ARTE, CIDADE, ESFERA PÚBLICA: AÇÕES

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ARTE, CIDADE, ESFERA PÚBLICA: AÇÕES
ARTE, CIDADE, ESFERA PÚBLICA: AÇÕES EFÊMERAS NO ESPAÇO URBANO
Anne Marie Moreira Sampaio 1
RESUMO
Esta pesquisa investiga as ações de arte efêmeras que aconteceram em espaços públicos
urbanos no Brasil, e de que maneira essas práticas construíram esferas públicas
relacionadas ao ambiente da cidade. Como objetos de estudo foram selecionados os grupos
Poro, Interlux Arte Livre e Grupo de Interferência Ambiental, que atuam desde 2002 com
propostas inseridas em espaços públicos. Para análise das ações desses coletivos, foram
utilizados os conceitos de esfera pública, da filósofa alemã Hannah Arendt, e arte no
interesse público, da pesquisadora norte-americana Miwon Kwon, relacionando os trabalhos
contemporâneos com outros artistas brasileiros, desde Flávio de Carvalho, em 1931, até o
grupo 3Nós3, já na década de 1980. A pesquisa também foi baseada em outras referências,
tais como sites, blogs, vídeos, documentários e registros fotográficos, em algumas vezes
disponibilizados pelos próprios grupos estudados.
Palavras-chave: Arte efêmera. Espaço público. Esfera pública.
ABSTRACT
This research investigates the actions of ephemeral art that happened in urban public places
in Brazil, and how those actions built public spheres related to city's environment. As
references for the study were selected the groups Poro, Interlux Arte Livre and Grupo de
Interferência Ambiental, working since 2002 with inserted proposals in public places. For the
review of the actions of these collective were used the concepts of public sphere, from
German philosopher Hannah Arendt, and art in public interest, from North-American
researcher Miwon Kwon, relating contemporary works with another Brazilian artists, from
Flávio de Carvalho, in 1931, until 3Nós3 group, in 1980s. This research was also based in
other references, as websites, blogs, videos, documentaries, and photographs, sometimes
provided by the own studied groups.
Keywords: Ephemeral Art. Public Space. Public Sphere.
INTRODUÇÃO
Definir o que é cidade não é tarefa fácil, visto que não há apenas uma
descrição que a contemple em toda sua complexidade. É possível localizar em
diversas áreas de conhecimento definições distintas, cada uma enfatizando aquilo
que é próprio de seu universo. Essas definições ora se dispersam, ora se
aproximam. Em comum, muitas delas compartilham de um mesmo ponto de partida:
a polis da Grécia antiga. A filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) concluiu que
as cidades ocidentais, decorrentes do modelo da polis, não seriam apenas a
1
Bacharel em Artes Visuais pela Universidade Federal do Paraná- UFPR.
Cursando a Pós-graduação Especialização em História Moderna e Contemporânea na Escola de Música e Belas
Artes do Paraná - EMBAP.
dimensão terrestre ou as edificações sobre elas erguidas. A cidade seria o espaço
das relações e o espaço entre as relações - seria o lugar da esfera pública . Assim, a
esfera pública poderia acontecer independente de estruturas físicas, possibilitando a
existência de um espaço discursivo.
A pesquisadora Miwon Kwon, consciente da amplitude do espaço público e da
oportunidade de existência da esfera pública, cita, no livro One place after another
(2004), a categoria de arte que entende como arte no interesse público. Essa
classificação diz respeito às proposições projetadas para determinadas situações,
levando em conta o espaço, quem terá contato com ele e como afetará ou será
afetado pelo ambiente.
Tendo em vista a categorização de Miwon Kwon e a noção de esfera pública,
definida por Hannah Arendt, esta pesquisa procura compreender dois aspectos
principais: de que maneira as ações efêmeras propostas pelos grupos Poro, GIA e
Interlux constroem esferas públicas (ao serem acionadas nos espaços públicos das
cidades); e como se estabelecem no campo das artes visuais. Ao avaliar as
produções dos coletivos, é possível traçar uma trajetória que, no Brasil, se inicia com
Flávio de Carvalho e vai até o 3Nós3, relacionando arte, cidade e espaço público.
TRAJETÓRIA DAS AÇÕES EM ESPAÇOS PÚBLICOS NO BRASIL
Em 1931, Flávio de Carvalho (1899 – 1973) deu início às Experiências,
“denominação que ele dava às suas práticas interdisciplinares, desvinculadas das
categorias artísticas tradicionais.” (MELIM, 2008, p.22). Em geral, suas ações eram
provocativas para o contexto social da época, como usar trajes do vestuário feminino
em público ou andar na direção contrária de uma procissão de Corpus Christi. A
pesquisadora Regina Melim comenta que essas ações de Flávio de Carvalho foram
precursoras “na trajetória da performance no Brasil, que terá nas décadas
subsequentes um número variável integrando-se aos processos de muitos artistas”
(2008, p. 23), como visto, por exemplo, no evento Apocalipopótese.
Organizado por Hélio Oiticica, Frederico Morais, Lygia Pape e Antônio
Manuel, Apocalipopótese ocorreu em agosto de 1968, no Rio de Janeiro, e foi
proposto para pensar o espaço externo do MAM/RJ, relacionando arte e espaço
público. Dois anos depois, em Belo Horizonte, aconteceu a mostra Do corpo à terra,
com curadoria de Frederico Morais. Reuniu artistas que envolviam situações
relacionais, sensoriais e/ou corporais em suas propostas, aproximando arte e
público e criticando o período de repressão no qual o país se encontrava. Entre os
artistas, Cildo Meireles participou com Tiradentes: Totem-Monumento ao preso
político e Artur Barrio com a Situação T/T,1.
Tanto Apocalipopótese quanto Do corpo à terra são exemplos do olhar dos
artistas, de fora para dentro dos espaços museológicos. O deslocamento da arte
para fora das instituições caracteriza o período das décadas de 1960 e 1970, onde a
necessidade do objeto de arte é repensada, abrindo oportunidade para que outros
circuitos acontecessem. Livros e publicações de artista, arte postal, performances,
happenings e ações coletivas demonstraram novas possibilidades de encontro da
arte com o público, com a cidade e as instituições. Em contato com o cotidiano, a
arte potencializa as efemeridades da vida “comum” – cria esferas públicas que
dialogam com os fluxos urbanos.
Em 1979, Hudinilson Jr., Mario Ramiro e Rafael França formaram o 3Nós3,
coletivo que dedicou-se as “interversões”, “denominação que o grupo preferia utilizar
para descrever suas ações, cujo objetivo expresso era inverter a percepção habitual
do espaço da cidade e da arte” (MELIM, 2008, p. 30). A ação mais conhecida do
3Nós3 foi Ensacamento, que aconteceu em 1979, na cidade de São Paulo. Durante
a madrugada, o grupo cobriu com sacos de lixo as cabeças de várias estátuas
públicas, causando muita polêmica e confusão assim que as pessoas começaram a
circular pela manhã.
De Flávio de Carvalho até 3Nós3, esse breve histórico de ações em espaços
públicos do Brasil teve intenção de situar os grupos que são objetos de estudo desta
pesquisa em relação ao campo e à história da arte. Certamente outros artistas,
ações e eventos poderiam estar aqui descritos, sendo este apenas um recorte da
fértil gama de intervenções que se espalham pelas cidades.
PORO, INTERLUX E GIA: AÇÕES EFÊMERAS NA URBE
Formado pelos mineiros Brígida Campbell e Marcelo Terça-Nada!, o Poro
trabalha desde 2002 com ações efêmeras e intervenções na urbe. Compreendem o
espaço urbano como um território fértil para suas ações, que têm como
característica despertar o olhar do passante para os detalhes da cidade e criticar o
abuso publicitário. Para isso, o Poro ressignifica os dispositivos da própria
publicidade, como na série Faixas de anti-sinalização (2009). Ao contrário das faixas
usuais que informam os transeuntes, as faixas do Poro espalham frases que
parecem deslocadas do ambiente urbano, já habituado aos apelos comerciais.
Dizeres como “Perca tempo”, “Desenho é risco”, “Enterre sua tv” e “Veja através”,
compartilham o mesmo espaço de anúncios que pretendem vender e promover
produtos ou serviços.
Já as propostas Siga sem pensar (2004), Tem crédito? (2008), e Superfície
da cidade (2008), são séries de tiragens, inseridas no contexto urbano da mesma
maneira que a infinidade de panfletos que circulam nas cidades. De mão em mão,
são entregues a qualquer pessoa - não pretendem atingir o “público da arte” nesse
primeiro momento. Os trabalhos são legitimados no campo da arte posteriormente,
seja por meio de registros e publicações ou de exposições e debates.
Quando o Poro age no ambiente público por meio de ações poéticas e
efêmeras, criticando características da sociedade atual e seu modo de convivência
com a coletividade urbana, a noção de “guerrilha artística” (formatada pelos artistas
das décadas de 1960 e 1970, no Brasil), torna-se contemporânea. Não mais contra
a repressão da ditadura militar, a guerrilha artística nos anos 2000 pode ser vista
como um posicionamento diante da massificação dos moldes capitali stas, que
interferem nos hábitos, desejos, vontades e ações dos indivíduos. Na produção do
Poro, o questionamento tende para o excesso de mídia na cidade e distanciamento
afetivo entre habitantes e urbe.
O Interlux Arte Livre é de Curitiba, e começou suas atividades no ano de
2002. Em suas ações, busca ressignificar os espaços urbanos, “consolidando uma
identidade heterogênea, de abordagem provocadora (...), numa crítica do processo
civilizatório e da crise de percepção da sociedade do consumo espetacular”
(INTERLUX, 2010). Na formação atual estão André Mendes, Claudio Celestino,
Fernando Franciosi, Fernando Rosenbaum, Goura Nataraj, Jaime Vasconcelos,
Juan Parada, Rimon Guimarães e Tiê Passos.
Além das influências trazidas pelos integrantes, o coletivo conta com o
histórico de ações que ocorreram em Curitiba, como os Encontros de Arte Moderna
(1969-1974), Sábado da Criação (1971), Artshow (1978), e o grupo Sensibilizar
(1983 – 1986), que propunha ações em diversos espaços da cidade, transformando
transeuntes “comuns” em participantes de seus trabalhos. Nas proposições do
Interlux, também é possível identificar o envolvimento de pessoas além do grupo
agindo ativamente nas ações. Com o slogan “leve algo para deixar”, Domingo na
urbe (2005) foi um evento no qual o Interlux convidou pessoas para participarem da
ocupação de um posto de gasolina embargado pela prefeitura, tentando transformálo em um espaço “propício para o desenvolvimento de atividades lúdico-criativas”
(INTERLUX, 2010).
Em 2008, o Interlux propôs uma interferência no tapume de uma construção,
próximo ao ateliê do grupo, e no qual qualquer pessoa poderia interferir da maneira
que desejasse. O encontro se assemelhou a uma festa, com a celebração da
convivência no espaço público e a degustação dessa experiência coletiva, criativa e
plural. Goura Nataraj, em depoimento para o documentário Em 5 Segundos (2008),
afirma que o ponto principal da ação foi “estimular as pessoas a deixarem de ter
uma postura passiva, tanto em reação à suas próprias vidas, como em relação à
cidade, em relação uns aos outros, em relação à maneira com elas enxergam a
rua.”.
As questões abordadas pelo Interlux em suas ações convergem para um ideal
de sociedade, onde as ruas se tornariam locais de convívio, discussão, troca,
produção artística e cultural, propondo outros modos de viver, pensar e sentir,
distantes dos modelos padronizados pelo capitalismo. Essas proposições constroem
esferas públicas nas quais, o que costuma ficar restrito à esfera privada, se estende
para o ambiente público da convivência, numa apropriação de espaços e partilha de
experiências. Em suas propostas, o Interlux constrói microrrelações: possibilidades
de novos modelos de existência na urbe.
O GIA - Grupo de Interferência Ambiental - foi formado em 2002, a partir de
encontros dentro da Escola de Belas Artes da UFBA. Integram o grupo Mark
Dayves, Ludmila Britto, Tiago Ribeiro, Everton Marco Santos, Pedro Marighella e
Cristiano Píton, aproximados pela amizade e por “uma admiração pelas linguagens
artísticas
contemporâneas
e sua pluralidade, mais especificamente àquelas
relacionadas à arte e ao espaço público” (GIA, 2011). Ludmila Britto comenta que as
ações são lapidadas por longas conversas, e afirma que o trabalho em coletivo é
“tarefa árdua”, pois é natural ocorrerem opiniões divergentes. Porém, garante que
todo o GIA concorda que “é preciso repensar o espaço público e a forma como a
arte dialoga com seus habitantes” (BRITTO, L. MARIGHELLA, P. 2009, p. 26).
As práticas do coletivo valorizam o processo e os momentos de execução,
durante os quais buscam reconfigurar o valor da obra de arte e as relações entre
artista e público, remetendo ao pensamento do artista alemão Joseph Beuys (1921 –
1986) e seu conceito de escultura social. Para tanto, o GIA utiliza-se de inserções
irreverentes e carregadas de ironia acerca dos hábitos sociais nas cidades,
questionando “as condições em que os indivíduos atuam com os elementos do seu
entorno” (GIA, 2011).
Exemplos de como o GIA opera nas cidades são as ações Não propaganda
(2004), em que o grupo difunde a “propaganda do vazio”; Degrau (2009), na qual um
integrante do coletivo coloca-se à disposição dos usuários do transporte coletivo de
Salvador, para auxiliá-los no embarque e desembarque dos ônibus, e Fila (2005),
que promove a formação de uma fila para contemplação de situações ordinárias da
cidade.
Para o GIA, os limites entre arte e vida, ironia e crítica, lazer e trabalho, são
estreitos e sutis, por vezes inexistentes. É dessa maneira que o grupo atua,
estabelecendo em volta de si uma rede propositiva, inserindo-se no cotidiano da
cidade, por vezes corporalmente, como em uma performance urbana, ativando
espaços, questionando e posicionando-se diante da vida – da arte – construindo
subjetividades tão plurais quanto a diversidade da urbe.
OS COLETIVOS E A CONSTRUÇÃO DE ESFERAS PÚBLICAS
Tanto o Poro, quanto o Interlux e o GIA completaram dez anos de existência.
Durante esse período, cada grupo construiu uma maneira própria de pensar e fazer
arte. Característica semelhante entre os grupos é a autonomia alcançada para a
produção dos trabalhos. O Poro se opta por estratégias baratas para seus trabalhos,
recorrendo à tipografias caseiras e produzindo o próprio material gráfico. O GIA
adotou a estética do precário como característica de sua poética, trabalhando a
partir dos materiais que já possuem ou com alternativas de baixo custo. Já o Interlux
conta com a colaboração de outras pessoas além do coletivo para viabilizar suas
proposições.
Analisando as práticas dos coletivos, percebe-se que suas ações estão
submetidas ao tempo de permanência na urbe e às influências externas, o que as
caracteriza como efêmeras. Por esse motivo, o registro é etapa importante no
processo dos trabalhos, e a internet é a principal ferramenta de compartilhamento.
Divulgar e disponibilizar os trabalhos na internet, porém, é mais do que alargar o
campo de visibilidade das ações efêmeras. Ao transportar relatos, fotografias, vídeos
e textos para a rede, o artista compreende que seu trabalho existiu integralmente no
momento de ocorrência da ação no espaço público, mas que esse espaço se
desdobra virtualmente. Assim, tece-se uma esfera pública conectada tanto à
realidade da urbe, quanto à realidade social de nossa década - uma realidade
online.
Todavia, mesmo com as possibilidades de ampliação do campo para além de
suas estruturas convencionais, desvincular desse sistema os museus, galerias ou
instituições culturais, ou então negar o mercado de arte, demonstra ingenuidade por
parte do artista. Por esse motivo, é preciso ter atenção ao analisar os trabalhos em
espaços urbanos. Se estão camuflados no contexto da cidade, de alguma maneira
deverão ser legitimados no campo da arte, para que sejam diferenciados de
ativismos ou ações ordinárias do cotidiano, que compartilham do mesmo espaço das
propostas artísticas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As características de cada grupo apontam para detalhes das poéticas dos
coletivos, e atentam para as preocupações que estes têm em relação à cidade. É a
partir das situações que a própria cidade oferece que os grupos pensam e produzem
arte. As propostas supõem a construção de um lugar, que pode ser físico ou
discursivo, onde o valor da experiência se sobrepõe à preocupação de construir um
objeto que a traduza, ressaltando assim o caráter efêmero das produções.
Utilizar o ambiente da urbe como local e material de trabalho retoma o que os
artistas do fim da década de 1960 propuseram nas mostras Apocalipopótese e Do
corpo à terra. Diferente do contexto ditatorial presente no Brasil de 1968, os artistas
dos anos 2000 observam outras questões que julgam relevantes para criticar ou
ironizar, muitas delas ligadas aos moldes sociais padronizados a partir da expansão
do capitalismo e suas consequências materializadas na cidade.
Com intervenções efêmeras, os coletivos de artistas continuam trabalhando
na ampliação dos espaços institucionais de arte, sem se desligar do campo que os
legitima. Portanto, é possível concluir que Poro, Interlux e GIA constroem esferas
públicas que relacionam arte e espaço público, sintonizando questões do universo
da e arte e do universo da cidade, propondo novas maneiras de interação com o
ambiente público, em uma retomada afetiva do espaço coletivo urbano.
REFERÊNCIAS
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