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ISSN 1517-2422 (versão impressa)
ISSN 2236-9996 (versão on-line)
cadernos
metrópole
a saúde na cidade
Cadernos Metrópole
v. 18, n. 36, pp. 313-608
jul 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3600
Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–,
Semestral
ISSN 1517-2422 (versão impressa)
ISSN 2236-9996 (versão on-line)
A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22
1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles
CDD 300.5
Periódico indexado no SciELO, Redalyc, Latindex, Library of Congress – Washington
Cadernos Metrópole
Profa. Dra. Lucia Bógus
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Observatório das Metrópoles
Rua Ministro de Godói, 969 – 4° andar – sala 4E20 – Perdizes
05015-001 – São Paulo – SP – Brasil
Prof. Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro
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Secretária
Raquel Cerqueira
a ssaúde
aúde n
na
ac
cidade
idade
PUC-SP
Reitora
Anna Maria Marques Cintra
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
Miguel Wady Chaia
Conselho Editorial
Anna Maria Marques Cintra (Presidente), José Rodolpho Perazzolo, Karen Ambra, Ladislau Dowbor,
Lucia Maria Machado Bógus, Mary Jane Paris Spink, Miguel Wady Chaia, Norval Baitello Junior,
Oswaldo Henrique Duek Marques, Rosa Maria B. B. de Andrade Nery
Coordenação Editorial
Sonia Montone
Revisão de português
Equipe Educ
Revisão de inglês
Carolina Siqueira M. Ventura
Revisão de espanhol
Vivian Motta Pires
Projeto gráfico, editoração
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Capa
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metrópole
EDITORES
Lucia Bógus (PUC-SP)
Luiz César de Q. Ribeiro (UFRJ)
COMISSÃO EDITORIAL
Eustógio Wanderley Correia Dantas (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/Ceará/Brasil) Luciana Teixeira Andrade (Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Orlando Alves dos Santos Júnior (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil)
Sérgio de Azevedo (Universidade Estadual do Norte Fluminense, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/ Brasil) Suzana Pasternak (Universidade de São Paulo,
São Paulo/São Paulo/Brasil)
CONSELHO EDITORIAL
Adauto Lucio Cardoso (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Aldo Paviani (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito Federal/
Brasil) Alfonso Xavier Iracheta (El Colegio Mexiquense, Toluca/Estado del México/México) Ana Cristina Fernandes (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/
Pernambuco/Brasil) Ana Fani Alessandri Carlos (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ana Lucia Nogueira de P. Britto (Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Ana Maria Fernandes (Universidade Federal da Bahia, Salvador/Bahia/Brasil) Andrea Claudia Catenazzi
(Universidad Nacional de General Sarmiento, Los Polvorines/Provincia de Buenos Aires/Argentina) Angélica Tanus Benatti Alvim (Universidade Presbiteriana Mackenzie,
São Paulo/São Paulo/Brasil) Arlete Moyses Rodrigues (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) Carlos Antonio de Mattos (Pontificia
Universidad Católica de Chile, Santiago/Chile) Carlos José Cândido G. Fortuna (Universidade de Coimbra, Coimbra/Portugal) Claudino Ferreira (Universidade de
Coimbra, Coimbra/Portugal) Cristina López Villanueva (Universitat de Barcelona, Barcelona/Espanha) Edna Maria Ramos de Castro (Universidade Federal do
Pará, Belém/Pará/Brasil) Eleanor Gomes da Silva Palhano (Universidade Federal do Pará, Belém/Pará/Brasil) Erminia Teresinha M. Maricato (Universidade
de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Félix Ramon Ruiz Sánchez (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Fernando Nunes
da Silva (Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa/Portugal) Frederico Rosa Borges de Holanda (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Geraldo
Magela Costa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Gilda Collet Bruna (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/
São Paulo/Brasil) Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heliana Comin Vargas
(Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heloísa Soares de Moura Costa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil)
Jesus Leal (Universidad Complutense de Madrid, Madri/Espanha) José Alberto Vieira Rio Fernandes (Universidade do Porto, Porto/Portugal) José Antônio F.
Alonso (Fundação de Economia e Estatística, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) José Machado Pais (Universidade de Lisboa, Lisboa/Portugal) José Marcos
Pinto da Cunha (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa/Portugal)
José Tavares Correia Lira (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Leila Christina Duarte Dias (Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis/Santa Catarina/Brasil) Luciana Corrêa do Lago (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luís Antonio Machado
da Silva (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luis Renato Bezerra Pequeno (Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza/Ceará/Brasil) Márcio Moraes Valença (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Marco Aurélio A. de F. Gomes
(Universidade Federal da Bahia, Salvador/Bahia/Brasil) Maria Cristina da Silva Leme (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Maria do Livramento
M. Clementino (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Marília Steinberger (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito
Federal/Brasil) Marta Dominguéz Pérez (Universidad Complutense de Madrid, Madri/Espanha) Montserrat Crespi Vallbona (Universitat de Barcelona, Barcelona/
Espanha) Nadia Somekh (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Nelson Baltrusis (Universidade Católica do Salvador, Salvador/Bahia/
Brasil) Norma Lacerda (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/Pernambuco/Brasil) Ralfo Edmundo da Silva Matos (Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Raquel Rolnik (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ricardo Toledo Silva (Universidade de São Paulo, São
Paulo/São Paulo/Brasil) Roberto Luís de Melo Monte-Mór (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Rosa Maria Moura da
Silva (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Curitiba/Paraná/Brasil) Rosana Baeninger (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) Sarah
Feldman (Universidade de São Paulo, São Carlos/São Paulo/Brasil) Vera Lucia Michalany Chaia (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/
Brasil) Wrana Maria Panizzi (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil)
sumário
321
Apresentação
dossiê: a saúde na cidade
Living near health at Belo Horizonte
325
Viver próximo à saúde em Belo Horizonte
Renato Cesar Ferreira de Souza
Veneza Berenice de Oliveira
Doralice Barros Pereira
Heloisa Soares de Moura Costa
Waleska Teixeira Caiaffa
Suffering and working in the city
in forced march
345
Sofrimento e trabalho na cidade
em marcha forçada
Stela Cris na Godoi
Comunidades locais, saúde e os obje vos
de desenvolvimento sustentável:
o caso de Ribeirão das Neves, Brasil
365
Local communi es, health and the sustainable
development goals: the case of Ribeirão
das Neves, Brazil
Viviane H. França
Ulisses E. C. Confalonieri
Federa ve coopera on and the health
policy: the case of Inter-municipal
Health Consor ums in Paraná
377
A cooperação federa va e a polí ca de saúde:
o caso dos Consórcios Intermunicipais
de Saúde no estado do Paraná
Carlos Vasconcelos Rocha
Health: social vulnerability,
neighborhood and physical ac vity
401
Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança
e a vidade sica
Manoel Carlos S. de Almeida Ribeiro
Rita Barradas Barata
Intra-urban social inequality:
implica ons for the dengue epidemic
in Campinas, SP, in 2014
421
Desigualdade social intraurbana:
implicações sobre a epidemia de dengue
em Campinas, SP, em 2014
Igor Cavallini Johansen
Roberto Luiz do Carmo
Luciana Correia Alves
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 313-608, jul 2016
319
The urban ques on and popula on aging:
brief connec ons between the right
to the city and the elderly in the labor market
441
Questão urbana e envelhecimento
populacional: breves conexões entre o direito
à cidade e o idoso no mercado de trabalho
Maura P. Bicudo Véras
Jorge Felix
Intra-urban inequali es in hospitaliza ons
for respiratory and circulatory diseases
in an area of the city of São Paulo
461
Desigualdades intraurbanas em internações
hospitalares por doenças respiratórias
e circulatórias em uma área da cidade
de São Paulo
Helena Ribeiro
Edelci Nunes Silva
Fishermen in Bacia de Campos:
health from the perspec ve
of food (in)security
481
Pescadores artesanais da Bacia de Campos:
a saúde pela perspec va
da (in)segurança alimentar
Mauro Macedo Campos
Moisés Machado
Geraldo Márcio Timóteo
Paulo Belchior Mesquita
Artigos complementares
Poverty and income mobility
in the Brazilian metropolitan regions
503
Pobreza e mobilidade de renda
nas regiões metropolitanas brasileiras
Lilia Montali
Luiz Henrique Lessa
Housing and sense of belonging: the defense
of the Place of living by social groups
undergoing vulnerability processes
535
Moradia e pertencimento: a defesa
do Lugar de viver e morar por grupos
sociais em processo de vulnerabilização
Maria Auxiliadora Ramos Vargas
Public policies in the development of large urban
restructuring projects. The Case of Puerto Norte
in Rosario, Argen na
559
Polí cas públicas en el desarrollo de grandes
proyectos de reconversión urbana.
Caso Puerto Norte en Rosario, Argen na
Cecilia Inés Galimber
Expansion dynamics of the Brasília-Anápolis-Goiânia urban-regional arrangement
583
Dinâmicas de expansão do arranjo
urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia
Marcos Bi ar Haddad
Rosa Moura
605
Instruções aos autores
320
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 313-608, jul 2016
Apresentação
Os campos da saúde e das ciências humanas passaram a ser pensados de maneira relacional
desde o século XVIII, quando as práticas preventivas e seus dispositivos sanitários desempenharam
importante papel na configuração do espaço urbano e de novas ordens sociais. Tomamos, por
exemplo, as intervenções sociossanitárias ocorridas em cidades do continente europeu, que
transformaram radicalmente concepções e práticas sobre os cuidados com o espaço urbano e seus
desdobramentos na saúde das coletividades.
Entre nós, desde a década de 1920, as ciências sociais passaram a problematizar categorias
consagradas e conceitos médico-naturalistas do território da saúde numa perspectiva crítica e
histórica, ajudando a instituir um novo campo interdisciplinar. Aqui, a concepção de saúde não se
restringe à dimensão anátomo-fisiológica e não pode ser pensada sem considerar os valores e os
campos de força que constituem as relações sociais.
Curiosamente, essa perspectiva tem sido pensada criticamente muito mais no campo
conhecido como biomédico, da epidemiologia mais especialmente, do que no campo da sociologia.
No entanto, foi com forte apelo às ciências humanas que o discurso teórico da saúde coletiva
foi formulado, ultrapassando fronteiras de conhecimento e incorporando recortes sociológicos,
antropológicos, filosóficos, psicológicos e históricos na elaboração de ideias e nas contribuições
aos debates sobre as práticas de saúde pública, incluindo aí as práticas assistenciais fortemente
implantadas nos espaços urbanos nas últimas décadas.
Com essas reflexões iniciais, introduzimos as contribuições enviadas pelos autores ao dossiê
deste número de Cadernos Metrópole sobre dois campos de reflexão marcados pela amplitude de
significados – a saúde e a cidade. A ausência de especificação interna a cada um e da relação entre
eles foi intencional, e o conjunto de temas recebidos compõe um rico apanhado de reflexões e
de descrições que permitirão aos leitores desde a apreensão da situação de saúde de segmentos
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 321-324, jul 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3600
321
Apresentação
específicos da população localizada em espaços urbanos, até a institucionalização de sistemas e
de serviços de saúde que em muito transformaram a realidade sociossanitária urbana. São análises
fundamentadas em sólidos apontamentos, perpassadas pelos debates sobre as iniquidades
presentes em espaços urbanos marcados por processos de industrialização e pelas desigualdades
nas formas de adoecer e no acesso a bens e serviços essenciais à vida.
O artigo Viver próximo à saúde em Belo Horizonte, de Renato Cesar Ferreira de Souza et
al., expõe aspectos da territorialização dos serviços de saúde e tem como proposta de análise as
unidades espaciais e os determinantes sociais de saúde, colaborando com o debate sobre modelos
assistenciais voltados à redução das iniquidades.
Ao revisitar a história, o artigo Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada, de Stela
Cristina Godoi, coloca em foco a expressão das memórias de metalúrgicos e os relatos orais de
motoboys, construindo uma sensível descrição da brutalidade da aceleração do tempo social, do
sofrimento e da violência que marcam as experiências de vidas desses trabalhadores em dois
cenários metropolitanos.
Ao apontar para a localidade como espaço de vida e como entidade federativa definidora de
suas próprias necessidades, o artigo Local communities, health and the sustainable development
goals: the case of Ribeirão das Neves, Brazil, de Viviane H. França e Ulisses E. C. Confalonieri, traz
contribuições ao debate sobre a pobreza e sobre as necessárias respostas às iniquidades por ela
engendradas, na perspectiva de atores sociais institucionalizados e atuantes na execução de ações
em saúde voltadas à redução das taxas de morbidade e de mortalidade.
De forma a oferecer um quadro de análise sobre articulações e novas experiências de
relações entre municípios, o artigo seguinte, A cooperação federativa e a política de saúde: o
caso dos Consórcios Intermunicipais de Saúde no estado do Paraná, de Carlos Vasconcelos Rocha,
oferece importantes elementos conceituais para o entendimento da cooperação federativa e para
a consecução das políticas de saúde pelos caminhos da descentralização, da horizontalidade dos
arranjos e da criação de meios, para a estabilização de regras e de processos no dinâmico campo
da atenção à saúde. O espaço urbano e a autonomia municipal são colocados no centro do debate
sobre a responsabilização e a provisão de serviços em saúde.
Estruturados sob lentes acuradas que relatam detalhadamente a situação de saúde dos
diferentes grupos sociais no espaço urbano, os dois artigos subsequentes apresentam dados
esclarecedores. O primeiro, intitulado Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física,
de Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro e Rita Barradas Barata, relaciona comportamentos
relativos aos cuidados individuais em saúde com o contexto do bairro e as características
sociodemográficas dos indivíduos, abrindo a perspectiva de compreensão do conjunto de elementos
que podem, ou não, favorecer comportamentos considerados saudáveis. Na sequência, o artigo
Desigualdade social intraurbana: implicações sobre a epidemia de dengue em Campinas, SP, em
2014, de Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo e Luciana Correia Alves, constrói, por meio
de análise espacial, um interessante percurso de investigação, relacionando a epidemiologia da
dengue com o processo de urbanização e as desigualdades sociais.
322
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 321-324, jul 2016
Apresentação
A preocupação com aspectos da saúde da população relacionados aos ciclos de vida aponta
o envelhecimento como importante processo na atualidade, uma vez que impõe profundas
transformações no perfil sociossanitário e, consequentemente, na elaboração e difusão de políticas
sociais voltadas a esse grupo. Em Questão urbana e envelhecimento populacional: breves conexões
entre o direito à cidade e o idoso no mercado de trabalho, os autores, Maura Pardini Bicudo Véras
e Jorge Felix, expõem os efeitos avassaladores dos avanços do capital financeiro e a efetivação
de um desmonte do Estado de Bem-Estar Social. Como consequência desse processo, observa-se o
crescente processo de segregação nas cidades evidenciando que os idosos mais pobres acabam por
ocupar espaços precários, além de assistirem à corrosão de seus direitos previdenciários.
A espacialização do adoecimento por doenças respiratórias e circulatórias reflete, por meio
da sobreposição comparativa das informações sobre as internações hospitalares, a qualidade
socioambiental e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), as desigualdades nos perfis de
adoecimento. Conforme o artigo de Helena Ribeiro e Edelci Nunes Silva, Desigualdades intraurbanas
em internações hospitalares por doenças respiratórias e circulatórias em uma área da cidade de
São Paulo, piores perfis de qualidade de vida e IDH reduzido evidenciam o peso exercido pelas
desigualdades no comprometimento da saúde da população urbana.
Encerra o conjunto de artigos sobre saúde na cidade, a proposição de um debate sobre
a (in)segurança alimentar. O artigo Pescadores artesanais da Bacia de Campos: a saúde pela
perspectiva da (in)segurança alimentar, de Mauro Macedo Campos et al., aborda a discussão
da quantidade e qualidade da alimentação da população e dos riscos de adoecimento e morte,
evidenciando a intrincada e contraditória realidade de municípios em área de exploração
petrolífera que, embora recebam montantes elevados de recursos, parecem não corresponder a
um esperado desenvolvimento social.
Além desses textos, compõem este número artigos de cunho sociológico cujas análises devem
ser pensadas como alicerces do tema proposto. O texto Pobreza e mobilidade de renda nas regiões
metropolitanas brasileiras, de Lilia Montali e Luiz Henrique Lessa, questiona se efetivamente tal
mobilidade acarretou elevação da condição de vida em vista da persistência de hiatos de acesso a
elementos centrais, como emprego, educação, saúde e serviços.
Moradia e pertencimento: a defesa do Lugar de viver e morar por grupos sociais em processo
de vulnerabilização, de Maria Auxiliadora Ramos Vargas, também coloca em questão outras
dimensões relacionais com o espaço no plano dos sentidos atribuídos por populações ameaçadas
por processos de desterritorialização. Nessas condições, Lugar reflete formas de escolha e de viver a
partir de possibilidades reduzidas.
No artigo Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana.
Caso Puerto Norte en Rosario, Argentina, a autora Cecilia Inés Galimberti julga os efeitos e os
conflitos resultantes da experiência de implantação de grandes projetos urbanos na América
Latina. Trata-se de uma abordagem crítico-interpretativa embasada em um relevante estudo de
caso realizado na Argentina.
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323
Apresentação
Em Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia, de Marcos
Bittar Haddad e Rosa Moura, são apontadas as implicações regionais dessa aglomeração espacial,
o que leva os autores a inferir que, por estarem articuladas ao processo de acumulação, a riqueza
gerada e a valorização urbana não rompem a desigualdade existente.
No campo da saúde coletiva, é comum ouvirmos que a “saúde é a esponja da sociedade”, e a
leitura do conjunto dos textos deste número de Cadernos Metrópole expressa bem esse enunciado.
Esperamos que seja uma instigante leitura para futuros trabalhos.
Cassio Silveira
Mara Helena de Andréa Gomes
Organizadores
Cassio Silveira
Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, Departamento de Saúde Coletiva; Universidade Federal de São
Paulo, Escola Paulista de Medicina, Departamento de Medicina Preventiva. São Paulo, SP/Brasil.
[email protected]
Mara Helena de Andréa Gomes
Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Medicina, Departamento de Medicina Preventiva,
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. São Paulo, SP/Brasil.
[email protected]
324
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 321-324, jul 2016
Viver próximo à saúde
em Belo Horizonte
Living near health at Belo Horizonte
Renato Cesar Ferreira de Souza
Veneza Berenice de Oliveira
Doralice Barros Pereira
Heloisa Soares de Moura Costa
Waleska Teixeira Caiaffa
Resumo
A definição de unidades espaciais como locus preferencial na prestação do cuidado em saúde é desafiadora quando se buscam modelos assistenciais
que reduzam as iniquidades de acesso aos serviços
de saúde e os humanizem, integrando dados demográficos, socioeconômicos, culturais e ambientais,
configurando localmente os determinantes sociais
da saúde. Este estudo introduz uma análise da
localização das Unidades Básicas de Saúde (UBS)
nos distritos sanitários de Belo Horizonte, comparando as divisões administrativas adotadas com
as obtidas pelo teste cartográfico de influência de
acesso às UBS. Demonstra-se a potencialidade de
investigações futuras sobre o território da cidade
na busca de melhores localizações e acesso às UBS,
acenando para o enriquecimento do debate sobre
os rumos da saúde urbana no Brasil.
Abstract
TThe definition of spatial units as the preferential
locus for healthcare provision is a challenging task
when we seek healthcare models that humanize the
health services and reduce inequities concerning
access to them, integrating demographic,
socioeconomic, cultural and environmental data,
and configuring the social determinants of health
at a local level. This study analyzes the location
of Primary Care Units (PCU) in the Health Districts
of the city of Belo Horizonte, and compares the
adopted administrative divisions with those
obtained by mapping the influence of shorter
distances to the PCU. It demonstrates the potential
that further research on the city’s territory has in
the search for better locations and access to the
PCU, enriching the debate on the future of Urban
Health in Brazil.
Palavras-chave: análise espacial; espaço urbano;
saúde urbana; acesso aos serviços de saúde; sistema único de saúde.
Keywords: spatial analysis; urban space; urban
health; access to healthcare; Brazil’s National
Healthcare System.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3601
Renato Cesar Ferreira de Souza et al.
Introdução
O Sistema Único de Saúde do Brasil (SUS) é o
maior sistema de saúde do mundo com características de universalidade, equidade e gratuidade. Desde sua criação, em 1988, um de seus
maiores desafios é garantir o acesso de toda
a população aos serviços de saúde com qualidade. Entretanto, ainda há uma realidade desigual e excludente significativa na distribuição
desses serviços no País. Tenta-se, então, amenizar esse problema priorizando uma rede de
Atenção Primária à Saúde (APS) em nível territorial, seja municipal ou por regiões de saúde, considerando-a como uma melhor porta de
entrada para o SUS. As relações do território
com vistas à organização dos serviços do SUS
foram definidas pelo Decreto 7508/2011, no
qual também se renova a importância da APS
conforme as recomendações do Relatório Mundial de Saúde de 2008 (OMS, 2008).
implementar um modelo de APS que conjugava
o critério estabelecido pelo SUS com balizamento do Índice de Vulnerabilidade Social (IVS)
na definição das áreas prioritárias de atuação
e do número de equipes de saúde da família
para cada UBS. A cidade foi dividida em nove
regiões administrativas, os Distritos Sanitários,
onde está localizado um número diferenciado
de UBS. Esses esforços se direcionaram à oferta
de serviços de qualidade, com maior equidade,
fácil acesso e em tempo adequado ao atendimento das necessidades de uma porção maior
da população. Simultaneamente, visavam fortalecer a atenção aos ciclos da vida, com temáticas diversas, enfatizando-se, por exemplo, as
áreas e as populações de maior vulnerabilidade. Esses aspectos conferiram extrema importância à discussão da localização das unidades
e serviços da APS no espaço urbano, exigindo
a problematização de metodologias para a sua
avaliação e implementação.
Em Belo Horizonte, o mapeamento da
distribuição de recursos humanos, de ações e
de serviços de saúde ofertados pelo SUS pas-
Problematização
sou a ser feito, colocando a estrutura do espaço
público e suas dimensões físicas como integra-
As unidades da APS são consideradas coorde-
doras, com outros aspectos ambientais e de in-
nadoras do cuidado e da comunicação com as
dicadores de saúde, para nortear a priorização
demais redes do SUS e concretizam sua presen-
das implementações (Pitchon, 2013). Por essa
ça no espaço urbano por meio de sua localiza-
razão, apresenta-se como cidade de interesse
ção em áreas limitadas denominadas “áreas de
na avaliação da configuração de sua estrutura
abrangência”. Dois objetivos que integram as
espacial de UBS. O critério do número de pes-
suas finalidades estabelecem relações com o
soas residentes numa determinada localidade
espaço urbano de modo explícito: em primeiro
foi utilizado na especificação da menor unida-
lugar, elas devem oferecer atenção à saúde de
de espacial de atuação das equipes de saúde
forma completa; e, em segundo, devem favore-
da família.
cer as condições de integrar-se funcionalmente
Na década de 1990, a Secretaria Muni-
às outras unidades da rede. Quanto à primeira,
cipal de Saúde de Belo Horizonte inovou ao
as UBS cuidam hoje da promoção, prevenção
326
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
Viver próximo à saúde em Belo Horizonte
e assistência à saúde coletiva, ultrapassando
urbano (Weil, 2001) integrado ao ato de resi-
apenas a erradicação de doenças (Farias e Bu-
dir. Simultaneamente, as UBS demandam uma
challa, 2005). Seu sucesso depende, portanto,
integração territorial através dos fluxos de
da sua localização e das singularidades das
pessoas e de coisas, criando uma hinterlândia
comunidades onde se inserem, uma vez que a
(zona de influência), que fortalece a rede e dis-
receptividade dos cidadãos é que as transfor-
ponibiliza a tecnologia e os serviços.
mam em um elemento da vida urbana local.
A importância dos centros de saúde para
Ao se integrarem às outras unidades de saúde
as vizinhanças, considerando sua proximida-
(Temporão, 2010), as UBS tendem a equilibrar a
de e inserção como enraizamento, talvez te-
distribuição dos recursos necessários para uma
nha sido registrada pela primeira vez quando
atuação mais profícua, principalmente consi-
do chamado Peckham experiment (Pearse e
derando que as densidades tecnológicas das
Crocker, 2013). Entre os anos de 1926 e 1950,
redes de APS diferem entre si, e esse comparti-
Williamson e Pearse criaram o Pioneer Health
lhamento evita a subutilização e o desperdício.
Centre, na vizinhança de Peckham, sudeste de
Londres (Figuras 1 e 2). Os objetivos dessa proposta pioneira e radical incluíam despertar nos
moradores da região, população socialmente
vulnerável, a valorização do cuidado à sua saúde por meio do uso rotineiro das instalações e
dos serviços do centro, que incluíam piscinas,
equipamentos para exercício físico e locais para a socialização. A proposta visava preservar a
Dessa maneira, busca-se congregar uma
relação horizontal, contínua e integrada em
uma gestão compartilhada em consonância
com as vizinhanças onde se localizam as UBS.
A apropriação delas pela vizinhança parece ser
capaz de proporcionar uma relação mais eficaz,
promovendo o enraizamento da população e
o uso espontâneo e participativo do ambiente
Figuras 1 e 2 – Interior do edifício do Centro de Saúde de Peckham,
Londres, hoje transformado em área de lazer privativa
para um condomínio de apartamentos
Fonte: Internet, acesso em 2016.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
327
Renato Cesar Ferreira de Souza et al.
assiduidade ao centro e, com ela, a prevenção,
evitando o agravamento de diversas doenças.
Nos últimos 15 anos, a análise espacial
vem sendo utilizada com ênfase na saúde pa-
Uma das primeiras reflexões teóricas so-
ra dar suporte ao conceito de risco, em função
bre o conceito de espaço aplicado à saúde pú-
das múltiplas possibilidades advindas da corre-
blica foi a de Snow, em Londres em 1854, por
lação de variáveis como localização da popu-
ocasião da epidemia de cólera. Desde então, o
lação, recursos e fluxos através de sistemas de
diferencial de saúde, conforme a localização no
informação geográfica (GIS). A espacialização
espaço urbano, vem sendo objeto de pesquisas
da situação de saúde de uma região urbana so-
(Silva, 1997) e, cada vez mais, as abordagens
breposta, em seu mapeamento, às espacializa-
abrangem campos conjugados para a melhor
ções socioeconômicas, sanitárias e ambientais
compreensão dos fenômenos territoriais. Em
possibilita uma aproximação mais reveladora
se tratando da busca de uma totalidade entre
do que realmente acontece no espaço urba-
o ambiente construído e a saúde das pessoas,
no, mostrando-se ser uma grande contribui-
Alexander e colegas (Alexander; Ishikawa e Sil-
ção (Gondim et al., 2008). Entretanto, o uso
verstein, 1977, p. 236) argumentaram sobre a
desses procedimentos considera que o territó-
necessidade de se construírem as cidades em
rio ocupado por uma vizinhança, ao longo do
maior consonância com o ciclo vital e a idade
tempo, confere-lhe limites territoriais e físicos
das pessoas. Vizinhanças poderiam mesclar
resultantes da acumulação de situações his-
mais e melhor seus indivíduos e reconhecer
tóricas, ambientais e sociais. A ênfase a essas
os ritmos de passagem de um ciclo etário ao
variáveis do enraizamento, entretanto, dá-se
outro, com espaços mais apropriados às limita-
na consideração de que tais fatores constituem
ções individuais, como, por exemplo, a de mo-
informação sobre a capacidade de suas carac-
vimentos. Aqueles autores também consideram
terísticas ativarem condições particulares para
que para um sistema de saúde que conseguir
a produção de doenças (Barcellos et al., 2002;
manter a saúde física e mental das pessoas
Gondim et al., 2008).
deveria enfatizar ações relacionadas à manu-
Igualmente, para que se possa avaliar
tenção da saúde e não somente ao tratamento
mais precisamente o impacto da localização
de enfermidades. Consequentemente, o espaço
dos serviços de atenção primária à saúde, é
deveria ser fisicamente descentralizado para
necessário o reconhecimento de tais territórios
se situar o mais próximo possível das ativida-
como delimitadores das unidades espaciais
des cotidianas, criando estímulos para práticas
das vizinhanças. A extensão geométrica mere-
diárias que promovessem a saúde, tal como a
ce abarcar uma multiplicidade de dados para
simples sociabilidade, a natação, a dança, os
identificar mais e melhor o perfil demográfico,
esportes ao ar livre, além de tratamento mé-
epidemiológico, administrativo, tecnológico, po-
dico incidental para essas atividades. Os au-
lítico, social e cultural que caracteriza seus habi-
tores terminam comentando que tais espaços
tantes e se expressa em um espaço urbano em
sucumbem à percepção geral de que tratam
permanente construção (Monken et al., 2008).
somente de doenças e casos de enfermidades,
e não de saúde.
328
O geógrafo brasileiro Milton Santos,
considerado um dos grandes influenciadores
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
Viver próximo à saúde em Belo Horizonte
do movimento que compreendeu o processo
Como mencionado, a definição da uni-
saúde-doença na cidade como manifestação
dade espacial do território é ainda controversa
social, atenta, em sua vasta bibliografia, para
nos estudos das condições de saúde no espaço
a necessidade de estudar tal processo através
urbano. Um dos principais desafios refere-se
de questões espaciais e territoriais (Faria e Bor-
ao fato de que os dados dos ERS são coletados
tolozzi, 2009). Para auxiliar o estabelecimento
segundo a lógica territorial do SUS, que esta-
de tais análises, nos últimos anos, possantes
belece sua unidade espacial com objetivos ad-
ferramentas estão disponíveis para investigar
ministrativos. Essa lógica comanda a referência
as correlações entre Eventos Relacionados à
espacial na visualização dos dados sobre saúde
Saúde (ERS) e o espaço urbano.
no território, constituindo-se em uma imposi-
Entretanto, apesar do crescimento expo-
ção administrativa ao sistema privilegiado de
nencial do interesse pelo assunto em todo o
informação, cujo custo pode mascarar singula-
mundo, a maioria das pesquisas continua “não
ridades das unidades.
espacial” (Auchincloss et al., 2012). Os dados
Adotar unidades espaciais diferentes
espaciais são subutilizados assim como os ins-
abre o caminho para a superação da invisibi-
trumentos analíticos disponíveis. A definição
lidade de algumas correlações entre saúde e
de unidades espaciais tem gerado inúmeras
espaço. Este artigo se propõe a apresentar uma
bases, posto que várias instituições, ao pesqui-
análise de um mesmo ERS, contido em distintos
sarem os mesmos dados, criam novos recortes
tipos de unidades espaciais, seja uma vizinhan-
desconectados intersetorialmente e, por vezes,
ça identificável, seja uma bacia hidrográfica,
negligentes quanto à interoperabilidade. Esse
seja um distrito sanitário, e que possa ser so-
descompasso compromete recursos financeiros,
breposto aos dados demográficos, socioeco-
técnicos, pessoais e retarda a elaboração de
nômicos, culturais e ambientais. Esse exercício
políticas mais eficazes ou efetivas, negligen-
permitirá visualizar a espacialização dos dados
ciando certas unidades não cobertas e, portan-
de acordo com o interesse do estudo, incorpo-
to, não atendidas.
rando os preceitos de simultaneidade analítica
No Brasil, o uso do ferramental contem-
e interação entre escalas diferentes.
porâneo também tem se revelado um campo
em crescimento (Barcellos e Ramalho, 2002)
cuja consolidação tem ocorrido com a disponi-
Estudo de caso
bilização de dados de qualidade, a ampliação
da capacidade computacional disponível e a
A unidade de agregação mais adequada para
capacitação profissional em GIS aplicado à
avaliar o impacto de ações preventivas no es-
Saúde. Um dos desafios contemporâneos é a
paço urbano parece ser a área delimitada ao
pesquisa de novas possibilidades metodológi-
redor dos Centros de Saúde (Barcellos e Rama-
cas para a compreensão da dinâmica urbana e
lho, 2002) – sua hinterlândia, por critérios de
o subsídio às ações de atenção à saúde (Perez,
abrangência bem caracterizados. A Secretaria
2006), possibilitando uma base de dados dinâ-
Municipal de Saúde da cidade de Belo Horizon-
mica com coletas e consultas em tempo real.
te (SMSA-BH) define as áreas de abrangência
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
329
Renato Cesar Ferreira de Souza et al.
por homogeneidade socioeconômico-sanitária,
profissionais de saúde, com base no tamanho
isto é, áreas que reúnem espaços nos quais se
de sua população e em critérios de vulnerabili-
concentram grupos populacionais internamen-
dade de cada área (ibid.).
te homogêneos, tendo em conta as “condições
objetivas de existência”.
Segundo a SMSA-BH,
[...] essas áreas permitem a condução da
vigilância à saúde mediante ações interdisciplinares e intersetoriais conforme
as características do grupo populacional
residente. A microárea tem como unidades internas de análise e acompanhamento a moradia; espaço de vida de uma
microunidade social, a família nuclear ou
estendida. A moradia é o locus para o desencadeamento de intervenções de saúde, buscando a promoção do bem-estar
da população. ( Áreas de Abrangência
dos Centros de Saúde | Gestão Compartilhada, s/d)
Entretanto, o conceito de abrangência é
complexo, baseado no conceito de acesso ao
serviço de saúde. Sua discussão, desde a década de 1950 (Travassos e Martins, 2004), constitui ainda hoje um campo fecundo de debate
concernente à avaliação dos serviços de saúde.
A dimensão tratada aqui é a técnica, relativa à planificação e à organização da rede de
serviços, e merece ser incorporada às outras
dimensões explicativas, tais como as da política, da economia e da cultura. A tentativa visa
articular o referencial teórico e a definição conceitual aproveitando a diversidade de dados
disponíveis sobre o tema em termos espaciais,
escalares e temporais.
Este estudo de caso foi realizado, confrontando a unidade de abrangência definida pela SMSA-BH e uma unidade espacial
calcula da pela facilidade e importância no
acesso peatonal e motorizado aos 147 UBS
administrados pela SMSA-BH (Figura 3). Esses
centros se encontram distribuídos em nove
distritos sanitários e realizam mais de 2,5 milhões de consultas médicas por ano. No caso
de alguma necessidade de tratamento, informações ou cuidados básicos de saúde, a população deve se dirigir ao centro mais próximo
de sua residência e, nele, agendar consultas
rotineiras e/ou especializadas, fazer exames,
acompanhar doenças crônicas, obter vacinas
e medicamentos, dentre outros serviços. Cada
Método
Através da rede viária da cidade foram calculadas as rotas mais econômicas na delimitação
das áreas de abrangência de cada UBS. Para
sumarizar esse processo, foram detalhadas as
etapas a seguir, com a indicação dos comandos para o aplicativo ArcGIS Pro,1 extensão
Network Analyst. Tais comandos têm correspondentes bem similares em outros aplicativos,
tais como o QGis e o MapInfo, e o detalhamento neste artigo sumariza o método e permite
sua adaptação para outras plataformas.
●
Mapa das vias públicas
UBS tem que cobrir uma área de abrangên-
O mapa com a linha central (Centerline map)
cia definida, delimitada segundo a densida-
representando a rede viária do município de
de populacional do distrito sanitário onde se
Belo Horizonte foi obtido do site OpenStreet-
situa. Essa área é atendida por equipes de
Map2 (OSM), do projeto colaborativo para a
330
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
Viver próximo à saúde em Belo Horizonte
Figura 3 – Localização dos centros de saúde da cidade de Belo Horizonte
Centros de Saúde de BH
Áreas de abrangência
dos centros de saúde
Limites dos distritos sanitários
1. Andradas
2. Céu Azul
3. Jardim Europa
4. Lagoa
5. Mantiqueira
6. Minas Caixa
7. Nova York
8. Santa Mônica
9. Serra Verde
10. Venda Nova
11. V. do Rio Branco
12. Copacabana
13. Jd. Leblon
14. Jd. Comerciário
15. Piratininga
16. Santo Antônio
17. Confisco
18. Don Orione
19. Itamarati
20. Itamarati II
21. Santa Amélia
22. Santa Rosa
23. São Francisco
24. Jd. Alvorada
25. Serrano
26. Pr. Joaquim Maia
27. Santa Terezinha
28. Betânia
29. Cabana
30. Cícero Ildefonso
31. Cj. Betânia
32. Havaí
33. Noraldino de Lima
34. Salgado Filho
35. São Jorge
36. Ventosa
37. Vila Imperial
38. Vila Leonina
39. vista alegre
40. Waldomiro Lobo
41. Palmeiras
42. Cj. Felicidade
43. Aarão Reis
44. Campo Alegre
45. Etelvina Carneiro
46. Floramar
47. Jd. Guanaraba
48. Guarani
49. Heliópolis
50. Jaqueline
51. Jaqueline II
52. Felicidade II
53. MG 20
54. Primeiro de Maio
55. Providência
56. São Bernardo
57. São Tomás
58. Tupi
59. Floramar
60. Novo Aarão Reis
61. Lajeado
62. Bom Jesus
63. Califórnia
64. Ouro Preto
65. Dom Bosco
66. Dom Cabral
67. Ermelinda
68. Glória
69. Jd. Filadélfia
70. Jd. Montanhês
71. João Pinheiro
72. Pe. Eustáquio
73. Pedreira P. Lopes
74. Elza Martins
75. Pindorama
76. Santos Anjos
77. São Cristóvão
78. Carlos Prates
79. Vera Cruz
80. Boa Vista
81. Alto Vera Cruz
82. Granja de Freitas
83. Novo Horizonte
84. Paraíso
85. M.A. de Menezes
86. Pompéia
87. Santa Inês
118. São Tarcisio
88. São Geraldo
119. Santa Lucia
89. Taquaril
120. Sta. Rita de Cassia
90. Horto
121. Cj. S. Maria
91. Mariano de Abreu
122. Carlos Chagas
92. Alcides Lins
123. Miguel Arcanjo
93. Cachoeirinha
124. B. das Indústrias
94. Capitão Eduardo
125. Diam./Teixeira D.
95. Cidade Ozanan
126. Independência
96. Efigênia M. F.
127. Itaipu / Jatobá
97. Cj. Paulo VI
128. Lindéia
98. Dom Joaquim
129. Mangueiras
99. Gentil Gomes
130. Milionários
100. Goiânia
131. Miramar
101. Maria Goretti
132. Pilar / O. d’Água
102. Marivanda Baleeiro 133. Regina
103. Nazaré
134. Santa Cecília
104. Pr. F. de Melo
135. Túnel de Ibirité
105. Ribeiro de Abreu
136. Vale do Jatobá
106. São Gabriel
137. Vila cemig
107. Vila Maria
138. Vila Pinho
108. São Paulo
139. Barreiro
109. Marcelo P. Gomes 140. Bonsucesso
110. Olavo Albino Correa 141. Tirol
111. São Marcos
142. Barreiro de Cima
112. Tia Amância
143. Úrsula
113. Menino Jesus
144. João XXIII
115. Cafezal
146. Leop. de Castro
117. Oswaldo Cruz
147. São José
Fonte: os autores, com base em dados IBGE, 2010/PBH, 2014.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
331
Renato Cesar Ferreira de Souza et al.
criação de um mapeamento gratuito e editável
O cálculo da declividade média de cada
de todos os espaços urbanos do mundo. A
segmento das vias usou o modelo de cálculo
vantagem do material oferecido por esse site
mostrado na Figura 6, que é a vista do mode-
gratuito é que as informações disponibilizadas
lador matemático das operações, e pode ser
estão em contínua atualização pelos colabora-
compreendido por especialistas. O mapa da
dores, com qualidade compatível ao Network
centerline já ajustado teve cada um dos 49.885
segmentos de via divididos em três pontos para
garantir uma melhor estimação da declividade
dos setores de via.
A seguir, utilizando o mapa com as feições das curvas de nível do município, foi criado um mapa clinográfico, e a declividade de
cada ponto dos segmentos foi capturada numa
nova tabela. A Figura 7 ilustra esse processo,
apresentando uma camada espacial com a linha central dos segmentos de um trecho urbano. Produziu-se, com isso, um mapa das vias de
todo o município de Belo Horizonte, contendo
o valor da declividade para os três pontos, dos
quais se calcularam a declividade média e o
sentido aclive/declive.
Analyst ARCmap.
●
Composição do banco de dados para a
análise da rede de vias públicas
A seguir, esse mapa recebeu algumas informações adicionais para compor uma base de dados para o Network Analyst. Foram indicados
o tipo de cada segmento (ruas, rodovias, becos, etc.), a velocidade máxima permitida para
os automóveis e a declividade do segmento
viário. Para que o módulo do Network Analyst
funcionasse corretamente, a rede foi dividida
em segmentos conectados por vértices, que
representam as esquinas e as demais junções
(Figura 5).
Figura 4 – Todos os segmentos
viários do Brasil
Figura 5 – Split dos segmentos
de vias
Fonte: os autores, com base em dados da OSM (2014).
332
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
Viver próximo à saúde em Belo Horizonte
Figura 6 – Model Builder ArcGis para determinação
da declividade média das vias
Vias CenterLine.SHP
Feature Vertices
To Points
(START)
Pontos no
início dos
Segmentos
Feature Vertices
To Points
(MIDDLE)
Pontos no
meio dos
Segmentos
Feature Vertices
To Points
(END)
Vias CenterLine.SHP (2)
Extract Values
to Points
(INTERPOLATE
VALUES)
Create TIN
Add Join
Pontos no
fim dos
Segmentos
Output raster
(2)
Curvas de Nível. SHP
3 Pontos
de cada
segmento
com
declividade
Output TIN
TIN do Raster
Slope
Output raster
Vias com
Declividades
Fonte: os autores.
Figura 7 – Ilustração das camadas sobrepostas para identificação
de dados para os segmentos viários
Fonte: os autores.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
333
Renato Cesar Ferreira de Souza et al.
●
Implementação dos dados de impedância
motorizado. A seguir, sumarizam-se os ele-
A análise de redes viárias pode considerar pe-
mentos presentes no cálculo desses dois tipos
destres e veículos. Para o primeiro caso, leva
de movimentos.
em conta a velocidade média da caminhada
A resistência oferecida aos pedestres
das pessoas, assim como a variação de velo-
e aos carros em seus trajetos é denominada
cidades conforme a declividade das vias, o
“impedância” nos estudos de GIS. Conforme
sentido da caminhada (se subida ou descida)
se mencionou, devem ser considerados valores
e a idade do pedestre. Para o segundo caso,
médios para as velocidades das caminhadas
consideram-se as informações sobre a hierar-
sob influências diversas, desde a declivida-
quia das vias, o volume e o sentido do tráfego,
de e idade dos pedestres, até a temperatura
o sentido das conversões e as velocidades má-
e densidade de pessoas nos passeios. Exis-
ximas permitidas.
tem hoje muitas pesquisas dirigidas ao as-
No nosso caso, o movimento peatonal
sunto (Daamen; Hoogendoorn e Bovy, 2005;
foi prioritário, devido às características da ava-
Hoogendoorn e Bovy, 2002; Hoogendoorn;
liação do acesso às UBS pelos moradores. Já
Bovy e Daamen, 2002). Aqui priorizamos o Grá-
as condições de facilidade de movimentação
fico 1, que relaciona a declividade em % (x) e a
em função dos elementos da logística e do
velocidade da caminhada em metros por minu-
princípio de compartilhamento de recursos tec-
to (y). Os valores negativos referem-se à decli-
nológicos e de serviços especializados foram
vidade em sentido descendente e os positivos,
avaliadas para os valores do cálculo de tráfego
em sentido ascendente (Bovy, 1973).
Gráfico 1 – Velocidade e declividade no movimento de pedestres
Fonte: Bovy (1973).
334
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
Viver próximo à saúde em Belo Horizonte
Já, para o estudo de impedância dos
análise intrassetorial. Limitamo-nos a indicar
automóveis, a tabela dos segmentos viários
a existência de uma vasta bibliografia sobre
recebeu dados que armazenam a informação
o algoritmo de Dijkstra, que pode servir aos
acerca do sentido das vias para circulação dos
interessados. Tal algoritmo foi aplicado a um
veículos, declividade e sentido, largura da via,
grande número de problemas a partir de 1956,
velocidade e tipologia. Todos esses dados, co-
quando foi concebido e se revelou uma formu-
mo se disse anteriormente, foram retirados
lação lógica e inovadora em diversos campos.
do OSM, mas vale comentar que o software
No desenho urbano, ele tornou possível várias
ArcGIS 10.14 (2016) já permite a conexão do
análises sobre a acessibilidade, sendo incorpo-
aplicativo em tempo real com os bancos de da-
rado em aplicativos contemporâneos (Steinitz,
dos atualizados pelas instituições responsáveis
2012), como o ArcGis.
pelo controle do trânsito, como acontece em
A etapa final consistiu na criação de
cidades como Londres e Paris, onde até o vo-
duas redes, a partir da camada das vias
lume de tráfego é disponibilizado nos sites das
implementadas com as informações anteriores,
prefeituras. Entretanto, as informações sobre o
uma para análise dos movimentos de automó-
sentido das vias foram suficientes para finalizar
veis e outra para o movimento de pedestres.
o conjunto de dados do mapa de segmentos
Foi necessária a programação de um roteiro na
de vias e possibilitou avançar com a análise
linguagem Python4 para reconhecer a sinaliza-
de rede através do aplicativo ArcGIS. Aquele
ção de sentido das ruas da cidade, no caso da
software utiliza algoritmos matemáticos disponíveis no módulo de geoprocessamento
Network Analyst,3 os quais são baseados no algoritmo clássico de Dijkstra (Skiena, 1990) que
permite o cálculo da rota de menor impedância (custo, esforço) entre um ponto e outro, no
interior de uma rede – o que pode gerar uma
análise da rede para automóveis. Igualmente, a
rede para análise do movimento de pedestres
demandou um roteiro associando os dados
de velocidade e a declividade dos passeios,
como anteriormente dito. A inserção desses
roteiros foi feita na etapa do que se chama
DataSetNetwork, ilustrado na Figura 9.
Figura 8 – Atributos para a avaliação das regras do modelo
matemático construído para os automóveis
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
335
Renato Cesar Ferreira de Souza et al.
Esses scripts regulam a velocidade dos
compreender a influência peatonal, a influência
pedestres e calculam o tempo que eles gasta-
de motorizado e a análise da localização-distri-
riam para percorrer os segmentos de passeio.
buição. Então, vejamos.
A velocidade é determinada segundo a declividade do trecho, de acordo com o Gráfico 1. A
partir disso, avaliaram-se os sentidos dos movimentos dos pedestres, se subida (aclive) ou se
descida (declive propriamente dito).
●
Influência Peatonal (Service Area)5
Nesta análise foram considerados os dados
de pedestres e de automóveis para observar o
comportamento no acesso às USB. A Figura 9
mostra o cálculo da área de abrangência das
UBS, com tempos de caminhadas dos pedestres
Resultados e análises
de até 15 minutos. Ressalte-se que os parâmetros para esse cálculo foram as velocidades
compreendidas em acordo com a declividade,
O conjunto de dados trabalhados e relata-
como explicitado anteriormente. Dessa manei-
dos para a construção da base nos facultou
ra, a Figura 9 mostra um acesso bastante redu-
descrever alguns dos resultados para melhor
zido pelo trajeto a pé, segundo os parâmetros
Figuras 9 e 10 – Service Area com impedâncias
de velocidade peatonal, considerando aclive e declive
A
Curvas isocrônicas de
acesso peatonal aos
Centros de Saúde – BH
Curvas isocrônicas de
acesso peatonal aos
Centros de Saúde – BH
Tempo de percurso a pé
Tempo de percurso a pé
área de abrangência do CS
passeios e ruas
áreas alcançadas a 30 min a pé
área de abrangência do CS
passeios e ruas
Fonte: os autores.
336
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
Viver próximo à saúde em Belo Horizonte
aqui adotados. Essa situação fica ainda mais
e respiratórias. Entretanto, há poucos dados so-
crítica nas UBS da Regional Barreiro, que pos-
bre o que ocorre no Brasil.
suem as menores áreas sob as curvas isocrôni-
A junção dos polígonos da Figura 10
cas. Já o resultado mostrado no mapa da Figura
sugere a existência de anéis isocrônicos que
10 considera o tempo de caminhada de 30 mi-
comunicam as UBS em caminhadas de 30 mi-
nutos. A comparação desses dois mapeamen-
nutos. A área dos anéis pode se constituir num
tos indica uma redução da área de influência
indicador, mas ele tem pouca utilidade, uma
da UBS e, simultaneamente, pouca correspon-
vez que as curvas são calculadas pelo tempo
dência em relação às áreas de abrangência
de percurso nas ruas e passeios. Algumas UBS
determinadas pelo SUS/PBH. Também dela po-
do Barreiro, como por exemplo a UBS Olhos
de-se concluir a necessidade de pesquisar con-
D’água (marcada como A na Figura 9), tem a
ceitos relativos às “distâncias caminháveis” na
menor área de influência, caracterizada pela
cidade – walking distance, walkability (Leslie et
interferência da declividade. Finalmente, ou-
al., 2007; Murekatete e Bizimana, s/d). Tais con-
tra reflexão possível se refere à caracterização
ceitos possuem muitas referências na literatura
dos pedestres por idade que, numa pesquisa
sobre saúde orientadas para doenças cardíacas
futura, poderá indicar o estabelecimento de
Figura 11 – Service Area de motorizados
Curvas isocrônicas de
acesso motorizado aos
Centros de Saúde – BH
Tempo de percurso a pé
5
10
15
área de abrangência do CS
passeios e ruas
Fonte: os autores.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
337
Renato Cesar Ferreira de Souza et al.
velocidades diferentes para a abordagem. No
estudo possibilita identificar e listar quais os
caso em estudo, o padrão de velocidade foi
números de domicílios e outros que estão so-
generalizado para ser inclusivo, considerando
bre a influência da UBS. Se for considerado
pessoas acima de 65 anos.
um indicador, será possível determinar quan6
tas conexões com domicílios serão suporta-
A Figura 11 exibe o cálculo das áreas de in-
das para a capacidade de cada UBS em inter-
fluência das UBS acessadas por automóveis.
valos temporais.
●
Influência de motorizado (Service Area)
Um problema relacionado ao estágio tecno-
A exemplo de sobreposição de outros
lógico do cenário brasileiro é a falta de dados
dados, a Figura 13 apresenta o Índice de Vul-
sobre otráfego de automóveis e pedestres. O
nerabilidade à Saúde (IVS) e a população com
volume do tráfego e a densidade peatonal são
mais de 65 anos em cada setor censitário. O
dados empíricos que necessitam de medição
polígono continente de todas as retas de tem-
atualizada, frequente e livre, durante todos os
po poderia ser o agregador dos dados da po-
dias do ano, para que seja possível alcançar
pulação idosa, contribuindo para relocalizar se-
alguma preditibilidade. No caso, foram consi-
tores censitários de forma distinta, produzindo
deradas as velocidades máximas dos segmen-
áreas de agregação com indicadores que possi-
tos de vias, o que não é um estado ideal e, de
bilitassem maior homogeneidade espacial. Esta
modo algum, preciso. Tal precariedade indica
última observação expressa a necessidade de
que os instrumentos baseados na impedância
análises que favoreçam a reconstrução de no-
temporal irão falhar nesse contexto, inviabili-
vas unidades de agregação significativas, con-
zando a utilização de algumas ferramentas do
comitantemente com uma mudança conceitual
Network Analyst ArcGIS, que tem potencial, como se mencionou anteriormente, de conectar-se à base de dados em tempo real das instituições reguladoras do trânsito.
das UBS na sua relação com as vizinhanças.
Conclusões
Localização-Distribuição ( Location-
Este estudo de caso pretendeu demonstrar a
-Allocation)
Esse tipo de teste permite visualizar as áreas
ótimas de demanda a serem atendidas pela
UBS. Essa análise resulta num conjunto de linhas que sintetiza o trajeto pelos segmentos
de vias desde a UBS até o ponto de demanda,
ou seja, pontos de endereços das edificações
que possuem a menor impedância de tempo.
A Figura 12 estabelece retas que vão de cada
edifício da Regional Barreiro até a UBS mais
econômica (menor impedância de tempo a
pé). Diferindo da análise de Service Area, este
potencialidade de investigações sobre o territó-
●
338
rio e a saúde, no que tange aos possíveis condicionantes espaciais de maior ou menor acesso
às UBS em um contexto urbano de vivência,
acenando para o enriquecimento do debate sobre os rumos da saúde no Brasil.
Preliminarmente, o estudo verificou o
conceito do centro de saúde de modo positivo
e integrado à vizinhança. A seguir, expôs, de
acordo com os parâmetros aqui adotados, um
acesso mais reduzido pelo trajeto a pé, além de
descrever algumas UBS com restritas áreas de
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
Viver próximo à saúde em Belo Horizonte
Figura 12 – Location-Allocation com menor impedância
de velocidade peatonal considerando aclive e declive
Tempo de caminhada
origem nas residências
e destino Centro de Saúde
Regional Barreiro
Área de abrangência do CS
Lines
Tempo em minutos
10 minutos
até 20 minutos
até 30 minutos
Número do domicílio
Edificações
Quadras
Passeios e ruas
Centros de Saúde
Fonte: os autores.
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Renato Cesar Ferreira de Souza et al.
Figura 13 – Location-Allocation sobreposições de dados:
população idosa e Índice de Vulnerabilidade à Saúde (IVS)
Tempo de caminhada
origem nas residências
e destino Centro de Saúde
Regional Barreiro
Área de abrangência do CS
Tempo de caminhada aos CS’s
0 a 10 min
11 a 20 min
21 a 30 min
Edificações
Quadras
Passeios e ruas
Fonte: os autores.
340
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Viver próximo à saúde em Belo Horizonte
abrangência, sugerindo uma pequena área de
O artigo permite concluir sobre a neces-
influência e ínfima correspondência com a res-
sidade de maior multiplicidade de informa-
pectiva área administrativa. Essa ausência de
ções de qualidade para o estudo de indicado-
sobreposição tende a sugerir limitações entre
res de Saúde Urbana através de ferramental
as áreas (de influência e administrativa), o que
analítico utilizando o GIS. Recomenda-se,
compromete a eficácia de políticas planejadas
também, a realização de pesquisas sobre
para um recorte determinado. Tal descompasso
conceitos relacionados às “distâncias cami-
possivelmente oculta singularidades de áreas
nháveis” e os impedimentos ou barreiras
mais próximas ao que, de fato, ocorre na reali-
constantes nos percursos, com a imagem da
dade, em termos de obstáculos a uma redução
cidade (Lynch, 1997).
no tempo de deslocamento e de prestação do
As reflexões aqui aquecem o debate no
serviço. O estudo dos obstáculos do território
que se refere às diversas definições e possibili-
é assunto que carece de pesquisa longa e pode
dades analíticas do que é um contexto urbano,
ser tratado com as mesmas bases operacionais
seja ele originado de um ponto de vista objeti-
aqui descritas, detendo-se em verificações im-
vo, como os setores administrativos, seja ele de
portantes como modelos de percepção ambien-
origem subjetiva, tais como a percepção/convi-
tal, cognição e geografia (Wood; Kitchin; Bla-
vência da vizinhança pela população adstrita a
des, 2002) e saúde.
um determinado território urbano.
Renato Cesar Ferreira de Souza
Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Arquitetura, Departamento de Projetos, Núcleo de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Belo Horizonte, MG/Brasil.
[email protected]
Veneza Berenice de Oliveira
Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Medicina, Programa de Pós-Graduação em Saúde
Pública. Belo Horizonte, MG/Brasil.
[email protected]
Doralice Barros Pereira
Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Geografia, Programa de Pós-Graduação em
Geografia. Belo Horizonte, MG/Brasil.
[email protected]
Heloisa Soares de Moura Costa
Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Geografia, Programa de Pós-Graduação em
Geografia. Belo Horizonte, MG/Brasil.
[email protected]
Waleska Teixeira Caiaffa
Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Medicina, Programa de Pós-Graduação em Saúde
Pública. Belo Horizonte, MG/Brasil.
[email protected]
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
341
Renato Cesar Ferreira de Souza et al.
Notas
(1) "ArcGIS Pla orm - Esri", 2005. Disponível em <h p://www.esri.com/so ware/arcgis>. Acesso
em: 26 dez 2015.
(2) "OpenStreetMap Founda on Wiki", 2015. Disponível em: <h ps://wiki.osmfounda on.org/>.
Acesso em: 4 jan 2016 .
(3) "ArcGIS Pla orm - Esri", 2005. Disponível em: <h p://www.esri.com/so ware/arcgis>. Acesso
em: 26 dez 2015.
(4) "Welcome to Python.org", 2004. Disponível em <h ps://www.python.org/>. Acesso em: 20 abr
2016.
(5) Service Area pode ser entendida como a área de influência de um determinado serviço ou edi cio.
Essa análise considera a impedância para os tempos e deslocamentos de pedestres, conforme
explicado.
(6) Considerando a impedância para automóveis, como se explicou.
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Texto recebido em 14/jan/2016
Texto aprovado em 31/mar/2016
344
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 325-344, jul 2016
Sofrimento e trabalho na cidade
em marcha forçada
Suffering and working in the city
in forced march
Stela Cristina Godoi
Resumo
Para a história da cidade no século XX, os trabalhadores metalúrgicos e os motoboys são
uma voz arquetípica que retrata a mentalidade
de uma época. A cidade vista sob a ótica desses
dois grupos profissionais revela a brutalidade do
processo de aceleração do tempo social. Assim,
neste escrito, as memórias de metalúrgicos do
ABC paulista de meados do século XX e os relatos orais de motoboys da Região Metropolitana de Campinas, coletados em duas pesquisas
distintas, enlaçam-se em um processo de “escovação da história do sistema de circulação da
cidade a contrapelo”.
Palavras-chave: cidade; trabalho; violência; automóveis; tempo.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3602
Abstract
For the history of the city in the 20th century,
metallurgic workers and motorcycle couriers (known
as “motoboys” in Brazil) are somehow an archetypal
voice that portrays the mentality of an entire era.
The city viewed in the perspective of these two
social-professional groups reveals the brutality of
the acceleration process of social time. Thus, in the
lines below, the collective memoirs of metallurgic
workers of São Paulo’s ABCD industrial belt in the
mid-twentieth century and the oral autobiographical
reports of “motoboys” in the Metropolitan Region
of Campinas, collected in two separate surveys,
intertwine in a process of brushing the history of the
city’s circulation system against the grain.
Keywords: city; labor; violence; cars; time.
Stela Cristina Godoi
Introdução
No século XIX, Paris era considerada
a capital da modernidade e, nessa condição,
A cidade é “como a lâmpada para a mariposa.
exerceu grande influência sobre a configuração
Atrai e também mata”, assim afirmou o finado Philadelpho Brás, metalúrgico, sindicalista
e memorialista da classe operária paulista, em
tom carregado de sabedoria anciã. Por meio
da licença poética concedida aos narradores,
Philadelpho suscita uma reflexão sobre o caráter contraditório das relações sociais formadoras da cidade. À cidade associa-se a imagem
da iluminação, à ideia de iluminação, associa-se a de modernidade. As luzes da cidade como
fator de atração a revoadas de migrantes, de
mariposas, entre a vida e a morte. Essas mariposas são o Carlitos de Charles Chaplin. Esse
“herói solitário e triste” vagando pelo “deserto
povoado pela multidão” em que se constitui
a cidade (Ianni, 1989). São o homem da multidão de Edgar Alan Poe, o flâneur de Charles
Baudelaire ou, ainda, o Mazzaropi, anti-herói
caipira da autêntica modernidade brasileira.
Mas a cidade não é uma abstração e,
enquanto espaço de interação social, só ganha
concretude histórica se associada à categoria
temporal e se concebida dentro de um sistema
social de produção e reprodução da vida. Desse
modo, este escrito buscará promover uma reflexão sobre as mudanças na forma de ser-estar
da cidade no bojo do desenvolvimento da indústria automotiva no Brasil, tomando o caso
da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP)
e da Região Metropolitana de Campinas (RMC)
como base empírica dessa análise. Pretende-se,
ademais, pensar a cidade como espaço simbólico do mundo moderno, o que torna necessário levar em consideração as metamorfoses da
própria ideia de modernidade no interior da
processualidade histórica do capitalismo.
da vida citadina na RMSP e na RMC. Em mea-
346
dos do século XIX, com as reformas empreendidas pelo prefeito do Departamento de Sena,
George-Eugène, o Barão de Haussmann, a cidade de Paris materializou as aspirações iluministas.1 Água, esgoto e gás encanados para evitar
epidemias que tinham vitimado centenas de
pessoas na primeira metade do século. Incontáveis desapropriações e demolições dos casarios
para dar lugar às ruas largas e bem calçadas,
aos bulevares e dezenas de novas edificações
padronizadas, para evitar motins e barricadas,
que num passado recente haviam ocupado o
enredado das vielas e das ruas estreitas que
caracterizavam a topografia do centro de Paris
(Benjamin, s/d).
Por sua vez, toda essa nova arquitetura parisiense havia sido inspirada no modelo
londrino de urbanização, que estava à frente
de toda a Europa na modernização da cidade,
sobretudo pelo seu sistema de circulação urbano que, desde o século XVI, já chamava a
atenção pela rede de vias fluviais, ferroviárias
e rodoviárias que contribuíram para que Londres se tornasse o centro do mercado mundial
(Wood, 2000).2
Entretanto, com as destruições promovidas pelas duas guerras mundiais no território
europeu e o fortalecimento político-econômico
e militar dos Estados Unidos da América, a
partir de meados do século XX, a própria ideia
de modernidade se metamorfoseia em resposta aos novos interesses de transnacionalização
da indústria capitalista taylorista-fordista. Portanto, no contexto de hegemonia norte-americana, as cidades, sobretudo aqueles matizadas
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016
Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada
pela dominação colonial, vivem uma nova on-
todos os antigos bairros de Paris”, representa
da de modernização que repercutiu na maior
um sentimento de que a cidade antiga “não
adequação de seus espaços de circulação para
podia mais permanecer como era, mas a nova
a espetacularização do consumo de automó-
parecia demasiado horrível, sem alma e vazia
veis. Ou seja, rodovias, grandes avenidas, mais
para se contemplar” (ibid., p. 10).
estacionamentos públicos e privados, tudo
Todavia, o processo de racionalização
para assegurar a livre circulação dessa mer-
capitalista não poupou essa cidade industrial,
cadoria-símbolo da modernização capitalista
ela também foi sendo transformada, ao final
no mundo subdesenvolvido. Assim, no Brasil,
do século XX, na “cidade-mercadoria” marca-
em meados do século XX, os bondes e os trens
da por uma segregação de classes ainda maior.
foram parando de prestar seu serviço no trans-
Por trás dos muros dos condomínios fechados e
porte de pessoas e foram sendo substituídos
das novas barricadas urbanas dos territórios do
pelos ônibus, caminhos, carros e, mais tarde,
crime, a produção do espaço urbano, a partir
pelas motocicletas.
da década de 1990, encarna a face bipolar do
Nesse sentido, para se compreender a
ódio e da indiferença blasé ao outro (Caldeiras,
transformação pela qual passam as cidades
2000). Ademais, a reestruturação produtiva do
brasileiras e o modo de vida urbano no bojo
capital promoveu uma mudança profunda no
do processo em que a indústria automotiva
mundo do trabalho e nas referências que pau-
foi conquistando papel central no projeto de
tavam e ritmavam a vida social. Amplia-se uma
desenvolvimento nacional, é preciso levar em
desconexão entre trabalho e empresa, tempo
consideração a importância desses espaços
de trabalho e tempo de não trabalho, formal e
de circulação para a economia capitalista. Na
informal, emprego e moradia. Nesse sentido, a
medida em que a reprodução social desse sis-
produção do espaço urbano é também a pro-
tema societal depende da realização da mais-
dução de determinados percursos instáveis e
-valia através da distribuição, troca e consumo
desiguais dos sujeitos pelo mundo do trabalho
de mercadorias, as cidades tornaram-se o ner-
precário e global das prestadoras de serviço
vo essencial de uma economia cada vez mais
terceirizadas, dos vendedores ambulantes, das
capitalista e monetarizada, justamente porque
empresas globais num mercado de consumo
abrigaram as atividades ligadas à circulação de
cada vez mais sedutor (Telles, 2006).
bens e, consequentemente, ligadas à circulação
de excedente (Santos, 1979).
Assim, para pensarmos a violência implicada no processo de compressão do tempo-
A década de 1960 é marco temporal im-
-espaço que define a produção do espaço urba-
portante também para as cidades europeias.
no, buscamos compreender essa nova tessitura
Com Harvey (2014) podemos asseverar que um
entre trabalho e cidade através do aporte de
novo cenário urbano reflete não só mudanças
uma perspectiva epistemológica que historicize
geopolíticas na divisão internacional do traba-
a cidade a partir da experiência e da memória
lho, como também micropolíticas. A imagem
da “gente comum”,3 pois, quando pensamos a
estampada em cartaz na década de 1960, de
transformação da cidade, não basta fazer uma
uma “retroescavadeira devorando vorazmente
genealogia das ideias daqueles que, no mundo
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016
347
Stela Cristina Godoi
acadêmico, tentam compreender o processo. É
contramão da marcha do progresso com uma
preciso levar em consideração o
chave heurística fundamental que foi pensar
[...] papel desempenhado pela sensibilidade que surge das ruas que nos cercam,
pelos inevitáveis sentimentos de perda
provocados pelas demolições, [...], ou o
desespero que provém do sombrio desespero da marginalização e da juventude
ociosa perdida no puro tédio do aumento
do desemprego. (Harvey, 2014, p. 12)
a atuação dos sujeitos no processo histórico.
Thompson (1981), criticando o estruturalismo
althusseriano, propôs a inclusão de um termo
ausente no sistema conceptual anterior: “a experiência”. Naquele sistema, a determinação e
a autonomia aparecem como as duas pontas
de uma mesma cadeia; enquanto, para Marx,
segundo Thompson (ibid.), determinação e au-
Promovendo nexos entre o passado, o
tonomia são as duas formas de dizer a mesma
presente e o futuro, Walter Benjamin apresenta
coisa. Assim, através dessa outra concepção
uma perspectiva histórica dialética que permi-
proposta por Thompson, não se compreende
te analisar essas metamorfoses da cidade ao
a realidade histórico-social como um encadea-
longo do desenvolvimento capitalista, de mo-
mento mecanicista, mas sim como um processo
do que a nostalgia do passado se constitua no
histórico aberto.
método revolucionário de crítica do presente
Desse modo, tomando de empréstimo
(Löwy, 2005). Dialogando com os historicistas,
essas reflexões de Benjamin e Thompson, nes-
refletindo sob o contexto histórico do fascis-
te escrito, propõe-se olhar a cidade, bem como
mo, Benjamin (1994) ensaia, nas teses “Sobre
seus espaços de circulação e formas de sociabi-
o conceito de História”, outro conceito de his-
lidade, partindo das memórias e das experiên-
tória, mediante o qual sejam desnudadas as
cias do conjunto de entrevistados dos dois es-
ameaças – promovidas pelo contínuo processo
tudos desenvolvidos pela pesquisadora, sobre
de modernização capitalista – que o progresso
os metalúrgicos do ABC de meados do século
técnico e econômico faz pesar sobre a humani-
XX4 e sobre os motofretistas que atuam hoje
dade: a transformação dos seres humanos em
em Campinas,5 com vistas a realizar um proces-
máquinas de trabalho, a degradação do tra-
so de reconstrução da história do desenvolvi-
balho a uma simples técnica, a submissão de-
mento urbano paulista a contrapelo.
sesperadora das pessoas ao mecanismo social.
Nesse sentido, Benjamin (1994) alerta para a
necessidade de que a história seja vasculhada
a contrapelo. Segundo esse autor, partindo do
princípio filosófico de que não há luta pelo futuro sem memória do passado, “escovar a história
A transformação
do transporte urbano no bojo
do desenvolvimento capitalista
a contrapelo” significa a recusa em se juntar ao
cortejo triunfal dos vencedores e possibilita um
No Brasil do final do século XIX e primei-
salto para fora da marcha do progresso.
ra metade do século XX, a ferrovia puxou a
Num sentido similar, Thompson contri-
expansão da cafeicultura. Na capital paulista,
bui com esse esforço de análise histórica na
via-se surgir a cada dia uma novidade diferente:
348
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016
Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada
a eletricidade substituía o lampião a gás, chegavam os primeiros carros, cresciam as linhas
de bondes elétricos e construíam-se grandes
obras urbanas. Segundo Martins (2004), essas
passagens simbolizam transformações sociais
importantes, já a sociabilidade produzida pelo
uso do bonde e do trem continha traços de uma
sociedade tradicional em franca modernização:
O bonde junta o que na sociedade tradicional não se juntava: o homem e a mulher desconhecidos, o padre e o protestante antagônicos. As pessoas se tocam,
se encostam, empurradas no movimento
incontrolável da máquina, da coisa, que
simboliza o que a Cidade é. Ela tem força
própria, dita o lugar das pessoas, quebra
as regras, tumultua, confunde. (p. 203)
A viagem de trem, tal como a de bonde,
aparece viva na memória da maior parte dos
trabalhadores que viveu em meados do século
XX. De acordo com Certeau (1994), a viagem
de trem expressava simbolicamente a experiência da vida moderna. O trem corta o espaço; a
vidraça permite ver e os trilhos atravessar. O
vagão alia o sonho à técnica e mergulha o viajante na melancolia de ver aquilo de que está
separado (ibid.). Conforme mostra o relato de
Philadelpho, a máquina parada parece monumental, um ídolo mudo:
Passava um trem de manhã, outro trem
de noite. De noite vinha para São Paulo.
Então [...] para gente que estava com uns
treze anos [...], ver aquelas Marias-Fumaças cheias de metais brilhantes, aquele
condutor, o chefe da máquina fardado
que parecia um general, era um encanto
para alma da gente. Aquele vagão, restaurante que só dava fazendeiro, gente rica.
Claro que a gente era pobre, estava lá na
gaiola. Viajar de trem, embora a Mogiana
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016
não era a melhor [...], aquilo foi a maior
aventura de criança para mim [...]. (Philadelpho, metalúrgico, 2006)
Assim, é interessante observar acerca das
memórias narradas pelos metalúrgicos aposentados da RMSP que, ao mesmo tempo que, no
olhar do presente, o trem e o bonde fazem parte de uma sociedade tradicional que remete a
um passado pré-moderno, eles compõem também o quadro social da modernidade no Brasil.
O estudo de memória desenvolvido por Hadler
(2007) sobre a história dos bondes de Campinas também se depara com o mesmo paradoxo. A análise de dois momentos do discurso
ideológico da modernidade, no início e em
meados do século XX, permite compreender
que se a substituição do bonde à tração animal pelo bonde elétrico foi vista, pela ideologia
liberal do período, como um avanço na construção de sua modernidade. Sob o contexto
mundial de hegemonia norte-americana, esse
mesmo bonde elétrico que, há cerca de três décadas, era idolatrado como símbolo de elegância e modernidade pelas elites da cidade, passa
a simbolizar o seu atraso (ibid.).
Essa transição no sistema de transporte
brasileiro pode ser observada também ao se
analisar a evolução das redes férreas e rodoviárias ao longo do tempo. De modo geral, as
estatísticas históricas do IBGE mostram que, a
partir da última década do século XIX e início
do XX, a malha ferroviária brasileira deu o seu
primeiro grande salto, crescendo em quilômetros continuamente até 1970, quando o País
veio a perder 16% da rede ferroviária que tinha
uma década antes. Ao longo desse período, os
estados de Minas Gerais e São Paulo destacaram-se com as redes mais extensas de ferrovias
349
Stela Cristina Godoi
em tráfego, diminuindo em extensão na mesma
um projeto de desenvolvimento dependente
década em que há um declínio em todo o terri-
que aqui se configurou.
tório nacional.
Assim, em virtude do projeto de desen-
Considerando a evolução da extensão
volvimento nacional-desenvolvimentista, de
da rede rodoviária ao longo do tempo, as esta-
caráter dependente, definido a partir da déca-
tísticas históricas do IBGE mostram que houve
da de 1950 no contexto de hegemonia norte-
um crescimento contínuo da rede rodoviária do
-americana do pós-Segunda Guerra Mundial,
País desde 1954, quando contava com 302.147
as cidades brasileiras se transformaram em
km de extensão. Entretanto, foram nos anos de
verdadeiras passarelas para o desfile dessa
1965 e 1967 que o salto foi maior, iniciando
mercadoria-símbolo da modernização capitalis-
a década de 1970 com mais de um milhão de
ta na periferia do sistema.
quilômetros de via de rodagem, uma extensão
Portanto, embora desde o final da Pri-
quase quatro vezes maior do que a totalidade
meira Guerra Mundial já viesse se dando a
da rede férrea naquele período. Essa mudança
implantação dessa indústria, foi, a partir do
na estrutura do transporte no Brasil, em certa
governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), que
medida, está relacionada com a própria carac-
ela passou a ter um papel de grande destaque
terística do transporte ferroviário, o qual, de
no desenvolvimento nacional. O automóvel
acordo com Kurz (1996), trazia, do ponto de
entra na história do desenvolvimento urbano-
vista capitalista, uma imperfeição:
-industrial brasileiro como o principal símbolo
da concepção de modernidade que prevalecia
Não no sentido tecnológico, mas, de
modo mais fundamental, no sentido
econômico e, de certa maneira, até espiritual. [...] Enfim, a ferrovia, do ponto
de vista capitalista, possui uma mácula
irrecuperável: a de ser necessariamente
[...] um“bem público”. [...] A ferrovia é,
a longo prazo, incompatível com o capitalismo, tanto em seu aspecto espiritual-intelectual, como no seu aspecto econômico”. (Ibid., p. 3)
em meados do século XX.
A vinda das montadoras de automóveis
para o Brasil, organizadas dentro do padrão
internacional de produção taylorista-fordista,
atendia aos interesses das próprias corporações norte-americanas e europeias, em seus
planos de transnacionalização no pós-1945.
Portanto, ao final do governo JK, já existiam
instaladas no País cerca de nove montadoras:
Ford, General Motors, International Harvester,
Entretanto, não se trata apenas de explicar o favorecimento dado ao transporte
Mercedes-Benz, Scania-Vabis, Simca, Vemag,
Volkswagen, Willys-Overland, dentre outras.
rodoviário no desenvolvimento capitalista
A respeito dessa enorme influência, eco-
no Brasil somente pelo caráter público das
nômica e ideológica, exercida por essas monta-
ferrovias, uma vez que é sabido que países
doras no desenvolvimento capitalista do século
europeus totalmente mergulhados nas de-
XX no Brasil, vale a pena sublinhar que, a des-
terminações do capital continuam até hoje a
peito de seu caráter hegemônico, o olhar de um
utilizar amplamente o sistema ferroviário de
metalúrgico que viveu esse contexto histórico
transporte. Ou seja, tratou-se, sobretudo, de
mostra as fissuras dessa ideologia:
350
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016
Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada
Acabaram com as nossas ferrovias para
por um produto das multinacionais na estrada [...] Eu acho que no futuro [...] haverá um choque muito grande, viu! Primeiro
eu falo, puxa, onde é que vamos por tanta
sucata?! Hoje você passa por aí, em qualquer lugar, nessas cidades grandes, o cara
está derrubando uma casa antiga, para
quê? Para fazer estacionamento. Você
sabe que o automóvel[...] é um ícone nos
países subdesenvolvidos. Então aqui, o
cara só não leva o automóvel para dormir
com ele, porque a mulher briga, né! [...]
Então, automóveis todo mundo fabrica,
no mundo inteiro fabrica, eu quero ver o
que vai fazer, vai comer automóvel? Eu
falo: “se vai comer automóvel começa
pelo pneu e pelo estofamento que é mais
mole!”. (Philadelpho, metalúrgico, 2006)
consumo, já que o mercado de bens duráveis,
como automóveis e eletrodomésticos, que sustentou a expansão econômica do capitalismo
industrial até meados do século XX, havia se
saturado nas décadas de 1960 e 1970.
Nesse sentido, embora a década de
1980 possa ser considerada um marco do relativo recrudescimento da trajetória francamente expansiva da indústria automotiva no
Brasil, não se pode afirmar que tal frenagem
na produção e no escoamento interno da mercadoria-símbolo da modernidade capitalista
tenha levado a uma mudança mais significativa do enfoque do sistema de circulação brasileiro, centrado no transporte rodoviário. Ao
contrário, a frota de veículos continuou crescendo em todo o País.
Mas, a despeito desses discursos contra-
O estado de São Paulo tem atualmente
-hegemônicos, a trajetória de crescimento da
a maior concentração de automóveis, cami-
indústria automotiva no Brasil, definindo os ru-
nhões, ônibus e motocicletas do País. Uma
mos do desenvolvimento econômico nacional,
frota de veículos cerca de 10 vezes maior do
manteve-se firme até 1980, quando o quadro
que a de estados grandes e populosos, como
econômico de estagflação (estagnação da pro-
o Rio de Janeiro, conforme apontam os dados
dução com inflação) e endividamento externo,
fornecidos pelo IBGE-estados referente a 2010.
agravado pelo cenário internacional de reces-
Por sua vez, é ainda mais alarmante o poder
são econômica e social, colocou obstáculo a
de mercado da indústria automotiva e de to-
essa tendência de expansão de vendas dessas
do seu ideário individualizante, que predomina
corporações no mercado interno. Desse modo,
nas grandes cidades paulistas: o fato de que a
os fabricantes de veículos e autopeças aqui
cidade de São Paulo sozinha tem uma concen-
instalados buscaram intensificar a exportação,
tração de automóveis maior do que o Estado
em um contexto mundial de transformações
inteiro do Rio de Janeiro ou do Paraná.
produtivas, que impactaram em exigências
Portanto, desdobramento do próprio
de preço, qualidade e entregas internacionais
crescimento do transporte privado e individua-
(Pinto, 2006).
lizado de automóveis são os congestionamen-
Tais transformações, por sua vez, consti-
tos e o aumento da frota de motocicletas. No
tuíram-se na resposta do capital diante de sua
estado de São Paulo a frota de motos é de
crise estrutural, instaurada a partir dos cho-
3.322.544 unidades. Destas, cerca de 20%
ques do petróleo de 1973 e 1979, e deviam-
se concentram na capital e 3% em Campinas
-se, em partes, à saturação da norma social de
(89.011unidades).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016
351
Stela Cristina Godoi
Ou seja, paradoxalmente à resposta dada
desse período analisado representava 70% da
pelo empresariado diante da crise estrutural do
frota total, passou a 58,8% em 2008, as mo-
capital – ao reestruturar o padrão de produção
tos, que representavam 11,5%, subiu a 24,0%,
taylorista-fordista sob influência do ideário
aumentando sua representação no conjunto de
toyotista, visando à uma aceleração do tempo
veículos em circulação.
6
de giro do capital –, o consumo em massa de
veículos impôs limites à realização dessa necessidade de maior velocidade-mobilidade, na
medida em que os frequentes engarrafamentos
de veículos tornaram o “automóvel” um “autoestático” (Kurz, 1996).
Desse modo, essa dinâmica contraditória do padrão produtivo que Kurz (ibid.) chamou de “capitalismo automobilístico” produziu não uma superação dessa norma social de
consumo de automóveis, mas sim uma nova
demanda para o mercado de motocicletas,
instaurando uma vivência de mobilidade urbana extremamente conflituosa, em que carros,
ônibus, caminhões, vans e motocicletas disputam um espaço.
Embora, desde fins da década de 1960, já
existissem alguns modelos de veículos de duas
rodas em circulação, tal como as lambretas, foi,
a partir da década de 1980 e, sobretudo 1990,
que a frota de motocicletas cresceu aceleradamente. De acordo com os dados do Mapa da
Violência de 2011 sobre o crescimento da frota de veículos na década 1998-2008, nesses
anos a frota total do País cresceu uma média
de 8,4% a.a., enquanto a frota de automóveis
cresceu em média 6,5% a.a. e a de motocicletas, por sua vez, cresceu em média 17,2% a.a.,
mais do que a média geral.
Ou seja, não só o trânsito se tornou mais
sobrecarregado por conta do maior número de
veículos de todos os tipos que passou a circular,
como a tendência de distribuição da frota se inverteu. Enquanto os automóveis, que no início
352
Alguns fatores interferiram para essa
mudança de cenário do trânsito. Além do processo de “compressão tempo-espacial” que se
acirra na década de 1990, em resposta à crise
estrutural do capital, tornando as motocicletas
uma opção de transporte mais interessante
pelo seu menor custo e maior agilidade, outro
fator de estímulo para a massificação de seu
uso, a partir dessa década, foi a instalação de
indústrias de ciclomotores no País.
Desse modo, no conjunto das grandes
corporações que contribuíram para o desenho da rede de transporte que se tem hoje no
Brasil, estruturando noções de organização
eficiente do espaço e aceleração do tempo, a
Honda teve liderança desde sua instalação no
País, em 1971, apresentando hoje uma dominância de cerca de 90% do mercado brasileiro.
A Honda soube explorar de modo exemplar,
por meio do slogan “Asas da liberdade!”, o
desejo frustrado de liberdade substantiva de
que o indivíduo moderno padece, sobretudo no
contexto em que o seu direito liberal de ir e vir
é questionando pelo caos urbano gerado pelas
operações logísticas just in time.
Desde o início da crise estrutural do capital e da reestruturação produtiva, passou-se
a operar uma transformação qualitativa do
complexo produção-circulação de mercadorias.
As cidades, antes meros espaços de circulação
apartados da produção direta de mais-valia,
transformaram-se em extensões da indústria
taylorista-fordista toyotizada. A lógica do just
in time externalizou os estoques das “fábricas
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016
Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada
enxutas” para as ruas da “cidade fabricaliza-
“outro”, que não conseguem mais reconhecer.
da”, saturando a cidade de caminhões e mo-
A “cidade-mercadoria” surge como crise.
tocicletas obstinados em assegurar o fluxo de
Desse modo, conforme afirma Telles
mercadorias e informações, ao mesmo tempo
(2006), na produção do espaço urbano da “ci-
que continuou a gerar incessantemente a ne-
dade-mercadoria” que emerge com a globali-
cessidade do consumo de meios de transporte
zação, o outro lado da “cidade de muros” não
individualizados, que permitissem a completa
é a suposta (e falsa) democratização da “nova
sincronização de toda a população a esse tem-
sociedade do consumo”. A questão é outra:
po certo (Ferrari, 2012).
Assim, levando em consideração essa
complexificação da frota urbana de veículos,
buscar-se-á desenvolver, a seguir, uma reflexão sobre as repercussões dessas transformações na estrutura do transporte sobre a forma
de sociabilidade nos espaços de circulação da
cidade, partindo da prerrogativa de que a experiência dos motofretistas, categoria de trabalhadores caricatos do padrão just in time de
produção, fornece pistas importantes sobre o
modo de ser da sociedade contemporânea.
Violência no trânsito
e expropriação do tempo
na “cidade fabricalizada”
[...] Pois nesses tempos de globalização,
seguindo os movimentos acelerados de
desterritorialização do capital, a riqueza
social mobiliza os “artefatos urbanos”,
[...] no mesmo passo em que se vai ampliando a inadimplência generalizada.
Qualquer um que circule pelos bairros das
periferias mais pobres haverá de encontrar a parafernália do consumo moderno
e pós-moderno, e haverá de encontrar o
morador pobre desses lugares mais-doque-pobres exibindo, junto com a fatura
de uma dívida sempre adiada, as versões
populares (ou nem tanto) dos cartões de
crédito que também chegaram por lá: é a
financeirização do popular fiado. (Telles,
2006, p. 6)
Assim, como nunca, na atual conjuntura
da organização socioeconômica capitalista, a
cidade caracteriza-se pela subordinação do es-
Demolições, alargamento das ruas, construção
paço pelo tempo e pela reificação das relações
de shoppings e de estacionamentos fazem par-
sociais que coisifica os homens e humaniza as
te da memória coletiva daqueles trabalhadores
coisas (Ferrari, 2012).
da cidade industrial que assistiram à transfor-
Tal conjuntura produz uma interação
mação da cidade como a sua própria ruína.
profundamente hostil entre os condutores de
Seus relatos sobre a metamorfose da São Paulo
veículos, pedestres e ciclistas que dividem
cortada pelas ferrovias à “capital do automó-
o espaço das vias públicas, a qual repercute
vel” se estruturaram pela vivência do desem-
diretamente sobre os motofretistas que tra-
prego de seus filhos e netos. Assim, a “cidade-
balham nesse espaço antes improdutivo para
-mercadoria”, que emerge com a globaliza-
o capital, os espaços de circulação da cidade,
ção, aparece, na memória dos trabalhadores
para onde a produção capitalista se transbor-
industriais de meados do século XX, como um
da na contemporaneidade.
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353
Stela Cristina Godoi
Assim, os inúmeros relatos coletados durante o trabalho de campo da pesquisa, narrando episódios de desentendimento entre motofretistas, caminhoneiros e motoristas de ônibus
e carros em Campinas, apontam para essas situações de conflito no trânsito que fazem parte
de uma condição de trabalho permanente na
vida desses trabalhadores. Sobre isso, Gilberto
se recorda de um episódio de que foi vítima de
uma agressão verbal:
[Um dia] uma senhora de Corolla veio e
bateu [em mim]. E eu [estava] parado. [...]
Eu olhei para ela e falei: “Minha senhora, a senhora não me viu aqui? A senhora
bateu na minha perna, podia ter acontecido uma coisa pior?”. Ela abaixou o vidro,
falando no celular e falou um monte de
palavrão. É inacreditável. [...] Eu fiquei
doido com ela. Eu falei: “Minha senhora,
a senhora é doida?”. Aí, os motoqueiros
que estavam [perto de mim], [...] viram
aquilo e eles ficaram bravos. Eu não precisei tomar atitude nenhuma. [...] Cada
um que passava dava um chute. (Gilberto,
motofretista, 2010)
O mesmo depoente dá um testemunho
sobre a inimizade que vem se naturalizando
entre caminhoneiros e motofretista, que fornece mais elementos para se analisar os reflexos
da reificação do ser social sobre as relações
ele tem que fazer o serviço dentro do horário ou ele está fora. (Gilberto, motofretista, 2010)
O relato acima aponta, não só para o
espectro de hostilidade que ronda as relações
sociais no trânsito das cidades, mas também
para a subsunção desse espaço de circulação
do capital, em que se constitui a malha viária,
ao tempo e ritmo impostos pela acumulação
flexível, caracterizada pelo ideário da produção
just in time. O depoimento mostra a subversão
total do controle do tempo a que os motofretistas estão submetidos, “um tempo que não é
seu”, um ritmo que lhe é determinado seguir.
Esse sentimento de um tempo irrefreável, de um ritmo que não se pode conter, que
de certo modo está presente na experiência
subjetiva de todos os seres humanos da contemporaneidade, traduz de modo preciso a
vida objetiva desses trabalhadores sobre duas
rodas, mergulhados no processo contraditório
de fabricalização das cidades. Esse processo de
fabricalização se constitui, de acordo com Ferrari (2012), em um extravasamento do modo
de trabalho dos antigos lugares específicos de
produção com vistas a imprimir um ritmo acelerado a todos os contextos sociais e territoriais
que compõem o espaço ampliado da produção
just in time:
que se estabelecem no espaço urbano:
Hoje eu trabalho com caminhão e ouço
muito os caminhoneiros [dizerem] [...]:
“Eu esqueci o meu gancho de pegar motoqueiro lá em São Paulo”. Então assim,
[os “motoboys”], eles são muitos, quem
dirige em São Paulo vê como eles passam
buzinando, desesperados para fazer um
trabalho que não é deles, para cumprir
uma ordem de estar ali, para cumprir um
horário, às vezes não é imprudência dele,
354
O timing necessário e específico ao capital como relação social hegemônica não
é imposto apenas no chão de fábrica, ou
na suposta loucura das bolsas de valores.
A circulação de coisas, pessoas e informações no cotidiano das grandes cidades impõe um ritmo intenso a todos, trabalhem
ou não no chão de fábrica, escritórios ou
bolsas de valores. Os tempos exigidos para um motoboy entregar um documento,
para se desenvolver uma tese acadêmica
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Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada
ou formar alunos no ensino fundamental,
médio e universitário são continuamente
comprimidos. (Ferrari, 2012, p. 37)
Esse extravasamento da produção just in
time para toda a sociedade, que define o processo de fabricalização das cidades, deve-se,
por sua vez, ao atendimento das necessidades
atuais da dinâmica do capital. Após a reestruturação produtiva ter reformulado o processo
produtivo do lado de dentro dos muros da fábrica, para sua plena execução fez-se necessário que outras instâncias se sincronizassem a
esse tempo tido como certo, como, por exemplo, os fornecedores terceirizados localizados
fora das unidades fabris e toda a malha viária
das cidades que se transformou em extensão
da linha de montagem dessa fábrica supostamente enxuta, limpa e silenciosa, idealizada
pelo toyotismo (ibid.).
Ou seja, a despeito do discurso ideológico, que engraxa a engrenagem dessa produção
“flexível”, sustentar-se na idealização de uma
produção essencialmente imaterial e em tempo
Desse modo, na medida em que a produção e reprodução da vida material da sociedade não prescindem da sua materialidade
no espaço e no tempo, o conjunto de meios de
racionalização e sincronização de tempos de
trabalho e fluxos de mercadorias, que se constituiu no componente técnico-organizacional
do ideário toyotista de uma produção sem estoque e no tempo certo, implicou a transferência do ônus das operações logísticas para a sociedade civil e seu poder local. Segundo Ferrari
(ibid., pp. 42-43):
Na era dourada do capital, as cidades
sediavam fábricas consideradas lugares
relativamente à parte; hoje, tornaram-se espaços de estoques das mercadorias
em trânsito, receptáculos de verdadeiras
esteiras fordistas estendidas entre as
fábricas. Ao contrário de serem sóbrias,
limpas ou de serviços, são cidades fabricalizadas, que acolhem atividades de
todo tipo como extensões urbanas da
própria fábrica, acolhendo um imenso
proletariado urbano que cada vez mais se
multiplica e se fragmenta.
real, conforme afirmam os ideólogos de uma
concepção de sociedade da informação que
prescinde do trabalho:
Com o extravasamento da produção
para além dos muros das fábricas tratou-se,
portanto, de socializar os custos da gestão do
Sabemos que, pelo menos por enquanto,
pessoas, cachorros, automóveis e outros
valores de uso não trafegam por fibras
óticas. [...] Caminhões, automóveis e
motos existem de modo presencial, não
virtual, transitam em espaços físicos (não
em fibras óticas), percorrem vias em tempo material não nulo, além de transportarem mercadorias que, para serem produzidas, ocuparam também tempos de
produção e espaços concretos, materiais
[...]. (Ibid., p. 48)
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016
caos dos tempos e dos espaços urbanos. Desse modo, a aparente desordem que domina o
cenário urbano é a ordem do capital na contemporaneidade, é a ordem da cidade fabricalizada (ibid., 2012).
Nesse sentido, a hostilidade que permeia
a vida social nos espaços públicos da cidade e
que atinge tão diretamente os motofretistas,
na forma de ameaça física e psíquica permanentemente enfrentada em seu processo de
355
Stela Cristina Godoi
trabalho, não pode ser explicada sem se levar
como um fator de doença física e psíquica, co-
em consideração essa determinação objetiva
mo fator de sofrimento.
da atual forma de ser do modo de produção e
reprodução social do capital.
Esse tipo de constrangimento com vistas
a intensificar o trabalho não se constitui, toda-
Além desses testemunhos acima analisa-
via, em uma particularidade vivenciada indivi-
dos em que os motofretistas figuraram como
dualmente pelos trabalhadores entrevistados,
vítima de agressões de outros condutores de
mas se trata de um aspecto geral da organiza-
veículos, muitas vezes a situação se inverte, e o
ção do trabalho nos espaços de circulação da
motofretista aparece como o agressor, impulsio-
cidade fabricalizada, conforme atenta Ferrari:
nado por essa sociabilidade urbana marcada pela hostilidade, conforme mostra o relato abaixo:
Esses tempos atrás eu fiquei com dó do
cara, mas ao mesmo tempo eu fiquei com
raiva dele, eu quebrei o retrovisor dele,
ali na Bambini. Eu estava com pressa para fazer o serviço, isso já era quase seis
horas da tarde. Eu precisava fazer, devolver ao Banco para sair e voltar para casa.
Aí eu vi que ele me viu no retrovisor, [...]
[mas] na hora que ele viu que eu ia encostar, ele me fechou. Aí não teve jeito, pus
os dois pés na frente e acelerei a moto.
Ao invés de eu parar a moto, eu acelerei.
O pior é que eu quebrei o retrovisor dele
e de um coitado que estava no lado que
não tinha nada a ver, então me deu dó do
rapaz que estava do lado. Na cabeça eu
fiquei pensando, porque ele fez isso? Pra
quê? Eu estou trabalhando! Não estou
me divertindo, isso não é uma diversão.
Talvez o cara pensa que é diversão. É uma
profissão igual a todas as outras. (José,
motofretista, 2010)
Assim, o sentimento de irritação e cansaço que resulta da vivência desse ambiente de
hostilidade e do frequente risco que os motofretistas correm ao terem que disputar as ruas
da cidade com os carros, ônibus, peruas, cami-
Para realizarem as entregas no almejado
tempo certo e manterem a continuidade
do fluxo da produção, trabalhadores viário e rodoviário de carga, por exemplo,
enfrentam toda sorte de obstáculos. Além
de intensificação do trabalho pelo aumento do número de viagens/dia, esses
trabalhadores chegam a ser pessoalmente
penalizados com multas por atrasos – racionalidade interiorizada e justificada como garantia de eficácia do processo produtivo. [...] A adoção atual do lema “tempo é dinheiro” resulta na compressão do
espaço pelo tempo. (Ibid. p. 27)
Esse cenário descrito acima por Ferrari
aparece, por sua vez, exemplarmente retratado no relato de um entrevistado do estudo
que comenta sobre o desgaste que sente em
sua profissão:
É estressante! E é complicado por causa
disso, porque há cobrança. Porque hoje
em dia, infelizmente, se [você] pega três
serviços para fazer e pergunta qual é mais
urgente. Vão te responder: “Todos, todos
são urgentes!”. Todo mundo hoje tem
pressa, porque o tempo, hoje em dia, nada mais é que dinheiro! (Paulo, motofretista, 2010)
nhões, em condições completamente desfavo-
Esse relato deixa claro que, se o ritmo
ráveis ao respeito mútuo, apresentou-se como
acelerado da atividade de motofrete é uma
um aspecto marcante da experiência deles,
decorrência da própria dinâmica atual do
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Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada
processo de reprodução ampliada do capital,
Como consequência dessa mudança es-
na conjuntura da subsunção do espaço am-
trutural na experiência temporal, uma nova
pliado da produção ao ideário do just in time,
subjetividade precisa ser moldada. O novo ti-
o risco de morte a que os motofretistas estão
po de consentimento construído pelo toyotis-
submetidos é consequência direta da pressão
mo pressupõe uma sociedade com indivíduos
exercida pela organização do trabalho para
condicionados a permanecer em sincronia
a execução do trabalho numa cadência sin-
constante com esses ritmos de trabalho (ibid.).
cronizada a um tempo definido como certo, a
Conforma, portanto, um novo tipo de subjetivi-
cadência da realização da mais-valia dentro da
dade moldada pela máxima: Right man in the
atual dinâmica da acumulação.
rigth place, on the right time, a qual é caricaturalmente representada nas exigências feitas
aos motofretistas na contemporaneidade.
Para explicar essa dimensão da produção just in time que se transborda para a vida interior do sujeito, Alves (2005) cunha um
conceito que contribui para o entendimento do
desgaste psíquico que decorre das condições
de trabalho enfrentadas nas cidades fabricalizadas. Em uma reflexão sobre o impacto da
compressão do tempo e do espaço na organização do tráfego corpo-mente, o autor refere-se a um processo de “compressão psicocorporal”, como uma forma de moldagem do corpo
rígido do taylorismo-fordismo, para a flexibilidade do toyotismo, mantendo, ao mesmo tempo, esse corpo útil ao novo modo de produção
e alargando o raio de ação do sofrimento do
trabalho por meio de seu deslocamento para
a mente.
Assim, buscando aprofundar o entendimento desse mecanismo de “compressão
psicocorporal”, é importante chamar a atenção
para os dois elementos ontológicos que compõem esse binômio sugerido no conceito, corpo
e psique. O corpo, “elemento ineliminável do
sujeito” (ibid.), pressupõe uma materialidade
que ocupa lugar no espaço. Por sua vez, o tempo é a “a condição ontológica do psiquismo”
(Kehl, 2009).
Por fim, cabe chamar a atenção para o fato de que, ainda que a morte não seja
um desfecho obrigatório dessas trajetórias de
trabalho na cidade fabricalizada, diante dessa conjuntura de pressão da organização do
trabalho, somada ao espectro de hostilidade
e violência que, de modo geral, permeia a sociabilidade urbana, o resultado não poderia ser
outro para aqueles que passam aproximadamente 15 horas de seu dia sobre uma motocicleta: memórias de muitos acidentes, vividos ou
assistidos, corpos e mentes, marcada intensificação do trabalho.
Então, é nesse jogo arriscado de desafiar o perigo, no limite entre a vida e a morte,
que esses homens e mulheres vêm realizando
o seu trabalho, numa sincronização alienante
ao tempo exigido pela produção just in time.
Desse modo, a cidade que “se assimila – e se
desenvolve, contraditoriamente, na medida de
um tempo real tornado expressão mítica das
sociedades contemporâneas” (Ferrari, 2012,
p. 37), produz efeitos psíquicos devastadores,
que podem ser sentidos, não só por essa categoria profissional, mas por tantas outras que
estão submetidas ao mesmo processo de compressão dos intervalos de tempo, tais como os
operadores de telemarketing, os bancários, os
caminhoneiros, os corretores de bolsa, etc.
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Stela Cristina Godoi
Desse modo, o acirramento da compres-
Diante da imersão de toda a sociedade
são do espaço pelo tempo não poderia deixar
nessa relação brutal com o tempo, que pro-
de ter impactos acentuados sobre a vida psí-
move um processo de banalização da morte
quica dos sujeitos, como mostram não só os
no seu sentido mais abrangente, os motofre-
relatos dos trabalhadores entrevistados, como
tistas buscam, na solidariedade entre seus
também a própria epidemia social de depres-
iguais, um refúgio. Os inúmeros episódios de
são e outras formas de mal-estar emocional
mútuo socorro em situações de acidentes ou
da civilização contemporânea. A organização
conflitos no trânsito, que são tão característi-
toyotista da produção e da vida social amplia
cos da experiência de classe dessa categoria,
o sofrimento para a mente, uma vez que abala
constituem-se, portanto, numa resposta a esse
justamente a qualidade da experiência do tem-
cenário de insegurança, solidão e sofrimento
po. De acordo com a análise de Kehl acerca da
psíquico que aflige de modo muito intenso es-
depressão na contemporaneidade:
ses trabalhadores.
[...] é razoável supor uma relação entre
o aumento dos casos de depressão e a
urgência que a vida social imprime à experiência subjetiva do tempo. A temporalidade tecida de uma sequência de instantes que comandam sucessivos impulsos à
ação, não sustentados pelo saber que advém de uma prévia experiência de duração, é uma temporalidade vazia, na qual
nada se cria e da qual não se conserva
nenhuma lembrança significativa capaz
de conferir valor ao vivido. (2009, p. 116)
Ou seja, na medida em que essa temporalidade contemporânea, vivida como pura
pressa, atropela a duração necessária para o
exercício do compreender, é possível se ter a
dimensão do sofrimento que a exigência de
execução das tarefas no menor tempo causa
sobre os motofretistas, impulsionando-lhes para a morte, do corpo e da mente. Segundo Kehl:
[...] mal nos damos conta dela, a banal
velocidade da vida, até que algum mau
encontro venha revelar a sua face mortífera. Mortífera não apenas contra a vida
do corpo, em casos extremos, mas também contra a delicadeza inegociável da
vida psíquica. (Ibid., pp. 16-17)
358
Desse modo, a atitude corporativa, e por
vezes agressiva, dos motofretistas em seus
enfrentamentos nas trincheiras da cidade, que
incomoda a sociedade e indigna a opinião pública, deve ser entendida como uma compensação psíquica necessária para suportar viver um
tempo que autodisciplina o corpo e o espírito
para o consentimento ao próprio sofrimento,
que fragmenta a luta política em busca de melhores condições de trabalho e que, sobretudo,
corrói o tempo, o “tecido da vida”,7 do qual
depende a qualidade do tráfego corpo-mente.
Assim, trata-se de compreender que essa
experiência de aceleração do tempo, que influenciou o próprio desenvolvimento da atividade de motofrete, delimitou não apenas uma
mudança técnica ou econômica na forma de
produção e circulação de mercadorias, mas implicou, sobretudo, uma nova tessitura da vida
social e psíquica, que produziu desdobramentos profundos de ordem cultural.
A transformação do tempo em velocidade e do espaço em simples meio de circulação produziu uma experiência social marcada
pelo “apagamento de milhares de percepções
instantâneas às quais nos limitamos a reagir
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Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada
rapidamente para em seguida, com igual ra-
o estresse da vida urbana na “cidade fabricali-
pidez, esquecê-las” (Kehl, 2009, p.17). Assim,
zada”, permite-se que uma determinada men-
imersos no torpor da vida cotidiana, ainda que
talidade se perpetue. A concepção metódica,
o encontro com um acidente de trânsito envol-
racional e disciplinada de vida que Max Weber
vendo um motoqueiro ou o reconhecimento do
considerou a alavanca principal do capitalismo,
sofrimento emocional de um entregador que se
metamorfoseou-se em uma forma de domina-
perdeu no transporte de sua mercadoria des-
ção legitima sobre os corpos que disciplina, oti-
pertem, no exato momento, algum sentimento
miza seus movimentos, reprime e viola direitos
de compaixão e identificação, no instante se-
civis e humanos.
guinte será esquecido pela sequência irrefreável de intervalos de tempo vazio.
Os motofretistas interpelam, portanto,
Considerações finais
sentimentos de inveja pela sua capacidade de
fluir pelo caos urbano como ninguém consegue
Este escrito buscou reconstruir o longo perío-
e de indignação pela sua falta de compostura
do histórico de constituição e crise da vida
social ao realizar o tempo definido como o cer-
citadina, em duas importantes metrópoles do
to. Mas seu modo de ser e de agir provoca a sociedade, sobretudo, porque a “loucura” de sua
pressa aponta o dedo para a “loucura” que é
de todos, ou seja, coloca todos os indivíduos na
posição incômoda de ter que se defrontar com
a feiura e a brutalidade de sua relação com o
tempo, com o espaço e com a vida social.
Ademais, a experiência de violência nesse contexto histórico em que se dá a formação
da categoria motoboy e que é partilhado por
todos nós na experiência urbana, é uma experiência de violação de direitos individuais ou civis de grande extensão. A violência urbana analisada por Caldeiras (2000), manifesta-se sobre
os corpos de cada um (não só dos motoboys) e
produz certo tipo de “corpo político”, o “corpo
não circunscrito”. A nossa “democracia disjuntiva”, em que se expandem direitos políticos e
sociais enquanto se desrespeitam direitos civis
e humanos, corpos simbólicos são eleitos como
a essência do mal. Os motoboys, no cenário da
“cidade fabricalizada”, vêm operando esse tipo de mecanismo simbólico. Ao simbolizar todo
sudeste brasileiro (RMSP, RMC), erguidas sobre
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016
os interesses de mercado das corporações do
automóvel, desde a sua implementação em território nacional no contexto do padrão de produção taylorista-fordista até a sua adequação
ao ideário da produção just in time. Tratou-se,
desse modo, de uma análise da forma de ser-estar dos espaços de circulação da cidade a
partir da experiência de duas categorias de trabalhadores que foram capazes de representar
os elementos contraditórios da sociabilidade
no Brasil que se pretendeu moderno: os metalúrgicos e os motofretistas.
Para além de uma história da cidade, os
acontecimentos vivenciados e relembrados pelos sujeitos dessa história, apesar de dispersos
no tempo e no espaço, integraram-se, permitindo apreender o processo de formação da classe trabalhadora urbana brasileira, para o qual
as migrações se constituíram em ingrediente
demográfico e cultural fundamental. Por sua
vez, ao voltar-se para as experiências recentes de trabalho dos motofretistas, observou-se
359
Stela Cristina Godoi
também que grande parte desses trabalhado-
Nesse sentido, na condição de elos da
res sobre duas rodas tem um passado migra-
produção capitalista cindida pela reestrutu-
tório, de tal forma que a noção de que o de-
ração produtiva, que externalizou parte da
senvolvimento urbano-industrial não pode ser
produção em nome de um ideário de fábrica
explicado sem considerar as migrações, defen-
enxuta, limpa e silenciosa, esses trabalha-
didas por Hobsbawm (2000), foi reforçada.
dores sobre duas rodas asseguram a atual
Debruçando-se sobre a experiência des-
logística da acumulação, caracterizada pelo
ses que realizam o transporte de mercadorias e
processo de compressão do espaço pelo tem-
documentos utilizando suas motocicletas, per-
po. Seu papel social é, acima de tudo, viabi-
correndo os espaços de circulação das cidades
lizar a aceleração do processo de produção-
em um contexto em que a mobilidade urbana
-distribuição-troca-consumo. Assim, o que
é permanentemente ameaçada pelo inchaço
se espera deles é velocidade e, por isso, eles
da frota de veículos, foi possível refletir sobre
têm pressa. Portanto, seu modo de trabalho
as repercussões de longo prazo do processo de
é a caricatura, frequentemente renegada pela
modernização capitalista dentro de uma eco-
sociedade, de uma sociabilidade hostil e des-
nomia dependente, reverente aos interesses de
gastante, fundada na sincronização alienante
mercado das grandes corporações, tais como a
ao tempo, cada vez mais curto, da realização
indústria automotiva.
da mais-valia.
Stela Cristina Godoi
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Faculdade de Ciências Sociais. Campinas, SP/Brasil.
[email protected]
Notas
(1) “A ideia de sociologia é contemporânea da ideia de modernidade. Ambas nascem na cidade.
Formam-se principalmente em Paris, capital do século XIX, em meados daquele século. Aí se
decantavam as mais novas e picas realizações materiais e espirituais da sociedade moderna.”
(Ianni, 1989, p. 7)
(2) “A centralização polí ca do Estado inglês nha fundamentos materiais e corolários. Primeiro, já
no século XVI, a Inglaterra possuía uma rede impressionante de estradas e de vias de transportes
fluviais e marítimas que unificavam a nação de modo bastante excepcional para o período.
Londres cresceu numa taxa muito acima das outras cidades inglesas e do crescimento total da
população (transformou-se na maior cidade da Europa) e tornou-se o centro de um mercado
nacional em desenvolvimento”. (Wood, 2000, p. 9)
360
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016
Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada
(3) Thompson (2001) u liza essa expressão no ar go “A história vista de baixo”, extraído de The
Times Literary Supplement, de 7 de abril de 1966, traduzido por Antonio Luigi Negro e reunido na
coletânea de textos de Thompson organizada por Antonio Luigi Negro e Sergio Silva, in tulada
As peculiaridades dos ingleses e outros ar gos.
(4) Esse estudo, que resultou na dissertação de mestrado in tulada A roça e o aço: as experiências e as
resistências operárias no Brasil Moderno (1954-1964), foi desenvolvido a par r da metodologia
da história oral, por meio da qual foram coletadas memórias de homens que migraram das zonas
rurais do País para empregar-se nas indústrias da cadeia produ va de automóveis na condição
de metalúrgicos. Desse modo, por meio desse processo mnemônico, tratou-se de analisar as
experiências desses trabalhadores e as formas de resistência co dianas forjadas por eles no
amálgama cultural do mundo da roça do qual par ram e do mundo do aço no qual ingressaram,
colocando em relevo as contradições da cidade erguida sob o ideário da ordem, do progresso e
da soberania (Godoi, 2007).
(5) Esse estudo, que resultou na tese de doutorado No tempo certo, sobre duas rodas, um estudo
sobre a formação e a exploração dos(as) motofre stas de Campinas-SP, dedicou-se a analisar
o processo de trabalho desses trabalhadores que se constituem hoje numa engrenagem
fundamental da acumulação capitalista regida pelo ideário da produção just in me, sobretudo
considerando o contexto de crise de mobilidade urbana que resultou do consumo em massa
de automóveis produzida pela força de mercado assumida por essas corporações no Brasil.
Através da análise das experiências de alguns motofre stas e de uma única motofre sta, foram
apreendidas algumas determinações do processo de formação dessa categoria profissional
em Campinas, bem como foram compreendidos os traços mais marcantes que caracterizam
a forma de ser da exploração dessa força de trabalho e de dominação desses trabalhadores
(Godoi, 2012).
(6) De acordo com Marx (1984), o tempo de produção associado ao tempo de circulação forma
o conceito de “tempo de giro do capital” que é de extrema importância para o processo de
acumulação.
(7) Essa expressão metafórica para o tempo foi re rada da análise de Kehl (2009), ao parafrasear
Antônio Candido, para quem o tempo é o “tecido da nossa vida” (p. 111).
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Texto recebido em 15/jan/2016
Texto aprovado em 29/fev/2016
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 345-363, jul 2016
363
Local communities,
health and the sustainable
development goals: the case
of Ribeirão das Neves, Brazil*
Comunidades locais, saúde e os objetivos de desenvolvimento
sustentável: o caso de Ribeirão das Neves, Brasil
Viviane H. França
Ulisses E. C. Confalonieri
Resumo
A saúde integra a Agenda de Desenvolvimento
Sustentável da Organização das Nações Unidas. As
comunidades locais têm importante papel na definição de suas necessidades para o desenvolvimento
e na discussão dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável pós-2015. Realizou-se uma pesquisa
exploratória empregando um questionário validado em amostra de 336 domicílios caracterizados
como extrema pobreza em um município brasileiro. Essa pesquisa compreendeu um estudo observacional, transversal, e a realização de entrevistas
com profissionais de saúde e assistência social. O
abuso de drogas e álcool foi identificado como o
maior problema para obter melhorias na qualidade
de vida. A prevalência por incapacidades foi 14%.
A redução das taxas de óbito por crimes e a prevenção de incapacidades deveriam ser incluídas
como alvo desses objetivos.
Abstract
Health is part of the Sustainable Development
Agenda adopted by the United Nations and
local communities have an important role
in the definition of their own development
needs and in the discussion of the post-2015
Sustainable Development Goals. A field survey
using a validated questionnaire was applied to
336 extremely poor households in a Brazilian
municipality. The survey was a cross-sectional and
observational study and included interviews with
healthcare professionals and social workers. Drug/
alcohol abuse was pointed as the major problem
to obtain improvements in quality of life. The
prevalence of disability was 14%. A reduction in
rates of deaths caused by crimes and prevention
of disabilities should be included as health targets
under the SDGs.
Palavras-chave: promoção da saúde; desenvolvimento sustentável; qualidade de vida;
determinantes sociais da saúde; pobreza.
Keywords : health promotion; sustainable
development; quality of life; social determinants
of health; poverty.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3603
Viviane H. França, Ulisses E. C. Confalonieri
Introduction
Methods
The importance of sustainable development
This study has a qualitative-quantitative,
for the promotion of human health is a well-
exploratory-descriptive approach and has
established fact. Health, in association with
followed two distinct phases: an epidemiological
poverty, education and nutrition, is one of the
description and a comprehensive-interpretative
key dimensions of human development. Also
approach from the social sciences. This design
well recognized is the critical role of local
aimed at a comprehensive understanding
level initiatives in designing and implementing
of the reality and quality of life of a group
local development strategies to achieve the
of families living in extreme poverty. This
Sustainable Development Goals (United
community is located in the municipality
Nations, 2014).
of Ribeirão das Neves, in the metropolitan
Latin America is characterized by a high
area of Belo Horizonte, state of Minas Gerais
degree of social inequality. Approximately
(Southeastern Brazil). In the quantitative
29% of its population is below the poverty
phase, a representative sample of 336 heads
line, 30% of the regional population do not
of families was investigated, whereas in
have access to healthcare services due to lack
the qualitative phase, 27 professionals from
of financial resources, and 21% do not have
health and social services, as well as from
effective health assistance due to geographical
the Municipal Education Department, were
barriers (Organización Mundial de la Salud –
interviewed.
OMS; Banco Mundial, 2013). In Brazil, about
For the interpretation of primary data,
8.5% of the population (16.27 million people)
the theoretical approach was the concept
is classified as poor (Instituto de Pesquisa
of health promotion from the field of Public
Econômica Aplicada – Ipea, 2014). Although
Health. The assumption is that social and
the Brazilian Constitution establishes universal
economic determinants strongly influence
access to a public and decentralized healthcare
the health and disease patterns of a society.
system, the effective provision of services is
The health status of a community is directly
often hindered by lack of funding and local
linked to the economic investments that have
organizational problems.
been made to promote social and human
Using empirical data collected at an
development and to reduce social inequalities.
extremely poor community in Brazil as a
Therefore, health promotion depends on the
starting point, this paper aims to discuss
integration of different fields of knowledge and
health aspects of the Sustainable Development
on an interdisciplinary professional practice
Goals proposed by the Open Working Group
supported by shared principles committed to
on Global Governance for Health. The authors
sustainable changes in the society (Carvalho et
of the present paper assume that vulnerable
al., 2004).
groups can contribute to the definition of the
Within a cross-sectional observational
SDG; furthermore, they have an active role in
approach, previously validated questionnaires
monitoring the implementation of these goals.
were administered in September/October
366
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016
Local communities, health and the sustainable development goals
2014. A stratified and proportional sample was
and 5 in the Education Department. Six among
obtained from three administrative regions of
them had completed High School; 22 had
the municipality of Ribeirão das Neves, with
university degrees and, among these, 14 had
a total number of 2,605 households. Data for
postgraduate degrees. The average age of
the sampling were obtained from the Registry
the interviewed individuals was 35 years and
of the local Social Work Department. All the
their age ranged from 25 to 63 years. Among
336 individuals who were interviewed were
them, 17 lived in municipalities located in the
older than 18 years and were in charge of their
metropolitan area of Belo Horizonte, and 10
households. The main criterion for inclusion
lived in Ribeirão das Neves.
was a monthly per capita income of R$77.00
(around US $22.00) or less.
This study is part of a research and
extension project funded by Fundação de
To collect additional information
Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
on local problems and to investigate the
(Fapemig – Minas Gerais Research Foundation).
pattern of health and social interventions
Its main objective is to assess the quality of
targeted at these households, interviews
life of the extremely poor population of the
were performed with members of a multi-
municipality of Ribeirão das Neves, Minas
professional team involved in the planning
Gerais. All ethical requirements established
and operation of actions directed to these
by Resolution 466/2012 (National Health
extremely poor communities. The number of
Council) were met. This project was approved
interviews was established by the criterion of
by the Research Ethics Committee of the René
theoretical saturation, in which the continuity
Rachou Center, through Resolution nº 188.866.
or interruption of the interviewing process
The formal cooperation with the Municipal
depends on the recurrence of the themes
Departments of Health, Education and Social
obtained in the answers. The semi-structured
Work was established through an Institutional
interview included the following topics: health;
Declaration of Co-participation. All subjects
quality of life; available public services; main
participating in this study were previously
problems as perceived by the families; local
informed of the aims of the interviews and
public policies and their effects on health
their authorizations were formally obtained
and livelihoods; suggestions to improve the
when they signed a consent document.
individuals’ health status and the quality of
their lives. The collected data were processed
through the technique of Content Analysis,
with the use of systematic procedures for the
organization, coding and classification of the
Characterization
of the community
ideas in order to identity meaningful indicators.
The social and demographic profiles
The municipality of Ribeirão das Neves
of the interviewed professionals were the
(322,659 inhabitants in 2015) is part of the
following: 11 professionals worked in the Health
metropolitan area of Belo Horizonte, the
Department, 11 in the Social Work Department,
capital city of Minas Gerais, in Southeastern
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367
Viviane H. França, Ulisses E. C. Confalonieri
Brazil. This metropolitan area (about 5 million
(9.8%). Journeys to healthcare centers lasted
inhabitants) includes 37 municipalities, many of
an average of 30 minutes for 26.1% of the
which have a critical shortage of public services
households and between 40-90 minutes
(transportation, healthcare, social work) and
for 48.6% of them. For about 14.3% of the
a high degree of population migration from
households, the journey lasted more than 120
rural areas. Furthermore, Ribeirão das Neves is
minutes.
characterized by the presence of a state-owned
prison complex with five large institutions.
As part of this survey, the interviewees
were asked to report their perception in relation
The sampled community included three
to quality and access to public services in the
residential district areas in the periphery of
region, as well as to report health problems
the city and the participants in the survey
and environmental issues, overall quality of life,
were enrolled in the Brazilian Federal Program
and priority issues for development.
of cash transfer “Brazil Sem Miséria” (Brazil
A list of twenty-four types of services was
without Misery), created in 2011. Eligibility for
presented to the interviewees and only 8.6%
inclusion in this program was per capita income
indicated that these services fulfill all needs of
below the “extreme poverty” line, set around
the community. Table 1 provides a summary of
US$ 20.00 per month as of September 2015.
these services and the access to them.
The general social-demographic characteristics
of the surveyed population were:
As for the subjective perception of the overall
quality of life in the municipality, it was rated as
● Average
age: 41 years and 2 months.
good by 12.5% of the households, medium by
● Illiteracy
rate: 13%.
36.9% and poor/extremely poor by 49.5%.
●
Average number of residents/household:
3.92.
●
in the community, 39.6% of the households
Percentage of individuals born at that
municipality: 6.3%.
● 14%
were handicapped.
● Completed
●
primary school: 58%.
50.6% were doing informal work (no
formal employment).
●
Sanitation infrastructure (piped water +
effluent collection): 77% of coverage.
●
With regard to the perception of poverty
About 30% have never received social
benefits from the government.
Regarding the daily journey to and from
indicated that it has decreased in recent years,
46.1% informed that it has not changed, and
13.7% reported that it has increased.
When asked to indicate the main socialenvironmental problems of the community, the
following answers were obtained:
● Security
/ Violence issues – 66.7%
● Unpaved
streets – 64%
● No
job opportunities – 47%
● No
leisure areas – 58.6%
● Absence
of pre-primary schools – 47.3%
the workplace, 55.2% reported a duration of
Table 2 presents the main health
more than 120 minutes. The children’s daily
problems as reported by the heads of
journey from home to school and back lasted
households, whereas Table 3 presents the
an average of 30 minutes (45.1%), from 40 to
overall determinants of poor health as reported
90 minutes (36.6%) or more than 90 minutes
during the interview.
368
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016
Local communities, health and the sustainable development goals
Table 1 – Physical infrastructure of services and access to them in the community
Presence in the residential area
(%)
Effective access to service
(%)
Primary School
86.9
55.0
Healthcare Center
86.3
86.9
Police Station
25.3
15.0
Public Transportation
87.5
90.0
Garbage Collection
93.5
92.0
Green Areas
18.8
14.9
Type of service
Table 2 – Main health problems as reported
by the heads of households
Main health problem
1st
Drug/ alcohol abuse and addiction
2nd
High blood pressure
3rd
Asthma / bronchitis
4th
Dengue fever
5th
Influenza / common cold
6th
Diabetes
7th
Depression
8th
Chronic diseases in the elderly
Table 3 – Overall determinants of poor health
as reported by the heads of households
Most important determinant of poor health
1st
Drug/ alcohol abuse
2nd
Poor healthcare infrastructure
3rd
No job / income
4th
Lack of social support
5th
Family stress/ emotions
6th
Security issues/ violence
7th
Air pollution
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016
369
Viviane H. França, Ulisses E. C. Confalonieri
When asked to indicate the main
priorities for the improvement in their quality
of life, the following answers were obtained:
● Job
5) primary care actions with poor resolution
6) lack of inter-sectoral policies capable of
benefiting the community’s health status.
/ income – 44.6%
● Better
health – 40.5%
● Education
– 37.8%
● Improvement
● Leisure
in security– 44.9%
Discussion
/ Culture – 35.5%
● Better
housing – 35.1%
It was observed that economic, political
● Better
nutrition – 36.3%
and cultural aspects have locally influenced
● Improved
●
urban infrastructure – 33.9%
Social support / assistance for vulnerable
families – 24.7%
the health status as well as the livelihoods
of the poor community investigated in the
municipality of Ribeirão das Neves. A high level
In these communities, well-known
of social inequality and deprivation of services
problems associated with poverty were
and material goods strongly contribute to a
found, such as unemployment, poor urban
poor quality of life, as reported by the major
infrastructure, and difficult access to public
part of the interviewees.
services. The notable exception was a relatively
In 2011, Brazil hosted the World
good coverage of sanitation infrastructure
Conference on Social Determinants of Health,
in the households (better than the Brazilian
promoted by the World Health Organization.
national average). It is important to note a
In this event, the document “Rio Political
strong emphasis on alcohol and drug abuse
Declaration on the Social Determinants of
as serious problems in the community, as well
Health” was produced. It emphasized the
as the associated problems of family stress/
need for a better equity in health as a way
disruption and violence. Also important was
to promote wellbeing and quality of life
the typical association of a heavy burden of
and, therefore, global peace and security
chronic diseases (for example, hypertension)
(Organização Mundial de Saúde - OMS, 2011).
with poverty-related infectious diseases, such
as dengue fever.
The Social Determinants of Health range
from experiences in early childhood, in family
The main problems mentioned during
life, to access to education, economic stability,
the interviews performed with the healthcare
employment and community interactions.
professionals serving in this community were:
Other aspects that contribute to health status
1) deficiencies in the coverage and quality of
primary healthcare strategies
2) lack of a comprehensive diagnosis of the
priority health issues for the community
3) poor provision of human resources,
funding and technologies
4) poor infrastructure of the local services
370
are related to environmental degradation and
inequalities in societies, as all these factors,
in varying degrees, affect fundamental rights,
citizenship, human dignity and self-esteem
and can generate “worsening of the living
condition and degradation of health and social
protection services” (OMS, 2011).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016
Local communities, health and the sustainable development goals
Simultaneously with a worldwide
reduction in the incidence of diseases due to
trend to stimulate governments, institutions,
environmental contaminants, and training of
professionals and the general population
health professionals in developing countries
to develop health promotion actions by
(United Nations, 2014).
modifying the Social Determinants of Health,
Some of these are difficult to tackle
global movements have emerged aiming
in most developing countries due to lack of
at the elimination of poverty. After the
reliable epidemiological data. This is the case
Millennium Development Goals (MDG), set
of the effects of environmental pollutants, since
to be achieved in 2015, the new document
the fraction of the disease burden or mortality
Sustainable Development Goals is promoting a
attributable to these hazards is not part of the
global agenda through its 17 main objectives
national health information systems. It would
and 169 goals, including some that were not
be better to set as a target a reduction in the
achieved by the MDG. The first objective of
exposure to these chemicals, which is much
the SDG is the “eradication of poverty in all its
easier to measure.
dimensions, including extreme poverty”, which
In the specific study described here,
has been considered “the greatest global
it is noteworthy the large proportion of the
challenge and an indispensable prerequisite
community members that referred to two
for sust ainable development” ( United
frequently associated problems in poor areas:
Nations Development Programme – UNDP;
drug and alcohol abuse and social violence. In
Netherlands Development Organisation – SNV,
an analysis of violence data from 169 countries,
2009; United Nations, 2014).
it was found that homicide, robbery and assault
The Sustainable Development Goals
correlated with low income, while alcohol
proposed by the Open Working Group of
consumption was associated with assault
the United Nations have raised criticism due
globally (Wolf, Gray and Fazel, 2014).
to their general nature, to the inclusion of
Violence is widely acknowledged as
targets difficult to be attained, and to the lack
being an important public health problem
of stakeholders’ participation in the process
due to a high loss of disability-adjusted life
(Horton, 2014; Brolan et al., 2014; Yamey,
years (Krug, Mercy and Dahlberg, 2002; WHO,
Sheretta and Binka, 2014). The proposed 17
2002). If we take homicides as an example,
goals can be classified as having predominantly
a report has shown that Latin America is the
an economic focus (goals 1,8,9,10,12), a
continent with the highest homicide rates
social-political focus (goals 4,5,7,11,16,17)
globally, reaching 28/100,000 inhabitants,
or an environmental focus (goals 6,13,14,15).
compared with a global average rate of
Health aspects predominate in goals 2 and 3.
6.7/100,000 , for the year 2012 (WHO/UNDP/
In these, the specific targets range from aspects
UNODC, 2014).
included in the MDG, such as reduction in
In Brazil, homicides in 2012 reached the
mortality rates and in the incidence of specific
rate of 24.3/100,000 inhabitants. For the age
diseases, to newly included aspects, such
group 0-19 years, homicides accounted for
as the need for universal health coverage,
16.3% of the deaths, while traffic accidents
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016
371
Viviane H. França, Ulisses E. C. Confalonieri
accounted for 8.1% of the total (2013) WHO/
and services, that contribute to a decreased
UNDP/UNODC, 2014; Waiselfisz, 2015a).
quality of life (Gopinathan, Cuadrado, Watts
Particularly in the municipality of Ribeirão
et al., 2014).
das Neves, for the years 2010-2012, the average
In view of their high prevalence, their
homicide rate for the age group 15-29 years
social and economic impacts, and their absolute
was 79.1/100,000 inhabitants (global average:
numbers, a target dealing specifically with
10.9 for 2012) (Waiselfisz, 2015b).
prevention of disabilities should be included in
Most poor communities in developing
goal number 3 of the proposed SDG.
countries are affected by high rates of crime
In the Open Working Group’s SDG
and violent deaths, especially among young
proposal, although there was a reduction in
men. Although mortality due to traffic
the number of goals explicitly referring to
accidents is an important item in the global
health when compared to the former MDG,
health agenda – as stated in item 3.6 of the
some of the 17 proposed goals are directly
SDG –, we propose that violent deaths should
relevant to the promotion and preservation
also be included due to their relevance to
of the human population’s health. This is the
developing countries. The new target would
case of food security and nutrition, water and
be “To reduce the rate of violent deaths and
sanitation, equitable education, and the end of
premature mortality due to crime”.
poverty. However, several non-health sectoral
Also important in the studied community
policies contribute to general wellbeing and,
is the observed high rate of disabilities (14%),
consequently, to healthy lives: employment,
a situation that reflects the Brazilian national
adequate infrastructure, gender equality, and
rates – 29.1% for the age group 15 years and
environmental conservation. Therefore, it is
older –, as reported by the 2010 population
possible to say that, in general, these goals
census. The national survey included several
contribute to health promotion, and some
types of disabilities, ranging from mental
adjustments to the specific health targets
illnesses to visual deficiencies and physical
under goal “3” would contribute to build a
handicaps (Instituto Brasileiro de Geografia e
stronger health agenda. As has been pointed
Estatística – IBGE, 2012).
out, health issues cannot be approached in
There are many determinants of
disabilities and most of them should be the
isolation from other sectors (Gopinathan,
Cuadrado, Watts et al., 2014).
concern of preventive medicine strategies at
both the primary and secondary levels. The
global prevalence has been estimated to be
15-19% of the world’s population (WHO; World
Conclusion
Bank, 2011).
Lower income countries have a higher
The recently proposed SDG and their associated
disability rate than higher income countries,
targets address different policy areas that
a factor that adds to other aspects, such
affect health and also include some specific
as poverty and inadequate infrastructure
health promotion objectives.
372
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016
Local communities, health and the sustainable development goals
We have used information collected from
a Brazilian community living in extreme poverty
by another one which is more relevant to that
social context.
to suggest the review of some health targets
B- A reduction in the death rates caused
based on this reality and on some priorities
by crimes, especially among young adults,
indicated by the community’s inhabitants.
should be included as a new target, due to
This was an opportunity for the participation
the social impacts caused by social violence
of a vulnerable group not only in establishing
in poorer countries.
its own local development needs but also in
C- Also deserving more attention is the
contributing to a more general discussion on
prevention of disabilities and an improved
the new SDG.
assistance to disabled persons in less developed
From the survey, we raise the following
issues with regard to the health targets under
SDG goal 3, “Ensure healthy lives and promote
wellbeing for all at all ages”:
countries. This entails a range of actions from
primary prevention to adequate rehabilitation.
The health targets newly proposed here –
reducing the number of homicides and paying
A- Due to its difficult measurement and
attention to the disability issue - fit well some
because it is relevant to poor communities in
of Horton’s six “dimensions of sustainability”
developing countries, the proposed health
(Horton, 2014), especially the dimensions
target dealing with death and illnesses caused
related to “capabilities”, “wellbeing”, and the
by hazardous chemicals (3.9) could be replaced
“strength of the civilization”.
Viviane H. França
Hospital Público Regional Prefeito Osvaldo Rezende Franco, Betim, MG/Brazil.
[email protected]
Ulisses E. C. Confalonieri
Centro de Pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz. Belo Horizonte, MG/Brazil.
[email protected]
Note
(*) Funded by Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), Brazil, process
# APQ-02940-2013.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016
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Viviane H. França, Ulisses E. C. Confalonieri
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Texto recebido em 18/jan/2016
Texto aprovado em 23/mar/2016
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 365-375, jul 2016
375
A cooperação federativa e a política
de saúde: o caso dos Consórcios
Intermunicipais de Saúde
no estado do Paraná*
Federative cooperation and the health policy:
the case of Inter-municipal Health Consortiums in Paraná
Carlos Vasconcelos Rocha
Resumo
O objetivo deste trabalho é discutir e avaliar os
elementos que têm dificultado ou facilitado a
“cooperação horizontal” para a produção de políticas públicas na área da saúde. Especificamente, visa analisar os fatores que possibilitaram a
difusão dos Consórcios Intermunicipais de Saúde no estado do Paraná. Tomando a institucionalização da cooperação federativa como uma
forma de estabilização de regras e processos, a
questão que orientará o trabalho é verifi car como, ao longo do tempo, os atores, seus interesses e suas agendas de problemas têm incidido
sobre a cooperação intermunicipal na produção
da política de saúde.
Palavras-chave: relações intergovernamentais;
descentralização; cooperação intermunicipal; políticas de saúde; consórcios de saúde.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3604
Abstract
The objective of this paper is to discuss and
evaluate factors that have hindered or facilitated
a “horizontal cooperation” for the production of
public policies in the area of health. Specifically,
it aims to analyze the factors that enabled
the dissemination of Inter-municipal Health
Consortiums in the Brazilian state of Paraná.
Viewing the institutionalization of federative
cooperation as a way of stabilizing rules and
processes, the question that will guide the study
is to investigate how, over time, the actors, their
interests and their problem agendas have focused
on inter-municipal cooperation in the production of
health policies.
K e y w o r d s : intergovernmental relations;
decentralization; inter-municipal cooperation;
health policies; health consortiums.
Carlos Vasconcelos Rocha
Introdução
considerando o caso dos CIS no estado do
Paraná. O trabalho se encerra com uma síntese
das conclusões.
No Brasil, como forma de enfrentar os efeitos
fragmentadores do processo de descentralização das políticas públicas, foram adotadas diversificadas experiências de cooperação intermunicipal para a produção compartilhada de
múltiplas modalidades de políticas públicas. Tal
A origem do problema:
descentralização
e cooperação federativa
tendência expressa uma tentativa de encontrar
uma dimensão territorial “adequada” na pro-
A discussão sobre a reforma do Estado brasi-
dução de cada política pública específica, em
leiro, que entrou na agenda política do País a
contraste com a distribuição do poder federa-
partir da década de 1980, colocou em relevo
tivo brasileiro entre o governo central, os esta-
o tema da descentralização. Como reação ao
dos e os municípios.
regime autoritário, caracterizado pela concen-
Nesse sentido, na área da saúde, foram
tração de poder no governo central e por uma
desenvolvidas experiências de cooperação in-
tendência à organização hierárquica das rela-
termunicipal, com a difusão dos consórcios de
ções federativas, diversos setores da sociedade
saúde por todo o Brasil. O Paraná foi um dos
brasileira passaram a reivindicar a descentra-
estados brasileiros em que a difusão desses
lização político-administrativa como forma de
esquemas de cooperação foi mais significativa.
adequar o desenho das instituições públicas
Este trabalho pretende analisar os fatores que
aos requisitos de uma democracia. Em termos
possibilitaram o desenvolvimento desse pro-
federativos, esse movimento visou fortalecer a
cesso de reterritorialização na área de saúde
autonomia de estados e municípios em reação
no estado do Paraná, com a criação dos Con-
ao “federalismo nominal” característico do pe-
sórcios Intermunicipais de Saúde (CIS).
ríodo autoritário, baseado na centralização do
Inicialmente o trabalho apresenta as ca-
poder no governo federal. Nesse sentido, com a
racterísticas gerais da federação brasileira e a
Constituição Federal de 1988, o Brasil avançou
problemática envolvida na descentralização
a construção de um federalismo “de fato”. O
e na cooperação federativa. Posteriormente,
poder foi redistribuído em favor dos estados,
serão expostas as características das políticas
do Distrito Federal e dos municípios – hoje 27
de saúde no Brasil, enfatizando seus aspectos
estados, incluso o Distrito Federal, e 5.565 mu-
federativos e territoriais. O surgimento dos CIS
nicípios1 –, que passaram a ser definidos como
será ressaltado como uma das formas adota-
entes da federação, configurando um federalis-
das de cooperação intermunicipal na produção
mo tripartido.
das políticas de saúde. Em seguida, serão apon-
No plano normativo, a descentralização
tados e discutidos os fatores que facilitam ou
difundia-se como uma panaceia para todos os
dificultam a cooperação intergovernamental,
males, sendo relacionada a uma multiplicidade
378
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
A cooperação federativa e a política de saúde
de objetivos e significados, segundo os inte-
Resulta que, com a descentralização,
resses e valores de diversos atores distribuídos
foi se afirmando a necessidade de maior
pelo espectro ideológico nacional. Para os se-
coordena ção federativa na produção das
tores mais à esquerda, a descentralização era
políticas públicas, tanto em seu sentido verti-
vista como uma estratégia de democratização
cal, articulando União, estados e municípios,
tanto política como social; para os setores mais
como, também, em seu sentido horizontal,
à direita, era tomada como uma estratégia de
estruturando esquemas de cooperação entre
racionalização técnico-administrativa, visando
estados e, principalmente, entre municípios.
alcançar maior eficiência nas ações públicas.
Mostrou-se indispensável, portanto, produzir
Essa crença inicialmente difundida se
desdobrou, em seu aspecto federativo, na
relações mais complexas e matizadas entre os
entes federados.
concepção de que os municípios deveriam
Assim, como se reconhece amplamente
resolver da forma mais autônoma possível
hoje, o processo de reforma do Estado, notada-
os seus problemas, resultando no que Daniel
mente em federações, requer o equacionamen-
(2001, p. 14) denominou “municipalismo au-
to de graus e mecanismos diversificados de
tárquico”. Tal concepção instaura as bases de
centralização e descentralização. Esse balanço
um federalismo competitivo, no qual há pou-
não pode ser definido a priori e de forma abs-
cos incentivos para que os municípios estabe-
trata, pois exige um amplo aprendizado e algu-
leçam ações cooperativas.
ma criatividade dos atores sociais.2 Demanda
Contudo, ao longo da implementação
uma articulação de funções e um compartilha-
dessas reformas, a experiência mostrou que
mento de recursos entre os níveis de governo,
elas podem gerar resultados opostos aos espe-
de maneira a se criarem condições propícias
rados. No caso brasileiro, a grande maioria dos
à democratização e à ampliação da eficácia e
municípios padece de precariedade técnica,
da eficiência das políticas públicas, antes vistas
administrativa e financeira. Nesse contexto, a
como efeitos diretos da descentralização.
descentralização tende a fragilizar ainda mais a
Como resultado desse aprendizado por
provisão de serviços estatais, por repassar prer-
diversos atores envolvidos no processo de
rogativas para municípios sem condições de
reforma do Estado brasileiro, diversas moda-
exercê-las integralmente e por fragmentar as
lidades de cooperação federativa surgiram.
ações públicas de forma a comprometer uma
Especificamente, no plano horizontal, foram
escala adequada da oferta de serviços. Ade-
instituídas câmaras, redes, agências, associa-
mais, como se sabe, a superação ou minimiza-
ções, fóruns, empresas e autarquias intermuni-
ção das desigualdades regionais existentes no
cipais (Cruz, 2001; Abrucio e Soares, 2001). No
Brasil exige a adoção de mecanismos de coor-
entanto, a experiência mais relevante de ação
denação federativa e de fomento à cooperação
cooperativa horizontal foi a dos consórcios in-
intergovernamental, além da implementação
termunicipais, notadamente aqueles relaciona-
de políticas compensatórias em favor dos entes
dos com a provisão de bens e serviços na área
mais necessitados (Arretche, 1996).
da saúde.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
379
Carlos Vasconcelos Rocha
A viabilização da cooperação intermunicipal para a produção de políticas públicas não
é, no entanto, algo trivial. Requer, no seu aspecto territorial, a definição de novos padrões
de regionalização que, no caso dos CIS, são
Políticas de saúde
e o desafio da regionalização:
contextualizando
o surgimento dos CIS
supramunicipais. A cooperação, no caso, demanda uma recriação do desenho territorial do
Com a Constituição Federal de 1988, momento
federalismo tripartido brasileiro, baseado na
de consolidação do processo de democratiza-
União, nos estados e nos municípios.
ção política no Brasil, foi adotado um Sistema
Esse esforço de remapeamento encontra
Único de Saúde (SUS) inspirado no National
obstáculos de diversas naturezas. Os muni-
Health Service, da Inglaterra, fundado nos princípios da universalidade, equidade, integralidade, com gestão descentralizada e participativa.
A tentativa de reproduzir esse modelo numa
federação – em comparação a um país unitário como a Inglaterra – reveste-se de especial
complexidade: no caso, na produção das políticas públicas a questão sobre “quem deve fazer” se sobrepõe à de “o que fazer” (Pierson,
1995). Ainda mais no caso do sistema público
de saúde brasileiro, um dos maiores do mundo
em termos de número de usuários e com responsabilidades divididas entre os três níveis de
governo. Os desafios colocados para a estruturação dessa política são, portanto, imensos.
Coerente com o princípio da descentralização federativa – tomado como meio
de democratização e de eficiência na gestão
pública –, o primeiro decênio da implantação
do SUS priorizou a municipalização da saúde.
Instaurou-se, assim, um processo de intensa transferência de competências e recursos,
antes concentrados no governo central, em
direção aos municípios, através de instrumentos normativos como as Normas Operacionais
Básicas (NOB) e as Normas Operacionais de
Assistência à Saúde (Noas), utilizados pelo
Ministério da Saúde para estruturar o setor.
cípios, como entes federados, são, em última
instância, autônomos para adotar, ou não, esquemas cooperativos em diversas áreas nas
quais são detentores de prerrogativas. Se, por
um lado, pelos requisitos técnicos da produção
de políticas públicas, encontram incentivos para a cooperação (visando ganhos de escala, por
exemplo), por outro, são impelidos a competir,
no contexto federativo, em diversos aspectos,
especialmente na esfera político-eleitoral.3
Essa problemática da cooperação federativa incita um amplo debate. Nesse sentido,
o estudo de caso aqui proposto faz emergir
duas questões. A primeira, que será desenvolvida neste artigo, diz respeito aos fatores que
facilitam ou dificultam a cooperação intergovernamental. A segunda, desenvolvida em
Rocha e Castro (2015) – e sinteticamente exposta neste trabalho –, refere-se aos motivos
pelos quais determinados padrões de regionalização são adotados no contexto da cooperação intermunicipal.
Antes de desenvolver a análise do problema proposto, no tópico seguinte serão
apresentadas as características das políticas de
saúde no Brasil, enfatizando seus aspectos federativos e territoriais.
380
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
A cooperação federativa e a política de saúde
Sendo assim, os municípios passaram a assu-
federalismo tripartido brasileiro na área das
mir progressivamente a gestão dos serviços de
políticas de saúde. Prover os serviços para a
saúde em seus territórios.
população requer, portanto, um planejamento
À medida que a descentralização ia se
que considere uma escala adequada de oferta
consolidando, essa ênfase no papel dos muni-
dos serviços. Isso demanda uma territorialida-
cípios começou, no entanto, a demonstrar os
de que pode abranger vários municípios, mais
problemas que foram expostos genericamen-
de um estado ou mesmo partes de municípios.
te no tópico anterior. Primeiramente, a hete-
Daí a necessidade de acordos políticos para a
rogeneidade de capacidades financeiras e ad-
institucionalização de formas de cooperação
ministrativas dos municípios para assumirem
horizontal e vertical entre os entes federados.
a gestão da saúde acabou conflitando com o
Na verdade, a consciência da necessi-
princípio da equidade. Além disso, instaurou-
dade dessa regionalização existia antes do
-se uma tensão entre a lógica da descentrali-
surgimento dos efeitos fragmentadores da
zação e os requisitos técnicos do sistema de
descentralização: esse pressuposto técnico era
saúde. Em outras palavras, essa tensão se
parte de um estoque de conhecimento com-
deve ao fato de que a descentralização res-
partilhado há muito tempo, pois constitutivo,
ponde ao objetivo político de afirmação da
por exemplo, do modelo de saúde da Inglater-
autonomia dos estados e municípios, ao mes-
ra, inspirador do SUS. No plano da formulação
mo tempo que a lógica da política de saúde
da reforma da saúde, já havia a convicção de
demanda um funcionamento coordenado de
que a demarcação territorial na produção da
relações intergovernamentais visando cum-
política deveria adotar a concepção estratégica
prir os objetivos sistêmicos de universalidade,
de distritos sanitários, como denota uma reso-
equidade e integralidade.
lução da VIII Conferência Nacional de Saúde,4
A fragmentação territorial resultante
realizada ainda em 1986 (Keinert, 2001, p. 21).
da afirmação das prerrogativas políticas dos
Consagrando essa concepção, o princípio da
municípios como gestores da saúde acabou,
regionalização foi inscrito na Constituição Fe-
portanto, contraditando os princípios do SUS,
deral de 1988 como mecanismo da descentrali-
por demandar outro tipo de organização ter-
zação, integralidade e hierarquização da saúde.
ritorial. Um aspecto dessa inadequação, por
Tal princípio se desdobrou em toda uma legis-
exemplo, revela-se no fato de que, no sistema
lação derivada. Por exemplo, a Lei Orgânica da
único e universal de saúde do Brasil, as frontei-
Saúde n. 8080/1990 afirmava a necessidade da
ras político-geográficas não delimitam o fluxo
regionalização como princípio de organização
de pacientes, já que cobrem todo o território e
do sistema, mas não aprofundava seu signifi-
toda a população, ao passo que a oferta dos
cado, aspecto que, naturalmente, não foi efe-
serviços é fragmentada pelas unidades políti-
tivado. Posteriormente, a Norma Operacional
co-administrativas.
de Assistência à Saúde (Noas) – SUS 1/2001
Nesse sentido, foi ficando cada vez
propunha a criação de regiões de saúde, só que
mais clara a necessidade da configuração de
de maneira formalista e rígida, sem resultar em
arranjos cooperativos visando remapear o
avanços significativos. Em 2006, o Pacto pela
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
381
Carlos Vasconcelos Rocha
Saúde, composto por um conjunto de portarias,
o sistema de saúde é facilmente contestada pe-
foi mais realista, procurando induzir os entes
lo território usado, isto é, pelo território vivo”
federados a estabelecerem pactos visando à
(Viana et al., 2008, p. 94).
adoção de “regiões de saúde”, de gestão in-
Dadas essas dificuldades, um efetivo pro-
tergovernamental regional e de planejamento
cesso de regionalização só vai surgir em mea-
conjunto. Apesar de ter tido significativa ade-
dos dos anos de 1990, com a difusão dos CIS,
são dos municípios, isso ocorreu mais no pla-
por alguns fatores conjugados. De um lado, os
no da formalidade. Ainda nessa linha, através
mecanismos indutores da cooperação vão pau-
do Decreto 7.508/2011, o Ministério da Saúde
latinamente se fortalecendo, por parte tanto
adotou o Contrato Organizativo da Ação Pú-
do governo central como dos estados, fruto do
blica (Coap), visando induzir acordos de cola-
aprendizado acumulado por esses entes e do
boração firmados entre os três entes federati-
convencimento da sua necessidade. De outro
vos, no âmbito de uma Região de Saúde, com
lado, do ponto de vista dos municípios, num
o objetivo de organizar e integrar as ações e
contexto de crise econômica e de restrições fis-
os serviços de saúde e garantir a integralidade
cais, nos anos de 1980 e 1990, a incapacidade
da atenção à saúde da população no território
de fornecer respostas individuais às pressões
(Viana et al., 2008; Santos e Andrade, 2009; Li-
do eleitorado por acesso aos serviços de saúde
ma et al., 2012).
induz à consciência de que diversos problemas
Tais tentativas tiveram, por motivos va-
de gestão só poderiam ser equacionados de
riados, resultados práticos muito limitados. Es-
forma cooperativa. Além do reconhecimento
pecificamente, nas décadas de 1980 e 1990, a
dessa incapacidade, nesse momento um requi-
regionalização tinha um relevante obstáculo de
sito político para a cooperação estava dado:
natureza política. Enquanto o governo federal
a ênfase na “distribuição de poder”, que diz
buscava, num crescendo, induzir a regionaliza-
respeito à afirmação da autonomia dos muni-
ção da saúde através de ampla legislação, os
cípios como forma de superar a centralização
municípios procuravam afirmar a sua autono-
federativa do regime autoritário, encontrava-se
mia, com o respaldo da Constituição. Esse mo-
relativamente resolvida. Com suas garantias
vimento contraditório fez com que as tentativas
de autonomia satisfatoriamente consolidadas,
do governo central de organizar a regionaliza-
já que arrefecidos os conflitos em torno da
ção da saúde não alcançassem seus objetivos.
“distribuição” do poder federativo – questão
Na outra ponta, os municípios interpretavam
prioritária ao longo da democratização –, os
essas tentativas como ameaça a sua almejada
municípios podiam concentrar-se nos requi-
autonomia. Essa distância entre o normativo e
sitos técnicos necessários para a produção de
o efetivo é expressão de uma tensão entre os
políticas públicas de maior qualidade. A lógica
requisitos técnicos de uma política pública e
aí envolvida é expressa por Scharpf (1988), ao
os imperativos da política, que é uma questão
dizer que “eficiência e flexibilidade são subor-
que baliza toda a problemática da cooperação
dinadas às garantias procedurais de acomo-
5
intergovernamental. Em outros termos, ocorre
dação política” (apud Pierson, 1995, p. 459).6
que “uma visão estritamente normativa sobre
As políticas que visam garantir dois objetivos,
382
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
A cooperação federativa e a política de saúde
metas substantivas e proteção de posições institucionais, tendem a ser menos efetivas do que
as que visam apenas ao primeiro objetivo.
Como salientado anteriormente, dentre
as variadas modalidades de cooperação fede-
O caso do Paraná: algumas
reflexões exploratórias
acerca das possibilidades de
cooperação intermunicipal
rativa, os consórcios intermunicipais foram das
mais relevantes. Os consórcios intermunicipais
O estado do Paraná, localizado na região Sul, é
constituem uma forma de associação ou união
um dos 27 estados brasileiros (incluindo o Dis-
entre municípios, calcada na percepção de um
trito Federal). É o 15º em dimensão territorial, o
compartilhamento de interesses e propósitos,
6º em população, com cerca de 11 milhões de
articulados nos mais diferentes âmbitos, visan-
habitantes, e tem o 5º maior PIB do País. O es-
do ao provimento de serviços públicos como
tado tem 399 municípios, conforme demonstra
tratamento e destinação do lixo, cultura, lazer,
o Mapa 1.
educação e merenda escolar, além da realiza-
No Paraná, a partir do início de 1990,
ção de obras públicas, agricultura e desenvolvi-
foram constituídos progressivamente 26 CIS
mento sustentável (Cruz, 2001; Vaz, 1997).
(ver Anexo I). As primeiras experiências se de-
Um Consórcio Intermunicipal de Saúde
senvolveram nos municípios pequenos do norte
(CIS), por sua vez, é a união ou associação de
e nordeste do estado, com estruturas adminis-
dois ou mais municípios visando à resolução de
trativas precárias, e, posteriormente, se difun-
problemas e à busca de objetivos comuns no
diram para a quase totalidade do estado. Hoje,
setor, mediante a utilização conjunta dos re-
dos 399 municípios, 390 integram pelo menos
cursos humanos e materiais disponíveis (Brasil,
um CIS. Ou seja, 97,5% dos municípios parana-
1997, p. 10).
enses estão consorciados, com uma média de
A difusão dos CIS teve início em meados
dos anos de 1990 em alguns estados brasilei-
16 por consórcio. O menor tem três municípios
e o maior tem 30.
ros. Esse processo se deu de forma heterogê-
Em relação ao conjunto dos CIS, é neces-
nea, pois dependeu, em grande medida, das
sário apontar algumas peculiaridades. Dos 26
características políticas específicas dos estados,
CIS, o Consórcio Paraná Saúde é atípico. Con-
variável explicativa relevante para a difusão da
gregando 394 municípios, ele reproduz quase
cooperação, como será tratado a seguir. Dois
que perfeitamente o padrão de territorialização
dos casos de maior sucesso foram dos estados
do próprio estado, tendo como único objetivo
de Minas Gerais e do Paraná, este último obje-
comprar e distribuir medicamentos entre os seus
to dos próximos tópicos.7
integrantes. Ao contrário, todos os outros CIS
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
383
Carlos Vasconcelos Rocha
Mapa 1 – Estado do Paraná e municípios
Limite de Estado
Limite de Município
Sede de Município
Fonte: Mapa elaborado pelo prof. dr. José Flávio Morais Castro, da PUC Minas.
Mapa 2 – Consórcios Intermunicipais de Saúde (CIS) do Paraná
Limite de Estado
CIS duplo
Limite de Município
CIS Paraná Centro
Limite de CIS
CISGAP
Sede de Município
CISVAP
Fonte: Mapa elaborado pelo prof. dr. José Flávio Morais Castro, da PUC Minas.
384
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
A cooperação federativa e a política de saúde
definem formas de regionalização mais restritas
se encontram com hachuras no Mapa 2. Por
e buscam fornecer um amplo leque de serviços.
sua vez, o Conins tem sete de seus 20 municí-
O Cislipa também é específico, pois suas
pios pertencentes ao estado vizinho de Santa
funções são bastante limitadas se comparadas
Catarina,8 o que o torna especialmente com-
com as dos outros CIS. Seu objetivo é com-
plexo, pois o CIS se relaciona com dois gover-
partilhar o Serviço de Assistência Médica de
nos estaduais simultaneamente.
Urgência (Samu), que visa fornecer transporte
A criação dos CIS envolveu uma lógica
e primeiros socorros para casos de urgência.
política, permeada por conflitos e consensos,
Esse CIS está localizado no entorno da Região
dependente, em última instância, de acordos
Metropolitana de Curitiba, que é a região com
entre os prefeitos, o que é evidenciado pelo
maior concentração de população e recursos
largo período de tempo que perpassou sua di-
econômicos do estado, características que
fusão pela quase totalidade dos municípios do
desestimulam a cooperação, conforme será de-
estado, conforme demonstra o Quadro 1.
São diversas as explicações para esse
senvolvido adiante.
Além disso, há 18 municípios que parti-
processo. A seguir, serão desenvolvidas algu-
cipam de mais de um CIS, configurando con-
mas considerações sobre os fatores – que se
sórcios sobrepostos no território. É o caso do
entrelaçam – que facilitaram ou dificultaram o
Cisvap, do CIS Paraná Centro e do Cisgap, que
consorciamento no estado.
Quadro 1 – CIS por ano de implantação
Ano
CIS
1992
1
1993
3
1994
1
1995
5
1996
3
1997
3
1998
4
1999
1
2002
1
2009
1
2010
2
2014
1
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Acispar (s/d); Lima (1998) e Paraná (2009).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
385
Carlos Vasconcelos Rocha
A cooperação como resultado
da ação dos policy entrepreneurs
e do movimento sanitário
Teixeira, 2012; Rocha e Faria, 2004). No limite,
faziam política através de um discurso técnico,
difundindo ideias elaboradas coletivamente
em diversos âmbitos, cristalizadas principal-
A constituição dos CIS, no Paraná, resultou de
um processo de aprendizado envolvendo políticos, técnicos e setores da sociedade civil,
como prefeitos, secretários municipais e estaduais de saúde, técnicos da Sesa e dos municípios, movimentos de profissionais da área da
saúde e partidos políticos. Atuando dentro de
contextos específicos, ao longo do tempo, os
atores envolvidos teceram relações horizontais,
conectando municípios, e verticais, articulando
municípios com o âmbito estadual. Em grau relevante, desenvolveram uma teia de relacionamentos, muitas vezes informais, que vitalizou
a dimensão formal dos CIS. Além das regras
pactuadas que orientam a cooperação, desenvolveram uma confiança, principalmente entre
as burocracias municipais e estadual, exercitada no trato frequente das questões relativas à
gestão da saúde, o que remete ao importante
aspecto da construção de capital social, que
diz respeito “a características da organização
social, como confiança, normas e sistemas que
contribuam para aumentar a eficiência da so-
mente nas Conferências Nacionais de Saúde.
Portanto, eram portadores de concepções
sobre como estruturar as políticas de saúde e
trabalhavam para concretizá-las.
Tais personagens podem ser classificados
como policy entrepreneurs. Conforme exposto
por Mintrom,
Os policy entrepreneurs podem ter um
papel fundamental na identificação de
problemas relacionados com as políticas
públicas, de modo que tanto atraem a
atenção dos decision makers como indicam respostas apropriadas às políticas. Os
policy entrepreneurs devem desenvolver
estratégias para apresentar suas ideias
para os outros. É por isso que eles gastam tanto tempo intercomunicando-se
“dentro” e ”em torno” do governo. Assim
fazendo, eles captam a ”visão de mundo” de vários membros da policy-making
community e tecem contatos que os ajudam a afirmar a sua credibilidade. Fazer
esses contatos permite que possam determinar quais argumentos irão persuadir
os outros para que apoiem suas ideias.9
(1997, p. 739)
ciedade, facilitando as ações coordenadas”
(Putnam, 1996, p. 177).
Esses policy entrepreneurs surgem no
Especificamente, alguns personagens
contexto de um movimento coletivo mais am-
especiais foram fundamentais na difusão
plo, de âmbito nacional, que foi o movimento
dos esquemas de cooperação. Técnicos com
dos sanitaristas. O Movimento Sanitário, que
profunda dedicação à causa da saúde públi-
surgiu no Brasil nos anos de 1970, era compos-
ca, com capacidade de articulação política,
to especialmente por profissionais da saúde,
mediaram as relações entre autoridades mu-
com o objetivo de defender a saúde pública
nicipais de partidos variados, buscando con-
como direito universal, e se baseava nos prin-
vencê-las da relevância da cooperação para a
cípios de integralidade, equidade e descentrali-
produção das políticas públicas (Laczynski e
zação. Além de constituir um movimento social
386
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
A cooperação federativa e a política de saúde
com a característica clássica de direcionar
sanitaristas nos seus quadros, passaram a re-
demandas ao Estado, através de um leque de
crutar equipes técnicas multiprofissionais para
estratégias de pressão, os sanitaristas procura-
a Sesa, que foram distribuídas pelo território
ram também desenvolver sua atuação nos par-
do Paraná. Esses técnicos cumpriram um papel
tidos políticos – quase sempre de esquerda – e
fundamental no enfrentamento da situação de
ocupar cargos governamentais. Como autores
carência de estrutura de oferta de serviços de
de ideias sobre a reformulação do sistema de
saúde, especialmente por parte dos municí-
saúde brasileiro, atuaram também em univer-
pios menores. Seja pela formação anterior, no
sidades, desenvolvendo pesquisas e formando
âmbito das universidades ou dos movimen-
10
profissionais. Considerando o caso do Paraná,
tos sociais, seja pelo esforço do próprio poder
são vários os exemplos da atuação desses per-
público em qualificar seus funcionários, esses
sonagens, como será apontado à frente.
profissionais difundiam as ideias forjadas pelo
A constituição dos CIS teve origem em
movimento sanitário.
ações desenvolvidas tanto no plano estadual
Por exemplo, os técnicos que entravam
como no plano dos municípios. Num primeiro
para a Sesa tinham que fazer um curso inten-
momento, a cooperação intermunicipal foi obra
sivo de três meses, de 40 horas semanais, em
de atores que atuavam no âmbito dos municí-
centros cuja orientação se baseava nos princí-
pios; posteriormente, o papel indutor dos go-
pios do pensamento sanitarista. Essas pessoas
vernos estaduais foi fundamental. Em ambos
estavam, em grande parte, alocadas nas Regio-
os níveis, no entanto, a presença dos policy
nais de Saúde (RS) da Sesa,11 quando se desen-
entrepreneurs foi decisiva.
Como se disse, direta ou indiretamente
esses agentes são forjados no movimento sanitarista, constituído na sociedade civil com o
objetivo de articular demandas ao Estado. No
entanto, o impacto das suas ações se potencializa quando eles passam a compor a burocracia estatal ou a assumir posições de mando nos governos. A necessidade dos governos
estaduais e municipais de estruturarem a área
da saúde através do recrutamento de técnicos
preparados coloca em relevo os participantes
do movimento sanitário, que forneciam uma
concepção elaborada sobre um modelo de organização do setor.
No plano do estado, a partir de 1983,
os governos estaduais consecutivos do PMDB
(José Richa, Álvaro Dias e Roberto Requião),
partido que abrigava um amplo contingente de
volve o processo de implementação do SUS.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
Criou-se, assim, uma massa crítica de técnicos,
distribuídos por todo o território do estado, que
utilizavam as RS como suporte para suas ações,
conectando o governo estadual com conjuntos
de municípios, que compartilhavam das mesmas ideias e que, no futuro, teriam um papel
crucial na criação dos CIS.
No plano dos municípios, esse processo
teve também os seus desdobramentos. Devido à precariedade técnica de grande parte
das administrações municipais, no sentido de
cumprir a sua recente prerrogativa de gerir os
serviços de saúde, vários prefeitos passaram a
recrutar esses atores para cargos de direção na
área da saúde (Dowbor, 2014). Assim, técnicos
dedicados à causa da saúde pública, com alta
capacidade de articulação política, passaram a
ocupar espaços na burocracia e em cargos de
387
Carlos Vasconcelos Rocha
direção nos governos municipais. Levaram, por-
faziam parte de CIS, até o ano 2000, predomi-
tanto, para os espaços de tomada de decisões
navam aqueles com população de até 50 mil
suas convicções sobre a política de saúde e,
habitantes (Lima e Pastrana, 2000, p. 9).
especificamente, sobre a relevância da coope-
Segundo o Ministério da Saúde, para os
ração intermunicipal para estruturar essa políti-
municípios de pequeno porte, o CIS viabiliza a
ca setorial (Laczynski e Teixeira, 2012; Rocha e
oferta de um atendimento de melhor qualida-
Faria, 2004). Nesse caso, privilegiavam a atua-
de e de maior complexidade à sua população.
ção nas Associações de Municípios (AMs),12 vi-
Oferecer serviços de saúde em todos os níveis
sando convencer os prefeitos a estenderem a
representa, para a maioria dos municípios, en-
cooperação para a área da saúde.
cargos superiores à sua capacidade financeira.
Portanto, o processo de criação dos CIS
Esses municípios são incapazes de ofertar cer-
envolveu a ação dos atores em duas dimen-
tos serviços por problemas de escala. A presta-
sões: no âmbito dos municípios – especialmen-
ção de serviços de forma regionalizada evita a
te dos menores – e no do estado, através do
sobrecarga do município na construção de no-
seu papel indutivo. Nos tópicos seguintes serão
vas unidades de oferta de serviços ambulato-
expostas essas dimensões.
riais e hospitalares, na contratação de recursos
humanos especializados e na aquisição de
equipamentos de custos elevados. O CIS pos-
As experiências pioneiras
de Consórcios Intermunicipais
de Saúde: uma estratégia
capitaneada pelos municípios menores
sibilita, ainda, uma utilização mais racional da
rede disponível (Brasil, 1997; Diniz Filho, 2006).
Mendes caracteriza bem esse primeiro
momento, em que as iniciativas surgem no nível dos municípios:
A experiência do Brasil, em geral, e do Paraná,
em particular, parece corroborar a tese de que
municípios pequenos encontram maior necessidade de cooperação (Cruz, 2001, p. 12), seja
em função da maior dificuldade de resolução
de seus problemas, devido à sua maior carência
de recursos financeiros e administrativos, seja
pela necessidade de potencializar sua capacidade de negociação com os outros entes, já que
tendem a ter menor poder de barganha ante os
governos estaduais e federal. No Brasil, nos
a crescente fragilidade das secretarias estaduais de saúde fez com que elas fossem,
gradativamente, retirando-se da prestação de serviços secundários e terciários
ou tornando esses serviços de tão baixa
qualidade, que obrigou os municípios a
suprir essas deficiências dos sistemas. [...]
Os Consórcios Intermunicipais surgem
espontaneamente das necessidades dos
municípios em resolver problemas e não
como resultado de políticas nacionais ou
estaduais deliberadas. (1996, p. 287)
primeiros anos de implantação dos CIS, 60%
No caso do Paraná, na criação dos pri-
dos municípios consorciados possuíam menos
meiros CIS, as iniciativas vieram de policy
entrepreneurs que atuavam no âmbito dos municípios do norte e noroeste do estado – região
composta majoritariamente por pequenos
de 10.000 habitantes, enquanto somente 5,5%
tinham uma população superior a 50.000 habitantes. No caso do Paraná, dos municípios que
388
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
A cooperação federativa e a política de saúde
municípios –, através do convencimento de
de outros consórcios, instaurando um processo
autoridades municipais da necessidade de co-
de aprendizado envolvendo tanto políticos co-
operarem na gestão da saúde. As caracterís-
mo técnicos. Nesses spillover effects, a fórmula
ticas dessas regiões explicam de certa forma
adotada por alguns conjuntos de municípios
a busca de ações cooperativas. Os municípios
era avaliada como promissoras, o que fortale-
do norte e noroeste se caracterizam, histo-
cia o discurso dos policy entrepreneurs e, con-
ricamente, pelo relativo atraso econômico e
sequentemente, convencia mais políticos das
administrativo em relação aos municípios do
vantagens de repeti-la (Kingdon, 1995).
litoral, implicando precariedades derivadas de
Assim, os CIS são criados tomando como
carências de recursos e, portanto, dificulda-
referência esquemas de cooperação anterior-
de de fornecer respostas individuais aos seus
mente constituídos que tiveram êxito. Na ver-
problemas. Resta, dessa forma, a cooperação
dade, a experiência pioneira de cooperação in-
como forma de enfrentar essa situação de fra-
termunicipal na área da saúde, no Brasil, ainda
gilidade dos municípios.
no início da década de 1980, é a de Penápolis,
Desse esforço inicial, foram criados os
município do estado de São Paulo, onde um
primeiros CIS: Cisamunpar, com sede em Pa-
prefeito, que era enfermeiro, reuniu diversos
ranavaí, com 28 municípios; Ciscomcam, com
municípios para gerir uma Santa Casa que se
sede em Campo Mourão, com 25 municípios;
encontrava em grande dificuldade. Vários ges-
Cisamerios, com sede em Umuarama, com 21
tores municipais de saúde do Paraná, quando
municípios; e Cismepar, com sede em Londrina,
da articulação dos CIS, tinham como referência
com 21 municípios. Em cada um desses casos –
inicial essa experiência inovadora.
e, em geral, no caso de todos os CIS – fica mui-
Essa maior propensão de cooperação en-
to clara a presença desses policy entrepreneurs,
tre municípios menores pode ser evidenciada
que compartilhavam algumas características:
por exceções que confirmam a tendência. No
faziam parte do movimento sanitarista; tinham
caso do Cismepar, Londrina, na época o maior
algum contato com os centros de produção
município brasileiro participante de um CIS,
de ideias, como universidades, Conferências
com aproximadamente 412 mil habitantes (Li-
de saúde e associações profissionais da área;
ma, 2000, p. 988), articulou a cooperação com
tinham algum tipo de envolvimento na políti-
seus municípios vizinhos, todos de pequeno
ca partidária, visando implementar suas ideias
porte, muito pelo papel da Faculdade de Medi-
sobre as políticas de saúde; eram parte da bu-
cina localizada em seu território, em que havia
rocracia da saúde e/ou ocupavam cargos de di-
uma forte militância sanitarista, cujos membros
reção no estado ou em municípios.
atuaram no sentido de estruturar consórcios
Criados os primeiros CIS, instaurou-se
em toda a região.
um movimento mimético que envolveu um
No caso do Cisamunpar, Paranavaí, um
processo acumulativo em que cada um que se
município com cerca de 75 mil habitantes, re-
constituía incentivava a criação de outros. Em
siste consorciar com municípios vizinhos, todos
cada novo CIS que surgia, a rede de apoio e
com menos de 5 mil habitantes. No entanto,
de difusão de ideias se afirmava na reprodução
acaba cedendo pela pressão exercida pelos
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
389
Carlos Vasconcelos Rocha
membros da AM da região – do qual era um
dos integrantes – que, em votação visando decidir sobre a criação de um CIS, derrotam Paranavaí por 27 a 1, o que leva o município a
Em cena o governo estadual:
o papel da indução na formação
dos Consórcios Intermunicipais
de Saúde
participar do consórcio.
Considerando os municípios não consor-
Se, num primeiro momento, os CIS foram
ciados, ou aqueles que se consorciaram tardia-
criados por iniciativa de atores no âmbito de
mente devido a pressões do governo estadual,
alguns municípios, posteriormente, irão se
a mesma lógica permanece. A Região Metro-
difundir devido ao papel indutor dos gover-
politana de Curitiba, e seu entorno – justa-
nos estaduais.
mente por ser aquela em qual a oferta de ser-
Na década de 1990, com o processo de
viços é comparativamente maior e a estrutura
municipalização da saúde, as secretarias esta-
de transporte permite fácil mobilidade no seu
duais entraram em crise de identidade, já que
território –, é onde se concentra a quase tota-
o governo federal passou a se relacionar dire-
lidade de municípios não consorciados, ou se-
tamente com os municípios. Houve, portanto,
ja, seis municípios do total de nove. Ademais,
uma fragmentação na produção das políticas
sintomaticamente, foi a última região do esta-
de saúde, na medida em que os municípios
do em que os CIS se difundiram: o Cislipa, o
passaram a ser vistos como unidades gestoras
Comesp e o Cimsaúde começaram a funcionar
do setor.
depois de 2010 (Paraná, 2009; Lima, 1998).
Como uma das formas de retomar um
Na verdade, Curitiba formou um consórcio,
papel relevante na política de saúde, os gover-
o Comesp, por indução do governo estadual.
nos estaduais buscaram exercer a coordenação
Além disso, como notado anteriormente, o
das ações municipais. Em grande medida, isso
Cislipa tem funções limitadas, qual seja, a de
foi feito a partir da constatação de que os mu-
gerir o Serviço de Assistência Médica de Ur-
nicípios individualmente não dariam conta de
gência (Samu).
fornecer serviços de saúde compatíveis com
Dentre os três municípios não consorcia-
as demandas de suas populações. Alguns go-
dos que se encontram fora da Região Metropo-
vernos estaduais, em geral, e o do Paraná, es-
litana, pelo menos um, Foz do Iguaçu, também
pecificamente, passaram, assim, a desenvolver
é um caso de município que não tem incentivo
mecanismos de indução para a cooperação in-
para a cooperação, pois é dotado dos requisi-
termunicipal nas ações de saúde.
tos para gerir de forma mais autônoma a sua
No Paraná, o governo de Jaime Lerner
política de saúde. Com a sétima população dos
(DEM), eleito em 1994 e reeleito em 1998,
municípios do estado (cerca de 270.000 habi-
priorizou o consorciamento na área da saúde.
tantes), Foz do Iguaçu é o segundo destino de
Reproduzindo uma tendência que acontecia no
turistas no Brasil, contando, portanto, com fon-
plano dos municípios, indicou como secretário
te de renda significativa, além de ser servido
de saúde o médico Armando Raggio, que era
por um grande hospital da Usina Hidrelétrica
seu assessor desde o período em que o então
13
de Itaipu.
390
governador era prefeito de Curitiba, capital do
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
A cooperação federativa e a política de saúde
estado, nos anos de 1980. Apesar do caráter
constituição dos CIS foi fundamental na criação
conservador do partido do governador, o secre-
e no funcionamento deles.
tário tinha um passado de militância no movi-
Alguns exemplos do papel indutor do
mento sanitarista, tendo sido ator relevante na
governo estadual podem ser fornecidos. O pri-
criação do SUS.14 Com a autonomia dada pelo
meiro é a própria criação do CIS Paraná Saúde,
governador, o secretário adotou a concepção
como salientado anteriormente, composto pe-
de distrito sanitário como parâmetro para a
la quase totalidade dos municípios do estado,
organização dos serviços em escala supramuni-
com a função de gerir medicamentos. Até 1998
cipal, visando ganhos de escala e efeitos redis-
a política de programação, aquisição e distri-
tributivos. Assim os CIS criados anteriormente
buição de medicamentos estava centralizada
se estabeleceram como experiências a serem
no governo federal, através da Central de Me-
difundidas para todo o estado.
dicamentos (Ceme). O processo de descentrali-
A partir desse momento, o papel do go-
zação da gestão teve início com a implantação,
verno estadual tornou-se progressivamente
em 1999, do Incentivo à Assistência Farma-
proeminente no fomento da cooperação inter-
cêutica Básica (Iafab), que transferia recursos
municipal.15 Conforme demonstrado no Qua-
financeiros aos municípios para a aquisição
dro I, no período dos dois mandatos do gover-
de medicamentos na atenção básica de saú-
nador Jaime Lerner (1995-2002), foram criados
de, permitindo a autonomia dos municípios na
17 CIS, ou seja, 65% do total, evidenciando a
coordenação de ações e atividades relaciona-
relevância da ação indutora do governo esta-
das aos medicamentos. Um dos resultados foi
dual na difusão dos CIS.
a deficiência de escala na compra dos medica-
Nessa ação indutora, a Sesa utilizou-
mentos, com consequente aumento de custos,
-se do pessoal lotado nas RS – como indica-
uma vez que 79% dos municípios paranaenses
do, anteriormente, defensores da cooperação
são constituídos por uma população de menos
intermunicipal na gestão da saúde – visando
de 20.000 habitantes. Com o objetivo de oti-
convencer os prefeitos a se consorciarem. Para
mizar os recursos da assistência farmacêutica
tal, além dos argumentos e da difusão de in-
básica, em junho de 1999, cerca de 99% dos
formações, disponibilizou recursos financeiros
municípios do estado do Paraná criaram o Con-
e materiais extras para os municípios que se
sórcio Paraná Saúde, devido, fundamentalmen-
consorciassem. Mais que isso, a referência es-
te, ao papel exercido pelo governo estadual.
tabelecida pelo estado foi organizar os CIS com
Seria pouco provável que um número tão gran-
representação do governo estadual, criando as
de de municípios articulasse um esquema coo-
chamadas Comissões Bipartites. Houve reação
perativo de forma autônoma, dados os custos
dos municípios a essa presença do governo es-
de transação envolvidos.
tadual na composição dos CIS, com o argumen-
Outro exemplo do papel indutor do go-
to de que seria uma ingerência na autonomia
verno estadual foi a criação da Associação dos
dos municípios (Keinert, 2001, p. 26). Reação
Consórcios e Associações Intermunicipais de
sem resultados práticos, no entanto. Assim,
Saúde do Paraná (Acispar), em 2001, cujo obje-
o papel do governo estadual do Paraná na
tivo é representar o conjunto dos CIS no estado.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
391
Carlos Vasconcelos Rocha
No caso, o governo do estado apoiou fortemen-
Essa tendência de reprodução dos mes-
te a criação da associação, com objetivo de se
mos padrões territoriais para esquemas de
relacionar de forma mais orgânica com o con-
cooperação de naturezas diferenciadas pode
junto dos CIS do estado. Foi, por exemplo, por
ser explicada em termos da lógica definida co-
intermédio da Acispar que a Sesa implantou o
mo path dependence, cujo significado Pierson
Programa Estadual de Apoio aos Consórcios
(2004, p. 21) apresentou da seguinte maneira:
Intermunicipais de Saúde, visando, através de
incentivos técnicos e financeiros, a ampliação
da oferta de serviços de forma regionalizada.
Sintoma da estreita cooperação entre o governo do estado e os CIS é o fato de que a sede
da Acispar se localiza na antessala do gabinete
do secretário estadual de saúde e, ainda, tem
assento e voto no Conselho Estadual de Saúde.
Deve-se registrar, no entanto, que, se na
Na presença de feedback positivo, a probabilidade de novos passos na mesma
trajetória aumenta com cada passo dado
nesse percurso. Isso porque os benefícios relativos da atividade atual, comparados às opções anteriormente disponíveis, aumentam com o tempo. Dito de
outra maneira, os custos de transação
para uma alternativa previamente possível aumentam.17
maioria dos casos o governo do estado teve
papel fundamental no momento de criação dos
No caso dos CIS no Paraná, formas de
CIS, em vários deles, com o passar do tempo, a
cooperação anteriores fortaleceram esquemas
experiência local ganha dinâmica própria, com
cooperativos futuros. Assim, a atuação dos
os municípios assumindo autonomia significa-
policy entrepreneurs, dos políticos e das burocracias municipais não se deu num vazio. Sua
ação ocorreu a partir de um padrão de institucionalização territorial fornecido pelas formas
anteriores de regionalização. Isso significa que,
ao longo do tempo, laços de colaboração estabelecidos entre grupos de municípios, num dado momento, facilitaram outras formas de cooperação posteriores, pois diminuíram os custos
de transação entre os envolvidos. Ou seja, ao
partir de esquemas cooperativos consolidados
anteriormente, o número potencial de atores
envolvidos na barganha pela criação de um CIS
torna-se limitado e envolve pessoas que desenvolveram, ao longo de certo tempo, relações
de confiança, gerando, assim, uma expectativa
positiva sobre o cumprimento futuro de novos
acordos celebrados (North, 1994, pp. 11-12).
Em geral, os policy entrepreneurs comprometidos com a difusão dos CIS procuraram
tiva na gestão dos mesmos.
Path dependence, cooperação
e territorialização
A criação dos CIS suscita outro problema analítico, relacionado aos padrões territoriais adotados pelos consórcios. No caso do Paraná, esses
padrões dependeram de duas formas de territorialização que antecederam à experiência
dos CIS, ou seja, as RS e as AMs. Comparando
os padrões das três modalidades de territorialização, nota-se que há uma reprodução exata
do mapeamento de 18 CIS (72% do total) com
o padrão de determinadas RS e AMs.16 Isso significa que a composição da maioria dos CIS, em
termos de municípios participantes, é réplica
exata de determinadas RS e AMs.
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A cooperação federativa e a política de saúde
convencer autoridades municipais, que já
-territoriais definidas pelos municípios. Com os
conviviam nas RS e nas AMs, a cooperarem
progressivos avanços científicos e a especia-
na gestão da saúde. Buscaram, portanto,
lização cada vez mais presente na oferta dos
aproveitar-se de esquemas antecedentes de
serviços, a política de saúde apresenta aos go-
cooperação. Assim, a regionalização institu-
vernos o desafio de traduzir na oferta dos ser-
cionalizada pelas RS e AMs facilitou a ação
viços o crescente cardápio de especialidades.
indutora desses policy entrepreneurs, já que
Esse desafio exige cooperação entre governos
forneceu suportes institucionais para a difu-
para ser enfrentado com algum sucesso.
são da ideia dos CIS num contexto em que
Como a sensibilidade do eleitorado para
os atores cooperavam em outros âmbitos.
a qualidade da oferta dos serviços de saúde é
Em geral, o governo estadual, através da sua
alta, os prefeitos se veem constrangidos e in-
burocracia, utilizou-se das RS como suporte
centivados a superar os obstáculos oriundos
institucional para induzir a cooperação entre
de suas diferenças político-partidárias com go-
municípios que já compunham cada regional;
vernantes de outros municípios. Isso pelo custo
e, paralelamente, aqueles atores que atuavam
político de se negar acesso à população de um
na sociedade civil buscavam arregimentar os
direito estabelecido constitucionalmente. No
prefeitos para a criação dos CIS no âmbito do
caso em questão, a incapacidade de coopera-
esquema territorial das AMs.
ção pode produzir situações nas quais todos os
Apesar dos aspectos específicos relati-
principais atores políticos acabam perdendo.
vos a cada caso, essa dinâmica incidiu sobre a
Como se disse, os sanitaristas eram técni-
constituição da quase totalidade dos CIS. Pode-
cos fazendo política, no sentido mais geral, mas
-se ressaltar, portanto, que a cooperação inter-
também no sentido mais estrito de disputar es-
municipal nos CIS foi facilitada ao se aproveitar
paços no aparato estatal. Ao se investirem da
de formas de cooperação anteriores.
autoridade governamental, buscavam concretizar suas metas de regionalização, o que, no caso dos CIS, exigia certo insulamento da política
Os Consórcios Intermunicipais
de Saúde e a competição
político-eleitoral
eleitoral, já que os consórcios dependiam da
cooperação de prefeitos potencialmente competidores na esfera político-eleitoral.
Diante do dilema apontado constatou-se,
A cooperação intermunicipal é problemática na
no Paraná, a tendência dos políticos se posicio-
medida em que exige acordo entre atores que,
narem de forma equidistante do processo de
pela lógica político-eleitoral, são concorrentes
gestão dos CIS, reforçando a posição dos téc-
em potencial. Porém, as características ob-
nicos.19 Visavam, assim, deslocar a competição
jetivas da área da saúde tendem a demandar
eleitoral para outras arenas.
18
cooperação, pois a adequação da oferta dos
Como esse processo de insulamento
serviços à necessidade de se gerar ganhos de
dos embates políticos é variavelmente precá-
escala exige organizar o sistema em um âmbito
rio, os CIS acabam apresentando equilíbrios
que extrapola os limites das divisões político-
mais ou menos instáveis, pois sempre está
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Carlos Vasconcelos Rocha
presente a possibilidade de partidarização
O caso do Paraná mostrou que a coo-
das relações entre as lideranças municipais.
peração dependeu tanto da ação autônoma
Assim, além de fomentar o estabelecimento
de atores no plano dos municípios – especial-
de acordos de cooperação entre os prefeitos,
mente dos menores –, como do papel indutor
os policy entrepreneurs acabam tendo a fun-
dos governos estaduais. Em ambos os níveis, a
ção de mediar conflitos entre eles, visando
presença dos policy entrepreneurs foi crucial.
garantir a prevalência dos pressupostos técni-
Atuando com base em suportes institucionais
cos da cooperação.
fornecidos por esquemas de cooperação ante-
Em alguns casos, a politização acabou
riores – as RS e as AMs –, esses atores, pro-
redundando no fracasso da cooperação, como
tagonistas do movimento sanitário, buscavam
no caso do Cisamusep, com sede em Maringá,
convencer os governantes da relevância da
onde o Centro Regional de Especialidades era
criação dos CIS.
“aparelhado” por um deputado, no sentido da
Assim, a dependência de políticas pú-
sua utilização para fins eleitorais, dificultando a
blicas anteriores mostrou-se fundamental.
cooperação dos municípios integrantes do CIS.
Apropriando dos efeitos das ações de políticas
Nas ocorrências de conflitos e impasses entre
públicas herdadas de governos passados, em
as autoridades políticas municipais, especifica-
termos de construção de capital social, a ins-
mente prefeitos, o papel de mediação exercido
titucionalização dos CIS expressa, em grande
pelos policy entrepreneurs mostra-se como fun-
medida, os padrões de territorialização estabe-
damental para a manutenção dos CIS.
lecidos pelas RS e AMs.
Nesse processo foi fundamental limitar
a influência da lógica da competição eleitoral
Considerações finais
sobre a gestão da saúde. Estabeleceu-se, portanto, certo consenso, notadamente entre os
prefeitos, de reforçar a posição dos técnicos na
Com que o que foi apresentado anteriormente,
administração dos CIS.
podemos pontuar que o desenho das institui-
Enfim, o processo de reestruturação
ções estatais não é algo que possa ser tomado
das instituições estatais ou, mais especifica-
exclusivamente a partir de um modelo pronto.
mente, de definição de relações federativas
As relações federativas, como o caso da saúde
que sejam virtuosas, exige experimentação e
mostra, são construídas tendo uma referência
criatividade dos atores políticos. Nesse senti-
nacional, mas, ao mesmo tempo, dependem
do, os resultados aqui expostos pretendem,
das características dos estados e dos municí-
além de jogar luz sobre um aspecto pouco
pios. Envolvem, portanto, relações governa-
explorado do federalismo brasileiro, auxiliar
mentais, com aspectos cooperativos e compe-
a busca de caminhos para enfrentar nossos
titivos, vertical e horizontalmente.
desafios sociais.
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A cooperação federativa e a política de saúde
Carlos Vasconcelos Rocha
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Pós-Graduação em Ciências Sociais. Belo
Horizonte, MG/Brasil.
[email protected]
Notas
(*) Este artigo é resultado de uma pesquisa mais ampla financiada pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Cien fico e Tecnológico (CNPq). Em parte, contou também com recursos de
uma bolsa de pesquisa concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas
Gerais (Fapemig). Agradeço o apoio dessas ins tuições. Além disso, é importante registrar a
contribuição dos pareceristas desta revista, além dos comentários de colegas por ocasião da
apresentação de partes da pesquisa no grupo de polí cas públicas da Alacip e nos encontros
da Rifipp. Naturalmente o resultado final aqui apresentado é de responsabilidade do autor.
Agradeço prof. dr. José Flávio Morais Castro, da PUC Minas, pela elaboração dos mapas
incluídos aqui.
(1) IBGE: Censo Demográfico 2010.
(2) Ao contrário do difundido anteriormente, foi se consolidando a ideia de que centralização e
descentralização não são conceitos e prá cas que se excluem mutuamente. São necessariamente
complementares. Tal situação é definida por Hommes (1996, apud Tendler, 1999, p. 43) como
o “paradoxo da descentralização”: o esforço de descentralização demanda dimensionar o que
vai ser centralizado, pois a qualidade desse processo depende das habilidades polí cas do nível
central de governo.
(3) Em um sistema eleitoral proporcional de lista aberta, como o brasileiro, a competição entre
polí cos locais é significa vamente acirrada.
(4) As Conferências Nacionais de Saúde foram ins tuídas no final dos anos de 1930 e representam
uma instância de par cipação de diversos segmentos sociais visando avaliar e propor diretrizes
para a formulação da política de saúde. No período da democratização, nos anos de 1980,
estabeleceram-se como importante espaço de ação dos movimentos sociais. A VIII Conferência
estabeleceu as bases do SUS.
(5) De forma resumida e simplificadora, pode-se dizer que a decisão técnica é fundada num processo
de ordem intelectual, baseada na análise racional, que busca levantar dados e construir uma
visão geral de um problema e de suas alterna vas, a par r de teorias existentes. As decisões
políticas, por sua vez, surgem da interação de objetivos de grupos e indivíduos, que visam
maximizar suas posições de poder, seja compe ndo, seja cooperando com outros atores. Essa
dis nção é claramente um instrumento metodológico, no sen do de um po ideal weberiano,
já que na realidade não se pode dis nguir claramente uma lógica da outra. Sobre o assunto, ver,
por exemplo, Lindblom (1981).
(6) Traduzido do original: “efficiency and flexibility are subordinated to poli cal accommoda on and
procedural guarantees”.
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Carlos Vasconcelos Rocha
(7) Em 1999, por exemplo, Minas Gerais foi o estado com maior porcentagem de municípios
consorciados na área da saúde, 92,4% do total, sendo seguido pelo Paraná, com 77,6%. O Brasil
apresentava 31,5% dos seus municípios consorciados (Cruz, 2001, p. 74). Para o caso de Minas
Gerais, ver Rocha e Faria (2004) e Diniz Filho (2006).
(8) Esses municípios são: Campo Erê, Coronel Mar ns, Galvão, Jupiá, Novo Horizonte, São Bernardino,
São Lourenço do Oeste.
(9) Traduzido do original: “Policy entrepreneurs can play a key role in iden fying policy problems in
ways that both a ract the a en on of decision makers and indicate appropriate policy responses
[…] policy entrepreneurs must develop strategies for presen ng their ideas to others. This is why
policy entrepreneurs spend large amounts of me networking in and around government […].
In so doing, they learn the ‘world views’ of various members of the policy-making community
and make contacts that can help build their credibility. Making these contacts allows policy
entrepreneurs to determine what arguments will persuade others to support their policy ideas”.
(10) Uma evidência da relevância do movimento sanitário na organização dos municípios foi o
seu protagonismo na criação do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde
(Conasems), em 1988, principal espaço de mobilização dos gestores municipais da saúde (Dowbor,
2014, p. 110). Aliás, evidência da relevância do caso do Paraná, é que de lá surge a proposta
de criação do Conasems, a par r da experiência da Associação de Secretários Municipais de
Saúde do Paraná, criada no início dos anos de 1980.
(11) As Regionais de Saúde (RS) foram fixadas pela Sesa, que definiu recortes territoriais agregando
grupos de municípios, em espaços geográficos con nuos, com base em uma série de informações
técnicas, visando induzir o mapeamento de regiões de saúde, como referência territorial para a
organização das ações de saúde no estado.
(12) As AMs, criadas a partir do início da década de 1960 em diversos estados brasileiros, visam
à promoção do desenvolvimento regional, através do planejamento e da cooperação
intermunicipal.
(13) Além desses, sobram apenas mais dois municípios não consorciados: Cruzeiro do Oeste, com
21.149 habitantes e Palmas, com cerca de 47.000 habitantes, configurando casos bastante
específicos. Desentendimentos polí cos com os outros municípios geralmente explicam esses
casos discrepantes, mesmo porque há certa instabilidade ao longo do tempo: em 2009, esses
municípios estavam integrados, respec vamente, ao Cismerios e ao Conims e, por outro lado,
nesse mesmo ano Pato Branco, sede atual do Conims, não estava par cipando de qualquer CIS
(Paraná, 2009).
(14) Um dos dirigentes da Sesa daquele período, entrevistado para este trabalho, afirmou que
Lerner dizia que: “a saúde fica com a esquerda, que ela resolve. Ainda mais que os sanitaristas
dominam no governo federal, que tem recursos financeiros para a implementação de suas
ideias”. Desde o início dos anos de 1980 os sanitaristas ocupavam cargos de direção da área da
saúde no governo federal (Dowbor, 2014, p. 94)
(15) Uma pesquisa de Lima e Pastrana (2000, pp. 14-15) demonstrou que diversos gestores de
consórcios entrevistados revelaram ter recebido apoio estadual durante a sua fase de
implementação. Para 53% deles houve cooperação com as Secretarias Estaduais de Saúde, cujas
formas mais comuns foram: “repasse de recursos, [...] cessão de equipamentos, estrutura sica,
recursos humanos e assessoria técnica”, e ainda “fiscalização de contas, controle e avaliação”.
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A cooperação federativa e a política de saúde
(16) Ver a demonstração dessa similitude em Rocha e Castro (2015).
(17) Traduzido do original: “In the presence of posi ve feedback, the probality of further steps along
the same path increases with each move down that path. This is because the rela ve benefits of
the current ac vity compared with once-possible op ons increases over me. To put it a different
way, the costs of switching to some previously plausible alterna ve rise.”
(18) Em um sistema eleitoral proporcional de lista aberta, como o brasileiro, a compe ção entre
polí cos locais é significa vamente acirrada.
(19) Essa percepção foi compar lhada pela totalidade dos entrevistados. Um deles, que foi secretário
estadual da saúde, afirmou que “os polí cos davam autonomia aos técnicos, visando faturar
com o bom funcionamento da polí ca de saúde”.
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Anexo I
Consórcios Intermunicipais de Saúde do Paraná:
Associação Regional de Saúde do Sudoeste (ARSS)
Associação Intermunicipal de Saúde do Centro Oeste do Paraná (Assiscop)
Consórcio Intermunicipal de Saúde dos Campos Gerais (Cimsaúde)
Consórcio Intermunicipal de Saúde (CIS 22ª R. S)
Consórcio Intermunicipal de Saúde da Região Centro Sul do Paraná (Amcespar)
Consórcio Intermunicipal de Saúde (Cisamerios)
Consórcio Intermunicipal de Saúde (Cisamunpar)
Consórcio Intermunicipal de Saúde do Setentrião Paranaense (Cisamusep)
Consórcio Intermunicipal de Saúde do Centro Oeste do Paraná (CIS Centro-Oeste)
Consórcio Intermunicipal de Saúde do Centro Noroeste do Paraná (Ciscenop)
Consórcio Intermunicipal de Saúde da Comunidade dos Municípios
da Região de Campo Mourão (Ciscomcam)
Consórcio Intermunicipal de Saúde Costa Oeste do Paraná (Ciscopar)
Consórcio Intermunicipal de Saúde Guarapuava/Pinhão (Cisgap)
Consórcio Intermunicipal de Saúde do Iguaçu (Cisi)
Consórcio Intermunicipal de Saúde do Médio Paranapanema (Cismepar)
Consórcio Intermunicipal de Saúde do Norte do Paraná (Cisnop)
Consórcio Intermunicipal de Saúde do Norte Pioneiro (Cisnorpi)
Consórcio Intermunicipal de Saúde do Oeste do Paraná (Cisop)
Consórcio Intermunicipal de Saúde do Vale do Iguaçu (Cisvali)
Consórcio Intermunicipal de Saúde do Vale do Paranapanema (Cisvap)
Consórcio Intermunicipal de Saúde do Vale do Ivaí e Região (Cisvir)
Consórcio Metropolitano de Saúde do Paraná (Comesp)
Consórcio Intermunicipal de Saúde (Conims)
Consórcio Intermunicipal de Saúde do Litoral do Paraná (Cislipa)
Consórcio Intermunicipal de Saúde (CIS Paraná Centro)
Consórcio Intergestores Paraná Saúde (Paraná Saúde)
Texto recebido em 23/dez/2015
Texto aprovado em 23/fev/2016
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 377-399, jul 2016
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Saúde: vulnerabilidade social,
vizinhança e atividade física
Health: social vulnerability,
neighborhood and physical activity
Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro
Rita Barradas Barata
Resumo
Este artigo analisa a associação entre atividade
física, grau de vulnerabilidade social e vizinhança na área central de São Paulo. Foram estudados os níveis de atividade física de adultos moradores em setores censitários vulneráveis e não
vulneráveis relacionando esse comportamento
com o contexto do bairro e com características
sociodemográficas dos indivíduos. A distribuição
dos níveis de atividade física foi diferente para os
dois grupos, predominando, no grupo vulnerável,
as pessoas ativas no trabalho sem relação com as
condições de vizinhança. Já no grupo não vulnerável a atividade física estava dividida entre lazer
e trabalho, e a maioria é pouco ativa. Nesse grupo há associação entre atividade física e gênero,
não ter carro e sensação de segurança à noite no
próprio bairro.
Abstract
The article examines the association between
physical activity, social vulnerability level
and neighborhood in São Paulo’s downtown.
Physical activity levels were studied in adults
living in vulnerable and non-vulnerable census
tracts, and physical activity practice was related
to neighborhood characteristics and to the
individuals’ sociodemographic variables. The
distribution of physical activity levels was different
for the two groups: in the vulnerable group, active
people at the workplace predominated, unrelated
to neighborhood conditions. In the non-vulnerable
group, physical activity is divided between leisure
and work, and most are somewhat active. In this
group, there is an association between physical
activity and gender, not having a car and sense of
security at night in one’s own neighborhood.
Palavras-chave: vulnerabilidade social; vizinhança; atividade física; saúde urbana.
Keywords: social vulnerability; neighborhood;
physical activity; urban health
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3605
Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata
Introdução
chegados para trabalhar na indústria automo-
O padrão de urbanização acelerado imprimiu
as transformações econômicas, novos “cen-
às grandes metrópoles periféricas algumas ca-
tros” foram se delineando na cidade, abando-
racterísticas comuns, tais como a precariedade
nando o centro histórico que passou por gran-
da expansão da área urbana e a transformação
des transformações (Iglesias, 2002).
tora e de bens duráveis. Progressivamente, com
permanente dos espaços intraurbanos geral-
Como as outras grandes metrópoles
mente marcados por processos de segregação
mundiais, São Paulo enfrenta os problemas de-
socioespacial e por impactos negativos sobre o
correntes dessas transformações econômicas
meio ambiente.
que resultaram em profunda modificação do
As décadas de 1980 e 1990 modificaram
mercado de trabalho, gerando desemprego es-
substancialmente a região metropolitana da
trutural de parcela considerável dos trabalha-
Grande São Paulo. De uma região basicamen-
dores não qualificados e crescimento das rela-
te industrial até a década de 1970, ela passou
ções informais e da precarização das condições
a ser um polo de atividades concentradas no
de trabalho. Territorialmente, esses processos
setor terciário e quaternário da economia, al-
se refletem em segmentação e diferenciação
terando o processo de uso do solo e a divisão
dos espaços urbanos com desigualdades mar-
socioespacial do trabalho, que no período ante-
cantes no provimento dos serviços essenciais,
rior havia determinado a ampliação da perife-
tais como saneamento, limpeza urbana, trans-
ria da cidade e a formação de anéis concêntri-
porte viário, habitação e urbanismo. O cenário
cos em torno do centro expandido (Bousquat e
urbano é fortemente marcado pelos contrastes
Nascimento, 2001).
sociais e pelas desigualdades entre a extrema
Durante todo o século XX, a história da
riqueza e a extrema pobreza, geralmente se-
urbanização de São Paulo foi marcada por um
gregadas espacialmente, mas em certas situa-
processo de periferização da pobreza e pela
ções, como no distrito do Morumbi, convivendo
criação e abandono de diversas centralidades
lado a lado (Barata; Ribeiro e Cassanti, 2011).
(Iglesias, 2002). Na primeira metade do século
A região central de São Paulo, consti-
XX, a urbanização da cidade separou as elites
tuída por 11 dos 97 distritos que compõem a
econômicas, que ficavam nas chamadas partes
cidade, é um exemplo típico de território mar-
altas da cidade (Campos Elíseos, Higienópolis,
cado por extrema heterogeneidade no qual
Avenida Paulista), e alguns segmentos pro-
coexistem diferentes grupos sociais com perfis
fissionais, que ficavam nos bairros operários
demográficos e socioeconômicos bastante di-
habitados predominantemente por imigrantes
versos. Alguns bairros, como Higienópolis, ain-
europeus (Brás, Bom Retiro, Barra Funda, Be-
da conservam parte da população mais rica da
lém, Mooca, Pari). A partir da década de 1960,
cidade, enquanto outros, como o Brás e o Bom
a expansão das periferias pobres se deu em
Retiro, sofreram profundas transformações
todas as direções com maior adensamento nas
com a presença cada vez maior de migrantes
zonas sul e leste do município, onde se concen-
estrangeiros. A área central concentra grande
traram as grandes levas de migrantes nacionais
parte dos moradores em situação de rua, que
402
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Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física
estão entre os grupos mais marginalizados da
equivalente à de um município de grande
cidade (Prefeitura do Município de São Paulo,
porte. A população é estacionária, com 14,5%
2001). Na última década, a população em
de idosos e 14,5% de jovens (ibid.). A renda
per capita média é muito variável entre os
distritos. Quatro deles apresentam valores inferiores à média municipal, e os demais apresentam renda per capita variando entre 1,36 e
3,36 vezes a média municipal, em valores nominais de 2010 (ibid.).
situação de rua cresceu 65%, e 55% dela se
concentra na região central da cidade (Fundação Seade, 2015).
Os distritos que constituem a zona central reúnem 4,25% da população de São Paulo, cerca de 492 mil habitantes, população
Figura 1 – Mapa dos distritos administrativos
da área central do município de São Paulo
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Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata
A saúde é resultante de um processo
multidimensional envolvendo condições de
vida e contextos sociais nos quais os grupos
Vulnerabilidade social:
moradores da área central
sociais vivem (World Health Organization,
2007). O perfil epidemiológico, ou seja, as
As condições de vida dos grupos humanos
necessidades de saúde dos diferentes grupos
que vivem na área central da cidade de São
sociais, depende de um conjunto amplo de
Paulo impactam o estado de saúde e acabam
determinantes estruturais e intermediários,
por determinar, através dos processos de re-
além das características individuais. Dentre os
produção social, situações que favorecem a
determinantes estruturais, merece destaque o
ocorrência de doenças e problemas de saúde,
contexto socioeconômico e político definido
mas também situações que podem favorecer
pelas condições de governança; políticas ma-
a manutenção da saúde, em um processo con-
croeconômicas; políticas sociais relacionadas
traditório de elementos positivos e negativos,
ao mercado de trabalho, moradia e ocupação
que acaba por conformar o perfil epidemioló-
do solo urbano; políticas públicas relaciona-
gico dos diferentes grupos (Castellanos, 1997
das a educação, saúde e proteção social e os
e Paim, 1997).
valores culturais da sociedade. Esse contexto,
O índice Paulista de Vulnerabilidade So-
por sua vez, determina a estrutura de classes
cial – IPVS construído a partir da composição
sociais, as relações de gênero e etnia e a es-
de variáveis socioeconômicas e variáveis de-
tratificação por educação, ocupação e renda.
mográficas permite a estratificação dos setores
Os determinantes intermediários referem-se
censitários em seis diferentes grupos, desde
às situações materiais de vida, os comporta-
aqueles com baixíssima vulnerabilidade social
mentos e os fatores biológicos e psicossociais
até aqueles com vulnerabilidade social muito
que podem favorecer a manutenção da saúde
alta, possibilitando, assim, uma ferramenta pa-
ou facilitar o surgimento das doenças. Os con-
ra a análise de diferentes grupos de moradores
textos de vulnerabilidade social correspondem
segundo sua vulnerabilidade social (Fundação
a esse nível intermediário de determinação. O
Seade, 2010).
próprio sistema de saúde é considerado um
Para contrastar diferentes situações so-
dos determinantes intermediários, uma vez
ciais, os autores realizaram inquérito domiciliar
que sua forma de organização e as ações que
em amostra de moradores adultos dos 356 se-
ele desenvolve podem contribuir para reduzir
tores censitários classificados como de baixíssi-
ou para intensificar as desvantagens produzi-
ma vulnerabilidade social e em amostra de mo-
das pelos determinantes estruturais. As con-
radores dos 48 setores censitários classificados
dições e características de vizinhança também
entre aqueles com vulnerabilidade média, alta
fazem parte dos determinantes intermediários,
e muito alta.
podendo afetar vários comportamentos relacionados com a saúde.
404
O cálculo inicial da amostra previa a realização de 500 entrevistas em cada estrato.
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Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física
A partir da listagem dos setores censitários,
de 40 domicílios (20 + 20 reservas). Os 20
foram sorteados 25 setores em cada estrato,
domicílios reservas eram utilizados quando
utilizando um procedimento sistemático com
não se conseguia completar a amostra com os
partilha proporcional ao tamanho da popula-
20 domicílios, em função de recusa ou após
ção. Os dados dos setores censitários foram ob-
três visitas malsucedidas.
tidos do censo de 2000. Dessa forma, avaliou-
Foi entrevistado um indivíduo por do-
-se necessário realizar um arrolamento para a
micílio, sorteado a partir da enumeração dos
atualização de todos os domicílios dos setores
moradores elegíveis daquele domicílio. Dessa
censitários sorteados.
forma, foram realizadas 917 entrevistas (92%
O arrolamento permitiu compor uma
do previsto), sendo 428 entrevistas (86%) no
listagem com todos os 16.872 endereços dos
estrato de setores censitários sem vulnerabili-
domicílios de cada setor. A partir dessa lista-
dade social pelo IPVS e 487 (97%) no estrato
gem, procedeu-se a um sorteio sistemático
com setores com vulnerabilidade social.
Tabela 1 – Características sociodemográficas dos grupos de moradores
em setores censitários sem ou com vulnerabilidade social,
centro da cidade de São Paulo, 2008
Grupo sem vulnerabilidade
(% e IC95%)
Grupo com vulnerabilidade
(% e IC95%)
Idade
Jovem
Adulto jovem
Adulto
Idoso
10,2 (7,6 – 13,4)
35,6 (31,1 – 40,2)
33,0 (28,7 – 37,5)
21,2 (17,5 – 25 2)
17,1 (14,5 – 21,2)
44,1 (39,8 – 48,7)
29,2 (25,3 – 33,2)
9,0 (6,7 – 11 8)
Sexo
Masculino
Feminino
54,0 (49,2 – 58,6)
46,0 (41,4 – 50,8)
57,1 (52,7 – 61,4)
42,9 (38,6 – 47,4)
Escolaridade
Sem escolaridade
Ensino fundamental
Ensino médio
Ensino superior
0,9 (0,3 – 2,2)
16,6 (13,2 – 20,4)
20,8 (17,1 – 24,7)
61,7 (56,7 – 65,9)
5,7 (3,9 – 8,1)
52,0 (47,5 – 56,5)
30,4 (26,4 – 34,6)
11,9 (9,3 – 15,0)
Classes de consumo
E
D
C
B
A
4,4 (2,7 – 6,7)
43,6 (38,6 – 48,0)
17,8 (14,3 – 21,5)
21,1 (17,3 – 25,0)
13,1 (10,1 – 16,5)
24,1 (20,2 – 27,8)
66,6 (61,6 – 70,1)
6,4 (4,4 – 8,8)
2,3 (1,2 – 3,9)
0,6 (0,2 – 1,6)
Renda familiar (SM)
Até 1
1-2
3-5
6 - 10
11 ou mais
1,7 (0,7 – 3,2)
13,7 (10,1 – 16,5)
18,8 (14,5 – 21,8)
29,8 (24,3 – 32,8)
36,1 (30,0 – 39,0)
12,4 (9,1 – 14,8)
57,3 (49,6 – 58,4)
19,6 (15,2 – 22,1)
8,3 (5,7 – 10,5)
2,4 (1,2 – 3,9)
Característica
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016
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Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata
O grupo vulnerável era composto predo-
comportamentos e os estilos de vida condicio-
minantemente por indivíduos jovens e adultos
nados pela inserção social e pelo contexto local
jovens, sem escolaridade ou com ensino fun-
que podem ou não favorecer a prática de com-
damental, pertencentes aos estratos D e E das
portamentos saudáveis.
classes de consumo, com renda familiar inferior
a três salários mínimos.
O grupo sem vulnerabilidade social era
composto predominantemente por indivíduos
Vizinhança: contextos urbanos
da vida cotidiana
adultos e idosos, com escolaridade de nível superior, pertencentes às classes de consumo A, B
Vizinhança é um espaço geográfico demarcado
ou C, com renda familiar superior a cinco salá-
no qual os moradores compartilham as con-
rios mínimos.
dições de vida cotidiana (Boclin; Faerstein e
As condições de vizinhança constituem
Leon, 2014). O ambiente ou espaço construído
outro dos determinantes intermediários e re-
refere-se às qualidades estéticas, físicas e fun-
ferem-se ao entorno mais imediato no qual as
cionais dos bairros ou da vizinhança em que as
atividades da vida cotidiana se desenvolvem. A
pessoas vivem, incluindo o padrão de uso da
partir de 2007-2008, pela primeira vez na his-
terra, o padrão de construções e o arruamento
tória, metade da população mundial tornou-se
que juntos podem oferecer oportunidades ou
urbana e, embora a maioria do mundo desen-
colocar obstáculos para o deslocamento ativo
volvido tenha se tornado altamente urbanizado
das pessoas e para a prática de atividades fí-
há bastante tempo, as transformações mais rá-
sicas, além de acesso a alimentação saudável,
pidas e numericamente importantes ocorreram,
espaços de lazer e oferta de bens e serviços
na última década, nos países de renda média
(King e Clarke, 2015).
ou baixa (Vlahov, 2015).
Além das características mencionadas,
Esse processo acelerado de urbanização,
outros aspectos da vizinhança, tais como sen-
de forma desordenada e sem que a infraes-
sação de segurança para pedestres, ausência
trutura urbana fosse capaz de acompanhá-lo
de delitos, existência de edificações degrada-
representa um enorme desafio principalmente
das e pichações, a confiança nos vizinhos tam-
para os grupos socialmente mais vulneráveis,
bém contribuipara gerar um ambiente mais ou
em áreas em que as desvantagens ambientais,
menos saudável nas áreas urbanas (Jongennel-
sociais e econômicas de encontram concentra-
-Grimen et al., 2014).
das (ibid.).
Em pesquisas empíricas, a vizinhança ou
As desigualdades sociais apresentadas
ambiente construído tem sido operacionalizado
pelos distintos grupos urbanos evidenciam-se
através de seis dimensões: densidade residen-
também como desigualdades espaciais entre
cial, conectividade, acessibilidade a serviços e
os diferentes bairros e áreas de vizinhança,
destinos, facilidades para caminhada e ciclismo,
refletindo, em seu perfil epidemiológico, não
qualidade estética e segurança (Meng et al.,
apenas as diferenças de exposição a agentes
2014). Os mecanismos através dos quais a vizi-
físico, químicos e biológicos, mas também os
nhança pode influenciar o perfil epidemiológico
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016
Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física
dos moradores podem incluir processos de
A área central da cidade de São Paulo é
mediação, tais como estilo de vida, comporta-
bastante heterogênea quanto às características
mentos saudáveis, oportunidade para realizar
de vizinhança. Os setores censitários classifica-
atividades físicas, acesso a alimentos saudáveis
dos nos estratos de média, alta ou muito alta
e a serviços de saúde, além de efeitos das nor-
vulnerabilidade social apresentam caracterís-
mas sociais locais ou de efeitos cumulativos do
ticas muito distintas daqueles classificados no
stress crônico (Boone-Heinonen et al., 2011)
estrato de baixíssima vulnerabilidade social.
Tabela 2 – Aspectos de vizinhança dos grupos
sem ou com vulnerabilidade social no centro da cidade de São Paulo, 2008
Grupo sem vulnerabilidade
(% e IC95%)
Grupo com vulnerabilidade
(% e IC95%)
Satisfação com o bairro
Insatisfeito
Satisfeito
Muito satisfeito
1,4 (0,5 – 2,8)
73,7 (69,4 – 77,7)
24,9 (20,9 – 29,1)
18,4 (15,1 – 22,0)
70,5 (66,2 – 74,3)
11,2 (8,5 – 14,2)
Ruas pouco iluminadas
Não
Sim
74,1 (69,8 – 78,1)
25,9 (21,9 – 30,2)
43,3 (38,9 – 47,7)
56,7 (52,3 – 61,1)
Há muito barulho
Não
Sim
35,3 (30,9 – 40,0)
64,7 (60,0 – 69,1)
43,6 (39,3 – 48,1)
56,4 (51,9 – 60,7)
Há poluição ambiental
Não
Sim
15,1 (11,9 – 18,7)
84,9 (81,3 – 88,0)
13,2 (10,4 – 16,4)
86,8 (83,5 – 89,6)
Há lixo e entulho nas ruas
Não
Sim
60,1 (55,4 – 64,7)
39,9 (35,3 – 44,5)
25,3 (21,5 - 29,3)
74,7 (70,6 – 78,4)
Faltam espaços verdes
Não
Sim
48,1 (43,4 – 52,8)
51,9 (47,1 – 56,5)
28,2 (24,3 – 32,3)
71,8 (67,6 – 75,6)
Há risco para pedestres e/ou ciclistas
Não
Sim
13,6 (10,5 – 17,0)
86,4 (82,8 – 89,5)
24,1 (20,4 – 28,0)
75,9 (78,5 – 85,3)
Caminhar à noite dá sensação de:
Muita segurança
Segurança
Insegurança
4,7 (2,9 – 7,0)
17,3 (13,9 – 21,1)
78,0 (73,9 – 81,7)
4,1 (2,6 – 6,2)
21,3 (17,8 – 25,1)
74,5 (70,5 – 78,2)
Medo de assalto
Todo o tempo
Frequentemente
Nunca
5,8 (3,8 – 8,3)
68,3 (63,7 – 72,5)
25,9 (21,9 – 30,1)
20,5 (17,2 – 24,3)
44,4 (39,9 – 48,7)
35,1 (30,9 – 39,4)
Aspectos
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407
Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata
O grupo com vulnerabilidade social ava-
Vizinhanças mais degradadas são menos
liou sua vizinhança como pouco iluminada,
atrativas para pessoas com renda mais alta,
mais barulhenta, com presença de lixo e entu-
levando, assim, a um processo de segregação
lho nas ruas, sem espaços verdes como parques
espacial no qual as pessoas com melhores
e jardins, com maior risco para pedestres e ci-
condições socioeconômicas tendem a residir
clistas, insegura à noite, e maior proporção de
em espaços urbanos que apresentam melho-
pessoas relatou ter medo de assalto o tempo
res condições estéticas, físicas e de segurança
todo, quando comparado com o grupo sem vul-
(Hofelmann et al., 2013)
nerabilidade social. Mesmo assim os morado-
Nos dados da área central da cidade de
res referiram estarem satisfeitos com o bairro
São Paulo, chama à atenção a grande sensa-
em que vivem, embora maior proporção, em
ção de insegurança referida pelos moradores
comparação ao grupo sem vulnerabilidade, re-
dos dois grupos. Praticamente não há diferen-
feriu estar insatisfeita.
ças importantes entre os grupos com relação
Vizinhança sem vulnerabilidade
Vizinhança com vulnerabilidade
As vizinhanças nestas áreas não vulneráveis
tende a ser arborizadas com calçadas e ruas
limpas e em bom estado.
No geral são áreas residenciais com comércio e
serviços locais.
As vizinhanças em áreas vulneráveis são pouco
ou nada arborizadas. Espaços verdes são
menos frequentes e em pior estado de conservação. As calçadas e as ruas são mais degradadas.
Não há lixo na rua e as edificações estão em
bom estado.
Há lixo na rua e as edificações mais simples apresentam um estado razoável de conservação.
Moradores em situação de rua são ocasionalmente encontrados nesta vizinhança.
Moradores em situação de rua, profissionais do
sexo e usuários de drogas são compõem um
contingente importante de excluídos em
uma área vulnerável.
Pichações ocasionais compõem uma paisagem
urbana, estruturada que passa uma sensação de segurança.
408
Pichações são frequentes nessa paisagem urbana e degradada.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016
Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física
à sensação de segurança para andar à noite
físicos, violência urbana e sensação de insegu-
pela vizinhança e ao medo de assalto. Embo-
rança são aspectos que podem reduzir a pro-
ra este seja mais intenso no grupo socialmente
porção de adultos ativos (Jongennel-Grimen
vulnerável, também é bastante expressivo no
et al., 2014; Fernandes et al., 2015; Johnson-
grupo não vulnerável. Assim, como muitos au-
-Lawrence et al., 2015).
tores mencionam, a percepção das condições
Se considerarmos o ambiente urbano de
de vizinhança deve ser considerada além das
grandes cidades como um determinante estru-
características materiais do ambiente construí-
tural no processo saúde-doença e a posição
do, já que aparentemente mensura dimensões
social dos indivíduos (vulnerabilidade social) e
diferentes (ibid.).
o espaço socialmente construído onde habitam
(vizinhança) como determinantes intermediários que condicionam o cotidiano dos grupos
Atividade física:
vulnerabilidade e vizinhança
e dos indivíduos que os compõem, a atividade
física pode ser pensada como um determinante
proximal, decorrente do comportamento em re-
Inatividade, obesidade, tabagismo e consumo
lação à saúde moldado pelos processos sociais
de álcool estão entre os fatores de risco rela-
de nível intermediário e pela macroestrutura.
cionados aos comportamentos e estilos de vi-
Na amostra estudada pelos autores,
da que participam da determinação social das
havia 25,6% (IC95%: 22,9 – 28,5) de adultos
doenças crônicas e problemas de saúde mental
inativos, 41,1% (IC95%: 38,0 – 44,3) de adul-
(Zanchetta, 2010).
tos pouco ativos e 33,3% (IC95%: 30,3 – 36,4)
Atividade física é um comportamento
de adultos ativos. No inquérito de saúde de
que envolve diferentes atividades executadas
adultos da Califórnia (Meyer; Castro-Schilo e
no ambiente de trabalho, no trajeto para o tra-
Aguilar-Gaxiola, 2014), em 2009, a prevalên-
balho ou na realização de serviços domésticos
cia de pessoas ativas (20,0%) foi menor do
e também no lazer. Combinando a intensidade
que a observada na amostra do centro de São
e a duração dos diferentes tipos de atividades
Paulo, a proporção de pessoas pouco ativas foi
físicas, é possível classificar os indivíduos em
semelhante (44,0%) e a de inativos foi mais
inativos, pouco ativos e ativos.
alta (36,0%).
No cotidiano das grandes cidades, a ado-
O nível de atividade física foi medido
ção de um estilo de vida ativo não depende
por meio da aplicação International Physical
apenas do conhecimento sobre os benefícios
Activity Questionnaire (Ipaq) versão curta, que
indaga sobre as atividades realizadas na última
semana, levando-se em consideração o tempo
e a intensidade.
Os moradores da área central da cidade
de São Paulo mostram distribuição diferente do
grau de atividade física e também na composição dessa atividade entre trabalho ou lazer.
que a atividade física pode trazer, mas principalmente das condições concretas para sua
prática por diferentes grupos sociais. A ausência de equipamentos e espaços sociais para a
prática de esportes e exercícios físicos, poluição
sonora e atmosférica, excesso de tráfego de
veículos motorizados, degradação dos entornos
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Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata
Tabela 3 – Grau de atividade física, atividade física no trabalho
e ter carro para moradores da área central da cidade de São Paulo,
grupo sem ou com vulnerabilidade social, 2008
Atividade física
RP* (IC95%)
Grupo sem vulnerabilidade
Grupo com vulnerabilidade
Grau de atividade
Inativo
Pouco ativo
Ativo
0,5 (0,4 – 0,6)
0,8 (0,7 – 1,0)
2,0 (1,6 – 2,6)
34,4 (30,0 – 39,0)
44,2 (39,5 – 48,9)
21,4 (17,7 – 25,5)
17,9 (14,7 – 21,5)
38,4 (34,1 – 42,8)
43,7 (39,4 – 48,2)
No trabalho
Não
Sim
0,3 (0,2 – 0,4)
1,9 (1,6 – 2,3)
59,5 (54,8 – 64,1)
40,5 (35,9 – 45,2)
20,7 (17,3 – 24,5)
79,3 (75,5 – 82,7)
Carro
Nenhum
Um
Dois ou mais
2,1 (1,8 – 2,6)
0,4 (0 3 – 0,5)
0,2 (0,1 – 0,4)
35,5 (31,1 – 40,1)
47,9 (43,2 – 52,6)
16,6 (13,3 – 20 3)
76,9 (73,0 – 80,5)
19,0 (15,7 – 22,6)
4,1 (2,6 – 6,2)
* Razão de prevalência.
A posse de carro pode reduzir a atividade física
melhor vizinhança e maior atividade física, no
nos deslocamentos ativos e também apresenta
entanto é preciso considerar que o grupo sem
distribuição desigual entre os grupos.
vulnerabilidade social tinha distribuição etária
A razão de prevalência permite compa-
com menor proporção de jovens e maior pro-
rar as duas distribuições considerando o grupo
porção de idosos, o que afeta a distribuição do
sem vulnerabilidade social como o grupo de
grau de atividade.
referência, ou seja, aquele não exposto a con-
Dos adultos entrevistados, 72% disseram
dições sociais adversas. É possível observar que
estar satisfeitos com as condições do bairro em
o grupo com vulnerabilidade social apresentou
que moravam. No entanto, 42% mencionaram
menor probabilidade de ter indivíduos inativos
que as ruas são pouco iluminadas, 60% afir-
(valor menor que 1,0) e maior probabilidade
maram haver muito barulho, 86% poluição do
de ter indivíduos ativos (valor maior que 1,0).
ar, 58% presença de lixo ou entulho nas ruas
Quanto aos indivíduos pouco ativos, eles tive-
e 62% consideram que faltam parques, jardins
ram proporção semelhante nos dois grupos (di-
e outros espaços verdes em sua vizinhança.
ferenças não significativas).
Quanto à percepção de aspectos relativos à se-
Os resultados também mostram que o
gurança, 81% acreditam que as ruas e calçadas
grupo com vulnerabilidade social tem maior
oferecem riscos para os pedestres, 76% sentem-
probabilidade de ser ativo no trabalho e/ou no
-se inseguros de andar à noite na vizinhança e
trajeto para ele, uma vez que foi mais provável
56% têm frequentemente medo de ter a casa
para esses indivíduos não terem carro.
assaltada. Desse modo, as condições na área
Os dados parecem contradizer a associação esperada entre melhores condições sociais,
410
estudada parecem pouco propícias às atividades físicas no lazer em sua própria vizinhança.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016
Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física
Tabela 4 – Prevalência de atividade física segundo características
da vizinhança de moradores da área central da cidade de São Paulo, 2008
Vizinhança
Inativo
Pouco ativo
Ativo
Satisfação com o bairro
Insatisfeito
Satisfeito
Muito satisfeito
15,8 (9,4 – 24,1)
26,6 (23,3 – 30,1)
26,7 (20,3 – 33,9)
36,8 (27,6 – 46,8)
43,0 (39,3 – 46,8)
36,6 (29,5 – 44,3)
47,4 (37,5 – 57,4)
30,4 (26,9 – 33 9)
36,6 (29,5 – 44,3)
Ruas pouco iluminadas
Não
Sim
29,4 (25,6 – 33,4)
19 ,9 (16,2 – 24,3)
40,7 (36,6 – 45,0)
42,0 (37,1 – 46,9)
29,9 (26,1 – 33,9)
38,1 (33,3 – 43,0)
Há muito barulho
Não
Sim
29,9 (25,4 – 34,8)
22,8 (19,5 – 26,5)
37,6 (32,8 – 42,7)
43,5 (39,4 – 47,6)
32,4 (27,7 – 37,4)
33,7 (29,8 – 37,7)
Há poluição ambiental
Não
Sim
26,4 (19,3 – 34,5)
25,4 (22,5 – 28,6)
41,9 (33,6 – 50,5)
41,0 (37,6 – 44,4)
31,8 (24,2 – 40,2)
33,6 (30,4 – 37,0)
Há lixo e entulho nas ruas
Não
Sim
32,0 (27,5 – 36,8)
21,2 (17,9 – 24,8)
36,2 (31,5 – 41,1)
44,8 (40,4 – 48,9)
31,8 (27,2 – 36,5)
34,3 (30,3 – 38,4)
Faltam espaços verdes
Não
Sim
30,5 (25,8 – 35,5)
22,7 (19,4 – 26,3)
43,0 (37,8 – 48,3)
39,9 (35,9 – 43,9)
26,5 (22,0 – 31,3)
37,4 (33,5 – 41,4)
Há riscos para pedestres e/ou ciclistas
Não
Sim
24,0 (18,1 – 30,7)
26,0 (22,9 – 29,2)
41,1 (34,0 – 48,5)
41,0 (37,5 – 44,5)
34,9 (28,1 – 42,1)
33,0 (29,7 – 36,5)
37,5 (23,6 – 53,1)
46,9 (39,6 – 54,3)
40,1 (36,5 – 43,7)
40,0 (25,8 – 55,6)
39,0 (32,0 – 46,3)
31,6 (28,2 – 35,1)
47,2 (38,6 – 56,0)
41,8 (37,6 – 46,2)
37,2 (31,7 – 42,9)
36,8 (28,7 – 45,5)
26,9 (23,2 – 30,9)
42,9 (37,2 – 48,7)
Caminhar à noite dá sensação de:
Muita segurança
Segurança
Insegurança
22,5 (11,6 – 37,3)
14,1 (9,5 – 19,8)
28,4 (25,1 – 31,8)
Medo de assalto
Todo o tempo
Frequentemente
Nunca
16,0 (10,3 – 23,2)
31,2 (27,3 – 35,4)
19,9 (15,5 – 24,8)
Alguns resultados parecem contradizer
de iluminação, o barulho, a poluição do ar e a
o senso comum, no entanto é preciso consi-
presença de lixo nas ruas não parecem alterar
derar que predominam condições insatisfató-
a distribuição dos níveis de atividade dos in-
rias, e parte considerável da atividade física,
divíduos. Entretanto, os dados não permitem
nessa população, relaciona-se com o trabalho
avaliar se haveria maior proporção de pessoas
e não com o lazer. Assim, a satisfação com a
ativas caso as condições de vizinhança fossem
vizinhança não parece estar associada ao nível
mais favoráveis. Coerentemente, os mais ativos
de atividade física, provavelmente porque a sa-
foram aqueles que mais perceberam a falta de
tisfação pode estar referida a outros aspectos
espaços verdes. Como a maioria dos entrevista-
que não as condições físicas do entorno. A falta
dos considerou que as ruas são pouco seguras
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016
411
Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata
para os pedestres, essa percepção não parece
naquelas consideradas mais insatisfatórias,
alterar a distribuição dos níveis de atividade fí-
sugerindo que a necessidade de deslocamen-
sica. Novamente, não foi possível avaliar se a
to, provavelmente para o trabalho, impõe-se
proporção de ativos seria maior em condições
aos grupos com maior vulnerabilidade social.
de menor risco. Em San Diego, Califórnia, auto-
Em locais em que as condições são melhores,
res observaram que a percepção de segurança
a sensação de insegurança desempenha um
ou o risco para os pedestres foi menos relevan-
papel importante na redução da prática da ati-
te para determinar os níveis de atividade física
vidade física.
do que as condições das calçadas (Bracy et al.,
Em Curitiba, analisando apenas atividade
2014). Em Chicago, para os participantes do
física no lazer e caminhadas em particular, os
estudo multiétnico de aterosclerose (Mesa),
autores encontraram associação entre os níveis
os autores observaram que alterações na per-
de atividade física no lazer e a sensação de
cepção de segurança ou nos registros policiais
segurança, aspectos estéticos da vizinhança e
sobre crimes não estavam associadas com o
acesso a espaços como parques e jardins (Rech
transporte ativo ou atividade física no lazer,
et al., 2014).
exceto em áreas em que houve aumento de
Estudo multicêntrico envolvendo 16 cida-
assassinatos, nas quais foram observados gran-
des em 11 países, incluindo Curitiba no Brasil,
des declínios no deslocamento ativo dos mo-
encontrou grande variabilidade nos níveis de
radores (Kerr et al., 2015). Finalmente, a per-
atividade física em modelos ajustados e não
cepção de insegurança para andar à noite e o
ajustados para as características de vizinhança.
medo frequente de assalto parecem reduzir de
A variável que mostrou a maior correlação com
modo significativo entre a proporção de ativos,
níveis satisfatórios de atividade física foi o uso
ou as pessoas mais ativas tendem a perceber
misto, residencial e comercial, do espaço cons-
sua vizinhança como segura.
truído. A sensação de segurança na vizinhança
Resultados semelhantes foram observa-
foi mais importante para alcançar níveis mais
dos em Detroit (Kwarteng et al., 2013), onde
altos de atividade física. Os aspectos estéticos
apenas as condições das calçadas mostraram
como encorajadores da prática de atividade fí-
associação com o nível de atividade física. Em
sica são particularmente importantes em cida-
Calgary (Jack e MCCormack, 2014), os pesqui-
des norte-americanas (ibid.)
sadores observaram que há boa correspondên-
Tendo em vista que, na área central
cia entre as informações dos entrevistados e a
da cidade de São Paulo, as condições de vi-
observação direta sobre as condições de vizi-
zinhança são distintas nos setores censitários
nhança. Entretanto, notaram maior influência
sem vulnerabilidade e naqueles classificados
dessas condições sobre o transporte ativo do
como tendo média, alta ou altíssima vulnera-
que sobre as atividades físicas no lazer, princi-
bilidade social e que os resultados observados
palmente no que se refere à duração. Como no
em diferentes cidade e grupos populacionais
estudo realizado em São Paulo, o nível de ati-
são muito variáveis, é provável que a me-
vidade física foi menos influenciado pelas ca-
diação exercida pelas condições de vizinhan-
racterísticas físicas de vizinhança exatamente
ça sobre os níveis de atividade física varie
412
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016
Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física
para esses diferentes grupos populacionais
funcionários de uma universidade pública ca-
(Boclin, Faerstein e Leon, 2014). Além disso,
rioca (ibid.). Algumas das características de
é importante lembrar que, nos setores sem
vizinhança, como a percepção ou não de po-
vulnerabilidade, a atividade física distribuía-
luição atmosférica e de risco para pedestres
-se igualmente entre atividade no trabalho e
e ciclistas, não mostraram associação com os
no transporte ativo, por um lado, e lazer, por
níveis de atividade física em ambos os grupos.
outro; enquanto nos setores vulneráveis ape-
Ou seja, tanto nos setores sem vulnerabilida-
nas um quarto das atividades físicas estavam
de social quanto naquele com vulnerabilidade
associadas ao lazer. Resultados semelhantes
social, a distribuição dos níveis de atividade
foram encontrados no estudo Pró-Saúde em
física não foi afetada.
Tabela 5 – Nível de atividade física segundo características de vizinhança
para grupo sem ou com vulnerabilidade social
na área central da cidade de São Paulo, 2008
Vulnerabilidade e vizinhança
Inativo
Pouco ativo
Ativo
Satisfação com o bairro
Insatisfeito*
Satisfeito
Muito satisfeito
33.3
36.9 (31.7 – 42.3)
27.1 (19.3 – 36.1)
50.0
44.8 (39.4 – 50.3)
42.1 (32.9 – 51.5)
16.7
18.5 (14.3 – 22.8)
30.8 (22.6 – 40.1)
Ruas pouco iluminadas
Não
Sim
39.0 (33.7 – 44.4)
20.7 (13.9 – 29.0)
41.2 (35.9 – 46.7)
53.2 (43.9 – 62.3)
19.8 (15.7 – 24.5)
26.1 (18.6 – 34.8)
Lixo e entulho nas ruas
Não
Sim
38.4 (32.5 – 44.4)
28.7 (22.3 – 35.8)
38.0 (32.2 – 44.0)
53.8 (46.3 – 61.2)
23.6 (18.7 – 29.1)
17.5 (12.4 – 23.8)
Caminhar à noite dá sensação de:
Muita segurança*
Segurança
Insegurança
35.0
17.6 (10.1 – 27.5)
38.0 (32.9 – 43.3)
40.0
52.7 (41.3 – 63.8)
42.5 (37.2 – 47.8)
25.0
29.7 (20.1 – 40.8)
19.5 (15.5 – 23.9)
Medo de assalto
Todo o tempo*
Frequentemente
Nunca
28.0
39.9 (34.4 – 45.6)
21.6 (14.7 – 30.0)
64.0
42.3 (36.8 – 48.0)
45.0 (36.0 – 54.3)
8.0
17.7 (13.7 – 22.4)
33.3 (25.0 – 42.4)
Há muito barulho
Não
Sim
25,0 (19.5 – 31.1)
12,4 (8.9 - 16.7)
33,5 (27.3 – 40.1)
42,3 (36.6 – 48.2)
41,5 (35.0 – 48.2)
45,3 (39.4 – 51.2)
Faltam espaços verdes
Não
Sim
21,9 (15.6 – 29.4)
16,3 (12.7 – 20.5)
40.9 (32.8 – 49.3)
37,2 (32.3 – 42.4)
37.2 (29.4 – 45.5)
46,4 (41.2 – 51.7)
Sem vulnerabilidade
Com vulnerabilidade
* número muito pequeno.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016
413
Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata
Outras características mostraram asso-
menor de inativos justamente para os que re-
ciação em apenas um dos grupos. A maioria
feriram considerar as ruas pouco iluminadas
delas não alterou a distribuição dos níveis de
(RP=0.53 IC95%: 0.33-0.82). Esse resultado
atividade física nos setores censitários vulne-
poderia também estar indicando que justamen-
ráveis, enquanto várias foram relevantes nos
te os indivíduos mais ativos valorizam mais a
setores censitários não vulneráveis.
questão da iluminação das ruas.
Os resultados do inquérito de saúde da
A presença de lixo e entulho nas ruas
Califórnia, em população adulta, reforçaram a
esteve associado apenas no caso das pessoas
hipótese de que altos níveis socioeconômicos
pouco ativas, em que a proporção foi maior
estavam associados com maior sensação de
exatamente nos locais com maior presença de
segurança e com maior atividade física no la-
lixo e entulho nas ruas. Para os ativos e os ina-
zer, que, por sua vez, estava associada a me-
tivos, as diferenças não foram significativas.
lhor estado de saúde autorreferido e melhor
A sensação de segurança para caminhar
saúde mental. Os autores verificaram, ainda,
à noite pelo bairro influenciou a proporção
que o modelo foi válido independentemente da
de inativos na direção esperada, isto é, a pro-
idade, do gênero e da etnia. No nosso estudo,
porção de inativos foi maior nas áreas consi-
considerando a atividade física total, os maio-
deradas mais inseguras (RP=2,16 IC95%:1,26
res níveis foram observados para os grupos
– 3,99). Para as pessoas ativas, observou-se
socialmente vulneráveis, e a associação com
distribuição contrária, porém, dado o pequeno
sensação de segurança só foi significativa no
número delas, a razão de prevalência não foi
grupo não vulnerável (Meyer, Castro-Schilo e
significativa. Estudo realizado em Cuernavaca,
Aguilar-Gaxiola, 2014).
no México, no qual os setores censitários foram
A satisfação com a vizinhança só este-
estratificados em oito grupos de acordo com
ve associada aos níveis de atividade física nos
dados socioeconômicos e condições favorá-
setores censitários sem vulnerabilidade social.
veis à caminhada, os autores observaram que
Como poucos indivíduos disseram estar insa-
o nível de atividade física referente ao deslo-
tisfeitos com seu bairro, as diferenças foram
camento ativo não se associou à percepção de
observadas para aqueles satisfeitos versus os
segurança do bairro. Entretanto, como a amos-
muito satisfeitos. Os indivíduos pouco ativos
tra era pequena, os dados devem ser analisa-
foram a categoria mais frequente em ambos
dos com cautela (Salvo et al., 2014).
os subgrupos, e a diferença entre eles ocor-
Com relação ao medo de assalto, obser-
reu em relação aos ativos que foram mais fre-
vou-se maior proporção de inativos nas áreas
quentes entre os muito satisfeitos (RP=1,69
em que os indivíduos têm frequentemente me-
IC95%:1,09-2,58),
do de assaltos (RP=1,85 IC95%:1,21 – 2,92) e
Quanto à iluminação das ruas, o resulta-
maior proporção de ativos nas áreas em que
do foi paradoxal, sugerindo a interferência de
os indivíduos referiam nunca ter medo de as-
fatores de confusão. Não houve diferença sig-
saltos (RP=1,87 IC95%:1,22-2,86). A chance
nificante para pouco ativos e ativos segundo
de ter indivíduos inativos foi 1,85 vezes maior
iluminação das ruas, e observou-se proporção
nas áreas em que eles têm medo de assaltos
414
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016
Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física
enquanto a chance de ter indivíduos ativos foi
associada foi a observação de outros mora-
1,87 vezes maior nas áreas em que eles nunca
dores caminhando na área (Timperio, Veitch e
têm medo.
Carver, 2015).
Para os setores censitários com vulnera-
Como muitas das características de vizi-
bilidade social, apenas dois aspectos estiveram
nhança apresentam alguma correlação entre
associados com o nível de atividade física: ruí-
si e a atividade física pode sofrer a influência
do e falta de espaços de lazer, como parques e
de características sociodemográficas dos mo-
jardins. A referência a excesso de barulho, prin-
radores além das influências contextuais da
cipalmente relacionado ao tráfego de veículos,
vizinhança e da vulnerabilidade social, os resul-
associou-se com a proporção de inativos, mas
tados foram modelados através de uma regres-
na direção contrária ao esperado, uma vez que
são nominal, a fim de identificar a importância
foram observados mais inativos nas áreas em
das diferentes variáveis sobre o nível de ativi-
que o ruído não foi considerado um problema.
dade física.
Para os pouco ativos e ativos não houve diferença significativa quanto ao ruído.
Para os moradores nos setores censitários vulneráveis, o nível de atividade física só
Com relação à falta de espaços para a
mostrou associação com idade, nível de ruído e
prática de atividades físicas no lazer, como par-
falta de espaços verdes na vizinhança. Apenas
ques, jardins e outros, a maioria reconheceu a
entre os idosos observou-se menor proporção
escassez desses espaços no bairro. A diferença
de ativos e maior de inativos, mas a amostra
entre aqueles que perceberam essa falta e os
era constituída por apenas 44 idosos, número
demais não foi significativa para nenhum dos
insuficiente para a modelagem. Quanto à asso-
níveis de atividade física.
ciação com ruído, ela foi contraditória havendo
Em inquérito realizado com população
menos inativos nas áreas mais barulhentas. A
adulta de três cidades norte-americanas, a
percepção da falta de espaços verdes, embora
única associação significativa encontrada foi
significativa em termos de ocorrência, não se
entre percepção de segurança para pedestres e
mostrou significante na força de associação. Os
transporte ativo. No entanto, tal associação só
autores optaram então por não fazer a modela-
foi verificada para indivíduos com maior grau
gem para esse grupo.
de escolaridade e maior renda (Carlson, 2014).
Para os moradores nos setores censitários
Em amostra de mulheres em idade repro-
não socialmente vulneráveis, os níveis de ativi-
dutiva, residentes em áreas socialmente vulne-
dade física foram ajustados por idade, gênero,
ráveis, no estado de Victoria na Austrália, os au-
escolaridade, nível de consumo, ter carro, renda
tores encontraram 44,2% de mulheres ativas,
familiar e características de vizinhança, exceto
valor semelhante ao observado em São Paulo
ruído, poluição e espaços verdes que não mos-
para o grupo vulnerável. O nível de atividade
traram associação na análise bivariada.
física nesse grupo se associou positivamen-
Após o ajuste realizado através do mode-
te com a percepção de segurança pessoal no
lo de regressão, as variáveis que se associaram
bairro e com o nível de confiança nos vizinhos.
com o nível de atividade física foram identifica-
Outra variável que se mostrou positivamente
das para pessoas pouco ativas e pessoas ativas.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016
415
Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata
Tabela 6 – Razão de chances e intervalo de confiança de 95% para a associação
entre características sociodemográficas e vizinhança e nível de atividade física
para moradores dos setores censitários sem vulnerabilidade social obtidos
por meio de Regressão Logística Multinomial*
Variáveis
Odds Ratio
IC95%
Pouco Ativo
Homens
Sem carro
Sensação de segurança à noite
2,90
5,52
3,14
1,78 – 4,72
2,56 – 11,91
1,48 – 6,67
Ativo
Homens
Sem carro
Sensação de segurança à noite
2,85
6,85
2,62
1,58 – 5,15
2,73 – 17,17
1,11 – 6,14
*Regressão Logística Multinomial é uma técnica estatística utilizada em análise multivariadas para investigar a associação de
um conjunto de variáveis independentes e uma variável desfecho com três ou mais categorias. No caso, a variável desfecho é
o nível de atividade física e a categoria inativo foi utilizada como referência.
Portanto, das variáveis analisadas, após o
residência (crimes, roubos, tráfico de drogas e
ajuste para as demais, foram associadas posi-
homicídios) não mostraram associação com ne-
tivamente com o nível de atividade física: ser
nhum dos tipos de atividade física (Mendes et
homem, não ter carro e se sentir seguro para
al., 2014).
andar à noite em sua vizinhança. Não mostra-
As relações entre nível socioeconômico,
ram associação a idade, a escolaridade, a renda
características de vizinhança e atividade físi-
familiar, o nível de consumo e as característi-
ca são bastante complexas e difíceis de serem
cas físicas da vizinhança. As mesmas variáveis
apreendidas adequadamente. As motivações
aumentaram a chance de ser pouco ativo em
para a prática de atividade física e as condições
comparação com os inativos ou de ser ativo,
objetivas para seu exercício são distintas nos
isto é, alcançar os níveis de atividade física
diferentes grupos sociais. Entre a população
considerados mínimos para produzir impactos
mais vulnerável, a maior parte da atividade fí-
positivos sobre a saúde em geral.
sica está relacionada com o trabalho. Esse fato
Em Pelotas, os autores identificaram co-
tem duas implicações importantes: primeiro, ao
mo mais ativos no lazer os homens com maior
considerar em inquéritos populacionais, reali-
nível de escolaridade, renda mais alta e resi-
zados em países de média ou baixa renda, a ta-
dentes na área central da cidade. Com relação
xa de pessoas inativas, pouco ativas ou ativas,
ao transporte ativo, os autores encontraram
sem separar os diferentes grupos sociais, as
como mais ativos os homens mais jovens e
medidas tenderão a estar superestimadas, uma
com menor renda média. As variáveis relati-
vez que a maioria da população pertence aos
vas à percepção de insegurança no bairro de
grupos com piores condições socioeconômicas;
416
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016
Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física
segundo, a atividade física despendida no tra-
Por fim, é preciso ainda considerar as li-
balho parece desestimular a prática de ativida-
mitações próprias de estudos transversais de-
de física no lazer, como uma espécie de meca-
senvolvidos por meio de inquérito domiciliar.
nismo de compensação.
Um aspecto é o chamado viés de sobrevivência,
Assim, para os grupos mais vulneráveis,
ou seja, apenas indivíduos não institucionaliza-
as características físicas da vizinhança parecem
dos e vivos, no momento da pesquisa, podem
não ter importância no estímulo ou desestímu-
ser alcançados pelas entrevistas. Essa seleção
lo de atividade física no lazer, com exceção tal-
poderia subestimar as associações estudadas.
vez do grupo mais jovem.
Outro aspecto foi a taxa de recusa maior entre
Para os grupos com melhores condições
as pessoas com melhores condições de vida.
socioeconômicas, a atividade física total é di-
O processo de amostragem buscou minimizar
vidida entre atividade física no trabalho e no
esse efeito. Houve, contudo, menos entrevistas
lazer, podendo haver maior influência do con-
em estratos sem vulnerabilidade social. Acre-
texto de vizinhança sobre a atividade no lazer.
ditamos, no entanto, que a comparação entre
No entanto, esse grupo, justamente por sua
os estratos não deve ter sido influenciada por
situação econômica, pode fazer uso de outros
esse aspecto, diferentemente do que ocorreria
recursos, tais como clubes, parques e outros es-
na produção de uma estimativa geral.
paços de lazer que não necessariamente este-
De todo modo, é importante considerar,
jam localizados no bairro de residência. Em um
quando se trata de saúde urbana, a complexi-
município como São Paulo, com alta densida-
dade dos processos sociais e ambientais que
de de edificações nos bairros situados na área
podem contribuir para a manutenção do esta-
central, é menos provável a existência desses
do de saúde ou para a produção das doenças
equipamentos públicos ou privados no bairro
nos diferentes grupos sociais que comparti-
de residência.
lham o espaço urbano.
Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro
Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Departamento de Saúde Coletiva. São
Paulo, SP/Brasil.
[email protected]
Rita Barradas Barata
Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Departamento de Saúde Coletiva. São
Paulo, SP/Brasil.
[email protected]
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016
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Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, Rita Barradas Barata
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Texto recebido em 16/fev/2016
Texto aprovado em 6/abr/2016
420
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 401-420, jul 2016
Desigualdade social intraurbana:
implicações sobre a epidemia
de dengue em Campinas, SP, em 2014
Intra-urban social inequality: implications
for the dengue epidemic in Campinas, SP, in 2014
Igor Cavallini Johansen
Roberto Luiz do Carmo
Luciana Correia Alves
Resumo
Este trabalho investiga se a segmentação dos
grupos sociais no tecido urbano, com acesso diferenciado aos recursos e serviços da cidade, pode
influenciar na distribuição espacial e temporal dos
casos de dengue. O local de estudo é o município
de Campinas, no estado de São Paulo, no qual
foram analisados os casos de dengue notificados
durante os meses de janeiro a dezembro do ano
de 2014. Para tanto, foram aplicadas ferramentas
de geoprocessamento e análise espacial. As conclusões indicaram que a desigualdade social pode
estar condicionando a distribuição dos casos de
dengue em conjunto com outros fatores que contribuíram à deflagração da maior epidemia registrada
na história de Campinas até então.
Abstract
This paper investigates whether the segmentation
of social groups in the urban fabric, with
differential access to the city’s resources and
services, can influence the spatial and temporal
distribution of dengue cases. The study’s site is the
city of Campinas, state of São Paulo, in which we
analyzed the dengue cases reported from January
to December 2014. For this purpose, geoprocessing
and spatial analysis tools were applied. The
findings indicated that social inequality could be
conditioning the distribution of dengue cases in
conjunction with other factors that contributed to
the occurrence of the largest epidemic recorded in
Campinas so far.
Palavras-chave: urbanização; desigualdade social;
dengue; Campinas; análise espacial.
Keywords: urbanization; social inequality;
dengue; Campinas; spatial analysis.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3606
Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves
Introdução
processo de urbanização acelerado, incompleto
A dengue representa um grande problema de
to, 2003; Bueno, 2008; Rolnik, 2009).
e desigual (Costa e Monte-Mor, 2002; Marica-
saúde pública em regiões tropicais e subtropi-
Essas condições ambientais urbanas
cais do planeta. Trata-se de uma doença viral
favoráveis ao vetor da dengue são também
transmitida por mosquitos que apresentou um
potencializadas pela gestão inadequada dos
aumento de 30 vezes em sua incidência global
ambientes domésticos por parte da própria po-
nos últimos 50 anos. A Organização Mundial
pulação, que não atribui a atenção necessária à
de Saúde estima que ocorram entre 50 e 100
água acumulada em vasos de plantas, baldes e
milhões de infecções a cada ano e que quase
calhas. Conjuntamente, (des)organização urba-
metade da população mundial reside em países
na e comportamento humano são fatores-cha-
onde a dengue é endêmica (OMS, 2012).
ve para compreender a manutenção e expan-
Os mosquitos vetores dessa doença, o
são do vetor da dengue nas cidades da América
Aedes aegypti e o Aedes albopictus, são altamente adaptados às dinâmicas sociais e ao
ambiente das cidades, o que faz da dengue
uma enfermidade típica de áreas urbanas com
características específicas. O desenvolvimento
do mosquito necessita de espaços com água
parada e limpa, apesar de também já terem
sido encontrados ovos do vetor em água suja,
o que demonstra sua grande capacidade adaptativa a condições adversas (Tauil, 2002; Andrade, 2009).
O padrão de urbanização brasileiro e
latino-americano baseia-se na distribuição
desigual do acesso aos recursos e serviços urbanos entre os grupos sociais que ocupam os
diferentes espaços intraurbanos. Cita-se, a título de ilustração, o abastecimento irregular de
água, assim como a coleta de lixo que, quando existe, é quase sempre acompanhada pela
destinação inadequada – como lixões a céu
aberto em vez de aterros sanitários. Em geral
os grupos populacionais com acesso restrito à
infraestrutura urbana são aqueles em piores
condições socioeconômicas e residentes em
áreas de ocupação, espaços produzidos por um
Latina como um todo e no Brasil em particular
422
(Satterthwait, 1993; Castro, 2012; OMS, 2012).
Vários pesquisadores analisaram as
epidemias de dengue no Brasil. Barreto et al.
(2011) indicaram que as taxas de incidência e
o número de municípios com alta densidade
de mosquitos aumentaram dramaticamente
no País durante os últimos 30 anos. Isso ocorre
porque o número de municípios com elevada
densidade de Aedes aegypti – que é o principal
transmissor da doença nas Américas (Barreto
e Teixeira, 2008) – tem aumentado constantemente entre 1985 e 2010.
Campinas é o maior município em volume populacional e espaço geográfico da
Região Metropolitana de Campinas (RMC).
Conta com mais de 1,1 milhão de habitantes
(IBGE, 2014) e área de 795 km² (IBGE, 2015).
Está localizado a 95 km da capital do Estado,
a cidade de São Paulo. No ano de 2014, foram
notificados mais de 42 mil casos autóctones de
dengue em Campinas, maior registro de casos
da doença na história do município até então
e também maior número de notificações ante
outros municípios brasileiros naquele ano.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
Desigualdade social intraurbana
A proposta deste trabalho é investigar
expansão urbana, enquanto nos subdesen-
se a segmentação dos grupos sociais no tecido
volvidos o processo é explosivo, mais localiza-
urbano, com acesso diferenciado aos recursos
do, seletivo e, consequentemente, criador de
e serviços da cidade, pode influenciar na distri-
descontinuidades. Esse fenômeno explica as
buição espacial e temporal dos casos de den-
desigualdades impressas nos espaços nacional
gue. O local de estudo é o município de Cam-
e regional, bem como no interior das cidades
pinas, no estado de São Paulo, no qual foram
dos países subdesenvolvidos. Assim, a noção
analisados os casos de dengue notificados du-
de urbanização desigual tornou-se uma das
rante os meses de janeiro a dezembro do ano
bases teóricas para análises subsequentes
de 2014.
sobre o processo de desenvolvimento urbano
nos países ditos periféricos.
De acordo com Cano (2011), a Cepal já
Construção do marco teórico:
a urbanização desigual
e a segmentação social
no tecido urbano
mostrava que o subdesenvolvimento da América Latina tinha fortes vínculos com um passado
socioeconômico de atraso e miséria, situação
que se torna ainda mais aguda pela convivência interna entre um setor moderno industrial
e uma agricultura retrógrada. Em realidade, as
Nesta seção apresentam-se aspectos históricos
contradições também estavam presentes no in-
relacionados ao processo de urbanização no
terior da própria agricultura: o atraso agrícola
Brasil, inserido no contexto latino-americano, e
em certas áreas convivia com a modernização
como os resultados da expansão das áreas ur-
agrícola em outras.
banas podem guardar relações com a ocorrência e a manutenção de epidemias de dengue.
A modernização do campo ocasionou
imenso êxodo rural nos países latino-ameri-
Urbanização desigual é um conceito de
canos, inclusive no Brasil, transformando po-
Milton Santos, em obra que foi originalmente
pulações predominantemente rurais em ma-
publicada em francês, no início da década de
joritariamente urbanas. Assim a urbanização
1970, e que foi lançada no Brasil na década
latino-americana teria acontecido de forma
seguinte (Santos, 1980). O autor analisa o fe-
completamente distinta da observada nos Esta-
nômeno urbano nos países desenvolvidos e
dos Unidos e nos países europeus. Lá, a moder-
subdesenvolvidos (termo corrente à época). Ou
nização da agricultura também gerou grande
seja, investiga em profundidade, de forma com-
êxodo rural, mas esse efeito foi suavizado, em
parativa, o processo de urbanização tanto nas
primeiro lugar porque a economia industrial foi
economias altamente industrializadas quanto
capaz de incorporar boa parte dos migrantes; e,
naquelas que se vinculam de modo dependen-
em segundo, porque a migração europeia para
te aos centros hegemônicos do capitalismo.
o Novo Mundo conseguiu absorver parte im-
Ressalte-se, da argumentação do autor,
portante do excedente demográfico. Assim, nos
o fato de que nos países desenvolvidos exis-
países desenvolvidos, a urbanização percorreu
te um processo cumulativo de capital e de
um longo caminho histórico e muito menos
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
423
Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves
abrupto que o observado no mundo em desenvolvimento (Cano, 2011).
Rolnik (2009) chama a atenção para o fato de que, durante os anos 1960, com grandes
fluxos populacionais rumando do campo em di-
se restringiu a São Paulo, atingindo os
principais centros urbanos do país. À medida que se avançou na década de 1970,
mudou a adjetivação: de “problema urbano” passaria a ser, rapidamente, “caos
urbano”. (Cano, 2011, p. 132)
reção às cidades na América Latina, a falta de
apoio governamental teria levado à autocons-
Desse modo, a década de 1970 apresen-
trução de moradias, desprovidas de infraestru-
tou elevadas taxas de crescimento da produ-
tura urbana:
ção e emprego, mas a situação urbana brasileira agravou-se. Isso ocorreu porque, durante
A falta de políticas urbanas ou de habitação, bem como a falta de políticas
fundiárias para permitir que essa nova
população urbana, em sua maioria pobres, tivesse acesso a terra urbanizada,
significou que a maior parte dessa nova
população urbana foi principalmente
alojada em assentamentos informais de
autoconstrução caracterizados por habitação precária e uma grave falta de
serviços básicos e infraestrutura. (Rolnik,
2009, p. 11, tradução livre) 1
No Brasil, a expansão urbana, diante
desse processo acelerado de êxodo de populações rurais para as cidades, em um contexto de
planejamento pouco eficaz, culminou em uma
situação que passou de “problema urbano” a
“caos urbano”:
Essa expansão urbana, embora em alto ritmo, foi suportável, até meados da
década [de 1960]. Contudo, a ausência
de um planejamento eficaz, a crise econômica que se manifestou entre 1962 e
1967 e a postura autoritária do Estado,
relegando a segundo plano as questões
atinentes aos problemas sociais, permitiram que essa urbanização se desse de
forma desorganizada, gerando aquilo que
se convencionou chamar de ”problema
urbano”, ou seja, carência e deficiência
de infraestrutura e de atendimento às demandas sociais urbanas. O fenômeno não
424
o “milagre brasileiro”, os problemas sociais
foram tratados como questões de segunda
ordem. Nesse contexto, o padrão de vida urbana apresentou ainda maior deterioração
(Kowarick, 1979).
Lago (2000) aponta que entre os anos
1970 e 1980 foi dominante, na literatura crítica
sobre a questão urbana, a ideia de dualização
do ambiente urbano construído para designar
o padrão de organização espacial das metrópoles brasileiras a partir dos anos 1950. Por um
lado, observou-se a segregação da população
pobre nas precárias periferias e, por outro, a
expansão nas áreas mais centrais da forma empresarial de produção de residências.
Maricato (1996) e Rolnik (2009), por sua
vez, defendem que o crescimento das periferias
brasileiras é resultante da lógica da ação especulativa do mercado imobiliário, de modo que
as áreas com melhor infraestrutura e mais bem
localizadas são ocupadas por camadas de poder aquisitivo mais elevado, enquanto grupos
de menor renda são empurrados para locais
mais distantes. Esse processo seria a base do
surgimento das aglomerações de baixa renda
nas franjas urbanas, onde existe maior presença de loteamentos clandestinos, com pior acesso a serviços básicos, compreendendo ocupações irregulares, precárias e informais.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
Desigualdade social intraurbana
A crise econômica de 1981-1984 teria
provocado o maior desemprego aberto que já
se teve notícia no País. A crise foi severa: desemprego, subocupação e menor salário real,
defrontando-se com uma sociedade urbana desaparelhada e desassistida (Cano, 2011). Esse
foi mais um evento histórico que deixou suas
marcas sobre o rápido processo de formação
das cidades brasileiras.
Conforme dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), entre 1950
A literatura sobre o tema associa a expansão da mancha urbana à ameaça de
ecossistemas importantes, como mangues, várzeas, manchas de mata, áreas de
encostas e montanhas. As consequências
são variadas: fragmentação de ecossistemas; eliminação de matas ciliares; redução de biodiversidade; aumento do risco
de enchentes e desabamentos, além do
incremento dos riscos para a saúde humana derivados da presença de vetores
de doenças transmissíveis. (pp. 130-131;
grifo nosso)
e 2010 a população urbana no Brasil aumentou em mais de 140 milhões de habitantes,
Assim, o rápido processo de urbaniza-
com 160 milhões residindo em áreas urbanas
ção brasileiro, social e historicamente pro-
em 2010. Nesse período, a proporção de pes-
duzido, culminou na segmentação de grupos
soas que vivem em cidades saltou de 36% pa-
sociais, com base no princípio da desigual-
ra 84%. A projeção das Nações Unidas (ONU,
dade. Essa desigualdade na distribuição de
2014) é que, no ano de 2050, 91% da popu-
grupos populacionais com perfis socioeconô-
lação brasileira resida em cidades, o que com-
micos distintos também significa disparidade
preenderá mais de 210 milhões de pessoas,
no acesso aos recursos e serviços urbanos,
representando um incremento de cerca de 50
como saneamento ambiental, repercutindo
milhões ainda a ser acomodado nas áreas ur-
sobre o padrão de distribuição das doenças
banas brasileiras nas quatro décadas entre
no tecido urbano.
2010 e 2050. Ou seja, é um processo que ainda
Dessa forma, ainda no século XXI as
vai continuar expressivo nas próximas décadas.
Doen ças Relacionadas ao Saneamento Am-
Um dos principais resultados desse cres-
biental (DRSAI) continuam a gerar adoeci-
cimento veloz das áreas urbanas brasileiras foi
mentos e mortes nas cidades brasileiras, in-
a ampliação de periferias, com consequências
clusive nas regiões metropolitanas, atingin-
preocupantes em termos de degradação am-
do principalmente os grupos populacionais
biental. Isso porque, a expansão da periferia
mais pobres. Entre as doenças decorrentes
leva a consequências ambientais importantes,
de problemas na infraestrutura urbana de
como redução das áreas verdes, aumento da
saneamento estão a filariose, a esquistos-
densidade populacional das áreas construídas,
somose, a hepatite infecciosa, a poliomie-
comprometimento das condições de moradia e
lite, a febre amarela e também a dengue
intensificação de riscos socioambientais (Faria,
( IBGE, 2011; Vilani, Machado e Rocha,
1991; Martine, 1993; Hogan, Marandola Jr. e
2014; Nugem, 2015). Este trabalho se de-
Ojima, 2010). Nesse sentido, afirmam Torres e
dica a analisar essas relações enfatizando o
Sydenstricker-Neto (2012):
caso da dengue.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
425
Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves
Urbanização e dengue
em Campinas
em áreas urbanas. O crescimento da população
urbana do município entre 1970 e 1980 foi de
5,8% a. a. e, entre 1980 e 1991, de 3,4% a. a.
Campinas saltou de uma população total de
Esse processo está relacionado à descon-
cerca de 376 mil habitantes em 1970 para al-
centração industrial da Região Metropolitana
go em torno de 665 mil em 1980, chegando
de São Paulo em direção a outras localidades
a 2010 com mais de 1 milhão de habitantes.
do País. Essa desconcentração, todavia, traz
Campinas cresceu mais entre os anos de 1970
como marca principalmente uma redistribuição
e 1980 que a população do Estado e do Bra-
das atividades produtivas industriais pelo inte-
sil (5,9% de crescimento populacional ao ano
rior paulista, contexto em que ganham espaço,
nesse município diante de 3,5 e 2,5, no Estado
por exemplo, Campinas e São José dos Campos,
e no País, respectivamente). O mesmo ocorreu
tornando-se polos atrativos de investimentos e,
entre os anos de 1980 e 1991: Campinas –
consequentemente, de população (Neri, 1996).
2,5% a. a., estado de São Paulo – 2,3% a. a. e
Assim, conforme indica a Figura 1, Campinas
Brasil – 2,1% a. a. Muito desse crescimento po-
já possuía, no ano de 1970, 89% de sua po-
pulacional em Campinas, entre 1970 e 1991, é
pulação em áreas urbanas, enquanto São Paulo
decorrência da expansão da população vivendo
apresentava 80%, e o Brasil, 56%.
Fgura 1 – Grau de urbanização, Campinas, estado de São Paulo e Brasil
1970-2010
Grau de urb (%)
Campinas – SP
São Paulo
Brasil
Fonte: IBGE (1970; 1980; 1991; 2000; 2010).
Nota: Grau de urbanização: percentual de população vivendo em área urbana.
426
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
Desigualdade social intraurbana
O acompanhamento da série histórica
e DEN-1 (2014). As elevadas taxas de incidên-
através dos cinco censos demográficos permi-
cia mensais de dengue em 2014 mostram uma
te observar que a ordem continua a mesma ao
população que nunca havia tido contato mas-
longo do período, com Campinas apresentando
sivo com o vírus DEN-1. Sabe-se que a popu-
maior proporção de população urbana que as
lação suscetível é um elemento essencial para
demais localidades selecionadas. Desse modo,
o desencadeamento de uma grande epidemia
no ano de 2010, Campinas possuía 98% de sua
(Chiaravalloti-Neto et al., 2015). É verdade
população vivendo na área urbana, enquanto
também que nenhum dos outros sorotipos
o estado de São Paulo apresentava 96%, e o
apresentou até então uma presença tão osten-
Brasil, 84%.
siva no município, o que leva a crer que gran-
O histórico da dengue no município, por
des epidemias dos demais sorotipos de dengue
sua vez, teve início a partir de meados da déca-
não podem ser completamente descartadas pa-
da de 1990. Conforme Lima et al. (2004), desde
ra os próximos anos.
o ano de 1996, Campinas apresenta transmis-
Da Região Metropolitana de Campinas,
são autóctone da dengue, ou seja, casos em
composta por 20 municípios, apenas America-
que o vírus foi contraído por residente no inte-
na apresentou taxa de incidência de dengue
rior do próprio município (o outro tipo é o caso
autóctone superior à de Campinas em 2014
importado, em que o residente contrai o vírus
(3.969 casos por 100 mil habitantes em Ame-
fora do município).
ricana diante de 3.643 em Campinas). Naque-
A Figura 2 evidencia a taxa de incidên-
le ano, a terceira maior taxa de incidência da
cia de dengue por mês no município entre os
RMC ocorreu em Pedreira (2.684 casos por
anos de 1999 e 2014. Chamam à atenção es-
100 mil habitantes) e a quarta em Santo An-
pecialmente as taxas de incidência de dengue
tônio de Posse (1.754 casos por 100 mil habi-
nos anos de 2007 a 2014, as duas maiores
tantes). Nos anos de 2013 e 2014, a média da
epidemias do município, sendo este último ano
taxa de incidência de dengue entre os muni-
bastante acima dos níveis verificados em toda
cípios da RMC ultrapassou o limite epidêmico
a série histórica. Por essa figura também é pos-
de 300 casos para cada 100 mil habitantes,
sível perceber a sazonalidade da dengue, com a
com forte destaque para 2014, quando se
concentração das mais elevadas taxas de inci-
atingiram mais de 1.000 casos para cada 100
dência da doença no primeiro semestre de ca-
mil habitantes.
da ano, especialmente entre fevereiro e maio,
Em 2014, Campinas se destacou no ce-
como fica explícito na epidemia de 2014. Vale
nário da dengue na medida em que possuía
ressaltar, também, a mudança de sorotipos cir-
volume de população e também número de ca-
culantes no município ao longo desse período.
sos autóctones da doença muito maiores que
Até o momento todos os sorotipos de dengue
Americana. Esta notificou 9.009 casos autócto-
já se fizeram presentes no município: DEN-1,
nes diante dos 42.059 de Campinas. Campinas
DEN-2, DEN-3 e DEN-4.
apresentou, em 2014, além da maior epidemia
As duas maiores epidemias foram cau-
da sua história até então, também o maior nú-
sadas predominantemente pelo DEN-3 (2007)
mero absoluto de casos de dengue notificados
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
427
Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves
Figura 2 – Taxa de incidência de dengue (casos por 100 mil habitantes),
por mês, e principais sorotipos circulantes em cada ano, Campinas
1999-2014
Fonte: Taxa de incidência de dengue – Prefeitura Municipal de Campinas (2015). Sorotipos circulantes – Apresentação em
Power Point de autoria de/e cedida por André Ribas de Freitas – Departamento de Vigilância em Saúde. Dengue – Sala de
situação, 3 de junho de 2015.
428
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
Desigualdade social intraurbana
entre todos os municípios do Brasil naquele
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Funda-
ano (Brasil, 2014).
ção João Pinheiro.2
Pela demonstração da importância epi-
Neste estudo sobre a dengue em Cam-
demiológica da dengue em Campinas durante
pinas, utilizou-se para análise a Unidade de
o ano de 2014, tanto na Região Metropolita-
Desenvolvimento Humano (UDH) do Atlas do
na a que pertence quanto no Brasil como um
Desenvolvimento Humano nas Regiões Me-
todo, este foi o município selecionado para o
tropolitanas Brasileiras. A UDH compreende o
presente estudo. Vale ressaltar que em 2015 a
agrupamento de setores censitários com ho-
epidemia de dengue no município superou a de
mogeneidade socioeconômica e contiguidade
2014, atingindo mais de 66 mil casos autócto-
espacial. Em Campinas, por exemplo, o Censo
nes confirmados (Brasil, 2015). Compreender
Demográfico de 2010 (IBGE) dividiu o municí-
a epidemia de 2014 é um passo fundamental
pio em 1.749 setores censitários. As UDHs são
para evidenciar os fatores que têm propiciado
agrupamentos desses setores, totalizando 187
a ocorrência de sucessivos recordes de notifica-
unidades de análise.
ções de dengue no município.
O outro banco de dados deste estudo
A seguir são apresentados os dados e
compreende os endereços do local de residên-
métodos utilizados para a operacionalização
cia dos casos autóctones de dengue do muni-
do conceito de urbanização desigual e também
cípio de Campinas de janeiro a dezembro de
para possibilitar a análise da segmentação dos
2014,3 obtidos do Sistema de Informação de
grupos sociais no tecido urbano vis-à-vis a dis-
Agravos de Notificação (Sinan) através da Se-
tribuição dos casos de dengue.
cretaria de Saúde de Campinas.
Foram geocodificados, ou seja, transformados em referências espaciais de latitude e
Estruturação do banco de dados
longitude, os casos de dengue por endereço
do paciente. O processo de geocodificação foi
realizado de uma forma geral em duas etapas.
As análises são realizadas a partir de dois
A primeira consistiu na padronização do ende-
bancos de dados. Um deles é o Atlas do De-
reço. Processo que utiliza heurísticas para con-
senvolvimento Humano nas Regiões Metropo-
verter representações de endereço (R. = Rua,
litanas Brasileiras e suas respectivas Unidades
Av. = Avenida, Pça = Praça, entre outros) em
de Desenvolvimento Humano (UDH). O Atlas
um padrão que será utilizado na fase seguinte.
compreende 20 regiões metropolitanas (RM)
Na segunda etapa, ocorreu a geocodificação de
brasileiras, trazendo mais de 200 indicadores
fato, na qual se realiza uma busca de texto do
de demografia, educação, renda, trabalho,
endereço padronizado em uma base de dados
habitação e vulnerabilidade, com dados ex-
de mapas de ruas.
traídos dos Censos Demográficos de 1991,
A geocodificação dos endereços de
2000 e 2010. Foi lançado em 2014, tendo sido
casos da doença foi extremamente comple-
elaborado pelo Programa das Nações Unidas
xa, tendo em vista os problemas de preen-
para o Desenvolvimento (Pnud), Instituto de
chimento e digitação das informações rua e
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
429
Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves
número de residência na ficha de notificação
Brasileiras, foi inserida uma nova variável com
de dengue. Dos 48.085 casos de dengue re-
o somatório do número de casos de dengue
gistrados no Sinan, 42.059 foram autóctones
dentro de cada Unidade de Desenvolvimento
de município de residência, foco deste estudo.
Humano. Calculou-se, então, a variável taxa
Retirando os endereços de pacientes sem rua
de incidência de dengue para cada unidade
e sem número, restaram 40.337 casos para
de análise, utilizando a informação do número
geocodificar. Destes, foram localizadas com
de casos conformados de dengue, provenien-
sucesso as coordenadas dos endereços de
tes do Sinan (referente a 2014), e volume to-
39.965 casos (99% dos 40.337 casos, portan-
tal de população, a partir do Atlas (referente
to perda de 1%; ou 95% do total de autócto-
a 2010). A tentativa de realização da projeção
nes, os 42.059, ou perda de 5%). De Boni et
populacional de 2010 para 2014 pelo método
al. (2010), analisando os acidentes de trânsi-
AiBi para pequenas áreas, frequentemente
to e sua relação com bares em Porto Alegre,
utilizado pelo IBGE, não obteve sucesso. Isso
apresentaram perda de 7,5% na geocodifica-
porque algumas unidades de análise apresen-
ção dos casos de acidentes; Hino et al. (2006),
taram decréscimo de população entre os anos
geocodificando endereços de pacientes com
censitários que foram referência para a proje-
cólera em Ribeirão Preto, encontraram uma
ção (2000 a 2010), e uma extrapolação com
perda de mais de 10%; Galli e Chiaravalloti-
base nessa tendência culminou em áreas com
-Neto (2008) geocodificando endereços de
população muito rarefeita em 2014. Por esse
casos de dengue em São José do Rio Preto,
motivo, de modo a garantir a qualidade do
depararam-se com uma perda de mais de
dado, optou-se por utilizar como referência a
15%. Portanto, a perda de 1% entre os ende-
população de 2010 para o cálculo da taxa de
reços que efetivamente eram factíveis de lo-
incidência de dengue em 2014.
calização ou de 5% diante do total de casos
autóctones de dengue em Campinas supera os
padrões observados na literatura.
As perdas neste estudo foram em decorrência de endereços genéricos como Rua A,
Índice de Desenvolvimento Humano
Municipal e Taxa de Incidência
de dengue em Campinas
Viela 1, Lote 5, etc. A análise das perdas, por
área do centro de saúde em que se localizam,
Para ilustrar o conceito de urbanização desi-
constatou que elas não se concentraram em
gual e da segmentação dos grupos sociais no
nenhuma região específica do município. São
tecido urbano foi utilizada, do Atlas do Desen-
esses 39.965 casos geocodificados com suces-
volvimento Humano nas Regiões Metropolita-
so que compreenderam os casos autóctones
nas Brasileiras, a variável Índice de Desenvol-
de dengue por local de residência do paciente
vimento Humano Municipal (IDHM) referente
analisados nessa investigação.
ao ano de 2010. O Índice de Desenvolvimento
A partir do software ArcMap, versão
Humano (IDH) é um indicador composto que
10.3, no banco de dados do Atlas do Desenvol-
sintetiza informações de renda, escolaridade e
vimento Humano nas Regiões Metropolitanas
esperança de vida. É normalmente empregado
430
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
Desigualdade social intraurbana
pela Organização das Nações Unidas para
de análise deveria ser de 8.262 metros. Por fim,
avaliar o nível de desenvolvimento dos países
no cálculo do Índice Local de Moran, obteve-se
(ONU, 2015). Neste estudo se utiliza o Índice de
o resultado apresentado na Figura 3.
Desenvolvimento Humano Municipal, que com-
A rodovia Anhanguera é representada no
preende uma adaptação do IDH, também com-
mapa por meio de uma linha que perpassa o
binando informações de renda, escolaridade
município na direção sudeste a noroeste. O que
e esperança de vida. A diferença é que, nesse
se observa são dois agrupamentos separados
caso, o indicador é calculado para o nível in-
pela Anhanguera: ao norte da rodovia, existem
tramunicipal, tomando como principal fonte de
áreas “similares” com alto IDHM (em verde es-
informações os dados do Censo Demográfico
curo), enquanto na porção sul existe uma gran-
de 2010. O IDHM (assim como o IDH) varia de 0
de concentração de áreas com baixo IDHM (em
a 1, sendo 0 menor e 1 maior desenvolvimento
vermelho escuro). Chama a à atenção também
humano. Através dele é possível analisar as de-
a existência de outliers: ao norte, áreas com
sigualdades no que diz respeito à composição
baixo IDHM (vermelho claro) em proximida-
socioeconômica dos grupos sociais no interior
de do grande agrupamento de áreas com alto
do município de Campinas.
IDHM (verde escuro). Note-se que o contrário
Considerando que as variáveis IDHM e
não ocorre, ou seja, não se veem áreas com
taxa de incidência de dengue possuem especi-
alto IDHM na porção sul, em proximidade ao
ficidades, a análise de cada uma conta com um
grande agrupamento de unidades com baixo
método distinto.
IDHM. As áreas mais claras são aquelas que
Assume-se o IDHM como estático no
tempo, pois esse dado não muda durante to-
não apresentaram significância estatística no
cálculo do Índice de Moran.
do o período de análise. Isso ocorre porque
A taxa de incidência de dengue, por sua
cada Unidade de Desenvolvimento Humano
vez, apresenta modificações em seu valor em
apresenta o mesmo IDHM durante todos os
cada unidade de análise de um mês para o
meses de 2014. Para a análise dessa variável,
outro. Por exemplo: pode-se ter uma Unidade
utilizam-se então os Índices Global e Local
de Desenvolvimento Humano com alta taxa de
de Moran.
incidência de dengue em janeiro, e, em feverei-
O Índice de Moran permitiu identificar
ro, haver um arrefecimento dessa taxa naquele
agrupamentos de áreas próximas com alto ou
local e um crescimento em outra unidade de
baixo índice de desenvolvimento humano. Um
análise. Isso ocorre porque os casos de den-
teste inicial com o Índice Global de Moran
gue não necessariamente ficam concentrados
apontou um valor positivo (0,170), indicando
sempre em um mesmo lugar, eles podem ser
a existência de clusters de valores. O z-score
mais numerosos em determinado local em da-
da análise foi de 8,159, apresentando p-valor
do período, depois apresentar redução ali e
< 0,01. Conclui-se, assim, que os dados com-
aumentar em outro ponto do município. Para
põem agrupamentos estatisticamente signifi-
analisar essa dinâmica da taxa de incidência
cativos. Na busca pelo maior z-score possível,
da dengue no espaço e no tempo utiliza-se o
encontrou-se que a distância entre as unidades
software SaTScan.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
431
Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves
Figura 3 – Índice Local de Moran para o Índice de Desenvolvimento
Humano Municipal, Campinas-SP – 2010
De acordo com Block (2007), SaTScan é
Foram identificados dois trabalhos no
um programa desenvolvido em parceria entre
Brasil que analisam a dengue e se utilizam, pa-
Martin Kulldorff (Universidade de Harvard), o
ra tanto, do software SaTScan. Um deles analisa
Instituto Nacional de Câncer dos Estados Uni-
os casos de dengue na cidade de Lavras-MG en-
dos e Jarzad Mostashari, do Departamento de
tre 2007 e 2010 (Ferreira, 2012). O outro busca
Saúde e Higiene Mental da cidade de Nova
a detecção de clusters com base na sazonalida-
4
York. Trata-se de um software livre. Esse pro-
de da dengue nos municípios brasileiros entre
grama permite a identificação de clusters tem-
2007 e 2011 (Lewkowicz, 2013). Ferreira (2012)
porais, espaciais ou espaçotemporais. Como
analisa, para o período entre 2007 e 2010,
resultado são indicados círculos ou elipses de
todos os 1.236 casos de dengue notificados em
uma área contínua com tamanho variável na
Lavras, utilizando o SaTScan como ferramenta
área de estudo.
complementar após a aplicação do Índice de
Trabalhos pioneiros demonstrando a via-
Moran. Lewkowicz (2013), por sua vez, inves-
bilidade do uso do SaTScan para análises es-
tiga tendências de distribuição espaçotemporal
paçotemporais em saúde podem ser encontra-
da dengue no nível de município, sem observar
das em Kulldorf e Nargawalla (1995), Kulldorff
especificidades no interior de cada uma das
(1997) e Kulldorff et al. (1998).
áreas urbanas com casos de dengue.
432
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
Desigualdade social intraurbana
Este trabalho sobre dengue em Campinas
a variável resposta de interesse se refere-se a
difere dos demais ao propor o uso do SaTScan
uma contagem de eventos que ocorrem em um
com um conjunto grande de casos de dengue
determinado intervalo de tempo e espaço.
(39.965), geocodificados de modo a permitir
A aplicação do modelo rejeitou a hipó-
a análise de diferenciais intraurbanos em uma
tese nula de que o número de casos em cada
cidade heterogênea em termos de composição
área é proporcional à sua população, caso em
da população.
que não haveria clusters. A rejeição da hipótese
A saída do software indica os clusters
nula indica que existem clusters de áreas com
numerados apontando as localidades incluí-
alta taxa de incidência de dengue e que, por-
das em seu raio, período de ocorrência do
tanto, a análise estatística pode prosseguir.
cluster de alta taxa de incidência, número de
Nesta análise foram selecionados apenas
casos de dengue observados, número de ca-
os primeiros cinco clusters entre os que apre-
sos esperados, risco relativo e p-valor, entre
sentaram significância estatística (p-valor <
outras informações.
0,01). Estes podem ser observados na Figura 4.
O SaTScan utilizou um modelo discreto
Em termos de distribuição espacial,
de Poisson, que é comumente utilizado quando
observam-se quatro agrupamentos de áreas
Figura 4 – Clusters espaçotemporais mais significativos (SaTScan)
e taxa de incidência de dengue, Campinas – janeiro a dezembro de 2014
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
433
Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves
com alta taxa de incidência de dengue localizados ao sul da rodovia Anhanguera e um,
Conclusões
ao norte. Quanto à distribuição temporal, a
Cano (2011) apresentou as características do
análise indica que o primeiro cluster de áreas
processo brasileiro de urbanização em face do
com alta taxa de incidência em 2014 ( Cluster
massivo fluxo populacional do campo para as
1 – círculo vermelho) foi identificado ao sul
cidades no Brasil a partir da segunda metade
da Anhanguera, na região dos bairros Cida-
do século XX. Esse crescimento das cidades
de Satélite Íris, Residencial Campina Verde e
pôde ser constatado a partir dos dados do
Jardim Florence, tendo ocorrido de fevereiro a
IBGE. Kowarick (1979) assim como Maricato
maio de 2014. Os demais clusters foram iden-
(1996) e Rolnik (2009) indicaram aspectos
tificados no período de março a maio daquele
como a autoconstrução, a espoliação urbana
ano, como é o caso do Cluster 2 (em verde) na
e a especulação imobiliária como fatores que
região dos bairros Friburgo e Fogueteiro, ex-
condicionaram e impulsionaram a expansão
tremo sul do município, e do o Cluster 3 (em
das periferias urbanas, gerando segregação
azul escuro), que compreende os bairros Real
espacial e sendo relegados à população pobre
Parque, Independência, Recanto Yara, Ciatec I
os espaços mal providos ou completamente
e Parque das Universidades, apenas para citar
desprovidos de infraestrutura urbana. Lago
alguns. Tem-se ainda o Cluster 4 (em azul cla-
(2000), nesse sentido, apontou a dualização
ro), compreendendo o Residencial Jardim Ma-
do ambiente construído – população pobre nas
racanã, Campos Elíseos e Cidade Jardim, e o
periferias versus grupos populacionais mais
Cluster 5 (em rosa), que abrange localidades
como o Novo Campos Elíseos, Jardim Alvorada, Parque Ipiranga, Jardim Capivari e Jardim
do Lago Continuação.
A mesma figura apresenta a taxa de incidência de dengue no acumulado de janeiro
a dezembro. Os intervalos entre as classes da
legenda, de verde a vermelho, são separados
pela técnica de quebras naturais ou natural
breaks, que busca minimizar a variância intraclasses e maximizar a variância interclasses. Vale observar que os clusters do software
SaTScan coincidem com as áreas de elevada
taxa de dengue (áreas em amarelo, laranja e
vermelho). Isso indica que, de fato, os clusters
provenientes do software SaTScan foram sensíveis o suficiente para abarcar as unidades de
análise mais relevantes em termos de taxa de
incidência de dengue.
afluentes nas áreas centrais – como marca do
434
padrão de organização das metrópoles brasileiras a partir dos anos 1950.
O município de Campinas encontra-se localizado nesse cenário: expansão urbana sem
planejamento satisfatório, que culmina na ampliação das áreas de ocupação e, consequentemente, no incremento de populações vivendo sem acesso adequado aos equipamentos e
serviços urbanos. Uma das grandes marcas da
separação entre grupos sociais no município é
a rodovia Anhanguera. Um conjunto de autores
já se dedicou à análise sobre as diferenças entre as áreas mais desenvolvidas ao norte e menos ao sul dessa rodovia que também é chamada de “cordilheira da pobreza”, por marcar uma
das principais segmentações dos grupos populacionais no município (Nepo e Nesur, 2004;
Cunha et al., 2005; Cunha e Jiménez, 2006).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
Desigualdade social intraurbana
Neste trabalho, a utilização do Índice de
sul onde se localizam os segmentos popula-
Desenvolvimento Humano Municipal e a apli-
cionais com menor Índice de Desenvolvimento
cação do Índice de Moran para identificar clusters evidenciou a segregação dos grupos populacionais no interior do município, seguindo a
lógica da separação geográfica promovida pela
rodovia Anhanguera: ao norte os grupos em
melhores condições de vida e, ao sul, aqueles
com pior nível socioeconômico. A desigualdade
social do ponto de vista geográfico não ocorre, portanto, de forma concêntrica, ou seja, do
centro para as bordas do município, mas sim
através da clara delimitação espacial por essa
que é uma das principais rodovias do estado de
São Paulo.
Para avaliar os diferenciais da taxa de
incidência de dengue no nível intramunicipal
em Campinas no ano de 2014, utilizou-se o
software SaTScan. Essa análise é fundamental
tendo em vista que, apesar de a deflagração
de casos dessa doença infecciosa ser perpassada por várias escalas espaciais (local, regional, nacional e global), é no âmbito local
que os casos de dengue ocorrem. Assim, é
nessa esfera que os principais condicionantes
da doença se fazem presentes, tanto sociais
quanto ambientais. Consequentemente, é
também na escala local que políticas focalizadas em espaços e segmentos populacionais
específicos podem ser aplicadas no sentido de
equacionar o problema dos recursos escassos
diante de um vasto território a ser compreendido no controle da dengue.
Esta análise possibilitou concluir que os
principais clusters espaçotemporais de elevada
taxa de incidência de dengue se concentraram
na região sul do Município (apenas um foi encontrado ao norte da rodovia Anhanguera).
Conforme observado, é exatamente na porção
Humano Municipal e, portanto, onde estão con-
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
centradas as piores condições socioeconômicas
e de acesso a recursos e serviços urbanos, fatores que apresentam influência sobre o nível
do IDHM.
Viu-se também que todos os clusters
encontrados ficaram restritos à primeira metade do ano de 2014, contexto em que, historicamente, a sazonalidade da dengue aponta
para a maior ocorrência de casos, em especial
devido a condições adequadas de temperatura
e pluviosidade (Confalonieri, 2003; Grassly e
Fraser, 2006; OMS, 2012).
Neste trabalho foram utilizadas como
unidade de análise as Unidades de Desenvolvimento Humano. Essa unidade possibilitou comparar os diferenciais intraurbanos de níveis de
Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
e a taxa de incidência de dengue, algo nunca
antes investigado, nessa escala, para um município brasileiro.
Vale notar, todavia, que a variável IDHM
não é suficiente para explicar a taxa de incidência de dengue em Campinas no ano de
2014. Isso porque, para compreender uma
doença multicausal como a dengue, são necessários mais elementos explicativos, relativos não apenas às características da população, como também do ambiente urbano e
das interrelações daquela com este. A análise
pormenorizada de todos os elementos causais
relacionados à epidemia histórica de dengue
no município de Campinas foge ao escopo
deste trabalho.
Ainda assim, é importante citar alguns
elementos que ajudam a compreender esse
crescimento de casos de dengue em 2014,
435
Igor Cavallini Johansen, Roberto Luiz do Carmo, Luciana Correia Alves
como: 1) a existência de um grande volume de
fatores a partir de estudos específicos, mas a
pessoas suscetíveis ao sorotipo que circulou no
compreensão do processo epidêmico e a for-
município (DEN-1) nesse ano; 2) a qualidade da
mulação de políticas públicas eficazes somente
estruturação dos espaços e dos serviços urba-
ocorrem a partir de uma análise global que
nos prestados à população; 3) as intempéries
considere todos os elementos relacionados à
sofridas pelo Programa de Controle da dengue
cadeia de causalidade da dengue.
diante da instabilidade política pela qual o mu-
Atualmente o mosquito vetor da den-
nicípio passou nos anos recentes; 4) a demora
gue, o Aedes aegypti, também preocupa por
para a reposição de profissionais do controle
veicular duas novas doenças no País: a febre
da dengue após a finalização do convênio com
chikungunya e o zika vírus. A chikungunya causa sintomas mais intensos comparativamente
à dengue, enquanto o zika vírus pode apresentar associação com problemas de nascimento,
resultando em um aumento de bebês com microcefalia. Compreender as condições socioeconômicas da população e os aspectos do ambiente urbano que propiciam o desenvolvimento desse mosquito, assim como o processo de
expansão espaçotemporal das doenças que ele
transmite, é um passo fundamental no controle
de tais enfermidades e na proteção efetiva de
todos os grupos populacionais.
o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira; 5) a
incerta colaboração da própria população no
descarte adequado de resíduos associado à
falta de uma política mais efetiva para o setor; 6) a especulação imobiliária que mantém
imóveis fechados por longos períodos de tempo; e 7) a mobilidade populacional, que possibilita o aumento do número de casos e sua
redistribuição nos níveis inter e intramunicipal
(Correio Popular, 2014; G1 Campinas e Região,
2015; Ministério Público, 2015). O aprofundamento pode ser realizado em cada um desses
Igor Cavallini Johansen
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Demografia. Campinas/SP, Brasil.
[email protected]
Roberto Luiz do Carmo
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Demografia. Campinas/SP, Brasil.
[email protected]
Luciana Correia Alves
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Demografia. Campinas/SP, Brasil.
[email protected]
436
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
Desigualdade social intraurbana
Notas
(1) Citação original: “The lack of urban and housing policies, as well as the lack of land policies to
enable this new urban popula on, mostly poor, to access urbanized land, meant that the majority
of this new urban popula on was mostly housed in self-built informal se lements characterized
by precarious housing and a severe lack of basic services and infrastructure”.
(2) Para mais informações, consultar: Pnud, Ipea e FJP (2014). Existe um site dedicado à explicação
sobre o estudo e também disponibilização dos dados para download: h p://www.atlasbrasil.
org.br/.
(3) Lembrando que caso autóctone é aquele contraído na localidade onde a pessoa habita (Valle,
Pimenta e Cunha, 2015).
(4) Disponível para download em: h p://www.satscan.org.
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Texto recebido em 3/jan/2016
Texto aprovado em 3/abr/2016
440
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 421-440, jul 2016
Questão urbana e envelhecimento
populacional: breves conexões
entre o direito à cidade e o idoso
no mercado de trabalho
The urban question and population aging: brief connections
between the right to the city and the elderly in the labor market
Maura Pardini Bicudo Véras
Jorge Felix
Resumo
Este texto discute a questão urbana em sua relação
com o envelhecimento populacional. De forma resumida, evidencia-se o efeito do capital financeiro,
nos séculos XX e XXI, sobre o espaço urbano, o trabalho e a seguridade social. Defende-se que a perda
do direito à cidade é o último estágio do desmonte
do Estado de Bem-Estar Social. Com o avanço do
capital imobiliário, amplia-se a segregação dos moradores, e os mais pobres se alojam em condições
precárias nas cidades, onde vivem 84% dos idosos
brasileiros. Esse processo contribui, assim, para a
construção de um discurso paradoxal sobre a velhice, sobretudo, no que diz respeito ao direito ao
trabalho e à postergação da aposentadoria diante
da maior longevidade. Produz-se hipótese a ser
explorada em pesquisa posterior sobre o papel do
ambiente construído na decisão de aposentadoria.
Abstract
In this paper, we discuss the urban question and
its relation to population aging. We show, in a
summarized way, the effect of financial capital, in
the 20th and 21st centuries, on urban space, labor
and social security. We argue that the loss of the
right to the city is the last stage of the dismantling
of the Welfare State. With the advance of the
real estate capital, the segregation of residents
increases, and the poorest ones settle in precarious
conditions in the cities, where 84% of Brazilian
elders live. Thus, this process contributes to the
construction of a paradoxical discourse about old
age, especially with regard to the right to work and
the postponement of retirement due to increased
longevity. We have produced a hypothesis to be
explored in further research regarding the role of the
built environment in the decision about retirement.
Palavras-chave: questão urbana; desenvolvimento econômico; envelhecimento populacional; mercado de trabalho; previdência social.
Keywords: urban question; economic
development; population aging; labor market;
social security.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3607
Maura Pardini Bicudo Véras, Jorge Felix
Introdução
quer nos bairros de melhor qualidade urbana;
Na análise da pós-modernidade, dois fenôme-
ricas, com deficiência de serviços e equipamen-
nos saltam como protagonistas para o entendi-
tos, em combinação perversa de fatores ligados
mento da dinâmica capitalista contemporânea:
à concentração de renda e da propriedade do
o processo acelerado de urbanização e o tam-
solo com ingredientes ligados simbolicamente
bém acelerado processo de envelhecimento da
a cor/etnia, origem e práticas culturais, pois
população. Do ponto de vista socioeconômi-
incluem-se valores, hábitos, costumes e signifi-
co, esses temas se apresentam dialeticamen-
cados de todo um fazer humano com suas ex-
te relacionados ao avanço do capital finan-
pressões individuais e distinções sociais.
o espraiamento da pobreza para zonas perifé-
ceiro, hipertrofia da sociedade de consumo,
Pode-se dizer, assim, que a cidade con-
individualismo, insegurança pública, efeitos da
temporânea não apenas reflete as desigual-
mundialização1 e do liberalismo; além disso, os
dades geradas em outras esferas, como, por
tempos atuais carregam significados ligados
exemplo, a distribuição de renda, mas que ela
à valorização da liberdade, da construção da
mesma é produtora de desigualdades. Nesse
identidade, assim como de questões de gênero
sentido, o direito à cidade e ao lugar, como es-
e etnia, entre outros tópicos caros aos analistas
paço identitário, é o que lhe possibilita aos in-
da sociedade dos séculos XX e XXI. Do ponto
divíduos ser mais ou menos cidadão e lhe per-
de vista do aumento da população em cidades
mite o acesso a direitos e à participação políti-
brasileiras, essa proporção chegava a 84% em
ca (Santos, 1987). Como nos diz Harvey (2012),
2010 e foi estimada em 86% em 2015 (IBGE,
a cidade capitalista global, sustentada pelos
2011; Ipea, 2014). De 1991 a 2011, a expectati-
fortes pilares do livre mercado, transformou-se
va de vida do brasileiro ampliou-se em 9 anos,
em um bem de consumo, e seus habitantes vi-
saltando de 66,9 para 74,1 anos e, atualmente,
vem dependendo de sua capacidade de consu-
84% da população com mais de 60 anos vive
mir o que a cidade lhes oferece. Nesse cenário,
2
nas áreas urbanas (IBGE, 2011).
insere-se a questão do envelhecimento.
No caso das cidades sob o impacto
O envelhecer nas grandes cidades tem
do neoliberalismo nessa primeira década do
sido um objeto de pesquisa cada vez mais pre-
século XXI, pode-se questionar e constatar as
sente na Sociologia e outras áreas. O interesse
formas pelas quais se persevera a desigualda-
crescente no tema surgiu, entre outros marcos,
de social, mesmo quando ocorrem substanciais
a partir do documento da Organização Mun-
progressos econômicos e apesar de algumas
dial de Saúde, publicado em 2008, “Cidade
ferramentas de proteção social. A desigual-
Amiga do Idoso” (OMS, 2008). Desde então,
dade urbana é estável, resistente, mesmo que
as áreas de economia, urbanismo, direito,
mutante. Acompanham tais contrastes sociais,
sociologia, saúde e gerontologia voltaram-
o esvaziamento do espaço público; a prolifera-
-se ao tema seja para avaliar a execução de
ção de moradias precárias; a autossegregação
políticas públicas destinadas a atender às
das elites, quer nos condomínios fechados,
recomendações da OMS em busca do bom
442
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016
Questão urbana e envelhecimento populacional
envelhecimento, seja para fazer conexões en-
O objetivo é analisar, portanto, como o
tre essas recomendações e a realidade pro-
movimento do capital financeiro, em forma de
porcionada pela configuração da economia no
sua fração imobiliária, interfere na construção
século XXI. Por exemplo, no direito à moradia.
do espaço urbano de maneira que limita as
É o caso de Rolnik, quando destaca que o au-
possibilidades do viver do trabalhador idoso (60
mento da propriedade privada da moradia, vis
anos ou mais) nas grandes cidades.5 A hipótese
à vis os modelos de moradia social do pós-Segunda Guerra Mundial, e a mobilização crescente desse patrimônio imobiliário como forma de riqueza “coincidem com o processo de
envelhecimento da população e com a enorme
pressão que isso representou para os sistemas
públicos de aposentadoria”. A casa própria,
destaca a autora, transformou-se em um estoque de riqueza para a vida mais longa devido à
aposta em sua valorização ao longo do tempo,
que acaba sendo efetivada pela ampliação da
especulação imobiliária, e, na prática, termina
por substituir os sistemas públicos de previdência (Rolnik, 2015, p. 38).
A intenção aqui é estabelecer relações
entre a dinâmica demográfica, o “uso do ambiente construído”, no dizer de Harvey (1982),
e o discurso econômico defensor da postergação da aposentadoria como um impositivo
para uma suposta necessidade de dar sustentação ao sistema de previdência social público
(e por repartição). A questão previdenciária em
si – quanto ao equilíbrio orçamentário do sistema – está fora do âmbito deste texto, estando
presente apenas no bojo do que se entende como Estado do Bem-Estar Social.3 É válido, porém, destacar a existência de profícua literatura
sobre o componente político e ideológico na
análise de seu financiamento dentro de cada
concepção de Estado.4
a ser discutida é como essa “construção” corro-
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016
bora para a decisão de antecipação da aposentadoria e desmistifica o discurso de uma possibilidade universal, diante da maior longevidade, de uma reinvenção do trabalhador na fase
pós-laboral, por meio de uma segunda carreira
profissional. Esses dois pontos (postergação da
aposentadoria e nova carreira) foram selecionados por sua relevância no debate econômico
internacional sobre o fenômeno do envelhecimento da população, estabelecido sobretudo na
defesa da adoção de idade mínima para a elegibilidade aos sistemas de aposentadoria.
Na próxima seção será feita uma exposição breve do desmonte do Estado do Bem-Estar
Social a partir do fim dos anos 1970 e, sobretudo, depois da crise financeira de 2007/2008.
Em seguida, serão relatadas a construção de
uma nova velhice na pós-modernidade e o uso
desta representação no discurso da economia
mainstream6 em relação ao mundo do trabalho
e à aposentadoria. Na quarta seção, será analisado como o avanço do capital financeiro constrói o ambiente à sua mercê e em detrimento
da “classe-que-vive-do-trabalho” (Antunes,
2011). Na última seção, à guisa de considerações finais, será discutida a dissonância cognitiva do discurso econômico neoliberal sobre o
alongamento da vida laboral com a realidade
imposta pela questão urbana.
443
Maura Pardini Bicudo Véras, Jorge Felix
A construção do Estado
do ‘Mal-Estar Social’
e sistemas de saúde, e que, de forma ampliada, pode ser detectada em serviços sociais
que dizem respeito à educação, moradia, arte,
cultura, aparelhos para recreação situados em
No entender de Oliveira (2004), a América La-
subúrbios, transportes públicos subsidiados e
tina jamais conheceu um Estado do Bem-Estar
até mesmo nos subsídios agrícolas (Judt, 2007,
Social como este se apresentou aos europeus
p. 87). Ou seja, participava da construção do
no pós Segunda Guerra Mundial, seja qual for
ambiente rural e urbano. O chamado Welfare
o modelo usado como referência (continental,
State – dispensável despender energia aqui
para defini-lo em detalhes – foi, portanto,
um conceito amplo na busca do bem-estar,
com voluntarismo do Estado, e resultou em
um amortecedor na relação entre o capital e
o trabalho, acomodando a principal contradição capitalista em uma sociedade dita salarial
(Castel, 2012, p. 463).
Bauman lembra ainda que o estado de
bem-estar social foi concebido a fim de reabilitar os temporariamente inaptos e estimular
os que estavam aptos a se empenharem ainda mais (1998, p. 51). Longe de ser caridade,
sublinha o autor, era um direito [grifo dele] do
cidadão e não o fornecimento de donativos
individuais. Era uma forma de seguro coletivo.
Ainda válido destacar, em sua análise, que o
estado de bem-estar arcava com os custos marginais do capital pelo lucro e assumia o papel
de garantir que a mão de obra deixada para
trás se tornaria novamente empregável – um
esforço pecuniário ao qual o capital se recusava a empreender sozinho. O principal exemplo
de Bauman para essa desconstrução, a partir
dos anos 1980, são os sistemas de previdência
social, “difamados como sendo um sorvedouro
do dinheiro dos contribuintes” (ibid., p. 52).
Embora o Brasil sustente ainda a previdência pública por repartição, o sistema sofreu,
como mencionado, inúmeras transformações
nas reformas de 1998 e 2003, entre outras
anglo-saxão ou escandinavo).7 De acordo com
o autor, o caso latino-americano sempre se
pareceu mais com o “Estado do Mal-Estar Social”. Mesmo com essa assimetria, acentuada a
partir da década de 1970, com a fase chamada
de “reestruturação do capital”, a América Latina sofre igualmente, ao lado da Europa, com o
desmonte da proteção social erguida desde o
século XIX por Otto von Bismark (1815-1898) e
ampliada no pós-guerra.
Tanto em um continente quanto no outro, esse processo se agrava na década de
1990 e radicaliza-se após a crise financeira de
2007/2008 com a política de austeridade fiscal, especificamente na questão de Previdência Social. Enquanto, na Europa, vários países
promoveram reformas e elevação da idade
mínima para a aposentadoria, no Brasil, completou-se a reforma de 2003 com a aprovação
da lei que cria os fundos de pensão para os
funcionários públicos (Lei n. 12.618/2012) e
alteraram-se, mais uma vez, as regras do Regime Geral de Previdência (Lei n. 13.183/2015),
com adoção de alternativas ao fator previdenciário para o contribuinte aposentado por
tempo de contribuição.
O que é relevante destacar, neste artigo,
é aquela rede de proteção construída no pós-guerra que cruzava as fronteiras de seguro
desemprego, assistência social, previdência
444
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016
Questão urbana e envelhecimento populacional
mudanças pontuais, porém relevantes, 8 na
e produzem, em contrapartida, segregação,
onda do domínio da finança sobre a produ-
gentrificação, precarização, além de usurpar o
ção. Essas alterações se impõem, no entender
direito à cidade daqueles que dependem da in-
de Chesnais (2005), pela dinâmica do “capital
termediação do Estado para acessar seus locais
portador de juros” na mundialização finan-
de trabalho, lazer ou moradia que, por força
ceira da economia contemporânea a partir da
das novas formas espaciais urbanas, passam a
década de 1970. Esse movimento caracteriza
ser cristalizados na concepção mental do espa-
um modelo de capitalismo patrimonialista que
ço urbano como o longe.
tem como combustível os investidores institu-
Esse aspecto será mais bem explorado
cionais, incluindo nessa categoria os fundos de
adiante. Por ora, é necessário abordar como a
pensão e de previdência por capitalização e os
pós-modernidade forja a nova velhice assim per-
fundos mútuos. Rica literatura (Castel, 2012;
mitindo uma análise em paralelo dos dois temas
Castells, 1999; Antunes, 2006 e 2008) relata
deste artigo, envelhecimento e urbanização.
9
o impacto dessa financeirização também no
mundo do trabalho de forma tão eficaz a ponto
de providenciar uma nova categoria: o precariado (Paugam, 2000; Standing, 2013). Em poucas palavras, aquele trabalhador sem garantias
da seguridade social e mergulhado na imprevisibilidade e incerteza.
Se o capital financeiro é o agente para
a dissolução dos alicerces do Estado previdenciário ou a regulação do mundo do trabalho,
sua fração imobiliária atua para materializar
esse processo patrimonialista no espaço urbano (Gottdiener, 1993 apud Véras, 2000, p. 107).
É preciso lembrar que nessa fração imobiliária
estão inclusos, quase invariavelmente, recursos
de investidores institucionais, pois estes são
financiadores de empreendimentos. 10 Esse
conluio endógeno é que realiza o “Estado do
Mal-Estar Social” no século XXI nas chamadas
cidades globais (Sassen,1998) ao agir para a
construção de um ambiente propício ao fluxo
do capital. Essa nova paisagem, tal como prevista desde o fim do século passado (Véras,
2000, p. 106), constitui-se de prédios luxuosos,
condomínios fechados, shoppings que alimentam a insaciabilidade do capital imobiliário
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016
A construção
de uma nova velhice
A expansão do capital, depois dos anos 1970,
além de produzir uma metamorfose no mundo do trabalho, no Estado do Bem-Estar e no
espaço urbano, como resumido acima, simula
uma nova representação para a existência humana. Quanto a gênero, por exemplo, o chefe
de família perde o papel de male breadwinner,
e a mulher amplia, numa intensidade inédita,
sua participação no mercado de trabalho, provocando uma revolução na família, na taxa de
fecundidade, e impondo “uma nova ordem social” (Esping-Andersen, 2009, p. 1). Muitas outras formas dessa reformulação poderiam ser
mencionadas, mas, dentro do propósito aqui
estabelecido, a que nos interessa é a velhice.
Ao mesmo tempo que auxilia o avanço
tecnológico possibilitando à humanidade uma
vida mais longa, o capital financeiro age para
cobrar a fatura, exigindo, em contrapartida,
também o prolongamento da vida laboral. Essa
445
Maura Pardini Bicudo Véras, Jorge Felix
cobrança chega justificada por um discurso de
um idoso “fonte de recursos sem fim” ou de
que se vive mais e melhor, o que é verdadeiro,
“pura potência”. Mas, ao assumir uma velhice
porém carregado de simbologias. Debert (1999,
saudável, sustentável e a longevidade possível
p. 20) fez o diagnóstico dessa reinvenção da
como destino inexorável do ser humano do sé-
velhice ao apontar a sua “reprivatização” co-
culo XXI, a sociedade atribui ao indivíduo um
mo consequência da atuação do capital em
domínio total sobre o seu ciclo de vida, sem a
áreas nunca antes mercantilizadas .
interferência do Estado e a despeito, que é o
Até a primeira metade do século XX, a
importante neste texto, do tipo de interação
velhice era responsabilidade quase exclusiva
que mantém com o “ambiente construído” das
da família, que estava estabelecida em um ar-
cidades. O discurso de universalização de uma
ranjo sustentável. Num período posterior, relata
velhice saudável, sem necessidades, dispensa
Debert, o Estado do Bem-Estar Social dividiu
o Estado de suas atribuições mais básicas e
com as famílias o risco da velhice. Num terceiro
exclui a velhice do leque de preocupações da
período, sob pressão para reduzir seus gastos e
sociedade (Debert, 1999, p. 191).
atuar com responsabilidade fiscal, a fim de ga-
No espaço concreto, porém, o trabalha-
rantir uma suposta estabilidade econômica, o
dor idoso enfrenta uma existência, defende-se
Estado transferiu ao cidadão as responsabilida-
aqui, em três dimensões. A primeira, a do invisí-
11
des, se possível de maneira integral, de suas
demandas e obrigações relativas à qualidade
de vida e à reprodução da força de trabalho.
vel em suas necessidades básicas.14
A segunda, a do visível-sujo, a ser eliminado da paisagem em nome do que Bauman
O discurso do envelhecimento ativo, 12
denomina “sonho de pureza” (1998, p. 13).
segundo Debert (ibid., 162), “transforma o di-
Nessa dimensão, o idoso é visto como um
reito de escolha num dever” de todo cidadão.
estranho pelas “pessoas do lugar” Ele vai
No entanto, a liberdade de escolha que essas
ocupar espaços privilegiados na fila do banco,
palavras supõem é distribuída igualmente entre
por exemplo, no estacionamento do shopping,
a população, ao contrário dos recursos públicos
no transporte público, portanto, é visto como
e privados exigidos para o seu exercício (ibid.,
um estranho a quebrar a harmonia do am-
p. 230).13 Segundo Guillemard (2013, p. 17), o
biente. Ele é, de acordo com o raciocínio do
conceito do envelhecimento ativo foi estabe-
autor, um “consumidor falho”. Defende-se
lecido por uma retórica econômica ambiciosa
aqui que ele só deixa essa dimensão quando
que jamais encontrou ressonância em políticas
tem renda para “participar do jogo consumis-
públicas, com exceção “no limitado domínio do
ta” (ibid., p. 24).
emprego para manutenção dos idosos no mer-
A terceira dimensão é a do visível-limpo,
cado de trabalho” sem conseguir construir uma
na qual o idoso consegue manter sua força de
“cultura da idade” de forma favorável.
trabalho e seu potencial de consumo. São os
É evidente que se deve levar em conta a
chamados seniores ou os tratados com o eufe-
heterogeneidade desse segmento populacio-
mismo de “terceira idade”. Manter-se nessa úl-
nal, sem aceitar pré-noções de obrigatoriedade
tima condição é a única estratégia para o idoso
de uma velhice paupérrima ou, ao contrário,
escapar do “autismo social” (Ianni,1994, p. 36)
446
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016
Questão urbana e envelhecimento populacional
ou do ar blasé (Simmel, 1979, p. 18), atitudes
à mobilidade urbana, o que será feito na pró-
típicas do ser da metrópole.
xima seção.
No discurso da economia mainstream,
porém, existe apenas essa terceira dimensão.
O idoso, portanto, de forma linear, como pessoa bem envelhecida e saudável – porque afi-
A construção do ambiente
pelo capital
nal dispôs de toda sorte de ferramentas para
alcançar o estágio do envelhecimento ativo –,
As cidades são atores sociais complexos e as-
estaria apto a ampliar sua vida laboral e, as-
sim se expressam na medida em que articulam
sim, cooperar com a sustentabilidade dos sis-
e interagem com administrações públicas,
temas de previdência que, agora, no século
agentes econômicos públicos e privados, orga-
XXI, são raramente públicos de forma integral.
nizações sociais e cívicas, setores intelectuais
A maioria deles é mista, sendo cada vez maior
e profissionais, meios de comunicação e o
a parcela dos contribuintes filiada apenas aos
próprio cidadão, ou seja, instituições políti-
sistemas privados. Como alerta Debert (1999),
cas e sociedade civil (Borja e Castells, 1996,
todavia, essa situação de conto de fadas está
p. 152). A partir da crise econômica da década
distante de ser uma opção. Se não o é para paí-
de 1970, as cidades, primeiro as europeias, fo-
ses onde predominou o amplo Estado do Bem-
ram empurradas para o papel de motores do
-Estar Social no pós-guerra, é menos ainda pa-
desenvolvimento econômico. Nascia o concei-
ra um País com a desigualdade social do Brasil,
to das Eurocidades. O mesmo ocorreu na Ásia
onde 63,7% dos idosos são chefes de família,
(Seul, Taipei, Hong-Kong, Cingapura, Bancoque,
51,9% têm renda abaixo de um salário míni-
Shanghai, entre outras) e, como citado acima,
mo e escolaridade média de 3,9 anos de estudo
logo se tornou tendência mundial.
(IBGE, 2011).
No mundo da economia global, desta-
Esses dados, embora confirmem uma ex-
cam Borja e Castells, a velocidade da informa-
tensão da fase produtiva, embaçam a imagem
ção sobre os mercados internacionais, flexibi-
dessa velhice que o discurso mainstream assu-
lidade das estruturas produtivas e comerciais
me, realidade única e como capaz de protelar
determinam o sucesso ou o fracasso. No “siste-
a decisão de passar à aposentadoria formal e
ma cidade”, os tecidos urbano e econômico se
de fato. Os números pouco revelam sobre as
confundem sem, no entanto, conseguir evitar
condições de inserção do idoso no mercado de
“altos custos sociais”. Estes, porém, são insu-
trabalho e, menos ainda, explicam o impacto
portáveis a longo prazo, pois sua persistência
do espaço urbano nessa suposta escolha de
implica fatores de dissuasão para a atrativida-
postergar o fim da fase laboral. No empenho
de da cidade e não qualifica suficientemente
de tornar essa relação social menos abstrata,
os recursos humanos (1996, p. 153). De acordo
é preciso analisar melhor as cidades a partir
com os autores, um plano estratégico de cidade
desse ponto de vista. Em outras palavras, o
seria inevitável para atender a demandas hete-
quanto a cidade interfere na condição de tra-
rogêneas, a partir de um consenso social para
balho do idoso, sobretudo no que diz respeito
refazer sistemas de convivência.
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447
Maura Pardini Bicudo Véras, Jorge Felix
Nas últimas décadas, porém, essas pos-
público no desenvolvimento urbano entre os
sibilidades se constituem cada vez mais impro-
anos de 1999 e 2008, a desigualdade intraur-
váveis. A sensação de crise funcional das gran-
bana resiste em virtude da reestruturação so-
des cidades tem se ampliado no século XXI,
ciorreprodutiva e territorial do capital, verifica-
com a imposição da lógica da “cidade global”
da desde o fim dos anos 1970.
(Sassen, 1998), na qual prevalece a tendência
De acordo com o Relatório das Cidades
dos agentes públicos de darem prioridade aos
no período 2002-2006, analisado pelos auto-
fluxos favoráveis às necessidades do capital
res, persiste no Brasil a centralidade Sul-Sudes-
na era da mundialização. Essa atitude promo-
te e, quanto à possibilidade de desenvolvimen-
ve uma metamorfose das grandes cidades em
to dos municípios, aparece, de forma crônica,
espaços construídos para facilitar o funciona-
a dependência da variável localização no ter-
mento dos sistemas econômicos transnacionais
ritório nacional. Esse diagnóstico é replicado na
desregulamentados, financeirizados e sempre
configuração intraurbana. O estudo, a partir de
carentes de mais urgência em sua atuação em
projeções com base na Pesquisa Nacional por
tempo real. A imagem das “elites voadoras” de
Amostra de Domicílios (IBGE) para o ano 2010,
Bauman (2003, p. 102) resume essa realidade.
constatou que apenas 33% dos domicílios bra-
Essa cidade é forjada para o comportamento
sileiros eram totalmente adequados, em 30,5
individualizado, em busca da segurança, com
milhões de moradias havia alguma inadequa-
a ilusão de pertencimento ou, para usar a pa-
ção e nenhum município apresentava 100% de
lavra predileta desse autor, um pertencimento
seus domicílios plenamente adequados (p. 95).
líquido à comunidade.
Como esse diagnóstico se aplica à realidade brasileira e interfere nos temas centrais
deste artigo? Seria possível incluir aqui literatura teórica para destacar o poder que tem
esse movimento do capital no espaço urbano
em usurpar o direito à cidade, como Kowarick
(2000 e 2002), Harvey (1982, 2012 e 2014),
Castells (1981) e Lefebvre (1991). No entanto,
abre-se mão do enfoque teórico em benefício da exposição do atual estágio das cidades
brasileiras, privilegiando-se, assim, o debate
contemporâneo sobre a exclusão territorial.
Em análise sobre a precariedade das cidades
quanto à condição de domicílio, Rolnik e Klink
(2011) destacam que, a despeito do avanço
institucional da Constituição de 1988 quanto à
função social da propriedade (artigo 5º, inciso
XXIII)15 e do aumento “espetacular” do gasto
Na pesquisa, foram considerados adequados os
448
domicílios com infraestrutura básica, abastecimento de água, saneamento, luz elétrica, localização, coleta de lixo e densidade populacional
da moradia.
Os autores destacam que o dinamismo
dos circuitos econômicos foi incapaz de produzir cidades com urbanidade e lembram que
Oliveira (2003, p. 78), em sua crítica à razão
dualista cepalina, que afirma que um segmento
atrasado dificulta o avanço social, já ressaltava
que esse mesmo imbricamento entre o atraso
e o moderno é encontrado nas cidades brasileiras. De acordo com o autor, mesmo entre
1945-1980, o nível do salário real nas cidades
se descolou do ritmo de crescimento econômico,16 deixando o trabalhador com renda abaixo
da necessária para a reprodução da força de
trabalho urbana.
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Questão urbana e envelhecimento populacional
Ao analisarem a evolução da massa sala-
1988 e obrigatória para cidades com mais de
rial por empregado e o crescimento do PIB per
20 mil habitantes (art. 182, §1º). No entanto,
capita nas cidades mais dinâmicas do País, no
como sentencia Villaça (2000), expressões co-
período 2002-2006, Rolnik e Klink concluem
mo “crescimento anárquico, caótico ou desor-
por uma provável distribuição funcional da ren-
denado”, que acompanham a ideia de “plano
da, ou seja, aquela entre salários, lucro e renda
diretor”, alimentaram um “mito” de que esse
da terra, em favor do capital e em prejuízo do
instrumento possa realmente configurar-se
trabalho, logo,
em uma solução para a questão urbana. Em
[...] na ausência de mecanismos compensatórios, o dinamismo econômico e a
distribuição funcional de renda distorcida
compõem um coquetel perverso, tendendo a agravar a situação do trabalhador
pela exclusão socioespacial, alimentada
pela valorização especulativa da terra.
(2011, p. 101)
sua visão, o “anárquico” e o “excludente” são
resultados de uma vontade política de investimentos e escolhas quanto à ocupação do solo, independentemente de plano. Se o fosse,
questiona, por que os bairros de alta renda
cresceriam de forma ordenada e os de baixa
renda de forma desordenada? O planejamento
urbano, conclui, é usado de maneira ideológi-
Antes de prosseguir com a avaliação de
ca, com a contribuição da imprensa, mais para
outra questão fundamental, a mobilidade ur-
esconder do que para resolver os problemas
bana, é preciso destacar que, segundo Rolnik
urbanos na contemporaneidade.18
e Klink,17 a intervenção do Estado por meio
Isto significa dizer que, em suas várias
de financiamentos, ampliação de crédito e es-
possibilidades de intervenção, por meio de
pecificamente o Programa de Aceleração do
programas de obras, crédito, financiamento
Crescimento (PAC), nos últimos 7 anos, apenas
ou plano diretor, o Estado, a depender dos
ampliou as consequências de fragmentação do
compromissos de gestão, comparece muito
território urbano. Ou seja, o caminho assumi-
mais como um fator de desintegração do que
do pelo poder público é o oposto ao “plano
de integração. Ou melhor, de divergência do
estratégico” de cidade defendido por Borja e
que de convergência, por mais que visões
Castells, como citado acima. Como nos ensi-
como a de Villaça possam ser relativizadas,
nam Véras (2000) e Campos Filho (1989), há
pois a execução de um plano diretor atende
várias visões conflitantes sobre a construção
a inúmeros interesses e lobbies, mas alguma
sociológica da cidade e o que vem a ser pla-
coisa sempre sobra para o eleitor. Ao longo
nejamento urbano. Seja qual for a visão, uma
das últimas décadas, o ambiente tem sido
construção democrática e inclusiva depende de
construído majoritariamente pelo interesse do
um processo “participativo”, de novo segundo
capital imobiliário (Rolnik, 2015) e com o Es-
Borja e Castells, para haver chance de atingir o
tado, quase sempre, à frente e possibilitando
consenso social.
intervenções do mercado, o que produz maior
Um dos instrumentos para tal seria o
segregação e desigualdade. É o caso de outro
chamado “plano diretor”, ferramenta de parti-
ponto caro ao objetivo deste texto: a mobili-
cipação popular instituída pela Constituição de
dade urbana.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016
449
Maura Pardini Bicudo Véras, Jorge Felix
Villaça (2011) expõe ainda a importância
subúrbios ou periferias, desperdiça o dobro ou
do controle do tempo de deslocamento para a
o triplo desse tempo.19 Com o baixo investi-
produção do espaço das cidades. Os homens,
mento público nos sistemas de transporte ao
lembra ele, atuam sobre o espaço como meio
longo das últimas décadas, os tempos de via-
de atuar sobre o tempo. O tempo de desloca-
gem casa-trabalho nas regiões metropolitanas
mento, como consequência da segregação no
triplicaram, e houve um crescimento da motori-
ambiente da metrópole, reflete a desigualdade
zação individual, com destaque para a compra
socioeconômica e, sobretudo, concentra os em-
de motocicletas pela parcela de baixa renda da
pregos (principalmente do setor terciário, mas
população,20 e da degradação dos meios cole-
também no secundário) cada vez mais distan-
tivos que se tornaram, inclusive, áreas de inse-
tes do local de residência dos pobres e, vicio-
gurança e risco, principalmente para mulheres
samente, próximos daqueles habitantes “mais
vítimas de abuso sexual.
ricos”, segundo o autor, e, portanto, com maior
Esse espaço de risco é intensificado ain-
musculatura financeira para enfrentar a espe-
da mais com a resposta do Estado às deman-
culação imobiliária em seus bairros de residên-
das de melhoria da mobilidade. Essa resposta
cia. A classe dominante, conclui ele, manipula
foi antecipada, de forma profética, cabe aqui
a produção desse espaço priorizando sempre a
registrar, por vários autores ao longo da última
otimização dos seus tempos de deslocamento
década. Para Castel (2012),
(p. 53), assim
[...] a temporalidade se faz presente nas
sociedades que precisam sempre produzir
mais e nas quais o trabalho de cada um,
heterogêneo, qualitativo, transforma-se
em quantidade de tempo [...] um continuum rígido. Essa temporalidade, pois,
domina o sujeito: o tempo se transforma
em espaço [...] Essas reflexões tomam o
caráter abstrato da quantidade de tempo:
no mundo espacializado do trabalho, o
homem, indivíduo pessoal, afetivo, pouco
importa [...] _só a engrenagem produtiva
é relevante. (Véras, 2001, p. 7)
a anomia suscita a violência [e acaba]
desembocando não em uma “Grande Noite”, mas em numerosas noites violentas,
[e][...] uma sociedade democrática estaria, então, completamente desprovida, ou
completamente desonrada diante da exigência de enfrentar essas desordens. Não
comportam, com efeito, nenhuma outra
resposta possível senão a repressão ou o
fechamento em guetos. (p. 568)
Para Chesnais (2005), a concentração de
riqueza provocada pela finança dominante, que
interfere em todas as áreas, colocaria a sociedade
Embora os dados oficiais registrem um
das grandes cidades, moradores dos chamados
diante de uma situação propícia à
acentua ção do militarismo, assim como
ao reforço dos métodos militares e de segurança para o controle político e social,
tanto no plano internacional quanto no
doméstico. (p. 57)
450
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016
tempo médio de deslocamento casa-trabalho (somente ida) da maioria da população
(66,9%) de até 30 minutos (Ipea, 2014), como
mostrado no Gráfico 1, o segmento mais pobre
Questão urbana e envelhecimento populacional
Gráfico 1 – Tempo gasto no deslocamento casa-trabalho (somente ida)
Fonte: Elaboração própria, a partir de Ipea (2013), com microdados da Pnad (2009).
Bauman (1998) já havia constatado que
o “problema” dos pobres fora remodelado como a questão da lei e da ordem,
e os fundos sociais outrora destinados
à recuperação de pessoas temporariamente desempregadas (em termos econômicos, a reacomodação da mão de
obra) são despejados na construção e
modernização tecnológica das prisões ou
outros equipamentos punitivos e de vigilância. (p. 78)
Estado aos protestos, como tentativa de impor
a legitimidade perdida com o exercício do monopólio da violência. De acordo com o autor,
vários foram os motivos para os protestos pelo
mundo desde 2010 na Tunísia, mas a questão
urbana estava subjacente a quase todos – sobretudo no Brasil.
Ao usarem a internet, razão de ser da
denominada sociedade informacional, os
manifestantes, na interpretação de Castells,
buscaram se organizar para ocupar um espa-
O propósito das citações foi registrar os
ço que consideravam ilegitimamente ocupa-
alertas para a militarização da questão social
do pelas autoridades, governos e empresas,
e da gestão urbana como consequência da
vistos como responsáveis pela produção de
financeirização. Como constatado por Castells
(2013), as manifestações que varreram o mundo no início deste século foram alimentadas
pela resposta violenta desproporcional do
“contradições entre uma democracia baseada
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016
no cidadão e uma cidade à venda pelo lance
mais alto” (ibid., p. 177). A despeito de esses movimentos levantarem várias bandeiras,
451
Maura Pardini Bicudo Véras, Jorge Felix
insinuando uma união frágil, Castells alerta
o trabalhador idoso é obrigado a adaptar-se
para o fato de a mobilização ser permanente,
a esse ambiente (re)construído. Ele habita,
por meio da rede virtual, e a qualquer mo-
compartilha e frequenta diariamente o espaço
mento se materializar no espaço físico. Essas
público para exercer seu direito ao trabalho ou
cobranças por ocupar, portanto, resultam em
para atender a essa nova requisição do Estado,
ambiente de constante tensão nas cidades, nos
cada vez mais propício a enxergar o envelhe-
bairros nevrálgicos, nas avenidas principais, no
cimento da população com lentes puramente
transporte público ou na periferia. Viver na ci-
fiscalistas, de protelar sua aposentadoria for-
dade passa a ser a convivência com um estágio
mal, estender sua vida laboral ou reinventar-se
de violência perene e muito além do risco tra-
como nova força de trabalho depois do marco
dicional de assaltos.
cronológico dos 60 anos. Em outras palavras, o
Analisando o segmento idoso no cenário
desmonte do bem-estar social faz desaparecer
da cidade, em seus fluxos e velocidade, Gue-
aquela seguridade coletiva do passado e al-
des (2014), ao pesquisar as atitudes para com
cança um último estágio ao negar-lhe o direito
o idoso no Metrô de São Paulo, relatou como
à cidade.
este se insere nas redes e itinerários, quais as
representações sobre ele, como é percebido e
tratado pelos demais usuários do Metrô. A sua
questão central era apreender a produção da
alteridade, ou seja, perceber como as pessoas
concebem algumas como semelhantes, como
um nós, parte do mesmo grupo social, ou porque outras são excluídas, tratadas como diferentes e categorizadas como eles. O autor coletou depoimentos que identificam as dificuldades no cotidiano das viagens pendulares casa e
trabalho: “falta de respeito... convivência mais
conflituosa que construtiva... reações de intolerância e discriminação”:
Eu acho que em horários de pico os lugares preferenciais deveriam ser liberados!
Pois a gente sai cansado do serviço e tem
de dar lugar para os idosos que se prevalecem da idade e muitas vezes estão vindo de passear porque não tem nada para
fazer em casa. (Apud Guedes, 2014, p. 78)
Considerações finais
Em muitas análises sobre a velhice, o idoso é
abordado quase como um ser à parte, uma autonomização da existência humana, sem ciclo
de vida. Neste texto, ao analisar a cidade como
um “ambiente construído”, procurou-se mostrar que a questão urbana interfere na construção das possibilidades da velhice. Se vive na cidade, logo, assim como todos os outros fatores
relacionados com a determinação do bem-estar
na fase idosa, como alimentação, exercício físico, educação, vícios, prevenção, o meio urbano
também influencia as condições do envelhecimento. O objetivo aqui foi questionar, especificamente, qual o papel do espaço urbano na
decisão individual de prolongar a vida laboral
ou para o trabalhador escolher o momento da
aposentadoria formal.
Em sua empreitada de manter-se na
Foi analisado o papel do capital finan-
terceira dimensão da velhice, a visível-limpa,
ceiro no desmonte do Estado do Bem-Estar
452
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016
Questão urbana e envelhecimento populacional
Social, sobretudo a partir dos anos 1970 e,
considerada precoce pelos parâmetros que o
principalmente, depois de 1990 e nos dias
próprio Estado, pressionado pelas exigências
atuais, dominados pelos efeitos da crise mun-
do capital, procura estabelecer como regra de
dial deflagrada em 2007-2008. Foi visto como
idade mínima. Ainda que permaneça, no mer-
a dinâmica da financeirização promove uma
cado de trabalho na condição de aposentado,
metamorfose na representação da velhice, to-
o trabalhador maduro opta pela aposentadoria
mando como universais as possibilidades do
para abrir alternativas de sobrevivência, in-
envelhecimento ativo. O capital financeiro, como agente do desmonte do Estado do Bem-Estar, atua – em sua fração capital imobiliário –
para forjar a cidade como “ambiente construído” e, portanto, reduzindo as oportunidades
de bem-estar durante todo o ciclo de vida do
trabalhador urbano, limitando, assim, suas possibilidades na velhice.
A hipótese suscitada pela pesquisa bibliográfica, mesmo que seja explorada em ocasiões posteriores, é que a degradação da vida
urbana, a segregação e a exclusão, provocadas pelo predomínio dos interesses do capital
imobiliário, são fatores que contribuem para a
antecipação da aposentadoria formal. A situação das cidades penaliza ainda mais o usuário
vulnerável do transporte coletivo e/ou o morador de menor renda. No caso do trabalhador
idoso, ele é obrigado a se submeter a toda sorte de risco no espaço público sem chance de
escolhas, logo, opta por livrar-se tão logo seja
possível dessa condição. Registra-se que a idade média de aposentadoria no Brasil é de 54
anos – um ano a mais do que era em 1998,
data da primeira reforma da Previdência Social,
que instituiu o fator previdenciário (Camarano
et al., 2012).
O aumento dos custos sobre moradia e
transporte, principalmente, mas também lazer,
saúde e outras despesas, antes divididas com
o Estado e hoje mercantilizadas, estariam empurrando o trabalhador para a aposentadoria
fluenciadas pela degradação das cidades, como
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 441-459, jul 2016
reduzir seu tempo de mobilidade com a obtenção de um emprego mais próximo de seu local
de residência – na maioria das vezes em condição informal – ou buscar empregabilidade em
cidades menores.
Mesmo com o valor de seu benefício reduzido, ao incidir o fator previdenciário sobre o
cálculo, o trabalhador opta pela aposentadoria
considerada precoce. Um dos fatores determinantes de sua decisão seria “se livrar” da agrura de ida e vinda diária ao local de trabalho na
grande cidade. Seu benefício reduzido, então,
passa a ser uma complementação da renda
vislumbrada pela permanência no mercado de
trabalho em situação informal, no caso dos menos qualificados, como afirmam Camarano et
al. (ibid.). Uma das hipóteses para essa renda é
ajudar a sustentar os custos crescentes de morar na cidade (média ou grande), onde as condições de se reinventar na velhice podem ser
mais promissoras.
Vale destacar ainda o duplo papel do
capital financeiro a produzir um discurso e
uma ação paradoxal sobre o sistema de aposentadorias. De um lado, o capital atua para construir um ambiente urbano a favor de
sua reprodução e acumulação em detrimento
do bem-estar do trabalhador. De outro, sob a
justificativa da existência de um novo envelhecer ou do envelhecimento populacional,
exige a protelação da aposentadoria em favor
453
Maura Pardini Bicudo Véras, Jorge Felix
do equilíbrio fiscal ou mesmo vislumbra reti-
confronto na prática e resultam no efeito con-
rar do Estado a responsabilidade previdenciá-
trário, ou seja, um estímulo adicional à anteci-
ria. No entanto, as duas atuações entram em
pação da aposentadoria.
Maura Pardini Bicudo Véras
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Sociologia, Departamento de Ciências
Sociais. São Paulo, SP/Brasil.
[email protected]
Jorge Felix
Universidade de São Paulo, Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. São Paulo, SP/
Brasil
[email protected]
Notas
(1) Os termos “globalização” e “mundialização” são, muitas vezes, usados como equivalentes,
porém são falsos sinônimos. O primeiro tem origem nas escolas de administração de empresas
norte-americanas, e o segundo é de formulação de economistas franceses (mondialisa on). Os
que cunharam o primeiro concebem o mundo contemporâneo como um globo plano e assumem
que todos os agentes econômicos dispõem de iguais oportunidades de compe ção; os que usam
o segundo entendem que o mundo é um espaço hierarquizado, cujas regras são as que mais
convêm às potências capitalistas centrais. Ver Chesnais (1996, p. 24) e S glitz (2007, p. 411).
(2) Optou-se aqui por usar os dados do Censo. No entanto, na Síntese dos Indicadores Sociais do
IBGE, a expecta va de vida do brasileiro ao nascer, em 2014, era de 75,1 anos contra 74,9, em
2013, e 74,6 em 2012 (IBGE, 2015).
(3) No caso do Brasil, Seguridade Social, como delimita o Ar go 194 da Cons tuição Federal, isto é,
saúde universal, previdência social e assistência social.
(4) Ver Esping-Andersen (2008), Palier (2003), para o contexto internacional, e Felix (2012), para o
nacional.
(5) Estabelece-se como definição de idoso e “trabalhador idoso” a pessoa com mais de 60 anos de
idade, como determinam o marco legal brasileiro e a Organização das Nações Unidas. Nos países
ricos, a ONU estabelece a idade de 65 anos para considerar a pessoa idosa.
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(6) O discurso econômico mainstream é entendido, aqui, como a narra va sobre a polí ca econômica
que se tornou hegemônica na mídia internacional e nos organismos mul laterais, como Banco
Mundial, Organização Mundial do Comércio, Fundo Monetário Internacional, a par r do fim dos
anos 1980 quando este úl mo adotou um receituário com dez recomendações econômicas,
conhecido como Consenso de Washington, para todos os países da América La na. Essas ideias,
porém, também foram empreendidas na economia europeia promovendo a desconstrução do
Estado do Bem-Estar Social do pós- Segunda Guerra Mundial. Essa “receita única” para esses
países alcançarem o equilíbrio macroeconômico previa austeridade fiscal, redução da carga
tributária, câmbio flutuante, “juros de mercado”, abertura comercial, eliminação de restrições
ao Investimento Estrangeiro Direto, desregulamentação financeira, direito à propriedade
intelectual (patentes) e privatização das estatais e dos sistemas de previdência social. Esse
discurso domina o ambiente entre 1978 até a crise financeira de 2008, período ba zado de
“Trinta Anos Neoliberais” (Bresser-Pereira, 2015, p. 17).
(7) Ver Esping-Andersen (2008) ou quadro esquemá co em Guillemard (2010, p. 106).
(8) Ver detalhes em Ba ch (2010) e Felix (2012).
(9) Ver Chesnais (2005).
(10) A empresa PDG, por exemplo, líder do setor imobiliário da América Latina, tem a seguinte
composição acionária: 15,74% Orbis Investment Management Ltd; 10,53% Vinci Equi es Gestora
de Recursos Ltd; 9,13% Vinci Capital Partners II Fundo de Inves mento em Par cipações; 5,39%
Pla num Investment Management Ltd; 5,31% Bank of America; 5,15% Skopos Investment Ltd;
0,51% diretoria; e 48,24% Outros, de acordo com informações do site da empresa acessado
em 24 de outubro de 2014:. http://ri.pdg.com.br/conteudo_pt.asp?idioma=0&conta=28&ti
po=32510. Acessado em: 24 out 2014.
(11) Cita-se aqui, a tulo de ilustração, o exemplo do Chile, que priva zou totalmente a previdência e,
parcialmente, a saúde e a educação.
(12) Ver OMS (2002).
(13) Sobre escolhas, do ponto de vista da Economia Social, ver Sen (1999, pp. 141-142). Vale a citação
de Bauman (1998, p. 118): “A liberdade de escolha, eu lhes digo, é de longe, na sociedade pós-moderna, o mais essencial entre os fatores de estra ficação”.
(14) Ver Berzins e Borges (2012); Camarano (2010) e Hirata e Guimarães (2012).
(15) Os autores citam ainda os ar gos 182 e 183 da CF (capítulo Polí ca Urbana) e o Estatuto da
Cidade (Lei Federal 11.257/2001).
(16) Ver Pochmann (2007), para obter dados sobre o poder de compra do salário mínimo no período
(p. 118) e em relação à renda nacional (p. 122).
(17) Para sustentar a afirmação, os autores citam Leitão (2009).
(18) Outras crí cas ao planejamento urbano são feitas por Senne (1988), ao tratar das ranias da
in midade e do esvaziamento dos espaços públicos, pois o planejador, ao tentar oferecer praças,
melhorar a qualidade de vida, não consegue ler as enfermidades sociais e acaba por encontrar
nos munícipes desconfiança em relação aos outros ou uma perversão do que entendem por
vida comunitária ”[...]cria a própria esterilidade que poderia estar querendo evitar” (p. 380).
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(19) É importante destacar que esse percentual se refere a toda área urbana do país, metropolitana
ou não. Até 1h são 23,6%, enquanto 8,4% demoram de 1 a 2 horas e 2,1% mais de 2 horas.
(20) Mais da metade (54%) dos domicílios brasileiros têm um automóvel ou motocicleta. De 2008
para 2012, o percentual de domicílios com esses pos de veículos subiu nove pontos percentuais
(45% em 2008 para 54% em 2012). As motocicletas veram o maior incremento, e os acidentes
são responsáveis por 12 mil mortes por ano. No estrato de renda de até um quarto do salário
mínimo per capita, 28% das famílias possuem carro ou moto, e nessa população há maior
ocorrência de posse de motocicleta. De 2008 a 2012, a posse de veículos privados na camada
mais pobre subiu 10 pontos percentuais. Das famílias abaixo da linha da pobreza (até meio
salário mínimo per capita), 35% já usufruem de veículos privados, 12 pontos percentuais acima
do índice de 2008 (Ipea, 2013, p. 3).
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Texto aprovado em 25/fev/2016
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Desigualdades intraurbanas
em internações hospitalares
por doenças respiratórias e circulatórias
em uma área da cidade de São Paulo
Intra-urban inequalities in hospitalizations for respiratory
and circulatory diseases in an area of the city of São Paulo
Helena Ribeiro
Edelci Nunes Silva
Resumo
As dinâmicas existentes em áreas urbanas apresentam consequências à saúde, relacionadas aos
determinantes sociais e ambientais, à promoção da
saúde e à atenção primária. O artigo mapeia e analisa as internações hospitalares por doenças respiratórias e circulatórias de idosos e respiratórias
em crianças por distritos em área da cidade de São
Paulo, comparando-as com a distribuição espacial
do índice de desenvolvimento, da qualidade socioambiental, da presença de favelas, a partir de dados secundários públicos e do georreferenciamento
com o programa ArcGis 9.2. As internações por
doenças do aparelho circulatório e respiratório em
idosos apresentaram padrão socioespacial. Maiores taxas estão relacionadas aos distritos com pior
perfil socioambiental e baixo IDH e taxas menores
estão associadas aos distritos com melhor perfil
socioambiental e alto IDH. Não houve um padrão
socioespacial definido das internações de crianças.
A espacialização da morbidade refletiu as desigualdades na cidade de São Paulo.
Abstract
The dynamics that exist in urban areas present
consequences to health, related to social and
environmental determinants, health promotion
and primary care. The article maps and analyzes
hospitalizations for respiratory and circulatory
diseases in elderly individuals and for respiratory
diseases in children by district in an area of the
city of São Paulo. It compares them to the spatial
distribution of the human development index, of
socio-environmental quality, and of the presence
of slums, using public secondary data and georeferencing through the software ArcGis 9.2.
Hospitalizations due to circulatory and respiratory
diseases among the elderly showed a sociospatial pattern. Higher rates occur in the districts
with worse socio-environmental profile and low
HDI, and lower rates occur in districts with better
socio-environmental profile and high HDI. No
socio-spatial pattern was found for children’s
hospitalizations. The space distribution of morbidity
reflected inequalities in the city of São Paulo.
Palavras-chave: saúde urbana; desigualdade; internação hospitalar; doença respiratória; doença
circulatória.
Keywords: urban health; inequalities;
hospitalization; respiratory disease; circulatory
disease.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3608
Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva
Introdução
“O município de São Paulo, impulsionado pelo
A cidade de São Paulo, com aproximadamente
migratório, teve como consequência concentrar
12 milhões de habitantes (IBGE, 2015) e uma
pessoas, riquezas, mas também desigualdades”
área de 1.521 km², incorporou as novas de-
(Peres e Ruotti, 2015).
desenvolvimento econômico e pelo amplo fluxo
mandas do modelo econômico global e reafir-
A cidade tem, portanto, nos seus interstí-
mou seu status de metrópole global. É o centro
cios, um mosaico complexo de espaços ricos e
de comando, de negócios e de fluxos de infor-
pobres, altamente segregados. Há presença de
mações, que concentra atividades de serviços
bairros nobres lado a lado com favelas; espa-
e constitui um importante polo econômico, no
ços verticalizados e consolidados com presença
País e no mundo.
de cortiços e de sem-teto. As favelas crescem
Até a década de 1970, a organização do
na periferia, mas também estão presentes nos
espaço da cidade baseou-se no padrão centro-
setores ricos, recém-incorporados pelo capital
-periferia, ou seja, as áreas centrais e dotadas
(Taschner, 2001; Santos e Silveira, 2001e Al-
de infraestrutura urbana foram destinadas à
meida, 2001). Como em outras regiões metro-
população de mais alta renda, enquanto as
politanas do País, “crescem as áreas habitadas
áreas periféricas, distantes do centro, e caren-
por pessoas em moradias precárias, formando
tes de infraestrutura foram ocupadas pelas ca-
ocupações irregulares que afetam as condições
madas mais pobres da população.
de saúde da população” (Aith e Scalco, 2015).
Nas décadas seguintes, as transforma-
Há, concomitantemente, uma tendência
ções foram impulsionadas pela globalização
de modificação do perfil populacional. A popu-
contemporânea, “um fenômeno multifacetado
lação da cidade vem envelhecendo. O percen-
com dimensões econômicas, sociais, políticas,
tual da população acima de 60 anos aumen-
culturais, religiosas e jurídicas interligadas de
tou, entre 1970 e 1991, de 6,08% para 8,08%
modo complexo” (Souza Santos, 2002). O au-
(Taschner, 2001, p. 35): em 2007, representava
mento de abertura das fronteiras ao comércio
11% da população total (IBGE, 2007) e, em
e aos fluxos de capital econômico, a crescen-
2015, a população de idosos correspondia a
te incorporação tecnológica, a ampliação dos
13,5% (Seade, 2016). Na periferia, o percentual
meios de comunicação a novas tecnologias di-
também vem aumentando. Nas décadas ante-
gitais, a migração de populações, em busca de
riores a 1991 era 3%; em 1991, 4,60%; e, em
melhores condições de vida e trabalho (Ribeiro
1996, 4,99% da população tinha 60 ou mais
e Vargas, 2015), provocaram a modificação do
anos (Taschner, 2001, p. 35).
padrão centro-periferia. As novas necessida-
Essa dinâmica espacial e populacional se,
des do mercado e do capital levaram à incor-
por um lado, cria uma cidade heterogênea, por
poração e a investimentos em novas áreas e à
outro, concentra, em algumas áreas “nobres”,
desvalorização de algumas regiões centrais, já
dotadas de serviços e infraestrutura, a popula-
consolidadas. Esse modelo se caracterizou pe-
ção afluente e áreas com população de baixa
lo aprofundamento do processo de segregação
renda, com todo tipo de carência – de mora-
intraurbana e pela polarização da vida social.
dia, de emprego, serviços, infraestrutura básica,
462
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Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares...
como água, esgoto, etc. e de saúde, educação,
populacionais, sociais e ambientais, ocorrido
cultura, lazer – aprofundando os problemas
nas áreas urbanas e, mais especificamente, nas
sociais e mantendo a população na espiral da
cidades dos países em desenvolvimento, nas
pobreza (Santos, 1996, p. 10)
últimas décadas do século XX e início do século
Uma das dimensões da degradação das
XXI (Opas, 2011).
condições de existência são as condições socio-
As dinâmicas existentes, em áreas ur-
ambientais e de saúde a que estão submetidas
banas, apresentam consequências à saúde,
parcelas da população, revelando mais uma
relacionadas aos determinantes sociais e am-
dimensão da pobreza e da iniquidade urbanas.
bientais, à promoção da saúde e à atenção pri-
Ribeiro (2006) e Santos (2003) ressaltam,
mária. O crescimento urbano não planejado e
porém, que a urbanização em si não é um mal.
insustentável exerce pressão sobre os serviços
Os autores argumentam que, do ponto de vista
básicos e dificulta o atendimento de necessi-
da saúde, a urbanização trouxe muitos benefí-
dades de uma população diversa, fazendo com
cios, tanto no nível individual, quanto no cole-
que as disparidades sociais aumentem no inte-
tivo. De modo geral, houve queda nas taxas de
rior das cidades, com repercussões importantes
mortalidade, mortalidade infantil tardia e au-
na saúde (ibid.). Em 2011, a Organização Pan-
mento na expectativa de vida, em função dos
-americana de Saúde aprovou Estratégia e Pla-
vários benefícios trazidos pelos equipamentos
no de Ação sobre a Saúde Urbana para atender
urbanos, como o acesso a água potável, sanea-
às necessidades sanitárias específicas da po-
mento básico, energia, bem como pelos pro-
pulação urbana das Américas, com base em 5
gramas de vacinação, de complementação ali-
princípios orientadores: equidade, sustentabili-
mentar, acesso aos serviços médicos, educação,
dade, desenvolvimento sustentável, segurança
informação, etc.
humana e bom governo.
O provimento de serviços de saneamen-
Para atender ao princípio da equidade, é
to e de saúde pública, ainda que de forma não
necessário que se conheça a situação de saúde
universalizada, levou a uma mudança no perfil
da população urbana e de sua relação com o
da morbimortalidade. Nas cidades, o surgi-
espaço social e ambiental.
mento e o agravamento das patologias estão
Apesar de os registros das informações
muito ligados ao modo de vida, às desigualda-
em saúde, no Brasil, disponibilizarem os ban-
des sociais e ambientais (Ribeiro, 2006; Jara et
cos de dados de mortalidade e internações
al., 2010).
hospitalares na rede mundial de computado-
No meio urbano paulistano, “as patolo-
res, permitindo verificar sua distribuição espa-
gias mais relevantes estão relacionadas às fai-
cial, poucos estudos têm sido feitos analisan-
xas etárias, ao ambiente social e aos impactos
do a distribuição espacial intraurbana, para
ambientais das diversas poluições” (Ribeiro,
identificar e entender as desigualdades em
2006, p. 292).
saúde no interior das cidades. Barata (2012)
A apreensão dos impactos do ambiente
ressalta a importância da análise dos eventos
na saúde deve, portanto, considerar esse com-
de saúde, em relação ao local de moradia, to-
plexo processo de transformações: espaciais,
mando o espaço geográfico como indicativo
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016
463
Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva
das condições de vida da população que nela
se determinar a magnitude das iniquidades
reside, para abordar as desigualdades sociais
em saúde é a medição das desigualdades. Elas
no plano de agregados.
podem indicar as necessidades não satisfeitas
Esses dados, contudo, apresentam limita-
de serviços de saúde, assim como populações
ções. Por exemplo, os dados de internação são
vulneráveis (Loyola; Castillo-Salgado; Nájera-
tratados para efeitos de pagamento e repasse
-Aguilar et al., 2002).
de recursos financeiros do Sistema Único de
Este trabalho tem como objetivo verificar
Saúde aos hospitais, e não com fins epidemio-
a distribuição espacial de residentes internados
lógicos; e os dados de mortalidade estão dis-
em hospitais públicos, em uma área da cidade
poníveis, somente, na escala temporal mensal.
de São Paulo, Brasil, com mapeamento de da-
Mesmo assim, é possível realizar estudos com
dos de internação hospitalar por doenças res-
essas informações, que indicam diferenças es-
piratórias, em crianças; e respiratórias e circula-
paciais, e correlacioná-los com outras variáveis.
tórias, em adultos maiores de 60 anos, utilizan-
A saúde depende de características individuais,
do a série temporal de 2003 a 2007. Essa série
físicas e psicológicas e, também, do ambiente
temporal foi utilizada porque os dados finaliza-
mais próximo das pessoas, do ambiente ma-
dos de internação hospitalar, por endereço de
crorregional e do global (Aith e Scalco, 2015).
residência dos pacientes, demoram a ser dispo-
Os registros existentes e disponíveis
nibilizados pelo Datasus aos pesquisadores, por
referem-se à ponta do iceberg das condições
algumas razões: dependem da alta do paciente
de adoecimento, de modo que pequenos incô-
para que os dados consolidados sejam proces-
modos e problemas de saúde, que não levam à
sados, e esta pode demorar, em alguns casos;
internação hospitalar, requerem a realização de
dependem de verificação e correção do endere-
inquéritos de saúde, os quais podem ser muito
ço de residência dos pacientes; só são liberados
custosos e demorados.
em casos especiais de pesquisa científica, em
Sendo assim, a cartografia, e, principal-
que os endereços individuais não sejam revela-
mente, os Sistemas de Informação Geográfica
dos, por questões éticas. Nesse caso, os dados
SIG/GIS, consiste em ferramenta importante
foram obtidos para tese de doutorado, reali-
para os pesquisadores, pois, através dela, é
zada na Faculdade de Saúde Pública da USP, e
possível localizar o evento no espaço e rela-
serão publicados após a defesa.
cioná-lo às variáveis socioambientais, a fim de
lançar hipóteses sobre o porquê de sua ocorrência ou de obter explicações relacionadas
Metodologia
aos fatores espaciais, permitindo melhorar o
conhecimento dos processos de saúde e de
Para a realização do presente estudo, foram
doença. Adicionalmente, os SIGs permitem mo-
utilizados dados secundários de morbidade
nitorar as desigualdades em saúde, ao fazer si-
referentes às internações hospitalares regis-
multaneamente, uma análise múltipla de vários
tradas nas AIHs – Autorização de Internações
determinantes de saúde, em diferentes níveis
Hospitalares – obtidos no Sistema de Informa-
de agregação. Um dos primeiros passos para
ções Hospitalares do Sistema Único de Saúde
464
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016
Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares...
(SIH/SUS) (Datasus, 2016), de pessoas residen-
e, por isso, os distritos escolhidos são repre-
tes em 14 distritos do município de São Paulo:
sentativos de condições climáticas semelhan-
Cidade Ademar, Cidade Dutra, Campo Belo,
tes, mas de perfil sociodemográfico diverso
Campo Grande, Cursino, Socorro, Itaim Bibi,
do município de São Paulo. Ou seja, a área de
Jabaquara, Moema, Pedreira, Sacomã, Santo
estudo abrange distritos com excelentes a pés-
Amaro, Saúde e Vila Mariana (Figura 1).
simas condições socioambientais e, por isso, foi
Esses distritos foram escolhidos por con-
selecionada para pesquisar desigualdade em
terem, no seu território, duas estações meteo-
saúde, tendo o clima como controle. Segundo
rológicas representativas das características cli-
Barata (2012, p. 35), “a vantagem de utilizar
máticas da cidade de São Paulo. O clima é um
espaços geográficos como indicadores de con-
indicador ambiental importante na avaliação
dições de vida está em tomar a complexidade
do desencadeamento das doenças estudadas
de organização social em seu todo”.
Figura 1 – Localização dos distritos estudados no município de São Paulo
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016
465
Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva
A fim de nortear as análises da distribuição espacial das internações hospitalares,
um determinado ano, os dados foram reunidos
em uma planilha única (2003 a 2008).
informações sobre os aspectos dos distritos fo-
O georreferenciamento dos dados foi fei-
ram mapeadas: concentração de favelas, perfil
to a partir do Código de Endereçamento Pos-
socioambiental, índice de desenvolvimento hu-
tal (CEP) de residência do paciente, utilizando
mano – IDH e população.
o programa ArcGIS versão 9.2. Foi utilizada a
A população estudada foi de crianças
base de ruas com projeção SAD69. Nesse pro-
menores de 5 anos, para as internações por
cedimento, houve perda de informações devido
doen ças respiratórias, e o grupo etário de
à não localização dos CEPs. Os endereços cujos
60 anos ou mais, para doenças do aparelho
CEPs não foram localizados e as informações
circulatório e respiratório. São os 2 grupos etá-
duplicadas foram excluídos da análise.
rios com maior vulnerabilidade aos impactos
negativos do ambiente.
Apesar de ser possível a desagregação
da informação até o nível do setor censitário,
A partir do conjunto de dados do esta-
no presente trabalho, optou-se por utilizar a
do de São Paulo, foram selecionadas as infor-
escala do distrito por duas razões: a) falta de
mações relativas ao município de São Paulo –
informação sobre a projeção populacional no
código 355030 e, posteriormente, as doenças
nível do setor censitário; e b) muitos dados de
conforme a versão 10 da Classificação Inter-
internação se concentraram no setor censitário
nacional de Doenças – CID 10 – Capítulo 9 –
dos hospitais.
Doenças do Aparelho Circulatório (I00 – I99) e
As internações por doenças do apare-
Capítulo 10 – Doenças Respiratórias (J00-J32;
lho circulatório – Capítulo 9 – correspondem
J40-J47; J80-J99) de 2003 a 2007.
a 24.318 casos, ou 8,6% do total de todas as
O SIH-SUS é um banco de dados adminis-
internações no período de 2003 a 2007, no se-
trativo, cujo objetivo é viabilizar o pagamento
tor estudado. As doenças respiratórias corres-
dos serviços prestados pelo Sistema Único de
pondem a 12.269 casos de crianças menores
Saúde – SUS e que contém informações sobre
de 5 anos, ou 5,0%; e 8.894, ou 3,7% do total
as internações hospitalares. Assim, uma inter-
de internações de pessoas acima de 60 anos,
nação ocorrida em um determinado ano pode
respectivamente.
ser processada no ano seguinte à internação ou
As taxas anuais foram calculadas, por
nos anos subsequentes. Por exemplo, no banco
distrito, e padronizadas por idade, conforme
de dados de 2004, há informação de interna-
fórmula abaixo:
ções ocorridas em 2003, 2002, 2001, 2000, e
assim por diante, ou seja, as informações referem-se ao ano em que os procedimentos com a
Tx. = número de internações/ano no distrito
_____________________________ x 10.000 hab.
população da faixa etária no distrito
internação foram pagos, e não ao ano em que
ela ocorreu. Dessa forma, para obter o conjunto das informações de internação ocorridas em
466
Os mapas temáticos foram feitos no
software ArcGIS versão 9.2.
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Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares...
Características dos distritos
A região selecionada é cortada por importantes vias e de tráfego intenso – como a Avenida
Nações Unidas (marginal do Rio Pinheiros), a
Avenida dos Bandeirantes, a Rodovia Imigrantes, que faz ligação com o Litoral de São Paulo, entre outras – e tem presença significativa
de favelas.
Áreas de favelas estão em todos os distri-
concentram, em seu território, maiores quantidades de favela.
A Figura 5 mostra a proporção, por distrito, da população (%) de crianças residentes,
em relação ao total da população do setor estudado. A distribuição mostra que os distritos
mais centrais apresentam menores taxas de
população infantil (menos de 5%), enquanto os
distritos do Sacomã, Jabaquara, Cidade Dutra
apresentam até 15% da população de crianças
menores de 5 anos, e o distrito de Cidade Ade-
tos selecionados, exceto o distrito de Moema.
mar apresenta a maior proporção de crianças
Na Figura 2 é possível verificar a maior concen-
menores de 5 anos, com percentual acima de
tração, em número e em tamanho, de áreas de
15% do total da população do setor.
favelas nos distritos do Jabaquara, Cidade Ademar, Cidade Dutra, Pedreira e Sacomã.
A Figura 6 mostra que a população de
mais de 60 anos está concentrada nos distritos
O IDH apontou os distritos do Ibirapuera
de Vila Mariana, Sacomã e Jabaquara – mais
e de Moema com os melhores indicadores de
de 10% da população do setor –, enquanto os
desenvolvimento humano (alto nível). Por ou-
distritos de Socorro e Pedreira contêm menos
tro lado, os distritos de Cidade Ademar, Cidade
de 5% da população com mais de 60 anos. Os
Dutra e Pedreira apresentam os piores indica-
distritos restantes abrigam até 10% da popula-
dores (nível baixo) (Figura 3).
ção de mais de 60 anos em seus territórios.
Os distritos de Santo Amaro, Socorro,
Estudo sobre os usuários do Sistema
Campo Belo e Moema são aqueles que apre-
Único de Saúde (SUS), no município de São
sentam melhor qualidade socioambiental,
Paulo, indicou que, aproximadamente, 50% da
situando-se nos primeiros grupos. Os distritos
população residente depende exclusivamente
de Campo Grande, Itaim Bibi, Vila Mariana,
do atendimento do SUS, mas a distribuição é
Cursino, Saúde, Pedreira e Cidade Dutra são
desigual. Nos distritos estudados, 7 têm por-
aqueles que apresentam características inter-
centagem de usuários inferior a 40%: Moema,
mediárias, do ponto de vista socioambiental;
Itaim Bibi, Campo Belo, Vila Mariana, Morumbi,
enquanto os distritos de Sacomã, Jabaquara e
Santo Amaro, Saúde. Os distritos com usuários
Cidade Ademar são os que apresentam as pio-
acima de 40% são Cursino, Socorro, Sacomã,
res condições socioambientais, segundo a clas-
Jabaquara, Cidade, Dutra, Cidade Ademar, e so-
sificação da Secretaria do Verde e Meio Am-
mente o distrito de Pedreira tem mais de 60%
biente do Município – SVMA (Sepe e Tokiya,
da população residente usuária exclusivamente
2004) (Figura 4).
do Sistema Único de Saúde (CEInfo, 2010)
Trata-se, também, de uma região muito diversificada, em relação ao padrão de
ocupação. Pode-se, em um mesmo distrito,
Os distritos de Cidade Ademar, Cidade
Dutra e Pedreira apresentam os piores indicadores de IDH e socioambiental, bem como
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Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva
Figura 2 – Distribuição das áreas de favelas, por perímetro (m),
no setor, município de São Paulo, SP
Fonte: Base Cartográfica Digital das Favelas do Município de São Paulo (PMSP/CEM, 2003).
Figura 3 – Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no setor,
município de São Paulo, SP, Brasil no ano de 2000
Fonte: www2.uol.com.br/aprendiz/n_noticias/.../id150802.doc
468
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016
Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares...
Figura 4 – Perfil socioambiental no setor, município de São Paulo, SP, Brasil
Fonte: SVMA (2004).
Figura 5 – Proporção da população (%) estimada de crianças menores de 5 anos,
por distrito, no setor, município de São Paulo, SP, no ano de 2005
Fonte: Fundação Seade (2009).
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Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva
Figura 6 – Proporção da população (%) estimada de idosos, por distrito, no setor,
município de São Paulo, SP, no ano de 2005
Fonte: Fundação Seade (2009).
encontrar áreas residenciais nobres, como os
Fontes do Ipiranga, onde se localizam o Parque
bairros arborizados, com residências baixas
Zoológico e o Jardim Botânico – e as áreas de
ou verticalizados; áreas industriais mais anti-
ocupação mais precárias – como as favelas e
gas, como a região de Santo Amaro, Interla-
os bairros de ocupação mais recente nas bor-
gos; áreas com forte adensamento de cons-
das das represas Guarapiranga e Billings.
trução e verticalização, como o eixo da Av.
Luiz Carlos Berrini.
Há, igualmente, amplos espaços verdes
preservados – como a região do Parque das
470
Esse mosaico confere, aos distritos, perfil
heterogêneo, com relação a todas as variáveis:
população, ambiente, grau de urbanização, entre outros (Figuras 7 e 8).
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Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares...
Figura 7 – Vista parcial do distrito de Moema,
melhor condição socioambiental, abril de 2010
Fonte: Silva, E. N.
Figura 8 – Vista parcial do distrito de Cidade Ademar,
pior condição socioambiental, abril de 2010
Fonte: Silva, E. N.
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Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva
Resultados e discussão
melhores posicionados e aos piores indicadores socioambientais.
Os mapas (Figuras 9, 10 e 11) apresentam a
Os distritos com as menores taxas de in-
espacialização das internações hospitalares por
ternação – entre 74,6 a 150,0 internações por
doenças respiratórias, em crianças e idosos, e
10.000 habitantes – foram Ibirapuera, Moema,
por doenças circulatórias em idosos.
Saúde, Campo Belo, em todo o período estuda-
Os distritos Sacomã, Jabaquara, Cidade
do. O distrito Cursino apresentou taxas baixas,
Ademar, Pedreira e Cidade Dutra foram aque-
no ano de 2003 e 2004, e o distrito Socorro, no
les que apresentaram as mais altas taxas de
ano de 2003. Os distritos restantes apresenta-
internação por doenças circulatórias, no pe-
ram taxas intermediárias de internação, em to-
ríodo de 2003 a 2006. As maiores taxas res-
do o período (Figura 11).
tringiram-se aos distritos do Jabaquara, Cida-
Desde 1940, estudos têm sido realizados,
de Ademar e Pedreira. Esses distritos contêm
em São Paulo, a fim de compreender as causas
maior concentração de favelas da área estuda-
das cardiopatias. A hipertensão foi apontada
da, menores índices de IDH, correspondendo à
como principal causa das doenças do coração
metade do indicador em relação aos distritos
à época (Chiaverini, 1951). Estudo, recente,
Figura 9 – Internações por doenças do aparelho respiratório
em crianças menores de 5 anos, no setor Sul-Sudeste,
município de São Paulo, 2003 a 2007
Taxa de internação por 10.000 hab
28,8 - 150,0
150,1 - 250,0
250,1 - 500,0
500,1 - 750,0
750,1 - 1500,0
472
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Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares...
Figura 10 – Internações por doenças do aparelho respiratório
em pessoas de 60 e mais anos, no setor Sul-Sudeste,
município de São Paulo, 2003 a 2007
Taxa de internação por 10.000 hab
28,8 - 150,0
150,1 - 250,0
250,1 - 500,0
500,1 - 750,0
750,1 - 1500,0
Figura 11 – Internações por doenças do aparelho circulatório
em pessoas de 60 e mais anos, no setor Sul-Sudeste,
município de São Paulo, 2003 a 2007
Taxa de internação por 10.000 hab
74,6 - 150,0
150,1 - 250,0
250,1 - 400,0
400,1 - 650,0
650,1 - 1000,0
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473
Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva
apontou o aumento das doenças hipertensivas
na população brasileira, no período de 2000 a
2010 (Luiz et al., 2015).
Atualmente, sabe-se que a etiologia da
doença é múltipla e extremamente complexa, e alguns de seus fatores de risco clássicos
são: o hábito de fumar, dieta rica em gorduras
e carboidratos refinados, sedentarismo e consequentemente a hipertensão, a diabetes e a
obesidade (ibid.).
Estudo realizado pela Inteheart
(Rosengren et al., 2004), em 52 países, mostrou
que os fatores psicossociais estressantes, como:
estresse no trabalho, tristeza, depressão, tensão, ansiedade devido a fatores externos, estão
homens e 180 por 100.000 mulheres.
(Luiz et al., 2015, p. 345)
Os estudos mencionados apontam que
as regiões mais ricas do País – Sul e Sudeste – apresentam um declínio mais acentuado
na mortalidade por doenças cardiovasculares
desde 1990. Os pesquisadores consideram
que, nessas regiões, maior acesso à tecnologia
médica (medicamentos, diagnósticos, etc.), programas de atendimento, além das campanhas
de conscientização relacionadas ao hábito de
fumar, podem estar relacionados ao declínio
mais acentuado.
Além disso, a distribuição espacial de in-
relacionados ao maior risco de ocorrência do
ternações por doenças circulatórias, apresenta-
infarto do miocárdio.
da neste estudo, aponta um padrão socioespa-
Estudos recentes mostram que a taxa
cial, ou seja, maiores taxas estão relacionadas
de mortalidade por doenças do aparelho cir-
aos distritos com pior perfil socioambiental e
culatório, mais especificamente, as cardiovas-
baixo IDH, e taxas menores estão associadas
culares, vêm decrescendo no País (Luiz et al.,
aos distritos com melhor perfil socioambien-
2015; Curioni et al., 2009; Ripsa, 2008) e na ci-
tal e alto IDH. Barata (2012) argumenta que
dade de São Paulo (Lotufo, 2004). Curioni et al.
a produção e a distribuição das doenças e
(2009) mostraram que houve queda, em média
eventos relacionados à saúde são fenômenos
de 3,9% ao ano, nas taxas de mortalidade por
complexos e nem sempre as explicações de sua
doenças cardiovasculares em todas as faixas
ocorrência revelam-se a partir dos comporta-
etárias, entre 1980 e 2003. Dados do estudo de
mentos individuais, da estratificação de classe,
Luiz et al. (2015) apontam redução de 10% nas
por exemplo. A autora aponta que a utilização
mortes por doenças circulatórias, no País, no
da categoria espaço geográfico como indica-
período de 2000 a 2010.
dor das condições de vida constitui uma vantagem para compreender a complexidade da
[...] nossos dados mostram que a taxa
de mortalidade por doenças do aparelho
circulatório vem caindo. Com 226 óbitos
por 100.000 homens e 169 por 100.000
mulheres no ano de 2010, as informações aqui apresentadas são semelhantes
às estimadas pela Organização Mundial
de Saúde para maioria dos países da Europa Ocidental e Austrália, cujas taxas
se situam em torno de 240 por 100.000
474
relação saúde-doença. Na presente pesquisa,
a distribuição espacial das internações hospitalares aponta para a desigualdade em saúde,
indicando que os processos da produção do espaço estão relacionados às condições de saúde
da população.
Esse mesmo padrão foi observado
em Silva e Ribeiro (2009) para os dados de
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016
Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares...
mortalidade por doenças circulatórias, no mu-
maior poder aquisitivo da população residente
nicípio de São Paulo, no mesmo período. O ma-
em distritos de melhor condição socioeconômi-
peamento indicou diferença socioespacial nos
ca, permitindo o uso de sistema ou de planos
padrões de adoecimento e morte. Os dados de
privados de saúde. Considerando a última hipó-
mortalidade representam universo mais amplo,
tese, ressalta-se que dados sobre internações
ou seja, todos aqueles residentes da área que
hospitalares realizadas na rede privada não
morreram pela doença no período. Similar-
constam neste estudo, o que é uma limitação
mente, o mapeamento mostrou que a taxa de
dos dados.
mortalidade por doenças do aparelho circula-
A Figura 9 apresenta os mapas de inter-
tório é mais elevada nos distritos com piores
nação por doenças respiratórias, em crianças
indicadores sociais, econômicos e ambientais.
menores de 5 anos. O distrito de Santo Amaro
Os distritos de Santo Amaro e Cidade Ademar
apresentou as maiores taxas de internação, por
apresentam taxas elevadas de mortalidade por
todo o período estudado – entre 750,1 e 1500,0
doenças circulatórias no período de 2003 a
internações por 10.000 habitantes –; seguido
2007 (Silva e Ribeiro, 2009).
do distrito do Jabaquara, que apresentou ta-
A distribuição das internações por doen-
xas entre 500,1 a 750 internações por 10.000
ças do aparelho respiratório em pessoas de
habitantes. Esses distritos não apresentam os
60 anos ou mais é apresentada nos mapas da
piores indicadores de IDH e socioambiental,
Figura 10. Nota-se que as maiores taxas de
e somente o distrito do Jabaquara apresenta
internação não obedecem a um padrão homo-
grande concentração de áreas de favela em seu
gêneo, no período de 2003 a 2007. O distrito
território. Os distritos do Ibirapuera, Moema,
do Jabaquara apresentou as maiores taxas, no
Saúde, Campo Belo, Cursino, Campo Grande e
período de 2004 a 2007; o distrito de Pedreira,
Sacomã apresentaram taxas baixas por todo
em 2003, e o distrito Cidade Ademar em 2004.
período estudado – 2003 a 2007 – entre 28,8 e
Os distritos do Ibirapuera, Moema, Campo Be-
150,0 internações por 10.000 habitantes.
lo, Saúde e Cursino apresentaram as menores
A espacialização dos dados apontou
taxas de internação durante todo o período es-
que não há um padrão socioespacial definido
tudado. Esses distritos apresentam as melhores
das internações de crianças. Em outras pala-
condições de IDH e a menor concentração no
vras, taxas elevadas podem ocorrer tanto em
número de favelas no interior do distrito.
distritos com baixo IDH e pior perfil socioam-
Nesse caso, também a distribuição espa-
biental, como em distritos de médio e alto IDH
cial aponta a desigualdade em saúde, ou seja,
e de melhor perfil socioambiental. Nesse sen-
maiores taxas relacionadas aos distritos com
tido, ressaltam-se as taxas elevadas ocorridas
pior perfil socioambiental e baixo IDH e meno-
no distrito de Vila Mariana de alto padrão em
res taxas relacionadas aos distritos com melhor
2003, 2005 e 2006.
perfil socioambiental e alto IDH. Considera-se,
No município de São Paulo, dois inqué-
porém, que essa distribuição pode estar rela-
ritos realizados entre 1984/1985 e 1995/1996,
cionada com o aumento mais recente da popu-
que avaliaram a evolução das doenças res-
lação idosa em distritos mais pobres ou com o
piratórias em crianças menores de 5 anos, na
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016
475
Helena Ribeiro, Edelci Nunes da Silva
cidade, observaram aumentos substanciais e
Outros fatores, como a poluição atmosférica, a
generalizados para doença respiratória alta e
presença de ácaros no domicílio e a frequência
para a doença respiratória baixa sem chiado. A
em creches, tendem a aumentar com o progres-
pesquisa mostrou um acréscimo de 71% para
so econômico das sociedades e dos indivíduos,
o conjunto dos casos, de 66% para os casos de
evidenciando a não simplicidade dessa relação
doença alta ou de doença baixa sem chiado,
(Benicio et al., 2000).
e 250% para os casos de doença baixa com
chiado, cujo aumento foi muito grande para as
crianças pertencentes ao terço mais pobre da
Conclusões
população (Benicio et al., 2000; Barata et al.,
1996; Monteiro e Benicio, 1987).
Este trabalho mostrou a desigual distribuição
Estudo apontou a densidade de ocupa-
espacial das internações hospitalares de idosos
ção no domicílio como um dos fatores do au-
e crianças, em hospital público, em 14 distritos
mento das doenças respiratórias em crianças.
do município de São Paulo. O georreferencia-
Contudo, a evolução das condições socioeco-
mento, por endereço de residência do paciente,
nômicas e as condições de salubridade do
foi possível devido à disponibilidade dos dados
meio ambiente, contraditoriamente, não foram
de internação diários, com Código de Endere-
capazes de explicar a duplicação da doença
çamento Postal (CEP) de residência, na rede
respiratória baixa na população das crianças
mundial de computadores. Esses dados permi-
menores de 5 anos, da cidade de São Paulo
tem localizar, no espaço, um grande volume de
(Benicio et al., 2000).
informações sobre determinados desfechos de
Estudo, que analisou a associação en-
saúde – nesse caso internações hospitalares
tre morbidade, variáveis climáticas e índice de
por doenças do aparelho respiratório e circula-
conforto, apontou que extremos de frio e de
tório – e contribuem para a identificação das
calor representaram maior risco para interna-
desigualdades e iniquidades.
ções de idosos, e os distritos com piores con-
A disponibilidade de dados e a facilidade
dições sociais e ambientais (Silva e Ribeiro,
de acesso às informações permitem estudar a
2012). No entanto, a associação dessas variá-
distribuição e a magnitude das doenças crôni-
veis atmosféricas com as internações de crian-
cas, em diversas escalas espaciais, bem como
ças com doenças respiratórias e menores de 5
associá-las a fatores de risco, a fim de melhor
anos residentes não apresentou diferença em
entender seus determinantes e poder planejar
relação às condições socioambientais (Silva e
e direcionar as ações de promoção de saúde e
Ribeiro, 2013).
de busca da equidade.
Os resultados relacionados à internação
O estudo demostrou que a distribuição
de crianças por doenças respiratórias, nos dis-
espacial das taxas de internação hospitalar
tritos apresentados, ressaltam a complexida-
não apresenta padrão homogêneo entre os
de do fenômeno saúde-doença, pois esta não
distritos. No entanto, deve-se ressaltar que, no
apresentou uma relação causal direta entre in-
município de São Paulo, 50% dos residentes
ternações e piores condições socioambientais.
são usuários exclusivos do SUS e também que
476
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016
Desigualdades intraurbanas em internações hospitalares...
não estão distribuídos igualmente no espaço. O
sadio” (Barata, 2012). As desigualdades evitá-
maior número de usuários do SUS está concen-
veis são aquelas para as quais existem tecno-
trado em distritos de pior condição socioeco-
logias médicas e de saneamento, que poderiam
nômica, refletindo as desigualdades sociais na
evitar o adoecimento de um grupo populacio-
cidade de São Paulo. Além disso, o SUS baseia-
nal, mas que não estão disponíveis àquele gru-
-se nos princípios de universalidade, equidade
po, por conta de sua posição social, renda ou
e integralidade, visando à superação das ini-
local de moradia.
quidades, que são as desigualdades injustas e
No entanto, o padrão de espacialização
evitáveis, em saúde. As diferenças em “saúde
intraurbano da morbidade, no setor da cidade
injustas são aquelas que estão associadas a
estudado, aponta para diferenças importantes
características sociais que sistematicamente
e que merecem aprofundamento na investiga-
colocam alguns grupos em desvantagem com
ção e atenção de gestores de saúde pública pa-
relação à oportunidade de ser e de se manter
ra seu enfrentamento.
Helena Ribeiro
Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública, Departamento de Saúde Ambiental. São
Paulo, SP/Brasil.
[email protected]
Edelci Nunes Silva
Universidade Federal de São Carlos, Centro de Ciências Humanas e Biológicas, Departamento de
Geografia, Turismo e Humanidades. Sorocaba, SP/Brasil.
[email protected]
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Texto recebido em 4/fev/2016
Texto aprovado em 25/abr/2016
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 461-479, jul 2016
479
Pescadores artesanais da Bacia
de Campos: a saúde pela perspectiva
da (in)segurança alimentar
Fishermen in Bacia de Campos:
health from the perspective of food (in)security
Mauro Macedo Campos
Moisés Machado
Geraldo Márcio Timóteo
Paulo Belchior Mesquita
Resumo
Este artigo parte do pressuposto de que a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) é uma condição
básica para uma vida saudável. Alimentação regular, em quantidade suficiente e com qualidade, é o
primeiro passo contra a morbidade ou os fatores
que levam ao adoecimento e à morte. A pesquisa
de campo analisou as condições de SAN da população de pescadores artesanais de sete municípios
localizados na Bacia de Campos. Os achados são
preocupantes. Não condizem com os recursos recebidos pelos municípios, em termos de royalties e
participações especiais, que se somam a outros repasses e fontes de arrecadação. Chama à atenção
a urgência de programas de abastecimento alimentar. Os dados fazem parte do Projeto Pescarte, uma
parceria entre UENF/Petrobras/Ibama.
Abstract
This article assumes that Food and Nutrition
Security is a basic condition for a healthy life.
Regular food in sufficient quantity and quality
is the first step against morbidity, or against
factors that lead to illness and death. The field
research analyzed the Food and Nutrition Security
conditions of the population of artisanal fishermen
from seven municipalities located in Bacia de
Campos, state of Rio de Janeiro. The findings are
worrisome, as they do not match the resources
received by the municipalities, in terms of royalties
and special participations, which are added to
other transfers and sources of revenue. Food
supply programs are urgently needed. The data are
part of the Pescarte Project, a partnership among
UENF/Petrobras/Ibama.
Palavras-chave: recursos públicos municipais; pescadores artesanais; segurança alimentar e nutricional; insegurança alimentar; saúde dos pescadores.
Keywords: municipal resources; artisanal
fishermen; food and nutrition security; food
insecurity; fishermen’s health.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3609
Mauro Macedo Campos et al.
Introdução
Os dados relativos à dimensão “acesso” é que orientaram os argumentos deste
artigo, no que tange à SAN junto às comuni-
Este artigo pretende trazer os resultados das
dades pesqueiras. É um pressuposto básico da
pesquisas referentes à Segurança Alimentar e
SAN, reafirmando a variável renda individual
Nutricional (SAN), junto às comunidades pes-
ou familiar como fatores limitadores a esse
queiras localizadas na Bacia de Campos (BC),
acesso (Consea, 2004). Dadas a abrangência
região Norte do estado do Rio de Janeiro. O
e profundidade propiciadas pela pesquisa que
estudo contempla sete municípios afetados
orienta este artigo, pode-se verificar, por ou-
pelas ações do complexo produtivo de petróleo
tros ângulos e indicadores, questões ligadas
e gás. Busca, assim, aproximar os achados da
diretas ou indiretamente à SAN, do ponto de
pesquisa com o conceito mais amplo de saúde,
vista do “acesso”, tais como renda/condições
não limitando unicamente à ausência de doen-
de vida, acesso a políticas públicas de saúde e
ça. Trata-se de um esforço de analisar o cotidia-
educação, entre outros.
no de pescadores artesanais, para que se possa
Em termos conceituais, a legislação as-
identificar as condições de suas famílias no que
sentada na Lei Orgânica de Segurança Alimen-
diz respeito ao acesso à alimentação de quali-
tar e Nutricional (Losam) considera que a SAN
dade e às consequências para a saúde desses
se manifesta “na realização do direito de todos
trabalhadores da região. Tem por objetivo sis-
ao acesso regular e permanente a alimentos de
tematizar os trabalhos e resultados das pes-
qualidade, em quantidade suficiente, sem com-
quisas referentes às atividades dos pescadores
prometer o acesso a outras necessidades es-
artesanais dessa região e às suas condições de
senciais [...]”. Tem como base o uso de práticas
vida, uma vez que que são considerados “gru-
promotoras de saúde, com respeito à “diversi-
pos vulneráveis” pelo Diagnóstico Participativo
dade cultural e que sejam social, econômica e
(DP) do Programa de Educação Ambiental da
ambientalmente sustentáveis” (Brasil, 2007).
Bacia de Campos (PEA-BC).
A Losan define também as condições de am-
Tomamos como referência, portanto, as
pliação do acesso, “por meio da produção, em
respostas dos pescadores e de suas famílias,
especial da agricultura tradicional e familiar,
afetadas pelas indústrias de petróleo e gás da
do processamento, da industrialização, da co-
Bacia de Campos, em que pesem suas percep-
mercialização” (2004, p. 4). Nessa abrangência
ções sobre o consumo e acesso a alimentos e
conceitual é que se inserem os propósitos do
sobre as condições de saúde. Vale ressaltar que
presente artigo, que trata do acesso aos ali-
os pescadores artesanais e as populações ribei-
mentos pelos pescadores artesanais e da vul-
rinhas, indígenas, quilombolas, etc. são consi-
nerabilidade dessas famílias.
deradas prioritárias para as ações de combate
O caráter variado do enfoque de SAN
à pobreza e à fome pelo Conselho Nacional de
reflete-se em alguns apontamentos dados pe-
Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e,
lo Consea com relação a indicadores básicos,
por suposto, para o Ministério de Desenvolvi-
sendo agregado em dimensões distintas: (a)
mento Social e Combate à Fome.
produção, (b) disponibilidade de alimentos,
482
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
Pescadores artesanais da Bacia de Campos
(c) renda/condições de vida, (d) acesso à alimentação, (e) políticas públicas relacionadas
à SAN, (f) saúde e acesso a serviços de saúde e (g) educação. Dessas dimensões, para o
Caracterização da área
de estudo: o campo
e a pesquisa
desenvolvimento do presente artigo, foi utilizada a dimensão do “acesso à alimentação”,
Apesar dos impactos deletérios no meio am-
usando-se a metodologia da Escala Brasileira
biente, a pesca constitui-se, ainda, um conjun-
de Insegurança Alimentar (Ebia) adotada pelo
to de atividades significativas para a economia
IBGE no Suplemento de Segurança Alimentar
local, destacando-se como um importante ve-
da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicí-
tor para a promoção de emprego e de renda,
lios (Pnad, 2004 e 2009).
em especial para as populações mais vulnerá-
As informações tomam por base duas
veis que subsistem unicamente dessa atividade
fontes empíricas: a primeira valeu-se dos ques-
tradicional, nos municípios da Bacia de Cam-
1
tionários aplicados durante o “Censo” realiza-
pos. Nesse espaço geograficamente definido,
do com os pescadores e suas famílias, em 207
evidenciam-se três atividades em grande ex-
localidades, espalhadas em 39 comunidades,
pansão: o turismo, a aquicultura e o petróleo
com ao menos três famílias de pescadores, dis-
(Walter, 2010). A despeito da radicalidade das
tribuídas nos sete municípios. A segunda consi-
transformações econômicas e sociais da paisa-
derou as informações obtidas nas reuniões com
gem do norte Fluminense e dos muitos proble-
os pescadores das comunidades.
mas ambientais que já se registram na região,
A metodologia para o desenvolvimento
a prática da pesca artesanal ainda se beneficia
desse artigo toma como base a Ebia, que busca
da conformação dos ecossistemas costeiros
mensurar a percepção das famílias em relação
encontrados ali. Os diversos rios que irrigam
ao acesso aos alimentos. A partir dessa noção,
o norte do estado do Rio de Janeiro descarre-
este texto traz alguns dados da Ebia, coletados
gam na costa uma quantidade de nutrientes
no campo junto às comunidades pesqueiras.
importantes para a manutenção da cadeia
Da mesma forma pretende-se sistematizar os
nutricional da vida marinha. Porém, a sobre-
resultados da pesquisa, em termos de interpre-
vivência desse ecossistema depende em gran-
tação da situação de SAN dos pescadores ar-
de medida da preservação do meio ambiente,
tesanais da Bacia de Campos. De acordo com
principalmente, das áreas de mangue, que são
essas questões, este artigo propõe trazer à bai-
o berçário de muitas espécies, das atividades
la a discussão sobre o acesso à alimentação de
da Petrobrás, da qualidade da água dos rios,
qualidade por parte de comunidades que, pa-
além do despejo nos mananciais de esgotos e
radoxalmente, produzem alimentos. A maneira
resíduos sólidos não tratados (UFRJ/Soltc/Polo
mais adequada para isso é ouvir o objeto dessa
Núatico/Nupem).
ação: os pescadores. Com base nessa orienta-
Dito isso, cabe definir o recorte espacial
ção de caráter mais empírico, é que se pretende
que contempla os municípios selecionados a
dar forma para este artigo.
partir de informações coletadas em Reunião
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
483
Mauro Macedo Campos et al.
Temática sobre Pesca e Educação Ambiental
observado para todos os municípios da Bacia
na Bacia de Campos. O recorte foi definido
de Campos. Essa área se caracteriza por ser
pelo critério de interferência com a atividade
uma região de grandes investimentos estatais
pesqueira na área de influência dos empreen-
e privados, além de apresentar uma rica bio-
dimentos da Petrobras. Tem por objetivo siste-
diversidade. Compreende uma estrutura sedi-
matizar os trabalhos e resultados das pesqui-
mentar, localizada na costa brasileira, que se
sas realizadas por pesquisadores do Projeto
estende do norte do estado do Rio de Janeiro
Pescarte,2 vinculados à Universidade Estadual
até o sul do estado do Espírito Santo. Trata-se
do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), em
do maior reservatório de petróleo do Brasil, res-
parceria com a Petrobras e o Instituto Brasileiro
ponsável por mais de 80% de toda a produção
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Re-
offshore,4 chegando a 3,031 milhões de barris
de óleo equivalente (BOE) por dia.5 No Quadro
1 podemos observar a localização dos campos
de petróleo descobertos e em atividade de exploração da Bacia de Campos.
Nesse cenário, a Petrobras assume o
papel de liderança nesse setor, além de ser a
maior empresa brasileira, com destaque na
exploração em águas profundas e com elevado potencial de produção. A Bacia de Campos
nováveis (Ibama). Além dos critérios de impacto que orientam o recorte da pesquisa, outros
foram adicionados, como o volume médio de
pescado desembarcado em toneladas, o número de pescadores e a renda familiar.3
O Quadro 1 apresenta os valores, por
critério, relativos à atividade de pesca artesanal em cada um dos municípios. Os dados são
trabalhados em percentual, em relação ao total
Quadro 1 – Critérios de seleção de municípios para o Pescarte
Volume médio de
Sobreposição das
atividades do espaço pescado desembarcado
por mês(2) (em %)
marinho(1) (em %)
Arraial do Cabo
Cabo Frio
Campos dos Goytacazes
Macaé
Quissamã
São Francisco de Itabapoana
São João da Barra
Número
de pescadores(3)
(em %)
Renda familiar(4)
(em %)
2,8
17,9
7,4
42,0
11,9
40,0
12,6
20,0
0,0
20,4
20,8
76,0
36,4
34,2
23,3
25,0
0,0
16,2
1,5
48,0
40,6
24,1
23,3
68,0
8,4
35,7
9,1
27,0
Fonte: PCRs – Petrobras/Projeto Pescarte (2013).
[1] Dados do registro de avistagens das plataformas da Petrobras e abordagens dos navios de pesquisa sísmica dos barcos de
pesca artesanal dentro da área de exclusão no período de 2007-2012 na Bacia de Campos.
[2] Dados retirados do Relatório do Projeto de Caracterização Regional da Bacia de Campos (PCR-BC).
[3] Dados do Ministério da Pesca e Aquicultura de 2013.
[4] Dados retirados do Relatório do Projeto de Caracterização Regional da Bacia de Campos (PCR-BC) considerando o número
de famílias no município com renda de até R$ 600,00.
484
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
Pescadores artesanais da Bacia de Campos
possui atualmente 55 campos de petróleo, com
Trata-se de um ambiente em que convi-
826 poços exploratórios. Esses poços estão vin-
vem essas grandes corporações que vivem da
culados a 45 plataformas marítimas, sendo a
exploração de petróleo e gás com as comuni-
maioria (41 plataformas) de produção e quatro
dades que sobrevivem da pesca artesanal, que-
de processamento. Essa fração do litoral brasi-
chegaram muito antes da descoberta do petró-
leiro é um ambiente socioeconômico complexo,
leo na região. É para essas comunidades que se
cuja principal atividade econômica é a explora-
fazem mais prementes intervenções do Estado,
ção das reservas de hidrocarbonetos. Operam
via políticas públicas. São, também, “alvos”
conjuntamente com a Petrobras outras cinco
dos projetos privados de responsabilidade so-
gigantes corporações do setor petrolífero: (a)
cial, mitigação socioambiental e compensação,
HRT Participações em Petróleo; (b) OGPar Óleo
praticados pelas empresas que “dividem” com
e Gás Participações; (c) Chevron Corporation
eles esse espaço.
Brasil; (d) Shell Brasil; e (e) Statoil. Destas, as
No que se refere à ação do Estado
duas primeiras são formadas por consórcios
brasileiro, para lidar com as questões concer-
com capital nacional.
nentes à exploração e produção de petróleo
Figura 1 – Mapa da Bacia de Campos
Campos descobertos até 1984
Campos descobertos de 1984 até 2001
Campos descobertos de 2002 até 2005
Campos definidos em 2006
Descobertas de óleo & gás em avaliação
Fonte: http://www.petroleoetc.com.br/
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485
Mauro Macedo Campos et al.
e gás, o Ibama se vale da Coordenação Geral
São considerados no cômputo da fis-
de Petróleo e Gás (CGPEG), gerência respon-
calização pelo Ibama: a) a gestão ambiental
sável pela emissão das Notas Técnicas, que re-
compartilhada, de poder e responsabilidade
gulam, dentre outras questões, os Programas
entre Estado, setores de maior vulnerabilida-
de Educação Ambiental, implementados nas
de socioambiental e outros segmentos sociais;
bacias petrolíferas brasileiras. É o braço do
b) o diagnóstico participativo; c) o projeto de
Estado que regulamenta e controla as ações
mitigação; d) o projeto de compensação; e) o
de impactos ambientais (e, nesse caso, tam-
programa de educação ambiental; f) a linha de
bém social). Vale ressaltar que o Ibama não
ação, com orientações que permitem o desen-
reconhece as ações pautadas pelo conceito de
volvimento de projetos de educação ambiental;
responsabilidade social como ações de mitiga-
e g) o projeto de educação ambiental, que é
ção de impactos. Ou seja, mais um ingredien-
composto pelas atividades que serão desenvol-
te que se mistura a esse conjunto de ações,
vidas a partir de determinada linha de ação. A
atores e indivíduos em um ambiente extrema-
Figura 2 destaca os projetos vigentes na Bacia
mente competitivo.
de Campos.
Figura 2 – Mapa dos projetos de educação ambiental na Bacia de Campos
Fonte: CEGPEG/Dilic/Ibama.
486
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
Pescadores artesanais da Bacia de Campos
Recursos públicos e prioridades
de investimentos locais
municípios em responder às necessidades das
Uma vez apresentados os critérios para a es-
em políticas públicas que, de alguma forma,
colha da região e os municípios a serem es-
possam minimizar os impactos com o futuro-
tudados, cabe trazer algumas informações
-fim da exploração desse recurso não renová-
adicionais que podem ajudar na construção
vel. O período analisado, de 2013 a 2015, cor-
dos argumentos deste artigo. Para a análise e
responde ao início da construção da proposta
compreensão das políticas e ações em segu-
do Projeto Pescarte, junto à Petrobras. O Qua-
rança alimentar e nutricional e dos impactos
dro 2 destaca o volume desses recursos para os
diretos e indiretos, na promoção da saúde das
municípios sob análise.
populações impactadas pela exploração de petróleo e gás e, ainda, priorizar investimentos
famílias de pescadores artesanais, é essencial
A queda abrupta no último ano da série
que se evidenciem a capacidade orçamentária
é um efeito imediato da redução do repasse
desses municípios e o que é destinado às polí-
dos royalties do petróleo, que foi, em média,
ticas de saúde.
de 47%. Esse cenário não aponta um horizonte
Dito isto, cabe lembrar que esses muni-
tranquilo para esses municípios, que depen-
cípios contam com a chamada “sorte geográ-
dem, em larga escala, dessa commodity.6 Ainda
fica”, que os coloca como receptores privile-
assim, representa um expressivo aporte finan-
giados de royalties de petróleo e participações
ceiro adicional ao orçamento desses municí-
especiais. Em outras palavras, os propósitos
pios, chegando a mais de 70% de dependência,
aqui são ilustrar a capacidade potencial desses
como é o caso de São João da Barra.
Quadro 2 – Royalties e participações especiais: 2013 a 2015 (em R$7)
Royalties (+) Participações Especiais
Município / Ano
Arraial do Cabo
Cabo Frio
Campos dos Goytacazes
Macaé
Quissamã
2013
2014
2015
44.443.942
46.109.384
24.466.844
329.883.324
304.805.596
117.911.385
1.303.272.972
1.208.366.996
550.787.779
516.455.723
542.656.872
310.654.749
94.737.917
95.103.720
49.098.371
8.292.812
8.870.045
5.618.221
228.789.216
237.085.764
140.098.706
São Francisco de Itabapoana
São João da Barra
Fonte: http://inforoyalties.ucam-campos.br/
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
487
Mauro Macedo Campos et al.
De qualquer forma, esse incremento dos
desagregados a partir das contas de transferên-
royalties compõe o volume de recursos orçamentários que se adiciona às transferências
constitucionais,8 como pode ser observado no
Quadro 3. Vale chamar a atenção para a soma
do Fundo de Participação dos Municípios (FPM)
e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que representa a quase totalidade das transferências, em
média 99%. Para o período analisado, diferentemente do repasse dos royalties, que teve um
decréscimo considerável, houve uma elevação
média de 7%, nas transferências orçamentárias, entre os anos analisados.
Em que pesem os propósitos do artigo,
considerar o volume de recursos disponíveis
para dar conta das políticas públicas locais é
uma variável essencial para que se possa identificar a capacidade do poder público em atender às demandas da sociedade.
O Quadro 4 aponta os valores agregados
do Sistema Único de Saúde (SUS) repassados a
esses municípios, no período analisado. Não se
considerou, aqui, a adesão ao tipo de gestão
do SUS a que cada município está vinculado.
O que se pretendeu foi apenas destacar o volume de recursos transferidos para o custeio
e investimento na saúde. Mas o que se pode
observar é uma elevação média dos repasses,
com destaque para Cabo Frio, São Francisco
do Itabapoana e São João da Barra. Esses três
municípios tiveram repasses expressivos nesses
três anos.
O Quadro 5 apresenta os repasses
do SUS por categorias. Esses valores foram
cia do SUS. De maneira geral, os repasses do SUS
488
concentram-se nos níveis de “atenção básica“ e
na “média e alta complexidade”, que em conjunto representam, em média, mais de 80% dos
recursos destinados pelo SUS aos municípios.
Os dados apresentados nesta seção
referem-se à capacidade orçamentária desses
municípios e os valores reais destinados às políticas locais de saúde. No entanto, a despeito
do volume de recursos repassados a esses municípios para o custeio e investimentos em saúde, os reflexos, na ponta, não são percebidos
de forma tão clara.
O Gráfico 1 traz as respostas dos entrevistados a respeito dos equipamentos de saúde dos sete municípios de forma agregada. Foi
solicitado aos entrevistados que fizessem uma
avaliação dando uma nota de zero a dez. Considerando a nota cinco uma avaliação razoável,
verifica-se que 35,8% tem uma avaliação negativa (1 a 4) e menor que a positiva (6 a 10). Por
município, com exceção de Quissamã (15,6%),
a avaliação razoável ficou em torno de 20%.
Arraial do Cabo, Cabo Frio e Quissamã tiveram
a avaliação péssima, em torno de 22%. Nota
10, acima de Campos (37%), Macaé (15,9%)
e São João da Barra (15,3%). Regra geral, talvez possamos considerar que a população tem
uma avaliação razoável dos equipamentos nos
sete municípios, a despeito do volume expressivo de recursos disponíveis para investimentos
e custeio com a saúde local. As administrações
dos equipamentos não são uniformes nos municípios, talvez isto explique alguns dos extremos de opinião em cada um deles.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
Pescadores artesanais da Bacia de Campos
Quadro 3 – Transferências orçamentárias constitucionais aos municípios:
2013 a 2015 (em R$)
Transferências orçamentárias
Município / Ano
2013
2014
2015
22.812.600
24.830.110
26.308.492
Cabo Frio
130.804.973
142.153.602
148.389.781
Campos dos Goytacazes
200.876.818
210.102.619
215.783.462
Macaé
Arraial do Cabo
134.895.266
148.166.489
159.604.198
Quissamã
21.758.004
23.687.054
25.148.264
São Francisco de Itabapoana
36.110.125
38.234.218
41.471.768
São João da Barra
29.590.585
33.518.221
36.314.987
Fonte: http://www3.tesouro.gov.br/estados_municipios/municipios_novosite.asp
Quadro 4 – Transferências de recursos do SUS aos municípios:
2013 a 2015 (em R$)
Repasses financeiros / SUS
Município / Ano
2013
Arraial do Cabo
Cabo Frio
Campos dos Goytacazes
Macaé
4.948.640
2014
5.683.319
2015
5.570.259
20.637.905
53.488.962
66.561.303
113.913.504
132.351.981
137.943.501
42.765.692
44.375.408
42.563.033
Quissamã
6.303.430
6.349.160
6.341.714
São Francisco de Itabapoana
3.961.968
6.839.306
7.739.206
São João da Barra
3.213.281
4.847.434
6.113.128
Fonte: http://aplicacao.saude.gov.br/portaltransparencia/index.jsf
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
489
490
9.845.095
13.466.90
10.225.939
2.367.544
2.308.877
2.464.154
Cabo Frio
Campos dos Goytacazes
Macaé
Quissamã
São Francisco de Itabapoana
São João da Barra
2.634.594
2.943.069
2.163.627
11.330.989
16.082.655
10.519.422
2.295.613
2014
3.062.192
2.747.813
2.290.546
12.288.024
15.820.326
11.105.620
2.441.584
2015
20
282.869
3.077.070
27.583.960
91.194.909
6.124.793
1.945.605
2013
50.240.461
110.309.748
26.137.352
3.483.043
3.380.186
2.438.561
108.712.662
29.268.561
3.351.870
2.486.008
1.440.447
2.280.560
2015
37.065.374
2.143.634
2014
Média e alta complexidade
Fonte: http://aplicacao.saude.gov.br/portaltransparencia/index.jsf
2.197.125
2013
Atenção básica
Arraial do Cabo
Municípios / Contas
287.914
267.943
105.436
1.195.750
2.372.755
1.210.976
142.378
2013
276.494
255.943
105.814
1.203.408
2.387.248
1.213.018
142.851
2014
317.411
235.615
96.992
1.155.624
2.188.307
1.204.429
130.947
2015
Assistência farmacêutica
0
0
0
36.000
80.000
40.000
20.000
2013
0
0
16.000
0
20.000
185.000
20.000
2014
Gestão do SUS
0
0
0
0
27.000
34.000
18.000
2015
262.734
341.829
200.460
2.168.290
4.504.266
1.817.201
221.833
2013
236.859
311.885
199.719
1.839.532
4.424.349
1.643.548
218.221
2014
237.124
316.793
197.533
1.901.291
4.692.813
1.649.806
227.257
2015
Vigilância em saúde
Quadro 5 – Transferências de recursos do SUS aos municípios: 2013 a 2015 (em R$)
198.460
760.450
516.920
1.511.753
2.334.667
1.619.840
441.700
2013
259.040
826.400
528.130
712.917
560.067
3.027.600
883.000
2014
Investimentos
57.840
1.058.800
273.600
1.053.743
4.898.306
2.342.986
489.911
2015
Mauro Macedo Campos et al.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
Pescadores artesanais da Bacia de Campos
Gráfico 1 – Avaliação dos equipamentos de saúde nos municípios analisados.
(Exemplos: posto de saúde, hospital público, farmácia municipal, ambulância)
Fonte: Censo PEA-Pescarte (2015).
Por fim, para o que se pretende neste
As seções que seguem foram construídas
artigo, a saúde deve ser expressa no seu con-
com base nas informações colhidas durante a
ceito mais amplo: “não apenas a ausência de
realização do Censo com os pescadores artesa-
doenças, mas o bem-estar físico e mental”.
nais (de novembro de 2014 até dezembro de
Faz sentido, então, considerar os princípios de
2015). O epicentro da pesquisa é a aplicação
segurança alimentar e nutricional, como par-
da metodologia definida pela Ebia, junto às
te desse entendimento. É o que procuraremos
famílias dos pescadores artesanais nos municí-
apontar nas próximas seções do artigo, a partir
pios selecionados.
dos recortes espaciais já definidos.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
491
Mauro Macedo Campos et al.
Pesquisas de percepção
de insegurança alimentar
e fome
a realização, nos anos de 1990, de pesquisas
que levaram à construção de escalas, metodologicamente complexas e empiricamente
fundamentadas de insegurança alimentar. Em
termos práticos, esse método consiste na apli-
Os métodos baseados na percepção da inse-
cação de questionários que, com uma série de
gurança alimentar foram inicialmente desen-
perguntas, cobrem uma escala que vai desde a
volvidos para aplicação na América do Norte e
percepção de preocupação e angústia adiante
estavam voltados para as redes de programas
da possibilidade de não dispor de alimentos
de proteção alimentar. Levavam em conta as
regularmente até a percepção de problemas
questões sociais e também biológicas. Pessoas
na adequação da dieta (na diversidade e/ou na
que não tenham meios para adquirir alimentos
quantidade de alimentos) que, no limite, levam
em quantidade suficiente podem se considerar
à fome e a problemas de saúde.
em insegurança alimentar, ainda que não apre-
No Brasil, essa metodologia foi aplica-
sentem sinais clinicamente reconhecíveis de
da em escala nacional em 2004, 2009 e 2013
desnutrição. Além disso, mesmo não passando
pelo IBGE, no âmbito da Pesquisa Nacional de
fome, algumas pessoas podem sentir um medo
Amostras Domiciliares (Pnad) tendo como um
justificável de privações futuras. Representam,
suplemento a Ebia. Esta visa detectar e dimen-
portanto, elementos centrais na composição
sionar os problemas de insegurança alimentar
analítica referente à saúde dos trabalhadores
no País, permitindo classificar as unidades do-
(Machado, 2010).
miciliares em situação de segurança alimentar,
Cabe ressaltar que as pesquisas de inges-
esta classificada em leve, moderada ou grave.
tão domiciliar de alimentos conseguem perce-
Por esse método, a insegurança alimentar
ber o fenômeno da “insegurança alimentar”
é percebida em vários níveis, que vão da preo-
com maior fidelidade, pois procuram examinar
cupação de que o alimento acabe antes que
os hábitos de ingestão alimentar das famílias.
haja dinheiro para comprar mais – dimensão
No Brasil são realizadas como estudos pontuais
psicológica da insegurança alimentar –, pas-
por institutos de pesquisa e universidades. Uma
sando, pela insegurança relativa ao comprome-
vantagem desses métodos é que se fundamen-
timento da qualidade da dieta, sem restrição
tam na avaliação direta da ingestão de alimen-
quantitativa, chegando ao ponto mais grave
tos. Em função do perfil do Projeto Pescarte,
que é a insegurança quantitativa, situação em
tais métodos não foram utilizados. Portanto, no
que a família passa por períodos concretos de
que se refere à qualidade da alimentação inge-
restrição na disponibilidade de alimentos para
rida pelos pescadores, esse dado não foi com-
seus membros, destacando-se a situação em
putado na pesquisa.
que as crianças são atingidas como a mais gra-
A necessidade de disponibilizar indica-
ve das condições de insegurança alimentar.
dores sensíveis de insegurança alimentar que
A principal vantagem desse método pro-
fossem direcionados para a pobreza e não
vém do fato de as medidas qualitativas apreen-
se limitassem às definições clínicas, motivou
derem, como elemento essencial, o modo como
492
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
Pescadores artesanais da Bacia de Campos
as pessoas mais atingidas percebem a insegu-
A outra consiste na leitura individual das
rança alimentar. Esse método permite captar,
respostas às 14 perguntas formuladas aos
não só as dimensões físicas, mas também as
entrevistados. Esse método possibilita a
dimensões psicológicas da insegurança alimen-
identificação percentual das famílias que são
tar; e permite ainda classificar os domicílios de
submetidas às condições de privação severa
acordo com sua vulnerabilidade ou nível de ex-
de alimentos, como é o caso apontado pelas
posição à insegurança alimentar. Seus limites
questões 7 e 13 da tabela Ebia. Seguiremos à
são dados pelo caráter “subjetivo” da insegu-
segunda análise proposta.
rança alimentar, que dificulta comparações e
A partir dessas questões, é possível
não permite captar a dimensão da segurança
mensurar o que se tem sobre a percepção em
dos alimentos, ou seja, a qualidade sanitária
relação ao acesso à alimentação. É uma me-
(Pnad, 2013).
dida, portanto, da expectativa dos indivíduos.
Em suma, destaca-se que as diversas me-
Os resultados medidos pela Ebia mostram uma
todologias de medição de segurança alimentar
associação forte entre a insegurança alimentar
são complementares ao evidenciar distintos
e os baixos rendimentos. A participação da so-
níveis de agregação geográfica e demográfica,
ciedade civil tem um papel essencial na con-
bem como seus indicadores diretos e indiretos.
dução das políticas públicas de SAN. É nesses
Esses indicadores refletem o sentimento de in-
termos que ganham cada vez mais importância
segurança alimentar dos entrevistados, de for-
os conselhos participativos. Isso se evidencia
ma a fazer uma gradação em relação à sua se-
no fato de que, dos sete municípios analisados,
gurança de obter e consumir alimentos. Trata-
apenas dois não têm conselhos de SAN: Arraial
-se de uma escala de 14 perguntas. O número
do Cabo e São Francisco do Itabapoana. Ain-
de respostas “sim” permite uma classificação
da nesses termos relativos à participação da
que vai da segurança alimentar até a insegu-
sociedade civil na condução das políticas de
rança grave. O Quadro 6 apresenta as questões
SAN, pode-se afirmar, com certa segurança,
centrais para que se possa identificar a grada-
que a pesquisa desenvolvida pelo Projeto Pes-
ção da percepção dos indivíduos em relação à
carte, conduzida pela UENF/Petrobras/Ibama,
sua insegurança alimentar.
seja a de maior abrangência, em uma comu-
O processo de análise dos resultados da
nidade específica – caracterizada entre povos
aplicação da tabela Ebia pode seguir dois mo-
e comunidades tradicionais considerados pelo
delos distintos. O primeiro (Tabela 1) avalia a
Consea Nacional. Nas próximas seções serão
presença de respostas “sim” ao questionário,
apresentados os resultados da aplicação da
considerando sua presença como um fator
metodologia da Ebia, parte integrante dos
revelador das condições de baixa ou nenhu-
questionários do Censo junto às localidades
ma nutrição entre a população investigada.
pesqueiras cobertas pelo Projeto Pescarte.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
493
Mauro Macedo Campos et al.
Quadro 6 – Questionário da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar
1) Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio
tiveram a preocupação de que a comida acabasse antes que
tivessem dinheiro para comprar mais comida?
8) Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou
mais de idade ficou um dia inteiro sem comer ou teve apenas
uma refeição ao dia, porque não tinha dinheiro para comprar
comida?
2) Nos últimos três meses, os alimentos acabaram antes que
os moradores deste domicílio tivessem dinheiro para comprar
mais comida?
9) Nos últimos três meses, os moradores com menos de 18
anos de idade não puderam ter uma alimentação saudável e
variada, porque não havia dinheiro para comprar comida?
3) Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio
ficaram sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e
variada?
10) Nos últimos três meses, algum morador com menos de
18 anos de idade comeu menos do que você achou que devia
porque não havia dinheiro para comprar a comida?
4) Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio
comeram apenas alguns poucos tipos de alimentos que ainda
tinham, porque o dinheiro acabou?
11) Nos últimos três meses, foi diminuída a quantidade de
alimentos das refeições de algum morador com menos de
18 anos de idade, porque não havia dinheiro suficiente para
comprar a comida?
5) Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais
de idade deixou de fazer alguma refeição, porque não havia
dinheiro para comprar a comida?
12) Nos últimos três meses, algum morador com menos de 18
anos de idade deixou de fazer alguma refeição, porque não
havia dinheiro para comprar a comida?
6) Nos últimos três meses, algum moradores de 18 anos ou
mais de idade comeu menos do que achou que devia, porque
não havia dinheiro para comprar comida?
13) Nos últimos três meses, algum morador com menos de 18
anos de idade sentiu fome, mas não comeu, porque não havia
dinheiro para comprar mais comida?
7) Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou
mais de idade sentiu fome, mas não comeu, porque não tinha
dinheiro para comprar comida?
14) Nos últimos três meses, algum morador com menos de 18
anos de idade ficou um dia inteiro sem comer ou teve apenas
uma refeição ao dia, porque não havia dinheiro para comprar
comida
Fonte: Núcleo de Estudos em Pesquisa em Alimentação/MDS, 2010.
Respostas Sim (1) e Não (0)
Escore para classificação = somatória de respostas positivas (de 0 a 14)
Tabela 1 – Pontos de corte para classificação dos domicílios
EBIA
Classificação
Domicílios com menores de 18 anos
Domicílios sem menores de 18 anos
0
8
Insegurança leve
1-5
1-3
Insegurança moderada
6-9
4-5
10 - 14
6-8
Segurança alimentar
Insegurança grave
Fonte: Núcleo de Estudos em Pesquisa em Alimentação/MDS (2010).
494
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
Pescadores artesanais da Bacia de Campos
Resultados do censo
artesanais dos sete municípios pesquisados
Ao longo desta seção, serão apresentados os
vidido em dez blocos temáticos.9 Dentre eles,a
resultados encontrados pelas pesquisas consi-
SAN foi abordada no bloco relativo ao “Inqué-
derando o seu limite temporal. Parte dos argu-
rito Alimentar”, tendo por base as questões já
mentos que justificam a escolha desse público
validadas pela Ebia. Foram utilizadas também,
pode ser apontada pelo próprio Ministério da
informações coletadas em outros blocos do
Pesca e Aquicultura (MPA), ao destacar que
questionário, como “Identificação Socioeconô-
a pesca artesanal é uma das principais ativi-
mica”, “Caracterização Familiar” e “Avaliação
dades sociais, econômicas e ambientais reali-
de Serviços Públicos”.
na Bacia de Campos. Esse questionário foi di-
zadas no Brasil, com um milhão de pescado-
Nas tabelas a seguir, apresentamos os re-
res artesanais e com cerca de 3,5 milhões de
sultados das perguntas 1, 7 e 13 da Ebia, pois,
pessoas vivendo, direta ou indiretamente, da
elas vão da condição leve de insegurança ali-
renda na atividade pesqueira. Contudo, esse
mentar, que é o temor da falta de alimentos,
número pode conter variações. Como no caso
à condição mais severa, que representa a com-
da região lindeira à Bacia de Campos, os dados
pleta falta de alimentos por, pelo menos, um
do IBGE (Censo, 2010) apresentam um total
dia nos últimos três meses. A seguir se observa
de 3.020 pescadores, enquanto as Colônias
o percentual de famílias de pescadores artesa-
de Pesca afirmam possuir, em seus cadastros,
nais, distribuídos nos sete municípios, no que
14.730 pescadores.
tange a falta de alimento.
Vale ressaltar que os dados do Censo fo-
A Tabela 2 aponta para uma situação
ram obtidos por meio de um questionário am-
extremamente grave quando consideramos
plo, construído e aplicado pelo Projeto Pescarte,
que estamos falando de produtores de alimen-
junto a todas as localidades de pescadores
tos, pois, temem passar forme. Como pode-se
Tabela 2 – Respostas questão Ebia-1
Município do estudo
Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio tiveram
a preocupação de que a comida acabasse antes que tivessem
dinheiro para comprar mais comida?
Total (%)
Sim (%)
Não (%)
Não respondeu (%)
Campos dos Goytacazes
62,4
37,0
0,6
100,0
Macaé
31,9
65,3
2,8
100,0
São Francisco do Itabapoana
37,5
62,0
0,5
100,0
São João da Barra
45,3
54,5
0,2
100,0
Arraial do Cabo
33,8
63,9
2,3
100,0
Cabo Frio
46,7
50,2
3,1
100,0
Quissamã
32,2
67,8
–
100,0
Fonte: Censo PEA-Pescarte/2015.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
495
Mauro Macedo Campos et al.
observar, os municípios de Campos dos Goyta-
comprar comida. Em seguida, Cabo Frio apre-
cazes, Cabo Frio e São João da Barra apresen-
senta um percentual de 10,1% de indivíduos
tam, respectivamente, as situações mais gra-
famélicos, e Arraial do Cabo revela que 9% de
ves, pois 62,4%, 46,7% e 45,3% das famílias
pessoas acima de 18 anos sentiram fome sem
temem passar forme pela falta de recursos para
terem condições financeiras para saciar sua
aquisição de alimentos, antes do término do
vontade de comer. Os demais municípios, Ma-
mês. Os demais municípios apresentam, tam-
caé, São João da Barra, São Francisco e Quissa-
bém, resultados expressivos, e o município de
mã, apresentam, respectivamente, 7,2%, 6,9%,
Macaé apresenta o menor resultado, 31,9%.
5,9% e 2,8%, mas, apesar de terem resultados
Na Tabela 3, encontram-se os dados de
restrição alimentar severa, caracterizada pe-
mais baixos, não deixam de apresentar situações preocupantes.
lo fato de os indivíduos terem experimentado
Já, a Tabela 4, que corresponde à 13ª
a ausência de alimentos por pelo menos um
pergunta da Ebia, apresenta a situação em que
dia sem terem recursos para providenciar sua
indivíduos menores de 18 anos sofreram restri-
alimentação. Assim, Campos dos Goytacazes,
ção alimentar severa. Campos dos Goytacazes
reconhecido como o município da região com
apresenta 8,3%, e Macaé e Arraial do Cabo,
maiores recursos, provenientes das rendas pe-
5,8% e 5,7%, respectivamente, os maiores ín-
trolíferas, atingindo a cifra de R$ 2,4 bilhões ao
dices. Contudo, em se tratando da condição
ano, apresenta um percentual de 16,7% de fa-
de ausência de alimentos, qualquer indicativo
mílias de pescadores artesanais com membros
deve ser considerado grave, como ocorre nos
maiores de 18 anos que sentiram fome e não
municípios de Cabo Frio, com 4,1%, São João
puderam comer pela ausência de dinheiro para
da Barra, com 3,9%, Quissamã, com 2,7% e
Tabela 3 – Respostas questão Ebia-7
Município do estudo
Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de
idade sentiu fome, mas não comeu, porque não tinha dinheiro
para comprar comida?
Sim (%)
Não (%)
Não respondeu (%)
Total (%)
16,7
82,5
0,8
100,0
Macaé
7,2
90,4
2,4
100,0
São Francisco do Itabapoana
5,9
93,1
1,0
100,0
São João da Barra
6,9
92,7
0,5
100,0
Campos dos Goytacazes
9,0
88,2
2,9
100,0
Cabo Frio
10,1
86,8
3,1
100,0
Quissamã
2,8
97,2
–
100,0
Arraial do Cabo
Fonte: Censo PEA-Pescarte/2015.
496
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
Pescadores artesanais da Bacia de Campos
Tabela 4 – Respostas questão Ebia-13
Município do estudo
Nos últimos três meses, algum morador com menos de 18 anos de idade
sentiu fome, mas não comeu, porque não havia dinheiro para comprar
mais comida?
Total (%)
Sim (%)
Não (%)
Não respondeu (%)
Não sabe (%)
Campos dos Goytacazes
8,3
87,8
3,6
0,4
100,0
Macaé
5,8
90,5
2,9
0,7
100,0
São Francisco do Itabapoana
1,9
95,8
2,1
0,2
100,0
São João da Barra
3,9
93,6
2,5
–
100,0
Arraial do Cabo
5,7
87,9
5,7
0,6
100,0
Cabo Frio
4,1
87,6
7,0
1,2
100,0
Quissamã
2,7
94,7
2,7
–
100,0
Fonte: Censo PEA-Pescarte/2015.
São Francisco do Itabapoana, com 1,9%. Cabe
ressaltar que os dados apresentados são, per-
Considerações finais
centualmente, quase a metade daqueles verifi-
A proposta deste artigo foi conciliar os obje-
cados pelos indivíduos com idade acima de 18
tivos centrais do Projeto Pescarte, que tem
anos. Isso pode ser um indicativo de que os in-
como foco a educação ambiental das famí-
divíduos adultos buscam, na maioria das vezes,
lias dos pescadores afetados pelas atividades
alimentar primeiramente as crianças e os ado-
da Petrobras na Bacia de Campos, com as
lescentes. Essa realidade informa que, quando
condições básicas de saúde. Nesse sentido,
constatamos a presença da fome em menores
buscou-se trazer os resultados coletados pe-
de 18 anos, aqueles indivíduos com idade supe-
la pesquisa junto aos pescadores artesanais
rior já estão em processo de restrição alimentar
dos sete municípios da Bacia de Campos, de
há mais tempo.
modo que se pudesse chamar a atenção para
Por fim, tem-se, dessa forma, que os da-
uma questão relevante que afeta a saúde des-
dos relativos a SAN dos pescadores artesanais
sas pessoas. Para tanto, o mote utilizado foi
de Bacia de Campos, apontados pela pesquisa,
o acesso a alimentos pelas famílias cobertas
confirmam a situação de restrição alimentar.
pelo Projeto. Os dados relativos à Segurança
Pode-se dizer, assim, que boa parte do que foi
Alimentar e Nutricional (SAN) dos pescado-
evidenciado pode ser reflexo de insuficiência
res artesanais da Bacia de Campos apontam a
de renda para adquirir alimentos em quantida-
necessidade de se tomar medidas que possam
de suficiente.
debelar a insegurança percebida pelas famílias
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
497
Mauro Macedo Campos et al.
dos pescadores quanto a se alimentar regular-
e com excesso de açúcar. Tem, portanto, um
mente, em quantidade suficiente e qualidade.
impacto direto na saúde dessas famílias. Afi-
A incerteza, com relação a ter o que comer,
nal, se “uma boa saúde começa pela boca”,
permeia o cotidiano de um número expressivo
tal condição está longe de ser o ideal para um
de pescadores. E as respostas evidenciam que
conjunto de pecadores artesanais da Bacia de
as famílias sofrem por saber que amanhã po-
Campos. Pois bem, a produção de alimentos e
derá faltar alimentação suficiente ou por sua
seu consumo também podem ser trabalhados
falta regularmente, causando-lhes sobressal-
pelo foco da questão ambiental: a alimenta-
tos e angústias permanentes. Além dos efeitos
ção dos pescadores e o alimento produzido
psicológicos desse sentimento.
por eles dentro de critérios sustentáveis para
O que se tem como resultado analíti-
o meio ambiente e que podem melhorar sua
co, em que pesem os recortes definidos pelo
renda. Não é demais dizer que o mercado, ho-
escopo da pesquisa, é que parte das famílias
je conhecido como “justo”, tem valorado, com
não se alimenta bem. Não só por insuficiência
dignidade, os alimentos produzidos dessa for-
de renda, mas por se alimentar mal, despen-
ma, o que atende conjuntamente duas metas
dendo seus escassos recursos financeiros em
do Pescarte: educação ambiental e melhoria
alimentos prejudiciais à saúde, gordurosos
de renda dos pescadores.
Mauro Macedo Campos
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Programa de Pós-Graduação em
Sociologia Política. Campos dos Goytacazes, RJ/Brasil.
[email protected]
Moisés Machado
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Programa de Pós-Graduação em
Sociologia Política. Campos dos Goytacazes, RJ/Brasil.
[email protected]
Geraldo Márcio Timóteo
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Laboratório de Estudos do Espaço
Antrópico. Campos dos Goytacazes, RJ/Brasil.
[email protected]
Paulo Belchior Mesquita
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Centro de Ciências do Homem,
Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado. Campos dos Goytacazes, RJ/Brasil.
[email protected]
498
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
Pescadores artesanais da Bacia de Campos
Notas
(1) Os dados do Censo foram considerados, para este ar go, até o dia 17 de dezembro de 2015,
tendo o seu início em novembro de 2014.
(2) O Pescarte é um projeto de mi gação ambiental e obedece aos parâmetros estabelecidos em
Plano de Trabalho formulado a partir das condicionantes oriundas da Nota Técnica CGPEG/
Dilic/Ibama nº 1/2010, Linha “A”, e do Diagnós co Par cipa vo do PEA-BC. O projeto é fruto do
Plano de Caracterização Regional da Bacia de Campos (PCR-BC) e tem como obje vo a execução
de ações de mi gação decorrentes da exploração e produção de petróleo e gás na Bacia de
Campos (BC), desenvolvidas pela Petrobras, tendo como foco as comunidades de pescadores
artesanais circunscritas em sete municípios da BC no estado do Rio de Janeiro.
(3) Os critérios rela vos ao “volume médio de pescado desembarcado” e “renda familiar” foram
usados, pelo Pescarte, como subsídio de dados do Projeto de Caracterização Regional da Bacia
de Campos (PCR-BC).
(4) As plataformas de extração de petróleo podem ser no continente, em terra firme, sendo
denominadas “plataforma onshore”, ou no mar, que são as chamadas “plataforma offshore”,
possuindo uma estrutura moderna de perfuração em alto mar, abrigando trabalhadores e
equipamentos necessários na perfuração de poços, além da extração de petróleo e gás. Tais
plataformas podem ser fixas no solo marinho ou flutuantes.
(5) O dado de 3,031 milhões de barris de óleo equivalente (BOE) por dia refere-se à produção
recente, extraído como um elemento informa vo para o ar go em 4 de abril de 2015. Ver em:
h p://www.msatual.com.br/2015/04/03/petroleo-e-gas-no-pais-alcancou-a-marca-de-3031milhoes-de-barris/
(6) Recentemente o barril de petróleo a ngiu a sua pior cotação em mais de uma década, fechando
abaixo de US$35.00 o barril. Ver em h p://g1.globo.com/economia/mercados/no cia/2016/01/
petroleo-fecha-abaixo-de-us-35-pela-1-vez-em-11-anos.html.
(7) Vale ressaltar que os valores em reais apresentados nesta e nas demais tabelas não foram
deflacionados. Correspondem à moeda corrente do respec vo ano.
(8) A composição das transferências constitucionais são: Fundo de Participação dos Municípios
(FPM); Imposto sobre propriedadeTerritorial Rural (ITR); Imposto sobre Operações Financeiras
(IOF); Imposto sobre propriedade Territorial Rural (ITR); Lei Complementar 87/1996, Lei Kandir;
Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE); Auxílio Financeiro para Fomento
das Exportações (FEX); Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de
Valorização do Magistério (Fundef); Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
(9) O questionário Pescarte contou com os seguintes blocos de questões: Bloco 1: Identificação
socioeconômica – Caracterís cas demográficas; Bloco 2: caracterização familiar; Blocos 3 e 4:
Avaliação de serviços públicos; Bloco 5: Trabalho e trajetória profissional; Bloco 6: Caracterização
da atividadepesqueira; Bloco 7: Capital social e laços de família; Bloco 8: Gênero; Bloco 9:
Caracterização da educação ambiental na Bacia de Campos; Bloco 10: Inquérito alimentar.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
499
Mauro Macedo Campos et al.
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500
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
Pescadores artesanais da Bacia de Campos
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Texto recebido em 8/jan/2016
Texto aprovado em 10/abr/2016
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 481-501, jul 2016
501
Pobreza e mobilidade de renda
nas regiões metropolitanas brasileiras*
Poverty and income mobility
in the Brazilian metropolitan regions
Lilia Montali
Luiz Henrique Lessa
Resumo
A questão da pobreza tem sido um dos principais
temas na agenda pública da política brasileira e
integra compromisso com as Metas do Milênio
firmado no ano 2000. A pobreza entendida como
resultante de carências múltiplas vem se reduzindo enquanto resultado de um conjunto de políticas
sociais e da retomada do crescimento econômico.
O objeto deste ensaio é interrogar se a mobilidade
de renda observada entre 2001 e 2012 (série Pnad-IBGE) é acompanhada de melhora em algumas das
dimensões que possibilitam a elevação da condição
de vida da população nas regiões metropolitanas
e de mudanças que permitam a discussão de mobilidade social. Constatou-se a mobilidade de renda, quando parcelas da população metropolitana
se deslocam dos dois primeiros decís de renda per
capita domiciliar para os subsequentes, e a persistência dos hiatos de acesso ao emprego, educação,
saúde e serviços urbanos.
Abstract
The question of poverty has been one of the
main topics on the Brazilian political agenda and
is among the Millennium Development Goals,
a document that was signed in 2000. Poverty,
understood as the result of multiple needs, has been
decreasing due to a set of social policies and to the
resumption of economic growth. The objective of
this essay is to discuss whether the income mobility
verified between 2001 and 2012 (Pnad-IBGE series)
was accompanied by improvements in some of the
dimensions that enable better living conditions
to the population in Brazil’s metropolitan regions
and by changes that allow the discussion of social
mobility. Income mobility was verified when
sectors of the metropolitan population rise from the
two lowest deciles of per capita household income
to higher deciles. The persistence of gaps in access
to jobs, education, health and urban services was
also noted.
Palavras-chave: pobreza; desigualdade; mobilidade de renda; metrópoles.
Keywords: poverty; inequality; income mobility;
metropolises.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3610
Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa
Introdução
sociais. A desigualdade também apresenta ten-
A pobreza e a permanência de elevados índi-
níveis elevados. Dentre as políticas sociais re-
ces de desigualdade social têm se mostrado
centes com maior impacto sobre a redução da
como temas relevantes da agenda pública da
pobreza e da desigualdade, na primeira década
política brasileira na última década. Em 2000 o
do século XXI, merecem destaque a política de
Brasil aderiu às Metas do Milênio (Pnud ONU,
recuperação do salário mínimo (SM), as medi-
2000), com os demais 190 países membros da
das para a recuperação do emprego e a política
ONU. Esse documento estabelece medidas e
de transferência condicionada de renda.
dência declinante, ainda que se mantenha em
metas que deverão ser atingidas até 2015 para
Indaga-se, neste ensaio, se a mobilidade
se reduzir a extrema pobreza e a fome, assim
de renda observada a partir de 2004 – período
como promover a igualdade entre os sexos,
em que se iniciam a retomada do crescimen-
entre outras. As metas de redução da pobreza
to econômico no País e também a ampliação
e do número de pessoas subalimentadas fo-
e o aperfeiçoamento das políticas de combate
ram atingidas pelo Brasil, segundo o relatório
à pobreza –, é acompanhada de melhora em
da ONU “O Estado da Insegurança Alimentar
algumas das dimensões que possibilitam a ele-
no Mundo 2015”.1 Nesse período, também foi
vação da condição de vida da população nas
confirmada a redução da pobreza e da extrema
regiões metropolitanas, além de mudanças que
pobreza, através de análise dos microdados
permitam a discussão de mobilidade social.
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí-
A análise tem por foco as regiões metro-
lios de 2014, IBGE, realizada pelo Ministério
politanas brasileiras e privilegia como eixos o
de Desenvolvimento Social (MDS). Tal análise
nível educacional e as formas de inserção no
mostra redução das taxas de pobreza extrema
mercado de trabalho, bem como os indicadores
de 7,6% da população, em 2004, para 2,8%,
de qualificação profissional. As regiões metro-
em 2014, e das taxas de pobreza de 22,3%, em
politanas4 brasileiras apresentam-se como es-
2004, para 7,3% da população, em 2014.2 A
paços importantes para o estudo da problemá-
continuidade da redução da pobreza até 2014
tica envolvida no comportamento da pobreza
também é apontada pelo relatório da Cepal
e da desigualdade de renda, porque se, por um
“Panorama Social da América Latina 2015”.3
lado, agregam as principais aglomerações ur-
Segundo Laís Abramo, diretora da Divisão de
banas do País, sendo responsáveis por cerca de
Desenvolvimento Social da Cepal, a diminuição
40% do PIB nacional, por outro, apresentam
mais acentuada da pobreza entre os indigentes
permanência de elevada proporção de pobres
mostra, a eficácia e a importância dos progra-
(Rocha, 2003; 2010; 2013) e da desigualdade
mas de combate à extrema pobreza que exis-
de renda que, embora em queda, é, em mé-
tem atualmente no País.
dia, superior à nacional (Montali et al., 2014).
A análise do ano de 2012, aqui apresen-
Deve-se ainda ressaltar que as regiões metro-
tada, mostra que a pobreza entendida como re-
politanas brasileiras (RMs) evidenciam as mes-
sultante de carências múltiplas se reduz no País,
mas tendências apontadas na literatura para o
como resultado de um conjunto de políticas
Brasil com relação à redução da desigualdade
504
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras
de renda a partir de 2004, que resultam da elevação da renda domiciliar per capita e do crescimento mais acentuado do rendimento médio
Desigualdade de renda
nas metrópoles brasileiras
dos domicílios nos decis inferiores de renda.
O presente ensaio refere-se ao período
A análise da primeira década do século XXI
entre 2001 e 2012, e o fato de sua publicação
evidencia a tendência de redução da desigual-
ocorrer em 2016 nos obriga a registrar que
dade de renda, a partir de 2004, no País e nas
essa tendência virtuosa de elevação do em-
regiões metropolitanas. O Índice de Gini,5 en-
prego formalizado e do rendimento domiciliar
tretanto, mostra queda da desigualdade menos
per capita, observada até o ano de 2014, sofre uma inflexão no decorrer do ano de 2015,
como decorrência de uma conjunção desfavorável provocada por crise política e econômica
que se instaura no País e permanece até o momento atual. A conjuntura de crise e recessão
se acentua no ano de 2016 e é possível que
afete negativamente os indicadores de pobreza alcançados.
Entretanto, este ensaio retrata um momento de crescimento econômico e de redução
da desigualdade de renda resultante de políticas econômicas e sociais, que tiveram êxito
na redução da pobreza. Ele é composto por
três partes. Na primeira parte são apresentadas as regiões metropolitanas brasileiras e sua
heterogeneidade e é justificada a escolha do
agregado de regiões metropolitanas do Sul e
do Nordeste, por apresentar situações contrastantes em relação à renda domiciliar per capita.
Na segunda parte, são indicadas as principais
políticas sociais responsáveis pela redução da
pobreza na primeira década dos anos 2000. Na
última parte, é apresentada a análise comparativa dos dados da Pnad relativos ao período
de 2001 a 2012 com o intuito de identificar as
características da pobreza no Brasil naquele
momento, considerando-se como indicadores a
renda, o vínculo contratual de trabalho, o nível
educacional e o acesso a serviços urbanos.
acentuada nas regiões metropolitanas que a
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
observada para o País e também se observa a
manutenção de elevada proporção de pobres
nessas regiões.
Estudo de longo prazo sobre pobreza no
Brasil, feito por Rocha (2013), mostra que, entre 1970 e 2011, ocorreu tendência de redução
do número absoluto de pobres e de redução
sustentada da pobreza, que se apresentava como tendência desde 1997.6 Mostra, ainda, que
se altera o perfil da pobreza, que deixa de ser
predominantemente rural para se tornar mais
elevada nas áreas metropolitana e urbana.
Esse fato se relaciona às mudanças ocorridas
no País. O Brasil, que em 1970 apresentava
elevada proporção de população rural (45%),
bem como elevada prevalência de pobreza,
torna-se, no decorrer do período, predominantemente urbano e metropolitano. Outra tendência relevante apontada é a convergência
da proporção de pobres segundo os locais de
residência. Durante o período referido, a redução da pobreza rural é provocada por diversos
fatores, desde mudanças no processo produtivo, como medidas de políticas públicas, com
destaque para a ampliação da previdência rural. Observa-se, também, o aumento da pobreza metropolitana a partir das décadas de 1980
e 1990, períodos de baixo crescimento econômico e de migração em direção às regiões
505
Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa
metropolitanas da região Sudeste (São Paulo
de pobres cai de forma sustentada em todas as
e Rio de Janeiro). Segundo Rocha, os momen-
áreas de residência analisadas, quais sejam,
tos de crise econômica dessas duas décadas
metropolitana, urbana e rural.7 Entretanto,
de baixo crescimento afetaram de forma mais
comparativamente, é menor a queda no es-
aguda as metrópoles primazes de São Paulo
trato metropolitano, que se mantém apresen-
e Rio de Janeiro. Além disso, nesse período,
tando a maior proporção de pobres em sua
ocorre a “metropolização da pobreza”, quando
população, ou seja, esta passa de 38,8%, em
a proporção de pobres nos espaços metropo-
2004, para cerca de 27% em 2008; enquanto,
litanos passa de 29% em 1981, para 32% em
na população brasileira, essa proporção cai de
1993 (Gráfico 1).
33,3% para 22,8%. Entretanto, a autora alerta
No período entre 2004 e 2008, caracte-
para a heterogeneidade das regiões metropoli-
rizado pela expansão da economia e pela im-
tanas brasileiras e para seu comportamento na
plementação de políticas sociais de combate à
retomada do crescimento econômico a partir
pobreza, Rocha (2010) mostra que a proporção
de 2004.
Gráfico 1 – Proporção de pobres segundo estrato de residência (%)
Brasil – 1970-2010
85
75
65
55
45
35
25
15
5
1970
1972
1974
1976
1978
1980
1982
1984
1986
1988
1990
1992
1994
1996
1998
2000
2002
2004
2003–2011
1953–2003
1980–1993
1970–1980
Brasil
Urbano
Metropolitano
Rural
2006
2008
2010
Fonte: Pnad, elaboração de Rocha (2013, p. 21).
506
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras
Ainda merece destaque que a renda per
As áreas metropolitanas brasileiras fo-
capita domiciliar média das regiões metropoli-
ram afetadas com mais intensidade do que
tanas é mais elevada que a média do País e que
as áreas urbanas não metropolitanas e as
a média das áreas não metropolitanas (Gráfi-
áreas rurais pelo processo de reestruturação
co 2). Além de ser mais elevada, a evolução da
produtiva e organizacional. Além disso, esse
renda domiciliar per capita metropolitana apre-
processo, que se intensifica a partir da década
senta oscilações mais acentuadas relacionadas
de 1990 no País, atuou de forma diferenciada,
ao crescimento da economia. Assim, observa-se
entre as regiões metropolitanas, relacionada
que a queda no PIB ocorrida em 2003 se reflete
à organização das atividades econômicas em
nos menores valores de renda per capita me-
cada uma delas. Associada ao baixo ritmo de
tropolitana em 2003. Nota-se também, para o
crescimento da economia, a reestruturação
total metropolitano, que a elevação da renda é
produtiva elevou o patamar de desemprego e
mais rápida nos anos de recuperação da eco-
implicou crescente precarização das relações
nomia a partir de 2004 (Gráfico 2).
de trabalho com redução do assalariamento
Gráfico 2 – Rendimento domiciliar per capita médio
Brasil, regiões metropolitanas e não metropolitanas, 2001-2012
Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2001-2012).
Elaboração Nepp/Unicamp.
Valores atualizados para 2012 (INPC).
(1) O Total Metropolitano inclui as nove regiões metropolitanas e o Distrito Federal.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
507
Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa
regulamentado e com aumento de vinculações
economia, expressa-se nos valores mais ele-
menos protegidas. Nesse período, acentuou-se
vados do rendimento domiciliar per capita do
o empobrecimento nessas regiões. A partir de
ano de 2009, com continuidade até o ano de
2004, quando se inicia a recuperação econô-
2012 (Tabela 1) .
mica, ampliam-se o emprego e as contratações
Um dos indicadores da heterogeneidade
regulamentadas, e ocorre elevação gradual nos
existente entre as regiões metropolitanas –
rendimentos dos ocupados e nos rendimentos
nestas incluindo o Distrito Federal (DF) – ex-
familiares (Montali, 2008).
plicita-se na análise da renda domiciliar per
A inflexão observada nos valores do
capita média. Ressalta-se que a renda domici-
rendimento domiciliar per capita no ano de
liar per capita do Distrito Federal (R$2.012,90
2004 reflete a conjuntura de baixo crescimen-
em 2012, equivalente a 3,2 salários mínimos
to, de elevado desemprego e de deterioração
vigentes)8 é bastante superior ao rendimento
do mercado de trabalho que marcou o início
domiciliar per capita das demais regiões es-
da primeira década do século XXI no País e
tudadas (Tabela 1). Em segundo lugar, apare-
se estendeu até o ano de 2003. Já o período
ce a RM de São Paulo com o valor médio de
entre 2004 e 2009 de maior dinamismo da
R$1.485,20 no mesmo ano. Seguem-se a esta
Tabela 1 – Rendimento domiciliar per capita médio e Índice de Gini
Brasil e regiões metropolitanas, 2001-2012
Valores em reais
2001
Brasil
2004
2009
Índice de Gini
2012
2001
2004
2009
2012
0,5939
0,5705
0,5401
0,5277
758,9
728,6
910,6
1.036,3
1.047,4
964,5
1.183,5
1.340,7
–
–
RM Belém
631,3
601,8
712,8
833,3
0,5845
0,5416
0,5122
0,5213
RM Fortaleza
655,5
601,8
754,8
805,3
0,6321
0,5999
0,5542
0,5217
RM Recife
682,5
645,8
790,1
816,1
0,6215
0,6269
0,5676
0,5431
RM Salvador
788,4
657,6
967,8
1.080,3
0,6216
0,588
0,58
0,5613
RM Belo Horizonte
868,8
876,3
1.193,3
1.419,3
0,5584
0,556
0,5303
0,5244
RM Rio de Janeiro
1.115,9
1.076,60
1.313,5
1.340,3
0,5719
0,5555
0,5563
0,5428
RM São Paulo
1.166,3
1.011,80
1.198,1
1.485,2
0,5679
0,5424
0,5142
0,5067
RM Curitiba
1.091,5
1.106,60
1310
1.420,2
0,5615
0,5635
0,5052
0,4804
1192
1.095,00
1.236,3
1.421,9
0,5625
0,5377
0,5126
0,5083
1.453,2
1.416,60
1.995,4
2.012,9
0,6203
0,6256
0,619
0,5822
Total Metropolitano
RM Porto Alegre
Distrito Federal
–
–
Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
Elaboração: Nepp/Unicamp.
Indice de Gini: elaboração Ripsa – IDB – Brasil, 2012, Site Ministério da Saúde.
Valores atualizados para 2012 (INPC).
508
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras
as RM de Porto Alegre, Curitiba e Belo Horizonte, com valores de rendimento domiciliar per
capita cerca de R$1.420,00, no último ano. Essas RMs do Sudeste e do Sul são as que, após
o DF, apresentam maiores valores médios, cerca
de 2,3 salários mínimos. E as RMs do Norte e
Salário mínimo e as políticas
sociais de transferência
de renda: efeitos sobre
a diminuição da desigualdade
de renda
Nordeste apresentam os menores valores, variando entre R$1.080,00 ou 1,7 SM (Salvador)
A importância do salário mínimo
e R$816,00 ou 1,3 SM (Recife).
O Índice de Gini evidencia a tendên-
Nos anos da década de 2000, período em que
cia de redução da desigualdade entre 2001 e
ocorre a recuperação do salário mínimo, esta-
2012, tanto para o País como para as regiões
belece-se um debate, com concordância entre
metropolitanas brasileiras. A queda da desi-
diversos analistas, que o aumento do salário
gualdade de renda foi da ordem de 11% para o
mínimo tem impacto nas remunerações pa-
País, no período entre 2001 e 2012, e de 7,5%
gas, com maior ênfase nas remunerações mais
entre 2004 e 2012 (Tabela 1). Entretanto, para
próximas ao seu valor, mas com efeitos que
o conjunto das regiões metropolitanas brasilei-
alcançam remunerações mais elevadas, ainda
ras, a queda foi menor para ambos os períodos
que com uma intensidade menor. Além disso, a
indicados. Apenas três entre as nove RM e o
política de recuperação do valor real do salário
Distrito Federal apresentam redução da desi-
mínimo se reflete no sistema previdenciário e
gualdade maior que a observada para o País.
se discute sobre a importância do salário míni-
São elas RM de Fortaleza e Recife, na região
mo como uma política pública capaz de mitigar
Nordeste, e de Curitiba, na região Sul.
a desigualdade de renda no País.9 A Constitui-
As disparidades de renda e as carac-
ção Federal de 1988 instituiu mudanças que
terísticas do desenvolvimento regional defi-
ampliaram o alcance do salário mínimo. Além
niram a escolha neste ensaio em detalhar a
de servir como um instrumento regulador das
análise para dois conjuntos correspondendo
remunerações no mercado de trabalho, ele foi
às regiões metropolitanas do Sul (Curitiba e
adotado como piso para uma série de benefí-
Porto Alegre) – dentre os níveis mais elevados
cios sociais, dentre os quais os previdenciá-
de rendimento domiciliar per capita e com me-
rios urbano e rural e o Benefício de Prestação
nor desigualdade de renda – e às regiões me-
Continuada (BPC).
tropolitanas do Nordeste (Fortaleza, Recife,
O salário mínimo foi instituído no Brasil,
Salvador) com valores menores de rendimento
em 1936, por meio da lei nº 18510 e foi um dos
domiciliar per capita e indicador de desigual-
direitos trabalhistas estabelecidos pela Conso-
dade de renda superior ou semelhante ao na-
lidação das Leis do Trabalho.11 Desde sua cria-
cional. Procura-se identificar distinções entre
ção, é possível identificar cinco momentos que
esses dois conjuntos de regiões metropolita-
refletem as principais mudanças no seu valor
nas nas tendências da mobilidade de renda e
real, como mostra o Gráfico 3. No período que
nas características da pobreza.
vai da criação do salário mínimo em 1940 até
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
509
Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa
início dos anos 1950, não há novos reajustes,
que visava fortalecer a opinião dos poderes
o que leva a uma queda do seu valor. Num se-
Executivo e Legislativo acerca da importância
gundo momento, há uma tendência de cresci-
social e econômica da proposta de valorização
mento que vai até o Golpe Militar de 1964. A
do salário mínimo. Também como resultado
partir de então, ele sofre uma queda acentua-
dessas negociações, foi acordada uma política
da, mas que se estabiliza em 1967 e que dura
permanente de valorização do salário mínimo.
até a crise econômica do início dos anos 1980.
Segundo nota do Dieese (2010), o salário míni-
Durante essa década, a inflação corrói ainda
mo teve um aumento real de 53,7% durante o
mais seu valor real, que só volta a crescer a
governo de Luiz Inácio Lula da Silva (de abril de
partir de 1995, devido à estabilidade da moeda
2003 a janeiro de 2010), abrangendo cerca de
e à redução da inflação, obtidas a partir do pla-
46,1 milhões de pessoas que têm rendimentos
no Real e por diversas políticas de estabilização
referenciados no salário mínimo. Apenas isso já
subsequentes a ele.
bastaria para justificar a importância e valori-
A atual política de valorização do salá-
zação de sua manutenção como política públi-
rio mínimo estabelecida pelo governo federal
ca de regulamentação do mercado, mesmo que
respondeu à reinvindicação de movimento
aproximadamente metade dos trabalhado-
articulado em 2004 pelas Centrais Sindicais,
res brasileiros se encontre na informalidade.
Gráfico 3 – Valor real do salário mínimo, mensal, 1940 – agosto/2011
Fonte: Ipeadata (apud Montali et al., 2012).
510
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras
As análises do Ipea indicam que as famílias que
1995, foram implementados em âmbito muni-
tiveram uma mudança efetiva de sua condição
cipal, programas de transferência de renda de
de extrema pobreza ou pobreza foram as que
forma pioneira em Campinas e Ribeirão Preto,
tiveram, dentre seus membros, alguém que
no estado de São Paulo, e em Brasília (DF), se-
conseguiu um emprego regulamentado nesse
guidos por outros municípios em diversos esta-
período ou que tinham algum familiar que re-
dos brasileiros. O sucesso dessas experiências
cebesse benefícios sociais, como o BPC, no va-
levou o governo federal a criar, em 1997, o Pro-
lor de um salário mínimo (Ipea, 2007).
grama Federal de Garantia de Renda Mínima
que consistia no cofinanciamento de até 50%
dos programas instituídos nos municípios que
Os programas de transferência
de renda e o objetivo de erradicação
da pobreza
não tivessem recursos suficientes. Por ter como
critério de seleção os municípios que tivessem
baixo IDH, era difícil conseguir municípios que
tivessem capacidade e disposição de financiar
Os atuais programas de transferência de renda
a contrapartida exigida. Por esse motivo, o go-
no Brasil têm suas origens na década de 1990.
verno federal criou, em 2001, o Programa Na-
As medidas neoliberais implementadas, tanto
cional Bolsa Escola, cujo objetivo era garantir
no Brasil como nos demais países da Améri-
acesso à escola da totalidade da população
ca Latina, por um lado provocaram profundas
de 7 a 14 anos, mediante a concessão de uma
mudanças no mercado de trabalho e deterio-
bolsa complementar, até o limite máximo de
ração do emprego e empobrecimento massivo
três crianças por família. O cadastramento das
dos trabalhadores; por outro, no caso brasileiro,
famílias e das crianças era de responsabilida-
interferiram nos direitos sociais que deveriam
de das prefeituras municipais, que também se
ser garantidos sob a égide da Constituição
comprometiam a desenvolver atividades socio-
Brasileira de 1988. Segundo Ivo (2011), o ca-
educativas em horário complementar às aulas,
minho encontrado pelos governantes foi uma
sem receber qualquer repasse financeiro do
tendência de restrição dos custos da “segurida-
Governo Federal.
de social de perspectiva universalista e inclusi-
No governo de Luiz Inácio Lula da Silva,
va para a assistência focalizada sobre aqueles
a rede de assistência social iniciada no gover-
em situação de pobreza e de pobreza extrema,
no Fernando Henrique Cardoso foi ampliada
com base na gestão dos mínimos sociais”.
em relação tanto ao seu volume de gastos em
Nesse contexto, surgem no Brasil di-
programas de transferência de renda quanto
versos programas de auxílio focalizados nos
ao número de beneficiários. Em 2003, foi criado
setores mais vulneráveis da população, ainda
o Programa Bolsa Família, o que representou
no período do governo de Fernando Henrique
um esforço do governo federal em unificar, in-
Cardoso. No âmbito federal foram instituídos,
tegrar e ampliar a experiência dos programas
em 1996, dois programas: o BPC (Benefício de
sociais anteriores, através de um cadastro
12
Prestação Continuada) e o Peti (Programa de
único dos beneficiários formulado pelo MDS
Erradicação do Trabalho Infantil) em 1996. Em
e aplicado pelas prefeituras dos municípios.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
511
Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa
Segundo Fonseca e Roquete (2005, p. 133), os
a 2009, a pobreza e a extrema pobreza tor-
fundamentos inovadores do Programa Bolsa
naram-se cada vez menos determinadas pelo
Família em relação aos demais programas re-
baixo valor do rendimento per capita dos mem-
sidem em quatro aspectos: 1) a família como
bros da família e cada vez mais determinadas
unidade básica receptora dos benefícios e do
pela exclusão desses membros do mercado de
cumprimento das condicionalidades; 2) a in-
trabalho, sugerindo que o Bolsa Família e de-
clusão prioritária dos membros das famílias em
programas e políticas que permitam uma saída
do programa; 3) a descentralização pactuada
com os estados e municípios da federação; e
4) o cadastro único dos programas sociais como ferramenta de planejamento e controle dos
cadastrados no programa. O principal objetivo
do programa residia na mitigação da pobreza, porém seus programas complementares, a
exigência do cumprimento das condicionalidades e as ações focalizadas geraram inúmeras
consequências positivas, tais como: criação de
possibilidades de emancipação sustentada dos
grupos familiares; incentivo ao desenvolvimento local dos territórios; prioridade assegurada
aos mais pobres; estabelecimento e busca do
princípio de equidade; aumento da eficiência e
a efetividade do uso dos recursos; e unificação,
ampliação e racionalização dos programas de
transferência de renda.
Os estudos realizados a partir dos dados
da Pnad mostram que o programa Bolsa Família obteve sucesso quanto a sua capacidade
de focalizar suas ações nos estratos mais vulneráveis da população brasileira. Desde a implementação do programa, em 2004, diversas
pesquisas têm registrado uma melhoria nas
condições de vida dos setores mais pobres, com
redução de desigualdades sociais e aumento
de renda, embora inconclusivas na afirmação
acerca da existência de uma tendência permanente de redução da pobreza no País. Segundo
o informe do Ipea (2011a), no período de 2004
mais programas, como o BPC, têm sua eficácia
512
melhorada em associação com a renda oriunda
do trabalho.
Nesse sentido, as políticas públicas que
permitem a criação e o incentivo de empregos
regulamentados, tais como a qualificação profissional e o aumento do salário mínimo, são
fatores importantes para que se acelere a saída
das famílias do programa, tornando-as emancipadas economicamente. Algumas iniciativas
buscaram perseguir esses objetivos, embora
sem sucesso. Segundo estudo de Sergei Soares “Distribuição de Renda no Brasil de 1976
a 2004” apontado por Weissheimer (2010), o
programa foi responsável por um terço da queda na desigualdade no Brasil, logo no início de
sua criação, e impactou diretamente na melhoria da nutrição infantil e também, de modo indireto, na redução do trabalho infantil. O mercado de trabalho teria sido o responsável pelos
outros dois terços de queda na desigualdade,
segundo estudo realizado pelo Ipea (2006). De
acordo com a pesquisa, a desigualdade caiu
por ano em média 0,7 pontos percentuais do
Índice de Gini.
Considerando que a pobreza é um fenômeno multidimensional, o governo Dilma
Rousseff lançou, em junho de 2011, o Programa Brasil Sem Miséria, que visava identificar
e combater a extrema pobreza no Brasil, cuja
concentração é mais elevada principalmente nas áreas rurais do Norte e Nordeste. Esse
programa apresenta um conjunto de medidas
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras
que não considera exclusivamente o critério de
aos choques econômicos e à sazonalidade da
transferência de renda como instrumento de
economia, mostrando que a renda familiar per
combate à pobreza. Segundo informe do Minis-
capita dos inseridos no mercado de trabalho
tério do Desenvolvimento Social (MDS, 2012), o
informal flutua continuamente, o que leva, por-
programa visa retirar a população extremamen-
tanto, a uma variação na dependência ou não
te pobre de sua condição, rompendo o círculo
das famílias ao programa, como aponta estu-
vicioso da exclusão social, que, segundo o Cen-
do do Ipea (2007, p. 12). Em certos períodos,
so de 2010, era cerca de 16 milhões de pessoas:
inclusive, é possível que alguns beneficiários
A insuficiência de renda é um relevante
indicador de privações, mas não é o único.
Fatores sociais, geográficos e biológicos
multiplicam ou reduzem o impacto exercido pelos rendimentos sobre cada indivíduo. Entre os mais desfavorecidos faltam
instrução, acesso à terra e insumos para
produção, saúde, moradia, justiça, apoio
familiar e comunitário, crédito e acesso a
oportunidades. (p. 6)
tenham uma renda que ultrapasse os limites de
corte adotados para a concessão do benefício,
mas que, no momento da entrada no programa, cumpriam integralmente todos os critérios
para a inclusão. Por avaliar esses aspectos o
Programa Brasil Sem Miséria incluiu a possibilidade de desligamento voluntário do programa
com retorno garantido no prazo de 3 anos. Dessa forma, permitia que, em caso de perda do
emprego, a família pudesse retornar imediata-
De acordo com o informe, o objetivo do
mente ao Programa Bolsa Família.
Brasil Sem Miséria é promover a inclusão social e produtiva da população extremamente
pobre, tornando residual a percentagem dos
que vivem abaixo da linha da pobreza. Ele atua
Mobilidade de renda
no período de 2004 a 201214
com base em três eixos específicos: 1) elevar a
renda familiar per capita; 2) ampliar o acesso
A partir de 2004 até 2009 (ano da crise finan-
aos serviços públicos, às ações de cidadania e
ceira), o Brasil retoma um período de cresci-
de bem-estar social; e 3) ampliar o acesso às
mento econômico com aumento do emprego
oportunidades de ocupação e renda através de
assalariado protegido pela legislação traba-
ações de inclusão produtiva nos meios urbano
lhista. Há continuidade dessas tendências até
e rural (ibid., p. 2).13
2012, embora com menor ritmo do crescimento
Considera necessário levar em conta ou-
da economia.
tros mecanismos, além da simples transferên-
Como já mencionado, este ensaio interro-
cia de renda, que permitam uma diminuição da
ga se a mobilidade de renda observada, a partir
miséria e que ajam em conjunto com ela, uma
de 2004 (período em que ocorre a retomada do
vez que apenas a transferência de renda é in-
crescimento econômico no País e do emprego,
suficiente para promover uma estável seguri-
além da ampliação e do aperfeiçoamento das
dade social às famílias beneficiadas. Os dados
políticas de combate à pobreza), é acompanha-
mostram que as rendas das famílias continuam
da de melhora em algumas das dimensões que
sujeitas à rotatividade dos empregos precários,
possibilitam a elevação da condição de vida da
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
513
Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa
população nas regiões metropolitana, assim
características contrastantes em relação aos
como também de mudanças que permitam a
níveis de pobreza, apresentadas no item “Desi-
discussão de mobilidade social. Objetiva, ainda,
gualdade de renda nas metrópoles brasileiras”.
identificar as características da pobreza no Bra-
A partir da mudança observada no período
sil, com base nos recortes de pobreza extrema
entre 2004 e 2012, há indícios de que, à me-
e de pobreza (um quarto de SM e meio SM, res-
dida que há a redução da incidência de pobre-
pectivamente), através da análise consideran-
za (considerando-se a insuficiência de renda),
do-se os decis da distribuição de renda.
mais caracterizada ela se torna em relação aos
Optou-se por utilizar, como recurso para
indicadores das demais carências.
análise, a distribuição por decis de renda – que
consiste em dividir a renda per capita total
em grupos que variam entre os dez por cento
Brasil: indicadores de renda e pobreza
mais pobres até os dez por cento mais ricos,
obtendo, com isso, uma escala de distribuição
Através da análise dos valores de corte dos
de renda com dez divisões. Para este trabalho,
decis de renda per capita domiciliar do Bra-
utilizou-se a renda per capita domiciliar como o
sil, é possível constatar indicações de que as
critério de referência para investigar a mobili-
proporções mais elevadas de aumento do ren-
dade de renda, ainda que o objetivo seja identi-
dimento ocorridas entre 2004 e 2012 se en-
ficar o perfil dos indivíduos que integram esses
contram nos decis inferiores, com crescimento
domicílios.15 A escolha por se trabalhar com as
cerca de 40%; enquanto, nos decis de renda
divisões por decis de renda difere da metodolo-
mais elevados, o aumento foi de 20%, reafir-
gia de linhas de pobreza adotadas por Rocha,
mando que o crescimento econômico do País
mencionadas em item anterior. Mesmo sendo
no período tendeu a beneficiar os mais pobres
consideradas as limitações existentes por conta
(Neri, 2006).16
da diversidade regional, foram adotados, nes-
Os Gráficos 4 e 5 apresentam a distribui-
te ensaio, os mesmos cortes de renda indica-
ção segundo cortes dos decis do rendimento
tivos de pobreza utilizados na formulação das
per capita domiciliar para o total dos domicílios
políticas públicas, para identificar a gravidade
do Brasil e para o total dos domicílios das áreas
da pobreza e a elegibilidade dos beneficiários.
metropolitanas brasileiras, e sua análise indi-
Assim, considera-se, nesse estudo em condição
ca mobilidade de renda.17 Pode-se notar para
de pobreza, os “extremamente pobres” ou in-
as áreas metropolitanas que o valor de renda
digentes – indivíduos em domicílios com renda
domiciliar per capita correspondente à pobreza
per capita inferior a um quarto do salário míni-
(inferior a meio salário mínimo – R$311,00 per
mo – e os “pobres” – aqueles com renda entre
capita para valores de 2012) estava localizado
no quarto decil, em 2001 e 2004. Assim, entende-se que entre 2001 e 2004, são considerados
pobres os domicílios com rendimento de até
meio salário mínimo situados no quarto decil
e abaixo dele. Em 2009, o corte de rendimento
um quarto e meio salário mínimo, deflacionado
para os valores de 2012 (R$622,00 per capita).
São comparadas as informações relativas ao
Nordeste Metropolitano e ao Sul Metropolitano. Optou-se por comparar duas regiões com
514
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras
Gráfico 4 – Valor dos decis de rendimento domiciliar per capita (R$)
Brasil – 2001-2012
Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
Elaboração: Nepp/Unicamp.
Valores atualizados para 2012 (INPC).
Gráfico 5 – Valor dos decis de rendimento domiciliar per capita (R$)
Brasil Metropolitano – 2001-2009
Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
Elaboração: Nepp/Unicamp.
Valores atualizados para 2012 (INPC).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
515
Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa
correspondente à pobreza encontrava-se no
Nordeste Metropolitano
terceiro decil, nas áreas metropolitanas e também para o total da população brasileira, e no
segundo decil, no ano de 2012, também para
ambas. Esses dados indicam progressiva redução da proporção de domicílios pobres, pois
eles estão cada vez mais se limitando aos primeiros decis da distribuição de renda domiciliar per capita.
Ressalta-se que, para o total da população brasileira, comparativamente à população
do Brasil Metropolitano, é maior a mobilidade
de renda, pois nesta os domicílios pobres (com
rendimento de até meio salário mínimo) estão
situados no quinto decil e abaixo deste em
2001 e 2004; e passam a estar no terceiro decil,
em 2009, e no segundo decil em 2012.
A análise da faixa de renda domiciliar
correspondente à extrema pobreza (inferior a
O crescimento econômico do Nordeste Metropolitano foi durante muito tempo influenciado
pelas atividades agrícolas voltadas para a exportação. Com a decadência da economia nordestina, ainda no século XIX, nessas regiões,
que outrora foram o centro da economia colonial, iniciou-se um grande ciclo de decadência;
e, do acúmulo de riqueza, elas passaram a concentrar pobreza. A industrialização ocorrida no
eixo sudeste só atingiu a região muito mais tardiamente, e ela sempre dependeu dos investimentos estatais para se desenvolver na região,
através de incentivos fiscais e financeiros, como
a Sudene. A industrialização incentivada pelo Estado e a descentralização da indústria do
eixo Sudeste ocorrida nos anos recentes dinamizaram a economia metropolitana Nordestina,
um quarto de SM – R$155,00 per capita) mostra que ela se situava no segundo decil para as
regiões metropolitanas, tanto em 2001quanto
em 2004. Entre 2009 e 2012, o valor de corte
do primeiro decil supera o valor correspondente à extrema pobreza e restringe os domicílios
nessa condição no primeiro decil (Gráfico 5). A
distribuição de domicílios em extrema pobreza
para o total da população do Brasil apresenta
comportamento semelhante quanto à sua distribuição por decis de renda (Gráfico 4). Ou seja, observam-se indicações de recuperação da
renda domiciliar per capita e de redução dos
níveis de pobreza através da análise da evolução da proporção de domicílios em situação
[...] mas logrou quantidade de empregos
líquidos inferior ao planejado [...]. Por outro lado, o setor público transformou-se
no gerador privilegiado de ocupações da
classe média, motivado pelos gastos em
infraestrutura, em políticas sociais (expansão de todos os níveis educacionais) e
na expansão das autarquias e das empresas estatais. Porém, dinamizar a economia
não foi suficiente para equacionar a desigualdade social nessas localidades, intensificada com a ampliação das atividades
informais e do subemprego na década de
1990, ocupações de refúgio dos trabalhadores marginalizados na frágil estrutura
produtiva. (Falvo, 2011, p. 125)
de pobreza e de extrema pobreza, segundo os
Dessa forma, foi somente após os anos
decis de renda per capita média dos domicílios,
2000 que a Região Metropolitana do Nordeste
considerando-se a população brasileira e a po-
registra um aumento na renda dos mais pobres
pulação das regiões metropolitanas brasileiras.
devido ao crescimento econômico gerador de
516
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras
empregos, em concomitância às políticas de
metropolitanas do Nordeste se encontram em
transferência de renda focalizadas do governo,
situação de pobreza.
reduzindo-se a desigualdade de renda.
A faixa de renda domiciliar correspon-
Nas regiões metropolitanas do Nordeste
dente à extrema pobreza (inferior a um quar-
é bastante elevada a proporção de domicílios
to de SM – R$155,00 per capita) situava-se no
pobres, e também há indicações de progressiva
terceiro decil para as regiões metropolitanas do
redução da proporção de domicílios nessa con-
Nordeste, tanto em 2001 quanto em 2004. Já
dição. Entre 2001 e 2004, os domicílios consi-
os domicílios em extrema pobreza se situavam
derados pobres (com rendimento de até meio
no segundo decil e, em 2012, no primeiro decil
salário mínimo) estão situados entre o quinto e
(Gráfico 6). Essas informações apontam para a
o sexto decis e abaixo destes, significando que
redução dos níveis de pobreza, ainda que ela
metade ou mais dos domicílios dessas regiões
permaneça elevada.
metropolitanas se encontravam em situação
O Gráfico 6 apresenta o valor da renda
de pobreza. Em 2009, o corte de rendimento
domiciliar per capita do Nordeste Metropoli-
correspondente à pobreza desloca-se para o
tano distribuída por decis. Chama a atenção a
quarto decil e, no ano de 2012, encontra-se no
evolução do valor do corte dos três decis infe-
terceiro decil, significando, neste último ano,
riores, que apresentam uma elevação da renda
que cerca de 30% dos domicílios das regiões
superior a 100% entre 2001 e 2012.
Gráfico 6 – Valor dos decis de rendimento domiciliar per capita (R$)
regiões metropolitanas do Nordeste – 2001-2012
Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
Elaboração: Nepp/Unicamp.
Valores atualizados para 2012 (INPC).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
517
Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa
Entre os anos 2001 e 2004, a faixa de
elevação na proporção dos inativos, ambos
renda correspondente ao valor do salário mí-
em 3 pontos percentuais. No ano de 2012, a
nimo estava situada entre o sétimo e oitavo
PIA do primeiro decil mantém perfil bastante
decis; em 2009, esse valor se situava no sétimo
específico, mas apresenta elevação da propor-
decil e, em 2012, no sexto decil. Pode-se in-
ção de ocupados não precários, não ultrapas-
terpretar a elevação do rendimento per capita
sando 5%, e redução gradual da proporção
dos três decis inferiores de renda no período
dos ocupados precários; observa-se, no en-
de 2004 a 20012 como um dos efeitos das po-
tanto, para o primeiro decil a redução no total
líticas de transferência de renda, bem como
de ocupados (Tabela 2).
também da ampliação das oportunidades de
A comparação dos decis inferiores de
trabalho nos anos 2000. Além disso, a polí-
renda com aqueles acima da mediana e o to-
tica de valorização do salário mínimo permitiu
tal da PIA das RM do Nordeste indicam, para
que aqueles domicílios que tinham a renda per
estes, maior proporção em desemprego e em
capita média igual a um salário mínimo apresentassem mobilidade de renda e deixassem
de se situar entre o sétimo e oitavo decis, do
início da década, para se situarem no sexto decil no final do período analisado.
A análise da distribuição do perfil da PIA
do Nordeste Metropolitano reflete, em 2004,
a crise do emprego do início da década, bem
como do aumento do emprego precário, tendências apresentadas por todos os decis e para
o total da PIA nesse ano. A partir desse ano e
no decorrer da década, cresce a proporção de
ocupados e de ocupados não precários e cai a
proporção em desemprego. Nota-se, entretanto, a permanência de cerca de um quarto em
ocupações precárias, e, entre 2004 e 2012, a
taxa de inatividade cerca de 40%.
Em 2004, a PIA do primeiro decil é composta de apenas 2,4% de ocupados não precários, 26% de ocupados precários e de 21%
de desempregados, assim como também de
uma proporção de inativos de 50%. Ainda
que reflita a conjuntura de crise do emprego
e o início da recuperação, esse quadro permanece semelhante para 2009, com pequena redução da proporção de desempregados e com
inatividade e, também, menores proporções
518
de ocupados. Observa-se, entretanto, que não
são muito distintas as proporções de ocupados
precários, a partir do segundo decil em direção aos superiores, diminuindo no decorrer da
década para todos os decis. Esses indicadores
apontam para a permanência nos primeiros
decis de pessoas com maiores dificuldades para a inserção no mercado de trabalho
Considerando o total da PIA, no período
entre 2004 e 2012, cresce a proporção de
ocupados nas RM do Nordeste, com destaque
para o aumento de ocupados não precários
(6 p.p) e queda no número de desempregados
(4 p.p). Ainda que as características da PIA
tenham se alterado pouco no período, esses
indicadores apontam para uma melhora na
qualidade das ocupações.
A análise da escolaridade do Nordeste
Metropolitano (Tabela 3) evidencia, em relação ao primeiro decil, desigualdade bastante
acentuada e permanente, no período de 2001
a 2012, e uma melhora bastante tímida quanto aos indicadores educacionais. No primeiro
decil, cai em 4 p.p. a proporção de analfabetos, entre 2001 e 2004, e 4,5 p.p. entre 2004
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras
Tabela 2 – Distribuição da PIA (pessoas 10 anos e mais)
por situação ocupacional e condição na precariedade da ocupação
segundo decis do rendimento domiciliar per capita.
Regiões metropolitanas do Nordeste – 2001-2012
50% mais pobres
10%
20%
30%
40%
50%
50% acima
da mediana
Total
2001
2,9
9,0
11,3
15,7
19,0
29
19,2
Ocupado precário
19,3
23,3
27,6
27,4
29,1
24,7
25,0
Ocupado
22,2
32,3
38,9
43,1
48,2
54
44,2
Desempregado
15,3
9,3
8,5
7,5
7,4
4,4
7,3
Ocupado não precário
62,5
58,4
52,6
49,4
44,5
42
48,5
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100
100,0
2,4
10,8
13,9
17,0
22,4
33
22,0
Ocupado precário
25,7
27,1
29,9
29,0
30,7
25,9
27,3
Ocupado
28,1
37,9
43,9
46,0
53,1
58,7
49,4
Desempregado
21,5
14,8
12,0
11,0
8,9
6,2
10,3
Inativo
50,4
47,3
44,1
43,0
38,0
35,1
40,4
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100
100,0
Inativo
Total
2004
Ocupado não precário
Total
2009
2,7
13,2
16,8
22,0
27,4
38
26,1
Ocupado precário
24,7
25,7
31,5
28,0
30,2
25
26,5
Ocupado
27,3
38,9
48,3
50,0
57,6
62
52,5
Desempregado
19,5
12,1
10,8
9,6
7,4
4
8,4
Ocupado não precário
Inativo
53,1
49,0
40,9
40,5
35,0
33
39,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100
100,0
5,4
15,3
19,0
25,0
30,9
39,4
28,2
Ocupado precário
18,9
24,2
24,1
26,7
27,7
24,2
24,3
Ocupado
24,3
39,5
43,2
51,8
58,6
63,7
52,5
Desempregado
16,6
10,1
8,7
7,1
5,2
3,0
6,6
Inativo
59,1
50,3
48,2
41,2
36,1
33,3
40,9
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Total
2012
Ocupado não precário
Total
Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
Elaboração: Nepp/Unicamp. Excluídos da análise de domicílios: pensionistas, empregados domésticos residentes e parentes
dos empregados domésticos.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
519
Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa
Tabela 3 – Escolaridade da população de 10 anos e mais,
segundo decis do rendimento domiciliar per capita.
Regiões metropolitanas do Nordeste – 2001-2012
50% mais pobres
10%
20%
30%
40%
50%
50% acima
da mediana
Total
2001
Analfabeto
20,6
16,5
14,4
12,5
11,6
6,3
11,4
Ensino Fundamental Incompleto
67,5
269,1
66,2
63,3
58,2
40,5
54,6
Ensino Fundamental Completo
3,0
2,9
3,7
4,4
5,7
3,8
3,8
Ensino Médio
8,6
11,2
15,2
19,2
23,5
33,4
23,0
0,3
0,2
0,5
0,7
1,0
16,0
7,2
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Analfabeto
16,9
13,4
11,9
11,1
9,8
5,5
9,8
Ensino Fundamental Incompleto
68,1
66,4
63,1
58,0
52,1
34,7
50,6
Ensino Fundamental Completo
3,1
4,0
4,4
5,4
5,9
5,2
4,8
11,4
15,8
19,9
24,4
30,2
35,4
26,3
0,4
0,4
0,8
1,0
2,0
19,2
8,5
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Analfabeto
12,4
11,4
10,7
8,9
8,4
4,8
8,1
Ensino Fundamental Incompleto
57,9
53,9
50,6
46,2
42,2
27,8
41,0
Ensino Superior
Total
2004
Ensino Médio
Ensino Superior
Total
2012
Ensino Fundamental Completo
Ensino Médio
Ensino Superior
Total
5,5
6,3
5,6
6,1
6,1
5,6
5,8
22,3
27,1
30,9
35,4
37,5
37,0
33,1
2,0
1,4
2,2
3,4
5,8
24,8
12,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
Elaboração: Nepp/Unicamp. Excluídos da análise de domicílios: pensionistas, empregados domésticos residentes
e parentes dos empregados domésticos.
e 2012, exibindo valores superiores a 10% nos
decis inferiores, da ordem de mais de 50% das
três primeiros decis, tanto em 2004 quanto em
pessoas de 10 anos e mais, o que coincide com
2012. As alterações em relação aos perfis dos
a PIA, indicando limitações para esse segmen-
50% mais pobres são bastante tímidas, no en-
to nas possibilidades de inserção de qualidade
tanto há um aumento na escolaridade para es-
no mercado de trabalho e de elevação da ren-
se grupo, com aumento do ensino fundamen-
da domiciliar.
tal completo e ensino médio. Entretanto, per-
Em relação ao grupo com renda acima
manece extremamente elevada a proporção
da mediana, embora menores, são ainda ele-
com ensino fundamental incompleto nos três
vadas as proporções com ensino fundamental
520
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras
incompleto, cerca de 28% em 2012. No perío-
A análise da distribuição da renda domi-
do, pode-se destacar, para estes, o aumento do
ciliar per capita do Sul Metropolitano por de-
ensino superior, que alcança 25% em 2012, em
cis mostra no período, para os decis inferiores,
contraste com cerca de 2% nos três primeiros
elevação no valor de corte superior a 50%. O
decis no mesmo ano, reiterando as desigualda-
primeiro decil, correspondente aos 10% mais
des educacionais no período.
pobres, apresenta um ganho de renda de 65%
no período, entre os anos de 2004 e 2012, e
75% considerando-se desde 2001. Essa ten-
Sul Metropolitano
dência de aumento cerca de 50% permanece
até o quarto decil e diminui para pouco mais de
Os valores dos cortes dos decis de renda domi-
40% no quinto decil (Gráfico 7).
ciliar per capita do Sul Metropolitano indicam
Entre 2001 e 2004, a faixa de renda cor-
menor pobreza, se comparados ao Nordeste
respondente ao valor do salário mínimo estava
Metropolitano. Estudo aponta, para a região
situada entre o quinte e sexto decis;, em 2009,
Sul, as maiores quedas na proporção de pobres
esse valor se situava entre o quarto e quinto
entre 1995 e 2008 (Ipea, 2010), da ordem de
decis e, em 2012, entre os 3º e 4º decis. A po-
47% em relação à taxa de pobreza absoluta
lítica de valorização do salário mínimo permi-
(rendimento domiciliar per capita de até meio
tiu que aqueles domicílios que tinham a renda
SM) e 59,6% em relação à taxa de pobreza ex-
per capita média igual a um salário mínimo
trema (rendimento domiciliar per capita de até
apresentassem mobilidade de renda e também
um quarto de SM). Segundo projeções desse
orientou a renda dos decis inferiores para cima
estudo, em 2016, a região Sul poderá ser a pri-
(“efeito farol”).
meira localidade do País a superar a condição
A análise da distribuição do perfil da
de pobreza absoluta. No mesmo período, a re-
PIA do Sul Metropolitano não apresenta mu-
gião Nordeste poderá apresentar creca de 28%
danças acentuadas, ainda que reflita as ten-
de sua população em pobreza absoluta.
dências, a partir de 2004, do crescimento da
Nas regiões metropolitanas do Sul, há in-
proporção de ocupados e de ocupados não
dicações de progressiva redução da proporção
precários, assim como também de redução
de domicílios pobres, pois eles estão cada vez
da proporção em desemprego observados no
mais limitados aos primeiros decis da distribui-
País. A taxa de inatividade também cai, entre
ção de renda domiciliar per capita (Gráfico 7).
2001 e 2004, com tendência de elevação no
Ou seja, entre 2001 e 2004, os domicílios con-
final do período.
siderados pobres (com rendimento de até meio
A análise da evolução da PIA entre 2001
salário mínimo) estão situados no terceiro decil
e 2012 evidencia, principalmente para os pri-
e abaixo deste. Já, em 2009, o corte de rendi-
meiros decis da distribuição da renda domici-
mento correspondente à pobreza encontra-se
liar per capita, comparando os anos entre 2004
no segundo decil e, no ano de 2012, no primei-
e 2009 (Tabela 4), uma queda expressiva de
ro decil, caminhando no mesmo sentido das
ocupados precários, o que mantém, em todos
projeções feitas por Ipea (2010).
os decis de 2009, uma distribuição próxima à
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
521
Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa
Gráfico 7 – Valor dos decis de rendimento domiciliar per capita.
Regiões metropolitanas do Sul – 2001-2012
Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
Elaboração: Nepp/Unicamp.
Valores atualizados para 2012 (INPC).
proporção total (24,3%), apresentando queda
precários, entre 2004 e 2009, e de 7 p.p. entre
mais acentuada, em 2012, e proporções pró-
esse ano e 2012; no período de 2004 a 2012,
ximas de 20%. Observa-se, ainda entre estes,
apresenta ainda as tendências de redução do
elevação das proporções de ocupados com vin-
total de ocupados e de elevação da proporção
culações contratuais não precárias até 2012.
em inatividade. Esses dados sugerem que, no
Considerando-se o total da PIA, bem como os
período entre 2004 e 2012, em consequência
50% acima da mediana, essas mudanças não
da mobilidade de renda em direção aos decis
são acentuadas.
superiores, permanecem nos decis inferiores as
Entretanto a PIA do primeiro decil registra uma queda de 6 p.p. entre os ocupados
522
pessoas com maiores restrições para se inserirem no mercado de trabalho.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras
Tabela 4 – Distribuição da PIA (pessoas 10 anos e mais)
por situação ocupacional e condição na precariedade da ocupação
segundo decis do rendimento domiciliar per capita.
Regiões metropolitanas do Sul – 2001-2012
50% mais pobres
10%
20%
30%
40%
50%
50% acima
da mediana
Total
2001
7,0
14,8
21,1
26,1
30,4
35,7
26,9
Ocupado precário
23,6
26,1
24,3
27,5
27,2
24,7
25,1
Ocupado
30,6
40,9
45,4
53,6
57,6
60,5
52,1
Desempregado
11,7
7,3
6,5
5,7
4,4
5,7
5,2
Ocupado não precário
Inativo
57,7
51,8
48,1
40,7
38,0
33,8
42,7
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100
100,0
9,2
19,1
26,3
31,4
36,0
42
32,4
Ocupado precário
29,9
30,1
28,2
27,2
27,6
23,6
26,4
Ocupado
39,1
49,2
54,6
58,6
63,7
65,7
58,7
Desempregado
13,2
8,0
6,7
6,9
4,4
2,7
5,5
Inativo
47,7
42,8
38,7
34,5
31,9
31,5
35,7
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100
100,0
Ocupado não precário
12,1
21,5
31,1
30,7
38,8
43
34,1
Ocupado precário
23,6
23,9
25,7
23,1
26,5
24
24,3
Ocupado
35,7
45,4
56,8
53,8
65,3
67
58,3
Desempregado
14,1
8,0
5,5
4,8
3,6
2
4,9
Total
2004
Ocupado não precário
Total
2009
50,3
46,6
37,8
41,5
31,0
31
36,7
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100
100,0
Ocupado não precário
14,3
28,8
36,7
32,1
45,1
38,2
38,2
Ocupado precário
16,7
20,7
22,4
19,9
22,0
21,0
21,0
Ocupado
31,0
49,5
59,1
52,0
67,1
59,1
59,1
Inativo
Total
2012
Desempregado
Inativo
Total
8,7
4,4
5,0
2,5
2,2
3,2
3,2
60,3
46,2
35,9
45,5
30,8
37,6
37,6
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
Elaboração: Nepp/Unicamp.
Excluídos da análise de domicílios: pensionistas, empregados domésticos residentes e parentes dos empregados domésticos.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
523
Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa
A Tabela 5 mostra lenta mudança no per-
incompleto – cerca de 27% em 2012. No pe-
fil da escolaridade das pessoas no Sul Metropo-
ríodo, pode-se destacar para esse grupo, o
litano. A queda na proporção de analfabetismo
aumento do ensino superior, que alcança 33%
no período entre 2001 a 2012 pode ser consi-
em 2012, em contraste com cerca de 3% nos
derada o elemento de melhora de maior signi-
dois primeiros decis no mesmo ano, reiterando
ficância (pouco menos que 5 p.p.), no entanto,
as desigualdades educacionais nas regiões me-
ainda é elevada a proporção de analfabetos
tropolitanas do Sul.
entre o primeiro e o terceiro decis. A compara-
Para finalizar, é possível observar que
ção entre o primeiro decil e o total da PIA das
o acesso aos serviços públicos urbanos apre-
regiões metropolitanas do Sul revela que a pro-
senta progresso entre 2001 e 2012, porém
porção de analfabetos no primeiro decil é mais
permanece marcante a pior condição de aces-
que o dobro maior que a média metropolitana,
so nos quatro decis inferiores de rendimento
evidenciando a desigualdade social nesses es-
domiciliar per capita em ambos os conjuntos
paços e contribuindo para explicar as restrições
de regiões metropolitanas analisados (Tabelas
para a inserção no mercado da PIA do primeiro
6 e 7).
decil de renda.
Também em ambos os casos e, especial-
As alterações em relação aos perfis
mente, para os 4 decis inferiores de renda é
dos 50% mais pobres são bastante tímidas,
pior o acesso aos serviços de coleta de lixo e
no entanto observa-se um aumento na esco-
à rede coletora de esgoto, especialmente nas
laridade para esse grupo, com aumento do
regiões metropolitanas do Nordeste, marcan-
ensino fundamental completo e ensino médio.
do negativamente as condições de vida des-
Entretanto, permanece extremamente elevada
ses domicílios.
a proporção com ensino fundamental incom-
Deve ser ressaltado, no entanto, que, no
pleto nos 3 decis inferiores, da ordem de mais
período analisado, tornou-se quase universal
de 50% das pessoas de 10 anos e mais em
o acesso à água canalizada, em ao menos um
2012. Esse fato somado ao elevado nível de
cômodo do domicílio, e à energia elétrica,
analfabetismo reforçam as dificuldades para
embora com menor atendimento do acesso
esses segmentos obterem inserção de quali-
à água canalizada, indicando melhora subs-
dade no mercado de trabalho e e elevação da
tantiva nas condições de vida das populações
renda domiciliar.
metropolitanas e ampliaçãoda possibilidade
Em relação ao grupo com renda acima
de acesso a bens, como eletrodomésticos, que
da mediana, embora menores, são ainda ele-
permitem maximizar o uso do tempo e am-
vadas as proporções com ensino fundamental
pliar horizontes.
524
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras
Tabela 5 – Escolaridade da população de 10 anos e mais,
segundo decis do rendimento domiciliar per capita.
Regiões metropolitanas do Sul – 2001-2012
50% mais pobres
10%
20%
30%
40%
50%
50% acima
da mediana
Total
2001
Analfabeto
24,6
18,5
14,9
10,7
11,3
4,6
11,4
Ensino Fundamental Incompleto
62,9
64,5
61,3
56,3
53,4
37,8
50,5
Ensino Fundamental Completo
4,7
5,7
6,6
8,5
7,5
5,3
5,9
Ensino Médio
7,0
10,4
15,6
22,8
24,7
29,4
21,4
Ensino Superior
0,8
0,8
1,5
1,7
3,2
23,0
10,8
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Analfabeto
21,3
14,3
10,9
9,1
6,9
3,4
9,0
Ensino Fundamental Incompleto
62,6
61,8
56,7
52,4
46,7
31,4
46,1
Total
2004
Ensino Fundamental Completo
Ensino Médio
5,4
7,7
8,6
8,3
9,7
6,9
7,5
10,0
15,1
22,2
26,6
30,9
30,5
24,5
0,7
1,1
1,6
3,6
5,7
27,9
13,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100
100,0
Analfabeto
14,1
9,9
7,4
6,8
5,3
2,8
6,3
Ensino Fundamental Incompleto
59,3
53,9
47,5
52,3
42,3
27,2
41,0
Ensino Fundamental Completo
7,3
8,2
9,5
8,1
9,6
6,5
7,6
16,5
24,9
30,0
25,9
34,0
30,1
27,6
2,8
3,1
5,6
6,9
8,7
33,4
17,4
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Ensino Superior
Total
2012
Ensino Médio
Ensino Superior
Total
Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
Elaboração: Nepp/Unicamp.
Excluídos da análise de domicílios: pensionistas, empregados domésticos residentes e parentes dos empregados domésticos.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
525
Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa
Tabela 6 – Proporção de domicílios com acesso a serviços urbanos,
segundo decis de rendimento domiciliar per capita (%).
Regiões metropolitanas do Nordeste – 2004-20012
Água canalizada
Decil de renda
2001
2004
Rede elétrica
2012
2001
2004
Coleta de lixo
2012
2001
2004
Rede de esgoto
2012
2001
2004
2012
1º
74,3
80,3
92,2
98,4
99,1
99,5
84,6
88,5
94,1
35,5
42,5
59,0
2º
80,7
87,2
94,5
98,8
99,2
100,0
84,4
88,1
95,0
33,9
46,4
60,1
3º
85,6
87,8
96,1
99,1
99,8
99,8
87,5
93,0
95,7
38,0
46,3
62,4
4º
88,2
90,3
95,8
99,3
99,6
100,0
91,9
93,4
96,3
40,4
48,3
65,4
5º
91,4
93,2
96,4
99,5
99,8
100,0
92,6
94,7
96,1
46,9
50,6
63,4
6º
90,0
92,7
95,4
99,2
99,7
99,8
93,8
94,8
96,8
46,5
55,7
65,5
7º
94,2
95,9
97,1
99,8
99,9
100,0
95,4
96,9
98,0
51,4
62,8
71,6
8º
96,5
97,2
98,5
99,8
99,9
99,9
97,2
97,6
98,8
58,4
67,6
73,7
9º
98,9
98,6
98,9
100,0
99,8
100,0
98,9
98,7
99,6
70,0
73,8
81,3
10º
99,2
99,5
99,0
99,9
100,0
100,0
99,3
99,1
100,0
79,1
81,8
88,0
Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
Elaboração: Nepp/Unicamp.
Tabela 7 – Proporção de domicílios com acesso a serviços urbanos,
segundo decis de rendimento domiciliar per capita (%).
Regiões metropolitanas do Sul – 2004-2012
Água canalizada
Decil de renda
2001
2004
Rede elétrica
2012
2001
2004
Coleta de lixo
2012
2001
2004
Rede de esgoto
2012
2001
2004
2012
1º
90,6
93,5
98,1
96,8
98,3
99,6
92,7
93,8
97,3
58,9
65,9
77,2
2º
96,0
97,7
98,5
99,7
99,7
100,0
96,1
96,3
98,4
68,6
69,6
81,8
3º
97,2
97,8
98,9
99,6
99,7
99,9
96,5
96,9
98,7
70,5
73,4
83,2
4º
97,2
98,6
99,1
99,2
100,0
99,8
95,3
98,3
98,5
72,6
81,2
81,3
5º
98,5
98,9
99,4
99,5
99,8
100,0
97,9
99,0
98,9
78,2
82,8
84,2
6º
97,8
99,8
99,3
99,7
99,9
100,0
97,2
98,9
99,5
79,7
82,7
87,2
7º
98,8
99,2
98,8
99,9
100,0
100,0
98,8
98,5
98,3
83,3
84,9
86,3
8º
99,7
99,7
99,5
99,8
100,0
100,0
99,4
98,9
99,7
89,8
88,9
89,4
9º
99,4
99,8
100,0
100,0
99,9
100,0
99,3
99,8
99,6
90,9
92,8
93,3
10º
99,7
99,8
99,9
99,8
100,0
100,0
99,9
99,9
99,9
95,0
94,7
96,5
Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
Elaboração: Nepp/Unicamp.
526
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras
Considerações finais
mais confunde do que ajuda a distinguir o que
de fato aconteceu no período de crescimento.
No Brasil, de forma semelhante ao que acon-
Para as análises deste projeto, foram es-
tece em diversos países da América Latina e
colhidos dois conjuntos de regiões metropoli-
nos demais países emergentes, são analisados
tanas com características contrastantes: as re-
aspectos que indicam o crescimento da classe
giões metropolitanas do Nordeste e as regiões
média, ainda que com características distintas
metropolitanas do Sul. O primeiro conjunto
da classe média tradicional (Birdsall, 2013).
concentra muito mais pobreza que o segundo,
Atualmente, é assunto comentado na mídia
no entanto, por serem regiões metropolitanas
brasileira e também oficialmente reconhecida
intensamente urbanizadas, apresentam ca-
por parte de órgãos governamentais para a
racterísticas, em comum, além da densidade
definição de suas políticas públicas, a “nova
populacional, a complexidade econômica (va-
classe média” brasileira, que teria surgido no
riedade de serviços e empregos) e os mesmos
período recente de crescimento pelo qual atra-
problemas de várias regiões metropolitanas:
vessou o País, principalmente a partir de 2004.
periferias com altas concentrações de pobreza
Essa nova classe emergiu da pobreza e se inte-
em contraste com bolsões de habitação de po-
grou aos circuitos de consumo médio do País,
pulação de rendimentos mais elevados.
frequentando escolas particulares, shopping
É inegável que, nesse período de cresci-
centers, universidades e financiando a casa
própria; trilhando, assim, o caminho da ascenção social, outrora possibilidade impensada
para tal contigente de pessoas pauperizadas,
cuja única preocupação se resumia à sobrevivência imediata.
Dessa forma, convencionou-se, por parte
da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), chamar de “nova classe média” todos aqueles que recebem
uma renda mensal per capita entre R$291,00
e R$1.019,00, que é aproximadamente metade
da População Economicamente Ativa (PEA) do
País. Esse valor se situa entre 0,46 e 1,6 salários mínimos, considerando-se o SM vigente
em 2012 (R$622,00), ou seja, abarca diversos
perfis ocupacionais e situações sociais. Desconsiderando as implicações que esse termo
trouxe para a compreensão (ou falta dela) da
realidade econômica do País, é inegável que ele
mento (2004-2012), houve aumento na renda
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
domiciliar per capita entre os grupos mais pobres da população, como ficou claro nas distribuições de renda por decis, mas não se pode
afirmar que esses grupos possam fazer parte
de uma suposta “nova classe média”. Embora
as faixas de renda que correspondem a um valor igual ou pouco superior ao salário mínimo
integrem os decis menos pobres da população,
isto só reafirma a desigualdade social que continua a marcar o País como um dos mais desiguais do mundo, mesmo com a recente queda
do Índice de Gini.
O aumento do emprego entre as ocupações menos remuneradas foi um dos fatores de
maior peso para o aumento de renda no período. No entanto, para os decis de renda mais
baixos, há pouco a ser comemorado, uma vez
que as taxas de desemprego e as ocupações
precárias são altíssimas. Segundo Pochmann
527
Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa
(2012), em seu livro Nova classe média?, o
terceirizados de empresas que cumprem diver-
atual ciclo de crescimento econômico foi mar-
sas tarefas em indústrias. Esse movimento que
cado por três fatores principais: 1) crescimen-
aumentou a proporção de ocupações não pre-
to do trabalho assalariado formal e protegido
cárias se deve à formalização das ocupações de
por lei na base da pirâmide social brasileira; 2)
baixa remuneração, pois, ainda que sejam mal
criação de emprego em ocupações que pagam
remuneradas, as mínimas garantias e direitos
até 1,5 salário mínimo; e 3) deslocamento da
oferecidos pelos empregos registrados em car-
dinâmica da geração de postos de trabalho da
teira são suficientes para garantir alguma me-
indústria (décadas de 1970 e 1980) para o setor
lhora na vida dos trabalhadores que ocupam
de serviços (anos 1990 e 2000). Dessa forma,
a base da pirâmide social (o direito ao auxílio
com a valorização do salário mínimo e o au-
desemprego é um deles, por exemplo). Dessa
mento do emprego, permitiu-se a esse enorme
forma, os empregos que exigem baixa qualifi-
contingente de trabalhadores conquistar um
cação foram os que mais influenciaram a mobi-
padrão de consumo relativamente inédito na
lidade de renda verificada no período. Assim se
história nacional, o que possibilitou-lhes uma
mantêm os “gargalos” que travam a ascenção
percepção de futuro mais positiva do que antes.
social, sendo um exemplo o não preenchimen-
O crescimento do emprego (principal-
to de vagas em empregos que oferecem melhor
mente no setor de serviços) na base da pirâmi-
remuneração e exigem qualificação mais alta
de social brasileira no período de 2004 a 2009
que a média.
tem a ver com um processo de desindustrializa-
A pobreza é entendida, neste trabalho,
ção intenso que atingiu o País principalmente
como um fenômeno multidimensional, do qual
a partir da década de 1990. Os setores indus-
a falta ou ausência de renda é apenas um de
triais ofereciam melhor remuneração, e muitos
seus elementos. O aumento da renda regis-
dos trabalhadores dessas indústrias faziam
trado no período não foi acompanhado por
parte da então tradicional “classe média” da
melhorias substanciais em outros indicadores,
população, tendo em vista que, para ocupar
como a qualidade do emprego e da educação,
tais empregos, era necessário determinado co-
que são excelentes parâmetros de condição so-
nhecimento técnico, o que, portanto, exigia for-
cial. O progresso registrado no período de cres-
mação educacional mais elevada. Atualmente,
cimento pré-crise foi pontual, e há dificuldades
esses setores médios se encontram principal-
estruturais que dificultam o avanço dos indica-
mente no setor público ou no setor de serviços
dores educacionais, apesar das diversas políti-
privado, em que se localizam os empregos de
cas de inclusão.
melhor remuneração, uma vez que houve que-
As condições de vida urbana ainda evi-
da nos empregos gerados pela indústria. As-
denciam a permanência da desigualdade, em-
sim, restou, aos estratos mais vulneráveis da
bora haja a quase universalização do acesso à
população, os empregos que oferecem menor
energia elétrica e à agua. Permanece marcante
remuneração e que exigem baixa ou nenhu-
a pior condição de acesso aos serviços urbanos
ma qualificação profissional, setores tais co-
para os quatro decis inferiores de rendimento
mo telemarketing, atendentes de comércio e
domiciliar per capita em ambos os conjuntos
528
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras
de regiões metropolitanas analisados, especial-
isto é, na capacidade que a pobreza tem de se
mente no acesso aos serviços que impactam
reproduzir entre as gerações das famílias em
nas condições de saúde: rede de esgoto e co-
situação de vulnerabilidade.
leta de lixo.
No referido período de crescimento, re-
As mudanças observadas na elevação da
gistrou-se aumento na renda dos mais pobres,
renda se relacionam principalmente ao cresci-
mas a questão da desigualdade social perma-
mento econômico combinado com as políticas
nece. Assim, ainda que a elevação da renda
de valorização do salário mínimo e de transfe-
familiar tenha favorecido o acesso a bens e
rência de renda. Espera-se, contudo, que essas
serviços para segmentos mais amplos da popu-
mudanças possam levar a uma alteração no ci-
lação, permanecem os hiatos de acesso a em-
clo intergeracional de transmissão da pobreza,
prego, educação, moradia e saúde.
Lilia Montali
Universidade Estadual de Campinas, Núcleo de Estudos de Políticas Públicas. Campinas/SP, Brasil.
[email protected]
Luiz Henrique Lessa
Universidade Estadual de Campinas, Núcleo de Estudos de Políticas Públicas. Campinas/SP, Brasil.
[email protected]
Notas
(*) Trabalho apresentado no VI Congresso da Associação La no-americana de População, realizado
em Lima, Peru, de 12 a 15 de agosto de 2014. Seção 5.3: “Pobreza e vulnerabilidade social:
aproximações conceituais e medição na úl ma década na América La na”.
(1) O Objetivo de Desenvolvimento do Milênio (ODM) era de reduzir pela metade a fome, e a
meta estabelecida pela Cúpula Mundial de Alimentação era reduzir pela metade o número
absoluto de subalimentados. O Brasil é um dos 29 países que conseguiram alcançar essas duas
metas. O País reduziu em 82,1% o número de pessoas subalimentadas no período de 2002 a
2014. O documento aponta ainda que ele alcançou as metas estabelecidas pelas Nações
Unidas em relação à fome nos Obje vos do Desenvolvimento do Milênio e nos Obje vos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS) de 2015. Esses dados estão disponíveis em h p://www.fao.
org/hunger/es/ El estado de la inseguridad alimentaria en el mundo 2015 e foram divulgados
em 27/5/2015. Também foram divulgados Via Portal Planalto, em 28/5/2015, h p://www2.
planalto.gov.br/no cias/2015/05/fome-cai-82-em-12-anos-no-Brasil-afirma-onu.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
529
Lilia Montali, Luiz Henrique Lessa
(2) IBGE mostra um país cada vez menos desigual: pobreza extrema cai a 2,8% da população.
Ministério do Desenvolvimento Social. Disponível em: h p://mds.gov.br/area-de-imprensa/
no cias/2015/novembro/um-pais-menos-desigual-pobreza-extrema-cai-a-2-8-da-populacao/
view. Acesso em: 13 nov 2015.
(3) Cepal-ONU. Panorama Social da América La na 2015. Disponível em: h p://www.cepal.org/ptbr/node/36488. Acesso em: 25 mar 2016.
(4) São analisadas informações rela vas ao conjunto de nove regiões metropolitanas brasileiras
(RMs) contempladas pelo desenho amostral das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios
(Pnad), possibilitando a análise dos microdados (IBGE, 2009): Belém, Belo Horizonte, Curi ba,
Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, ins tuídas nos anos 1970,
e o Distrito Federal (DF), ainda que atualmente no Brasil existam 35 regiões metropolitanas
oficialmente ins tuídas.
(5) O Índice de Gini mede a desigualdade de renda, e seu valor quanto mais próximo de 1, indica
maior desigualdade e quanto menor, indica menor desigualdade de renda.
(6) A metodologia para medir a pobreza u lizada por Rocha constrói linhas de pobreza baseadas
no custo de cesta de consumo diferenciada por áreas de residência e por região; pode ser
encontrada em Rocha (2003).
(7) Segundo Rocha (2010), a evolução da proporção de pobres entre 2004 e 2008 para a população
brasileira é de 33,3% para 22,8%; para as áreas metropolitanas cai de 38,8% para 27,1%; para as
urbanas: de 29,6% para 19,9%; para as rurais cai de 35,4% para 24,3%.
(8) O valor do salário mínimo (SM) vigente em 2012 era de R$622,00.
(9) Sistema zação do debate salário mínimo pode ser encontrada em Montali et al. (2012, capítulo 2).
(10) h p://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.ac on?id=21191. Acesso: dez 2011.
(11) O salário mínimo (SM) é definido como: “A contraprestação mínima devida e paga diretamente
pelo empregador a todo trabalhador, inclusive ao trabalhador rural, sem dis nção de sexo, por
dia normal de serviço, e capaz de sa sfazer, em determinada época e região do País, as suas
necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte” (Brasil, Lei
nº 5.452, 1º de maio de 1943). Entretanto, após a implementação, o salário mínimo atuou no
sen do de fixar um custo mínimo para a reprodução da força de trabalho brasileira.
(12) BPC é uma transferência monetária no valor de um salário mínimo nacional, des nado a idosos
acima de 65 anos e a portadores de deficiência, em famílias com rendimento domiciliar per
capita de até um quarto de salário mínimo. Trata-se de um direito constitucional. O Peti é
uma transferência monetária direta às famílias com crianças em trabalho infan l, vinculada à
par cipação em a vidades complementares à jornada escolar.
(13) h p://www.brasilsemmiseria.gov.br/documentos/Car lha_20X20.pdf. Acesso em: ago 2012.
(14) Uma primeira versão dessa análise, para o período entre 2004 e 2009, pode ser encontrada em
Lessa (2012).
(15) A inves gação se baseia nos microdados da série Pnad-IBGE (2001-2012).
530
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras
(16) Para uma discussão mais aprofundada acerca do crescimento pró-pobre que teria ocorrido
no período, ver artigo publicado pelo Centro de Políticas Sociais da FGV em parceria com a
Interna onal Poverty Centre (órgão da ONU), que define como pró-pobre o crescimento que
a nge proporcionalmente os mais pobres do que os não pobres. Assim, o crescimento própobre diminui a desigualdade, enquanto o an pobre a aumenta (Neri, 2006).
(17) Consideram-se como“extremamente-pobres” os indivíduos em domicílios com renda per capita
inferior a um quarto do salário mínimo (R$155,50); como “pobres” aqueles com renda entre um
quarto e meio salário mínimo (R$311,00) em valores deflacionados para 2012; salário mínimo:
R$622,00.
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Texto recebido em 12/ago/2015
Texto aprovado em 25/abr/2016
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 503-533, jul 2016
533
Moradia e pertencimento:
a defesa do Lugar de viver
e morar por grupos sociais
em processo de vulnerabilização
Housing and sense of belonging: the defense of the Place
of living by social groups undergoing vulnerability processes
Maria Auxiliadora Ramos Vargas
Resumo
Habitação é um tema vasto que pode ser considerado a partir de perspectivas diversas. Este artigo se propõe a refl etir sobre a experiência de
grupos afetados por desastres e em processo de
vulnerabilização social: a defesa da permanência
no seu Lugar de viver e morar se contrapondo à
ameaça de desterritorialização vivenciada. Trata-se da experiência de moradia a partir da evidenciação de sentidos que são atribuídos à casa e ao
Lugar, apontando para outras dimensões relacionais com o espaço. O Lugar revela a adoção de
formas de viver, morar e se relacionar com o ambiente nem sempre escolhidas ou revela escolhas
que se dão a partir de reduzidas possibilidades,
desenhando o desigual acesso a bens e serviços
oferecidos pela cidade.
Abstract
Housing is a broad theme that may be viewed
from different perspectives. This article aims at
reflecting on the experience of groups affected
by disasters and undergoing social vulnerability
processes: they defend the right to remain in their
own Place of living in opposition to the experienced
threat of deterritorialization. This is about the living
experience based on the revelation of meanings
that are attributed to the house and to the Place,
which point to other dimensions of relations to
the space. The Place either reveals the adoption
of ways of living and relating to the environment,
which, sometimes, have not been chosen, or
reveals choices based on reduced possibilities,
designing an unequal access to the goods and
services offered by the city.
Palavras-chave: moradia; vulnerabilização social;
desastre; desterritorialização; resistência no lugar.
Keywords: housing; social vulnerability; disaster;
deterritorialization; resistance in the place.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3611
Maria Auxiliadora Ramos Vargas
Quando a seca chega e leva embora as águas do rio Uruguai, as pessoas de Pueblo
Federación regressam à sua perdida querência. As águas, ao ir embora, deixam
nua uma paisagem de lua; e as pessoas voltam. Elas vivem agora numa aldeia que
também se chama Pueblo Federación, como se chamava a sua velha aldeia antes
que a represa de Salto Grande a inundasse e a deixasse debaixo das águas. Da velha
aldeia já não se vê nem mesmo a cruz no alto da torre da igreja; e a aldeia nova é
muito mais cômoda e muito mais linda. Mas eles voltam à velha aldeia que a seca
lhes devolve enquanto dura. Eles voltam e ocupam as casas que foram suas casas
e que agora são ruínas de guerra. Ali, onde a avó morreu e onde aconteceram o
primeiro gol e o primeiro beijo, eles fazem fogo para o chimarrão e para o
churrasco, enquanto os cães cavam a terra em busca dos ossos que tinham escondido.
Eduardo Galeano (2005)
Desastre, vulnerabilização
social, desterritorialização
sobre como tais processos agregam, também,
expressões de luta por permanência e defesa
do seu território, ainda que sob contestação
dos diagnósticos técnicos oficiais.
Os cenários de desastres socioambientais têm,
Reportando-nos às reflexões de Qua-
como uma de suas principais e mais dramáticas
rantelli (2005) e Valencio (2010), temos que
expressões, o comprometimento da experiên-
desastres, para a Sociologia, designam aconte-
cia de moradia e de vinculação com o Lugar1
cimentos trágicos e podem ser descritos como
de parcelas sociais significativas, sinalizando
fenômenos adversos que geram processos de
para a sua possível associação com proces-
ruptura da rotina, de lugares, fazeres e práti-
2
sos de vulnerabilização social. Tal afirmativa
cas, envolvendo uma configuração espaço-
revela, já de início, uma adesão à abordagem
-temporal e sócio-histórica para manifestar-se,
sociológica acerca dos desastres, sendo essa
levando-nos a perguntar “o quê?”, “onde?”,
interpretação apenas uma das que, no debate
“quando?” e “com quem?”, considerando a
contemporâneo, integram a disputa pela clas-
adoção dos conceitos de tempo e espaço so-
sificação de tal fenômeno (Bourdieu, 2005). In-
ciais – em detrimento dos de tempo e espaço
trodutoriamente, objetiva-se esboçar o concei-
geográficos –, assim como observando a rela-
to de desastres para a Sociologia, o ambiente
ção entre o referido fenômeno e os processos
de disputa por sua classificação e, por fim, sua
de desenvolvimento.
relação com processos de vulnerabilização e de
Apesar da não existência de consenso
ruptura de rotinas, práticas e lugares, revelan-
sobre o conceito, Quarantelli constatará a pre-
do a realidade de desterritorialização experi-
sença de um paradigma básico implícito na
mentada pelos que são severamente afetados.
área dos desastres, envolvendo uma série de
Tal ensejo quer instigar, sobretudo, a reflexão
noções inter-relacionadas, cujo destaque recai
536
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016
Moradia e pertencimento
sobre duas delas, a saber: 1) os desastres são
e as perdas para processos sociais contínuos,
fenômenos inerentemente sociais e 2) a origem
pois, não havendo consequências sociais nega-
dos desastres se encontra na estrutura social
tivas, não há desastre.
ou no sistema social. Para o autor, antes de
Buscamos fazer a associação entre o
serem “naturais”, os desastres são essencial-
desastre e os processos experimentados por
mente políticos, permitindo a problematização
grupos sociais específicos, através das noções
do subdesenvolvimento, da insustentabilidade
de vulnerabilização, como processo, e vulnera-
ambiental e da pobreza como suas principais e
bilidade, como relação – conforme contribuição
mais imediatas causas.
oferecida por Acselrad (2006). Nessa formula-
As afirmativas até aqui expostas se reve-
ção, o foco é retirado do indivíduo e deslocado
lam como um contraponto à construção hege-
para a desigual proteção ou para os mecanis-
monicamente feita sobre esse conceito quando
mos que tornam os sujeitos vulneráveis. Desta-
originado de outras clivagens e racionalidades.
ca-se o que lhes é devido em termos de prote-
Porém, as chamadas “ciências da natureza”
ção social e de direitos, revelando, pois, como
não respondem à totalidade das formas cien-
tais elementos integram o desastre.3
tíficas de argumentação a respeito do fenôme-
Não só no âmbito de sua definição, mas
no desastre. Há uma diversidade de agentes
também das práticas daí decorrentes, explici-
que configuram a luta pela sua classificação.
tam-se conflitos, confrontos, tensões que ten-
Cabe-nos indagar: “quem são e de que lugar
dem a impor o discurso oficial do risco sobre
esses agentes anunciam suas verdades?”. Há
territórios específicos e, por consequência, so-
também uma diversidade de compromissos de
bre seus agentes, aqueles que neles vivem e
atuação e de fazeres que não se dão da mes-
moram, determinando sua desterritorialização.
ma forma. Associada a tais agentes e posicio-
Há, tendencialmente, um esforço de desquali-
namentos, está a luta social situada entre dois
ficação do território e de seus moradores. Tal
domínios distintos: do espaço social propria-
prática tende a “coisificá-lo”, destituindo-o da
mente dito e da esfera simbólica, no sentido do
diversidade da experiência social que o consti-
confronto de discursos e projetos que disputam
tui. O “território condenado” resume-se, pois,
legitimidade e reconhecimento, em processos
às suas benfeitorias, edificações e equipamen-
intimamente conectados.
tos de infraestrutura coletiva, passíveis de cál-
Ao admitir e trabalhar sob essa perspec-
culos de indenização, em grande parte, referen-
tiva, a pesquisa sociológica apresenta mudan-
ciados em baixos valores, porque se associam
ças e ampliações importantes, permitindo a
à indenização de “áreas pobres” e, até então,
constatação de que os desastres se originam
desvalorizadas no que se refere às disputas do
da própria natureza dos sistemas sociais, sen-
mercado imobiliário. Pelo lado da significação
do, pois, manifestações ostensivas de latentes
identitária que os territórios adquirem, tais
vulnerabilidades da sociedade, das deficiências
indenizações, somadas à forma de se traduzir
nas estruturas ou em sistemas sociais. Por isso,
esses Lugares, são incompatíveis com o sentido
não devem ser vistos como resultantes de uma
de pertencimento que enraíza seus moradores
forma externa. Deslocam-se o foco das vítimas
a partir de uma trajetória de vida e vinculações.
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537
Maria Auxiliadora Ramos Vargas
Sendo assim, é necessário permitir que
destruição física e também simbólica registra-
os sentidos do Lugar e de pertencimento pos-
do. O território periférico deteriorado e impac-
sam ser também revelados a partir das narra-
tado pelo desastre não é revisto por aqueles
tivas dos afetados em desastres, resgatando
que o têm como referência de moradia e de
as estratégias que contribuirão para o escla-
cotidiano, no sentido de sua desqualificação,
recimento de uma das perspectivas que essa
o que se confronta com a categoria “área de
disputa assume. Nesse contexto, o Lugar como
risco” cunhada para esses mesmos locais pela
espaço do pertencimento se apresenta, ora co-
versão perita.
mo estratégia, ora como tática resistente à im-
Em analogia à perspectiva trabalhada
posição do ordenamento exógeno proposto ao
por Zhouri e Klemens (2010),4 identificamos
território. Tendo, pois, como eixo central o âm-
a existência de estratégias argumentativas
bito socioespacial, a concepção de Lugar pode
de aniquilação do Lugar (predominantemente
ser utilizada como relação entre sujeito afeta-
via discurso oficial) versus a estratégia argu-
do e o espaço onde vive, como expressão de
mentativa de reafirmação do Lugar (via re-
práticas cotidianas na relação com esse espaço
sistência dos moradores locais). Enquanto os
(Certeau, 2009) e da luta pelo direito de acesso
afetados buscam situar o ocorrido dentro de
à cidade (Lefebvre, 1991). O Lugar ganha não
certa generalização dos fatores de ameaça e
só significação, como se revela resultante de
da afetação – não particularizando o proble-
uma absoluta determinação, ou seja, da neces-
ma no seu espaço e com a expectativa de sua
sidade da adoção de formas de viver, de morar
recuperação e permanência nele –, a análise
e se de relacionar com o ambiente, nem sempre
técnica incluirá, no rol de sua cartografização
escolhido, ou de escolhas que se dão a partir de
e de diagnósticos, essas novas áreas, até então,
uma gama reduzida de possibilidades. Trata-se
“livres” dessa forma específica de controle.5
de um conjunto de determinações que desenha
a desigualdade para além da possibilidade de
escolha consciente desses sujeitos.
Assim, é facilitado o entendimento da
construção que os agentes fazem do desastre.
Então, a categoria Lugar deve ser explorada e
Morar: a perspectiva
de reafirmação do Lugar –
densidade e ambivalência
perpassada para clarear as vinculações estabelecidas entre agente e território, agentes entre
O contexto dos desastres – nominado comu-
si e entre interpretação do desastre e o sofri-
mente “tragédia” na retórica dos afetados –,
mento social por ele aguçado.
permite a evidenciação de sentidos que são
Nesse debate, é importante que o Lugar
atribuídos ao Lugar por aqueles que nele vivem,
possa ser pensado como forma de enraizamen-
apontando para outras dimensões relacionais
to que precede o “trágico” e o desastre como
com o espaço. Inicialmente, é possível mencio-
a ameaça de dissolução desse Lugar e, ainda,
nar elementos, quase não explorados na litera-
a existência de uma luta pela manutenção de
tura recorrente acerca do tema, constituintes da
seus sentidos, independentemente do grau da
perspectiva traçada pelos moradores vinculados
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Moradia e pertencimento
a essas áreas – as denominadas “áreas de ris-
Colabora com essa reflexão a categoria
co” –, uma vez que são contrapontos à versão
“tática”, em Certeau (2009), ou a ação calcula-
perita para tais territórios: o desvelamento de
da que é determinada pela ausência de um
uma esfera coletiva das representações do ter-
próprio, ou seja, do lugar do poder ou do que-
ritório como passível de produção de um Lugar;
rer próprios, como supomos se constituir predo-
a revelação de um mundo significativo na roti-
minantemente o universo dos grupos afetados
na da periferia que é também “seguro” e “ri-
severamente pelos desastres no caso brasileiro.
co” – dentro da precariedade socioambiental
O autor tratará das formas utilizadas pelo “ho-
das áreas sujeitas a deslizamentos, enchentes
mem ordinário” para escapar à conformação
e afins – ou processos de disrupção do cotidia-
esboçada pela razão técnica que acredita orga-
no – aspectos que apontam para a existência
nizar da melhor maneira coisas e pessoas. Esse
de um imaginário social capaz de construir en-
escape silencioso se traduz na reinvenção do
dogenamente sentidos para um Lugar fora do
cotidiano graças a táticas de resistências que
escopo da deterioração.
permitem a reapropriação do espaço e do uso a
[...] Eu sinto falta da roça, eu me sinto
presa agora [morando em apartamento
de aluguel] . Tô num lugar que não tem
espaço, meus netos não têm espaço. Eu
me sinto muito presa, sempre gostei de
ter as minhas coisas, graças a Deus. O Senhor me deu! Ganhei muita coisa depois
da tragédia. Mas tá faltando sair pra um
cantinho que tenha mais espaço que a
gente possa se alegrar mais. Eu gosto da
roça, dos bichos, de cuidar da terra com
foice, facão, tudo na mão. (Entrevistado
13 – Bairro Caleme)6
A insistência na permanência ou no retorno ao local de moradia e na reconstrução
em territórios tecnicamente condenados aponta para a importância de “um Lugar seu”, evidenciando a luta por pertencimento e vinculação, diante da despossessão vivenciada – inclusive a espacial. Estamos tratando de cenas
urbanas e rurais que trazem a dimensão tanto
da dominação quanto da desigualdade para o
primeiro plano. Esses locais se configuram em
Lugar na medida em que é necessário tornar o
mundo plausível, vivenciável: uma escolha dentro de uma gama reduzida de possibilidades.
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seu jeito. Certeau afirmará:
Nenhuma delimitação de fora lhe fornece
a condição de autonomia. A tática não
tem por lugar senão o do outro. E por
isso deve jogar com o terreno que lhe é
imposto tal como organiza a lei de uma
força estranha. Não tem meios para se
manter em si mesma, à distância, numa
posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é um movimento
“dentro do campo de visão do inimigo”
[...] e no espaço por ele controlado. Ela
não tem, portanto, a possibilidade de
dar a si mesma um projeto global nem
de totalizar o adversário num espaço
distinto, visível e objetivável. Ela opera
golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem
base para estocar benefícios, aumentar
a propriedade e prever saídas. O que ela
ganha não se conserva. Esse não lugar
lhe permite sem dúvida mobilidade, mas
numa docilidade aos azares do tempo,
para captar no voo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar,
vigilante, as falhas que as conjunturas
particulares vão abrindo na vigilância do
poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali
surpresas. Consegue estar onde ninguém
539
Maria Auxiliadora Ramos Vargas
espera. É astúcia. Em suma, a tática é a
arte do fraco. (Ibid., p. 95)
Há, pois, um conjunto de determinações que desenha a desigualdade para além
da possibilidade de escolha consciente desses
sujeitos. Retomaremos o recurso sociológico de
associação do desastre ao paradigma da vulnerabilidade social. Quando Acselrad (2006)
anuncia que a vulnerabilidade é uma relação e
não uma “carência”, objetiva, acima de tudo,
reafirmar que não poderá ser atacada através
da oferta compulsória de bens, mas que deverá
considerar as relações e os contextos, as diferentes situações e condições que se articulam
nos distintos momentos e localizações (p. 5).
Decorre daí que o consentimento para com
os riscos e danos impostos será tanto maior
quanto maior for a destituição (ibid., p. 3). Entram, no âmbito dessa análise, as possibilidades concretas que estão colocadas para certos
segmentos populacionais que vivem frequentemente nos limites das condições físicas de
reprodução, ou seja, como resultado de uma
situação sócio-histórica marcada pela ausência absoluta de opções e de moradia inclusive.
Este é um fator que evidentemente impulsiona
e cria o pano de fundo da dinâmica de ocupações tidas como “ilegais” e/ou “predatórias”
e tão fortemente condenadas pelos discursos
técnicos e oficiais, principalmente quando da
ocorrência dos desastres. As consequências colocam-se no restrito quadro de oportunidades
de localização para os mais pobres, fruto de
padrões de produção do ambiente construído e
de formas de produção e distribuição desigual
da riqueza.
que, nele, uns apresentam maior capacidade
para se proteger enquanto outros, nem tanto. No primeiro caso, essa proteção é possível
pela mobilidade ou pela influência que certos
grupos têm no controle do mercado das localizações. No segundo caso, tal proteção se afugenta para aqueles que não a possuem ou que
a possuem em baixa ou descendente escala
numa dada condição de existência.
Segundo Haesbaert (2004), a natureza
dessa mobilidade se faz representar pelas possibilidades relacionais estabelecidas no território. Alguns são protegidos pela experiência da
“multiterritorialização”; outros sofrem os limites impostos pela lógica capitalista hegemônica que os atrela ao “território unifuncional”.
Para o autor,
Desde a origem, o território nasce com
uma dupla conotação, material e simbólica, pois etimologicamente aparece tão
próximo de terra- territorium quanto de
terreo-territor (terror, aterrorizar), ou seja,
tem a ver com dominação (jurídico-política) da terra e com a inspiração do terror,
do medo – especialmente para aqueles
que, com essa dominação, ficam alijados
da terra, ou no territorium são impedidos
de entrar. Ao mesmo tempo, por extensão, podemos dizer que, para aqueles que
têm o privilégio de usufrui-lo, o território
inspira a identificação (positiva) e a efetiva “apropriação”. Território, assim, em
qualquer acepção, tem a ver com poder,
mas não apenas ao tradicional “poder
político”. Ele diz respeito tanto ao poder
no sentido mais concreto, de dominação,
quanto ao poder no sentido mais simbólico, de apropriação. (p. 1)
Lefebvre (2000) destaca o sentido sim-
Situando a proteção social no âmbito
bólico das “marcas do vivido” que o território
mais objetivo desse processo, pode-se afirmar
assume e que nos permite falar de apropriação
540
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016
Moradia e pertencimento
em contraposição à dominação: no sentido de
apropriação, estariam embutidos o valor de
uso e, como tal, a multiplicidade, diversidade
e complexidade que o território assume; na
segunda, qual seja, na dominação, estaria embutida a sua funcionalidade ou o seu valor de
troca. Para Lefebvre, a acumulação capitalista
sufoca as possibilidades de “reapropriação”
dos espaços que são transformados em mercadoria, impedindo a prevalência da apropriação sobre a dominação. Essas considerações,
ainda que preliminares, mostram-se fundamentais no entendimento do que aqui chamamos de Lugar – e dos saberes nessas condições gerados –, no reconhecimento de práticas cotidianas na sua dimensão espacial; tudo
isso atrelado à experiência de enfrentamento
do desastre que traz em seu bojo a constante
ameaça de desterritorialização.
No âmbito dos fatores subjetivos, podemos considerar as diferentes construções socialmente feitas acerca do que é “tolerável” ou
“intolerável”, do que é “arriscado” ou “seguro”, ante condições determinadas de existência. Registra-se certa convivência com eventos
pretéritos tidos como ameaçadores que geram
sua relativização. As narrativas mostram-se esclarecedoras, evidenciando certa recorrência de
fenômenos que marcam a experiência no sentido de sua apreensão e de seu enfrentamento
pela necessidade da permanência no Lugar:
[...] a gente pensava que era o rio que
estava subindo, que era só água! É onde
que, pra baixo, todo mundo morreu, por
causa disso. Caso entrasse água, ia acabar com os móveis, mas no outro dia estava tudo bem! Mas aí, não foi só isso. Foi
as pedras que veio matando todo mundo!
É onde que acabou tudo!! [...] A gente
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pensava que era enchente, só enchente!
(Entrevistado 28 – Campo Grande)
[...] meu pai sempre fala com a gente:
“choveu, de vez em quando, dá uma
olhada no rio, apesar dele tá longe”, porque isso aqui é um valão, é morro de um
lado e de outro e aqui é uma descida, e
aqui é um bairro que tem muita água. Se
você andar por essas trilhas, eu te levo
em lugares que tem muita água, tem cachoeira. Então, quer dizer, eu não sei na
cabeça dos outros, mas meu pai sempre
foi uma pessoa assim, apesar que a gente
sempre morou perto de rio, ele sempre
falou: “se ver que a chuva não tá normal,
sempre dar uma olhadinha, sempre ter
uma atenção!” (Entrevistado 21– Bairro
Campo Grande)
Conviver com tais fatores de ameaça
faria parte daquilo que Vargas (2006) menciona como sendo lidar apenas com mais
um elemento componente do cenário de privações e demandas que está no plano mais
imediato – ameaças, pois, que se tornariam
contornáveis e passíveis de convivência. Então, não se trata da negação desses fatores,
como se pode num primeiro momento inferir,
mas de sua secundarização.7 A leitura dos “sinais da natureza” e a apreensão de elementos
que caracterizam a paisagem, sua constituição biofísica, na tentativa de seu “controle”,
mostram-se como um misto entre convivência
e observação do Lugar e noções apreendidas,
ainda que, parcialmente, do próprio discurso
perito (geológico, meteorológico, originadas
da geotécnica, entre outros). Nas narrativas
seguintes, moradores e um técnico interpretam os territórios e suas características geológicas revelando uma convergência para a
leitura produzida pela geologia:
541
Maria Auxiliadora Ramos Vargas
Teresópolis é um lugar que está sobre a
pedra. É uma cidade alta. Essas pedras já
estão aqui há milhões de anos [...] durante esse tempo foram sendo depositadas
sobre essa laje de pedra materiais... essa
área todinha tem pedra embaixo. Mas você vê vegetação em cima da pedra, vê que
tá na terra acumulada sobre a pedra ao
longo dos anos. É pedra com camada de
terra e vegetação. Se chove muito, ela vai
lavar isso. Olha aquela montanha: pedra
pura! Essa outra aqui do lado, também...
Essa base nossa aqui é de pedra e é continuação daquela montanha, etc. O que
está aqui foi depósito feito ao longo dos
anos: depósito de poeira que veio ao longo dos anos, a gente não sabe quantos e
que se acumulou. (Entrevistado 6 – Bairro
Caleme)
técnicas, ainda que isso não seja claro para os
[...] e as pessoas se perguntam: “de onde
veio tanta pedra?” Foi por isso que até se
fez pesquisas com os geólogos e tudo, pra
mostrar qual era o tipo de relevo mesmo
de Teresópolis. E aí, se descobriu que Teresópolis é uma grande pedra. Debaixo de
toda a cidade você tem uma camada de
terra relativamente pequena. Aí, os engenheiros, arquitetos é que devem explicar.
Parece que realmente não é nada muito
profundo e você tem muita pedra indo
diretamente a essa camada, então, qualquer chuva, qualquer coisa maior faz com
que aquela terra que é muito pequena,
desça e apareçam as pedras. (Entrevistado 16 – Secretaria de Desenvolvimento
Social/PMT)
convergência para o conteúdo das referências
Mas olha, a pesquisa tá tão evoluída. Um
exemplo: a sombra da minha mão é o Caleme e aqui tem uma nuvem. Eles sabem
qual é o tamanho e a grossura dessa nuvem. Sabem a distância entre a nuvem e
o chão se é de 12 km, 15 km. Eles sabem
onde ela tá estacionada e ela estava da
Várzea [bairro central] pra cá... Sabe por
que eles sabem? Nós estamos aqui conversando. Eu te garanto que eles nos lugares de pesquisa mais evoluídos sabem
que eu tô sentado aqui e ele está em pé.
Eles dizem até o que você está comendo.
É satélite! Então, o cara não sabe que vai
chover? Diz pra ele, quantos minutos o
satélite leva pra dar uma volta na terra?
Se você reparar no jornal quando eles
mostram aquela foto de satélite, ele dá a
cada 11 minutos uma volta na terra, ele
anda na mesma velocidade de uma espaçonave quando está em órbita e leva 11
minutos pra dar a volta ao redor da terra.
Já pensou? Em cada 11 minuto você está
aqui de novo. Então, a cada 11 minutos
o cara tem a previsão daquela área onde passou. Ele passa investigando a área
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Os elementos mencionados até aqui
compõem a noção de Lugar pelos agentes, e
a retórica perita/técnica envolverá, direta ou
indiretamente, tais construções. Qual seja, tratamos de perspectivas que, num dado momento das narrativas, fazem certo movimento de
agentes e que essa forma específica de entendimento não use dos jargões da ciência, necessariamente. Haveria, pois, uma apropriação do
ambiente influenciada pelas estratégias discursivas oficiais, fortemente divulgadas, principalmente por ocasião da deflagração do desastre.
A força que a gestão e a tecnociência (Valencio, 2012) ganham contribui para a projeção
de ideias, noções, ferramentas específicas que
impregnam o imaginário social e interferem na
forma de os agentes mais diretamente afetados pelo processo o traduzirem, ainda que sua
ótica e experiências não sejam consideradas
diante das decisões que afetam o seu cotidiano
e o da comunidade à qual pertencem.
Moradia e pertencimento
todinha, então, como a altura dele é muita, ele vê onde tá acontecendo. (Entrevistado 6 – Bairro Caleme)
Nessa reflexão, as narrativas contam aos
poucos a história de vinculação com o Lugar, de
apropriação do território que está diretamente
associada aos processos de desenvolvimento e
ao ordenamento territorial mais geral. Os dois
territórios urbanos envolvidos na pesquisa –
Caleme e Campo Grande – situam-se em finais
de vales que foram ocupados há aproximadamente 50, 60 anos e forma adensados nos últimos 30 anos, conforme relato de seus moradores mais antigos. Originada de um integrante
da gestão municipal, a narrativa seguinte facilita o entendimento acerca das características
que marcam o adensamento que a cidade como um todo viveu nas últimas décadas:
Eu vim do Rio de Janeiro por conta de violência! Tudo bem que 20 anos atrás nem
era esse tanto de violência que é hoje,
mas a gente já veio com essa visão de sair
do Rio por conta da violência. E hoje em
dia é muito maior a proximidade de Teresópolis com Rio de Janeiro. A gente leva
uma hora e meia, duas horas de ônibus: é
o tempo que você leva da Barra da Tijuca
até o centro da cidade morando dentro do
Rio. Então, você tem uma qualidade de
vida melhor em Teresópolis por causa do
clima, um ambiente mais seguro para os
filhos adolescentes, ainda se pode andar
de noite na rua. Você não tem arma na
cabeça quando para no trânsito, não tem
caixa eletrônico explodindo, enfim, você tem uma certa segurança aqui ainda.
Existem aqui os traficantes, enfim, mas é
em menor escala e, aí, você faz com que
Teresópolis lote de gente. Qual é o grande
problema de Teresópolis? As pessoas procuram os centros urbanos que é onde tá
centralizada ali toda parte de comércio,
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banco, as unidades, órgãos públicos.Teresópolis tem uma área rural muito boa,
muito grande, até eu tinha uma grande
vontade de morar pra Vargem Grande.
Depois do negócio que aconteceu em janeiro, eu mudei de ideia, mas você não
tem essa área rural muito habitada. Tem
uns condomínios maiores de uns 5 anos
pra cá. Você tem uma leva de condomínios de classe média, classe alta pra esses locais. Se você andar aqui, você vai
ver bastante de Albuquerque pra lá em
direção a Friburgo bastante condomínio
de casas grandes, você vê que já é gente
que tá morando mesmo, nem usa só pra
veraneio, não! Gente que mora e desce
pro Rio, vem pro centro e tal! Mas assim,
é isso! Eu acho que Teresópolis tem uma
população pobre muito grande por conta:
primeiro pela topografia da cidade, não
tem jeito, você vai morar naquilo mesmo
e até gente aqui que mora na Várzea que
é a parte baixa do centro da cidade, que é
o reto, você vê que não é tão reto assim.
Aqui, por exemplo, na nossa Secretaria
tem uns morrinhos aqui do lado e nós estamos, teoricamente, na parte baixa, né?
Há pouco tempo, por conta da tragédia,
eu até fui em algumas reuniões do Ministério Público e tal, e ela tava mostrando
uns mapas, mostrando como que é o terreno de Teresópolis: a camada de terra
que tem aqui é muito pequena em profundidade. Em Teresópolis, como é região
serrana, parece que é a característica dos
três municípios: Teresópolis, Petrópolis e
Friburgo. (Entrevistado 16 – Secretaria de
Desenvolvimento Social/PMT)
No entanto, quando nos atentamos às
narrativas dos moradores, encontramos certa
disposição em interpretar “seus Lugares” não
a partir da ênfase em possíveis carências ou
irregularidades existentes – ainda que possam
ser objetivadas e componham seu quadro de
543
Maria Auxiliadora Ramos Vargas
vulnerabilização –, mas sim das vinculações
materiais e também de natureza simbólica já
criadas. Ao contarem as histórias de ocupação/formação dos seus bairros, realçam, antes
de tudo, a perspectiva relacional, cotidiana, as
conquistas (pessoais e coletivas) e mesmo o
sentido de “oportunidade” (Vargas, 2006) que
tal inserção simbolizou na sua trajetória de vida – e que se mantém na luta travada pela permanência no Lugar.
Tem de 32 a 33 anos que eu moro aqui.
Quando eu vim pra cá não tinha muitas
casas, a rua não era calçada, não tinha
ônibus até aqui. Eu só saio daqui direto
pro lugar pra onde nós vamos todo mundo [...]. Foi meu pai que me deu essa terra
aqui. Ele morreu aqui e minha mãe também, aqui é de família, entendeu? E tenho
meus amigos, a molecada toda gosta de
mim. É só você perguntar: “onde mora o
velho” que todo mundo me conhece. Aqui
eu crio minhas galinhas e outros bichos e
tenho meus pés de fruta. (Entrevistado 2
– Bairro Caleme)
O bairro cresceu tem uma faixa de uns
50 anos, né? Tô aqui há uns 50 e poucos anos [...]. Quando eu vim pra cá pro
Caleme eles estavam ainda querendo
construir a barragem. Então, que cresceu
mesmo esse bairro aqui tem uns 30 anos
que começou a evoluir. Aqui era quase só
parente antes. Depois começou a evoluir,
o tio dela arrumou um carrinho, o primo
lá embaixo comprou um carrinho. Já tinha
um carrinho pra sair aí pra fora, viajar. Eu
acho que cresceu devido ao fato do lugar
ser muito tranquilo. Muita gente veio, começaram a vender os terrenos. Esse terreno aqui, a gente não tinha escritura de
nada. Alguém aí tem um papel e diz que
tem escritura do terreno, mas não tem
nada! Era de uma Cia que tinha aqui em
Teresópolis. Depois, a casa da Cia pegou
544
fogo e os documentos sumiram tudo. Então, ficou esse lugar aqui assim. O pessoal
começou a tomar conta do pedaço. Meu
sogro mesmo, pegou daquela ponte que
tem abaixo da padaria até lá em cima.
Isso aqui era dele, ninguém mexia. Cada
um pegava um pedaço, cercava e dizia: “é
meu!” E foram fazendo casa e começaram a vender. Meu sogro mesmo vendeu
isso tudo aqui, ali pra baixo. Trocava por
qualquer coisa. Trocou por material que
nem tinha valor nenhum. (Entrevistado 17
– Bairro Caleme)
Moro aqui há 44 anos. Vim do Rio pra
cá com 1 ano de idade. Aqui, eu já morei no haras que tem perto do campo, lá
em cima. Daí, me casei e fui morar lá embaixo em Santa Rita e depois vim pra cá
[Fazenda Alpina]. Nessa casa tem 4 anos
que eu vivo. Aqui a gente fala Fazenda
Alpina. Santa Rita fica mais pra baixo, lá
embaixo. Mas Fazenda Alpina faz parte
de Santa Rita. Antigamente, chamavam
“Engano”, depois Fazenda Alpina. Aí fala:
Fazenda Alpina/Santa Rita. (Entrevistado
31 – Bairro Santa Rita)
Evidencia-se, nesse conjunto, o movimento de crescente ocupação física com ênfase na
constituição da moradia e dos serviços que são
destacados como os mais essenciais no cotidiano dos moradores: o transporte, a educação, o
pequeno comércio, os mesmos mencionados
como as principais carências para os que permaneceram nos locais impactados, gerando,
entre outros, um sentido de “vazio” e de “solidão” enquanto simbologia de rompimento também dos fluxos do Lugar, qual seja, de
mobilidade, liberdade de ir e vir, possibilidade
de manutenção de hábitos cotidianos, como
comprar o pão no comércio mais próximo, e do
lazer e diversão (futebol, sinuca), assim como
da manutenção da dinâmica alegre da reunião
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016
Moradia e pertencimento
de crianças e de adolescentes nas manhãs e
tardes de entrada e saída da escola local.
[...] Eu tive que passar setenta dias fora,
depois eu voltei pra cá, mas estou sentindo falta do movimento, daquela bagunça,
daquela gente que descia pra jogar futebol, porque tinha um campo que a gente,
às vezes, vinha bater uma bola. Olha, muita gente diz que Campo Grande tinha três
mil pessoas, mas eu calculo que devia ser
duas mil pessoas. Quando veio o dia da
tragédia, eles não foram embora de noite,
porque não tinha como eles ir, tava chovendo, aí a chuva acabou já tava quase
amanhecendo, aí eles não iam descer sem
caminho, no escuro. Eu cheguei ali e vi
pouca gente, morreu muita gente, eu calculo umas mil pessoas, ou umas mil e duzentas pessoas. Mas a água aqui passou
por cima de casa de dois andares. Inclusive tinha um casal que tava na praia, eles
vieram pra cá naquela noite, e viram eles
em cima da casa. Então, o pessoal pensava que eles não estavam em casa, viram
eles em cima da casa, o casal com duas
crianças, e quando dava um relâmpago
eles gritavam pedindo socorro, e ouviu
uma vez. Mas quando deu o relâmpago
de novo, eles não tava mais, a água passou por cima da casa, eles chegaram em
casa de noite e não amanheceram em casa. É triste, não é? Eu acho que aquele povo, muita gente não vai ter nunca mais, eu
acho que esse ônibus nunca mais vai até
lá em cima [antigo ponto final]. Eles tão
indo lá pra cima pra derrubar as casas,
eles não fazem nada pra ajudar a consertar a rua. Bom, eu gosto daqui, a água
aqui é muito boa porque é de uma nascente ali em cima. Aqui é um lugar muito
sossegado, aqui a gente pode dormir com
o portão aberto entendeu? Não tem perigo nenhum, aí quando o meu filho sai
e deixa a porta aberta, a pessoa pode
chegar e entrar. Eu fiquei muito tempo
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sem sair de casa, pra ir ao médico o meu
filho arrumava um carro. Aí o ônibus tá
vindo até aqui em cima agora, agora ficou bom de novo. Mas agora a gente tá
esperando que eles asfaltem a rua aqui
e que afundem o rio porque quando enche o rio, desce pela rua e estraga a rua
tudo de novo. Olha, eu tô achando que é
muito ruim pra gente sair de noite, fazer
compra: se voltasse aquele mercadinho
aqui embaixo seria bom, melhorar a rua,
aí eu preferia ficar aqui. Tava muito bom!
Aqui tinha uma padaria que vendia todo
tipo de fruta, uma birosca lá em cima e
lá tinha uma mesa de sinuca. E o pessoal
se divertia muito. Aqui tinha até o grupo
das mulheres que a gente jogava bola no
sábado. (Entrevistado 26 – Bairro Campo
Grande)
As considerações compreendem a perda
de fixos e fluxos, assim como a perda “dos outros”. Então, o desastre é “a falta de todo mundo”, a dificuldade de manutenção da vinculação
com o Lugar e com as pessoas que o integram,
porque morreram ou porque, aos que permaneceram vivos, não foi permitido o retorno.
Na conformação do Lugar que se faz
identitário, é interessante observar certa convergência entre as três localidades pesquisadas esboçadas nas narrativas – Bairros Caleme
e Campo Grande e Distrito de Santa Rita –,
principalmente considerando a mobilidade já
experimentada por alguns entrevistados entre as três áreas, assim como por vínculos de
parentesco existentes nas outras localidades
ou mesmo apenas pelo conhecimento que se
tem das histórias locais, com as quais é possível verificar forte identificação. Na verdade,
são territórios que apresentam características semelhantes no que se refere a histórico
e tempo de ocupação, padrões construtivos,
545
Maria Auxiliadora Ramos Vargas
infraestrutura e formas de vida, de maneira
Pensar essas localidades nos permite
geral, facilitando certa aproximação identitá-
avançar em traços particulares de sua cons-
ria com seu próprio Lugar.
tituição. Elemento fundamental na caracte-
Quando dos relatos acerca do ocorrido em
rização dos vínculos formados diz respeito à
12 de janeiro de 2011, foi comum o deslocamen-
conservação de fortes traços suburbanos e
to de suas interpretações para o outro território,
relações sociais ainda bastante tradicionais e
no sentido do reconhecimento de um também
familísticas, nos termos de Martins (2010).
sofrimento experimentado por “semelhantes”.
Lá no Campo Grande acabou. Eu não tive coragem de ir lá. Muita, muita gente
conhecida da gente! Uma família toda
conhecida da gente! Foram membros da
Igreja junto com a gente. Filho, neto da
irmã da Igreja. Lá foi muita gente conhecida, não tenho vontade de ir lá. Tem um
mês, encontraram o corpo de uma senhora lá, perfeitinho. (Entrevistado 17 – Bairro Caleme).
546
Aqui a gente conhecia os mais velhos,
os mais novos, quem casava, quem tava
namorando, quem tava esperando neném
[...]. Aqui, quando uma fazia uma arte, todo mundo ficava sabendo: “ih, tá namorando escondido”. Era assim. (Entrevistado 27 – Bairro Campo Grande).8
Nesse conjunto de importâncias e reflexões, destacamos o papel da casa como
“espaço vital” e a forma própria como é feita
O meu filho trabalha lá pro lado de Fazenda Alpina/Santa Rita. Ele disse que lá
choveu mais do que aqui. Lá, no Caleme,
os primeiros moradores de lá do Caleme
foi meu avô, o José Francisco de Melo. Papai foi criado lá. Todos lá, a maior parte é
meus primos que eu nem conheço. Lá foi
aumentando e tá quase uma cidade, né?
(Entrevistado 26 – Bairro Campo Grande)
e habitada, contribuindo para o entendimen-
Lá em Campo Grande era meu mesmo,
foi a primeira casa que eu comprei [...].
Nossa, lá eu conhecia as casas a dedo!
Eu conhecia tudo. Depois lá foi crescendo. Agora, nessa época, fiquei um bom
tempo fora e ali já tinha bastante gente
que eu não conhecia. Não consegui voltar lá depois do que aconteceu. Eu tenho
uma conhecida lá que tá sumida. Eu fui
até o ponto final [do ônibus] mas não
consegui: só em ver a primeira casa ali do
ponto da igrejinha... (Entrevistado 13 –
Bairro Caleme)
mais enfatizado do que a casa. Na perspec-
to do enraizamento dos sujeitos, tanto nesse
espaço mais restrito, como na sua extensão
mais coletiva ou na experiência comunitária,
reproduzindo-se de acordo com todas as dialéticas da vida, segundo Bachelard (1998).
Talvez não haja, no âmbito dos fixos presentes na análise dos desastres, componente
tiva do autor, a moradia está relacionada à
proteção e é concebida simbolicamente como
“concha”, ou seja, o “primeiro universo”, um
“cosmos”, nosso “canto no mundo”. Considerada para além de ser um objeto, expande-se de sua positividade para o mundo dos sonhos, no qual “as diversas moradas de nossa
vida se interpenetram e guardam tesouros
dos dias mais antigos” (p. 25). Bachelard
quer mostrar que
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016
Moradia e pertencimento
[...] a casa é uma das maiores (forças) de
integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação é o devaneio. O passado, o presente e o futuro dão
à casa dinamismos diferentes que não
raro interferem, às vezes se opondo, às
vezes excitando-se mutuamente. Na vida
do homem, a casa afasta contingências,
multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das
tempestades do céu e das tempestades
da vida. É corpo e é alma. É o primeiro
mundo do ser humano [...]. A vida começa
bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa. (Ibid., p. 26)
Apropriando-se do autor, (2012) ilumina
essa reflexão considerando que:
[...] a construção inicial de identidade e
as relações fundamentais com o outro, em
termos de cuidados mútuos, solidariedade
e afetividade, são protegidas pela moradia [...], concebida como um locus onde a
intimidade é resguardada para o repouso,
o devaneio, a satisfação das necessidades
básicas, dentre outros.Trata-se de uma referência espacial essencial dos residentes
para dar materialidade aos seus valores,
desejos, aspirações, fantasias, sentimentos, assim como para exercitar as tensões e conflitos que, porta afora, estarão
igualmente presentes na esfera pública. É,
ainda, a referência espacial relevante na
sociabilidade praticada com os demais
membros de sua rede primária, desde os
oriundos da família nuclear como da extensa, como os amigos e vizinhos. A referência alargada da moradia, que faz a
ponte entre a esfera privada e a pública,
as práticas pessoalizadas e as impessoais,
é a comunidade, cujo sistema de objetos
com significados compartilhados viabiliza
a coesão e rotinas de convivência entre
conhecidos e desconhecidos. (p. 68)
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Campo Grande foi um bairro que revelou
a característica da sociabilidade levantada pela
autora, apontando para conjuntos de moradias
que agregavam toda a família:
E lá era assim: tudo perto, em família.
Era um terreno que tinha cinco casas: a
minha sogra, a minha cunhada, minha
outra cunhada, eu e meu marido e tinha
um sobrinho dele que tinha uma casinha
lá também [...]. (Entrevistado 4 – Bairro
Campo Grande)
Eram 4 casas: da minha cunhada e meu
cunhado... eram, na realidade, 5 casas
porque o outro cunhado solteiro ele tava
construindo por cima da casa do irmão
dele, já tava com meia parede de tijolo
levantada; como a casa do irmão dele foi
levada por inteiro, a dele foi junto. Só a
que ficou inteira e não caiu nada foi a minha casa e a do meu sogro. Já a da minha
cunhada que era no segundo andar, a sala foi destruída e a garagem, a cozinha,
banheiro e quarto. A varanda da cozinha,
onde ela até tinha uma lojinha de doce ficou intacta, só atingiu mesmo a sala e a
garagem. (Entrevistado 20 – Bairro Campo Grande)
O terreno era assim: a gente fala que é
meu, mas como dizem, a gente não tem
nada, aqui é de Jesus. Jesus emprestou
pra gente viver até agora, né! Então, tinha a casa dele, que é da minha filha, e
tinha a casa do outro filho que eu deixei
ele fazer em cima da minha, e eu morava
na de baixo. E foi tudo embora numa pedrada só! Tinha outra mais pra baixo que
meu genro tinha acabado de construir.
Já tinha gastado um dinheirão, estava
quase pronta, só faltava botar porta e a
cerâmica. Aí levou tudo! Já tinha gastado 15.000,00. (Entrevistado 27 – Bairro
Campo Grande)
547
Maria Auxiliadora Ramos Vargas
A perda da moradia, ou do sentido de
de oferta de imóveis para aluguel, pela alta dos
proteção da “concha”, torna-se, pois, um for-
preços dos existentes ou, ainda, pela resistên-
te componente do sofrimento experimentado
cia do município em firmar esse contrato com
no contexto de desastres, passando a repre-
parcelas dos grupos afetados, conforme denun-
sentar a maior expressão da luta dos grupos
ciado pela Associação das Vítimas das Chuvas
sociais afetados na reconstituição das refe-
do Dia 12 de Janeiro de 2011 em Teresópolis
rências perdidas.
– Avit); e, ainda, o total descompasso entre as
A perda da casa – por danificação, destruição ou interdição desse espaço pelas
autoridades públicas – é a perda de uma
possibilidade de recolhimento do eu no
espaço de sua intimidade, isto é, naquele
que lhe permite o repouso, o devaneio, o
ato amoroso, o exercício experimental dos
papéis na vida pública – enfim, o que Levinas denomina como a interioridade do
ser; e o que Bachelard já havia refletido
ao destacar que a casa e o corpo se confundem e qualquer desventura que abale
os alicerces da casa abala o sujeito que
nela vive, ali delineia sua identidade e em
cujos porões são guardados os seus medos indizíveis. [...] tirar a casa de alguém
é uma expressão de poder, para lembrar
que quem dali é expulso não tem mais
raiz e está solapado no direito de reivindicar refúgio e proteção. A perda da casa
por um ato de força [...] significa também
atacar o mundo interno do morador, colocá-lo a nu e lançá-lo ao exílio, impedi-lo
de defender-se do ataque das tempestades da natureza e das tempestades da
vida. (Valencio, 2014, p. 304)
expectativas dos afetados e as propostas de
reassentamento via programas de moradia planejados unilateralmente pelo Estado.
A defesa do Lugar passará pela luta na
busca pelo seu refazimento: este é fato recorrente nesses cenários e se torna o mote
dos movimentos desencadeados a partir dos
desastres, de maneira geral. Os moradores
contestam as experiências de demolição das
edificações atingidas no desastre e/ou daquelas condenadas pela avaliação técnica de risco
por diferentes razões, principalmente: por não
verem, em grande parte dos casos, a necessidade, em se tratando daquelas edificações que
permaneceram intactas e que têm “indicação
preventiva de demolição” – e, daí, é revisto
todo o sacrifício que a conquista da moradia
representa historicamente para esse segmento
social; e porque as demolições agregam mais
componentes ao aspecto de destruição e desertificação do Lugar, tudo isso se somando à ausência de ações de recomposição local por parte do Estado, traço marcante do caso da Região
Três grandes enfrentamentos parecem
Serrana do Rio de Janeiro – o que só reforça o
nascer daí: a passagem pelos abrigos públicos
aspecto de disruptura social característico dos
temporários (na condição denominada “de-
desastres – num plano mais imediato, materia-
sabrigados”) ou o alojamento na residência
lizado pelo meio físico. O Lugar é tratado como
de conhecidos ou familiares (na condição de
impossibilidade.
“desalojados”); a inserção nos programas de
No referido contexto, a expressão “lá fo-
aluguel social, estes geradores de profundas
ra” foi sempre utilizada nas narrativas para o
inseguranças e desconfianças na relação com o
tratamento de qualquer outro ponto da cidade
Estado (agravado, naquele município, pela falta
que não fosse o seu próprio Lugar, criando certa
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Moradia e pertencimento
distinção acerca do espaço “conquistado” e
“seguro”, no sentido de lhe ser pertencente,
acima de tudo, pela identidade e pela proximidade com seus hábitos, relações, afinidades e,
mesmo, com as táticas que envolvem sua sobrevivência. O aspecto outsider9 presente na
perspectiva tanto da “área carente” como da
“área de risco” – agregado a tais territórios
a partir da retórica oficial – é ressignificado
quando a vida e o cotidiano se revelam atrelados a aspectos que lhes asseguram o sentido de pertencimento. Não se quer aqui afirmar
o sentido de Lugar isento de restrições, uma
vez que não é traduzido nas narrativas como
“idealização romantizada” e inclui o reconhecimento das limitações que lhe são impostas (e
os próprios aspectos classistas inerentes a essa
condição). Contudo, cabe enfatizar: os sentimentos de pertencimento e segurança permanecem diretamente associados a esse “Lugar
identitário”, ainda que, em muitos aspectos,
explicitamente restrito e segregado.
É um bairro de pessoas pobres, muitos
aqui não estudou. Então, eram pessoas
que realmente viviam aqui dentro do bairro: a gente tinha um mercado; bem ou
mal, vinha um pediatra, vinha um ônibus
de dentista, então, assim, muita coisa a
gente tinha aqui dentro do bairro. O que
você realmente tinha que fazer lá fora,
você ia fazer. Só porque aconteceu aqui [o
desastre], não quer dizer que seja só aqui.
Isso acontece em vários lugares. Então,
um dos objetivos de voltar pra Campo
Grande, além de amar realmente muito
esse bairro, não só eu, mas os meus filhos
também, o meu maior princípio, eu conversei muito com Deus e falei: “Deus, se
for da Tua vontade que a minha casa seja liberada, se for da Tua vontade que eu
venha pra ajudar o povo, porque eu não
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perdi nada, mas eu quero ajudar quem
perdeu. As únicas coisas que eu perdi foram os meus vizinhos, os meus amigos, isso sim, porque se eles tivessem aí, já tava
bom. O pobre já tá acostumado a sofrer, a
lutar, isso a gente reconstrói com o passar
do tempo. A gente sente a falta de todo
mundo. Porque sexta, sábado e domingo
as crianças tavam na pracinha brincando, soltando pipa, né? Todo mundo era
conhecido. Aqui é tranquilo. As pessoas
lutam, mas, se o Governo não ajudar a
gente, o que é que adianta? Se tirar daqui vai colocar onde? Vai enfiar onde? As
pessoas que receberam dinheiro aqui não
tão conseguindo nem comprar uma casa.
Você vai comprar num bairro que não é
como aqui, que tem tiroteio direto, tem
drogas. Aqui era um bairro mais família,
mais roça, mais tranquilo. Mesmo antes
da tragédia, o silêncio que você tá vendo aqui, era assim. O agitamento maior
era depois das cinco porque as crianças
começavam a sair do colégio e nos finais
de semana, porque aí as crianças saíam
correndo. Aqui sempre tem a época de
pipa, de pião, de gude, então, as crianças
corriam pra lá e pra cá. [...]. É um bairro
que tem reconstrução, se não dá onde tinha as casas, tem outros lugares que dá
pra fazer. Qual é a do Governo? Não tá se
importando de te tirar daqui, se você vai
ter casa pra morar, onde você vai enfiar
seus filhos. Tem gente aqui que tá sem
o aluguel social, e tá lá fora pagando do
bolso, passando uma dificuldade danada,
né? Então, fica complicado. (Entrevistado
21 – Bairro Campo Grande)
“Lá fora” compõe, então, o discurso de
reafirmação do Lugar em contraponto a outras
e diferentes ameaças: ao que está distante e
desassociado e, até mesmo, ao estranhamento
que as tramas da cidade podem gerar às suas
práticas sociais específicas. A precariedade
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Maria Auxiliadora Ramos Vargas
objetivada é amenizada pelo sentimento de
pertença e o contrário também se revela: a
precariedade ganha, de fato, maior relevância
quando se pensa a experiência “fora do seu Lugar identitário”.10
Quando a gente morou “lá fora”, eu não
me adaptei de jeito nenhum! Tem gente
que não quer voltar [para o bairro de origem], mas eu, depois que voltei, eu durmo melhor. A gente vive mais tranquilo.
Aqui tem muitas pessoas conhecidas [...],
eu me sinto bem, em paz, tranquila. Fora
daqui é difícil! (Entrevistado 20 – Bairro
Campo Grande)
O sentido de Lugar se traduz, pois, de diferentes formas. Como tais territórios possuem
fortes características interioranas e suburbanas, é registrada a ênfase na tranquilidade que
Eu te digo na honestidade, eu quase não
saio do bairro. Às vezes eu chego lá na
cidade e penso: “fizeram essa obra, e fizeram isso aqui” e as pessoas falam “R.,
mas tu mora em Teresópolis”. Aí eu: “é,
eu moro lá em Teresópolis, mas eu adoro
ficar lá no meu bairro, e minha vida é lá,
eu gosto de estar com os amigos, gosto
da tranquilidade, eu não me vejo no meio
de muita agitação, eu gosto da paz de
saber que eu vou sentar num lugar pra
conversar, vou rir, não tenho que me preocupar com nada, porque infelizmente, o
mundo de hoje te obriga a trabalhar. Te
obriga a viver aquela vida estressante e,
de repente, você sabe que você tem o seu
bairro e é tranquilo e calmo, tu sabe que
você vai ficar ali na tranquilidade. Eu pelo menos gosto. Nada muito cheio, muito
movimentado. (Entrevistado 21 – Bairro
Campo Grande)
o cotidiano permite (silêncio, liberdade, simplicidade, informalidade no trato) e na pessoalidade das relações. Isso se opõe às características tidas como próprias do ambiente urbano,
ou seja, o “tumulto da cidade”, os desafios
colocados por uma dinâmica não absorvida, a
invisibilidade das pessoas. “Aqui é bom, é tran-
quilo, sossegado. Não tem violência e a gente
se sente à vontade.” (Entrevistado 5 – Bairro
Caleme). O “interior” – outra expressão localmente usada para se referir à zona rural, mas
que também converge claramente para os fragmentos territoriais urbanos que não estão na
área central do município – é traduzido pelo
que proporciona em termos das redes de sociabilidade que facilitam a sobrevivência e suprem, até certo ponto, a ausência ou precariedade do trabalho/renda e das políticas voltadas
à reprodução social, de maneira geral.
550
Eu gosto muito dali [local onde morava].
Meu caso é ficar ali. Se caso não tiver outra solução, tenho que aceitar para onde
me mandarem ir. Mas o meu marido não,
ele chega a passar mal quando fala que
ele tem que sair dali. Passa mal mesmo,
ele desce fica lá pensativo no que fazer.
Nos primeiros dias depois da tragédia eu
fiquei no hospital com o menino dois dias
[...]. Quando eu vim os vizinhos me contou que ele ficava sentado chorando. Já
tem 33 anos que ele mora aqui. Construímos do começo até o fim. (Entrevistado
3 – Bairro Caleme)
Movimento, muito bom! Aqui tinha movimento, festa... Esse meu cunhado que
morreu, ele tinha uma birosquinha. Ele
fazia forró, festa junina. Era normal. Vinham uns caras de fora cantar! Agora...
Quem tem televisão fica dentro de casa
vendo TV, quem não tem, vai dormir. De
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Moradia e pertencimento
vez em quando ainda tem uma festinha
na casa de amigo, um churrasquinho...
Mas mudou muito, muito, muito! Encontrei esses dias uma amiga minha. Quando
ela me viu, ela me deu aquele abração:
“pensei que você tivesse morrido!”. Porque falaram que Santa Rita acabou, que
todo mundo morreu. Morreu muita gente,
mas não foi todo mundo. É difícil! Porque
é interior, a gente é unida, se gosta, todo
mundo se comunica um com o outro. Todo mundo se dá, graças a Deus! Às vezes
tem até uma maldade, mas é gente de
fora quando vem. Pessoal daqui, que foi
criado aqui, todo mundo se dá bem. Vamos supor: se alguém tá com um carro,
uma moto quebrada no caminho, para pra
ajudar. Se alguém passa mal e não tiver
carro, pode ir no vizinho que ele leva, entendeu? (Entrevistado 31 – Bairro Santa
Rita)
É possível reconhecer nessa interpretação, ou na crítica dos afetados, um descolamento entre a ideia técnica de risco fortemente propagada e a defesa de reconstituição do
Lugar. Toda a discussão acerca da moradia é
perpassada pela constatação da existência daquilo que consideram equívocos ou morosidade/ineficiência na atuação do Estado, levando
a manifestações de total desconfiança com re-
só juntaram o lixo mais ou menos e tá
assim horrível. Porque, às vezes, as pessoas chegam e não sabe se foi pela chuva, porque muitos que vêm aí perguntam
se foi a chuva. Aí, eu falo: não, foram
as máquinas! (Entrevistado 20 – Bairro
Campo Grande)
A Defesa Civil interditou algumas casas.
Depois, voltou ao local e liberou a casa.
O dono da casa não quer mais a casa, pediu pra marcar e destruir. E por que não
distribuir essas casas pra quem perdeu as
suas? Derrubaram casas boas, que estavam liberadas e têm pessoas esperando
casas pra morar. Eu moro no Loteamento
do Feu, minha casa não aconteceu nada
e tá lá marcada pra derrubar. Já estiveram lá, já mediram, tô esperando me
chamar. Se me der um dinheirinho de
acordo, eu vendo a casa, se não der, não
tem condições. Lá perto de casa têm casas que foram liberadas, o dono não quer
mais, falou com a Defesa Civil pra marcar
e derrubar. Ele tá recebendo aluguel e
certamente vai receber um apartamento desses que tão prometendo aí, que é
difícil. Poderiam aproveitar essa casa, inclusive eu tenho vizinhos lá que aceitam
a casa. Se vai derrubar a casa, que não
derrube, mas dê pra outros. (Participante
da Audiência Pública 2)
lação à efetividade das ações prometidas. Subitamente, passam a interagir com frações desse
Estado que, até então, não integravam suas experiências no Lugar, revelando inclusive a dificuldade de assimilar suas identidades e papéis.
[...] Agora é a tal do Inea. Agora é esses,
só que esses demoliram a casa aqui de
baixo e eles limparam. Eles falou que o
negócio deles é demolir limpo; os primeiros, não: você pode ver aqui em cima que as casas que eles demoliram e
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Quero fazer uma pergunta para as autoridades competentes: “quando vai
acabar de ser feita a infraestrutura dos
bairros, do Poço dos Peixes onde a obra
começou e parou, a limpeza de rio, barranco?”. E quero repetir a pergunta que
já foi feita sobre as casas que pediram
pra serem marcadas: se tem como fazer
uma reavaliação e dar as casas pra quem
tá precisando. (Participante da Audiência Pública 2)
551
Maria Auxiliadora Ramos Vargas
São interpretações que se opõem à forma utilitária como o Lugar é tratado pelas
instituições do Estado na sua lógica de “refazimento do cenário destruído pelo desastre”.
A significação que a conquista da moradia tem
mata no rio. E outra: as casas de Vieira, as
pessoas de Vieira não querem sair de lá,
querem continuar plantando, e nós precisamos saber como vai ficar a situação do
3º distrito, dos agricultores do 3º distrito.
(Integrante da Avit – Audiência Pública 2)
e a necessidade de garanti-la se mostra contundente nas estratégias discursivas utilizadas
pelos agentes desse Lugar. O tratamento dado,
pois, pelas instituições do Estado é contestado,
uma vez que sua ação se rebate no cotidiano
de diferentes formas: através do seu esvaziamento, na ainda maior redução da mobilidade
e no isolamento, sentimento de solidão e abandono para os que ficam e de desvinculação para os que são obrigados a sair definitivamente
através das remoções compulsórias. São serviços públicos essenciais e práticas de trabalho
interrompidos e não reativados com base em
argumentos não assimilados por quem se vê
em situação de abandono e negligência pelo
ente público. As ações públicas direcionadas
O meu assunto é a creche Carinha de
Anjo. Essa creche foi dada por uma ONG
e, de 2 em 2 anos, troca o responsável.
Agora eu estou lá. E o que aconteceu?
Em janeiro aconteceu a tragédia também
em Granjas Florestal e não sei porque a
Defesa Civil, Emop, prefeitura não se interessaram em abrir a creche. São 44 crianças, a maioria vai lá mais pra se alimentar,
vocês sabem que são crianças pobres. A
Emop diz que tem uma casa caindo lá no
alto do morro. Nós já estamos há 10 meses com essa casa caindo. Eu gostaria que
alguém pudesse responder. Sr. deputado,
eu gostaria que o Sr. me desse uma resposta. Criança sem estudo, como é que
vai ficar? Aí, não tem resposta, claro, né?
(Participante da Audiência Pública 2)
aos segmentos afetados revelam a sua perspectiva classista, ou seja, a que setores da cidade e frações sociais a atenção e proteção são
efetivamente dispensadas – uma recorrência
no caso brasileiro.
Eu reclamo hoje das estradas, né? Porque agora, com qualquer chuva, enche.
Domingo agora encheu! Eu fiquei apavorada! Muita gente que veio pra igreja
não pode voltar! Os que vieram visitar a
família não puderam ir embora. Tem um
monte de máquinas, mas tão paradas.
Ponte que não tem. [...] já tem um ano e
eles não fizeram nada! (Entrevistado 31 –
Bairro Santa Rita)
As perguntas são rápidas: “quando vamos
ter o projeto do Rio Vieira?” Nós precisamos dessa informação pra que nós possamos plantar em volta do rio, recriar nossa
552
É muito bonito ouvir o discurso das nossas autoridades, porque eles chegam e
fazem uma síntese da nossa dificuldade,
mas a gente tem olho. Olha só, falaram
em 10 pontes, nós temos 54 pontes no
nosso município. O trabalhador, o agricultor, pra ele transportar uma caixa de
tomate ele tem que andar debaixo do rio,
entrar dentro do rio pra encontrar uma
estrada ali. Voltam novos discursos: não
queremos discurso, queremos objetividade, uma resposta. (Sindicato da Indústria
Têxtil – Audiência Pública 1)
Esse conjunto de enunciações destaca, de
maneira direta, os elementos que constituem a
experiência de abandono vivenciada: máquinas
paradas, baixa mobilidade e o reconhecimento
do tratamento que é dispensado aos afetados.
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Moradia e pertencimento
Nas palavras de Zhouri (2010, p. 453), configu-
ressignificado (Vargas, 2006) – isto é, são atri-
ra-se uma resistência legitimada pelo discurso
buídos novos sentidos ao ambiente periférico
dos moradores através do testemunho pautado
deteriorado a partir de muitos fatores. Territó-
na observação e na vivência, em contraponto
rios estrutural e ambientalmente degradados
ao posicionamento das autoridades e de suas
passam a ter a conotação de “espaços desejá-
retóricas denunciadas como “a síntese da nos-
veis” a partir da ausência de alternativas, e de-
sa (sua) dificuldade”. “[...] a gente tem olho!”.
“Não queremos discursos, queremos objetividade, uma resposta!”.
corre daí a valorização de um patrimônio construído que se confronta e “supera” a noção
técnica de risco, revelando-se como uma opção
legítima (ou uma “oportunidade”) diante da
total falta de opção. Os vínculos de sociabili-
Considerações finais
dade sobrepõem-se a partir de relações primárias, familiares ou comunitárias, que são traços
A moradia se revela elemento de fundamen-
culturais relevantes em tais grupos e, também,
tal importância para a reprodução social. Na
a partir da possibilidade de se contar com re-
experiência de muitos, esse bem só poderá
cursos adicionais para sua reprodução social,
ser acessado via autoconstrução e a partir de
em contextos de ausência de políticas sociais
processos que envolverão a irregularidade na
efetivas de apoio à sua reprodução social.
forma da apropriação da terra. Essa é uma rea-
O Lugar representa, também, a expressão
lidade fortemente presente nas cidades da pe-
de uma luta pela permanência ante ameaça de
riferia do capitalismo, desencadeando cenários
desterritorialização pelo Estado. Entre outros
e simbologias que nos desafiam a compreen-
fatores, isso se associa à necessidade da segu-
são. Uma das características que esse contex-
rança da posse, da propriedade, ainda que ela
to permite identificar é que buscamos realçar
se origine da “invasão dos locais disponíveis
neste artigo, qual seja, a relação de certos
para os pobres”, na expressão dos afetados
grupos com o espaço, revelando enraizamen-
(ibid.). A isso também se associam a insistência
to e pertencimento, identidade, ainda que seja
pelo retorno e reconstrução em locais tecnica-
tecnicamente condenado ou pejorativamente
mente condenados e a busca por alternativas
traduzido pelas suas possíveis limitações e ca-
individualizadas de minimização dos danos
racterísticas de precariedade.
através de pequenas obras de reparo e recupe-
É relevante dizer que, antes de um terri-
ração da edificação, dos equipamentos, viabili-
tório ser a “área de risco”, tecnicamente classi-
zando, ainda que precariamente, a permanên-
ficada, ele representa o Lugar de viver e morar
cia. Na verdade, a ausência sistemática de uma
de certos sujeitos sociais, ou seja, representa
rede de proteção social gera formas próprias de
a relação desse sujeito coletivo com o espaço.
entendimento do mundo e práticas próprias de
Isso nos remete a trajetórias de vida e a pro-
convivência com as ameaças.
cessos de vulnerabilização (Acselrad, 2006).
Quando do desencadeamento do desas-
Não se trata de dizer que o suposto “risco”
tre, esses Lugares se projetam como objeto de
que leva à condenação seja negado, mas, sim,
contestação, o que só reforça a sua já condição
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553
Maria Auxiliadora Ramos Vargas
de segregação e estigmatização: aquilo que
oposição ao que se constata na atuação do
Valencio e outros (2008) tratam como trans-
Estado em face do desastre, a força desses
posição da “área carente” para a “área de
significados traduz uma densidade por par-
risco”. É acionado o reconhecimento das fron-
te dos afetados (como bem explicitado em
teiras opositivas em relação a grupos sociais
suas narrativas anteriormente registradas),
específicos e seus projetos de inserção no Lu-
que se contrapõe à ambivalência originada
gar, na cidade, que são projetos antagônicos à
do comportamento da autoridade, porque é
noção da ordem social vigente. A enunciação
referendada pelo testemunho e pela vivên-
originada no discurso oficial enseja a tentativa
cia no Lugar. Tal autoridade é incisiva sobre
de anulação do Lugar calcada no discurso do
a realidade, afirma-se antes os recursos e
risco. Porém, as estratégias discursivas, e não
sobre o meio com a finalidade de ordená-
só elas, são mobilizadas também pelos grupos
-lo, enquadrá-lo e se impor sem, no entanto,
localizados e organizados em função da resis-
necessariamente entendê-lo. É ambivalente,
tência – que se revela nesta pesquisa também
pois, porque age sem a densidade que é cor-
como “resistência cotidiana” (Scott, 2002).
respondente aos Lugares que sofrem a inter-
Em Teresópolis/RJ, a experiência da Avit, em
venção, caindo em esvaziamento, violência,
associação com outros movimentos regionais
inadequação – desautorizando-se e deslegi-
e nacionais, traduz-se como um esforço pela
timando diante do contexto e do seu próprio
afirmação de direitos, num contraponto sen-
papel. O Lugar na discussão do desastre – em
sível às formas de gestão do desastre naquela
analogia a Zhouri (ibid.) quando de suas ar-
região. Como afirma Zhouri (2010), a forma-
gumentações no debate ambiental – deixa de
ção de mobilizações locais e a reconstrução
ser categoria residual, ganhando novos con-
do território (ou “a luta por”, num esforço
tornos, tonalidades, potencialidades, repre-
de revisão da agenda pública) colocam em
sentando a inserção da diversidade e a hete-
pauta o esforço desses grupos em articular
rogeneidade dos sujeitos, de suas formas de
seu problema como um fato coletivo de on-
viver e morar, ante a imposição de verdades
de emergem novas identidades políticas. Em
que querem se fazer únicas.
Maria Auxiliadora Ramos Vargas
Universidade Salgado de Oliveira, Curso de Serviço Social. Juiz de Fora, MG/Brasil.
[email protected]
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Moradia e pertencimento
Notas
(1) A categoria “Lugar” aparecerá no corpo do ar go com a inicial maiúscula, como um destaque que
obje va enfa zar e resguardar sua associação com a ideia de iden dade e pertencimento.
(2) Este ar go resgata reflexões que integram a tese de doutorado "Da chuva a pica” à “falta de todo
mundo”: a luta pela classificação de um desastre no município de Teresópolis/RJ”, disponível
em www.bdtd.ufscar.br/htdocs/tedeSimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=7786.
A pesquisa foi desenvolvida no município de Teresópolis/RJ, no segundo semestre de 2011 e no
mês de janeiro de 2012, envolvendo ins tuições diversas, a observação de 2 grandes audiências
públicas e entrevista com moradores de 3 dos bairros Caleme, Campo Grande e Santa Rita,
cujas narrativas, pelo teor do artigo, tiveram prioridade. Todos estavam envolvidos direta ou
indiretamente no desastre desencadeado em janeiro de 2011 na Região Serrana do Rio de Janeiro.
(3) Reafirma-se a importância de serem consideradas as vulnerabilidades estruturais somadas
àquelas que as mudanças climá cas possivelmente farão emergir e a necessária observação de
outras variáveis implicadas no referido contexto.
(4) Reflexões sobre os a ngidos por barragens no Vale do Jequi nhonha/MG.
(5) Vale ressaltar que os diferentes entrevistados mencionam que os territórios, nessa pesquisa
considerados, não recebiam a classificação de “áreas de risco” até a ocorrência deflagrada
em janeiro de 2011. Esse dado está respaldado pelo Mapeamento de Risco do município e
incrementa o debate no que diz respeito à confiabilidade desses diagnós cos para a população
e mesmo para alguns técnicos.
(6) Optou-se por manter, nos depoimentos deste ar go, as caracterís cas da linguagem oral.
(7) Rosa (2006, p. 8) apresenta dados de pesquisa desenvolvida num assentamento precário de
Teresópolis, enfa zando que a secundarização de fatores de ameaça se revela recorrente: “É
interessante destacar dados de pesquisa realizada na Coreia, um dos assentamentos informais de
Teresópolis, que ocupa parte da área do Parque Estadual do Três Picos, unidade de conservação
cujos mananciais abastecem as Regiões Serrana e do Grande Rio. Quando os moradores foram
perguntados sobre os principais problemas que enfrentam, na ordem de prioridade, o primeiro
lugar ficou com a pavimentação. Somente em úl mo lugar aparece a preocupação com os riscos
sicos que os ocupantes sofrem devido à construção de suas casas em encostas íngremes e,
muitas vezes, acima ou abaixo no nível das vias e servidões [...]”.
(8) Foi recorrente a confirmação da informalidade como traço marcante, o acolhimento à pesquisa
(em alguns casos sem agendamento prévio), o agrupamento espontâneo de pessoas num
ímpeto de colaboração na produção das narra vas, sendo em suas próprias moradias ou em
locais públicos, como a rua. O espaço público, o cole vo e o âmbito privado se mesclaram como
possibilidade de abertura quase incondicional ao diálogo e ao relato tão “necessário” das versões
diversas acerca do ocorrido, possibilitando a expressão da dor, do sofrimento, da solidariedade,
assim como das diferentes interpretações da chamada “tragédia da Região Serrana”. Cabe
destacar que a demanda pela escuta foi algo marcante, ainda que passados 6 meses entre o
nominado “impacto” e o início da pesquisa. Por essa razão, ou seja, pautadas na iden ficação
de um grau de sofrimento e abandono explícitos, as narra vas deram-se com bastante fluidez,
confirmando uma boa convergência entre as demandas dos grupos de moradores e a proposta
da entrevista em profundidade, inclusive para a apreensão de elementos da subje vidade de
tais grupos.
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Maria Auxiliadora Ramos Vargas
(9) Referenciado na obra de Elias e Scotson (2000), que usam o termo para se reportarem àqueles
es gma zados por um grupo estabelecido, como pessoas de menor valor humano, carentes
da virtude humana superior – o carisma grupal dis n vo – que o grupo dominante atribui a si
mesmo. “Os grupos mais poderosos [...] veem-se como pessoas ‘melhores’, dotadas de uma
espécie de carisma grupal, de uma virtude específica que é compar lhada por todos os seus
membros e que falta aos outros. Mais ainda [...], os indivíduos ‘superiores’ podem fazer com
que os próprios indivíduos inferiores se sintam, eles mesmos, carentes de virtudes – julgando-se
humanamente inferiores” (p. 20).
(10) Foi recorrente ouvir relatos informais de indivíduos residentes nos locais da pesquisa que nunca
saíram de seus bairros para a região central da cidade.
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Texto recebido em 30/set/2015
Texto aprovado em 31/mar/2016
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 535-557, jul 2016
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Políticas públicas en el desarrollo
de grandes proyectos de reconversión
urbana. Caso Puerto Norte
en Rosario, Argentina
Public policies in the development of large urban restructuring
projects. The Case of Puerto Norte in Rosario, Argentina
Cecilia Inés Galimberti
Resumen
El presente artículo se propone reflexionar
críticamente sobre el desarrollo de grandes
proyectos de reconversión urbana, focalizando
en el rol de las políticas públicas y los efectos y
conflictos en torno a los mismos. Para lo cual,
se toma como caso de estudio el Plan Especial de
Puerto Norte en Rosario, Argentina. A través de
su análisis crítico-interpretativo, se focaliza en los
impactos producidos en relación a: la actualización
normativa; la segregación socio-espacial; la
recuperación de espacios públicos y la valoración
patrimonial/identitaria. Las reflexiones resultantes
de este caso contribuyen al conocimiento y al
debate sobre la experiencia de Grandes Proyectos
Urbanos en América Latina, especialmente en torno
a la importancia del abordaje multi-actoral y multisectorial que requieren sus problemáticas complejas.
Palabras clave: políticas públicas; grandes
proyectos urbanos; segregación; espacio público;
patrimonio.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3612
Abstract
This article intends to critically reflect on the
development of large urban restruc turing
p r oje c t s , f o c u sin g o n t h e r o l e of p u b lic
policies and the effects and conflicts related
to them. Our case study is the Special Plan of
Puerto Norte in Rosario-Argentina. Through a
critical-interpretative analysis, we focus on the
impacts relating to: regulatory update; sociospatial segregation; recovery of public spaces
and the valuation of heritage /identit y. The
reflections resulting from this case contribute
to knowledge of and debate on the experience
of L arge Urban Projec t s in L atin America,
especially concerning the importance of the
multi-sectoral and multi-actor approach that
their complex problems require.
Ke y w o r d s : p u b li c p o l i c i e s ; l a r g e u r b a n
projects; segregation; public space; heritage.
Cecilia Inés Galimberti
Introducción
políticas estatales tienden a facilitar estos
Los cambios producidos por las nuevas
sean sociales, económicos y/o territoriales.
desarrollos que producen efectos diversos, ya
dinámicas del mercado, el capital, las
El presente artículo plantea analizar
reestructuraciones económicas y la
críticamente las políticas públicas en torno
globalización ocasionan efectos socio-políticos-
a los grandes proyectos de reconversión
territoriales particulares en cada ámbito
urbana; tomando como caso de estudio
territorial. Especialmente en América Latina
el sector de Puerto Norte en la ciudad de
se registra un desfasaje entre las plusvalías
Rosario, Argentina. El mismo abarca un área
obtenidas producto de las reconversiones
de más de 100 hectáreas que comprende
urbanas y su redistribución homogénea a la
instalaciones industriales, ferroviarias y
sociedad. En las últimas décadas, tienden a
portuarias localizadas estratégicamente
profundizarse los espacios de desigualdad y las
sobre el río Paraná a inmediaciones del centro
fragmentaciones socio-territoriales. Es decir,
urbano de Rosario. Si bien desde mediados del
como explica Haesbaert (2011), se produce
siglo XX, y reiteradamente con el transcurrir
el agravamiento de la exclusión mediante la
de los años, se plantea la liberación de estas
concentración del capital y renta, junto con la
infraestructuras con el fin de reinsertar este
carencia de políticas públicas de redistribución
espacio a las dinámicas urbanas en nuevos
efectivas. Las inversiones se vuelcan más
usos para toda la sociedad, como la creación
a la especulación financiera que al sector
de parques públicos; recién comienza su
productivo de generación de empleos y al
reestructuración en la primera década del
aumento de la calidad de vida de todos los
siglo X XI. Sin embargo, contrariamente
ciudadanos.
al impulso inicial, se proyectan en estos
En este contexto, resulta un caso
espacios, nuevos condominios residenciales
emblemático de estudio las actuaciones
privados, edificios de oficinas y servicios
de re-funcionalización territorial en áreas
comerciales destinados principalmente a
ce nt rale s d e las ciu d ad e s , co m o p o r
sectores de alto poder adquisitivo.
ejemplo la realización de nuevos complejos
En este sentido, el desarrollo de esta
residenciales destinados a sectores de alto
investigación comienza con la presentación
poder adquisitivo en áreas correspondientes a
de un breve estado de situación en el que se
grandes componentes productivos obsoletos.
desarrollan los proyectos de renovación urbana
Desde fines del siglo XX, numerosas ciudades
en las últimas décadas, especialmente en
en todo el mundo llevan a cabo procesos de
relación al rol del mercado, las políticas públicas
recuperación de superficies subutilizadas
y los actores intervinientes. Seguidamente,
localizadas en áreas urbanas estratégicas,
se presenta el caso de estudio propuesto, a
como resultan las instalaciones portuarias y
través de una síntesis de su proceso histórico
ferroviarias en desuso. Estos nuevos proyectos
de transformación, como también de las
se caracterizan por un rol predominante
diversas políticas propuestas para el mismo a
del mercado inmobiliario, mientras que las
través de los años. Posteriormente, se focaliza
560
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016
Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana
en el análisis crítico-interpretativo de los
Estos proyectos de renovación posibilitan
efectos e impactos resultantes de este Gran
rediseñar fragmentos del tejido y repensar el
Proyecto Urbano (GPU), a través del estudio
rol y la organización de toda el área que rodea
particularizado de: la actualización normativa;
al propio sector de transformación. Si bien por
los procesos derivados de segregación
un lado, se permite imaginar la recuperación
socio-espacial; la recuperación de espacios
del acceso público a estos lugares a través del
públicos y las políticas de preservación de
desarrollo de nuevos espacios abiertos para
los componentes productivos identitarios.
la comunidad. Por otro lado, también resulta
Finalmente, se realiza una reflexión conclusiva
un estímulo expectante para la especulación
en relación a lo expuesto, con el fin de
del mercado inmobiliario. Siguiendo a Carlos
contribuir al conocimiento y al debate sobre el
De Mattos (2008); existe un gran aumento de
desarrollo de grandes proyectos de renovación
la relevancia cualitativa y cuantitativa de la
urbana, especialmente en el contexto de
inversión inmobiliaria privada en las nuevas
América Latina.
dinámicas de las ciudades, lo que conduce a
la imposición de lógicas de índole capitalista
en el desarrollo urbano contemporáneo que
El rol del mercado
en la definición de
políticas públicas
en torno a los proyectos
de renovación urbana
generan cambios en las políticas públicas y en
las morfologías urbano-territoriales.
Se registra así, una gran diversidad
de conflictos de intereses en la realización
de estos grandes proyectos, ya que existen
diversas miradas contrapuestas y generalmente
contradictorias entre sí. Administradores
Desde las últimas décadas del siglo XX, se
públicos, políticos, ciudadanos, empresarios,
producen nuevas reorganizaciones territoriales
entidades económicas, entre otros, se convierten
vinculadas a las nuevas lógicas del capitalismo
en nuevos actores clave con distintos objetivos
y la globalización. Diversas ciudades en todo el
para el destino de estas áreas.
mundo se enfrentan en este período al desafío
Estos espacios tienden a ser
de la reconversión de instalaciones productivas
refuncionalizados con nuevos usos, ya que
degradadas y en desuso, mayormente
en gran medida estas áreas -anteriormente
localizadas en áreas urbanas centrales.
productivas- son reconvertidas en nuevos
Resultan ejemplo de esto, las instalaciones
ámbitos residenciales para sectores de alto
portuarias, ferroviarias e industriales obsoletas
poder adquisitivo, oficinas para empresas
ubicadas en sectores estratégicos. Por lo
internacionales, hoteles de alto standard, entre
cual, a nivel global se afrontan diversos
otros. Por ejemplo, en los últimos cuarenta años,
proyectos de renovación y reutilización de
a nivel mundial se desarrollan diversos casos
estas infraestructuras, frente al gran potencial
emblemáticos que se constituyen en referentes
que poseen las mismas para la realización de
para otras reconversiones posteriores como
nuevos programas.
resultan: los Docklands en Inglaterra, el Kop
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561
Cecilia Inés Galimberti
Van Zuid , en Rotterdam; el Baltimore Inner
Harbour en Estados Unidos, el Battery Park en
Nueva York, entre otros, – dentro del contexto
europeo y norteamericano.
En A méric a L atina , t am bién son
numerosas las ciudades que afrontan la
reconversión urbana de diversos sectores
e st raté gico s , como ejem plo p o d emo s
mencionar los casos de: Puerto Madero en
Buenos Aires, Argentina; Rivera Norte en
Concepción, Chile; Santa Fe en Ciudad de
México; México; el Transmilenio en Bogotá,
Colombia; Operación Urbana Faria Lima en
San Pablo y Juegos Panamericanos Río 2007
en Río de Janeiro, Brasil.
En los ámbitos latinoamericanos estos
grandes proyectos de renovación urbana, se
desarrollan en un ámbito particular, que si
bien genera oportunidades de integración
internacional, también denotan desigualdades
y procesos de exclusión económica y cultural.
Siguiendo a García Canclini (2008,
p. 21) , esto sucede en un contex to de
“vaciamiento simbólico y material de los
proyectos nacionales” dado el debilitamiento
progresivo del Estado, especialmente desde
finales de los ochenta junto a la adhesión de
políticas neoliberales. Frente a las presiones
del mercado global, los gobiernos nacionales
tienden a resultar meros administradores de
decisiones ajenas y a “atrofiar su imaginación
socioeconómica y a olvidar las políticas
planificadoras de largo plazo”. Es decir,
existe una ruptura en la relación Estadosociedad, la cual se reestructura en relación
a las nuevas demandas. Según sostiene
García Delgado:
562
[...] la relación Estado-sociedad se
modifica y el Estado se reestructura en
función de nuevos factores internos
y externos, adoptando un paradigma
ideológico o neoliberal, privilegiando la
economía del mercado y los intereses de
los sectores dominantes de una manera
mucho más contundente que en el modelo
anterior, relativamente redestribucionista.
(García Delgado, 1994; apud Ciccolella,
2011, p. 16)
En este sentido, Cicolella (2011, p. 18)
plantea que “el capital se transterritorializa,
pero los beneficios de la reestructuración no
se transocializan”. Por lo cual, desde finales
del siglo XX, los procesos de reestructuración
económica global han influido a la
transformación de la relación entre economía,
sociedad y espacio. Se generan por un lado,
nuevas estructuras territoriales de producción,
circulación y consumo, mientras que por el
otro lado, se producen nuevas formas de
fragmentación socio-territorial.
Esta nueva dimensión aborda entonces
profundos procesos de exclusión social,
ampliando la brecha entre las funciones más
valorizadas y las más degradadas, coexistente
en el mismo ámbito territorial. Las mismas
se desarrollan simultáneamente, a veces sin
articularse, sin verse. Por un lado, grupos
sociales detentadores de riqueza, considerados
ciudadanos de la aldea global, y por el otro,
grupos sociales excluidos, marginados. Estos
efectos característicos de la ciudad dual aún
pueden ser revertidos a través de la creación de
políticas socio-territoriales que amortigüen los
procesos que conducen a esta fragmentación
(Castells e Borja, 2000).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016
Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana
En Argentina, especialmente desde
o a transformar estas áreas en estructuras
fines de la década de 1980, con la adhesión
parecidas a un parque de diversiones. Como
ex trema de políticas neoliberales y la
explica Bruttomesso (1993), al visitar estas
reforma del Estado se tiende a producir
nuevas re-urbanizaciones muchas veces se está
un desdibujamiento de los límites entre lo
ante la presencia de un deja vu, una sensación
privado y lo público, comenzando a afirmar
de ya haber estado allí o de no identificar
un modelo de ciudadanía privada basada en
exactamente en qué parte del mundo uno
la auto-regulación. Estas nuevas modalidades
se encuentra. Ya que, con el fin de obtener
de urbanización y de grandes proyectos de
las mayores plusvalías posibles, tienden a
renovación en áreas centrales de las ciudades,
realizarse operaciones de destrucción del
siguiendo a Maristella Svampa (2001), se
patrimonio existente como de las marcas de
vinculan directamente con el aumento de las
identidad propias del lugar y a desencadenar,
desigualdades sociales y la crisis del Estado
por ejemplo, procesos de gentrificación, es
para garantizar la equidad y la seguridad a
decir, los habitantes del sector son desplazados
todos los ciudadanos. La consolidación de estos
por otros de mayor poder adquisitivo.
procesos está vinculada a la concentración
Los GPU, siguiendo a Carlos Vainer
de la riqueza para algunos actores, mientras
(2012), también resultan intervenciones que
que otros sectores profundizan su nivel de
producen e incrementan rupturas urbanas
empobrecimiento. De este modo, se ocasionan
en diversos temas; por ejemplo, se producen
fuertes desigualdades y contrastes en la
rupturas: institucionales, políticas, urbanísticas,
calidad de vida de la población como también
legales, del valor del suelo, simbólicas,
se intensifica el debilitamiento de los vínculos
escalares, entre otras. Pero las mismas
sociales.
presentan resultados diversos en cada proyecto
Estos proyectos traen consigo numerosas
particular. Por lo cual, si bien estos grandes
oportunidades de transformación para las
proyectos de renovación urbana se han llevado
ciudades donde se encuentran, sin embargo,
a cabo en numerosas ciudades, es importante
para que su resultado sea exitoso, en relación
reflexionar sobre cómo y qué efectos producen
al incremento de la calidad de vida de todos
los mismos en el ámbito local. Para lo cual
sus habitantes, se requiere la escucha atenta
es necesario discernir si estas intervenciones
de todos los sectores de la sociedad y la
responden a modelos y demandas exógenas
articulación e integración de diversas políticas
o si parten de la revalorización de la identidad
e intervenciones estratégicas. La experiencia ha
local y de la escucha atenta de los reclamos de
demostrado, en muchos casos, que las acciones
sus ciudadanos. A respecto de estas cuestiones,
propuestas se enfocan a responder únicamente
vamos a detenernos a continuación en el
a determinados intereses económicos, a
análisis de los impactos y efectos resultantes
repetir modelos genéricos ya realizados en
del caso de Puerto Norte en la ciudad de
otros países, generalmente muy distintos,
Rosario, Argentina.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016
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Cecilia Inés Galimberti
Caso Puerto Norte de Rosario
productividad, este sector requiere la conexión
Proceso de transformación del área
de Puerto Norte: de barrio productivo
a Gran Proyecto Urbano
a estas industrias, se articula un complejo
con el resto del país. Es así que, conjuntamente
sistema ferroviario2 y se instalan los Talleres del
Ferrocarril Central Argentino.3
Sin embargo, con el transcurrir de los
En Rosario, es representativo el caso de Puerto
años, frente al gran crecimiento que tiene
Norte, un sector ubicado estratégicamente en
Rosario, especialmente entre la segunda
el frente costero de la ciudad con una extensión
mitad del siglo XIX y las primeras décadas del
de más de 100 hectáreas. El mismo, desde la
XX, estas instalaciones quedan localizadas
conformación urbana a mediados del siglo XIX,
cercanas al área central de la ciudad,
resulta un ámbito de fuerte carácter productivo,
produciendo diversos conflictos urbanos.
industrial, ferroviario y portuario. Debido a
Por lo cual, parte de la sociedad comienza a
sus características, como la accesibilidad al
reclamar estos espacios ribereños estratégicos
río Paraná y la altura de sus barrancas, se
para uso colectivo. De manera que, el Plan
instalan diversas industrias, por ejemplo la
Regulador de 1952, denominado “Plan
primera refinería de azúcar de Argentina en
Rosario” y aprobado por Ordenanza nº 1.030,
1886. Este perfil productivo se consolida en
propone trasladar las instalaciones del Puerto
los años siguientes, con nuevas instalaciones
Norte hacia el sur de la ciudad. No obstante,
industriales 1 y portuarias, consolidando un
diversas vicisitudes político-institucionales
barrio obrero industrial. Dado su alto nivel de
postergan dicho objetivo.
Figura 1 – Ubicación Puerto Norte en la ciudad de Rosario, Argentina
Fuente: Elaboración propia.
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Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana
Posteriormente, esta decisión es ratificada
Sin embargo, durante el régimen de
por el Plan Regulador Rosario del año 1967.
dictadura militar entre los años 1976-1983, se
Este documento plantea “el desmantelamiento
suceden numerosas y diversas violaciones al
de todas las instalaciones portuarias existentes
Plan Regulador y al Código Urbano de 1968.
en el Área de Puerto Norte, que incluye sectores
Por ejemplo, en el sector de estudio, se otorgan
de propiedad privada también destinadas al
como cesión gratuita terrenos de propiedad
uso portuario, reemplazándolas por nuevas
del Estado Nacional a firmas privadas, como
instalaciones, a construir, en el Puerto Sur”, a
Genaro García S.A., a fin de posibilitar el
fin de recuperar “un amplio frente urbano que
emplazamiento de nuevas instalaciones
posibilite la parquización de espacios libres”
portuarias en este sector. También, durante
(Municipalidad de Rosario, 1967). Asimismo,
este período se concreta la adquisición de la
este plan propone una reestructuración
Unidad 1 del puerto por parte de la Federación
ferroviaria a través de la simplificación de esas
Argentina de Cooperativas Agrarias – F.A.C.A,
infraestructuras. De manera que, el Código
también en discrepancia con las disposiciones
Urbano, instrumento clave del Plan Regulador
normativas mencionadas anteriormente.
de 1968, identifica al área de Scalabrini Ortiz
No obstante, con el retorno democrático
y Puerto Norte, como distrito R5, identificado
definitivo para Argentina, en 1983, se retoman
como sector de reserva urbana.
las disposiciones de liberar este sector de
Figura 2 – Foto aérea antes del comienzo de la renovación urbana
Plan Especial de Puerto Norte: Barrio Refinería, Talleres F.C.C.A,
unidades productivas-portuarias Puerto Norte
Fuente: Elaboración propia en base a archivo Secretaría de Planeamiento MR,
Museo Itinerante Barrio Refinería.
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Cecilia Inés Galimberti
actividades productivas y se apela a recuperar
Ferrocarriles Argentinos en 1996 posibilitan
dichas tierras para nuevos usos. De manera
la ejecución de proyectos de reestructuración
que, luego de décadas de litigio legal, se
ferro-urbanística, a fin de avanzar en la
logra liberar este sector de usos productivos-
desafectación de instalaciones y terrenos
portuarios y se desarrolla, desde la Secretaría
ferroviarios para su utilización en diversos
de Planeamiento de la Municipalidad de
proyectos urbanos.
Rosario, un nuevo modelo de gestión y
Desde el Municipio de Rosario se
concertación público-privado a través de
propone la refuncionalización de este ámbito,
elaboración del Plan Especial de Puerto Norte.
para lo cual se realizan diversas fases de
En el mismo se divide al sector en unidades
transformación. El primer paso de reconversión
de gestión que se proyectan en sucesivos
se realiza bajo el proyecto denominado
Planes de Detalle. El proceso normativo que
“Centro de Renovación Urbana Scalabrini
posibilita la reestructuración de esta zona
Ortiz”, a través del programa de urbanización
urbana estratégica comienza a vislumbrarse
especial aprobada su Fase n. 1 en 1996 y su
en la década de 1990. La Ley Nacional de
Fase n. 2 en el año 2005, por Ordenanza n.
Cesión de Tierras de 1992 y el Convenio
7.892, conocida comúnmente como “Plan
Marco entre la Municipalidad de Rosario y
Especial de Puerto Norte”.
Figura 3 – Primera y segunda fase Plan Especial Puerto Norte
Unidades de Gestión
Fuente: Elaboración propia.
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Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana
La primera fase se aprueba por la
4
dicha normativa, la propuesta es “ofrecer
Ordenanza n° 6.271/96, y en la misma se
un programa alternativo y complementario
especifican diversos equipamientos urbanos,
a los valores existentes en el área central,
servicios y demás ámbitos públicos a crear,
un lugar para los nuevos temas y no para
como los nuevos usos e índices edilicios
el traslado de los existentes (…) constituir
permitidos. La Ordenanza n° 6.895 / 99,
una alternativa de modernización del centro
aprueba el anteproyecto urbanístico de esta
tradicional de la ciudad”. 5
primera etapa. La segunda fase, consiste en
En el año 2004, se realiza un convenio
la reestructuración de Puerto Norte, Patio
entre la Municipalidad de Rosario y el Colegio
Cadenas y Balanza Nueva. En la misma se
de Arquitectos de la Provincia de Santa Fe para
define al nuevo sector de Puerto Norte como
la organización del “Concurso Nacional de
un parque poli-funcional que contemple la
Anteproyectos e ideas para la definición del
construcción de viviendas, parque público
Plan General para la segunda fase del Centro
y edificaciones destinadas a otros usos,
de Renovación Urbana Scalabrini Ortiz”. En el
especialmente recreativos. Según plantea
mismo, obtiene el primer premio el equipo de
Figura 4 – Imágenes del proyecto ganador del Concurso Internacional
de Ideas para Puerto Norte
Fuente: Archivo Secretaría de Planeamiento MR.
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Cecilia Inés Galimberti
trabajo liderado por el Arq. Juan Munuce. La
memoria descriptiva del proyecto propone:
Nos interesa construir un trozo
incompleto de ciudad…un tanto
defectuoso…inconcluso…que se mezcle
con ese tiempo [el tiempo acumulado
y con la vaguedad formal del área] sin
dar demasiadas lecciones acerca de la
ciudad futura. […] Pensamos que esta
arquitectura debería tener un descanso
merecido, por eso solo limpiamos los
medianeros de chapas oxidadas para
construir el vacío necesario. […] El
edificado es concebido como un plegado
que varía su altura produciendo llenos y
vacíos que son patios y terrazas de casitas
sobre un jardín de silos abandonados.
[…] Este proyecto quiere ser un vacío
sobre el vacío existente. Nos interesa
construir el baldío en el baldío. Un trozo
donde la ciudad se suspende alegremente
para inquietar los ojos aturdidos de
tanta ciudad reglada de tanta libertad
vigilada… (Munuce, 2004)
En el año 2005, a través de la Ordenanza
N° 7.892, se aprueba la segunda fase de esta
renovación urbana. Ésta comprende tierras del
Estado nacional administradas por el ONABE
(Organismo Nacional de Administración de
Bienes del Estado) y predios privados sujetos
a reconversión, correspondiente en su mayoría
a empresas cerealeras: FACA S.A., A.F.A,
SAFAC S.A., Agroexport, Servicios Portuarios
Unidad III, Inversiones y Mandatos S.A., Silos
Minetti S.A.
Se definen así, a través de convenios
público-privados nuevos indicadores urbanísticos,
usos del suelo y modalidades de ocupación
admitidos. Éstos se fijan en relación a las
previamente definidas “Unidades de Gestión”.6
El cuerpo normativo completo de Puerto Norte
queda compuesto entonces, por una ordenanza
básica y siete ordenanzas complementarias,
vinculadas a cada unidad de gestión.
El Plan Especial de Puerto Norte se
encuentra en distintas etapas de desarrollo,
El jurado de dicho concurso considera
ya que si bien algunas unidades de gestión se
acertada la revalorización de los edificios
encuentran finalizadas, otras están en proceso
patrimoniales propuestos, como también
de construcción, mientras que hay unidades
la permeabilidad espacial y visual que se
todavía en estudio normativo. Sin embargo, a
logra según el emplazamiento de las nuevas
pesar de que este gran proyecto de renovación
construcciones. No obstante, plantean que
urbana se encuentra en curso, podemos realizar
existen falencias e indefiniciones, por lo cual
diversos análisis críticos en relación a diversos
recomiendan al municipio a profundizar y
impactos normativos, económicos, sociales,
definir técnicamente esta propuesta. Sin
territoriales y materiales. De manera que a
embargo, paradójicamente, la nueva propuesta,
continuación, vamos a focalizar el estudio de
dista ampliamente del proyecto ganador del
las políticas públicas de la renovación urbana
concurso y se establecen incluso directrices
de Puerto Norte a través del análisis crítico de
opuestas a las establecidas en el mismo.
los siguientes temas:
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Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana
Figura 5 – Unidades de Gestión
Fuente: Elaboración propia en base a Secretaría de Planeamiento MR.
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Cecilia Inés Galimberti
Actualización normativa.
Nuevos condominios privados frente
a procesos de segregación social
mayores distorsiones en el siempre
contradictorio funcionamiento del
mercado de tierra urbana al nivel general.
(Lungo, 2005, p. 56)
Los GPU contemporáneos, como explica
En este sentido, la Secretaría de
Vainer (2012), nos presentan nuevas formas
Planeamiento de la Municipalidad de
innovadoras de relación entre capitales
Rosario, desarrolla diversos instrumentos
privados y gobiernos a través de las
particularizados para llevar a cabo proyectos
asociaciones público-privadas. No obstante, las
específicos de renovación urbana. En Puerto
mismas encubren conflictos duales y efectos
Norte, se aplica la figura de Plan Especial,
contradictorios. Ya que, si bien este instrumento
definido como el “instrumento técnico para
posibilita al Estado llevar a cabo grandes
programar la transformación física y funcional
proyectos –“con una eficacia gerencial”–
que se propone para un determinado sector de
que no podrían efectuarse, en los mismos
la ciudad”, que se aplica para la “reconversión
términos, sin la participación privada; por
de grandes áreas urbanas que se encuentran
otro lado, el rol del Estado se desdibuja frente
desafectadas de su uso original o vacantes
a los intereses especulativos del mercado
de uso” (Municipalidad de Rosario, 2011).
inmobiliario, tendiendo a posicionarse como
A través de este instrumento, se establecen
un mero facilitador de los mismos. Por ejemplo,
indicadores diferenciales al resto de la ciudad
se conforma un nuevo espacio normativo “a
para reconvertir esta área desafectada de su
medida” que genera una ruptura con el marco
uso original y definir nuevas directrices para su
normativo general.
reurbanización.
Debido a que la propiedad de la
tierra en este sector corresponde tanto a
actores públicos como privados, se aplican
instrumentos de gestión para la concertación,
especialmente bajo la figura de los Convenios
Urbanísticos. 7 Ésta figura normativa resulta
el medio a través de la cual se establece el
acuerdo entre la Municipalidad de Rosario y los
actores privados para la reconversión de dichos
predios, sectorizados en unidades de gestión.
Este acuerdo se encuentra íntimamente
asociado a la rentabilidad del suelo, al rol de
los promotores inmobiliarios y a la tendencia
de las políticas públicas a ser reguladas bajo
lógicas empresariales. Según explica Cuenya
(2012), se registra un nuevo paradigma
empresarial en el sector público, frente a
De este modo, se crean nuevas reglas
particulares para estos espacios – en relación
a las alturas permitidas, los índices edilicios
y de ocupación del suelo, la autorización de
nuevos usos, entre otros –, que generalmente
carecen de un estudio particularizado respecto
al entorno del sector en cuestión. Es decir, se
denota la carencia de una estrategia de buffer
zone a través de la cual se produzca una
transición armoniosa con la regularización
vigente del resto de la ciudad. Dado que, como
explica Lungo:
[...] en la medida en que los grandes
proyectos urbanos no se articulen a
una estrategia para el conjunto de la
ciudad, se pueden generar consecuencias
negativas de distinta índole, e introducir
570
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016
Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana
las asociaciones entre actuaciones públicas
cual, éste también demanda beneficiarse de las
e inversiones privadas, dado que se tiene
plusvalías resultantes.
como objetivo la atracción de promotores
No obstante, como señala Cuenya
para financiar el desarrollo urbano, generar
(2009), generalmente los mecanismos que
ventajas competitivas y asegurar una imagen
dispone el Estado para la captación de
atractiva de la ciudad a fin de crear nuevas
plusvalías no están adaptados para ese fin. Es
estrategias de marketing urbano. El Estado,
decir, se registra tanto una carencia de criterios
entonces, se encuentra influenciado por
e instrumentos adecuados para dimensionar
las lógicas del sector privado y a través de
en términos económicos los beneficios
diversos instrumentos propone obtener
resultantes, como también de estrategias
parte de los beneficios de rentabilidad que
para efectivizar su distribución y equidad en
sus regulaciones normativas e inversiones
términos socio-territoriales.
contribuyen a generar. En palabras de Cuenya:
Conceptualmente la noción de nueva
política urbana del gobierno local
sintetiza los nuevos ingredientes que
adquieren particularmente las políticas
de regeneración urbana en las últimas
décadas: por un lado, un fuerte apoyo
estatal al capital privado para la
revitalización de la ciudad, en donde
ésta aparece como “negocio”. Por otro
lado, un régimen político urbano en el
cual los intereses públicos y privados se
amalgaman para definir las decisiones de
gobierno. (2012, p. 35)
En este caso particular estudiado, la
Municipalidad de Rosario crea instrumentos de
captación de beneficios del Desarrollo Urbano a
través de la figura denominada “Uso del mayor
aprovechamiento urbanístico”, a través de la
cual los actores beneficiados por las nuevas
normas deben efectuar un aporte económico
a modo de “precio compensatorio”, que será
derivado a un fondo para la construcción de
diversas obras para beneficio público, ya sea en
el mismo sector o en otro.
Sin embargo, es importante remarcar
que estos instrumentos han sido desarrollados
En este sentido, estos grandes proyectos
durante el transcurso de la ejecución del Plan
de renovación urbana resultan medios de
Especial Puerto Norte – Fase II. Por lo cual, en
generación de plusvalías urbanas, 8 en los
las primeras unidades de gestión realizadas no
cuales el Estado cumple un rol central. Por
fueron aplicados; y en el resto de las unidades,
un lado, éste suele ser propietario, al menos
al encontrarse mayormente en curso, todavía
en parte como ocurre en Puerto Norte, de los
no se puede medir su éxito – en relación
grandes sectores a refuncionalizar. Por el otro,
a la equidad distributiva de los beneficios
como ya mencionamos, es el encargado de
resultantes a toda la sociedad en su conjunto.
establecer nuevos indicadores normativos que
Además, es importante señalar que
inciden en gran medida en los cambios de
la mayor parte de las unidades de gestión
valorización del suelo. Asimismo, también el
proponen en sus proyectos condominios
Estado es el responsable de la realización de
privados para clases de alto poder adquisitivo,
obras e infraestructuras que contribuye a la
en conjunto con sectores comerciales y de
valorización progresiva de estas áreas. Por lo
servicios de alta categoría. De manera que, si
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016
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Cecilia Inés Galimberti
bien este Plan Especial se encuentra todavía en
De manera que, siguiendo a Cuenya
construcción, las rejas perimetrales de aquellas
(2004), del otro lado se ubican diversos actores
unidades ya terminadas recuerdan las barreras
perjudicados, entre los que se encuentran:
pertenecientes a las instalaciones ferro-
los habitantes localizados en asentamientos
portuarias negadas durante tantas décadas.
irregulares dentro de las parcelas de
La situación se agrava frente a la
renovación urbana -o sectores aledaños a las
segregación social existente en este sector,
mismas-; los residentes del barrio en el cual
dado que, por fuera de dichas rejas, estas
se localiza el desarrollo del GPU, que frente
unidades de desarrollo inmobiliario para clase
a la suba de los valores del suelo, pueden ser
alta y media-alta lindan con asentamientos
afectados por procesos de gentrificación; y, los
irregulares y unidades habitacionales precarias,
actores vinculados a actividades usuales del
que simplemente han sido dejadas de lado
área, que cambia su dinámica tradicional por
en el desarrollo del proyecto general. Con lo
nuevas demandas.
cual, se agrava el escenario de desigualdad y
exclusión que padecen estos grupos sociales.
Parecería, entonces, que los límites
presentes en este sector urbano han cambiado
Figura 6 – Condominios privados junto a asentamientos irregulares
Fuente: Fotografías de la autora.
572
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016
Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana
de dueño y de nombre, pero siguen presentes,
Sin embargo, el proyecto de Puerto Norte
material e inmaterialmente, en el imaginario
con el transcurrir de las décadas termina siendo
colectivo y en el reclamo por la apropiación de
absorbido por la maquinaria inmobiliaria
estas tierras para la sociedad en su conjunto.
especulativa. Gran parte del espacio destinado
Frente a la realidad político-económica
a usos recreativos propuesto en 1999 es
de Argentina en las últimas décadas, los
posteriormente privatizado quedando dentro
modelos de “gestión empresarial” afrontados
de las unidades de gestión mencionadas y, el
por parte de la administración pública
espacio público resultante – con excepción del
lamentablemente tienden a profundizar la
parque Scalabrini Ortiz –, en términos generales
brecha entre las desigualdades urbanas y a
resulta una sumatoria de espacios intersticiales
contribuir a la fragmentación por sobre la
y de componentes viales, sin equipamiento
articulación del territorio.
apropiado a fin de garantizar una apropiación
colectiva del mismo.
De manera que, en este caso de estudio
Recuperación de espacios públicos
los intereses privados tienden a producir
una topofagia urbana del espacio público.
Puerto norte se posiciona desde mediados
Es importante remarcar que la recuperación
del siglo XX en un tema de reclamo continuo
cuantitativa de éste no asegura una verdadera
de parte de diversos actores que solicitan
publicidad 9 del espacio. Producir espacio
público requiere intencionalidad, proyecto,
escucha atenta a las voces colectivas – de
quienes eligen y se apropian del mismo
cotidianamente. Es decir, su definición no
se limita a aquello que no corresponde a
la propiedad privada, sino que debe incluir
intrínsecamente en su desarrollo al rol de la
identificación territorial y al intercambio con
el otro. Esta marginalización del espacio por
sobre el poder de la especulación, como explica
Alberto Magnaghi (2011) ha generado, por un
lado, la hipertrofia de la funcionalidad y del
tráfico operativo y, por el otro, la hipotrofia de
las relaciones sociales y del habitar.
Si entendemos al espacio público como
“un espacio simbiótico en el sentido que
genera integración, articulación, encuentro y
conectividad de los distintos”; lo cual se logra
a través de dos determinaciones: 1) “Que le da
recuperar el frente fluvial y grandes áreas
urbanas centrales para uso público, a fin de
restituir el anhelado diálogo con el río Paraná.
Este reclamo se registra tanto desde el público
en general, como en los instrumentos técnicos
de planificación estatal. La sucesión de planes
urbanos desde 1952 así lo registra. Como
propone el Plan Director de 1999:
La renovación de Puerto Norte es una
aspiración histórica y representa una de
estas oportunidades a las que un Plan
debe estar atento, y porque también
significa el lugar capaz de catalizar el
ideario colectivo de recuperación de la
costa y modernización de la ciudad (…)
con paseos y avenidas junto a la costa,
parques y ramblas sobre la barranca,
donde descubrir una perspectiva inédita
de la ciudad y el río. (Municipalidad de
Rosario, 1999)
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016
573
Cecilia Inés Galimberti
Figura 7 – Rejas y reclamos de la transformación del Plan Especial de Puerto Norte
Fuente: Fotografías de la autora y argentina.indymedia.org
sentido y forma a la vida colectiva mediante
la integración de la sociedad”, y 2) “que le da
un orden y unidad a la ciudad a través de su
cualidad articuladora estratégica” (Carrión,
2005, p. 46); el rol del mismo y su producción
debe resultar de atención prioritaria en el
desarrollo de los GPU. Según exponen Borja y
Muxi (2000), el espacio público debe garantizar
la apropiación de diferentes colectivos sociales
y culturales en términos de igualdad. A través
de éste se define la calidad de la ciudad, la
democratización de la misma. En este sentido,
estos autores plantean que:
La paradoja de la ciudad de economía
capitalista ( Har vey) es que por una
p a r te n e c e sit a e l e s p a cio p ú b lico
574
para su funcionamiento y para la
gobernabilidad del territorio y por otro
lo niega tendiendo a convertirlo en
un espacio residual o “especializado”
[…]. La separación espacio privado- e spacio público y el d ominio d el
primero sobre el segundo, la reducción
de los espacios públicos a funciones
monovalentes y la multiplicación de
espacios segregados y privatizados
de todo tipo son indicadores de una
sociedad urbana clasista y desigual.
[…] En consecuencia el objetivo
común democrático de los gobiernos
locales, de los movimientos sociales y
de los profesionales del urbanismo es
desarrollar políticas y proyectos que
den prioridad al espacio público. (Borja
y Muxi, 2000, p. 76)
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016
Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana
El sector de Puerto Norte representa
una gran marca identitaria del territorio
a priori por éste último, y 3) El que el Estado
cede ante la presión del mercado inmobiliario.
metropolitano. Siguiendo el pensamiento de
Se considera que forman parte del primer
Solá Morales (1996), consideramos que para
grupo, las propuestas de preservación cuyo
actuar desde la arquitectura y el urbanismo en
leitmotiv consiste en conservar el patrimonio
para las generaciones futuras a través de una
respetuosa valorización de su existencia. Esto
se logra a través de una mirada atenta al
mismo en relación a su historia y a la identidad
propia del territorio. Para lo cual, es necesaria la
participación activa de todos los ciudadanos – y
no sólo de técnicos o promotores inmobiliarios.
Esto sucede cuando la propia comunidad se
involucra en el reclamo de la valorización de
las huellas territoriales. Por ejemplo, en el
sector de estudio, se destaca la rehabilitación
y puesta en valor del Complejo Arquitectónico
Patrimonial “Parque Scalabrini Ortiz”.11
En el segundo grupo se encuentran
aquellas intervenciones en las que, si bien la
presión del capital y del poder privado sea muy
fuerte, el Estado prevalece en la definición de
los lineamientos de preservación patrimonial.
Resulta ejemplo de esto, la primera fase del
Programa de Urbanización especial del Centro
de Renovación Urbana Raúl Scalabrini Ortiz –
Área Talleres (Sector 4 – Distrito R5-2c).12
Finalmente el tercer grupo, comprende
los casos de recualificación urbana en donde
la presión del mercado inmobiliario arrasa
con las huellas identitarias, las lógicas
propias del barrio y sus habitantes. Es decir,
se utilizan los recursos patrimoniales como
una estrategia de marketing comercial. En
estos casos se denota un débil accionar del
Estado, ya que éste sucumbe a las demandas
del privado. Por ejemplo, la reconversión
urbana que sucede en las siete unidades de
gestión del Plan Especial Puerto Norte. En
estos espacios, vacíos urbanos, es necesario
partir de la escucha atenta de los flujos, las
energías, los diversos ritmos que ha establecido
el paso del tiempo y la pérdida de los límites. La
ordenación urbana de estos ámbitos no puede
consistir en una mera reordenación urbanística
para que se integren nuevamente a la trama
eficiente y productiva de la ciudad – aquella
ciudad reglada de tanta libertad vigilada que
se hacía referencia en el proyecto ganador
del concurso nacional de ideas. Consideramos
que de hacerlo, corremos el riesgo de cancelar
el poder y la riqueza de la ausencia y el vacío.
Por lo tanto, resulta necesaria una atención
integrada, tanto desde las nuevas arquitecturas
y la innovación como de los valores de la
memoria, a fin de mantener viva la expresión
urbana de este territorio. Sino, podemos caer
en la tentación de convertir este lugar en otro.
Políticas de preservación
de los componentes
productivos identitarios
Los lineamientos de preservación resultan
muy diversos y arbitrarios en este sector.
Identificamos, a nivel general, tres modelos de
protección patrimonial,10 o bien, tres modos de
posicionarse frente al mismo: 1) El promovido
desde el Estado como defensor de los bienes
colectivos; 2) El que se encuentra en litigio
entre la presión del mercado y el poder público,
pero que prevalecen los criterios considerados
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016
575
Cecilia Inés Galimberti
Figura 8 – UG 2: Ciudad Ribera. Fragmentos a preservar
Fuente: Ordenanza n° 8.237/08 – Municipalidad de Rosario.
Figura 9 – UG 2: Ciudad Ribera.
Fragmentos preservados – estado de situación año 2014
Fuente: Fotografías de la autora.
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016
Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana
este caso, el conjunto unitario existente de
instalaciones productivas-portuarias resulta
Reflexiones finales
desmembrado, seccionado y demolido
sectorialmente. Se dejan algunos fragmentos
Frente a los cambios acontecidos en las
de algunos componentes edilicios históricos
últimas décadas, vinculados a las dinámicas
perdidos entre nuevas masas edificadas. Se
económicas, del mercado y la globalización,
“preservan” pequeños pedazos inconexos,
se producen transformaciones en las políticas
inconclusos. Por ejemplo en la Unidad de
públicas locales. Por ejemplo, en gran parte
Gestión n° 2 – sector 2 llamada “Ciudad
de las ciudades a nivel mundial se realizan
Ribera”, se mantiene sólo un fragmento
reconversiones de áreas degradadas,
de los silos existentes en el predio, como
localizadas en sectores estratégicos, con el
también sólo una fracción de otra edificación
fin de dar lugar a nuevos usos. Es así que la
considerada de valor patrimonial.
generación de nuevos condominios privados,
Estas políticas se avalan a través
para sectores de alto poder adquisitivo, resulta
de la Ordenanza n° 8.237/08, en la que a
uno de los programas más elegidos en estas
pesar de definir a este sector como Área de
operaciones de renovación urbana, tal es el
Preservación Histórica: “reconociendo en la
caso de Puerto Norte en Rosario. Si bien este
suma de edificios de Valor Patrimonial un
sector es reclamado durante décadas por
conjunto de gran significación histórica, donde
gran parte de la ciudanía – para la creación
se encuentren numerosos testimonios de los
de nuevos espacios públicos –, el mercado
procesos productivos que se dieron en este
inmobiliario finalmente se posiciona como
sector de la costa”, únicamente se considera
motor principal en su transformación definitiva.
la preservación de tramos discontinuos.
Ahora bien, ¿qué lecciones nos brinda
Un tratamiento similar de preser vación
este caso de estudio? ¿Qué aportes otorga
patrimonial se realiza en el resto de las
al debate en torno a grandes proyectos de
unidades de gestión. Este accionar nos llama
renovación urbana? Son diversas las temáticas,
a reflexionar sobre nuestro legado histórico y
involucradas en el desarrollo del proyecto de
sobre la presión del laissez-faire de la economía
Puerto Norte, que contribuyen a generar nuevas
y de la predominancia de los intereses privados
reflexiones en pos de mejorar los efectos
por sobre los bienes colectivos. El debate del
resultantes de los GPU. Entre ellas podemos
significado de la revalorización patrimonial
mencionar: a) el rol de los Concursos de Ideas
y sobre “¿qué estamos preservando?” debe
y la importancia que éstos sean vinculantes
ser un debate vivo, activo – no de puertas
al desarrollo del proyecto. Recordemos que,
cerradas –, en el cual deben participar todos
en este caso de estudio, se establecieron
los actores de la sociedad y no sólo los grandes
lineamientos contradictorios a los propuestos
grupos económicos.
por el proyecto ganador, por ejemplo en
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016
577
Cecilia Inés Galimberti
relación a la preservación de la identidad
sectores involucrados y otras más atentas a las
del sector; b) la necesidad de profundizar
presiones económicas.
los instrumentos de gestión, planificación y
Vemos entonces, que el poder del capital
captación de plusvalías; y estudiarlos, como sus
y las potenciales plusvalías urbanas influyen
posibles efectos e impactos, a priori del inicio
ampliamente en la definición y delineación
del desarrollo del proyecto; como también,
de las políticas públicas. De manera que,
focalizarse en la articulación de estas normas
la administración estatal se posiciona
específicas con el resto de la normativa general
como medio posibilitante de la maquinaria
de la ciudad. En Puerto Norte, la figura del
especulativa inmobiliaria, cediendo ante la
Plan Especial se inserta generando una gran
presión de los grandes promotores. Si bien el
ruptura frente al resto de la ciudad donde
Estado aplica instrumentos de captación de
se localiza; produciendo diversos impactos
plusvalías para beneficio público, los mismos
y efectos, gran parte de ellos negativos. Por
no resultan suficientes para contrarrestar
este motivo, se considera necesario el estudio
las problemáticas que suceden en las áreas
de los sectores de transición, buffer zone, con
lindantes a estos proyectos. A su vez, durante
el fin de lograr una articulación urbana más
el desarrollo de la definición de las políticas
armoniosa; c) la obligación de fortalecer el
a aplicar no se realiza un análisis crítico
rol del Estado en todo el proceso, tanto en
complejo que involucre los diversos temas y
las definiciones proyectuales iniciales, como
sectores, perjudicados y beneficiarios, que
durante el proceso de desarrollo y ejecución.
conforman la ciudad.
En este aspecto, resulta esencial la atención
Se comprueba que, a pesar del
acerca del desarrollo de espacio público y de
aparente éxito de estos grandes proyectos
infraestructuras para beneficio de todos los
de renovación – ya sea por la rehabilitación
ciudadanos y no sólo de aquellos vinculados
de sectores degradados, la generación de
específicamente al proyecto especial; d)
una nueva imagen de marketing urbana,
incrementar el consenso, coordinación y
la obtención de plusvalías, entre otros –,
participación multiactoral durante todo el
también se desencadenan diversos efectos
proceso, escuchando todas las voces existentes
negativos. Por lo cual, estos conflictos
en la ciudad; e) los Grandes Proyectos Urbanos,
deberían ser previstos a través de un amplio
deben resultar atentos a la identidad del sector
y detallado análisis de los diversos temas
donde se localizan. Para lo cual, se requiere
claves tanto en las etapas de proyecto como
fortalecer estrategias de preservación de las
de desarrollo. Los instrumentos de gestión no
marcas materiales e inmateriales existentes.
deben centrarse únicamente en la definición
Vemos que en Puerto Norte, se han tomado
de indicadores edilicios, de usos, factores
decisiones muy diversas respecto a esta
de ocupación del suelo y de las plusvalías
problemática, algunas de escucha atenta a los
resultantes. Sino, deben abordarse desde las
578
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016
Políticas públicas en el desarrollo de grandes proyectos de reconversión urbana
problemáticas complejas y multisectoriales
de transformación de la ciudad, sino en
que implican los mismos, tanto a corto,
el reclamo y control del cumplimiento de
mediano como a largo plazo.
los intereses colectivos. Ya que cuando el
En este sentido, resulta fundamental el
Estado es liderado por lógicas empresariales
papel activo y permanente de la participación
y pone en riesgo los recursos públicos, sólo
pública y de todos los ciudadanos. No
el accionar social colectivo puede frenar y
solo en la definición de las propuestas
revertir procesos en curso.
Cecilia Inés Galimberti
Universidad Nacional de Rosario, Facultad de Arquitectura, Planeamiento y Diseño, Área de Teoría y
Técnica Urbanística y Área de Historia de la Arquitectura. Rosario, Argentina.
[email protected]
Notas
(1) Por ejemplo: la Cervecería Quilmes, la Arrocera Argen na, la aceitera Santa Clara y posteriormente
la Maltería SAFAC, en la ex Refinería de azúcar.
(2) Son tres las empresas ferroviarias que atraviesan este sector: Ferrocarril Córdoba/Rosario,
Ferrocarril de la Provincia de Santa Fe y Ferrocarril Rosario/Buenos Aires.
(3) Por este mo vo, la urbanización que surge en torno a estas instalaciones se denominan Barrio
Refinería y Barrio Talleres.
(4) Como se establece en la Ordenanza n° 6.271/96, se define a la primera fase del Desarrollo del
Centro de Renovación Urbana Scalabrini Ortiz “al proyecto de urbanización de la vialidad
primaria estructural, de los servicios y equipamientos urbanos concentrados y de los ámbitos
públicos a crear que, sobre las áreas inicialmente disponibles, permita originar condiciones de
nuevas centralidades urbanas y locales capaces de equipar y caracterizar en sus valores urbanos
las sucesivas fases de desarrollo”.
(5) Las instalaciones y vías ferroviarias existentes en este sector que incluyen Playa Balanza Nueva y
Pa o Cadenas, junto con la ya recuperadas de Talleres, el ahora Parque Scalabrini Or z, suman
148 Has.
(6) Las mismas se demarcan según siete polígonos y se las identifica como unidades de gestión,
en función de la propiedad de la erra o de las diferentes modalidades de organización entre
propietarios, las cuales se aprueban en normas complementarias.
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Cecilia Inés Galimberti
(7) Responde a las asociaciones público-privadas que nos referíamos en los párrafos anteriores.
Esta figura es un instrumento que formaliza el acuerdo entre la Municipalidad de Rosario
y organismos públicos y/o actores privados o mixtos, para impulsar acciones de nueva
urbanización, reconversión, reforma, renovación, rehabilitación y/o sus tución urbana.
(8) Se en ende por plusvalías urbanas a “la valoración del suelo que se genera durante el proceso de
producción de los proyectos, en función de los cambios urbanís cos notables que enen lugar
en las áreas estratégicas donde ellos se localizan” (Cuenya, 2012, p. 14).
(9) Referido al carácter público del espacio.
(10) Es de remarcar que consideramos que las intervenciones que corresponden a uno u otro
modelo no se definen ni por la propiedad jurídica del inmueble, ni por el grado de preservación
propuesto. Es decir, no se considera que las obras que prác camente no pueden modificarse
corresponden al primero y las que se permite un alto grado de cambio forman parte del tercer
modelo. Sino, se iden fican estos modelos en relación a qué es definido patrimonio y cómo es
tratado este recurso en pos del beneficio de toda la población.
(11) Se destaca la refuncionalización de los ex talleres del Ferrocarril Central Argen no en un nuevo
complejo educa vo en los que se localizan la sede de la Regional VI del Ministerio de Educación
y los talleres de las escuelas técnicas n° 471 y n° 467. Este proyecto ha sido realizado desde
una mirada sensible a las marcas patrimoniales. Si bien se readapta a nuevos usos, en relación
a las necesidades actuales de la población, se ha restaurado respetando las lógicas propias
de los componentes. Es decir, la nueva construcción no interviene en los muros existentes
en la inauguración de los talleres; se restauran todas las fachadas conservando las aberturas
originales; se readecuan los accesos reinsertándolos en la trama urbana, pero respetando la
jerarquización del conjunto edilicio; se pone en valor la totalidad de la estructura metálica
original; entre otras acciones. Es de remarcar que aún se encuentran en curso diversos
proyectos de rehabilitación patrimonial de este complejo; por ejemplo, el plan de revalorización
del denominado barrio inglés, a través del cual se plantea restaurar los edificios residenciales
del Ba en Co age y el Morrison Building.
(12) Este sector urbano, perteneciente al Estado nacional, es adquirido por firmas privadas, Alto
Palermo S.A. y Coto C.I.C.S.A, a fin de realizar un centro comercial. A pesar de las disputas en
torno a las demandas del privado versus los lineamientos planteados por el Estado, éste úl mo
define previamente las polí cas de intervención y los componentes patrimoniales a restaurar y
preservar.
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Texto recebido em 28/maio/2015
Texto aprovado em 26/out/2015
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 559-581, jul 2016
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Dinâmicas de expansão do arranjo
urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia*
Expansion dynamics of the Brasília-Anápolis-Goiania
urban-regional arrangement
Marcos Bittar Haddad
Rosa Moura
Resumo
Arranjos urbano-regionais constituem categoria
socioespacial que articula aglomerações e centros
em uma mesma unidade. Configuram-se sob célere qualificação/desqualificação de espaços pela
redefinição de funções, criando territórios extensos, permeados por vazios. São representativos do
estágio contemporâneo da metropolização, que
passa a engendrar novas morfologias urbanas,
articuladas e densas, ao mesmo tempo descontínuas, que sustentam a ampliação geográfica do
processo de acumulação. Tomando como objeto
o arranjo Brasília-Anápolis-Goiânia, discutem-se,
neste artigo, suas atuais dinâmicas de expansão,
a ação do setor imobiliário, sob forte influência da
renda gerada pelo agronegócio, e as implicações
regionais. Com particularidade no modelo de expansão de Goiânia e Anápolis, busca-se mostrar
que a riqueza gerada no entorno induz a valorização urbana, contudo não rompe a desigualdade
existente, que se acentua ao serem criados espaços cada vez mais fragmentados.
Abstract
Urban-regional arrangements are a socio-spatial
category that articulates agglomerations and
centers in one unit. They are configured under a
fast qualification/disqualification of spaces through
redefinition of functions, and create extensive
territories permeated by urban voids. This category
is representative of the contemporary stage of
metropolization, which has started engendering new
urban morphologies that are articulated and dense,
but discontinued, and support the geographical
enlargement of the accumulation process. Having as
object the Brasília-Anápolis-Goiânia arrangement,
we discuss, in this article, its current expansion
dynamics, the action of the real estate industry,
under the strong influence of income generated by
agribusiness, and regional implications. Specifically
in the expansion model of Goiânia and Anápolis,
we attempt to show that the wealth generated in
the surroundings induces urban valuation without
reducing the existing inequality, which is intensified
when increasingly fragmented spaces are created.
Palavras-chave: arranjo urbano-regional; expansão urbana; mercado imobiliário; Brasília; Anápolis;
Goiânia.
Keywords: urban-regional arrangement; urban
expansion; real estate market; Brasília; Anápolis;
Goiânia.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3613
Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura
O arranjo espacial em análise compreen-
Introdução
de mais que essas cidades polos, englobando
O arranjo urbano-regional formado por Bra-
os municípios de suas regiões de articulação
sília, Anápolis e Goiânia caracteriza-se pela
imediata (IBGE, 2013). Conforma uma área
conectividade e forte dinâmica entre esses nú-
extensa, permeada por fluxos e conexões mul-
cleos urbanos. Fruto de uma intensa exploração
tidirecionais que evidenciam forte grau de arti-
capitalista, sobretudo imobiliária, a realidade
culação entre si, em um complexo universo de
existente nessas cidades tem se transformado
relações econômicas, sociais e institucionais.
1
cotidianamente. Em sua composição destacam-
Esse padrão de configuração espacial,
-se duas cidades construídas para serem capi-
morfologicamente descontínuo e expandido,
tais: Brasília, capital federal, e Goiânia, capital
peculiariza o atual estágio de metropoliza-
de Goiás. Anápolis, cidade mais antiga, serviu
ção no Brasil e constitui a localização mais
de apoio durante o processo de construção
propícia para a acumulação do capital, fun-
dessas outras duas. O fato de se tratar de ci-
damentalmente o ligado à produção imobi-
dades planejadas, construídas por intervenção
liária. Cabe anotar que, sem a intervenção
do poder público, sugere que tais construções
de políticas públicas, o espaço objeto desse
também tiveram o intuito de favorecer a valori-
estudo jamais existiria. Em outras palavras, a
zação do capital imobiliário.
realidade presente e em constante alteração
As políticas de desenvolvimento nacio-
no planalto central brasileiro deve-se direta-
nal, desde a Marcha para o Oeste, tentavam
mente à intervenção estatal, em parceria com
fazer dessa região uma grande produtora de
o capital privado.
alimentos. Após a construção de Brasília, a
Tendo como objetivo demonstrar a for-
região integrou-se ao restante do País por
mação e a composição desse arranjo espacial,
uma malha rodoviária, o que favoreceu as mi-
o presente artigo estrutura-se em três partes.
grações. O caráter econômico, que a princípio
Na primeira, apresentam-se o arranjo em si, o
sempre se quis dar à região, consolidou-se, a
surgimento de cada cidade e seu gradual cres-
partir dos anos 1990, com o agronegócio, que
cimento. Na segunda busca-se explicar que a
contribuiu com o crescimento do mercado imo-
dinâmica imobiliária presente nessas cidades,
biliário, principalmente nas cidades e em seus
em especial em Goiânia e Anápolis, em muito
arredores, caso de Goiânia e de Brasília. Com o
se parecendo com o que ocorre nas demais ci-
tempo, essas cidades foram absorvendo parte
dades médias ou grandes do País, é fortemente
da renda originada pela dinâmica econômica
influenciada pela renda gerada pelo agronegó-
que se consolidava na Região Centro-Oeste,
cio brasileiro, que no momento é uma das mais
oriunda da intensificação do agronegócio,
importantes atividades econômicas do País. Na
baseado numa produção de commodities al-
terceira parte, usando de várias referências es-
tamente tecnificada, majoritariamente volta-
pecificas, discute-se como a dinâmica apresen-
da para o mercado externo e geradora de alta
tada expressa a configuração contemporânea
renda, particularmente aos empresários da
da metropolização, que se sintetiza em morfo-
agricultura e pecuária.
logias urbanas expandidas.
584
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016
Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia
Apresentação do arranjo
ferroviário e aéreo, fruto de parceria entre o
governo federal e estadual, sendo a única experiência desse modelo no País, o que reforçará
O surgimento das cidades de Anápolis, Goiâ-
a cidade em sua condição de centro logístico
nia e Brasília, embora relativamente próximas,
de distribuição.
deu-se sob circunstâncias diferenciadas no es-
Goiânia foi fundada em 1933, para ser a
paço e no tempo. Criadas em diferentes épocas,
nova capital de Goiás, e é considerada a pri-
beneficiaram-se de políticas públicas voltadas
meira ação do programa Marcha para o Oes-
para grandes projetos que possibilitaram a ins-
te, do Governo Vargas, que tinha por objetivo
talação de uma infraestrutura que alavancou
ocupar a vasta extensão de terras desabitadas
seu crescimento.
no interior do País. Inicialmente planejada pa-
Anápolis tem sua história marcada por
ra abrigar 50 mil habitantes, até a década de
ter sido ponto de apoio à construção de duas
1970 era considerada uma cidade de médio
capitais: Goiânia, de 1933 a 1942, para ser a
porte. Sua população não apresentava ten-
nova capital de Goiás; e Brasília, de 1955 a
dências de crescimento relevante, mas, após o
1960, a nova capital federal. Como ponto fi-
surgimento de Brasília e o desenvolvimento do
nal da estrada de ferro Mogiana, posição que
agronegócio no Centro-Oeste, a imigração para
ocupou por muitos anos, por Anápolis chega-
Goiânia intensificou-se e ela tornou-se polo de
vam pessoas, mercadorias e quase todo o ma-
convergência de fluxos populacionais, superan-
terial utilizado para a construção dessas novas
do, em 2010, 1,2 milhões de habitantes. Nesse
cidades. Há que se observar que Anápolis era a
processo, passou a configurar uma aglomera-
maior cidade do estado de Goiás e por ser pon-
ção metropolitana e, com os municípios de sua
to final da estrada de ferro funcionava como
vizinhança, passou a experimentar grande cres-
um polo comercial que abastecia todo o centro
cimento populacional.
norte de Goiás.
Brasília tem origem na concretização de
Em 1976, recebeu a instalação do Distrito
proposta do Governo de levar a capital fede-
Agroindustrial de Anápolis (Daia), primeiro dis-
ral para o interior do Brasil. Essa intenção era
trito industrial de Goiás, com objetivo de abrigar
manifestada desde 1750, ainda no Império, e
as indústrias que forneceriam suprimentos para
se incluiu na Constituição de 1891; mas so-
Brasília, atendendo, assim, à demanda do gran-
mente foi executada por Juscelino Kubitschek
de surto migratório pelo qual passava a região.
nos anos 1950. Construída em um local pra-
Por sua privilegiada posição geográfica,
ticamente isolado, a nova capital brasileira,
Anápolis tem firmado sua condição de impor-
inaugurada em 1960, foi projetada para abri-
tante ponto logístico, onde se fixam grandes
gar 700 mil habitantes em seu Plano Piloto. A
empresas nacionais e internacionais que en-
população excedente seria destinada a cidades
contram facilidades para distribuir seus pro-
satélites dentro do próprio Distrito Federal. Aos
dutos. Está em fase de implantação, na cidade,
poucos, incentivada pela propaganda governa-
a Plataforma Logística Multimodal, que reu-
mental, foi ganhando população, fundamental-
nirá as modalidades de transporte rodoviário,
mente migrantes em busca do sonho da “terra
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016
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Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura
prometida”. Nos primeiros dez anos, a popu-
econômicas complementares se alocaram. Se
lação ultrapassou os 500 mil habitantes. Parte
a sede dos governos federal ou estadual se
dessa grande massa não encontrou espaço nas
estabeleceu respectivamente em Brasília e em
terras esperadas e teve que migrar para regiões
Goiânia, nas cidades vizinhas se instalaram
próximas. Esse fato foi provocando, aos poucos,
serviços, motivados, muitas vezes, por maio-
uma ocupação não planejada ao redor da nova
res incentivos governamentais, como obriga-
2
capital federal o que impulsionou a expansão
ções fiscais reduzidas e população residente.
demográfica de Anápolis e Goiânia, que apre-
Para esta, mesmo exercendo atividade econô-
sentavam melhores estruturas e se localizavam
mica na capital, como trabalho e estudo, era
com relativa proximidade. As três cidades cres-
preferível pagar menos pela moradia, fazendo
ceram juntas a partir da fundação de Brasília,
crescer a população dessas cidades periféricas.
sob uma dinâmica de crescimento entre as
Anápolis, não sendo sede de governo, abrigou
mais elevadas do País, trazendo com ela a cres-
uma indústria que também fez, crescer dentro
cente inserção de municípios periféricos.
de seu território ou em seu entorno, atividades
Das três cidades, Brasília já nasceu maior
terciárias e população.
que Goiânia, com quase 30 anos de existên-
Proporcionalmente, a Região Integrada
cia, e com muita expressividade no cenário
de Desenvolvimento do DF (Ride) cresce mais
nacional. Em 40 anos, a população de Brasília
que a capital (Quadro 2). Brasília, de 1970
se quadruplicou (Quadro 1). Goiânia, relativa-
a 2010, teve aumento em sua população na
mente, cresceu menos, mas também quadri-
ordem de 359,44%, enquanto toda a Ride
plicou sua população nesses anos. Anápolis
aumentou em 369,05%. Já, em Goiânia, esse
manteve crescimento menor que as capitais.
aumento foi de 229,99% e 312,71%, respecti-
Mesmo assim, de 1970 a 2010, a população
vamente para a cidade e sua Região Metropo-
anapolina triplicou.
litana (RM). Dos três aglomerados, Anápolis foi
Essas cidades não cresceram sozi-
o único que cresceu mais que seu entorno, na
nhas. Em seus entornos foram surgindo cen-
ordem de 208,77%, enquanto sua microrregião
tros urbanos onde população e atividades
sequer dobrou de tamanho, cresceu 86,70%.
Quadro 1 – Crescimento populacional das cidades
de Brasília, Goiânia e Anápolis (1970 a 2010)
Cidade
1970
1980
1991
2000
2010
Brasília
537.492
1.176.908
1.601.094
2.051.146
2.469.489
Goiânia
380.773
717.519
922.222
1.093.007
1.256.514
Anápolis
105.029
180.012
239.378
288.085
324.303
Fonte: Censos Demográficos IBGE.
586
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016
Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia
Quadro 2 – Crescimento populacional do arranjo espacial
Brasília-Goiânia-Anápolis (1970 a 2010)
Arranjo
1970
1980
1991
2000
2010
Ride DF/GO/MG
761.961
1.520.026
2.161.709
2.958.196
3.574.040
RM Goiânia
509.570
897.382
1.312.739
1.743.297
2.103.083
MR Anápolis
250.014
307.664
352.080
408.484
466.792
Fonte: Censos Demográficos IBGE.
A nova dinâmica econômica
do Centro-Oeste brasileiro:
o agronegócio
Os efeitos dinamizadores desse novo
modelo de desenvolvimento tiveram impactos
significativos na história econômica brasileira e em especial na região Centro-Oeste, pois
a demanda por alimentos foi estimulada pela
Não restam dúvidas da importância de Brasília
ampliação do mercado interno e pela intensifi-
para a transformação e o desenvolvimento do
cação do setor industrial. Assim, ampliaram-se
Centro-Oeste. Além de tornar a região o centro
os vínculos das regiões mais desenvolvidas, co-
das decisões políticas e administrativas do País,
mo o Sul e Sudeste, com as áreas de produção
possibilitou sua integração por meio de uma
agropecuária. Esse fator motivou a implanta-
malha de rodovias que surgiram no intuito de
ção das políticas nacionais de colonização, cujo
ligar a nova capital federal às demais regiões
exemplo pioneiro foi a Marcha para o Oeste.
brasileiras. Não apenas essa rede de transpor-
No caso específico do Centro-Oeste, as
tes, mas também as diversas políticas públicas
políticas propostas pelo Estado nacional sobre-
federais que surgiram após a mudança da capi-
puseram à formação econômica e social que
tal favoreceram as diversas alterações no qua-
fora constituída durante o período da minera-
dro econômico e social da região.
ção, agricultura e pecuária extensivas, já existentes no território, fazendo com que a região
passasse a ter maior presença no cenário na-
O surgimento de uma nova dinâmica
econômica do Centro-Oeste
cional. Seu perfil, tanto físico-territorial como
produtivo, foi gradativamente sofrendo alterações, na medida em que a oferta elástica de
A partir da década de 1930, o Estado brasileiro
terras estimulava a penetração de colonos do
foi o grande organizador da acumulação indus-
Sul e Sudeste e também de estrangeiros, como
trial, instituindo políticas de caráter nacional,
alemães e japoneses.
e promotor da integração do mercado interno,
Após o declínio da mineração, a região
tornando-se o responsável maior pela abertura
se configurou como produtora nos setores de
e ampliação das fronteiras de acumulação.
pecuária (corte e leite) e agricultura (alimentos
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016
587
Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura
básicos) extensivas. Mais recentemente, a tem
integração e interiorização da economia, a
se tornado a grande produtora de grãos do
fundação de Brasília e a modernização das
Brasil (sobretudo soja e milho); além de abrigar
vias de transportes, das bases energéticas e
várias agroindústrias e algumas consideráveis
das telecomunicações.
experiências isoladas de indústrias com maior
Essa intervenção do Estado brasilei-
necessidade de uso de tecnologias, como a far-
ro ocorreu através dos diversos programas
macêutica e a automobilística.
públicos, com destaque aos constantes no I
Com o avanço da economia cafeeira de
e II PND – Plano Nacional de Desenvolvimen-
São Paulo, as transformações na região tiveram
to. Eram programas de incentivos fiscais, im-
impulso pela necessidade de incorporar novas
plantação de infraestrutura básica, pesquisas
áreas para abrir novas rotas de penetração. A
agropecuárias para melhoramento dos solos
ferrovia foi decisiva para impulsionar tal dinâ-
dos cerrados e controle de imigrações. Co-
mica. À medida que o Centro-Oeste foi sendo
mo resultado, nas décadas de 1970 e 1980, o
ocupado, passou também a ocupar espaço es-
Centro-Oeste passou a apresentar crescimen-
pecífico na divisão territorial do trabalho, como
to populacional e produtivo mais substanciais.
produtor de alimentos e matérias-primas para
Importantes empresas agroindustriais de ca-
alimentar populações e a indústria do Sudeste.
pital nacional ou estrangeiro foram para a re-
A modernização das estruturas pro-
gião, transformando-a na maior produtora de
dutivas do Centro-Oeste começa a mudar a
alimentos do Brasil, com estrutura baseada no
partir do final da década de 1960, marcada
latifúndio e totalmente voltada para o merca-
pelo ingresso de novos migrantes e novos pro-
do externo.
dutos – sobretudo soja –, deslocando os produ-
Diante das mudanças nas políticas ma-
tos tradicionais de abertura de fronteira, como
croeconômicas, que intensificaram a finan-
arroz, milho e feijão. Essa ocupação “moderna”
ceirização da economia e renovaram as bases
promoveu a expropriação de camponeses e pe-
produtivas, elevou-se a inserção do País na
quenos agricultores tradicionais, literalmente
economia internacional, provocando alterações
expulsando populações originais e condenando
importantes nos padrões de comércio exterior
à extinção as economias naturais preexistentes.
e alterando as dinâmicas regionais. O territó-
As políticas de incentivos públicos também fo-
rio brasileiro recebeu diretamente os impactos
ram decisivas nesse processo.
de uma economia que passa a ser orientada
Assim, as décadas de 1960 e 1970 viram
por uma nova ordem mundial, inserindo-se de
difundir rapidamente, sobretudo nas áreas de
maneira passiva no processo de globalização.
cerrado do Centro-Oeste, um novo modelo
O Brasil passa a atender diretamente aos inte-
produtivo com práticas transformadoras da
resses do grande capital privado internacional,
realidade até então existente. Nesse período,
com uma nova estrutura econômica e um novo
constituíram-se as bases para a introdução
ordenamento territorial (Macedo, 2010).
das frentes modernas, que impactaram vigo-
O Centro-Oeste, região que sofreu “in-
rosamente a economia e a estrutura urbana,
volução econômica após a efervescência da
como as políticas nacionais de colonização,
mineração no século XVIII” (ibid., p. 191), foi
588
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016
Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia
inserido ativamente nesse processo. Nas duas
lavoura rica em técnicas. A terra passa a ficar
últimas décadas vem se destacando como a re-
mais concentrada e valorizada, e a produção
gião mais dinâmica do agronegócio brasileiro,
cresce gradualmente ano a ano, de forma tão
concentrando produção e renda. É a segunda
extraordinária quanto o seu crescimento de-
região brasileira em extensão territorial e em
mográfico, queconfirma o caráter produtivo da
grau de urbanização, porém é a que apresenta
região. De 1965 até 2010, a região elevou sua
menor densidade demográfica. Considerando
área de plantio de pouco mais de 2 milhões pa-
que se trata de uma exploração agrícola desa-
ra 16 milhões de hectares (Quadro 3).
gregadora que, além de não gerar empregos,
Em 1965, o Centro-Oeste participava
expulsa as pessoas do campo, “a região Cen-
com 6,8% das áreas plantadas no território
tro-Oeste é a que melhor sintetiza o esforço de
brasileiro. Proporção que se eleva para 25,3%
inserção comercial do país” (ibid., p. 190).
em 2010. Percebe-se que esse crescimento da
A chegada de novos agentes à região
área plantada no Centro-Oeste se centrou em
promoveu a substituição de antigas atividades
um único produto: as tradicionais lavouras de
de subsistência e economia natural por moder-
arroz. Utilizadas para a ampliação da fronteira
nas produções do agronegócio internacionali-
agrícola, essas lavouras ofereciam o principal
zado. Tudo provocou uma completa redefinição
produto da pauta produtiva do Centro-Oeste.
do uso e de ocupação do solo e consequente-
Mas, com a intensificação da agricultura de
mente a reorientação de sua organização espa-
exportação, implantada sobretudo nas décadas
cial (ibid.). Assim, o território do Centro-Oeste
de 1980 e 1990, elas perderam espaço para a
deixa de ser usado para o plantio extensivo de
lavoura da soja, produto mais valorizado no
lavouras ou pastagens e dá lugar a uma nova
mercado internacional (Quadro 4).
Quadro 3 – Área colhida na Região Centro-Oeste e Brasil
1965 a 2010 (por hectares)
Estado / Região
Distrito Federal
Goiás
1965
1980
1990
2000
2010
6.770
26.868
89.227
84.690
121.989
1.584.762
2.202.921
2.527.421
3.080.405
4.446.308
1.740.011
2.041.128
1.863.740
3.040.623
Mato Grosso do Sul
Mato Grosso
621.355
1.209.343
2.476.614
4.811.557
8.753.926
Centro-Oeste
2.212.887
5.179.143
7.134.390
9.840.392
16.362.846
32.521.457
49.517.480
50.514.696
50.197.379
64.450.342
Brasil
Fonte: Ipeadata.
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589
Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura
Quadro 4 – Área colhida pelos principais produtos agrícolas do Centro-Oeste
1965 a 2010
Produto
Arroz
Cana de açúcar
Milho
Soja
Algodão
1965
1980
1990
2000
2010
1.174.222
2.367.091
772.771
915.649
417.378
43.519
49.505
215.983
373.396
1.023.738
514.829
941.123
1.416.480
1.803.292
3.431.652
804
1.130.093
3.810.153
5.530.455
9.861.994
69.342
80.295
123.451
403.730
449.129
Fonte: Ipeadata.
Todo esse processo produtivo, seja via
Tal realidade foi fortemente percebida
produção ou processamento de alimentos, fez
no arranjo Brasília-Anápolis-Goiânia. Como
elevar também as atividades voltadas para
essas cidades exercem centralidade no de-
a prestação de serviços, devido à grande mo-
senvolvimento econômico do Planalto Central
vimentação promovida pelo agronegócio. A
brasileiro, naturalmente receberam grandes in-
crescente industrialização, sobretudo no estado
vestimentos em empreendimentos imobiliários,
de Goiás, o forte comércio, particularmente em
devido à alta concentração de população con-
Goiânia e Anápolis, e os serviços públicos em
sumidora de imóveis.
Brasília também são fatores que em muito con-
Nos últimos dez anos, o setor imobiliário
tribuíram para a elevação do setor de serviços.
dessas cidades passou por inovações da gestão
Porém, a lógica atual de inserção externa, que
empresarial dos negócios. Nesse período no-
fez do Centro-Oeste o grande exportador brasi-
vas formas de atuação foram introduzidas na
leiro, mantém a economia da região fortemen-
indústria da construção civil local, fortemente
te pautada na venda de produtos primários
marcada pela entrada de capital externo que se
para o exterior.
funde com grandes grupos nacionais e locais.
Surgiram, assim, diversos empreendimentos
voltados para o consumidor de nível mais ele-
Os impactos do agronegócio
no ambiente urbano do arranjo
vado (Moysés e Borges, 2009).
Todos os novos empreendimentos que
surgiram em áreas de expansão das cidades,
Ao longo da primeira década dos anos 2000,
seja em Águas Claras, Sudoeste, Lago Norte ou
o mercado imobiliário brasileiro experimentou
Noroeste, regiões administrativas de Brasília,
intenso período de expansão. Esse movimento,
seja no Setor Bueno, Parque Flamboyant, Alto
que se iniciou timidamente na década anterior,
da Glória ou Jardim Goiás, em Goiânia, ou no
principalmente pós Plano Real, teve seu auge
Bairro Jundiaí, em Anápolis, obtiveram gran-
entre 2001 e 2007.
de êxito de vendas, com os empreendimentos
590
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016
Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia
tendo 98% de suas unidades vendidas na mes-
equipamentos. O primeiro Plano Diretor (1969)
ma semana de lançamento da obra, conforme
definiu os vetores para o desenvolvimento da
informação das entidades que representam
cidade, limitando seu crescimento, de maneira
o setor imobiliário, como Secovi (Sindicato da
a mantê-lo ordenado. A expansão urbana deve-
Habitação do Estado de Goiás) e Ademi (Asso-
ria direcionar-se a norte, ao longo do Rio Meia
ciação das Empresas do Mercado imobiliário
Ponte, e a leste, ao longo da BR-153. A cidade
de Goiás). Trata-se de empreendimentos caros,
poderia crescer para o sudoeste, e a estrutura
dotados de completa infraestrutura, conforme
viária seria realizada pelos eixos leste-oeste e
os novos conceitos de cidade construída para
norte-sul. Esses preceitos só ocorreram em par-
atender às classes mais abastadas da socieda-
tes. A construção de viadutos na BR 153 permi-
de local.
tiu que a cidade expandisse muito para o leste.
Tanto Goiânia como Brasília cresceram
As obras no perímetro urbano da BR
para além do seu território planejado. Esse fa-
153/060 atenderam a exigências da nova di-
to, bastante comum em muitas capitais, não foi
nâmica que a região leste da cidade passou a
previsto no planejamento dessas cidades. No
enfrentar a partir de 1981. A implantação do
Shopping Flamboyant, às margens dessa rodovia, começou a alterar a dinâmica dos bairros
adjacentes, como Alto da Glória e Jardim Goiás.
Esse shopping, o primeiro de grande porte do
estado de Goiás e segundo do Centro-Oeste,3
favoreceu a valorização das terras dessa região
da cidade, pertencentes a um único proprietário, que também foi o fundador do shopping. A
movimentação desse centro de compras atraiu
para as proximidades lojas de grandes redes
varejistas, e a região, hoje, detém grande centralidade e passa por constantes transformações.4 Após a chegada do comércio, instalaram-se na região condomínios residenciais verticais, de alto padrão, e em seguida condomínios
horizontais fechados, tanto de capital local
como externo. Nessa região, pratica-se o metro
quadrado mais valorizado da Região Metropolitana, representando grande status para quem
nela reside.
Ações do poder público favoreceram essa dinâmica e sua consequente valorização. Na
década de 1970, foram implantados, na região,
o Estádio Serra Dourada e o Autódromo da
caso de Brasília, seu formato de cruz limita a
quantidade de unidades para habitação. Como
as cidades-satélites ficam distantes do Plano
Piloto e as mais próximas, como Taguatinga e
Guará, rapidamente se esgotaram, foi preciso
abrir novas áreas para a expansão imobiliária,
como os Lagos Sul e Norte, o Sudoeste e, mais
recentemente, o Noroeste. Todos esses novos
“bairros” da capital federal são habitados por
população de elevado padrão de renda, que se
nega a residir em lugares mais distantes.
Em Anápolis, a única das cidades não
planejada, portanto sem limites para seu crescimento, é onde possivelmente reside uma
população mais tradicional que a de Brasília e Goiânia. Os grandes empreendimentos
imobiliários chegaram mais tarde, basicamente
após 2006, quando grandes investimentos passaram a provocar alterações fundamentais na
paisagem local.
Ao contrário de Brasília, que surgiu com
áreas valorizadas pelo próprio desenho urbano,
Goiânia foi direcionando a ocupação e valorizando seu território a partir da implantação de
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016
591
Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura
Cidade.5 Depois disso, vieram os investimentos
O bom desempenho e a preocupação
privados, como o shopping e os condomínios
com a saturação da ocupação dessa área
residenciais e comerciais. A partir de 2006, no-
acabaram por favorecer a abertura de novas
vas intervenções públicas voltaram a acontecer,
frentes de expansão e valorização imobiliária
elevando ainda mais sua valorização. A primei-
em outras regiões de Goiânia. São bons exem-
ra foi do governo estadual, que inaugurou, no
plosa região do Parque Vaca Brava, a partir de
trevo da BR 153/060 com a GO 020, o Centro
1996, e do Parque Cascavel e do Macambira
Cultural Oscar Niemeyer, em 2006. Em 2009, a
Anicuns, a partir de 2009, todas elas na porção
prefeitura inaugurou, não muito distante dali, o
centro-oeste da cidade. A partir de 2013, foi
Parque Flamboyant, o que permitiu a constru-
inaugurado outro grande shopping na região
ção, em seus arredores, dos apartamentos mais
norte, pertencente ao maior grupo industrial
valorizados da cidade.
de Portugal, em sociedade com empresários
É nas imediações dessa região sudeste
estadunidenses. O empreendimento está alte-
de Goiânia que se localiza o maior número de
rando a configuração da área, até então uma
condomínios horizontais fechados de toda a
das menos valorizadas, e levando o poder local
RM. E os mais valorizados também. A expan-
a tomar inciativas para acompanhar essa trans-
são do perímetro urbano acabou tendo que
formação, como a abertura de grandes aveni-
ser aprovada para acompanhar essa demanda
das (caso da ampliação da Goiás Norte, pela
existente por novas áreas para a instalação de
prefeitura) e instalação de viadutos (como os
mais condomínios residenciais. O caso mais bi-
da Perimetral Norte, pelo governo estadual).
zarro ocorreu no Plano Diretor de 2006, quan-
Em 2013 a prefeitura municipal enviou à
do, para incluir uma área onde seria instalado
Câmara de Vereadores projeto de lei para ex-
o suntuoso condômino Goiânia Golf Residen-
pandir mais ainda o perímetro urbano de Goiâ-
ce, fez-se um “apêndice” no mapa da cidade.
nia, no sentido norte. Esta é a única região da
Essa área ficou conectada ao restante da zona
cidade que ainda não se encontra totalmente
urbana apenas pela linha que demarca uma
na zona urbana e onde estão as reservas flores-
rodovia municipal; literalmente, pendurada à
tais e o reservatório de águas que abastece a
zona urbana.
região metropolitana. Daí o motivo de tal pro-
A maioria desses empreendimentos, na
região Sudeste de Goiânia, foi lançada por in-
jeto ter gerado grande polêmica e ainda não
ter sido viabilizado.
corporadores locais, nacionais ou estrangeiros,
Já a região sul da cidade desenvolveu-se
em parceria com a família proprietária das
bem antes. Por ter se conurbado a Aparecida
áreas. Ou seja, pelo mesmo proprietário do
de Goiânia, segundo maior município da RM
shopping, que já havia, anteriormente, “cedido” terras para a implantação de grandes equipamentos urbanos. Não restam dúvidas de que
se trata do maior latifúndio urbano da história
da cidade.
e de Goiás, os empreendimentos imobiliários
592
ali se instalaram principalmente no final da
década de 1990, quando também se instalou
um shopping . Desde então, essa região se
tornou alvo de especulação e investimentos
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016
Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia
imobiliários tão vultosos como os da região su-
negócios que surgem constantemente, favore-
deste. Porém, os empreendimentos da região
cem essa efervescência imobiliária. Ao mesmo
sul não são voltados para as classes mais ricas.
tempo, a demanda por menor rendimento am-
Nessa região, alto do Setor Bueno, entorno da
plia as áreas de expansão das cidades.
Avenida Rio Verde, Parque Amazônia, habita
Brasília tem sua dinâmica própria de ca-
uma população classe média a média alta, e a
pital federal. Concentra a sede de grandes em-
região está altamente verticalizada.
presas nacionais (públicas ou privadas), grande
Conforme a prefeitura de Goiânia, en-
número de funcionários públicos que, em geral,
tre 2000 e 2011, foram construídos na cidade
possuem alta renda. Tudo isso faz com que o
423 condomínios habitacionais (denominados
Distrito Federal (DF) tenha um terciário forte,
“habitação coletiva”). Destes, 187 (44%) eram
gerando riquezas, empregos e atraindo cada
voltados para moradores de “alto padrão” e
vez mais trabalhadores e consumidores. Quem
se localizam em bairros mais valorizados. Mais
possui renda melhor adquire um apartamento,
recentemente, houve o aumento da construção
no Plano Piloto (Asas Sul ou Norte), em Águas
de edifícios, sobretudo residenciais, em bair-
Claras, Sudoeste, Noroeste, ou uma casa nos
ros antes tradicionalmente horizontais, como
Lagos. Quem não tem mora nas cidades-saté-
Negão de Lima, Nova Vila e Leste Universitá-
lites dentro do próprio DF. Os mais desprovidos
rio. Esses bairros ficam na região centro-leste
moram em Goiás, na região conhecida como
da cidade e próximos da BR 153/060 ou da
Entrono do DF, que é detentora de graves pro-
Perimetral Norte. Sem condição de habitar um
blemas socioespaciais.
imóvel de “alto padrão” na valorizada região
Nota-se que o Distrito Federal tem sofri-
sudeste, essa população encontra essas alter-
do perda, cada vez maior, de população para
nativas mais acessíveis também às margens da
os municípios vizinhos goianos. Entre 1970 e
rodovia. Toda essa oferta habitacional atrai co-
1980, a população do DF cresceu 8,15%; entre
mo moradores pessoas que precisam se deslo-
1980 e 1991, 2,84%; entre 1991 e 2000, 3%; e,
car entre as cidades da RM e para além de seus
entre 2000 e 2010, 1,81%, sendo este o menor
limites, como Aparecida de Goiânia, Senador
crescimento registrado na história do DF. Nes-
Canedo e principalmente Anápolis. Dá origem
se período, a microrregião goiana do Entorno
a uma multiplicidade de fluxos – muitos reali-
do DF foi uma das que mais cresceu, conforme
zando comutação cotidiana – que articulam o
o IBGE. Entre 1991 e 2000, aumentou sua po-
arranjo sob um novo tipo de integração entre
pulação em 72,55% e, entre 2000 e 2010, au-
espaços polinucleados.
mentou 29%. Porém, esses municípios goianos
O mercado imobiliário, como qualquer
acabam por se tornar apenas “cidades-dormi-
outro mercado, acompanha as demandas da
tório”. Essa população, afugentada pelo alto
população pela busca de qualidade. Para isso,
preço da terra do DF e que passou a residir em
adapta-se às novas tendências e aos novos
Goiás, em municípios com pouca infraestrutura,
estilos de consumir. A alta renda gerada pelo
continua trabalhando e desempenhando suas
agronegócio e a migração crescente de pessoas
principais atividades cotidianas no DF, tornan-
que vão para a região, levadas pelos novos
do a mobilidade uma necessidade essencial.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016
593
Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura
As pressões por moradias populares no
Cidade Ocidental, todas goianas. Pela BR 060,
DF são crescentes, elevando as ocupações ir-
a expansão de Samambaia tende a se unir com
regulares. No início do planejamento do DF,
Ceilândia (DF), ultrapassar os limites do DF e
foram destinadas nas cidades-satélites áreas
alcançar Águas Lindas de Goiás, que é umas
para assentar a população que não tivesse
das cidades que apresentou o mais elevado
condição para ocupar o Plano Piloto. Anos de-
crescimento demográfico nas últimas décadas.
pois o Governo do Distrito Federal (GDF) con-
Os empreendimentos que surgem na BR 040
tinuou com esses programas, que, entre 1989
são mais populares, como os decorrentes do
e 1994, deram origem às regiões administra-
Programa Minha Casa Minha Vida, voltados
tivas de Paranoá, Santa Maria e Samambaia.
para segmentos de baixa renda ou de classe
Eram regiões distantes do Plano Piloto. Para
média. Na BR 060, surgem os condomínios de
os mais ricos, o GDF criou o Sudoeste, prati-
alto padrão.
camente anexo à Asa Sul – separados apenas
Pode-se afirmar que uma das forças que
pelo Parque da Cidade e Águas Claras, anexo a
impulsiona a expansão e o mercado imobiliá-
Taguatinga e não tão distante da Asa Sul. Hoje
rio do DF é a presença de funcionários públicos
essas regiões se encontram totalmente ocupa-
de renda elevada, ligados ao Governo Federal,
das. Mesmo Samambaia, que de início era vol-
como também de executivos de empresas ter-
tada para baixa renda, experimenta uma verti-
ceirizadas. Pelo fato de Brasília concentrar um
calização que tem alterado completamente o
relevante polo de serviços, também estimula
ambiente. Até meados dos anos 2000, ela po-
os produtores rurais, assim como ocorre em
deria ser comparada a uma favela. Localizada
Goiânia, a buscarem a capital federal como
bem na entrada de Brasília, para quem chega
um bom lugar para residência de suas famílias
de Goiânia ou Anápolis, sua arquitetura era
e, com isso, trazem para seu território a renda
basicamente composta por casebres de pape-
do agronegócio.
lão ou madeira, cobertos de palha ou telha de
Isso é mais antigo em Goiânia, onde a
amianto, e o que mais chamava a atenção era
dinâmica já é toda voltada para a lógica do
o amontoado de fios elétricos e antenas de TV.
agronegócio. Inicialmente a cidade era habi-
Hoje o cenário é completamente diferente. A
tada por fazendeiros locais; proprietários que,
entrada do empreendedorismo imobiliário em
mesmo possuindo fazendas no interior do Es-
Samambaia afastou a população pobre e alte-
tado ou no Pará, Mato Grosso ou Tocantins,
rou o estilo arquitetônico do bairro, tornando-
viviam em Goiânia com suas famílias. Assim, a
-o praticamente uma extensão dos valorizados
renda gerada nas fazendas era empregada na
Águas Claras e Taguatinga.
cidade, desenvolvendo nela o setor de serviços,
Mais recentemente, nota-se a formação
fundamentalmente educacional e de saúde, e o
de uma nova expansão urbana no DF, também
comércio varejista, e tornando-a referência pa-
em direção a Goiás. Uma nova conurbação, ao
ra grande parte do centro-norte brasileiro. As-
longo da BR 040, tende a se formar entre Santa
sim, Goiânia tornou-se uma forte centralidade
Maria (DF), Valparaíso de Goiás, Novo Gama e
com grande região de influência. Hoje, os ricos
594
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016
Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia
pecuaristas goianos são os investidores do se-
nessas cidades e modificou cada vez mais suas
tor imobiliário local, seja na aquisição de imó-
realidades. Ademais, desencadeou um efeito
veis seja na parceria com os capitais externos.
dominó de valorização do solo e de desbrava-
Também em Goiânia houve valorização
mento de novas periferias, dando maior den-
da terra, e o crescimento dos empreendimen-
sidade e estendendo a continuidade da área
tos voltados às pessoas de maior renda fez
construída que interliga essas aglomerações e
com que a classe média se afugentasse para
dá o conteúdo de uma unidade espacial.
os arredores da cidade. Aparecida de Goiânia e
Observa-se, na análise dessas três
Senador Canedo foram os municípios que mais
aglomerações altamente urbanizadas, que o
receberam população e igualmente podem ser
empreendedorismo urbano, considerado um
enquadrados como “cidades-dormitório”. A
importante negócio capitalista, passou a admi-
valorização do preço da terra na capital permi-
nistrar as cidades como se fossem empresas,
tiu que famílias comprassem dois ou mais imó-
tornando secundários os interesses apenas
veis em áreas menos valorizadas e elevassem o
locais em função de se tornarem negócios
patrimônio familiar. Dessa maneira, cresceram
globais; a serem vendidas como mercadoria,
os centros menores ao redor de Goiânia, como
“sobretudo uma mercadoria de luxo, destinada
ocorreu em Brasília.
a um grupo de elite de potenciais comprado-
Anápolis possui dinâmica diferente,
res: capital internacional, visitantes e usuários
mesmo tendo seu perímetro urbano em con-
solúveis” (Vainer, 2000, p. 83). Como merca-
tínua valorização, pois a cidade sempre apre-
doria, a cidade passa a buscar maior competi-
sentou forte posição comercial. A instalação
tividade na atração de investimentos públicos
de novas indústrias e mais recentemente os
e privados, que sejam capazes de torná-la um
preparativos para a implantação da Platafor-
espaço “eficiente” para a propagação e repro-
ma Logística Multimodal de Goiás atraíram
dução do capital. Os agentes privados, atuan-
nova leva de migrantes, ampliando a demanda
do com respaldo da política urbana praticada
por áreas de moradia, aumentando ainda mais
nas cidades, são os maiores beneficiados des-
os preços da terra e fazendo surgir na cidade
sa realidade. Novos espaços se tornam, cada
uma verticalização que não era vista até mea-
vez mais, subordinados à dinâmica imposta
dos da década passada.
pelo mercado imobiliário.
Tanto em Goiânia como em Anápolis ou
Esse processo de reprodução do espaço
Brasília, a pujança do mercado imobiliário, mo-
pode parecer contraditório com o sentido no
tivada pela renda das fazendas das famílias lo-
qual Goiânia e Brasília foram planejadas – den-
cais, agora inseridas na lógica do agronegócio,
tro dos pressupostos da cidade ideal. Porém, no
a chegada de novas empresas e a abertura de
sistema capitalista, mesmo uma cidade plane-
novos postos de trabalho públicos têm levado
jada não está isenta de sofrer as interferências
à região novos hábitos e tendências de morar,
de um urbanismo guiado por ações políticas,
alterando a mentalidade local e mantendo ele-
econômicas e técnicas. O território urbano é
vado o preço da terra. Um novo urbano surgiu
fragmentando, tornando o local de habitar um
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Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura
“fetiche”, definindo, desse modo, a relação
Nas aglomerações metropolitanas de Brasília
social entre coisas, mais real do que entre ho-
e de Goiânia e na própria cidade de Anápolis,
mens (Marx, 2006).
esse modelo se apresenta com todas as suas
Nas cidades analisadas, as administra-
peculiaridades, estreita continuamente o fluxo
ções atuam na promoção da imagem de “efi-
de relações entre elas e as faz inserir-se em um
ciência administrativa” (Compans, 2005), o
arranjo espacial.
que favorece uma enorme adesão social a esse
Na contemporaneidade, a expansão da
modelo de gestão do urbano (Sánchez, 2003).
ocupação urbana apresenta características de
Tal modelo de empreendedorismo urbano –
diversificação socioeconômica, porém segue
apontado nas cidades analisadas – impulsiona
associada ao valor da terra e a projetos imo-
o surgimento de uma hierarquia de espaços
biliários altamente especulativos, com as áreas
na cidade, qualificados pela dotação de inves-
incorporadas demarcando uma expansão peri-
timentos públicos e privados, favorecendo o
férica, permeada por vazios urbanos mantidos
surgimento de um terciário qualificado e, para-
como reservas de valor. Consolida-se a partir
lelamente, de especificidades no modo de viver
da ação dos vários capitais, com ênfase no
dos habitantes (Borja, 1997). Hierarquização da
imobiliário, pela dispersão ou relocalização de
cidade que cria uma fragmentação, pois gera
atividades econômicas e expansão da ocupa-
valorização diferenciada para cada parte dos
ção residencial, que, no caso brasileiro, associa
espaços urbanos, pautada pelo padrão de con-
grandes condomínios fechados ou conjuntos
sumo (Harvey, 2005).
habitacionais de baixa renda a ocupações informais nas franjas das cidades, resultantes da
segregação e da exclusão dos mercados for-
Morfologias expandidas
e o debate teórico e conceitual
mais de moradia.
São relevantes a distância cada vez maior
das novas ocupações e a elevação da mobilidade, não só no interior dos aglomerados, criando
A dinâmica de expansão da ocupação urbana,
laços de interação entre eles. No debate teórico
com a presença de capitais do setor imobiliá-
atual, essa transformação – metamorfose pa-
rio externos à região, e o desbravamento de
ra alguns autores (Lencioni, 2011; De Mattos,
novas áreas, distantes das já consolidadas,
2014) – pela qual passa o espaço urbano se
para construção de unidades para diversos
funda na ampliação geográfica do processo
segmentos de renda, caracterizam o modo
de acumulação desse estágio do capitalismo.
capitalista de produção do espaço urbano na
Uma ampliação que induz a formação de mor-
contemporaneidade. Elemento fundamental
fologias urbanas descontínuas, dispersas, sem
nesse processo são as vias de circulação – ro-
limites precisos, porém muito mais articuladas
dovias ou vias urbanas – e o massivo uso do
e densas. Essas morfologias são engendradas
automóvel para garantir a conexão entre o
pela dispersão de processos produtivos, empre-
lugar da moradia, do trabalho e do consumo.
sas, filiais, fornecedores, que acionam o capital
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Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia
imobiliário a ativar negócios na produção imo-
de reflexão nos vários continentes (Ciccolella e
biliária, e de infraestruturas indispensáveis à
Vecslir, 2010; De Mattos, 2014; Lencioni, 2011;
valorização do espaço urbano.
Pradilla Cobos et al., 2010; Scott et al., 2001).
Abre-se, pois, um novo ciclo capaz de
Alguns aspectos particulares demarcam
enfrentar as contradições que comprometem a
o caso brasileiro. O padrão de expansão dos
reprodução do capital, fundado na importância
aglomerados urbanos em direção a áreas ad-
dos negócios oriundos da produção imobiliária
jacentes, interconectando pequenos centros
e das condições de infraestruturas indispensá-
pree-existentes e integrando seus territórios
veis para que se efetivem a metropolização e a
graças a novas capacidades comunicacionais,
valorização do espaço metropolitano.
configura desde simples eixos bipolarizados
até complexos macrometropolitanos. O arranjo
A forma que a metrópole assume, de
maior escala territorial, ao expandir sua
região, é central para a acumulação porque ela vem acompanhada da possibilidade de oferecer sobrevida às relações capitalistas, uma vez que a valorização imobiliária que acompanha o espraiamento territorial da metrópole se constituiu numa
das principais estratégias para a produção
e concentração da riqueza social, uma vez
que o predomínio da descontinuidade é
estratégico para a reprodução do capital.
A sua forma descontínua, por assim dizer,
é a expressão, no limite último, da força
desmedida do espaço-mercadoria, instrumentalizado pela valorização imobiliária
do capital. [Essa] se coloca como possibilidade de [...] superar o estrangulamento
que pode comprometer o fôlego necessário para dar continuidade ao processo
capitalista de desenvolvimento. (Lencioni,
2011, pp. 55-56)
Brasília-Anápolis-Goiânia encontra completa
consonância com as análises e considerações
teóricas sobre os processos contemporâneos
da metropolização, com forte presença do capital imobiliário nas configurações morfológicas urbanas e dos aglomerados. Porém, observa-se nele um peso ainda mais expressivo da
ação do Estado (seja por meio de investimentos, seja pela adequação normativa), como indutor da expansão urbana e regional, e uma
crescente oferta de consumidores de novas
áreas urbanas, particularmente associada ao
entorno, dedicado ao agronegócio – gerador
de elevados excedentes.
Haddad (2011), em sua dissertação sobre
o recorte objeto de análise, o denomina “eixo
Goiânia-Anápolis-Brasília”, considerando a relação entre espaço e transportes. Admite que,
desde a escola clássica da análise espacial,
Essas aglomerações “espichadas” ao
representada por Von Thunen, Losch, Weber e
longo das vias de circulação, quando próxi-
outros, atribui-se ao transporte e à acessibili-
mas, desenvolvem intensa conexão entre si,
dade a função de definir e explicar configura-
estimulando a alocação, nas vias de interli-
ções territoriais. Perroux (1964), ao tratar do
gação, de serviços e posteriormente de novas
conceito de polos de desenvolvimento, afirma
áreas de moradia, consumo e lazer. Em pouco
que eles não existem de forma isolada, mas se
tempo dão lugar a arranjos espaciais caracte-
ligam à sua região por canais em que se propa-
rísticos do processo de metropolização con-
gam preços, fluxos e antecipações. Essa propa-
temporâneo. Esse processo vem sendo objeto
gação dá origem ao que ele chama de eixo de
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Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura
desenvolvimento, salientando que o eixo não é
que potencializem o desenvolvimento. Funcio-
apenas uma estrada, mas que, “ligado à estra-
nam como atores decisivos do novo fenômeno
da, deve haver todo um conjunto de atividades
de desenvolvimento, com influência crescente
complexas que indicam orientações determina-
no mundo globalizado. Lencioni (2006) aplica
das e duráveis de desenvolvimento territorial e
a expressão cidade-região para o caso do com-
dependem, sobretudo, da capacidade de inves-
plexo macrometropolitano de São Paulo; Soa-
timento adicional” (Andrade, 1987, p. 66).
res (2012), para a articulação da aglomeração
Tanto na visão de Perroux como de vários
6
outros autores, um eixo não pode prescindir
metropolitana de Porto Alegre às aglomerações
urbanas circunvizinhas.
de bens que o complementem, como energia,
Especificamente em relação ao caso bra-
transporte, crédito e capacidade técnica. Não
sileiro, Moura e Lira (2011) identificaram um
é apenas uma estrada, mas pressupõe deter-
conjunto de configurações expandidas e arti-
minado corte espacial, com a presença de um
culadas ou “arranjos espaciais”. São arranjos
conjunto de atividades complexas que indicam
diversos que compõem, desde simples aglome-
desenvolvimento territorial. Portanto, pode-se
rações urbanas interconectadas, até aglomera-
afirmar que um eixo de desenvolvimento sur-
ções metropolitanas expandidas descontinua-
ge em um espaço onde estejam presentes: uma
mente em direção a aglomerações urbanas ou a
cadeia de núcleos urbanos, de diferentes tama-
outras aglomerações metropolitanas, algumas
nhos, situados ao longo das vias de transporte;
conformando eixos, como o recorte em análise
vias de transporte de alta capacidade, como
neste trabalho. Os autores apontam que esses
rodovias duplicadas, ferrovias modernas e in-
arranjos se estruturam cada vez mais a partir
fovias; cabos de fibra ópticas, telefonia, rede
de relações em rede, sob múltiplas escalas e
de computadores; e um sistema de transporte
muitos sujeitos atuantes, e pela convergência
adequado, que favoreça a dinâmica econômica
das relações verticais e horizontais, que provo-
dos centros urbanos, principalmente no tocan-
cam uma forte hibridização da condição urba-
te à localização das mais diversas atividades
na e regional. Assim, extrapolam a dimensão
industriais. Todas essas leituras destacadas se
da cidade e da aglomeração e incorporam, no
ajustam à noção do arranjo espacial, que incor-
mesmo fato urbano-metropolitano, a dimensão
pora a noção de eixo e que se materializa no
regional, o que torna sua natureza complexa e
recorte espacial analisado.
peculiar (Moura, 2009). Nesse sentido, há um
Ajustam-se também à concepção de cida-
entrecruzamento entre as noções de unidades
de-região (Scott et al., 2001), que faz referência
concentradoras formadas por aglomerações
a uma categoria espacial que absorve desde
urbanas ou metropolitanas, em sua versão des-
aglomerações metropolitanas comuns, domina-
contínua e fortemente estruturada por eixos de
das por um núcleo muito desenvolvido, até uni-
circulação que garantem comutação e conecti-
dades geográficas policêntricas, compondo ter-
vidade, e a noção de desenvolvimento regional,
ritórios diversos e desiguais, morfologias que
para a qual a configuração axial articulando
transcendem espacialmente o âmbito urbano
aglomerações vem se tornando objeto de aná-
compacto ou disperso e que exigem estratégias
lise da economia.
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Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia
O arranjo Brasília-Anápolis-Goiânia in-
desempenho econômico e social do Centro-
sere-se entre aqueles apontados com natureza
-Oeste brasileiro, que sustenta a divisão social
urbano-regional, pois se caracteriza como uni-
do trabalho em sua perspectiva hegemônica.
dade concentradora de população, relevância
Alguns municípios foram beneficiados pela
econômico-social e infraestrutura científico-
inversão de capitais (estatais e privados), en-
-tecnológica, com elevada densidade urbana,
quanto outros, longe de se qualificarem em
forte articulação regional e extrema complexi-
condições técnicas, científicas, institucionais e
dade, devido à rede de fluxos multidirecionais,
culturais para participar dessa dinâmica e con-
particularmente de pessoas, e pela multiplici-
tribuir no processo de transformação, perma-
dade escalar. Participa de modo mais integrado,
necem à margem do processo. Tal comporta-
nos âmbitos estadual, nacional e internacional,
mento reforça a hipótese de que a presença do
como elo de inserção nos estágios mais avan-
Estado foi imprescindível para a sustentação
çados da divisão social do trabalho e represen-
do desenvolvimento regional, e que se tornam
ta o principal centro de decisão política e insti-
necessários grandes empreendimentos sociais
tucional do País. Nele, os padrões de expansão,
e de infraestrutura situados fora do âmbito da
com forte presença dos excedentes gerados pe-
iniciativa do mercado para conquistar maior
lo agronegócio regional, cada vez mais conso-
igualdade entre os municípios.
lidam as características descritas pela teoria e
A dinâmica do agronegócio no Centro-
aproximam a configuração espacial resultante
-Oeste, especialmente no estado de Goiás, e
de uma grande região urbana com ampla ex-
os empregos gerados pelo governo no Distrito
tensão territorial no Planalto Central do Brasil.
Federal fizeram nascer um terciário qualificado que atraiu para a região moradores de alto
padrão, impulsionando a oferta de imóveis,
Considerações finais
serviços e equipamentos comerciais que promoveram a expansão da área ocupada e a va-
A análise realizada detalha o processo de ex-
lorização do solo. Pode-se inferir que o antigo
pansão urbana e a valorização de três cidades
capital rural acabou reproduzindo e se tor-
e suas aglomerações, Anápolis, Brasília e Goiâ-
nando o capital investidor de novos imóveis
nia, e mostra que suas dinâmicas correspon-
que, associado ao capital externo, mudam o
dem a um processo comum, presente no modo
cenário e o modo de habitar nessas cidades.
de produção capitalista da cidade. Avança nes-
O local de morar tornou-se símbolo de status.
se entendimento ao mostrar que esse processo
O poder público, por sua vez, propiciou ou
de expansão articula as três aglomerações e
permitiu que a iniciativa privada provesse os
condiz com um novo momento de reprodução
grandes equipamentos que valorizaram o es-
e acumulação do capital, que vem dando ori-
paço urbano, atraindo consumidores cada vez
gem a uma urbanização muito mais estendida,
mais exigentes.
formatada em arranjos complexos.
É certo que nem só esses novos morado-
O arranjo em análise corresponde à
res consomem nessas cidades. A diversificação
porção mais concentradora e com melhor
da oferta de moradias, para vários padrões de
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016
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Marcos Bittar Haddad, Rosa Moura
renda e diferentes perfis de consumo, também
configuração do arranjo espacial, pois ativa a
se faz presente na expansão periférica e na
inversão de capitais e estimula a circulação e
formação de cidades-dormitório nas metrópo-
a mobilidade entre os centros, articulando-os
les analisadas. Conclui-se que a riqueza gera-
espacialmente em uma unidade, fortalecida
da no entorno vem induzindo a qualificação e
pelas várias formas de conexão e interação en-
valorização dos espaços urbanos, sem romper
tre lugares, atividades e pessoas. No entanto,
as condições de desigualdade existentes, pelo
as várias escalas institucionais (Ride, RM, RAs,
contrário, acentuando-as ao criar espaços cada
entre outras) não permitem que se produza um
vez mais fragmentados.
território, tornando muito mais complexa e de-
Ao mesmo tempo, essa riqueza é
um dos elementos a impulsionar a própria
safiadora qualquer tentativa de gestão desse
amplo espaço articulado.
Marcos Bittar Haddad
Companhia Metropolitana de Transportes Coletivo, Região Metropolitana de Goiânia. Goiânia,
GO/Brasil.
[email protected]
Rosa Moura
Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada, Programa Nacional de Pós-Doutorado. Curitiba, Paraná/Brasil.
[email protected]
Notas
(*) Este ar go dá con nuidade e resgata alguns conteúdos das análises sobre o arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia, iniciadas e debatidas no XIII Seminário Internacional da
Red Iberoamericana de Inves gadores sobre Globalización y Territorio (Salvador, 2014). Foi
selecionado para apresentação e publicação nos anais do 55º Congreso Internacional de
Americanistas, Simpósio “Difusão do agronegócio e novas dinâmicas socioespaciais na América
La na”(San Salvador, 12 a 17 de julho de 2015).
(1) Uma discussão sobre a configuração de arranjos espaciais e uma revisão da literatura per nente
podem ser encontradas em Moura (2009).
(2) Na opinião de alguns autores, como Moraes (2006), Paviani (1991) e Gouvêa (1991), Brasília já
nasceu segregando população.
(3) O primeiro shopping do Centro-Oeste é o Conjunto Nacional de Brasília, cuja construção se iniciou
em 1971.
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Dinâmicas de expansão do arranjo urbano-regional Brasília-Anápolis-Goiânia
(4) Redes como Carrefour e Walmart, ambas internacionais e Tend Tudo,capital regional, e redes
nacionais de hotéis são estruturas instaladas nessa região, consolidando sua centralidade para
compras, lazer e moradia.
(5) Tanto a área escolhida para a instalação do autódromo quanto a área para o estádio foram
“cedidas” pela família proprietária das terras. Porém, tal cessão foi fruto de negociação com o
poder público, às custas de acerto de contas de tributos devidos.
(6) Bordo (2004), Hernández (1998), Nasser (2000), Pontes (1974), Souza (1993), Sposito e Matushima
(2002).
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Texto recebido em 18/ago/2015
Texto aprovado em 19/fev/2016
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, pp. 583-603, jul 2016
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Instruções aos autores
ESCOPO E POLÍTICA EDITORIAL
A revista Cadernos Metrópole, de periodicidade semestral, tem como enfoque o debate de
questões ligadas aos processos de urbanização e à questão urbana, nas diferentes formas que assume na realidade contemporânea. Trata-se de periódico dirigido à comunidade acadêmica em geral,
especialmente às áreas de Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional, Geografia,
Demografia e Ciências Sociais.
A revista publica textos de pesquisadores e estudiosos da temática urbana, que dialogam
com o debate sobre os efeitos das transformações socioespaciais no condicionamento do sistema
político-institucional das cidades e os desafios colocados à adoção de modelos de gestão, baseados na
governança urbana.
CHAMADA DE TRABALHOS
A revista Cadernos Metrópole é composta de um núcleo temático, com chamada de trabalho
específica, e um de temas livres relacionados às áreas citadas. Os textos temáticos deverão ser encaminhados dentro do prazo estabelecido e deverão atender aos requisitos exigidos na chamada; os textos
livres terão fluxo contínuo de recebimento.
Os artigos podem ser redigidos em língua portuguesa ou espanhola. Os artigos apresentados
em outros idiomas serão traduzidos para o português.
AVALIAÇÃO DOS ARTIGOS
Os artigos recebidos para publicação deverão ser inéditos e serão submetidos à apreciação
dos membros do Conselho Editorial e de consultores ad hoc para emissão de pareceres. Os artigos
receberão duas avaliações e, se necessário, uma terceira. Será respeitado o anonimato tanto dos
autores quanto dos pareceristas.
Caberá aos Editores Científicos e à Comissão Editorial a seleção final dos textos recomendados
para publicação pelos pareceristas, levando-se em conta sua consistência acadêmico-científica, clareza de ideias, relevância, originalidade e oportunidade do tema.
COMUNICAÇÃO COM OS AUTORES
Os autores serão comunicados por e-mail da decisão final, e a revista não se compromete a
devolver os originais não publicados.
OS DIREITOS DO AUTOR
A revista não tem condições de pagar direitos autorais nem de distribuir separatas. Cada autor
receberá dois exemplares do número em que for publicado seu trabalho.
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2014-3
NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS ARTIGOS
Os trabalhos devem conter:
• título, em português, ou na língua em que o artigo foi escrito, e em inglês;
• texto, digitado em Word, espaço 1,5, fonte arial tamanho 11, margem 2,5, tendo no
máximo 25 (vinte e cinco) páginas, incluindo tabelas, gráficos, figuras, referências bibliográficas; as
imagens devem ser em formato TIF, com resolução mínima de 300 dpi e largura máxima de 13 cm;
• resumo/abstract de, no máximo, 120 (cento e vinte) palavras em português, ou na língua em
que o artigo foi escrito, e outro em inglês, com indicação de 5 (cinco) palavras-chave em português, ou
na língua em que o artigo foi escrito, e em inglês;
• referências bibliográficas, conforme instruções solicitadas pelo periódico.
Os trabalhos submetidos à Cadernos Metrópole devem ser enviados pelo sistema, da seguinte
maneira: (1) se o/s autor/es não possuir/em cadastro ainda, favor clicar aqui; (2) no cadastro, preencher
principalmente os seguintes campos: nome, e-mail, instituição (vínculo), e no campo “Resumo da Biografia” definir sua titulação mais alta, lugar de trabalho e função de cada um; (3) depois de cadastrado, o autor deve acessar o sistema clicando aqui.
Importante:
• A autoria NÃO DEVE constar no documento. As informações a seguir devem ser preenchidas
no passo 3 da submissão (Inclusão de Metadados): nome do autor, formação básica, instituição de
formação, titulação acadêmica, atividade que exerce, instituição em que trabalha, unidade e departamento, cidade, estado, país, e-mail, telefone e endereço para correspondência.
• É imprescindível o envio do Instrumento Particular de Autorização e Cessão de Direitos Autorais, datado e assinado pelo(s) autor(es). O documento deve ser transferido no passo 4 da submissão
(Transferência de Documentos Suplementares). Em caso de dúvida, consulte o Manual de Submissão
pelo Autor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
As referências bibliográficas, que seguem as normas da ABNT adaptadas pela Educ, deverão ser
colocadas no final do artigo, seguindo rigorosamente as seguintes instruções:
Livros
AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora.
Exemplo:
CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Capítulos de livros
AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZADOR
(org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora.
Exemplo:
BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em
Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar.
Artigos de periódicos
AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do
periódico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo.
Exemplo:
TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos
Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28.
Trabalhos apresentados em eventos científicos
AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, local de
realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final.
Exemplo:
SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle
social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL
ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília,
MPAS/ SAS, pp. 193-207.
Teses, dissertações e monografias
AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição.
Exemplo:
FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de
gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de
mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.
Textos retirados de Internet
AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso.
Exemplo:
FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em: 8 set 2005.
Rede Observatório das Metrópoles
Estado
Instituição
Coordenador
Baixada Santista
Universidade Federal de São Paulo
Marinez Villela Macedo Brandão
Belém
Universidade Federal do Pará
Juliano Ximenes Pamplona
Belo Horizonte
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
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Brasília
Universidade de Brasília
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Curitiba
Universidade Federal do Paraná
Olga Lucia C. de Freitas Firkowski
Fortaleza
Universidade Federal do Ceará
Maria Clélia Lustosa Costa
Goiânia
Universidade Federal de Goiás
Celene Cunha Monteiro A. Barreira
Maringá
Universidade Estadual de Maringá
Ana Lucia Rodrigues
Natal
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Maria do Livramento M. Clementino
Porto Alegre
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Recife
Universidade Federal de Pernambuco
Maria Angela de Almeida Souza
Rio de Janeiro
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Salvador
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São Paulo
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Vitória
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