- Santos Barosa

Transcrição

- Santos Barosa
O " ARCANUM "
de
JOÃO AUGUSTO DE CASTRO E AUGUSTO DE OLIVEIRA GUERRA
Prefácio de José Pedro Barosa*
Março de 2000
*
O conteúdo deste texto é da exclusiva responsabilidade do autor.
Prefácio
1. Apresentação.
O “livro” que agora se inclui, por reprodução, neste número da série de Estudos e Documentos do Museu Santos Barosa é, certamente, um documento da maior importância para o
estudo da história técnica da produção vidreira em Portugal, num período que, grosso modo,
corresponde ao meio século compreendido entre 1875 e 1925. Trata-se do “receituário” de
João Augusto de Castro, o seu “arcanum”1, depois continuado por Augusto de Oliveira Guerra, que o tinha adquirido aos seus herdeiros nos princípios do século2.
Presentemente, este receituário encontra-se guardado em depósito no Instituto de Arquivos
Nacionais / Torre do Tombo - Arquivo Distrital de Leiria, onde, por razões de conservação,
pode ser consultado na versão em microfilme.
Com a inclusão deste texto nos Estudos e Documentos do Museu Santos Barosa divulgase junto do público interessado o próprio documento e facilita-se a sua consulta de uma forma
que poderá ser suficiente para a maioria dos interessados, atenta a sua especificidade.
Efectivamente, quando no início deste prefácio se disse tratar-se de um livro, escreveu-se
essa palavra entre aspas. Mais rigorosamente, poder-se-ia ter dito que se tratava de um caderno de apontamentos, visivelmente escritos com o lápis ou caneta que se encontrava à mão,
muito usado e muito consultado, em parte, mesmo, já ilegível por apagado, e com os cantos
inferiores das folhas a evidenciarem a marca indelével dos dedos que as foram voltando.
Era um documento de uso pessoal, que a natureza das coisas fazia secreto, que não se destinava à posteridade, pelo menos em termos de conhecimento geral3, e que hoje, portanto,
exige particulares cuidados de conservação, devendo evitar-se, mesmo, a manipulação não
indispensável. O que, aliás, só confere mais interesse a esta edição, que permite aos interessa1
Termo latino cujo significado é o de “segredo”. A utilização deste termo, neste contexto, que poderá ser melhor
compreendida com base em considerações que serão feitas no remanescente do texto, prende-se com o secretismo tradicional das composições do vidro, especialmente no que se refere à identificação empírica das matériasprimas mais adequadas e dos componentes que permitiam a obtenção de novos vidros, ou de vidros de melhor
qualidade, especialmente durante a Idade Moderna, a época de ouro da alquimia.
2
Segundo informação oral do sr. Aurélio Guerra, filho de Augusto de Oliveira Guerra.
3
Em alguns casos, era, também, através destes "livros" e da preservação do secretismo do seu conteúdo, que as
famílias de vidreiros preservavam o monopólio do seu saber nas mãos dos herdeiros escolhidos.
I
dos disporem de um meio de o consultar e ter permanentemente disponível sem correr o risco
de o degradar, apesar de se reconhecerem as limitações óbvias do suporte escolhido e da não
transcrição do documento4.
Como nota adicional, mas de maneira nenhuma secundária, deixa-se registado que a preservação cuidadosa deste importante documento, se deveu ao sr. Aurélio Guerra o qual, recentemente, e de forma muito honrosa, me solicitou que aceitasse assumir a responsabilidade de
dar continuidade a essa sua preocupação, devendo entender-se, já nesse quadro, o depósito e
microfilmagem junto do Instituto Nacional de Arquivos / Torre do Tombo e, também, esta
edição, com a qual, pela primeira vez em Portugal, se divulga publicamente um documento
desta natureza.
De natureza algo diferente, mas partilhando importantes traços comuns, é um outro conjunto de apontamentos sobre composições de vidros, desta vez publicado pelo seu autor, em
1926, que se apresentava como "Wilhelm Schmidt, director de fábrica reformado, Arnstadt In
Thüringen", traduzido e reeditado em 1998 por Finn Lynggaard5, artista de "Studio Glass".
Este último justifica a reedição pelo interesse em recuperar para a actividade do "Studio
Glass" todo um conjunto de cores anteriormente usadas e pela facilidade em que o conhecimento destas inúmeras receitas de composições de vidros se pode traduzir para o experimentalismo próprio da criação artística em vidro. Na origem da edição original, alemã, do livro
está, certamente, o conjunto de apontamentos que Wilhelm Schmidt recolheu durante uma
vida passada na actividade vidreira, e aqui está a grande semelhança entre este livro e os arcana a que nos referiremos adiante, entre os quais o de João Augusto de Castro e Augusto de
Oliveira Guerra, que agora se traz ao conhecimento público. Diferente é o facto do seu autor
ter resolvido publicar, ele próprio, depois de reformado, o que, possivelmente, fora o seu arcanum.
Espero, ainda, que a inclusão deste caderno de apontamentos - integralmente, com todas
as páginas reproduzidas e apresentadas pela ordem com que estão no original6 - num número
dos Estudos e Documentos do Museu Santos Barosa possa motivar os possuidores de outros
documentos do mesmo género a dar-lhes a importância devida, a guardá-los, a tomarem as
precauções convenientes à sua conservação, e a disponibilizá-los, por alguma forma, aos
investigadores.
Para, de alguma forma, o enquadrar, apresentam-se, também, umas notas introdutórias,
necessariamente muito breves, pois a temática tratada, possivelmente, será do conhecimento
4
Opção decidida em função das dificuldades e custo que essa transcrição implicaria, quando o original passou a
estar disponível para quem o queira consultar e face ao número, que se estima muito reduzido, de pessoas para
quem a leitura deste número dos Estudos e Documentos não será suficiente.
5
Cfr. Retired Factory Director Wilhelm Schmidt, Arnstadt In Thüringen 1926, Recipe Book for Practical Glass
Melting, Translated, Edited and Commented by Fynn Lynggaard, Cider Press, s.l., 1998.
6
Chama-se a atenção dos leitores para o facto das páginas do caderno apenas em parte se encontrarem numeradas e de, na sequência dessa numeração, faltarem alguns números sem que, contudo, se note a falta de folhas.
Também se chama a atenção para o facto da ordem das páginas não coincidir integralmente com a ordem cronológica.
II
dos leitores. Para quem não for este o caso, deixam-se algumas sugestões bibliográficas sobre
diversos aspectos focados.
2. Uma perspectiva histórica.
Os manuscritos, ou documentos similares, contendo as “receitas” da composição do vidro
têm uma tradição histórica muito longa que, de alguma forma, se prende com as próprias origens do material.
Efectivamente, o vidro artificial, no sentido lato do termo, pois existem inúmeros vidros, é
um material sintético que só o desenvolvimento da química analítica, a partir da segunda
metade do século XVIII, permitiu compreender. Até aí, e mesmo depois, pode dizer-se que o
vidro era um fruto do saber empírico, da experiência e das experiências que iam sendo feitas
com os seus elementos constituintes, as composições, transformadas pela acção do calor
intenso.
Por esta razão, mesmo, os receituários do vidro são quase tão antigos quanto o próprio
vidro. Logo, desde que houve matéria para escrever a propósito da composição e da fusão do
vidro, essa matéria foi passada a escrito, estando datadas de meados do século XVI A.C. as
primeiras receitas de composição de vidros que se conhecem.
2.1. As origens do vidro.
O vidro artificial tem uma origem que ainda está marcada pela incerteza e pela insuficiência do conhecimento. A distribuição da importância relativa pelo acaso e pelo trabalho metódico, no que se refere a essa origem, ainda suscita muitas dúvidas, embora ambos, naturalmente, tenham desempenhado o seu papel. Até à primeira metade do século XIX acreditavase que a origem do vidro, o primeiro momento deste material de síntese, se devia ao mais
III
puro acaso, como decorria da bem conhecida história relatada por Plínio-o-Velho no livro
XXXVI da sua História Natural7.
Segundo esta história, de forma muito resumida, um novo material, uma substância vidrosa, completamente desconhecida, teria sido identificada quando um grupo de mercadores fenícios, que aportaram numa praia junto à foz do rio Belus, desejando preparar uma refeição,
se socorreram de uns blocos de natro da carga do seu navio como suporte dos utensílios. Por
acção do calor da fogueira, o natro fundiu e misturou-se com a areia, resultando então a tal
substância nova, o vidro.
Não é aqui o lugar para discutir em pormenor cada uma das frases ou palavras da história
relatada por Plínio, nos seus múltiplos sentidos e interpretações possíveis. Basta referir que o
próprio Plínio, conhecedor da fidedignidade, ou falta dela, das suas fontes, tem o cuidado de
apresentar o seu relato como "uma história que se conta"; uma lenda, portanto.
O aspecto mais importante, porque revelador da limitação do conhecimento de então, é
que o vidro teria sido descoberto em consequência do mais puro acaso, da conjugação fortuita
de um conjunto de circunstâncias totalmente alheias ao fenómeno e, aliás, muito simples. O
calor do fogo combinara numa substância nova a areia da praia com o natro. Evidentemente,
tratava-se de uma areia particular, a da foz do rio Belus, que poderia conter uma percentagem
considerável de óxido de cálcio, para além da sílica, com o natro, que é um composto natural
de óxidos de sódio, carbonato e bicarbonato, portanto, um fundente da sílica. Só assim, aliás,
considerando que a mistura dos materiais incluiria uma elevadíssima proporção de fundente,
seria possível, com uma fogueira a céu aberto atingir e manter uma temperatura suficientemente elevada8 para provocar a síntese dos materiais da composição numa substância vidrosa.
Que esse vidro não teria as propriedades que hoje se atribuem ao material é, também, evidente. Muito haveria que progredir e descobrir até se chegar aos inúmeros vidros diferentes que
se conheciam já na antiguidade, quer em termos de composição, quer em conhecimentos de
pirotecnia e condições de fusão. O que, aliás, é reconhecido pelo próprio Plínio (op. cit.).
A partir da primeira metade do século XIX, quando começaram a ser conhecidos os resultados das grandes expedições arqueológicas ao Médio Oriente, partes do relato de Plínio passaram a ser claramente contestadas. Apareceram vidros noutros lugares, reportados a outros
tempos bem mais antigos, e com composições bem mais complexas do que as que poderiam
resultar de uma simples mistura de areia com fundente.
7
Cfr. Pline L' Ancien, Histoire Naturelle, Livre XXXVI, texte établi par J. André, traduit par R. Bloch e commenté par A. Rouveret, ed. bilingue, Collection des Universités de France, Société d' Édition "Les Belles Lettres", Paris, 1981, pp. 114-116.
8
William L. Munro, Window Glass in the Making, an Art, a Craft, a Business; ed. American Window Glass
Company, Pittsburgh, 1926, pp. 21-22, relata uma experiência de replicação das condições que segundo o relato
de Plínio teriam dado origem à descoberta do vidro, na qual se obtém um resultado plausível, na linha do descrito por Plínio. Para uma apreciação da relação entre a temperatura, a viscosidade do vidro e a sua composição,
com especial menção aos vidros antigos, pode ver-se, por exemplo, Roy Newton and Sandra Davison, Conserva-
IV
O que não aparecia era uma explicação alternativa para a origem do vidro, ou vidros, artificiais, matéria ainda hoje objecto de estudo e debate, quer no que respeita à fusão e, portanto,
no que respeita à produção do vidro propriamente dito, quer no que respeita ao trabalho do
vidro, actividades que, no princípio, seriam disjuntas9.
Na lenda relatada por Plínio falham, sobretudo, o tempo e o modo. O tempo, porque há
vidros anteriores e o modo porque a evidência acumulada pela arqueologia vai no sentido de
contrariar a noção do instante ocasional da descoberta, substituindo-a por um processo longo
de identificação e autonomização do novo material, que poderia ter demorado um milénio.
Os vidros artificiais mais antigos que a arqueologia permitiu descobrir e datar são dos
séculos XXIII e XXI A.C., sendo vidros destinados a ser transformados e apresentando uma
cor azul pronunciada, indiciadora da presença de óxidos metálicos de cobre e / ou cobalto, o
que sugere que o processo de obtenção do próprio vidro tivesse estado ligado à metalurgia,
particularmente à metalurgia do cobre, em cujo processo de fundição pode resultar um residuo
vidroso ou um vidro azul10, conforme as impurezas contidas no minério.
2.2. Tecnologia e "receitas" do vidro.
Entre as descobertas maiores da arqueologia, pelo menos no que se refere ao vidro, contase a da biblioteca de Assurbanipal, que reinou no século VII A.C., que estava guardada no
palácio real de Nineveh. Nas escavações deste palácio foi encontrado um grande número de
placas com escrita cuneiforme que vieram a ser identificadas como referindo-se ao vidro.
Mais recentemente, estas placas e o seu conteúdo foram objecto de estudos pluridisciplinares aprofundados, cujas conclusões estão publicadas em Oppenheimer et al. (1988)11.
tion of Glass, Butterworths, London, 1989.
9
Cfr. E. Mariane Stern and Birgit Schlick-Nolte, Early Glass of the Ancient World, 1600 B.C.-A.D. 50: Ernesto
Wolf Collection, Verlag Gerd Hatje, Ostfildern, Germany, 1994.
10
Também esta experiência foi objecto de réplica, e teve os resultados previstos. Cfr. John E. Dayton, The Discovery of Glass: Experiments in the Smelting of Rich, Dry Silver Ores, and the Reproduction of Bronze Age-type
Cobalt Blue Glass as a Slag; American School of Prehistoric Research Bulletin, no. 41, 1993, Peabody Museum
of Archaeology and Etnology, Harvard University, Harvard University Press (dist.), Cambridge, Massachusetts,
U.S.A., 1993.
11
Cfr. A. Leo Oppenheim, Robert Brill, Dan Barag and Axel von Saldern, Glass and Glassmaking in Ancient
Mesopotamia: An Edition of the Cuneiform Texts Which Contain Instructions for Glassmakers With a Catalogue
of Surviving Objects, The Corning Museum of Glass Press, Corning, New York, U.S.A., Reprint, 1988.
V
Analisados os textos, concluiu-se que, mais do que apresentar a simples composição do
vidro, descreviam já, quer a relação entre os óxidos metálicos a utilizar e as características
cromáticas dos vidros resultantes, quer vários processos, fases e problemas da produção fusão, do vidro.
Num outro plano, foi possível aos estudos referidos determinar que as receitas do vidro
em causa datariam de meados do 2º milénio A.C., tendo sido objecto de compilação e incorporação numa das bibliotecas reais anteriores, donde teriam passado para a de Assurbanipal.
Cerca de um milénio antes do tempo a que se refere a lenda relatada por Plínio, não só já
se conhecia o vidro, como se conheciam vários vidros e várias composições, interligando causas com efeitos.
Deste conjunto de receitas, que segundo os estudos incluídos no livro citado se referem a
um conjunto de 40 a 60 vidros diferentes, ressaltam as que se referem à produção de vidros
azuis, vermelhos e amarelos.
Também incluído neste livro está um estudo de Robert Brill dedicado à análise química e
à tradução moderna das receitas dos vidros mesopotâmicos, que foi ao ponto de procurar
reproduzir um dos vidros conforme a receita, com o objectivo de testar a sua verosimilhança
e de identificar os processos e problemas envolvidos na transformação da composição num
vidro.
Sem entrar aqui nos longos detalhes técnicos da experiência, para o que se remete o leitor
mais interessado para a obra citada, regista-se o extremo cuidado na identificação tão rigorosa
quanto possível das matérias-primas a utilizar na experiência com aquelas de que poderia dispor quem, há uns 3.500 anos, tivesse feito vidro com base naquela receita, por causa do papel
que as eventuais impurezas poderiam desempenhar, ou ter desempenhado, no resultado final.
Vários dos ingredientes foram recolhidos na Mesopotâmia segundo as indicações da própria
receita. Vale a pena referir o comentário de Brill (op. cit.) ao resultado da sua experiência
(nossa tradução):
- "O produto que resultou não só era vidro, como era um vidro de qualidade inesperadamente elevada, com poucos traços, se alguns, de material não reagido e apenas um número
moderado de bolhas".
Vendo as placas de Nineveh no seu conjunto é claro que se está perante um receituário do
vidro, o primeiro que se conhece, e que demonstra que estes arcana são quase tão antigos
quanto o próprio vidro e quanto a escrita.
Refira-se, adicionalmente, que nas escavações arqueológicas da cidade de Babilónia terão
sido encontradas mais duas placas contendo receitas de composições para vidro, também
escritas com caracteres cuneiformes, que os autores citados datam da mesma época das de
Nineveh.
VI
Depois destas, as referências ao vidro que se conhecem são superficiais e esparsas, mesmo
em comparação com o conteúdo dos escritos cuneiformes referidos. Entre estas referências
está a de Plínio, referida acima.
O conhecimento sobre o vidro enquanto material, nas suas múltiplas variedades, assim
como sobre os processos de trabalho e modelação foi-se desenvolvendo, tendo surgido novas
cores, novos métodos de produção, novas formas e novos tipos de objectos, num processo
geral de crescente complexidade, que poderá não ter sido isento de recuos, como o que se
admite possa ter ocorrido no Egipto, entre os séculos XII e VII A.C..
Depois, será só na Idade Média, ao que se admite, nos princípios do século XII, que surge
um novo texto que pretende registar o conhecimento sobre o vidro e ensinar como se faz e se
trabalha o material, que é Segundo Livro do famoso tratado do monge Teófilo12.
É um texto centrado nos problemas caracteristicamente europeus, escrito na Europa, por
um monge, ou clérigo, cuja identidade precisa não é conhecida. Como ocorria na altura, os
principais centros de fabrico do vidro estavam ligados às instituições eclesiásticas e tinham
por finalidade a produção de vidro plano para os vitrais com que se pretendia decorar as igrejas românicas e góticas. Neste caso, a questão já não se centrava tanto nas composições visando a obtenção de diferentes vidros, quer porque essas já fossem mais conhecidas, quer
porque a gama de objectos e cores que se desejava era mais limitada, mas nos cuidados a ter
no processo de fusão, para obter uma qualidade aceitável na massa do vidro, e nos processos
de laboração. Deixara-se de pretender usar o vidro para imitar as pedras semi-preciosas, como
acontecera na Antiguidade e como, em alguma medida, voltará a suceder no período áureo da
vidraria de Veneza.
No caso, e em contrapartida, o processo da fabricação da chapa de vidro e a necessidade
do aperfeiçoamento desta, ditavam a conveniência de uma atenção acrescida ao método de
produção, que era o do cilindro soprado.
Posteriormente, com o alvor da Idade Moderna, a cultura material altera-se substancialmente na Europa, passando os artigos de luxo a serem objecto de atenção crescente. No caso
do vidro, o desenvolvimento de novas composições e, mesmo, a recuperação ou reinvenção
de receitas antigas perdidas passa a constituir preocupação importante. Os objectos de vidro
passam a ser destinados a usos bem mais diversificados, que ultrapassam o simples utilitarismo, e está-se perante o princípio da fase do esplendor vidreiro de Veneza13.
12
De que existe edição portuguesa. Cfr. Teófilo, As Diversas Artes, ed. preparada por V. Ferreira Jorge e traduzida por M. F. Meneses Cordeiro, in Assembleia Distrital de Lisboa, in Boletim Cultural, nº. 89, 1º tomo, Lisboa,
1983.
13
Para uma visão ampla deste fenómeno sugere-se a consulta de W. Patrick McCray, Glassmaking in Renaissance Venice: The Fragile Craft, Ashgate Publishing, England, 1999. Para maior detalhe, em alguns aspectos,
pode também consultar-se a tese de doutoramento em que este livro se baseia, cfr. W. Patrick McCray, The Culture and Technology of Glass in Renaissance Venice, Dissertation for the degree of Doctor of Philosiphy, Gra-
VII
Mas, mais diversidade, em geral, significa maior diferença, maior complexidade e mais
dificuldade. É necessária mais, e nova, experimentação, e maior rigor no controle e conhecimento dos resultados. Mais uma vez se torna imprescindível o registo escrito dos resultados
da experimentação e, a partir do século XV, são vários os receituários do vidro que se conhecem. Quase todos italianos, ou de algum modo ligados à vidraria da Península Itálica, o que
não surpreende, pois Veneza era o grande centro da inovação vidreira que, por todo o lado, se
pretendia emular.
Verifica-se, no entanto, uma particularidade digna de nota, que é a destes receituários se
pretenderem secretos. O conhecimento tornara-se numa vantagem de mercado que se desejava
preservar e explorar comercialmente. O que estava em causa era a valorização da inovação e a
recuperação dos custos da experimentação, o que só se conseguia com a protecção do poder
de monopólio inerente a ser-se o único a saber como fazer14. Cada mestre vidreiro tinha os
seus segredos que queria preservar e valorizar. Mas também havia um valor colectivo que o
Estado pretendia preservar e que se traduziu nas restrições impostas por Veneza ao movimento dos vidreiros de Murano15. Num contexto de maior simplicidade, até porque referente,
principalmente, ao processo de trabalho, como era o caso da vidraria da Lorena, a protecção
do segredo não necessitaria da escrita e, por imposição legal, o fabrico do vidro plano estava
restringido aos membros masculinos legítimos de quatro famílias16. Situação similar era a que
se verificava na Normandia, para o vidro em coroa.
Em Veneza, porém, não era só assim. A variedade dos vidros e dos esmaltes era tanta,
assim como era contínua a experimentação visando ainda mais variedades, que haveria necessidade de manter registos escritos e de manter estes secretos: nasciam os arcana propriamente
ditos. Estes eram, em todo o caso, documentos privados e privativos dos seus autores.
Paralelamente, vinha a desenvolver-se o estudo da pirotecnia, da fundição e da fusão, dos
fornos e dos correspondentes produtos. Também deste estudo resultaram diversos livros da
maior importância, como o de Agricola (1556), onde o vidro era explicitamente consideraduate College, The University of Arizona, 1996, UMI Dissertation Services, Ann Arbor, Michigan, no. 9720571,
U.S.A., não publicada.
14
Apesar de datar desta época o surgimento do sistema de patentes e privilégios estatais. Para uma visão ampla
do fenómeno, que ultrapassa, evidentemente, o caso do vidro, cfr. E. Ashtor, The Factors of Technological and
Industrial Progress in the Later Middle Ages, The Journal of European Economic History, vol. 18, n. 1, Spring
1989, Roma, pp. 7-36.
15
Sobre a importância das migrações, temporárias ou permanentes, dos vidreiros de Murano, para a difusão da
tecnologia vidreira, e do confronto desta forma de transferência tecnológica com a que assentou na difusão dos
livros técnicos, cfr, W. Patrick McCray, Creating Networks of Skill: Technology Transfer and the Glass Industry
of Venice, in The Journal of european Economic History, vol. 28, Fall 1999, ed. Banca di Roma, Roma, 1999,
pp. 301-333. Cfr, também, Eleanor S. Godfrey, The Development of English Glassmaking: 1560-1640, Oxford
University Press, Oxford, 1975 e, para um quadro bem mais vasto que o do vidro, mas envolvendo também este
material, com referência particular aos vidreiros da Lorena, Warren C. Scoville, The Persecution of Huguenots
and French Economic Development: 1680-1720, Publications of the Bureau of Business and Economic
Research, University of California, University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 1960.
VIII
do17.
Já no século XVII, em 1612, no entanto, seria publicada uma obra que, sendo essencialmente um receituário do vidro, tinha por objectivo difundir todo o conhecimento que estava
ou podia estar associado à produção e laboração do material vidro. Trata-se do livro L' Arte
Vetraria de Antonio Neri18, o padre florentino que usou para as suas experiências um forno e
instalações especialmente construídas para esse fim pelos Medici, então no poder em Florença.
Não é possível exagerar a importância deste livro que marcou, ao menos fora de Veneza,
todo o conhecimento europeu sobre o vidro. A primeira edição do livro, publicada em 1612,
como se disse acima, estava escrita em italiano comum, o que o colocava ao alcance dos
vidreiros italianos, mas o excluiria, presumivelmente, do resto da Europa. No entanto, reconhecida que foi a sua importância, o livro, para além de outras edições italianas, veio a ser
publicado em latim, em Amsterdão. Recorde-se, a propósito, que ao tempo o latim era como
que uma língua franca da intelectualidade renascentista.
Quem quisesse aprofundar o conhecimento sobre o vidro , tinha que tomar este livro como
referência fundamental, que foi o que aconteceu com o médico e investigador inglês, Christopher Merret, um dos fundadores da Royal Academy, de Londres, que estava envolvido no
grande programa de investigação sobre a composição e a fusão do vidro tornado necessário
pela proibição, naquele país, do uso da lenha como combustível dos fornos do vidro, e que
virá a culminar na descoberta desse novo vidro que veio a ser conhecido como o cristal de
chumbo.
Merret, considerou o livro de Neri suficientemente importante para o traduzir para inglês e
para o editar e publicar, acrescentando os seus comentários e observações, ainda que sem
revelar o segredo do cristal de chumbo ou, sequer, as investigações em curso, que, como se
sabe, envolviam não só uma nova composição, como novas condições de fusão derivadas do
uso do carvão como combustível e dos potes cobertos.
Algum tempo depois, foi Johann Kunckel von Lowenstern, um destacado químico e
vidreiro alemão que, com base na edição ampliada por Merret, traduziu o livro para alemão,
acrescentando-lhe, também, os seu próprios comentários e observações. De notar que também
este vidreiro se coibiu de acrescentar tudo o que sabia e poderia ser de interesse para a comunidade vidreira, nomeadamente as suas descobertas sobre o vidro vermelho-rubi de ouro, cor
esta que não se obtém apenas pela fusão da composição, donde o vidro sai branco, mas que
16
Que, contudo, ainda se comprometiam, sob juramento, a não divulgar os segredos da sua arte fora do esquema
familiar previsto.
17
Cfr. Georgius Agricola, De Re Metallica, traduit de l' édition originale de 1556 par Albert France-Lanord,
Gérard Klopp Éditeur, 2 ème édition, revue et complétée, Thionville, 1992. O Livro XII desta obra está parcialmente dedicado ao vidro, com ênfase nos fornos e condições de fusão.
IX
exige o posterior reaquecimento, uma ou mais vezes, da peça de vidro para se obter a coloração desejada19.
Ambos estes autores, que muito contribuíram para a difusão do livro de Neri por toda a
Europa, tiveram o cuidado de, nas edições que prepararam, indicar precisamente do que se
tratava: reedições traduzidas e ampliadas do livro de Antonio Neri.
Em França, Haudicquer de Blancourt, em 1697, também publica um livro sobre vidro que,
aparentando tratar-se de um novo manual, pouco mais é do que uma outra edição ampliada,
com as suas próprias observações, do mesmo livro de Neri. Deste livro dirá Bontemps
(1868)20, muito crítico, que é tudo Neri, e o que não é Neri, é asneira.
Ao longo de todo o século XVII, portanto, o livro de Antonio Neri, o primeiro manual
escrito com o objectivo de difundir o conhecimento sobre o vidro será traduzido e estudado
em todos os principais países europeus. Mas a sua vida útil ainda não chegara ao fim
Ainda em meados do século XVIII o enciclopedista Paul Henry Thiry, Barão d' Holbach,
traduzirá para francês a edição de Kunckel, acrescentando-lhe outros trabalhos21. Finalmente,
Carlos III de Espanha também mandará traduzir o livro para espanhol, para uso dos mestres
vidreiros da Real Fabrica de Cristales da Granja de San Ildefonso, o que sucedeu em 1774.
Esta tradução espanhola, copiada em vários exemplares manuscritos, só anos mais tarde
veio a conhecer a imprensa. Como curiosidade, refira-se que a cada exemplar manuscrito foi
mandado acrescentar algumas folhas em branco e a cada mestre vidreiro foi ordenado que as
usasse para escrever os seus próprios comentários22.
Como se vê, a produção vidreira europeia, ainda que com importantíssimas excepções,
como o cristal de chumbo inglês, algumas peculiaridades venezianas e o vidro potássico da
Boémia, viveu cerca de dois séculos marcado, no plano técnico, pelo trabalho de Antonio
18
Reimpresso recentemente em fac-simile, cfr. Antonio Neri, L' Arte Vetraria, 1612, ed. a cura di Rosa Barovier
Mentasti, Edizioni Il Polifilo, Milano, 1980.
19
Sobretudo no contexto da produção de esmaltes pode admitir-se que o uso do ouro na coloração do vidro
fosse já conhecido desde o século XVI, ainda que esta conclusão não seja inteiramente segura, como se refere
em Roy Newton and Sandra Davison, (op. cit.). Deste aspecto também se ocupa Luigi Zecchin na introdução
que escreveu ao Il Ricettario Darduin, Un Codice Vetrario del Seicento, Trascritto e Commentato, Arsenale
Editrice, Venezia, 1986.
20
Cfr. G. Bontemps, Guide du Verrier. Traité Historique et Pratique de la Fabrication des Verres, Cristaux,
Vitraux, Librairie du Dictionnaire des Arts et Manufactures, Paris, 1868.
21
Cfr. Art de la Verrerie de Neri, Merret et Kunckel auquel on a ajouté [...], traduits de l' Allemand par M. D***
[Paul Henry Thiry, Baron d' Holbach], Avec Approbation du Roi, A Paris, chez Durand et chez Pissot,
M.DCC.LII..
22
Tradução de Miguel Suárez y Núñez da versão francesa de d' Holbach de 1752. Quando o tradutor foi à fábrica
conferir os termos técnicos com os mestres estrangeiros estes mostraram conhecer o conteúdo da obra original de
Neri, ainda que não na totalidade. O manuscrito veio a ser editado, sem os eventuais comentários dos mestres
vidreiros, em 1780. Cfr. Paloma Pastor Rey de Vinãs, Historia de la Real Fábrica de Cristales de San Ildefonso
Durante la Epoca de la Ilustracion (1727-1810), Fundacion Centro Nacional del Vidrio, Consejo Superior de
Investigaciones Científicas y Patrimonio Nacional, Segovia, 1994, pp. 114 ss.
X
Neri, que não impecilhou o desenvolvimento do conhecimento mas, antes, lhe serviu de base,
por ter sido tornado público.
Paralelamente a esta evolução "impressa" do conhecimento vidreiro, outros vidreiros continuavam com os seus programas próprios de experimentação, registando cuidadosamente os
frutos das suas experiências e mantendo secretos os resultados que consideravam merecê-lo: apesar dos livros, os arcana mantinham o seu interesse e utilidade, até porque os pormenores
e as peculiaridades podem ser decisivos no quadro do conhecimento empírico e destes não se
ocupavam os manuais e os tratados, frequentemente mais generalistas e, portanto, mais abstractos.
São vários os arcana que se conhecem deste período23 e dentre estes avulta o chamado
Ricettario Darduin, a que já se fez referência, que Zecchin encontrou arquivado entre os
papéis de Estado de Veneza e que veio a editar e publicar acompanhado de importante estudo
sobre a vidraria veneziana da época. Para se poder apreciar devidamente a importância histórica destes documentos basta notar, como faz Zecchin, que neste receituário do vidro transparece já o conhecimento da importância da adição do óxido de chumbo na composição do
vidro para a obtenção de determinadas propriedades no vidro resultante. Não se trata de uma
descoberta anterior, do cristal de chumbo à inglesa, mas a constatação de que parte do caminho já tinha sido percorrido, de forma independente, e anterior, nomeadamente, em Murano24.
Mas o que é mais importante notar, neste contexto, é que, contrariamente ao que sucedia
com as obras impressas, e apesar das eventuais semelhanças de conteúdo, os arcana pretendiam-se secretos.
Os vidreiros tinham a sua experiência e faziam as suas experiências, querendo reservar
para si o que com elas aprendiam. Esse saber apenas o transmitiam a quem o entendessem,
nomeadamente à família. Os arcana não eram, portanto, livros, mas "cadernos de apontamentos", escritos com objectivos iminentemente práticos, ao contrario dos livros, tratados e
manuais, que visavam, normalmente, um saber mais geral.
23
Referentes ao vidro, ou referentes a outros materiais. Vivia-se em plena época da alquimia.
A questão da introdução de óxido de chumbo na composição do vidro é, toda ela, de grande interesse. Sabe-se,
da leitura das placas de Nineveh que esse material estava identificado e era usado em determinadas circunstâncias. Sabe-se, das análises químicas de vidros antigos, que o óxido de chumbo entrou na composição de alguns
vidros em percentagem tal que se tem de excluir a hipótese dessa introdução ser acidental. Sabia-se, em Veneza,
pelo menos no quadro da produção de esmaltes, que se se adicionasse óxido de chumbo à composição do vidro,
as propriedades desse vidro viriam modificadas de determinada forma, e Neri (op. cit) dedica o Livro Quarto do
seu tratado aos vidros em cuja composição era usado o óxido de chumbo, que ele considerava os vidros superiores. Mas isto, tal como o simples facto de se conhecer como eram alteradas as propriedades do vidro quando se
usava óxido de chumbo na composição, não é equivalente à descoberta do cristal à inglesa. Cfr. McCray (1999),
op. cit., pp. 326 ss., que acentua o facto de George Ravenscroft, que foi quem patenteou a fórmula da composição do cristal de chumbo, ter vivido em Veneza, onde era comerciante de vidros e onde, provavelmente, mantinha contactos com os vidreiros e as fábricas de vidro. De regresso a Inglaterra, empregou vários vidreiros italianos na sua fábrica de vidros do Savoy, em Londres, e sempre se manteve em contacto com um irmão que permaneceu em Veneza.
24
XI
A partir da segunda metade do século XVIII, inicia-se o desenvolvimento do estudo da
química analítica e, com esta, dos vários materiais e elementos, o que se veio a revelar da
mais extraordinária importância, também no caso do vidro que, passo a passo, passava a ser
compreendido e, portanto, melhor conhecido.
É, também, nesta época que começam a chegar a algumas - muito poucas - fábricas de
vidro, homens com formação científica, capazes de entender os resultados dos novos caminhos da investigação universitária e laboratorial. No extremo oposto, vale a pena mencionálo, Lavoisier chegou a ser um dos administradores da Saint-Gobain.
Muito interessante, e revelador dos problemas defrontados na indústria vidreira nesta fase
de transição, assim como da importância de certas "impurezas" introduzidas inadvertidamente
na composição, para qualidade do vidro, é a questão da identificação do papel do óxido de
cálcio na composição do vidro, que Hamon e Perrin (1993)25 descrevem.
Estava-se em meados do século XVIII e, muito sumariamente, o que sucedeu foi que na
fábrica de Saint-Gobain, para o fabrico das chapas de vidro, se manipulavam massas enormes
de vidro, sujeitas à variabilidade da qualidade das sodas naturais usadas, do que resultavam
colorações estranhas, chapas de vidro invendáveis e, portanto, grandes prejuízos. O director
da fábrica, Pierre Delaunay Deslandes, resolveu então passar a usar sodas purificadas, mas
descobriu que isso lhe trazia toda uma série doutros problemas ligados à instabilidade do próprio vidro, derivada, nomeadamente, da sensibilidade à humidade atmosférica.
Das experiências então feitas, matéria-prima a matéria-prima, percebeu a importância de
controlar rigorosamente a introdução do carbonato de cálcio na composição do vidro26, ainda
que o papel desta matéria-prima no fornecimento do óxido de cálcio e o deste elemento na
estabilização da estrutura molecular do vidro só largas dezenas de anos mais tarde começasse
a ser compreendido. Mas foram os resultados das experiências de então que permitiram estabelecer uma composição do vidro relativamente standard, a qual possibilitou, por sua vez, a
utilização da soda artificial, cujo processo de obtenção foi inventado por Leblanc em 1790, e
que propiciou uma significativa redução dos custos de produção do vidro e, por conseguinte, a
expansão dos mercados.
25
Cfr. Maurice Hamon et Dominique Perrin, Au coeur du XVIIIc Siècle Industriel: Condition Ouvrière et Tradition Villageoise à Saint-Gobain, Éditions P.A.U., s.l., 1993, págs. 272-277. Cfr., também, Mathieu Boaglio,
Évolution des Conditions de Production dans l' Industrie du Verre en France de la Révolution à Nos Jours, Thèse
pour l' obtention du grade de Docteur en Sciences Économiques, Conservatoire National des Arts et Métiers,
Paris, 1990, Não Publicada, que para além de referir estas experiências conduzidas por Deslandes entre 1756 e
1767 nas págs. 55-56, dá importantes informações sobre os aspectos económicos ligados às inovações na composição do vidro, nas págs. 415-423.
26
Esta é uma das razões porque algumas areias, identificadas pela sua origem geográfica, prestavam para fazer
vidro de boa qualidade, e outras não, quando não se sabia analisar a areia e corrigir a sua própria composição.
Por esta razão, por exemplo, das costas fenícias, apenas a areia da foz do rio Belus se prestava ao fabrico de
vidro de qualidade. Mais tarde, o uso de sodas e potassas derivadas da queima de vegetais fornecia as necessidades de óxido de cálcio para a obtenção de vidros estáveis.
XII
Já no século XIX, pode-se dizer que se verifica uma explosão do conhecimento científico
e, com respeito ao vidro, começam a ser escritos inúmeros manuais técnicos que, nomeadamente no que se refere às composições das matérias-primas e aos vidros resultantes, exigem
alguma formação científica de base, no domínio da química, para serem plenamente entendidos.
Começa, então, uma fase em que se desenvolve um conhecimento técnico do vidro que só
com dificuldade chega aos homens práticos, os "compositores" e "directores técnicos" das
fábricas. Não porque estes não tentassem absorver os novos conhecimentos, apesar dos académicos, por vezes, serem demasiado lestos a acusá-los de, na sua prática corrente, ignorarem
os progressos da ciência.
Sobre este ponto, e com referência a Portugal e à fábrica de vidros da Marinha Grande,
posso referir, por um lado, o facto de ter podido ver um daqueles manuais técnicos dedicados
ao vidro, o de Julia de Fontenelle, incluido nos manuais Roiret, que foi publicado em 182927 e
que apresenta na folha de rosto duas assinaturas. Uma, Souza Sobr[inh]o., com dois riscos por
cima, e outra, F. R. da Fon[se]ca. Ora, José de Souza e Oliveira Sobrinho e Frutuoso Raimundo da Fonseca foram dois directores técnicos da Fábrica da Marinha Grande, o que, a confirmar-se que o livro lhes pertencera, mostra como se interessavam, ao menos, por tentar acompanhar o progresso da técnica vidreira. Por outro lado, atente-se na suficiência, senão sobranceria, de alguns dos comentários de Sebastião Betâmio de Almeida incluídos no relatório da
"Comissão de Inquérito" de 1859, enquanto que Pierre Flam, posteriormente, ainda era muito
mais cauteloso28.
O facto principal é o de que, com a exclusão de algumas fábricas e/ou empresas, muito
particulares, os conhecimentos científicos mais avançados continuavam confinados às universidades, academias e institutos, enquanto que o saber vidreiro, nas fábricas, continuava experimentalista, empírico, e a ser registado em arcana.
No princípio do século XX, mais precisamente em 1916, quando os E.U.A. se podiam
considerar uma potência na indústria vidreira, ainda um inquérito oficial29 dirá apenas ter
encontrado um químico por cada 20 fábricas.
A realidade das coisas, em Portugal, tinha que ser semelhante, e o compositor e director
técnico da mais importante das fábricas de vidro portuguesas, a Nacional Fábrica de Vidros
da Marinha Grande, que foi João Augusto de Castro, também cuidará de escrever e consultar
o seu arcanum, que é o documento que agora se torna público.
27
M. Julia de Fontenelle, Manuel Complet du Verrier et du Fabricant de Glaces, Cristaux, Pierres Précieuses
Factices, Verres Colorés, Yeux Artificiels, etc., Roret Libraire, Paris, 1829.
28
Cfr. José Pedro Barosa, A Nacional Fábrica de Vidros da Marinha Grande, Manuel Joaquim Afonso, e o
Inquérito de 1859, Museu Santos Barosa da Fabricação do Vidro, Estudos e Documentos, nº. 8, Marinha Grande,
Dezembro de 1997.
XIII
Outros arcana portugueses haverá, sem dúvida, e o que se pode esperar, ou desejar, é que
esta edição constitua um estímulo para que esses outros também venham a ser publicados.
Este arcanum mostra, aliás, com total clareza, a própria natureza destes documentos.
Manuscrito, sem qualquer cuidado de apresentação ou, sequer, de legibilidade alheia, e algo
desordenado, o conjunto dos apontamentos acompanham o percurso profissional do autor e a
sequência das suas preocupações.
Não é um documento que pertença à fábrica ou à empresa, que constitua o repositório do
saber destas entidades, mas é antes um documento pessoal que acompanha o autor quando
este muda de fábrica, o que, no caso, aliás, aconteceu com alguma frequência, e os apontamentos que antes se referiam à fábrica A, com os seus meios, os seus problemas e as suas
preocupações e prioridades, passam, depois, a referir-se à fábrica B, eventualmente, com outros meios, outros problemas e outras preocupações e dificuldades, e assim sucessivamente. O
traço uniformizador era dado pela similitude dos problemas inerentes às competências de um
director técnico de uma fábrica de vidros.
Ao tempo, competia ao "director técnico" da fábrica de vidros, também chamado de
"compositor", a qualidade do vidro, nos mais diversos aspectos. Competia-lhe dirigir a construção / reconstrução e manutenção dos fornos, para o que tinha que conhecer e que se ocupar
com a composição dos barros e outros materiais refractários para o próprio forno e para os
potes, preocupando-se com as características fundamentais da eficiência e da durabilidade.
Também lhe competia, e com a importância dessa actividade a contribuir o nome para o
seu cargo, a definição e o controle da mistura da composição de matérias primas; correlacionando as composições que definia, com as propriedades, incluindo cromáticas, desejadas para
o vidro, atentos os fornos e potes onde iria ter lugar a fusão, assim como o tipo de produtos a
fabricar com aqueles vidros.
Todas estas funções, assim como o caracter empírico da tecnologia vidreira praticada nas
fábricas no último quartel do século XIX, estão bem evidenciadas neste arcanum. Em relação
a cada uma das composições, registava-se, frequentemente, o tipo de forno em que tinha sido
empregue, as condições em que decorrera a fusão, nomeadamente o tempo requerido para a
fusão e afinação do vidro, a cor resultante e uma apreciação qualitativa geral.
Na falta de análises químicas criteriosas e quando tal se revelava útil, as matérias-primas e
os barros refractários eram designados pela sua origem, a par do nome corrente. Mas, também, sinal dos tempos que já se viviam, nestas receitas para a composição dos vidros identificam-se já os elementos desejados pela sua simbologia química.
29
Cfr. Warren C. Scoville, Revolution in Glassmaking. Entrepreneurship and Technological Change in the
American Industry, 1880-1920, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1948, p. 297, n. 88.
XIV
Digna de ser assinalada e relevada é a inclusão de um conjunto de apontamentos em francês, porventura notas de alguma leitura, porventura, mais provável, o resultado de um encontro com algum técnico estrangeiro, contactos que se sabe ter havido em diversos momentos, a
começar por A. Courtial, francês, que foi quem antecedeu a João Augusto de Castro como
director técnico da fábrica de vidros da Marinha Grande30 e como, por exemplo, o outro francês, de nome Carlos, que João José Veríssimo declara ao Inquérito Industrial de 1881 que
teria vindo em 185831, durante a administração de Manuel Joaquim Afonso.
Também é nítido que à medida que o autor envelhecia e acumulava experiência o cuidado
posto no conteúdo e frequência dos registos diminuía. Provavelmente porque considerava tal
não ser necessário à sua actividade.
Finalmente, quando João Augusto de Castro morreu, o seu arcanum foi considerado pelos
herdeiros como um activo, e por isso o venderam. Era a parte transmissível de um saber
vidreiro acumulado em cerca de quarenta anos de experiência fabril, e o comprador foi um
outro vidreiro, em plena fase ascensional, Augusto de Oliveira Guerra. Este é mais um paralelismo com o já referido Ricettario Darduin, também continuado por outro vidreiro, mas neste
caso não identificado.
Tal como o podemos ver hoje, é sem dúvida, o arcanum de João Augusto de Castro, que o
iniciou, e nele incluiu maior parte dos registos, e de Augusto de Oliveira Guerra, que o continuou e ampliou.
3. João Augusto de Castro e Augusto de Oliveira Guerra
Cada um a seu modo, no seu lugar e no seu tempo, João Augusto de Castro e Augusto de
Oliveira Guerra, foram personalidades relevantes na indústria vidreira portuguesa, cujos percursos biográficos importaria conhecer, até para compreender melhor algumas fases e dificuldades do desenvolvimento da indústria portuguesa do vidro. Infelizmente, acaba por ser relativamente pouco o que deles se consegue, para já, saber.
Começando pelo primeiro, João Augusto de Castro, registe-se que não é conhecido como
entrou na indústria vidreira, nem que formação específica teria, se é que a tinha. Cronologi30
Cfr. Comércio e Indústria, nº 137, Lisboa, 1890.
Cfr. Inquérito Industrial de 1881, Inquérito Directo, Primeira Parte, Depoimentos, Imprensa Nacional, Lisboa,
1881, pág. 165.
31
XV
camente, a primeira referência à sua presença na indústria vidreira está na notícia que nos dá
Joaquim Barosa32 sobre a constituição do "Montepio da Marinha Grande" em 1870. Segundo
esta notícia, João Augusto de Castro fora um dos quatro fundadores daquela instituição, e das
palavras do autor pode mesmo inferir-se que tinha partido dele a iniciativa. Dentre os sócios
tinha o número cinco, o primeiro com a categoria de contribuinte, que era a normal, após três
sócios beneméritos e a sócia protectora, que era a Empreza da Real Fábrica de Vidros33.
Do maior interesse é, também, o facto de Joaquim Barosa (op. cit.) o referenciar, ao tempo
da fundação do Montepio, como sendo o director técnico da fábrica de vidros. Um jovem,
sem dúvida, de 27 ou 28 anos, já num cargo de grande responsabilidade, mesmo considerando
que o padrão etário da época não era o actual.
Esta informação fica, de algum modo, confirmada pelo registo do seu segundo casamento , em 13 de Outubro de 1873, que teve lugar na Marinha Grande, onde se refere ser João
Augusto de Castro "empregado na compozição do vidro". Os seus pais, ainda vivos, eram
naturais e moradores em Lisboa, o que nos sugere ser também esta a sua naturalidade. À data,
tinha 31 anos, conforme se diz no registo de casamento, e que é o que permite situar o seu
nascimento por volta do ano de 1842.
34
Através de um apontamento biográfico de António de Magalhães Jr.35 podemos ficar a
saber algo mais. Quando a Empresa dirigida por Jorge Croft e Augusto Dias de Freitas tomou
de arrendamento, em 1864, a Nacional Fábrica de Vidros da Marinha Grande, terá contratado
para director técnico o francês A. Courtial, que aí continuou durante alguns anos, até que lhe
sucedeu, precisamente, João Augusto de Castro. Não há data precisa para esta sucessão que,
contudo, deverá ter ocorrido ainda na segunda metade da década de 60 do século XIX.
Neste apontamento biográfico também se diz que abandonou a fábrica em finais de 1877,
quando terá ido para a nova fábrica construída no lugar do Engenho por Adolfo Burnay, Luiz
da Silva Mousinho d' Albuquerque e Nuno Bento de Brito Taborda, uma fábrica que nos diz
Barosa (1993) ter durado apenas cerca de 2 anos, e com actividade intermitente. Encerrada
esta outra fábrica36, foi para o Covo, cuja fábrica de vidros, refere-se em Costa (1955)37,
32
Cfr. Joaquim Barosa, Memórias da Marinha Grande, 3ª ed. ampliada com Introdução, Notas, Fixação e Revisão do Texto por José M. Amado Mendes, Câmara Municipal da Marinha Grande, Marinha Grande, 1993, pág.
95.
33
Cfr. Relatório e Contas do Montepio da Marinha Grande referente ao Anno de 1882, Typographia Leiriense,
Leiria, 1883. Agradeço esta referência ao sr. Luís de Abreu e Sousa.
34
Cuja informação devo e agradeço ao sr. Luís de Abreu e Sousa.
35
Cfr. Comércio e Indústria, nº 137, Lisboa, 1890.
36
Por causa do ataque que lhe movia a Empresa que explorava a Nacional, como afirma João Augusto de Castro
em carta dirigida a José dos Santos Barosa em Junho de 1890. Arquivo Santos Barosa.
37
Cfr. P.e M. Pereira da Costa, Subsídios para a História da Indústria Vidreira no Concelho de Oliveira de
Azeméis (Casa e Fábrica do Covo, e Continuadoras desta no Concelho de Oliveira de Azeméis), sep. do Arquivo do Distrito de Aveiro, vols. XX e XXI, Aveiro, 1955, pg. 60.
XVI
retomou a actividade no ano de 188038. Este mesmo autor refere também, na página 61, que
em 1887 era compositor desta fábrica "um Augusto de Castro que viera da Marinha Grande".
Ao Inquérito Industrial de 189039 é João Augusto de Castro quem aparece a responder em
nome da fábrica do Covo.
É ainda Costa (op. cit.) que diz que a fábrica do Covo viria novamente a interromper a
laboração, desta vez, por causa da saída do compositor, "não havendo quem o substituisse".
Também refere que a laboração foi retomada em 1896, tendo a interrupção sido apenas "passageira", pelo que se admite que a paragem também tivesse tido lugar nesse mesmo ano.
A razão precisa do abandono da fábrica do Covo por parte de João Augusto de Castro não
é conhecida, apenas se podendo presumir que possa ter resultado de alguma solicitação por
parte dos d' Orey, que estavam então envolvidos na recuperação e relançamento da fábrica do
Braço de Prata da Empresa Vidreira Lisbonense, que abrira falência em 189440.
Em 1898, seguramente, João Augusto de Castro é o director técnico desta fábrica41 em
Braço de Prata, função que ocupa a par de Guilherme d'Orey. No texto referido na nota anterior afirma-se ser João Augusto de Castro um homem muito considerado pela sua grande
experiência prática já que trabalhava na indústria vidreira há 36 anos e tinha trabalhado em
diversas fábricas, referindo-se as da Marinha Grande, Covo e Gaivotas, às quais se acrescentava um "etc".
Todo este pequeno extracto do texto referenciado é de grande interesse para os nossos
propósitos. Em primeiro lugar, refere-se que João Augusto de Castro tinha, então, 36 anos de
experiência no vidro, o que nos leva a considerar que teria iniciado o trabalho nesta indústria
por volta de 1862, com cerca de 20 anos de idade. Onde e com que formação escolar, infelizmente, não se consegue saber. Mas uma possibilidade que se pode sugerir é a de que essa sua
aprendizagem tenha sido feita na fábrica das Gaivotas, então sob a direcção de Francisco Alberto dos Santos, a "alma do sr. Casimiro [José de Almeida], metida ou disfarçada noutro corpo!", que terá chegado a tentar tomar de arrendamento a fábrica Nacional, na Marinha Gran-
38
No Relatório e Contas do Montepio da Marinha Grande (op. cit.), também está registado que João Augusto de
Castro se "despediu" de sócio em 15 de Março de 1880.
39
Cfr. Inquérito Industrial de 1890, Imprensa Nacional, Lisboa, 1891.
40
Cfr. José Pedro Barosa, Os Burnay no Vidro ou Um monopólio que Não Chegou a Existir. In Análise Social,
vol. XXXI, nº 136-137, pp. 487-525, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 1996. Note-se que Luiz da Silva
Mousinho de Albuquerque, um dos fundadores da fábrica do Engenho, era primo de Ruy e Guilherme d' Orey,
informação que devo e agradeço ao dr. Augusto Ferreira do Amaral.
41
Cfr. Excursion Industriele de Lisbonne à Thomar le 30 Septembre 1898, Congrès International des Associations de la Presse, IVe Centenaire de la Découverte de la Route Maritime des Indes, 1498-1898, Typographia da
Companhia Nacional Editora, Lisboa, 1898, pp. 52-54. Esta informação está, também, confirmada, ainda que
indirectamente, pelo agradecimento da Direcção da Empresa Vidreira Lisbonense a um sr. Castro, a par de um
outro sr. d' Orey, pela colaboração prestada. Cfr. Empresa Vidreira Lisbonense, Relatório da direcção e Parecer
do Conselho Fiscal, relativo à gerência de 1888, empresa Vidreira Lisbonense, Lisboa, Março de 1899.
XVII
de, por esta altura42.
É que, de facto, acompanhou-se o percurso profissional de João Augusto de Castro entre
1870 e 1898 sem ter encontrado espaço para essa sua permanência na fábrica da Rua das Gaivotas, com a possível excepção de algum período, entre 1878 e 1880, entre o encerramento
definitivo da fábrica do Engenho e a reabertura da fábrica do Covo.
Estas são as últimas referências que consegui obter relativas a João Augusto de Castro.
Neste último cargo não terá estado muitos anos, pois a fábrica de Braço de Prata foi encerrada em 1902 na sequência da fusão-integração da Empresa Vidreira Lisbonense na Companhia
da Nacional e Nova Fábricas de Vidros da Marinha Grande43. Deveria ter uns sessenta anos.
Após o encerramento da fábrica de Braço de Prata, Guilherme d'Orey foi dirigir a fábrica
Nacional, na Marinha Grande, como está abundantemente documentado, mas não se conhece
qualquer menção de que João Augusto de Castro o tivesse acompanhado.
O Pe. Pereira da Costa (op. cit.), na página 61, quando se lhe refere, diz ter João Augusto
de Castro casado e morrido em Oliveira de Azeméis44. Deveria, portanto, ter regressado a esta
vila e, curiosamente, no arcanum, a dada altura, aparece uma página intitulada: 1904; Notas
sobre a fábrica do Côvo; Nunes Rocha e Cª., aparentemente escrita na letra de João Augusto
de Castro, a que se segue um conjunto de composições de vidros de diversas cores, comentadas em françês, e apresentadas sob o título conjunto de "Des verres de cauler faits au Côvo
dans des differentes époches". Estaria João Augusto de Castro a transcrever para o seu arcanum apontamentos antigos dispersos?
Em qualquer caso, os apontamentos inseridos no arcanum parecem confirmar a informação de que teria regressado a Oliveira de Azeméis para aí passar os últimos anos da vida.
Refira-se ainda que, na generalidade, o percurso profissional de João Augusto de Castro é
confirmado pelas notas incluídas no arcanum, quando são referenciadas as fábricas onde terão
tido lugar as experiências cujos resultados são registados e, por vezes, comentados. Como se
disse anteriormente, a frequência dos apontamentos parece diminuir com o crescendo de
experiência profissional do autor, não tendo encontrado qualquer referência explícita às fábricas da Rua das Gaivotas ou de Braço de Prata. Se em relação a esta última fábrica tudo indica
que nela teria tido lugar o último emprego do "compositor", já com uns 34 anos de experiência profissional, e portanto sem grande necessidade, ou vontade, de continuar a coligir apontamentos, também parece certo que nela teria tido o seu primeiro contacto com um forno a
tanque, facto relevante de que não deixa menção. Porém, em 1904, como se viu, retomou os
seus apontamentos.
42
Cfr. José Pedro Barosa, A Nacional Fábrica de Vidros da Marinha Grande (...), op. cit., pág. 50, e as referências aí incluídas.
43
Cfr. José Pedro Barosa, Os Burnay no vidro (...), op. cit.
XVIII
Já a falta de menção à fábrica da Rua das Gaivotas, sobretudo se nessa fábrica teve o seu
primeiro emprego na indústria vidreira, parece ainda mais estranho. Nem que fosse por contraposição entre o que vira antes e o que viera a aprender mais tarde.
Mas, se não foi na fábrica da Rua das Gaivotas, onde poderia ter tido lugar a iniciação de
João Augusto de Castro na indústria vidreira, em 1862? Nessa altura, as fábricas de vidro
activas, em Portugal, não abundavam, propriamente. Na Marinha Grande, por exemplo, não
se produzia vidro nessa altura.
Quanto a Augusto de Oliveira Guerra, as origens vidreiras são conhecidas. Natural da
Marinha Grande, onde nasceu a 6 de Junho de 1879, foi o último dos doze filhos de Aniceto
de Oliveira Guerra, operário da Nacional Fábrica de Vidros da Marinha Grande, e começou a
trabalhar nesta fábrica, como aprendiz de vidreiro, como então era habitual, com 11 anos de
idade, após ter deixado os estudos, uma vez concluída a terceira classe.
Na longa aprendizagem característica do trabalho manual do vidro45 terá evidenciado qualidades que o destacavam e que levaram Francisco de Abreu e Sousa, o marinhense fundador
e co-proprietário da fábrica A Boémia, em Oliveira de Azeméis46, a, logo em 1902, quando a
fábrica arrancou, convidá-lo47 para, nessa fábrica, assumir as funções de chefe de obragem e
de chefe da fabricação48. Augusto de Oliveira Guerra tinha então, apenas, 23 anos.
Francisco de Abreu e Sousa, que iniciou a sua vida profissional em Oliveira de Azeméis
exercendo o ofício do pai, relojoeiro, rapidamente aceitou emprego na fábrica do Covo, primeiro como roçador e, depois, como lapidário. Tinha, certamente, um espírito empreendedor,
tendo-se envolvido nas sociedades às quais foi arrendada a fábrica do Covo onde trabalhara.
Importante, no contexto deste prefácio é que aí teve oportunidade de conhecer João Augusto
de Castro, sendo de admitir a hipótese de ter sido por esta via que Augusto de Oliveira Guerra
tivesse tomado conhecimento da existência do arcanum incluído neste volume, que seguramente seria objecto de grande consideração para todos os vidreiros que dele tivessem conhecimento.
44
Não considerei a tentativa de confirmação destes factos suficientemente importante para os investigar na
imprensa local e/ou nos registos paroquiais e conservatórias.
45
Cfr., por exemplo, Filomena Mónica, Poder e Saber: os vidreiros da Marinha Grande, in Análise Social, vol.
XVII, nº 67-68, pp. 505-571, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 1981, para esta questão e outras, conexas.
46
Para tudo quanto se refere ao vidro em Oliveira de Azeméis, duas fontes são essenciais. Trata-se dos trabalhos
do Pe. Pereira da Costa e de Aurélio Guerra, nos quais se baseiam as considerações apresentadas em seguida e
para os quais se remete o leitor. Cfr. Pe. M. Pereira da Costa, Subsídios para a História da Indústria Vidreira no
Concelho de Oliveira de Azeméis (...), op. cit., e Aurélio Guerra, A Indústria Vidreira no Concelho de Oliveira
de Azeméis. Subsídios para a sua História, Museu Santos Barosa da Fabricação do Vidro, Estudos e Documentos nº 4, Marinha Grande, Julho de 1997.
47
Segundo relata Aurélio Guerra (op. cit.), Francisco de Abreu e Sousa estava efectivamente impossibilitado de
recrutar localmente, em Oliveira de Azeméis, o pessoal mais qualificado pelo que teria pedido o apoio do farmacêutico, José das Neves e Sousa, padrinho de baptismo de Augusto de Oliveira Guerra, para efectuar esse recrutamento na Marinha Grande.
48
Informação, em carta, do sr. Aurélio Guerra.
XIX
No entanto, o mais provável, é que os conhecimentos sobre composição do vidro de Francisco de Abreu e Sousa viessem de António de Castro e Lemos, o irmão de Gaspar de Castro
e Lemos, senhor do Covo, que ficou a exercer a função de compositor quando João Augusto
de Castro deixou esta fábrica em 1896. Mais fácil de admitir, face à cronologia conhecida dos
acontecimentos e dos encontros destes personagens, é que António de Castro e Lemos, que
desde 1896 até ao fim da vida, em 1917, desempenhará funções de compositor do vidro, tenha
feito esta sua aprendizagem junto de João Augusto de Castro, presente na fábrica do Covo,
pertencente aos Castro e Lemos, como se viu, desde 1880.
O propósito destas considerações é o de mostrar que se pode discernir, ao menos como
hipótese provável, uma linha condutora de conhecimentos de João Augusto de Castro até
Augusto de Oliveira Guerra, eventualmente intermediada por António de Castro e Lemos e
Francisco de Abreu e Sousa, que naturalmente se teria desenvolvido oralmente, a par da
transmissão de conhecimentos resultante do acesso ao arcanum.
Foram conhecimentos bem empregues, pois Augusto de Oliveira Guerra teve uma carreira
vidreira bem sucedida, desempenhando um papel de primeira grandeza no desenvolvimento
do que chegou a ser o segundo centro vidreiro português, na primeira metade do século XX,
Oliveira de Azeméis.
Começando, como se viu, como aprendiz vidreiro, aos 11 anos de idade, Augusto de Oliveira Guerra arriscou a sua carreira profissional com a deslocação para Oliveira de Azeméis
em 1902.
Em 1915, faz um contrato com a firma Santos, Brás & Almeida, Lda., proprietária da
fábrica do Bustelo, onde assume o papel de um verdadeiro sócio de indústria, a par com
António de Castro e Lemos, a quem vem a substituir a curto prazo. Enquanto a Augusto de
Oliveira Guerra competia dirigir a fabricação, a António de Castro e Lemos competia dirigir a
composição das matérias-primas e a fusão do vidro, o que deu azo a conflitos entre ambos,
tendo a empresa optado por encarregar Augusto de Oliveira Guerra da responsabilidade total
pelo processo produtivo.
Em 1917, lança-se na construção de uma nova fábrica de vidros no Cercal, chamada Progresso, onde assume já perto de 40 por cento do capital, para além da gerência técnica. Esta
empresa teve sucesso assinalável e, três anos depois, compra o activo de uma outra fábrica de
vidros da zona, estabelecida no lugar da Pereira, que contudo será encerrada pouco depois.
Entretanto, no Porto, em 1921, é constituída uma outra sociedade, a Companhia Vidreira
de Portugal, que se pretende assumir como um potentado no vidro, em Portugal. Para o ramo
da cristalaria, compra a fábrica A Boémia, de Oliveira de Azeméis, e para o ramo da garrafaria compra a fábrica portuense da Companhia das Fábricas de Garrafas da Amora, estabelecida no lugar do Rego Lameiro, em Campanhã, Porto. Mas que quer mais, e que irá comprar, ou
tomar de arrendamento, todas as outras fábricas de vidro então existentes na região de Olivei-
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ra de Azeméis, e ainda outra, em Alhos Vedros49.
A fábrica Progresso, de que Augusto de Oliveira Guerra é o gerente técnico e maior sócio,
é vendida à Companhia Vidreira de Portugal, mas é paga com acções da compradora, pelo que
Augusto de Oliveira Guerra se torna accionista desta sociedade, para além de continuar a dirigir, tecnicamente, a sua anterior fábrica.
Pouco tempo depois, em 1923, Francisco de Abreu e Sousa é forçado, por causa do
incumprimento de um contrato, a deixar a direcção técnica das fábricas d' A Boémia, que era
propriedade da Companhia, e do Covo, que a Companhia explorava em regime de arrendamento, função que passou para Augusto de Oliveira Guerra.
Esta Companhia Vidreira de Portugal, que cresceu com a rapidez um foguete, rapidamente
sentiu a cana a cair, vendo-se numa situação de falência, obrigada a vender os seus activos
que eram as fábricas de vidro.
Em Maio de 1926 Augusto de Oliveira Guerra associa-se a Ramiro Mateiro e António de
Bastos Nunes para constituir uma nova sociedade, o Centro Vidreiro do Norte de Portugal,
com sede em Oliveira de Azeméis, de que será o gerente técnico, e que compra à Companhia
Vidreira de Portugal as fábricas A Boémia e Progresso, as únicas então activas em Oliveira de
Azeméis. A nova empresa virá a encerrar a fábrica Progresso, do Cercal, concentrando a produção na fábrica A Boémia.
Como sócio da empresa, Augusto de Oliveira Guerra vê-se forçado a trocar funções técnicas e de "compositor" por funções comerciais, nomeadamente de visita a clientes, que o afastavam da fábrica, e em consequência disso contratou o seu antigo mentor, Francisco de Abreu
e Sousa para desempenhar as funções técnicas e de "compositor". Tudo isto por Ramiro Mateiro ter falecido e o seu lugar na sociedade passado para António Brás, comerciante em Lisboa, onde residia.
Em meados de 1933, na sequência de um importante conflito laboral, Augusto de Oliveira
Guerra desliga-se do Centro Vidreiro do Norte de Portugal, mas em Março de 1936 retoma o
seu lugar na sociedade que, contudo, virá a abandonar, mais uma vez, e agora definitivamente,
em Maio de 1938, devido a conflitos com os herdeiros do outro principal sócio, António Brás,
entretanto falecido.
Morreu Augusto de Oliveira Guerra em 1941, após ter vivido uma vida dedicada à indústria vidreira onde desempenhou todas as funções, com grande relevo para as que se prendiam
com a técnica e a composição do vidro. Não se limitou a absorver o conteúdo do arcanum de
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Esta fábrica, que não terá durado mais de 6 anos e foi construída por uma sociedade Martins dos Santos, Lda.,
em 1920, veio a ter como sócio Augusto de Oliveira Guerra, o mais tardar a partir de 10 de Fevereiro de 1923,
quando foi constituída a sociedade Fábrica de Vidros e Cerâmica Lisbonense, Lda., em que participou com cerca
de 30 % do capital, para a explorar. Deverá ter sido vendida à Companhia Vidreira de Portugal, ao mesmo tempo
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João Augusto de Castro mas ampliou-o, inserindo mais apontamentos e novos registos, tornando-o, efectivamente, no arcanum de João Augusto de Castro e Augusto de Oliveira Guerra.
A partir de agora, este arcanum fica ao alcance de todos os interessados que o desejem
consultar, por quaisquer razões: de conhecimento histórico, de experimentalismo artístico, na
linha da sugestão de Fynn Lynggaard, ou outras. Por isto, um agradecimento é devido ao sr.
Aurélio Guerra.
José Pedro Barosa
Março de 2000
que a fábrica Progresso de Oliveira de Azeméis. cfr. Diário do Governo, III Série, nº 51, de 1923. Agradeço a
informação deste número do Diário do Governo ao sr. Gabriel Roldão.
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