Neutralidade na internet – a dificuldade de se regular na
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Neutralidade na internet – a dificuldade de se regular na
Claudionor Rocha* Consultor Legislativo da Área de Segurança Pública e Defesa Nacional Cláudio Nazareno Consultor Legislativo da Área XIV (C&T, Comunicações e Informática) da Câmara dos Deputados. Doutor em Filmes e Televisão pela Universidade de Roehampton, Londres, Reino Unido. Neutralidade na internet – a dificuldade de se regular na prática 69 Introdução Não sei quanto a você, mas as teorias conspiratórias eu acho muito divertidas e, o pior, são assustadoramente verossímeis. Talvez não possamos distinguir se uma determinada história passou do campo do possível para o do provável, mas a posse dos fatos é uma variável assimétrica e nós sempre estaremos do lado de quem não detêm a informação completa sobre determinado assunto. Vejamos o caso dos supostos arquivos sobre extraterrestres que se encontrariam guardados na Casa Branca e sobre os quais apenas os presidentes teriam acesso. Barak Obama, em entrevista no programa do Jimmy Kimmel (disponível no Youtube), teve esse interessante dialogo: [Jimmy Kimmel] “Voce olhou, viu, explorou (os arquivos dos OVNIs)?” [Barak Obama] “Não posso revelar nada.” [JK] “Sério?, Porque o Presidente Clinton disse que ele foi imediatamente (depois da posse) checar e disse que não havia nada.” [BO] “Isso é o que somos instruídos a dizer.” (risos) Além de ser uma situação impensável para um presidente brasileiro, ela mostra bem o que queríamos dizer: seriam as teorias conspiratórias hipóteses ou teoremas sem solução? Enfim, a situação relatada acima não difere em muito do que pensamos sobre o tráfego de dados na internet – que por si só é uma fonte inesgotável de teorias, desde a extração de rins e a banheira de gelo, até a abdução e o futuro resgate da humanidade. Quem tem acesso aos nossos dados? Quem decide o resultado de nossas buscas? Quais empresas tem prioridade? Será que meu provedor de acesso dificulta o meu acesso ao site de seu concorrente? Por que este sítio está tão lento? Cadê a página que estava aqui? ... Essas são perguntas a que como simples usuários da internet nunca teremos respostas e então começam a surgir todo tipo de teorias. Mas será que é possível que o tráfego da internet varie de acordo com os interesses do nosso provedor de conexão? De acordo com alianças estratégicas de grandes corporações? Em outras palavras será que a internet não é neutra com relação ao conteúdo trafegado? Tecnicamente, caro leitor, devo dizer, sim, é possível... e provável. E isso decorre do fato de que as redes são gerenciadas. Artigos & Ensaios 71 As redes não são neutras, (quase) nunca foram. Existe uma série de equipamentos, necessários ao bom funcionamento das redes, que medem, copiam, replicam, bloqueiam e direcionam o tráfego. Nada de mal se esse gerenciamento é aplicado para o bem da humanidade. Por exemplo, é desejável que um vídeo tenha prioridade sobre um e-mail, pois, assistir a um filme com interrupções é uma experiência ruim para o usuário. Já receber um e-mail com alguns segundos de atraso também não seria um grande problema. Da mesma forma, é fundamental que um ataque cibernético seja bloqueado, e os pacotes velozes e furiosos que começaram a ser disparados contra o meu singelo computador, onde armazenei todas as minhas senhas de cartões e bancos, sejam detidos antes que a minha conta no banco seja esvaziada ou o meu desktop formatado. No entanto, apesar desse gerenciamento benigno existir e ser necessário, há, também, diversos interesses que se digladiam nesse gerenciamento. Como resultado, os pacotes, isto é, as informações que buscamos e escrevemos no universo da internet, não trafegam de forma livre e neutra entre os computadores de origem e destino. A neutralidade da internet é um mito, é uma eterna disputa – certamente de uns 20 anos no Brasil - entre tecnicalidades, segurança de usuários, interesses de governos e empresas, oportunidade de faturamentos e de negócios e, por último (na capacidade de interferir nesse confronto), liberdade de escolha dos usuários. Este artigo visa lançar uma nova perspectiva nesse debate sobre a suposta neutralidade na internet e até que ponto ela é necessária para todo tipo de usuário. O Cabo de Guerra pela Neutralidade – alguns conflitos comerciais Nessa nova indústria e gigantesco mercado global de negócios em que a internet se tornou, há verdadeiros titãs se digladiando. E não há dúvidas de que a internet é terra de gigantes. Segundo o ranking da revista Forbes, a Apple (companhia que depende muito do sucesso da internet) é a empresa com maior valor de mercado nos EUA (480 bilhões de dólares), seguida pela Exxon Mobil (422), Google (380) e Microsoft (340). E essas empresas de informática alcançam valores de mercado bem à frente de empresas bem conhecidas como Johnson & Johnson (277), GE (260) ou Wall-Mart (250).1 Todavia, a discrepância dessas empresas é ainda maior quando comparada com as maiores empresas de telecomunicações – que são, na ver1 Ranking das empresas disponível em: http://www.forbes.com/global2000/list/, acessado em 07/04/15. 72 Cadernos ASLEGIS | 48 •Janeiro/Abril • 2013 dade, as que lhes dão suporte e lhes permitem faturar alto. A Verizon, maior empresa do setor de telecomunicações, aparece naquele ranking com valor de mercado de, ‘apenas’, 200 bilhões de dólares. Já Telefônica e América Móvil (dona da Claro, Net e Embratel e bem conhecidas do mercado brasileiro) aparecem bem abaixo na lista com um valor de mercado em torno de 70 bilhões cada e a Oi, ainda mais abaixo, com um valor de apenas 2 bilhões. No entanto, a disparidade não se limita ao valor de mercado. Se comparados os ativos de empresas tradicionais de telecomunicações (redes de cabos, equipamentos, etc., espalhados pelo país) com os das empresas de internet (prédios, data centers, etc., restritos a algumas poucas localidades), vemos que as entrantes não precisam de investimentos gigantescos em redes que atravessem o país inteiro ou em fábricas para valerem muito. Apenas para citar alguns exemplos, a Apple possui 225 bilhões de dólares em ativos e a Google 110, contra 275 da Verizon e 165 da Telefônica. Alguns data centers, bons recursos humanos, deter muitas patentes e excelentes ideias são mais interessantes hoje em dia do que o próprio meio utilizado para a transmissão das informações. Fatura-se mais com o conteúdo na internet do que coletando assinaturas de banda larga. Se compararmos empresas do cabo com seus novos competidores na distribuição de conteúdos a assimetria também está mantida. A Comcast, maior operadora americana de cabo, possui valor de mercado de 130 bilhões de dólares, enquanto que a noviça Netflix 22 bilhões, apenas. No entanto, a Comcast para manter o seu valor de mercado, precisa de mais posses do que vale: conta com 160 bilhões em ativos. Enquanto que a Netflix é respaldada por apenas 5 bilhões em ativos. E a comparação é ainda mais dramática quando comparados com a Verizon que precisa manter 275 bilhões em bens. Por isso, não é nenhuma surpresa que a chegada de competidores como a Netflix tenha despertado grandes batalhas comerciais na internet. De fato, foi precisamente por causa de um acordo entre a Netflix e a Comcast que a discussão sobre a neutralidade da rede ganhou mais espaço ainda, não só nos EUA mas, também, no mundo. Em 2014 a Netflix acordou em pagar à Comcast para ter acesso a redes mais rápidas e confiáveis (Wyatt and Cohen, 2014). O arranjo significou uma vitória para a entrante, pois lhe garantiu um lugar privilegiado na rede da Comcast. No entanto, o acordo descobriu o ‘elefante na sala de estar’. As companhias que provêm conexão à internet podem interferir na velocidade e na priorização dos pacotes. E esse gerenciamento, ao se dar unicamente por motivos comerciais, traz uma série de inconvenientes. A consequência mais Artigos & Ensaios 73 óbvia dessa lógica de mercado é que empresas que possuam maior poder econômico poderão funcionar melhor que outras. No extremo, provedores de conexão poderiam ‘gerenciar’ certos sítios que, se não pagassem pedágio para rodar em suas redes poderiam ser deteriorados ao ponto de se tornarem impraticáveis. Seria uma barreira de entrada a novos serviços e à inovação, assim como um entrave à livre competição e à liberdade de escolha dos usuários. Na verdade a degradação de determinadas aplicações e o debate da neutralidade é bem mais antigo. Na verdade, nada é tão antigo assim na internet, mas o fato é que a deterioração de tráfego de usuários já foi inclusive, motivo de análise por parte da agência americana FCC - Federal Communications Commission. Em 2008, o órgão entendeu que a Comcast não poderia restringir a velocidade de aplicativos utilizados para descarregar arquivos disponibilizados por usuários (a chamada tecnologia torrent ou peer-to-peer), pois não configurariam exceções “razoáveis” de gerenciamento (FCC, 2008; Nazareno, 2009). Em outras palavras, em 2008 o órgão decidiu que a Comcast teria que deixar sua rede neutra quando se tratasse desse tipo de aplicativos. Ambos os casos que envolveram a Comcast nos levam diretamente a refletir que, se essa particular operadora de TV a cabo e provedora de acesso à internet gerenciou sua rede de acordo com interesses comerciais, outras operadoras também poderão estar fazendo o mesmo, dependendo de sua estratégia e alianças. Muitos conflitos nos saltam como óbvios. A Net, cuja controladora também é dona da Claro e da Embratel, teria todo o interesse em degradar o tráfego de dados gerado pelo aplicativo Skype. As quatro operadoras da telefonia móvel poderiam interferir na efetividade do Whatsapp, responsável por sepultar as mensagens de texto e por fazer ruir a receita que as operadoras tinham com esse serviço. Num ápice de teoria conspiratória, todas as operadoras de telefonia fixa e móvel poderiam estar degradando tanto o Skype (da Microsoft) quanto o Whatsapp (do Facebook) e tantos outros aplicativos que estão acabando com a receita de chamadas de voz. Será que o israelita Viber funciona direito nos países árabes? Outros devoradores de banda das operadoras também poderiam estar sendo restringidos fazendo com que fosse necessário o pagamento do mesmo tipo de pedágio para assegurar vias mais rápidas. Nesse caso, não seria aceitável eu desconfiar que, depois de assinar com a Netflix e assistir a todos os filmes com soluços e interrupções, a minha operadora de banda larga está restringindo o serviço, pois ela tem um acordo com o concorrente Prime, da Amazon, ou com o Fox Play? Lembrando que o proprietário final da Fox é o Robert Murdoch, controlador 74 Cadernos ASLEGIS | 48 • Janeiro/Abril • 2013 da Twenty-First Century Fox, da Sky, e por aí vai. Ou então, o que dizer de eu só receber minhas notificações do Tinder tarde da noite depois de ter voltado para casa sem sucesso? Nesse caso, o atraso incutido aos usuários solteiros infligiria uma perda de oportunidade inaceitável. Por outro lado, esses acordos comerciais também podem gerar benefícios para consumidores com dinheiro curto. Diversas operadoras já ofertaram planos oferecendo acesso ilimitado ao Whatsapp, Facebook ou Twitter. Temos que reconhecer que é positiva a existência de planos mais baratos para aqueles consumidores que só querem um telefone para ter acesso ao Whatsapp do grupo de amigos do colégio, ou apenas para ver as fotos da netinha. Não são todas as conexões à internet que precisam ser mega premium plus. É interessante sim que existam planos de acordo com as necessidades de cada cliente. Isto, é claro, só é válido em ambientes com competição e liberdade de escolha e regras claras de gerenciamento de tráfego. O consumidor tem que saber o quê está comprando, o quê está incluído e o quê não, quanto gastou e quanto ainda pode gastar. Tem que ter a possibilidade de comparar com base em informações confiáveis. Por outro lado, as oportunidades para competir tem que ser justas e isonômicas para as empresas. Senão, estaria aberta a porta para práticas desleais de mercado, que levam inevitavelmente à concentração e ao desaparecimento de alternativas. Em síntese, como a internet é essencialmente uma atividade comercial, e portanto concentradora (ver, por exemplo, Croteau and Hoynes, 2006: 256; Howley, 2005; Liu and Chan-Olmsted, 2002; McChesney, 2000), o poder econômico não deve interferir ao ponto de inibir a inovação e as maluquices tão interessantes que surgem na internet dia após dia. Neutralidade vs. Bisbilhotice Outra faceta importante que advêm da excessiva concentração da internet pode ser vista nos arranjos de proteção dos interesses comerciais, que também são evidentes na internet. A bisbilhotice comercial é outro componente que desestabiliza ainda mais o conceito de neutralidade, ao misturar o ingrediente da perda de privacidade dos usuários. Os chamados cookies que se instalam em nossos dispositivos de navegação, além de nos bombardearem com propagandas direcionadas de acordo com o conteúdo do e-mail que acabamos de enviar, com as páginas que visitamos e com a loja à qual passamos pela calçada, são verdadeiras fontes de informação para as empresas, mas que também roubam nossa banda e nos subtraem importantes bytes da nossa franquia mensal. Aí a neutralidade também é alterada porque além de nem sabermos quem está nos bisbilhoArtigos & Ensaios 75 tando, as grandes corporações com a ajuda da tecnologia se apoderam de nossas máquinas, de nossos serviços e da nossa franquia de dados. Sim, alguém poderá argumentar que é possível viver sem isso, ou então que é possível bloquear essas invasões. Sim, é possível, mas possuem um custos técnico, de esforço e de privação, os quais pouquíssima gente está disposta a pagar. As tecnologias sempre surgem com funcionalidades para captar novos consumidores e essas novidades também podem ser boas, apesar de alguns dizerem (talvez hipocritamente) querer voltar a viver na idade média. No entanto, a tecnologia nunca está a serviço de ambos os lados de maneira simétrica. Grandes corporações possuem equipes capacitadas, e acordos comerciais e balas na agulha que sempre fazem a balança pender para o seu lado. Tomemos o exemplo dos detentores de direitos autorais de filmes e músicas. Como já foi dito anteriormente, a Comcast, empresa de TV a cabo, deteriorava aplicativos torrent, uma vez que baixar arquivos específicos diminuía a atratividade dos seus serviços de TV por assinatura. O pesadelo era que esses aplicativos poderiam até estimular o desligamento de assinantes e descambar em perda de faturamento. Nesse caso o contra ataque veio no galope do desenvolvimento tecnológico. Duas foram as novidades. Em primeiro lugar o uso do Content ID, uma espécie de assinatura digital contida nos arquivos audiovisuais mais procurados, pelos principais sítios de internet como o Youtube. Atualmente, caso um capítulo de uma série ou uma música de gravadora for carregado na rede, o próprio sítio faz uma varredura no arquivo e, se encontrar a assinatura, remove o conteúdo. A segunda evolução da tecnologia que diminuiu a preocupação dos detentores de direitos foi o surgimento e a popularização dos netflixes e similares. Agora não é mais necessária uma assinatura de TV por assinatura a cabo (ou satélite). Basta assinar um desses serviços que se utilizam da internet como meio de distribuição, que sabem o que você mais gosta e te sugerem o que assistir, e que, por agora, são muito mais baratos. Em ambos os casos o uso da tecnologia resultou em benefícios para as grandes corporações. Os conglomerados asseguraram seus negócios com o uso da tecnologia e da bisbilhotice e, salvaram seus conteúdos da pirataria. Já os independentes que não tiverem grandes distribuidoras ou empresas de internet por trás estão fora desses novos serviços. No fim, recaímos no problema retratado anteriormente, a luta pela neutralidade recai em fortes batalhas comerciais que se utilizam da bisbilhotice. Mas não são apenas disputas comerciais que têm a capacidade de alterar o tráfego da internet, os governos também são parte integrante da 76 Cadernos ASLEGIS | 48 •Janeiro/Abril • 2013 equação escutas e invasão de privacidade. Nesse ponto o governo americano tem desempenhado importante papel, haja vista as Leis daquele país que permitem acompanhar a vida de qualquer internauta. O que faz as leis americanas serem tão poderosas é que, como vimos no tópico anterior, todas as grandes empresas de internet possuem sede naquele país. Por isso, todas essas empresas ponto com - que todos nós usamos e provavelmente não iremos deixar de usar - têm que atender à esquizofrenia antiterror que se instalou naquele país após os atentados de 11 de setembro de 2001, notadamente com as leis estetoscópias Patriot e Calea (Communications Assistance for Law Enforcement Act). Essa paranoia que não nos pertence nos atinge diretamente. A Calea é responsável por obrigar empresas americanas a instalarem backdoors em seus sistemas e equipamentos para permitir o acesso remoto desses por parte de órgãos de investigação americanos (Calea, 2012). Já a Patriot Act aumentou o poder de monitoramento sobre todos os aspectos da vida de qualquer pessoa em solo americano, incluindo, até, que livros ele tomou emprestados da biblioteca pública. O atendimento à Calea é um atentado à neutralidade, uma vez que as técnicas de deep-packet inspection (que verificam a que tipo de serviço se refere aquele pacote de dados e, caso interesse, qual seu conteúdo), implicam no monitoramento, bloqueio e uso da rede de acordo a critérios estabelecidos por uma determinada entidade, no caso os órgãos de investigação americana (que dirá do aspecto da privacidade, pisoteado por um rinoceronte nesse caso). E nesse contexto, o que dizer então da declaração do Google: O Google se preocupa profundamente com a segurança dos dados de nossos usuários. Divulgamos os dados do usuário para o governo, de acordo com a lei, e revisamos todas essas solicitações com cuidado. De vez em quando, as pessoas alegam que criamos um ‘back door’ para o governo em nossos sistemas, mas o Google não tem uma backdoor para que o governo acesse dados particulares do usuário (Lardinois, 2013). Voltando a teoria da conspiração, é difícil de acreditar nessa declaração, ainda mais quando lida em conjunto com as disposições do Patriot Act. Neste mundo em que todos sabemos que estamos sendo vigiados de alguma maneira, a Lei Patriota proíbe as empresas de confirmar ou mesmo de negar ter recebido pedido de informações sobre internautas – as chamadas National Security Letters recebidas pelos provedores de internet (ver o disposto no § 2709 em Patriot Act, 2006). E nós, reles mortais, só sabemos da existência das chamadas cartas graças ao episódio Artigos & Ensaios 77 Snowden. Voltando aos executivos da maior empresa ponto com, seu presidente, Larry Page, declarou, ainda mais em 2013: Qualquer sugestão de que o Google está divulgando informações sobre a atividade de Internet dos nossos usuários em tal escala é completamente falsa (citado em Lee, 2013). Apesar de não termos mais provas do que aquelas apresentadas por Snowden ao The Guardian, não é muito mais interessante acreditarmos que o governo americano vasculha, de fato, cada palavra digitada em todos os computadores do mundo e que digitar a frase ‘como construir uma bomba’ acende uma luz vermelha nos celulares dos chefes do FBI, NSA e de vários generais e burocratas entre Nova Iorque e Washington, passando pela Virigina? A reação da sociedade Esse aumento da influência das grandes corporações e do monitoramento, principalmente americano, aliada à perda da visão romântica do poder libertário das tecnologias da informação despertou reações ao redor do mundo. Diversos instrumentos intentaram endereçar o tema da neutralidade e nivelar novamente a balança. O berço da internet foi um dos lugares que largaram na frente. Em 2009, o órgão regulador americano, FCC (Federal Communications Commission), abriu consulta pública para colher sugestões sobre como manter a internet livre e aberta. Em 2011, o órgão apresentou a resolução (Final rule) “Preservando a Internet Aberta” (Preserving the Open Internet) (FCC, 2010). Três foram as exigências ali estabelecidas aos provedores: 1) transparência das regras de gerenciamento; 2) não bloquear conteúdos legais ou serviços de competidores; 3) não discriminar o tráfego de maneira não razoável (ou, em outras palavras, gerenciar o tráfego de maneira razoável). Apesar de essas regras serem um sinal claro de que o órgão regulador vislumbrava a necessidade de interferir na forma de se fazer negócios na internet, há nos EUA uma longa controvérsia se o FCC poderia ou não regular a internet. Todavia, enquanto essa disputa se arrastra na justiça, em 2015, o órgão decidiu se posicionar definitivamente sobre a matéria. As novas regras, aprovadas por 3 votos a 2 e que ganharam a simpatia de Obama e Clinton e a antipatia, of course, dos republicanos, passam por uma mudança de conceito: a conexão em banda larga fixa (aquela em que um cabo entra na nossa casa) passa a ser considerada serviço público, e como tal o FCC passa a ter plenos poderes para regulá-la (Edwards, 2015). A partir dessa mudança de 78 Cadernos ASLEGIS | 48 •Janeiro/Abril • 2013 paradigma, a próxima regra atingiu em cheio o modelo que estava sendo desenvolvido pelas empresas e que ficou claro com o acordo Comcast-Netflix: a priorização de tráfego paga está proibida (Wheeler, 2015). Na União Europeia a neutralidade se encontra ainda em discussão. A proposta de nova Diretiva (equivalente a “Lei Europeia”), lançada em 2013, contém, no artigo 23, intitulado “Liberdade para prover e dispor de acesso à internet aberta e gerenciamento razoável de tráfego”, estas propostas: 1) os usuários são livres para acessar e distribuir informações e conteúdos, executar aplicativos e se utilizar de serviços; 2) os provedores não podem bloquear, diminuir a velocidade, degradar ou discriminar tráfegos de conteúdos específicos, aplicações ou serviços exceto nos casos de gerenciamento razoável de tráfego; 3) o gerenciamento razoável de tráfego inclui transparência, não discriminação e ser proporcional e necessária (para bloquear conteúdos ilegais) (European Parliament, 2013). O texto foi aprovado pelo Parlamento em 2014 (Committee on Industry, Research and Energy, 2013), mas ainda se encontra em debate no Conselho da União Europeia e de lá será remetido à Comissão Europeia quando só então se transformará em Diretiva, para depois poder ser internalizada por cada país.2 Aqui na América Latina os processos foram também mais ou menos simultâneos aos ocorridos lá fora. O Chile aprovou sua lei sobre a neutralidade de redes em 2010 (Lei no 20.453/10) e incorporou as disposições à Lei Geral de Telecomunicações (18.168/82). A Lei emendada determina, no seu novo artigo 24H, que os provedores não podem “bloquear, interferir, discriminar, entorpecer nem restringir o direito de... utilizar ou oferecer qualquer conteúdo, aplicação ou serviço legal pela internet”. Ademais, o artigo ressalta que os provedores não podem distinguir conteúdos, aplicações ou serviços de maneira arbitrária ou baseados na origem ou propriedade destes, mas que poderão gerir o tráfego desde que não afete a livre concorrência (Chile, 2010). Naquele país o regulamento entrou em vigência já no ano seguinte. No entanto, há relatos de que as operadoras continuam inspecionando pacotes e interferindo no tráfego (Huerta, 2013). A Lei brasileira que seguiu esse movimento foi aprovada em 2014. O chamado Marco Civil da Internet (Lei no 12.965/14), também abarcou o tema da neutralidade. Aliás, esse foi exatamente o ponto de maior embate político. No fim dos quatro anos de sua tramitação foi aprovado um texto que prevê a neutralidade como um de seus pilares. Apesar de a neutralidade ser a regra e ser proibido “bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados” (Art. 9o, § 3o), a Lei prevê que 2 Detalhes da tramitação podem ser obtidos em http://www.europarl.europa.eu/oeil/popups/ficheprocedure.do?reference=2013/0309(COD)&l=en, acessado em 11/05/15 Artigos & Ensaios 79 a discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada por decreto (Art. 9o, § 1o). No entanto, essa degradação deverá ser proporcional, transparente, isonômica e não discriminatória (Art. 9o, § 2o). Apesar dos principais conceitos advogados pelos defensores dos direitos civis na internet estarem todos previstos naquele diploma legal, a regulamentação desses atributos, complementares entre si, tem se demonstrado uma dor de cabeça. O assunto, no começo de 2015 ainda encontrava-se em consulta pública no Poder Executivo. Desses exemplos podemos depreender que variados países já tratam da questão da neutralidade e do avanço das grandes empresas na internet. O assunto ganhou importância legislativa e determinados arranjos comerciais deverão ser revistos. Nos EUA o acordo das vias expressas na Comcast para a Netflix deverá ser alterado, senão cancelado. As regras tão explícitas e detalhadas garantindo a neutralidade quase que absoluta contidas na proposta europeia talvez sejam a explicação do porquê do regulamento ainda se encontrar em discussão naquele bloco. No Chile, apesar do regramento já ter sido estabelecido, há discussões acerca do cumprimento das disposições. No Brasil, há sérias dificuldades a serem enfrentadas. Por um lado, é um país em que mais de 80% dos telefones são pré-pagos e de baixo consumo. Portanto é interessante a oferta de pacotes mais baratos de internet, sobretudo no pré-pago, que permitam, por exemplo, o acesso gratuito ao Facebook ou ao Twitter. Por outro lado é imprescindível garantir práticas comerciais em condições justas, transparentes e razoáveis aos usuários. Nesse contexto, vejamos, por exemplo, a seguinte oferta da TIM. Em Maio de 2015, a operadora móvel oferecia, em um determinado plano, acesso grátis ao Whatsapp, mas não para realizar chamadas de voz por aquele serviço. Nesse caso, a operadora cobrava, separadamente, descontando os bytes usados nas ligações de voz pela internet, da franquia contratada. Onde está a neutralidade razoável nesse caso? Franquia apenas de parte do serviço? Ademais, porque o acordo foi com esse aplicativo e não com outro? Sim, a briga por um lugar ao sol, por vias preferenciais e pelo acesso à base de usuários e clientes é a corrida do ouro do momento. A sociedade e as leis estão correndo atrás do mercado. No entanto, a briga e a alteração de forças, como se vê, são constantes. 80 Cadernos ASLEGIS | 48 •Janeiro/Abril • 2013 Um caminho para a neutralidade A dificuldade em se assegurar a neutralidade é a exemplificação da diferença existente entre a teoria e a prática. Uma coisa fácil e bonita é estabelecer uma declaração de princípios básicos em lei e outro muito mais difícil é explicitar, monitorar e fiscalizar o que pode e o que não pode na internet. A sociedade sempre vai caminhar um passo atrás das empresas e as leis vão tentando adivinhar o que poderá acontecer e de alguma forma direcionar minimamente o desenvolvimento do mercado. Ademais a assimetria de informações detidas pelas empresas/governos versus àquelas a que temos acesso usuários/cidadãos é abissal. E o poder das companhias sobre a internet varia não apenas de acordo com seus tamanho e importância, mas, também, com suas funções na cadeia de valor e de serviços da grande rede. Assim, os instrumentos para assegurar a neutralidade na internet deveria levar em consideração esse aspecto funcional, onde algumas empresas precisam ser, e às vezes são, mais reguladas que outras. Nesse sentido, as companhias que lidam diretamente com o público vendendo assinaturas têm obrigações bem definidas e explícitas em leis e regulamentos. Ademais os consumidores possuem maiores informações sobre a qualidade das empresas e formas de compará-las. Já os provedores de conteúdo, estes são totalmente eletivos, portanto outro tipo de regulação seria necessária, notadamente uma que estivesse voltada para a proteção dos dados do usuário. Mas existe um outro grupo de empresas que não são do conhecimento do grande público que possuem importância fundamental no funcionamento e na velocidade da internet, são as empresas que provêm a infraestrutura na rede mundial. As empresas que conectam redes, que oferecem links de alta velocidade, os pontos de troca de tráfego no Brasil e com o exterior, etc. Essas empresas, de atacado, precisam de outro tipo de regulação. Notadamente uma que trate detalhadamente da questão da publicização e da isonomia na oferta de seus serviços. Dessa forma, a formação de vias expressas na internet obedeceria a critérios rígidos e teria o potencial para manter a internet aberta a novos grupos e livre para a inovação. Por isso, talvez a regulação da neutralidade deva ocorrer em camadas. E na internet pelo menos quatro camadas podem ser identificadas facilmente: 1) usuários, 2) provedores de conexão, 3) provedores de infraestrutura, e; 4) provedores de conteúdos. A figura a seguir ilustra esse modelo. Artigos & Ensaios 81 Figura – 1 – Camadas de atividades na internet3 Dando forma a uma proposta de regulação por camadas, começaremos pelos provedores de conexão. No caso brasileiro, de grandes disparidades econômico sociais, onde nem todos tem condições financeiras e onde a imensa maioria dos acessos à internet é feita através de telefones pré-pagos, a existência de pacotes mais baratos que ofereçam acesso a determinados serviços é uma forma de popularizar a conectividade. Antes de que alguém rotule esses pacotes como ‘internet para pobre’, também há o argumento, aqui já utilizado anteriormente, que não são todos os usuários que tem a necessidade de adquirir pacotes mega premium plus. Aquelas pessoas que utilizam muito pouco o celular e que não precisam de cinquenta aplicativos em seus smartphones, ficariam mais felizes se não tivessem que adquirir um pacote ‘top’ com direito a incontáveis minutos e toneladas de gigabytes para downloads. Por isso uma neutralidade mais flexível para os provedores de conexão – sem abrir mão da transparência, razoabilidade, isonomia etc. –, especialmente na telefonia móvel, seria vantajosa para muitos brasileiros. Já a prática do pedágio dentro da internet, como o acordo Comcast-Netflix têm tudo para ser um acordo danoso para a concorrência, para os usuários e para o desenvolvimento da tecnologia. Acordos comerciais entre empresas do mesmo grupo, cláusulas (escondidas) de preferencialida3 82 Nota: figuras obtidas da internet. Cadernos ASLEGIS | 48 • Janeiro/Abril • 2013 de e uso abusivo do poder econômico (dumping, cartéis, etc.) são algumas das práticas que podem trancar a internet na mão dos mesmos detentores atuais e estancar a inovação no setor. Por isso, um regime de neutralidade absoluta seria imprescindível para os provedores de infraestrutura na internet (isto é, aqueles que não prestam serviços de conexão no varejo, ou seja, ao consumidor final). Para a última camada, a dos provedores de conteúdo, a parte mais importante a ser regulada é a da bisbilhotice e da privacidade. Nesse sentido já temos um ambiente regulatório e jurisprudência razoável no assunto. Todavia, essa é uma área que também se encontra em constante mutação, assim como os costumes e a sociedade de maneira geral. Tendo em vista o aumento da nossa dependência na internet para diversos aspectos de nossa vida quotidiana, há uma sensação geral de violação da intimidade e da privacidade nesse meio difícil de ser satisfeita. Talvez surjam serviços de e-mail gratuitos que ofereçam armazenamento ilimitado e que, em contrapartida, não leiam nossos e-mails. Mas enquanto isso, temos que saber quem o faz, e quem não, para então optarmos por aquele que nos oferecerem a melhor solução. Enquanto esse serviço, e outros, não chegarem, devem haver certos limites à comercialização dos conteúdos e das informações produzidas pelos usuários. Afinal, visto desde outro ângulo, esses aplicativos se valem do trabalho voluntário e gratuito de seus usuários que são cooptados e seduzidos para o seu uso, temos que admitir. Considerações finais para refletir Do reconto aqui elaborado podemos retirar algumas conclusões sobre o problema de como conseguir manter a internet um ambiente aberto, neutro e seguro. E, nesse sentido, os casos aqui discutidos, acredito, são um forte indicio de alguns novos paradigmas que a internet nos trouxe em sua curta existência: 1) a internet é e continuará sendo uma atividade preponderantemente comercial: 2) os usuários não vão abandonar a tecnologia e passar a viver como “bichos-grilos” - as grandes corporações possuem gente e dinheiro para comprar e desenvolver produtos fantásticos de maneira continua, e; 3) a regulação da neutralidade é muito difícil de ser assegurada na prática. Uma regulação por camadas talvez seja a solução. A internet é praticamente um serviço público. Pode não ser considerado como tal legalmente no Brasil, mas o é de fato. Telefones pré-pagos, lan-houses, aviões, ônibus, aplicativos para todo tipo de serviço e conteúdos para qualquer tipo de tribo, quase tudo está na internet. Imagino até que se procurar ‘irmãosemvotodesilencio.com’ acha. Então não seria realista pensarmos que iremos descer desse bonde. Por outro lado, acreArtigos & Ensaios 83 dito também que a visão romântica da internet também já acabou. Por isso a discussão sobre a neutralidade na internet tem ganhado formas tão maiúsculas nos últimos tempos. Se, por um lado, nunca saberemos a verdade sobre teorias conspiratórias, por outro lado já são vários os episódios que nos deram mostras de que a internet é extremamente governada e atende a interesses de grandes empresas e governos. Graças a Snowden e aos movimentos sociais despertamos para o debate da neutralidade. No entanto, atingir o equilíbrio é muito difícil. Faltam-nos três ingredientes básicos: simetria, recursos e vontade. Estabelecer um marco regulatório é apenas o começo. Referências Calea, 2012. 47 U.S. Code § 1002 - Assistance capability requirements | US Law | LII / Legal Information Institute. Chile, 2010. Consagra el Principio de neutralidad en la red para los consumidores y usuarios de internet (20.453/10), alterando la Ley General de Telecomunicaciones (18.168/82), Artículo 24 H. Committee on Industry, Research and Energy, 2013. Draft report, on the proposal for a regulation of the European Parliament and of the Council laying down measures concerning the European single market for electronic communications and to achieve a Connected Continent, and amending Directives... Croteau, D., Hoynes, W., 2006. The business of media : corporate media and the public interest, 2nd ed. Pine Forge Press, Thousand Oaks, Calif. Edwards, H., 2015. FCC Votes “Yes” on Strongest Net-Neutrality Rules | TIME [WWW Document]. Time. 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