O Mito americano: utopias e viagens imaginárias desde a

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O Mito americano: utopias e viagens imaginárias desde a
O Mito americano: utopias e viagens
imaginárias desde a Renascença*
Raymond Trousson
Tradução de Emerson Tin
Rayrnond Trousson, professor emérito da Université libre de Bruxelles,
publicou inúmeras obras dedicadas à história das letras e das idéias no
século das Lumières. No campo da utopia, é o autor de Voyages aux Pays
de Nu//e part (3e éd. 1999), de D'Utopie et d'utopistes (1998), de Reli gions
d'Utopie (2001) e de Sciences, techniques et utopies. Du paradis à l'enfer
(2003).
*Traduzido a partir do
original em francês "Le
Mythe americain : utopies et
voyages imaginaires depuis Ia
Renaissance".
RAYMOND TROUSSON
' M. Gary et E. Warmington,
Les Explorateurs de Pantiquité,
Paris, 1932, pp. 274-289.
1 Fergusson, Utopias of the
classical world, London, 1975,
2
320
Desde suas origens, a utopia foi terra dos longínquos, temporais
em primeiro lugar, depois geográficos. Quanto ela aparece na Europa
ocidental, em torno do século V antes da nossa era, o mundo é um
espaço fechado, limitado — ou quase — à bacia mediterrânea. Quase
não há mistérios nessa geografia familiar, cem vezes explorada.
Para além reina o desconhecido, domínio, não do humano, mas do
extraordinário ou do monstruoso: terra dos Arimaspes, de que fala
Heródoto, que têm apenas um olho e roubam o ouro guardado pelos
grifos; reino dos gigantes hiperbóreos, já evocados por Píndaro; ilhas
dos Bem-aventurados, em busca dos quais suspira Hesíodol. Talvez
seja porque as lendas da Idade de Ouro deviam preceder a utopia: a
felicidade e o estado ideal se situam, não num outro lugar, mas num
outro tempo, numa infância da humanidade ainda preservada da
corrupção e da decadência.
Esse pequeno mundo da Grécia clássica, detentor das únicas
normas da civilização, explode repentinamente no século IV a. C. com
as conquistas de Alexandre e as explorações de seu almirante Nearco ao
longo das costas da Ásia, do Indo ao Eufrates. Os horizontes recuam;
povos desconhecidos, países ignorados se revelam, e com eles outros
costumes, outras maneiras e outras leis. À evidência incontestada dos
modelos gregos se substituem a dúvida, a consciência das diferenças,
numa palavra, o relativismo. A descoberta da época helenística não
é somente a dum alargamento geográfico, mas a dum outro espaço
mental. Para Aristóteles, tudo o que não era grego era bárbaro, quer
dizer apenas humano; com seu aluno Alexandre soa o dobre do
helenocentrismo2.
Logo, essa perturbação afeta a utopia. Os sucessores de Platão
— Zenão de Cítio, Teopompo de Quíos, Hecateu de Abdera ou
Evêmero — renunciam ao ideal da cidade grega, à sua democracia
herdada de Sólon. Eles sonham agora com vastos continentes regidos
pela lei natural ou submetidos a legislações inéditas, e a Cidade do
Sol de Iâmbulo, uma das fontes de Monis e de Campanella, oferece
já o modelo das narrativas e das grandes construções utópicas da
Renascença.
A esse aspecto da civilização pós-alexandrina, a Idade Média
não acrescentará nada, senão a surda continuidade dum desejo de
perfeição terrestre sem cessar abafado pelo apelo do além. Certamente,
a imaginação medieval gostaria ainda de afagar os longínquos, porém
mais na perspectiva do fabuloso que na duma construção social e
política. A navegação de São Brandão conduz ao paraíso terrestre e
não àUtopi a, e Dante condena o imprudente descobridor Ulisses. De
resto, os espíritos se satisfazem com lendas inacreditáveis divulgadas
pelo De Imagine mundi, de Honorius d'Autun, ou o Imago mundi, de
O MITO AMERICANO: UTOPIAS E VIAGENS IMAGINÁRIAS DESDE A RENASCENÇA
Pierre d'Ailly, cosmografias fantásticas'. No presente, o melhor dos
mundos é projetado no outro mundo.
***
Como não comparar o espanto dos contemporâneos de
Colombo e de Vespúcio com o dos contemporâneos de Alexandre?
Depois do longo sono medieval, a história se repetia, novas terras
surgiam. Em menos de um século, o mundo muda de face e toma
proporções insuspeitas. Sem dúvida as grandes descobertas tiveram
imediatas repercussões econômicas; ativando o tráfico de especiarias,
despertando o interesse do Ocidente pela exploração colonial e o valor
da potência marítima, eles acendem cobiças de que se encontrará o eco
em A Nova Atlântida de Francis Bacon. Entretanto, no que concerne
à utopia, seu impacto será antes de tudo de ordem moral.
O Novo Mundo revelava, com efeito, populações surpreendentes,
que viviam nuas como antes do pecado original, desprezavam o ouro
e os metais preciosos, organizavam-se em comunidades igualitárias e
ignoravam a propriedade. Esses selvagens não eram como sobreviventes
da Idade de Ouro, não escaparam à doutrina cristã da queda? A reflexão
utópica devia se alimentar do novo relativismo histórico ao comparar
às do Ocidente maneiras, leis, organizações sociais tão diferentes;
à lição da Antigüidade, recentemente reencontrada, ajuntava-se a
do homem natural que não podia deixar de oferecer um contraste
sempre mais impressionante à medida em que a Europa sofria cada
vez mais os efeitos da centralização do poder e do fortalecimento
da monarquia4. Pense-se, a esse respeito, na cruel oposição entre
a monarquia inglesa do primeiro livro da obra de Morus e a vida
aprazível dos Utopianos.
A América suscitava enfim uma urgente interrogação sobre o
plano religioso. Esses selvagens sem a Revelação e sem padres deviam
ser considerados como bárbaros e ímpios, ou sociedades justas e
viáveis podiam existir fora da verdade cristã e uma moral florescer fora
dos ensinamentos da Igreja? Se Bacon preferirá se desembaraçar do
problema cristianizando seus Atlântidas por um milagre oportuno,
Morus e Campanella saberão abordar essas delicadas questões.
Entretanto, os utopistas da Renascença não escolheram situar
explicitamente suas ilhas misteriosas nas paragens do Novo Mundo.
Em Monis, Campanella e Bacon, se a América está incontestavelmente
presente — quando não for pela verossimilhança geográfica que autoriza
sua descoberta — ela está aí apenas como filigrana e pelas fontes de
informação.
Certamente, não se poderia exagerar a importância, para
Ver W. M. Babcock,
Legendary Islands of . the Atlantic,
New York, 1922, p. 22; H.
Brunner, Die poetische Insel,
Stuttgart, 1967, p. 31; R
Thévenin, Les Pays légendaires
devant la science, Paris, 1946,
p. 43; F. Bar, Les Routes de
l'autre monde, Paris, 1946, p.
67; E. Gilson, La Philosophie
da Moyen Age, Paris, 1952, pp.
320-322.
G. Atkinson, Les Nouveaux
horizons de la Renaissance
française, Paris, 1935, p. 316.
321
RAYMOND TROUSSON
H. Süssmuth, Studien zur
Utopia des Thomas Morus,
Münster, 1967, pp. 36-71.
'A. L. Morton, L'Utopie
anglaise, Trad. par J. Vaché,
Paris, 1964, p. 46; Th. More,
Utopia, em: The Complete
Works ofThomas More, ed. by
Ed. Sutz and J. H. Hexter,
New Haven and London, Yale
University Press, 1965, t. IV, p.
cbazix. Não se vê absolutamente
sobre o que se baseia H.
Süssmuth (op. cit., p. 39) para
excluir esta fonte.
7M. L. Berneri, Journey through
Utopia, London, 1950, p. 59;J.
Servier, op. cit., pp. 135-139.
L. Firpo, "I,a Cité idéale
de Campanella et le culte
du soleil", em Le Soleil à la
8
- Renaissance. Sciences et mythes,
Brtocelles-Paris, 1965, p. 335.
322
Thomas Morus, das fontes antigas: Platão, Tácito, Aristófanes, ,
Luciano de Samósata, Iâmbulo conservado por Diodoro de Sicília
alimentam seu pensamento e lhe fornecem exemploss. Mas não se
poderia também ignorar a ilusão americana, perceptível já na ficção
romanesca. Esse Rafael Hitlodeu que leva a narração, é um dos
vinte-e-quatro homens que Vespúcio deixou em posto, quando de
sua última viagem, na costa do Brasil. Se Monis não dá nenhuma
indicação precisa sobre a localização de Utopia, é claro, entretanto, já
que Hitlodeu regressou pelas índias, que ela se situa em alguma parte
entre as Ilhas espanholas descobertas por Colombo e Vespúcio, e o
país de Catai, sempre obstinadamente procurado pela passagem do
noroeste. Todo o segundo plano geográfico da obra é condicionado
pelas recentes descobertas.
De resto, as leituras de Morus deviam orientar sua atenção em
direção ao Novo Mundo. Sem dúvida ele conheceu o De rebus oceanicis
et orbe novo, de Pietro Martire d'Anghiera, surgido em 1511, onde ele
podia encontrar uma descrição idealizada da vida dos indígenas das
Antilhas e uma análise de sua religião natural'. Sem falar das cartas
em que Colombo descreveu povos pacíficos, ignorando a propriedade
e o amor do lucro (Epistula de insulis de novo repertis, 1493), ele leu as
Quattuor navigationes de Vespúcio publicadas em 1507 na seqüência
da Cosmographia introductio, de Wadseemuller, e Morus precisa ele
mesmo-que se "lê hoje a relação quase por toda a parte".
Se nada permite identificar os Utopianos com as populações
da América, não é entretanto nada duvidoso que os modelos antigos
de Morus se enriqueceram dos exemplos fornecidos pelas relações de
viagens: a abolição da propriedade privada, a simplicidade das maneiras,
o hedonismo dos Utopianos, seu Comunismo, a amável acolhida que
eles reservam aos estrangeiros são traços que lembram as narrativas
das descobertas. Arriscou-se mesmo a sublinhar as semelhanças
entre a organização da Utopia e o arranjo racional e geométrico
do império inca. Cortez e seus conquistadores não empreenderam
ainda a conquista no momento em que Monis redige sua obra. Mas
havia Espanhóis em Cuba desde 1501 e eles teriam podido recolher
informações transmitidas na Europa pelos marinheiros'. Se Utopia não
é ainda terra americana, é contudo, além dos nevoeiros de Amaurota,
o continente americano que, já, nimba, ao menos em parte, o sonho
utópico dos tempos modernos.
O traço da América nas outras grandes utopias não será menos
tênue. A Cidade do Solde Campanella está próxima também das fontes
antigas, às quais se acrescentam a Utopia de Morus e a experiência
pessoal da vida monástica8 ; não se pode entretanto deixar de observar
que o diálogo que a constitui se instaura entre um cavaleiro da Ordem
O MITO AMERICANO: UTOPIAS E VIAGENS IMAGINÁRIAS DESDE A RENASCENÇA
de Malta e "um genovês marinheiro de Colombo" e que Campanella
cita "Hernando Cortez, que introduziu o cristianismo no México".
Além disso, ele leu as Relazioni universali (1595-1596) de G. Botero,
onde ele pode encontrar numerosas informações concernentes ao culto
do sol entre os indígenas do México e do Peru assim como o modelo
da confissão pública do magistrado supremo; quanto ao tempo que se
dirige ao centro da Cidade, ele lembra por muitos detalhes o templo
mexicano de Vitzilpuitzli, com suas quatro portas desembocando
em quatro estradas bem pavimentadas, tal como o descreve Botero 9.
Esta presença em filigrana se reencontra em A Nova Atlântida (1627).
Como em Morus, a fabulação mesma se ressente do clima das grandes
viagens e das descobertas. Os detalhes sobre o navio lançado fora de sua
rota por ventos contrários e derivando no Pacífico norte, o esgotamento
da tripulação, a animação do porto de Bensalem, tudo lembra, nesse
quadro da vida intensa dos oceanos, que o entusiasmo não se embotou.
Bacon conheceu e utilizou a coletânea de Hakluyt (The Principal
navigations, voyages and discoveries of the English nation, 1589)10, e
o navio de seus exploradores partiu do Peru. Não é ele também que
designa a América como a Grande Atlântida, outrora devastada por
um dilúvio que lançou os sobreviventes de volta ao estado selvagem
em que os descobriram os viajantes modernos?
Esses detalhes são pouca coisa e, contudo, significativos. Se o
continente americano não está nunca no primeiro plano, é entretanto
sua descoberta que favorece a ressurreição do gênero no século XVI.
As relações de viagens, as descrições das maneiras e dos costumes, o
relativismo histórico, moral e religioso ao qual convém as descobertas
estão constantemente no segundo plano da reflexão utópica, eles a
relançam e a fertilizam. Em Rabelais ainda, no início do quarto livro,
Pantagruel partirá em busca do oráculo na direção de Catai, sempre
pela rota noroeste, que tinha sido aquela de Cabot e de Cartierli e que
é também a do país da Deusa Garrafa, outra terra utopiana.
Enfim a América, terra sem passado, tábula rasa ideal para
todas as experiências, será muito cedo também terra de eleição das
tentativas de realizações utópicas. Sem falar dos esforços de Las Casas
no Peru para organizar os indígenas", Vasco de Q_uiroga, bispo de
Michoacan no México em 1535, tentará estabelecer aí asilos segundo
um programa inspirado em Thomas Morus", e ver-se-ão multiplicarse, a partir do século seguinte, os ensaios utópicos sobre o território
do Novo Mundo. Já a América figura muito como um sonho ainda
indefinido na imaginação dos utopistas.
O século XVII por seu turno desenvolve uma verdadeira paixão
pelas relações longínquas. Racionalismo e ceticismo encontram um
alimento de primeira ordem nisso que René Pomeau nomeia uma
9 Ver Thomas Campanella,
La Cité du Soleil, éd. par L.
Firpo, Geneve, Droz, 1972, pp.
xxxviii, 3 nota 4, 45 nota 105.
") V. Dupont, L'Utopie et
le roman utopique dans Ia
littérature anglaise, Cahors,
1941, p. 148.
"G. Chinard, L'Amérique et le
réve exotique duns la littérature
fiançaise au XVI& et au XVIIIe
sue/es, Paris, 1934, pp. 49-79.
12 Cf. M. Brion, Bartholomé
de Las Casas, père des Indiens,
Paris, 1927; M. Bataillon,
Etudes sur Barholomé de Las
Casas, Paris, 1965.
A. Cioranescu, L'Avenir du
passé. Utopie et littérature, Paris,
1972, pp. 68-69.
323
RAYMOND TROUSSON
" G. Chinard, L'ilmérique
et /e réve exotique, p. 189. A
única biblioteca de Chapelain
comporta uma centena de obras
sobre a América e o exotismo
do Novo Mundo se desenvolve
a ponto de haver episódios
americanos e uma intriga
mexicana até no Polexandre de
Gomberville.
" Sobre o papel e a importância
desses relatos de viagens, ver:
G. Chinard, L'Amérique et k
rêve exotique, pp. 193 194; G.
Atkinson, The Extraordinary
-
voyage in Frená literature
bOre 1700, New York, 1920,
pp. 22 24; The Extraordinary
voyage in French literature from
1700 to 1720, Paris, 1922, pp.
-
12-13; W. P. Friedrich, "The
Image of Australia in French
literature from the XVIIth to
the 30Cth centuries", Mélanges
de littérature comparée et de
philologie offerts à M. Brahmer,
Warszawa, 1967, pp. 220 223;
-
ilustralia in Western imaginative
prose writings, 1600-1960,
Chapei Hill, 1967; A. Rainaud,
Le Continent austral, hypotheses
et détouvertes, Paris, 1893.
"Ver L. Baudin, L'Empire
capitaliste des Incas, Paris, 1928.
17 G. Atkinson, The
Extraordinary voyage in French
literature befbre 1700, p. 53.
324
"geografia filosófica", de que eles continuam a deduzir uma perpétua
lição de relativismo com respeito às maneiras e a uma religião
dogmática. La Bruyère não se enganava, quando assinalava, no capítulo
"Dos Espíritos fortes": "Alguns acabam por se corromper por longas
viagens, e perdem o pouco de religião que lhes restava: eles vêem dia
a dia um novo culto, diversas maneiras, diversas cerimônias..."
Ao longo de todo o século, os analistas da conquista do México
e do Peru são publicados e traduzidos, as obras consagradas à Nova
França sobem a várias centenas e contar-se-ão quase tantas quantas as
Antilhas14. E, contudo, não mais que no século XVI, os utopistas não
situam nas Américas suas sociedades ideais. É que o Novo Mundo,
já demais conhecido, talvez, sofre agora a concorrência da ilusão da
Terra austral, em que se devia acreditar até as navegações de Cook em
1772. Numerosos viajantes, desde Marco Polo, Gonneville, Queirós,
até Pelsart e Tasm'an, acreditam com efeito na existência duma Terra
australis incognita. Seria todavia errôneo acreditar que a América
cessa de vez de fornecer informações à especulação utópica. Então
mesmo que as cidades ideais se situem de preferência nas fabulosas
paragens da Terra austral, são os costumes, as maneiras, a história, a
religião dos povos americanos que continuam, mais do que nunca, a
servir de modelos.
Num período duns quarenta anos, três utopistas vão com efeito
utilizar elementos emprestados à ilusão americana: Gabriel de Foigny,
Denis Veiras e Simon Tyssot de Patot. Eles são largamente tributários
duma obra célebre: os Com mentarios reales que tratan dei origen de los
Incas, que o mestiço hispano-peruano Garcilaso de la Vega publica
em 1609 e em 1617; traduzidos em francês por Jean Baudouin em
1633, esses Comentários reais conliecerão, nos séculos XVII e XVIII,
numerosas edições e uma difusão considerável. Os curiosos podiam aí
encontrar a história dum Estado moderno e quase perfeito, a descrição
dum governo paternalista; Garcilaso lhe contava as origens, exaltava
seu povo, organizava a lista de seus reis e explicava sua religião' 6.
Em 1676, LaTerre australe connue de Gabriel de Foigny dela lança
mão para diversos detalhes. O Hab ou templo dos Australianos, assim
que o Heb, ou casa de educação, se inspiram diretamente no templo
dos Incas. Sobretudo, esse povo adora o Haab — o Incompreensível
— grande Ser onipresente sobre quem é proibido discutir. Esse Deus
é incognoscível, primeira criatura e primeiro motor, e se manifesta ao
homem pela Criação, de que a grandeza e a complexidade excluem a
possibilidade do acaso. G. Atkinson" mostrou o que esse deísmo devia
à concepção inca do Pachacamac, o deus invisível. Mais tarde, entre
1714 e 1720, são semelhantes lembranças dos relatos de viagens às
Américas que utilizará Simon Tyssot de Patot nas Voyages et aventures
O MITO AMERICANO: UTOPIAS E VIAGENS IMAGINÁRIAS DESDE A RENASCENÇA
de Jacques Massé, como na Voyage de Groenland de R. P. Cordelier
Pierre de Mésange e A. Rosenberg se pôs em evidência o que Tyssot
devia a Garcilaso, Foigny, Veiras e La Hontan 18.
Em lugar algum, entretanto, o modelo peruano foi explorado
com tanta continuidade quanto na Histoire des Sévarambes de Denis
Veiras (1677-1679). Quando Sévaris, o legislador mítico imaginado
por Veiras, empreende a conquista da Terra austral, ele não faz senão
repetir, até nos detalhes, a conquista do México. Ele desembarca
com seiscentos homens somente, contando com sua artilharia e as
dissensões entre as tribos para triunfar tal como Cortez para derrubar
Montezuma; as maneiras dos habitantes são as dos Peruanos e
dos selvagens do Brasil, tais como as descreviam Garcilaso e Jean
de Léry; as cerimônias em honra da morte de Sévaris são calcadas
sobre as executadas para Manco-Capac e a genealogia dos soberanos
sevarambes reproduz a dos reis incas etc. A organização social e
econômica — armazéns públicos, especialização local da produção,
osmasies ou casas comuns, canais e trabalhos públicos — se inspira
também nas maravilhas observadas em Cuzco e longamente descritas
por Garcilaso. O que Veiras transpôs para as Terras austrais, não é
nada além do socialismo de Estado peruano", sociedade organizada
e estruturada à imagem daquela do legendário Manco-Capac.
Enfim, se os Sevarambes rendem um culto ao sol, eles não adoram
verdadeiramente senão o Grande Ser, invisível e incompreensível,
quer dizer, como o havia já visto Prosper Marchand no século XVIII,
o Pachacamac dos Peruanos'''.
Mesmo difusa, a ilusão americana permanece então presente
na utopia do fim do século XVII, e os autores continuam a extrair
abundantemente nos relatos consagrados às Américas, os deístas e
os libertinos aí encontram exemplos convincentes da suficiência das
luzes naturais, enquanto que a reflexão política crê relevar modelos
sugestivos nessas sociedades idealizadas pelo distanciamento. Se o
mundo muito elaborado dos Incas parece particularmente fascinante,
ocorre contudo que seja a América setentrional que seduz o utopista:
é o caso de Fénelon.
Com efeito, se as Aventures de Téléma que (1699) se referem
à Antigüidade para oferecer, no reino de Salente, a antítese da
monarquia francesa sob Luís XIV, a descrição da Bética (livro VII)
deve muito à certa imagem do Canadá que desenvolverão mais tarde
La Hontan ou Charlevoix. Podia-se ler também evocações da vida
feliz dos índios, a quem não faltava senão a verdade revelada, seja nas
Cartas edificantes dos padres jesuítas, seja nas relações de Samuel de
Champlain, fundador de Québec e descobridor dos Grandes Lagos
(Des sauvages, 1603). De resto, o próprio irmão de Fénelon não tinha
I•
Rosenberg, Tycsot de
Patot and bis work (1655
1738), The Hague, 1972, pp.
52-54, 153; G. Atkinson, The
Extraordinary voyage ia French
literature from 1700 to 1720,
-
pp. 88-89 et 108.
" Ver E. von der Mühl,
Denis Veiras et son Histoire des
Sévarambes, Oaris, 1938, pp.
91-131.
E. von der Mühl, ibid., pp.
193-195; G. Atkinson, Before
1700, p. 138.
20
325
RAYMOND TROUSSON
Cf. G. Atkinson, (Les
Relations de voyages aux XVIIe
siècle et févolution des idées,
"
Paris, s.d.), que enumera vários
paralelos possíveis entre as
descrições da Bética e aquelas
das relações de viagens (p p.
30-39).
5 Cf. M. Eliade, "Paradis et
utopie: géographie mythique et
eschatologie". EranosJahrbuch,
xxmi, 1963, p. 216; A. E.
Bestor, Backwoods utopias, New
York, 1950, pp. 27-28.
'
Ver L. Baudin, LEtat jésuite
du Paraguay, Paris, 1962;
C. Lugon, La Republique
communiste chrétienne des
Guaranis, Paris, 1949;1
21
Décobert, "Les Missions
jésuites du Paraguay devant
la philosophie des Lumières",
Revue des sciences humaines,
149, 1973, pp. 17-46.
326
sido missionário no Canadá? É verdade que o Cisne de Cambrai
mistura voluntariamente os exotismos, e que sua Bética se inspira ao
mesmo tempo nos Peruanos de Garcilaso, nos Brasileiros de Léry ou
nos Antilhanos de Du Tertre.
Se essa diversidade prejudica a homogeneidade da descrição,
resta que se trata aqui duma verdadeira transcrição do modo de vida
dos selvagens americanos. Fénelon evoca a inocência primitiva, a
sociedade patriarcal e pastoral. Como no Novo Mundo, as mulheres
"empregam o couro dos carneiros para fazer um leve calçado para
elas, para seus maridos e para seus filhos; elas fazem tendas, das
quais umas são de peles enceradas e outras de cascas de árvores". Os
bens são comuns e "cada família é governada por seu chefe", pois eles
não têm magistrados nem leis. Sua acolhida hospitaleira e confiante
aos primeiros navios fenícios que descobriram seu país é aquela dos
selvagens americanos aos navegadores espanhóis. A América se opôs,
na utopia feneloniana, à corrupção européia, como sua simplicidade
virtuosa aos refinamentos supérfluos das sociedades civilizadas. Sob
o disfarce utópico, os selvagens americanos administravam a prova
experimental da possibilidade duma vida social fundada sobre a
igualdade".
Enfim, se a utopia se impregna, no século XVII, duma ilusão
americana, para reproduzir uma imagem heterogênea, a América
se torna também terra de acolhida para os utopistas em busca de
realizações concretas. Muito cedo, seitas dissidentes são lançadas por
esse continente virgem. Presbiterianos, anglicanos, independentes se
apressam em direção a um mundo aparentemente preservado pela
Providência: Menonitas instalados em 1663 sobre o rio Delaware,
Labadistas chegando em 1683 em Maryland e tantos outros que os
seguirão22 , na esperança de fundar comunidades justas. É no século
XVII igualmente, em 1609, que são fundadas pelos jesuítas as célebres
"reduções" do Paraguai que tentarão, até 1768, organizar como uma
viva entidade utópica as tribos indígenas Guaranis, ensaio tão discutido
pelos "filósofos" no século XVIIP.
Até o fim do século XVII, o continente americano não estava
senão indiretamente presente na utopia, mas não se poderia minimizar
sua importância tanto quanto constante referência, pois os utopistas
daí extraíram numerosos elementos para suas construções ideais, tanto
no plano social e econômico, quanto no plano moral e religioso. Mal
individualizado ainda nas próprias obras, ele constitui entretanto um
reservatório de imagens e de temas. Isso será a obrigação do século das
Luzes, a de elevar essas notações fragmentárias ao nível do mito.
Com o século XVIII, com efeito, se alarga e se precisa a ilusão
americana, sempre sustentada pelos relatos de viagens: a primeira
O MITO AMERICANO: UTOPIAS E VIAGENS IMAGINÁRIAS DESDE A RENASCENÇA
metade do século vê aparecer em torno de cento e cinqüenta obras
consagradas à América setentrional", multiplicando os pontos de
vista os mais diversos. No conjunto, a América se desenha numa
luz sedutora, terra de liberdade e de felicidade, pátria dos Hurons,
dos Iroqueses ou dos Natchez próximos da natureza, vivendo numa
sociedade simples, que ignora ainda a corrupção e a opressão européia.
Esse mundo aparece como "um lugar atemporal, próprio a preencher
a nostalgia do paraíso perdido", uma decoração duma grandiosa
suntuosidade natural, onde a vida se escoa ao ritmo eterno do ciclo
das estações. Ao longo de todo o século, o Americano, o Peruano
ou o Inca invadem a cena francesa, do Arlequin sauvage (1721) de
Delisle de La Drevetière ao Manco Capac (1763) de Le Blanc de
Guillet, passando pela Alzire (1736) de Voltaire ou Les Indes galantes
(1735) de Rameau, sem esquecer das Lettres d'une Péruvienne (1752)
de Mme de Graffigny ou Les Incas (1777) de Marmonte127.
Esse continente onde se preservou a iocência original tem
mesmo o poder de regenerar o Europeu dep -av. do que aí se instala.
Voltaire, desde as Lettres philosophiques (173, '-), celebrou os Queres
que, sob a conduta de William Penn, "trouxeram para a terra a idade
de ouro de que se fala tanto, e que verossimilmente não existiu senão
na Pensilvânia". Daniel Defoe ou o Abade Prévost fizeram da América
uma terra de renovação: sobre seu solo, Moll Flanders e Manon
Lescaut reencontram uma pureza perdida". O continente americano
é mais do que nunca propício ao devaneio utópico.
Se um dos grandes debates do século tem como objeto a
oposição entre natureza e civilização, entre progresso técnico e
progresso moral, era lógico que a utopia servisse de lugar de confronto
entre o selvagem americano e o civilizado europeu, as virtudes do
primeiro servindo a pôr em evidência os vícios do segundo. Nasce
assim um ser mais mítico que real, que é "uma figura constante da
retórica dos filósofos"". Esse mito, ninguém mais se servirá dele que
o barão de La Hontan, viajante, explorador e aventureiro que, desde
1703, instala a utopia do selvagem canadense.
A obra de La Hontan é a primeira em data das sínteses sobre os
indígenas do Canadá, antes dos trabalhos de Lafitau, de Charlevoix e
de Prévost. Suas Nouveaux voyages dans l'Amérique septentrionale (1703)
e suas Mémoires de l'Améri que septentrionale (1703) são crônicas da vida
canadense sob seus diferentes aspectos, mas também, já, descrições
utópicas das tribos indígenas, onde o exotismo e o primitivismo
reforçam a polêmica religiosa e política. São sobretudo seus famosos
Dialogues avec un sauvage (1703) que fundam o utopismo canadense.
O Huron Adario se torna o modelo do homem natural proposto como
exemplo a uma sociedade alienante e desnaturada. As leis, a medicina,
-
Ver B. Fay, Bibliographie dei
ouvragesfrançais relatifs aux
Etats-Unis (1700-1800), Paris,
24
1924.
" Ver Ch. Amar, "Un
missionnaire philosophe
face à l'Arnérique: le R. P.
Charlevoix", em L'Anzérique dei
Lumières, Genève, Paris, 1977,
p. 24; L. Willems, "Voltaire
et l'Amérique", ibid., p. 61; J.
David, "Voltaire et les Indiens
d'Amérique", Modern language
quarterly,IX, 1948, pp. 90-91;
D. Echeverria. Mirage in the
West. A History of the French
image of American society to
1815, Princeton, 1957, p.4.
Y. Moraud, "De la Hontan à
Chateaubriand: l'Amérique ou
l'exigence utopique de l'unite",
em L'Amérique dei Lumières,
pp. 3-6.
25
" Cf. P. Peyronnet,
"L'Exotisme américain sur
la scene française au XVIIle
siècle", SPEC, 154, 1976, pp.
1618-1623; "Un personnage
américain dans le théâtre
français des XVIIle et XVIlle
siècles: le sauvage", em
L'Atnérique dei Lumières, pp.
37-50. As alusões à América
se multiplicam na Encydopédie.
Switzer ("America in the
Encydopédie" SPEC, 58, 1967,
pp. 1481-1499) a ressaltou
em centenas de artigos; S. E.
Malney ("L'Arnérique in the
Enyclopédie", SVEC, 153, 1976,
pp. 1381-1400) contou 335
alusões apenas nas letras A e B.
" L. Desvignes, "Vues de la
terre promise: les visages de
l'Amérique dans Moll Flanders
et dans l' Histoire de Manon
Lescaue , SVEC, 132, 1976, pp.
543-557.
M. Duchet, "Monde civilisé
et monde sauvage au siècle
des Lumières", em Au siècle dei
Lumières, Paris-Moscou, 1970,
p. 10.
327
RAYMOND TROUSSON
o casamento aí aparecem simples, eficazes e duráveis; a religião, "um
deísmo com fundamento racionalista e com finalidade morar", que
disso faz um violento panfleto anticristão. O comunismo primitivo, a
simplicidade dos costumes, as assembléias democráticas são sobretudo
ilustrações a contrario da perversão social européia.
A verdadeira sabedoria de Adario e sua rude bravura se opõem
à violência e à barbárie dissimuladas do Europeu. Esta lição de La
Hontan, outros se encarregarão de multiplicá-la levando a passeio
selvagens sem cessar confrontados com as inconseqüências e com
os sofismas de nosso velho mundo. Diretamente inspirado por La
Hontan, Maubert de Gouvest propõe as Lettres iroquoises (1752),
onde um outro Canadense, Igli, vindo à Europa para verificar a
excelência do cristianismo pregado pelos missionários, não tarda a
descobrir que não há relação entre a felicidade dos povos e seu grau
de civilização, poi, diz ele, "mais fogem da simplicidade da Natureza,
mais se perdem". É o mesmo procedimento de que se servirá Voltaire
em L'Ingénu (1767) para opor a franqueza e o bom senso de seu
Huron ao artificio e aos erros da Europa e são ainda os Hurons que
o anarquista Dom Deschamps, em seu Vrai système (1762), julga mais
próximos que nós da verdadeira felicidade, que ele nomeia "o estado
das maneiras" ou "o estado social sem leis". Que esses quadros estejam
bastante afastados da realidade, é o que diziam já, no século XVIII,
Lafitau ou Charlevoix. Eles são, em todo caso, a prova que o sonho
americano invadiu a utopia.
Alguns utopistas, com efeito, sonham então em situar entre
esses "selvagens" suas experiências educativas e sociais. Marivaux
dá o exemplo em Les Effets surprenants de la sympathie (1713), onde
seu herói, desembarcado numa ilha próxima do Peru, começa a
instruir indígenas tão primitivos que eles ignoram o uso do fogo.
Naturalmente dóceis, doces e acolhedores, eles não tardam a aprender
as técnicas elementares, a comunidade dos bens e o respeito da
divindade segundo um simples deísmo. Vários costumes observados
são aqueles dos índios do Canadá, supostamente representando o
que são a sociedade, a família, a religião segundo a natureza. Com
Lesage em Les Aventures de Robert Beauchêne (1732), assiste se aos
empreendimentos de Mlle. Duelos, tornada "sakgamé" duma tribo
de Hurons organizados segundo os princípios do comunismo agrário,
a justiça e a eqüidade. Com o abade Prévost, em Cleveland (17311739), encontram-se os Abaquis, em alguma parte entre a Virgínia e
a Carolina. Como bom filósofo, o herói não tenta nem vesti-los, nem
modificar-lhes o modo de vida, conforme à natureza. Ele se contenta
em substituir o culto do sol pelo deísmo, de lhes inculcar princípios
de humanidade e sobretudo de lhes fazer melhor compreender o valor
-
La Hontan, Dialogues avec
un sauvage, Préface et notes
de M. Roelens, Paris Editions
Sociales, 1973, p. 52.
328
O MITO AMERICANO: UTOPIAS E VIAGENS IMAGINÁRIAS DESDE A RENASCENÇA
dos laços familiares ao instituir a autoridade paterna. Um pouco mais
longe no mesmo romance, os índios Nopandes formam uma outra
sociedade sábia, levando "uma vida tranqüila sob a condução dum
mestre tão simples quanto eles". Aqui ainda, Prévost se inspira de
perto na ilusão americana e sua geografia tem bases muito reais.
A América se faz assim campo de experimentação teórica para os
utopistas. O selvagem lhes parece estabilizado nesse ponto ideal da
evolução onde a inocência pode ainda estar preservada, onde é ainda
possível evitar ao homem a socialização errônea da qual Rousseau fez
a história no Discours sur finégalité. É a América ainda que se descobre
no Candide (1759), onde Voltaire descreve à sua maneira o Paraguai,
o país dos índios Orelhões e sobretudo o Eldorado, "o país onde tudo
vai bem", evocado a partir de relatos sobre o Peru e as maneiras dos
Incas. Em L'ilmazonie (1795), Bernardin de Saint-Pierre sonhará em
estabelecer na floresta virgem uma "república dos Amigos" fundada
por um Quacre depois da revogação do edito de Nantes.
Um último elemento devia estimular as imaginações. Aos
olhos duma Europa monárquica, ainda mareada pelo feudalismo, a
Independência americana fazia surgir um grande sonho de liberação
e de progresso. O abade Galiani escreveu à Mme. d'Epinay, em 18
de maio de 1776: "Chegou a época da queda total da Europa e da
transmigração para a América. Tudo cai em podridão aqui: religião,
leis, artes, ciências; e tudo vai se reconstruir como novo na América."n.
Esta se tornava assim modelo revolucionário, que celebra L.-S.
Mercier em L"An 2440, na edição de 1786. "A Europa", diz ele, "parece
escapar à liberdade; não temais nada, a filosofia vigia, [...] ela mostra
com o dedo os Estados Unidos". No século XXV, o imenso continente
está dividido em dois impérios, formados cada um por vários reinos
confederados; a Pensilvânia continua a dar ao mundo o exemplo dum
{{
povo de irmãos" e a América é regida "segundo todos os direitos do
homem, [...] fundados sobre a natureza e a igualdade" ". Terra virgem
da qual os vastos espaços exigem populações laboriosas, ela é também
terra de liberdade e de empreendimento, de tolerância e de eqüidade.
Entusiasmado pelas Lettres d'un cultivateur américain (trad. francesa
1783) de Saint-John Crèvecoeur, o futuro girondino Brissot de
Warville percorre a América em 1788 em busca, nos vastos territórios
do Oeste, dum local próprio a abrigar uma república idea1 34; alguns
anos mais tarde, em 1794, S. T. Coleridge e R. Southey sonharão em
instalar nas margens da Susquehanna sua utópica Pantisocracia", onde
duas horas de trabalho cotidiano deviam ser suficientes para assegurar
a felicidade desta cooperativa.
Desde as utopias do bom selvagem destinadas a ressaltar as
incoerências e as contradições de nossa sociedade, até as esperanças
Ver P. Vernière, "L'Abbé
Prévost et les réalités
géographiques, à propos
de l'épisode américain de
Cleveland', RHLF, =CIL
1973, pp. 626 636.
-
Diderot, Correspondance,
publ. par G. Roth et J.
Varloot, Paris, 1968, t.
XIV, p. 193, citada por P.
Benhamou, "Variations du
mirage américain au siècle des
Lumières", em Eilmérique des
Lumières, pp. 19 20.
-
L.S. Mercier, L'An 2440,
nouv. éd., Paris, 1786, 3 vol., t.
1, p. 26 1, t. III, pp. 42 et 46.
M. Gidney, L'Influence
des Etats-Unis d'Amérigue
sur Brissot, Condorcet et Mine
Roland, Paris, 1930, pp. 15-27.
34
Brissot publicará em 1791
sua Nouveau voyage dons les
Etats Unis, onde ele celebra
a fertilidade das terras, a
simplicidade das maneiras e
encoraja a emigração.
-
ss Ver M. W. Kelley, "Thomas
Cooper and Pantisocracy".
Modern language notes, XLV,
1930, pp. 218-220; S. Eugenia,
"Coleridge's scheme of
Pantisocracy and Americain
travel accounts", PMLA,
XLV, 1930, pp. 1069-1984;
J. R. MacGillivray, "The
Pantisocracy scheme and
its immediate background",
Studies in English, 1931, pp.
145-146.
329
RAYMOND TROUSSON
revolucionárias despertadas pela Declaração de Independência, o
continente americano fixou a atenção dos utopistas, ele se fez a terra
de acolhida de suas especulações filosóficas e idealistas, esperando
que outros, no século seguinte, tentassem resolutamente a aventura
de transformar esse mundo ainda utópico em Terra de utopia.
***
'6 Ela o havia sido muito
cedo. Ver H. Desroche, Dieta
d'hommes: dictionnaire des
messianismes et millénarismes de
fere chrétienne, La Haye, 1969.
330
A primeira metade do século XIX se mostrou com efeito
preocupada em realizar esses sonhos de melhorismo político e social.
Já o velho Goethe, em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister
(1821-1822), introduz um projeto vagamente saint-simoniano. Sua
Sociedade da Torre sonha em fundar na América uma comunidade
organizada segundo a divisão do trabalho, a especialização, a produção
útil, utopia benéfica onde cada membro renunciará ao individualismo
romântico para se devotar ao grupo. Em La Rabouilleuse, Balzac faz
viver em seu herói a experiência do Campo de Asilo, fundado em 1817
por François-Antoine Lallemand às margens do golfo do México. A
comunidade, criada para os refugiados bonapartistas e liberais, acabou
sendo um lamentável fiasco.
Após os abalos da Revolução e do Império, era bem necessário
render-se à evidência: 1789 não foi a alvorada duma nova idade de
ouro. A fé no progresso e nos inícios da industrialização se liqüidam
por uma decepção: a concentração capitalista, o pauperismo urbano, as
condições de existência do proletariado industrial são os sinais duma
penosa mutação social e histórica.
De 1815 a 1848, as teorias sociais pululam, generosas,
imaginativas e inoperantes, desenhando a fase heróica do socialismo
dito "utópico", de Saint-Simon a Proudhon. Para esses especuladores,
o continente americano devia parecer como uma terra prometida, não
mais mundo do bom selvagem e da natureza preservada, mas cadinho
das boas vontades e dos empreendimentos desinteressados. De suporte
do sonho utópico, a América se tornava assim terra de acolhida da
utopia a realizar'''.
Robert Owen mostra o caminho. Esse grande patrono das
fiações e da indústria têxtil sonha realizar uma comunidade modelo.
Em 1824, ele comprou dos Trapistas, seita comunista religiosa,
sua colônia em Indiana. Comportando uma vila e trinta mil acres
de terra, New Harmony foi inaugurada em 1825 sobre as bases
duma autonomia e duma igualdade completas. Mas muito rápido
acenderam-se querelas, facçõ es se constituíram e New Harrnony
naufragou na primavera de 1827. Uma nova tentativa de Owen para
obter uma concessão do governo mexicano não teve sucesso.
O MITO AMERICANO: UTOPIAS E VIAGENS IMAGINÁRIAS DESDE A RENASCENÇA
O fracasso de Owen não desencorajou Etienne Cabet, o autor
da Voyage en Icarie. Ele também acreditava que eram necessárias idéias
novas para um país novo. Os pioneiros desembarcaram em 1848 no
Red River, no Texas, para descobrir que eles tinham sido caloteados
por uma companhia imobiliária. Em março de 1849, eles se instalam
em Nauvoo, Illinois, numa vila abandonada pelos Mórmons. Mas não
é fácil dar vida à utopia. Os colonos estavam isolados, mal adaptados,
faltava-lhes dinheiro, suportavam mal as regras rígidas, perdendo
toda a eficácia num parlamentarismo exasperado e paralisante.
Divididos, os Icarianos espalharam-se por Cheltenham (Missouri),
por Corning (Iowa), por Icaria Speranza (Califórnia). Finalmente, a
última comunidade icariana desapareceu em 1898: a América não se
revelava nada propícia aos utopistas".
E contudo, as colônias utópicas deviam continuar a se
multiplicar. Conhece-se aquela, fourierista, de Brook Farm, em
Massachussets, da qual Nathaniel Hawthorne contou a história em
The Blithedale romance. Mas haveria também os socialistas de Kaweak,
na Sierra Nevada; os perfeccionistas de Oneida; os teosofistas de Point
Loma, na Califórnia; os cristãos de Altruria, perto da baía de San
Francisco... Contam-se 34 comunidades utópicas entre 1663 e 1817,
mas pode-se enumerar uma centena entre 1825 e 1858 38 . A América
aparecia bem como a terra do possível e da regeneração, um mundo
novo onde poder-se-ia fazer tábula rasa das contradições e dos erros
da velha Europa. Lá, uma sociedade pode se fundar sobre um novo
contrato social e o indivíduo encontrar seu desabrochamento no seio
dum grupo fraternal.
Assim, por três séculos, a América alimentou o devaneio
utópico. Ao mito do bom selvagem, à ilusão da utopia americana,
substituiu-se a esperança da utopia na América. O tempo não é mais
aquele em que os autores se inspiravam nos relatos de viagem para
transplantar nas Terras austrais as maneiras dos índios do Canadá
ou o deísmo dos Peruanos. A América, com seus vastos espaços,
sua contribuição sempre renovada de imigrantes, seu crescimento
demográfico e industrial, parece a terra onde a utopia pode emergir
do sonho para se ancorar na realidade.
***
Alguma coisa, entretanto, ia mudar nos últimos decênios do
século. À medida que se acentuavam o poder e o papel da nação
americana, certos utopistas se puseram a duvidar da excelência do
modelo que ela oferecia, a se inquietar com a corrida pela eficácia e
pelo rendimento, a criticar mesmo uma democracia orgulhosa. Desde
"
Ver J. Prudhommeaux,
Histoire de Ia ommunauté
icarienne, Nirnes, 1906; Ch.
Gide, Les Colonies communistes
et coopératives, Paris, 1928.
"
Ver V. L. Parrington,
American dreams, Providence,
1947; M. Halloway, Heavens
on earth: utopian communities
in America (1680-1880),
New York, 1951; A. E.
Bestor, Backwoods utopias.
The sectarian and owenite
phases of communitarian
socialism in America, 16631829, Philadelphia, 1950;
RV. Hine, CalifOrnia's
utopian colonies, New Haven
and London, 1966; R M.
}Conter, Commitment and
community. Communes and
utopias in sociological perspective,
Cambridge (Mass.), 1972;
D. Hayden, Seven American
utopias. The Architecture of
communitarian socialism,
1790-1975, Cambridge
(Mass.) and London, 1976; P.
Bõrner, "Utopia in der Neuen
Welt: Von europãischen
Triiumen zum Arnerican
dream", em Utopie-Forschung.
Interdisziplinare Studien zur
neuzeitlichen Utopie, hrsg. von
W. Vosskamp, Stuttgart, 1982,
3 vol., t. II, pp. 358-374.
331
RAYMOND TROUSSON
" E. Bulwer-Lytton, La
Race à venir, trad. par H.
Destouches,Verviers, Gérard,
1973, pp. 49 e 112.
" Ver S. E. Bowman, Edward
Bellamy abroad, New York,
4
1962.
"Ver K. M. Roemer, The
(Molete neeessity. American
utopian writings, 1888-1900,
The Kent State University
Press, 1976.
332
1871, Bulwer-Lytton descreve, em The Coming race, um povo de seres
superiores, aristocratas poderosos e sábios. Como bom conservador,
ele desconfia da democracia burguesa dos Estados Unidos e dirige
sua ironia contra "a grandeza presente e a preeminência futura desta
gloriosa República americana, na qual a Europa procura, não sem
inveja, um modelo". Ele reduz nisso a propagação que não pode
conduzir, segundo ele, senão a uma degradação dos valores em
benefício do mercantilismo e da busca do proveito. Em sua utopia,
a democracia à americana é o apanágio do Koom-Posh, que rege
algumas tribos atrasadas, quer dizer "o governo dos ignorantes, a partir
do princípio que eles são os mais numerosos"". Assim se insinuava,
na utopia, a idéia que a América moderna não era talvez o exemplo
a imitar.
Qual era, de resto, a idéia que a América fazia de si 'mesma?
Alguns se comoviam pela anarquia e pelo desperdício engendrados
pelo sistema da livre concorrência. Em 1888, Edward Bellamy publica
Looking backward, cuja intriga indigente não ia impedir de conhecer
um prodigioso sucesso e de levantar controvérsias apaixonadas quase
por todo o mundo40. Em sua perspectiva, a Boston do ano 2000 sofreu
uma transformação decisiva. A pequena capital do fim do século ?MC
desapareceu progressivamente para dar lugar às grandes concentrações,
trustes e monopólios, e o poder caiu nas mãos duma plutocracia. À
força duma concorrência impiedosa, a economia dependia logo dum
punhado de homens, se bem que no fim do século XX, tudo se reduzia
a um imenso monopólio, aquele da nação; esta "formou uma grande
e única corporação, na qual deveriam se absorver todas as outras, ele
se tornando a única capitalista, o ánico patrão". Assim, capitalismo
de Estado e coletivismo nasciam, não duma revolução, mas duma
evolução. Numa época em que se multiplicavam greves, manifestações
anarquistas, motins brutais, chamados à revolta armada, Bellamy
transformava o espectro revolucionário num futuro histórico oriundo
da natureza das coisas. Sua utopia era a da classe média e do liberalismo
burguês e salvaguardava um certo número de "valores" americanos:
horror do parasitismo social, cuidado com o alto rendimento, técnica
eficaz de produção e de distribuição.
Esse modelo não era o único possível: entre 1888 e 1900, a
América não produzirá menos que 160 utopias 41 . Mas é o quadro de
Bellamy que suscita as reações mais vivas e as mais numerosas. Sabese que ele suscitou os News from Nowhere (1891) de William Morris,
que denunciam o que o escritor inglês nomeou "a cockney paradise",
que ele queria substituir por um comunismo resolutamente hostil à
organização burocrática da produção, à preocupação com a eficácia e
com a centralização. É porque, a bem da verdade, a utopia de Morris
O MITO AMERICANO: UTOPIAS E VIAGENS IMAGINÁRIAS DESDE A RENASCENÇA
se apresenta como uma utopia anti-americana. 42 e uma crítica severa
da industrialização capitalista: no século XXII, diz ele,
as partes setentrionais da América tinha tão terrivelmente
sofrido o desencadeamento da civilização em seu estágio
supremo e viver aí tinha se tornado tão horrível, que elas
estavam ainda muito atrasadas para tudo o que dá encanto
à vida. Pode-se mesmo dizer que desde quase um século os
Americanos do Norte se empregavam a transformar em lugar
habitável o que era um monte de entulho fétido e havia ainda
muito a fazer, pois o país é vasto".
Assim alvoreceu, na utopia européia, uma imagem negativa dum
continente americano desde muito tempo como segundo plano dos
sonhos de melhorismo e de progresso. O desenvolvimento industrial
titânico, uma civilização técnica e funcional, a invasão dum modo
de vida que ameaça o humanismo ocidental, inspiram um certo
temor ao utopista europeu. A evolução é sensível em Jules Verne,
em primeiro lugar fascinado pelos Estados Unidos, por seu impulso
técnico, econômico e demográfico. É na América que se prepara a
conquista da lua, que Robur, o Conquistador, inventa suas máquinas
voadoras. É também à maneira de Owen e de Cabet que os colonos
de L'Ile mystérieuse fundam em Iowa uma colônia modelo, e é em
Oregon que se desenvolvem, em Les Cinq cents millions de la Bégum,
as cidades utópicas de Franceville e de Stahlstadt. Socialista saintsimoniano, Verne sonha com um país de progresso, de eficácia, de
expansão econômica e sobretudo de liberdade. Entretanto, a partir de
1890, ele se decepcionou com a politica expansionista, a dominação
do capital, a supremacia da técnica e as desumanas concentrações
urbanas, e a admiração deu lugar à sátira. L'Ile à hélice (1895) é a utopia
dos miliardários; Amiens en l'an 2000 (1891) é a paródia dum paraíso
tecnocrático à americana; a Journée d'un journaliste américain en l'an
2889 (póstumo, 1910), se dedica ao imperialismo, à mecanização,
à dominação absoluta do grande capital". Pouco a pouco, o sonho
americano se torna um pesadelo, é abalado por um índice negativo,
cessa de ser modelo a imitar para ser uma imagem aterradora do
futuro.
Não é nada duvidoso com efeito que a América, mesmo se
ela não estivesse expressamente designada, inspirasse numerosas
pinturas das antiutopias modernas. No começo do século XX, ela
aparecia como a prefiguração do futuro do Velho Mundo, e alguns se
amedrontaram com isso. Henri Hauser, em L'Impérialisme américain
(1904), observava que este imperialismo "não faz senão avançar
Cf. P. Meier, La Pensée
utopique de William Morris,
Paris, 1973, pp. 119-125.
"W. Morris, Nouvelles de Nu//e
part, introd. et trad. par P.
Meicr, Paris, Editions sociales,
1961, p. 190.
Ver J. Chesneaux, Une lecture
politique de filies Vente, Paris,
1971, pp. 136-149.
333
RAYMOND TROUSSON
a hora em que a humanidade estará organizada segundo a lei da
divisão geográfica do trabalho, quer dizer a hora em que cada povo
fará sobretudo aquilo para que a natureza lhe dotou da forma mais
eminente'''. Instruído por esse livro, Anatole France opôs a esta
perspectiva o socialismo de harmonia de Sur la Pierre blanche (1903).
Mas seu pessimismo ressoa no último capítulo de L'Ile des Pingouins
(1908), em que ele pinta uma trágica americanização do mundo,
cidades gigantescas devotadas à força do dinheiro, uma civilização
artificial do poder industrial e da finança:
Não se encontravam jamais casas altas o bastante; elas eram
sobrelevadas sem cessar, e construíam-se de trinta a quarenta
andares, onde se superpunham escritórios, lojas, agências de
bancos, sedes de sociedades. [...] Quinze milhões de homens
trabalhavam na cidade gigante. [...] Era a mais industrial de
todas as cidades do mundo e a mais rica; [...] tudo aí estava
subordinado aos interesses dos trustes. Formou-se nesse meio
o que os antropólogos chamam o tipo do miliardário 46 .
Citado por J. Levaillant,
Essai sur Pe'volution intellectuelle
dilua/ele France, Paris, 1965,
p. 632.
" A. France, 1.7/e des
Pingalins, Paris, Calman-Lévy,
1908, pp. 391-392.
Cf. J. P. Vernier, H. G. Wells
a sso temps, Paris, 1971, pp.
207-209.
47
334
Esse mundo, que capitalistas e proletários acabaram por
formar, não mais mesmo duas classes, mas duas raças biologicamente
diferentes, é aquele que tinha já profetizado H. G. Wells em The
Time Machine (1895) e em When the Sleeper wakes (1899). Em 1905,
Wells relatou sua viagem além-Atlântico em The Future ia America.
Ele observou uma concentração industrial formidável, um poder nas
mãos duma minoria econômica, uma plutocracia acorrentando a classe
média e esmagando o proletariado. Esse contraste de seu próprio ideal
utópico — o Estado mundial dirigido pelos Samurais descrito em A
Modera utopia (1905) —, esse futuro americano, é aquele que ele pintará
tragicamente em 1933 em Shape cf things to come" .
France e Wells não são os únicos a denunciar o sonho americano.
Em 1911, Bernhard Kellermann, em Der Tunnel, apresenta uma nova
figura: a do engenheiro americano, o técnico a serviço do capital e
dos trustes, dotado de onipotência pelos financistas de Wallstreet.
Imagem duma América tecnicista e desumanizada, da qual o presente
é dado para o futuro da Europa, e que o romance de Kafka (Amerika,
1927) evoca como o mundo onde o indivíduo se torna anônimo numa
sociedade de massa, perdido no labirinto dos entrepostos, ignorado
no agenciamento mecânico da grande cidade. De resto, os utopistas
americanos propunham eles mesmos uma imagem menos aterradora
de seu país? Jack London, em The Iron Heel (1908) opôs da maneira
mais brutal o mundo dos trustes impiedosos ao que ele nomeia o Povo
do abismo, proletariado industrial imbecil e reduzido à escravidão,
O MITO AMERICANO: UTOPIAS E VIAGENS IMAGINÁRIAS DESDE A RENASCENÇA
universo onde um extraordinário progresso técnico não
foi acompanhado de nenhum progresso moral e traz à baila toda a
estrutura econômica e social dos Estados Unidos.
O catastrofismo das utopias do início do século não nasceu
somente da observação, menos ou mais exata, da realidade americana.
Esse pessimismo tem causas mais profundas e mais distantes, mas é
claro que a América cessou de ser, aos olhos dos utopistas, a terra
da renovação e do desabrochamento para se tornar a insuportável
prefiguração do mundo de amanhã, o futuro contra o qual a antiutopia
começa precisamente a advertir.
Esse modelo negativo será encontrado aliás em filigrana em
muitas utopias mais recentes. Sem dúvida, Hwdey não situou Brave
New World (1932) na América, mas não é difícil de descobrir aí vários
detalhes significativos. O próprio Hwdey não declararia, em Brave
New World revisited (1958), que "a América é a imagem do que será
o resto do mundo urbano-industrial daqui a alguns anos"? Ravage
(1943), de René Barjavel, evoca sem hesitação possível as grandes
cidades americanas, denuncia seu modo de vida, seu gigantismo, seu
tecnicismo desumanizante. Como outrora, a América dos utopistas
é sempre um mito, mas um mito negativo e o exemplo do choque
duma civilização. Seria necessário lembrar enfim a América do futuro,
tal como a imagina Ray Bradbury em Fahrenheit 451 (1953)? Uma
imensa população afogada no anonimato, uma sociedade gregária,
imbecilizada pela publicidade, pelos mass media, pelos produtos
químicos e pelos euforizantes, e que não tem o que fazer duma cultura
que arriscaria recolocar em questão a onipotência do bem-estar
material. Esse mundo é aquele, simplesmente acelerado, já esboçado
por Hwdey:
pinta um
As classes foram encurtadas, a disciplina negligenciada, a
filosofia, a história, as línguas abandonadas, o inglês e sua
pronúncia pouco a pouco esquecidos, e finalmente quase
ignorados. Vive-se no imediato. Somente conta o batente
e, após o trabalho, o embaraço da escolha em matéria de
distrações. Por que aprender o que quer que seja?..."
Depois de cinco séculos de utilização intensiva, o sonho
americano dos utopistas faliu então. Ornada inicialmente pelo
prestígio dos desconhecidos longínquos, vestígio da idade de ouro
na terra prometida, pátria do bom selvagem, espaço virgem aberto
às comunidade de boa vontade, a América tornou-se exemplo de
anticivilização, de anti-humanismo. É certo que havia mais verdade " R Bradbury, Fahrenbeit 451,
par H. Robillot, Paris,
no pessimismo contemporâneo que no otimismo ingênuo dos séculos trad.
Denoel, 1955, p. 63.
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RAYMOND TROUSSON
passados? Não é nosso papel decidir isso.
Resta que a especulação utópica seja alimentada duma ilusão
americana sem a qual ela não teria podido, sem dúvida, desabrochar
tão largamente. A América esteve presente nas construções ideais antes
de transformar-se nas visões de inferno da anti-utopia moderna. Entre
as esperanças de Thomas Monis e as decepções de Ray Bradbury,
ela marca a continuidade duma inspiração e a permanência dum
sonho".
" Uma versão desse texto
apareceu nos Cahiers roumains
d'études littéraires, 4, 1980, pp.
47-66.
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O MITO AMERICANO: UTOPIAS E VIAGENS IMAGINÁRIAS DESDE A RENASCENÇA
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