Novela - Scarium
Transcrição
Novela - Scarium
Scarium Megazine Ano I Nº 5 abril/maio de 2003 Edição especial para distribuição gratuíta On Line www.scarium.com.br Editora Scarium.com Scarium MegaZine abril/maio 2003 www.scarium.com.br Editor: Marco A. M. Bourguignon Co-Editor: Rogério Amaral de Vasconcellos Jornalista Responsável: Lara Chateaubriand MTB: 18.232 Colaboradores desta edição: Arcano Cesar Silva Larissa Redeker Martha Argel Miguel Angel Perez Corrêa Ricardo Edgar Caceffo Roberval Bacellos Rogério A. de Vasconcellos Endereço para correspondência: Rua Castorino Francisco Nunes, 88 13/204 - Ilha do Governador Cep. 21.921-544 Rio de Janeiro - RJ Tel. 2467-2805 Ficção Fantástica Ano I Número 5 Editorial Cartas Balaio da Scarium Entrevista Banda Desenhada Última Página 03 04 05 08 60 62 Artigo: 12 O Senhor dos Anéis Ricardo Edgard Caceffo 60 Um Momento da FC Cesar Silva Mini-Conto: 15 O Plástico Bolha Larissa Redeker Contos: 37 Filha da Noite Martha Argel 42 A Coruja Arcano Novela: 16 Legião Roberval Barcellos 46 Coração de Metal Miguel Angel Perez Corrêa Concurso: 62 Resultados do Concurso Ilustração: Capa - Miguel Angel Perez Corrêa Todos os trabalhos são de propriedade de seus respectivos autores. As afirmações feitas, explícita e implicitamente, não representam a opinião editorial desta revista. Permissões de uso e cópia devem ser obtidas diretamente com os autores. Editorial Esta edição encerra o 1º volume da Scarium MegaZine. foram seis números com contos, HQs , entrevistas, artigos e novelas. Ficamos muito contente com a boa receptividade entre os fãs de literatura fantástica. Continuamos abertos para receber colaborações e promover a divulgação dos trabalhos realizados em prol da arte fantástica brasileira. Ainda temos muito o que melhorar, por isso precisamos de sua ajuda e opinião. Neste número estamos distribuindo, como brinde aos assinantes, o Fanzine em CD-Rom “Opinare Absilimis”, para que todos possam conferir o excelente trabalho realizado por Larissa Redeker. Ela também é a autora do mini-conto desta edição,”O Plástico Bolha”. Convidamos também a escritora Martha Argel para uma entrevista, buscando saber um pouco mais sobre o seu livro “Relações de Sangue”. E poderemos conferir um conto inédito, “Filha da Noite”, e descobrir a fascinante e misteriosa personagem Lucila. Este conto é para quem tem bastante coragem e sangue nas artérias, mas cuidado que a vampira poderá sugá-lo todo. O outro conto desta edição, “A coruja”, é de um autor misterioso, intitulado Arcano. Aliás, a sua obra é autodenominada, gênero soturno. Duas sensacionais novelas recheiam as nossas páginas: Uma é a do escritor Roberval Barcellos, “Legião”. O horror e o mistério levados ao extremo. O que aconteceu naquela praia para despertar a mais intrigante de todas as bestas? Qual a relação entre uma facção criminosa e a possessão demoníaca de Andréia? A outra é “Coração de Metal”, do escritor e ilustrador Miguel Angel Perez Corrêa, que também é o autor da capa desta edição. Um verdadeiro resgate às soap operas que tanto mexeram com a nossa imaginação. Um cometa está preste a se chocar e destruir o mundo de Dione, mas há uma forma de salvar da morte milhares de pessoas. Então por que o motivo de não quererem evitar o desastre? A história recheada de intriga política, espionagem e aventura, sem esquecer de uma boa pitada de romantismo. Ricardo Caceffo nos apresenta um artigo sobre “O Senhor dos Anéis” que vem inspirando muitos contos fantásticos, principalmente os de fantasia, ele passa um pente fino na obra de Tolkien. Cesar Silva inaugura a coluna “Banda Desenhada” com o artigo “Um Momento da FC” sobre “As Aventuras de Luke Arkwright” do autor britânico Bryan Talbot. Uma das mais bem elaboradas HQs de História Alternativa publicadas no Brasil. Para encerrar, confira na “Última Página” os vencedores do I Concurso de Contos da Scarium Megazine. Queremos parabenizar os vencedores e agradecer a todos os que enviaram seus trabalhos. Até a próxima edição!!! Editor Miguel Angel Perez Corrêa É o autor da capa desta edição. Argentino de Buenos Aires, engenheiro elétrico e ilustrador, autor de “O dia da Caça”. Mantém um site para divulgar seus trabalhos em www.aarca.kit.net. 3 Cartas Fuga da realidade Leio Ficção Científica desde os 9 anos de idade, comecei com os livros de bolso da Ediouro, depois passei para as edições mais "luxuosas" em tamanho maior, com papel melhor. Passei pelos mundos de Isaac Asimov, Sir Arthur Conan Doyle, Edgar Rice Burroughs, Poul Anderson, da Coleção Futurâmica portuguesa, Perry Rhodan e sua Space Opera, e quase todos os livros que você possa imaginar (Incluindo um livro de um escritor chamado Lester Delrey). São tantos que nem me lembro mais os nomes. Passei a seguir para o mundo sombrio de Stephen King e seus pesadelos populares, descobri o mistério das histórias de Edgar Alan Poe, as lendas populares brasileiras, as européias e americanas também. Então cansei e passei para o mundo vermelho de Darkover com seu eterno inverno, descrito por Marion Zimmer Bradley. Conheci mundos e mundos, inclusive os descritos na extinta edição brasileira da revista Isaac Asimov Magazine, que abriu muito os meus horizontes de leitor. Aprendi a ler e falar inglês por causa da ficção científica. Escolhi minha profissão por ela (um dos requisitos para ser astronauta) e comecei a escrever a sério por ela. Com a minha experiência de assinar o zine, entrei em contato com um mundo que eu havia dado como perdido. Estou redescobrindo o mundo que encontrei aos nove anos. E quer sber?: É muito bom estar de volta e descobrir que este mundo fantástico ainda me leva a mundos e situações desconhecidas por mim. Se isto é uma fuga da realidade, como alegam alguns, então vamos fugir! Saudações, Recebi a Scarium nº 1 e o que tenho a dizer é que essa publicação me proporciona bastante diversão em seus contos muito bem escritos. Gostei especialmente do mini-conto Share Girl, altamente criativo e simbólico. Também gostei da HQ Raquel e Cia., divertidíssimo. Espero que a Scarium continue crescendo e publicando histórias de mais e mais talentos Arcano Rio de Janeiro - RJ Oi, Recebi a edição nº 4 e gostei muito da HQ “Demon Seed”. O conto do Fabian Rice não me agradou, mas por outro lado, adorei o conto “Paralelas” do Sidemar, este autor tem futuro. Gostaria que publicasse mais texto de horror e principalmente contos de vampiros, pois sou um apaixonado pelo tema. Também alguns artigos sobre o tema também me interessaria. Carlos Augusto Viriato Belo Horizonte - MG Nesta edição apresentamos um conto inédito de vampiros, escrito por Martha Argel. Cartas para esta seção: Rua Castorino Francisco Nunes, 88 Bl. 13/204 Cep: 21.921-544 Rio de Janeiro - RJ [email protected] Atenciosamente, Claudio Bernardi Stringari Jaraguá do Sul - SC 4 BALAIO DA SCARIUM Novidades, Lançamentos, Opiniões Rogério Amaral de Vasconcellos Olá, mais uma vez! Chegamos ao limiar de uma etapa. A Scarium, a partir de seu próximo volume, entrará em seu 2 o ano, com o compromisso de se aproximar ainda mais de seus leitores. Foram alguns prêmios conquistados, 37 autores publicados, a maioria dos quais originários de nosso próprio país (excetuando três portugueses), mostrando o nosso compromisso de divulgar a literatura de ficção científica, horror, fantasia e mistério nacional. Enquanto a edição de aniversário não chega, com dois contos inéditos do premiado escritor Jorge Luiz Calife, verifique o resultado do I Concurso de Contos & Ilustrações da Scarium, no final desta edição. A qualidade de alguns dos trabalhos recebidos nos surpreendeu. Só lamentamos o fato de não terem acontecido inscrições, que permitissem a seleção de trabalhos, nas categorias fanfic e ilustrações. Não deixem de ler no Balaio On Line (link no final da coluna), os detalhes das notas aqui publicadas e muitas outras que não puderam entrar. Prontos? Bem, agora é a minha deixa: uma aventura no chamado “Turbilhão Estelar”. Desta vez uma nave dos robôs positrônicos-biológicos (pos-bis) caiu em um planeta desconhecido, e um fenômeno também desconhecido, um ser mitológico, de nome Zeus, vêm mostrar porque esta é a maior série de fc do mundo. Em “Na Zona de Influência da Pirâmide”, de Ernst Vlcek, episódio 679, traduzido por Erica Saubermann, descobrimos porque o buraco é mais embaixo. No mundo dos artilheiros voadores, Castelo de Goshmo, vimos um novo fator de poder. Tanto Zeus quantos os humanos querem, precisam, se apossar desse poder, e para chegar na frente Perry Rhodan, sua esposa e amigos enfrentam novos desafios. Mais duas eletrizantes aventuras desse aclamado ciclo chamado “O Concílio”. Para maiores detalhes www.perry-rhodan.com.br ou [email protected] ou (31)32242050. Vale a pena conferir! Ela quer chupar... seu sangue– Foi lançado o filme independente, em formato VHS, “Súcubus de Lilith”, dirigido por José Salles, escrito e interpretado por Marcos T. R. Almeida, e contando ainda com a participação na equipe de produção dos conhecidos fanzineiros Laérçon J. Santos (fanzines “Boca Suja” e “Bestagem HQ B”), E. R. Corrêa (“Desmodus Rotundus”) e José Nogueira (“Delírio Cotidiano”). Destaca-se o folclórico mito da deusa vampira “Lilith”. Quer ser um doador? Adquira a cópia entrando em contato com José Salles no seguinte endereço: Rua Monte Alegre 90/ 134 - Perdizes - São Paulo/SP - CEP Quer comprar um Deus? – A SSPG lança mais um sucesso dessa série que é tal qual seu mote: ruma ao infinito. É o volume 15, trazendo os seguintes episódios de Perry Rhodan: “ZeusdoAno 3460”, de William Voltz, narrando o encontro com um deus, onde os humanos são confrontados entre a ilusão e a realidade. O episódio 678, traduzido por Francis Petra Janssen, nos remete a mais 5 Balaio 05014-000, ou pelo fone (11)3872-4895, [email protected] ou com Marcos T. R. Almeida: Rua Angelo Antonio Dian, 58 Jd. Santa Lídia - Mauá/SP - CEP 09310620. O Argos 2003 – Um dos prêmios mais tradicionais da FC brasileira é o Prêmios Argos, que vêm sendo lançado com regularidade pelo Clube de Leitores de Ficção Científica, após seu ressurgimento pelas mãos do atual presidente (novamente eleito) Gerson Lodi-Ribeiro. O regulamento, na íntegra, você pode checar na Scarium Home Page, e o Balaio on Line exibirá todo o cronograma de votações, acompanhando de perto esse importante reconhecimento para autores e publicações em nossa língua. O processo de indicações, para candidatos às três categorias: Melhor Ficção, Melhor Publicação e Melhor Periódico, já começou. Apresentam suas cédulas de indicação somente sócios ativos do CLFC, encerrando o processo em 23 de Maio, com a lista oficial dos indicados saindo no final de Maio. Em 2003 o chamado fandom aceitará votações dos fãs de FC&F brasileiros e portugueses e inovará ao abrir o processo ao público. Para entrar em contato com a Comissão Organizadora: [email protected] . Sites de qualidade – O performer José Neves convida-o a conhecer as novidades de seus sites multimídia. Philip K. Dick, Alan Moore entre outros estão em www.alanmooresenhordocaos.hpg.com.br ou www.josecn.hpg.ig.com.br . Neves também escreveu o artigo PROMETHEA NO REINO DE THOT-HERMES: O PODER DA PALAVRA. Uma boa pedida. Surge uma nova opção – A “Via Literária” se propõe a oferecer uma agenda de concursos (nacionais e estrangeiros), Oficinas Literárias, Seção de contos e uma vitrine, para aqueles autores que, corajosamente, financiaram a publicação de suas obras, bastando que encaminhem a imagem da capa e dados principais, preço, emails para adquirir, pois a Via Lite servirá também como livraria alternativa, um canal entre o autor e seu público. Na sua próxima ‘regata internáutica’ dê uma navegada em www.vialiteraria.impg.com.br . Checaremos mais de perto isso e daremos mais detalhes futuramente. Alerta – Recebemos o seguinte desabafo e achamos oportuno colocar a boca no trombone: “Pessoal, vez por outra dá para sentir por que, ao lidar com certas artes no Brasil, como ficção e fantasia ou quadrinhos e afins, você parece estar dando murro em ponta de faca. Quando se abre uma porta, fecham-se duas. Uma das piores coisas é lidar com o preconceito de certas “autoridades”, que se auto arrogam saber o que é “bom” e o que é “arte”. Vejam só esta notícia do UniversoHq: http://www.universohq.com/quadrinhos/n02042003_05.cfm . Nós vimos e pedimos que todos se solidarizem para que o MAG volte a abrir. Lailson convida – Disponível o Regulamento para o V Festival Internacional de Humor e Quadrinhos de Pernambuco. Visite o site www.reuben.org/lailson e fique por dentro desse movimento importante para o humor e atente para o prazo de inscrição: 13 de Maio. Não fique de fora. Queremos dar boas risadas. Album de Família – Cesar Silva, respeitado editor da Hiperespaço, anuncia que colocou no ar um sonho antigo. Finalmente está disponível o site que sempre quis fazer: Todas as capas do Hiperespaço com as minutas de conteúdo, mais edições especiais, 6 Coleção Fantástica, Nova Coleção Fantástica e um texto sobre os 20 anos de história do zine. Tudo isso em www.hiperhistoria.hpg.com.br. Segundo Cesar “é simples, mas de coração”. Esta coluna acha que tal realização é também um marco, um modo de contar, obra a obra, sintetizando todo o movimento da FC e Horror ocorrido em nosso país, onde o Hiper virou uma parte importante desta história. Para saber mais sobre o realizador www.ceritocity.cjb.net . A Arte de fazer bem feito – Assim como destacaremos os zines recebidos, não podemos deixar de fora o excelente trabalho feito pelo André Diniz em www.nonaarte.com.br . Comprovei vários dos produtos e com o novo visual, muito mais interativo, seu divertimento e informação estão garantidos. Fanzines e outros zines – No Balaio On Line daremos destaque às seguintes publicações que nos remeteram releases: Megalon, Juvenatrix, Hiperespaço, Notícias do Fim do Nada, Informativo Perry Rhodan, Somnium, Dragão Quântico, Papêra Uirande, entre outros. É isso aí!!! Mais uma página virada mas não a última. Obrigado por sua atenção e continue escrevendo para esta coluna, manifestando suas opiniões, divulgando lançamentos e novidades em geral. Rogério Amaral de Vasconcellos [email protected] [email protected] http://www.scarium.hpg.com.br 7 Entrevista Martha Argel é uma contadora de história de mão cheia, traz para junto de nós, em seu livro “Relações de Sangue”, o mundo dos vampiros, e nos faz confundir o cotidiano com o mundo da fantasia. Nesta entrevista ela fala um pouco do seu livro e se diz mordida por vampiros. “Dói e demora para sarar. Aliás, acho que até hoje não sarou.” SMZ -Você acredita em vampiros (salvos os morcegos hematófagos e outros bichos que vivem de chupar nosso sangue)? MA -Acredito nos vampiros – nas suas diversas versões – como uma criação da mente humana. Eles existem, como símbolos, como metáfora. Fora isso, quem sabe. Pode ser que eles estejam por aí, ocultos nas sombras, tentando a todo custo preservar o segredo de sua existência... É melhor a gente não se meter com eles. SMZ -Você é uma vampira? MA - Na medida em que, como qualquer ser humano, tenho necessidade da atenção e do carinho das outras pessoas, sim. Como todos nós. SMZ -Já foi mordida por um(a) vampiro(a)? MA - Metaforicamente, sim. Dói e demora para sarar. Aliás, acho que até hoje não sarou. SMZ -Alguns escritores passam um pouco de si mesmos para os personagens; você se identificaria mais com a Clara ou com a Lucila? MA - Sempre costumo dizer que meus personagens, principalmente os femininos, são uma mistura de coisas que sou com coisas que gostaria de ser e coisas que jamais seria. Alguns leitores que me conhecem dizem que a Clara sou eu; outros, principalmente ex-alunos, me vêem na Lucila. A verdade é que ambas têm um pouco de mim e muito de invenção. Em geral me identifico mais com a Clara, principalmente porquepreciso me identificar com ela para poder narrar a história em primeira pessoa de uma forma que seja convincente para o leitor. SMZ -Há quanto tempo vem escrevendo sobre a vampira Lucila? MA - A Lucila nasceu no final de 1999, enquanto eu escrevia um conto que precisava ter um monstro ao final. A verdade é que ela nasceu por acaso. Poderia ter sido qualquer ser fantástico e cheguei a pensar em um alienígena, mas numa dessas decisões instantâneas que às vezes a gente toma, achei que uma vampira cairia bem, e deu no que deu. De lá para cá escrevi não só o Relações de Sangue, mas vários dos contos que estão no site da vampira Lucila (h ttp:// www.lucila.hpg.com.br) e quatro ou cinco que permanecem inéditos. SMZ -Você possui alguma superstição quando escreve sobre vampiros e seres além da nossa compreensão? MA - Minha principal medida de 8 segurança é fazer back up de tudo o que escrevo, o mais rápido possível. E fora o pavor de me roubarem o computador ou da casa pegar fogo, o que mais me aterroriza quando escrevo é o bloqueio de escritor. Tenho muita dificuldade para escrever. Assim, meus rituais têm muito mais a ver com concentração e busca de inspiração do que com os dentuços imortais. Uso crucifixos quase diariamente porque acho lindos; eles caem super-bem com o visual gótico, que adoro. Tenho uma coleção deles, todos de prata, e o meu preferido é um que tem belos cristais azuis, que o vendedor jurou que eram Swarovski. Me engana que eu gosto! Mas para me livrar dos filhos das trevas propriamente ditos, uso o mesmo método do André Vianco: fecho o livro ou aperto oejectdo vídeo-cassete. Tiro e queda. SMZ -Você transfere muito da sua formação para “Relações de Sangue”. O quanto isso pode ajudar? Quanto isso a prejudica ao criar o enredo? MA -Não faço idéia no quê a formação acadêmica e científica pode prejudicar meu texto, pois os leitores ainda não se manifestaram a respeito. O fato é que, consciente ou inconscientemente, ela permeia cada etapa da elaboração de minha ficção, desde o método quase popperiano (teste e falseamento de hipóteses, essas coisas) que uso para criar a trama até a linguagem direta e clara que me habituei a usar nos escritos técnicos. Quanto ao aspecto mais específico da informação científica que costumo incluir em meio ao texto, em especial a biológica, é algo consciente e muito planejado, quase uma atitude política, ideológica. Em minha opinião, a ciência “de verdade” e o método científico estão virtualmente ausentes do cotidiano e da cultura dos brasileiros; inseri-los como elementos ativos em minha ficção é uma forma de tentar aproximar a atividade científica ao público leitor. Pode chamar de um gesto corporativista no sentido de divulgar a profissão de Biólogo. Além disso, sei o quão raros são, aqui no Brasil, os cientistas de verdade que conseguem escrever ficção, ou mesmo divulgação científica, sem parecer que estão dando uma aula na universidade; sei que tenho jogo de cintura suficiente para escapar dessa armadilha, e não tenho dúvidas de que essa habilidade dá à minha escrita um diferencial importante dentro da ficção nacional. Se esse diferencial vai ou não chamar a atenção da grande mídia algum dia é algo que não posso prever, mas eu gosto dele, e sei que muita gente que respeito também gosta. SMZ -O que a motivou a escrever sobre seres fantásticos, como vampiros e alienígenas? MA -Vezes sem conta, tentei escrever ficção sem uma vertente fantástica, e descobri que não consigo. Assim, a Fantasia e a Ficção Científica não é propriamente uma escolha, mas um caminho inevitável. SMZ -Como se realiza o seu processo criativo? MA - Escrever, para mim, é um 9 Entrevista verdadeiro suplício. Não sou daqueles autores que têm uma idéia atrás da outra. Quando elas surgem, tenho de agarrá-las com unhas e dentes. Sempre tenho comigo um caderno de anotações. Às vezes a idéia vai imediatamente para o papel, e pode até ser que o conto saia inteirinho, de uma tacada. Em outras ocasiões, trabalho a idéia na cabeça por dias, ou até meses, e só quando tenho bem definidos o começo e o fim é que passo tudo para o papel ou para o computador. Meus rituais estão sempre mudando e não tenho um local fixo para escrever. Já cheguei a escrever contos inteiros durante uma viagem de metrô. Às vezes preciso de sossego e música; dependendo do clima da cena que estou escrevendo ouço missas fúnebres, modas de viola, rock pesado ou new age. Às vezes pego minha caderneta de anotações e caminho dois quilômetros até uma igreja onde já escrevi boas seqüências e contos. Às vezes deito no sofá, durmo e quando acordo já sei como continuar o história; ou não sei, e nesse caso durmo de novo, e assim por diante... SMZ -Como foi escrever “Relações de Sangue”? MA - O livro foi escrito no primeiro semestre de 2000, por acidente. Na verdade, eu nem pretendia escrever um livro, sempre me considerei contista e não romancista. Certo dia tive uma idéia boa, mas muito simples: um vampiro de programa, que encontra suas vítimas/ clientes pelos anúncios classificados, de repente percebe que essas mulheres estão sendo assassinadas e pede ajuda a Lucila e a Clara para descobrir o assassino. Comecei a escrever achando que seria um conto, uma noveleta no máximo, e enquanto escrevia ia criando os detalhes e delineando os personagens. Quando já tinha umas quarenta páginas percebi que era mais que um texto curto: era o primeiro livro de uma série fechada de três livros. Levei um susto e quase desisti, pois nunca me imaginara capaz de escrever um romance. A história foi-se desenrolando quase automaticamente. A idéia nasceu pronta, só precisei escrevê-la. Desde 1997 venho reunindo informações e estudando os vampiros na ficção, e portanto posso dizer quea pesquisa foi exaustiva, embora não exclusiva para o livro. SMZ -O mais interessante foi a humanização dos personagens em “Relações de Sangue”, sem cair nos recentes besteirol publicados sobre vampiros. Como conseguiu sair do lugar comum dos vampiros e tentar uma inovação no gênero, tornando os personagens fantásticos tão reais? Tão reais que penso: a Martha é a Lucila ou é a Clara? MA - Se eu responder “não sei” você acredita? Não fiz uma tentativa consciente de fugir ao lugar comum, e nem pensei, durante a escrita, em inovar nada no gênero vampiresco. Simplesmente escrevi, da mesma forma como sempre escrevi a ficção curta. Durante muitos anos foi algo inconsciente, mas parece que desde que comecei a escrever ficção (1988) tenho 10 Scarium falta algo nelas. Confesso: sou muito mais a minha Lucila! SMZ -Já tem em vista algum novo romance? MA - Sim! Estou na reta final de Amores Perigosos, a continuação do Relações de Sangue. Clara atrapalha a caçada de um vampiro muito vingativo, e Lucila tem de suar sangue para salvar o pescoço de sua amiga mortal, sem deixar de lado, claro, os cínicos joguinhos que todo vampiro joga. Tanta gente se queixou de que o Relações de Sangue era curto demais que este segundo livro vai ser bem mais extenso. Também vai ter sangue, violência, sedução e o que as garotas pediram, vampiros irresistíveis contracenando com Clara e Lucila... Sem esquecer, obviamente, do humor mordaz da Clara. Infelizmente ainda não tenho qualquer indicação de que a editora Novo Século esteja interessada no Amores Perigosos. Suponho que a uma eventual publicação dependa do êxito de vendas do Relações. Para terminar, queria agradecer ao Marco Bourguignon e a Scarium pela divulgação do livro e de minha atividade literária, e dar meus sinceros parabéfs pelo trabalho que têm desenvolvido dentro da Fantasia e Ficção Científica brasileiras. tendência a situar os personagens fantásticos em cenários muito corriqueiros e cotidianos, que o leitor acaba reconhecendo em seu dia-a-dia. Pelo menos é o que várias pessoas disseram ao analisar textos meus (até mesmo um psicanalista!). No Relações de Sangue fiz o mesmo, dessa vez com os vampiros. SMZ -Por que é fácil se “apaixonar” pela Lucila, apesar da sua forma meio enigmática e terrível de ser? MA - Posso responder “não sei” de novo? Alguns leitores se apaixonaram perdidamente pela Lucila logo no primeiro conto, em que ela aparece só ao final. Eu mesma fiquei fascinada por ela nesse conto (e por isso escrevi oRelações de Sangue), sem entender bem porquê. Ainda não entendo bem qual a atração que a Lucila exerce, tanto sobre o público masculino quanto sobre o feminino. Um dos fatores que talvez tenha algum peso é a escassez de vampiras memoráveis na ficção. Como referências de vampiros homens, todo mundo pode citar Drácula, Lestat, Louis e Nosferatu, pelo menos. Em se tratando de mulheres, a pessoa tem de conhecer um pouco mais a fundo alguma forma de arte se quiser citar algum nome. De tudo o que já vi em termos de livros, filmes e seriados de tevê, as vampiras que me parecem mais interessantes são Carmilla (do conto de Sheridan Le Fanu, 1872) e Marie (do filme Inocente Mordida), mas ainda assim ainda acho que Não deixe de ler na página 38, “A Filha da Noite”, um conto inédito da autora. Scarium HOME PAGE AS ÚLTIMAS NOVIDADES DO MUNDO FANTÁSTICO www.scarium.hpg.com.br 11 O Senhor dos Anéis Ricardo Edgard Caceffo “Três anéis para os Reis-Elfos sob este céu, Sete para os Senhores Anões em seus rochosos corredores Nove para Homens Mortais, fadados ao eterno sono, Um para o Senhor do Escuro em seu Escuro Trono Na Terra de Mordor onde as Sombras de deitam. Um Anel para a todos governar, Um Anel para encontra-los Um Anel para a todos trazer e na escuridão aprisiona-los Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam. “ Poucos livros em toda a história humana conseguiram marcar e influenciar (e por que não dizer mudar) a vida de tantas pessoas e gerações. O Senhor dos Anéis é um desses poucos livros, sendo eleito o Livro do Milênio pela livraria Amazon.com e ficando em posição de destaque numa pesquisa de opinião semelhante, feita na Inglaterra, onde perde em popularidade apenas para a Bíblia cristã. Mas o que torna o Senhor dos Anéis um livro tão especial? Tudo remonta da primeira metade do século, quando o inglês J.R.R. Tolkien começou a escrever seu primeiro livro: “O Hobbit”. O livro é um tanto quanto infantil, já que Tolkien o escreveu basicamente para seus quatro filhos, mas mesmo assim é muito importante pois nele é desenvolvida a base do que viria ser sua mais importante obra: “O Senhor dos Anéis”. O livro começa descrevendo uma vila de hobbits, chamada de Condado.Os hobbits são um povo discreto mas muito tranqüilo, sua estatura varia de 60 cm a 1,20 metros, amam a paz e não desprezam uma boa refeição (fazem até 6 por dia), embora quando necessário consigam sobreviver bravamente as mais variadas intempéries, como a ausência de água , comida e abrigo por muito tempo. Um típico hobbit, chamado Bilbo Bolseiro, vivia tranqüilamente sua pacata (mas feliz) vida no Condado quando um dia foi visitado inesperadamente por Gandalf , o Cinzento. Gandalf (um dos mais poderosos magos da Terra Média) o havia escolhido para fazer parte de uma comitiva de anões que iria até a Montanha Solitária recuperar o tesouro que havia sido tomado há muito tempo por um cruel Dragão: Smaug. O papel de Bilbo seria o de “ladrão” já que ele conseguia se esgueirar fácil e silenciosamente nas sombras sem ser notado. Depois de muito relutar Bilbo aceitou participar, muito mais pela aventura do que pela recompensa. Não cabe aqui contar como foi sua aventura com os anões, na verdade isso nem seria citado na história da Terra Média se não fosse um pequeno detalhe, na verdade um pequeno detalhe em forma de anel: Aconteceu de Bilbo se perder nas entranhas de uma montanha habitada por criaturas sombrias: os Goblins (ou Orcs, como os Hobbits os chamam). Tateando o chão, ele encontrou um pequeno anel dourado, que pertencia a uma desprezível e repugnante criatura, conhecida como Gollum. O que nem Bilbo e Gollum sabiam era que o Anel encontrado era o Um Anel, o mais poderoso e importante Anel de Poder, confeccionado pelo próprio Senhor 12 do Escuro: Sauron. O Anel estava perdido desde o final da Segunda Era, quando Sauron foi derrotado (mas não destruído) por Gil-galad e Elendil, reis dos povos antigos dos Homens e dos Elfos. Isildur, filho de Elendil, cortou o Anel da mão de Sauron e tomou-o para si (ao invés de destruí-lo, como deveria ter feito). Mas o Anel não permaneceu muito tempo com Isildur, já que ele e seus homens foram surpreendidos numa emboscada por Orcs e o Anel perdido nas águas profundas do Grande Rio até ser encontrado muito tempo depois por Gollum. A história do Senhor dos Anéis se passa na Terceira Era da Terra Média e conta um evento que ficou conhecido como a “Guerra do Anel”. A Grande Sombra novamente se levanta e Sauron retorna para sua Torre Negra, em Mordor. Para fortalecer suas forças e destruir seus inimigos ele precisa retomar o Um Anel, onde se encontra grande parte de seu escuro e antigo poder. Mas enquanto Sauron ressurgia, Gandalf, sabendo da procedência do Anel, enviou Frodo (sobrinho de Bilbo e novo portador do Anel) para Valfenda, lar de Elrond, um dos últimos Senhores Elfos da Terra Média. No Conselho de Elrond foi decidido que a melhor alternativa seria destruir o Anel, jogando-o nas Fendas da Perdição, no próprio coração das trevas: Mordor. Assim uma comitiva é formada, composta por Frodo e seus companheiros que o acompanharam na viagem desde o Condado: Meriadoque Brandebuque, Peregrin Tûk e Samwise. Também são escolhidos representantes de várias raças e povos: Gimli (representante dos Anões), Legolas (dos Elfos) e Boromir (dos Humanos). O próprio Gandalf acompanha a comitiva, seguido também por Aragorn, o “Guardião das Terras Ermas”,descendente e herdeiro de Isildur. Toda a fascinante “Guerra do Anel” é vista pela ótica do povo Hobbit. Os Hobbits sempre viveram isolados no Condado, nunca se preMas o ocupando e muitas vezes que torna o desprezando Senhor dos os acontecimentos do Anéis um livro mundo à sua tão especial? volta. Mas isso mudou com o achado do Anel, que colocou não só o Condado em evidência nos principais mapas da Terra Média como também despertou a atenção do Senhor do Escuro para esse povo que, em sua maioria, prefere uma boa refeição e uma noite quente ao lado da lareira do que a fome, o frio e os perigos que uma viagem rumo ao desconhecido e a povos e reinos distantes proporciona. Mas não apenas os hobbits merecem destaque na Terra Média, um dos vários continentes do fantástico mundo criado por Tolkien. Na verdade um dos principais fascínios que atraem as pessoas ao Senhor dos Anéis é justamente a variedade, cultura própria e história dos povos e raças descritos lá. A mitologia também é muito rica, tendo Tolkien dedicado um livro especial a ela: o “Silmarillion”. Por ter sido professor de Anglo-Saxão em Oxford e ser amante da lingüística, Tolkien acabou desenvolvendo alfabetos e idiomas próprios para algumas raças, especialmente os Elfos. Cada povo possui uma língua própria, mas todos os povos falam uma língua comum: o “Westron”. O grau de meticulosidade do autor chega a ponto de, nos apêndices do Senhor dos Anéis, explicar as regras gramaticais e fonéticas dos idiomas por ele criados, para facilitar a compreensão (e possível utilização) delas pelos leitores. Isso é necessário pois muitos nomes de personagens e localidades também são mencionados 13 Entrevista em outros idiomas, logo a compreensão destes Na ajuda muito verdade quando se embora a obra quer ende Tolkien tender o pareça ser à verdadeiprimeira vista ro signifiuma leitura muito cado dos grande e cansatipersonava, quando se gens e micomeça a ler temtos que se a impressão de cercam e que as páginas povoamo passam depressa mundo de e de que o Tolkien. tempo não A literatura existe Tolkieniana é mais. tão cativante que vários artistas e grupos musicais dedicam e baseiam suas obras em Tolkien. A banda Blind Guardian é um desses exemplos, e seu álbum “The Night Fall in the Middle Earth” é um ícone desse fenômeno, visto que reproduz com bastante fidelidade histórias, personagens e acontecimentos da Terra Média, sendo uma parada obrigatória para quem lê e aprecia a obra de Tolkien. A clássica música “Stairway to Heaven” também se inspira no Senhor dos Anéis. Embora exista um certo contra-censo em relação a isso, talvez até pelo fato de a letra da música ser um pouco confusa, quem leu o livro consegue identificar facilmente vários versos que se identificam com o livro. Nas palavras de Jimmy Page, em entrevista concedida em 1989 para a jornalista Mirafried: “Stairway é uma balada de melodia triste, como a história de renúncia do amor de Aragorn e Arwen. Além disso, enquanto eu dedilhava eu pensava nas baladas cujas letras estão disponíveis em O Senhor dos Anéis”. Além dessa influência musical, temos que os povos e raças de Tolkien aparecem em muitos jogos e desenhos, embo- ra geralmente as pessoas não saibam de que se trata dele. Quem nunca assistiu ao clássico desenho Caverna do Dragão? Ele foi produzido para popularizar o RPG (jogo de interpretação de papéis) de mesmo nome, que por sua vez possui muitos elementos retirados da obra de Tolkien. Um dos RPGs mais jogados atualmente no Brasil é o D&D (Dungeon and Dragons), um jogo que se utiliza das raças de Tolkien (Elfos, Anões e Hobbits – esses chamados lá de Halflings, devido a questões de conflitos de direitos autorais), possuindo também muitos personagens baseados no livro, como o mago Elmister, que seria o equivalente a Gandalf. O próprio mundo onde o jogo se passa é uma imagem espelhada (embora infelizmente muitas vezes distorcida) da Terra Média de Tolkien Na verdade embora a obra de Tolkien pareça ser à primeira vista uma leitura muito grande e cansativa, quando se começa a ler tem-se a impressão de que as páginas passam depressa e de que o tempo não existe mais. A ambientação é tão realista e a história tão envolvente que o leitor se sente realmente no mundo criado por Tolkien, vivenciando cada situação e drama de cada personagem. A ficção nesse momento se torna muito mais real do que a própria realidade, e o mundo de Tolkien muito mais real que o nosso próprio mundo. É nesse momento que o leitor entende o que Tolkien propôs ao criar “O Senhor dos Anéis”, e se entristece por sua obra ser tão curta. Ricardo Edgard Caceffo escreve para revistas e fanzines sobre literatura, ficção científica e fantástica. Participa também do projeto SLEV. Email: [email protected] Site: http://www.ricardocaceffo.kit.net 14 Mini-Conto O Plástico-bolha Larissa Redeker Savan interrompeu suas anotações quando ouviu alguns estalos. um plec-plec seguido por outro plec-plec-plec. Tinha a certeza de que conhecia aquele som; era inconfundível. Esperou alguns segundos e, diante do silêncio que se seguiu, voltou-se para o monitor à sua frente. Mal recomeçou a digitar, ouviu novamente: plec-plec. Agora os estalos se seguiam sem pausa e estavam bem próximos. Voltou-se e encontrou seu assistente junto à porta, com uma longa peça de plástico transparente nas mãos. - O que é isso? – perguntou, um tanto secamente. - Plástico-bolha – respondeu o rapaz. – Por que? Nunca viu? Savan estreitou os olhos. Jordi gostava de fazer seus superiores perderem a paciência. - Sei muito bem o que é um plástico-bolha. Onde o conseguiu? - Com o César. - Aquele muambeiro – resmungou Savan. Mas no fundo tinha que admitir que, mesmo sendo conhecido por adorar encrencas, César era muito útil para a Ordem. – Tudo bem – continuou. – Mas vá brincar com esse negócio em outro lugar! Jordi afastou-se com um sorriso maroto nos lábios. O velho mago tentou continuar com suas anotações. Em poucos segundos o plec-plec das bolhas de plástico sendo estouradas voltou a encher a sala. - Jordi, o que foi que eu falei?!! – berrou Savan. E em resposta veio o silêncio. Que não durou muito. O plec-plec não acabava. A coisa que Savan mais odiava era trabalhar com um barulho insistente como aquele. Tão insistente quanto os grilos que faziam sinfonia no jardim. Mas os grilos ele perdoava. Já Jordi era outra história. - Se não parar com isso, vou dar um nó em seus dedos! Jordi ignorou a ameaça pois sabia que aquele era um feitiço que Savan não sabia fazer. Assim como também não se deu conta de que o velho mago conhecia muitas outras magias. Em sua sala, Savan apenas fechou os olhos, escolheu um bom feitiço e murmurou algumas palavras. Depois abriu os olhos e aguardou, com um sorriso vitorioso nos lábios finos. Jordi soltou um berro quando estourou uma bolha de dela saíram vespas. No mesmo instante largou o plástico e desatou a correr por um longo corredor, seguido pelos insetos. Quando Jordi já estava longe, Savan saiu de sua sala e encontrou o pedaço de plástico jogado no chão. Apanhou-o e voltou para frente de seu computador. Olhou atentamente para o texto que estivera escrevendo e, enquanto tentava reencontrar a linha de pensamento perdida por causa de Jordi, seus dedos começaram a estourar as pequenas bolhas de ar do plástico. O plec-plec estava de volta, só que agora era mais divertido. Larissa Redeker é programadora e webdesigner, atualmente investindo na área de multimídia, na arte de escrever ficção científica e tentando criar quadrinhos no estilo mangá. 15 Terror Legião Roberval Barcelos “...8 Porque Jesus lhe dizia: Espírito imundo, sai desse homem. 9 E perguntou-lhe: Que nome é o teu? Ao que ele respondeu: Legião é o meu nome, porque somos muitos...” O Evangelho Segundo São Marcos. Na tela da televisão instalada naquele escritório, via-se um rapaz encostado num muro pichado. Ele vestia uma camiseta preta, bem justa, realçando seus bíceps. Ele, com as mãos nos bolsos da calça, dizia: — ...Nossa Lei é nenhuma Lei. Temos apenas o nosso código de honra que desonraria seus valores hipócritas. Somos a prova viva de que sua moral é letra morta. Não precisamos de ideologias vis ou justificativas vãs. Somos o que somos pela simples razão de existir e nossa violência não encontra explicações nessa sua sociologia da demência porque aqui ninguém é motivado pelos traumas do passado ou por uma infância brutalizada. Violência para nós é uma cruzada que só quando alguém cruza em nosso caminho ela é mostrada e não tente encontrar refúgio em suas orações, pois somos as suas aberrações. Nunca nos procure em seus sonhos, pois estamos imersos nos seus piores pesadelos. Meu nome é Legião, porque sou parte de um todo invencível. Uma mulher loira desligou a TV e indagou ao homem de terno que estava sentado atrás da mesa: — Gostou? — Adorei! Como você conseguiu entrevistar um desses dementes e sair incólume? Lembra da Amanda? Ela foi morta ao tentar entrevistá-los. A mulher riu e respondeu: — Ela era pouco profissional. Tentou uma abordagem direta em vez de buscar contatos, mas eu não: fui comendo pelas beiradas até chegar a eles. — Carina, você é maravilhosa. Eu deveria estar louco quando dei a matéria para Amanda. — Amanda é passado. O senhor vai pôr o meu trabalho no ar? — É claro! — Gritou o chefe, — faremos as edições de praxe e vamos exibir como documentário em três episódios. Só quero saber uma coisa: por que esse nome, Legião? — Isso eu não sei nem encontrei ninguém que me desse uma explicação convincente. Eles devem ter escolhido ao acaso. — Vamos precisar especular um motivo. Pensaram em vários. Depois despediram-se e Carina saiu, contente. Pegou seu carro e foi dirigindo feliz da vida. Carina sorria enquanto dirigia seu carro esporte último modelo. Presunçosa, pensava se não ganharia o Pulitzer, mas ficava humilde ao agradecer a Deus pela morte de sua 16 Scarium antecessora, numa infame blasfêmia. Em verdade, fora Carina quem tivera a idéia de entrevistar a quadrilha conhecida por ‘Legião’, que aterroriza os cariocas com sua violência ilógica e aleatória. Mas Amanda, — que Deus a tenha... nos quintos do inferno! — roubou-lhe a idéia. Carina foi até o Diretor de Jornalismo, protestou ao dizer que o projeto era dela, mas ainda assim a reportagem coube a Amanda. No dia seguinte, uma notícia exclusiva na TV bateu todos os recordes de audiência: A repórter Amanda Goes, rosto conhecido dos telespectadores, foi encontrada morta num local ermo próximo à Avenida Ayrton Senna. A audiência teve picos com a exibição do corpo nu da pobre repórter com marcas de torturas e violência sexual. A polícia prendeu vários integrantes da quadrilha, que confessaram o crime, dando detalhes do suplício ao qual a incauta Amanda foi submetida. Dias depois, a polícia apreendeu uma fita de vídeo que mostrava todo crime, filmado pelos próprios algozes com o equipamento roubado da equipe. Cópias desse macabro filme ainda eram vendidas por uma fortuna no mercado negro do sexo. Que tipo de mente doentia pagaria um preço tão alto só para assistir a cenas reais de pessoas sendo brutalmente seviciadas e assassinadas? Carina, precavida, agiu diferente, conforme ela mesma explicava: — Fui atrás de contatos e só aceitei gravar as entrevistas em locais escolhidos por mim e com forte apoio. O resultado foi um ótimo documentário sobre a mais violenta quadrilha de todos os tempos. Houve quem dissesse que eles se inspiraram em James Masone quem dissesse que eles viam a vida como uma negação à realidade consumista, quando em verdade o que havia ali era somente violência. Outros diziam que Legião foi uma resposta dos oprimidos à opressão, embora as principais vítimas daqueles ‘oprimidos’ fossem outros oprimidos. E eles seguem num ciclo infindável de atrocidades que, apesar de toda ação policial, continua a crescer. Carina chegou ao seu apartamento e foi logo tomar um banho. Solteira, jovem e ambiciosa, aquele documentário será o divisor de águas em sua vida. * * * Numa igreja no Rio, seis Padres rodeavam uma bela mulher de cabelos lisos ruivos e olhos verdes. Ela, sentada numa cadeira e de olhos arregalados, parecia confusa enquanto um dos Padres gritava: — Esta mulher é batizada e sua alma pertence a Deus! Saia já desse corpo! Da mulher saiu um coro de vozes masculinas que ecoou pela igreja: — Desista, servo do cordeiro. Tu não pertences a esta época, senão saberias que todas as almas estão perdidas para Deus. O Padre, suando, persistia: — Criatura das trevas! Abandone esse corpo em nome de Deus! — Divindade errada! Nem tu nem o teu Cristo podem me derrotar. Eu sou Legião e voltamos para reclamar o que é nosso! O Padre, já cansado, olhou para os demais e disse: — Temos que participar isso ao Bispo porque se esse for mesmo Legião vamos precisar de toda ajuda possível. Um homem moreno apareceu e foi logo interpelado pelo Padre: 17 Novela — Você é o namorado dela? — Sim, Padre. Meu nome é Silvio e namoro a Andréa há seis meses. — Foi decisão sua trazê-la para cá? — Sim, Padre Vicente. Os psicólogos deram várias explicações quanto ao estado dela, mas nenhum foi capaz de explicar como ela consegue falar reproduzindo tantas vozes de homem. — Ela passou por um trauma, não foi? — Sim, ela foi a única sobrevivente de uma chacina pavorosa que aconteceu numa casa de praia ano passado. Os bandidos da tal Legião invadiram a casa, fizeram barbaridades e depois mataram todos, menos Andréa que fingiu-se de morta. Como essa coisa diz chamar-se Legião, os psicólogos enxergaram uma correlação. O Padre olhou para a moça, que havia desmaiado, e disse: — Acredite: há mesmo um demônio nesta jovem. — E o que devo fazer? — Nada. Apenas aguarde pelo exorcismo a ser marcado pelo Bispo. Aos poucos a jovem recobrava a consciência. Silvio amparou-a e levou-a para o carro. Enquanto manobrava para sair do estacionamento, deparou-se com dois adolescentes que usavam camisetas com o ‘L’ vermelho pintado. Ele não se conteve: — Vocês dois são bandidos por acaso? Os dois se entreolharam. — Sai fora! Somos estudantes! — Então parem de fingir que são bandidos e tirem já essa camisa! Os dois riram: — Qualé, Mané? Tá com medo de Legião? Silvio já ia descer do carro, mas Andréa o conteve: — Deixa para lá, meu bem. São adolescentes tolos que acham que agridem aos outros exaltando aqueles canalhas. — Acham, não, Andréa! Eles conseguem! Devia haver uma lei proibindo isso ou o pai desses babacas dessem uma boa surra neles. — E eles usariam escondidos. Violência só repudia mesmo quem já sofreu. Silvio manobrou e saiu com o carro. — Você é mesmo muito especial, Andréa — disse Silvio, — eu não aturaria isso, mas quero que saiba que nunca fui vítima de violência alguma e a repudio totalmente. Andréa encostou a cabeça no ombro dele e olhava seu rosto pelo espelho retrovisor do carro. Ele era o primeiro namorado digno de assim ser chamado que ela conheceu somente aos vinte e três anos. Antes, foram apenas “caras”. — Acho que de nós dois você que é especial — ela disse. * * * Dias depois, Carina estava num bar com os amigos assistindo ao primeiro capítulo do seu documentário. A todo instante ela era parabenizada pelos presentes e por colegas que foram até lá somente para homenageá-la. No telão da TV do bar, numa parte do documentário, um homem de máscara dizia: — ...Legião é isso aí: sexo, violência, drogas, violência, curtição, violência... A repórter Carina perguntou-lhe: — É só nisso no que pensa? E os estudos? E o seu futuro? — Eu penso no que todo mundo pensa. Enquanto sujeitos metidos a certinhos 18 Scarium ficam se masturbando imaginando estuprar a vizinha gostosa ou sodomizar uma família inteira, nós botamos em prática. Somos tudo aquilo que vocês gostariam de ser. Não me venha com esse papo de futuro porque ele morreu, aliás não morreu, mas foi abortado, não deixaram ele nascer, por isso matamos a esperança. Você fica por aí sonhando porque acordada é tudo um pesadelo. Nós somos o pesadelo. Conosco suas leis não pegam, só a polícia, mas quase sempre é tarde demais. Numa escola municipal, dois meninos que usavam a camiseta da Legião por debaixo do uniforme, eram entrevistados por Carina. — Vocês dois não me parecem da quadrilha — provocou ela. — Nem somos! — Então porque usam a camisa deles? — Porque ninguém se mete com quem as usa. Até o meu pai parou de me bater achando que eu fosse Legião. — Eu não — disse o outro garoto, — uso para tirar onda. Eu vou num baile com uma camisa de Legião e as minas ficam doidinhas. Quem usa tem fama de macho. — Você acha certo matar? — Indagou Carina. — Não! — Já atirou antes? — Nem sei usar armas! — Mas gostaria de ter uma? O menino sorriu: — Ah! Eu queria ter uma sim. No bar, um colega de Carina, rico mas que faz questão de vestir-se mal para parecer um intelectual desprendido dos valores materiais, aproximou-se dela com aquele ar arrogante de quem despreza o sucesso: — Seu trabalho foi muito corajoso. — Obrigada! — Mas acho que você pegou pesado com os estudantes pobres. Por que não entrevistou os classe média? Num sorriso constrangedor, Carina respondeu: — Porque eles não seriam tão burros em admitir seu lado bandido. E os dois riram. No telão, no final do capítulo, um rapaz da quadrilha proclamava: — Legião é uma proposta de vida. Dizemos à sociedade podre que somos o lodo no qual você terminará de afundar. Meu nome é Legião! O garçom que atendia Carina, comentou enquanto olhava para o telão: — Pra mim só matando! Deviam chamar o Exército e metralhar esses desgraçados. Assim que o garçom saiu de perto, o pretenso intelectual indagou: — Concorda com ele? Carina, que era só alegria, respondeu: — Quer saber duma coisa? Agora que já consegui a entrevista podem matar todos que eu vou morrer... de rir. * * * — Minha filha, Padre não resolve nada! — Dizia a empregada Sonia a Andréa, que assistia a um programa de TV com Silvio. — Você tem que ir é lá na minha igreja — insistiu Sonia. — Só ontem o Pastor 19 Novela exorcizou cinco demônios. Ele chama pelo demônio, ele vem, leva um sabão, fica de joelhos e sai. Mas tem que ter fé. Silvio ouvia espantado. — Cinco demônios numa só noite? O que ele faz? Exorcismo no atacado? Andréa sorriu e disse a Sonia: — Obrigada por querer me ajudar, mas confio na Igreja. A empregada fez cara de quem perdeu tempo e retrucou: — E eu confio em Jesus. Dá licença que vou ver se o pernil tá pronto. E voltou para cozinha. Silvio segurou a mão de Andréa e disse, como se pudesse prometer o impossível: — Nós vamos derrotar isso, seja demônio ou trauma. — É claro que vamos, querido. Na TV, o entrevistador perguntava a um político: — O senhor não acha melhor a pena de morte? — Com as deficiências do nosso sistema judiciário e a corrupção existente na polícia, a instituição da pena capital poderia vitimar inocentes. — Mas Deputado, e os membros dessa tal de Legião? Eles vão continuar agindo impunemente enquanto pessoas honestas são assassinadas? No caso específico deles não deveria haver pena de morte? — A adoção da pena capital não resolveria. Precisamos é de mais investimentos na área social. Matar nos igualaria a eles. — E não matá-los seria igualar muitos outros aos mortos! — A polícia prendeu mais de cem. — Mas deve haver uns duzentos soltos por aí. Escute bem, Deputado: esses criminosos se reproduzem como piranhas. Se alguns deles fossem executados não daria para inibir a formação de mais Legião? — Creio que não. — Então o Estado está capitulando, assumindo que não pode detê-los. — Eu não disse isso. — E os grupos de Funk, Deputado? Alguns fizeram músicas exaltando Legião. — Alguns não, repórter, só um fez. E o que aconteceu? Tiraram o CD deles de circulação e prenderam o líder da banda. Hoje, o CD deles vende centenas por dia no mercado negro e o nome da banda — Legionários do Crime — virou grife. Quero também deixar claro que a esmagadora maioria das bandas de Funk fazem músicas contra a violência e algumas tiveram até coragem de compor letras tentando mostrar a insensatez das ações de Legião. E a entrevista prosseguiu com o Deputado procurando dar explicações e o entrevistador tentando aparecer, portando-se como indignado pela violência alheia e defendendo a pena de morte. Era o indignado contra o inocente útil — Esse repórter é um aproveitador — disse Silvio. — Também acho — concordou Andréa, — lembra-se quando ele dizia que subia morros para prender bandidos? Assistiram TV por mais um tempo. Silvio sentiu que Andréa apertava-lhe a mão cada vez com mais força. Apertou, apertou e... — Andréa, o que está acontecendo? — a mão começava a doer. Ao olhar para o lado viu-a tremendo e de olhos arregalados. Ele tentou soltar sua 20 Scarium mão mas foi inútil e tinha medo de machucá-la tentando. — Andréa! Pare com isso! Ela virou-se e disse com várias vozes masculinas: — Meu nome é Legião! Como podes almejar derrotar-me se tanto ódio te cerca? Eu sou bem-vindo nesta Era. — Desgraçado! — Silvio xingou, enquanto tentava, com cuidado, soltar a mão. — Você está destruindo a mulher que eu amo! Saia já daí! Depois de uma sinistra gargalhada, a coisa disse: — Pobre ignorante! Vedes tanto ódio à volta que entendes qualquer alívio como prova de amor. Há dois mil anos pensaram que haviam me expulsado para sempre, mas atendi ao chamado da humanidade e retornei. Meu nome é Legião. Sonia, a empregada, voltou à sala trazendo a carne de porco para o jantar. Ao ver Andréa possuída, deixou a comida cair no chão, o que chamou a atenção da coisa. Ela correu na direção do casal, segurou a cabeça de Andréa e ordenou, com a mão na testa dela: — Demônio dos infernos! Saia já daí em nome de Jesus! A coisa parou de tremer, olhou para a comida no chão e disse: — Criatura ignóbil. Saibas que evocaste um nome em vão. E desmaiou. Andréa recobrou-se aos poucos. Sonia, com ares de vencedora, esfregava as mãos e dizia: — Não falei? Sangue de Jesus tem poder. Assim que Andréa voltou ao normal, Silvio sugeriu: — Meu amor, acho que devemos ir na igreja da Sonia. Andréa assentiu. * * * Naquela noite estrelada, um caminhão chegou a um galpão abandonado na periferia do Rio, do qual desceram dois policiais militares que fizeram sinal com uma lanterna. De repente, como se fossem espectros da noite, surgiram dezenas de homens encapuzados fortemente armados. — Trouxemos as armas — disse um dos policiais. — Precisamos falar com o chefe. Os homens ficaram em silêncio e em seguida surgiu um que vestia um manto negro e usava uma máscara de Bate-bola (!), embora o carnaval fosse só no próximo ano. — Descarreguem o caminhão! — Ordenou, sendo prontamente obedecido. Os policiais se aproximaram dele e foram sendo cercados pelos que não estavam descarregando. — Estamos com problemas. — Vocês são policiais. Se virem! — Tá difícil — disse o outro, — o Serviço Reservado tá em cima. O “Bate-bola” retrucou: — Eu paguei por este e mais um carregamento. Quero receber! — Semana que vem como você pediu tá difícil! Se puder esperar um mês... — Um mês? Nem pensar! — Nesse caso devolveremos metade do dinheiro. — Tudo bem — concordou o homem de preto, — assim poderei encomendar armas em outros menos cagões que vocês. 21 Novela — Não é medo não! — Rebateu um dos policiais. — É precaução. Nós vendemos pra vocês as armas que apreendemos de outros bandidos. Quando o número de armas apreendidas cai, a vigilância aumenta porque fica mais fácil tomar conta. — Tudo bem, eu entendo. O “Bate-bola” recebeu do policial um pacote com o dinheiro devolvido e após rápida conferida, disse: — É uma pena. Sentirei saudades de vocês. Os policiais foram cercados por meliantes que lhes apontavam armas. — Pelo amor de Deus! Nós jogamos limpo com vocês! Devolvemos o dinheiro e trouxemos parte das armas. Por favor, não nos mate! O “Bate-bola” cruzou os braços e disse: — Vocês estão apavorados demais. Se descobertos poderão contar sobre nós, afinal vocês nos viram. Um dos policiais disse: — Por favor, não nos mate! Nós nem sabemos como vocês são. Nunca vimos seus rostos. O “Bate-bola” tirou a máscara, depois ordenou: — Todos tirem suas máscaras! Todos obedeceram. Ninguém mais estava mascarado. O líder disse: — Agora que vocês viram nossos rostos poderão ser perigosos para nós, por isso não podemos deixá-los viver. Nada pessoal, mas é a nossa natureza. Meu nome é Legião! No dia seguinte, foram encontrados os corpos de dois policiais, esquartejados, na praia de Sepetiba. Muitos quiseram acreditar que eles morreram no estrito cumprimento do dever legal. * * * Andréa e Silvio entraram pela primeira vez naquela igreja levados por Sonia. Os fiéis estavam de pé entoando bonitos cânticos de louvor a Deus enquanto dois Pastores, um mais novo e outro de meia-idade, conduziam o culto. Sonia foi até uma das mulheres que ajudavam os Pastores e contou-lhe o que acontecia com Andréa. A mulher tentou confortá-la e avisou que a levaria até os Pastores assim que começassem o exorcismo. Minutos depois, o Pastor de meia-idade pediu aos fiéis: — Meus irmãos e irmãs! Dêem sua contribuição para Deus como prova maior de fé. Lembrem-se de Caim e Abel: Deus só tinha olhos para Abel porque este nada lhe negava enquanto Caim pouco dava e nada recebia do Senhor. Andréa cochichou no ouvido de Silvio: — Se Deus gostava tanto de Abel, por que deixou Caim matá-lo? — E pergunta a mim? Eu nunca entendi por quê Deus fez aquilo tudo com Jó e o Diabo foi quem levou a fama de mau! Os fiéis fizeram fila e começaram a despejar dinheiro, faziam cheques etc. O Pastor mais novo disse ao de meia-idade: — Não deveríamos dispensar os que já deram dinheiro? — Claro que não, Pastor Sérgio! — Mas tem gente aqui que não pode dar mais. — Tem sim. Tem que ter fé. É dá ou desce! Terminada a contribuição, os Pastores deram início ao culto de exorcismo. Uma 22 Scarium “obreira” levou ao palco uma garrafa de cachaça, uma vela preta e um pote de barro com uma galinha morta sem a cabeça. — Isso é o que usam para macumbaria, irmãos! Uma gargalhada geral. — Irmãos! Quem crê em Deus não precisa de nada disso. Pensem em quanto dinheiro se gasta para adorar o demônio! Ouvia-se um murmúrio entre os fiéis. — Agora vamos vencer! Vamos derrotar o demônio! Os fiéis deliravam. Um homem que dizia estar com um ‘exu’ ficou de joelhos e depois levantou-se dando graças a Deus e agradecendo ao Pastor; uma moça dizia estar com uma pomba-gira e caiu também de joelhos, desmaiou e acordou, dizendo-se curada do mal e dando graças a Jesus; uma senhora gorda tremia e jogava-se para os lados, até que os pastores puseram as mãos sobre sua cabeça e expulsaram o “coisa ruim”. Chegou a vez de Andréa. Ela subiu no palco (era mesmo um palco!) com Silvio, Sonia e a “obreira”. O Pastor puxou-a pelo braço e levou-a diante dos fiéis, desafiando: — Estão vendo essa linda jovem, meus irmãos? É a primeira vez que ela vm aqui. Nossa irmã Sonia a trouxe porque está possuída por um demônio. E nós vamos o quê? — Derrotá-lo! — Gritaram os fiéis. — Em nome de Jesus! — Corou o Pastor. O Pastor mais novo aproximou-se e cochichou: — Ela parece estar com sérios problemas, não é melhor conversar antes? — Não, Pastor Sérgio. Não é. E o Pastor mais velho desvencilhou-se do outro e pôs a mão sobre a testa de Andréa, fazendo uma prosaica evocação: — Vem demônio! Venha se tiver coragem! — Nada. — Venha até nós, demônio! Venha ser derrotado pelos verdadeiros cristãos! — Nada. — Você não tem coragem para enfrentar o povo de Deus! Você é um farsa! Segundos depois Andréa começou a tremer. Em seguida ela arregalou os olhos e disse com o coro de vozes masculinas: — Quem ousa convocar-me? Surpreso com a entonação das vozes, o Pastor continuou: — Eu ousei, demônio! Saia já deste corpo que é a morada de Deus! — Isso não és tu quem decide. — Vá embora para sempre em nome de Jesus! A coisa gargalhou e disse: — O Cordeiro não atende ao teu chamado. Sentindo-se constrangido, o Pastor apontou para o ‘despacho’: — Eis ali o que você gosta, demônio dos infernos! Vá lá comer! A coisa fez cara de nojo e disse: — Mas que droga é aquela? Eu sou um demônio decente e exijo respeito! — Vocês ouviram, irmãos? O diabo quer respeito! O Pastor foi até o ‘despacho’ e apanhou a vela, que estava apagada. — Está vendo isso, demônio? Se é quem diz ser, faça essa vela acender. A coisa fez um gesto e o pavio da vela acendeu. O Pastor assustou-se mas manteve a pose. De repente, a chama da vela cresceu tanto que alcançou o teto, que fez o Pastor 23 Novela deixá-la cair no chão com o susto. Depois, a coisa fez outro gesto e uma ventania começou dentro do templo. Os fiéis ficaram surpresos e assustados, mas logo voltaram a gritar: — Derrote esse demônio, Pastor! O Pastor respirou fundo e gritou: — Vá embora daqui em nome de Deus! A coisa limitou-se a rir. O Pastor Sérgio apontou para baixo e o de meia-idade notou que ela pairava no ar uns vinte centímetros acima do chão. — Parta agora, Servo de Satanás! — Tentava fingir controle. — Volte para o inferno em nome de Jesus! — Chamaste-me de quê? Tu serves a Satã melhor do que eu, criatura sem escrúpulos. A coisa abriu os braços e a galinha sem cabeça levantou-se e começou a andar em volta do Pastor. Este arregalou os olhos e gritou: — Irmãos! Deus quer uma prova de fé! Quem chegar ao lado de fora da nossa igreja sem se machucar é porque tem fé! E todos, Pastor à frente, saíram correndo do templo. No palco ficaram Silvio, o Pastor Sérgio, Sonia e Andréa/Legião. A coisa gargalhava e a ventania aumentava. O Pastor Sérgio apanhou a Bíblia e jogou-se sobre ela, segurando-lhe a testa e gritando: — Saia deste corpo agora, Satanás! — Erraste de demônio. — Volte para o inferno, Asmodeus! — Erraste novamente! — Curve-se diante do poder de Deus, Belzebu! — Sequer passaste perto. — Seja quem for, você é servo do mal. — Estás melhorando... — A vida é um milagre de Deus! — A vida é meu instrumento. — Saia agora! Saia em nome de Jesus! — Sairei porque quero e não por causa do nome daquele rabino reformista. A galinha caiu, a coisa gargalhou e provocou espasmos em Andréa, que desmaiou, cessando a ventania. Aos poucos, amparada por Silvio e Sonia, Andréa acordou: — E então? — Ela indagou. — Aquilo foi embora? O Pastor Sérgio, ainda refazendo-se, respondeu: — Lamento reconhecer, mas acho que aquilo voltará. * * * Carina chegou depois da hora na emissora de TV. Ela o fez de propósito só para testar o seu prestígio. Ninguém ousou repreendê-la. O documentário havia sido negociado para outros países e falava-se até numa produtora americana interessada em levar a história para as telas de cinema. Assim que aproximou-se da secretária, ouviu o recado: — Tem um Promotor Público querendo falar com a senhora. Ele a esperava numa sala. Era um jovem de cabelos castanhos crespos e porte 24 Scarium imponente, o que chamou a atenção de Carina. Após rápidos cumprimentos ele começou a falar sem rodeios: — Quem serviu de elo entre a senhorita e Legião? — Não posso informar as minhas fontes. — Acho que deveria. Ao menos pense na sua colega Amanda. Carina teve vontade de rir. Coitadinha... — Ela está morta. Legião a matou. — E o que o senhor espera que eu faça? Mande rezar missas? — Ao menos poderia contar-me quem foi o elo, pois também poderá nos levar até o covil do líder de Legião e daremos um ponto final nestes criminosos. — Infelizmente não posso dar o que o senhor me pede. O Promotor sorriu: — A violência que Legião pratica nada mais é do que o recurso do terror, pura psicologia do medo. Eles adotam uma postura violenta para intimidar possíveis inimigos. Tamerlão fez melhor. — Já disse, Promotor: não posso ajudá-lo, mas se quiser jantar comigo... O Promotor ficou de pé e disse: — Lamento muito! — Ele parecia triste. — Fica para a próxima reencarnação. E saiu. Carina rosnou ao ver-se desprezada, mas buscou consolo no sucesso que fez dela uma celebridade além dos quinze minutos. Ela foi até o banheiro feminino e antes de digitar um número em seu celular, certificou-se de que não havia mais alguém ali. Ela sussurrou quando do outro lado da linha alguém atendeu: — Aqui é Carina. Precisamos de mais ação, de outra exclusiva. Cedo ou tarde mais repórteres terão acesso às minha fontes. Andando de um lado para o outro enquanto ouvia a resposta, ela disse: — O negócio tá ficandofeio! Até o Ministério Público está me assediando, mas nem falam em me pagar. É isso aí: querem de graça o que eu suei para arranjar. Do outro lado, disseram algo e desligaram. Carina, então, digitou outro número e disse: — Alberto, estou com problemas. Vamos agir depressa porque daqui a pouco não terei mais uma fonte exclusiva. — E desligou o celular. * * * — Silvio, estou assustada... — Andréa disse sobre a noite anterior na igreja dos Pastores. — Não se preocupe, meu amor — tentava confortá-la, — depois de tudo pelo que você já passou, posso afirmar que ninguém é tão forte quanto você. — Mas e essa coisa? Eu não posso ter uma vida normal enquanto não superar isso. E eu tinha tanta esperança na igreja da Sonia... Silvio fez um muxoxo: — O primeiro Pastor parecia um comediante, mas o Pastor Sérgio era sério. — Mas ele voltará. Eu sinto! — Estaremos preparados! O Pastor Sérgio deixou o telefone dele para o caso de precisarmos de ajuda e os Padres não desistiram de lutar. Eu tenho fé de que juntos derrotaremos esse... seja lá o que for! — Amém, meu amor. Amém! — E foi dormir. 25 Novela Silvio deitou-se ao lado dela e não pode evitar de se lembrar da primeira vez que a viu, linda e sorridente, porém fútil e venal, cercada de amigos duvidosos e vazios. Mesmo assim estava apaixonado por uma imagem, por uma moça que lhe passava exatamente o que não era. Depois veio a tragédia. Ela sobreviveu ao ataque de “Legião” e por vários dias os telejornais mostravam entrevistas com os pais dela chorando copiosamente o infortúnio da filha. Até para programas de entrevistas eles foram convidados (e aceitaram), mas Silvio queria apenas uma chance e esta veio quando Andréa saiu do hospital e voltou para casa. Os pais “precisaram” viajar e a deixaram sozinha. Um dia ele passou por ela na calçada, chamou-a pelo nome e perguntou-lhe como estava. Ela sorriu e esticou a conversa mais do que o normal. O passo seguinte foi esperar alguns “encontros casuais” e pedi-la em namoro. Conseguiu. Seus amigos, pelo menos os que conheciam bem Andréa, reprovaram com argumentos factíveis: “É uma drogada!”, “Mais vazia impossível!”, “Só anda em más companhias!”, “Até o irmão morreu de overdose!”, “Os pais dela se odeiam e mantém amantes!”, “Ninguém na vizinhança gosta dela!”. Aquilo tudo era verdade. Era, porque ele conheceu uma Andréa diferente, entusiasmada com seu “relacionamento sério” como se fosse o primeiro. E era. Ele velou o sono dela por mais meia hora e dormiu também. * * * O terceiro capítulo do documentário de Carina sobre Legião foi ao ar no horário nobre. Recorde absoluto de audiência. Nas telas das TVs um jovem encapuzado narrava: —...foi aqui mesmo. Os caras do Tunicão pensaram que eram os donos do pedaço e ficaram cheios de ‘marra’. As bocas-de-fumo deles davam um dinheirão e eles usavam armamento de primeira, mas nós encaramos. Foi de manhã e eles tavam dormindo, com poucos de guarda. Fomos tão rápidos que eles nem puderam reagir. Quando Tunicão acordou, estávamos em volta da cama dele. O safado tava pelado e com duas ‘de menor’. Sabe o que fizemos? Matamos ele e fizemos uma festa com as ‘mina’. Depois penduramos as três cabeças num varal para os moradores ficarem sabendo que agora é Legião quem manda no pedaço... Para fechar, Carina, diante de milhões de telespectadores, dizia: —...Legião: vítimas ou algozes de uma sociedade cada vez mais indiferente? O que eles querem realmente? Chamar a atenção sobre si e seus problemas? A resposta da sociedade tem sido sempre devolver-lhes a violência que praticam, mas da qual também são vítimas. Legião é o estágio mais baixo que a nossa sociedade chegou desde que o Exército brasileiro massacrou sertanejos miseráveis em Canudos. Incrível que por mais que a nossa sociedade decaia, ainda não tenhamos atingido o fundo do poço. E a última imagem a ir ao ar foi um garoto com o rosto parcialmente coberto por um gorro preto gritando: — Meu nome é Legião! Apesar das aparências, Carina não estava relaxada. Enquanto aguardava pelo Diretor-geral da emissora, ela ia tecendo mais matérias em sua mente, por mais arriscadas que fossem. Quando abraçou a carreira na televisão, jamais imaginou encontrar disputa tão acirrada entre colegas e só sobreviveu porque soube manipular pessoas e mostrar serviço. Agora era ela quem bajulavam, adulavam e mencionavam. Quando o assunto era ousadia e talento, seu nome aos poucos firmava-se como referência. 26 Scarium O Diretor parabenizou Carina pela enésima vez e indagou: — Você contou sobre suas fontes para o Promotor? — De jeito nenhum! — Fez muito bem! — Eu nunca revelarei as minhas fontes. — Nunca? — Bem... se me derem um bom dinheiro... — Mas aí é uma questão de sobrevivência e nesta selva de concreto sobrevive melhor quem tem mais dinheiro. * * * Andréa passou mal a noite inteira. Silvio chamou um médico e ele não soube diagnosticar o que via. Na dúvida deu-lhe um sedativo, mas ela permaneceu inquieta. A empregada lamentava: — Tadinha da dona Andréa. E os pais desnaturados resolvem viajar em vez de tomarem conta dela. Se o ‘seu’ Silvio não estivesse aqui... — O caso dela é psíquico e não sobrenatural — disse o médico, — ela sobreviveu à chacina da casa da praia no ano passado e assimilou os dizeres daqueles dementes. — Traumas não produzem ventania nem fazem galinhas mortas andarem. — Ele julgou melhor não mencionar que ela levitou. — Podem fazer até mais, senhor Silvio. Certamente o senhor já ouviu falar de poltergeist, quando uma série de distúrbios mentais geram atividades físicas incontroláveis, pois a nossa mente libera forças ainda ocultas de nossa psique. A telecinésia e a telepatia são provas do potencial da mente humana, quase sempre latente, mas que pode ser ativado quando sofremos algum distúrbio. É exatamente isso que está acontecendo com ela. O médico esperou Andréa dormir e foi embora. Silvio ficou na cama, sentado, ao lado de Andréa e sentindo-se inútil por não saber o quê fazer. Quando ele estava perto de pegar no sono, ouviu um coro de vozes: — Meu nome é Legião. Ele redespertou como num salto mas Andréa continuava dormindo, linda, como se nada de ruim pudesse lhe acontecer. Melhor dormir também. * * * Carina sabia que sua glória não duraria para sempre. Daqui em diante precisaria estar sempre em evidência para ser lembrada para os trabalhos de grande impacto junto ao público. E isso poderia incluir participar de programas de auditório chatíssimos ou mostrar seu apartamento reformado para os voyeurs do sucesso alheio. Talvez até um romance de mentirinha com algum cantor gay. — Sabe da última, Carina? — Indagou-lhe um rapaz que servia de zangão para novas matérias. — O que você tem para mim, Alberto? — Ela perguntou, sentindo cheiro de notícia. — Eu soube por fonte limpa, que uma mulher que se dizia possuída por um espírito maligno foi numa dessas igrejas evangélicas e pôs o Pastor e os fiéis para correrem. — Tem certeza? — Absoluta! Eu chequei! Mas essa não é a melhor parte! — E qual é? 27 Novela — O espírito que possuía a moça chamava-se Legião. — O quê? Legião? — Carina quase deu um salto. — Isso mesmo: Legião. Como está na Bíblia, no Evangelho de São Marcos. —Na Bíblia? —Isso mesmo. Nunca leu a Bíblia? —Para falar a verdade, tem muito tempo... — Tudo bem. Legião tem esse nome porque é formado por vários espíritos atrasados. Jesus Cristo que ao indagar-lhe o nome obteve a seguinte resposta: ‘Meu nome é Legião’. — Assim? Igual àquela quadrilha? — Exatamente. E tem mais: a mulher possuída chama-se Andréa Fisher, que sobreviveu a um ataque da Legião numa casa de praia... — Espere! Eu já ouvi falar nesse caso! Foi o ‘Massacre da Casa da Praia’ onde Legião torturou e matou quase vinte pessoas. — Exato! Essa Andréa Fisher foi a única sobrevivente. Na época ela estava envolvida com uma turma de manés que adorava fumar ‘baseado’. Eles estavam no meio de uma orgia quando eles chegaram e barbarizaram. Foi o início da escalada da violência de Legião. Carina andou em volta da mesa. Aquilo era bom demais para ser verdade. — Essa Andréa ainda anda com aquele tipo de gente? — Não! Em verdade ela vem de uma família desajustada, onde os pais vivem viajando para lugares diferentes porque um não tolera o outro. Ambos têm amantes fixos e já tiveram envolvimento com drogas. O irmão de Andréa morreu de overdose de cocaína há três anos. — Que coisa horrível! Mas... coisas horríveis assim dão ibope! O que mais você descobriu sobre ela? — Que ela se afastou das drogas e arranjou um namorado decente — sim, eles existem. — Pensa até em casar, ter filhos, voltar a estudar... — Uma tragédia com final feliz! Para um público que assiste a dramalhões mexicanos e chora a morte de políticos que nunca fizeram nada que prestasse, isso vem a calhar. — Mas, Carina, tem o demônio Legião no meio disso tudo. — E você acredita nisso? — Bem, não exatamente, mas quem me deu a informação garante que havia algo de terrível com ela. Talvez o demônio exista mesmo. — Tanto melhor! Tem o endereço dela? — Tenho sim. Ela havia se mudado por medo de uma represália da quadrilha e a própria polícia deu-lhe proteção durante alguns meses, mas subornando as pessoas certas, pude descobrir o seu atual endereço num subúrbio daqui do Rio. — Ela ainda mora no Rio? — Sim. O correto seria mudar-se para outro estado, mas os pais têm negócios aqui e não querem sustentar a filha em outro estado. — Daí eles preferem que ela corra o risco de ser morta aqui? — Para você ver! Alberto e Carina riram. Ela riu porque estava quase sentindo pena de Andréa e ele... bem, ele riu porque ela riu. * * * 28 Scarium Silvio acordou e logo olhou no relógio: onze da manhã. Mais uma vez perdeu um dia de trabalho. Ele olhou para o lado e constatou que Andréa não mais estava ali. Lavou o rosto e deu-se de cara com Sonia: — Você viu Andréa? — Não, ‘seu’ Silvio. Silvio começou a ficar preocupado e insistiu: — Meu Deus! Você chegou aqui a que horas? — Na hora de sempre: nove da manhã. — Essa não! Ligue para o Pastor Sérgio que eu vou ligar para o Padre Vicente e para a polícia. Ela não sairia sem dizer aonde iria. * * * Andréa estava num ônibus com destino ao bairro de Pedra de Guaratiba, bairro afastado, quase nos limites do município do Rio de Janeiro. Ela lembrava do sonho desta noite e sabia que aquilo foi algo mais: Ela viu-se caminhando num lugar escuro e desolado até que avistou um vulto de capuz marrom debaixo de um poste com fraca iluminação. Ele parecia um monge, mas havia algo diferente. O capuz cobria-lhe todo rosto. Ao se aproximar mais, um coro de vozes masculinas disse-lhe: — Bem-vinda ao meu/nosso mundo de trevas, Andréa. — Eu sei quem é você! É o Legião! Deixe-me em paz! — Foi para isso que trouxemo-te aqui. Para livrar-te de nós. — Por que faz essas coisas? O que você quer? — Queremos o que todos os condenados querem: fugir da prisão. A única maneira de escaparmos deste purgatório eterno é deixarmos de vez este maldito lugar ao qual o Nazareno nos confinou. — Eu não vou ajudá-los! — Mas precisa fazê-lo. Quando alguém clama por nós diante de uma alma prestes a desencarnar, ocupamos o corpo moribundo e impedimos que a alma saia, portanto passamos a coabitar o mesmo corpo. Todavia, tudo tem um limite e teu corpo não satisfaz a todos nós porque somos muitos. Se todos nós escaparmos de uma só vez para o teu mundo, precisaremos faze-lo através de teu corpo, mas se isso for feito, tu não suportarás a transferência de tantos espíritos e... explodirá. — Quer dizer que aqueles bandidos acidentalmente convocaram vocês? — Sim, Andréa. Teu suplício teria fim na morte, mas tu ainda estavas viva e eles não cessavam de citar o meu/nosso nome. Quando tu estavas prestes a morrer, chegamos, ocupamos parte de teu corpo e impedimos que tua alma saísse. Salvamos tua vida miserável, mas tu nunca quiseste ser nossa hospedeira. — E o que esperam que eu faça? Que eu lhes agradeça? Que tenha pena? — Não. Queremos que leve-nos até aqueles que nos convocaram para que possamos terminar o encantamento. Eles, teus algozes, nos chamaram, portanto devem ser eles e não tu o nosso elo, nossa passagem para este mundo de liberdade. — Mas eu morrerei! Eu não quero morrer! — Tu não morrerás! Nós te libertaremos de nós e passaremos para eles. Tu terás tua vingança e nós a nossa liberdade. 29 Novela — E o que devo fazer? — Muito bem, Andréa. Tu és inteligente! Faça o seguinte... E ela estava indo para um acerto de contas. Mas sabia que precisaria de toda ajuda possível... e impossível. * * * Silvio estava reunido com o Padre Vicente e com o Pastor Sérgio, ambos preocupados com o paradeiro de Andréa. A polícia já havia sido contatada e os detetives afirmaram que fariam o possível para localizá-la. Quase às cinco da tarde Sonia foi até a sala e disse a eles: — Padre, Pastor, ‘seu’ Silvio, achei um envelope com uma carta assinada pea dona Andréa. Meu Jesus, como pude não ter visto? Silvio apanhou o envelope e leu a carta. Ali Andréa dizia o que ia fazer e aonde estava indo. Ela pedia para que não a seguissem, pois sabia estar confiando em forças demoníacas que certamente não se preocupariam com a vida de inocentes. — Temos que ir lá — disse o Padre. — Mas não sem antes avisarmos a polícia — sugeriu o Pastor. — Vamos de qualquer jeito — disse Silvio, — a polícia será avisada. — Pedra de Guaratiba é longe daqui — disse o Pastor, — mas se ela saiu pela manhã certamente já chegou lá há horas. — Eu sei — concordou Silvio, — mas acredito que nada seja por acaso, portanto ela ainda não deve ter chegado lá. — Então não temos tempo a perder — disse o Padre, — vamos direto para lá. E os três saíram no carro de Silvio, mas antes avisaram a polícia. * * * Andréa também acreditava que nada era por acaso. Ela havia tomado o ônibus errado e descido em outro bairro. Para voltar ao caminho, tomou outro ônibus errado e desceu em Itaguaí, mas agora, às 17 horas, finalmente havia chegado ao seu destino: Pedra de Guaratiba. Bairro pobre com ruas de terra, loteamentos clandestinos e valas negras. À medida que se aproximava, voltavam as lembranças amargas de sua quasemorte. Se ela tivesse tido um pouco de amor naquele lar, talvez buscasse uma vida de objetivos e realizações, mas só fez mergulhar numa orgia de autodestruição, com drogas e sexo casual, a ponto de sair de uma orgia sem lembrar-se com quem havia estado. Sua existência vazia levou-a à uma casa de praia onde garotos ricos e moças ambiciosas se reuniram para muita droga e muito sexo, mas isso era problema deles. Quando se preparava para cheirar mais uma carreira de cocaína, um grupo de homens armados e gritando muito irromperam pela casa. Diziam que queriam dinheiro e jóias mas aos poucos foram ficando cada vez mais violentos. Primeiro se contentaram em ver as moças nuas, depois mandaram que elas se beijassem, depois partiram para o estupro e finalmente iniciaram o massacre no qual ela foi a única sobrevivente — graças aos demônios. Ela levou dois tiros nas costas (a maioria recebeu tiros na cabeça) e caiu inerte. A todo tempo aqueles loucos gritavam: “Legião!” Acordou numa cama de hospital. Depois, policiais e promotores queriam detalhes, a imprensa idem. Ninguém foi preso embora a todo instante surgissem notícias da morte deste ou daquele membro de “Legião” e aumentassem as pichações com a inscrição “MEU NOME É LEGIÃO”. 30 Scarium Seus pais foram ao hospital, deram entrevistas, choraram diante das câmeras e foram viajar para “aliviar o stress”, mas deixaram a filha sozinha, aos cuidados da empregada. Desde que embarcaram sequer deram um telefonema para saber como estava, como se sentia, se precisava de algo. Eles devem ter pensado que o dinheiro deixado na conta supriria todas as carências. Mais uma vez estava só. Foi quando Silvio apareceu e parecia interessado somente nela, mais do que um amigo e diferente de todos que ela permitiu que se aproximassem. Com ele, Andréa vislumbrou um mundo novo, acima das futilidades que tanto cultivou. Também foi graças à força que ele lhe transmitiu que ela reuniu coragem para aventurarse naquele bairro, ao encontro de seus algozes. Ela foi-se informando com os moradores acerca do local indicado por Legião em seu sonho, e já havia andado bastante, perdendo-se algumas vezes. Ela sabia que o momento crucial de sua vida estava prestes a acontecer. Talvez morresse, mas tudo acabaria ali, fosse para melhor ou para pior. — Vai lá não, moça — aconselhou-a um menino com o qual ela se informava acerca do local almejado, — Legião vai estar lá. — Isso com certeza, menino — disse ela, — com certeza. Era a prova que ela precisava. O demônio estava certo. Eles estão lá. À medida que se aproximava do local almejado, Andréa sentia um frio na barriga e as lembranças daquele dia maldito vinham-lhe à mente, fazendo o medo ocupar os espaços deixados vazios pela coragem. Medo! Ela lembrava-se que a coragem tem seus limites. Medo! Hesitava em prosseguir. Um coro de vozes masculinas fez-se ouvir: — Não temas, Andréa. Terás a tua vingança. Não fraquejes agora que estás tão perto! Que se danem! Pensou Andréa, seguindo a passos firmes. * * * Carina manobrava seu carro naquela rua de terra em Pedra de Guaratiba. Andréa deu-lhe uma grande idéia para uma matéria: “LEGIÃO SE VINGA E MATA SUA PRIMEIRA VÍTIMA”. Talvez o título fosse outro, mas seria um impacto que lhe renderia mais prestígio. Assim que desceu do veículo, foi abordada por dois homens armados: — O que você quer, vagabunda? Carina cruzou os braços e rosnou: — Olha como fala, babaca! Quero falar com o Eliseu. Os dois se entreolharam e um terceiro conduziu-a para dentro de um grande galpão abandonado, cheio de caixas com armas e munições onde havia dezenas de outros homens lá dentro. Um homem todo de preto e com máscara de Bate-bola aproximou-se cautelosamente de Carina: — Veio fazer o quê aqui? Já não te demos a entrevista? Carina sorriu e falou: — Vocês me ajudaram e eu ajudei vocês, ou não assistiu ao último capítulo? 31 Novela O homem tirou a máscara, exibindo um rosto moreno com marcas deixadas pela acne na adolescência. — Adorei! Somos vítimas da sociedade! Vítimas! Só você mesmo... — Tem muito trouxa que acreditou, Eliseu. — Acho bom. Mas você não deveria ter vindo até aqui. — Mas precisei, afinal meu nome também é Legião. Eliseu sorriu e devolveu: — Todos nós somos Legião! — Estou preocupada. — Ela disse — Nós tiramos o nome de um demônio da Bíblia mas nunca contamos a ninguém. Eliseu... lembra-se daquela moça que sobreviveu ao ataque à casa de praia? — Como não lembrar? Ganhamos as manchetes até no exterior. A verdade é que o dono da casa nos devia uma grana alta da cocaína e nada de pagar. Pior que o malandro vendia e não prestava contas. Fomos lá cobrar e quem tava lá dançou. Quem manda andar em más companhias? — Eu perguntei da sobrevivente. — E daí? Que você quer? Eu não vou sair por aí procurando uma vagabunda. — Mas devia. Um informante contou-me que ela está possuída por um demônio chamado Legião. O mesmo no qual nos inspiramos para criarmos nosso grupo. Eliseu gargalhou. O fez tão alto que chamou a atenção dos outros. — O que é isso, Carina? Passou a acreditar na própria mentira? — Pense bem, Eliseu. Nós contamos que nosso nome foi inspirado no demônio da Bíblia... — Muitos fariam a associação. Para mim ela pirou. Também... do jeito que a rapaziada se divertiu naquela noite, quem não piraria? — Sei não, Eliseu. Eu estou com um péssimo pressentimento. — Tome um calmante que isso passa. — Mas vocês mataram a Amanda e toda equipe... — Eliseu franziu o cenho, aproximou seu rosto do dela e disse: — Foi você quem pediu para matarmos ela. Não te devemos nada! — Não estou falando de dívida, falo de segurança. — Nós estamos seguros. — Mas eu não! — Isso é problema seu! * * * Andréa aproximou-se a passos curtos dos mesmos homens armados que abordaram Carina. Eles a viram e se aproximaram dela. — Tá fazendo o quê aqui, gostosa? Ela não respondeu, apenas, em silêncio, arrependia-se por haver confiado num demônio. Um dos homens apontou-lhe uma escopeta e disse: — Vai logo tirando a roupa que a gente deixa você viver. Andréa começou a tremer, sacolejando violentamente seu corpo. Os homens se entreolharam e um deles comentou: — Ela está tendo um ataque! — Que bom! Adoro mulher que se mexe! Ela caiu no chão desacordada. O mais afoito largou a arma e foi logo desabotoando 32 Scarium a blusa e arrancando-lhe o sutiã. — E aí? — Indagou, olhando para o outro. — Nosso nome é ou não é Legião? De repente, Andréa abriu os olhos e um coro sinistro de vozes masculinas saiu de seus lábios delicados: — Não! Meu nome que é Legião. Os dois criminosos começaram a sentir uma horrível dor de cabeça. De repente começou a sair sangue do nariz, do ouvido e dos olhos de cada um. Quando começaram a gritar, cuspiram sangue até caírem mortos. A coisa/Andréa ficou de pé. Sorriu demoniacamente e caminhou na direção do galpão, sem importar-se em estar despida da cintura para cima. * * * De dentro do galpão, enquanto Eliseu e Carina conversavam, começou uma algazarra. Os homens começaram a gritar ‘gostosa’, ‘tesão’ e ‘boazuda’. Eliseu e Carina foram ver e repararam na jovem, com os seios à mostra, que caminhava para o centro do galpão. — Quem é você? — Perguntou um surpreso Eliseu. A coisa riu e respondeu: — Não me reconheces, mortal? Meu nome é Legião. Carina arregalou os olhos: — Só pode ser ela Eliseu! Mate-a antes que nos mate! — Só depois de muita diversão... — disse um dos criminosos. Confuso, Eliseu viu que ela não trazia armas e se aproximou. Em seguida, seguroua pelos cabelos e perguntou: — O que você quer? A coisa riu e segurou o braço de Eliseu, dizendo: — Carne! Preciso de carne, ainda que de má qualidade. Eliseu começou a tremer, fazendo os outros criminosos (dezenas deles) se afastarem. Tremeu tanto que explodiu. O sangue dele sujou Andréa, que caiu de joelhos no chão. De repente, vários espectros em forma de pessoas maltrapilhas saíram de seu corpo e começaram a planar naquele galpão. Os criminosos apanharam suas armas e atiraram a esmo. Inútil. Carina jogou-se no chão, atrás de uns caixotes. Em seguida, os espectros começaram a entrar nos corpos deles, a proporção de dezenas para um, que explodia. Aquilo tornava-se um festival escatológico onde pedaços das sobras da sociedade brasileira espalhavam-se pelo galpão abandonado. Poucos meliantes ainda restavam de pé. Carina apanhou uma escopeta. Procurou por Andréa e encontrou-a caída no chão. Aquela cena macabra de corpos explodindo continuava. Carina rastejou até bem próximo de Andréa, levantou-se, fez mira e... Dezenas de espectros começaram a entrar em seu corpo. Carina sentiu uma dor insuportável e perdia o controle sobre seus movimentos. Em segundos ela nada mais sentia do pescoço para baixo e... Explodiu! Suas vísceras, carne, ossos e pele espalharam-se pelo galpão, juntando-se aos restos de seus cúmplices. Só restou Andréa inteira. 33 Novela * * * O automóvel de Silvio atolou duas vezes na lama. Na terceira, eles desceram e o Pastor perguntou a um grupo de meninos: — Sabem quem tem uma criação de porcos aqui perto? Eles disseram que sim e o Padre disse a Silvio: — Eu vou com você. O Pastor Sérgio pode cuidar disso sozinho. — Duvido muito — discordou Silvio, — é melhor irem os dois e depois nos encontramos no tal galpão. Após muito debate, o Pastor e o Padre seguiram a pé e Silvio foi para o carro. Lá ele apanhou uma pistola de dentro do porta-luvas e carregou-a com um pente. Desde o serviço militar que ele nunca mais usou uma arma, nem queria voltar a fazê-lo. * * * Andréa foi acordada por um homem negro e idoso que lhe dizia: — Levanta, minha filha! Você tem que sair daqui! Ela recobrou a consciência aos poucos. Viu o idoso e teve náuseas ao ver tantos pedaços de gente espalhados pelo galpão. O chão, as paredes e ela mesma estavam manchados de vermelho e um cheiro ruim impregnava o ar. — Anda, filha. Saia daqui. Seu namorado já vem buscá-la. — Como o senhor sabe do meu namorado? — Indagou ela. O idoso não respondeu. Limitou-se a apontar para porta e desapareceu. Assustada, Andréa correu até a porta e parou pouco antes de sair quando reparou que estava com os seios à mostra. Pensou em procurar por sua blusa, mas os pedaços se erguiam no ar. Todos aqueles pedaços de gente convergiram para o centro do galpão. Andréa ficou paralisada, olhando a montanha de destroços humanos que se formava, crescendo sem parar. Ela reparou que aquele monte patológico ia ganhando forma: Formavam-se duas pernas, dois braços e uma cabeça que se projetava além do que parecia ser o tronco. Aquela criatura parecia estar viva, apesar do horrível aspecto e do fedor que exalava. Cresceu, cresceu e cresceu. Cresceu até atingir uns dez metros de altura, quase tocando o teto do galpão. No que parecia ser a cabeça, três orifícios se formaram: os dois de cima assemelhavam-se a olhos sem o globo ocular e o de baixo alargou-se até formar uma ‘boca’. Andréa reparou que dedos formavam-se nas ‘mãos’ e ‘pés’ da criatura, que virou a ‘cabeça’, onde viu uma luz avermelhada nos buracos que faziam as vezes de ‘olhos’; e a ‘boca’ proferiu: — Finalmente livre! Meu nome é Legião! Andréa cobriu os seios com os braços e correu para fora. Enquanto corria esbarrou em alguém. — Andréa! — Era Silvio, aliviado por encontrá-la. — Corre, Silvio! Corre! — Ela empurrou-o para a trilha. Silvio tirou o casaco e cobriu os seios desnudos de Andréa. Como já fosse noite, ao correr pela trilha esburacada, ela tropeçou e caiu. Enquanto Silvio ajudava-a a se levantar, sentiu: — Credo! Que cheiro é esse? A criatura feita de restos humanos saiu do galpão. A luz vermelha que reluzia 34 Scarium de seus ‘olhos’ ganhava destaque na noite. — Meu nome é Legião — A criatura repetia. Silvio apontou-lhe a pistola e fez três disparos. Inútil. Pior: a criatura foi em sua direção. Eles correram o mais rápido que puderam. A criatura tinha passos lerdos, mas o tamanho de suas passadas compensava. Eles continuaram a correr até chegarem numa estrada asfaltada, por onde entravam três carros da polícia militar. — Aqui! Socorro! — Gritou Silvio. Eles foram na direção das patrulhas. Desceram policiais armados e com lanternas. Um Oficial indagou: — Quem são vocês? Estão correndo de quem? — Fui eu quem chamou vocês aqui! — Explicou Silvio. — Vem vindo uma coisa... Os policiais estavam se sentindo nauseados: — Que fedor é esse? — Perguntou um Sargento. A criatura surgiu. Emitiu um grunhido aterrador e foi na direção deles. Os policiais sacaram suas armas e começaram a atirar. De tão assustados, nem tentaram entender o que se passava. — Meu nome é Legião! — Bradava a coisa. O Oficial levou Silvio e Andréa para trás do último veículo. A coisa pisoteou o primeiro carro e depois, ergueu-o com os braços e arremessou longe. Apavorados, os policiais mantinham o fogo cerrado. — Meu nome é Legião. Muitos há a quem devo trazer e muitos vós sois que podem nos servir. Quando a coisa ia pisotear o segundo veículo, surgiram o Padre e o Pastor conduzindo uns vinte porcos com a ajuda de alguns homens. — Não! — Gritou a coisa. — De novo não! Os porcos cercaram a coisa, que tentou fugir, mas tropeçou nalguns, caindo. — Não! Não! Não! A coisa foi-se desfazendo, voltando a ser uma massa disforme. Os porcos caíram no chão debatendo-se e morreram. Morreram todos. O Pastor e o Padre foram até Silvio e Andréa. Os policiais guardaram suas armas e ficaram tentando entender o que havia se passado. O Pastor Sérgio disse: — Estava tudo na Bíblia. O apóstolo Marcos conta que Jesus fez Legião sair do corpo de um homem e passarem para os corpos de porcos, que morreram em seguida. — São Marcos, meu prezado Pastor. São Marcos! — Marcos, meu querido Padre. Marcos! — Ei! — Intercedeu Silvio. — Mal derrotaram um demônio juntos e já vão começar a brigar? O Padre e o Pastor se entreolharam e riram. O oficial, ainda assustado, aproximou-se deles e pediu: — Se importariam em me ajudar a colocar tudo isso no Boletim de Ocorrência? Andréa, lembrando-se do negro idoso, disse a Silvio: — Houve mais ajuda. * * * 35 Novela Durante muito tempo as autoridades fluminenses mantiveram segredo sobre o Boletim de Ocorrência do Tenente Magalhães. Os religiosos voltaram mais convictos do que nunca em sua fé e com projetos de Ação Ecumênica. A quadrilha Legião desapareceu, assim como a repórter Carina, cuja falta não foi sentida. O demônio Legião nunca mais se manifestou. Silvio e Andréa casaram-se, tiveram filhos e continuam residindo na Cidade Maravilhosa, da qual ela quase foi expulsa por conta de macabras estatísticas criminais. Quando relembravam os acontecimentos daqueles dias, Andréa fazia questão de ressaltar: — Talvez nós sejamos o verdadeiro milagre: somos de tantos lugares e de tantas culturas que ao deixarmos as diferenças de lado e assumimos a nossa diversidade, podemos contar com toda ajuda possível neste mundo tão maravilhosamente complexo. Silvio, com o filho mais novo no colo, concordava: — Viva a diferença! Roberval do Passo Barcellos - Historiador e advogado, autor do livro” Primeiro de Abril” (Editora Ano-Luz) e “O Camarada O’ Brien” (Coleção Fantástica Hiperespaço). Scarium E-books Biopanzer Josiel Vieira A novela Biopanzer é uma poesia moldada no concreto do cotidiano. O sofrimento, a cidade, a luta e a filosofia do mundo visto sobre o olhar de uma menina, uma motogirl do futuro. Uma menina com uma armadura tão forte como um tanque alemão. Uma armadura biológica endurecida pela vida para enfrentar a diversidade do sofrimento. Disponível para download gratuito www.scarium.hpg.com.br 36 Terror FILHA DA NOITE Martha Argel Lucila, a vampira, estava sentada sobre o peitoril da janela e tinha sua atenção voltada para a rua lá embaixo. A distância e as trevas da madrugada, mal-disfarçadas pela iluminação urbana, não impediam que seus olhos seguissem atentos cada detalhe do pequeno drama sendo representado no ponto de ônibus da quadra seguinte. Três atores: dois rapazinhos e uma menina loira que usava um sobretudo preto. Ou que tinha usado. Agora ele estava jogado no chão, e via-se seu vestido preto decotadíssimo, provocante, com a fenda lateral subindo quase até o quadril. Um dos rapazes abraçou a moça pelas costas, prendendo-lhe os braços de encontro ao corpo. O outro se aproximou por diante e se encostou nela, enquanto metia a mão pela fenda do vestido e acariciava as coxas cobertas pela meia arrastão preta. A moça se contorceu quando a mão dele a tocou em partes mais sensíveis, mas não gritou. Havia um revólver enfiado no lado de seu corpo. O rapaz tirou a mão de dentro do vestido apenas pelo tempo necessário para abrir o zíper da calça e colocar o pau para fora. A moça de novo tentou se soltar, mas estava bem presa. O cara afastou o vestido e puxou para baixo a calcinha, e num movimento decidido e violento já estava dentro da garota. Lucila assistia a tudo e deixava-se invadir pela excitação. A cena de violência, de dominação, por mais vulgar que fosse, aguçava sua fome, a ânsia pelo sangue. O rapaz estava quase gozando quando ela decidiu que era o momento. Lançou-se no vazio, nos dezoito andares de nada que a separavam do chão. Sua aparição surpreendeu o rapaz em pleno orgasmo. Lucila o arrancou de dentro da menina ainda intumescido e ejaculando. Não lhe deu tempo para mais do que um ô! indignado e assustado antes de arremessá-lo contra a coluna do ponto de ônibus. Enquanto ele deslizava para a calçada, inconsciente, ela já agarrava o outro cara pela garganta. – Quieta aí. Não se mexa e não grite! – ordenou à menina que havia tentado sair correndo. A menina obedeceu, claro, pois quando um vampiro usa a Voz, é tudo que se pode fazer. – Agora nós, amiguinho. Você não vai gritar, não é? – disse para o rapaz que segurava. Não teve de usar a Voz, pois ao mesmo tempo aumentou a pressão dos dedos e esmagou-lhe a traquéia, impedindo-o não só de gritar como também de respirar. Eficiente. Em pânico, o garoto que cheirava a álcool e cocaína deixou a arma cair e tentou se libertar, mas ela o puxou para si e mordeu-o no lado do pescoço, enfiando as presas e rasgando as carnes com um movimento lateral da cabeça. O sangue brotou dentro de sua boca, delicioso, quente. À medida que perdia sangue, a vítima se 37 Conto debatia menos e menos, até que ficou imóvel, e sua vida se foi. Com um suspiro de satisfação, Lucila o largou, e ele desabou na calçada. Ela então desviou a atenção para o garoto ainda vivo, que começava a voltar a si. Ajoelhou-se a seu lado e se inclinou em direção a sua orelha. – Querido, guarda de volta esse teu pintinho ridículo, junta aquele revólver e bota teu amigo no carro. Cai fora e se atira do alto de um viaduto por aí, à toda. O rapaz se levantou, arrumou-se e fechou o zíper, pegou a arma e então arrastou o corpo do amigo para o carro, parado de porta aberta em frente ao ponto de ônibus. Pareceu não estranhar o peso inerte e nem o pescoço destroçado. Acomodou-o no banco do carona, sentou ao volante e saiu cantando pneu. Lucila ficou olhando até o carro dobrar a esquina. Dois moleques bêbados e armados, mortos num acidente estúpido. Talvez o fato do sangue de um deles ter sumido passasse batido. Ou talvez não. Mas quem ligaria? Dois delinqüentes a menos, alguma reclamação? A vampira então olhou para a moça de vestido provocante, que tremia, incapaz de correr ou gritar, as lágrimas escorrendo em silêncio. Não parecia a mulher sexy e sedutora que pretendia ser. Era só uma criança assustada. – Eu não vou te matar, acho que você já teve o suficiente por hoje. Também, vestida desse jeito, você tá pedindo pra ser comida, né? Que que você tem na cabeça, ô bibelozinho? – Você é uma vampira! – Sou. Vou te contar um segredo: vampiros existem. Aproveita essa revelação enquanto pode porque daqui a trinta segundos você só vai se lembrar que dois carinhas te agarraram, te fuderam e se mandaram. – Não, espera, eu sei que você pode me dar qualquer ordem e eu vou ter que obedecer, mas espera, não faz isso, eu faço o que você quiser, mesmo sem você me forçar. Eu não conto pra ninguém, juro, mas por favor, não me faz esquecer! Lucila achou curiosa a ansiedade dela. Aquela mocinha parecia saber algo sobre vampiros, e obviamente seu interesse por eles era tão grande que tornava irrelevantes o estupro que acabava de sofrer e a morte que tinha presenciado. A vampira prestou atenção no monte de anéis, pulseiras e correntes, nas tatuagens cabalísticas, na maquiagem soturna, nos piercings e nas orelhas cheias de brincos. – Você é uma dessas garotas deprimidas que se acham góticas só porque usam preto e andam por aí, se entediando e se lamentando pelos cantos de botecos escuros? Um brilho inesperado surgiu nos olhos da menina. Irritação. – Quem é você pra ficar criticando os outros? Se olha no espelho! Uma vampira de moletom do Mickey? Que coisa ridícula! – Ah, desculpa! Você acha que eu devia me vestir de preto? – Claro. – Então me explica: por quê? – Por quê? Oras, por quê, pra mostrar que você é diferente! Pra mostrar que você não compartilha com esse bando de alienados essa subvida normal e entediante. 38 Scarium Pra provar pros outros que você sabe coisas que eles não sabem e que nem imaginam. – Querida, você devia dar uma voltinha pela Paulista depois do expediente. Sabia que dez em cada dez executivas e secretárias se vestem de preto dos pés à cabeça? Quer ser diferente, linda? Bota um vestido pink. – Eu não acredito que estou ouvido isso de uma… vampira! Meu, eu uso preto por que ele é o reflexo da minha alma fria e decadente. É como eu me sinto por dentro. É como eu vejo o futuro, a minha total falta de futuro. Eu tenho que usar preto, cara, por causa dessa minha angústia, dessa falta de esperança, dessa vida inútil, esse saco de vida… – Ah, tá. – Cê tá gozando da minha cara, garota? – Garota… você sabe quantos anos eu tenho? – Diz. – Trezentos e vinte e seis. – Tá brincando! – É, tô. – Não, eu acredito em você. Puxa, que demais. – Demais porquê? Você não disse que acha a vida inútil, um saco? Isso enquanto você tem… quantos… vinte e cinco? – Dezenove. – Sabia que esse monte de maquiagem te envelhece pra burro? Puxa, mas se com vinte você já acha a vida um saco, imagina mais de três séculos de tédio! – Ah, mas você não entende! Ninguém nunca me entende! Você não sabe como a minha realidade é insuportável. É diferente pra você, você tem sua própria vida, você faz o que quer e não tem ninguém pra te mandar, te encher o saco, te fazer entrar no esquemão podre e antiquado. Você não tem pai, mãe e um monte de professor mandando em você, implicando com teu piercing, criticando seus amigos, te forçando a estudar, proibindo de fazer tatuagem, ficando acordado pra te dar bronca porque chegou tarde… – É, você tem razão. Ninguém me dá bronca. Meus pais, meus irmãos e meus professores morreram faz quase três séculos. – E aposto como você fez um monte de amigo legal nesse tempo, tipo assim um pessoal que se diverte, sai de noite, apronta pra caramba, maior barato… – Ah, fiz amigos, sim. Pena que a maioria já morreu. Muitos inclusive fui eu mesma quem matou. – Ai, nossa, que barato! Como você é poderosa! Você já matou muita gente? Ah, mas que tonta eu, claro que já matou, é assim que você vive. Ah, sabe que eu tenho fascinação pela morte? – Hum, nossa, sério? Que… interessante. – É, eu tenho uma atração estranha pelo mórbido, eu sei que as pessoas acham mó esquisito, mas eu me interesso por tudo que se relaciona com morte, tipo, assisto filmes de terror, curto visitar cemitérios de noite, tenho tesão por caras bem pálidos e sombrios, me excito quando me tocam com as mãos geladas. Acho que 39 Conto eu me daria super-bem como vampira. – Puxa, não duvido. – Me transforma. – Não. – Ei, que história é essa? Como não, assim, na lata? Você não vai nem dar uma chance de argumentar? Nesse momento um carro que vinha vindo devagarinho parou perto das duas. – Ô, você aí, loirona, quanto é? – Sai fora, otário, a loira já tá ocupada, a gente só tá tratando o preço. – Porra, gatinha, fala sério! Tão gostosinha e sapatão… O cara acelerou e sumiu. – Tá, então você quer argumentar, né? Vamos pra um lugar mais sossegado. – Tem um barzinho gótico… – Que barzinho o quê… Lucila foi em direção a ela e a abraçou, e quando, após um momento de confusão, a menina gótica deu por si, estavam em um lugar escuro, onde o vento soprava forte. As estrelas brilhavam pálidas e raras por cima de sua cabeça. – Onde a gente está? – Vem até aqui e olha. – Nossa! Demais! Como é alto aqui, dá pra ver a cidade inteira. – Pode começar a argumentar. – Cara, você TEM que me transformar. – Por quê? – Por quê? Por quê? Porque sim, ué! Você não vê que eunasci para ser vampira? Eu amo a noite, não suporto o sol, a claridade, aquele monte de cores, as pessoas felizes… – Que que têm a ver as pessoas felizes com o sol? – Ah, não me sacaneia, você nunca viu como as pessoas ficam idiotas, sorrindo que nem umas débeis mentais, quando tem sol? Ah, desculpa, esqueci que faz mais de trezentos anos que você não vê o sol. Esse negócio de felicidade me dá vontade de vomitar, aquele monte de babaca se iludindo, achando que sabem das coisas. Cara, não tem porque as pessoas serem felizes. Viver é uma merda. – Tá, e por isso você quer que eu te transforme, pra você viver pra sempre. – Mas não é viver, não é? Quer dizer, eu sei que você não parece morta, pelo menos não agora que você tomou sangue, mas você também não tá viva… não é? – É. – Ah, sei lá, não tô conseguindo me expressar bem, mas eu sei que você me entende. Eu quero as trevas. Viver na escuridão. – Escuridão. É isso que você quer? – Só, cara, as trevas eternas. – Por quê? – Porque eu não quero ser igual aos outros. Você não entende? Eu sou diferente, eu vejo o mundo como ele realmente é. Eu não sou como o resto da humanida40 Scarium de. Eu preciso ser diferente. Eu preciso expressar o meu verdadeiro eu. Se eu viver minha vida do mesmo jeito que meus pais, que o meu irmão mais velho, que os meus tios, eu vou enlouquecer! – Tá, tudo bem, essa parte eu já entendi. Agora me explica exatamente porque é que eu tenho que te transformar numa vampira. – Porra, mas como você é teimosa, meu! Olha só: eu tenho espírito de vampiro, estou cansada dessa vidinha de merda, e pra você não custa nada me transformar. E se depois você não quiser saber de mim, eu não vou ficar te pentelhando e caio fora da tua vida, juro. – Hum, resumindo, você está de saco cheio da vida, você anseia pela escuridão eterna e acha que eu posso quebrar teu galho. E se eu quiser me livrar de você, você me deixa em paz, na boa. – Isso. – Tá, então vem cá. E não grita. A expectativa iluminava o rosto pálido da garota quando ela se aproximou de Lucila, e quando Lucila a segurou pelos braços, e ainda estava lá quando Lucila a empurrou por cima da mureta que rodeava o alto do prédio. Já devia ter desaparecido durante os segundos que durou sua queda através dos quase trinta andares. Os ouvidos sobre-humanos da vampira escutaram o baque do corpo na calçada lá embaixo. Logo ia amanhecer. Ela foi para casa. Horas depois, quando acordou de mau humor, com o equivalente vampírico de uma ressaca, ela se lembrou contrariada do que havia feito. Tinha perdido o controle. Tinha se arriscado à toa. Riscos inúteis, dona Lucila, outra vez. Será possível que você não aprende? Sangue drogado sempre te deixa doida e dá merda! Ela devia era ter bebido a menina. Nunca o cara chapado. Desse ela devia ter quebrado o pescoço. Deviam ter sido três os cadáveres no acidente do viaduto. O telefone tocou. Ela sabia quem era. Seu brinquedo humano. A dona do apartamento onde estivera ontem de noite. – Alô. – Lucila, me diz que você não tem nada a ver com a menina que acharam morta aqui na frente do prédio. Ia ser uma bela discussão. Martha Argel - Bióloga, autora do romance “Relações de Sangue” (Novo Século), “Olhos de Gato” (Writers), Contos Improváveis (Writers) e organizadora da coletânea “Lugar de Mulher é na Cozinha” (Writers). 41 Mistério A Coruja Arcano Dez horas da noite. Eu olhava para a janela do meu quarto. O céu tinha poucas nuvens, a lua estava cheia e brilhava fortemente. Vi um morcego voando, aproveitando a liberdade que ele tinha. Eu não conseguia me controlar. Era sempre assim. Toda noite surgia uma vontade avassaladora de escrever um conto ou uma poesia. Parecia que a noite me obrigava a escrever. Eu tentava dormir, mas não conseguia. Virava de um lado para o outro completamente perturbado e nervoso. Eu já estava me acostumando a trocar o dia pela noite. Tornar-se um noctívago parecia ser uma solução. Mas eu não podia, meu trabalho não permitia. Se eu não dormisse durante a noite, não conseguiria trabalhar durante o dia. Era sempre assim: se eu não escrevesse algo, não conseguiria dormir. E sempre que surgia a vontade de escrever, uma coruja aparecia na minha janela. Eu deixava a janela aberta, já estava me acostumando com a presença da coruja. Eu acreditava que ela poderia me ajudar, que a inspiração de muitos textos que escrevi vieramda coruja, como se a natureza estivesse me ajudando. E todos os dias quando ela apareceria eu deixava um pote de água na janela. Às vezes ela bebia, mas eu não sabia nada sobre corujas, muito menos o que elas comiam. No princípio, ela parecia arisca, mas com o tempo ela foi perdendo o medo de mim, até entrar no meu quarto. Um mês se passou e eu já estava me tomando muito amigo da coruja. Parece estranho, mas eu e a coruja tínhamos uma amizade muito forte, tão forte que cheguei a acreditar que ela era uma parte de mim, ou seja, eu não conseguia escrever sem ela por perto. E realmente, isso aconteceu durante umas noites em que a coruja não apareceu no meu quarto. Foram noites muito mal dormidas. Eu não queria nem pensar que ela poderia ter morrido. Mas na outra noite ela voltava, eu escrevia uma poesia ou um conto e dormia tranqüílamente. Porém, naquela noite de lua cheia, às dez horas da noite, mesmo com a coruja em meu quarto, eu não conseguia escrever nem mesmo um simples verso. E é ai que a história toda começa. Enfurecido, nervoso, eu caminhava de um lado para o outro. Olhava para o relógio. Já passava das onze horas. A coruja era pontual. Chegava em meu quarto às dez horas, durante todas as noites. E só ia embora quando o dia amanhecia. Eu deixava a janela sempre aberta, dormia com a janela aberta. Quando deu meia-noite, fiquei enlouquecido. Eu tinha que acordar cedo para trabalhar, mas não conseguia dormir, muito menos escrever. A coruja me olhava, com aqueles olhos grandes, amarelos, com uma grande circunferência negra no centro. Ela parecia assustada, mas isso era uma falsa impressão. Seus olhos arregalados davam essa falsa impressão, mas suas penas negras e brancas pareciam revelar uma sabedoria maior que a minha. E seu bico encurvado demonstrava respeito para um animal que nem sempre é doméstico. Eu não suportava mais o olhar da coruja — O que aconteceu, será que não somos mais amigos? Meia-noite e meia. Olho para o papel, seguro o lápis e apoio meus cotovelos sobre a escrivaninha. Mas nada surge, nada sai da minha mente. Olho para o lado, 42 Scarium e lá está a coruja olhando para mim. Ela gira a cabeça até as costas e olha para a Lua, como se estivesse evitando meu olhar. Uma hora da manhã. Desisto de escrever e vou para a cama. Apago a luz e tento relaxar, dormir. Minha última visão antes de pegar no sono foi o olhar da coruja. Seus olhos brilhavam na escuridão. Minha visão estava um pouco embaçada. Com um pouco de esforço, consigo ver dois pontos amarelos na escuridão. Eram os olhos da coruja. Acendo a luz e olho o relógio: duas e meia da manhã. Xinguei todos os palavrões que conhecia. — Quase que eu consigo dormir, quase! A coruja já estava me irritando com sua presença sinistra em meu quarto. — Maldita seja. Nem ao menos deu um pio de conselho! Andei de um lado para o outro, xinguei a coruja, quebrei os vidros da janela arremessando os livros que encontrava pela frente. Olhei para a coruja. Naquele momento eu a odiava. — Você pensa que não vou conseguir escrever, mas está muito enganada. Hoje eu vou escrever com ou sem sua ajuda, coruja dos infernos! A inquietação era grande. O terrível desejo de terminar um conto ou uma poesia atormentava- me a alma. Não era uma noite nada agradável para se ter uma insônia. Fazia muito calor, não tinha nada para se fazer e eu estava com dor de cabeça. Subitamente, tive uma estranha idéia. — Já sei o que vou fazer, coruja maldita. Se você não me trouxe inspiração hoje, vou atrás da inspiração. Saí de casa e fui até o cemitério mais próximo. Levei meu caderno e meu lápis. Não precisava nem de lanterna, a lua brilhava tão forte que era possível ler um livro no cemitério. Pode parecer um lugar sinistro para pegar inspiração, mas devo lembrar que tudo que escrevo está ligado ao sinistro olhar da coruja. Sento num túmulo e contemplo a lua, esperando surgir uma idéia para pôr no papel. De repente, um mendigo surge na minha frente e pergunta: -— Poeta, louco ou apenas alguém com depressão? O mendigo carregava uma garrafa de vinho. Seu andar cambaleante denunciava seu estado de bêbado. Senti desânimo e raiva ao mesmo tempo. Sua presença estava tirando minha concentração. — Sou poeta. Mas louco o suficiente para admitir que meus versos refletem minha depressão. — E de onde vem sua depressão? — Perguntou o mendigo. — Da incapacidade de viver em paz, sem o tormento da vontade de escrever — Tome um gole de vinho. Você vai melhorar. — Não, obrigado. Eu não queria beber no mesmo gargalo que o mendigo bebeu. Mas a vontade de beber era grande. Ele ficou falando um monte de besteiras. Perguntou se eu acreditava em fantasmas, pois ele já tinha visto muitos no cemitério. Sua conversa era um verdadeiro tédio. Primeiro porque eu não acreditava nas histórias de um bêbado, segundo porque eu queda ficar sozinho. Ele falava muito, mas minha mente estava distante. Eu estava pensando na coruja que deixei sozinha em meu quarto. De repente, o mendigo diz algo que desperta minha atenção. Duas palavras 43 Conto no fim de uma frase, pois eu não estava prestando muita atenção no que ele dizia. — ... aquele fantasma. Eu estava olhando para a Lua e refletindo. Mas ao ouvir as palavras “...fantasma.”, olhei para ele e perguntei: — Como disse? — Foi o que eu acabei de dizer. Vejo muitos fantasmas neste cemitério, inclusive aquele fantasma. O mendigo apontou para um cruzeiro perto de onde estávamos. E lá estava o fantasma de uma mulher. Parecia usar um longo vestido branco, e corria suavemente sobre as covas. Fiquei perplexo. Eu não conseguia acreditar no que estava vendo. Mas o mendigo, estranhamente, parecia feliz com a presença do fantasma. — Não é demais ter a companhia de um fantasma num cemitério? O mendigo dava gargalhadas, pulava de alegria. Como se aquilo fosse a coisa mais excitante que poderia existir. Mas eu não sentia o mesmo. Eu estava com medo e não conseguia me mover. O mendigo parecia não entender isso. Ele pedia para que eu escrevesse uma poesia em homenagem ao fantasma. — Vamos, escreva algo que eu sempre vejo. Agora você pode escrever o que eu vejo! O mendigo parecia zombar de mim. Suas gargalhadas estavam me atormentando. Tentei fugir. Corri o mais depressa que pude até a saída do cemitério. Mas surgiram outros fantasmas que me seguiram e me cercaram, impedindo a minha saída do cemitério. Tentei fugir dos fantasmas, corri e me escondi atrás de uma capela. Naquele momento, pensei que tinha fugido dos fantasmas, mas de repente surge o mendigo gritando: — Vamos, escreva algo que eu sempre vejo. Agora você pode escrever o que eu vejo! Os fantasmas conseguiram me pegar. Deram voltas ao meu redor, rapidamente, como um rodamoinho. Eram muitos, mais de cem. Senti meu corpo girar com o vento que eles faziam e ser enterrado no chão da cintura para baixo. Depois, os fantasmas foram embora, mas o mendigo ficou perto de mim. Tentei sair do chão mas não consegui. Pedi ajuda ao mendigo, mas ele só dizia: —- Vamos, escreva algo que eu sempre vejo. Agora você pode escrever o que eu vejo! De fato, eu estava enterrado. Mas meus braços estavam livres e eu ainda segurava o meu caderno e o lápis. Tentei pedir ajuda ao mendigo muitas vezes, mas ele só dizia as mesmas palavras. Parecia que eu agora estava condenado a escrever forçadamente, até o momento da minha morte. Escrevi algumas poesias e um conto, mas não era o suficiente para o mendigo. Gritei, ninguém ouviu. O mendigo disse que só iria me libertar quando as minhas escrituras fossem suficientes para ele. E a noite demorava a passar. Pareciaque eu estava condenado a uma noite eterna de sofrimento. Talvez invocada por mim mesmo. De repente, tive uma idéia: comecei a sussurrar para o mendigo, de uma forma que ele não pudesse me ouvir. O mendigo se aproximou de mim e tentou ouvir mais de perto o que eu sussurrava para ele. Quando ele chegou bem perto, peguei seu pescoço e comecei a apertar bem forte. Era melhor ter ele morto do que correr o risco de ser assassinado. Apertei tão forte que meu braço doía. Já não era mais uma questão de sobrevivência, e sim, de um ódio que subitamente possuiu meu 44 Scarium corpo. E quando o mendigo parou de se mover e morreu, vi que eu estava novamente em meu quarto, deitado na cama. Tudo não tinha passado de um sonho. Já era dia, o relógio marcava seis horas da manhã. E nas minhas mãos, uma surpresa: a coruja estava morta. Eu estrangulei a coruja enquanto estava sonhando, como se ela fosse o mendigo do meu sonho. Epílogo Dias depois, fui ao cemitério enterrar a coruja. Ela foi minha amiga, e eu a tinha matado. Isso me deixava muito triste. Perdi a vontade de escrever antes de dormir. Sem a coruja, a vontade desapareceu. E voltei a dormir tranqüilamente durante todas as noites. Mas aprendi uma coisa no dia que enterrei minha amiga coruja: quando saí do cemitério, ouvi um pio que eu reconhecia muito bem. Olhei para trás e vi uma coruja em cima do portão do cemitério. Não era a coruja que eu conhecia, mas pelo olhar dela, pude ver que ela pertencia a outro escritor. Pois aprendi que todo escritor tem uma coruja que o assombra. Arcano (Alexandre Souza) é militar e poeta. Editor do fanzine “Sombrias Escrituras” e autor da obra “Anjo Soturno”. Relançamento Você pediu e ela voltou! Complete a coleção Edição limitada Scarium MegaZine Nº 0 Promocional: R$ 4,00 (Quatro Reais) Pedidos para: [email protected] Rua Castorino Francisco Nunes, 88 13/204 21.921-544 Rio de Janeiro - RJ 45 Ficção Científica Coração de Metal Miguel Angel Perez Corrêa No ano 2432 o planeta Terra e todas as colônias, passavam por uma profunda crise. A escassez de berquélio, um metal extremamente raro de origem extraterrestre, único que tornava possíveis as viagens interplanetárias pelo tchion-espaço, jogou a humanidade em uma era de decadência. As megacorporações dividiam entre si o controle dos setores da confederação, que aos poucos foram ficando isolados devido aos altos preços das viagens espaciais. Pequenas rebeliões surgiam, aqui e ali, sem ameaçarem a nova ordem imposta. As empresas, apesar das divergências, mantinham um pacto e dividiam pacificamente todo o transporte espacial de mercadorias. Auferiam altos lucros a custa de inúmeras vidas humanas. Até que um fato novo quebrou o equilíbrio existente. *** Julian Kraff era um jovem notável. Não somente por suas habilidades como estrategista militar e piloto, mas também por seu justo julgamento. Ele agora estava tentando, sem sucesso, concentrar-se para a primeira inspeção, ao maior, e mais veloz cruzador espacial já construído. Não podia deixar de sentir repulsa diante de tanto desprezo pela vida humana. Havia milhões de pessoas morrendo, sem alimentação, abrigo ou remédios em todos os cantos da federação, e os burocratas do governo preocupados em construir naves para enfrentarem uma batalha contra o Pacto, que certamente não tinham como vencer. Seria diferente se tivessem tentado isso há uns cinqüenta ou sessenta anos, mas na época estavam felizes com a lucratividade dos negócios e tudo caminhou conforme o Pacto desejava. Até que eles monopolizaram o comércio e os lucros dos políticos foram por terra. Então resolveram antagonizar o Pacto, entretanto já era tarde. Eles eram poderosos demais. — Malditos burocratas — disse em voz baixa, mas foi ouvido. — Como disse senhor? — perguntou um soldado, um tanto fora de forma e muito carrancudo. — Nada! Nada! — repetiu. Ele sabia que se seu comentário chegasse aos ouvidos dos tais burocratas, nos dias atuais, poderia ser condenado à morte por traição ao estado, e ressentia-se por isso. Com grande esforço conseguiu se concentrar e, acreditava, poderia proceder a inspeção. Seu rosto fino e bem delineado mostrava linhas duras e não deixava transparecer a confusão que havia dentro dele. Idéias que há tempos o atormentavam, mas que nem mesmo havia notado, agora começavam a tomar forma. Eram idéias tão perigosas e insólitas que, até então, sua mente não as havia revelado em sua verdadeira forma. Ele percebeu, após longo tempo, que havia optado pelo lado errado, que se quisesse ajudar seu povo, e o povo de todas as colônias, deveria tomar uma atitude naquele momento, quando a oportunidade lhe surgira à frente. 46 Scarium Natural de Dione, Julian era uma pessoa de alma simple e ideais firmes. Vivera lá até ser recrutado pela federação para o serviço. Quando tivera de abandonar seu lar e sua família pelo bem do estado, não o fizera com magoa ou revolta, mas sim com orgulho. Acreditava que faziam o melhor pelo povo, no entanto isso não correspondia exatamente à verdade. Há duas semanas, o jovem capitão-de-fragata soubera de algo que mudaria sua vida e sua maneira de encarar o mundo. Um cometa, um dos grandes, caminhava rumo a sua colônia natal. Isso não seria grande problema, a tecnologia disponível era ótima para resolver esse tipo de coisas, porém o Pacto achou por bem manter tudo em segredo e apenas eles sabiam de onde vinha o tal cometa. O cerne da questão era, segundo a fonte de Julian, que o cometa tinha o “coração” de metal. Justamente, um coração formado pelo metal mais precioso do universo, o berquélio, e isso fez com que o Pacto desconsiderasse o fato de que tal atitude condenaria uma colônia de vinte milhões de pessoas a total destruição. O Pacto optara por essa maneira nada simpática de agir, pelo fato da federação, nessa época ter começado a opor-se a seus interesses, e caso a colisão com Dione, — que por coincidência era de seu domínio legal por escrituração pública, já há oitenta anos— , fosse evitada, o metal seria espalhado por todo o espaço e poderia ser recolhido por qualquer um. Com a quantidade de berquélio, que acreditava-se estar contida no cometa, a dominação do Pacto chegaria ao fim e a federação poderia novamente controlar o espaço. Os lucros cessariam. Julian sabia que a informação também deveria ser de conhecimento da federação e que esta, devia estar tentando a todo custo descobrir a trajetória do cometa a tempo de evitar a colisão. Já não tinha ilusões quanto às motivações da federação. Não se tratava de salvar vidas, mas de poder. Queriam retornar a posição de domínio exercida no passado, com extrema incompetência, — pensava o capitão — , e para isso não mediriam esforços. Entretanto não ficaria esperando. Seus pensamentos foram interrompidos por uma sirena muito estridente e bem conhecida de seus ouvidos. — É hora — disse o homem carrancudo ao seu lado. O capitão de fragata, meioatordoado pelos pensamentos inoportunos sentiu-se por alguns instantes perdido. — Vamos ver o que podemos fazer — disse, tentando aparentar entusiasmo. Ele olhou a sua volta e lá estavam eles: seis homens da mais alta patente da armada; quatro colegas de esquadra e seu suboficial e melhor amigo, Jorge Walsh. Não ousava olhar para ele, sabia que como amigo de tantos anos notaria alguma coisa. Não era um plano do qual se pudesse fazer comentários. Todos, sem exceção, cumprimentaram Julian Kraff. Afinal, a ele caberia a honra de comandar o maior cruzador da armada, o que tornaria a federação grande e poderosa novamente. Poderia derrotar uma esquadra inteira do Pacto sozinho, mas Julian sabia que não seria assim. Durante todo o percurso até o campo de decolagem, que durou alguns minutos, Julian não pronunciou uma palavra, tinha medo de que qualquer coisa que dissesse o traísse, mas foi o silêncio que o fez. — O que há? — perguntou Jorge. Julian precisava contar, não suportava mais o peso da responsabilidade sobre seus ombros, mas era perigoso demais e ele não devia, limitou-se a manear a cabeça e fazer 47 Novela um gesto, colocando o dedo indicador diante da boca. Jorge entendeu e permaneceu, como Julian, calado o restante da viagem. O viagem, no automóvel onde estavam Julian e Jorge, seguiu num silêncio aterrador. O veículo deslizava em um campo magnético sem atrito e estava equipado com um supressor de campo inercial, de forma que dava a sensação de estar parado. Como os vidros estavam opacos devido a ordens do comando, não havia meios de se ter certeza de que o veiculo realmente estava em movimento. O trajeto não era por demais longo, mas para Julian pareceu uma eternidade. Chegaram! Finalmente chegaram. Os campos de decolagem, nos áureos anos da federação, eram lugares muito bonitos, arborizados, e muito visitados pelos turistas. Hoje no entanto eram quase um deserto, sem arvores, lagos, animais ou visitantes. Viase apenas um único edifício parcialmente em ruínas e um fosso gigantesco em território árido e hostil. Uma construção precária dava sinais de deterioração, o que deixava claro o grau de decadência da federação e de todo o velho sistema. Do gigantesco fosso surgiam arranha-céus, que a distância pareciam pequenas torres. Ninguém estava preparado para o que iriam ver. Julian, assim como seus colegas de esquadra, mal pôde acreditar. Ron Lau, um capitão com idade para estar na reserva e muitas vezes condecorado, homem que durante toda sua vida pilotou as mais incríveis espaçonaves, levou a mão ao rosto e esfregou os olhos. — Inacreditável, realmente! — exclamou incrédulo. Uma atitude semelhante, de assombro e incredulidade, tomou conta de todos os demais, com exceção de Julian Kraff. Este estava simplesmente paralisado, com o olhar distante como o de alguém que tem o dia todo para pensar em coisa alguma. Lorins Col, primeiro oficial de ciências do Zulú, o maior vaso de guerra até então, disse, com um pouco de inveja, que não conseguiu esconder: — Isso não sai do fosso. Mac’Vongraf e Oxin Ya capitão e primeiro engenheiro respectivamente da Almirante Vongraf, nome dado a nave em homenagem ao bisavô de Mac, limitaram-se a uma troca de olhares incrédulos. A inspeção continuou rotineiramente, se é que isso era possível no caso dessa nave. Julian a cada segundo ficava mais convicto do que precisava ser feito, só não sabia como iria infiltrar-se no Pacto para roubar o segredo de que tanto necessitava para salvar seu lar, sua família a tanto tempo deixada para trás e milhões de vidas. — O que é que está havendo com você homem? — perguntou Jorge sabendo que não obteria resposta. Nesse momento um dos homens da cúpula da armada adiantou-se. O Almirante Andrew Luneiev, era do tipo nada atlético, calvo, com o rosto um tanto gorducho e cultivava um bigodinho minúsculo e ralo para encobrir o formato estranho de sua boca, além disso era “O homem da guerra”, assim chamado por ser ele um homem de ação e avesso a diplomacia e ocupar o mais alto posto da armada da federação. — Bem senhores — disse — , apresento-lhes a arma definitiva. A capacidade desta colossal obra de engenharia, tenho certeza, vai além do que todos são capazes de imaginar. Ela é capaz de transportar quinhentos mil fuzileiros armados até os dentes, tanques, aviões de caça espaço-atmosféricos, e ainda sustentar a vida de todos esses homens por cerca de sete anos em espaço profundo — fez uma pausa colocando as mãos no cinto. 48 Scarium — Alguma pergunta? — O orgulho estava estampado em seu rosto. Julian agora estava controlado e suas emoções não mais comandavam seu corpo. Aquilo que se estendia por quilômetros a sua frente, era muito mais do que poderia esperar. Era justamente o que ele precisava para convencer o Pacto de que era um traidor. Jorge estava confuso. Podia ver através de Julian. Os anos de boa amizade lhe possibilitavam saber que alguma coisa estava errada, mas o que? — Mas... Para que tudo isso? — Perguntou o velho Lau. — Se não precisamos de mais de mil fuzileiros e dois meses de sobrevida para nossas maiores reconquistas? A satisfação no rosto do Almirante Luneiev era cada vez mais pronunciada. — Bem... — começou, esperou um momento até notar que o suspense já havia atingido o nível desejado e continuou: — Esta nave não foi forjada com fins de reconquista, mas sim de iniciar a expansão da federação até os confins da galáxia — disse, com muita convicção, quase gritando. Col não foi capaz de conter-se e deu uma gargalhada alta e grosseira. Todos, em seu intimo, estavam dando aquela gargalhada, no entanto Col, sem dúvida, estava lançandoa desrespeitoso em cima dos grandes oficiais, e isto podia custar-lhe seu posto, se não a vida, caso algum deles se sentisse ofendido. Logo que percebeu o tamanho da besteira que estava cometendo moldou seu rosto em linhas sóbrias e duras. — Não pude conter-me, lamento! – tentou desculpar-se e percebeu que fracassara. O almirante limitou-se a lançar um severo olhar de reprovação e prosseguiu: — Admito, que o que disse é bastante absurdo para os atuais padrões, por isso, não será punido, primeiro oficial Col, mas... contenha-se. Continuando... O Almirante pôs-se a falar por vários minutos e finalmente concluiu: — Bem, capitão Julian Kraff, a nau é toda sua. Tem uma semana para efetuar os devidos cálculos para o salto. — Sim senhor — respondeu Julian, quase gritando e imaginando quão irônica pode tornar-se a vida, a posição que tanto almejara no comando de uma capitânia finalmente era sua, mas agora era tarde demais. — Tome cuidado com ela. — disse o almirante em tom de brincadeira — Ela tem mais poder de fogo que toda a armada unida. *** Três dias depois, Julian conseguiu encontrar-se a sós com Jorge em circunstâncias absolutamente insuspeitáveis. Foram caminhando até um parque próximo falando amenidades e quando chagaram, Julian contou tudo a seu amigo. — Mas, por que você não me contou tudo isso antes? — quis saber Jorge. — Eu não sabia o que deveria fazer. — Então? — Agora sei, meu amigo. Agora sei! — respondeu Julian com ar de pesar. — E o que vamos fazer? — perguntou em voz baixa o fiel amigo incluindo-se nos planos. — Eu vou me infiltrar na organização do Pacto e tentar descobrir a trajetória do cometa e o porque do segredo. — Não me leve a mal, mas você é muito conhecido! Acha que vai conseguir entrar para o Pacto e ainda ter acesso a informações desse tipo? — argumentou o imediato. — Eu tenho algo para convencê-los de minha lealdade. 49 Novela Subitamente, Jorge entendeu. — Acha que será a coisa certa a fazer? O pacto, com o Soyus, se tornará virtualmente invencível. — Não há outra saída. *** — Então, mesmo com o vazamento das informações, o projeto está seguro? — quis saber um homem de roupa de vinil negra, conforme a última moda. Cinco homens estavam reunidos naquela sala há algumas horas. Estavam em uma base secreta, num asteróide qualquer. Quatro deles, sentados ao lado da uma grande mesa oval, eram de meia idade e tinham ar severo. O quinto, de pé, jovem e cheio de vitalidade, dava explicações. — Perfeitamente seguro senhor. O informante não sabia muita coisa e já foi silenciado. — Como tem tanta certeza de que ele não sabia muito? — perguntou o homem mais à direita da mesa, de cabelos ruivos e nariz adunco. — Nossos métodos são muito seguros. Associamos drogas e dor, se resistir a um cai diante do outro — respondeu marcialmente o homem que estava de pé. — Temos que evitar que coisas assim voltem a... — comentava o homem trajado com vinil, quando foi interrompido pelo som de algo que caíra. — Um momento cavalheiros — desculpou-se e foi verificar o que estava acontecendo. Ele era o anfitrião e aquela fortaleza nos asteróides era seu lar. *** Do lado de fora da sala de reuniões Josep, encontrou sua filha. Ela era uma linda garota. Seus olhos eram negros e profundos e seu corpo fazia calar o mais falastrão, mas para o todo poderoso Josep Cadorin, não passava de uma menininha. Sua menininha. — O que faz aqui, querida? — indagou. — Nada, papai. Só estava passando e esbarrei na cômoda. Eu... — parou quando ao pai a interrompeu. — Depois conversaremos. Agora vá com sua mãe. *** — Você está louco! Não vamos conseguir — comentou Jorge. — Fale baixo! — Sussurrou Julian, discretamente olhando para os lados. — Você enlouqueceu? Como pretende ter sucesso com isso? — perguntou o imediato, agora em voz baixa. Julian baixou a cabeça e disse: — Você não entende? Alguém tem que fazer alguma coisa. A hora é esta, o local é este e esse alguém, somos nós! — Mas Julian... — começou Jorge, mas foi interrompido. — Você tem que entender — disse Julian controlando-se. — Minha família, meu mundo está em perigo. Desta vez Jorge é que interrompeu. — Mesmo se eu ajudar não adiantará nada. Você não poderá enganar seus homens por muito tempo. Eles perceberão e quando isso acontecer... Será côrte marcial para nós dois. — Você não entende. Eu não sou o único de Dione nesta nave. Escolhi cuidadosamente minha tripulação. Estou certo da ajuda de vários oficiais. Você tem que 50 Scarium me ajudar. *** Eram treze horas e trinta minutos exatos quando Julian deu a ordem que tirou o descomunal artefato do fosso. Horário da base de controle de trafego espacial antártica. Os foguetes que tornavam possível manobrar a nave eram tão grandes que ao serem ativados provocaram uma onda de choque que se espalhou por quilômetros abaixo da superfície atingindo o magma e provocando abalos num raio de sessenta quilômetros. O processo de decolagem levou cerca de três horas e finalmente aquele maravilhoso fruto da engenharia humana estava em órbita. — Julian! — chamou o imediato — A Base Antártica pede confirmação pessoal de nossa rota. — Comunicação! Contato visual — ordenou o capitão. Aguardou uns poucos instantes, que aproveitou para armar-se de um escudo emocional, e então o contato foi estabelecido. — O que significa esta intromissão nos procedimentos rotineiros? — perguntou com indignação. — Desculpe capitão, ordens diretas do comando central Andino: Controle absoluto, prioridade um. — Esta tudo bem — falou com indiferença e continuou: — Com uma coisa destas nas mãos ninguém é digno de confiança não é? — Ao que não obteve resposta. Então prosseguiu: — A rota estabelecida está confirmada pessoalmente por mim. Identifico-me como Julian Kraff capitão do cruzador espacial Soyus. — Posicione-se para exame da retina por favor — pediu muito educadamente a moça do outro lado do transmissor. Ele olhou fixamente para uma lente abaixo da tela de recepção pelos segundos necessários para a confirmação de sua identidade ,que não deixaria sombra de duúvida. Nesse instante surgiu em sua mente a dúvida: Seria aquela a melhor forma de ajudar? Não havia mais tempo para pensar. Neste momento Jorge que, como Julian nunca duvidara, concordara em ajudá-lo. Estava recrutando os sete oficiais que ele indicara. Tarde demais para parar. Jorge concordou em ajudá-lo mesmo não tendo nenhum interesse pessoal na colônia de Dione. Ambos, em uma reunião com os oficiais na cabina do comandante, relataram os fatos e convenceram os oficiais a aliarem-se, naquela que seria a última empreitada da carreira de cada um. — Não achou estranho? — perguntou o imediato, quando este se encontrava novamente a sós com o Kraff. — Estanho, o quê? — Foi muito fácil. Ninguém se preocupou com a carreira que estarão jogando na lixeira, ninguém ponderou outras linhas de ação... — Eu disse que escolhi com muito cuidado meus tripulantes — contrapôs Julian. — Pode ser, mas vou ficar de olho. *** — Eu não posso acreditar pai — queixou-se a garota entre lágrimas. Dois dias haviam se passado antes que o pai tivesse tempo de vê-la. — Como imagina que chagamos aonde estamos? Das minas de irídio de Io ao topo 51 Novela da maior organização que a humanidade já conheceu? — Mas pai... — Nossa organização é que mantém a humanidade — interrompeu o Sr. Cadorin. — Sem nós e os mantimentos que transportamos trilhões de pessoas morreriam. Dez milhões são nada se comparados com o bem que faremos ao restante do povo. — Vinte! — O quê? — São vinte milhões que vivem lá — explicou a filha do todo poderoso do Pacto, Josep Cadorin, sem levantar a cabeça, soluçando. *** Dois dias passarem-se a bordo do cruzador Soyus em aparente normalidade, mas na escuridão alguém conspirava e veio então a delação. — Capitão! Um chamado do controle em seu canal privado — avisou o oficial de comunicações, fazendo um sinal para que Julian atendesse em sua cabine. O comandante entendeu a preocupação de seu aliado e foi para a cabine. — Kraff, falando — iniciou. — O que diabos pensa estar fazendo? Seu fedelho idiota! — quem esbravejava do outro lado era o Almirante Luneiev, que parecia estar soltando fogo pelas narinas. — Almirante! — reconheceu Julian, fazendo continência. — Por que ainda me faz mesuras se está contra mim? — quis saber aquele que um dia fora o maior inspirador do capitão. — Senhor. Eu não estou contra o senhor ou quem quer que seja. Eu sou a favor da vida. Vida que está sendo deixada em segundo plano pelos poderes econômicos e políticos envolvidos. — Bobagem! — falou com desprezo o Almirante. — Você está roubando nossa chance de mudar tudo isso e vai entregar o queijo aos ratos. Quanto vai levar? — Sei que me conhece o bastante para saber que eu não faria isso por dinheiro ou poder — retrucou Julian, tentando manter a calma. — Então, conte-me o que pretende — ordenou o velho. A discussão entre o Almirante e o jovem capitão durou mais de duas horas em que Julian passou todas as informações que tinha e quais eram seus planos ao velho. — Muito bem... — começou o Luneiev pensativo, olhando para baixo, passando a mão no queixo alisando uma barba rala e grisalha. — Admito que seu plano tem pontos positivos, mas é muito perigoso entregarmos a Soyus ao inimigo. E se seu plano falhar? Nossas esperanças estarão perdidas para sempre. Não temos mais dinheiro para um empreendimento como esse. — Não falharei senhor — interveio Julian muito animado em ver que seu Almirante entendera seus motivos e ao que parecia o estaria apoiando. — Mesmo assim. Para o caso de falhar, faça as alterações que constam dos planos que estou lhe enviando, nos sistemas da nave. Quando tudo acabar derretemos os reatores desse colosso. Sem chances de recuperação. O jovem ficou apreensivo. Estaria o Almirante realmente do seu lado, ou os planos que lhe passara seriam uma armadilha. — Por que está me ajudando? — arriscou. — Sou de Dione, como você! — respondeu o velho Almirante enquanto sua imagem sumia do receptor de Julian. 52 Scarium *** A sala estava escura. Não queria arriscar-se acendendo as luzes. Sabia que se o pai a pegasse bisbilhotando por ali, teria muitas explicações a dar e isso não fazia parte de seus planos para o momento. Sob a luz de uma pequena lanterna, ela revisava papéis e mais papéis. Procurava por uma pista, por coordenadas, por mensagens cifradas. Vários minutos passarem até que encontrou uma anotação com uma seqüência de números. Era aquela. Tinha que ser, pois ouviu os passos de alguém se aproximando e teve que se esconder. De dentro do banheiro, único lugar onde pode pensar em esconder-se, viu o sujeito que dias antes fazia relatórios a seu pai e aos outros senhores do Pacto. Desta vez, o homem caminhava sorrateiramente e invadiu a sala de seu pai, ao que parecia com as mesmas intenções que ela. Vasculhava tudo rapidamente, tomando cuidado para não fazer barulho e recolocar tudo nos seus devidos lugares. Ela não teve dificuldades para concluir o que isso significava. O Pacto estava sendo violado e alguém estava tentando roubar as informações que seu pai possuía. Sabia que correria grandes riscos pelo que estava fazendo, mas não podia ficar de braços cruzados enquanto seu pai condenava vinte milhões de pessoas a morte. *** Era chegada a hora. Entraram em órbita estacionária, próximos a Deimos. Desembarcaram grande parte da tripulação que nem mesmo entendeu o que estava se passando com exceção de um, o oficial de máquinas que fora o autor da denúncia que veio mostrar-se bastante favorável a Kraff. Mais tripulantes foram recrutados, dentre os homens e mulheres em que cada um dos oficiais achou que poderia confiar, e destes, poucos se recusaram a colaborar. De Deimos ao cinturão de asteróides a viagem correu sem problemas. Quando chegaram as fronteiras do cinturão, a Soyus foi interceptada por uma esquadra de naves “comercias” do Pacto e, após longas conversações e uma abordagem sem resistência, escoltada até uma base insólita em meio às rochas flutuantes. O jovem capitão foi recebido com desconfiança, a princípio, porém quando os membros do Pacto analisaram o presente que ele lhes ofertara em prova de lealdade logo o acolheram como um dos seus. Julian tinha pressa. Não sabia a que distância estaria o cometa e ninguém mencionava o assunto. Teriam caído num blefe? Agora, ele agradecia por ter confiado no Almirante e feito aquelas modificações no cruzador. Caso tudo não passasse de uma cartada do Pacto, acabariam por se arrepender amargamente. Em uma recepção oferecida pelo Capo, denominação dada, informalmente, ao presidente do Pacto. Julian foi apresentado à linda filha do empresário, Bárbara. Trocaram olhares. Conversaram sobre muitas coisas. Quando o rapaz mencionou que era de Dione a garota mudou. Mesmo sem conhecê-la bem Julian percebeu. — O que houve? — perguntou. — Foi alguma coisa que eu disse? — Não. Está tudo bem — respondeu a garota pensativa. Depois de alguns segundos, perdida em seus pensamentos falou: — Como você entrou para o Pacto? Quero dizer: Se você era um oficial da federação? — Bem, eu... — ele não sabia o que responder. — Tive problemas com o comando! 53 Novela Ele ficou inquieto com a pergunta dela e percebeu que ela estava inquieta também, como alguém que tem algo a dizer. — Tem alguma coisa incomodando você? — insistiu. — Tem! — respondeu, Bárbara, com os olhos marejados. — O que está havendo? Confie em mim! Ela não sabia se devia, ou não, mas o fato é que falou. Falou como se tivesse reencontrado um velho amigo. Contou tudo o que sabia e passou a Julian um pedacinho de papel, que este guardou discretamente num bolso em seu traje de gala de uma azul quase negro. Nesse momento o Sr. Cadorin se aproximou e perguntou severo: — O que está havendo? — N... Nada Papai. Acho que exagerei um pouquinho no licor. Só isso. O senhor Kraff estava me ajudando a entrar. Vou me recolher. — Já é hora. Senhor Kraff... — fez uma referência olhando severamente nos olhos do rapaz e voltou para a beira da piscina de sua fortaleza em estilo medieval, construída sob uma redoma de puro berquélio transparente, o que deixava a vista um céu impressionante acima das cabeças de seus convidados. *** Jorge chegou da recepção horas mais tarde que seu amigo e o encontrou andando de um lado para o outro do luxuoso quarto que fora colocado a sua disposição enquanto permanecessem ali. — Olá, amigo. O que faz em meu quarto? — inquiriu o ex-primeiro oficial da armada da federação. Que saudades tinha desse título, e só deixara de usá-lo fazia dez dias. — Eu tenho — sussurrou depois de ligar uma música, para tentar evitar as escutas que estavam certos deviam estar instaladas por toda parte. — O que? — A filha do Capo, Bárbara. Ela me deu as coordenadas. Quando eu perdia as esperanças, por não termos nenhuma liberdade de ação por aqui, ela vem e me coloca a informação nas mãos. Ambos ficaram se olhando sem fala por alguns instantes, então Jorge quebrou o silêncio: — Temos que levar essa informação para fora daqui. — Eu sei. Já dei uma olhada e pela data, deve faltar muito pouco. Temos que sair daqui hoje. No máximo, amanhã. — Como faremos isso? – quis saber Jorge, falando cada vez mais baixo. — Temos que sair e levar nossa nave. — Acha que teremos alguma chance de escapar daqui? — inquiriu o amigo, incrédulo. — Não temos escolha. Essa é nossa força! *** A conversa do dia anterior estendera-se por várias horas. Planejaram tudo. Alguns teriam que arriscar-se e chamar a atenção para que os outros pudessem invadir um transporte e roubar pelo menos um caça para que tivessem a mínima de chance de alcançarem a Soyus. Julian quis, antes de dar inicio a operação, despedir-se de Bárbara . Sem saber tomou a atitude que colocou toda a atenção sobre si. O Capo havia ficado desconfiado na noite 54 Scarium anterior e com Julian procurando por Bárbara, fixou ainda mais sua atenção nele. Os dois encontraram-se em um jardim artificial e foram vigiados de perto, porém discretamente, por vários homens de confiança do Sr. Cadorin, até que um tumulto nos hangares os fez saírem dali. — Nós mal nos conhecemos, mas... — ele não sabia se seria correto expô-la aos perigos que tinham a enfrentar, mas não resistiu ao seu coração. — Venha comigo. — Ir com você? Do que está falando? — Nós voltaremos ao espaço hoje. Já está começando, percebe? — perguntou mostrando o jardim sem guardas. — Começando? — Meus amigos devem estar invadindo os reatores neste momento. — Por que pensa que não vou denunciá-lo a meu pai? — Não teria me passado as coordenadas se quisesse me entregar — respondeu Julian, receoso de que aquilo fosse apenas um teste. — Vou com você, mas prometa-me uma coisa — pediu a garota com os olhos em chamas. — O que? — Deixe este lugar intacto. Cresci aqui e minha mãe e pai vivem aqui. — Está bem, mas vamos sair daqui — disse o rapaz puxando-a pelo braço, discretamente, até que puderam correr escondidos pelas árvores. Em minutos estavam próximos ao hangar “B”, por onde iriam escapar, juntamente com alguns dos outros, para chagarem à Soyus. — Temos que pegar um transporte e um ou dois caças. Conseguiram armas? — quis saber, novamente, capitão. — Somente estas aqui — respondeu o oficial de comunicações Petrolov, mostrando três armas de mão. — Com isso não vai ser fácil, mas é o que temos — observou Julian. — Vamos logo que temos que resgatar o Jorge e os outros no “D”. O capitão deu um beijo em Bárbara e fez sinal com a mão para que ficasse abaixada. Sorrateiramente, o grupo de oito homens e duas mulheres foi se aproximando das naves. Separou-se. Um grupo de quatro foi para a torre de comando, onde rendeu facilmente os operadores desprevenidos e os trancou num armário de equipamentos. Outro grupo de quatro invadiu uma nave de transporte que para surpresa deles estava desguarnecida e os outros dois foram para os caças que estavam sendo revisados por um mecânico magrelo, que ao perceber a ação tratou logo de cair fora, mas foi impedido por um negro corpulento, oficial de segurança da Soyus, que o atirou dentro de um enorme tanque vazio. As naves estavam em poder dos federados. Julian correu com cuidado para buscar Bárbara e descobriu com tristeza que ela fugira. Logo estava dentro do transporte com os outros. Os quatro da torre de controle acionaram as comportas de decolagem e se apressarem para unir-se aos demais. Nesse momento uma avalanche de soldados do Pacto adentrou o hangar e preparava-se para obstruir a comporta, quando uma explosão os atirou para longe. Alguns atordoados, muitos feridos, a maioria morta. — Que foi isso? — perguntou Julian. — Um presente surpresa, chefe! Há, há, há!!! — gritava José, o oficial de segurança. 55 Novela — Gostou? — Muito, José. Muito! As naves decolaram em meio a fumaça e poeira. Por sorte passaram pela fresta da comporta e logo que saíram da redoma puderam localizar facilmente o hangar “D” pois o mesmo estava jogando para fora um jato de ar indicando que também tinha recebido um tratamento todo especial de José. O transporte entrou sem dificuldades no hangar completamente destruído, enquanto os caças davam rajadas de laser para evitar a aproximação de algum eventual soldado que não se via por ali. O grupo, que lá esperava, não era mais de quatro pessoas e sim de três. Quando entraram, Julian ficou esperando que seu amigo entrasse. — Ele se foi — disse uma voz feminina lamuriante. Julian ficou desconcertado por alguns segundos. Deixou-se cair numa cadeira enquanto o transporte decolava em meio aos tiros dos caças. Quando iniciavam a subida rumo ao cruzador, surge de trás de alguns asteróides próximos, como um enxame de abelhas, várias naves caças do Pacto. Para sorte do grupo federado, o intuito daquele mar de naves não era proteger a Soyus de um ataque partindo do asteróide base e sim de assaltos vindos do exterior. Por isso os caças estavam relativamente distantes. Nada em escala astronômica, mas o suficiente para lhes garantir a dianteira que precisavam para entrar novamente no cruzador. No momento a Soyus estava ocupada apenas por cientistas, contratados pelo Pacto, para decifrarem os segredos tecnológicos da máquina e não opuseram resistência, zelando pelas próprias vidas. Cinco caças tentaram pousar, mas acabaram colidindo contra o casco do cruzador e apenas inutilizaram o hangar. Logo a Soyus estava novamente aquecendo os reatores e sob comando da federação, ou pelo menos de homens fiéis a ela. — Levantem os escudos — ordenou Kraff, muito abalado com a morte de Jorge. — Temos berquélio suficiente para um salto? — Sim senhor — respondeu enfática, Miriam, oficial calculista de primeira classe. — Então, vamos para o mais próximo que puder nos levar de Saturno. Dali por diante a Soyus fez o resto. Realmente o Almirante Luneiev tinha razão. A nave resistira sem dificuldades aos ataques das fragatas do Pacto, e escapara da perseguição de dois destróieres classe A sem maiores problemas. Era uma bela nave, pensava Julian, agora. *** Em Dione, o alto da colina era o lugar ideal para alguém que quisesse observar a vida à distância. Podia-se ver e não ver ao mesmo tempo. A vida nos dias atuais não era coisa que alguém quisesse ver muito de perto. A morte estava em todo lugar esperando que alguém fraquejasse. Bren era o irmão mais jovem de Julian e estava alcançando a idade do recrutamento; seus pensamentos, porém seguiam em outra direção. Ele estava preocupado com outros assuntos. Como ajudar sua família e seu pequeno mundo. Não sabia como Julian, seu irmão, receberia a idéia de que ele, o irmão do sujeito mais badalado da armada, não queria servir a federação. Um grito interrompeu seus pensamentos. — Bren! Bren! — gritava a distância, uma figura gorda e esfarrapada. — Estou indo — respondeu ele, também com um grito. Levantou-se, tirou a poeira de seus trajes, também puídos, batendo com a mão por toda parte e correu em direção 56 Scarium àquela figura que o chamava muito apreensiva. — O que houve, tia? — perguntou ele aflito. Bren há muito não via sua tia em tal estado, afinal a vida em Dione era difícil, mas ao mesmo tempo monótona. O que provocaria tal mudança naquela mulher dócil e sofrida que durante sua longa vida já tinha visto a maior parte de seus velhos amigos morrerem? Não tinha mais ninguém em lugar algum. Só ele e... Julian! Um pensamento terrível o abalou. Teria acontecido alguma coisa a seu irmão? Com esse pensamento ecoando em sua cabeça, correu como louco os setenta metros, que o separavam de sua tia Mabel. — Ele... — começou. — Acalme-se — disse ela energicamente. — É grave, mas não é o que você pensa. — O que é? O que é? — perguntou muito nervoso. — Ele está sendo caçado por todo o sistema por naves do Pacto. Parece que ele roubou uma nave muito importante... Não sei bem. A transmissão foi interrompida. — Então ele está vivo? — Não tenho certeza, mas você conhece seu irmão. Ele não é fácil. — Uma esperança! Devia ter me acostumado. É só o que temos aqui para viver? O garoto estava muito revoltado. Não podia e não queria, aceitar as coisas como estavam, mas agora uma idéia bastante reconfortante lhe vinha a cabeça. — Tia venha comigo — disse já saindo em disparada. Depois de esforçar-se para correr cerca de duzentos metros a senhora já maltratada pela idade, conseguiu chegar a casa um bom tempo depois que Bren. Este já estava diante de um armário escancarado em seu quarto e onde se podia ver um painel que a tia Mabel jamais havia visto antes e por instantes não compreendeu de que se tratava, mas apesar de sua educação simples e sua vida de campônia era inteligente e logo reconheceu o equipamento. Tratava-se de um transmissor. Já havia visto um na cooperativa nos tempos em que o comércio era abundante, mas este era diferente e tinha a insígnia da federação. — O que está fazendo? — perguntou aflita. — Tudo está bem! Fique calma — disse ele sem dar maiores explicações e fazendo um gesto para que a tia fizesse silêncio. O garoto tentou e tentou, mas não consegui contato com o irmão pelo velho rádio federado e isso o deixou ainda mais apreensivo. *** — Lá está ele — apontou Lara, oficial de telemetria. — Incrível! É enorme — comentou, José. Senhor uma comunicação no canal dois. — Abra na tela grande — solicitou, Julian Uma grande tela surgiu diante da ponte e nela a face apreensiva do Almirante Luneiev. — Nossa! Mal posso crer no que vejo — exclamou o velho Almirante agora com uma expressão de satisfação na face. — Estamos de volta, senhor — disse Julian fazendo continência com prazer de quem acaba de sair da academia. — Trouxeram minha belezinha de volta. Isso vai reduzir as suas penas por insubordinação — observou sardônico. — Eu já estava com o dedo no botão vermelho para pôr esse vaso fora de ação. 57 Novela — Ele é da federação novamente senhor — observou, com orgulho Julian. — Assim como o coração de metal daquela coisa, o também será. — Senhores! Façam seu trabalho — disse o velho, e sua imagem desapareceu. Julian observou por alguns instantes o cometa pensando em seu amigo Jorge, um bravo, e ordenou: — Baixar escudos. — Escudos baixos senhor — respondeu o operador. — Disparem os mísseis atômicos. *** — Bren! Bren! — chamou novamente a tia Mabel. — Que foi tia? — perguntou o menino colocando a cabeça para fora da janela sem precisar de resposta diante do espetáculo que viu no céu. Uma imensa e silenciosa mancha luminosa enchia um terço do céu esverdeado que Dione adquirira depois da terraformação. E inúmeros raios de luz eram vistos quando alguns fragmentos atingiam a atmosfera. O espetáculo estendeu-se até o inicio da noite e transformou-se em festa na colônia. Mais tarde, Mabel e Bren tiveram outra surpresa. *** — Julian! — disse Bren, correndo para dar-lhe um abraço. — Nossa, irmãozinho, você cresceu um bocado – observou o irmão mais velho enquanto olhava o garoto. — É muito bom estar aqui — continuou Julian. — Onde está a tia Mabel? — Na casa, assustada — respondeu Bren. — Nossa que saudade! Julian partiu em direção a casa onde passara sua infância caminhando a passos curtos e lentos. Quando Mabel o viu parado à porta, imediatamente seus olhos encheram-se de lágrimas e correu para um forte abraço. Os dois abraçaram-se e choraram, então ela o empurrou para longe para olhar para ele e disse em meio a lágrimas, gargalhadas e soluços: — Meu Deus! Como você cresceu! Mais tarde volta da fogueira, Julian contava sobre a aventura. — E nada disso teria sido possível sem a coragem de Jorge e Bárbara — concluiu pensando no velho amigo e na garota que para sempre estaria do outro lado do abismo. *** O Pacto, com os ataques realizados contra o cruzador Soyus, deixou clara sua posição de beligerância contra a federação, que por sua vez, não tardou em usar isso para enfraquecer as empresas do grupo diante da opinião publica. E aos poucos foi perdendo o domínio comercial e político e tornando-se uma figura jurídica sem importância. Os dias áureos da federação estavam voltando e com eles a prosperidade do povo. Até que mais alguns inescrupulosos chegassem ao poder. Miguel Angel Pérez Corrêa - é argentino de Buenos Aires, Engenheiro Elétrico e ilustrador, autor de “O dia da Caça”, mantém um site para divulgar seus trabalhos em www.aarca.kit.net. 58 Não perca esta edição especial!!! Três histórias Completas Três histórias completas: A Troca Rumo ao Mundo Novo 2066 na Rota das Caravanas ScariumQuadrinhos A Troca Rumo ao Mundo Novo 2066 na Rota das Caravanas Junho 2003 20 páginas R$ 2,50 www.scarium.hpg.com.br Ano I nº 1 www.scarium.rg3.net R$ 2,50 Banda Desenhada Um monumento da FC Cesar Silva Há algum tempo eu defendo a idéia que a FC na literatura tem mais fôlego e vigor que em qualquer outra mídia. Parece preconceito, afinal qualquer um pode enumerar dezenas de obras muito boas de FC&F no cinema, na TV, no teatro, nos quadrinhos, até no rádio e nos discos de música. Mas o fato é que cada mídia tem sua própria escala de valores. É difícil comparar um filme de cinema com uma peça teatral, uma obra musical com uma HQ, pois cada uma delas atinge uma parte diferente do cérebro e causa prazer (ou desprazer) diferente. Mas no que se refere aos conceitos da ficção científica, a literatura tem abordado o gênero de modo mais arrojado, criativo e ousado que todas as demais mídias . Nesse aspecto, está décadas adiante e amplia essa vantagem na medida que aquelas, que almejam um apelo mais comercial, lutam pela atenção dos consumidores oferecendo-lhes produtos que sabem que não serão estranhados e rejeitados. Não que isso deixe de acontecer na indústria editorial, ao contrário. Basta uma visita a qualquer livraria para constatar a pobreza das gôndolas de FC. Quando ela existe, está repleta de novelizações e fanfics, o que demonstra que os editores livreiros também estão preocupados com a disposição dos leitores e tentam oferecerlhes aquilo que demonstra ter algum apelo complementar, como histórias inspiradas num novo longa do cinema ou uma série de TV de sucesso. Coisas do mercado globalizado,que alinhou por baixo a profundidade de todo e qualquer produto cultural. Apesar disso, ainda sustento afirmação apoiado não no material que está nas nossas livrarias, mas no que não está. Temos o privilégio de encontrar, aqui mesmo neste fanzine, peças de ficção produzidas por autores amadores que atestam o grau de criatividade que se exercita na literatura. Também podemos perceber que há uma incontável quantidade de autores em outros países fazendo exatamente o mesmo; todas as tentativas que faço em busca de trabalhos de outros fandons prova ser produtiva. Há bons escritores de FC apresentando idéias inovadoras em todos os países da América Latina assim como em qualquer parte do mundo, principalmente nos EUA e Inglaterra, onde a FC atinge seu nível profissional mais expressivo. E também em todos esses lugares a FC literária comprova seu talento de ponta na FC, fazendo tudo o que se vê nas outras mídias parecer redundante. Por isso, fiquei surpreso quando eu comecei a lerAs aventuras de Luke Arkwright, do autor britânico Bryan Talbot, publicado no Brasil em dois volumes pela editora Via Lettera. Justamente porque trata-se de uma HQ. Mas não uma HQ convencional. Aliás, como linguagem até deixa um pouco a desejar,é demasiadamente sofisticada, lenta, com muito texto, muitos preâmbulos, muitas referências históricas que escapam ao leitor não-britânico. Os desenhos detalhadíssimos permitem que a atenção de leitor desvie-se constantemente da narrativa. Todos os pecados que os autores profissionais de Comics (o quadrinho americano) ou de Mangá (o quadrinho japonês) sabem que devem evitar para manter escravizada a atenção dos leitores. Mas a história, ah, a história... As aventuras de Luke Arkwright tratase de uma incursão no mais moderno e difícil sub-gênero da FC, a História Alternativa. Mas não do modo “convencional” com que a FC costuma abordar o tema, se é que me permitem o termo. Luke Arkwright é um agente muito 60 Scarium especial de uma organização lotada numa linha histórica alternativa (LHA ou “paralela”, como Talbot prefere chamála), a Paralela Zero-Zero, e tem a capacidade de deslocar-se pelas infinitas LHAs. Essa capacidade especial faz dele um homem importante na busca pelo Fogo Gélido, um artefato alienígena que está escondido numa paralela na qual a Inglaterra é um país subdesenvolvido submetido a uma prolongada ditadura teocrática puritana e linha-dura,sob o comando do Lorde Protetor Oliver Cromwell, um integralista torturado por traumas de infância. O Fogo Gélido caiu na Terra depois devagar pelo cosmo por eras incontáveis. É a arma final de uma guerra entre LHAs, que está prestes a ser resgatada por um grupo terrorista misterioso conhecido como Dilaceradores. Eles pretendem reativar a arma e destruir todas as LHAs da Terra, embora ninguém saiba exatamente o motivo. Na busca pelo artefato, Arkwright acaba envolvendo-se na política daquela LHA, engajando-se na resistência dos Realistas,grupo dissidente que quer restaurar a monarquia britânica e é comandado pelo herdeiro ao trono, o Rei Charles, e sua irmã Anne.Enquanto isso, o governo prussiano e o governo russo, as maiores potências militares dessa LHA, manejam suas tropas para se aproveitarem de um possível colapso político na Inglaterra e anexá-la a suas fronteiras. Quando os Dilaceradores finalmente conseguem resgatar o artefato, bem debaixo do nariz de Arkwright depois de uma perigosa escaramuça no Egito, coisas estranhas e apavorantes começam a acontecer em todas as LHAs, monitoradas pela Paralela Zero-Zero. Algumas entram em convulsão mundial, outras são devastadas por conflitos nucleares, e os efeitos do Fogo Gélido logo começam a ser sentidos também na Paralela ZeroZero. As coisas não correm muito bem para os Realistas que são atacados em sua base pela tropa mais sanguinária do governo Puritano. O Rei Charles é assassinado, os Realistas são desorganizados e Arkwright é preso, torturado e morto, fechando o primeiro volume da obra. E é aí que realmente se inicia a história, e não vou contar mais nada. Talbot é um ilustrador soberbo. A irregularidade e lentidão do seu roteiro acaba funcionando em favor da melhor apreciação de sua arte refinada. Em alguns momentos o autor é verborrágico em demasia, noutros mostra-se um especialista em narrativa cinematográfica. O trabalho como um todo parece propositalmente equilibrar-se na fronteira entre a literatura e os quadrinhos. Prova disso são os textos que prefaciam os dois volumes. No primeiro, a apresentação é feita pelo roteirista de quadrinhos Alan Moore, no segundo a tarefa cabe ao escritor Michael Moorcock. Ambos não economizam elogios a obra e ao autor. Faço coro com eles. E recomendo a leitura a todo o apreciador da boa FC. As aventuras de Luke Arkwright é FC de primeira e não há nada parecido com ela seja na literatura do gênero, seja nos quadrinho sou em qualquer outra mídia. Meus conselhos para a leitura: não deixe de ler nada. Não pule os preâmbulos por mais longos que sejam,não dispense os apêndices e, sobretudo, não tenha pressa. Ao final da leitura do segundo volume o leitor, com a cabeça a dar voltas,vai ter aquele mesmo sentimento de perda que acompanha a leitura da última página dos livros que nos impressionam. Então leia de novo.A cada vez vai parecer uma obra diferente, e ainda mais madura que na leitura anterior. As aventuras de Luke Arkwright Bryan Talbot, Via Lettera Editora (2000). 2 volumes, 120 páginas cada. Tradução: Jotapê Martins. Cesar Silva - editor do “Hiperespaço” e autor do livro “Dinossauria Tropicalia” www.ceritocity.cjb.net. 61 Última Página Resultados do Concurso I Concurso de Contos & Ilustrações da Scarium Megazine Fantasia Ficção Científica 3º Lugar - “ Cidade dos Anjos” Maria Luísa Gouveia Lopes (Beira - Moçambique). Prêmio: 1 Revista MIB + certificado + Publicação da obra. 3º Lugar - “A Saga dos Vikings do Espaço” Sidemar Vivente de Castro (Catanduva - SP). Prêmio: 1 Revista MIB + certificado + publicação da obra. 2º Lugar - “Filho de Elfo” Tânia Crivellenti Baptistelli (Campinas - SP). Prêmio: 2 edições da Scarium + 1 livro Perry Rhodan + Revista MIB + certificado + Publicação da obra. 2º Lugar - “Na Rota das Caravanas” Marta Rolim (Porto Alegre - RS). Prêmio: 2 edições da Scarium + 1 livro do Perry Rhodan + 1 revista MIB + Certificado + Publicação da Obra. 1º Lugar - “A Roda dos Anões” Simone Saueressig (Novo Hamburgo - RS). Prêmio: 1 assinatura da Scarium (4 edições) + 1 livro Perry Rhodan + 1 livro Tropas Estelares + 1 Revista MIB + certificado + publicação da obra 1º Lugar - “Dactyl” Bertoldo Scheider Jr. (Curitiba - PR) . Prêmio: 1assinatura da Scarium (4 edições) + 1 livro do Perry Rhodan + 1 livro Tropa Estelares + 1 Revista MIB + certificado + publicação da obra Prêmios Especiais: Menção Honrosa - “Vale do Ódio” Bertoldo Schneider JR. (Curitiba - PR) Prêmio Scarium de Participação Fanfic “ A Clonagem de Joseph K” Márcio Ramos Callegaro (Santos - SP) Prêmio Scarium de Participação Quadrinhos “2066 – Na Rota das Caravanas” Rogério Aparecido da Paixão (Guarujá - SP) “Rumo ao Novo Mundo” Regina Araújo dos Anjos (João Pessoa - PB) “A Troca” Carlos S. Masuda (São Paulo - SP) NO PRÓXIMO NÚMERO: Edição de aniversário: 2 Vezes Jorge Luiz Calife Zona de Guerra e M2M2 (Mission to Mars Two) Uma possível seqüência para o filme do Brian de Palma Táxi Emir Ribeiro Uma sensacional história em quadrinhos da Velta e mais John Dekowes Marcello Simão Branco