pontuam os estudos intertextuais. O primeiro com sua famosa
noção de dialogismo, ressaltando o caráter de diálogo que a escritura tem com
outras escrituras. A segunda, por sua vez, com o realce sobre a noção de perda
da origem das palavras, ou seja, de sua fonte primeira.
Seguiremos, pois, o caminho de uma breve observação da intertextualidade a
partir de um corpus específico – a crônica –, tendo como chave teórica fundamental a orientação de ordem linguística. Isso tudo para facilitar a compreensão
das análises, mas deixando claro que tanto literatura quanto linguística podem
apresentar afirmações pertinentes sobre a intertextualidade, e que os pontos de
divergência entre ambas só ampliam a questão em proveito da pluralidade do
fenômeno intertextual.
O intertexto no coração da crônica de Roberto
Mazzini
A narrativa de Roberto Mazzini é resultado das aventuras de Ivan Borgo em sua
condição ficcional. É, portanto, Roberto Mazzini nom de plume do escritor capixaba Ivan Borgo, autor de vários livros e textos publicados em jornais e revistas,
com destaque especial para os do gênero (textual) crônica.
Sabe-se que a crônica tem por características gerais a presença de dados do real
e, simultaneamente, uma liberdade de criação que transcende ao dado verídico.
Ela é, pela fórmula, uma narração do cotidiano “cujo veículo privilegiado, por
conta de sua atualidade, é a imprensa” (GANCHO, 2004, p. 10). Além disso, a
crônica marca-se por sua sensibilidade diante de fatos banais, aparentemente sem importância, e de pessoas extraídas do dia-a-dia, como alude Coutinho
(2003, p. 121). Assim, pode-se dizer que a crônica é um olhar alternativo para as
coisas do mundo, e é justamente nessa feição que reside seu elemento literário.
No caso de Roberto Mazzini, esse olhar parte de um encadeamento posto em
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abismo. É como se as coisas do entorno fossem símbolos à espera de sua decodificação. Mazzini trata os lugares por onde passa como cenários linguísticos,
contextos propícios ao nascimento de histórias. Na verdade, os elementos que
compõem esses cenários são mananciais narrativos. Cada coisa traz latente relatos em potencial, cabendo ao cronista, com seu olhar para além do hábito, decifrar sob forma de escritura tais reminiscências. É o que acontece com o narrador
da crônica “Rebeldes no coração do império”, publicada em Crônicas de Roberto
Mazzini:
Lá vão os prováveis rebeldes. Estamos numa rua de
Londres. Mais precisamente em Oxford Street. Os
possíveis rebeldes estão a uns dez metros de mim e
eu os sigo. Na falta de um jornal onde possa fazer um
buraco de observação – como nas antigas histórias policiais – vou fingindo que olho vitrinas e não os perco
de vista. (BORGO, 1995, p. 23).
O trecho acima corresponde ao início da narrativa. Em princípio, o que chama a
atenção é muito mais o comportamento de quem narra/descreve que a situação
de quem é narrado/descrito. Outra sugestão é dada: para se compreender a
mensagem, é preciso enxergar a narrativa com olhos que especulam à maneira
dos folhetins policiais.
Sucedendo à primeira situação, mais elementos dão pistas ao leitor de que sua
leitura necessita ser cruzada com diversos campos referenciais: “Sem exagero:
um beijo que ao menos na aparência lembrava o de Deborah Kerr ou Greer Garson com um galã cujo nome me escapa. Teria sido o de Irene Dunne com Walter
Pidgeon?” (BORGO, 1995, p. 23). E mais adiante: “pernas muito longas, se movimentando no fog me levava irrestivelmente (sic) para um desses quadros de
Degas que conseguiram capturar o movimento e cristalizá-los no instante preciso em que adquire uma dimensão definitivamente bela” (BORGO, 1995, p. 25).
Em resumo, a crônica dedica-se a mostrar as impressões do narrador-personagem diante de um casal londrino. Casal esse que está sob suspeita de ser os tais
“rebeldes no coração do Império”. A rebeldia seria o beijo acalorado diante de
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uma vitrine não inspiradora de tal aproximação física. A sutileza da suposta
rebeldia aliada às várias inserções narrativas seguintes denunciam que o sentido do texto precisa ser garimpado no cruzamento de tempo/espaço/situação/
cultura/arte/valores sociais.
Fiorin (1994) trataria o fenômeno não como um intertexto e sim como um interdiscurso. A diferença é sutil, mas esquematiza-se da seguinte forma: O intertexto
é “a incorporação de um texto em outro” (BARROS; FIORIN, 1994, p. 30), ao
passo que o interdiscurso é a absorção de temas e figuras de textos outros, cabendo nesse segundo caso relações mais tênues de referenciação. É como se a interdiscursividade não dependesse da intertextualidade – o que Fiorin inclusive
chega a afirmar – para existir. Ela alude, pode mesmo chegar às vias da citação,
mas não requer uma filiação explícita com os textos aos quais se conecta, simulando que a escrita é inaugural. Os textos rememorados, portanto, funcionariam
como contextos propícios ao entendimento do texto que usa do interdiscurso.
Antes de correlatar a teoria de Fiorin à crônica em questão, voltemo-nos mais
uma vez para a narrativa propriamente dita. Um casal é observado por um narrador-personagem. Nasce a suspeita de serem os jovens rebeldes em um tempo
onde “o mistério não existia” (BORGO, 1995. p. 24), interpretado esse mistério
como o fim dos contratos românticos tão explorados nos filmes hollywoodianos.
A nova geração se beija e até faz sexo nas ruas. São sujeitos “com cabelos muito
compridos, oclinhos azuis ou roxos, jeans sujos e rasgados, camisas amarrotadas, barbas de meses e um conveniente ar de desligação total” (BORGO, 1995, p.
24). A chamada “desligação total” é extensível aos relacionamentos afetivos.
O narrador continua a trama que engendra sob a suspeita de estar enganado.
Hesitante sobre a identidade rebelde, diz ouvir “vozes no ar” que atestam a rebeldia do fim dos romantismos estereotipados, encontrada no jovem casal.
“Peguei minha pequena caderneta tentando ser um bom aprendiz de farejador
e anotei as observações dessas vozes que saíam do fog onde os prédios se diluíam num cenário convencional de tarde londrina.” (BORGO, 1995, p. 24). As
vozes confirmam, mas é preciso ter cuidado para não ser traído por evidências
muito óbvias ou mesmo por subjetivismos.
O final da crônica surpreende. Em última atitude, o narrador anota em sua
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caderneta que “é provável que as baratas tenham que esperar muito ainda”
(BORGO, 1995, p. 25), fazendo alusão a uma passagem anterior, onde se diz que
as baratas, herdeiras da humanidade, “morrerão fulminadas” de humilhação
diante de manifestações sublimes dos homens, registradas em imagem, palavra
e mídia. Mas a alusão só faz sentido se houver certa subversão sobre as referências do texto. Em princípio, a frase final não estabelece relação de contiguidade
com a alusão anterior. Parece que a rebeldia é o oposto da definida anteriormente. Nesse ponto, o texto choca-se com as referências internas. A rebeldia passa a
ser a chamada “manifestação sublime do humano”, figurada em uma liberdade
para tudo, inclusive para a demonstração do amor.
Não é simples reverter as noções lançadas pelo próprio texto. Cabe ao leitor tal
manobra, guiado por uma narração formada por pistas indiretas, muito mais
que por evidências claras. O fato de ser uma crônica, e não um outro tipo de
narrativa como o conto ou o romance, é fundamental nesse processo de compreensão via leitura. O patamar de crônica sugere que o mundo real está presente
de alguma forma no texto. Ou seja, é preciso que um intertexto com o cotidiano
seja estabelecido. Nesse ponto, a escrita encontraria parte de sua chave de interpretação.
Voltando à questão da relação entre textos levantada por Fiorin (1994), tem-se
em “Rebeldes no coração do império” um tipo de referência indireta a textos
outros, à maneira da interdiscursividade. Isso porque não são claras as fontes
das quais o texto se apropria – salvo o caso das referências a filmes hollywoodianos – dando a impressão de certa originalidade. Mesmo assim, dizer que se
trata de interdiscurso não trai a experiência da intertextualidade. Mas para isso,
é preciso questionar a visão de Fiorin que descola o segundo do primeiro.
Entendemos que a intertextualidade é condição da própria escritura e que discriminar matizes para ela – como seria o caso da interdiscursividade – não fere
tal condição. Se todo texto é, de fato, um mosaico de citações e se, como lembra
Bazerman, “as referências intertextuais tentam estabelecer os fatos sociais sobre
os quais o escritor tenta fazer uma nova afirmação” (BAZERMAN, 2006, p. 25),
na crônica de Roberto Mazzini, a intertextualidade é a voz do gênero crônica,
que encontra no mundo o olhar sobre a particularidade do mundo.
Possíveis dificuldades de interpretação servem como índices de incompreensão
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sobre um mundo em transformação e também em conservação. Se, por uma
lado, o texto parece conversar com a situação de uma nova juventude, por outro
lado, parece também mostrar que os tempos carregam consigo minudências
que associam e fazem se assemelhar vários extratos temporais. Talvez a visão
de rebeldia seja, em última instância, a visão de leitor do mundo manifesta pelo
cronista. No caso de nós, leitores, a rebeldia encontre-se na liberdade de associações, de recriações que possibilitem formas de leitura, formas de intertextualidade.
Referências:
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes,
1992.
BARROS, D. L. P. de; FIORIN, J. L. (Orgs.). Dialogismo, polifonia intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1994. (Col. Ensaios de Cultura, v. 7).
BARTHES, R. A morte do autor. In: O rumor da língua. São Paulo: Edições 70.
s.d., p. 49-53. (Coleção Signo; 44)
BAZERMAN, C. Gêneros textuais, tipificação e interação. DIONISIO, Angela
Paiva; HOFFNAGEL, Judith Chambliss (Orgs.). 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
BORGO. I. Crônicas de Roberto Mazzini. Vitória: SPDC, Ita, 1995.
COUTINHO, A. Ensaio e crônica. In: A literatura no Brasil. São Paulo: Global,
2003, vol. 6.
GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. 8. ed. São Paulo: Ática, 2004. (Princípios; 207)
GENETTE, G. Palimpsestos: la literatura em segundo grado. Trans. Celia Fernández Prieto. Madrid: Taurus, 1989.
KOCH, I. G. V. Desvendando os segredos do texto. 5. ed. São Paulo: Cortez,
2006.
KOCH, I. G. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender: os sentidos do texto. 2. ed.
São Paulo: Contexto, 2008.
KRISTEVA, J. A palavra e o romance. In: Introdução à semanálise. Tradução
Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 61-90.
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DICAS DO CASSETA & PLANETA PARA VOCÊ SE
DAR BEM NA VIDA...: EM FOCO A CONSTITUIÇÃO DO HUMOR
Ana Cristina Carmelino1*
Resumo:
Este artigo tem como objeto de estudo as “dicas-piadas” do grupo humorístico
Casseta & Planeta presentes no livro Como se dar bem na vida, mesmo sendo
um bosta (2005) e busca compreender os mecanismos linguísticos envolvidos na
constituição do humor. Para isso, a análise fundamenta-se em alguns conceitos
da Linguística Textual e nos pressupostos de Travaglia (1992) e Possenti (1998)
em relação às formas de manifestação do humor. As “dicas-piadas” abordam
temas variados, referindo-se às situações sociais do cotidiano do homem e seu
caráter humorístico é garantido por vários recursos linguísticos, prevalecendo
em todos eles o conhecimento prévio e a inferência.
Palavras-chave: Conhecimento prévio. Inferência. Humor. Casseta & Planeta.
“Dicas-piadas”.
Introdução
Partindo dos pressupostos teóricos da Linguística Textual, nosso objetivo, neste
trabalho, é compreender os recursos linguísticos envolvidos na constituição do
humor das dicas em forma de piadas presentes no livro Como se dar bem na vida,
mesmo sendo um bosta, publicado em 2005 pelo grupo humorístico Casseta &
Planeta.
1* Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Unesp/CAr – Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Araraquara, SP. Docente do
departamento de Línguas e Letras da UFES – Universidade Federal do Espírito Santo.
E-mail: [email protected]
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Ao analisarmos a construção humorística de um texto, verificamos que ela
pode estar relacionada a elementos distintos, como tema, mecanismos linguísticos, grau de polidez. No que tange aos mecanismos linguísticos – um
dos recursos responsáveis por gerar a comicidade – observamos que muitos
deles se fazem presentes nas dicas-piadas, no entanto o que prevalece é a inferência, ou seja, para garantir a produção de sentido das piadas, os Cassetas
dependem de um leitor/ouvinte agente que deixa aflorar especialmente seu
conhecimento de mundo.
A fim de tornar o texto claro, primeiramente tecemos algumas considerações
sobre o Casseta & Planeta e a obra em análise. Depois tratamos de alguns conceitos-chave da Linguística Textual, teoria aqui perfilhada para fundamentar a
análise. E, finalmente, passamos ao estudo dos recursos linguísticos que geram
o humor das dicas-piadas.
Casseta & Planeta e o livro em questão
O Casseta & Planeta surgiu em meados de 80, com a fusão das turmas de
duas publicações de humor do Rio de Janeiro: a revista Casseta Popular (uma
paródia à Gazeta inaugurada em 1978 pelos alunos do curso de Engenharia
de Produção da UFRJ – Beto Silva, Hélio de la Peña e Marcelo Madureira –
distribuída apenas na universidade) e o tabloide O Planeta Diário (influente
jornal mensal de humor que foi produzido pelos cariocas Hubert, Reinaldo
e Cláudio Paiva, egressos do Pasquim, entre 1984 e 1992). O trabalho desse
grupo humorístico brasileiro convergiu em jornais, revistas, website, produtos, discos, shows, livros e filmes. No entanto, o principal veículo deles é o
programa de TV Casseta & Planeta, urgente! Exibido, desde 1992, nas noites
de terça-feira na Rede Globo.
As suas piadas enfocam temas bastante diversificados, uma vez que compreendem os clássicos socialmente controversos (como sexo, política, racismo, defeitos físicos), acontecimentos atuais (geralmente no país) e os problemas do dia a
dia (como amor, casamento, trabalho, família, sucesso).
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O livro Como se dar bem na vida, mesmo sendo um bosta, publicado em 2005, pelo
grupo humorístico, consiste numa divertida sátira aos livros de autoajuda.
Nele, os politicamente incorretos PHD’s – Dr. Hélio de la Peña, Dr. Beto Silva,
Dr. Marcelo Madureira, Dr. Bussunda (falecido em 2006), Dr. Cláudio Manoel,
Dr. Hubert e Dr. Reinaldo – ensinam vários truques e quebra-galhos para as
pessoas se darem bem na vida, como vemos nas informações retiradas da capa
do livro: “Nada na sua vida dá certo (...). Não se desespere, nem tudo está perdido! Com este maravilhoso manual para se dar bem na vida, você vai aprender a
reverter este quadro que tanto te atormenta!” (CASSETA & PLANETA, 2005).
Conforme veremos, nas dicas-piadas estão presentes a irreverência, o escracho
e o tom desconcertante que tornaram o grupo referência no humor brasileiro.
Conhecimento prévio, inferência e humor: conceitos-chave
A Linguística Textual começa a se desenvolver em 1960, na Europa, e toma o
texto como objeto de investigação, preocupando-se especificamente com a sua
natureza e com os fatores envolvidos em sua produção e recepção (FÁVERO &
KOCH, 2002).
No início da década de 90, a partir dos estudos de Van Dijk e Kintsch (1994),
delineia-se a abordagem cognitiva do texto, cuja preocupação é explicar aspectos estruturais e processuais da cognição humana. Percebendo que o contexto pragmático não era suficiente para a produção do sentido, essa tendência
– cujos precursores no Brasil são Koch (2003, 2005) e Marcuschi (1998, 1999,
2008) – reflete sobre os conhecimentos usados no processamento do texto, mais
precisamente sobre os processos e estratégias cognitivas postas em ação por
ocasião do uso.
Ao priorizar o contexto sociocognitivo e interacional, a Linguística Textual
considera a mobilização de um conjunto de suposições baseadas nos saberes
dos interlocutores para a construção do sentido de um texto: saberes que englobam todos os tipos de conhecimento arquivados na memória dos actantes
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sociais. Desse modo, “a compreensão está ligada a esquemas cognitivos internalizados”, que não são “individuais e únicos”, mas “coletivos” (MARCUSCHI, 2008, p. 228).
Os conhecimentos armazenados na memória, também conhecidos como prévios, resultam das inúmeras atividades nas quais nos envolvemos ao longo de
nossa vida e podem estar relacionados à língua (conhecimento linguístico, que
abrange o domínio de mecanismos do funcionamento do sistema da língua,
especialmente o gramatical e o lexical), ao mundo (conhecimento enciclopédico,
que inclui conhecimentos gerais do mundo, os quais vão desde o domínio específico sobre algo até as experiências e o convívio numa sociedade) e às práticas
interacionais (conhecimento sociointeracional, que diz respeito ao conhecimento da situação comunicativa, dos gêneros e tipos textuais, bem como do estilo e
do intertexto).
A partir daí, o texto passa a ser considerado “um evento comunicativo no qual
convergem ações linguísticas, cognitivas e sociais” (BEAUGRANDE, 1997, p.
10). Não se trata de um produto acabado e objetivo, de um depósito de informações; mas de um ato enunciativo em permanente elaboração, cuja compreensão
não requer apenas o ato de decodificar, mas o de inferir.
A inferência, conforme Silveira, relaciona-se à noção de implicatura, ou seja,
ao que não se explicita na superfície do texto-base: “um objeto não é percebido em sua totalidade, pois há sempre uma focalização sobre determinado(s)
atributo(s) dele” (SILVEIRA, 1998, p. 146). Como as informações veiculadas
pelo texto não podem estar todas explícitas, cabe ao leitor/ouvinte a tarefa de
realizar inferências (a partir de seu conhecimento de mundo, de suas crenças
e vivências) que conduzam ao estabelecimento de conexões entre os enunciados, na tentativa de recuperar os implícitos, de preencher as lacunas, para a
construção do sentido do texto.
De acordo com os estudiosos, a inferência consiste em: “um processo de preenchimento dos elos faltantes entre dois enunciados” (BROW & YULE, 1983,
p. 59); “uma operação cognitiva que permite ao leitor construir novas proposições a partir de outras já dadas” (MARCUSCHI, 1985, p. 25); “uma operação
pela qual, utilizando seu conhecimento de mundo, o receptor (leitor/ouvinte)
de um texto estabelece uma relação não explícita entre dois elementos (norSABERES Letras
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malmente frases ou trechos) deste texto que ele busca compreender e interpretar” (KOCH & TRAVAGLIA, 1990, p. 65); “informações que podem ser
concluídas, mas que não estão ditas explicitamente, por isso não são óbvias”
(POSSENTI, 1998, p. 33).
Como a informação, seja em qualquer nível, é explicitada apenas em parte no
texto, visto que muitos dados ficam implícitos, a inferência consiste em uma
estratégia cognitiva por meio da qual o interlocutor constrói, a partir da informação veiculada no texto e do contexto, “novas representações mentais e/ou
estabelece uma ponte entre segmentos textuais, ou entre informação explícita e
informação não explicitada no texto” (KOCH, 2003, p. 36).
Marcuschi (2008) parte da mesma conceituação de Koch (2003) e acrescenta que
as inferências introduzem informações mais salientes que as do próprio texto.
Além disso, o autor ressalta a importante contribuição desse processo cognitivo
na compreensão do texto, qual seja, funciona não só como provedor de contexto integrado para informações e estabelecimento de continuidade do próprio
texto, dando-lhe coerência, mas também como hipótese coesiva para o leitor
processar o texto.
Seja qual for o conceito, observamos que há pontos em comum entre os autores, como o fato de as inferências constituírem um processo cognitivo que gera
informação semântica nova, a partir de uma informação semântica anterior, em
um determinado contexto.
A partir dessas considerações iniciais, importa ressaltar que o conhecimento
prévio e a inferência são essenciais para o estabelecimento do efeito de sentido que um texto é capaz de produzir entre interlocutores em uma situação
de interação comunicativa. A essa proposta, incluem-se os textos humorísticos.
Vejamos o que nos diz Possenti ao analisar piadas: “para sacar uma piada é
preciso de uma certa quantidade de conhecimento partilhado entre o falante e
o ouvinte [...] E mais, pode-se não “sacar” uma piada em consequência de falta
de conhecimentos linguísticos” (POSSENTI, 1998, p. 18).
O humor, como vemos em Travaglia, consiste em uma faculdade humana que
vai além do simples fazer rir, visto que pode ser considerado “uma forma de
revelar e de flagrar outras possibilidades de visão do mundo e das realidades
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naturais ou culturais que nos cercam” (TRAVAGLIA, 1990, p. 55). Possenti
(1998), ao tratar do humor nas piadas, observa que elas revelam os problemas
sociais e culturais existentes em uma sociedade, bem como exibe a estrutura
de uma língua.
Para analisar linguisticamente o humor, os autores que tratam do tema referemse a diversos recursos. Grize (1990) destaca o léxico, as especificações, a questão
absurda e a ironia como procedimentos que auxiliam na construção do humor.
Possenti (1998), ao falar dos mecanismos linguísticos envolvidos na construção das piadas, ressalta a fonologia, a morfologia, o léxico, a dêixis, a sintaxe,
a pressuposição, a inferência, o conhecimento prévio e a variação linguística.
Travaglia (1992) propõe a cumplicidade, a ironia, a mistura de lugares sociais
ou posições de sujeito, a ambiguidade, o uso de estereótipos, a contradição, a
sugestão, a descontinuidade de tópico, a paródia, o jogo de palavras, o quebralíngua, o exagero, o desrespeito a regras conversacionais, as observações metalinguísticas e a violação de normas sociais explícitas. Dentre todos os recursos
linguísticos que podem ser os responsáveis pela produção do humor, verificamos que vários deles se fazem presentes nas “dicas-piadas” do Casseta & Planeta, é o que veremos a seguir.
O humor nas “dicas-piadas” do Casseta & Planeta
As “dicas-piadas” que constam do livro Como se dar bem na vida, mesmo sendo um
bosta consistem em informações-chave para a resolução de problemas ou dificuldades de diferentes situações próprias da vida de qualquer pessoa comum,
uma vez que tratam de questões de ordem social, como amor, trabalho, sexo,
família, esporte e corpo.
Ainda que finalidade discursiva principal das dicas seja provocar risos, notamos que o objetivo da construção humorística é a denúncia e a liberação, visto
que os Cassetas rompem com a estrutura social vigente, escancarando tudo o
que a norma da boa educação manda calar.
A construção humorística de um texto, como já dissemos, pode estar relacionaSABERES Letras
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da a diferentes mecanismos linguísticos. No caso das “dicas-piadas”, destacamos aqui apenas os mais frequentes, a saber: a comparação, o jogo de palavras ou
trocadilho, a inversão e a paródia. Salientamos ainda que esses recursos só geram
o efeito de sentido humorístico se o leitor fizer inferências e ativar seus conhecimentos prévios.
a) comparação
(1) “Governar é que nem fazer cocô! Às vezes é mole, às vezes é duro, e o problema é que tem sempre alguém achando que alguma coisa tá cheirando mal...”
(CASSETA & PLANETA, 2005, p. 125).
Nesse exemplo – que faz parte do capítulo “Como se dar bem socialmente”, no
qual os Cassetas mencionam “frases e pensamentos engraçados e levemente polêmicos que qualquer imbecil pode usar socialmente e se dar bem” (CASSETA
& PLANETA, 2005, p. 122-126) – a comparação da ação de “governar” com a de
“fazer cocô” a partir do marcador “é que nem” deve-se à relação de semelhança
dos significantes “mole”, “duro” e “cheirar mal” que apresentam significados
diferentes, a saber: os adjetivos “mole” e “duro” referem-se tanto à consistência
de um objeto (pastosa ou sólida) quanto à realização de uma ação que pode
ser desempenhada com facilidade (moleza) ou arduamente (dureza). Essa mesma relação polissêmica pode ser vista na expressão “cheirar mal”, que significa
“exalar odor ruim” (quando se refere ao excremento) e “levantar suspeita, gerar
desconfiança” (quando se refere ao ato de governar).
A construção do sentido dessa piada se efetiva porque o leitor infere uma série de dados que não estão explicitados na superfície do texto, ativando, para
isso, seus conhecimentos prévios: o linguístico (no caso da polissemia dos significantes) e o enciclopédico (conhecimento adquirido a partir de vivências e
experiências, como o fato de “governar ser mole” porque o “governo nunca faz
nada”, “não trabalha”; e “alguma coisa tá cheirando mal”, porque na política há
sempre algo desonesto).
b) jogo de palavras ou trocadilho
(2) “Você perdeu o emprego? Seu filho assumiu a sua condição de gay confesso?
Sua mulher está te traindo com seu melhor amigo? Cuidado! Você pode ter
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contraído febre sifoide. Depois que você pega essa doença, só sifoide” (“Como
se dar bem socialmente”, 2006, p. 126).
O jogo de palavras ou trocadilho geralmente é garantido “pela semelhança fônica entre termos de sentidos diferentes” (TRAVAGLIA, 1992, p. 64). No enunciado acima, os Cassetas fazem um trocadilho semântico de “febre tifoide” (doença infecciosa provocada pela bactéria Gram-negativa Salmonella typhi, endêmica
na África, na Ásia e na América do Sul, transmitida pela água ou por alimentos
contaminados pelos excrementos humanos infectados e caracterizada por febre
alta, prostração, diarreia, podendo também gerar graves problemas cardíacos,
digestivos e neurológicos, devido à liberação de toxinas bacterianas na corrente
sanguínea) com “febre sifoide”. Nesse caso, “sifoide” consiste em um neologismo cuja criação pode ser inferida a partir da junção do pronome “se” com
o verbo “foder” (se foder > si fode > sifoide) e cujo sentido é “danar-se, sair-se
muito mal, entrar pelo cano”.
Para a construção do sentido desse enunciado e de seu efeito humorístico, cabe
ao leitor realizar inferências a partir de seu conhecimento de mundo (o que vem
a ser febre tifoide) e de seu conhecimento linguístico (já que esta piada pode ser
considerada de ordem morfológica pelo fato de envolver processo de formação
de palavras).
c) inversão
(3) “Você já parou para pensar se você é REALMENTE um bosta? É isso mesmo:
pode ser que você NÃO SEJA um bosta! Você, na sua arrogância e presunção,
pode achar que é um bosta, mas isso pode ser ilusão. Você pode NÃO TER AINDA ATINGIDO este estágio! Talvez você ainda seja apenas o cocô do cavalo do
bandido, ou apenas um substrato de pó de bosta, ou quem sabe, nada mais do
que um verme imundo e desprezível” (“Antes de mais nada...”, 2005, p. 10).
A inversão, entendida como o ato de trocar a ordem em que se acham quaisquer
elementos (ou coisas), pode ser vista no enunciado acima a partir das palavras
que contradizem algo estabelecido ou esperado pelo leitor: a expressão “ser
um bosta” – comumente tida como sinônimo de indivíduo desprezível, sem
importância, “um nada” – apresenta um sentido oposto, passa a ser sinônimo
de “ser respeitável” (especialmente quando comparada a “cocô do cavalo do
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bandido”, “substrato de pó de bosta” e “verme”). De pejorativo, o sentido passa
a apreciativo, elogioso, o que pode ser comprovado a partir de “Você, na sua
arrogância e presunção, pode achar que é um bosta, mas isso pode ser ilusão.
Você pode NÃO TER AINDA ATINGIDO este estágio!” em que aquele que se
admite “bosta” sem ter a certeza de realmente o ser é considerado arrogante e
presunçoso. Assim, “ser bosta” é ser importante, pois para isso é preciso passar
por estágios.
A construção do sentido e o efeito de humor, nesse caso, deve-se especialmente
ao fato de o leitor utilizar seu conhecimento de mundo sobre o que é ser “um
bosta” e observar como esse sentido é invertido pelos Cassetas.
d) paródia
(4) “Se for dirigir, não olhe para a bunda. Se for olhar para a bunda, não dirija”
(“Como se dar bem socialmente”, 2005, p. 123).
A paródia, que “alude ao original ridicularizando-o, normalmente pelo caricatural” (TRAVAGLIA, 1992, p. 62), lança mão da forma de um texto, alterando o
conteúdo para criticar não o texto fonte, mas qualquer elemento da sociedade.
Conforme se observa, o enunciado apresenta uma paródia da construção de
advertência instituída pelo Ministério da Saúde “Se beber não dirija” (“Se for
dirigir, não beba. Se for beber, não dirija”), a qual acompanha as propagandas
de bebidas alcoólicas. Nesse caso, a advertência busca escancarar uma prática
do cotidiano do homem no trânsito: a de desviar a atenção sempre que vê uma
“bunda” de mulher.
Convém enfatizar que a paródia não surte o efeito de sentido esperado se o
leitor não ativar seu conhecimento de mundo a respeito da postura de muitos
homens no trânsito e não estabelecer relação entre esse conhecimento e o da
advertência instituída pelo Ministério da Saúde (“Se beber não dirija”). Desse
modo, o humor, aqui, é gerado pela relação que se estabelece entre a informação
explícita e a informação não explicitada na “dica-piada”.
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Considerações finais
Em Como se dar bem na vida, mesmo sendo um bosta há um misto de originalidade
e repetição de esquemas estereotipados que consagram o grupo Casseta & Planeta, tornando-o referência no humor brasileiro.
O cômico presente nas “dicas-piadas” não é inofensivo; funciona como liberação (já que rompe com a proibição e a censura social) e denúncia (visto que
escancara muitos comportamentos que não são admitidos pelas normas sociais
explícitas, mas são praticados graças à dissimulação, à hipocrisia e à conivência
social de todos).
Dentre todos os mecanismos linguísticos de manifestação do humor, verificamos que vários deles se fazem presentes nas dicas-piadas analisadas (como a
comparação, o jogo de palavras ou trocadilhos, a inversão e a paródia), no entanto a realização de inferências e a ativação dos conhecimentos prévios são
elementos essenciais para garantir a produção de sentido das “dicas-piadas”.
Sendo assim, os Cassetas dependem de um leitor agente que não só mobilize, o
tempo todo, um conjunto de saberes arquivados em sua memória, mas também
que estabeleça conexões entre as informações explicitadas a fim de que recupere
os dados implícitos e construa o sentido do texto.
Referências:
BEAUGRANDE, R. New foundations for a science of test and discourse:
cognition, communication, and freedom of access to knowledge and society.
Norwood: Alex, 1997.
BROW, G.; Yule, G. Discourse analysis. Cambridge: Cambridge University
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CASSETA & PLANETA. Como se dar bem na vida, mesmo sendo um bosta.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
FÁVERO, L. L; KOCH, I. G. V. Linguística textual: introdução. 6. ed. São Paulo:
Cortez, 2002.
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GRIZE, J. B. Logique e langage. Paris: Orphy, 1990.
KOCH, I. V. O texto e a construção dos sentidos. 7. ed. São Paulo: Contexto:
2003.
_____. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2005.
_____; TRAVAGLIA, L. C. A coerência textual. São Paulo: Contexto, 1990.
MARCUSCHI, L. A. Linguística de texto: o que é e como se faz. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1983. (Série Debates I)
_____. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.
POSSENTI, S. Os humores da língua: análises linguísticas de piadas. Campinas: Mercado de Letras, 1998.
SILVEIRA, R. C. P. da. Leitura: Produção Interacional de Conhecimentos. In:
BASTOS, N. B. (org.). Língua Portuguesa: História, Perspectivas, Ensino. São
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TRAVAGLIA, L. C. Uma introdução ao estudo do humor pela linguística.
D.E.L.T.A, v. 6, n. 1, 1990, p. 55-82.
_____. O que é engraçado? Categorias do risível e o humor brasileiro na televisão. Leitura: Estudos linguísticos e literários. Maceió, Universidade Federal de
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TREVISAN, E. Inferências. In: Leitura: coerência e conhecimento prévio, Santa Maria
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York, Academic Press, 1994.
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ENUNCIAÇÃO PROVERBIAL E IRONIA EM “BOM
CONSELHO”
Micheline Mattedi Tomazi1*
Resumo
Na vertente do interacionismo sócio-discursivo, este artigo propõe uma leitura
interpretativa da letra do poema-canção “Bom Conselho”, de Chico Buarque,
com o intuito de analisar a enunciação proverbial e a ironia como estratégias
discursivas de que se vale o sujeito do discurso para tornar múltiplos os efeitos
de sentido que quer fazer valer.
Palavras-chave: Enunciação. Provérbios. Ironia. Discurso.
Há inúmeras possibilidades de leitura da extensa produção poético-musical de
Chico Buarque de Hollanda, cujos eixos articulatórios vão desde as análises que
propõem uma leitura que evidenciam o viés político, o feminino, o social, o
engajado, entre outros.
Respeitando os recortes temáticos desenvolvidos em inúmeros estudos sobre
a obra do compositor e reconhecendo um universo de distintas possibilidades,
opto, neste artigo, pela escolha da canção “Bom Conselho”, de 1972, como palco
privilegiado de discussão dos procedimentos discursivos por meio dos quais o
locutor imprime sua marca no enunciado, bem como o estudo da seleção lexical
dos textos e das suas inter-relações com outros textos e entre si mesmos.
Optou-se também como estratégia de leitura pela concepção sociointeracional
de linguagem, que busca conceber os sujeitos como atores e/ou construtores
1* Professora Doutora do Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal
do Espírito Santo.
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sociais, e por uma visão do texto como próprio lugar da interação, lugar de
materialização discursiva, onde os interlocutores, como sujeitos ativos que são,
dialogicamente constroem e são construídos no e pelo texto. Parte-se da ideia
de que ao associar o código linguístico e as estratégias discursivas ao contexto
situacional ou sócio-histórico, o leitor pode compreender o processo discursivo
reconhecendo os sujeitos que, premidos pelas circunstâncias sócio-históricas da
produção discursiva, enunciam pela linguagem que é, inegavelmente, o lugar
onde ele, o sujeito, faz sentido e, portanto, constitui-se. Desse modo e a partir
dessas considerações, a fundamentação teórica que serve de ancoragem para
este trabalho encontra respaldo em campos teóricos que se ocupam da linguagem como manifestação da atividade humana, podendo ser reunidos, conforme
Travaglia (1996, p.23), sob a denominação de Linguística da Enunciação.
A leitura de “Bom Conselho” parte de uma perspectiva discursivo-textual, considerando a hipótese de que há um trabalho de arquitetura textual irônica, que
tem como processo construtivo a enunciação proverbial, a qual necessariamente recorre à intertextualidade, à interdiscursividade e à metalinguagem.
Veja-se o “Bom Conselho” dado pelo poeta:
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1.
Ouça um bom conselho
2.
Que eu lhe dou de graça
3.
Inútil dormir
4.
Que a dor não passa
5.
Espere sentado
6.
Ou você se cansa
7.
Está provado
8.
Quem espera nunca alcança
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Venha, meu amigo
10. Deixe esse regaço
11. Brinque com meu fogo
12. Venha se queimar
13 Faça como eu digo
14. Faça como eu faço
15. Aja duas vezes antes de pensar
16. Corro atrás do tempo
17. Vim de não sei onde
18. Devagar é que não se vai longe
19. Eu semeio o vento
20. Na minha cidade
21. Vou pra rua e bebo a tempestade.
Se o lirismo nostálgico dominou a produção do compositor na década de 60,
a sua produção da década de 70 em diante parece estar marcada predominantemente pelo viés da crítica a toda a sociedade: seja em situações cotidianas,
dramáticas ou trágicas (como é o caso de Pedro Pedreiro – 1965 − e Construção
− 1971); seja através das ricas construções satíricas em que se sente sua ferrenha
ironia (como em "Vence na vida quem diz sim" (1973), "Ópera do Malandro"
(1977), "Fazenda Modelo" (1973), ou, até mesmo, na composição "Bom Conselho" que ora analiso); seja através do "processo de deslocamento", marcado pelo
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tratamento de temas áridos da tensão nacional, esta projetada num tempo passado da história brasileira, como em "Calabar" – 1973.
De acordo com Meneses (2000, p.143), não há, nas produções de 70, um percurso linear, já que a nostalgia, a utopia e a crítica que “delineiam uma trajetória
em espiral”, expandem-se progressivamente e são acompanhadas da retomada
dos temas fulcrais.
Na leitura de “Bom Conselho”, um dos primeiros aspectos que chama atenção
é o seu estrato sintático e semântico. Quer dizer: feito com palavras de todo dia,
de frases cristalizadas, tiradas do cotidiano mais corriqueiro, do mundo mais
prosaico, o poema-canção se constrói como uma conversa que acaba questionando a postura ideológica vigente.
Na construção de “Bom Conselho”, o compositor dá lugar a uma estratégia das
mais caracterizadoras de seu estilo: a ironia. Trabalhando a linguagem como
instrumento que permite desmascarar a dura realidade social, essa composição
é considerada como uma radical crítica à sociedade da época.
Por esse enfoque, a ironia é uma estratégia de linguagem que, participando do
discurso como fato social e histórico, mobiliza diferentes jogos, provoca efeitos
de sentido, instaura a polifonia, ainda que essa polifonia não implique, necessariamente, na “democratização dos valores criados ou veiculados” (BRAIT,
1996). A força argumentativa da construção irônica é obrigatoriamente partilhada pelas instâncias de produção e recepção para a construção dos efeitos
irônicos de sentido. Nessa perspectiva, a ironia, como procedimento estratégico
para construção de efeitos de sentido, permite visualizar pela argumentação as
formas das relações estabelecidas entre discurso, instituição e história e, sendo
assim, ela funciona como um paradigma da heterogeneidade constitutiva da
linguagem, na medida em que, articulando enunciações dicotômicas, coloca em
movimento a subjetividade e a alteridade do discurso, nas palavras de Brait
(1999, p. 336), uma vez que necessita “da manutenção e configuração específica
dessa ambígua dualidade pra caracterizar-se como fenômeno irônico”.
Para a leitura do poema é preciso que se pense nesse diálogo entre provérbio e
ironia, uma vez que o poema-canção deixa ver, em uma primeira e superficial
leitura, descomprometida ainda com qualquer tipo de investigação, que Chico
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Buarque utilizou a ironia como estratégia de linguagem, buscando como matéria-prima o mundo proverbial, essa espécie de depósito da sabedoria popular e
da memória coletiva. Ora, para se compreender como é tratado (ou construído)
o “Bom Conselho” dado pela voz do enunciador, é preciso, pois, antes de tudo,
descrever a estrutura do poema-canção enquanto objeto verbal.
Quanto ao nível óptico, a visualização do poema-canção mostra a existência de
seis estrofes: as três primeiras estrofes compostas por quartetos, e as três últimas por tercetos.
Aproximando o nosso olhar, percebemos que, agenciados no interior do poema-canção, os provérbios recebem rima e ritmo, num esquema de recorrências
fônicas, cuja sonoridade cria relações de tensão entre as palavras. Há, portanto,
um jogo de sons criando relações significativas.
Observa-se que as rimas criam um sistema de recorrências sonoras (graça/
passa, sentado/provado, cansa/alcança, amigo/digo, regaço/faço, queimar/
pensar, tempo/vento, onde/longe, cidade/tempestade); essas rimas, aliadas
às aliterações, sobretudo aquelas que acompanham o emprego das sibilantes,
amarram a tessitura do poema (ouça, conselho, graça, passa, sentado, você, cansa, alcança, ouça, regaço, se, faça, faço, duas, vezes, antes, pensar, atrás, sei, se,
semeio, tempestade).
Os dois processos – a rima e a aliteração – são, então, responsáveis pela sonoridade do poema. Esses processos funcionam como modalizadores caracterizados por um eco, que será capaz de criar um universo em que os sons se respondem, dando-nos uma visão analógica e reiterando o diálogo irônico entre voz
do provérbio versus equívoco do provérbio.
Os provérbios podem ser reconhecidos por suas características formais e semânticas. Formalmente, os provérbios são versos ou quase versos, sendo apresentados com rimas, assonâncias, metáforas etc. Do ponto de vista de seu aspecto semântico, os provérbios têm um tom de advertência ou conselho e querem
passar mensagem de experiência ou sabedoria21.
1- Tal fato nos lembra o narrador épico, cujo objetivo é assumir uma função utilitária, seja através
de um ensinamento moral, de uma sugestão prática, ou de um provérbio ou, ainda, numa forma de
vida, esse tipo de narrador sabe dar conselho. Esse conselho, bebido na substância viva da existência,
e, portanto, da memória, traz a sabedoria, ou seja, o lado épico da verdade. (Cf. BENJAMIM, 1994).
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Vamos, pois, tentar recuperar a utilização dessa linguagem proverbial no espaço do texto. Mesmo ao mais rápido exame, é possível notar, a começar do título,
que o compositor se propõe a dar forma a um conteúdo proverbial, vinculando-o ao jogo irônico; ou seja, o título “Bom Conselho” já é uma ironia em si,
bebida no ditado “Se conselho fosse bom... A gente não dava...Vendia”.
Com efeito, esse “Bom Conselho”, destacado, com ênfase, no isolamento do título, nos leva a inferir sentidos, visto que ele já expressa o ponto de vista da
enunciação; isto é, a expressão “Bom Conselho”, além de dar pistas para o assunto do texto, revela o ponto de vista do enunciador sobre o enunciado, funcionando como uma estratégia discursiva que desperta a curiosidade sugerida
pela expressão e traduz uma marca subjetiva.
O exame mais detido do poema-canção talvez permita a compreensão dessa
enunciação proverbial irônica. Acredita-se que tal procedimento é uma das estratégias polifônicas mais interessantes, uma vez que, ao proferir o provérbio
recorrendo ao processo de subversão, o enunciador não explicita a fonte do
enunciado, cabendo ao interlocutor/leitor resgatar e identificar o provérbio
como tal, apoiando-se, ao mesmo tempo, nas propriedades linguísticas dispostas no texto e na sua própria memória discursiva.
Na leitura do poema-canção é fácil perceber que há, em sua enunciação, um
“diálogo”, mesmo que aparentemente virtual, entre os interlocutores. Esses sujeitos envolvidos nessa enunciação são recuperados no texto pelas marcas linguísticas responsáveis pela instauração da subjetividade na linguagem: o enunciador representa-se na primeira pessoa das formas verbais e dos pronomes;
e o interlocutor é representado através do vocativo (meu amigo), do pronome
“você” e similares.
Na primeira estrofe, com a introdução, no primeiro verso, do artigo indefinido
“um” + grupo nominal (bom – adjetivo, conselho – substantivo), cria-se uma
interpretação genérica. O indefinido tem uma polivalência de sentidos que produz efeitos interessantes: em “Ouça um bom conselho / que eu lhe dou de graça”, o grupo nominal indefinido assume um valor genérico por ser extensivo a
qualquer “bom conselho” que qualquer indivíduo queira dar. Vale ressaltar o
efeito contrastivo desse verso com o título em que não há qualquer artigo. No
entanto, nota-se que o uso do indefinido, embora seja genérico, não anula o
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individual que é marcado logo a seguir “que eu lhe dou de graça”, ou seja, esse
enunciado é, por natureza, singular e, portanto, marcado pela subjetividade.
Esses versos reforçam a própria estrutura irônica já enunciada no título com
relação à leitura de que “se conselho fosse bom, ninguém dava, vendia”.
Dessa forma, é possível perceber que a marca pessoal instaurada pelo enunciador nos dois primeiros versos dá a ele uma espécie de discurso de autoridade
não contestado pelo interlocutor, além de situar a enunciação num determinado
tempo e espaço.
A partir do terceiro verso, o enunciador começa, então, a dar “de graça” o “Bom
Conselho”. É, pois, a partir do terceiro e quarto versos que o efeito de estranhamento surpreende o leitor; ao subverter a ordem dos provérbios, o enunciador
faz ao interlocutor a primeira proposta: romper com o conformismo (Inútil dormir / Que a dor não passa).
Na segunda estrofe, essa proposta é reforçada com uma ironia ainda mais forte;
nesses versos, o enunciador deixa claro que quem “espera” nunca alcança. Ora,
é preciso romper com a resignação, e isso só será possível através da tomada de
posição desse interlocutor que precisa passar do conformismo ao inconformismo para se mostrar insatisfeito com a situação e os costumes vigentes, ilação
que demarca no poema o sentido de contradição entre formações ideológicas.
Dessa maneira em “Espere sentado / ou você se cansa / está provado, quem
espera nunca alcança”, a expressão “está provado” modaliza o discurso de antítese que se imprime à voz proverbial; ou seja, se se diz que quem espera sempre
alcança, na prática, prova-se o contrário. Nesses versos, a expressão “esperar
sentado” reforça o tom irônico, e o fato de “estar provado” já aponta para a
pauta irônica que contamina o provérbio “quem espera sempre alcança” subvertendo-o a “quem espera nunca alcança”.
O enunciador, na terceira estrofe, convoca o interlocutor, usando para isso o
vocativo (meu amigo) e faz-lhe a segunda proposta: transgredir a ordem social
vigente. A proposta é, então, violar, infringir as normas que vigoram na sociedade; para tanto, é preciso que o interlocutor liberte-se das amarras da passividade e “Brinque com meu fogo / Venha se queimar”. Essa proposta permite
reconhecer como formações discursivas vão se estabelecendo em função dos
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embates da luta ideológica, sendo esses embates resgatados no interior mesmo
de cada formação discursiva presente na enunciação dos provérbios. Assim, o
discurso do enunciador busca na subversão proverbial o embate entre duas formações discursivas, a do discurso conformista com a ideologia vigente e a formação discursiva individual que tenta buscar no coletivo a possibilidade para a
transgressão. Tal estratégia é ainda estendida para a quarta e a quinta estrofes:
“Faça como eu digo / Faça como eu faço / Aja duas vezes antes de pensar /
Devagar é que não se vai longe”.
Vale notar que a terceira proposta está enunciada nesses versos: é preciso que
o “meu amigo” busque um novo modo de viver e esse modo pode ser copiado
do próprio modelo de vida do enunciador, que corre atrás do tempo, semeia o
vento, vai para a rua e ainda bebe a tempestade. Ora, isso nos leva ao efeito de
espelhamento dessa relação dialógica: o “tu” estaria, pois, refletido no “eu” e
vice-versa.
Com efeito, esse enunciador-sujeito mostra-nos que a sua relação com esse discurso não consistirá apenas de citação, mas antes de ruptura, inovação, recriação, de quebra do tradicional, para obtenção de certo objetivo: manipular seu
interlocutor no sentido de levá-lo a pensar ou fazer algo; aliás, essa é uma estratégia própria do discurso argumentativo: levar o outro a fazer como eu faço:
“Faça como eu faço”.
Esse enunciador, ao longo do texto, lança mão dessa estratégia argumentativa,
somando a ela o uso de um modo verbal que vai modalizar todo o seu discurso:
são as formas no modo imperativo “ouça”, “espere”, “venha”, “deixe”, “brinque”, “faça”, “aja” que indicam sua atitude face ao que diz e face à relação que
ele estabelece com o interlocutor.
O poema-canção mostra, por força da analogia, um trabalho de arquitetura
transparente, um trabalho que nos leva a reconhecer uma obra em execução;
isto é, os contraprovérbios permitem ver os provérbios desconstruídos e a encenação do processo de questionamento da sociedade, através da contraposição de formações ideológicas diferentes. Desse modo, plasmados no interior do
poema-canção, os provérbios adquirem um poder elástico de significar ambiguamente.
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Decerto que os provérbios estabelecem simetrias sintáticas ou semânticas entre
uma parte e outra; assim, no poema-canção, a analogia e a ironia assumem uma
carga semântica importante, visto que, enquanto o sistema rítmico e rímico (que
é analógico) diminuem o mundo fechado e recorrente do refrão popular (que
propõe, justifica e consagra a inércia), a ironia é a transgressão, a violação da
visão de mundo correto.
A construção do poema-canção, através da ironia, está basicamente em fazer
um sentido inverso ao que foi enunciado; essa é a ironia básica e, assim, Chico
Buarque a “pratica”, invertendo o contido no provérbio. O mundo da linguagem proverbial é, então, submetido à ironia na enunciação do poema-canção,
uma vez que o provérbio é posto de “ponta a cabeça” ou de “cabeça para baixo”, invertido como se faz o enunciado irônico tendo em vista sua enunciação.
Revisto no espaço do texto, o processo de construção/desconstrução da linguagem proverbial pode ser assim esquematizado:
PROVÉRBIOS NA FORMA
ORIGINAL
PROVÉRBIOS
REESTRUTURADOS
É só dormir, que a dor passa.
Inútil dormir que a dor não
Espere sentado para não se cansar. / passa.
Espere sentado!
Espere sentado ou você se cansa.
Quem espera sempre alcança.
...quem espera nunca alcança.
Quem brinca com fogo se queima.
Brinque com meu fogo / Venha
Faça o que eu digo, mas não faça o se queimar.
que eu faço.
Faça como eu digo / Faça como
Pense duas vezes antes de agir.
eu faço.
Devagar se vai ao longe. / Devagar
Aja duas vezes antes de pensar.
eu chego lá.
Devagar é que não se vai longe.
Observando-se o quadro acima, é possível identificar os elementos linguísticos
que foram alterados na passagem do provérbio da forma original para a sua
reenunciação e modificação: a estratégia é a da negação. Nela, o enunciador ora
altera uma estrutura verbal já conhecida (Faça como eu digo / Faça como eu
faço), ora substitui o advérbio nunca por sempre (Quem espera nunca/sempre
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alcança), ora acrescenta o advérbio não (Devagar é que não se vai longe).
Evidentemente, a radical subversão da linguagem proverbial feita por esse
enunciador mostra a sua insubordinação, característica, aliás, própria do acervo
linguístico das composições do autor, pois ele se rebela contra formas linguísticas de dizer e de pensar que já se encontram amortecidas, fechadas numa rigidez cultural formal que se organiza em torno de hábitos cristalizados. Dessa
maneira, violando essa linguagem, ele propõe uma “reavaliação de todo o ideário moralista em que ela se estriba” (MENESES, 2000, p.192).
Ora, ao negar, ao subverter o provérbio, o enunciador consegue atrair a atenção
do leitor/ouvinte para o significado. O leitor, por sua vez, diante da ruptura do
esperado, é chamado a acordar violentamente para o verdadeiro sentido daquilo que está sendo enunciado e que rompe com o esperado. Assim, ao transgredir o provérbio, o locutor/enunciador acaba por evocá-lo com toda a sua
força e contexto, e o leitor/interlocutor, tomado de súbito pelo chamado “efeito
de estranhamento”, é estimulado a pensar no sentido emanado pelo provérbio
recorrendo à sua memória discursiva.
Para Meneses (2000, p. 193), essa estratégia permite que o leitor reflita sobre
a “idiotice” que representam os provérbios, donde “a ruptura dos provérbios
significa uma ação estimuladora e libertadora, um contra-amortecimento, uma
sacudidela, um refutar de todo hábito orgânico ou mental”.
O enunciador, por esse procedimento discursivo, vale-se de recursos para evocar, no poema-canção, a velha ordem social, utilizando, para isso, duas estratégias básicas: de um lado, a distribuição regular dos ritmos e sons, que se repetem a cada nova estrofe, instauram um padrão, signo de ordem estabelecida e,
por analogia, do statu quo social; por outro lado, o fato de o poema dialogar, intertextualmente, com provérbios bastante conhecidos faz que esses provérbios,
mesmo elípticos, transpareçam sob o texto ou se projetem na mente do leitor,
recuperados em sua memória discursiva.
Com efeito, entende-se que a estratégia utilizada em “Bom Conselho” seja a
subversão da própria enunciação; ou seja, o enunciador, ao que tudo indica, faz
uso da ironia e produz enunciados que são invalidados ao mesmo tempo em
que são falados.
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É, pois, a partir dessa subversão, que parece começar todo o jogo de argumentação do provérbio como estratégia discursiva. Ao subvertê-lo instaura-se entre
o diálogo do locutor e do interlocutor uma relação de silêncio capaz de criar no
receptor, no outro, uma adesão obrigada, porque provoca uma evidência que
constrange. Ora, de fato, esses versos, ao subverterem os provérbios, sinalizam
que, por trás da voz do enunciador, é possível ouvir outra voz, a voz da sabedoria popular. Com efeito, entende-se o provérbio como o discurso do outro, um
discurso codificado e citado, ou seja, já pré-construído e, portanto, imbuído de
uma força argumentativa já estabelecida.
Parece óbvio, então, admitir que, na estrutura do poema-canção, ao utilizar o
provérbio em discurso, a figura do enunciador, seu ponto de vista, desaparece,
passando a ser uma estratégia autoral. O leitor pressupõe que o enunciador
esteja enunciado com suas palavras, mas na verdade isso não acontece, seu discurso, marcadamente dialógico e interdiscursivo, permite que se reconheça a
estratégia de apropriação do discurso do outro. Contudo, vale notar que a estratégia utilizada é de uma heterogeneidade constitutiva não-marcada, já que o
enunciador não assume que o discurso seja do outro.
A leitura indica também a ideia de uma suposta passividade do sujeito enunciador; muito embora os provérbios constituam um discurso já citado, um “jádito”, não se pode afirmar que o enunciador ou reenunciador seja um sujeito
passivo em face de esse discurso do outro já ser pré-construído. Acredita-se que
as vozes desse sujeito, mesmo apropriando-se do discurso alheio, não o mostram como passivo, ou “falado pelo código”, ou totalmente determinado pela
história, mas sim um sujeito ativo, que utiliza a linguagem em atividade e reenuncia o já-dito em proveito de sua intenção discursiva, marcadamente irônica.
Nessa visão do enunciador como reenunciador parece mesmo haver um duplo
escamoteamento do “eu”: existe realmente um “eu” que está por detrás de cada
provérbio utilizado no poema-canção.
Considerando que há uma relação intertextual do poema-canção com provérbios, o modo de construção desse poema e o efeito de sentido dessa construção têm uma importância considerável. Basicamente, “Bom conselho” é uma
paródia feita a partir da reconstrução de provérbios que, em sua nova forma,
realizam a desconstrução da ordem social vigente e propõem novos valores.
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Mas, é importante que se compreenda o valor crítico dessa intertextualidade parodística, ou seja, dessa “imitação” que subverte um gênero de discurso através
da paródia. Essa relação que se estabelece entre imitação e imitado não é lúdica; pelo contrário, ela permite que o discurso de imitação construa sua própria
identidade (Cf. MAINGUENEAU, 2001, p.173). Ora, como a reconstrução não
elimina o que foi reconstruído, já que é sempre possível reconhecer o provérbio
no contraprovérbio, o poema-canção torna-se espaço de um problema, lugar de
confronto de ideologias, de uma crise ideológica. À força de contrapor vozes
que defendem pontos de vista diferentes, de preferir a polifonia à univocidade,
o poema-canção, mais que propor a substituição das velhas ideias por outras,
encena o questionamento como saída, como ruptura do automatismo e da tradição.
Entende-se que o diálogo intertextual com os ditos populares, que são desconstruídos e reconstruídos a fim de se aplicarem à situação focalizada na composição, faz que se passe do efeito de intertextualidade para o de interdiscursividade (já que os provérbios constituem por excelência o discurso do outro) e, deste
último, para o de metadiscursividade, em que se instaura a utilização do léxico,
cujas palavras assumem um cunho metalinguístico (a linguagem é empregada
para falar da própria linguagem) e autonímico (o enunciador fala em nome de
outro; ele participa a responsabilidade do que diz com um outro).
Rey-Debove (1978, p. 266) chama a atenção para o discurso com conotação autonímica que, segundo ela é, ao mesmo tempo, imitação e distanciamento por
constituir o lugar onde o enunciador lida com a linguagem dos outros. Sobre os
Modos de Dizer, a autora afirma que esses são caracterizados pela relação entre
o enunciador e a fonte das palavras conotadas. Esses modos, no caso específico
dos provérbios, podem ser os mais diversos: é como diz o outro, da moda do outro, como diz o povo, como diziam os antigos, como diz o ditado, como diz(ia)
minha avó/mãe, como dizia meu avô/pai, como dizem os chineses, etc. De fato,
os modos de dizer estão explícitos na marca metalinguística dos provérbios e,
mais ainda, na competência enciclopédica ou cultural dos falantes. A conotação
autonímica, no caso dos provérbios utilizados no texto, refere-se a várias frases
de um discurso codificado, sempre codificado também para o modo como se
diz. Com efeito, num exercício de construção arquitetônica, a linguagem proverbial dobra-se sobre si mesma num movimento de espelhamento.
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Ao investir numa sistemática e intencional transgressão dos provérbios, feita
a modo de paródia, há uma violação no plano da mensagem. Essa inversão
(ou violação) total dos provérbios no texto dirige a leitura para uma análise
das condições externas de produção. Parece claro que o enunciador convoca os
provérbios reestruturando-os de forma a convidar o outro, meu amigo (leitor,
ouvinte, interlocutor), para se libertar das amarras da passividade, da aceitação,
do conformismo. Ao mesmo tempo, coloca em questão a competência linguística e enciclopédica do leitor/ouvinte, do sujeito decodificador, que deverá ser
capaz de analisar a relação do provérbio com a situação de enunciação.
No entanto, quando parece que o procedimento de violação dos provérbios está
totalmente imposto, o enunciador quebra esse contexto em que a negação se vinha reiterando e investe contra essa construção: Eu semeio o vento / Na minha
cidade / Vou pra rua e bebo a tempestade.
Inusitadamente, o enunciador utiliza a condensação de dois provérbios: “Quem
semeia ventos, colhe tempestade” e “Fazer tempestade em copo d’água”; essa
estratégia de “economia” leva o interlocutor a um raciocínio maior para que ele
possa reconstruir aquilo que foi reenunciado. O enunciador parece mostrar-se
indiferente à advertência que se encontra implícita no provérbio − o fato de
semear o vento levaria a colher a tempestade –; ele transgride a norma e desafia
o perigo; se a tempestade é feita "num copo d'água", ele a bebe. Ora, de fato, ele
não se cala, antes denuncia, semeando o vento e bebendo a tempestade. Vale
ressaltar que em "bebo a tempestade" não há o tom de "calmaria" e de "arrefecimento" que reside no “fazer tempestade em copo d’água”; o tom é de desafio,
de ir para a rua e beber a tempestade como, inclusive, um rito purificador de
enfrentamento.
A recusa da ação pessoal, do individual, em detrimento da maneira de pensar
da coletividade, em que “a primeira pessoa comunica sem enunciar e a segunda, colocada de modo indireto e vago por um pronome ou por uma expressão de percurso, fica
impossibilitada de co-enunciar” (ROCHA, 1995, p. 84), é confirmada no caso do
pronome indefinido “quem” (“Quem semeia ventos...” ou “Quem espera sempre alcança”) ou no uso de partículas de indeterminação do sujeito (“Devagar é
que não se vai longe”).
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Seguindo esse caminho, parece claro que o diálogo com o enunciador se torna
impossível, uma vez que, ao empregar um provérbio, o enunciatário só pode
ser “tu”, sem nunca ter a oportunidade de se tornar “eu”, e esse fato reforça o
caráter de um discurso de persuasão e de autoridade, já que impede a reciprocidade, que é uma característica imprescindível do intercâmbio linguístico e,
logo, do dialogismo.
De fato, o enunciador que emprega um provérbio em seu discurso é invicto,
já que não se apresenta como inventor de tal enunciado. Na verdade, ele toma
como suporte uma ideia estabelecida pelo senso comum, portanto, não-refutada
pela coletividade e admitida de longa data como verídica, e preexistente assim
à sua própria argumentação de enunciador particular numa situação particular.
Portanto,
se o provérbio é imbatível na argumentação é porque
ele constitui uma verdade de origem anônima consagrada pelo senso comum, ou seja, um enunciado citado, e não criado no momento de uma enunciação específica. Por isso a argumentação apresenta-se como
totalmente cerceadora, na medida em que o locutor
reenunciador apoia-se sobre princípios anteriormente
admitidos (ROCHA, 1995, p.175).
Diante disso, é impossível negar o procedimento de construção efetuado por
esse enunciador: ele quebra a estrutura, ao propor uma ação pessoal tendo
como modelo o “eu”: “Eu semeio o vento...”, (eu) corro atrás do tempo”; “(Eu)
vim de não sei onde”, “(Eu) bebo a tempestade”. Isso leva à comprovação de
que, embora a maioria dos provérbios traga em seu bojo uma formulação impessoal, eles podem assumir, em um determinado contexto enunciativo, uma
formulação pessoal. A observação desse fato ajuda a comprovar a ideia de que
os provérbios, quando usados, visam a atingir o enunciatário de forma indireta,
mascarados pela expressão impessoal.
Neste poema-canção, o enunciador deixa entrever marcas que atestam a sua
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presença, ou seja, a intersubjetividade: a interpelação do enunciador, ora pelo
uso do imperativo, ora pelo vocativo “meu amigo”, ou pelo uso da 2ª pessoa, as
marcas de 1ª pessoa, tudo isso faz com que haja uma relação com a situação de
enunciação. Vê-se, então, que o conjunto de enunciados se torna embreado.
Vale ressaltar ainda o uso das construções com os verbos no imperativo que são
injuntivas, ou seja, pretendem levar o interlocutor a realizar uma ação. A injunção no poema-canção toma a forma de “conselho” conjugado à ordem. Assim,
na segunda estrofe, o uso do imperativo “venha”, acompanhado do vocativo
“meu amigo”, marca uma intencionalidade discursiva especial.
Se os temas que os provérbios encerram constituem verdades que perduram
independentemente e para além de sua enunciação, ao serem enunciados, ou
reenunciados por qualquer enunciador, em qualquer tempo, espaço ou situação, eles permanecerão válidos, qualquer que seja o contexto.
Não se pode, contudo, deixar de considerar que, no poema-canção, a relação
espaço / tempo que parecia ter sido apagada, visto que, ao utilizar o provérbio,
devido à sua generalização, ele pode ser indefinidamente reempregado onde e
quando quer que seja, a indicação espacial “na minha cidade”, dá-nos o ponto
de referência da posição física do enunciador: “na minha cidade” é uma alusão
ao Brasil, onde se viviam a defesa e manutenção do AI-532 que evitava todas as
exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes. Dessa forma, o enunciador instaurado no texto parece assumir mesmo uma postura de agente discursivo de todo um povo contra as formações discursivas das classes dominantes; ele
não está só chamando a atenção do povo, mas também mostrando a sua própria
revolta com aquilo que era chamado de democracia pelo governo: Um mero processo técnico para a promoção da felicidade coletiva. Daí a situação de conflito entre
formações discursivas e ideológicas.
Seguindo esse caminho, é possível perceber a interdiscursividade entre a composição e o discurso político da época que utilizava, entre outros, o recurso
2 - O Ato Institucional número 5 ou AI-5 foi o quinto de uma série de decretos emitidos
pelo regime militar brasileiro nos anos seguintes ao Golpe Militar de 1964 no Brasil.
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persuasivo do slogan, cujas características se assemelham com as do provérbio43.
Toda essa estratégia tinha como objetivo desviar a atenção do povo da intensa
repressão e da injusta distribuição de renda, numa época em que se dizia estar
vivendo um período de “crescimento econômico”.
Para Meneses (2000, p. 191), os provérbios são “uma receita tranquilizante e
enganadora”54; assim, o procedimento utilizado pelo compositor, ao parodiar, de
forma irônica, a linguagem proverbial e, consequentemente, criticar a sociedade
que a gerou, mostra que o enunciador a um só tempo se furta a fazer comentário
mas também se exima de fazê-lo, já que, ao deixar falar o provérbio, ele se faz
falar pelo próprio código. Por isso, essa metadiscursividade pode ser vista como
uma arma eficiente na argumentação.
Vale, ainda, chamar a atenção para os versos que parecem resumir todo o poema-canção: “Deixe esse regaço / Brinque com meu fogo / Venha se queimar”;
quer dizer, esses versos representariam “o convite ao abandono de uma atitude
regressiva (a volta ao útero materno: o ‘regaço’)”; há aqui também, a ideia da
não-acomodação, da não-fuga, da não-regressão, ou seja, da noção de rompimento com o conformismo e, consequentemente, a ideia da mãe-pátria, acolhedora e idílica.
Realmente, se os trechos da composição não são novos, mas “já-ditos” e reenunciados, pertencentes ao nosso arquivo enciclopédico de memória, a tessitura que
o autor faz deles é totalmente nova, resultando um novo texto, com uma crítica
bastante original a um momento da situação social brasileira, 1972, no qual o
uso de verbos imperativos, bem mais que mera forma verbal disponível na gra3- �������������������������������������������������������������������������������
Nessa época, a Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP), órgão de propaganda oficial, divulgava ao povo “slogans” otimistas que se destinavam a fixar, na sua
memória, um argumento persuasivo, a fim de propagar a ideologia dominante. Assim,
surgiam “slogans” como: “Brasil: ame-o ou deixe-o”, “O Brasil é feito por nós”, “Brasil,
conte comigo”, “Pra frente, Brasil”, “Ninguém segura este país”.
4 - Seguindo a trilha de Meneses (2000), ao considerar os provérbios receitas, podemos
inferir uma interdiscursividade entre as composições “Bom Conselho” e “Cálice” e duas
outras composições do autor. São elas: “O que será”, que representa a grande canção utópica de Chico Buarque, em que são negadas categorias, nas quais o pensamento proverbial se fundamenta (“O que não tem certeza, nem nunca terá/ O que não tem conserto,
nem nunca terá / O que não tem tamanho”); e “O que será – À flor da pele”, em que o
sentido de receita é fortemente negado (“O que não tem medida, nem nunca terá / O que
não tem remédio, nem nunca terá / O que não tem receita”).
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mática da língua, emerge, assim como o fonema – unidade sonora mínima da
palavra – como uma espécie paradoxal de mínima asserção da linguagem do
medo, da força, do autoritarismo, no contexto maior da Ditadura Militar.
Usando as formas imperativas, o enunciador não apenas parodia a apropriação
militar-autoritária do imperativo, mas, mais do que isso, as lança num contexto lúdico-irônico, brincando, e assim as desconstruindo, ao mesmo tempo que,
através da ironia, chama a atenção do interlocutor para aquela apropriação militaresca e, portanto, para a gravidade do momento político brasileiro.
Referências
BENJAMIM, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In:
Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Orianet.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. p. 197-211.
BRAIT, B. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas/SP:Editora da Unicamp, 1996.
________. Análise do discurso e argumentação: o exemplo da ironia. In.: MARI,
H. [et al.] (org.). Fundamentos e dimensões da análise do discurso. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 1999. p. 335-347.
CHEDIAK, A. Songbook: Chico Buarque. Rio de Janeiro: Lumiar, 1999.
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez,
2001.
MENESES, A. B. de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2000.
REY-DEBOVE, J. Le Métalangage. Paris:Le Robert editora,1978.
ROCHA, R. A enunciação dos provérbios: descrições em francês e português.
São Paulo: ANNABLUME, 1995.
TRAVAGLIA, L.C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996.
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“GENTILEZA GERA GENTILEZA”:
A LEITURA DA INDETERMINAÇÃO DO SUJEITO
NO GÊNERO CANÇÃO
Aline Moraes de Oliveira1*
Carmelita Minelio da Silva Amorim2**
Lúcia Helena Peyroton da Rocha3***
Resumo:
O objetivo deste artigo é tecer leitura(s) da indeterminação do sujeito, marca linguística tão presente na canção Gentileza. Tomaremos como ponto de partida a
orientação de gramáticos, autores de livros didáticos e linguistas no que tange
ao conteúdo que trata da indeterminação do sujeito. Recorreremos à orientação
dos PCN, que tenta disciplinar os conteúdos a serem ministrados nas aulas de
língua portuguesa, para então analisarmos o gênero canção, levando em conta
aspectos morfológicos, sintáticos, semânticos e pragmáticos. Pretendemos com
esse exercício mostrar que é possível trabalhar em sala de aula com textos de
circulação na sociedade contemporânea, sem fazer deles (os textos) meros pretextos para análise sintática, por exemplo.
Palavras-chave: Gentileza. Gênero canção. Indeterminação do sujeito.
Primeiras Palavras
Em tempos de violência, desamor e tanto egoísmo, optamos por trabalhar com
Gentileza, substantivo feminino que dentre as várias acepções com que registra
1 *Professora substituta da Universidade Federal do Espírito Santo e professora da
Faculdade Saberes.
2 **Doutoranda da Universidade Federal Fluminense.
3 ***Professora doutora do Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal do Espírito Santo.
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o dicionário Michaelis, elegemos algumas que consideramos relevantes para a
análise que aqui iremos empreender: “qualidade de gentil; ação nobre, ilustre,
distinta; valor, valentia; cortesia, delicadeza, urbanidade”.
Tecer leituras é uma forma de desvendar o mundo, de (re)descobrir caminhos,
de (re)conhecer a si e ao outro. Ler significa poder, no sentido de que permite ao
cidadão integrar-se à sociedade, integrar-se ao mundo. A leitura, na verdade, é
um processo de compreensão de expressões formais e
simbólicas, não importando por meio de que linguagem. Assim, o ato de ler se refere tanto a algo escrito
quanto a outros tipos de expressão do fazer humano,
caracterizando-se também como acontecimento histórico e estabelecendo uma relação igualmente histórica
entre o leitor e o que é lido (MARTINS, 1994, p. 30).
Este artigo tem alguns objetivos claramente delineados, quais sejam tecer
leitura(s): (I) da indeterminação do sujeito, marca linguística tão presente na
canção Gentileza e (II) do diálogo instaurado no poema canção.
Tomaremos como ponto de partida a orientação de gramáticos, autores de livros
didáticos e linguistas no que tange ao conteúdo que trata da indeterminação do
sujeito. Recorreremos à orientação dos PCN, que tenta disciplinar os conteúdos
a serem ministrados nas aulas de Língua Portuguesa, para então analisarmos a
canção Gentileza, levando em conta aspectos morfológicos, sintáticos, semânticos e pragmáticos. Pretendemos com esse exercício mostrar que é possível trabalhar em sala de aula com textos de circulação na sociedade contemporânea,
sem fazer deles (os textos) meros pretextos para análise morfológica ou sintática, por exemplo.
Os PCN, no que tange ao ensino da Língua Portuguesa, propõem que os trabalhos realizados em sala de aula devem se dar a partir dos gêneros textuais,
devem valorizar a participação crítica do aluno diante da sua língua e devem
mostrar as variedades e pluralidade de uso inerentes a qualquer idioma. Nessa
perspectiva, a unidade de ensino deixa de ser frases soltas descontextualizadas
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e entram em cena os gêneros textuais – textos orais ou escritos concretizados
em eventos comunicativos, cujos propósitos estão inscritos histórica, social e
culturalmente.
A canção é um gênero híbrido, visto que resulta da integração de dois tipos de
linguagem: a verbal e a musical. Costa (2002, p. 107) defende que a canção deve
ser entendida como uma “tripla competência: a verbal, a musical e a lítero-musical, sendo esta última a capacidade de articular as duas linguagens”. Segundo
o autor, essa tripartição se justifica a fim de que a canção não seja confundida
com outro gênero. Concordamos com Costa (2002, p. 108) que “a canção não é
exclusivamente texto verbal, nem exclusivamente peça melódica, mas um conjugado das duas materialidades”. A integração letra e melodia é o que caracteriza o gênero canção. Todavia, essa integração constrói-se sob diversos ritmos e
emerge sob condições específicas do tempo e espaço de seu criador.
Com a palavra nossos gramáticos, autores de
livros didáticos e linguistas
Tradicionalmente, gramáticos e autores de livros didáticos apontam como mecanismos de indeterminação do sujeito expedientes tais como: “o verbo na terceira pessoa do plural sem antecedente” (cf. Quebraram a janela) ou ainda “o
verbo na terceira pessoa do singular seguido da partícula –se” (cf. Precisa-se de
secretárias). Entre os gramáticos que assim abordam a questão encontram-se
Said Ali (1964) e Melo (1970). Entre os autores de livros didáticos encontram-se
Sacconi (1985) e Mauro Ferreira (2003). Do ponto de vista linguístico, registramos as abordagens de Neves (2003), Abreu (2003) e Azeredo (2008).
Said Ali (1964) assegura que o sujeito pode ser Definido ou Indefinido. Considera
indefinido quando há um ente que não podemos ou não queremos especificar.
Emprega-se para “este efeito o verbo ou na 3ª pessoa do plural, ou na forma
reflexiva, ou usa-se o verbo na forma ativa dando-lhe por sujeito um pronome indefinido”. O autor exemplifica assim: “Assassinaram o ministro”. “Estão
batendo à porta”. “Morre-se de frio”. “Alugam-se cadeiras”. “Desistiu-se da
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empresa”. “Alguém está batendo”.
A partir da observação dos exemplos arrolados por Said Ali (1964), podemos
seguramente afirmar que há uma confusão entre aspectos sintáticos, lógicos e
semânticos que envolvem a função sujeito. Além disso, ao acolher no rol dos
sujeitos indeterminados as duas frases, a saber: “Alguém está batendo” e “Estão
batendo à porta”, em que há duas configurações diferentes: X está batendo e
∅ estão batendo à porta, é desconsiderar que X equivale ao elemento alguém
que preenche sintaticamente a primeira casa argumental e que ∅ representa a
ausência desse elemento.
Segundo Melo (1970), a indeterminação do sujeito se dá quando numa frase ele
não está nem determinado, nem claro ou oculto. Esse fenômeno se dá a partir da
utilização dos seguintes mecanismos: 1) Conjugar o verbo na terceira pessoa do
plural, não se referindo a nenhum substantivo no plural anteriormente expresso, nem ao pronome eles. 2) Colocar o verbo na terceira pessoa do singular ou
plural, acompanhado do pronome se (índice de indeterminação do sujeito). 3) O
sujeito materialmente constituído pela expressão “a gente”, de valor indefinido.
O gramático arrola os seguintes exemplos retirados de obras literárias: 1) “Na
minha rua estão cortando árvores.” (Carlos Drummond de Andrade, Poesia até
Agora, p. 17). 2) “Na nossa terra não se vive senão de política” (Lima Barreto,
Triste Fim de Policarpo Quaresma, p. 97). 3) “Passando num meio-dia quente, ao
trote penoso do cavalo, a gente pára ali, olha a sombra e o verde como se fosse
um cantinho de céu...” (Raquel de Queirós, Três Romances, p. 66).
Sacconi (1985, p. 183) afirma que “quando a identidade do sujeito é desconhecida realmente ou escondida propositadamente, ignora-se não só a identidade,
mas também o número de agentes”, trata-se de sujeito indeterminado. Vale-se
o autor dos seguintes exemplos: “Roubaram minha carteira”. “Marisa, falaram
mal de você”. “Trabalha-se demais no Japão”. “Precisa-se de empregados”.
“Não se é grande no mundo senão quando se é fanático por uma ideia”.
Ao apresentar os expedientes de indeterminação do sujeito disponíveis na língua portuguesa, Sacconi (1985, p. 183) arrola duas maneiras de se indeterminar
o sujeito: 1) colocando-se o verbo na terceira pessoa do plural, sem referência
ao pronome “eles” (e variação), nem a qualquer substantivo anteriormente expresso, o que o torna, este sim, um sujeito oculto, desconhecido literalmente em
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número e identidade; 2) colocando-se o pronome “se” junto de qualquer tipo de
verbo, exceto o transitivo direto.
Em forma de observação, Sacconi posiciona-se diferentemente de Said Ali
(1963) e Melo (1970), no que diz respeito às expressões indefinidas funcionando como elemento de indeterminação do sujeito: o “sujeito indeterminado não
existe como elemento na oração; se o sujeito é representado por um pronome
indefinido, não será indeterminado, mas simples, porquanto nesse caso o sujeito
existe como elemento, embora não lhe conheçamos a identidade. Ex.: “Alguém
mexeu na minha bola” / “Ninguém saiu de casa””.
Adverte-nos lembrando-nos de que fazer análise sintática significa analisar todos os elementos estruturais da oração, em relação aos demais. O problema da
identidade do agente pertence muito mais ao terreno da lógica que ao da sintaxe. Caso contrário, teríamos de ver como indeterminado o sujeito desta oração:
“Um mascarado roubou o Banco”.
Ferreira (2003), em seu livro didático, posiciona-se semelhantemente à maioria
dos autores de livros didáticos pesquisados, visto que “uma oração tem sujeito
indeterminado quando o falante que a constrói não quer – ou não pode – fixar
com exatidão o sujeito”. Existem duas estruturas sintáticas por meio das quais é
possível indeterminar o sujeito. Veja a seguir: a) Oração com verbo na 3ª pessoa
do plural. Exemplo: “Dizem que pintar é uma boa distração. (...) Alivia a tensão
dizem. FLRGHS! Dizem muita bobagem.” (Laerte – Piratas do Tietê. Em Folha
de S. Paulo, 24/6/2000).
Neves (2003), ao tratar de referenciação, afirma que
a propósito do uso dos pronomes, faço aqui um parêntese na observação de tratamento dos itens referenciais, para explicitar um pouco mais o tratamento
da questão da indeterminação do sujeito nas salas de
aula. O que se tem ensinado tradicionalmente é que o
sujeito se indetermina com a terceira pessoa do plural
ou com pronome se junto de verbo (não-transitivo na
terceira pessoa do singular). No entanto, sabemos que
isso não diz tudo (NEVES, 2003, p. 146).
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A autora mostra um exemplo extraído de um livro didático. A estrutura de indeterminação do sujeito está numa tira de Garfield, em que no primeiro quadro, o gato está pescando e ao jogar a vara, pensa: “OH OH morderam a isca [...]”.
Para Neves (2003, p. 146), essa é a lição modelar que os livros escolares dão
sobre indeterminação do sujeito, e vai sempre se reduzir a isso. Ela aponta para
perspectivas diferentes de ensino, ao assegurar que
se queremos que nossos alunos se apossem dos recursos de organização dos enunciados da língua,
isto é, se queremos contribuir para que eles “falem
e escrevam melhor”, temos de passar por todas as
estruturas possíveis da língua, mesmo as que são
privilegiadamente usadas na linguagem falada (NEVES, 2003, p. 146).
A autora afirma, ainda, que, na conversação, há maneiras muito mais expressivas de indeterminar o sujeito que são absolutamente ignoradas nas lições da
escola. Vale-se de exemplos extraídos da língua urbana culta (NURC): 1) “antigamente você ia ao Cine Ipiranga, eram uma poltronas ótimas” (DID-SP-234, p.
578-579). 2) “Por exemplo, eu posso saber todos os sinais de trânsito de cor, tá,
eu memorizei o meu processo [...], mas é preciso que eu aplique, que eu utilize
os sinais de trânsito na hora certa” (EF-POA-278, p. 283-287).
Para Neves (2003, p. 147), essa maneira de indeterminar o sujeito, a partir de
enunciados reais, permite-nos uma indeterminação muito mais abrangente do
que a da tira (Morderam a isca), porque
a terceira pessoa do plural sempre se refere apenas a
terceiras pessoas (se sem sujeito expresso, singular ou
plural), eliminando a primeira e a segunda, enquanto
o você e o eu, embora sejam pronomes de segunda e
de primeira pessoa do discurso, respectivamente, não
excluem nenhuma das três pessoas. Nesse ponto, a indeterminação com esses dois pronomes tem a mesma
ampla abrangência da indeterminação com o pronoSABERES Letras
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me se, da qual, porém se distingue pela diferença de
registro e pelo maior engajamento das pessoas envolvidas no ato de comunicação, o que significa que, de
certo modo, a indeterminação é mais viva, mais carregada de subjetividade (NEVES, 2003, p. 147).
Abreu (2003) define o sujeito como “o termo com o qual o verbo concorda”.
Parte dessa definição para justificar o fato de acolher o sujeito indeterminado
dentro do escopo das orações sem sujeito. Para ele, com algumas construções
em que o verbo fica na terceira pessoa do singular, acompanhado do pronome
se, não há um termo com o qual o verbo concorda, por isso não há sujeito.
Ele considera incoerente a classificação da Nomenclatura Gramatical Brasileira
que abarca sob o rótulo de sujeito indeterminado orações do tipo: “Anda-se
muito de bicicleta em cidades do litoral”. “Vive-se bem melhor em uma cidade
pequena”. “Vende-se muito, nas feiras de antiguidade”. Para Abreu (2003, p.
84, grifos do autor),
isso acontece, porque essa “legislação” não leva em
conta a estrutura argumental dos verbos. No caso
desta gramática, é mais fácil separar as coisas. O
que está indeterminado é o argumento agente ou
experienciador (o interlocutor não sabe quem está
praticando a ação de andar e de vender ou experimentando a ação de viver). O sujeito, enquanto função sintática, não existe, uma vez que não há, como
dissemos, nenhum termo com o qual o verbo esteja concordando. Esse raciocínio também se aplica a
construções, geralmente na língua falada, em que o
verbo fica na terceira pessoa do plural, sem um antecedente expresso como em: Telefonaram para você
ontem. Derrubaram, outra vez, a cerca da frente. [...]
Trata-se, pois, também, de casos de agente indeterminado em oração sem sujeito.
Azeredo (2008) estabelece a distinção entre as orações sem sujeito e as orações
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de sujeito indeterminado. Para ele, a distinção está diretamente relacionada às
estruturas e aos efeitos de sentido que cada uma é capaz de provocar. Azeredo
afirma ainda que
orações de sujeito indeterminado são empregadas
por motivos cognitivos ou discursivos variados, e
a língua oferece a seus usuários diferentes meios
para indeterminar, dissimular ou mesmo ocultar
a identidade do ser humano a quem o sujeito da
oração se refere. A razão cognitiva óbvia é o desconhecimento da identidade do ser de que se fala. As
razões discursivas, por sua vez, são variadas: a conveniência ou oportunidade da omissão da identidade do sujeito é uma delas, o registro de linguagem
empregado ou o gênero de texto produzido é outra
(AZEREDO, 2008, p. 226).
Gentileza: um exercício de leitura
Silva e Rocha (2006, p. 11) defendem que
compreender um texto significa reconhecer seu sistema de construção, isto é, perceber os aspectos morfo-sintático-semânticos utilizados por seu produtor.
O leitor produz sentidos a partir do momento em que
consegue relacionar as informações textuais às contextuais. As textuais recobrem desde a seleção lexical
até a organização estrutural; as contextuais são todas
aquelas não ditas explicitamente, mas que chegamos
até elas por meio do entorno do texto e de nossos conhecimentos prévios.
Para tecermos leitura(s) do poema canção Gentileza, é importante apresentar o
contexto linguístico e histórico-social em que está inserida a canção. Trata-se,
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assim, de trazermos à tona fatores que evidenciam as escolhas lexicais, o uso da
indeterminação do sujeito e de outras estruturas que indiciam uma sofisticação
linguística, os diálogos instaurados, que propiciam aos leitores um maravilhoso
universo multifacetado, que por meio da belíssima melodia na voz de Marisa
Monte tenta escamotear a dor, a tristeza de muitos que, a partir daquele dia
dezessete de dezembro de 1961, em Niterói, passaram a experimentar, em função do incêndio do Gran Circus Norte-Americano, que vitimou cerca de 400
pessoas.
A começar pelo título da canção – Gentileza – adquire uma dimensão que foge
aos registros dicionários, inscreve-se no “imaginário da cultura brasileira” e (re)
toma uma nova dimensão: o cidadão José Datrino transfigura-se no Profeta
Gentileza.
A palavra Gentileza, substantivo feminino, está consignada no dicionário de
Borba et al. (2002, p. 766) como um abstrato de ação que, em sua primeira acepção
é “ato ou gesto de cortesia, oferta ou concessão” e como abstrato de estado que,
em sua segunda acepção é “cortesia, delicadeza, urbanidade”.
Os dois primeiros versos da primeira e da segunda estrofe: “Apagaram tudo
/ Pintaram tudo de cinza” fazem alusão à ação “equivocada da Companhia
de Limpeza Urbana da cidade do Rio de Janeiro que ocultou quase que totalmente a obra de Gentileza”. A repetição desses versos ao início da música é
bastante significativo. Além disso, os verbos “apagar” e “pintar” revelam um
jogo antagônico de ações que refutam sobremaneira as ações, os sonhos, os
anseios do Profeta, que “estudou o local e escolheu previamente os temas de
cada pilastra. Os escritos de Gentileza não estão localizados aleatoriamente,
nem, tampouco, as pilastras figuram apenas como suporte para estes” (GUELMAN, 2000, p. 82).
Os verbos “apagar” e “pintar” se inserem em uma estrutura de sujeito indeterminado: “Apagaram tudo / Pintaram tudo de cinza”. E como querem gramáticos e autores de livros didáticos, “os falantes utilizam o verbo na terceira pessoa
do plural, sem antecedente” como forma de indeterminar o sujeito, quando não
querem denunciar quem praticou uma certa ação ou quando não sabem quem
a realizou. Na canção, o mecanismo de indeterminação mais do que camuflar
as intenções de não identificar o sujeito ( = Companhia de Limpeza Urbana da
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cidade do Rio de Janeiro), ou mesmo indiciar a impossibilidade de se apontar o
suposto agente do verbo “apagar”. Parece-nos que essa estratégia tenta despertar naqueles que ouvem a canção, numa primeira instância: a curiosidade e, por
conseguinte, a adesão daqueles que acreditam que Gentileza gera Gentileza.
Essa possibilidade de leitura sintático-pragmática vê-se corroborada com a fala
de Guelman (2000), para quem
Vislumbrávamos um movimento multiplicador – o
gerúndio do Profeta: gentileza gerando gentileza.
Haveríamos de ser mais uma vez criativos... Fomos,
então surpreendidos ao tomarmos conhecimento de
diversas iniciativas no meio artístico, enfocando o
tema da gentileza. Sugeriram-nos esses novos movimentos e adesões o prenúncio de que é tempo de
reassumir gentileza. Gentileza, o Profeta, que vem
inspirando, ao longo dos anos, cineastas, poetas,
músicos e videomakers, reaparece agora na obras
de outros artistas de alcance nacional e internacional. (GUELMAN, 2000, p. 157)
A presença das orações subordinadas adjetivas nos versos: “nós que passamos
apressados / pelas ruas da cidade / merecemos ler as letras e as palavras de
Gentileza” e em “Amor palavra que liberta / já dizia o Profeta” permite-nos a
seguinte leitura: a primeira oração adjetiva: “que passamos apressados pelas
ruas da cidade” tem o papel de restringir o universo de pessoas merecedoras
da leitura dos escritos de Gentileza, ademais soa como um convite à reflexão e à
necessidade de uma parada já que, na música, por meio desses versos, há uma
forte alusão “aos tempos velozes da cidade contemporânea”, por isso consideramos extremamente importante a escolha do léxico “merecer” ler as letras...
é, por exemplo, diferente de “ter de” ler as letras... “Merecer” é, em uma de
suas acepções, “fazer jus; ser digno de”, ao passo que “ter de” é “ser obrigado
a; ter necessidade ou precisão de.” A segunda oração adjetiva “que liberta” em
“Amor palavra que liberta / já dizia o Profeta” restringe “palavra”, que funciona como aposto de “amor”: amor = palavra libertadora.
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Na última estrofe, “O mundo é uma escola / A vida é o circo / amor palavra
que liberta / já dizia o profeta” por meio dos dois predicados nominais: “O
mundo é uma escola / A vida é o circo” instaura-se um jogo léxico estrutural em
que o predicativo: “uma escola” contrapõe-se a “o circo”, quer pela indefinição
do mundo escola, referência a qualquer e toda escola; quer pelo estabelecimento
do conhecido circo, lugar marcado linguisticamente por meio do elemento definido “o”, que ativa na memória coletiva um conhecimento partilhado. Não se
trata aqui de qualquer circo, mas daquele que incendiou em 1961.
Penúltimas Palavras
Tradicionalmente, gramáticos, autores de livros didáticos e linguistas apontam
formas de indeterminação do sujeito, que nos parecem distantes, ainda hoje,
de atingirem a uma certa eficiência quando são aplicadas ao ensino. Por isso, a
nossa proposta é, na medida do possível, deixar aqui uma concepção de gramática que vai além de atividades com frases descontextualizadas, elaboradas para
atingirem objetivos bem específicos e restritos a determinados conteúdos.
Reconhecemos o limite do recorte metodológico adotado pela maioria das abordagens dos autores tradicionais por nós observados. A nossa proposta se coaduna com a de Azeredo (2008), que vê que o uso da indeterminação do sujeito
está circunscrito tanto em razões cognitivas quanto em razões discursivas. E
também se alinha com a proposição de Neves (2003), no que tange às nossas expectativas de resultado do que ensinamos em sala de aula. Por isso, defendemos
com os PCN o texto como unidade de ensino; pois só assim conseguiremos trabalhar com uma gama bem maior de possíveis estruturas inerentes aos diversos
gêneros textuais que circulam socialmente.
Referências:
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(Orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. p. 107-121.
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Revista Saberes Letras: linguística, língua, literatura, Vitória, v. 4, n. 1, p. 9-17,
jul./dez. 2006.
Verbete Gentileza. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/
portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=gentileza>.
Acesso em: 20 maio 2002.
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UMA BREVE INTRODUÇÃO À PROSÓDIA DA
FALA: PADRÕES RÍTMICOS AFETADOS PELA
VELOCIDADE DE FALA
Alexsandro Rodrigues Meireles1*
Resumo:
Este artigo apresenta os conceitos básicos sobre prosódia da fala, bem como um
breve estudo de caso. Nosso objetivo é, pois, introduzir aos alunos de graduação de Letras as ideias principais relacionadas ao estudo do ritmo linguístico, a
fim de que possam se iniciar nessa fascinante área de estudo da linguagem.
Palavras-chave: Prosódia. Ritmo de fala. Velocidade de fala. Fonética. Fonologia
1. Definição de prosódia
Crystal (1969, p. 5) define a prosódia de duas maneiras: sob o ponto de vista
negativo, as análises prosódicas lidam com o que não está presente nas análises
linguísticas segmentais; sob o ponto de vista positivo, os sistemas prosódicos
são compostos por traços fonológicos que possuem uma relação variável com as
palavras, em oposição aos traços segmentais (fonemas, significado lexical) que
têm uma relação direta com as palavras. Na sentença “vamos pra praia”, por
exemplo, temos alguns traços invariáveis, como os fonemas /v, a, m, o, s, p, ,
i/; porém, temos traços variáveis que são aplicados a essa frase, como entonações diferentes.
Segundo Crystal (1969, p. 131), os sistemas prosódicos se constituem por: entonação, tessitura, pausa, altura, velocidade e ritmo de fala. Insere junto a estes a
tensão, que faz parte também dos sistemas paralinguísticos. De acordo com esse
1*Professor Dr. do Departamento de Línguas e Letras da UFES.
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autor, esses sistemas prosódicos são analisados através dos parâmetros psicológicos do som: tom, altura e duração, os quais estão associados fisicamente com
a frequência fundamental, intensidade e tempo.
Trabalhamos, aqui, com apenas três desses constituintes prosódicos: velocidade
de fala, ritmo de fala, e a pausa, que consideramos parte inerente da velocidade
e ritmo de fala, os quais são analisados sob a perspectiva dos pressupostos teóricos da fonologia experimental21.
Segundo Magalhães (1999, p. 162-3),
a fonologia experimental é, pois, uma abordagem da
fonologia que procura integrar as descobertas da fonética experimental e da psicologia experimental, na
esperança de relacionar as descrições fonológicas a
um comportamento observável... é também bem mais
abrangente que a fonética: ela incorpora certas áreas
da psicologia bem como experimentos sociolinguísticos semelhantes àqueles desenvolvidos por Labov,
por exemplo. Enfim, tudo o que pode trazer respostas
confiáveis às questões tradicionais da fonologia pertence à fonologia experimental.
2. O programa de controle motor da fala
Dentro dessas perspectivas teóricas, um modelo de produção da fala para trabalharmos com os aspectos temporais é o apresentado por Allen (1973). Uma forma esquemática desse modelo é apresentada na figura 1 abaixo. Nesse modelo a
saída (output) do componente fonológico funciona como a entrada (input) para
um aparelho neural complexo, chamado de “programa de controle motor da
fala” (speech motor control program), que transforma a sequência fonológica
em atividade motora da fala, que, por sua vez, resulta no sinal acústico.
1- Para uma visão detalhada da proposta teórica da Fonologia Experimental, consultar
Ohala e Jaeger (1986). Para uma comparação entre a Fonética, Fonologia e Fonologia
Experimental, ver Magalhães (1999).
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Figura 1. Programa de controle motor da fala (Allen, 1973, p.220).
Um modelo como este, como podemos notar, relaciona diretamente a fonologia
e a fonética, e é capaz de explicar os complexos fenômenos temporais envolvidos em velocidades e ritmos de fala diferentes. No texto de Allen (1973) é
mostrado por que, mesmo que um falante tente falar em uma velocidade fixa,
há pequeninas variações, que não são percebidas pelo falante ou ouvinte. Segundo Allen (1973, p. 235-6), essas diferenças são devidas a uma pequena falta
de sincronismo entre os mecanismos de controle de tempo dos segmentos (segment timing mechanism), que são a velocidade de fala (speech rate) e a duração
segmental (segmental duration), que está relacionada com a natureza do mecanismo neural responsável pelo alinhamento temporal da duração segmental
(timing segmental duration).
Sob o ponto de vista do ritmo da fala, o programa de controle motor da fala prevê que há regras gerais de comportamento motor de sequência e alternância que
restringem a organização rítmica das frases. Segundo Allen (1973, p. 220-1),
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these extralinguistic rhythms might be either in addition to or at variance with such phonological rhythms
as stress timing, and just which stressable syllables
will turn out to be stressed in the final output, and to
what degree, therefore depends not only upon the locations of neighbouring lexical stresses but also upon
idiosyncratic variables, such as speech rate and emotional content of the utterance.
3. Primeiros estudos sobre ritmo da fala
Introduziremos a seguir os conceitos básicos de ritmo na fonologia gerativa padrão e métrica. Em seguida, comentaremos como o programa de controle motor
da fala lida com a alternância rítmica de alguns nomes próprios.
Como estamos trabalhando sob a abordagem de uma fonologia experimental,
a qual não se propõe a criar teorias, mas sim a testá-las, vamos fazer um breve
panorama de abordagens fonológicas em relação ao ritmo, para, então, mostrarmos como o ritmo manifesta-se foneticamente. Posteriormente, mostraremos a
influência do ritmo na velocidade de fala.
3.1. Acentuação na fonologia gerativa
Em Chomsky e Halle (1968), o acento é considerado como uma propriedade
de segmentos individuais, mais especificamente as vogais, que recebem o
traço [+acento] ou [-acento]. Essa visão do acento é extremamente criticada
pelos fonólogos métricos, que consideram o acento como parte do sistema
suprassegmental das línguas. Podemos notar esse caráter suprassegmental
em frases do tipo:
1) ’Sou a ’penas um arte ’são da ’música.
Notamos nesta frase um padrão rítmico característico de línguas de ritmo acenSABERES Letras
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tual, onde os intervalos tendem a se repetir em tempos iguais. Parece-nos, então, que deve haver um padrão rítmico regulador da alternância entre os acentos das palavras e sentenças, o qual não é inerente às palavras ou sentenças.
Segundo Hogg e McCully (1987, p. 9-10), as características básicas do acento na
fonologia gerativa32 são:
a) O acento é atribuído por regra aos segmentos vocálicos.
b) O acento primário é indicado por [acento 1], ausência de acento
(mais propriamente, acento fraco) por [acento 0]; todos os outros níveis de acento são derivados por convenção.
c) A atribuição do acento é dependente da estrutura sintática.
d) O acento é atribuído ciclicamente, trabalhando do grupo mais interno dos colchetes para o mais externo.
e) Em sequências maiores que a palavra, há duas regras principais de
atribuição do acento: (a) CSR [Compound Stress Rule]43, que se aplica
a sequências dominadas por uma categoria lexical; (b) NSR (Nuclear
Stress Rule), que se aplica a sequências dominadas por uma categoria
frasal.
f) Sempre que [acento 1] é atribuído por regra, todos os outros acentos na sequência relevante são reduzidos por um, de acordo com a
SSC (Stress Subordination Convention).
Temos no exemplo 2 uma atribuição de acentos à palavra “black board”, segundo a ótica da fonologia gerativa padrão:
2- Para uma visão mais detalhada da questão do acento na fonologia gerativa padrão,
ver Chomsky e Halle (1968), Halle e Keyser (1971).
3- Liberman e Prince (1977:257) definem NSR (Nuclear Stress Rule) e CSR (Compound
Stress Rule) da seguinte forma:
For any pair of sister nodes [N1 N2], then:
(a) NSR: If [N1 N2] P where P is a phrasal category, then N2 is strong.
(b) CSR: If [N1 N2] L where L is a lexical category, then N2 is strong if and only
if it branches.
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2) [ NP54 # [ A # black # ]A [N # board # N # ] NP (Representação Subjacente)
1
1
[ NP # # black # # board # #] NP
(Word-Stress Rule)
2
1
# # black # # board # #
(Nuclear Stress Rule)
Notamos nessa derivação a não marcação do acento na representação subjacente de “black board”, mas são mostradas nesse nível as fronteiras de palavras
juntamente com as informações sintáticas relevantes, que são importantes para
a atribuição do acento. Depois é atribuído pela “Word-Stress Rule”, regra que
atribui acento às palavras, o acento 1, e, por fim, pela “Nuclear Stress Rule”, que
atribui acento às palavras de uma categoria frasal, chegamos a forma fonética
[blk.bd], onde temos um acento primário em “board” e um secundário em
“black”.
3.2. Acentuação na fonologia métrica
Diferentemente da Fonologia Gerativa Padrão, a Fonologia Métrica65, que considera o acento como constituinte suprassegmental, se baseia na análise de “árvores métricas” (metrical trees), as quais refletem a estrutura sintática. Para se
mostrar a proeminência relativa de cada constituinte, rotulamos os nós como
“s” ou “w”, onde “s” significa “mais forte que” e “w” significa “mais fraco que”.
Temos um exemplo de árvore métrica básica no exemplo 3:
3)
w
ano
s
velho
4- Os termos NP, A e N representam, respectivamente, categoria frasal (noun phrase),
adjetivo (adjective) e substantivo (noun).
5- Nossa análise da Fonologia Métrica é baseada em Hogg e McCully (1987).
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Como podemos notar, a atribuição de acento na fonologia métrica está relacionada com a proeminência relativa de um constituinte da árvore com o outro.
Além do mais, tem-se que a um constituinte é atribuído o valor “mais forte
que” ou “mais fraco que”; portanto, não podemos ter nós como [w w] ou [s s],
por exemplo, pois não faz sentido cada um dos constituintes ser mais fraco ou
mais forte do que o outro. Também, devido aos valores “s” e “w” atribuídos aos
constituintes métricos, temos que as árvores métricas só podem ser binárias.
Para solucionar o problema da análise de frases como “the fat cat” e “John’s big
brother” nos exemplos 4(a) e 4(b), que, após a aplicação de NSR, aparentavam
ter o padrão acentual 2 3 176, criou-se o “mot” (palavra prosódica). O “mot” foi
criado para representar palavras de categoria lexical, as quais têm o papel de
ocupar um nível prosódico específico que deve ser marcado nas árvores. Com
o “mot” pode-se diferenciar as duas frases do inglês citadas acima e se atribuir
o padrão acentual 0 2 1 para “the fat cat”, onde “the” não constitui um “mot”.
Tem-se, então, que uma correta análise métrica das duas frases seria, onde M
significa “mot”:
6- A atribuição de acento 2 3 1 foi baseada no algoritmo de Liberman e Prince (1977:259)
que diz: “if a terminal node t is labelled w, its stress number is equal to the number of nodes that dominate it, plus one. If a terminal node t is labeled s, its stress number is equal
to the number of nodes that dominate the lowest w dominating t, plus one.”
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Como foi mostrado anteriormente, as árvores métricas são estruturas binárias
com a proeminência de um elemento sobre o outro. No entanto, nas árvores
métricas 4(a) e 4(b) temos um número ternário de constituintes métricos. Nesses
casos, devemos encontrar o elemento mais à direita de cada constituinte sintático e, então, trabalhar da direita para a esquerda, criando pares de constituintes
métricos. Dessa forma, criamos primeiro o par “fat cat” em 4(a) e “big brother”
em 4(b), depois pela “Regra de Acento Nuclear” (Nuclear Stress Rule), que atribui acento a categorias frasais, atribuímos uma proeminência tônica à “cat” e
“brother”, e, por fim, criamos o par “the” e “fat cat” em 4(a) e “John’s” e “big
brother” em 4(b), onde, também pela “Regra de Acento Nuclear”, será atribuída
uma proeminência tônica ao par “fat cat” em 4(a) e “big brother” em 4(b).
Como podemos notar nas árvores métricas acima, não trabalhamos com a estrutura métrica interna das palavras, que são constituídas por sílabas e que
também têm propriedades acentuais próprias. Sendo assim, uma palavra como
“brother” terá dois constituintes métricos. A atribuição de acento às sílabas é
baseada em regras como a ESR, a SSC e a SRR8.
De acordo com a ESR (English Stress Rule), SSC (Stress Subordination Convention) e a SRR (Stress Retraction Rule), que atribuem acento às sílabas proeminentes das palavras, temos a seguinte análise de “gymnast” e “modest” nos
exemplos 5(a) e 5(b):
5a)
5b)
s
w
gymnast
+
+
s w
modest
+ -
7- A SRR é representada pela fórmula: V → [1stress] / ______ C0 a(V (C))a b(V C0)b V1,
onde C0 significa 0 ou mais consoantes, V significa uma vogal [ - longa], V1 significa uma
vogal com acento 1 e “a” e “b” significam marcas lexicais que, se presentes nas palavras,
não se aplicarão às partes “a” ou “b”.
A ESR é representada pela fórmula: V →[1stress] / _ C0 (a V (C))a (b, < n >[V<-long>]
C0)b,< n >{V1 <#>}. Há uma convenção para esta regra que diz que todo o material entre
colchetes deve ser incluído ou excluído. Dessa forma, os valores de [n] só serão relevantes no caso do elemento mais à direita do ambiente for #.
A SSC diz que quando um acento 1 é atribuído a uma vogal que já suporta acento 1,
então e somente então todos os outros acentos da sequência em consideração naquele
ponto serão automaticamente enfraquecidos de um.
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Se observarmos a árvore métrica dessas duas palavras, vemos que elas possuem
a mesma estrutura. No entanto, se observarmos as sílabas que as constituem
vemos que “gymnast” possui duas sílabas [+ acento] enquanto que “modest”
possui apenas uma sílaba [+ acento]. Para tirar essa ambiguidade na estrutura
métrica dessas duas palavras, a fonologia métrica fez uso de uma estrutura chamada “pé acentual” (stress foot).
O pé acentual é definido como uma sequência que possui como primeiro elemento uma sílaba acentuada seguida por zero ou mais sílabas átonas. Com esse
novo elemento, as árvores métricas das palavras acima ficam da seguinte maneira:
6a)
6b)
∑98s ∑w
∑
σ
σ
σs σw
gymnast
modest
Em português as sílabas que constituem um pé métrico devem conter as seguintes vogais [a, , i, , o, u, ã, e, i, o, u]. Já as sílabas que possuem as vogais [, , ]
não constituem um pé métrico.
8- O símbolo ∑ representa um pé acentual.
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3.3. A grelha métrica
Outro constituinte importante das árvores métricas é a “grelha métrica” (metrical grid). Cada nó terminal da árvore métrica, o qual é constituído por sílabas,
faz parte de um nível que é chamado de grelha métrica. Observemos a palavra
abaixo:
7a) N1 x
x
7b) N2
x
ca fé
N1 x
x
w s
ca fé
w s
Temos dois níveis nessa grelha métrica. O primeiro nível (N1) simplesmente
alinha os nós terminais da árvore métrica com as posições na grelha métrica.
No entanto, devemos fazer referência à tonicidade das sílabas da grelha. Para
isso criamos o nível dois (N2). Em 7b) temos que as sílabas fortes (“s”) da árvore são interpretadas como sendo mais fortes do que as sílabas fracas (“w”).
Como podemos notar, a força relativa entre as sílabas é feita sempre com base
na árvore métrica.
Segundo Hogg e McCully (1987, p. 138),
the grid is essentially a device from which it is possible to read patterns of syllabic prominence. Such
prominence – we will not call it “stress” – is presented graphically in grid columns. In addition, the grid
illustrates syllabic adjacencies, which are presented
within the rows of each grid. Given that a fairly specific set of rules governs how any one grid is constructed, and constrains its well-formedness, we see
that the grid is an “ordered set of levels.
4. Ritmo na fonologia métrica
Liberman (1978), sugere que a grelha pode ser considerada como um aparato que
marca “graus de repetição de sílabas”. Tomemos como exemplo “O gato morreu”.
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8)
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x
x
x
x
x
x
x
x x x x x x x x
∅ O gato ∅ morreu ∅
Parece estranho considerarmos a enunciação do exemplo 8 como tendo oito sílabas, pois, se contarmos as sílabas de “o gato morreu”, encontraremos apenas
cinco sílabas. No entanto, como estamos relacionando sempre a análise fonológica com a fonética, utilizamos as sílabas “∅” para ocupar posições tônicas na
grelha métrica, que em uma conversação serão preenchidas por sílabas tônicas
ou pausas. Se fôssemos marcar o ritmo dessa frase, poderíamos coincidir as
batidas com as oito sílabas do nível 1, com as quatro sílabas do nível 2, com as
duas batidas do nível 3 e assim por diante. Esses são os diferentes “graus de
repetição de sílabas” de Liberman (1978).
Como já apresentamos acima a noção de pé acentual (stress foot), convém
agora diferenciá-lo da noção de pé métrico (foot), que será utilizada em nosso trabalho.
De acordo com Hogg e McCully (1987), os dois termos fazem parte de duas diferentes tradições linguísticas. O pé acentual se refere a considerações estruturais (fonológicas) da linguística norte-americana. Já o pé métrico, embora ainda
sendo uma unidade fonológica, é interpretado pelos linguistas britânicos numa
forma fonética específica. Observemos a análise métrica completa de “o gato
morreu” no exemplo 9.
O que podemos notar de estranho nessa árvore métrica é a presença de sílabas
“∅”109. Essas sílabas se relacionam com uma característica do pé métrico que não
mencionamos anteriormente que é a questão de eles tenderem a ocorrer em intervalos regulares. Temos, então, que os intervalos marcados no segundo nível
da grelha métrica tendem a ocorrer com aproximadamente a mesma duração.
9- Um aspecto que podemos notar na constituição do pé métrico é a não observância de
fronteiras sintáticas e morfológicas em sua formação. Como já mencionamos anteriormente, esse aspecto do pé métrico é coerente com o aspecto independente do ritmo em
relação às palavras.
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Isso constitui uma das características marcantes do pé métrico, em oposição ao
pé acentual, ou seja, o pé acentual é apenas uma característica de sílabas que
devem levar um acento na constituição das árvores métricas. Por outro lado, o
pé métrico faz referência à regularidade dos intervalos acentuais, a qual é uma
característica marcante de línguas de ritmo acentual como o português, inglês,
alemão.1110
5. A influência da velocidade no ritmo da fala
A presença das sílabas “∅” pode parecer apenas um construto teórico que não
tem nenhuma função em termos fonéticos. Porém, se observarmos alguns processos que ocorrem com o aumento da velocidade de fala, notaremos que esse
construto é capaz de fazer previsões claras do que pode acontecer em uma velocidade de fala rápida.
9)
x
x
x
xx x
x
x
x
x x
x
x
x
∅
o gato ∅ morreu ∅
x
Σs1211w Σsw Σs Σw Σs
w
s
w
w
w
s
s
R
10- Explicaremos adiante as questões teóricas e práticas relativas à tendência isocrônica
dos acentos nas línguas de ritmo acentual.
11- Optamos por considerar a sílaba zero presente em uma sílaba tônica silenciosa como
constituinte de um pé acentual, pelo fato de que em português as sílabas “s” devem
sempre ser atribuídas um pé acentual.
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Consideramos que a frase do exemplo 9, como formulada acima, é característica
de uma velocidade de fala lenta. No entanto, em uma velocidade rápida podemos obter uma estrutura como a mostrada no exemplo 10.
Como notamos na velocidade de fala rápida, a sílaba “∅” que formava um pé
métrico com a sílaba “mo-” foi preenchida por esta mesma sílaba (mo-), reduzindo, assim, o número de sílabas “∅” da árvore métrica. Como conclusão,
podemos dizer que as sílabas “∅” podem ser preenchidas por sílabas “reais”, se
for aumentada a velocidade de fala. Vemos, pois, que a presença dessa sílaba é
importante para uma representação teórica que se aproxima da representação
fonética, pois, em todos os casos, estamos representando sílabas que fazem parte da realidade física. Mesmo na velocidade lenta, onde parecem ocorrer sílabas
“inexistentes”, elas de fato existem e são representadas pelas pausas, que também são partes importantes na construção dos ritmos das línguas.
10)
x
x
x
x
x
x
x
x x
x
x
∅
u gat mo e ∅
Σs w Σs
w
x
Σw Σs
s
w
s
w
R
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As sílabas “ ∅” são chamadas por Giegerich (1985) de “sílabas zero1312” (zero
syllables). Essas sílabas são necessárias na constituição da árvore métrica, pois
todo nó deve ser “s w”, ou seja, cada pé métrico deve começar por uma sílaba
“s” associada a uma sílaba “w”. As sílabas zero “s” constituem, segundo Abercrombie (1965), Halliday (1970) e Giegerich (1985), um “acento silencioso”.
6. Análise rítmica de nomes próprios
Depois dessa breve análise dos princípios básicos do ritmo na Fonologia Gerativa Padrão e Fonologia Métrica, podemos mostrar como o programa de controle
motor da fala de Allen (1973) lida com alternâncias rítmicas em nomes como
Alexsandro. Consideramos que tal nome possui uma estrutura métrica superficial da seguinte forma:
11)
W
W
S
S1413
W
a
∅
S
l
S
W
S
W
k
sã
d
12- Os clíticos como “com, por, em, de” e os monossílabos são as principais palavras que
possuem “sílabas zero”, pelo fato de elas possuírem apenas uma sílaba em sua formação,
sendo, assim, incapazes de seguir o padrão dissílabo dos pés métricos.
13-����������������������������������������������������������������������������������
Os símbolos (W, S) correspondem a “weak” e “strong” do inglês. Optamos por utilizar abreviaturas dos termos em inglês por serem de largo uso dentro da fonologia métrica e para não haver confusão entre o “F” de “forte” e o “f” de fraco dessas estruturas.
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No entanto, percebemos que ocorrem transformações de ordem extralinguística que transformam essa estrutura superficial em uma das duas estruturas do
exemplo 12.
Podemos considerar a estrutura do exemplo 12(a) derivada de leis rítmicas que
fazem com que pés métricos, onde haja um “choque” (clash) entre acentos, alternem suas sílabas tônicas com um segmento anterior. Percebemos isso, pois os
pés métricos da estrutura subjacente possuem uma estrutura W S S, a qual foi
convertida para S W S, para dar uma perfeita alternância rítmica entre eles.
12a)
W
S
W
S
S
W
S
W
S
W
a
∅
l
k
sã
d
12b)
W
S
S
W
l
k
S
W
sã
d
Na estrutura 12(b) notamos que, em vez da alternância entre os pés métricos,
houve um apagamento de “a ” e uma subsequente reestruturação dos outros pés métricos. Nesse caso, parece haver uma lei rítmica que faz com que
pés métricos sem a parte fraca (W) sejam apagados. Notamos isso em outros
nomes, como Wellington, pronunciado como [.l.to], e Wallace, pronunciado como [a.la.s].
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Conclusão
Observamos nestes trabalhos que alterações rítmicas ocorrem na fala devido à
influência da velocidade de fala, conforme previsto pelo “programa de controle
motor da fala” (ALLEN, 1973). Há, porém, outros processos que ocorrem no
nível dos “movimentos articulatórios”, sobretudo devido a diferentes velocidades de fala. Temos um exemplo disso, em palavras como “aurora, Aurélio, automóvel”, que, em velocidade rápida podem ser pronunciadas como [.., ..
l, .t.m.ve]1514. Nessas palavras as vogais “a” e “u” se fundiram e se tornaram
“”. Isso pode ser explicado pelo movimento articulatório que se faz quando se
vai do “a” para o “u”. Grosso modo, podemos dizer que o “”, estando a meio
caminho entre esses segmentos, ocorre em velocidade rápida, onde não há espaço articulatório para a produção dos dois segmentos. Enfim, esperamos que
este artigo tenha contribuído para os iniciantes ao estudo da prosódia da fala,
especificamente nas questões sobre velocidade e ritmo da fala.
Referências
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Phonetics and Linguistics. Oxford: Oxford University Press, 1965.
ALLEN, G. Segmental timing control in speech production. Journal of Phonetics 1, p. 219-237, 1973.
CHOSMKY, N.; HALLE, M. The sound pattern of English. New York: Harper
and Row. Boston: MIT Press, 1968.
CRYSTAL, D. Prosodic systems and intonation in English. Cambridge: Cambridge University Press, 1969.
GIEGERICH, H. Metrical Phonology and Phonological Structure. Cambridge:
Cambridge University Press, 1985.
14-������������������������������������������������������������������������������
Notamos aqui que houve uma fusão entre as vogais “a” e “u” que se transformaram em “”. Esse processo de fusão de vogais é muito comum nas línguas do mundo.
Harris (1994), fala das vogais como constituídas por três elementos primitivos: A, I,
U. Para uma tentativa de verificação dessa proposta à luz da fonologia experimental,
ver Meireles (1998).
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HALLE, M.; KEYSER, S. J. English Stress: Its Form, its Growth, and its Role in
Verse. New York: Harper e Row, 1971.
HALLIDAY, M.A.K. A course in spoken English. Oxford: Oxford University
Press,1970.
HARRIS, John. English Sound Structure. London: Blackwell, 1994.
HOGG, R.; McCully, C. B. Metrical Phonology: a coursebook. Cambridge:
Cambridge University Press, 1987.
LIBERMAN, M. Y. The intonational system of English. Bloomington: Indiana
University Linguistics Club, 1978.
LIBERMAN, M.; PRINCE, A. On stress and linguistic rhythm. ��������������
Linguistic Inquiry 8, 249-336, 1977.
MAGALHÃES, J. O. de. Fonética, fonologia e fonologia experimental. In: MENDES, E. A. de M.; BENN-IBLER, V.; OLIVEIRA, P. M. (Org.). Revisitações. Belo
Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, v. 1, p. 157-162, 1999.
MEIRELES, A. R. O processo de fusão de vogais através de seus elementos
primitivos: A, I, U. In: VII Semana de Iniciação Científica, 1998, Belo Horizonte.
Anais da VII Semana de Iniciação Científica da UFMG, 1998. OHALA, J. J.; JAEGER, J. J. Introduction. In: OHALA, J. J.; JAEGER, J. J., Experimental phonology. Orlando, FL: Academic Press. 1 – 12, 1986.
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A IRONIA na construção do PROCESSO DE
CRIAÇÃO DE HUMOR: Uma análise de atos
de linguagem de confronto em tiras de
mafalda
Maria da Penha Pereira Lins1*
Resumo:
Para explicar os mecanismos que atuam na construção do ato de linguagem irônico, um fator bastante explorado diz respeito aos fenômenos discursivos que
fazem desencadear a ironia. Neste trabalho são analisadas tiras de quadrinhos,
com base nas noções teóricas da Semiolinguística, (CHARADEAU, 1983), com
a finalidade de observar os atos de fala de ironia nos diálogos da personagem
Mafalda com outros personagens do elenco de Quino. Serviram, ainda, de base
para a descrição do ato irônico pressupostos teóricos de Berrendoner (1988) e
Ducrot (1987).
Palavras-chave:
Introduzindo
L’ironie est un moyen raffiné de mettre
l’interlocuteur dans son tort, s’il avait la
mauvaise idée de s’ofusquer du procedé.
Alain Berrendonner
1*Professora Doutora do Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal
do Espírito Santo.
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O objetivo do presente trabalho é descrever os mecanismos discursivos constituintes do ato de linguagem irônico utilizados em tiras de quadrinhos, com
vistas à produção de humor.
As tiras de quadrinhos consistem em pequenas narrativas, estruturadas a partir
de dois códigos, o linguístico e o visual, e são publicadas diariamente em páginas internas de jornais, sendo, assim, presença cotidiana na vida dos leitores.
O caráter misto dos quadrinhos, por veicular a informação combinando dois
códigos, faz deles dados excelentes para estudos de atos discursivos, uma vez
que, além da análise da fala dos personagens, propicia, também, a análise dos
movimentos ocorridos dentro da situação comunicativa e das expressões fisionômicas e dos gestos.
Para este estudo, analisamos três tiras de quadrinhos, de autoria de Quino, com
histórias construídas em torno da personagem Mafalda.
As direções do nosso estudo estão centradas em uma perspectiva de análise
discursiva, a partir, principalmente, das noções da Semiolinguística. Essa abordagem do discurso considera o caráter psicossocial do ato de comunicação, levando em conta as enunciações e priorizando os sujeitos comunicantes.
As bases teóricas para a análise das tiras foram buscadas nos estudos de três autores, cujos estudos sobre o ato de linguagem irônico são de grande expressão
dentro do âmbito dos estudos de natureza discursiva. Serviram de base para a
análise: Berrendonner (1988), Charaudeau (1983) e Ducrot (1987). Procuramos
descrever o ato de linguagem irônico de cada tira, tendo como base os autores
citados acima.
No entanto, não tivemos o objetivo de desenvolver uma pesquisa aprofundada
do assunto – o que ultrapassaria nossas pretensões – mas de buscar atender a
uma curiosidade em torno do modus operandi na construção da ironia nas tiras
de quadrinhos de Quino.
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1. revisitando estudos sobre ironia
A presença constante da ironia no interior das interlocuções sociais tem sido
objeto de estudo de ciências como a Psicologia, a Filosofia, a Sociologia, a Linguística, entre outras. Na busca de explicar os mecanismos que atuam na construção do ato de linguagem irônico, um fator bastante explorado diz respeito
aos fenômenos discursivos que fazem desencadear a ironia.
A descrição desses fenômenos vai estar no âmbito da Linguística, mais precisamente na área específica da Análise do Discurso, que aliada às outras ciências
citadas, busca explicitar o funcionamento da linguagem na construção da ironia.
Especificamente em termos de pesquisas linguísticas, não são muitos os estudos
conhecidos sobre a análise dos mecanismos que atuam na construção do ato de
linguagem irônico.
Procurando fazer uma revisão bibliográfica que apresente explicação desses
mecanismos, selecionamos três, cujas teorizações se baseiam em noções que explicitam satisfatoriamente tais mecanismos diretamente ligados à produção da
linguagem irônica. São eles: Alain Berrendonner, Patrick Charaudeau e Oswald
Ducrot. É interessante citar um trabalho de pesquisa bibliográfica sobre ironia,
feito por Beth Brait, que mostra um percurso do estudo da ironia por diferentes
ciências e que centra suas análises no aspecto da interdiscursividade discursiva
constituinte da ironia.
1.1. BERRENDONNER: A ironia como paradoxo argumentativo
Berrendonner (1988) define ironia como a figura que leva a entender o contrário
do que se diz. O autor reporta-se à Retórica para explicar a ironia como “contradição lógica”, isto é, um enunciado irônico, em que uma proposição p, de uma
parte, e uma proposição q, de outra parte, em que p e q são simultaneamente
apresentados como válidos no engendramento da contradição e que obriga o
destinatário a escolher um dos termos; pois um deles representa o que realmenSABERES Letras
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te pensa o locutor, o outro é falso.
Para o autor, a ironia é entendida como um procedimento que superpõe a um
valor argumentativo dado o valor contrário. O fato de um enunciado poder
ter vários contrários leva Berrendonner a explicitar a definição, considerando
contrário “o valor argumentativo inverso”.
A especificidade das contradições irônicas é exatamente o seu valor argumentativo, que as distingue de outras formas quaisquer de contradição. Por valor argumentativo entende-se o seguinte: todo par de contradições (r, não r) permite
definir duas classes de enunciados: a classe Er de todos os argumentos em favor
de r, e a classe E~r de todos os argumentos em favor de não r. O valor argumentativo de uma proposição está em sua adesão a Er ou a E~r. As duas classes são,
normalmente, disjuntas, quer dizer que uma mesma proposição não pode, ao
mesmo tempo, servir para argumentar para um sentido e para o seu contrário.
Há uma lei de coerência discursiva fundamental, um axioma da lógica natural.
A ironia aparece justamente como uma infração a esta lei de coerência. O ato
irônico se produz dentro dos enunciados, entre Er e E~r. A ironia é, em primeiro
lugar, uma contradição argumentativa.
Berrendonner cita estudos de Sperber e Wilson (1978) para considerar a ironia
como fato de metacomunicação. O discurso irônico é concebido pela duplicidade enunciativa; o efeito do “jogo duplo”, que não é nada mais do que um nível
duplo de enunciação, ou seja, uma enunciação E1 a propósito de uma enunciação E0, anterior ou implícita, a qual se procura desconsiderar.
Dentro dessa perspectiva, a enunciação irônica se classifica no interior de uma
tipologia do discurso reportado. O autor ilustra a afirmativa com o seguinte
exemplo: “Que tempo soberbo!”, dito sob uma chuvarada abominável.
Esquematizando o exemplo acima, teríamos o seguinte diagrama:
E1 (D (E0 (Que tempo soberbo!))), em que E representa a operação de enunciação de um certo conteúdo proposicional e D a operação de referência denotativa
feita sobre um evento. Nessa tentativa de dupla enunciação E1 atualiza uma
proposição que representa um julgamento sobre E0.
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Uma característica importante do discurso irônico é que a responsabilidade daquele que faz a ironia sobre a produção da enunciação reportada é nula, ele não
tem que assumir os conteúdos que foram objeto da E0.
Compreende-se, então, que a ironia pode ser útil: se ela é, como sustenta o autor, um paradoxo argumentativo, ela permite, muito simplesmente, argumentar
sem ter que sofrer as consequências, isto é, sem se arriscar com fechamentos
isotópicos, nem com sanções que uma incoerência acarreta.
1.2. CHARAUDEAU: A ironia e os sujeitos comunicantes
A Semiolinguística, ao abordar a comunicação, aponta para o aspecto psicossocial dos sujeitos comunicantes. O processo enunciativo do ato de linguagem por
ela proposto é esquematizado com o seguinte formato:
Ato de linguagem
Circuito interno
JEc
JEe
TUd
TUi
ILx
ILo
Circuito externo
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O ato de linguagem constrói-se a partir de um circuito duplo que compreende
numa dimensão exterior, extralinguística, um sujeito comunicante e um sujeito
interpretante, dotados de intencionalidade e responsáveis pelo processo de produção e de interpretação e, numa dimensão interna, especificamente linguística,
um sujeito enunciador e um sujeito destinatário, desprovidos de intencionalidade e que constituem projeções, hipóteses construídas pelos sujeitos anteriores.
Essa relação dialética entre o processo de produção e o de interpretação do ato
de linguagem foi codificado por Charaudeau (1983) do seguinte modo:
Jec: o indivíduo real, o sujeito comunicante que cria um
Jee: sujeito enunciador, que é um “sujeito palavra”. É ele que é responsável pelos efeitos que o uso da linguagem pode ter sobre o sujeito interpretante (leitor
ou ouvinte). O Jee cria/fala/escreve para um
Tud: sujeito interpretante (destinatário) ideal. O objetivo do Jec/Jee é fazer com
que as interpretações deste destinatário ideal coincidam com as do destinatário
real, o
Tui: sujeito interpretante real, exterior ao texto, ao circuito interno da palavra.
Finalmente,
Ilx: representa o “mundo” falado/contado no circuito interno, um mundo que
tem a pretensão de ser um testemunho do
Ilo: mundo real.
A respeito disso, Machado (1995) afirma que a ironia verbal ou retórica não
existiria sem o ironista, sem o indivíduo histórico que a concebe. A autora utiliza-se dos termos de Charaudeau para esquematizar o fenômeno da ironia como
prática argumentativa. Veja-se, a seguir:
Jec assim fabrica a ironia:
Jec pensa não-p;
Jee diz p (Ilx) a Tud:
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Jee deixa escapar índices para que Tud perceba que sua enunciação não é
“séria” ou “direta”,
Ou que p = Não p;
Jec espera que Tui se identifique com Tud e perceba o seu jogo.
A autora explica que o ironista (Jec) que se manifesta através da palavra escrita
não tem, como quem a pratica oralmente, o apoio da rica linguagem gestual.
A situação de um escritor é pois delicada, porquanto, para passar o “tom” irônico, só conta com a ajuda de estratégias linguageiras. Para ter sucesso na sua
empreitada, o escritor-ironista deve fazer uma escolha judiciosa dos elementos
passíveis de provocar a expressão irônica. Assim, o ironista pode usar uma série de elementos figurativos (hipérboles, metáforas...) ou palavras que não são
“suas” ou que toma “emprestado” de outras vozes, de outros discursos e de
outras situações de comunicação. O “empréstimo” é bem favorável à eclosão da
ironia: as palavras do “outro”, usadas em novos contextos e por outros locutores, assumem um caráter duplo, “bivocal”, como diz Bakhtin. Se a intenção for
irônica, o “empréstimo” será usado para subverter o significado primeiro das
palavras do “outro”.
Para resumir o ato irônico de linguagem, Machado afirma que Jec, com a intenção de ironizar, usa certas palavras ou expressões modalizantes, inverte o
sentido de seu enunciado, etc., faz aparecer uma natural distância entre sua
voz e a voz que ironiza, no interior de seu ato de linguagem. O Jee irônico (ser
linguageiro) pode ser representado:
1. pela amálgama das vozes de Jec + Jee(s);
2. unicamente pela voz do(s) Jee(s).
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1.3. DUCROT: A ironia e a antífrase
Oswald Ducrot (1987) afirma que estão próximas as noções de enunciador e
a de centro de perspectiva. Estas duas noções servem para fazer aparecer no
enunciado um sujeito diferente não somente daquele que fala de fato [romancista/sujeito falante], mas também daquele de que se diz que fala [narrador/
locutor].
Para esclarecer a pertinência linguística da noção de enunciador, o autor descreve a ironia e, para isso, declara ter-se inspirado em Sperber e Wilson (1978) e em
Berrendonner (1981). Afirma que a ironia é frequentemente tratada como uma
forma de antífrase: diz-se A para levar a entender não-A, sendo considerados
idênticos o responsável por A e o por não-A. Desse modo, tratar-se-ia, então,
de uma figura, modificando um sentido literal primitivo para obter um sentido
derivado, a única diferença é que a transformação irônica é uma inversão total.
O autor informa que Sperber e Wilson rejeitam esta concepção figurativa. Para
eles, um discurso irônico consiste sempre em fazer dizer, por alguém diferente
do locutor, coisas evidentemente absurdas, a fazer, pois, ouvir uma voz que não
é a do locutor e que sustenta o insustentável.
A versão de Ducrot da tese de Sperber e Wilson sobre o discurso irônico fica
formulada através da distinção do locutor e dos enunciadores. Falar de modo
irônico é, para um locutor L, apresentar a enunciação como expressando a posição de um enunciador. Posição de que se sabe, por outro lado, que o locutor
L não assume a responsabilidade, e, mais que isso, que ele a considera absurda.
Mesmo sendo dado como responsável pela enunciação, L não é assimilado a E,
origem do ponto de vista expresso na enunciação. A distinção do locutor e do
enunciador permite, assim, explicar o aspecto paradoxal da ironia colocado em
evidência por Berrendonner: de um lado, a posição absurda é diretamente expressa (e não mais relatada) na enunciação irônica, e ao mesmo tempo ela não
é atribuída a L, já que este só é responsável pelas palavras, sendo os pontos de
vista manifestados nas palavras atribuídos a uma outra personagem E.
Ducrot distingue ironia de negação, afirmando que é essencial à ironia que L
não coloque em cena um outro enunciador, E’, que sustentaria o ponto de vista
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razoável. Se L deve marcar que é distinto de E, é de uma maneira totalmente
diferente, recorrendo, por exemplo, a uma evidência situacional, a entonações
particulares, e, também, a certos torneios especializados na ironia como “Que
ótimo!”, etc.
O autor esclarece que, por ter apresentado descrições bastante próximas da negação e da mentira, a diferença principal entre as duas é que na ironia a recusa
do enunciador absurdo é diretamente executada pelo locutor (e ligada a sua
entonação, a suas caretas, ao fato de que chama a atenção para elementos da situação que exigem imediatamente o ponto de vista apresentado, etc.), enquanto
que na negação, a recusa se dá através de um outro enunciador colocado em
cena pelo locutor e ao qual este, na maioria dos casos, se assimila. Na ironia, a
escolha de certas palavras (pelo locutor) tem como valor quase convencional
marcar a repugnância do locutor pelo ponto de vista de um enunciador que
ele apresenta – e que apresenta sem opor-lhe um ponto de vista concorrente. O
locutor quer marcar que tem opinião inversa.
2. apresentando Os dados
2.1. A imagem e a escrita nos quadrinhos
Os textos de quadrinhos apresentam uma modalidade própria de linguagem.
Operam com dois códigos de signos gráficos: a imagem e a linguagem escrita.
Há momentos em que o elemento visual assume todas as funções dentro da
narrativa. É o caso das histórias mudas. No caso das histórias com palavras, há
uma complementaridade entre o código visual e o linguístico.
Dos elementos que compõem os quadrinhos, o que dá mais dinamicidade ao
texto são os balões. Eles ampliam o nível de significação. Lyten (1985) lista, além
do mais utilizado, o balão-fala, outros como o balão-pensamento, balão-berro,
balão-cochilo, balão-trêmulo (medo), balão-transmissão (para transmitir sons
de aparelhos eletrônicos), balão-desprezo, balão-uníssono (que mostra a fala
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única de diversas personagens), balão-medo, e esclarece que palavras e expressões explicativas são economizadas pelos efeitos deste ou daquele balão.
A autora afirma, ainda, que, da mesma forma que os balões, as onomatopeias
completam a linguagem dos quadrinhos e lhes trazem efeito de natureza sonora. A onomatopeia surge associada a alguma figura ou situação e facilita a
interpretação ou induz a ela.
Moya (1977), falando sobre a inclusão de palavras no campo imagístico dos
quadrinhos, afirma que as palavras sofreram um tratamento plástico; passaram
a ser desenhadas; o tamanho, a cor, a forma, a espessura etc. tornaram-se elementos importantes para o texto. Assim, exemplifica ele: “Quando um personagem diz – Oba! e isto é escrito no balão com letras pequenas e miúdas significa
‘falando baixo, com cuidado’. Ao contrário, desenhada com letras grandes e
espessas, quer dizer ‘falando alto, muito exaltado’”.
A conjunção do visual com o linguístico faz do texto de quadrinhos a base ideal
para pesquisa linguística centrada na interação. O código visual supre lacunas
que, por acaso, possam ser deixadas pelo código linguístico e vice-versa. Em
referência a estudos sobre a ironia, a pesquisa feita somente a partir de textos
escritos, como no caso das piadas, a explicação da construção do ato de linguagem irônico acaba por se limitar, quase sempre, a explanações de ordem
semântica (antífrase, por exemplo). Já no caso dos quadrinhos, o próprio texto,
por ser constituído por dois sistemas de códigos, abre mais possibilidades para
a explicação do fenômeno da ironia e, em consequência, do humor, na medida
em que as pistas que sinalizam a ironia podem ser buscadas em ambos os códigos que compõem os quadros. Por esse motivo resolvemos trabalhar com tiras
de quadrinhos.
2.2. As tiras em análise
Para este trabalho selecionamos apenas três tiras de autoria do argentino Quino
(que publicou aproximadamente duas mil tiras): a tira 01 foi retirada do livro
intitulado Mafalda no jardim de infância e as tiras 02 e 03 do livro O irmãozinho de
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Mafalda, ambos compõem a coleção em que todas as tiras do autor foram publicadas. É um total de onze volumes, sendo que as tiras analisadas estão nos
volumes 1 e 6 respectivamente.
A opção por Mafalda se fez porque as tiras de Quino, de modo geral, revelam a
intenção de abordar a problemática social. Sugerindo críticas e levando a julgamentos, trabalhando com a ironia. Mafalda não é uma heroína. Antes, é a antiheroína. Não aparece para salvar pessoas ou resolver problemas, aparece para
criticar comportamentos e situações e pôr a sociedade em questionamento.
As tiras de Mafalda, apesar de serem de autor argentino e de terem sido concebidas no decorrer da década de 60 e início da década de 70, são interessantes
para análise porque tratam de questões que continuam atuais e, principalmente, porque a relação entre os personagens na interação apresenta uma dinamicidade resultante do trabalho visual na composição dos personagens, aliado à
força dos diálogos, presentes em quantidade nas tiras. Além disso, as tiras de
Quino continuam a ser publicadas até os dias de hoje, em quase todo o mundo,
o que comprova sua atualidade e pertinência.
2.3. O modo de análise
Em consonância com o arcabouço teórico da Análise do Discurso, mais precisamente a partir das noções da Semiolinguística, a análise das tiras de quadrinhos
a ser desenvolvida é de natureza qualitativa e interpretativa, no sentido de que
focaliza os atos comunicativos icônicos concebidos por Quino em todos os seus
aspectos, observando o linguístico e o não-linguístico, como também a relação
entre os personagens que participam das situações de comunicação, levando
em conta as circunstâncias em que as interações ocorrem, ou seja, conforme
Bastos (1993), a análise busca a coerência considerando o “mundo” no qual o
ato de comunicação está ocorrendo.
Na análise das três tiras de quadrinhos, buscamos descrever o ato de linguagem irônico, observando as considerações de Berrendonner (1988) sobre o valor
argumentativo das contradições utilizadas estrategicamente na construção da
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ironia e sobre a duplicidade enunciativa, ou seja, o duplo nível de enunciação.
Além disso, levamos em conta, também, o aspecto psicossocial dos sujeitos comunicantes, apontado pela Semiolinguística, cujo ato de linguagem foi codificado por Charaudeau (1983) e a distinção locutor/enunciador, feita por Ducrot
(1987).
3. Explicitando a definição de ironia
A ironia pode ser enfrentada como um discurso que através de mecanismos dialógicos
oferece-se basicamente como argumentação
indireta e indiretamente estruturada, como
paradoxo argumentativo, como afrontamento de ideias e de normas institucionais, como
instauração de polêmica ou mesmo como estratégia defensiva.
Beth Brait
No processo comunicativo entre os indivíduos, em sociedade, a ironia é geralmente utilizada quando um locutor deseja manifestar sua opinião ou emitir um
juízo de valor sobre algum fato ou sobre alguém a um dado destinatário. Esse
processo comunicativo irônico apresenta uma característica própria: o que o
sujeito falante quer transmitir não deve ser dito de modo “normal”, explícito,
direto. O ato de linguagem irônico consiste numa espécie de “contra-verdade”,
ou seja, consiste em “dizer o contrário do que se quer significar”, ou, ainda,
“significar mais do que literalmente se diz”. Nesse sentido, a ironia é vista, então, como uma argumentação baseada na antífrase.
Assim, com o objetivo de esclarecer, torna-se interessante fazer um paralelo entre mentira e ironia. Conforme Brait (1994 – p 49), com base em Kerbrat-Orecchione (1978, 1980), uma sequência irônica consiste numa construção em que
existe a presença de um significante recobrindo dois significados, como acontece na mentira, mas integrada, obrigatoriamente, por um índice, cuja função
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é sinalizar a ironia, diferenciando-a da mentira. A presença (ou ausência) do
índice está diretamente ligada à relação estabelecida entre emissor e receptor;
no caso da mentira, o enunciador desqualifica o enunciatário, enganando-o; no
caso da ironia, o enunciador qualifica o enunciatário como capaz de perceber
o índice e participar da construção da significação irônica. Ainda conforme a
autora, a diferença entre o ironista e o mentiroso reside no fato de que aquele
sinaliza de alguma maneira a mensagem para que o enunciatário reconheça sua
“não-sinceridade” e participe dela, percebendo a inversão semântica, enquanto
este procura apagar de sua fala todo traço de inversão, desqualificando o enunciatário, na medida em que tenta fazê-lo aceitar como verdade o que não é.
Em referência à questão ligada a “um significante para dois significados”, e
a “um índice propositalmente colocado pelo enunciador”, Brait cita, de novo,
Kerbrat-Orecchione para tocar no problema da articulação presença-ausência
que caracteriza a ironia, mencionando os conceitos de literal e de figurado, bem
como suas implicações teóricas, ligadas tanto à noção de norma e de intencionalidade, quanto às considerações enunciativas voltadas para as competências
presentes na produção-recepção da ironia.
Já Mendes (1994) remete-se ao domínio das enunciações polifônicas (Ducrot)
para esclarecer categorias do ato de linguagem irônico. Ele explica que há um
locutor e um enunciador como instâncias distintas, no sentido de que o falante
irônico “faz ouvir uma voz” da qual se distancia, mas a qual se sustenta pela
enunciação, isto é, o que é diretamente expresso num ato de fala irônico não é
assumido como ponto de vista do ironista (locutor), mas como se fosse o discurso de um outro (enunciador). O caráter absurdo desse discurso é que levaria o
ouvinte a inferir a sua significação irônica e, então, captar a intenção comunicativa do falante.
Desse modo, então, é a relação contratual entre locutor e alocutário, em termos
de “saberes partilhados”, que vai propiciar a compreensão da intencionalidade
irônica.
Reportando-se à noção de “mise-en-scène” do ato de linguagem propugnada
por Charaudeau, que compreende um duplo circuito: uma instância situacional
(circuito externo) e uma instância discursiva (circuito interno), o autor lembra
que, a partir disso, o locutor instaura um enunciador e um destinatário, consiSABERES Letras
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derando-se os papéis que os interlocutores vão desempenhar na comunicação,
com base no reconhecimento mútuo enquanto parceiros. Nessa relação interativa assimétrica, tanto o enunciador quanto o destinatário constituem desdobramento do locutor. Assim, num ato de linguagem irônico o destinatário aparece
como construção/projeção de um sujeito capaz de captar a intenção irônica. Esclarecendo: o sujeito interpretante deve identificar-se com o sujeito destinatário,
operando uma disjunção entre locutor e enunciador e assimilando a intenção
irônica. O ouvinte deve dissociar o ponto de vista do falante (o ironista) daquele
que é formalmente expresso no ato de fala tomado em sua literalidade.
Machado (1993) define a ironia como a intersecção de dois componentes de base,
o procedimento retórico, que se traduz por uma estrutura antifrástica, e o ethos
zombador. A ironia deve ser vista não somente como figura, mas também como
efeito de figura que remete aos diferentes valores da derrisão ou escárnio, os
dois movimentos se produzindo simultaneamente. Assim, a ironia se constrói a
partir da ambivalência que lhe permite ser ao mesmo tempo estrutura e efeito.
Perelman e Tyteca (1996), ao tratarem da ironia, a qual chamam de argumentação pelo ridículo, afirmam que todo esse rodeio de “dar a entender o contrário
do que se diz” se deve ao fato de a ironia representar um tipo de argumentação
indireta, que supõe conhecimentos complementares acerca de fatos, de normas.
Sendo um procedimento mormente de defesa, para ser compreendida, a ironia
exige um conhecimento prévio das posições do orador, que são postas em evidência pelo ataque.
Para os autores, a ironia é uma “sanção pelo ridículo”, uma espécie de arma
que deve ser utilizada contra aqueles que se atreverem a aderir, ou a continuar
a adesão, a duas teses julgadas incompatíveis, sem se esforçarem em remover a
incompatibilidade. Será ridículo não só quem se opõe à lógica ou à experiência,
mas também quem enuncia princípios cujas consequências imprevistas o põem
em oposição a concepções que são naturais numa dada sociedade e que ele próprio não se atreveria a contrariar. A oposição ao normal, ao razoável, pode ser
considerada um caso particular de oposição a uma norma admitida. Nesse sentido, julgam os autores, a ironia é, então, um recurso pedagógico.
Landowski (1995), estudando o humor e a ironia utilizados em charges políticas, afirma que o discurso irônico atinge o alvo, propondo um simulacro deterSABERES Letras
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minado e “negativo” de seu objeto; não é portanto apenas na medida em que a
imagem que ele propõe remete, contradizendo-a, a uma imagem inversa e “positiva”; é também na medida em que esse simulacro positivo pode ele próprio
aparecer como traduzindo o ponto de vista efetivamente adotado por terceiros,
individual ou coletivo, claramente identificável no interior de um contexto discursivo, às vezes muito próximo, às vezes muito distante. O ironista precisa em
todos os casos do “discurso do outro”, ou, em termos um pouco mais técnicos,
de um discurso de referência.
Para o autor, a vocação primeira da ironia é ser desmistificadora, e mesmo se
houver necessidade, denunciadora. O ironista faz a “denúncia ética”.
Berrendonner (1998) compreende que a ironia pode ser um procedimento útil:
se ela é um paradoxo argumentativo, ela permite, simplesmente, argumentar
sem se arriscar nem com fechamentos isotópicos, nem com as sanções que uma
incoerência pode acarretar. Ironizar é, assim, escapar de todo e qualquer risco;
é um artifício que permite frustrar o assujeitamento dos enunciadores às regras
de racionalidade e da conveniência públicas. Representa um meio – pode ser
único – de que o falante dispõe para se livrar de um constrangimento normativo, sem ter que sofrer as sanções pela infração cometida.
É interessante fechar esse ensaio de definição de ironia com a conclusão feita
por Berrendonner ao desenvolver estudo sobre o assunto: “Contra o ‘fascismo’
que Barthes, com uma hipérbole, ela mesma suspeita de ironia, recentemente,
reprovou nas normas da linguagem, a ironia de réplica ‘anti-fascista’. Porque
ela aparece na ordem da fala, como o último refúgio de liberdade individual”.
4. provocando pela ironia
O ridículo é a arma poderosa de o orador
dispõe contra os que podem, provavelmente,
abalar-lhe a argumentação, recusando-se, sem
razão, a aderir a uma ou outra premissa de seu
discurso.
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Machado (1993), estudando a ironia em cartuns brasileiros e franceses, fala de
ironia icônica. Para explicar o problema da estrutura antifrástica centrada num
código icônico, a autora se reporta às noções de in praesentia e in absentia. A ironia que se manifesta pelo icônico é, frequentemente, um caso de relação in praesentia. O desenho icônico pode mostrar ao mesmo tempo X (= sentido literal) e
não-X (= sentido figurado).
A autora explica que o cartum mostra um enunciado transmissor de uma mensagem organizada em torno de um referente; este enunciado permite a inclusão
de outro enunciado que vai agir sobre o referente para invertê-lo ou, ao menos,
para mexer com sua representação tradicional ou normal. O segundo enunciado assume uma forma de citação, dando margem à aparição de outro discurso,
cujas intenções são tendenciosas.
Desse modo, a ironia do cartum funcionará a partir de um desdobramento das
instâncias enunciativas, provenientes de discursos opostos. É justamente na associação destes discursos opostos, ou na exposição simultânea de duas posições
contraditórias, que será possível “ler” a antífrase icônica.
Em referência ao “ethos zombador”, que traduz o efeito da figura da ironia,
ele vai se situar na relação estabelecida entre o primeiro actante (o locutor) e o
segundo actante (o receptor da mensagem = leitor); os personagens do desenho
(terceiros actantes), na sua posição de vítimas da ironia, não percebem a situação em que se encontram. Como o cartum é “concentrado” em termos de espaço
visual, eles não têm tempo para captar o ridículo a que são submetidos. Assim,
a ironia que é apresentada no cartum é o procedimento que associa um componente lúdico a uma intenção brincalhona, mas com fins precisos de criticar algo
ou alguém.
Semelhantemente ao que acontece nos cartuns, as tiras de quadrinhos de Quino
representam um tipo de texto com objetivo de criação de humor e clara intenção
de criticar atitudes de alguém ou comportamentos de alguma instituição. As
tiras representam interações em que a personagem principal, Mafalda, aparece
contracenando com outros personagens (pai, mãe, professora, colegas de escola) e demonstrando a intenção de abordar a problemática social, sugerindo
críticas e levantando julgamentos; trabalhando com a ironia.
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Baseando-se nos termos da Semiolinguística e levando em conta o esquema do
ato comunicativo por ela proposto, podemos pensar, então, que o ato comunicativo das tiras de quadrinhos se faz a partir de dois processos comunicativos. O
primeiro ocorre entre os sujeitos comunicantes presentes nas historinhas encenadas nas tiras, isto é, as personagens; o segundo, entre o leitor e o autor do texto de humor. Ao compartilhar com o autor seus conhecimentos e experiências,
o leitor procura fazer as inferências e perceber a intenção do autor.
Nesta análise, vamos abordar apenas o processo enunciativo dos atos de linguagem irônicos levados a efeito a partir das interações entre as personagens
das tiras de quadrinhos, manifestados através dos textos escritos (as falas das
personagens) e da linguagem não-verbal (a gestualidade das personagens).
Na tira 01, abaixo, Mafalda contracena com o pai, criticando ironicamente a atitude dele de considerar que “não há desgraça pior que as formigas”.
Tira 01
Nos termos de Berrendonner, podemos considerar que há uma Enunciação1
(E1), que enuncia um conteúdo sobre as consequências trágicas de uma guerra. Essa E1 remete a uma Enunciação 0 (E0), representada pela fala do pai de
Mafalda que, com modos exagerados, considera as formigas a “pior das desgraças”. A E0 foi instaurada primeiro e é problematizada a partir da E1 que,
indiretamente, acaba por deixar transparecer uma crítica ou um juízo de valor
sobre a E0.
Na E1, a personagem Mafalda é apenas a portadora material do conteúdo manifestado na enunciação. Na verdade, ela assume como suas as palavras do radialista.
A superposição dos enunciados de E1 e E0 cria como efeito uma situação irôniSABERES Letras
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ca, na medida em que um entra em choque com o outro, no que concerne às estruturas de expectativas cristalizadas na sociedade. Na E1, a mensagem é organizada em torno de uma situação anormal: um pai de família desesperado, aos
gritos, rogando a Deus pelo que ele considera uma tragédia – as formigas – “a
pior das desgraças”. Os enunciados dessa E1 se contrapõem com o enunciado
da E0, a fala do radialista informando sobre o “saldo trágico de vítimas da guerra do Vietnã”. Na superposição desses enunciados, percebe-se uma inversão de
valores. O primeiro enunciado passa a ter um sentido social ridículo, na medida
em que traz à tona o exagero de considerar as formigas “a pior das tragédias”,
em presença da verdadeira desgraça que são os horrores de uma guerra. O fato
de Mafalda utilizar a fala do radialista contrapondo-a com a fala do pai dá lugar
a um discurso com intenção tendenciosa de criticar o pai. O discurso assumido
por Mafalda representa a contra-verdade em relação ao discurso do pai, e o fato
de uma filha, ainda mais de aproximadamente seis anos de idade, estar “chamando o pai para a realidade” leva o leitor a relacionar a situação com o desempenho de papéis que os indivíduos devem ter em sociedade e perceber a dupla
inversão de valores que deixa o pai em situação constrangedora. Mafalda, aqui,
argumenta pelo deboche e constroi uma ironia.
Machado (1993), quando analisa cartuns, observa que os personagens de desenho, que ela chama de terceiros actantes, na sua posição de vítimas da ironia,
não percebem a situação em que se encontram, pelo fato de os cartuns serem
“concentrados”, em termos de espaço visual, e, por isso, as personagens não
têm tempo para captar o ridículo a que são submetidos.
Nas tiras de quadrinhos, por serem estas organizadas por uma sequência de
quadros, pode haver espaço para a personagem ridicularizada perceber a situação de constrangimento em que foi colocada. Na tira 01, acima, isso acontece. O pai de Mafalda percebe o exagero da opinião por ele externada, o que é
mostrado através do código não-verbal, no quadro 4, pela expressão facial de
“envergonhado”, e, percebendo a lógica dos contrários, minimiza o grau de
constrangimento, considerando, agora, as formigas apenas “antipáticas”.
Fortalecendo o estudo, se analisarmos a tira 01, sob a ótica as Semiolinguística,
abordando o fenômeno argumentativo que considera a situação psicossocial
que envolve os sujeitos comunicantes e utilizando as noções de Charaudeau,
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podemos afirmar que Mafalda representa o Eu comunicante que fabrica a ironia
do seguinte modo. Ela “empresta” as palavras do locutor do rádio, dando a elas
um outro sentido. O ato de linguagem da personagem impõe uma troca de significação: as formigas não representam tragédia; a guerra, sim, é uma verdadeira tragédia. Ou seja, Mafalda, no papel de Eu enunciador (Eu e), usa o enunciado do Eu e – radialista (locutor segundo Ducrot) e realiza um ato de linguagem
em que “constroi” um Eu e que ironiza através de outro Eu e, isto é: Eu e + Eu
e. A estratégia consiste na mistura de informações “não-argumentadas” com
uma argumentação “tendenciosa”, a qual tem uma intenção oculta, ou mais ou
menos escondida, conforme percepção de Ida Lúcia Machado.
Na situação encenada na tira 01, diferentes informações são sobrepostas: a informação primeira, ou “de base”, é representada pela fala do pai sobre as formigas, e a informação “derivada” é a opinião de Mafalda, dada através da fala do
locutor da rádio. Essa informação derivada representa uma forma de argumentação indireta, porque coloca em cena julgamento de valor social sobre o comportamento do pai. Ao confrontar as duas informações, Mafalda, habilmente,
marca sua intenção tendenciosa.
É importante, também, notar a inversão de comportamentos na interação da
tira: o pai é quem deveria representar o indivíduo sensato, equilibrado, racional; a filha, por ser criança, é que poderia comportar-se de modo inadequado.
A crítica velada a “o pai estar se comportando como um indivíduo alienado” é
percebida através dos traços do desenho que figurativizam a expressão facial de
desconforto de Mafalda.
Landowski afirma que se o discurso irônico atinge o alvo, propondo um simulacro determinado e “negativo” de seu objeto, não é apenas na medida em que a
imagem que ele propõe remete, contradizendo-a, a uma imagem inversa e “positiva”; é também na medida em que esse simulacro positivo pode ele próprio
aparecer como traduzindo o ponto de vista efetivamente adotado por terceiros,
individual ou coletivo, claramente identificável no interior de um contexto discursivo muito próximo, às vezes mais distante. O ironista precisa em todos os
casos do “discurso do outro”, ou seja, de um discurso de referência.
Na tira analisada, há a desconstrução do simulacro-pai feita de um modo sutil,
discreto. Mafalda não explicita a destruição da face, deixa a cargo do leitor interSABERES Letras
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pretar. Flagrada a situação de ridículo, o pai tem, ainda, a chance de amenizar o
feito. A figura do pai, através de sua expressão fisionômica, de quadro a quadro
da tira, vai indicando, numa sequência tragicômica, a desmistificação do ídolo e
a conseguinte destruição de sua imagem social. De início, de boca muito aberta,
gritando, esbravejando; depois, com expressão pensativa de desconsolo. Inclusive, na medida em que a imagem social do personagem vai se degradando, os
quadros da tira vão sendo compostos com menos figuras, até o último quadro
em que o pai se encontra sozinho no centro do quadrado.
Nessa sequência, as imagens enunciam, corroborando a contraposição entre os
dois pontos de vista, a tensão entre uma visão anterior e uma visão posterior
do mito.
As oposições se constituem a partir, também, dos pontos de vista da criança e
do adulto. A criança (Mafalda) prioriza o “mal social” – as consequências da
guerra; e o adulto (pai) dá mais importância ao “mal doméstico” – a praga das
formigas.
Nesta tira é possível traçar um percurso passional do sujeito-pai: ele vai do teatral desespero (gritos, gestos e expressões fisionômicas) por causa de fatos miúdos, sem importância à vergonha e ao constrangimento. Esse percurso do personagem faz mostrar a vocação principal da ironia, que é ser desmistificadora
e, às vezes, denunciadora, e torna possível, ainda, a prática de um estilo irônico
mais desprendido, o da “denúncia ética”. Para Landowski, ao fazer a denúncia
ética, o ironista contribuirá para o fortalecimento da “boa consciência”.
Brait (1994) afirma que na definição de ironia há um aspecto que centraliza o
eixo produtor da ironia, é a tensão existente entre dois polos, ou seja, o do sentido literal e o do sentido figurado. Isso está diretamente ligado à idéia da ironia
como o discurso que pretende significar o contrário do que é dito literal ou explicitamente e que, nessa perspectiva, também está ligado à definição de ironia
como antífrase. Essa tensão entre literal e figurado permite perceber na ironia
que o que está atualizado em presença não pode ser compreendido a não ser
que se leve em conta uma ausência que de alguma forma ali ressoa por vias de
uma contextualização que sinaliza a confluência presença-ausência.
Na tira 02, abaixo, a tensão entre literal e figurado é o eixo central da ironia consSABERES Letras
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truída na interação entre o sujeito-professora e o sujeito-aluna.
Tira 02
A professora usa o termo pentágono em seu sentido literal, de dicionário, isto
é, significando uma figura geométrica de cinco lados. Afinal está sendo encenada uma aula de Geometria. Mafalda interrompe a professora, fazendo-lhe uma
pergunta que força o leitor a retornar à fala da professora e interpretar, em uma
segunda instância, o termo pentágono não mais no seu sentido literal (figura geométrica) mas, agora, num sentido figurado (sede do poder norte-americano),
o que cria um contexto novo e promove uma interdiscursividade. Na expressão
verbal e não-verbal da professora, o que está atualizado em presença só pode
ser compreendido se se levar em conta uma ausência que de alguma forma
ali está ressoando a partir da nova contextualização que se cria na confluência
presença-ausência. Em presença: a aula de geometria, o poder da professora,
a subordinação dos alunos; em ausência, uma outra situação de poder que se
contrapõe – a outra força, o outro lado. Na busca do equilíbrio, parece que o que
Mafalda quer é que o poder de decisão do que deve ser ensinado na escola não
seja apenas da professora, mas que haja a divisão igualitária de poderes, “só
para equilibrar”.
Ainda em referência à questão sobre o literal e o figurado no uso da ironia como
argumentação, há que se destacar a ambiguidade que é geralmente construída: o locutor simula alguma coisa na instância da literalidade, mas, de algum
modo, sinaliza para o receptor a simulação. Na tira 02, acima, Mafalda, ao falar
em Kremlin, está, na verdade, querendo levantar o problema do uso do poder
entre os indivíduos e entre as nações; o que há é um confronto de pressuposições ali implicadas.
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Brait cita Bange (1978) para argumentar que a ironia se produz no momento
em que pressuposições sobre o mundo são confrontadas e ambiguizadas numa
interlocução. Bange utiliza o conceito de pressuposição concebido por Ducrot,
para definir o modo de discurso irônico como sendo uma forma de destruição
indireta e implícita de um esquema de expectativa: “A ironia reside na reprise,
sob forma de pressuposto, de asserções e de pressuposições do interlocutor ou
de um terceiro (caráter citacional da ironia), reprise dissimulada que equivale a
uma rejeição implícita do mundo instituído pela citação”.
Na tira 03, a seguir, a construção do discurso irônico de Mafalda se faz através
de citação, cujo mundo de referência ela rejeita.
Tira 03
Ao responder, de modo agressivo, à mãe, dizendo que ela tem “fixação em Pilatos”, a personagem quer não só criticar a atitude da mãe de importuná-la a
todo momento para que lave as mãos (sentido literal), mas, também, rejeitar a
atitude de Pilatos.
A respeito disso, Brait repete Bertrand (1988) para afirmar que a ironia é “uma
citação, ou seja, o ironista convoca em seu enunciado, sob forma de alusão ou
de paródia, um universo axiológico (coletivo ou individual) estabelecido em
outros discursos e com o qual ele não compartilha”. Cita, também, Bakhtin,
para observar que as formas de recuperação do já dito com o objetivo irônico não assumem, como tal, a função de erudição, no sentido de invocação de
autoridade e muito menos de simples ornamento. Ao contrário, são as formas
de contestação da autoridade, de subversão de valores estabelecidos, que pela
interdiscursividade instauram e qualificam o sujeito da enunciação, ao mesmo
tempo em que desqualificam determinados elementos.
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Mafalda, ao citar Pilatos, não o faz para mostrar erudição ou conhecimento da
história do Cristianismo, ela o faz para rejeitar e repudiar atitudes como a dele.
Isso elimina a possibilidade de o leitor compreender a ironia no nível da frase,
mas a partir da apreensão de dois planos de enunciação.
Essas três tiras de histórias em quadrinhos de autoria de Quino nos dão uma
idéia de como o autor sabe se utilizar do discurso irônico com competência e
refinamento, argumentando no sentido de levar o leitor a refletir sobre as contradições sociais e operar sobre elas.
concluindo
O ridículo não mata o adversário, ele pode fazer vacilar as melhores reputações.
Eric Landowski
Neste estudo, tivemos o propósito de mostrar que o ato de linguagem irônico
é utilizado em tiras de quadrinhos, com vista a produzir humor e fazer crítica
social. Verificamos que Quino, autor das tiras de Mafalda, a põe nas interações
operando em atos enunciativos de modo a subverter o significado da fala dos
outros actantes das encenações, apresentando “contra-verdades” e sinalizando,
através de linguagem verbal e/ou visual, de modo a emitir críticas a comportamentos e atitudes e, ainda, juízos de valor, para o enunciatário que o seu ato de
linguagem não é “sério”, no sentido literal, mas, e por outro lado, é “sério”, no
sentido figurado.
Constatamos que ele constrói o efeito ironizante a partir de uma Enunciação1,
sobreposta a uma Enunciação 0, conforme descreve Berrendonner. Nessa suSABERES Letras
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perposição de enunciações, a presença de oposições nas tiras é resultado do
uso de citações, ou melhor, do uso do discurso do outro, utilizado de modo a
produzir um outro discurso, agora tendencioso, com tons de censura, de crítica.
Isto é, há um Eu enunciador que ironiza através de outro Eu enunciador, numa
composição de informações “não-argumentadas” com uma argumentação “tendenciosa”.
Verificamos, também, que na busca do efeito da ironia o ironista cria uma tensão entre o literal e o figurado, construindo uma ambiguidade que vai consubstanciar a “contra-verdade”. Essa “contra-verdade” é colocada juntamente com
sinalizações para que o enunciatário, a partir de um compartilhamento discursivo, capte a intenção tendenciosa.
Importante notar que nas tiras de quadrinhos de Quino fica claro que o enunciatário, apesar de ser colocado numa situação de constrangimento, não é desqualificado pelo enunciador. Ele não é enganado, ao contrário, ele é levado a refletir
sobre as situações que são objeto da ironia. Além disso, fica claro, também, que
o locutor não assume como dele o ponto de vista de um enunciador que ele
representa, fato que está ligado ao caráter citacional (interdiscursivo) da ironia.
Segundo Ducrot, na ironia, a recusa do enunciador absurdo é diretamente executada pelo locutor e ligada a sua entonação, a suas caretas, ao fato de que chama atenção para os elementos da situação que exigem imediatamente o ponto
de vista apresentado. Nos quadrinhos, por ser um texto construído a partir de
dois sistemas de códigos, o verbal e o visual, a observação desses elementos
torna-se privilegiada. Os recursos da linguagem dos quadrinhos, com seus traços significativos, suas onomatopeias, seus efeitos paralinguísticos facilitam a
percepção dessas sinalizações.
Consideramos que esse tipo de análise em dados como os de tiras de quadrinhos leva o pesquisador a tratar cada tira como uma situação de comunicação,
o que permite focalizar mais detalhadamente os atos de linguagens irônicos
nas relações comunicativas entre os personagens, a partir da busca das “contraverdades” e das sinalizações de oposições que marcam a presença da ironia que
produz o humor, gera a graça, leva ao riso e provoca reflexão.
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Referências
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A POESIA DE DRUMMOND E A CRÍTICA
LITERÁRIA: DAS DÉCADAS DE 1930 A 60
Maria Amélia Dalvi1*
Resumo:
Leitura crítica e comparativa de quatro textos paradigmáticos na ensaística
nacional que abordam a produção poética de Carlos Drummond de Andrade
que vai de Alguma poesia (1930) a Lição de coisas (1961), a saber, “A poesia de 30”,
de Mário de Andrade; “Sobre uma fase de Carlos Drummond de Andrade”, de
Antônio Houaiss; “Rebelião e convenção I e II”, de Sérgio Buarque de Holanda;
e “Drummond, mestre de coisas”, de Haroldo de Campos.
Palavras-chave: Carlos Drummond de Andrade. Crítica literária. Poesia
brasileira.
Em “A poesia de 1930”, Mário afirmou, de largada, categórico:
O ano de 1930 fica certamente assinalado na poesia
brasileira pelo aparecimento de quatro livros:
Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade;
Libertinagem, de Manuel Bandeira; Pássaro cego,
de Augusto Frederico Schmidt e Poemas, de Murilo
Mendes. Todos são poetas feitos, e embora dois deles
só apareçam agora com seus primeiros volumes,
desde muito que podiam ser poetas de livro. Mas
quiseram escapar dos desastres quase sempre fatais
da juventude. Se fizeram e fazem versos não é mais
porque sejam moços, mas porque são poetas.21
1* Licenciada e mestre em Letras, atualmente desenvolve pesquisa de doutorado em
Educação e Linguagens, pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Ufes, como
bolsista Fapes / Funcitec.
1- ANDRADE, 1974, p. 27.
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É esse o vaticínio que Mário fez para o amigo Carlos: poeta. E ser poeta, para Mário,
era resistir à varredura do tempo. Embora o próprio Drummond duvidasse,
modesto e matreiro, já velho e mais que consagrado, de sua permanência post
mortem (“Eu serei esquecido quinze dias depois da minha morte. Ninguém vai
se lembrar de mim, não. [...] Morto não badala, não dá entrevista, não canta, não
dança na televisão, não diz palavrão. Um sujeito morto já não interessa. Quinze
dias depois de eu estar morto, ninguém se lembrará de mim”, segundo Otto
Lara Resende32), Mário de Andrade, antevendo que, fosse qual fosse o vendaval,
a poesia de Drummond permaneceria, o contrapõe aos outros três – dois deles
poetas então já conhecidos – para dizer, através de exemplos, que era “o mais
rico em ritmo destes quatro”.
No entanto, para nós aqui, mais que ressaltar as sutilezas intuitivas e analíticas
de Mário de Andrade, interessa sistematizar os traços que arregimentou para
delinear um perfil do livro de estréia de Carlos Drummond de Andrade, no
qual, uns tantos crêem, já está anunciado desde o “Poema de sete faces” o
projeto poético drummondiano43.
São, segundo Mário, traços do primeiro livro de poemas de Drummond: “um
individualismo exacerbado”; um “indivíduo excessivamente tímido”; uma
rítmica “inaferrável, disfarçadora”; “uma riqueza de ritmos muito grande, mas,
psicologicamente, quase desnorteante”; um “compromisso claro entre o verso
livre e a metrificação”. E o crítico-amigo vai além, lendo os traços formais que
detecta tendo em mente o sujeito-poeta: “o emprego da metrificação provém,
nele, de uma vontade íntima de se aniquilar, de se esconder, de reagir por meio
de movimentos ostensivamente cancioneiros e aparentemente alegres e cômicos
(...) contra a sua inenarrável incapacidade de viver”; e conclui, com o mesmo
misto de gentileza elogiosa e puxão-de-orelha dissimulado com que recheou a
maior parte de suas lições destinadas, em carta, ao então jovem mineiro:
Para ele se acomodar, carecia que não tivesse nem
a sensibilidade nem a inteligência que possui. (...)
Mas Carlos Drummond de Andrade, timidíssimo, é,
2- Apud MORAES NETO, 1994, p. 63.
3- Ver,
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a este respeito, por exemplo, “A herança modernista nas mãos do primeiro Drummond”, de Iná Camargo Costa, em COSTA, 1995, p. 307 a 318; e Metamorfoses de um
sujeito – o Farewell drummondiano, de Alfredo Carvalho Sampaio, em SAMPAIO, 2002,
p. 14 a 30 e 59 a 63.
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ao mesmo tempo, inteligentíssimo e sensibilíssimo.
Coisas que se contrariam com ferocidade. E desse
combate toda a poesia dele é feita. (...) Poesia feita de
explosões sucessivas. (...) A sensibilidade, o golpe de
inteligência, as quedas de timidez se interseccionam
aos pinchos.54
De Mário de Andrade, leitor de Drummond na década de 30, nos fica, então:
a poesia drummondiana se fazia de explosões sucessivas, pois aspectos fortes
se contrariavam com ferocidade. Noutras palavras, sua poesia fomentava-se a
partir de dicotomias (não necessariamente estéticas); distinguia-se da de outros
contemporâneos pela riqueza rítmica, pela preocupação formal, que serviria
não apenas à arte, mas, antes, à “inenarrável incapacidade de viver” de seu
autor.
Todavia não é apenas o amigo Mário quem aponta na poética do amigo Carlos o
evidente entrelaçamento do estilo ao sujeito ou vice-versa. Diz também Antônio
Houaiss: “No poeta (...), o indivíduo, por instantes, opõe-se à sociedade –
consciente ou inconscientemente – e, com os mesmos processos da língua social
– também consciente ou inconscientemente –, cria os seus valores individuais,
sua língua-indivíduo: estilo”65. Assim, evidencia-se uma quase unanimidade
entre as abordagens críticas até pelo menos a década de 60: a necessidade de
ler a poesia de Carlos Drummond de Andrade à luz de sua pessoa, de sua
“função social [e, portanto, de sua figura pública] de poeta”76. E digo mais: há
a necessidade de comentar a poesia drummondiana sempre generosamente,
como se um ponto de vista com maior acirramento crítico pudesse ofender ao
sujeito gentil a quem todos – ou quase – temiam magoar.
4- ANDRADE, 1974.
5- HOUAISS, 1960, p. 49.
6- �����������������������������������������������������������������������������������
Silviano Santiago, por exemplo, assinala que “Drummond quis dizer ali [em sua última entrevista, a Geneton Moraes Neto, poucos dias antes de morrer] que há duas coisas:
uma é o poeta como produtor de poesia (...). [Outra,] uma espécie de poeta com uma função social dentro da sociedade – sobretudo uma sociedade de espetáculo como a nossa”,
apud MORAES NETO, 1994, p. 132 e 133. Antes dele, Otto Maria Carpeaux já dissera que
Carlos Drummond de Andrade “era o primeiro grande ‘poeta público’ do Brasil”, apud
HOLANDA, 1996, p. 501.
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Embora o próprio poeta tivesse consciência da irregularidade do valor estético
de sua poesia, a crítica em geral lhe foi generosa, pelo menos até a década de 60,
quando o novo paradigma instaurado pela poesia concreta e por seus poetasteóricos exigiu uma drástica reformulação dos critérios de análise e julgamento87.
Exemplo disso, digo, da generosidade da crítica, é o texto “Sobre uma fase de
Carlos Drummond de Andrade”. Nele, Antônio Houaiss afirma:
(...) o poeta Carlos Drummond de Andrade se coloca na
posição mental generalizada a partir dos simbolistas:
a proscrição, não apenas como deliberação, mas como
necessidade axiológica, dos clichês, do vocabulário
convencionalmente próprio. Mas, além dessa atitude,
há nele aquela outra, que principia com os modernistas,
generalizadamente: a inclusão de um vocabulário
universal e personalíssimo, sem limitações musicais,
rítmicas, conceptuais, sociais, eufêmicas...98
Como se vê, nos anos 40, era motivo de comemoração e mesmo louvor para
a intelligentsia que o poeta rompesse com os “dogmas poéticos” vigentes préabalo modernista, e que o fizesse de modo radical109. Na sequência, consciencioso,
Houaiss destaca que “a teoria da palavra do poeta principia em forma negativa,
demolidora, [já] no Alguma poesia”1110 e que é “essa atitude demolidora que o leva
às afirmações combativas [de humor e ironia, negativismo às avessas] (...) de
7- Haroldo de Campos, por exemplo, comentando Lição de coisas (1962) elogiosamente,
vê como imperativa, todavia, uma ressalva: “Não que em Lição de coisas tudo conte.
Várias coisas não contam e podem ser descartadas: certa poesia comemorativa e/ou memorial (inclusive uma esporádica recaída no soneto); certos poemas ‘padrescos’ que se
salvam pelo fio fino do humor; alguma insistência no ‘discurso maior’. Mas o que conta,
além de numeroso, é, principalmente, fundamental.”, CAMPOS, 1992, p. 55.
8- HOUAISS, 1960, p. 50.
9- Sérgio Buarque de Holanda diz, em aparente louvação, que “nos antípodas desse ideal [do
poético como sinônimo de bonito, de linguagem e temática estereotipadas – tal como defenderam Domingos Carvalho da Silva e amigos, mesmo pós-abalo modernista] é que vamos
encontrar a poesia do sr. Carlos Drummond de Andrade”, HOLANDA, 1996, p. 505.
10
HOUAISS, 1960, p. 51.
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quem aceita a derrota no social, pois só lhe interessa a vitória no individual”1211.
(Mais uma vez, note-se, emerge a necessidade de ler Drummond a partir de sua
persona pública: individualista, recatado, solitário, tímido, embora vez e outra
irônico, galhofeiro, cáustico.)
À frente, o crítico assinala a gestação de um novo poeta a partir de Sentimento do
mundo (1940), poeta este dado à luz em José1312(1942): poeta da “incomunicabilidade
da poesia”, do “hermetismo que a crítica tenta devassar”, da “renovação eterna
da palavra”. E, para Houaiss, a possível teorização de Drummond acerca de
sua poesia naquele momento estaria dada em “O lutador”, tal como, em fase
anterior, estivera dada em “Poema de sete faces”.
Talvez esta possível teorização pudesse ser assim condensada:
(...) a palavra cria o pensamento. Nesse ato difuso e
impenetrado de mentar – atividade psíquica de todo
instante –, está o primeiro esforço de gestação poética;
não tem forma, que adquire com as palavras que lhe
dão conteúdo; mas na sua virgindade original não as
aceita, porque não se verifica justaposição; o poeta
menta fidedigna, autêntica, individualmente; mas
existe, socialmente, a relação de justaposição – nunca
de todo coincidente – entre significado e significante
lógico, afetivo, prático; assim, o poeta tem os
significantes potenciais no vocabulário, no dicionário;
a relação de significação potencial na língua; com isso,
enche, preenche sua língua individual (...). Essa face
neutra, erma de melodia e de conceito, é, entretanto,
uma abstração1413.
Por fim, encerrando o artigo escrito ainda em 1947, Antônio Houaiss enfatiza a
existência de três traços distintivos da poética de Carlos Drummond de Andrade
11- HOUAISS, 1960, p. 52.
12- Também
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pensa assim José Guilherme Merquior que, em Verso universo em Drummond, divide a lírica de Drummond em quatro fases distintas, inaugurando-se a segunda fase, na opinião do crítico, com José; a terceira, com Claro enigma; a quarta, com Lição
de coisas. Conferir MERQUIOR, 1976.
13- HOUAISS, 1960, p. 60 e 61.
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– que à frente seriam assinalados também por outros críticos, entre eles Emanuel
de Moraes, em Drummond rima Itabira mundo1514: o trabalho inusitado, criativo,
com o vocabulário da língua, jogando com o eruditismo e com o coloquialismo;
a repetição de finalidade expressiva; as associações lúdicas humoradas e/ou
irônicas, muitas vezes deslocadas, antitéticas.
De Antônio Houaiss, leitor de Drummond na década de 40, nos fica: o poeta
mineiro, coerentemente com seu tempo, proscreve clichês e vocabulário
convencionalmente próprios à poesia, para prescrever, em seu lugar, um
vocabulário universal e personalíssimo; esta inovação passaria pelo trabalho
inusitado com o léxico, pelas repetições expressivas esteticamente (acentuando
o caráter dramático de muitos de seus poemas) e pelas associações e
aproximações inesperadas. O crítico já vê duas fases: uma anterior e outra
posterior a José (1942).
Se ambos, Mário de Andrade e Antônio Houaiss, destacam na obra do amigo
Carlos a inovação no plano formal (compromisso com a metrificação e o verso
livre; ritmo inovador; estilo pessoal construído a partir de uma relação lúdica
com as tensões entre o vocabulário e as temáticas; etc.) – inovação mesmo em
relação aos modernistas seus contemporâneos –, ambos, da mesma forma, são
unânimes em detectar, no primeiro Drummond, um abismo aparentemente
intransponível entre o poeta de dicção pública e o sujeito tímido, mordaz.
Todavia Houaiss já pressentia, parece, que o investimento na resolução deste
conflito renderia ao poeta sua fase ou face mais incensada pela crítica – de A rosa
do povo (1945) a Claro enigma (1951).
O desejo, no Drummond maduro, de superação dos contrários apontados pela
crítica precedente vai valer elogios rasgados de Sérgio Buarque de Holanda:
(...) como quer que seja, o falsete lírico (...) requer do
autor uma atitude e uma visão bastante prevenidas
em face das coisas, das criaturas, de si mesmo. É,
em suma, um processo que serve para dar freio
às expansões muito íntimas e vivazes, e que, em
momentos agudos, chega a converter o puro lirismo
em seu antípoda, o humorismo puro.
Contudo,
uma
sábia
dosagem
que
permita
14- Cf. MORAES, 1972.
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equilibrarem esses termos antagônicos nunca é
mortal para a poesia verdadeira, tanto é certo que
esta costuma definhar na pureza e na soidade, e que,
por outro lado, só pode ganhar em altitude quando
na vizinhança de seus inimigos mais íntimos. A boa
poesia não se mantém por longo tempo em estado
simples. E, entre nós, o mestre consumado na arte de
misturar os contrários é um poeta: Carlos Drummond
de Andrade1615.
Vale notar a insistência: Drummond, mais uma vez, é apontado como “mestre
consumado na arte de misturar os contrários”. E se quer esclarecer o porquê,
em “Rebelião e convenção I”, texto de 1952, imediatamente após o terremoto
provocado por Claro enigma:
(...) [Otto Maria Carpeaux disse certa vez que Carlos
Drummond de Andrade] era o primeiro grande
“poeta público” do Brasil, o único comparável à
moderníssima corrente da poesia inglesa.
(...) No entanto, quando a “moderníssima corrente” a
que aludiu o crítico não nos parece sequer moderna,
quando aqueles mesmos, que tão admiravelmente
a representaram, não respondem mais aos apelos
do “fato exterior” (...), o menos que delas se poderá
dizer é que são de uma flagrante inatualidade.
Vista da distância em que nos achamos, aquela
poesia “pública” parece nascida de uma compulsão
momentânea e efêmera. (...)
Tanto isto é exato que o poeta entre nós do “sentimento
do mundo”, nosso maior “poeta público”, tendo
sofrido a mesma compulsão ou participado do mesmo
equívoco, acabou seguindo por conta própria (...) uma
trajetória em tudo semelhante à deles. (...)
Há de iludir-se, porém, quem veja nesse aparente
desapego ao “acontecimento” o reverso necessário
de alguma noção transcendental da poesia: poesia
entendida como essência inefável, contraposta ao
mundo das coisas fugazes e finitas. (...)
15- HOLANDA, 1996, p. 465.
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O exercício ocasional de um tipo de poesia militante
e contenciosa terá servido para purificar ainda mais
uma expressão que já alcançara singular limpidez.
Mas o impulso que o levaria a superar essa poesia
militante não chegaria nele a abolir a preocupação
constante do mundo finito e das coisas do tempo1716.
Transparece, no contexto, que Holanda, para “livrar a cara” de nosso “grande
poeta público”, quase que pede desculpas pela nova face drummondiana,
visivelmente muito mais formal, na qual se divisa um apuro estético ainda
superior à produção precedente. Para tanto, insiste além do necessário na tese
de que mesmo em Claro enigma – “apesar” de uma voz estética que se quis dar a
ver canônica, clássica – há a fusão de contrários, e contrários gritantes tais como
a noção transcendental de poesia e a noção de poesia militante e contenciosa.
Afirmar Sérgio Buarque de Holanda que o exercício da poesia militante e
contenciosa teria servido à purificação da expressão poética é dar, por vias
tortas, respaldo à leitura do todo da produção poética drummondiana como
um projeto. O exercício da poesia militante e contenciosa teria funcionado,
subentende-se, como uma etapa, um degrau necessário para o acesso à poesia
de maior “limpidez” – e mesmo esta, se “límpida”, antitética, pois poesia de
“preocupação retórica”, (todavia) mais rica em “substância emotiva”. Partindose de um raciocínio suspeito, pode-se quase depreender do texto de Holanda
uma vontade de enxergar Claro enigma não como uma ruptura, mas como uma
“passagem de nível”.
Esta possível tese – a da não-ruptura, antes da continuidade – de algum modo
teria o mérito de haver prenunciado com espantosa antecedência o trabalho de
Vagner Camilo, de quase meio século depois. Em Drummond: da rosa do povo à
rosa das trevas, Camilo afirma que a dita guinada classicizante de Claro enigma
estava “prenunciada pela magra antologia de 1948, intitulada Novos poemas”1817,
pois defende que “o livro de 48 parece querer encenar o movimento de passagem
16- HOLANDA, 1996, p. 501 e 502.
17- CAMILO, 2001, p. 17.
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entre uma poética e outra, bem como as razões que a motivaram”1918.
Facilmente defensável hoje ainda a maior parte da argumentação de Holanda,
somos forçados a considerar, todavia, que o exercício da poesia engajada não
foi apenas “chave de acesso” (tanto é que, mais à frente, ainda no mesmo texto, o
próprio Holanda reconheceu que, em Drummond, “o prosaico não é negação, é
antes condição de ‘poético’”2019), assim como o exercício da poesia não-engajada
nunca foi mero exercício narcíseo.
Pode-se, então, sugerir que um dos últimos “bastiões” – Sérgio Buarque
de Holanda – da chamada “crítica impressionista” se ressente do golpe
drummondiano: quando todos (a começar, como vimos, por Mário de Andrade
e Antônio Houaiss) se comprazem tranquilos, seguros, na rebelião modernista
contra as formas engessadas da poesia mais tradicional herdeira do sistema
beletrista, Drummond passa a perna na crítica, e instaura um novo legado. E
enquanto este novo legado não fosse suficientemente digerido convinha que os
mais lúcidos amainassem, amortecessem o choque, e repetissem à sua maneira o
diagnóstico de Manuel Bandeira, em Apresentação da poesia brasileira: “é esse feliz
enlace de tendências à primeira vista contrastantes como um jogo automático
de alavancas de estabilização”2120.
Talvez, no afã de se criarem rotas para a nova poesia drummondiana então
nascente, se traçaram mapas bem úteis, contudo em escala imperfeita. Oscila-se
entre dizer que a) Drummond conjuga habilmente contrários; e b) que, ao mesmo
tempo, abandona, conscientemente, o humanismo (excessivo?) das primeiras
obras, diluído “numa ‘ingaia ciência’ de madureza”2221. Dito de outro jeito: ora se
afirma que Drummond em sua fase social lapidou os dotes de poeta para a fase
seguinte, mais formal, seguindo uma espécie de projeto de ascensão – nunca
claramente explicitado –, delineado a partir das demandas do tempo; ora se
afirma que a “essência” da poesia drummondiana enraíza-se em “um estranho
travo ancestral, vindo do fundo dos séculos (...), revogando ou sublimando a
18- CAMILO, 2001, p. 20.
19- HOLANDA, 1996, p. 502.
20- BANDEIRA, 1958, p. 1110.
21- HOLANDA, 1996, p. 507.
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atração constante das coisas do tempo”2322.
De Sérgio Buarque de Holanda, leitor de Drummond na década de 50, nos fica:
se, na poesia de Drummond, a fase dita social lapidou dotes estéticos para a
fase dita absenteísta, a superação da poesia militante não aboliu, contudo, a
preocupação com as coisas do mundo finito e do tempo presente – donde se
extrai já uma dificuldade da crítica em organizar a produção do poeta sob um
único rótulo ou mesmo sob rótulos dicotômicos, antitéticos.
Consoante ao diagnóstico de Antonio Candido, em “Inquietudes na poesia de
Drummond”, texto pouco mais tardio, é o de Haroldo de Campos. Também
ele vê em Lição de coisas um reencontro do poeta com “as matrizes de sua
poesia, ainda coladas a 22”2423. Porém, esta retomada, para o crítico, não seria
casual e nem, tampouco, catapultada por acontecimentos de ordem meramente
pessoal, individual ou subjetiva, como talvez esteja implícito no texto de
Antonio Candido. Esta retomada, antes de qualquer coisa, seria ponto-chave
em um projeto estético drummondiano (aí sim, dentre outras coisas, um projeto
entrelaçado à história particular – e a noção de projeto, aqui, tomada, com
Haroldo de Campos, de empréstimo a Décio Pignatari): reencontrar as matrizes
de sua poesia visando a retraçar – retomando-o – “o percurso de sua obra-emprogresso, apenas interrompido pela estação neoclassicizante de Claro enigma
(1951)”2524.
Agora é que posso cavar mais funda uma diferença: se Haroldo de Campos viu
em Claro enigma uma interrupção do projeto drummondiano, Antonio Candido
viu, antes, ali, uma etapa formativa tão importante quanto outras. A munição
vem do próprio Haroldo de Campos:
Drummond é antes de mais nada um maker, um
‘inventor’ (nele ‘tudo é palavra’, já observou Décio
Pignatari), e, por isso mesmo, há nele essa capacidade
rara de transferir mesmo as efemérides mais íntimas
para o horizonte do fazer, de celebrá-las (...) em criação
22- HOLANDA, 1996, p. 509.
23- CAMPOS, 1992, p. 51.
24- CAMPOS, 1992, p. 51.
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(...), que deve ser, aliás, em poetas como ele, o secreto
exercício para a perene juventude do espírito.2625
Na condição em que se pôs – de maker, de inventor e, mais, de poeta de perene
juventude de espírito –, o poeta não quis, nunca, fazer de sua obra-em-progresso
um conjunto previsível, menos ainda linear, homogêneo. Para um inventor
“profissional”, não há, não pode haver, invenções mais ou menos nobres.
Todas são, devem ser, tratadas “profissionalmente”, e não com o amadorismo
de quem quer tão-só projetar-se, reproduzir-se em forma de obra: há que se
estar preparado para o maior número possível de possibilidades, e mesmo de
impossibilidades.
No momento, as ressalvas a “Drummond, mestre de coisas”, ficam suspensas.
O texto é suficientemente lúcido, e é dos primeiros a enxergar na multifacetação
drummondiana uma coerência não-ingênua, não simplesmente antitética. A
lucidez a que me refiro se mostra, por exemplo, quando o poeta-crítico reconhece
em Drummond a valentia que faltou a muitos poetas coetâneos: “[em Lição de
coisas] CDA atira mais uma vez para diante o marco limiário de sua poesia e,
com ele, o da poesia brasileira”2726; e quando diz que:
(...) neste livro dos sessenta anos [Lição de coisas], o
poeta reassume sua constante dialética, mais autêntica
(o seu “Projeto” como formulou Décio Pignatari),
fazendo, concomitantemente, poesia de reflexão crítica
e poesia de participação, ou, como nos agradaria dizer,
poesia-poesia e poesia-para. Os acontecimentos voltaram
a “ofendê-lo” (é o que se lê na introdução do livro)
e, sob o impacto deles, dissolveu-se feito uma bruma
o ennui absenteísta de Claro enigma. A reabertura
à “matéria do presente”, aos novos conteúdos do
presente problemático e contundente, significou mais
uma vez, neste poeta paradigmal, a insatisfação com
o repertório formal fixado pela tradição e, pois, uma
reabertura recíproca às novas formas provocadas por
25- CAMPOS, 1992, p. 49 e 50.
26- CAMPOS, 1992, p. 52.
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esse presente. Nisto sua poesia é isomórfica ao seu
sentimento do mundo.2827
Se se pode fazer uma ressalva, agora, ao texto de Haroldo de Campos, é o fato
de, tendo compreendido a importância da etapa “formativa” de Claro enigma
(“esta pausa – não fosse Drummond quem é – revelou-se, porém, não como
uma demissão das conquistas anteriores, mas como uma tomada de impulso –
premeditada ou não, pouco importa – para um novo arranque qualitativo”2928),
não havê-la também identificado em “certa poesia comemorativa e/ou memorial
(...); certos poemas ‘padrescos’ que se salvam pelo fio fino do humor; alguma
insistência no ‘discurso maior’”3029.
De Haroldo de Campos, leitor de Drummond na década de 60, nos fica, então:
a lucidez de haver estendido as primeiras notas de Sérgio Buarque de Holanda
– aliciando para Drummond, explicitamente, o rótulo de “dialético”, em vez
do de “antitético” – e a impressionante precisão de haver captado o todo da
produção poética drummondiana, até então, como uma obra-em-progresso.
Para aproveitar o gancho que Candido me dá, não posso deixar de dizer de uma
inquietação que me assalta todas as vezes em que penso nos textos de Mário de
Andrade, Antônio Houaiss, Sérgio Buarque de Holanda e Haroldo de Campos
em seu conjunto. Lidos os textos críticos selecionados e considerados, estes,
representativos do que se produziu a respeito da poesia de Drummond desde
o lançamento de Alguma poesia à década de 60, soa bastante evidente – mas até
agora não devidamente considerado – que há uma consonância surpreendente
entre as vozes críticas; consonância essa que se sustém, ainda, em outros estudos
posteriores, conforme se pode ver em Drummond, do corpo ao corpus: O amor
natural toma parte no projeto poético-pensante3130.
Credito tal consonância ao fato de que Carlos Drummond de Andrade, como
poeta público, foi “criado” por Mário de Andrade, ainda em 1930. Não que
tenha permanecido preso a isso, ao contrário. A crítica, salvo honradas e mesmo
27- CAMPOS, 1992, p. 53 e 54.
28- CAMPOS, 1992, p. 52.
29- CAMPOS, 1992, p. 55.
30- DALVI, 2009.
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numerosas exceções, é que se engessou – como se da década de 60 para cá
Drummond não devesse ser reinventado ainda dezenas de vezes.
Se, à maneira de Merquior, podemos enxergar em Drummond ao menos 4 fases
poéticas (de Alguma poesia a Sentimento do mundo; de José a Novos poemas; de
Claro enigma a A vida passada a limpo; de Lição de coisas em diante), penso que
podemos enxergar ao menos 3 fases da crítica, que nem sempre acompanharam
as transformações estéticas gestadas pelo poeta: uma fase “antitética”, que vê
nos pares de oposição conflitos (fase que inicia com Mário e afeta inclusive
Candido); uma fase “dialética”, que vê nos pares de oposição sínteses (fase que
inicia com Holanda e alcança, por exemplo, Haroldo); uma fase que não pensa
em antíteses ou sínteses, mas em analogia – ou mesmo isomorfismo – entre
a criação poética e o mundo (penso, por exemplo, no texto “Drummond e o
mundo”, de José Miguel Wisnik – e em trabalhos como os de John Gledson,
especialmente Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade e Influências e
impasses: Drummond e alguns contemporâneos, e Vagner Camilo, especialmente
Drummond: da rosa do povo à rosa das trevas).
Referências
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São Paulo: Martins, 1974, p. 26 a 45.
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Janeiro: Aguilar, 1958, v. 2.
CAMILO, V. Drummond: da rosa do povo à rosa das trevas. São Paulo: Ateliê,
2001.
CAMPOS, H. de. “Drummond, mestre de coisas”. Metalinguagem & outras
metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4. ed. revista e ampliada. São Paulo:
Perspectiva, 1992, p. 49 a 55.
CANDIDO, A. “Inquietudes na poesia de Drummond”. Vários escritos. 3. ed.
revista e ampliada. São Paulo: Duas cidades, 1995, p. 111 a 145.
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COSTA, I. C. “A herança modernista nas mãos do primeiro Drummond”. Em:
PIZARRO, Ana (Org.). América Latina: palavra, literatura e cultura. 3 v. São
Paulo: Memorial; Campinas, SP: Unicamp, 1995, p. 307-318.
DALVI, M. A. Drummond, do corpo ao corpus: O amor natural toma parte no
projeto poético-pensante. Vitória: Edufes, 2009.
GLEDSON, J. Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo:
Duas Cidades, 1981.
GLEDSON, J. Influências e impasses: Drummond e alguns contemporâneos.
Tradução de Frederico Dentello. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
HOLANDA, S. B. de. “Rebelião e convenção – I”, “Rebelião e convenção – II”,
“O mineiro Drummond – I”, “O mineiro Drummond – II”. O espírito e a letra:
estudos de crítica literária, 1947-1958: volume II. 2 v. Organização, introdução
e notas de Antonio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das letras, 1996, p. 501
a 505, 506 a 510, 558 a 561 e 562 a 566.
HOUAISS, A. “Sobre uma fase de Carlos Drummond de Andrade”. Seis poetas
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49 a 77.
MERQUIOR, J. G. Verso universo em Drummond. Tradução de Marly de
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MORAES, E. de. Drummond rima Itabira mundo. Rio de Janeiro: José Olympio,
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SAMPAIO, A. Metamorfoses de um sujeito – o farewell drummondiano.
Dissertação de mestrado. Vitória: PPGL / MEL, 2002.
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A POÉTICA DA FRAGMENTAÇÃO DO EU E O
FENÔMENO DA HETERONÍMIA: UMA VISÃO
ÚNICA
Leonardo Augusto Felipe de Mattos1*
Wagner Lacerda2**
Resumo
O objetivo do presente artigo é refletir sobre algumas das diversas facetas da
produção poética do escritor português Fernando Pessoa (1888/1935). Tais
facetas, conhecidas como heterônimos, serão apresentadas como diferentes
respostas de Pessoa ao conturbado final do século XIX. Serão brevemente
trabalhados apenas os heterônimos mais conhecidos: Alberto Caeiro, Ricardo
Reis e Álvaro de Campos; e, ainda, o Fernando Pessoa ele-mesmo. O modelo
de análise utilizado é semelhante ao do crítico José Clécio Basílio Quesado e
também serão utilizados como instrumental teórico trabalhos de José Guilherme
Merquior, Leila Perrone-Moisés e Massaud Moisés.
Palavras-chave: Fernando Pessoa. Heterônimo. Segundo Oitocentos. Pensar.
Sentir.
Sinto-me múltiplo.
Fernando Pessoa
A realidade, para nós, surge-nos diretamente plural.
Antônio Mora
1*Graduado em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora e mestrando em Estudos Literários pela mesma instituição. Graduado em Letras pela Universidade Federal
de Juiz de Fora e mestrando em Estudos Literários pela mesma instituição, bolsista da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).
2**Graduado em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora e mestrando em Estudos Literários pela mesma instituição, bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).
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Se é a razão que faz o homem, é o sentimento que o conduz.
Rousseau
A segunda metade do século XIX foi um dos períodos mais conturbados,
mas também mais produtivos da história contemporânea. Consolidam-se
a Revolução Industrial e a unificação da Itália e da Alemanha. Espalhamse revoluções liberais por toda a Europa, ainda o centro do mundo de então.
Os antigos estados absolutistas procuram se adaptar aos novos tempos e o
imperialismo ressurge na Ásia e na África.
No campo das ciências ocorre um salto qualitativo. Doenças que antes matavam
milhares começam a ser erradicadas, ou, ao menos, passíveis de tratamento.
Descobrem-se vacinas, realizam-se reformas sanitárias nas grandes cidades
e a prática da prevenção de doenças começa a se disseminar. Pesquisas e
descobertas extremamente relevantes datam deste período. Desenvolvem-se,
dentre outros, a Teoria da Evolução, de Charles Darwin e o Positivismo, de
Auguste Comte.
Naturalmente, nem todo o cenário se mostrou tão positivo. As deficiências
do sistema capitalista começam a ser expostas e grande parte das populações
torna-se segregada social e economicamente. As anunciadas promessas de um
futuro “maravilhoso” não se mostram acessíveis a todos e tensões surgem e
agravam-se.
Tais tensões chegam ao campo das artes e todo o panorama cultural vai mudar,
prenunciando os conflitos que permearão a vida do homem do século XX. A
literatura, a pintura, a música, dentre outras formas artísticas, passam, então, a
refletir este universo conflituoso.
Na literatura, especificamente, passa a vigorar não mais um estilo único, mas
um conjunto de estilos simultâneos e independentes, sem que nenhum venha a
prevalecer. É como afirma José Guilherme Merquior: “A pluralidade de estilos
é o aspecto mais ostensivo do segundo Oitocentos” (1979, p.101). Entendamos
segundo Oitocentos como sendo o período que se estende desde a segunda
metade do século XIX até, aproximadamente, à primeira Guerra Mundial.
Partindo da “convivência” não tão pacífica entre o realismo, o naturalismo,
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o parnasianismo, o impressionismo e o simbolismo e chegando até o apogeu
das vanguardas europeias – futurismo, surrealismo, cubismo, dadaísmo,
expressionismo –, encontramos o caldeirão literário em plena ebulição. O
intelectual vê-se atordoado pela velocidade do seu mundo. Por vezes, mostrase plenamente fascinado, por outras, completamente perdido. Se em certos
momentos procura respostas para tudo, em outros permanece totalmente
indiferente.
Fernando Pessoa: um intelectual em conflito
O escritor português Fernando Pessoa (1888/1935) é consequência direta dessa
era de transformações. Em sua poética – de uma forma única, como veremos
adiante –, encontrar-se-ão as angústias, os fascínios e as interrogações do
intelectual contemporâneo. Ao contrário de outros artistas, como, por exemplo,
Mário de Sá-Carneiro e Virgínia Woolf, que não conseguiram se encontrar
no novo mundo e sucumbiram perante as contradições impostas pelo século
nascente, Fernando Pessoa encontrou uma solução.
O poeta submerge no mar de contrariedades e, ao menos, tenta navegá-lo.
Paradoxalmente, ele se divide para entender sua essência única. Até então, a
imensa maioria dos intelectuais buscava, de todas as formas, respostas que
satisfizessem aos questionamentos concernentes à construção da identidade
individual do artista envolto no turbilhão de transformações. Ao invés de uma
busca incessante, e, quase certamente, infrutífera, por soluções satisfatórias
para um único sujeito, Pessoa propõe respostas diferentes para “indivíduos
diferentes”. Entendendo não ser mais possível a permanência de uma identidade
única, constrói identidades diversas que se adaptarão de maneiras diferentes ao
novo cenário.
A heteronímia é um fenômeno único no século XX. Podemos entendê-la como a
resposta sofisticada do intelectual Fernando Pessoa à conturbação fragmentária
que, como já vimos, arrastava a tudo e a todos. Massaud Moisés define, em seu
Dicionário de Termos Literários, o termo heterônimo da seguinte maneira:
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HETERÔNIMO – Grego héteros, outro, diferente,
ónoma, nome.
Designa o autor que publica obra com nome
alheio, ou como sua obra que não lhe pertence.
Este primeiro sentido está hoje obscurecido pelo
que lhe emprestou Fernando Pessoa (1888-1935),
poeta português da mais alta categoria que assinou
grande parte da sua obra com os nomes de Alberto
Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Vicente
Guedes, Antônio Mora, Alexander Search e outros.
Tais nomes dizem respeito a outros seres, poetas e
prosadores, em que Pessoa se multiplicava: possuem
identidade própria, “biografia” diferenciada e a sua
produção estética ou filosófica ostenta características
peculiares e inconfundíveis. Os heterônimos assim
personalizados resultariam de um desdobramento
semelhante ao do dramaturgo, radicado no esforço de
abranger, gnoseologicamente, todas as modalidades
do real: cada um dos seres que povoam o mundo
interior do poeta corresponderia a uma das formaspadrão de conhecimento do mundo e dos homens.
Diferente de pseudônimo, ou seja, nome falso ou
suposto por meio do qual o escritor dá a lume as
próprias obras. (1974, p.274)
Somando às palavras de Moisés algumas considerações do próprio Fernando
Pessoa, surge-nos ainda mais claro o processo da heteronímia. Ele explicava que
em um estágio superior do desdobramento de personalidades, primariamente
diferenciadas por suas ideias e sentimentos, ocorreria também a distinção, até
mesmo, no estilo de cada heterônimo. Pessoa afirma:
Nos autores das Ficções do Interlúdio [Alberto
Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos] não são
só as ideias e os sentimentos que se distinguem dos
meus: a mesma técnica da composição, o mesmo
estilo é diferente do meu. Aí cada personagem
é criada integralmente diferente, e não apenas
diferentemente pensada (1986, p.86)
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Posto que o universo das personalidades de Fernando Pessoa seja extremamente
numeroso, trataremos apenas dos principais heterônimos: Caeiro, Reis e
Campos. Ressalte-se, ainda, que a poética do ortônimo Fernando Pessoa será
tratada – como também o é por muitos críticos – tal qual obra de um quarto
importante “heterônimo”.
O universo dos heterônimos: sistema complexo e
dinâmico
É preciso esclarecer, desde já, que não se pretende dar conta de toda a poética
de Fernando Pessoa. Tal tarefa, se não impossível, seria hérculea. Respeitando
tais limites impostos, propõe-se uma análise semelhante à de José Clécio Basílio
Quesado, em O Constelado Fernando Pessoa. Nesta obra, o autor propõe que se
tome como “elemento estruturador básico [da poética de Pessoa] a articulação
do eixo pensar/sentir” (1976, p.29). Quesado explica os polos de tal eixo da
seguinte maneira:
Entendemos por pensar a atividade do espírito
que produz o conhecimento a partir da atuação
da consciência intelectiva. Trata-se da operação de
intelecção que mediatiza o contato entre o sujeito
conhecedor e o objeto de conhecimento, criandose assim um espaço de distanciamento entre eles,
no qual se inscrevem e operam os dados de uma
cultura. Já o fenômeno do sentir será compreendido
como o da produção do conhecimento sensível do
mundo, através da consciência sensitiva do sujeito
diante do objeto, numa relação imediata, a partir
das potencialidades sensório-afetivas da natureza
humana do sujeito. (1976, p.29)
É importante lembrar que a oposição razão/emoção não é nenhuma novidade
na literatura ocidental. O que parece ser novidade no sistema construído por
Fernando Pessoa – além do fato de tal oposição ser tão explicitamente dissecada no
interior da obra de um mesmo autor – é o dinamismo em que se dá tal relação.
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Inicialmente constituído com Alberto Caeiro situado no polo objetivo do sentir
e com Fernando Pessoa ele-mesmo no polo subjetivo do pensar – “orbitados”
por Ricardo Reis e Álvaro de Campos –, o sistema passa a evoluir, como
consequência de inúmeros afastamentos e aproximações entre os heterônimos,
operacionalizado dialeticamente pelo “fingimento”, ou, seria melhor ainda
dizer, pelos “fingimentos” do poeta.
Fernando Pessoa ele-mesmo: o pensador
O ortônimo Fernando Pessoa resolve decifrar a crise do segundo Oitocentos.
Sempre procurando pensá-la, aprofunda-se em inquirições e raciocínios que o
conduzem a um processo absolutamente metafísico. Elemento central do polo
da subjetividade, Fernando Pessoa ele-mesmo é quase um filósofo, sempre
questionando o sujeito que pensa, tendo o mundo exterior, apenas, como ponto
de partida para o filosofar. Até mesmo por se reconhecer incapaz de ver o
externo, o que prevalece para ele é a interiorizada e profunda reflexão:
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneandoO que é sé-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é ocoMesmo o meu estar a pensar.
Tudo – eu e o mundo em redor –
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...
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E súbito encontro Deus.
(PESSOA, 1980, p.79)
O processo intelectivo do ortônimo Fernando Pessoa atinge seu ápice: no extremo
da análise reflexiva ele se vê vendo... e se questiona sobre tal fato. É, como foi
postulada, a construção do sujeito – o poeta que vê o mundo – utilizando-se do
objeto – o mundo, mais especificamente o Tejo – apenas como pretexto.
A visão obtida pelo poeta nunca é clara. Porém, é necessário certo cuidado
com essa afirmativa. Fernando Pessoa ele-mesmo não postula a inexistência do
mundo antes de vê-lo, mas, sim, se reconhece incapaz de ver o exterior com
nitidez após inúmeras tentativas. E esta incapacidade atinge o próprio sujeito:
Entre a árvore e o vê-la
Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?...E eu fico tristonho
Por não saber se a curva da ponte
É a curva do horizonte...
Entre o que vive e a vida
Pra que lado corre o rio?
Árvore de folhas vestida –
Entre isso e Árvore há fio?
Pombas voando - o pombal
Está- lhes sempre à direita, ou é real?
Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê?...
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
Erro-me... E o pombal elevado
Esta em torno na pomba, ou de lado?
(PESSOA, 1980, p.81)
Lapidar na relação sujeito/objeto dos poemas do Cancioneiro é a série de seis
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composições intitulada Chuva Oblíqua, em que as duas realidades – a interna e
a externa – se fundem. O Interseccionismo presente nestes poemas sobrepõe o
pensamento às sensações, criando, então, no poeta, um estado de consciência
diferenciado. Observa-se no primeiro poema de Chuva Oblíqua toda a evolução
descrita. Primeiramente, separam-se as duas realidades:
Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto
infinito
(PESSOA, 1980, p.81)
Posteriormente, tais realidades se fundem em uma terceira que resulta da
intersecção de ambas. Então, a paisagem sentida é abandonada em detrimento
da pensada, que emergiu após a fusão de ambas. Reformulada, ela invade e
domina o sujeito:
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...
(PESSOA, 1980, p.70)
Compondo com Mensagem – obra que demandaria análises mais
específicas –, o centro da poética do ortônimo Fernando Pessoa, os poemas
do Cancioneiro funcionam como uma perfeita oposição à obra dos outros
heterônimos. Quesado afirma:
Nesta medida, os poemas do Cancioneiro
se distinguem dos que formam a poética dos
heterônimos: pela emoção e brevidade, do trabalho
de Caeiro; pela brevidade e contenção, de Campos;
pela ausência de rigor formal, de Reis.
(1976, p.81)
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Alberto Caeiro: o mestre
Caeiro, o mestre dos heterônimos, é o antípoda absoluto de Fernando
Pessoa ele-mesmo. Enquanto este primava pelo pensar, aquele centraliza a sua
poética no sentir. Enquanto Pessoa utilizava o objeto externo apenas como ponto
de partida para profundas reflexões, Caeiro fixa-se nele. Elemento central do polo
da objetividade, Alberto Caeiro vai sobreviver à crise do segundo Oitocentos
propondo para si mesmo uma vida simples e desprovida de reflexões. Ignora as
contradições deste período para nelas não pensar e se desgastar.
Ao contrário do olhar analítico e profundo do Fernando Pessoa elemesmo, o que vemos em Alberto Caeiro é o olhar nítido e objetivo, livre de
qualquer pensamento:
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido em cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Por que o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é.
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...
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Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
(PESSOA, 1980, p.137, grifos nossos)
Tal poema é paradigmático da obra de Caeiro. Nele, podem se ver expostos
os princípios básicos da “arte poética” – e da própria vida - do mestre dos
heterônimos: simplicidade e não-pensamento.
Ainda parte integrante da visão do mestre dos heterônimos é o neo-paganismo
que envolve toda a sua obra. Lê-se no oitavo poema de O Guardador de
Rebanhos:
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
(PESSOA, 1980, p.144)
Há de se ressaltar que na obra de Alberto Caeiro há uma grande contradição. Seu
esforço contínuo para propagar e vivenciar o tal “modo de vida simples” acaba
por construir uma teoria filosófica complexa que o leva ao encontro daquele a
quem ele fazia oposição mais radical, o ortônimo Fernando Pessoa.
Ricardo Reis: o neoclássico
O médico Ricardo Reis é, certamente, uma figura anacrônica. Para sobreviver
à crise deflagrada no segundo Oitocentos, Reis resolve fugir de seu tempo.
Monarquista, educado pelos jesuítas, ele busca saída no conturbado período
na cultura clássica. Concebe sua poética, e seu modo de vida, nos moldes da
antiguidade. Suas odes primam pelo equilíbrio e pela moderação, tanto temáticos
quanto formais. O Epicurismo e o Estoicismo são correntes filosóficas que muito
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influem na obra de Reis. A primeira procura ensiná-lo a não temer a morte e
a aproveitar a vida com moderação, escolhendo sempre prazeres que não lhe
causem danos futuros, como, principalmente, os espirituais. É preciso deixar
bem claro que tais metas situam-se para Ricardo Reis em um patamar ideal,
pois, atormentado, muitas vezes, pela inexorabilidade do destino, não consegue
manter a serenidade pretendida. Já o Estoicismo lhe é mais real. Ensina-o
que, independente do meio externo, o homem deve se manter internamente
equilibrado, procurando não se envolver com o mundo em que vive:
Sábio é o que se contenta com o espetáculo do
mundo
(PESSOA, 1980, p.186)
Ricardo Reis passa a ter, então, uma atitude contemplativa em relação a tal
mundo. A ataraxia é uma constante na obra de Reis. Ele está sempre ao lado, à
margem daquele. Até algum possível episódio amoroso é, para Reis, tratado sem
envolvimento. Idealizando a amada, e o cenário onde se encontram, idealiza-se,
por fim, o próprio amor. É o amor retomado à maneira árcade:
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos)
(...)
Amemo-nos
tranquilamente,
pensando
que
podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do
outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
(...)
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro
sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à
beira-rio.
Pagã triste e com flores no regaço.
(PESSOA, 1980, p.185-6)
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Mais uma vez, instala-se a ataraxia. Não investindo no amor – mantendo-se
à margem dele –, Reis passa a não ter o que perder. “Economiza” sofrimento
evitando estoicamente que qualquer fenômeno exterior possa vir a perturbar o
seu interior.
No complexo sistema do constelado Fernando Pessoa, Ricardo Reis é um satélite
em contínuo movimento. Inicialmente situado ao lado do ortônimo Fernando
Pessoa, no polo subjetivo do pensar, Ricardo Reis caminha, posteriomente,
rumo ao polo objetivo do sentir. Atraído por seu mestre, Alberto Caeiro, passa
a orbitar ambos os polos. Começa a se afastar do Fernando Pessoa ele-mesmo já
na própria atitude do pensamento: enquanto este procurava pensar para a tudo
entender e não se contentava com os raciocínios, Reis pensava, apenas, com o
intuito de evitar as angústias e se contentava com os raciocínios. Reis procura se
manter calmo, Pessoa ele-mesmo mergulha na agitação.
Já o processo de aproximação com Caeiro se dá, dentre outros motivos,
principalmente, pela atitude de ambos em relação ao período em que vivem:
fogem dele. Caeiro por não acreditar na lógica corrente do mundo, envolve-se,
apenas, com o mundo natural; Reis, para evitar o desequilíbrio, alija-se de tudo.
Idealiza outros mundos, foge para outras eras.
Álvaro de Campos: o moderno
Contrapondo-se à abstração reflexiva de Pessoa ele-mesmo, à tranquilidade
de Caeiro e ao desprendimento de Reis, surge o modernismo de Campos em
todas as suas facetas. Não reage à crise do segundo Oitocentos como os outros
heterônimos: ao invés de tentar compreender as novidades do período, ou ainda
de tentar se desligar delas, ele simplesmente passa a nadar a favor da corrente.
Poeta do sensacionismo – arte cosmopolita e sintética próxima ao simbolismo
francês e ao futurismo italiano – Campos quer captar tudo que a vida moderna
tem a oferecer:
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao
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mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os
momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e
longínquo.
Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma
ânsia,
Seja uma flor ou uma ideia abstrata,
Seja uma multidão ou um modo de compreender
Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
(PESSOA, 1980, p.241)
O olhar em Álvaro de Campos ganha novas significações com o advento das
inovações do novo século. Lê-se na Ode Triunfal:
À DOLOROSA LUZ das grandes lâmpadas da
fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos
antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
(...)
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se
exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel
último-modelo!
(PESSOA, 1980, p.200, grifo nosso)
Como afirma Leila Perrone-Moisés, o “mundo, para Álvaro de Campos, é um
espetáculo alucinante” (1982, p.341). Para acompanhá-lo, constantemente, o
mais moderno dos heterônimos se rende aos efeitos alucinógenos do ópio e do
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álcool – fato, aliás, bastante corriqueiro entre alguns autores modernistas –, que,
como também diz Perrone-Moisés, “são por ele expressamente referidos como
transformadores da visão” (1982, p.341). Pode se ler no Opiário:
É antes do ópio que a minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
(...)
Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes
Ergue-se a lua como a minha Sina.
(PESSOA, 1980, p.195)
O olhar alucinado de Álvaro de Campos, que lhe parece ser peculiar,
mesmo em estado natural, acaba por conduzi-lo a experiências frustrantes e,
consequentemente, a depressões profundas. Mesmo o máximo que ele consiga
apreender jamais será suficientemente proporcional ao que consegue ver. Daí,
surgem as infelicidades:
Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto à vida?
(CAMPOS apud PERRONE-MOISÉS, 1982, p.341)
Inquirindo, pensando, buscando entender o mundo, vemos Campos,
inicialmente situado no polo da objetividade, caminhando rumo ao polo da
subjetividade e, assim, aproximando-se do ortônimo Fernando Pessoa. Podese, ainda, aproximá-lo ao outro satélite do sistema: executando, também, um
movimento migratório de um polo a outro – ainda que em sentidos opostos –,
Campos se assemelha a Ricardo Reis.
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Conclusão
A relação dialética estabelecida na obra de Fernando Pessoa, tendo em vista as
várias personas por ele criadas, é, sem sombra de dúvida, a saída mais eficaz já
encontrada para o enfrentamento das conturbadas relações instituídas a partir
do período que se convencionou chamar de segundo Oitocentos.
Referências
MERQUIOR, J. G. De Anchieta a Euclides. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1979.
MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.
PERRONE-MOISÉS, L. Fernando Pessoa, aquém do eu, além do outro. São
Paulo: Martins Fontes, 1982.
PESSOA, F. O Eu profundo e os outros Eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1980.
QUESADO, J. C. B. O constelado Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Imago,
1976.
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ESQUIVO HORIZONTE: SOBRE A FÚRIA DO
CORPO, DE JOÃO GILBERTO NOLL
Carlos José Lontra Marques1*
RESUMO
Em A fúria do corpo, o narrador-personagem caminha à deriva por uma cidade
de paisagem deteriorada, ansioso não só com o iminente perigo à volta, mas
também com os espectros de ameaças advindas do inconsciente. Sem qualquer
possibilidade estabelecida de pouso, suas trajetórias errantes fundam por força
do sexo uma furiosa luta existencial contra a aniquilação subjetiva num momento histórico em que, conforme enuncia Zygmunt Bauman, o importante é
não edificar planos com vistas a construções sólidas, como se contrair algum
tipo de vínculo equivalesse a invariavelmente morrer. Acompanhando o percurso desse corpo, refletiremos as representações do desejo no texto de João
Gilberto Noll.
Palavras-chave: Ficção brasileira contemporânea. João Gilberto Noll. Configurações do desejo. Encenação do sexo. Pós-modernidade.
Desde as primeiras palavras de A fúria do corpo (NOLL, 1986), de João Gilberto
Noll, o narrador-personagem apresenta recusa contra tudo quanto faz engessar uma possível identidade. Segundo seu discurso, certidão de cidadão não diz
do seu desejo, da sua linguagem, tampouco da sua subjetividade. Como não
bastasse, a moldura identitária o compele a circular sob constante ameaça. Caminhando à deriva por uma cidade de paisagem deteriorada, o protagonista
sustenta insistente ansiedade em relação não só ao iminente perigo à volta, mas
1*Bolsista de Iniciação Científica (UFES/Petrobrás).
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também para os espectros de perigos advindos do seu inconsciente ficcional.
Nessa trajetória, aceitar um nome consiste em imobilizar-se diante de uma sexualidade que se deseja totalitária bem como incessante.
Da mesma maneira que o nome, também o passado empareda o protagonista
num estado de ansiedade, imobilidade, perigo e unidimensionalidade. Tanto
que o romance, traduzindo uma vontade de totalidade do prazer, em passagem
alguma recorre ao encadeamento de cenas utilizando o mecanismo ficcional de
causa e efeito. Os diversos episódios, livres de uma organização racionalista,
apresentam-se em sequência narrativa, mas não em continuidade lógica, do
ponto de vista cartesiano. Assim acontece porque a progressão por causalidade
exige, considerando o presente ficcional, a determinação de um dado passado
(causa) que abre possibilidade para um certo dado futuro (efeito). O tempo do
romance estrutura textualmente o que Bauman (1998) chama de presente contínuo, ou seja, um fluxo temporal arbitrário porque sem antecedentes, tanto quanto desligado de consequências.
O romance de Noll em raro momento encena ações pretéritas ou ainda por se
manifestar. Na maior parte, cada movimento de texto, acompanhando o estertor de um corpo ficcional, funda para si um presente destacado de qualquer
outro passo narrativo. A sobreposição de episódios encontra unidade primeiro
na manutenção da mesma voz narrativa, depois na insistência de uma série de
impulsos ficcionais que agitam o narrador-personagem:
O meu nome não. Vivo nas ruas de um tempo onde
dar o nome é fornecer suspeita. A quem? Não me queira ingênuo: nome de ninguém não. Me chame como
quiser, fui consagrado a João Evangelista, não que o
meu nome seja João, absolutamente, não sei de quando nasci, nada, mas se quiser o meu nome busque na
lembrança o que mais de instável lhe ocorrer. O meu
nome de hoje poderá não me reconhecer amanhã.
Não soldo portanto à minha cara um nome preciso.
(...) Não me pergunte pois idade, estado civil, local de
nascimento, filiação, pegadas do passado, nada, passado não, nome também: não. Sexo, o meu sexo sim: o
meu sexo está livre de qualquer ofensa, e é com ele-sóele que abrirei caminho entre eu e tu, aqui. (...) O que
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não vou te declarar é o nome e todos os dados que me
confrangem a uma certidão que além de me embalsamar num cidadão que desconheço servirá de pista
para esse algoz (imperceptível de tão entranhado nas
nossas já tão fracas presenças). Nem o meu passado,
não, não queira me saber até aqui, digamos que tudo
começa neste instante onde me absolvo de toda a dor
já transpassada e sem nenhum ressentimento tudo começa a contar de agora(...) (NOLL, 1986, p.3)
Nesse trecho, a declaração de abertura da narrativa subverte a estratégia de
apresentação de um romance moderno que Mendilow (1972) chama de romance
causal, em que o protagonista do texto tão breve se vê ou se faz nomeado. Em A
fúria do corpo tal não acontece. Refutar o nome, da mesma maneira que a recusa
do passado, propõe também a negação de uma tradição ficcional dita realista.
Se nessa categoria de ficção, por exemplo, a descrição do ambiente, da moral,
do caráter, da ação, procurava o mais possível de precisão; na prosa de Noll,
por outro lado, a incerteza compõe dado fundamental da construção tanto do
personagem quanto do todo textual.
Verificamos que em meio à série de recusas há a afirmação do sexo como única
possibilidade de busca, alteridade e experiência. Isso permite pensar em uma
espécie de pornotopia, conforme o conceito de Nuno César Abreu em O olhar pornô (ABREU, 1996). Da mesma forma que no cinema conhecido como pornográfico, o narrador-personagem de A fúria do corpo enuncia uma sexualidade que,
totalitária, utópica, se quer abstrair da sociedade compreendida freudianamente como repressora. Daí a negação da identidade textual estável, da vivência
social, portanto oprimida, do corpo numa ficção de compasso intenso:
Hoje, nesse momento em que percebo que lembrar é
assegurar de alguma forma a vida, embora não deva,
não queira, lembrar não, compreendo enfim que vale
a pena ter vindo até aqui e que estar vivo é uma espécie de rebelião contra essa sina de se ir puxando a
vida como quem puxa a corrente inesgotável de uma
força que nos excede, rebelião contra essa sina de se ir
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vivendo como quem puxa o fantasma que nos extenua
sem que saibamos que déspota é esse que nos quer assim consumidos, varando dias e noites com paixões já
desbotadas e humilhadas diante da ardência do que
foram, quando ainda confiávamos em que a aventura
seria vivida mesmo que à beira da cova, que um dia
nos introduziríamos na morada dos nossos desejos
como convivas de um banquete em que você ó mulher estaria ao meu-lado-mais-que-ao-lado e onde nos
fartaríamos sem que a taça transbordasse porque não
haveria a arrogância da celebração, sujo meu corpo
com um bocado de terra seca para te dizer que é assim
que caminho por essas ruas com a mancha da terra no
meu peito como marca de que estou insurgido contra
a tirania dessas vítimas que andam pelas ruas tantas
vezes em sorrisos maltrapilhos sem reconhecerem
que o algoz, se bem que invisível, se encrava insano
na presença do que pretendíamos ser e a enxovalhada
com mentiras aliciadoras para nos levar a essa ruína
de nós mesmos. (NOLL, 1986, p.13-14)
Nesse fragmento, mais uma vez o protagonista demarca a recusa do passado,
mesmo que lembrar constitua, no texto, uma forma de manter a vida. Essa recusa segue motivada, entre outros estímulos, por uma tentativa de afastamento
do desprazer, em luta contra a dor já suportada. Apesar da frequente recusa do
passado, a memória pontua presença na narrativa sob a forma fantasmática. A
partir de Freud (1994a), podemos notar a encenação textual de uma lembrança
traumática de que se deseja escapar.
O conflito também ocorre vinculado à recusa da identidade. Por mais que negue
identidade, o narrador-personagem não foge de uma configuração identitária
mesmo que precária. No dizer de José Carlos Rodrigues (1975), o corpo encenado no romance constitui um fato social. Tanto que o texto não se furta a descrever
uma sociedade operando na estrutura do protagonista por meio da elaboração
poética de um inconsciente ficcional que não raro intervém no movimento da
narrativa. Por isso, observamos a recorrência de presenças invisíveis — como
“algoz”, “fantasma”, “déspota” — que se entranham no personagem como pulsações inibidoras, impulsos de aniquilação.
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Até aqui deparamos com um tanto de motivações temáticas que talvez provoquem a impressão de conflito somente por oposição. O embate entre a vontade
de recusa e a impossibilidade de anular o que se nega (a identidade, o passado,
a sociedade, a ansiedade, o inconsciente) estabelece pontos diversos de tensão,
sim, mas pensar apenas em choque de opostos maniqueístas pouco diria da
produção literária de João Gilberto Noll. No caso de A fúria do corpo, o conflito
narrativo agita um repertório de impulsos ficcionais que não se só opõem, como
também que se aproximam, outros que sequer se tocam ou comunicam. O texto
encena a tensão da multiplicidade em detrimento da colisão de contrários:
Afro. Frodi. Dite. Sopro no seu ouvido três porções
do nome. Nada: sono profundo, bêbado. Me inquieto.
Pego sua mão. Me aproximo mais, recomeço: Afro.
Frodi. Dite. São os teus três nomes, continuo sussurrando. Afro para o sexo. Frodi para as horas de
peraltice. Dite para teu encanto humano. Uma coisa
só. Só uma reúne todas. Volta amor. Me vejo sozinho
em meio ao Carnaval, com medo da quarta-feira, com
medo que o mundo me coma quando a folia acabar,
não tenho outra alternativa senão buscar teu nome,
reparti-lo em parcelas, juntá-las novamente, ver teu
nome imprimido no dia, me dando a força, regenerando células perdidas, me tomando inteiro no clamor, eu chamo Afrodite em meio ao Carnaval, a claridade me invade, sou todo luz, aparição, irrompo do
meu próprio corpo e venho te buscar Afrodite, vem
senta nas minhas pernas, te capturo do teu sono, te
desperto, te acolho, te cubro, te apaixono, te cego, te
distraio, te assomo, te olho, te beijo, te chupo, te engulo, te sugiro em tudo, te canto, te sirvo, te declaro,
te sarro, te amarro, te solto, te reponho, te componho,
te disponho, te abraço, te relaxo, te abomino, te rumino, te afago, te ofego, te encanto, te parto, te rasgo, te
retalho, te sacrifico, te martirizo, te crucifico, te acompanho, ressuscito (...) (NOLL, 1986, p.186)
Logo no início dessa citação, há a enunciação de um nome tripartido mas ainda
assim unificado como a trindade cristã. Um nome que segreda múltiplos sentiSABERES Letras
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dos e que funciona como possibilidade de dilatar algum impulso de vida com
um ardor próximo do religioso. Aqui reconhecemos a tensão do nome que se
recusa com o que se proclama, mas o conflito estabelecido se faz mais complexo
do que a oposição entre contrários que se querem anular.
O romance de Noll constrói, nos termos de Guattarri (1992), um mundo ficcional multiformado, em que os personagens representam textualmente uma subjetividade heterogênea, cuja produção poética ultrapassa o entrechoque de oposições,
em privilégio de um complexo movimento de intensidades narrativas que coexistem em constante tensão. O protagonista desenvolve com Afrodite uma prática múltipla do desejo que vai da ternura até a devoção religiosa, sem esquecer
o sexo nem velar a violência. Mais isso não exclui a instabilidade do contato:
Neste minuto já não existe nada para mim além do
repouso de todas as funções: nem Afrodite, o Carnaval, nem o que eu era antes deste deserto coagulado,
sim, coagulado de toda a vida do mundo sim, vida
mas onde nem a respiração se ouve e onde a cor (se
ela houvesse) puxaria para um tom desatualizado da
memória, onde realmente todos os gatos são pardos e
todo espaço poderá passar pelo espaço da agulha: se
abro os olhos, se os fecho, já não é mais a questão, a
questão é: há como sair dessa? Sou eu o único, o completo, aquele que vive nas imediações de todas as paixões do mundo, que as suscita e não é visto, não, não
sou ninguém, não há nem deus que me receba neste
transe, ninguém deposita em mim mais confiança,
sou eu que agora morro por todos: na mais completa
deserção, nem me lembro mais se algum dia houve
antes ou se algum dia presumi, não sei se já tocaram
em mim, se já me transladaram ou se permaneço nas
areias do Leme. Isso é com eles, os vivos. Posso já estar inclusive enterrado. (NOLL, 1986, p.192)
Compondo uma ficção de multiplicidade, o corpo experimenta, além de desejo, medo e ansiedade, estímulos tanto de vigor quanto de morte. Tomando de
empréstimo conceitos de Freud (1994b), a luta entre o instinto de vida contra o
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instinto de destruição atravessa toda a narrativa. Indo além, o texto abre mais
problemas. Agora a tensão se apresenta ainda mais concentrada: de um lado, a
afirmação de uma existência totalitária; de outro, a negação dessa supostamente
divina hegemonia. Isso segue, primeiro, até a imprecisão de todo contato; depois, até a incerteza da vida. Esse conflito continuará, também intenso, mesmo
nas últimas páginas, melhor, nas últimas linhas do romance:
(...) eu e Afrodite atravessamos a rua, no lago artificial vários mendigos tomam seu banho, Afrodite
se adianta e entra suavemente no lago, no centro o
chafariz espalha enorme chuveiro comum, entro no
lago atrás de Afrodite, a água escura dá nos joelhos,
os mendigos saltam alegres, correm molhados uns
aos outros, um deles afeta temer a temperatura absolutamente morna da água e salta em disparada
até a borda, os mendigos gargalham o banho que
os une na festa privativa, Afrodite corre, salta, jogase nas águas do lago, os mendigos pasmam com a
exuberância de Afrodite, entro na festa endiabrado, todos fazemos batalhas d`água, mãos retesadas
raspando a superfície, estamos todos ensopados,
puro regalo em cada olho, gotas peroladas, vou
caminhando em direção à mulher que eu amo no
meio das águas que já pegam até as coxas, entre a
algaravia e corpo mendigos em farta farra admiro
Afrodite que me admira toda molhada sob o chafariz reluzente de sol, admiro Afrodite e me achego
com se da primeira vez... (NOLL, 1986, p.276)
Apesar de renunciar a qualquer formatação identitária, o narrador-personagem,
na cena que marca o desfecho do texto, toma parte num rito social que o situa
num lugar de identidade. Tensão semelhante constitui a relação com o sexo. Ao
mesmo tempo que se proclama um erotismo pornotópico porque livre de determinações sociais, históricas, políticas e morais, a prática narrativa do desejo
faz lembrar uma sexualidade episódica, na expressão de Antony Giddens (1993),
típica de um tempo de incessante ansiedade.
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Motivados por esse modo de sexualidade, os maratonistas do sexo percorrem,
de encontro em encontro, de parceiro em parceiro, não mais do que instantes
de espasmo, concatenando episódios que pouco ou nada dizem um do outro.
Dessa forma, a frequente presença de Afrodite não anula uma prática compulsiva do desejo: o personagem apresenta uma configuração fantasmática que o
mostra composto por vários corpos ficcionais; isso quando não duvida também
de sua existência, para noutro passo apontar sua beleza, até chegar a lembrar
um passado compartilhado.
Não por acaso o sexo, consumido como em um supermercado, localiza uma
tensão fundamental da produção literária João Gilberto Noll. Em A fúria do corpo, sobretudo, a maior parte dos episódios compreende uma cena de encontro sexual que em nenhum momento, embora se confirme proximidade física,
consegue concretizar o que Barthes (1975) chama de interlocução entre sujeitos.
Entretecendo uma versátil anatomia para o desejo, a multiplicidade da matriz
narrativa fabrica um repertório de personagens movimentados por impulsos
ficcionais de complexa diversidade, constituindo ponto importante de conflito
a vivência de um corpo que, à deriva pela cidade, não anula medo, incerteza,
violência nem ansiedade, apesar de abrir bem os lábios na direção do prazer.
REFERÊNCIAS
ABREU, Nuno César. O olhar pornô: a representação do obsceno no cinema e
no vídeo. São Paulo: Mercado das Letras, 1996.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama/
Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla PerroneMoisés. São Paulo: Cultrix, 1975.
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. In: _________. Obras completas. Trad. Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1994a, v. XVIII.
_________. O mal-estar na civilização. In: __________. Obras completas. Trad.
José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1994b, v. XXI.
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GUATTARRI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia
de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992.
GIDDENS, Anthony. A transformação da identidade: sexualidade e erotismo
nas sociedades modernas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.
MENDILOW, Adam Abraham. O tempo e o romance. Trad. de Flávio Wolf.
Porto Alegre: Globo, 1972.
NOLL, João Gilberto Noll. A fúria do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. Rio de Janeiro: Achimé, 1975.
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A CENSURA DA ARTE, A CESURA DA HISTÓRIA:
A DITADURA MILITAR NA FEIRA BRASILEIRA
DE OPINIÃO
Lucas dos Passos1
Resumo:
Este trabalho pretende analisar a Feira Brasileira de Opinião, espetáculo composto por dez peças de importantes dramaturgos brasileiros idealizado no final
da década de 1970, mas proibido pela censura. Como maneira de dar corpo à
observação, será necessária uma pequena exposição do que passou pelos palcos
brasileiros um pouco antes e durante a ditadura militar, considerando as posturas estéticas em sua relação tensa com a história e a política da época. Feita a
leitura crítica de algumas peças do conjunto, serão levantados importantes fatores que se coadunam com as questões suscitadas pela literatura de testemunho
e sua presença na literatura brasileira durante o regime arbitrário.
Palavras-chave: Feira Brasileira de Opinião. Teatro Brasileiro. Ditadura Militar.
Testemunho.
Antes da funesta implementação do regime militar, em 1964, os palcos brasileiros viviam um momento bastante vigoroso, sobretudo no que diz respeito
à afirmação de um teatro com feições mais nitidamente nacionais. Apesar do
importante marco que foi a encenação, em 1943, de Vestido de Noiva, assistia-se,
na primeira metade da década de 1950, a um Teatro Brasileiro de Comédia ainda pautado majoritariamente na importação de modelos europeus. Em razão
da proximidade da dramaturgia com o público, os efeitos de um teatro que não
desse conta de refletir sobre a realidade local eram bastante desanimadores.
1*Graduando em Letras-Português na Ufes e bolsista de Iniciação Científica pelo CNPq.
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Essa tendência, no entanto, se alastrava feito uma praga pela estética dramatúrgica da época, e até o Arena teve, em seu início, postura muito parecida.
Felizmente, o grupo encabeçado por Augusto Boal se livrou dessa marca retrógrada e mergulhou num projeto inteiramente novo, que privilegiasse o autor nacional – e, com ele, a realidade brasileira. A partir de uma mudança,
inclusive, nas feições do palco, que passaria a ser um lugar mais simples, com
cadeiras em torno de um espaço, o Arena libertou o teatro brasileiro da atmosfera tradicional proveniente da importação de peças e ideias europeias. É bem
verdade que, posteriormente, a retomada do diálogo com a tradição – sobretudo uma reconstrução crítica da maneira de se lidar com a tradição teatral
– teria papel instigante nos rumos da encenação brasileira, mas, em fins dos
anos 1950, os refletores deviam especial atenção ao que se firmava no palco
do Arena: nas palavras de Sábato Magaldi, a “imposição do autor nacional”
(MAGALDI, 1984, p. 7).
Foi assim que, em 1958, a estreia de Eles Não Usam Black-tie trouxe para a ribalta
as questões sociais ocasionadas pelo processo de industrialização por que passava o Brasil. Unia-se, de maneira bastante singular, a questão ética, de fundo
notadamente marxista, à preocupação estética – revelando, com êxito, um mundo que chamaria o público à atenção.
Mas esse excelente ritmo de movimentos inovadores nos palcos brasileiros receberia um terrível golpe. A partir de 1964, com a tomada do poder pelos militares, a literatura dramática do país se veria engessada pela fria sombra da censura. Contudo, como aponta Yan Michalski, em seu estudo O teatro sob pressão,
“a tomada de poder pelos militares havia causado aos artistas de teatro, nesses
meses iniciais, mais susto do que problemas” (MICHALSKI, 1985, p. 17). Isso,
segundo ele, se conferia graças ao apreço que o então presidente Castelo Branco
tinha pelo teatro. Nesse período inicial da ditadura, ele nomearia, por exemplo,
Bárbara Heliodora como diretora do Serviço Nacional de Teatro, e, ao lado dela,
haveria uma equipe de consultores composta por nomes do quilate de um Décio de Almeida Prado ou até mesmo Carlos Drummond de Andrade.
Entretanto, o governo que, a princípio, se mostrava benevolente com a classe
dramatúrgica, começaria, ainda no ano de 1964, a impor suas regras. Após a comunidade teatral imaginar “que poderia desempenhar uma importante função
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como centro de oposição ao regime” (PRADO, 2001, p. 120), inicia-se o longo
episódio da censura: na medida em que as manifestações artísticas se engajavam numa postura contrária à do governo militar, os censores realizavam maiores e mais significativos cortes. Assim surge o show Opinião, com a direção de
Augusto Boal e contando com as presenças de Nara Leão, Maria Bethânia e João
do Vale, entre outros. O espetáculo que, segundo Michalski, era “a primeira
semente daquilo que viria a ser uma das mais fortes trincheiras teatrais contra
o regime militar” (MICHALSKI, 1985, p. 20), ainda se situava dentro dos domínios do Arena, mas, futuramente, tomaria para si o nome de Teatro Opinião.
O grupo seria formado por Oduvaldo Vianna Filho, João das Neves, Armando
Costa, Ferreira Gullar e Paulo Pontes, entre outros.
Seguindo esse mesmo ideal, o Arena e o Oficina atravessam a segunda metade
da década de 1960 sofrendo os impactos da cada vez mais vibrante censura. O
regime arbitrário tentava erradicar a politização do teatro brasileiro de todas
as formas, resultando, tragicamente, em revoltantes prisões, torturas e exílios –
práticas amparadas pelo famigerado AI-5. Boal, vítima inconteste desses meios
repressores, que posteriormente optou pelo exílio, chega a afirmar em sua autobiografia que, para ele, “não havia censores bons e maus: só ruins, péssimos e
os piores!” (BOAL, 2000, p. 247).
Em fins dos anos 70, muitos desses nomes que ficaram disseminados no nefasto
momento mais ativo da censura ainda tentam emplacar peças que trazem à baila questões pertinentes à triste realidade social brasileira. Entretanto, como se
irá ver a seguir, a repressão dessa liberdade político-criadora se manteria viva
por algum tempo. Numa dessas tentativas de fazer pairar frente os olhos do
público um último grito de alerta, dez peças de importantes dramaturgos brasileiros se uniram, em 1978, sob o título de Feira Brasileira de Opinião. Entretanto,
como se pode imaginar, o espetáculo foi proibido e, hoje, nos é legado em forma
de livro – que servirá de ponto de partida para uma análise da forma como o
teatro brasileiro encarnou o dever político de resistir à repressão militar.
Embora a função das dez peças situadas no livro seja bastante clara, não se
encontra nem na apresentação e nem no prefácio qualquer referência mais explícita aos bastidores da proibição do espetáculo. Isso pode ser reflexo, naturalmente, da sempre atenta censura, mas acaba criando restrições na compreensão
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do contexto em que se inseriria o evento. Apenas com uma pesquisa mais meticulosa, encontrou-se uma simples e esclarecedora notícia de jornal, incompleta
e sem indicação de autoria. Por ser um documento bastante raro da situação
que se antepôs à encenação da Feira Brasileira de Opinião, parece ser pertinente
transcrever as seguintes palavras de Ruth Escobar:
Primeiramente, recebi a notícia em São Paulo de que
as peças de Gianfrancesco Guarnieri e Lauro César
Muniz haviam sido proibidas irrevogavelmente. Isso
foi desmentido em Brasília, que as liberou com cortes. Em compensação, veio o veto integral à peça de
João das Neves. Ora, quem pode garantir-me que a
Censura não mude novamente de opinião, vetando
as outras peças a alguns dias da estreia? (ESCOBAR
et al., 1978, p. 88)
Vê-se, nas palavras da atriz e empresária que, além do corte de certos trechos
de duas peças e a proibição de uma na íntegra, havia sempre a dúvida acerca do
que restou. Não são raros os momentos em que a censura proibiu espetáculos
dias antes de entrarem em cartaz. Um exemplo claro disso foi o caso de Calabar
que, a um ou dois dias de ser apresentado ao público, depois de realizados
todos os ensaios (inclusive com plateia presente), gastando um valor substancioso, foi vetado pelos censores. Em razão disso, diante desse clima de instabilidade, o grupo de dez autores, junto à empresária e a Chico de Assis – que seria
o responsável por “costurar” as peças –, decidiu pela encenação completa dos
textos ou pelo cancelamento do espetáculo. Contudo, essa decisão não pareceu
ter abalado os nervos do governo, e a decisão final foi, de certo modo, até previsível: o veto.
Depois dessas considerações preliminares, vem a primeira peça do conjunto,
“O engano”, de Carlos Henrique Escobar. O autor, que havia recebido seu segundo prêmio no concurso de dramaturgia do Serviço Nacional de Teatro, já
tinha se deparado com a impossibilidade de ver encenada uma de suas obras
premiadas, Caixa de cimento, em 1977. Em “O engano”, sua preocupação com
questões explicitamente políticas continua bem apurada, pois, como indica o
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próprio título, a ação centra-se num triste equívoco que ocasionaria a morte de
uma pessoa completamente inocente.
Basicamente, um casal de jovens que vinha de uma discussão se separa por
alguns instantes para o rapaz ir comprar cigarros e, porventura, um sanduíche para a moça – que, por sua vez, o esperaria para que ele visse seu ensaio
de canto. Porém, depois que eles se despedem, dois homens que parecem
alheios à cena entram em ação e sequestram o rapaz. Após irem a uma espécie de galpão de fábrica, aparece o mentor do crime, comicamente chamado
de professor Schok.
Curiosamente, o jovem reconhece a voz do professor, que lhe dava aulas na
faculdade. Assim que percebem o terrível engano, o professor e os dois homens envolvidos no sequestro decidem tomar uma providência a fim de evitar futuros problemas: o primeiro arranca os olhos do aluno e os outros dois
disparam tiros contra seu corpo, enquanto se passa “a projeção de pessoas
levando choques que vão se sucedendo em slides” (ESCOBAR et al., 1978, p.
43). A título de explicação do evento arrebatador, um pouco antes de o rapaz
inocente ser executado, seu colega de quarto aparece conversando com um
operário. Aparentemente, os dois pretendiam denunciar as torturas que eram
realizadas na fábrica.
Com esse enredo enxuto e direto, Carlos Henrique Escobar acaba abordando
uma das temáticas mais tenebrosas que permearam as décadas da ditadura no
Brasil. Sendo o próprio autor vítima de tortura, deu-se voz ao alerta que geralmente morria sufocado nos porões das delegacias ou se afogava em alto mar –
enquanto a população tinha seus olhos arrancados pelas autoridades. Não raras
eram, também, as oportunidades em que prisões por engano eram realizadas
e algumas acabavam em homicídios, pois não era interessante ao governo que
viessem à tona as atrocidades cometidas com fins políticos – ainda mais quando
as vítimas estavam eximidas de culpa.
A peça que segue, na ordem da Feira, teatraliza um fato de certo modo bastante
parecido. Em “Última Instância”, Carlos Queiroz Telles mostra como a histeria
dos governantes pode acometer também a população – levando-a a cometer
seus próprios equívocos. Essa história, ocorrida num bairro aparentemente pobre, trata de um acontecimento passado num bar onde Maria, a dona, o pivete
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Chico, seu funcionário, Duque, um ex-policial de índole no mínimo duvidosa, e
Orlando, um funcionário público aposentado, se reuniam à noite.
O foco da ação recai basicamente na tentativa de convencer Orlando de que o
sujeito que foi morto pelos outros três tinha entrado no bar com o intuito de
cometer um assalto. Orlando se mostra, por algum tempo, relutante a aceitar a
ideia que lhe tentavam incutir, mas a acaba acatando em meio a um clima de
ameaças indiretas. Os envolvidos acertam, portanto, um depoimento único a
ser prestado à polícia – que, segundo a rubrica inicial da peça, era temida pelos
moradores dali –, mas são surpreendidos por gemidos vindos do “ladrão” que
eles haviam matado. Tomado pelas palavras de seus colegas, o aposentado finaliza o ato dizendo: “Vamos acabar de uma vez com esse ladrão filho da puta!”
(TELLES, 1978, p. 58).
Após essa trama psicológica de Carlos Queiroz Telles, Dias Gomes é o responsável pela porção seguinte da escrita do espetáculo, e o faz brilhantemente com dois quadros sobre um significativo evento metafórico. O clima
de incerteza e instabilidade típico do momento político invade a cena e os
personagens demonstram uma atitude em face dos acontecimentos ora revoltada, ora acomodada.
De modo sintético, a peça transcorre num dos grandes túneis da cidade do Rio
de Janeiro, onde havia um imenso engarrafamento que causava visível irritação
nos motoristas. Os personagens são tipos medianos da sociedade carioca: um
empresário numa Mercedes, um nervoso rapaz que dirige um Fusca e um cansado trabalhador numa Kombi. Os carros funcionam como índice da condição
financeira desses cidadãos que se veem submetidos à mesma situação de calamidade. No meio do trânsito completamente paralisado, surgem alguns rumores do que poderia estar acontecendo. Uma loura que estava voltando da praia
no ônibus levanta a hipótese de que o governo havia, subitamente, mudado o
sentido do tráfego e, por isso, o túnel tinha suas saídas barradas por carros indo
em direções contrárias.
Nessa atmosfera kafkiana, não se acha qualquer explicação para o evento. As
palavras do Homem da Kombi parecem refletir bem a situação em que se encontravam: “Subitamente... Escurece tudo, para tudo. Como se o túnel tivesse
desmoronado, ou tivessem fechado as duas bocas. Nem pra frente, nem pra
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trás” (GOMES, 1978, p. 64). Estranhamente, numa frase que pode passar despercebida por um espectador mais incauto, o motorista da Mercedes diz: “Eu
sei o que aconteceu” (GOMES, 1978, p. 64).
Essa frase pode funcionar como uma chave para a compreensão do comportamento desse personagem, que a princípio só se preocupava com a mulher esperando para a comemoração de onze anos de casamento. Catorze anos se passam
do primeiro para o segundo quadro e a situação se mantém absolutamente a
mesma. O Homem da Mercedes agora morava dentro de seu automóvel com a
Loura, e os moradores do túnel recebiam suas correspondências de carro a carro
– como se essas fossem suas novas casas.
Uma outra fala desse representante de uma classe mais abastada se liga perfeitamente a seu acomodamento. Enquanto o Homem do Fusca continua a demonstrar sua revolta, ele diz: “Estou muito bem. Não quero sair. E se eu não
quero sair, não estou privado de nada.” (GOMES, 1978, p. 80).
É esse tom de acomodamento que cerca o comportamento desse personagem.
Mesmo tendo conhecimento do absurdo a que está sendo submetido, mantémse sereno e crê na eficácia do fechamento do túnel: “Pelo menos agora não há
mais desastres. Ninguém mais morreu atropelado, nesses últimos 14 anos” (GOMES, 1978, p. 81). Os motoristas da Kombi e do Fusca, por outro lado, acabam
firmando uma espécie de oposição ao que vinha sendo imposto. Mas, como
a esquerda também tem seus próprios rachas, enquanto o segundo defende a
explosão de bombas na boca do túnel, o primeiro procura uma saída diplomática, como a escritura de um manifesto que organizasse uma frente ampla para
buscar a reabertura do local.
Assim, após uma tentativa frustrada do Homem do Fusca em que sua bomba
não explode, a voz do diretor de trânsito anuncia o fim da paralisação do túnel, mostrando que os resultados foram bastante animadores e dizendo que o
terreno será aterrado para fins agrícolas. Desse modo se encerra a peça, com a
irônica proclamação do diretor: “Deixemos de furar morros e plantemos sobre
eles! Nisso está nosso futuro! Com isso estaremos livres para sempre dos engarrafamentos e cumpriremos o nosso destino de país essencialmente agrícola...”
(GOMES, 1978, p. 87).
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As duas peças que dão continuação ao espetáculo são “Janelas Abertas”, de
Gianfrancesco Guarnieri, e “O Quintal”, de João das Neves. Ambas abordam,
ainda que de maneiras diferentes, questões relativas à militância de esquerda
que se mobilizou durante os anos da ditadura.
A peça de Guarnieri, que, junto à de Jorge Andrade, é dos maiores textos do
volume, com 32 páginas, apresenta o público à situação de duas mulheres cujos
companheiros se envolveram diretamente com a luta política contra a arbitrariedade do governo militar. Os acontecimentos se passam numa vila operária,
mais especificamente num pequeno cômodo de um edifício de três andares,
onde Julieta ouvia um disco de Chico Buarque enquanto tomava conta de seu
bebê. O silêncio da casa é quebrado pelos berros de um casal vizinho e, logo
depois, aparece Leda, amiga de Julieta que esteve, aparentemente, numa reunião de um grupo esquerdista. No diálogo entre as duas, vão se desvelando
algumas questões típicas do período. Em um rápido momento, por exemplo,
a conversa dá a entender que Julieta havia sido espancada, provavelmente por
militares. Leda, que “era mulher de preso e preso morto”, demonstra toda a
sua angústia com a confusão que cercou a reunião onde esteve. Ela afirma sua
indignação principalmente contra um rapaz que, segundo ela, tergiversava em
Marxmaoski (um dialeto que mistura Marx, Mao e Trotski). A revolta de Leda
se adensa, inclusive, com a situação social das ruas. No caminho até a casa de
Julieta, ela topou com um trombadinha que tentou roubar-lhe a bolsa. Nervosa,
ela lhe fez um discurso político para tentar “abrir a cuquinha dele”. Segundo
ela, o moleque, em tom de insulto, gritou “Sua feminista!”, como se fosse o pior
dos palavrões.
No entanto, tamanha indignação dá lugar, por alguns instantes, a um forte arrebatamento de saudade quando se aproxima do berço onde dormia o filho da
amiga. A lembrança do ex-companheiro lhe causa grande comoção, deixando
transparecer até a falta de desejo sexual por homens – revelando, ainda, que já
havia se imaginado dividindo uma vida com Julieta. A seguir, quando resolve voltar para a rua, recusando o convite da amiga para descansar ali naquela
noite, ouve a sirene de uma viatura policial. Para aquelas duas, representantes
de boa parte dos brasileiros da época, a polícia não indicava qualquer sinal de
conforto: “Já pensou bem no medo que a gente tem da polícia? Todo mundo
tem medo da polícia” (GUARNIERI, 1978, p. 100).
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Depois que Leda sai, Julieta se deita enquanto ouve “O que será”, de Chico Buarque, na vitrola. É então que aparece a visita inesperada de seu companheiro,
Romeu. Nessa história de Shakespeare adaptada ao conturbado cenário ditatorial brasileiro, os dois amantes, impedidos pelo governo de se manterem juntos,
têm esse breve momento de melodramática esperança ao fim da peça: a esperança pela anistia política.
Enquanto no texto de Guarnieri a militância política é mostrada pela ótica das
mulheres de dois presos políticos, João das Neves a representa no momento do
grande perigo da ação – mais uma vez com um casal envolvido. A peça é uma
das mais curtas, mas uma das mais bem elaboradas da Feira – com uma séria
preocupação com as reações da plateia, procurando estabelecer interessantes
estratégias de sonorização. Na primeira cena, dois pintores, Inácio e José, terminam o trabalho numa parede, discutindo ao modo deles a luta política dos
“meninos”. Na saída, contudo, são inesperadamente tomados de assalto pelo
início de um tiroteio.
Terminada assim a cena anterior, a segunda substitui os dois pintores por um
casal que, depois de serem ouvidos tiros de metralhadora, se encontrava abandonado pelos colegas de manifestação. O rapaz, chamado Luiz, tenta convencer
Clara a pular o muro com a escada dos pintores e a deixá-lo voltar para a luta,
mas ela tenta convencê-lo a se preservar:
Luiz, o que é que nós sabemos? Nada. A não ser
que eles estão lá na frente armados até os dentes e
querendo nos eliminar. Que eles sempre estiveram
à frente e armados até os dentes. Enquanto isso nós
falávamos, cantávamos, representávamos e nem fomos capazes ao menos de prevenir dois pobres diabos [os pintores] que não tinham nada com isso. Que
só queriam acabar o seu trabalho e voltar para suas
casas (NEVES, 1978, p. 117).
Luiz, cego pelas ideias de sua batalha, tenta argumentar que a luta é de todos
e que alguns sacrifícios sempre são necessários, ao passo que Clara dispara noSABERES Letras
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vamente: “As metralhadoras estavam nas mãos deles, mas foi a nossa burrice,
a nossa precipitação, a nossa vista curta que acionaram os gatilhos” (NEVES,
1978, p. 119). Define-se, por fim, que ela o esperaria na escada enquanto ele
terminava o trabalho que havia começado. No entanto, logo ele é surpreendido
por tiros de metralhadora, e a moça atravessa o muro revoltada.
Como que para fechar uma estrutura circular muito bem pensada, os dois pintores voltam ao palco e repetem, na terceira, uma cena idêntica à primeira; mas,
dessa vez, no lugar de irem de encontro ao local de onde viriam os tiros, resolvem, inteligentemente, pular o muro pela escada.
“A zebra”, de Jorge Andrade, é a próxima peça da Feira Brasileira de Opinião.
Um pouco distante dos temas abordados nas anteriores, dessa vez a pedra
fundamental será a alienação do povo – sobretudo quando lhe são oferecidos
divertimentos aparentemente desprovidos de um significado político, como o
futebol. A história gira, basicamente, em torno de Floriano, pai de família de
cinquenta anos, que, como bom apostador da loteria esportiva, torce fervorosamente, ouvindo o rádio, por um resultado que lhe alçasse à condição de
milionário. Sua família, no entanto, não toma conhecimento, a princípio, do
que estava em jogo naquela euforia – e alguns de seus filhos lamentam a falta
de visão política do pai.
Enquanto o clima de torcida fica cada vez mais acirrado na sala, os demais
membros da família vão aparecendo com discussões em nada relativas ao jogo,
para desespero de Floriano. A esposa reclama do trânsito e discute algumas
pequenas coisas relacionadas a casa, a filha pede uma calça nova, para não se
sentir menos importante que as colegas da escola, e o filho, Gustavo, procura
saber o que chamava tanto a atenção do pai.
Indagando sobre aquela súbita gritaria de Floriano, Gustavo começa a compreender a situação que se firmava ali. Ele, estudante universitário do curso
de Ciências Sociais, não levava muito crédito do pai – que não via um sentido
pragmático muito relevante na área que o filho seguia. Tomado pelos ideais
difundidos pelo regime militar, Floriano chama o filho de subversivo, pois, contrariando o garoto, para ele, a invenção da loteca esportiva foi uma ideia de gênio – em suas palavras: “Inventar a loteca é inventar a esperança” (ANDRADE,
1978, p. 133).
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Floriano se animava cada vez mais com os resultados das partidas, crendo piamente num final altamente favorável para ele, que lhe legaria uma fortuna de
milhões. Nesse momento aparece o outro filho, Alberto, que reclama do barulho
ocasionado pelo volume altíssimo do rádio. Quase tão alienado em relação aos
problemas sociais quanto o pai, Alberto, assim como seu irmão, Bernardo, vê
um grande futuro com a premiação da loteca.
É então que surge a esperada notícia: em Manaus, o resultado de que Floriano
necessitava acontece – aumentando assustadoramente as chances de sair vencedor. A essa altura, só faltava o resultado do jogo do Corinthians, que, acompanhando pelo rádio, ele sabia estar ganhando por dois a zero. Extremamente
otimista, Floriano manda a filha chamar todos os vizinhos para conhecer o novo
milionário que ali surgia. Compra-se uísque e as comemorações são iniciadas
antes do fim do último jogo – que, para ele, estava sob controle. Cercado por
pessoas que torciam a seu favor ou contra seu triunfo, Floriano recebe a súbita
notícia de que o Noroeste havia empatado o jogo. Com a confiança abalada, ele
ainda crê num resultado positivo quando, na expressão final da peça, a reviravolta acontece e toda a esperança se esvai.
A peça seguinte, de Lauro César Muniz, intitulada “O Mito”, traz uma crítica
bastante áspera ao governo militar por meio da criação de um enredo que expõe
os bastidores do poder absolutamente ao ridículo. Não espanta que a censura
tenha imposto alguns cuidadosos cortes no texto. Contudo, uma obra que já é
relativamente curta – possui apenas dezoito páginas – perderia com a supressão
de algumas passagens.
Especificamente sobre o foco de ação da peça, vê-se uma cena grotesca em que
uma secretária, de nome Celina, tenta encobrir a causa da morte de seu patrão.
Augusto Nobre, importante político da época, havia morrido enquanto tinha
uma pouco ortodoxa relação sexual com sua funcionária, mas, tendo em vista
que ele era casado e possuía uma reputação a ser preservada, essa situação teria
que permanecer oculta.
Entra em cena, então, um médico conhecido do morto, significativamente chamado Dr. Fausto, analisa a situação e começa a preparar a versão do fato que
viria a público. Quando chega a esposa de Augusto Nobre, Helena, a situação
se torna mais complicada. Apesar de se mostrar nalguma medida ciosa da imSABERES Letras
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portância política do marido, ela sente a necessidade irremediável de mostrar
ao médico – que parecia crer nas falácias sobre a honestidade do defunto – todas
as provas sobre as mentiras que haviam sido criadas a fim de sustentar uma
imagem bastante sólida do político.
Helena, aparentemente desnorteada com a situação, ou então tomada por sentimento de vingança, avança para o médico. Assim que ele se deixa dominar
pela recém-viúva, a peça perde seu ar realista e surgem vozes exaltando a personalidade de Augusto Nobre. Transformando repentinamente o palco numa
espécie de enfermaria, vários enfermeiros aparecem para fazer uma reconstituição do finado político. Dizem eles, a propósito: “SENHORES, NÓS PODEMOS
RECONSTRUÍ-LO! TEMOS CAPACIDADE E TÉCNINA PARA FAZER O PRIMEIRO POLÍTICO BIÔNICO DO MUNDO!” (MUNIZ, 1978, p. 171).
O personagem morto se torna, portanto, um tipo de androide, um político biônico – numa clara referência à prática política da época da ditadura, quando,
subitamente, políticos eram substituídos com o simples sinal do governo. Assim termina, comicamente, o pequeno ato que dá corpo à ideia da peça: Augusto Nobre, agindo feito um robô, vira-se de costas para o público e mostra
uma válvula de televisão entre suas nádegas – objeto que ele pediu à secretária
para enfiar ali, ainda quente, causando emoção demais para que seu organismo
suportasse.
“Sobrevividos”, de Leilah Assunção, transfere o foco dos bastidores do poder
para os bastidores da gravação de um comercial televisivo. As pessoas envolvidas são, de modo geral, atores e produtores que estiveram envolvidos diretamente na atmosfera política antiditatorial dos anos 1960, mas, no fim dos anos
1970, encontram-se vendidos ao mercado da cultura de massa por causa das
necessidades financeiras advindas, por exemplo, da vida em família.
Frequentemente, durante a peça, os personagens mais velhos contam aos mais
jovens como era a situação política de dez anos antes, revelando algum saudosismo e certa conformação com a ausência das mudanças que gostariam de ter
implementado. Otávio Bastos, marido de Berenice, personagem que domina a
peça, é, por exemplo, um diretor de pornochanchadas – o que demonstra as
concessões feitas por conta da necessidade financeira.
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A propaganda, enfim, havia sido encomendada por Maria Eugênia Martorano,
mulher que teria partilhado em certa medida a mesma juventude dos demais,
mas que, por conta de uma condição financeira mais privilegiada, conseguiu
inserir-se no mercado, passando para a situação de chefe dos que ali estavam.
Sem maiores delongas, no fim da encenação, o clima realista, a exemplo do que
acontece na obra de Lauro César Muniz, também cai em face de um encerramento diferenciado: surge, inexplicavelmente, no meio do ensaio, a voz de Martorano, que direciona todos a seus devidos lugares a fim de gravar o comercial –
cujo jingle era “COM ‘MORFINEX’ NOSSO-CÉU-DE-ANIL. / SORRISO ABERTO POVO VARONIL” (ASSUNÇÃO, 1978, p. 201). Assim termina o ato, com
atores e público metaforicamente anestesiados em face do momento político.
Após as já citadas peças, ainda se seguem outras duas, de Márcio Souza (“Contatos Amazônicos do Terceiro Grau”) e Maria Adelaide Amaral (“Cemitério
Sem Cruzes”), e termina a Feira Brasileira de Opinião, realizando uma grande
radiografia das mais diversas situações que acometiam os brasileiros da época.
Depois da leitura, fica bem evidente que o espetáculo, em proximidade à Feira
Paulista da década anterior, finca na resistência as raízes do teatro brasileiro
produzido entre os anos da ditadura.
Às vezes tratando a realidade nacional minuciosamente de maneira bem explícita, as peças carregam o pesado fardo da denúncia. Não é por outro motivo
que a censura sempre esteve muito atenta a essa classe artística. Segundo Décio
de Almeida Prado, ao fim de seu Teatro Brasileiro Moderno, “atemorizados os
partidos, abolidos os comícios e a propaganda política, as salas de espetáculo
eram dos poucos lugares onde ainda era lícito a uma centena de pessoas se encontrarem e manifestarem sua opinião” (PRADO, 2001, p. 120).
Contudo, as garras da ditadura a cada ocasião mais afiadas procuravam minar
as forças desse movimento militante dos palcos. Assim, a censura, órgão importantíssimo para a manutenção de uma ordem apática entre os brasileiros, daria,
entre 1977 e 1978, seus últimos e inglórios suspiros. Segundo Yan Michalski,
nessa época os políticos ligados à ditadura perdiam completamente a noção
de ridículo, e a navalha dos censores, aparentemente desvairada, cometia todo
tipo de desatino contra as manifestações culturais. É nesse quadro que padece
a ousadia de Ruth Escobar junto à montagem da Feira Brasileira de Opinião, que
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prometia ser uma espécie de ampliação dos olhares da dramaturgia sobre o
Brasil, abrangendo um círculo que ia do subúrbio das cidades grandes a mais
longínqua região amazônica.
Por outro lado, uma vez que felizmente foram registradas as peças em livro,
sob a direção da própria empresária que idealizou o evento, tornou-se possível tomar conhecimento, ainda hoje, do que se passava no quadro sociopolítico
de trinta anos atrás, graças, sobretudo, à ousadia das imagens carregadas que
trazem. Tal questão se aproxima, portanto, daquilo que vem sendo chamado
“literatura de testemunho”, ou “literatura de teor testemunhal”. Afinal, essas
peças, de autores que, pessoalmente, sofreram nos porões da ditadura, não são
uma forma de testemunho do nefasto panorama brasileiro da época? E, além
de fincar os pés na resistência, qual seria a motivação para se registrar em tinta
sobre celulose aquilo que foi impossibilitado de subir aos palcos?
Com essas cenas aparentemente descontínuas, que vêm à tona a cada peça que
se lê, concretizam-se imagens do passado, congelado em pequenos escombros
– cesuras que um observador benjaminiano quer ver. Segundo Márcio Seligmann-Silva, estudioso que tem levado a noção de testemunho – principalmente
a partir das ideias de Walter Benjamin – às reflexões importantes para a compreensão da literatura em sua relação com a história, esse tipo corrosivo de apreensão literária do passado é típico das situações de repressão. O passado se torna
“uma imagem mutilada, torso: um misto indissociável de lembrança e trabalho
do tempo, esquecimento” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 408). E é contra a força inexorável do esquecimento que se imortalizam as páginas da Feira Brasileira
de Opinião: é pela memória dos vencidos – que, em muitas ocasiões, padeceram
sem que sua história pudesse conhecer as luzes da ribalta.
Referências:
BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. Rio de Janeiro:
Record, 2000.
ESCOBAR, C. H. et al. Feira Brasileira de Opinião. São Paulo: Global, 1978.
MAGALDI, S. Um palco brasileiro: o Arena de São Paulo. São Paulo: BrasilienSABERES Letras
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se, 1984.
MICHALSKI, Y. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1985.
POLÍTICA entra; criança não. Visão. São Paulo, p. 88-89, 10 jul. 1978.
PRADO, D. de A. O Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo: Perspectiva, 2001.
SELIGMANN-SILVA, M. “Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin
e Chris Marker: a escritura da memória”. In: SELIGMANN-SILVA, M. (Org.).
História, Memória, Literatura: O testemunho na Era das catástrofes. Campinas:
Editora Unicamp, 2003, p. 391-418.
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O MILITAR NA OBRA DE CACASO
Nelson Martinelli Filho1*
Resumo:
Análise do poema “Obra aberta”, do livro Na corda bamba (1978), de Cacaso,
atentando para a relação tensa entre história (do Brasil, em particular) e forma,
ideologia e estética, e destacando a presença simultânea da dor como tema e do
humor como recurso.
Palavras-chave: Cacaso. Humor. Dor.
Não há como negar que Cacaso tenha sido um dos grandes nomes da Geração
Mimeógrafo: aquela vasta gama de poetas que, principalmente na década de setenta, caminhava em vias contrárias às do mercado editorial, produzindo livros
de forma artesanal – daí “mimeógrafo” – e que geralmente recebe a alcunha de
Poesia Marginal. Nas palavras do próprio poeta:
O mais comum é chamar de “marginal” o autor que,
barrado nas editoras, acaba editando e até distribuindo por conta própria, com recursos próprios [...].
Para se entender essa literatura, [...] acho conveniente
aprofundar o que significou pra vida cultural brasileira o período posterior a fins de 68, 69 (CACASO,
1997, p. 12-13).
1*Graduando em Letras – Português pela Universidade Federal do Espírito Santo e bolsista de Iniciação Científica (PIBIC) pelo CNPq.
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Cacaso viveu essa situação e, valendo-se de seus conhecimentos como professor
de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira da PUC-RJ, em diversos ensaios
e entrevistas pensou de forma crítica o momento cultural por que passava o
Brasil, sendo um dos primeiros intelectuais a teorizar sobre este movimento.
Como frequentemente faz Heloísa Buarque de Hollanda, fico também tentado
a citar as palavras de Roberto Schwarz, talvez o que melhor descreveu Cacaso
e sua aparência:
A estampa de Cacaso era rigorosamente 68: cabeludo, óculos John Lennon, sandálias, paletó vestido em
cima de camisa de meia, sacola de couro. Na pessoa
dele, entretanto, esses apetrechos da rebeldia vinham
impregnados de outra conotação mais remota. Sendo
um cavalheiro de masculinidade ostensiva, Cacaso
usava a sandália com meia soquete branca, exatamente como era obrigatório no jardim-de-infância. A sua
bolsa a tiracolo fazia pensar numa lancheira, o cabelo
comprido lembrava a idade dos cachinhos, os óculos
de vovó pareciam de brinquedo, e o paletó, que emprestava um decoro meio duvidoso ao conjunto, também (SCHWARZ apud CACASO, 1997, p. 307).
Contudo, nem sempre foi o poeta do poema-piada, do verso ácido, da crítica à
política, do desbunde, enfim, poeta marginal: antes de ser Cacaso, era Antonio
Carlos de Brito, estudante de Filosofia da UFRJ. Assim, como veio ao mundo,
lança o primeiro livro, A palavra cerzida, em 1967: um tanto quanto grave e clássico para os que estão habituados aos seus livros, literalmente, marginais.
Tamanho foi o fracasso dessa obra que pôs em xeque a confiança de Cacaso em
sua própria poesia. Justificou-se, afirmando que o livro tinha uma pretensão um
pouco filosófica, que era – e ele utiliza essas palavras – um livro de estudante de
Filosofia. Tal abatimento ante a produção poética resultou em um intervalo de
sete anos entre A palavra cerzida e a segunda publicação, Grupo escolar, de 1974.
Numa nota, Cacaso se explicou:
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Depois de cinco anos sem escrever um só verso, desconfiado mesmo da poesia, voltei a arriscar encorajado pela Ana Luisa, que me chamou para trabalharmos
juntos em sua tese para a Escola Superior de Desenho
Industrial (CACASO, 2002, p. 139).
Grupo escolar foi o primeiro livro produzido artesanalmente pelo autor, onde
se sente muito mais à vontade com sua própria poesia. Entre as quatro “lições”
que o compõem – “Os extrumentos técnicos”, “Rachados e perdidos”, “Dever
de caça” e “A vida passada a limbo” –, pode-se perceber uma verve crítica que
se desenvolve em versos com humor, muito mais atenta aos acontecimentos
diários, traço que lhe será tão comum daqui para frente. Esses fatos cotidianos
incluem, obviamente, a política. Começa a se destacar, então, a naturalidade
com que Cacaso lida com a situação em que se encontrava o Brasil: a ditadura
militar. Chamam a atenção o humor e a ironia ao tratar de assuntos tão sérios,
e, em maior grau, a dor da repressão. Sua poética torna-se mais livre: ganhava
o matiz marginal que lhe faltava em A palavra cerzida:
Uma poesia alegre, que troca o mofo e o esquecimento das estantes por uma participação mais viva na
cena cultural, uma poesia que sai para as ruas, que se
vale das formas de sobrevivência as mais variadas e
sugestivas (CACASO, 1997, p. 19).
Nesse clima, de vez aos moldes marginais, lança em 1975, um ano após o anterior, Beijo na boca. Agora, com maior frequência, Cacaso registra os acontecimentos do cotidiano em flashes através de poemas-piada, demonstrando a forte
influência de Oswald de Andrade sobre a poesia dessa época:
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HAPPY END
o meu amor e eu
nascemos um para o outro
agora só falta quem nos apresente
(CACASO, 2002, p. 114)
Ainda em 1975, o poeta, em parceria com Luis Olavo Fontes, escreve o livro
Segunda classe, fruto de uma viagem que fizeram pelo rio São Francisco de Pirapora a Juazeiro. Apesar de haver na edição mais recente uma marcação para
os poemas de cada autor, no original prevalecia a indistinção de autoria, sendo,
mesmo, um livro a quatro mãos – possivelmente um ato seminal para a tese
do “poemão”, que Cacaso defenderia mais tarde e sobre a qual discorreremos
adiante. Sobre Segunda classe, diz Raimundo Carvalho:
Os poemas de Segunda classe, no seu aparente descompromisso, dão-nos o testemunho da tragédia que se abateu sobre o rio
e o povo das margens e também revelam
o compromisso ético daquela geração de
poetas (CARVALHO, 2008, p. ?).
Pois então é numa viagem de vapor que se chega à quinta produção de Cacaso,
“revista e diminuída”: Na corda bamba, de 1978. Com seu formato reduzido, os
poemas desse livrinho têm, em sua grande maioria, de um a três versos, chegando ao máximo de seis. É importante destacar que este é o primeiro livro que
Antonio Carlos de Brito assina como Cacaso, representando uma nova marca em sua obra. O poeta está mais maduro e já se consagra como um grande
estudioso da Poesia Marginal. Sua poesia agora era definitivamente parte do
“poemão”, tese em que ele defendia a total desindividualização da produção,
em que todos faziam parte de um grande projeto coletivo. É nesse livro que se
encontra o talvez poema-chave de sua obra, e o que melhor representa a forma
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de conceber a sua poesia:
NA CORDA BAMBA
Poesia
Eu não te escrevo
Eu te
Vivo
E viva nós!
(CACASO, 2002, p. 55)
Sobre essa corda bamba, diz Flora Süssekind:
Entre arte e vida: aí se equilibra a poesia brasileira nos
anos 70 e 80. [...] São as vivências cotidianas do poeta,
os fatos mais corriqueiros que constituirão a matéria
da poesia (SÜSSEKIND, 2004, p. 114-115).
O projeto inicial desse livro continha ilustrações do cineasta José Joaquim
Salles, com quem Cacaso esteve em Paris no ano de 1975, que assim registra
o encontro:
Cacaso passa em minha casa e pela primeira vez vê
alguns de meus desenhos. Para minha surpresa me
convida para ilustrar o novo livro que estava escrevendo. Traz um envelope pardo contendo várias páginas soltas dos poemas. (SALLES apud CACASO,
2004, p. 87).
O projeto não ficou pronto a tempo, e em 1978 foi lançado o livro apenas com
ilustrações de seu filho Pedro, então com sete anos. Por iniciativa do próprio
José Joaquim Salles e em parceria com seu filho Tomás Salles, o projeto foi
lançado em 2004, 26 anos depois do original. Em 1982, chega o último livro
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de Cacaso: Mar de mineiro, vindo à sombra de Na corda bamba, que confirma a
solidez de sua obra em meio a tantos poetas da Geração Mimeógrafo, agora
ainda mais experiente.
Poderíamos, portanto, dizer que Cacaso militou? Sabemos que a palavra “militar” pode vir carregada de conotações pejorativas, especialmente quando aplicada à década de setenta – refiro-me ao verbo, pois não é necessário comentar
sobre as implicâncias do substantivo “militar” naquele período. Numa época
em que se convivia com “os novos condicionamentos, o massacre e a desorganização do movimento estudantil, o controle de informações, a despolitização
gradativa e segura das paixões e das ambições, as novas formas de rebeldia”
(CACASO, 1997, p. 13) e, claro, as rixas e rachas que ocorriam no meio intelectual, dizer que alguém militava poderia ter más associações. No entanto, Cacaso
militava: com seus, por vezes quase imperceptíveis, ataques à ditadura, com os
dribles na censura e com sua argúcia como teórico e crítico. Mas é o primeiro
elemento que nos interessa agora:
OBRA ABERTA
Quando eu era criancinha
O anjo bom me protegia
Contra os golpes de ar.
Como conviver agora com
Os golpes? Militar?
(CACASO, 2002, p. 54)
Além de uma certa ressonância do “Poema de sete faces” (ANDRADE, 2005,
p. 15) de Drummond, percebemos que dois versos do poema são metrificados
em redondilha maior, sete sílabas métricas: o primeiro e o segundo. Podemos
pensar da seguinte maneira: seria talvez mais natural que a preposição “com”
do penúltimo verso fizesse parte do último, obtendo a seguinte configuração:
“Como conviver agora / com os golpes? Militar?”. Seguindo essa estrutura, os
dois versos também se tornariam redondilha maior e deixariam o poema mais
metricamente uniforme.
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Ora, devemos lembrar que o rigor formal não fazia parte da estética da geração
marginal. Dessa maneira, parece que Cacaso quebra a sequência métrica propositadamente, deixando de pé quebrado o poema para fugir dos padrões ideais
no que toca à produção poética.
Quanto ao título, podemos ligá-lo sem maiores dificuldades a Obra aberta (1962)
de Umberto Eco, recordando que o poeta também era professor de Teoria Literária. Entretanto, é viável relacionar o título e o livro Obra aberta à estética não
só de Cacaso, mas da Poesia Marginal como um todo. Entende-se uma obra
como “aberta” a partir de uma nova maneira relacional entre autor e intérprete,
muito peculiar nesse tipo de literatura – jovem, alternativa, independente, contracultural.
O caráter artesanal das obras e o modo direto de comercialização permitiam
um maior contato entre o leitor e o autor, sugerindo intimidade e cumplicidade,
pois o livro era comprado com quem o fez: de mãos em mãos. Tornava-se um
jogo: ler e ser lido, registrar os acontecimentos da vida e observar o que outro
também registrara. E isso pode ser ligado diretamente à tese do “poemão” de
Cacaso: uma grande obra coletiva, “aberta”, em progresso: a total desindividualização do autor.
Existe uma continuidade profunda de experiências
entre os poetas, que de alguma forma se manifestará
na produção de cada um, com os poemas se interpenetrando, se confundindo uns com os outros, como se
fossem partes complementares de um mesmo poemão
que todos, sem qualquer combinação prévia, estivessem compondo juntos (CACASO, 1997, p. 81-82).
É importante também considerar que o poema “Obra aberta” é dedicado a José
Joffily Filho, grande amigo de Cacaso e cineasta que lançara o seu primeiro curtametragem em 1978, ano da publicação de Na corda bamba. Assim, pode-se ver
o título sob uma nova ótica: uma homenagem ao amigo que acabara de iniciar
sua obra cinematográfica: a obra estava aberta, inaugurada.
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Ainda é possível destacar uma terceira interpretação para o título. Através da
mudança semântica da palavra “golpes” da primeira – “golpes de ar” – para a
segunda ocorrência – “golpes? Militar?” –, que adquire uma pesada conotação
principalmente quando ligada aos acontecimentos políticos a partir de 1964,
Cacaso nos faz refletir, de forma bem-humorada, sobre como um intelectual em
oposição ao regime ditatorial sobreviveria ou, no mínimo, conviveria com aquilo. A pergunta é respondida pelo poeta com uma outra pergunta: “Militar?”.
Para além da ambiguidade gerada por pertencer a duas classes gramaticais –
verbo e substantivo –, a pergunta retórica de Cacaso parece não ter uma resposta correta ou ao menos alguma que lhe caiba. Militar de que forma? Militar:
um verbo tão caro aos movimentos esquerdistas pode soar, muitas vezes, como
símbolo de rebeldia e, inegavelmente, de luta.
Cacaso militava. Não era necessário que saísse às ruas: sua militância era mais
velada, mais literária. Como crítico literário, estava atento aos acontecimentos
de sua época:
A polêmica é tanta, que até setores tradicionalmente coesos e solidários começam a explodir. A poesia,
tanto a dita marginal como a dita de vanguarda, sofre
rachas (CACASO, 1997, p. 103).
O poeta também teve algumas divergências mais acentuadas com o grupo dos
concretistas, como podemos perceber no seguinte poema, com claras referências aos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari:
ESTILOS DE ÉPOCA
Havia
os irmãos Concretos
H. e A. consanguíneos
e por afinidade D. P.,
um trio bem informado:
dado é a palavra dado
E foi assim que a poesia
deu lugar à tautologia
(e ao elogio à coisa dada)
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em sutil lance de dados:
se o triângulo é concreto
já sabemos: tem 3 lados.
(CACASO, 2002, p. 152)
Com uma agudeza incomum, seus ensaios ainda são indispensáveis para uma
compreensão mais completa do que foi a década de setenta no meio intelectual,
cultural e, principalmente, literário.
Não deixemos escapar o ponto principal: a militância política. Como foi dito,
a partir de Grupo escolar as críticas à ditadura passaram a ser constantes,
ora diretas, ora mais ocultas. Percebe-se que esta se trata de uma temática
recorrente na poesia dos anos setenta, como podemos perceber nas palavras
de Ítalo Moriconi:
Vemos constantes referências críticas à situação política do Brasil na época (regime militar), muitas vezes
a partir da vontade de desconstruir os mitos e estilemas nacionalistas da esquerda tradicional brasileira
(MORICONI, 1998, p. 14).
Observemos, então, mais um poema de Cacaso:
LOGIA E MITOLOGIA
Meu coração
de mil e novecentos e setenta e dois
já não palpita fagueiro
sabe que há morcegos de pesadas olheiras
que há cabras malignas que há
cardumes de hienas infiltradas
no vão da unha na alma
um porco belicoso de radar
e que sangra e ri
e que sangra e ri
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a vida anoitece provisória
centuriões sentinelas
do Oiapoque ao Chuí.
(CACASO, 2002, p. 163)
Comparando o poema acima com “Obra aberta”, percebemos que este refere-se
ao momento político brasileiro com muito menos cautela. Mesmo assim, circulava de mãos em mãos a partir de 1978. Essa era uma capacidade excepcional de
Cacaso: a de se livrar habilmente da censura. Então a obra de Cacaso era aberta
a militar? A pergunta é ambígua e a resposta também. Sim e não. Cacaso disse:
Daqui a algum tempo, quando forem estudar a literatura feita aqui e nos dias de hoje, vai se ver que
boa porção do que interessa sobreviveu à margem
e muitas vezes apesar das instituições (CACASO,
1997, p. 13).
A obra de Cacaso sobreviveu, apesar das instituições, apesar dos militares. Recorro às palavras de Heloísa Buarque de Hollanda para tentar compreender a
sobrevivência de sua obra:
A lembrança de Cacaso, poeta tempo integral, letrista
prolífico, parceiro de Edu Lobo, Francis Hime, Sueli
Costa & Nelson Angelo, exímio desenhista, professor
universitário, ensaísta e principal articulador e teórico da poesia marginal, aquela produzida semi-clandestinamente em mimeógrafo e craque em driblar a
censura, pode talvez ajudar na compreensão de sua
permanência em nossa cena cultural (HOLLANDA
apud CACASO, 2004, p. 9-10).
Sobreviveu, mas não se sabe se pelo fino e irônico humor, se pela crítica, se pela
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teoria, se pela militância, se por ter tirado de letra, e de letras, a dor da repressão
nos militares anos de chumbo e de generais: tudo isso em conjunto com generosas doses de riso, poesia e vida.
Referências:
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Seção III
Estudos sobre o Ensino
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A EJA E A ALFABETIZAÇÃO: UMA VISÃO
SOCIOLINGUÍSTICA
Maraléia Silva Nogueira1*
Maria Amélia Dalvi2**
Talita Oliveira Silva3***
Resumo
Alfabetizar e letrar tem sido objeto de estudo de muitos especialistas e grupos
de pesquisa, nos últimos anos, evidenciando-se um interesse crescente pela superação das perspectivas tradicionais e um questionamento dos saberes e práticas originários de uma disseminação no mínimo problemática das perspectivas
construtivistas e sócio-interacionistas, a partir dos anos 60. Com isso, cria-se
a necessidade de uma reflexão acerca das metodologias de ensino, muitas vezes pautadas pela priorização das perspectivas normativas de ensino de língua
portuguesa, não se levando em consideração a realidade linguística e social do
aluno. O presente artigo pretende fomentar reflexões sobre as práticas de alfabetização na EJA, buscando os objetivos do ensino da língua, que deveriam ser
formar indivíduos capazes de compreender e produzir textos que circulam na
sociedade.
Palavras-chave: Alfabetização. Educação de Jovens e Adultos. Sociolinguística.
1*Especialista em Estudos da Linguagem pela Faculdade Saberes.
2**Doutoranda em Educação e Linguagens pela Universidade Federal do Espírito Santo.
3***Especialista em Estudos da Linguagem pela Faculdade Saberes.
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Apresentação do problema
Os resultados de uma recente pesquisa (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad) divulgada pelo IBGE apontaram um discreto aumento da taxa
de analfabetismo no estado do Espírito Santo. O índice passou de 8,5% em 2007
para 8,8% em 2008. Isso significa que o estado possui pelo menos 231 mil analfabetos com mais de 15 anos de idade. O dado positivo, apontado pela mesma
pesquisa, diz respeito ao incremento da escolarização em todas as faixas etárias
compreendidas entre os 04 e os 17 anos, divididas em quatro grupos, conforme
demonstra a tabela abaixo:
Tabela 1
Mais sensivelmente, ocorreu um aumento na taxa de escolarização do grupo
etário de 15 a 17 anos (passou-se de 135 mil para 157 mil matriculados). No
entanto, a taxa atual de escolarização (82,9%) permanece a menor do Sudeste.
No grupo de 7 a 14 anos, a taxa de escolarização foi a maior registrada em 2008
na mesma região.
No grupo etário de 18 a 24 anos, não contemplado na tabela acima, a taxa de
escolarização passou de 28,0% para 24,4%; e no de 25 anos ou mais, a taxa foi de
4,3% para 4,2%, de 2007 a 2008 – em ambos os casos, dá-se a ver um decréscimo
na taxa de escolarização.
No entanto, o que interessa mais diretamente a este trabalho não são os índices estatístico-numéricos em si mesmos. Pretende-se pensar de que maneira as
contribuições dos estudos recentes mais canônicos acerca da alfabetização e do
ensino-aprendizagem de leitura e escrita numa perspectiva sociolinguística podem ao menos movimentar as concepções que temos a respeito da alfabetização
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na Educação de Jovens e Adultos.
A Educação de Jovens e Adultos, para além de seus próprios desafios históricos (como, por exemplo, o estigma dirigido aos professores e principalmente
aos alunos; a necessidade de, muitas vezes, haver-se com uma carga horária
reduzida e com estudantes trabalhadores de classes populares, que apresentam dificuldades próprias, distintas das de uma turma regular; etc.), ainda
enfrenta um outro enorme, quando diz respeito aos primeiros anos do ensino
fundamental: acolher, alfabetizar e fomentar a aquisição e o exercício plenos
das atividades de leitura e escrita entre pessoas que viveram, durante muitos
anos, na contramão de uma sociedade grafocêntrica, sem o domínio de habilidades que hoje são consideradas, numa perspectiva liberal e funcionalista, fundamentais, inclusive para a inserção na vida social, incluída aí a do trabalho, e,
numa perspectiva crítica, para a participação ativa na vida política e na tomada
de consciência cidadã.
A falta de investimentos na formação continuada dos professores, a ausência
de materiais didáticos específicos e a escassez de recursos para utilização em
sala de aula têm gerado um grande déficit no processo pontual de alfabetização
e, poderíamos dizer, no processo contínuo de letramento41 na EJA (Educação
de Jovens e Adultos). Os alunos terminam o ciclo da alfabetização, na maioria
das vezes, apenas reconhecendo os símbolos linguísticos e não conseguem fazer uma ligação do símbolo com o sentido ou significado atinente ao mesmo,
o que ocasiona uma dificuldade maior na aprendizagem de outras disciplinas,
pois elas têm, geralmente, como base a leitura e produção de textos e a reflexão
acerca de problemas relacionados à sociedade, tendo a escrita como importante
instrumento para a coleta, produção, sistematização e análise de dados. Assim,
o aluno finaliza o percurso dos primeiros anos do ensino fundamental sem conhecimentos escolares sólidos, não sabendo como lançar mão dos conteúdos e
temas abordados em sala de aula no dia-a-dia, sem desenvolver uma reflexão
crítica sobre a sociedade em que vive.
1- Conhecemos
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as críticas ao uso da expressão letramento e do verbo letrar, especialmente em trabalhos de uma visão mais crítica, de correntes neomarxistas. No entanto, dadas
a disseminação da perspectiva do letramento e a dimensão diminuta deste texto, não
iremos nos aprofundar nestas divergências teóricas, políticas e pragmáticas.
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Magda Soares, no ensaio intitulado “As muitas facetas da alfabetização” (2008),
defende que a entrada tanto da criança quanto do adulto analfabeto no mundo
da escrita ocorre simultaneamente por dois processos: pela aquisição do sistema
convencional de escrita – a alfabetização – e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita nas práticas sociais
que envolvem a língua escrita – o letramento. A autora afirma que não são processos independentes, mas interdependentes e indissociáveis: a alfabetização
desenvolve-se no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita,
isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema e
grafema-fonema, isto é, em dependência da alfabetização.
Percebe-se que uma das dificuldades encontradas na alfabetização na EJA é a
priorização do primeiro processo (nem sempre levado a cabo com sucesso), ou
seja, a alfabetização, desvinculada do segundo processo, o letramento. Segundo
Soares, no entanto, esses dois processos devem ocorrer simultaneamente.
A importância de alfabetizar e letrar
Alfabetizar e tornar letrados jovens e adultos pode ser também entendido como
uma atividade política, pois se dá, a partir de então, a modificação da cultura e
dos modos de vida desses indivíduos, pois terão mais facilidade no acesso a informações (que chegarão sem os possíveis equívocos da “tradução” escrito-oral
por parte de outras pessoas), entenderão o que está escrito nos documentos,
rótulos, placas, letreiros, folhetos etc. e passarão a ter uma identidade na qual se
reconhece a própria caligrafia (tanto em sentido literal quanto, principalmente,
metafórico).
Para Magda Soares (2006), faz-se necessário alfabetizar letrando, ou seja, ensinar a ler e a escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de
modo que o indivíduo se torne, ao mesmo tempo, alfabetizado e letrado. Para
ela, letramento envolve leitura, e ler é um conjunto de habilidades, de comportamentos e conhecimentos. Escrever também o é. Ambas, a leitura e a escrita,
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compõem o processo de apropriação, produção, conservação e transmissão do
conhecimento. Nessa perspectiva, há diferentes tipos e níveis de letramento,
dependendo das necessidades, das demandas do indivíduo, do seu meio, do
contexto social e cultural.
Quando relacionamos os indivíduos a um contexto social e cultural amplo, percebemos que o letramento ocorre também – e talvez principalmente – além da
comunidade escolar, pois os indivíduos, após serem alfabetizados, devem fazer
uso dos códigos escritos nas práticas sociais e culturais que transcendem os muros institucionais. Entretanto, vemos que as escolas priorizam apenas um tipo
de prática de letramento, que não condiz, muitas das vezes, com as exigências
da vida cotidiana, real:
[...] a escola, a mais importante das agências de letramento, preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de
letramento, a alfabetização, o processo de aquisição
de códigos (alfabético, numérico), processo geralmente concebido em termos de uma competência
individual necessária para o sucesso e promoção na
escola. Já outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua, o lugar de trabalho mostram
orientações de letramento muito diferentes. (KLEIMAN, 1995, p. 20).
Isso, na Educação de Jovens e Adultos, considerando-se os anos iniciais do ensino fundamental, torna-se especialmente grave, pois os estudantes, ao ingressarem (ou retornarem) à escola, esperam não apenas a aquisição de códigos
(alfabéticos, numéricos, etc.), mas a inserção no mundo letrado, visando à lida
com as condições concretas de existência – o que, pragmaticamente, pode traduzir-se em um emprego melhor, em acesso aos serviços básicos, em possibilidade
de acompanhar os filhos nas tarefas de casa, enfim, em circunstâncias menos
desumanas de vida. Se a escola se nega a fazer essa passagem do “iletramento”
ao letramento real (e não apenas escolar), se nega, também, a participar da construção da ponte por que milhares de pessoas no Brasil anseiam. Embora possa
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parecer extremamente funcional ou pragmatista a redação das linhas acima,
nós, como professores, não podemos nos eximir da responsabilidade social de
todos os que atuam nas turmas de alfabetização de jovens e adultos.
Sociolinguística e ensino de língua portuguesa
Segundo Soares, diante dos precários resultados que vêm sendo obtidos, entre
nós, na aprendizagem inicial da língua escrita, com sérios reflexos ao longo de
todo o ensino fundamental, parece ser necessário rever os quadros referenciais
e os processos de ensino que têm predominado em nossas salas de aula. Kato,
por sua vez, afirma que a ausência de práticas significativas com a linguagem
escrita, nas primeiras séries do ensino fundamental, resulta num prejuízo continuado que também avança pelas demais séries (KATO, 1995, p. 77).
Mediante essas afirmações, que refletem sobre as práticas de ensino da língua,
é notória a preocupação com a falta de significação desses conteúdos (de leitura
e escrita) para os alunos e com as consequências disto, vida afora. Se levarmos
em consideração que o público-alvo desse artigo são os jovens e adultos, essa
reflexão deverá aprofundar-se, partindo do pressuposto de que eles chegam
à escola trazendo consigo uma já consolidada realidade ideológico-linguística,
por sua vez potencialmente diferente tanto da do professor, quanto da realidade ideológico-linguística dos outros colegas, já que uma das marcas das turmas
de EJA é, sempre, a diversidade – que, de acordo com os PCN’s, é reconhecida
pelas instituições oficiais encarregadas de planejar a educação no Brasil e deve
ser trabalhada, como ponto de partida e de chegada, nas salas de aula. Segundo
Marcos Bagno (2007, p. 19), temos ao alcance excelentes estudos para aprimorar
o ensino de nossa língua, não nos prendendo ao que consideramos “erros” e
sem fazermos discriminação da variedade do aluno e de seu grupo social.
Para aprimorarmos o ensino da nossa língua e termos uma prática de ensino
significativa, devemos ter como base a realidade sócio-cultural do aluno, sem
deixarmos de nos preocupar com a realidade linguística e com a necessidade de
letrar, proporcionando o contato com modalidades diversas de uso dos recurSABERES Letras
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sos linguageiros – no entendimento de que letrar não é nunca sinônimo de reduzir às práticas escolares às multiplicidades potenciais da língua. Consequentemente, poderemos trabalhar com gêneros textuais e discursivos que circulam
socialmente em distintos meios (valorizando, inclusive, aqueles aos quais os
estudantes, mesmo que sem consciência disso, estão habituados), seja para leitura ou para a escrita, e com as variedades regionais e os distintos registros
linguísticos, tentando abranger ao máximo as diversidades – tanto de interesse,
quanto de experiência de vida – possíveis.
Considerações finais
Observamos que, para que o aluno da EJA comece a se interessar pelo mundo
da escrita e da leitura como ato de vida, independência e determinação, não se
depende apenas do aluno, mas também do incentivo e das metodologias utilizadas pelo professor – que dão a ver as concepções políticas e linguísticas que
este toma para si.
O professor deve priorizar práticas que desenvolvam e assegurem a progressiva autonomia dos alunos, pois é vital para que alcancem suas expectativas
pessoais e sociais, bem como ampliem suas relações interpessoais sem a ingerência de terceiros. O professor alfabetizador da EJA precisa avaliar que o uso
de livros e cartilhas não pode limitar o entendimento dos sentidos e significados
culturais e sociais de práticas (de leitura e escrita) muito mais amplas que as
escolares. Nesse sentido, não tem cabimento a repetição de exercícios mecânicos
que visem simplesmente à habilidade de decodificar símbolos.
Assim, será possível contribuir para a redução de um dos grandes problemas da
Educação de Jovens e Adultos que é a evasão escolar. Trabalhando-se a alfabetização numa perspectiva sócio-histórica e cultural, o aluno saber-se-á apto a resignificar suas experiências – o que, ressaltamos, não se traduz, evidentemente,
numa perspectiva salvacionista da escola e da apropriação da leitura e escrita.
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Referências
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KATO, M. A. O aprendizado da leitura. S ão Paulo: Martins Fontes, 1999.
KLEIMAN, Â. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola.
Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da
escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995.
PARÂMETROS curriculares nacionais – terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental
MEC, 1998.
SOARES, M. As muitas facetas da alfabetização; Língua escrita, sociedade e
cultura: relações, dimensões e perspectivas. Alfabetização e letramento. 5. ed .
São Paulo: Contexto, 2008, p. 13-45.
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
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AS CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA SÓCIOCULTURAL PARA O ENSINO/APRENDIZAGEM DE
INGLÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA
Rosângela Guimarães Seba1*
Sávio Silveira de Queiroz2**
Resumo:
Este artigo apresenta uma reflexão sobre as contribuições da teoria sócio-cultural de Vygotsky (1998) para uma maior compreensão do processo de ensino/
aprendizagem de inglês como língua estrangeira. Sob essa ótica, a aprendizagem ocorre através de tarefas colaborativas que promovem a negociação durante interações verbais entre pares ou em pequenos grupos na sala de aula. Baseado nesses pressupostos, a interação e o processo de negociação como forma de
aprendizagem será o tema central discutido. O trabalho pretende incentivar um
novo olhar sobre o processo de ensino/aprendizagem de língua estrangeira,
no qual, sob a perspectiva sócio-cultual, aprendizagem e desenvolvimento se
tornam fenômenos inseparáveis.
Palavras-chave: Teoria sociocultural. Ensino/aprendizagem de língua estrangeira. Interação. Negociação.
1* Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) sob
orientação do segundo autor. Professora da Faculdade Saberes.
2** Professor
Santo (UFES).
Dr. do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito
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1. Introdução
Ao longo dos anos, pesquisadores têm desenvolvido e testado teorias sobre o
processo de aquisição da linguagem humana. No campo da aquisição de segunda língua, ou de língua estrangeira (doravante L2)31, a literatura é certamente
densa. Porém, muitos estudiosos concordam que um grande número de pesquisas ainda se faz necessário nessa área (MITCHELL & MYLES, 2002; LIGHTBOWN & SPADA, 1999; ELLIS, 1995; SKEHAN, 1998; WILLIAMS & BURDEN,
1997). Embora o foco da maioria desses estudos não seja ensino/aprendizagem,
não se pode negar as valiosas contribuições que eles têm prestado à pedagogia.
A grande variedade de aspectos e fenômenos estudados tem levado o professor
a melhor compreender seus alunos, a analisar suas experiências em sala de aula,
e a melhorar suas práticas pedagógicas.
Das tendências atuais, uma que tem contribuído para melhor reflexão sobre o
processo de ensino/aprendizagem de L2 é, sem dúvida, a psicologia sócio-histórica do desenvolvimento, também conhecida como sócio-cultural, ou sóciointeracionista, cuja questão central é a aquisição de conhecimentos pela interação
dialética do indivíduo com o meio em um processo histórico, mediada por sistemas simbólicos, através de instrumentos e signos (ferramentas auxiliares). A
principal ferramenta para a mediação da atividade psicológica é a linguagem,
uma vez que é através dela que se torna possível alcançar o desenvolvimento
e a aprendizagem. Representante maior dessa teoria, o psicólogo russo Lev S.
Vygotsky (1962, 1998) propõe que o indivíduo não é um reflexo passivo do meio
em que vive, e nem se constitui de dentro para fora. Ao contrário, ele é um sujeito ativo e operante, que vai reconstruindo internamente as atividades externas,
como resultado de processos interativos que ocorrem ao longo de sua vida.
Embora os estudos realizados por Vygotsky tenham se concentrado no processo de aquisição da linguagem da criança em língua materna, seus princípios
podem certamente ser aplicados à aquisição de uma segunda língua. Portanto,
nessa perspectiva, a aquisição de uma língua estrangeira ocorre primeiramente
como resultado da interação social, tornando-se depois internalizada e apro1- Neste artigo, os termos aprendizagem e aquisição são usados intercambiavelmente,
embora se reconheça a distinção feita por Krashen (1981), apresentada na página 8.
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priada pelo aluno. A escola tornou-se um dos principais fatores ou ambientes
de interação social. Por conseguinte, a sala de aula de L2 também é um ambiente no qual o aprendiz constroi o seu próprio conhecimento, ao mesmo tempo
em que contribui para a construção do conhecimento dos outros. A partir dessa
visão de ensino/aprendizagem de L2 como prática social, cada indivíduo passa
a desempenhar um papel relevante, ao mesmo tempo em que todos juntos se
tornam parceiros nesse processo: o professor deixa de ser aquele que possui
todo o conhecimento a ser transmitido, e passa a ser o mediador desse conhecimento e o facilitador da aprendizagem. Ao aluno é dada a oportunidade de
expressar suas opiniões, desejos, levantar suas hipóteses, vivenciar outras experiências e, através do diálogo e da negociação com colegas mais experientes na
sala de aula, chegar a novas conclusões acerca do uso da língua alvo, criando,
assim, um conhecimento comum. Dessa forma, observa-se que, sob a ótica da
teoria sócio-cultural, passa a haver a relevância da negociação, do diálogo, da
mediação, da interação entre pares e pequenos grupos no processo de ensino/
aprendizagem de língua estrangeira, uma vez que a produção realizada por
meio do uso da língua alvo através de tarefas colaborativas para solução de
problemas comunicativos e para a construção do conhecimento é considerada
como um elemento que favorece a aprendizagem (OHTA, 2001; SWAIN, 2000;
LANTOLF, 2000; PICA, 1987).
Tendo como base esses pressupostos teóricos, este artigo visa a apresentar uma
reflexão sobre as contribuições da teoria sociocultural para uma maior compreensão do processo de aprendizagem de língua estrangeira, e a aplicação dos
seus princípios na sala de aula. Com esse fim, a interação e o processo de negociação como forma de aprendizagem de inglês como L2 será o tema central
discutido, ressaltando-se a importância do suporte e da mediação na zona de
desenvolvimento proximal do aluno.
2. A interação e o processo de negociação como forma de aprendizagem de L2
Segundo a teoria sociocultural, a interação é considerada como origem e conSABERES Letras
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texto do desenvolvimento cognitivo (WERTSCH, 1988), uma vez que tal desenvolvimento é interpsicológico, ou seja, ocorre a partir das relações sociais
estabelecidas no decorrer da vida do indivíduo.
Nos últimos vinte anos, a interação passou a desempenhar um papel crucial no
ensino/aprendizagem de língua estrangeira, graças aos trabalhos de pesquisadores como Long (1981), Gass (1997), Swain (2000-2006), van Lier (2000), Pica
(1987), Lantof (2000), dentre outros, que vêm buscando, a partir de diferentes
enfoques, uma compreensão mais detalhada do processo de aquisição de L2 à
luz da teoria sociocultural de Vygotsky (1998). Sob essa ótica, a interação não
é vista apenas como um fator motivacional. Ao contrário, ela é crucial para o
desenvolvimento cognitivo do aluno. Para Vygotsky (op cit), a aprendizagem
ocorre na interação, e não como resultado dela, ou seja, a interação se constitui
como o próprio processo de aprendizagem.
De todos os fenômenos complexos que podem ocorrer durante a interação, a
negociação de sentido e de formas linguísticas é considerada na literatura de L2
como facilitadora da aprendizagem (GASS, 1997; SWAIN, 1995; LONG, 1983,
1981; PICA & DOUGHTY, 1985). Pesquisas têm demonstrado que a negociação
entre os participantes de pequenos grupos em tarefas colaborativas nas quais
eles desempenham um papel ativo na construção da sua aprendizagem, como
por exemplo, jigsaw (atividade tipo quebra-cabeça) ou information gap (lacuna
de informação) dictogloss e reformulation proporciona oportunidades para que
melhor compreendam e usem adequadamente a língua alvo. Através da negociação durante as atividades em pares ou em pequenos grupos, os alunos recebem insumo compreensível42 constroem seus enunciados, refletem sobre o uso
da língua, elaboram e testam hipóteses, recebem e oferecem feedback ao colega,
esclarecem dúvidas e, consequentemente, melhoram a sua produção (SWAIN,
1995). Nesse contexto, a produção (verbal ou escrita) na língua alvo é vista não
apenas como uma mensagem a ser transmitida, mas também como uma ferramenta para o desenvolvimento cognitivo do aluno. A linguagem, segundo
Vygotsky (1962), tanto expressa como organiza o pensamento.
Através da negociação, o indivíduo também desenvolve a capacidade de formação dos conceitos denominados por Vygotsky de científicos. Ao contrário dos
2- Termo criado por Krashen (1985,1981) e definido neste artigo na página 8.
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conceitos cotidianos, “aqueles que se desenvolvem por meio da atividade prática ou interação social imediata da criança”, como explica Tunes (1995, p.33), os
conceitos científicos se desenvolvem “por meio da aquisição de um sistema de
conhecimento mediado pelo ensino formal”. A aprendizagem de L2 se assemelha à aquisição dos conceitos científicos, uma vez que também ocorre através da
aprendizagem formal, feita de maneira consciente. Esse tipo de aprendizagem
favorece a construção das funções psicológicas superiores.
As negociações através das atividades colaborativas em sala de aula funcionam
como mecanismos pelos quais ocorre a transformação da língua alvo do plano interpsicológico (entre os indivíduos) para o intrapsicológico (interno). Esse
processo, que envolve a transformação de um fenômeno social em um fenômeno psicológico, é denominado internalização (WERTSCH,1988). Como explica
Vygotsky (1998, p.75),
Todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social, e, depois,
no nível individual; primeiro, entre pessoas (interpsicológico) e, depois, no interior da criança (intrapsicológico) (...) Todas as funções superiores originam-se
das relações reais entre indivíduos humanos.
Para Vygotsky (op cit), as funções psicológicas chamadas superiores (atenção
voluntária, raciocínio dedutivo, pensamento abstrato, percepção, etc) são conscientes, intencionais, voluntárias, culturalmente estimuladas e organizadas, e
qualitativamente diferentes das chamadas funções inferiores (elementares, espontâneas, biopsicológicas e geneticamente adquiridas, como ações reflexas e
reações automáticas). Essas funções psicológicas superiores pressupõem o uso
de intermediários externos, chamados de instrumentos psicológicos ou signos.
Assim como os instrumentos constituem “um meio pelo qual a atividade humana é dirigida para o controle e domínio da natureza (...), os signos constituem
um meio de atividade interna dirigido para o controle do próprio indivíduo”
(VYGOTSKY, 1998, p.73). O controle da natureza, assim como o do comportamento, provoca mudanças psicológicas. É importante ressaltar que, como expliSABERES Letras
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ca Wertsch (1988), Vygotsky não via a internalização simplesmente como uma
transferência de processos sociais exteriores do plano interpsicológico para o
plano interior, intrapsicológico. Ao contrário, Vygotsky acreditava que a internalização transforma a própria função psicológica, modificando a sua estrutura
e funções. Assim, a internalização é o processo no qual o plano intrapsicológico
é formado. A internalização significa o controle voluntário sobre os signos externos que se formam nas relações com os outros.
Sob essa ótica, desenvolver psicologicamente não significa aprender a fazer
algo novo, mas adquirir o controle de algo que já se podia fazer anteriormente
com a ajuda dos outros. Esse conceito de assistência ou suporte, também conhecido como andaimento (scaffolding) é bastante significativo para o ensino/
aprendizagem de L2, uma vez que envolve não apenas o auxílio fornecido por
um parceiro mais experiente (professor, falante nativo, outro colega na sala de
aula) ao menos capacitado, mas principalmente porque estimula o desenvolvimento da autonomia do aprendiz. Como afirma Vygotsky (1998, p.113), “aquilo
que uma criança pode fazer com assistência hoje, ela será capaz de fazer sozinha
amanhã”. Assim, é preciso observar que o objetivo maior do suporte ao aluno
durante a aprendizagem de L2 é fornecer meios para que ele aprenda como
realizar as tarefas, a fim de que se torne um indivíduo independente, capaz de
resolver seus próprios problemas e de tomar decisões conscientemente. Uma
das maneiras mais eficientes para auxiliar o aluno a aprender a aprender e a
desenvolver a sua autonomia é através do ensino explícito de estratégias de
aprendizagem. Segundo Ellis e Sinclair (1989, p.10), as estratégias de aprendizagem e de leitura, por exemplo, constituem meios eficientes para “conduzir o
aluno em sua jornada rumo ao autoconhecimento e à autoconfiança.” Estudos
a respeito da eficiência do uso de estratégias de aprendizagem desenvolvidos
na área de aquisição de segunda língua, comprovam que à medida que o aluno
progride na aprendizagem da língua alvo, ele se torna mais independente e
capaz de auxiliar seus colegas durante as tarefas colaborativas em sala de aula.
Oxford (1990), O’Malley e Chamot (1990), Wenden e Rubin, (1987).
Como se pode observar, a teoria sócio-cultural de Vygotsky aponta-nos para
um ensino explícito e intencional, no qual o professor é um mediador, desempenhando um papel fundamental no desenvolvimento do aluno no contexto de
ensino/aprendizagem de L2.
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Um outro postulado da teoria sócio-histórica bastante importante para o ensino/aprendizagem de L2 é que, como explica Oliveira (1995, p. 10-11), “o desenvolvimento psicológico deve ser olhado de maneira prospectiva, isto é, para
além do momento atual, com referência ao que está por acontecer na trajetória
do indivíduo.” Isto significa que as possibilidades de aprendizagem não se encontram no nível de desenvolvimento já alcançado, mas sim, além dele, “nas
funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação
(...) e que poderiam ser chamadas de ‘brotos’ ou ‘flores’ do desenvolvimento,
ao invés de ‘frutos’ do desenvolvimento”, como afirma Vygotsky (1998, p.113).
Assim, a aprendizagem, para Vygotsky, acontece na zona de desenvolvimento
proximal (ZDP), que ele define como:
“a distância entre o nível de desenvolvimento real, que
se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas
sob a orientação de um adulto ou em colaboração com
companheiros mais capazes.” (p.112).
Apesar de esse conceito ter sido utilizado para explicar a aprendizagem de
crianças, percebe-se também que pode ser aplicado perfeitamente à aprendizagem de L2 tanto por crianças como por adultos. Na verdade, pode-se observar
uma relação entre o conceito de ZDP de Vygotsky e a hipótese do insumo compreensível (comprehensible input) do linguista norte-americano Stephen Krashen
(1985, 1981). Segundo esse autor (op cit), a aquisição de segunda língua ocorre
quando o indivíduo está exposto ao insumo linguístico de nível imediatamente
superior ao seu. Assim, se o nível de competência do indivíduo é “i”, então o
comprehensible input será igual a “i + 1”. Para Krashen (op cit), o insumo muito
simples (abaixo do nível de competência real do aluno) ou muito complexo ( i +
2, +3, ou +4, por exemplo) não será apropriado para a aquisição.
A importância da interação social para a aprendizagem defendida por Vygotsky
também é enfatizada por Krashen (1981) na sua hipótese sobre a aquisição de
segunda língua (acquisition. x learning hypothesis). Embora o primeiro use o
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termo internalização e o último fale em aquisição, ambos se referem a um processo interno resultante da interação social. Para Krashen, aprendizagem e aquisição são processos distintos. Enquanto aprendizagem só ocorre conscientemente
e através de instrução explícita, a aquisição de uma língua ocorre espontaneamente, em ambiente natural, através do convívio com falantes nativos. Não há
comprovação, entretanto, se Krashen foi influenciado pelas idéias de Vygotsky,
mas para o contexto de L2, ambos fornecem elementos fundamentais para uma
maior compreensão do processo de aprendizagem. É importante ressaltar que
as hipóteses de Krashen, embora tenham exercido grande influência no ensino
comunicativo, atualmente têm sido contestadas. Consequentemente, na literatura de L2, a distinção entre aprendizagem e aquisição não mais procede.
A Zona de Desenvolvimento Proximal não é um espaço físico situado no tempo
e no espaço, mas sim uma metáfora para se observar e compreender de que
maneira o conhecimento mediado é internalizado e apropriado pelo indivíduo.
Em outras palavras, ela é uma região dinâmica na qual ocorre a transição entre
as funções interpsicológicas e intrapsicológicas. Como explica Lantolf (2000, p.
17) a ZDP pode ser compreendida como a “construção colaborativa de oportunidades para o indivíduo desenvolver suas habilidades mentais”. No contexto
de L2, podemos nos referir à ZDP como a distância entre aquilo que o aluno
pode realizar sem o auxílio de um falante mais competente da língua-alvo e
o que esse mesmo estudante é capaz de fazer em colaboração com um falante
mais competente. Por exemplo, um aluno de inglês como língua estrangeira é
capaz de se comunicar com os outros utilizando-se de algumas formas e funções da língua, mas, dependendo do seu nível de competência, pode não ser
capaz ainda de fazer uso de estruturas mais complexas, por apresentar ainda um conhecimento limitado dessas formas linguísticas. Entretanto, com a
ajuda de colegas, professores ou falantes nativos ele pode se tornar capaz de
comunicar-se com sucesso na língua-alvo. Um exemplo típico ocorre durante as
primeiras aulas, quando o aluno de nível básico tenta, entusiasticamente, travar
um diálogo com o professor e logo a seguir, se sente frustrado por não conseguir manter a conversa. Caso seja um aluno desinibido e atento, ele aproveita a
oportunidade para aprender novas estruturas e funções através dessa conversa
informal. Havendo oportunidade para uso frequente dessas noções adquiridas,
elas se tornam internalizadas e a aprendizagem ocorre (Long, 1983), como ilusSABERES Letras
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trado no quadro abaixo.
Aluno: Hello, teacher!!!
Professor: Hi, Bob. How are you?
Aluno: I´m fine, thanks.
Professor: Did you have a nice weekend?
Aluno: er.....I´m .....I´m.... excellent.
Professor: Oh, you had an excellent weekend!!!!
Aluno: Yes, I had an excellent weekend.
O construto de ZDP (VYGOTSKY, 1998,1962) reforça a idéia de que o professor tem o papel de mediador; ele passa a atuar como um elo entre o aluno e o
seu conhecimento. Segundo Long (1981), o professor faz a mediação do aprendizado de L2 através de recasts, como no exemplo acima, em que o professor
apresenta uma versão expandida e gramaticalmente correta da frase produzida
anteriormente pelo aluno, através de reformulações, por feedback corretivo implícito e/ou explícito.
Aluno: Does, does the driver responsible for the accident?
Professor: Was the boy....
Aluno: Was the boy responsible for the accident?
(feedback corretivo e reformulação)
Entretanto, de acordo com a teoria sócio-histórica, nunca podemos afirmar com
segurança sobre o que vai acontecer em um processo de aprendizagem, pois a
ZDP difere de aluno para aluno, dependendo das características individuais,
como por exemplo, motivação, autoestima, ansiedade, estilos e estratégias de
aprendizagem, do contexto sócio-cultural, das experiências anteriores e da perSABERES Letras
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sonalidade de cada indivíduo. Assim, como professores de língua estrangeira,
devemos nos conscientizar de que nossos alunos são indivíduos únicos e, dessa
forma, necessitam de assistência, tempo e ritmo de aprendizagem diferenciados. O tipo e a intensidade de suporte fornecido pelo professor na sala de aula
de L2 deve então variar de aluno para aluno.
Embora seja reconhecida a importância do professor para a aprendizagem de
segunda língua, Lantolf (2000) aponta que vários estudiosos estão propondo
uma compreensão mais abrangente da ZDP, e pesquisas têm sido realizadas investigando não apenas a interação entre indivíduos mais e menos competentes,
mas também entre pares com níveis de competência similares. Amparada pelos
pressupostos teóricos de Vygotsky, Swain (2000, p.98) acredita que para uma
maior compreensão da aprendizagem de L2 que resulta da interação, o foco das
pesquisas precisa ser ampliado. “Precisamos investigar além da compreensão
do insumo” e ressalta que é a produção (output) que leva o aprendiz a processar
a língua mais profundamente, ou seja, com maior esforço mental. Ao produzir,
afirma a autora, o aluno assume o controle. Ele precisa criar formas linguísticas
e significados e, ao fazer isso, percebe o que ele é ou não capaz de fazer. Dessa
forma, ao contrário de Krashen, Swain (2006, 2000, 1995, 1985) propõe a hipótese da produção compreensível (comprehensible output) para “esticar” a interlíngua53 do processamento semântico, estratégico, que prevalece no processo de
compreensão, para o processamento sintático, gramatical, necessário para uma
produção correta. Ao se deparar com um problema linguístico durante a produção, o indivíduo se conscientiza de suas deficiências, busca meios para suprilas através da interação negociada e, consequentemente, internaliza as novas
formas e funções da L2, como demonstrado no quadro a seguir64:
Episode 6:
(090) S1: .... então vamos lá. 16. “Nayar aims to build an organization full of
highly-skilled employees” Ponto.
3- O conceito de interlíngua foi desenvolvido pelo linguista norte-americano L. Selinker
(1991) para designar a linguagem de transição entre a língua materna e a língua alvo produzida por um falante não nativo a partir do início do seu aprendizado dessa língua.
4- �����������������������������������������������������������������������������������
Este episódio, um protocolo verbal, é parte da pesquisa de Mestrado da primeira autora, baseada nos estudos de Swain e seus colaboradores, e na teoria sócio-cultural de
Vygotsky (Seba, 2008).
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(091) S2: ponto, não. A gente junta com a 18 e põe “which”. Esse é o conectivo
pra pessoas, né? Tira Nayar.
(092) S1: tá.... “and which”.... “which” não é pra coisas? ... “and that”... não,
“that” é que é pra coisas, não?
(093) S2: acho que é.... deixa eu ver.... agora não tô lembrando não. Deixa “which” mesmo.
(094) S1: a gente usou “which” aqui pra “tickets”. Hum hum... “tickets” é coisa.... “full of highly-skilled employees which will be dedicated...” acho que seria
“whose”
(095) S2: não… “whose” é “de quem”. “who” é quem.
(096) S1: tá… então vamos deixar “which” mesmo. Acho que serve pros dois.
(097) S2: “Nayar aims to build an organization full of highly-skilled employees
which can better focus on customer success”. Tá bom; Vamos em frente.
Swain (2006, 2000, 1995, 1985) desenvolve pesquisas em cursos de imersão no
Canadá há mais de vinte anos, com o objetivo de investigar a maneira pela
qual a interação em pares e a interação consigo mesmo pode contribuir para o
desenvolvimento da L2 em sala de aula através do diálogo colaborativo (também chamado de metafala) com foco na forma. A intenção é verificar como, utilizando-se de protocolos verbais, o que e o quanto os alunos podem produzir
sem a intervenção do professor. Para a pesquisadora, a percepção, formulação
e verificação de hipóteses, e negociação consciente das formas linguísticas incompreendidas durante tarefas comunicativas orais e escritas para solução de
problemas, causam o “esticamento da interlíngua” (interlanguage stretching) e,
consequentemente, aprendizagem de L2. Como explica a autora (2000, p.112),
“a verbalização não se constitui apenas como um instrumento de pesquisa; ela
apresenta importantes consequências para a aprendizagem”. Os dados resultantes das pesquisas são gravados em áudio e, em alguns casos, em vídeo, e
transcritos para análise. Entrevistas e questionários também constituem instrumentos para coleta de dados. Para comprovação da hipótese, as pesquisas de
Swain têm sido replicadas, pré e pós testes aplicados aos alunos envolvidos no
programa, além de novas investigações que têm fornecido grandes contribuiSABERES Letras
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ções para o ensino/aprendizagem de L2. Seguindo os pressupostos teóricos de
Vygotsky, os estudos realizados por Swain ressaltam a importância de se considerar o processo de interação em si, e não apenas o resultado dessa interação e
negociação de sentido e das formas linguísticas da língua alvo. O que importa,
segundo a autora, é o espaço interativo criado; que transformações ocorrem
durante a negociação nesse ambiente e de que maneira se dá a construção do
conhecimento. Esses estudos têm estimulado pesquisadores em diversas universidades brasileiras (UFF, UFMG, UFMT, UFB, UNICAMP, UCEPEL, dentre outras) a investigar, também à luz da teoria sócio-histórica, a relevância da
negociação com foco na forma durante a interação, para o processo de ensino/
aprendizagem de língua estrangeira.
Certamente, por ser bastante rica e complexa, a teoria criada por Vygotsky, assim como os estudos de autores considerados neovygotskinianos, apresentam
diversos aspectos como o discurso interno (fala interior) e a teoria da atividade,
dentre outros, que também têm fornecido subsídios importantes para pesquisas
em L2 desenvolvidas principalmente nos Estados Unidos e Canadá. Entretanto,
o presente artigo se propôs a apresentar apenas uma breve discussão sobre a
importância da interação e da negociação para a aprendizagem de L2. A partir
desse trabalho, pretendeu-se incentivar um novo olhar sobre o ensino/aprendizagem de língua estrangeira, um processo basicamente social, no qual o papel
do professor como mediador do conhecimento é fundamental, mas principalmente no qual o aluno é um ser único, com enormes possibilidades de crescimento que certamente devem ser estimuladas. Nessa perspectiva, desenvolvimento e educação tornam-se fenômenos inseparáveis.
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DITADO E CÓPIA NA APROPRIAÇÃO DA
ESCRITA: É POSSÍVEL ALFABETIZAR SEM O BÁBÉ-BI-BÓ-BU?
Jozué Sousa1*
Márcia Seufetelli2**
Margareth Caliari3***
Maria Amélia Dalvi4****
Maria Beatriz Celestino5*****
Resumo:
O objetivo deste trabalho é salientar os aspectos do método das cartilhas em
relação ao ditado e à cópia, apontando as idéias de Luiz Carlos Cagliari (1998)
em diálogo com outros autores. Tem como foco principal sustentar a afirmação
de que os alunos não aprendem a escrever fazendo ditados ou cópias. Defende
que o ditado deveria ser usado de forma lúdica para despertar o interesse dos
alunos pelo estudo e para a interação entre eles e que a cópia só tem sentido
quando associada ao mundo real, ao contexto social do aluno, e não como apenas castigo ou punição. Visa, portanto, re-significar as atividades de ditado e
cópia no processo de apropriação da escrita.
1* Licenciado em Letras e especialista em Estudos da Linguagem, pela Faculdade Saberes.
2** Licenciada em Letras e especialista em Estudos da Linguagem, pela Faculdade Saberes.
3*** Licenciada em Letras e especialista em Estudos da Linguagem, pela Faculdade
Saberes.
4**** Licenciada e mestre em Letras e doutoranda em Educação, pela Universidade
Federal do Espírito Santo.
5***** Licenciado em Letras e especialista em Estudos da Linguagem, pela Faculdade
Saberes.
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Palavras-chave: Ditado. Cópia. Leitura e escrita. Alfabetização.
Introdução
Preocupado com o fato de que alguns alfabetizadores persistem em usar o método das cartilhas nas séries iniciais, Luiz Carlos Cagliari (1998) escreveu o livro
Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu, utilizando seus conhecimentos linguísticos e
de outros professores, observados por ele, em sala de aula, voltados para a área
do ensino da leitura e escrita na alfabetização. O autor aponta “erros” que alguns professores cometem na relação ensino–aprendizagem ao priorizarem o
uso mecânico das cartilhas nas atividades de classe; para isso, dentre outras
coisas, ele aborda o tema “ditado e cópia”, instrumento muito utilizado pelos
professores, esclarece pontos cruciais e critica a forma “abusiva” como o ditado
e a cópia são utilizados na aquisição da leitura e da escrita.
Nosso texto expõe e analisa criticamente a pesquisa bibliográfica e qualitativa
desenvolvida por Luiz Carlos Cagliari, com base em suas experiências docentes
e nas de outros profissionais observados. São abordados os motivos que levam
alguns professores alfabetizadores a usarem o método das cartilhas nas séries
iniciais, privilegiando, sobretudo, exercícios como o ditado e a cópia.
Na primeira parte do trabalho, o autor discorre sobre as várias situações sociais reais em que o ditado é utilizado, tais como informações passadas de uma
pessoa a outra e anotações em sala de aula, e critica a maneira escolar como ele
é aplicado: prática que constrange os alunos. O ditado, como normalmente é
trabalhado nas salas de aula, “é uma prática que envolve mistério – não sabe
o que o professor vai ditar – gerando ansiedade” (Cagliari, 1998, p. 289). Ele
pontua os tipos de ditados, que podem ser fonéticos ou semânticos, e diz que
muitas vezes só servem para que o professor avalie se o seu aluno sabe escrever
ortograficamente ou não. Segundo ele, ainda, “nos ditados não é raro encontrar
erros absurdos sem razão aparente; ao passo que, nos textos livres, quase todos
os erros têm explicações muito convincentes relacionadas ao processo de reflexão que levou o aluno a escrever de determinado jeito” (Cagliari, 1998, p. 290).
Em seu trabalho, Cagliari aborda, ainda, os seguintes temas: os ditados para
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acertar a ortografia; ditados do/no dia-a-dia; ditado mudo; anotações; ditado e ortografia; ditado e transcrição fonética; o ditado e o método das cartilhas; consequências dos ditados na alfabetização; e como e quando fazer
ditados. O tipo de ditado que Cagliari critica é o tradicional, usado, exclusivamente, pela escola.
Na segunda parte de seu trabalho, ele aborda a cópia e diz que esta só tem
sentido quando associada ao mundo real. A cópia é útil quando associada às
diversas explicações que os alunos receberam em sala de aula e a respeito das
quais precisam tomar notas, com palavras do dia-a-dia, que eles conheçam, e
não quando se torna um ato mecânico ou castigo, pois, ao invés de incentivar o
aluno a aprender, isso só o leva ao enfado e à aversão aos estudos.
A cristalização dos métodos
Os equívocos cometidos por alguns professores se dão na medida em que desconhecem a complexidade das relações entre letras e sons; as letras, por apresentarem uma forma gráfica e fixa, não reproduzem os diferentes dialetos e
pronúncias dos alunos. Segundo Cagliari (1990, p. 288), “O ditado, na verdade,
é uma atividade linguística muito comum em certas situações sociais, razão, talvez, pela qual se tornou de agrado especial dos professores alfabetizadores”. Só
que a escola utiliza esta prática indiscriminadamente como forma de avaliação
e controle. Cabe ressaltar que, mesmo quando não é usado para avaliação e controle, o ditado pouco acrescenta ao domínio das regularidades e irregularidades
nas relações entre letra e som. O que permite esse paulatino desenvolvimento é
a atividade reflexiva sobre a linguagem e a língua, em seus usos reais.
A criança pode escrever qualquer palavra ditada sem, contudo, conhecer o seu
significado. Para Carlos Sánchez (2002, p. 23), “Todo indivíduo ou adulto alfabetizado pode escrever praticamente tudo o que lhe for mostrado por escrito,
mesmo que não compreenda o que está escrevendo ou lendo. Por exemplo, a
palavra ‘cucurbitácea’, mesmo que desconheça o seu significado”. Perguntamos: essa atividade, de escrever reiteradamente palavras sem refletir sobre as
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mesmas ou atribuir-lhes significado, em que acrescenta à apropriação da leitura
e da escrita ou mesmo ao exercício da vocação simbólica?
Em seu trabalho, Cagliari critica exatamente este tipo de atividade e, consequentemente, de método, pois os mesmos tratam as palavras fora do seu contexto,
sem significado, sem levar em conta as relações sociais e históricas travadas na/
pela linguagem. Street (1984, apud Marcuschi, 2001, p. 15) apontou-os como
exemplo do “paradigma da autonomia”, por atribuir à escrita valores cognitivos intrínsecos no uso da língua, não vendo neles (escrita e uso da língua) duas
práticas sociais, portanto, imunes à cristalização e à passividade preconizadas
por esse tipo de atividade (ditado e cópia) e método (tradicional).
O professor, nos ditados e cópias escolares convencionais, está preocupado apenas com o desempenho ortográfico e mesmo caligráfico do aluno. Isso revela
que o cenário escolar que opta por essa prática acaba descartando as funções e
os usos sociais da língua, desconsiderando os contextos cotidianos dos alunos,
dificultando a apropriação plena da leitura e da escrita no processo educativo.
Para Isabel Frade (2004, p. 81),
(...) os professores tendem a conservar determinados
procedimentos que podem ser fruto não apenas de
teorias sobre o objeto ou sobre o que se ensina e se
aprende, mas de saberes pedagógicos construídos no
contexto das práticas escolares. Muitos desses conhecimentos circulam e circulam em livros didáticos de
alfabetização.
Embora haja muitos estudos sobre as formas de apropriação da língua escrita,
observamos, com frequência, que a prática em sala de aula ainda mantém-se
cristalizada nos métodos tradicionais, sem promover diálogo com as hipóteses
e resultados de pesquisas desenvolvidas no meio acadêmico.
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O ditado
Luiz Carlos Cagliari (1998) critica o método de ensino-aprendizagem de leitura
e escrita que se apoia no “monte” e “desmonte”, o método do bá-bé-bi-bó-bu,
que, também, não considera a oralidade da criança. Ele afirma que “apesar de
todas as interferências recentes no processo de alfabetização, a prática escolar
mais comum em nossas escolas ainda se apoia na cartilha tradicional (cada ano
com nova roupa e maquiagem)” (p. 31).
Essa cartilha tradicional, travestida, muitas vezes, em discursos pseudoconstrutivistas, pseudo-sócio-históricos e pseudo-interacionistas, dá-se a ver
em atividades mecânicas, que se pautam na dicotomia certo-errado, como é
o caso dos clássicos ditados e cópias escolares, nos quais o “erro” é punido
com a repetição (10, 20, 50 vezes) automatizada do “acerto”, visando à “fixação” da aprendizagem.
No entanto, para Cagliari, “nem toda atividade de ditado é ruim: depende de
como é feita, sobretudo das finalidades de sua realização e de um uso natural da linguagem” (1998, p. 299). Ele defende outras formas de ditado, as que
se referem à prática social e acompanham a vida linguística das pessoas. Por
exemplo, ao anotar-se um recado, um endereço ou telefone ditado por alguém
etc. De acordo com Maciel e Lúcio (2008, p. 19) “é importante que o aluno seja
capaz não apenas de identificar as letras do alfabeto, mas também memorizálas e compreender o seu uso na sociedade” – e um de seus usos é este: fixar por
escrito uma informação dada oralmente.
Segundo Cagliari (1998, p. 293), na escola, os ditados fonéticos também seriam
interessantes, como registro fiel possível da fala do professor ou dos colegas:
seriam escritos somente os sons realmente falados e depois as crianças escreveriam uma nova versão passando as palavras para sua forma ortográfica
correspondente.
Contudo, a despeito do possível uso prático-social dos ditados, Cagliari critica
os mesmos quando empregados pela escola como avaliação, controle da disciplina, castigo, e vai além, pontuando-os em relação à alfabetização:
Não é preciso lembrar aqui como acontece um ditado
numa sala de alfabetização. O mínimo que se pode
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dizer é que se trata de uma cena patética e em grande parte ridícula (...). Conclui-se que o melhor a fazer
com relação aos ditados fonéticos na alfabetização é
aboli-los. Não fazem falta, com isso se ajudaria a eliminar vícios pedagógicos e comportamentos inadequados perante a linguagem. (1998, p. 295-296).
A cópia
A cópia é útil quando associada às diversas explicações que os alunos receberam
ou às palavras do dia-a-dia que eles conheçam, e não como um ato mecânico. É
importante que o professor saiba que a cópia é uma ótima estratégia de ensino
quando realizada de forma cuidadosa e com estabelecimento e compreensão
coletiva dos objetivos. A cópia como uma leitura de mundo oferece excelente
material, é um exercício útil e mesmo necessário quando a criança está iniciando
a alfabetização; o importante é que a cópia não deve ser usada de modo passivo,
apenas como repetição de modelos já dados.
A cópia favorece o processo de memorização, o que L. C. Cagliari considera
fundamental, mas não da maneira priorizada pela escola. Para Cagliari, a escola
deveria cultivar a memorização desde a alfabetização, tanto com obras literárias, quanto científicas. Para o autor, a escola usa esta estratégia (cópia e memorização) de maneira inadequada. Como a escola trata a cópia apenas como uma
repetição mecânica, erroneamente a utiliza como castigo e punição.
A cópia pode ser uma ótima atividade quando inicia a criança no mundo da
leitura e da escrita e é usada para que as crianças reflitam para descobrir os
mecanismos da escrita e leitura. Pode, por exemplo, na alfabetização, servir à
passagem de um texto em letra bastão maiúscula para uma versão em que maiúsculas e minúsculas se diferenciem; ou, ainda, à percepção de aspectos como a
formatação de um texto na página em branco (distribuição do título em relação
ao restante do texto, respeito aos limites de margem e adentramento de parágrafo, distribuição equitativa dos tamanhos dos parágrafos etc.).
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Conclusão
Nosso trabalho, baseado principalmente nos estudos de Cagliari (1998), foi elaborado no intuito de esclarecer pontos ainda difusos para muitos professores,
que teimam em continuar arraigados em métodos que não funcionam. Para alguns alunos, a aquisição da leitura e escrita tem sido um verdadeiro tormento.
Uma das principais causas se assenta no fato de professores se basearem exclusivamente no método tradicional de ensino das cartilhas, o que cria um desgaste
muito grande no aluno pela quantidade de atividades repetitivas e mecânicas,
o que deveria ser um prazer, “o de ler e escrever”, vira punição, principalmente
quando é aplicado como castigo como, por exemplo: “o ficar sem recreio e copiar o texto da página tal” ou copiar as mesmas palavras inúmeras vezes.
Atividades que poderiam ser bem aproveitadas pela escola não são. A escola se
equivoca quando não utiliza os conhecimentos prévios dos alunos, quando não
aproveita as diversas realidades, as variedades linguísticas e a oralidade.
Enfim, os alunos carregam a “sensação” que “falar o português é muito difícil”,
como se já não soubessem falar, e quanto escrever é pior ainda: ingressar no
mundo da escrita, via escola, para muitos, é ter que abrir mão de sua vivência
cotidiana assentada exclusivamente na oralidade. Para acentuar essas dificuldades, alguns professores continuam aplicando métodos que já não estão dando
certo: seja por uma formação deficiente, seja por desatualização, seja por preguiça ou medo de dar uma chance a outra forma de trabalhar, seja por descomprometimento político com a causa do ensino-aprendizagem de leitura e escrita.
Acreditamos que muito pouco tem a ensinar a escola que insistentemente fizer
uso das práticas de ditado e cópia com evidências de inadequação, desarticuladas de funções sociais e práticas reais.
As leituras nos conduzem a dizer que o fato de o ditado e a cópia mecânica ainda serem usados nas escolas indicam uma estratégia de sobrevivência e não de
aprendizagem, uma vez que os professores, ao optarem por um ou por outro,
guardam um silêncio por não haverem conseguido promover a apropriação da
escrita de outra forma.
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Referências
CAGLIARI, L. C. Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu. São Paulo: Scipione,
1998.
FRADE, I. C. A. da S. Escolha de livros de alfabetização e perspectivas pedagógicas do ensino de leitura. In: BATISTA, A. A. G.; VAL, M. da G. C. (orgs.).
Livros de alfabetização e de português: os professores e suas escolhas. Belo
Horizonte: Autêntica; Ceale, 2004, p. 175-200.
MACIEL, F. I. P. & LÚCIO, I. S. Os conceitos de alfabetização e letramento e os
desafios da articulação entre teoria e prática. In: CASTANHEIRA, M. L. et al.
(orgs.). Alfabetização e letramento na sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica;
Ceale, 2008, p. 13-34.
MARCUSHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São
Paulo: Cortez, 2001.
SANCHÉZ, C. A escola, o fracasso escolar e a leitura. In: LODI, A. C. B. et al.
(orgs.). Letramento e minorias. Porto Alegre: Mediação, 2002, p. 15-26.
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TRABALHO E APRENDIZAGEM NA EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS: UMA PROPOSTA DE
INTERVENÇÃO
Luis Eustáquio Soares1*
Resumo:
Com o apoio do conceito de esclarecimento de Adorno e Horkheimer, e com a
importante colaboração do educador Paulo Freire, de A educação do oprimido,
este artigo faz uma proposta de aplicação pedagógica, para o mundo do trabalho, na Educação de Jovens e Adultos, EJA, baseada numa dupla perspectiva
metodológica: uma primeira, fundada na crítica da negatividade, por reconhecer que vivemos numa civilização irremediavelmente excludente; e uma segunda, utópica, por não se circunscrever à crítica pela crítica, complementando-a
com imaginação de e para a alteridade, com, portanto, um ponto de vista de
ensino-aprendizagem cuja intervenção assuma a necessidade de superação tanto da lógica do opressor, quanto da do oprimido.
Palavras-chave: EJA. Educação do Oprimido. Adorno. Hokerheimer. Esclarecimento. Proposta Pedagógica.
1* Luís Eustáquio Soares é professor de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua
Portuguesa, da Universidade Federal do Espírito Santo. Coordena, com as professoras
Júlia Almeida – Ufes – e Lilian de Paula – Ufes, o Núcleo de Pesquisa Diversidade e
Descolonização.
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Trabalho e esclarecimento: a divisão social do
trabalho
Somos seres da natureza, temos um corpo mortal, precisamos comer, sentimos
frio, calor; sentimos dor, medo, desejamos; somos um bicho, o bicho humano,
que é auto-reflexivo; sabe que sente frio, que deseja, porque trabalha.
Por isso o trabalho é tão importante para cada um de nós, porque ele nos marca fundo e raso, sendo um importante referencial para a construção de nossa
identidade pessoal, influenciando-nos no que sonhamos, no que pensamos, no
que fazemos, e também no que deixamos de fazer, porque, através do trabalho,
ampliamos nosso potencial de interação com a natureza, modificando-a; assim
como igualmente dilatamos inter-relações econômicas, políticas, afetivas, epistemológicas e culturais, de humanos para humanos, modificando-nos a todos,
em devir.
E é porque, trabalhando, interferimos no mundo, que problemas humanos, demasiadamente humanos, emergem, relacionados que estão com a intervenção
técnico-científica humana nos diversos ecossistemas do planeta Terra, nossa
casa comum.
Desses problemas, especificamente humanos, que nós criamos, sempre através
de nosso trabalho, dois são particularmente importantes. O primeiro tem a ver
com o fato (inaceitável) que faz alguns humanos, poucos (chamados de nobres,
de senhores feudais, de elites, de empresários, de ricos) se apropriarem do trabalho de muitos, tomando para si, e apenas para si, a riqueza que é construída
pelo trabalho da maioria.
O segundo problema, como consequência do primeiro, tem a ver com o mal que
causamos ao planeta Terra – daí a crise ecológica. Numa civilização em que, via
exploração do trabalho, a riqueza produzida tem como objetivo a satisfação de
uma ínfima parcela de humanos, a maioria dos seres vivos da Terra fica absolutamente vulnerável, seja porque a biodiversidade é ela mesma explorada, com
o objetivo de produção de mais-valia, seja porque, partindo do ponto de vista
de uma pequena parcela de humanos, perdemos nossa potência para aquilo que
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poderíamos chamar de imaginação de alteridade, sem a qual não é possível usar
o trabalho a serviço da biodiversidade, motivo pelo qual o trabalho, em nossa
civilização, sempre exclui, é excludente, pois seus benefícios não alcançam pelo
menos 2/3 dos seres humanos do planeta. Esse desequilíbrio faz com que tenhamos uma relação também desequilibrada com o planeta, não permitindo
que tenhamos mais cuidado com os outros seres.
Assim, é porque existe opressão de classe, porque alguns humanos se apropriam da riqueza, que é coletivamente produzida, que desenvolvemos uma relação senhorial com os outros seres do planeta, o que nos faz dialogar com o
conceito de esclarecimento, de Adorno e Horkheimer.
Para prosseguirmos, apresentamos o seguinte fragmento de A dialética do Esclarecimento, livro em que ambos pensadores da Escola de Frankfurt expuseram tal
conceito. Vejamos:
No sentido mais amplo do progresso do pensamento,
o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo
de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida
resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal.
O programa do esclarecimento era o desenvolvimento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber. Esclarecimento: credulidade, aversão à duvida, temeridade no responder,
vangloriar-se com o saber, timidez no contradizer, o
agir por interesse, a preguiça nas investigações pessoais, o fetichismo verbal, deter-se em conhecimentos parciais: isto e coisas semelhantes impediram
um casamento feliz do entendimento humano com a
natureza das coisas e o acasalaram, em vez disso, a
conceitos vãos e experimentos erráticos (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p.19).
Esclarecimento, assim, é o conceito que Adorno e Horkeheimer desenvolveram
para explicar a nossa relação com os outros seres do planeta, assim como a nossa relação de humanos com e para humanos. Porque somos vulneráveis, tiveSABERES Letras
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mos que nos esclarecer, isto é, constituir saberes para dominar, seja a natureza,
seja a força de trabalho humano.
Desde os primórdios da espécie humana, nesse sentido, nos afastamos da natureza, constituindo a cultura humana – a civilização humana –, claro, através do
trabalho. No entanto, como todo trabalho envolve saber, e é desenvolvido através de algum tipo de técnica, esclarecimento e trabalho são sinônimos, porque, ao
trabalharmos, utilizando qualquer tipo de técnica, nos sobrepomos à natureza,
de forma senhorial, e gradativamente a vamos dominando, nos distinguindo
dos outros seres, de forma antropocêntrica.
Eis porque, como dizem Adorno e Horkheimer, quando a Terra estiver totalmente esclarecida, estaremos sob o signo de uma calamidade, porque, uma
vez que, nós, humanos, estivermos todos esclarecidos, teremos dominado, via
saber, via técnica, todo o planeta Terra, gerando a calamidade da dominação
humana, através, é claro, do trabalho humano, que tem sido uma forma de nos
distinguirmos dos outros seres, gerando separação nossa em relação à natureza;
e nossa em relação a outros humanos, porque, ainda em diálogo com Adorno e
Horkehaimer, criamos a civilização humana sob o signo do esclarecimento, que
foi uma estratégia que desenvolvemos para nos sobrepormos ao planeta, de
forma senhorial, o que nos levou, simultaneamente, a explorar, como objetos
manipuláveis, a vida.
Eis porque não existe diferença entre a exploração antropocêntrica da natureza
e a exploração do trabalho humano, por alguns poucos humanos. Também não
é circunstancial que tenhamos, por isso mesmo, criado sociedades de castas e
classes, como consequência direta da divisão do humano para natureza e de
humano para humano, tendo o trabalho como eixo.
E aqui chegamos à nossa sociedade atual, que é a da divisão social do trabalho.
A etimologia do trabalho: o tempo livre
Para ilustrar, é bom saber que a palavra trabalho vem do latim, e significa (tri
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palium), quer dizer, três paus. Há muito tempo atrás, na Antiguidade, todo escravo (e o escravo é exatamente aquele que é obrigado a dar todo seu trabalho
para o seu senhor) homem era castrado, isso mesmo castrado, como hoje castramos porcos para engordar.
O escravo era castrado exatamente porque se acreditava que, assim, ele ficaria
mais mansinho, mais calmo, mais dominado. O método para a castração era
o seguinte: existia uma peça chamada exatamente tripalium, composta de três
paus. Quando acionada, os três paus esmagavam o escroto do escravo, tornando-o castrado. Depois, essa mesma peça, o tripalium, tornou-se a base etimológica, através de uma estratégia metonímica, para o nome de uma peça feita para
arar a terra, também composta de três paus pontiagudos (que hoje conhecemos
como arado). O segundo tripalium (ou o arado) era puxado por um animal (um
cavalo ou um boi), enquanto deixava para traz um vinco na terra, onde depois
eram jogadas as sementes.
A partir daí, dá para termos uma ideia precisa do que foi dito antes, a de que o
primeiro problema (o de alguns poucos humanos tomando a riqueza do trabalho da maioria) é determinante para o segundo (o de que, pelo trabalho, estamos destruindo o planeta, causando o chamado impacto ecológico, tendo como
base o conceito de esclarecimento), pois assim como castramos o trabalhador,
para produzir riquezas, castramos também o planeta, para produzir riquezas
para alguns poucos, e isso é ser esclarecido.
Com o passar do tempo, o tripalium (seja o feito para castrar o escravo, seja o
feito para arar a terra) foi perdendo a sua importância, porque novas técnicas
foram sendo criadas, novos “tripaliuns” mais eficientes, seja para continuar castrando o trabalhador, seja para continuar castrando a Terra. Um desses “tripaliuns” podemos chamar, hoje, de automação do trabalho, através de novas
tecnologias, o robô, o computador, e assim por diante.
Tudo como se dissessem assim, simplesmente: “agora não precisamos mais de
vocês, para produzir e acumular riquezas, e não queremos nem mais que vocês
sejam nossos escravos. Se virem”.
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Desde os começos da história humana, o trabalho foi o nosso grande desafio.
O mito de Adão e Eva, do Gênese, nos fala um pouco disso, já que o primeiro
castigo (supostamente imposto por Deus) aos humanos (através de Adão e de
Eva) foi o de ter que manter a vida com o suor do nosso rosto, com o trabalho,
ou o tripalium.
Daí porque, hoje, poderíamos estar entrando ou festejando um momento único
da história humana, porque, pela primeira vez, criamos (através do trabalho,
sempre, nosso) as condições de produzirmos riquezas (através das novas tecnologias) quase sem a presença do trabalho humano direto.
O problema é que nós, trabalhadores, só temos o nosso trabalho para sobreviver. Como faremos se as máquinas estão sendo feitas para ocupar o nosso lugar,
e não para produzir riquezas para todos nós? Esse é nosso grande desafio, o
desafio dos 2/3 de nós que estamos condenados ao tripalium: não mais produzir
riquezas para poucos.
Educação de Jovens e Adultos e o universo do
trabalho
Dialogando com Paulo Freire, de Pedagogia do Oprimido (1968), concordamos
com a necessidade de uma educação que assuma a sua dimensão política, que
é aquela que considera que o conteúdo escolar deve incorporar a necessidade
de superação do ponto de vista do opressor, através da superação do ponto de
vista do oprimido.
O oprimido, nos termos mesmo de Paulo Freire, incorpora a ideologia opressora, através de um reflexo invertido, tal que, por não se ver como oprimido,
aceita esta condição, seja internalizando o ponto de vista do opressor, desejando
tornar-se um opressor, e assim agindo, nos termos do conceito de esclarecimento,
de forma senhorial em relação às pessoas com as quais convive e sobre as quais
detém alguma forma de domínio; seja simplesmente aceitando a sua condição
de oprimido, sem que tenha uma leitura autorreflexiva sobre ela, isto é, sem
que saiba designar-se, politicamente, como ocupando o lugar do oprimindo,
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estendendo essa compreensão ao conjunto de outros humanos que tenha uma
realidade existencial semelhante à dele, o que o permitiria ascender ao que convencionalmente chamamos de consciência de classe.
É dessa forma que, dialogando com Freire, acreditamos que o tema do trabalho,
na EJA, Educação de Jovens e Adultos, deve partir de uma perspectiva assumidamente política, assim entendida a partir da constatação de que vivemos
numa sociedade de classes, de opressores e oprimidos.
A primeira questão que emerge, a partir dessa primeira premissa, a de que vivemos numa sociedade de classes, constitui a necessidade de, como professores,
não aceitarmos que os alunos de EJA sejam preparados para ocupar uma posição subserviente, numa sociedade estruturada pela divisão de classes.
É indispensável apresentar, como o fizemos aqui, a história social do trabalho,
para o aluno, de sorte que ele possa apreender, aprendendo, sua própria condição de classe. Assim, por mais paradoxal que pareça, apresentar, aos alunos,
conceitos aparentemente difíceis, e abstratos, como o de esclarecimento, e paulatinamente torná-los concretos, através de exemplos concretos, constitui, acreditamos, uma aprendizagem indispensável para que o aluno passe a ter uma
consciência autorreflexiva sobre sua própria situação e, através de uma outra
forma de esclarecimento, entender que o lugar do opressor não é o desejável.
Claro é, e aqui novamente estamos dialogando com Paulo Freire, que, sob o
ponto de vista de ensino-aprendizagem, o professor não deve se apresentar
como o senhor do saber, como o esclarecido, logo como sujeito. Como questão
de método, todos devemos ser sujeitos desse saber a ser produzido, de forma
autorreflexiva, a partir de uma comunidade destino, que é a nossa, de humanos,
trabalhando – e estudar por si só é uma forma de trabalho –, para a constituição
de uma aprendizagem liberadora, isto é, não mais senhorial.
E, ainda como questão de coerência metodológica, aplicando uma pedagogia
que não parta da razão senhorial do esclarecimento, nos termos de Adorno e
Horkheimer, acreditamos que é importante respeitar os jovens, como jovens
que são; e os adultos, como adultos, o que faremos se partirmos das experiências de vidas desses alunos, cujos desejos e sofrimentos são universais, porque
têm como origem uma história comum, de opressores e oprimidos; e cujos soSABERES Letras
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nhos, desejos, também, vêm de uma necessidade igualmente comum, de superação da opressão de classe.
Eis porque nossa metodologia deve ser fundada numa perspectiva dupla, a saber: uma primeira, negativa, de crítica negativa, que é a de construirmos interpretações críticas, da negatividade, porque assumiremos que, numa sociedade
de classes, e antropocêntrica, não há saída digna, louvável, de superação da
opressão; e uma segunda, utópica, que é aquela em que constituiremos o caminho de superação das dificuldades, produzindo saberes no e para o comum,
coletivamente, no interior mesmo da escola, através da cooperação entre professores e alunos, tal que todos venhamos a trocar nossas experiências, aceitando
críticas construtivas, rumo a uma aprendizagem coletiva, que será tanto mais
individual, quando mais coletiva for.
Através dessa última metodologia, de crítica negativa, e de uma perspectiva
utópica, e coletiva, de superação de adversidades, poderemos enfim abordar e
enfrentar as dificuldades de cada um, inclusive e, antes de tudo, a dificuldade
básica, de saber ler e escrever com autonomia crítica.
A cultura letrada na educação para o trabalho de
Jovens e Adultos
Acreditamos que a construção da autonomia é fundamental, para a educação
de Jovens e Adultos, também com o objetivo de prepará-los, nossos alunos, para
o mundo do trabalho.
Definimos autonomia como a capacidade de escrever seu próprio nome, que é
uma definição etimológica. No entanto, escrever seu próprio nome, nos termos
deste artigo, só é possível se o fizermos num ambiente em que os demais estejam igualmente constituindo/produzindo suas respectivas autonomias. Nesse
sentido, a autonomia deve ser simultânea à prática da heteronomia, que é o
exercício de percepção do nome alheio, de outros alunos e de professores. Eis
aí o trabalho de aprendizagem coletiva. Eis aí o exercício simultâneo da negatividade crítica e da perspectiva utópica, que é basicamente a de percepção do
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outro, de que somos seres de relação e, por consequência, o que for bom para
mim, para o meu próprio nome, deve ser igualmente bom para o outro escrever
seu próprio nome, de forma autônoma e heterônima ao mesmo tempo.
Tendo em vista esse exercício de aprendizagem coletiva, temos que o medo
da crítica diminuirá, de sorte que, partir de então, devemos nos perguntar
sobre a nossa própria experiência, na escola, exercitando, sem receios, uma
crítica da negatividade, e sempre em nome de uma perspectiva utópica, de
avanço para todos.
É aqui que a necessidade de crítica do modelo de ensino/aprendizagem escolar, fundado geralmente na cópia, na decoreba e na transcrição, deve ser
criticado e percebido como negativo para a nossa própria aprendizagem, de
professores e alunos.
Nesse sentido, passamos a ter um objetivo, constituir aprendizagens escolares
não mais tendo como paradigma a cópia, a decoreba e a transcrição, que são práticas que escondem as dificuldades, nos iludindo, por exemplo, que sabemos
escrever, apenas pelo fato de que sabemos copiar o que o professor transcreve
para o quadro. Temos que aprender a escrever nosso próprio texto, sendo este
um exercício de autonomia.
É aqui que a cultura letrada pode nos ajudar muito. Para tanto, temos que buscar momentos em que a cultura letrada se imbuiu da mesma metodologia que
estamos utilizando, que é a da negatividade crítica, por compreender que vivemos numa sociedade de classes, de opressores e oprimidos, e que a negatividade crítica é exatamente aquela que vai apontar as consequências negativas desse
modelo de sociedade.
Igualmente, devemos buscar momentos, na cultura letrada, em que a negatividade crítica seja propositiva, que tenha, portanto, um gancho utópico, capaz de
imaginar outras formas de conceber e trabalhar no mundo.
A partir de então, todos procederemos a um trabalho de pesquisa, com o objetivo de nos informarmos, e lermos esses autores, nas mais diversas áreas, no
campo da filosofia, sociologia, literatura, e assim por diante.
Aí sim, procederemos à leitura desses autores, dos conceitos desenvolvidos
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por eles, processando a nossa própria aprendizagem, que é de todos. O exemplo cabal dessa metodologia é a incorporação do conceito de esclarecimento, de
Adorno e Horkheimer, base argumentativo deste artigo, posto que constitui,
acreditamos, um referencial crítico importante que, tendo sido produzido no
interior da cultura letrada, contribui substancialmente para entendermos o paradigma civilizatório em que vivemos, o que o torna de extrema importância
para a aprendizagem escolar autônoma e heterônoma, crítica e utópica.
Claro é que a cultura letrada não é um referencial absoluto. Uma proposta como
esta, de duplo gancho metodológico, tecido e entretecido, a um tempo, por uma
crítica da negatividade, como contraponto para a emergência de uma amadurecida perspectiva utópica, deve reconhecer de antemão que estamos dizimando
a biodiversidade deste planeta, em função do modelo civilizatório em que vivemos, inscrito numa razão senhorial antropocêntrica e, por isso mesmo, deve
inspirar-se, daí a visada utópica, no ponto de vista de uma educação do oprimido, a partir de uma imaginação de e para a alteridade, a dos outros seres
não humanos e a dos humanos que não são os beneficiários, muito antes pelo
contrário, dessa tragédia que estamos protagonizando contra a vida na Terra:
um verdadeiro massacre antropocêntrico planetário.
Eis porque nosso ponto de vista deve ser também pluriepistêmico, por incorporar perspectivas multiculturais, que não se inscrevam, nesse sentido, apenas na
cultura letrada, mas igualmente na oral, como a de muitos povos indígenas e
africanos; ou na midiática, através de uma crítica incisiva do oligopólio planetário dos suportes midiáticos, como a televisão, o rádio, a internet, sendo capaz
de imaginar, utopicamente, um mundo em que a mídia não esteja concentrada,
como uma nova forma de esclarecimento, a da sociedade do espetáculo, nas mãos
de restritos grupos de poder.
Assim fazendo, acreditamos que estaremos preparando nossos alunos para o
mundo do trabalho, embora tenhamos, como horizonte, outro referencial, que
não é mais o da preparação de um trabalho oprimido, tampouco o do opressor,
mas, muito pelo contrário, de um saber/trabalho coletivo, fundado na construção do comum, em que a autonomia e a heteronomia sejam diferentes e iguais,
num utópico mundo possível e factível, desde que não partamos de qualquer
forma de esclarecimento senhorial.
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Referências:
ADORNO, T., HORKHEIMER. A dialética do Esclarecimento. 2 ed. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
APUBH. LDB. 9.394/96. Belo Horizonte, 1997.
ESCOLA PLURAL. O passo da escola no compasso da vida: a construção de
um novo tempo e espaço para jovens e adultos. Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte: Centro Gráfico da PBH, 1998.
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
FREIRE, Paulo. Educação do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
RANCIÉRE, Jacques. Políticas da escrita. Trad. Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editoras 34, 1995.
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