"julgamento" da mulher adltera
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"julgamento" da mulher adltera
1 O "JULGAMENTO" DA MULHER ADÚLTERA a igualdade entre homens e mulheres Luiz Guilherme Marques [email protected] 2004 O que não queres para ti não o queiras para os demais. (Hilel) Sem os direitos das mulheres não existem os direitos humanos. (Daniela Auad) É preciso que as mulheres tenham liberdade de experimentar, que possam ser diferentes dos homens, sem medo, e que expressem essas diferenças livremente. (Virginia Woolf) Essa poderosa estrutura (patriarcal) é como uma máquina bem azeitada, que opera sem cessar e quase automaticamente. (Daniela Auad) DEDICATÓRIA - a Terezinha, minha esposa, - a Jaqueline Mara e Tereza Cristina, minhas filhas. Dedico este estudo também a Juana Inés de la Cruz, que viveu no México no século XVII. ÍNDICE 2 Introdução 1ª Parte - Há 2.000 Anos 1 - A Sociedade Judaica 1.1 - A Política 1.2 - A Família na Sociedade Judaica 2 - A Situação da Mulher 2.1 - Mulheres em Papéis de Liderança 2.2 - Mulheres e Monarquia 2.3 - Mulheres e Profecia 2.4 - Mulheres e Sabedoria 2.5 - Mulheres e a Comunidade da Aliança 2.6 - A Posição das Mulheres dentro da Família 2.6.1 - Seu Status Social 2.6.2 - O Relacionamento Matrimonial 2.6.3 - Divórcio 2.6.4 - Prostituição 2.6.5 - Mulheres e Escravatura 2.6.6 - O Ideal de Igualdade 3 - O Direito 3.1 - As Coletâneas de Leis 3.2 - As Penas 4 - O "Julgamento" da Mulher Adúltera Segundo os Filósofos 4.1 - Gibran Khalil Gibran 4.2 - Huberto Rohden 4.3 - José Bortolini 2ª Parte - A Atualidade 1 - As Mulheres na Atualidade 1.1 - Feminismo 1.2 - Igualdade Conclusão Notas INTRODUÇÃO De início, alertamos que nosso estudo tem caráter estritamente científico, sem nenhum cunho religioso e que não pretendemos desmerecer a história e a cultura judaicas e nem a de qualquer outro povo. Muito pelo contrário, temos muito a agradecer aos judeus a contribuição relevante que deram e dão à civilização, conforme afirma JAYME DE ALTAVILA (2000:35): Dos judeus saiu a idéia de justiça social e dos direitos do homem. O incidente do "julgamento" da mulher adúltera, apesar de ocorrido em Jerusalém, tem, na verdade, como palco todos os pontos da Terra daquele tempo. DANIELA AUAD (2003:25-27) mostra a situação das mulheres gregas em geral e em Atenas, que era uma das cidades mais evoluídas do mundo antigo: 3 Na Grécia dos filósofos de quem tanto ouvimos falar, como Platão e Aristóteles, a mulher era, ao longo de toda a sua vida, considerada "menor" e portadora de um espaço secundário na sociedade. A mulher grega passava toda a sua vida sob a dependência de um homem, que poderia ser seu pai, marido, filho ou um outro tutor. Na condição de tutelada, a mulher era destinada ao casamento, sem que seu consentimento fosse necessário. [...] Em Atenas, até o casamento as mulheres jovens cresciam à sombra do gineceu, ou seja, per,aneciam em uma parte da casa destinada exclusivamente às mulheres. Elas podiam sair apenas em raras ocasiões, como em festas religiosas; no restante do tempo, deviam se manter afastadas de todo e qualquer olhar masculino, mesmo de seus familiares. Elas aprendiam exclusivamente trabalhos domésticos e alguns rudimentos de cálculos, leitura e música junto a uma parente ou a uma mulher conhecida de sua família.. Uma vez casadas, as mulheres continuavam reclusas em suas novas casas. É importante notar que tal regra se aplicava com menos rigor às mulheres de classes pobres que não tinham escravas e que, portanto, deveriam dar conta dos afazeres domésticos e das compras. [...] O homem tinha o direito de matar a mulher com quem era casado se a considerasse infiel. [...] Era admitido que o homem tivesse outras parceiras e concubinas. Essas mulheres moravam junto com o homem e sua esposa legítima. Eram mulheres de famílias pobres que não tinham dotes a oferecer a um noivo ou eram estrangeiras, ambas incapazes de pretender um marido. Então, moravam e tinham filhos junto com homens que já tinham uma esposa. Os filhos da concubina não eram considerados legítimos e não tinham direito a herança, por exemplo. [...] As escravas não tinham nenhuma relação ou vida familiar e seus filhos eram, na maioria das vezes, resultasdos de estupros que sofriam nas casas onde serviam. Tomamos o incidente do "julgamento" da mulher adúltera como ponto de partida para nossa reflexão sobre a desigualdade entre homens e mulheres. MARILENE SILVEIRA GUIMARÃES (2001:37) diz que: Igualdade não se decreta, constrói-se. Essa conscientização das mulheres é imprescindível e vem acontecendo com muitas lutas por elas travadas no ambiente em que vivem e, algumas, em arenas mais amplas, mas não foram suficientes para a solução defintiva do problema. Se não houver um texto legal imperativo e explícito no sentido da decretação da igualdade na ocupação de cargos públicos através do sistema de cotas, somente daqui a alguns séculos as mulheres conseguirão 4 fazer com que seus direitos sejam considerados no mesmo nível que os dos homens. ÁUREA TOMATIS PETERSEN (2001:21) faz uma assertiva que mostra o atraso em que ainda vivemos quanto à igualdade das mulheres: De acordo com o Relatório da ONU, se nada fosse feito, no que se refere à representação por gênero, somente daqui a 400 anos chegar-se-ia à igualdade entre homens e mulheres. No âmbito da própria ONU verifica-se a existência de desigualdade: (vide em www.unicrio.org.br/Textos/0411j.htm) Mulheres ainda enfrentam obstáculos para ocupar cargos de chefia na ONU As Nações Unidas ainda não conseguiram atingir a meta – definida pela Assembléia Geral – de ter seu quadro de funcionários equilibrado em relação a questão de gênero, especialmente no que se refere a cargos de gerência. Apesar do número de mulheres neste tipo de cargo ter aumentado de 1,7% no ano passado para 37,4% em junho de 2004, “a análise a longo prazo mostra que a participação feminina na entidade em todos os níveis apresenta um progresso irregular”. Este resultado foi apresentado recentemente pelo Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, em um relatório para a Assembléia Geral. O relatório recomenda cerca de 30 medidas para lidar com os obstáculos que dificultam uma maior participação das mulheres em cargos de chefia porém alerta que “as barreiras para o progresso feminino têm se tornado mais sutis, e portanto, mais difíceis de serem identificadas, principalmente nos escalões mais altos da Organização”. Até junho de 2004, as mulheres ocupavam 83,3% dos cargos profissionais mais baixos e somente 16,7% dos cargos mais altos – como o de Sub-Secretário-Geral – estavam em mãos de mulheres. João, o evangelista, relata essa história das mais importantes do Evangelho. O "julgamento" da mulher adúltera[1] precisa ser analisado por todos nós homens para reconhecimento da injustiça que vem pesando sobre as mulheres desde as mais recuadas épocas da história humana e que, inconscientemente, contribuimos para manter. Muitos homens idealistas se acreditam justos com as mulheres. Para esses lembramos o mahatma Gandhi, que relata em sua autobiografia um traumático episódio de sua vida, quando, em razão de sua mulher ter-se recusado a cumprir o que ele entendia um dever de humildade, expulsou-a de casa, mas, preocupado, arrependeu-se e, com toda a transparência de sua personalidade idealista, relatou o fato não só para esclarecimento dos homens como também para ele próprio reconhecer suas limitações humanas. Se Gandhi se reconheceu machista, imagine-se nós, os 5 eticamente medíocres, que formamos a imensa maioria dos representantes do gênero masculino... A desconsideração pelas mulheres tem sido verdadeira "instituição", transmitida de geração a geração, entranhada no nosso psiquismo a tal ponto que sequer percebemos o absurdo que representa. Dessa forma, metade da humanidade vive sob a "dominação", mais ou menos explícita, da outra metade, somente muito devagar processandose a libertação, no curso dos séculos, à medida que as próprias mulheres vão impondo seus direitos, mas ainda longe a época da necessária igualdade. DANIELA AUAD (2003) historia, de forma didática e eloqüente, a epopéia das mulheres desde o começo dos tempos na procura do reconhecimento da ambicionada igualdade, lembrando nomes memoráveis como OLYMPE DE GOUGES, JEANNE DEROIN, FLORA TRISTAN, VIRGINIA WOOLF, SIMONE DE BEAUVOIR, BETY FRIEDMAN etc. Há 2000 anos atrás a situação das mulheres era muito mais sacrificada que a de hoje. Somente quando brilhar a soberania da inteligência é que as mulheres alcançarão plenamente seu desiderato, ficando nas páginas do passado, como época obscurantista, aquele período em que preponderava a força bruta explícita ou disfarsada. CHRISTIANE SAULNIER e BERNARD ROLLAND (2002:65-73) mostram a triste realidade feminina do mundo antigo em Israel: Não é fácil determinar a condição da mulher na época de Cristo: é que muitas informações nos são transmitidas por textos rabínicos posteriores. Parece certo que o antifeminismo aumentou no decurso do séc. II da nossa era, tanto no judaísmo como no cristianismo; antes dessa data, ele era muito menos acentuado e é conhecido o sucesso encontrado, no séc. l, pelos fariseus, nos meios femininos. É portanto perigoso — neste como em outros domínios — extrapolar as informações que temos e dizer com certeza se a mulher que apresentamos aqui é somente a de séc. II ou já a do l. "Compra-se a mulher por dinheiro, contrato e relações sexuais, constata um rabino. Compra-se um escravo pagão por dinheiro, contrato e tomada de posse. Há então diferença entre a aquisição duma mulher e a dum escravo? — Não!" Essa definição apresenta bem a condição feminina: como o escravo, a mulher depende de seu senhor-marido e tem que assumir todas as tarefas; não pode aproveitar-se nem dos rendimentos do seu trabalho nem do que ela achar; só está sujeita aos mandamentos negativos ou gerais da Lei e não aos que estão ligadas a um tempo preciso: senão, como haveria de ocupar-se das crianças ou das tarefas do lar? Se não lhe é proibido interessar-se pela Lei e pelas tradições, é muito desaconselhado, no entanto, ensinar-lhe demais a respeito disso, pois "aquele que ensina a Torá à sua filha ensina-lhe a prostituição"! 6 O lugar da mulher é em casa, ocupando-se dos filhos e da casa e fiando a lá, na Judéia, ou o linho, na Galiléia: os textos prevêem a quantidade mínima que ela deve fiar ou tecer por semana, quantidade esta que é reduzida se ela amamenta um filho de menos de dois anos. Ela nada tem a fazer fora de casa e se for obrigada a sair, deve guardar o anonimato mais completo, por isso se usa o véu. Se ela conversa com alguém, por exemplo para pedir uma informação, deve-se responder-lhe o mais brevemente possível; fora disso, não se lhe deve dirigir a palavra, nem sequer para cumprimentá-la. Diante dum tribunal, ela jamais é admitida como testemunha e menos ainda como juíza. Na sinagoga ela tem seu lugar; no entanto, pode haver lá uma infinidade de mulheres, se não houver dez homens adultos, é impossível celebrar o ofício. Ela deve ainda aceitar que seu marido divida sua outras mulheres, quer sejam esposas como concubinas, ou até mesmo escravas. Notemos poligamia é muito rara e isso em primeiro econômicas. afeição entre ela e ela, quer sejam no entanto que a lugar por razões Mas a mulher é também filha de Israel, o que lhe confere direitos. Tem direito a um mínimo vital; seu marido é obrigado a lhe dar o necessário em alimento, vestes e dinheiro para uso próprio, sem o que ela pode se queixar perante um tribunal que, após inquérito, obrigará eventualmente o marido a se divorciar. Ela também tem direito à dignidade: se ela cai na escravidão, o marido deve fazer tudo para resgatá-la; se ela está doente, ele deve conseguir-lhe os medicamentos necessários; enfim, ele não pode lhe impor votos contrários à sua dignidade nem obrigá-la à prostituição. Finalmente, ela não pode ser repudiada de qualquer maneira: o contrato de matrimônio é ao mesmo tempo um freio para os desatinos do marido e uma garantia para a mulher. Tal é a situação jurídica que se deduz dos textos antigos, mas a realidade é, de fato, menos sombria; principalmente na roça, se vêem mulheres ajudando os maridos nos trabalhos da lavoura, outras se dedicando ao comércio. O amor conjugal está longe de ser desconhecido e sabe transfigurar todas as leis, tanto assim que em resposta a cada crítica ou razão para se desconfiar das mulheres, na literatura antiga, pode-se citar um testemunho exatamente contrário. Não esqueçamos tampouco as diferenças provenientes da situação social, da possibilidade ou não de ter servos e servas. Em certas cidades, o fato de as famílias judias viverem lado a lado com famílias pagãs de mentalidade greco-romana onde a mulher tem uma situação bem diferente, não deve ter deixado de criar problema ou de influenciar os costumes. Fala sobre os filhos e sua educação: Tanto o Antigo Testamento quanto a literatura judaica antiga nos mostram que o filho é absolutamente essencial para o judeu: é ele a 7 garantia de que o povo eleito continuará a existir, o sinal da perenidade da Aliança e portanto a prova da bênção divina: não ter filho é uma verdadeira maldição (pela qual unicamente a mulher é responsável !). Trata-se, portanto, de ter o maior número de filhos possível e são muito elogiadas as famílias numerosas. Aborda o Nascimento e seus ritos: O nascimento acontecia em casa, com a ajuda duma parteira. O recém-nascido era lavado, esfregado com sal e envolto em faixas. Depois a mãe ou o pai lhe dava o nome; o uso de esperar o oitavo dia não é atestado antes do NT(Lc 1,59; 2,21). A mãe amamentava o filho durante longos meses, às vezes por dois ou três anos. Oito dias após o nascimento, o menino era circuncidado. Os antigos hebreus certamente tomaram esse rito de iniciação ao matrimônio dos semitas, quando se instalaram em Canaã. Mas foi durante o Exílio em Babilônia, num momento em que quase já não tinham mais meios de afirmar seu caráter próprio, que a circuncisão adquiriu toda a sua importância e se tornou o sinal da pertença a Deus e a seu povo. Era praticada pelo pai ou por um especialista, em casa. Todo menino primogênito pertence ao Senhor (Ex 13,2). Assim, devia ser "resgatado" (Ex 13,13). Nenhum lugar era prescrito para fazer esse resgate; era feito durante o mês que se seguia ao nascimento, mediante pagamento de cinco siclos de prata (Mm 18,15-16). Ao cabo de 40 dias, se ela dera à luz um menino, e de 80 dias, se fosse uma menina, a mãe devia purificar-se (Lv 12,2-7). Essa purificação nada tem a ver com impureza moral (no sentido atual do termo) que a mãe tivesse contraído. A noção de "impureza" no Levítico é semelhante à de "tabu" e esta "purificação" se parece com uma espécie de "dessacralizaçâo". Aprofunda as informações sobre a educação das crianças: A criança é amada por sua família, mas isso não quer dizer que seja adulada. Todos os textos preconizam, ao contrário, uma educação de tipo enérgico, para endireitar um rebelde, incapaz de sabedoria e de respeito pela Lei: há a convicção de que esta sabedoria penetra melhor usando a vara! Durante os primeiros anos, a mãe é a única a cuidar da criança. Mas aos quatro anos, a situação muda conforme o sexo: a menina continua com a mãe e o menino passa para os cuidados do pai. Tanto para um como para o outro, começa então o aprendizado da profissão: o de cozinheira-dona-de-casa-futura-esposa para a filha e geralmente a profissão do pai para o filho. Pode acontecer que o filho seja mandado para a casa de um outro para aí aprender o ofício, ou que a filha seja vendida como escrava, mas, para isso, deve-se esperar até os seis anos. Após esta idade, o pai não é mais 8 obrigado, juridicamente, a sustentar os filhos: eles têm de aprender a se arranjar. A educação não visa somente ao aprendizado de um ofício: consiste sobretudo em ensinar a Torá aos filhos. E aqui também, esta função compete aos pais. Mas há uma grande diferença neste ponto entre as meninas e os meninos. A menina, evidentemente, deve conhecer todos os preceitos negativos: "Tu não farás ..." e os que se referem à sua condição; mas fora disso, quanto menos se lhe ensina, melhor é. O menino, ao contrário, deve saber o mais possível da Lei, a fim de melhor conhecê-la e honrar o Senhor. Deve saber ler o texto sagrado e ser capaz de interpretá-lo. Mas como muitos pais não podem fazêlo por si mesmos, inventa-se a escola, destinada só aos meninos; as meninas conseguem, no entanto, adquirir certa formação, graças sobretudo aos comentários do ofício sinagogal. De acordo com uma tradição judaica, só por volta de 63 d.C. é que o sumo sacerdote decidiu criar em cada aldeia uma escola gratuita para todos os meninos a partir de 6 ou 7 anos; mas alguns fazem a instituição do ensino público remontar a 130 a.C., embora sua finalidade não fosse outra senão preparar leitores para a sinagoga. Nestas escolas, são as Escrituras que formam a base do ensino: O mestre e os alunos as repetem, o mestre as comenta, para que os alunos acabem decorando-as. Utilizam-se os processos mnemotécnicos da época, dos quais os evangelhos nos oferecem muitos exemplos: paralelismo, antítese, assonância. É lendo o texto bíblico que se aprende tudo: o cálculo é ensinado quando se fala da duração da vida dos patriarcas; a geografia, a propósito das guerras de Israel, as ciências a partir deste milagre ou daquele fenômeno. A Bíblia é o livro completo que permite integrar tudo e é inútil ir procurar algo fora dela, dizem os rabinos do séc. II da nossa era. Mostra como se praticava o ensino superior de então: Como em todos os países do mundo, é o ensino superior que primeiro se organiza. Bem antes da época de Cristo, cada sábio (ou rabino) preocupava-se com formar discípulos e futuros escribas que pudessem exercer seu ofício nos tribunais e nas sinagogas. HileI tinha cerca de 80. Dentro do movimento dos escribas de afinidade farisaica, havia duas correntes: uma mais rigorista, a outra mais laxista em matéria de pureza ritual; na escola de Shamai, exigia-se um ano de estágio para conhecer essas prescrições rituais, ao passo que na de HileI contentava-se com 30 dias. Não temos informações sobre a escolarização antes da ruína do segundo Templo (70 d.C.). Todavia, a preparação de pessoas capazes de fazerem a leitura e a homilia na sinagoga era certamente uma preocupação. Após o séc. II da nossa era, as informações existem. Seriam antigas algumas delas? Demos alguns exemplos. Certas famílias se organizam em grupos de cinco ou seis e contratam um professor para seus filhos. Cria-se no lugar principal da região uma espécie de escola secundária, que são obrigados moralmente a freqüentar todos os jovens de 16 a 18 anos. Mas isso cria problemas, pois o horário escolar vai do nascer ao pôr-do-sol: é preciso fazer a caminhada todo dia ou pagar pensão. Por outro lado, esses jovens 9 de 16 a 18 anos nem sempre são muito dóceis: o Talmud nos diz que "quando o mestre tinha de se queixar de um dos seus alunos, este ficava revoltado e abandonava a escola". Essa iniciativa esquecia sobretudo que os jovens desta idade estão normalmente inseridos totalmente no mundo do trabalho e que, a não ser que tivessem uma fé profunda ou fortuna familiar que permitisse sustentá-los, tinham que pensar primeiro na sua alimentação. Praticamente, portanto, só os filhos de famílias abastadas é que podiam receber tal ensino, embora os líderes de Israel tenham tido sempre o cuidado de oferecer a mais ampla educação a todos, inclusive ao pobre e ao órfão. Foi isso que levou à criação de escolas gratuitas para todas as crianças a partir de seis anos, em todas as aldeias. O ensino superior tem como centro a discussão e a argumentação entre estudantes a propósito desta ou daquela interpretação de um texto bíblico. O estudo do grego, a língua internacional da época, é aceito até o séc. II da nossa era (as traduções gregas das Escrituras, denominadas de Áquila e de Teodocião foram feitas em ambiente judeu após o ano 70). Depois, será malvisto; segundo os escribas, já não tem mais sentido ensinar a filosofia grega, que perverte os homens; quanto à língua grega, dizem eles: "Podes estudá-la, se encontrares um tempo que não seja nem o dia nem a noite". No que diz respeito ao mestre quase sempre um escriba, já que ele difunde a Palavra de Deus, deve ser honrado pelos alunos à imagem de Deus, primeiro doador da Lei; os pais passam para o segundo lugar depois dele. Quais eram as regras sobre o matrimônio? Quanto à idade: Até os doze anos, a criança é menor e não pode tomar decisão alguma que a comprometa de verdade. Quando chega aos doze anos, a situação é diferente para o menino e a menina. Após completar doze anos, o menino torna-se maior, é obrigado a observar a Lei, que ele pode ler na sinagoga (mais tarde, ele ganhará o nome de bar-miçwah ou filho do mandamento}. É convidado a se dedicar ao trabalho. "Deve em primeiro lugar construir sua casa, depois plantar uma vinha, depois casar-se". É preciso que ele ajunte o necessário para abrigar e alimentar corretamente mulher e filhos. A idade considerada boa para se casar é entre os 1 6 e 22 anos, o ideal é aos 18 anos. "O Santo — que ele seja bendito — está atento a que o homem se case ao mais tardar aos 20 anos e o amaldiçoa se não o fez até essa data". Alguns escribas toleram até 24 anos. A filha, entre 12 anos e 12 e meio, é uma adolescente que o pai tem o dever absoluto de entregar a um noivo, pois após essa data ela se torna plenamente maior e pode portanto livremente aceitar ou não os projetos do pai. Durante esse período da adolescência, é o pai que decide e, pelo direito, pode fazê-lo contra o parecer da filha. Contudo, aconselha-se fortemente a ele que procure ouvir a opinião dela e não contrarie sua vontade expressa. Se o pai lhe deu um noivo ou um marido antes dos seus doze anos, ela pode dizer, no dia 10 em que atinge essa idade: "Considero-me como vendida em escravidão e portanto me liberto hoje". E ela se torna efetivamente livre. É no meio dos parentes que normalmente o pai procura um noivo para a filha: isso evita a dispersão dos bens da família e tem também a vantagem de os futuros parceiros já se conhecerem, sendo portanto maiores as chances de se entenderem. Com efeito é proibido, segundo uma lei dos escribas, fazer dois jovens se casar sem que nunca se tivessem encontrado antes, porque no dia do casamento, um deles poderia dizer: "Não tenho realmente o que eu esperava e portanto não quero". As regras do noivado eram rígidas: Juridicamente, o noivado é o ato essencial que liga efetivamente os futuros esposos e suas famílias, graças ao contrato de matrimônio; é coisa bem diferente, portanto dos nossos noivados ocidentais. Esse contrato é um ato oficial que estipula: como serão divididas as despesas da festa do matrimônio; o que o noivo vai pagar ao pai da moça (como "preço" da noiva); o que eventualmente a moça possui como bens próprios, bens que podem provir de herança ou de indenização por algum acidente que lhe teria acontecido após os doze anos; o dote que o pai paga por sua filha (os bens próprios e o dote são, de fato, administrados pelo marido que tem a posse total das rendas que eles podem dar, mas em caso de separação dos esposos ou de morte do marido, a esposa recupera esses bens ou seu equivalente); o penhor de casamento, enfim, indicado antes sob a forma de bens do que de dinheiro, bens reservados para a esposa: se ela fica viúva, esses bens lhe são atribuídos e a partilha entre os filhos só tem lugar depois; se ela é repudiada, o esposo deve dar-lhe esse penhor, exceto em alguns casos em que fosse notória a má conduta da esposa. Vamos explicar alguns pontos referentes, a este contrato. O dote ou provisão do pai para sua filha é algo muito importante: isso representa, de fato, sua herança paterna. Em estrita justiça, só os filhos herdam, recebendo o mais velho uma dupla parte, mas as filhas devem receber um dote. Os textos especificam que, se o pai morre na indigência, os irmãos que entretanto não herdam nada, devem trabalhar para constituir um dote para suas irmãs. O valor dos diversos elementos depende da fortuna das famílias e das exigências recíprocas. O pai que ama sua filha deve interessarse especialmente pelo valor do penhor do matrimônio e assegurar-se de que o noivo certamente o possui. Como os esposos de Jerusalém unanimemente adquiriram o costume de deixar sua casa para sua eventual viúva, uma lei estipula, no séc. I, que, de qualquer forma, a viúva conserva por toda a vida o usufruto da casa de seu marido. Escrever um "bilhete de repúdio" é, portanto, como se vê, muito constrangedor para o marido, pois equivale a renunciar ao usufruto 11 dos bens da esposa e abandonar parte dos seus próprios bens (o penhor); se alguns felizardos podem se permitir esse sacrifício "por qualquer motivo" (Mt 19,3), a imensa maioria dos judeus hesita muito mais. Esse noivado não altera nada na vida concreta dos dois: cada um continua a viver na sua própria família como antes e as relações sexuais são malvistas. Cada um sabe, porém, que está totalmente ligado ao outro e que a separação não se poderá realizar senão por um bilhete de repúdio com todas as suas conseqüências. O noivo, que já recebeu o dote, pode começar a fazê-lo render, ao passo que a noiva não precisa senão esperar em sua casa, mantendo boa conduta para assim dar prova de sua fidelidade. O tempo do noivado dura mais ou menos um ano e, segundo as discussões dos rabinos, ele se apresenta claramente como o tempo necessário para que a moça se torne fisiologicamente uma mulher e portanto uma possível mãe: insistem para que se espere as primeiras ou até as quartas regras. O matrimônio também era regulamentado detalhada e rigidamente: Chega afinal o momento do verdadeiro encontro e da vida em comum. Sabe-se pouca coisa sobre o matrimônio mesmo no séc. I. É ocasião de uma grande festa para as famílias e para os vizinhos. Eles dançam, cantam, organizam farândolas, inclusive noturnas. O esposo vai buscar a noiva para conduzi-la à casa dele, isto é, as mais das vezes, à casa dos seus pais: esta chegada à família dos sogros não deve ter sido sempre fácil para a noiva. Pois é esse o último dia da sua vida em que ela tem o direito de não usar véu na cabeça. Parece não haver cerimônia religiosa especial, a não ser uma bênção pronunciada pelo pai da noiva. A verdadeira bênção virá com os filhos que nascerão desta união. Não quer dizer que não se faça referência a Deus: pensa-se, ao contrário, que é ele quem decide todos os matrimônios. Mas já que toda a vida do judeu está voltada para Deus, esse ato eminentemente humano é sagrado em si mesmo, sem que haja necessidade de mais outra coisa. Durante a noite de núpcias, a noiva sobretudo não deve esquecer a prescrição de Dt 22,13-21 que continua sempre em vigor. Pelo matrimônio, a esposa passa duma submissão total ao pai para uma submissão quase total ao marido: Criança: nada pode possuir; deve respeito ao pai e aos irmãos; o que ela encontra pertence ao pai; pode-se fazer dela uma escrava; nada pode decidir sozinha (votos); representada na justiça pelo pai; mutilada ou deflorada: a indenização vai certamente para o pai. Esposa: possui, mas sem nenhum direito; deve respeito ao marido; o que ela encontra pertence ao marido; se se tornar escrava, o marido deve resgatá-la; nada pode decidir sozinha e o marido pode lhe impor votos; representada pelo marido, a não ser quando ela apresenta queixa contra ele; mutilada: a indenização fica muito provavelmente com o marido. 12 É necessária a viuvez ou o divórcio para que a mulher encontre enfim sua autonomia e goze da liberdade e da possibilidade de administrar seus negócios. Mas ainda é preciso que suas rendas lhe permitam viver! Se não, ela pode escolher entre o segundo casamento e a miséria ... a não ser que, abandonando o véu, ela se entregue à prostituição. Esta situação global explica bem a pequena importância das mulheres e ao mesmo tempo a insistência sobre as viúvas que se pode encontrar no Novo Testamento. O divórcio era previsto em favor do homem: O marido pode repudiar a mulher. Discutia-se muito, na época rabínica, sobre o motivo alegado em Dt 24,1: "se ele encontrou nela algo de inconveniente". A escola de Shamai não admitia como motivo senão a má conduta ou o adultério da mulher, mas a de Hilel admitia razões mais fúteis: bastava que a mulher tivesse preparado mal uma refeição ou mesmo que ela tivesse cessado de agradar ao marido. As mulheres, ao contrário, não podem pedir o divórcio: a hipótese de Mc 10,12 (que não consta em Mt-Lc) é sem dúvida influenciada pelos costumes pagãos. Já um tanto informados sobre o mundo feminino da época do nascimento do Cristianismo, demos um salto de 20 séculos em direção ao futuro e verificaremos a realidade feminina ainda insatisfatória da nossa época. A estatística mundial confirma o que todos sabemos sobejamente (vide em Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Feminismo): As mulheres detêm apenas 1% da riqueza mundial, e ganham 10% das receitas mundiais, apesar de constituírem 49% da população. Quando se considera a criação dos filhos e o trabalho doméstico, as mulheres trabalham mais do que os homens, quer no mundo industrializado, quer no mundo sub-desenvolvido (20% a mais no mundo industrializado, 30% no resto do mundo). As mulheres estão sub-representadas em todos os corpos legislativos mundiais. Em 1985 a Finlândia detinha a maior percentagem de mulheres na legislatura nacional, com aproximadamente 32% (cf. NORRIS, P.. Women's Legislative Participation in Western Europe, West European Politics). Actualmente a Suécia tem o maior número, com 42%. A média mundial é apenas 9%. Em média e a nível mundial, as mulheres ganham 30% menos do que os homens, mesmo quando têm o mesmo emprego. Quanto à presença das mulheres nos cargos públicos relevantes no Brasil verificamos em http://www.cfemea.org.br que: mais 13 1. No Poder Judiciário: 1.1. No Supremo Tribunal Federal - 1 ministra 1.2. No Superior Tribunal de Justiça - 3 ministras 1.3. No Tribunal Superior do Trabalho - 1 ministra 1.4. No Tribunal Superior Eleitoral - 1 ministra 2. No Poder Legislativo: 2.1. No Senado - 9 senadoras 2.2. Na Câmara dos Deputados - 45 deputadas federais 2.3. Nas Assembléias Legislativas Estaduais e Distritais - 132 deputadas estaduais e distritais 2.4. Nas Câmaras de Vereadores - 6.990 vereadoras 3. No Poder Executivo: 3.1. Nos Ministérios - 3 ministras 3.2. Nos Governos Estaduais e Distrital - 2 governadoras 3.3. Nas Prefeituras Municipais - 318 prefeitas municipais Esclarece ainda a Wikipédia: Apesar dos avanços feitos pelas mulheres no que respeita à igualdade no mundo ocidental, há um longo caminho a percorrer para se chegar à igualdade. Voltando no relógio do tempo, verificamos que Moisés[2], o grande legislador judaico, realizou uma importante obra em favor da humanidade. De tudo que legou aos pósteros é o Decálogo[3] sua contribuição mais importante, pelo caráter de universalidade, enquanto que suas demais regras jurídicas são meramente locais e não ultrapassaram o nível daquela época primitiva. Entretanto, infelizmente, até o próprio Decálogo, no seu 10º mandamento, mostra esse tratamento inferiorizante das mulheres. Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seu servo, nem sua serva, nem seu boi, nem seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertença. ALICE L. LAFEY (1994:21-24) afirma que em todo o Testamento[4] a situação da mulher é de mera sombra do homem: Antigo ... o valor das mulheres estava associado a certas funções e tarefas. A mulher justificava sua existência como filha pelo seu futuro papel de gerar filhos para seu marido. As mulheres que não conseguiam cumprir as responsabilidades desse papel (as estéreis), as que eram infiéis a essa missão (prostitutas, adúlteras), ou as que danificavam a autocompreensão de Israel pela idolatria (as mulheres estrangeiras) - todas essas eram rejeitadas pela sociedade. As mulheres são quase sempre identificadas por meio dos homens que são seus pais, maridos ou filhos, e eventualmente pelos seus irmãos... [...] As viúvas e as órfãs não tinham como se "ligarem" à comunidade, já que a ligação era feita através dos homens com os quais eram identificadas. [...] A história teológica narrada no Pentateuco é escrita de uma perspectiva de homens. 14 A miopia do Novo Testamento[5] nesse ponto não é menor, conforme ressalta ELISABETH S. FIORENZA (1992). O "julgamento" da mulher adúltera, na verdade, não foi um verdadeiro julgamento, como veremos. Sob o aspecto jurídico, o questionamento que Jesus apresentou à multidão presente foi uma reflexão sobre o Direito draconiano em vigor. A pena de morte para o adultério era um excesso para um ilícito que, na verdade, só interessava aos cônjuges e nunca ao Estado ou à comunidade. Jesus não julgou: não absolveu nem condenou (pois não era juiz, enquanto que existia um corpo judiciário estabelecido, único que tinha legitimidade para julgar os judeus, ainda mais em casos em que a pena cominada era a morte). Deixou às pessoas presentes dois temas para reflexão: 1) aqueles que pretendem analisar os outros devem ser moralmente superiores e, sendo superiores, têm o dever de ser benevolentes, uma vez que tout comprendre c'est tout pardonner; 2) a ninguém se deve fechar as portas do recomeço. O texto de João a que nos referimos é o Capítulo 8 do seu Evangelho: 1- Jesus foi para o Monte das Oliveiras. 2- De madrugada, voltou outra vez para o templo e todo o povo vinha ter com ele. Jesus sentou-se e pôs-se a ensinar. 3- Então, os escribas e os fariseus trouxeram-lhe certa mulher apanhada em adultério, colocaram-na no meio 4- e disseram-lhe: «Mestre, esta mulher foi apanhada a pecar em flagrante adultério. 5- Moisés, na Lei, mandou-nos matar à pedradas tais mulheres. E tu, que dizes?» 6- Faziam-lhe esta pergunta para o fazerem cair numa armadilha e terem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se para o chão, pôs-se a escrever com o dedo na terra. 7- Como insistissem em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: «Quem de vocês estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!» 8- E, inclinando-se novamente para o chão, continuou a escrever na terra. 9- Ao ouvirem isto, sentindo-se acusados pela consciência, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficaram só Jesus e a mulher diante d'Ele. 10- Então, Jesus ergueu-se e perguntou-lhe: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?» 11- Ela respondeu: «Ninguém, Senhor.» Disse-lhe Jesus: «Também eu não te condeno. Vai e de agora em diante não tornes a pecar.» Jesus estava em Jerusalém, tendo passado a noite no Monte das Oliveiras, mas, de madrugada, voltou ao Templo e ali permaneceu, e, permanecendo sentado, ali compareceu muita gente, com quem Ele conversava e a quem orientava. À certa altura ali compareceram alguns escribas e fariseus trazendo uma mulher flagrada em adultério, tendo eles perguntado a Jesus se deveriam cumprir a Lei, que cominava a pena de morte por apedrejamento para as adúlteras. (Um parêntese: a Lei cominava pena de morte por apedrejamento tanto para a adúltera como para o adúltero) O evangelista pondera que tratava-se de uma armadilha para Jesus, pois queriam um pretexto para o acusarem perante o Sinédrio, que funcionava ali mesmo no Templo. Entretanto Jesus, ao invés de 15 responder pela justiça ou injustiça da Lei, inclinou-se e passou a escrever (o que?) com o dedo no chão. Não se contentaram com o silêncio de Jesus e insistiram para que Ele se manifestasse e então Ele levantou-se e disselhes: «Quem de vocês estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!» e novamente abaixou-se e voltou a escrever (o que?) no chão com o dedo. Gradativamente eles foram indo embora humilhados, a começar pelos mais velhos, até que ficaram somente Jesus e a mulher. (Se João esteve presente, também não se sentiu em condições de permanecer). Jesus perguntou a ela se algum deles a tinha condenado, ao que ela respondeu negativamente. Então Jesus disse-lhe: «Também eu não te condeno. Vai e não tornes a pecar.» Para bem compreender o que ocorreu, deve-se conhecer o triste mundo das mulheres judias e o Direito de então. A frase atribuída a HILEL[6]: O que não queres para ti não o queiras para os demais, apesar de sobejamente conhecida, na prática, não era levada geralmente em conta inclusive pelos religiosos. Como hoje ainda, usa-se de rigor contra os outros e de complacência para si. Naquela época e naquele país qualquer relacionamento de uma mulher[7] casada ou noiva com algum homem que não fosse o marido ou noivo era punido com a morte, enquanto que permitia-se a poligamia[8] ao homem, o qual somente era punido como adúltero se tivesse um relacionamento com mulher casada ou noiva, pois, nesse caso, estaria desrespeitando o direito de outro homem. Quanto ao nosso estudo dividimo-lo em duas partes: - a primeira abordando a realidade judaica de vinte séculos atrás e - a segunda tratando do mundo feminino da atualidade, e finalizamos, na Conclusão, com uma proposta arrojada para a concretização da igualdade entre homens e mulheres: a adoção do sistema amplo de cotas[9] no referencial de 50% para cada um dos sexos, numa ampliação das propostas de MARTA SUPLICY e MARY FERREIRA. Esperamos contribuir para o despertamento dos prezados Leitores para um mundo justo, onde a igualdade entre homens e mulheres exista não só na legislação como também no íntimo de cada pessoa. 1ª PARTE - HÁ 2.000 ANOS 1 - A SOCIEDADE JUDAICA http://www.chamada.com.br/mensagens/artigos/quaobiblico.shtm mostra a Israel de hoje naquilo que repete o ontem, ou sejam, o apego às tradições: A questão não é: "Quanto Israel é religioso?", mas: "Quanto Israel é bíblico?" 16 Encontramos o fio da meada para a resposta em Ezequiel37. Segundo a seqüência lá encontrada, primeiro os judeus retornam à sua terra como monte de "ossos secos" vindos da dispersão para Sião. Enfim de volta à terra de seus pais, "havia tendões sobre eles, e cresceram as carnes, e se estendeu a pele sobre eles", isto é, os que voltaram para casa se tornaram um corpo nacional, o que começou a acontecer em 1948 com a fundação do Estado judeu. Só bem no final, como terceira e última etapa, o Espírito de Deus entrará neles. Só então, a sua posição de direito se transformará de fato na situação para que foram predestinados e que corresponde ao caráter que deveriam ter, ou seja, eles se tornarão em povo santo de Deus também na prática. Atualmente o corpo está se formando, o recipiente vazio toma forma, o que representa a condição para que possa receber dentro de si o Espírito de Deus. Nos exemplos a seguir podemos ver que o recipiente já vai assumindo formato bíblico: O povo Os judeus são em primeiro lugar um só povo. Não uma religião pela qual cada um se decide individualmente, mas um povo pelo qual Deus se decidiu. Pois como descendentes de Abraão, Isaque e Jacó foram escolhidos por Deus, sendo, portanto, um só povo por descendência. O fato dos escolhidos adorarem o Deus que os escolheu, a JHWH, é apenas uma conseqüência dessa eleição divina. Por exemplo, reconhece-se que os judeus são um só povo, por fazerem parte do povo de Deus inclusive aqueles judeus que não têm vínculo algum com a religião judaica. Nos quase 2.000 anos de diáspora (dispersão) entre todos os povos, os judeus continuaram isolados como um povo e sobreviveram a todas as ondas de perseguição. Assim Deus preservou os judeus como um povo – os religiosos e os não-religiosos – até aos dias de hoje. O Estado de Israel é, portanto, a continuação do povo bíblico, o que se mostra inclusive nos cohanin, os descendentes de Arão, que são os únicos a possuírem o gene YAP DYS19B. A terra "Tomar-vos-ei de entre as nações, e vos congregarei de todos os países, e vos trarei para a vossa terra. Habitareis na terra que eu dei a vossos pais. (Ez 36.24,28a). Quando, no começo do século, o movimento sionista enfrentou resistência em seus esforços de se estabelecer em Eretz Israel (a terra de Israel), surgiu a tentação de se criar o Estado judeu em Madagáscar ou em Uganda. Mas por esta não ser a pátria bíblica, esses planos resultaram em nada. Assim, o Estado de Israel surgiu, apesar de toda a oposição, nas terras bíblicas segundo as promessas divinas, e as novas aldeias e vilas foram sendo construídas em cima de ruínas de lugares bíblicos. Nisso se reconhece que Deus trouxe os judeus de volta para sua pátria bíblica. A língua A língua oficial de Israel é o hebraico bíblico enriquecido com vocábulos modernos e se chama "ivrit". Isso significa que hoje poderíamos conversar com o rei Davi, com o profeta Isaías e com o 17 apóstolo Paulo. Elieser Ben-Yehuda (1858-1922) ressuscitou e deu nova vida ao hebraico bíblico, que, na Diáspora, era a linguagem usada na liturgia e na teologia. A língua hebraica se manteve em seu estado original e não se modificou com o passar do tempo como aconteceu com as outras línguas vivas (por exemplo, o grego) porque ficou hibernando por quase 2.000 anos e conservou-se igual ao hebraico bíblico original. A moeda Já há 2.000 anos a.C. o "shekel" (siclo) era uma moeda. Abraão pagou a caverna de Macpela com 400 siclos de prata (Gn 23). O siclo era a moeda para se pagar o tributo ao templo em Jerusalém. Em 1982, Israel reintroduziu essa moeda bíblica e passou a usar outra vez o siclo como moeda corrente. A religião Outras religiões se modificaram, reformas e contra-reformas adaptaram as religiões ao espírito de cada época. Com o judaísmo não foi assim. A religião judaica se ateve teimosamente aos preceitos da Bíblia. Nem o hebraico bíblico podia ser revisado, para se ter a garantia de que as normas e mandamentos religiosos oriundos da Bíblia, as orações, festas e rituais se mantivessem inalterados. Do sábado não se fez o domingo, os dias continuam a começar pelo anoitecer, a direção para se orar continua sendo Jerusalém. A circuncisão, o xale de oração, a trombeta de chifres tocada nas festas e os rolos da Torá escritos à mão continuam sendo os mesmos como nos tempos bíblicos. A legislação Apesar de Israel ser um Estado democrático moderno, sua legislação se baseia em fundamento bíblico. Assim, em Israel não existe casamento civil, só a cerimônia religiosa rabínica, segundo a qual os cohanin (descendentes de Arão) não podem casar com pessoas separadas. Contratos de arrendamento só têm validade por 49 anos, para que no 50º ano, que é ano de jubileu, tudo volte às mãos de seus proprietários originais. Soldados israelenses prestam juramento com a Bíblia sobre o peito e com a arma na mão. E ainda não existe uma Constituição em Israel. Desse modo, a lei bíblica continua sendo a instância máxima para a legislação em Israel. Tudo em Israel... ...tem idade bíblica, mas isso não faz de Israel um museu. Ele é um dos países mais modernos do mundo. Em outros lugares se abandonam as tradições dos antepassados, mas em Israel existe uma volta à antiga Bíblia. Assim, Israel vai se tornando mais e mais um recipiente com formato bíblico para, algum dia, estar em condições de receber em si o Espírito de Deus (Ez 37 e Jr 31). Por enquanto Israel é bíblico apenas em sua forma exterior, mas interiormente ainda não, contudo todas as coisas têm a sua hora para acontecer. 18 1.1 - A POLÍTICA ÉMILE MORIN (1981:104-114) analisa a política judaica da época: Os ocupantes romanos tinham sua concepção do poder. Para eles, "era o Estado que constituía o princípio vital soberano. . . A religião e a nacionalidade só eram reconhecidas enquanto instrumentos do Estado. A religião e o culto religioso, na forma prescrita pelo Estado, eram um dever cívico" (Baron). De acordo com o testemunho de Flávio Josefo, a concepção dos judeus era completamente diferente: "Alguns povos colocaram o poder político supremo nas monarquias, nas oligarquias e outros ainda no povo. Mas, nosso legislador não foi seduzido por nenhuma dessas formas de governo. Ele deu à sua constituição a forma que se poderia chamar teocracia, se se pode arriscar um neologismo. Colocou toda soberania e toda autoridade nas mãos de Deus". Evidentemente, Deus não governa sem intermediários! Vejamos quem detinha, concretamente, o poder judaico, na época da atividade de Jesus, e quais eram as posições dos diferentes partidos. O poder judaico No tempo de Jesus, o poder político tinha sua origem no templo. Certo que a Judéia estava ocupada pela força militar romana e Pilatos, o governador, representava o imperador Tibério. Mas, os romanos tinham o costume de respeitar a organização interna dos países ocupados, sobretudo quando esta atitude era particularmente recomendável, como no caso dos judeus, bastante ciumentos de seu modo de vida. E assim, o templo com seu mais alto funcionário, o sumo sacerdote, permanecia como sede do Estado judaico. Todos os israelitas (600 a 700 mil, na Palestina; 6 a 7 milhões, no império romano) dependiam da jurisdição de Jerusalém. E qual era a dinâmica política, nos anos 28 a 30 depois de Jesus Cristo? Lembremos, inicialmente, como se escolhia o sumo sacerdote, na época herodiana e romana. O primeiro personagem de Israel devia ser da família de Sadoc. Mas de fato, em vinte e oito titulares, nesta época, apenas dois foram desta família. O princípio de hereditariedade para atribuição desta alta função, em parte, fora abandonado. Os sumos sacerdotes foram tirados de famílias sacerdotais comuns. Simonia, rivalidades, nepotismo, intervenções do poder romano decidiam a escolha. A família de Anás foi particularmente hábil, por suas intrigas, para conseguir ocupar o posto durante cerca de 50 anos. Vários de seus membros, entre os quais o famoso Caifás (18 a 36 dC) ocuparam o cargo. Por causa destas rivalidades, o princípio do pontificado vitalício foi abandonado. Deus governava, pois, de muito longe, esta teocracia! 19 O acesso ao poder, no Sinédrio, revela uma situação constante, na humanidade. Os chefes dos sacerdotes se mantinham nesta assembléia, por causa de suas ligações com o sumo sacerdote. Este, instalado no cargo graças a seu nascimento, ao dinheiro e à intriga, cuidava de colocar nos postos mais importantes o seu pessoal, a começar pelos membros de sua família. Os anciãos eram chefes de família de origem pura e ricos. O poder romano escolhia dentre eles aqueles que deveriam responder com sua própria fortuna pela entrada dos impostos devidos ao império. Estas duas categorias, conservadoras e com tendência de aliança com o invasor ocupante, eram saducéias. A aristocracia sacerdotal (os sacerdotes-chefes) e a aristocracia leiga (os anciãos) constituíam, no século I, uma classe dirigente bastante comprometida com os romanos, pela maneira de designação do sumo sacerdote e pelas razões econômicas já sublinhadas. No Sinédrio, internamente, um terceiro grupo, o dos escribas, não cessou de aumentar sua influência nos destinos do país. Os escribas eram, na maioria, fariseus. De onde lhes vinha seu poder, pois, até Alexandra teve que se compor com eles? Inicialmente, este poder lhes vinha de sua influência sobre o povo. Leigos, recrutados de todas as camadas do mundo judaico, os fariseus apresentam certa imagem democrática. A conduta moral e sua piedade impunha-nos ao povo. Seu espírito, mais progressista em teologia (interpretação constante e renovada da Lei, enquanto os saduceus cuidavam de nada lhes acrescentar), e sua independência em relação ao invasor ocupante, fazem deles um partido sedutor. Além da influência sobre o povo, havia uma verdadeira tecnocracia. O conhecimento da Lei, a ciência secreta, as exigências em matéria de ritual dos escribas impressionavam o povo e os próprios sacerdotes. Nada se podia fazer, no país, sem eles, pois toda vida estava sob o domínio da Lei religiosa. Depois do ano 70, eles serão os únicos mestres do judaísmo. Mas antes desta data, não detêm, no entanto, a direção das finanças, nem da ordem pública e nem da justiça de seu país. Representam, no entanto, uma oposição ativa, não comprometida com o ocupante, que precisa ser levada em consideração. Os critérios estabelecidos no país para a escolha de juizes e as exigências a propósito de testemunhas, precisariam ser lembrados. As posições dos diferentes partidos judaicos É quase uma ousadia empregar, aqui, a palavra "partido". Mas, de fato, cada um dos grupos que vamos estudar mistura suas convicções religiosas e suas posições políticas. Por motivos de clareza, vamos nos arriscar, mesmo assim, a falar sucessivamente do partido da classe dirigente (os saduceus) e de três partidos da oposição (os fariseus, os zelotas, os essênios). Os saduceus 20 A documentação relativa a este grupo é parcial e injusta. Nenhum escrito nao-canônico intertestamentário tem suas origens neste grupo. Flávio Josefo, sacerdote fariseu, os ataca. Os escritos rabínicos dos primeiros séculos orientam contra eles uma rude polêmica. A origem do grupo é incerta. Eles entram em cena na época de João Hircano, cerca dos anos 130 a 120 antes de Jesus Cristo, quando se ingerem em questões públicas. E isto não é de se admirar, pois eles são ou da aristocracia sacerdotal ou do mundo leigo rico. O sumo sacerdote e o templo são seu sustentáculo. No tempo de Alexandra, defrontaram-se com os fariseus. Herodes os tratou duramente. Do ano 6 ao ano 70, comandaram uma política de conciliação com o invasor romano. A partir do ano 6, o sumo sacerdote, Joazar, persuadia os judeus a declararem seus bens. Acalmavam os movimentos populares. Entre eles é que se deve procurar os responsáveis pela morte de Jesus. Suas tendências doutrinais conservadoras são coerentes com sua posição política. São defensores da ordem estabelecida. Em matéria cultual, apegam-se à letra da Torá e, neste ponto, muitas vezes, entram em conflito com os fariseus. Assim, a presença de Deus é muito localizada no Santo dos Santos do templo. É por isso que, conforme seu ritual, o sumo sacerdote deve usar o incenso antes de penetrar no Santo dos Santos para se proteger com a fumaça contra a claridade, da glória divina. Os fariseus, que tinham uma concepção bastante ampla da presença divina, pensavam, ao contrário, que bastava impor o incenso depois da entrada no Santo dos Santos. Este é um detalhe bastante pertinente. Traduz bem o liame que pode existir entre uma política e uma teologia: Deus muito localizado, no templo, de quem só se aproxima o sumo sacerdote. Isto significa um conservadorismo institucional saduceu em que o templo passa a ser o penhor de salvação do povo. Deus presente aí, mas também presente em todo território é a posição, quase democrática, dos fariseus. Apesar das aparências, é a posição política que molda a teologia e não o contrário. Os saduceus privilegiam os Cinco livros, o Pentateuco, supostamente legados por Moisés. Não rejeitam os livros proféticos. Mas são compreensíveis suas resistências e sua reticência em empregá-los! A evolução doutrinal sem apoio no Pentateuco é descartada. Assim, a idéia de uma retribuicão individual e coletiva extraterrena. Para eles, o que importa é a salvação atual da nação. A ressurreição dos mortos, a existência de anjos e de demônios lhes parecem dados bastante tardiamente acrescentados. Em matéria criminal, rejeitam as mitigações inventadas pelos fariseus e as acomodações financeiras. São partidários de uma estrita aplicação da lei do talião. Os saduceus constituíam o partido da ordem. Não eram gozadores vulgares. Viviam presos à sua fé. Eram arrogantes e duros com os pequenos. Não tinham influência sobre o povo. Acredita-se que nem mesmo sobre as próprias mulheres. É que eles não resistiram à tentação de todo partido no poder; utilizar a religião. 21 Os herodianos Este grupo, mencionado por Flávio Josefo e pelos Evangelhos, parece designar, na Galiléia onde reina Herodes Antipas, mas também na Judéia, os partidários da dinastia herodiana, os beneficiados no reinado de Herodes, o Grande. Entre eles, cita-se a família de Boetos. Simão, filho de Boetos, foi elevado ao supremo pontificado, por Herodes, o Grande, cerca do ano 22 antes de Cristo. Os fariseus Desde os tempos dos macabeus existiam associações de judeus piedosos. No tempo de João Hircano (135-104 aC) e de Alexandre Janeu (103-76 aC), aparecem referências aos fariseus {perushim = separados ou separatistas). Entre si, eles se chamavam "companheiros". De fato, eles se separavam da massa popular, ignorante, vulgar, pecadora. E também dos reis-sacerdotes, asmoneus, que não eram da linhagem de Davi e estavam muito comprometidos com o helenismo. Alexandre Janeu foi bastante sábio ao aconselhar sua mulher, Alexandra, de dar-lhes sua colaboração. É que eles haviam conquistado o povo. Tornaram-se, então, os verdadeiros chefes do Estado. Sendo novamente relegados por Aristóbulo II (67-63 aC), fizeram uma oposição ao rei e motivaram o povo a enviar uma embaixada a Pompeu para lhe tirar a realeza. Foram respeitados por Herodes, o Grande, pois tinham aconselhado a rendição de Jerusalém a Herodes quando conseguiu o poder dos romanos, mas sobretudo porque tinham atrás de si o povo. No ano 6 antes de Cristo, Herodes desentendeu-se e rompeu com eles por causa de suas intrigas na corte. Sob a autoridade e domínio romanos, do ano 6 ao ano 66 depois de Cristo, a aristocracia sacerdotal e leiga recuperou a situação no Sinédrio. Mas, a influência dos fariseus sobre o povo e na área religiosa era tal que eles representavam uma força que precisava ser levada em conta. O zelotismo nasceu em suas fileiras. Mas, sua grande maioria opunha-se à ação violenta contra o império. Esperavam de Deus a libertação. E, nesta espera, submetiam-se a Deus que lhes impunha, então, chefes estrangeiros. Em 70, com permissão dos romanos, eles vão colocar o judaísmo num bom caminho. No tempo de Jesus, mantinham-se numa vigilante expectativa e conheciam bem os laços que os ligavam ao povo. Segundo Flávio Josefo, no tempo do reinado de Herodes, o Grande, havia cerca de 6.000 fariseus. E o número de simpatizantes era bem elevado. Eram recrutados em todas as camadas da sociedade, mas sobretudo, nos meios medianamente favorecidos, especialmente, entre os artesãos e os pequenos comerciantes. Organizavam-se em 22 comunidades. Tomavam refeições em comum. Tinham intervenções públicas e um regime de admissão e exclusão bem preciso. Embora houvesse sacerdotes fariseus, o grupo se compunha sobretudo de leigos, sem a formação dos escribas, mas que se distinguiam, no entanto, pelo conhecimento exato das tradições mosaicas e dos antigos e pelo cumprimento minucioso dos preceitos. Os chefes e os membros influentes das comunidades dos fariseus eram escribas. O segredo de sua influência é conseqüência de dupla oposição. Primeiramente, diante da massa popular, afirmavam sua origem judaica com uma piedade bastante desenvolvida. Sua interpretação escrupulosa da Lei os levava a uma observância rigorosa do sábado, a um extremo cuidado com a pureza legal, ao pagamento integral dos dízimos dos mínimos produtos. Com isso, pretendiam impor ao povo em geral, em toda a sua vida, uma pureza totalmente semelhante àquela que devia caracterizar o sacerdote oficiante do templo. Os saduceus não exigiam tanto, pois tinham que manter as distinções. Os fariseus, mais católicos que o papa, mostravam-se, assim, como exemplo ao povo. Fascinavam a todos e a todos desprezavam. Por outro lado, opunham-se à nobreza sacerdotal e leiga na área religiosa, constituindo-se uma nova casta de intérpretes da Escritura com espírito renovador. Diante dos que se agarravam apenas ao livro da Lei, os fariseus escribas combinavam a exegese da Lei escrita com as contribuições da Tradição oral para a elaboração de uma teologia mais aberta e mais espiritualista. Eles tinham uma idéia bastante elevada das relações entre o homem e o Criador, da liberdade humana e da providência. Manifestavam uma viva fé messiânica e afirmavam a existência dos anjos, o julgamento depois da morte e a ressurreição dos justos. Ao contrário dos saduceus que desconfiavam de toda abertura da história, os fariseus admitiam as crenças dos apocalípticos e esperavam uma era verdadeiramente nova (rever as observações sobre o cenário apocalíptico, na Introdução). Os fariseus, irrepreensíveis aos olhos do povo, superavam, por sua ciência e sua piedade, os chefes-saduceus pouco considerados nos meios populares. Seu espírito comunitário e seu cuidado de purificação para todo Israel continham germes democráticos. Tudo isso constituía excelentes trunfos para um partido de oposição que colheu, no ano 70, os frutos de seu devotamento à Lei. Os zelotas São "zelosos" ou fervorosos, pessoas decididas ou engajadas, embora com certo fanatismo. São chamados também sicários ou homens do punhal: "sica" era um pequeno, um curto punhal romano. No recenseamento dos anos 6 e 7 depois de Cristo, ordenado por Quirino, legado da Síria, para levantamento fiscal, o fariseu Sadduq e o galileu Judas de Gamala dirigiram uma revolta popular. O movimento que tinha suas origens entre os fariseus, embora 23 reprimido por Roma, conseguiu propagar-se. O meio de ação era o golpe de mão, o assassinato. Os zelotas separavam-se dos fariseus, julgados por eles muito conciliadores e muito passivos. Barrabás era um zelota. Durante a revolta dos anos 66 a 70, o fanatismo zelota atingiu o paroxismo. Depois da queda de Jerusalém, eles ainda resistiram e só cederam, no ano 73, em Massada. Mas Bar Koseba retomou a resistência nos anos 132 a 135. Inflamados pela Lei, eles também contavam, para breve, com a com a vinda do Reino de Deus. Pretendiam reformar o culto e o sacerdócio pela violência. Segundo Flávio Josefo, Judas o Galileu "censurava os judeus por aceitarem o pagamento do tributo aos romanos e por admitirem chefes mortais ao lado de Deus. E seus sequazes tinham um invencível amor à liberdade, pois julgavam que Deus era o seu único chefe e seu único soberano". O programa dos zelotas continha uma reforma social, mas lutavam pelo templo e, portanto, pela conservação das instituições judaicas. Eram os resistentes que queriam a expulsão dos romanos, mas eram os reformistas que pretendiam, simplesmente, corrigir os abusos do sistema em vigor sem questionar o modo de produção vigente desde o século X antes de Cristo. Seu desejo de purificar o culto e o sacerdócio não deve, pois, criar ilusão. Os zelotas não eram verdadeiros revolucionários. E perderam a guerra. Os essênios Com os testemunhos de Plínio, o Velho, de Fílon e de Flávio Josefo, pode-se deduzir a existência de uma seita de essenos ou essênios, desde a metade do século II antes de nossa era. Nela se entrava só depois de uma longa iniciação. E aí se vivia de maneira bastante parecida com a vida monástica (bens em comum e continência), levando-se bem a fundo as exigências do monoteísmo. A fidelidade à Lei e ao legislador Moisés era tema favorito da seita que praticava, rigorosamente, o sábado e a pureza legal. Entre eles não havia sacrifícios cruentos, o que é uma originalidade no mundo judaico palestino. As descobertas no deserto de Judá, à margem do mar Morto (manuscritos das grutas e escavações de Khirbet Qumrã) parecem possibilitar a afirmação dos vestígios deste grupo que recusa o culto no templo, enquanto não for realizado pelo sacerdócio legítimo e segundo os ritos e o calendário da seita. Esses escritos de Qumrã confirmam a existência de um grupo que escolheu retirar-se da sociedade judaica até que soasse a hora de Deus. Fervorosos e muito preocupados em se separar dos maus de seu povo e dos pagãos, os membros desta comunidade querem voltar à pureza da Aliança e da organização sacerdotal. Esperam que se desencadeie a "guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas". E contam com a ajuda de Deus e dos exércitos celestes. Eles não têm em vista a conversão dos pecadores nem a salvação dos 24 pagãos. O mosteiro de Qumrã foi ocupado da metade do século II até o ano 31 antes de Cristo e, depois, do começo de nossa era até sua violenta destruição no ano 68. Parece ter sido o lugar onde se recusava, silenciosamente, tomar consciência das dificuldades concretas da Palestina. Na sociedade em que se manifestou o Acontecimento-Jesus, ninguém é indiferente ao poder. Mesmo tratando-se do poder numa "teocracia", nada se muda. Fuga dos essênios, na espera de uma revanche que só Deus pode tornar eficaz, contestação violenta dos zelotas, espera vigilante dos fariseus, oportunismo dos saduceus que prefeririam a independência, mas tiram vantagens da situação vigente, são atitudes, todas elas, motivadas pelo apetite do poder. Onde situar Jesus nesta realidade? 1.2 - A FAMÍLIA NA SOCIEDADE JUDAICA ÉMILE MORIN (1981:55-56) descreve a estrutura da família na sociedade judaica: A família israelita antiga é de tipo patriarcal. Aí tudo se compreende do ponto de vista do pai (ex, a genealogia de Jesus). O pai goza de total autoridade sobre a “casa” (comunidade de sangue e de habitação. Sobre todas as pessoas ligadas à família), sobre todos os "irmãos". O marido é o senhor (ba'al) da mulher. A solidariedade familiar é bastante forte. Na antiguidade israelita, impunha-se ao go'el (redentor) resgatar o parente que se tivesse vendido como escravo e também o patrimônio que corresse o risco de sair do clã e de assegurar a vingança do sangue. O parente próximo devia suscitar posteridade ao membro da família, morto sem deixar filho. Esta tradição antiga iniciou-se com a sedentarização e o desenvolvimento da vida urbana, permanecendo ainda o "espírito familiar". O que ainda hoje se observa no mundo rural árabe e na África rural negra nos ajuda a compreender o que era a solidariedade familiar no tempo de Jesus, na Palestina. A coesão das famílias judaicas se enraíza também em sua orientação para o templo. Cada dia, nos momentos de oração, o israelita se volta para o lugar" que Deus escolheu para fazer habitar seu Nome". Desde o século VII a.C. o templo se tomará o único local, onde se ofereciam os sacrifícios e se recolhiam os dízimos e as oferendas. Três vezes, por ano, o santuário atraía as famílias para Jerusalém: Páscoa, Pentecostes e festa das Tendas. E não se podia ir de mãos vazias. 2 - A SITUAÇÃO DA MULHER Daremos inicialmente uma pincelada geral sobre a situação social das mulheres através da pena de JOACHIM JEREMIAS (1983:473-494): 25 No Oriente, a mulher não participa da vida pública; o mesmo acontecia no judaísmo do tempo de Jesus, pelo menos entre as famílias judaicas fiéis à Lei. Quando a mulher saía de casa, trazia o rosto escondido por um manto, peça de pano dividida em duas partes, uma cobrindo--lhe a cabeça (espécie de couffieh de hoje), e a outra, cingindo a fronte e caindo até o queixo, tipo de rede com cordões e nós. Desta forma, não se podia reconhecer os traços de seu rosto. Certa vez, um sumo sacerdote de Jerusalém não reconheceu a própria mãe, quando lhe aplicou a sentença prescrita para a mulher acusada de adultério. A mulher que saía de casa sem ter a cabeça coberta, quer dizer, sem o véu que ocultava o rosto, faltava de tal modo aos bons costumes que o marido tinha o direito, até mais, tinha o dever de despedi-la sem ser obrigado a pagar a quantia que, no caso de divórcio, pertencia à esposa, em virtude do contrato matrimonial. Havia mulheres tão rigorosas que não se descobriam nem mesmo em casa, como aquela Qimhit que viu — assim contam — sete filhos se tornarem sumos sacerdotes, o que foi considerado uma recompensa de Deus pela sua austeridade: “Caiam sobre mim [isto ou aquilo] se as traves de minha casa viram os meus cabelos”. Somente no dia do casamento a esposa, se fosse virgem e não viúva, aparecia de cabeça descoberta no cortejo”. Em conformidade com tais regras, as mulheres, em público, deviam passar despercebidas. Ouvimos falar da sentença de um dos mais antigos escribas que conhecemos, Yose ben Yohanan de Jerusalém (cerca de 150 a.C.): “Não converse muito com uma mulher”; — acrescentaram depois: “ [Isso vale] no caso de tua mulher e mais ainda em relação à mulher do próximo”. As regras do decoro proibiam encontrar-se sozinho com uma mulher, olhar para uma mulher casada, e até mesmo cumprimentá-la. Seria vergonhoso para um aluno de escriba falar com uma mulher na rua. Aquela que conversasse com alguém na rua ou ficasse do lado de fora de sua casa podia ser repudiada sem receber o pagamento previsto no contrato de casamento. Preferia-se que a mulher, especialmente a moça antes de seu casamento, não saísse de casa. Eis o que diz Fílon: “Negócios, conselhos, tribunais, procissões festivas, reunião de muitos homens, em suma, toda a vida pública com suas discussões e assuntos, em tempo de paz ou de guerra, é feita para homens. As jovens devem permanecer nos cômodos afastados, fixando como limite a porta de comunicação [com os apartamentos dos homens]; e as mulheres casadas, como limite, a porta do pátio”. As mulheres judaicas de Alexandria, diz Fílon noutro lugar, são mantidas em reclusão: “Não passam além da porta do pátio. Quanto às moças, ficam confinadas nos quartos das mulheres e, por pudor, evitam o olhar dos homens, mesmo de parentes próximos”. Inúmeras provas nos demonstram que essa reclusão da mulher, desconhecida na época bíblica, era usual mesmo fora do judaísmo alexandrino. “Eu era uma jovem casta que não passava além da soleira da casa paterna”, diz a mãe dos sete mártires a seus filhos. 26 Os dados seguintes nos levam a Jerusalém e nos mostram o estrito costume observado nas casas dos notáveis. Quando Ptolomeu IV Filopator quis, em 217 a.C., penetrar no Santo dos santos, “as jovens confinadas em seus aposentos precipitaram-se para fora com suas mães; cobriram a cabeça com cinza e pó e encheram as ruas com suas lamentações”. Semelhantes manifestações de grande excitação se repetem em 176 a.C.; sabendo que Heliodoro, ministro do rei Seleuco IV, tentava apoderar-se do tesouro do Templo, “as jovens que estavam retidas em casa acorriam, umas às portas, outras, por sobre os muros; e ainda outras debruçavam-se às janelas” e as mulheres cingidas de tecido grosseiro aglomeravam-se nas ruas (2Mc 3,19). Foi um espetáculo absolutamente sem precedente , quando, em 29 a.C., sem levar em conta os bons costumes, a rainhamãe Alexandra correu às ruas de Jerusalém para invectivar, em altos brados, sua filha Mariana, condenada à morte. De modo análogo, o Talmude vê nas palavras do salmo 45,14: “Vestida com brocados a filha do rei é levada para dentro”, a descrição da vida retirada das mulheres, não saindo de seus aposentos. Como vemos, a jovem de uma família de notáveis de Jerusalém, observando estritamente a Lei tinha o hábito de ficar o mais possível em casa, antes de seu casamento; a mulher casada, de só sair com o rosto oculto pelo véu”. Entretanto, para sermos bem exatos, não devemos generalizar. Nas cortes governamentais pouco se preocupavam com o costume. Basta pensarmos na rainha Alexandra que, durante nove anos (76-67 a.C.), com prudência e energia, manteve nas mãos as rédeas do poder, não se distinguindo, em nada, das princesas dos ptolomeus ou dos selêucidas; ou na irmã de Antígono (último rei macabeu l 4037 a.C.), defendendo a fortaleza de Hircânia contra as tropas de Herodes, o Grande. Lembremo-nos também de Salomé, dançando diante dos visitantes de Herodes Antipas (Mc 6,22; Mt 14,6). Aliás, mesmo onde se conservava rigorosamente o uso, havia exceções. Duas vezes por ano, em 15 ab e no Dia das expiações, realizavam-se algumas danças nos vinhedos das cercanias de Jerusalém; as jovens se exibiam diante dos rapazes. Segundo o Talmude da Palestina, as moças das melhores famílias também participavam desses festejos. Todavia, as mulheres dos meios populares não podiam levar uma vida totalmente retirada como as da alta classe, rodeadas de domésticos, e isso, principalmente por razões econômicas. Em muitos casos, por exemplo, a mulher precisava ajudar o marido em sua profissão, talvez mesmo como comerciante. Que nos meios mais simples havia menos rigor, podemos concluir também da descrição das festas populares que se realizavam no átrio das mulheres, durante as noites da festa das Tendas: a multidão aí se via tão descontraída que foi necessário construir galerias para as mulheres, a fim de separa-las dos homens. Além do mais, relações mais livres reinavam no campo. Ali, a jovem vai à fonte, a mulher dedica-se, juntamente com o marido e filhos, ao trabalho agrícola, vende azeitonas à porta, serve à mesa. Nada indica que as mulheres observassem de modo tão estrito no campo, como na cidade, o hábito de cobrir a cabeça; pelo contrário, existia, sem dúvida, nesse sentido, entre a cidade e o campo, uma diferença semelhante àquela que vemos na população árabe da Palestina atual. Uma mulher não 27 deveria, entretanto, ficar sozinha no campo e não é comum, mesmo ali, um homem manter conversa com uma estranha. A situação da mulher em casa correspondia a essa exclusão da vida pública. Na casa paterna, o lugar das filhas vinha após o dos meninos; sua formação limitava-se ao aprendizado dos trabalhos domésticos, costura e fiação, especialmente; tomavam conta dos irmãos e irmãs menores. Para com o pai tinham, certamente, os mesmos deveres que os filhos: alimentá-lo e dar-lhe de beber, vestilo e cobri-lo, ajudá-lo a entrar e sair, quando se tornasse velho, lavar-lhe o rosto, as mãos e os pés0. Não tinham, porém, os mesmos direitos que os irmãos; do ponto de vista da sucessão, por exemplo, os filhos homens e seus descendentes” passavam à frente. O pátrio poder era grandemente exercido sobre as filhas menores até se casarem; dele dependiam totalmente. Para maior precisão, vejamos como as distinguias: 1° a menor (menina até a idade de “doze anos e um dia); 2° a moça (entre 12 anos e 12 anos e meio); e 3º, a maior (bôgeret, acima de doze anos e meio). Até a idade de doze anos e meio, a autoridade do pai é soberana. A filha nada pode possuir; a renda de seu trabalho e o que encontra, pertencem a ele. A filha com menos de 12 anos e meio também não dispõe de si mesma: o pai pode anular seus votos; representa-a em qualquer assunto legal; a aceitação ou recusa de um pedido de casamento pertence exclusivamente ao poder paterno ou ao de um representante seu. Até a idade de 12 anos e meio, uma jovem não tem direito de recusar o casamento decidido pelo genitor, mesmo que o escolhido seja disforme. Mais ainda: o pai tinha o direito de vender sua filha como escrava, conforme vimos, mas somente até aos doze anos. A filha maior (acima de 12 e meio) é autônoma; seu noivado pode ser decidido sem o consentimento paterno. Entretanto, mesmo que a filha seja maior, a quantia para o casamento, que o noivo pagava por ocasião do noivado, pertence ao pai. Esse autoritarismo dilatado do pai levava-o naturalmente a considerar as filhas, sobretudo as menores, como aptas ao trabalho e fonte de renda; “alguns casam a filha e contraem grandes dívidas; outros a casam e recebem dinheiro por ela”; diz uma frase lacônica. Os noivados realizados em idade extremamente precoce, segundo nosso modo de ver, mas aceitável no Oriente, preparavam a transferência da jovem de sob o poder do pai para a submissão ao esposo. A idade normal para o noivado era entre 12 e 12 anos e meio, mas noivados e casamentos ainda mais precoces são comprovados. Muito freqüente o noivado entre parentes e isso não só no meio de notáveis onde o conhecimento das jovens tornava-se difícil pelo fato de viverem muito à parte, excluídas do mundo. Ouvimos dizer, por exemplo, que um pai e uma mãe discutiram acerbamente porque cada um queria casar a filha com um rapaz de sua própria parentela. Quando na falta de filhos, as filhas eram herdeiras, a própria Torá ordenada que se casassem com parentes (Nm 36, 1-12). O livro de Tobias (6,10-13:7,11-12) mostra-nos um caso em que tal prescrição foi aplicada; aliás, seu uso vigora até hoje na Palestina. Os sacerdotes, particularmente, tinham o costume, como já vimos, de escolher suas esposas nas famílias sacerdotais; casamento de leigos com parentes são comprovados, por exemplo, 28 em Tb 1,9;4,12; Jd 8,1-2. O livro dos Jubileus parece recomendar o casamento com a prima; freqüentemente, com efeito, ele conta, passando por cima do relato bíblico, que os patriarcas, antes e após o dilúvio, desposaram filhas da irmã ou do irmão de seu pai. O período posterior apresentou o casamento com a sobrinha, isto é, com a filha da irmã, de preferência e até mesmo como obra pia; diversas vezes, pois, ouvimos dizer que um rapaz contrai matrimônio com a filha de sua irmã. Não raro, também, o casamento com a filha do irmão. Já vimos acima que tais casamentos se realizavam nas famílias sacerdotais de alto nível. A violenta polêmica do Doc. Damasco contra o casamento com a sobrinha, quer se trate da filha do irmão, quer da filha da irmã, confirma a freqüência dessas uniões. Finalmente, os dados fornecidos por Josefo a respeito dos casamentos na família real de Herodes, mostram o quanto eram usuais as alianças entre parentes; a maioria das uniões mencionadas por Josefo são com parentes, isto é, com a sobrinha (filha do irmão ou da irmã) a prima e a prima em segundo grau. O noivado que precedia o pedido em casamento e a execução do seu contrato, expressavam “a aquisição” (qinyan) da noiva pelo noivo, e, assim, a conclusão válida do casamento; a noiva passa a se chamar “esposa”, pode ficar viúva, é repudiada por um libelo de divórcio e castigada de morte em caso de adultério. É característico da situação legal da noiva que “a aquisição” da mulher e a do escravo sejam postas em paralelo: “Adquire-se a mulher pelo dinheiro contrato e relações sexuais”; assim “adquire-se” também o escravo pagão por dinheiro, contrato e tomada de posse (hazaqah, consistindo para o escravo em fazer, para o novo patrão, um serviço inerente aos deveres do escravo). Assim se formula a pergunta à qual se responde negativamente: “Há, pois, por acaso, alguma diferença entre a aquisição de uma mulher e a de um escravo?” Todavia, era com o casamento— geralmente realizado um ano após o noivado — que a moça passava definitivamente do poder do pai ao do marido. O jovem casal ia morar, quase sempre, com a família do marido, o que representava para a recém-casada, na maioria das vezes ainda muito jovem, o árduo e penoso dever de ingressar numa comunidade familiar que lhe era estranha e que não escondia, em relação a ela, seus sentimentos hostis. Juridicamente, a esposa se distinguia de uma escrava: em lº lugar, por poder conservar o direito de possuir (mas não de dispor) bens que trouxera consigo como bens parafernais; em 2° lugar, pela garantia que lhe dava o contrato de casamento, ketúbbah. fixava a quantia que se devia pagar à mulher, em caso de separação ou morte do marido. “Qual a diferença entre uma esposa e uma concubina? R. Meir [cerca de 150 d.C.] respondia: A esposa dispõe de um contrato de casamento, a concubina não o possui”. Na vida conjugal, quer dizer, depois de efetuado o casamento, a mulher tinha o direito de ser mantida pelo marido e podia exigir a aplicação de tal direito diante do tribunal. Cabia ao marido provê-la de alimento, vestuário, habitação e cumprir o dever conjugal; era também obrigado a resgatá-la em caso de eventual cativeiro, providenciar-lhe medicamentos necessários quando doente, e 29 sepultura por ocasião do falecimento: até mesmo o mais pobre tinha de providenciar pelo menos dois tocadores de flauta e uma carpideira. Ainda mais: onde era costume haver discurso fúnebre no enterro das mulheres, ele teria de providenciar. Os deveres da esposa consistiam, especialmente, em atender às necessidades do lar. Devia moer, cozinhar, lavar, amamentar os filhos, fazer a cama do marido e, para compensar sua manutenção, fiar e tecer a lã; outras acrescentavam aos deveres de esposa, preparar a bacia para o marido, lavar-lhe o rosto, as mãos e os pés. A situação de serva em que se encontrava a mulher diante do marido já se exprime suficientemente nessas prescrições, mas os direitos do esposo iam mais longe ainda. Ele podia requisitar o que ela encontrasse, assim como a renda de seu trabalho manual, e tinha o direito de lhe anular os votos. A mulher era obrigada a obedecer ao marido como a seu senhor — ele se chamava rab — e essa obediência revestia-se de dever religioso. Tal dever de obediência ia tão longe que o marido podia exigir da mulher a profissão de votos, mas os votos que colocassem a mulher numa situação indigna, conferiamlhe o direito de exigir a separação perante o tribunal. As relações entre filhos e pais eram também determinadas pela obediência que a mulher devia a seu marido; os filhos tinham de colocar o respeito ao pai acima do respeito à mãe, pois essa, por seu lado, devia prestar respeito semelhante em relação ao pai de seus filhos. No caso de perigo de morte era necessário primeiro salvar a mãe. Dois fatos são particularmente dependência da mulher ao esposo. característicos do grau de a) A poligamia era permitida. A esposa devia, portanto tolerar a presença de concubinas a seu lado. Sem dúvida alguma, temos de admitir que, por questões pecuniárias, a posse de muitas mulheres não era freqüente. Em todo caso, ouvimos falar de maridos que admitiam uma segunda mulher quando não se entendia bem com a primeira e não podia repudiá-la devido à alta quantia mencionada no contrato do casamento. Uma constatação serve de estatística para determinar a freqüência da poligamia: em 1927, na cidade de Artas, perto de Belém, dentre 112 homens casados, doze tinham diversas mulheres, portanto, em números redondos, 10%: onze tinham duas, e um tinha três. Evidentemente, é preciso tomar esses números como pontos de referência e não transpô-los, levianamente, à época de Jesus. b) O direito de divórcio achava-se exclusivamente do lado do homem; os raros casos em que a mulher tinha o direito de requerer a anulação jurídica do casamento já foram mencionados (p. 410). Na época de Jesus (Mt 19,3) os shamaítas discutiam com os hilelitas sobre a exegese de Dt 24,1 que menciona, como justo motivo para o homem repudiar a esposa, o caso em que ele encontre nela “qualquer coisa de vergonhoso, 'erwat dabar. Contrariamente à exegese dos shamaítas, anuindo ao sentido do texto, os hilelitas explicavam essa passagem da seguinte maneira; 1° uma impudicícia ('erwat) da mulher e 2°, qualquer coisa(dabar) que desagradasse ao marido davam-lhe o direito de afastar de casa a mulher. Como vemos, o ponto de vista hilelita reduzia a uma total fantasia o direito 30 unilateral de divórcio que o marido detinha. De Fílon e de Josefo, que só conhecem o critério hilelita e o defendem,deduzimos que esse prevaleceu desde a primeira metade do século I de nossa era. A reunião dos esposos separados podia acontecer. Decorrente do divórcio, uma impureza pública podia ser atribuída ao marido, assim como à mulher e às filhas. De outro lado, em caso de divórcio, o marido era obrigado a entregar à mulher a fiança prescrita no contrato de casamento. Na prática, esses dois motivosmuitas vezes criavam obstáculo ao repúdio precipitado da esposa. Quanto à mulher, podia eventualmente fazer justiça a si mesma e voltar à casa paterna no caso, por exemplo, de injúrias recebidas. A despeito de tudo isso, o ponto de vista hilelita revelava grande degradação da mulher. Entretanto, se, a partir das disposições legais, tirarmos conclusões relativas à prática quanto ao número de divórcios, por exemplo, convém guardarmos extrema reserva. H. Granqvist constatou que na cidade de Artas, perto de Belém, de 264 casamentos realizados em cem anos, de 1830, aproximadamente, a 1927, somente 11, isto é 4% terminaram em separação. Tais dados garantem contra uma superestima do número de divórcios. Se, como convém supor, em caso de divórcio os filhos ficam com o pai, essa solução constituía a provação mais intensa para a esposa que se divorciava. Podia a mulher ser considerada propriedade do marido a ponto de ser vendida como escrava para acobertar um furto cometido por ele? Conforme vimos supra (p. 415), é muito duvidoso. Dentro de seus limites, a situação da mulher variava, certamente, de acordo com os casos particulares. Dois fatores representam certa importância: de um lado, a mulher encontrava grande apoio junto de seus parentes consangüíneos, sobretudo seus irmãos; tal fato era capital para a sua posição na vida conjugal. Recomenda-se como louvável o casamento, com uma sobrinha (ver supra, p. 481); relaciona-se ao fato de a mulher encontrar aí maior proteção por causa de seu parentesco com o marido. De outro lado, o ter filhos, especialmente filhos homens, assumia grande importância para a mulher. A falta de filhos era tida como desonra, até mesmo como castigo divino. Sendo mãe, a mulher via-se valorizada; dera ao marido o mais precioso presente. Como viúva, a mulher permanecia eventualmente ligada a seu marido, isto é, no caso em que ele morresse sem deixar filho (Dt 25,5-10; cf. Mc 12,18-27). Nessa circunstância, a viúva deveria esperar, sem poder sugerir de forma alguma, que o ou os irmãos do falecido marido contraíssem com ela o casamento levirático ou lhe manifestassem a recusa, sem a qual ela não podia tornar a se casar. As condições descritas refletem nas prescrições da legislação religiosa da época. Do ponto de vista religioso também, especialmente por sua posição em face da Torá, a mulher não era igual ao homem. Devia sujeitar-se a todas as proibições da Torá e a todo o rigor da legislação civil e penal, pena de morte incluída. Quanto aos mandamentos da Torá, em compensação, eis o que 31 vigorava: “Os homens são obrigados a seguir todos os mandamentos ligados a um tempo determinado; as mulheres ficam isentas dessa obrigação". Por motivo dessa fórmula que não é inteiramente exata, cita-se uma série de mandamentos aos quais a mulher não se obriga: ir em peregrinação a Jerusalém para as festas da Páscoa, de Pentecostes e das Tendas, abrigar-se nas tendas e agitar o lûlab por ocasião desta festa, tocar o shofar no dia do Ano Novo, ler a megilhah (o livro de Ester) na festa de Purim, recitar diariamente Obrigado(a), s ema127 etc. Dispensavam-na também de estudar a Torá; R. Eliezer (cerca de 190 d.C.), enérgico representante da antiga tradição, lançou a seguinte sentença; “Aquele que ensina a Lei à sua filha, ensina-lhe a devassidão [ela fará mau uso do que aprendeu]. A idéia de que se devia ensinar também a Tora às moças e que somente era proibido transmitir-lhes a tradição oral não representa, de modo algum, o direito antigo. Em todo caso, as escolas lá estavam unicamente para os meninos e vedadas às meninas. Das duas repartições da sinagoga mencionadas na lei de Augusto, sabbateion e andrón, a primeira reservada para as cerimônias litúrgicas, era igualmente acessível às mulheres; em contrapartida, o outro lado, destinado às instruções dos escribas, só se abria para os homens e meninos, conforme o próprio nome indica. Entretanto, nas famílias de classe alta, dava-se às jovens uma formação profana, ensinando--lhes, por exemplo, o grego, “pois era um adorno para elas”. Os direitos religiosos da mulher eram tão limitados quanto seus deveres religiosos. Segundo Josefo, no Templo só lhes era permitido penetrar no átrio dos gentios e no das mulheres; durante os dias de purificação mensal e, além desses, no período de 40 dias após o nascimento de um filho (cf. 2,22), de 80 dias se fosse menina, não podiam penetrar nem mesmo no átrio dos gentios. Não era hábito as mulheres imporem as mãos sobre as cabeças das vítimas e sacudirem as porções do sacrifício; quando ocasionalmente se menciona ter sido permitido às mulheres impor a mão, logo se acrescenta: “Não que seja de uso para as mulheres, mas para acalmá-las”. Segundo o Dt 31,12, as mulheres podiam, como os homens e as crianças, penetrar na parte da sinagoga utilizada para o culto mas estacas e grades separavam o local que iriam ocupar. Mais tarde, chegou-se mesmo a construir para elas uma tribuna com entrada particular. No serviço litúrgico, a mulher comparecia somente para escutar. Não se nega que, em época muito antiga, tenham-se chamado mulheres para ler a Torá: já na época tanaíta, porém, esse costume tinha caído, e não eram mais solicitadas para tal mister. O ensino também lhes era vedado. Em casa, à mesa, não pronunciavam a bênção e não tinham o direito de prestar testemunho, pois, consideravam-nas mentirosas, conforme interpretação de Gn 18,15. Aceitava-se seu testemunho somente em alguns casos excepcionais precisos, e, nos mesmos casos, aceitavase o testemunho de um escravo pagão; por exemplo, para o novo casamento de uma viúva contentavam-se com o testemunho de uma mulher acerca da morte do primeiro marido. A situação da mulher na legislação religiosa de modo geral é expressa, e da melhor maneira, pela fórmula constantemente repetida: “Mulheres, escravos [pagãos] e filhos [menores]”; como o 32 escravo não-judeu e o filho menor, a mulher conta com um homem superior a ela, como senhor; tal fato limita igualmente a sua liberdade no serviço divino. Por esse motivo, do ponto de vista religioso, acha-se inferior ao homem. A tudo o que foi dito acrescentemos o fato de não faltarem sobre a mulher opiniões desdenhosas; é impressionante o quanto essas superam os julgamentos favoráveis que, no entanto, não lhes faltam. É característica a alegria ao nascer um menino, enquanto o nascimento de uma menina é acompanhado de indiferença, até mesmo de tristeza. Temos a impressão de que o judaísmo do tempo de Jesus também alimentava pouca consideração para com a mulher; situação comum no Oriente, onde ela é valorizada antes de tudo pela sua fecundidade e vê-se afastada tanto quanto possível do mundo exterior, submissa ao poder do pai ou do marido, e onde, do ponto de vista religioso, não é igual ao homem. Somente a partir desta perspectiva da época é que podemos apreciar devidamente a posição de Jesus em face da mulher (Lc 8,1-3); Mc 15,41 e par. (cf. Mt 20,20) falam das mulheres que acompanhavam Jesus; trata-se de um fato sem precedente na história da época. O Batista pregou às mulheres (Mt 21,32) e batizou-as; Jesus altera conscientemente os costumes, deixando que algumas o sigam. Por assim proceder é que exige dos discípulos a atitude de pureza que supera qualquer desejo: “Quem olhar para uma mulher [casada] com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração” (Mt 5,28). Jesus não se contenta de elevar a mulher acima do nível em que a tradição a mantinha; enquanto Salvador, enviado a todos (Lc 7,36-50), coloca-a em pé de igualdade com o homem (Mt 21,3132). Além do mais, a posição de Jesus a respeito do casamento representa novidade ímpar. Não se contenta com insistir a favor da monogamia; proíbe, categoricamente o divórcio a seus discípulos (Mc 10,9) e não hesita em criticar a Torá por permitir o divórcio por causa da dureza do coração humano (Mc 10,5). O casamento é para ele tão indissolúvel que considera adultério novo casamento dos divorciados, homem ou mulher, pois o primeiro casamento subsiste. Pelo valor que atribui ao matrimônio e por essa maneira de santificá-lo que não tem precedentes, Jesus leva a sério a palavra da Escritura que declara ser o casamento uma disposição criadora de Deus. ÉMILE MORIN (1981:56-59) fala sobre a condição das mulheres: Flávio Josefo escreveu, em seu livro Contra Apião: "A mulher, diz a Lei, é inferior ao homem em todas as coisas. Ela deve obedecer não para se humilhar mas para ser dirigida, pois foi ao homem que Deus deu o poder" (2,24). "Mulheres, escravos (pagãos), crianças" são quase sempre associados nas citações. Recomendava-se aos homens a seguinte prece: "Louvado seja Deus que não me criou mulher". 33 Em princípio, a mulher não participava da vida pública. Pelo menos na cidade e, sobretudo, no meio de pessoas importantes, as mulheres só podiam aparecer cobertas com um véu. Um homem não devia olhar para uma mulher casada, nem cumprimentá-la. Um homem, sobretudo um aluno dos escribas, não devia falar em público com uma mulher. Nos meios populares, na roça, estas normas quase não eram respeitadas. Contudo, mesmo na roça, um homem não falava a uma mulher estrangeira. Sob o aspecto religioso, a mulher não era igual ao homem. Estava sujeita a todas as proibições da Lei, a todo rigor da legislação civil e penal e, mesmo, à pena de morte. Mas, enquanto os homens deviam observar os mandamentos a serem cumpridos, em tempos determinados (por ex.: peregrinar a Jerusalém em tal ou tal festa), as mulheres eram dispensadas desta obrigação. Elas não eram obrigadas a aprender a Lei: "Aquele que ensina a Lei à sua filha, ensina-lhe a devassidão". Alguns mestres julgavam que era preferível queimar a Torá (Lei) Que ensiná-la às mulheres. As escolas eram reservadas para os jovens. As jovens de classe social rica aprendiam o grego. No templo, havia um adro reservado para as mulheres judias. E elas eram excluídas "nos dias de sua purificação" e depois do nascimento de um filho: quarenta dias se filho homem, oitenta se era uma mulher. Na sinagoga, na parte reservada ao serviço litúrgico, as mulheres ocupavam um espaço separado, por uma barreira, do lugar dos homens. Em nenhum caso, uma mulher tinha acesso à parte da sinagoga reservada para os escribas. Nos atos litúrgicos do templo, não impunham as mãos sobre as vítimas. À mesa, não pronunciavam a bênção. Seu testemunho não era válido (Gn 18.15), salvo em pequenos casos, em que se levava em conta até o testemunho do escravo pagão. Aliás, mulheres e escravos pagãos são comparáveis no seguinte: eles e elas eram dispensados do cumprimento de mandamentos ligados a um momento determinado. [...] Condição da mulher no casamento A mulher tornava-se posse do marido, mas não sua escrava. É certo que se podem estabelecer aproximações entre a aquisição de uma mulher e a de um escravo. Podia-se, com efeito, vender uma filha menor, mas não sua mulher. O ato de repúdio deixava livre a mulher. A esposa entrava na casa e no clã do marido. Ela devia ser mantida pelo esposo e ser resgatada, em caso de ser levada em cativeiro. Tinha direito a uma sepultura honrada. Normalmente, não herdava do marido. Dedicava-se às ocupações domésticas, preparando a alimentação do marido. Devia lavar-lhe as mãos, o rosto e os pés. Um senhor não podia exigir de um escravo judeu que lhe lavasse os pés, mas esperava isso de seu escravo pagão. . . e de sua mulher. O marido podia exigir tudo: a renda de seu trabalho, a anulação de seus votos e a obrigação de fazê-los. É preciso lembrar que a mulher era protegida por sua própria família, por seus irmãos. Ficava ao abrigo de muitos inconvenientes, quando casada com um parente. Forçava o auto-respeito quando gerava muitos filhos homens. 34 A escolha da esposa A idade mínima legal para o casamento dos rapazes era 13 anos. Na realidade só se casavam por volta dos 18 anos. Para as moças, a idade mínima era 12 anos. Mas, citam-se casos de meninas casadas aos 6 e aos 10 anos. Os pais combinavam tudo. O pai era dono de sua filha até os 12 anos e meio. Depois desta idade, em princípio, devia levar em conta seu consentimento. Casamentos entre primo-irmãos eram freqüentes. Preferia-se fazer a escolha entre a parentela. Os noivados eram verdadeiros compromissos e seus efeitos jurídicos equivaliam aos do casamento. Este consistia na entrada da noiva na casa do esposo. Na época greco-romana, faziam-se casamentos com contrato. Determinavam-se, então, quais eram os bens extra-dotes (o que o pai da noiva devia oferecer, cuja propriedade era da mulher, mas de que o marido tinha o usufruto), o dote (o que o pai da noiva devia pagar e que se tornava propriedade do marido cujo equivalente era assegurado à esposa, em caso de separação), a fiança de casamento (uma quantia que retornava à mulher, em caso de separação ou de morte do marido). Estas disposições legais parecem proteger a esposa. Seriam, de fato, universais? Em todo caso, o jovem devia "adquirir" sua mulher pagando uma quantia ao sogro. Oferecia também jóias à jovem e um presente ao sogro, na época do noivado. Não é fácil saber, com precisão, em que medida estas práticas eram aplicadas, no tempo de Jesus. ÉMILE MORIN (1981:59) analisa o instituto do repúdio: O direito de repudiar era, quase exclusivamente, do marido. Dt 24,1: "Se qualquer coisa de vergonhoso for imputada à mulher". Shammai interpretava isso assim: "por mau procedimento, adultério". Hillel, cujo ponto de vista devia prevalecer, no tempo de Jesus, comentava: por algo vergonhoso como o adultério, mas também "por qualquer coisa". Logo, não importava muito o motivo: esterilidade, um prato mal cozido, o encontro de uma mulher mais agradável. Uma declaração, como esta: "Você não é mais minha mulher" era suficiente. O libelo de divórcio, dado à mulher, lhe permitia o recasamento. Os filhos ficavam com o pai. O direito do marido tinha alguns limites: não podia devolver a mulher falsamente acusada de não ser virgem, no momento do casamento, nem a violada por ele, antes das núpcias. As obrigações financeiras do contrato deviam ser cumpridas. A esposa não podia repudiar. No entanto, algumas mulheres da família herodiana, bastante helenizada, abandonaram seus maridos. Esse direito era concedido às esposas cujos maridos exercessem uma profissão particularmente repugnante (ex. o cortume). Direito de requerer, em tribunal, o divórcio. GRACE I. EMMERSON (1995:353-354) marcante do machismo no Antigo Testamento: demonstra a presença 35 A irrupção do feminismo em anos recentes e os interesses correntes na hermenêutica feminista (cf. Tolbert: 1983, 113-126) estimularam debate novo, às vezes apaixonado, da visão bíblica da mulher. Como um aspecto desta, o status e o papel das mulheres no Israel antigo assumiram nova relevância à luz de temas contemporâneos. Estamos longe da atitude exemplificada na obra de Kõhier (1953) sobre o homem hebreu que se contentou com apenas duas páginas dedicadas à mulher hebréia! O Antigo Testamento, nascido da sociedade patriarcal do Israel antigo, foi às vezes acusado de contribuir para a subordinação das mulheres através dos séculos. Devemos perguntar se esta idéia negativa é inerente ao Antigo Testamento, ou se é conseqüência de sua interpretação errônea. Devemos também perguntar se existem atitudes conflitantes dentro do Antigo Testamento e sinais de que no seio da cultura patriarcal havia um "princípio de despatriarcalização" (Trible: 1973, 48) em ação, desafiando as estruturas da sociedade. Ao abordar o material, enfrentamos problemas em duas frentes: em primeiro lugar, referentes à própria natureza do material, e, em segundo lugar, à dificuldade de interpretar textos antigos como estes. O limitado material disponível foi transmitido principalmente, se não inteiramente, por varões. Tem inevitavelmente perspectiva masculina. Dará visão equilibrada da sociedade israelita como era na realidade? Teria sido liderança feminina, por exemplo, tão rara como implica o Antigo Testamento? Será devida essa impressão, em parte pelo menos, ao silêncio dos documentos? Se perspectiva é significativa, também o é o gênero literário. Textos de leis e narrativas não podem ser tratados da mesma maneira como prova. McKeating (1979, 65) adverte que "não podemos simplesmente fazer nossa avaliação dos valores éticos de uma sociedade a partir das leis que ela produziu (ou antes, a partir das leis que casualmente nos foram preservadas)". Precisamos saber em que medida a lei era aplicada. A literatura narrativa, observa ele, apresenta exemplos de comportamento real, e a aceitabilidade ou não deste comportamento manifesta-se pela reação de personalidades na narrativa e pelos comentários do narrador. Mas é preciso prudência, pois histórias costumam ser narradas acerca do extraordinário mais que do típico, e é perigoso generalizar com base em narrativas individuais. É a este ponto que surge avaliação conflitante. Incerteza quanto à data de algum material também forma parte do problema. Sakenfeld adverte que precisamos evitar "generalizações sobre um milhar de anos de cultura que se baseia em fragmentos de origem indeterminada" (Sakenfeld: 1982, 14). Nem todas as dificuldades encontradas na tentativa de obter uma avaliação equilibrada do tema são, contudo, inerentes ao material. A teoria hermenêutica fez-nos cada vez mais conscientes da influência na interpretação de nossos, próprios preconceitos (cf. Tolbert: 1983,114). Sem dúvida, existem os que, por uma razão ou outra, superenfatizaram a subordinação das mulheres no Antigo. Testamento. Outros tentando restabelecer o equilíbrio e reabilitar o 36 Antigo Testamento, minimizaram a inequívoca evidência desigualdade entre os sexos (como Otwell: 1977, 151 e 193s). de 2.1 - MULHERES EM PAPÉIS DE LIDERANÇA GRACE I. EMMERSON (1995:354-355) informa: Sem dúvida, houve mulheres de distinção que influenciaram o curso da história de Israel por seus papéis na comunidade. Poucas delas aparecem no Antigo Testamento, mas, quando aparecem, o fato de que seu sexo feminino manifestamente se considera sem ênfase, sugere que sua contribuição não era rara, até em papéis de liderança. A referência em Ne 3,8 a mulheres ocupadas em reconstruir a muralha de Jerusalém pode nos parecer notável. O fato de passar sem comentários sugere que isso não era incomum. Numa crise ainda mais grave da história de Israel encontramos mulheres contribuindo significativamente para a mudança de rumos. A libertação de Israel do Egito começou com a recusa de umas poucas mulheres a cooperar com a opressão. Trible comenta extravagantemente que "se o faraó tivesse percebido o poder destas mulheres, teria invertido o seu decreto (Ex 1,16.22), fazendo matar mulheres antes que varões" (Trible: 1973, 34). Não somente isso, mas ao continuar o relato do êxodo, "Moisés, assim como também a divindade, assumem atributos femininos, provendo o abastecimento do povo em sua viagem do Egito a Canaã (ver especialmente Nm 11,11-14 para metáforas explicitamente femininas) (Exum: 1983, 82). Reavaliação de nossas suposições tradicionais sobre papéis de mulheres na história bíblica está correia", ela comenta. Isso, porém, nos levaria muito além do propósito do presente ensaio. Todavia, é por essa razão que podemos começar, não com mulheres da esfera doméstica, mas com o papel de mulheres na comunidade em relação com a monarquia, a profecia e a sabedoria, ainda que a documentação seja escassa. É, porém, insensato supor que apenas as poucas mulheres cujas histórias se preservaram no Antigo Testamento, alcançaram posições de liderança no Israel antigo. É improvável que isso seja verdade tanto para mulheres como para varões. 2.2 - MULHERES E MONARQUIA GRACE I. EMMERSON (1995:355-357) diz: Para mulheres governar considera-se sintoma de sociedade desorganizada (Is 3,12). Talvez seja significativo que, em contraste com as muitas ocorrências da palavra "rei", não se use em nenhuma parte o título de rainha de qualquer membro feminino da casa real tanto de Israel como de Judá, sequer de Atalia, monarca reinante (2Rs 11,1-16; 2Cr22.10-23.15). Além da referência poética no plural às muitas esposas de Salomão (Ct 6,8s), o título refere-se somente a mulheres de famílias régias de cortes estrangeiras, tais como a rainha de Sabá (l Rs 10,1; 2Cr9,l), e Vasti e Ester (Est l, 11 s; 2,18). 37 Em três casos, porém, a rainha mãe é chamada de gebiràh. Destas, Maaca (IRs 15,13; 2Cr 15,16) e Jezabel (2Rs 10,13) pertenciam à corte de Israel, e Neusta, mãe de Joaquim (Jr 13,18; 29,2), a Judá. Que este é título significando posição oficial está claro pelo fato de que Asa podia afastar sua mãe da condição de "ser rainha-mãe (gebirah), porque ela tinha uma imagem abominável de Aserá" (l Rs 15,13; 2Cr 15,16). Ao investigar o sentido preciso do título, temos que enfrentar a questão se estas raras ocorrências refletem a realidade da situação, ou se sua omissão alhures é meramente casual. Na tentativa de descobrir a existência de instituições especificamente femininas que foram mais tarde esquecidas ou supressas pela longa transmissão da literatura hebraica dentro de uma sociedade patriarcal, Brenner (1985, 9) começa da premissa de que o título era tão raro como indica o Antigo Testamento. Ela tenta isolar como a chave para o seu uso um fator comum aos três casos citados. Ela conclui que o título de gebirah era concedido quando ocorria uma interrupção na normal transferência de poder de um monarca ao seu herdeiro e a rainha-mãe agia como regente (1985). Sua argumentação baseia-se na idéia de que Asa e Joaquim, que chegaram ambos ao trono depois da morte do irmão mais velho, eram menores na época, requerendo assim regência. No caso de Jezabel, a morte repentina de seu filho Jorão criou uma ruptura na sucessão (2Rs 9,24). Brenner nota, porém, que o título de gebirah não é dado a Atalia, embora ela tenha assumido o poder depois da morte de seu filho Azias em circunstâncias iguais às de Jezabel (2Rs 11,1; 2Cr 22,10). Para Atalia, essa foi uma medida temporária, e Brenner argumenta que neste caso o título foi supresso por causa da hostolidade a uma mulher que se estabelecera como monarca. O argumento do silêncio é um tanto perigoso, pois se supormos que o título foi omitido no caso de Atalia, não podemos estar seguros que também não tenha sido este o caso alhures. Seu significado deverse-ia buscar então com base em provas mais amplas. Deixando de lado o título, quando perguntamos que papel e influência tinha a mãe do rei reinante, a documentação é escassa. Betsabéia, tratada pessoalmente com grande cortesia pelo seu filho Salomão, carece de autoridade, como o atesta a ríspida recusa do seu pedido pelo rei (l Rs 2,19-25). A posição de Maaca como gebirah é de dependente da boa vontade de seu filho (l Rs 15,13). Atalia, sem dúvida, mulher de grande influência pessoal, é descrita como conselheira de Azias, embora, uma vez que isso se qualifica por "fazer maldade" (leharshia") (2Cr 22,3), pode-se não referir a posição oficial. Uma consorte real destaca-se, porém, não apenas como poder por detrás do trono, mas também como mulher de autoridade pública e de considerável riqueza pessoal (l Rs 18,19). Jezabel, princesa estrangeira, parece que foi a única a alcançar posição tão poderosa. Brenner a descreve como "rainha verdadeira, assistente e sócia de governo do seu marido Acaz" (1985,20). Foi ela, e não Acaz, que perseguiu os profetas de Iahweh (l Rs 18,4), e cuja ameaça levou Elias a fugir durante o tempo de sua vida (IRs 19,2s). No episódio de Nabot, ela é apresentada escrevendo cartas no nome de Acaz e 38 selando-as com o selo dele (v.8). Quando Nabot está morto, os mensageiros voltam não para Acaz, mas para Jezabel (v. 14). Por estes motivos, Brenner conjetura que aí, por oposição a mulher governante, o Antigo Testamento distorceu a documentação. Jezabel, argumenta ela, agiu por própria autoridade, usando o selo que era dela, "o símbolo da autoridade institucional permanente que Acaz lhe delegara" (1985,27). Ela nota, com as devidas reservas, o descobrimento de um selo inscrito com yzbl pertencente mais ou menos a este período. A recusa do Antigo Testamento de reconhecer Jezabel como cogovernante com seu marido reflete-se também, afirma Brenner, em 2Rs 9,34, onde Jeú justifica o funeral dela por referência, não a seu status na casa real de Israel, mas a sua origem de princesa estrangeira. Foi em virtude só de personalidade que Jezabel alcançou esta posição única de poder? A hipótese de Brenner é que Jezabel era sacerdotisa de Baal, e com essa base se devem explicar seu fanatismo militante e seu status especial na corte do marido. 2.3 - MULHERES E PROFECIA GRACE I. EMMERSON (1995:357-359) esclarece: Das muitas figuras de profeta no Antigo Testamento apenas quatro são mulheres, pertencendo essas, de mais a mais, a períodos em larga medida diversos desde o êxodo ao século V a.C. Cada uma delas porta nome: Miriam, Débora, Hulda e a falsa profetisa Noadias. À parte esta última, que apenas se menciona de passagem (Ne 6,14), cada uma delas é identificada por referência a parente varão, não obstante sua óbvia importância na comunidade. O envolvimento de Miriam com música e dança levou Noth (1962[1959], 121) a catalogá-la como extática (Ex 15,20). A diferença entre seu cântico (15,21) e o "Cântico do mar" de Moisés (15,1-18) é notável. Seria isso talvez uma amostra da relegação instintiva da mulher a papel secundário?A relação precisa dos dois cânticos permanece problema, embora a atribuição dos cânticos a fontes diferentes tenha sido em larga medida abandonada. Debatendo a moldura redacional do Cântico do mar, Childs (1974, 248) comenta que "a tendência a atribuir um poema antigo a Moisés teria recebido precedência sobre a autoria de Míriam". A disputa de Míriam e Aarão com Moisés (Nm 12,1-15) resulta na reafirmação de Moisés como o único portador da palavra do Senhor (vv. 6ss), mas é óbvio que este não é conflito masculino versus feminino (cf. Burns: 1985, 48-79). A ira de Deus voltou-se contra Aarão e também contra Míriam, e Aarão reconhece a culpa comum (v. 11), embora apenas Míriam sofra punição. Todavia não existe nenhuma alusão em qualquer lugar a motivação antifeminista que julgue Míriam por ter ultrapassado os confins do papel tradicional de mulher. Explicação mais provável é que Míriam teria iniciado a rebelião, visto que seu nome ocorre pela primeira vez no v. 1. O episódio evidencia tanto compaixão (vv. 12s) como respeito para com Míriam (v. 15). Ela se 39 insere em termos iguais com Moisés e Aarão como agente de Deus na libertação de Israel (Mq 6,4). Débora é profetisa e juíza na comunidade (Jz 4,4), e provavelmente autora do cântico que se preservou em Jz 5,2-31, embora não se possa provar. Não há nenhuma alusão no texto que sua autoridade era suspeita por causa do sexo. Tomando a iniciativa numa crise, ela exorta Barac (v. 6). Sua resposta é imediata, sendo sua única reserva a necessidade do apoio pessoal de Débora na campanha militar pretendida. O envolvimento de Débora, assim como o de Míriam, não está em relação com papéis tradicionais femininos, mas refere-se à sobrevivência das tribos de Israel (5,7). O nome de Hulda irrompe repentinamente na cena (2 Rs 22,14) e da mesma forma desaparece rapidamente. Somente um breve oráculo dela se preservou ao contrário dos ditos de Jeremias e Sofonias seus contemporâneos, embora sua fama fosse já conhecida e elevado o seu status. Porque afinal teriam os emissários de Josias procurado por ela para pedir sua ajuda em época de tanta intranqüilidade? O envolvimento dela com assuntos da maior importância para o rei e o povo não é diferente na essência da atividade profética de Amós ou Isaías, e a coragem dela de dar uma mensagem desagradável é igual à deles. A sua é predição genuína, como se vê no v. 20. Porque não raro se pergunta a Hulda, e não a Jeremias. O Antigo Testamento não exibe nenhum preconceito contra mulheres exercendo papéis proféticos. Elas são consideradas substitutas na falta de profetas varões. A profetisa é mais respeitada do que o profeta. C. J. Vos (1968,184) sugere que o laço, que já existia com o templo mediante o cargo que nele possuía o marido de Hulda (2 Rs 22,14), pode ter sido a razão." Concluímos que o Antigo Testamento não fornece nenhum indício de que o sexo feminino estivesse em desvantagem no exercício de dons proféticos, embora ele possa estar em conexão com a medida em que foram preservados oráculos proféticos feitos por mulheres. É razoável supor que as poucas mencionadas pelo nome sejam representativas de outras. Certamente seu sexo feminino parece não ter causado estranheza. A expectativa futura de Jl 2,28s abrange mulheres e varões. A única nota condenatória aparece em Ez 13,1723 contra um grupo de mulheres descritas como profetisas, se bem que a natureza de suas atividades sugira que estivessem metidas em magia. Está claro pela maneira em que se dirige a elas que são mulheres israelitas, mas suas artes mágicas, reminiscências de práticas babilônicas, são exercidas no exílio, e caem, fora do escopo deste ensaio. Mas é evidente, pela necessidade de proibir estas atividades impondo a pena de morte para mulheres e varões (Lv 20,27), que isso não era desconhecido em Israel. A narrativa de l Sm 28,1-25 mostra um mago em ação. O rei convoca especificamente uma mulher prática na arte, após dispensar varões representativos da atividade (v. 3). Ela permanece anônima por todo o episódio, mas claramente é mulher de reputação, selecionada para o rei, e visitada por este em sua casa. Deve-se notar o cuidado pastoral dela pelo 40 cliente real em sua conseqüente angústia (vv. 21ss). A narrativa é única no Antigo Testamento. 2.4 - MULHERES E SABEDORIA GRACE I. EMMERSON (1995:359-360) fala: O Antigo Testamento conhece outras mulheres influentes, além das dotadas de dons proféticos, que estiveram envolvidas em negócios de importância para o Estado. Como as mulheres de Técua (2Sm 14,2) e de Abel (2Sm 20,16) designadas simplesmente de "mulher sábia", 'ishshah hakamah. "Os sábios" no Antigo Testamento, diversamente dos profetas, são antes um grupo nebuloso, raramente identificados pelo nome. Sendo assim, estas duas mulheres, diversamente das mulheres profetisas, permanecem anônimas. O epíteto "sábio" não é aqui meramente descritivo, como em Ex 55,25; Jr 9,17, mas significa papel reconhecido na comunidade na época dos juizes e do início da monarquia, embora não exista nenhuma prova de sua existência depois. Assim na tese de Camp (1981,16) baseada em elementos implícitos em 2Sm 14 e 20. Ela descreve este papel como "um conjunto regularizado de funções mais do que posição oficial". As duas mulheres são identificadas apenas pelo adjetivo "sábia" e pelo nome de sua respectiva aldeia. Isto era em si suficiente, argumenta Camp, para evocar "traços de figura culturalmente estereotipada" nas mentes dos ouvintes. Ambas falam com autoridade. A mulher de Técua, assumindo o papel de viúva , naturalmente apresenta sua história humildemente ao rei, mas em sua pergunta retórica acusadora (14,13) vemos uma pessoa "acostumada a fazer e pronunciar tais julgamentos" (1981, 17). Embora "Joab ponha as palavras em sua boca" (v. 3), ela não é absolutamente figura passiva e Camp compara com Ex 4,14s onde lahweh instrui a Moisés para por suas palavras na boca de Aarão precisamente porque este já se mostrara eloqüente. Quanto à mulher de Abel, somente um papel definido na comunidade pode dar conta do fato de que ela tem autoridade suficiente não só para intimar Joab, mas que trata com respeito o seu conselho, embora não se tivessem encontrado antes (20,17). De modo semelhante, quando ela "foi a todo o povo com sua sabedoria" (v. 22), suas palavras foram levadas a efeito imediatamente. O uso de linguagem proverbial pelas mulheres (2Sm 14,7; 20,18s) Camp também julga-o significativo, comparando com uso semelhante de provérbios pelos conselheiros reais, Aquitofel e Cusai (2Sm 17,3.10.12). A maneira com que a mulher sábia de Técua aproxima-se do rei tem certas semelhanças com a aproximação de Acab da parte de profeta anônimo (l Rs 20,35-43) e da aproximação de Davi por parte de Natã (2Sm 12,lss). Existe, porém, diferença significativa no fato de que os profetas estão conscientes de receber comunicação direta de lahweh, ao passo que a mulher recebe incumbência de Joab. Hoftijzer (1970, 444) comenta que a mulher parece proceder mais humildemente e circunspectamente do que os profetas, pois como "pessoa comum" ela tem que "pedir desculpas por seu 41 comportamento para não cair em desgraça" com o rei, ao passo que o profeta tem status que não precisa se desculpar. Ele observa que, diversamente dos profetas mencionados, ela se prostra diante do rei (v. 4), assegura-se que o rei confirme sua decisão por juramento (v. 11), e, antes de fazer ver a Davi as conseqüências de sua decisão, pede sua permissão para continuar (v. 12). O primeiro destes atos, pelo menos, pode-se, porém, atribuir a seu papel assumido de viúva. A mulher de Abel, ao invés, age mais ao modo de líder militar. Camp (1981,22) faz comparação com o Rab-shakeh do exército assírio em seu confronto com os homens de Ezequias (2Rs 18,28ss) e no confronto de Abner com Joab (2Sm 2,24-28). Camp sugere que este papel da mulher sábia baseava-se no papel da mãe de instruir os filhos. Por extensão, a mulher sábia da aldeia interessava-se não só por educação, mas também por decisões políticas. Isto Camp considera amostra da atitude igualitária do primitivo javismo num sentido funcional, se bem que nem sempre explícito. Ela conclui seu estudo sugerindo que, ainda que "imagens femininas, seja na forma de pessoas 'históricas' significativas, seja na de figuras simbólicas, sejam relativamente raras no Antigo Testamento", a ênfase tanto aqui como nos provérbios em imaginário feminino associado a sabedoria "revela tendência latente na reflexão teológica de Israel, subdesenvolvida por causa do sacerdócio dominado pelos varões e do ambiente geral patriarcal, mas não insignificante para a compreensão de Israel das relações entre pessoas na comunidade e entre a comunidade e lahweh" (1981, 29). 2.5 - MULHERES E A COMUNIDADE DA ALIANÇA GRACE I. EMMERSON (1995:360-362) expõe: Constitui lugar comum observar que se exigia somente de membros masculinos da comunidade a assistência às três maiores festas anuais (Ex 23,17; Dt 16,16). Mas diferença de obrigação não implica necessariamente desigualdade, e neste caso provavelmente surgiu de considerações práticas levando em conta o nascimento e o cuidado dos filhos. Certamente o Deuteronômio deixa claro que mulheres estavam presentes nas festas, participando da alegria (Dt 12,12) e dos sacrifícios (Dt 12,18). Mencionam-se especificamente a festa das semanas e das tendas (Dt 16, l Os. 13s). Isso pode bem representar avanço da lei mais antiga rumo à igualdade, traço que parece característico do Deuteronômio. O livro apresenta mulheres como participantes da cerimônia da aliança (Dt 29,10-13), e conseqüentemente sob inteira obrigação de observar a lei de lahweh (Dt 31,12). Da mesma forma que os homens, podiam ser consideradas culpadas de transgredir a aliança, cuja pena era a morte (Dt 13,6-11; 17,2-5). A documentação sugere que foi a lei deuteronômica que pela primeira vez as inseriu explicitamente na aliança. A idéia de que as mulheres eram inteiramente responsáveis 42 diante de lahweh continuou no período pós-exílico (2Cr 15,12s; Ne 8,2). Havia discriminação contra mulheres no seio da comunidade da aliança? Parece que não. Embora em geral o chefe de família representasse a família na oferta de sacrifício, quando se estipulava uma oferta individual, esperava-se da mulher que pessoalmente cumprisse a exigência (Lv 12,6; l Sm 1,24 (cf. Vos: 1968, 130). A consagração excepcional implicada no voto de nazireato estava aberta à mulher (Nm 6,2-21). Com efeito, esta passagem com sua única referência feminina (v. 2) recorda oportunamente que formas gramaticalmente masculinas podem visar a sentido inclusivo, e a convenção lingüística não deve ser erroneamente entendida. Podemos comparar também Dt 29,18ss, onde se especificam mulheres no v. 18, mas depois se usam formas masculinas nos vv. 19s. O único papel do culto de que certamente mulheres eram excluídas era o sacerdócio, da mesma forma como o eram a maioria dos homens. As razões subjacentes à exclusão de mulheres provavelmente são complexas, contudo, "uma vez que 'completitude física' e pureza ritual eram condições essenciais para o culto divino (Lv 21,lss; Ez 44,15ss), a impureza periódica da mulher como menstruante e mãe deve ter desempenhado papel não pequeno em sua exclusão do ofício sacerdotal "(Hayter: 1987,70; cf. Vos: 1968,194s). Permitia-se, porém, aos membros femininos de famílias sacerdotais comer das "coisas santas" postas de lado para os sacerdotes (Lv 22,13). Está aberto ao debate se houve mulheres que tiveram lugar oficial no culto. Ex 38,8 fala de "mulheres que serviam à porta da tenda de reunião". Embora a natureza de seu serviço não seja clara, Childs comenta que o verbo sb' usado aí denota serviço organizado como o dos levitas profissionais (Childs: 1974, 636; contra De Vaux: 1961, 383s). Oficialmente ou não, mulheres participavam no culto, dançando, cantando e tocando instrumentos musicais (Ex 15,20; )z 21,21; SI 68,26). O envolvimento regular de mulheres no culto está implícito nos estritos regulamentos referentes a pureza ritual. Um aspecto interessante deste é a lei relativa à impureza depois do nascimento da criança (Lv 12). Devia ser oferecida oferta idêntica, quer se tratasse do nascimento de varão, quer de mulher (v. 6), mas o período de impureza depois do nascimento de filha era duas vezes mais que o período depois do nascimento de filho. A exigência legal é muito clara, sua motivação, porém, não o é. Assim Noth (1962[1959]) comenta que "a inferioridade cultual do sexo feminino expressa-se dando ao nascimento da mulher duplo efeito de "impureza", manifesta-se também no duplo período exigido este caso antes que a mãe se torne de novo pura". Ao invés, com base em que Israel acreditava que Deus estava "intimamente presente em todas as fases do nascimento desde a concepção até o parto", Otwell (1977,176s) sugere que essa impureza depois do nascimento de uma criança era devida ao envolvimento da mulher com a "obra da divindade", uma idéia de santidade como na expressão 'livros que poluem as mãos" usada das escrituras canônicas. É, argumenta Otwell, por essa razão que o período de ser "desenergizado" 43 precisaria ser duas vezes mais longo para uma criança que podia tornar-se capaz por sua vez de conceber filhos do que para filho homem. Apóia sua argumentação notando que quando, na preparação para a teofania do Sinai (Ex 19,15), e também como condição para comer do pão sagrado (l Sm 21,4), os homens devem se abster de mulheres, temos aí ilustrações da lei de Lv 15,18 relativa à impureza masculina, e não indicações da impureza intrínseca das mulheres. Embora sejam poucos os exemplos, há vários casos no Antigo Testamento de mulheres se encontrando com Deus. O anjo do Senhor dirige-se a Agar (Gn 21,17) e à mulher de Manué (Jz 15,3), em ambos os casos referindo-se a filhos. Quando Manué exige outra teofania, é de novo a sua mulher que o anjo aparece (13,9). Mulheres se aproximam independentemente dos profetas para interrogar o Senhor (l Rs 14,1; 2Rs4,22ss),e por própria iniciativa o buscam na prece (Gn 25,22s; 30,6), de novo por razões familiares. A prece de Ana tem também esta motivação (l Sm l, l0-17), e sua resposta desperta um salmo de louvor (l Sm 2, l-l0), um lembrete de que não se deve deixar de ver uma perspectiva feminina nos salmos em geral. 2.6 - A POSIÇÃO DAS MULHERES DENTRO DA FAMÍLIA 2.6.1 - SEU STATUS LEGAL GRACE I. EMMERSON (1995:362-364) diz: Quanto ao status legal, uma mulher estava claramente em desvantagem. Por toda a vida era considerada sob a autoridade primeiro do pai e depois do marido. Como cabeça da família ele, e não os tribunais, era o responsável por todos os assuntos da lei familiar (Phillips: 1973,351). Phillips cita dois casos que evidenciam a falta de status legal independente da mulher. Em casos de sedução de um moça não comprometida, Ex 22,16s manda que o homem que a seduziu se case com ela, pagando o dote de praxe, e, se o pai decidir de outra forma, igual soma lhe deverá ser paga em compensação, não sofrendo ele perda financeira em qualquer dos casos. A lei constitui parte da secção sobre a propriedade, e Phillips (Phillips: 1973, 350) não hesita em descrever a moça como propriedade pessoal do pai. De outro lado, Childs comenta que, embora isso pareça ser seqüência tradicional, "o conteúdo da lei hebraica exibe notável transformação relativamente a outros códigos do Oriente Próximo antigo", pois "a sedução de uma moça não comprometida não mais se considerava simplesmente como prejuízo de propriedade" (Childs: 1974, 476). O sedutor tem que se responsabilizar plenamente por seu ato e casar-se com a moça. A compensação monetária não era opção aberta ao sedutor, mas ao pai da moça. O que dizer da própria moça? Em teoria, poder-se-ia 44 dizer que o v. 17a dá oportunidade para que se consultem os desejos da moça, mas isso não era salvaguardado na lei e dependeria da qualidade do relacionamento individual de pai e filha. Como segundo exemplo, Phillips aduz Ex 21,22, que estabelece que, se um homem ferir uma mulher grávida com aborto conseqüente, deverá indenizar o marido. Viúvas e órfãos, sem proteção familiar normal, consideravam-se sob a proteção especial de lahweh (Dt 10,18), embora, como comenta Sakenfeld, a viúva não fosse deixada ao largo, falando sociologicamente, porque a religião sustenta que Deus a valoriza e a defende (Sakenfeld: 1979, 423). A comunidade, porém, se fiel a suas obrigações, asseguraria o bem-estar dessas pessoas (Ex 22,22; Dt 24,17ss). Havia também a possibilidade, se não o direito absoluto, de dirigir apelo ao rei por justiça, não só pelas viúvas (2Sm 14,lss; 2Rs 8,3-6), mas por outras pessoas que não tinham proteção familiar, tais como as prostitutas de IRs 3,16ss. A idéia da responsabilidade legal do homem por sua família subjaz à regulamentação de que votos feitos por mulher deviam ser ratificados pelo pai ou marido conforme o caso (Nm 30,3-16). Que isso não se devesse a dúvidas sobre o senso de responsabilidade inerente à mulher manifesta o fato de que se facultava às viúva e às divorciadas assumir compromissos legalmente vinculantes (v. 9). Otwel estima que "reflete mais a primazia da família no Israel antigo do que status inferior da mulher perante o Senhor" (Otwell: 1977,170). Vistoque l Sm 1,11 apresenta Ana fazendo voto de considerável conseqüência para a família independentemente do marido, pode ser que a lei de Nm 30 seja restrição posterior. Sem dúvida, as leis sobre heranças punha a mulher em desvantagem. A esposa não herdava a propriedade do marido, nem as filhas a do pai, a não ser que não houvesse herdeiro varão (Nm 27,6-11). O caso de Noemi parece um tanto excepcional (Rt 4,3), embora se deva comparar com Jz 17,2ss; Jó 42,15 (cf. Neufeld: 1944,240ss). Phillips (1973, 356) sugere que pode ter sido o abandono da prática do casamento de levirato que levou a essa inovação por parte do legislador sacerdotal, segundo a qual filhos podiam herdar propriedades e assim continuar o nome do pai. Pelas razões acima, De Vaux compara desfavoravelmente a posição social e jurídica da esposa israelita com a posição de mulheres no Egito e na Babilônia. No Egito, a esposa era não raro cabeça da família; e na Babilônia "ela podia adquirir propriedade, fazer ação legal, ser parte em contratos, tendo até certa participação na herança do marido" (De Vaux: 1961, 40). A dependência legal das mulheres, apesar das desigualdades restritivas que inevitavelmente impunha, não se deve, porém, confundir com opressão pessoal. O Antigo Testamento não deprecia a iniciativa e habilidade das mulheres. Abigail é consultada por um servo em dilema (l Sm 25,17), e, ao responder, age habilidosamente (v. 18ss). A implicação do v. 25 é que, se ela tivesse sabido da chegada dos homens de Davi, teria estado em seu poder tratar com 45 eles sem consultar o marido. A mulher eficiente de Pr 31,10-31 não é nenhuma criatura oprimida, mas autoconfiante e expansiva, sendo não só indivíduo, mas ideal a ser seguido. M. B. Crook descreve a passagem como "instrução para uma moça casadoira equivalente à dada aos moços como parte de sua preparação" (Crook: 1954,139). Esta autora compara-a com a preparação para o casamento que uma moça poderia esperar receber de sua mãe, descrevendo este poema como "memorando de escola que responde às necessidades de mulheres jovens que em breve assumirão posições de prosperidade e importância em suas comunidades". O relacionamento matrimonial Até que ponto é apropriado descrever a esposa no Israel antigo como posse do marido? Dois fatores em particular parecem ter contribuído para essa impressão: o uso da palavra ba'al para dizer "marido", e a prática de dar mohar, comumente traduzido por "preço da noiva". Não é raro se frisar que, quando aplicado a casa (Ex 22,8) ou a animal doméstico (Ex 21,28), ba'al significa "proprietário". Mas é a palavra no seu contexto que determina o sentido, e a transferência de idéias grosseiras de propriedade de um contexto a outro é inadmissível. Também a palavra 'ish usa-se freqüentemente para dizer "marido". Ainda mais significativo, considera-se o imaginário do casamento como adequado para descrever tanto o relacionamento de amor de lahweh com Israel (Os l -3; Jr 2,2) como a alegria de Israel quando redimido pelo Senhor (Is 62,4s). Temos aí o ideal israelita do casamento, de que na prática muitos se desviavam. A idéia grosseira de propriedade revela-se inteiramente inadequada aí, como também em Jr 31,32. Sugerir que uma esposa era um pouco melhor do que um escravo certamente é incorreto. Escravos, e em caso de extrema necessidade até filha (Ex 21,7), podiam ser vendidos. Podemos notar a distinção feita por Phillips (1981, 7) entre a posição de esposa "como 'extensão' do marido (Gn 2,24) e a da filha. Filhos também podiam ser vendidos (Ne 5,5), não esposa, sequer esposa escrava (Ex 21,811) ou capturada na batalha (Dt 21,14). As instruções da literatura sapiencial referentes à obediência são dirigidas a filhos, e não a esposas". Com efeito, na lei referente ao filho rebelde, a mãe da 2.6.2 - O RELACIONAMENTO MATRIMONIAL GRACE I. EMMERSON (1995:364-368) diz: Até que ponto é apropriado descrever a esposa no Israel antigo como posse do marido? Dois fatores em particular parecem ter contribuído para essa impressão: o uso da palavra ba'al para dizer "marido", e a prática de dar mohar, comumente traduzido por "preço da noiva". Não é raro se frisar que, quando aplicado a casa (Ex 22,8) ou a animal doméstico (Ex 21,28), ba'al significa "proprietário". Mas é a palavra no seu contexto que determina o sentido, e a transferência de idéias grosseiras de propriedade de um 46 contexto a outro é inadmissível. Também a palavra 'ish usa-se freqüentemente para dizer "marido". Ainda mais significativo, considera-se o imaginário do casamento como adequado para descrever tanto o relacionamento de amor de lahweh com Israel (Os l -3; Jr 2,2) como a alegria de Israel quando redimido pelo Senhor (Is 62,4s). Temos aí o ideal israelita do casamento, de que na prática muitos se desviavam. A idéia grosseira de propriedade revela-se inteiramente inadequada aí, como também em Jr 31,32. Sugerir que uma esposa era um pouco melhor do que um escravo certamente é incorreto. Escravos, e em caso de extrema necessidade até filha (Ex 21,7), podiam ser vendidos. Podemos notar a distinção feita por Phillips (1981, 7) entre a posição de esposa "como 'extensão' do marido (Gn 2,24) e a da filha. Filhos também podiam ser vendidos (Ne 5,5), não esposa, sequer esposa escrava (Ex 21,811) ou capturada na batalha (Dt 21,14). As instruções da literatura sapiencial referentes à obediência são dirigidas a filhos, e não a esposas". Com efeito, na lei referente ao filho rebelde, a mãe da mesma forma que o pai devem levá-lo ao tribunal (Dt 21,18-21). Quanto à prática de dar mohar, a tradução de "presente de casamento" é expressão mais adequada do que "preço da noiva" (De Vaux: 1961,26s; Neufeld: 1944,95ss). O termo aparece só três vezes no Antigo Testamento: em Gn 34,12 ligado a mattan, "presente"; em Ex 22,17, com o verbo cognato no v. 16; e eml Sm 18,25 onde Saul faz uma exigência bizarra em vez do presente de casamento. Os únicos casos em que a linguagem de comprar e vender é usada em conexão com o casamento são a exigência de que o sedutor deva pagar em dinheiro (shaqal kesep) equivalente ao presente de casamento se não lhe for permitido casar-se com a moça (Ex 22,17), as palavras raivosas de Lia e Raquel que acusam o pai de tê-las vendido e "gastado nosso dinheiro" (Gn 31,15), e a afirmação de Booz de que comprou (qaniti) Rute para esposa (Rt 4,10), embora Rute claramente não fosse parte forçada e passiva nos arranjos, mas tivesse em larga medida tomado a iniciativa. O que de fato foi comprado foi a herança sobre que Rute tinha pretensão como potencial herdeira. Neste caso, a herança e o casamento estão interligados. Os 3,2 é assunto diferente, tratandose de mulher que foi comprada da prostituição ou da escravidão. Ela também não cai na categoria de bem móvel; ela deve ser amada "como lahweh ama". O presente de casamento era dado pelo noivo ao pai da noiva, provavelmente como compensação pelo trabalho que de outra forma a filha continuaria a prestar para a casa dos pais (Meyers: 1978, 98). As mulheres "vigiavam o rebanho, trabalhavam no campo, cozinhavam e teciam" (De Vaux 1961, 39). A soma paga era determinada pelo status da família da noiva (l Sm 18,23ss), embora a implicação da oferta em aberto de Siquém (Gn 34,12) é que era excepcional indo ao encontro de circunstâncias extraordinárias. Dt 22,29 estipula cinqüenta sidos de prata, mas, tomando-se isso como penalidade para o rapto de uma virgem, a soma usual pode ter sido menor (De Vaux: ibid., 26; mas cf. Phillips: 1981, 12). R. De Vaux estima que, embora o presente de casamento seja dado ao pai da noiva, pertencia provavelmente à moça de fato, daí a qualificação dele por Lia e Raquel como "nosso dinheiro" (Gn 31,15). O pai da 47 noiva tinha o direito a seu rendimento, mas o capital voltava para a moça quando o pai morria, ou mais cedo se o marido morria, como provisão contra a miséria. Ele encontra apoio para isso no costume assírio e babilônio, e nos contratos matrimoniais de Elefantina. Dote dado pelo pai da noiva não era costume em Israel, sendo a única exceção o dom do faraó (shilluhim) por ocasião do casamento de sua filha com Salomão (IRs 9,16). Meyers (1978, 98; mas cf. Mace: 1953,175) estima que isso é indício da relativa falta de mulheres, pelo que os pais não tinham necessidade de atrair maridos para as filhas. Certamente o casamento era a norma, e para a mulher ter que ficar sem casar considerava-se desgraça (Is 4,1; Pr 30,23). Embora a prática tenha variado nos diversos períodos da história de Israel, a monogamia era de longe mais comum do que a poligamia. Além das narrativas patriarcais e dos episódios de Gedeão e Sansão, há pouca referência a outra coisa que a monogamia. Com a exceção dos haréns reais, só Elcana, pai de Samuel, nos livros de Samuel e dos Reis é marido de mais de uma esposa. A lei de Dt 21,15ss, porém, considera a bigamia como legal, e a implicação era que não era de todo incomum. Os problemas que a bigamia podia dar numa família são manifestos no Antigo Testamento. A causa de ciúme da parte de uma esposa sem filhos (Gn 30, l) e de provocação pela rival (l Sm l ,6) era amiúde a questão de filhos. Tal era o prestígio da maternidade, principalmente quando nasciam filhos varões, que até uma esposa escrava podia começar a usar dela para se impor à sua patroa (Gn 16,4s). Mas se Gn 30,15s indica a humilhante rivalidade pelos favores do marido que podia ocorrer, também mostra mulheres tomando a iniciativa em relações sexuais. A singular bênção com que a família de Raquel se despede dela (Gn 24,60), e a celebração dos filhos no SI 127 e SI 128, iluminam sua importância como garantia para o futuro. Era, até certo ponto, por razões práticas que filhos eram mais valorizados do que filhas, pois a filha depois do casamento se juntaria à família do marido, enfraquecendo assim relativamente a sua própria. Parentes mulheres eram, contudo, respeitados, e se permitia a sacerdote tomar-se impuro pelo sepultamento de parentes mulheres da mesma forma que de parentes homens (Lv 21,2). É interpretação errônea do casamento no Israel antigo falar que a esposa só era valorizada pêlos filhos que gerava. A mulher que dava à luz filhos homens não era necessariamente a favorita (Gn29.32.34; l Sm l,4), e os sentimentos de Elcana (l Sm 1,8) não precisam ter sido únicos. É interessante notar que aqui, como em Gn 30, l, é a esposa mais do que o marido que se amofina pela falta de filhos homens. O valor posto em filhos homens não era absoluto. Para a viúva, porém, privada do apoio de parentes homens, um neto parecia ser nada menos que "um restaurador da vida" (le meshib nepesh, Rt 4,15). Esta passagem é instrutiva pelo que revela de relações íntimas e gratificantes que podiam existir entre mulheres. Que liberdade tinha a mulher de se casar com o homem de sua escolha? Phillips comenta que, uma vez que assuntos de família estavam somente sob o controle do chefe de família, "um homem tinha direito irrestrito de dispor das mulheres sob sua proteção 48 como quisesse, quer como pai arranjando casamento para a filha, quer como marido divorciando-se da esposa. Nem a Filha nem a esposa tinha direito último de voz no assunto, nem podiam apelar aos tribunais" (Phillips: 1981, 351; ele nota, porém, que o episódio da filha de Jefté não é tanto ilustração da autoridade do pai como do poder de um juramento). A medida plena de autoridade de um pai vê-se na oferta de Caleb de dar sua filha como recompensa por sucessos militares Js 15,16; Jz 1,12), e na tentativa de Tamar de evitar o rapto da parte de seu irmão Amnon (2Sm 13,13). Rebec não foi consultada sobre seu casamento, mas somente sobre o tempo de sua partida da casa (Gn 24,57s). Nem foi Isaac, embora a narrativa mostre que se desenvolveu um relacionamento de amor. Rute (Rt 3,7ss) e Abigail (l Sm 15,40ss), ambas viúvas, fizeram sua escolha própria. Às vezes a mãe da mesma forma que o pai tomava sobre si a responsabilidade de arranjar casamento. No caso de Rebeca, sua mãe agiu junto com seu irmão Labão, uma vez que seu pai tinha morrido. É interessante notar que o único ponto em que Labão age independentemente de sua mãe é no cuidado pelos camelos dos servos (Gn 24,29-31 ). A mãe de Sansão também se envolveu com o marido nos planos do casamento de seu filho (Jz 14,2ss). R. De Vaux estima que "os jovens tinham ampla oportunidade de se enamorarem e expressar seus sentimentos, pois eram muito livres" (De Vaux: 1961, 30). O amor de Mical por Davi era conhecido e foi levado em conta, mas primeiramente, pelo que parece, porque cabia nos esquemas de Saul (l Sm 18,20s). Com certeza, para algumas mulheres parece ter havido menos liberdade ou dignidade. Particularmente isso é verdade das mulheres do harém real. O trato de Davi com suas concubinas (2Sm 20,3) ilustra a total falta de controle que algumas mulheres infelizes tinham sobre suas próprias vidas. É nessas situações que parece dever ser consideradas como pouco melhores do que bens móveis. O harém de Salomão pode ter sido para ele sinal de riqueza e status; para as mulheres interessadas era aviltante. Nos primeiros tempos da monarquia parece que o harém do rei passava para o sucessor (2Sm 12,8). Descreve-se Absalão aproximando-se publicamente das concubinas do seu pai por razões políticas, manifestamente afirmando desta forma seu direito ao trono. Em contraste marcante está o respeito que se tributava à mãe na família. A instrução de uma mãe devia ser observada por seu filho (Pr l ,8s; 6,20), e num caso se considerou suficientemente importante passá-la adiante (Pr 31, l ). De ambos os pais se fala com igual afeição (2Sm 19,37). Com efeito, a obrigação de tratar mãe e pai com igual respeito enfatiza-se freqüentemente, desde o decálogo até os muitos casos em Provérbios (Pr 15,20; 19,26; 23,22.25; 28.24). Uma expressão particularmente dramática merece ser citada: O olho que desdenha o pai e despreza a obediência à mãe, que os corvos o arranquem e as águias o devorem. (Pr 30,17) 2.6.3 - DIVÓRCIO 49 A. VAN DER BORN (2004) fala sobre o divórcio: (I) Nos tempos antigos o marido israelita tinha, ao que parece, o direito ilimitado de mandar embora sua mulher (2Sam 3, 14-16); a lei mosaica (Dt 24, 1; cf. Eclo 7, 26; 25, 26; 42, 9 restringiu tal direito ao caso em que ele tivesse descoberto em sua mulher "algo vergonhoso" (o que era interpretado de diversas maneiras). Ele perdia esse direito, se acusava sua mulher falsamente de ter tido relações antes do matrimonio (Dt 22,13-19), ou se a tinha violado antes dos esponsais (Dt 22,28s). Quando o homem queria separarse de sua mulher, bastava entregar-lhe uma "letra de divórcio" (Dt 24,1; Is 50,1; Jer 3,8; Mt 5,31; 19,7), pronunciando, talvez, uma fórmula de repúdio (Os 2,1). A mulher divorciada não podia tornarse esposa de um (sumo) sacerdote (Lev 21,7-14; Ez 44,22), nem voltar para o seu ex-marido (cf. Dt 24,1-4; Jer 3,1). A própria mulher nunca podia nem pedir nem efetuar um d. (Jz 19,2-10). — Contudo, o d. era considerado, no AT, como coisa condenável; diversas determinações da Lei procuravam limitá-lo e dificultá-lo, p. ex., a obrigação que incumbia ao futuro esposo de pagar um determinado preço ao pai da noiva; no caso de um segundo matrimônio ele teria de pagar novamente um dote. Os profetas combateram o d. (Mal 2,14-16); essa condenação, sem dúvida, não se limitava ao caso de alguém repudiar sua mulher israelita para se casar com uma estrangeira (2,11). GRACE I. EMMERSON (1995:368-370) informa: Em nenhum lugar a desigualdade dos sexos e as limitações da liberdade da mulher aparece mais vigorosamente do que no assunto do divórcio. Não havia nenhuma circunstância em que a esposa podia divorciar do seu marido, ao passo que o direito do marido de divorciar de sua esposa em qualquer tempo e por qualquer motivo era absoluto. Até que ponto essa liberdade era exercida é impossível dizer, mas a forte oposição ao divórcio expressa em Ml 2,14-16 e o louvor do casamento em Pr 5,15-19 e Eclo 9,9 deve-se contrapor a ela. A lei de Dt 24, l considerou-se às vezes como tentativa de restringir o direito absoluto do marido de divorciar-se da esposa, tomando o adultério o único motivo para essa ação. Phillips (1981, 355) contradiz a este modo de ver pelo fato de que a lei deuteronômica manda em Dt 22,22 que a execução e não o divórcio seja a punição pelo adultério. Ela argumenta que a expressão 'erwat dabar não tem conotação moral (cf. Dt 23,14), mas aplica-se a tudo o que o marido encontra de objeção a sua esposa, coisas diversas do adultério. Devia ser traduzida por "coisa desgradável" antes que "indecente" (cf. Neufeld: 1946, 176, estima que isso é avanço na posição das mulheres, visto que o divórcio não pode ocorrer gratuitamente.) Na legislação deuteronômica, porém, o direito de o marido divorciar é retirado em duas circunstâncias, a saber, como penalidade por falsa acusação sobre a virgindade da noiva no tempo do casamento (22,19), e no casamento compulsório conseqüente ao rapto de moça não comprometida (22,28). Na lei mais antiga, a pena para o adultério de mulher era o divórcio e não a execução (Os 2,4; Jr 3,8), pois o homem que participou era 50 considerado o mais responsável. Phillips (1973, 353) observa que Abimelec e não Sara, Davi mais do que Betsabéia, são tipos responsáveis. A legislação deuteronômica, ao invés, como se observou acima, impunha a pena de morte para ambos os participantes, cuja maquinação razoavelmente se presume (Dt 22,22-27). Apesar deste movimento rumo à igualdade, as mulheres continuaram a ser consideradas sob a autoridade de parente varão, como é evidente no fato de que em casos de rapto ainda se pagava indenização ao pai da moça (Dt 22,29). O significativo contraste no procedimento legal entre casos de divórcio e de adultério é exposto por Phillips. O divórcio, uma vez que era improvável fosse causa de desordem na comunidade, considerava-se como assunto privado e integrava a lei familiar (1973, 350). O marido tinha o direito de agir independentemente da comunidade e a cerimônia para terminar um casamento era realizada privadamente no lar (Os 2,4s) e não no tribunal, como se supõe , amiúde. Era efetuado por pronunciamento pelo marido da fórmula do divórcio. A esposa divorciada normalmente retomava para a casa do pai. Quando adultério era o motivo do divórcio, um rito de desnudação pode ter precedido à expulsão do lar, como sinal não só de que as responsabilidades de sua manutenção pelo marido eram subtraídas, mas também e principalmente como sinal de sua imprudência (Os 2,12; Jr 13,26s; Ez 16,37s; 23,10-29) (cf. Neufeld: 1944,166; Gordon: 1936, 277s). Tinha que ser dada prova de que o casamento terminara por documento de divórcio (seper Keritut) para que a mulher pudesse ), casar-se de novo sem incorrer em adultério (Dt 24,1.3; Jr 3,8; Is 50,1). Ao invés do procedimento do divórcio, o adultério considerava-se crime e não assunto particular. Sua execução era assumida pelo Estado e não pelo marido injuriado. Phillips argumenta que este último não estava autorizado a tomar o assunto nas próprias mãos, buscando vingança, acordo ou perdão. Quanto a isso, Israel diferia dos outros países do Oriente Próximo antigo, onde o adultério era considerado somente como injúria ao marido, que podia, pois, determinar a punição dos ofensores ou, se quisesse, perdoar-lhes (Phillips: 1973, 353s; 1981, 3s). Sobre este ponto McKeating (1979, 58) discorda. Observando que não existe nenhum caso no Antigo Testamento (além de Susana na versão grega de Daniel) em que a lei bíblica do adultério é levada a efeito, faz a pergunta: "Seriam, as leis, tomadas em si mesmas, indicação suficiente da forma de se lidar com o divórcio?" Ele argumenta que nos Provérbios o prejuízo para a reputação e ira do marido ofendido figuram notoriamente como sanções contra o adultério (Pr 6,27-35). Dificilmente seria assim se a pena de morte fosse a conseqüência normal. As referências à morte nas condenações do adultério (Pr 7,22s; 9,18; Eclo 9,9) parecem metafóricas. Ele conclui que "não raramente se lidava com o adultério fora do quadro da lei". A pergunta até que ponto os procedimentos em casos de adultério possam reconstruir-se com segurança de linguagem profética. Certamente na referência a mutilação em Ez 23,25 a metáfora do adultério recuou atrás da realidade da conquista. 51 Uma vez que o adultério não está incluído nas antigas maldições de Dt 27 ou mencionado no livro da Aliança. McKeating estima que foram os legisladores do Deuteronômio e do Código de santidade que tentaram, aliás sem sucesso, fazer da pena de morte sanção para o adultério (1979, 64), tirando assim o assunto da esfera da lei familiar onde o marido tinha poder de decisão. JAYME DE ALTAVILA (2000:31) comenta sobre o divórcio: A legislação mosaica adotou o divórcio, porém admitiu penalidades para o marido que falseasse a verdade em relação à virgindade da desposada. O alcorão é menos rigoroso e os seus incisos muito menos revestidos de moral. O Deuteronômio trata do assunto em dois capítulos, como podemos ver: - “Quando um homem tomar uma mulher e, entrando a ela a aborrecer,” (22, v. 13) - “E achei imputar coisas escandalosas e contra ela divulgar má fama, dizendo: Tomei esta mulher e me cheguei a ela, porém não a achei virgem;" (22, v. 13) - "Então o pai da moça e sua mãe tomarão os sinais da virgindade e levá-los-ão para fora aos anciãos da cidade à porta," (22, v. 15) - "E o pai da moça dirá aos anciãos: Eu dei minha filha por mulher a este homem, porém ele a aborreceu," (22, v. 16) - "E eis que lhe imputou coisas escandalosas, dizendo: Não achei virgem tua filha - Porém eis aqui os sinais da virgindade de minha filha. E estenderão o lençol diante dos anciãos da cidade". (22, v. 17) - “Então os anciãos da mesma cidade tomarão daquele homem e o castigarão”. (22, v. 18) - “E o condenarão em cem ciclos de prata e os darão ao pai da moça; porquanto divulgou má fama sobre uma virgem de Israel. E lhe será por mulher, em todos os seus dias não a poderá despedir”. (22, v. 19) - “Porém se este negócio for verdade, que a virgindade não achou na moça”, (22, v. 20) - "Então tirarão a moça à porta da casa de seu pai e os homens da cidade a apedrejarão com pedras, até que morra;" (22,v.21) - "Quando um homem tomar uma mulher e se casar com ela, então será que, se não achar graça em seus olhos, por nela achar coisa feia, ele lhe fará escrito de repúdio e lho dará na sua mão e a despedirá de sua casa." (24, v. l) 52 2.6.4 - PROSTITUIÇÃO GRACE I. EMMERSON (1995:370-371) aduz: Enquanto o adultério era crime, a prostituição era tolerada na sociedade israelita. As advertências contra sedução de mulheres nos Provérbios dizem respeito ao adultério antes que à prostituição (Pr 6,26; 7,29). Emerge o quadro de prostitutas angariando fregueses em praças públicas (Gn 38,14; Ez 16,25), reconhecíveis por suas roupas (Gn 38,15; Pr 7,10) e negociando os termos com os clientes (Gn38,16; Ez 16,31). Em certas circunstâncias expressa-se certo embaraço ligado com a prática (Gn 38,23) e forte desaprovação nas leis de Lv 19,29 e 21,9. Ao discutir sobre a sociedade israelita antiga, faz-se em geral a distinção entre prostituição comum ou secular e prostituição cultual, a que se estima corresponder respectivamente, falando em sentido lato, os termos zônah e qedeshah com o correspondente masculino qadesh. A prostituição secular, contanto que a mulher não fosse casada, não era ofensa, mas "uma instituição social reconhecida com poucas inibições morais ligadas a ela, apesar de ser vista com sentimentos mesclados". A prostituição cultual do seu lado, envolvendo pessoas dos dois sexos, era proibida absolutamente (Dt 23,18), embora não incomumente praticada, julgando-se da polêmica profética contra ela. De fato, a distinção no uso de zonah e qedeshah não é de maneira alguma absoluta. Ambos os termos usam-se de Tamar (Gn 38,15.21s), e parecem sinônimos em Os 4,14e Dt 23,18s. Essa distinção entre prostituição secular e religiosa por muito tempo se tomou como axiomática. Deve-se, porém, rever a documentação. Barstad (1984, 22ss) questionou a existência da prostituição cultual como fenômeno difuso no Oriente Próximo antigo, uma vez que referências explícitas só ocorrem em textos tardios. Sua existência em Israel deve, portanto, ser reexaminada. Por um levantamento da documentação textual, Barstad argumenta que qdshh/qdsh é designação para membros femininos e masculinos do sacerdócio não-javista ou sincrético. As referências a qedeshah e zonah em Dt 23,18s e Os 4,14 não se pretendem como sinônimos, mas representam respectivamente duas proibições e acusações (1984,29). Ele observa que Dt 23,18 não fala da ocupação do qdshh e qdsh em geral, mas proíbe os israelitas de deter tais posições. O ponto mais fraco no argumento de Barstad, como ele mesmo reconhece, é o episódio de Tamar com sua inexplicada mudança de zonah para qedeshah. Todavia é significativo que o episódio não tem contexto cultual que sugerisse referência a prostituição cultual (contra, G. von Rad: 1961, 359s). 2.6.5 - MULHERES E ESCRAVATURA GRACE I. EMMERSON (1995:353-354) explicita: 53 Há no Antigo Testamento duas categorias de escravas a que largamente se referem os termos shiphah e 'amah, se bem que nem sempre se mantenha a distinção no uso. O primeiro aplica-se, falando de modo geral, à virgem escrava cuja tarefa era servir à patroa da casa (Gn 29,24.29; Is 24,2; SI 123,2; Pr 30,23), o último à escrava pertencente ao seu patrão, às vezes como concubina (Jz 9,18; 19,19; Ez 23,12). Assim em Gn 16 Agar é descrita como serva de Sara (shiphah) que Sara deu a Abraão para procriar filhos. Em Gn 21, como sua esposa escrava, ela é descrita como 'amah (vv. 10.12.13). No primeiro caso. Sara tinha autoridade de expulsar Agar (Gn 16,6), e no segundo, a responsabilidade é de Abraão (21,10). Dos dois, a siphah parece que devia assumir tarefas mais domésticas (l Sm 25,41). Em geral, escravas e escravos eram tratados igualmente na lei (Ex 21,20.26s), com uma exceção principal. No livro da Aliança não se faz nenhuma provisão para libertar escrava depois de seis anos com seu parceiro (Ex 21,7-11), porque como 'amah ela era concubina do patrão e continuava sendo parte da família mais ampla. Não se deve, porém, supor que isso se devia ao status inferior da escrava, ou ao fato de que ela, em particular, era considerada como propriedade pessoal do patrão, mas antes, como comenta Wolff, pelo fato de que "o relacionamento de marido e esposa pensa-se como primariamente duradouro, mesmo com a escrava" (Wolff: 1974,201 ). Seus direitos eram protegidos pela lei. No caso do cansaço do seu patrão com ela, não era revendida (Ex 21,8). Sua família era autorizada a comprar sua liberdade. Se designada para o filho do patrão, ela devia ser tratada como filha (v. 9). Se o patrão tomava outra mulher, seus direitos maritais não deviam ser diminuídos (v. 10). De outra forma, ela deve ser posta em liberdade. "Se o relacionamento chegasse ao fim, sempre terminava na liberdade. As regulamentações que governavam as exceções todas têm em mente os interesses do escravo e não os do patrão" (Wolff: 1974, 201). Por essa razão, Wolff se sente justificado ao descrever o relacionamento entre patrão e escrava como "por relacionamento de nenhuma maneira sem amor". Na verdade ele o caracteriza como "cheio de solicitude". A lei correspondente de Dt 15,12-18 não diferencia entre escravos e escravas, mas lhes dá iguais direitos de libertação após seis anos. Com base em que Jr 34,9-11 também não faz nenhuma distinção entre escravos e escravas. A lei posterior de Lv 25 não faz nenhuma menção de escravas. Wolff (1974,202) vê em Jó 31,13 a possibilidade de que escravos, homens e mulheres, podiam apresentar queixas contra o patrão no tribunal, rib pode, contudo, se entender em sentido menos formal de "queixa" simples (cf. NEB). Todavia a razão para o direito do escravo à justiça é sem ambigüidades: Aquele que me fez no ventre, não o fez também a ele? e não foi um só que nos plasmou no ventre? (v. 15) 54 2.6.6 - O IDEAL DE IGUALDADE GRACE I. EMMERSON (1995:372-374) comenta: É pertinente que o debate sobre mulheres e escravatura fosse seguido pelo contrapeso de tudo o que era opressivo das mulheres na sociedade israelita antiga, por aquilo que se descreveu como "latente potencialidade de libertação". Isso se encontra nas narrativas da criação de Gênesis sem as quais nossa avalização do material seria incompleta. Em contraste com a prevalente cultura patriarcal do Israel antigo, existe no Antigo Testamento evidência do que Tribles chama de contracultura, um "princípio despatriarcalizante" em ação. Este, afirma esta autora, não é operação que o exegeta realiza no texto. É operação hermenêutica dentro da própria Escritura" (1973, 48). O varão e a mulher são criados à imagem de Deus (Gn 1,27). Ambos recebem a ordem de sujeitar e dominar a terra . Não há aí nenhuma alusão a dominação. Homem e mulher, criados juntos e abençoados juntos, são chamados de Adão (Gn 5,2). É em Gn 2-3 que se encontrou tradicionalmente justificação da subserviência da mulher. É preciso corrigir várias concepções errôneas. A mulher, igualmente com o homem, é criada somente por Deus. O varão não é participante, nem espectador da divina atividade que edifica uma mulher de uma costela. A criação da mulher não é pensada depois. A estrutura de Gn 2 é exemplo de inclusão. "A criação do homem primeiro e da mulher por último constitui uma composição em anel pelo que as duas criaturas são paralelas. De nenhum modo a ordem desmerece da mulher" (Trible: 1973,36). Deus visa a fazer dela uma ajudante para o homem (´ezer), uma ajudante apropriada, igual e adequada a ele (kenegdo). A palavra 'ezer é, como observa Trible, termo relacional e não especifica posição dentro do relacionamento. Na maioria dos casos, a palavra refere-se a lahweh como ajudante do seu povo (Ex 18,4; Dt33.20.26; SI 33,20; 70,6; 115,9ss; 146,5). Deus é o ajudante superior ao homem; os animais são ajudantes inferiores ao homem; a mulher é a ajudante igual ao homem" (Trible: 1973, 36). Por que a mulher é tentada pela serpente? Não por causa de alguma fraqueza inerente. A narrativa não faz nenhuma alusão a isso. O homem é retratado como passivo, seguindo sua mulher sem questionar, embora a proibição de Deus venha diretamente a ele (2,17). Mas a mulher é "inteligente, independente e decisiva, inteiramente consciente como teóloga quando ela toma o fruto e come", escreve Trible (1976, 965). Ao escrever isso, ela visa "não a promover chauvinismo feminista, mas cortar pela raiz interpretações patriarcais alheias ao texto" (1973, 40). Finalmente, Gn 3,16 não é concessão à supremacia masculina. É sintoma da desordem da criação, da ruptura do relacionamento com Deus que traz em sua esteira ruptura no relacionamento humano. Juntamente com dor e instrumento opressivo a subserviência das 55 mulheres deve ser superada, e o ideal restaurado (Evans: 1985, 19s). Semelhante ideal de igualdade aparece no Cântico dos cânticos, que Trible descreve como midraxe de Gn 1-3. Discernindo na jubilosa confiança da mulher: "Eu sou do meu amado e o seu desejo se volta para mim" (Ct 7,10), reverso de Gn 3,16, ele vê aí a descrição do pecado transformada em afirmação de mutualidade e deleite (1973,46). No Cântico, não existe nenhuma subserviência da mulher. Com ela começa o Cântico quando ela inicia o namoro (l,2), e com ela termina quando ela chama pelo amado (8,13). Poderia uma mulher ter sido seu autor? (cf. Brenner: 1985, 46ss). Infelizmente há outra corrente no Antigo Testamento, uma deteroração na visão da mulher que se torna manifesta no período pós-exílico (cf. Terrien: 1985, 85s). Trible contrasta o imaginário feminino usado pelo Dêutero-Isaías para descrever o amor de Deus para com o seu povo no exílio (Is 49,15; 66,13) com o uso de Ezequiel de metáforas sexuais desmerecendo das mulheres. Nisto, e na luta por pureza racial nos tempos de Esdras (Esd 10,2s.44), ela traça o desenvolvimento da misogenia que vê a mulher como inferior e impura. "Todavia, esta visão não substituiu inteiramente o impulso dinâmico da fé do Antigo Testamento... este impulso desafiou, corrigiu e transcendeu a cultura. Em conseqüência, a fé do Antigo Testamento corta pelas raízes as estruturas e idéias de feitura humana para colocar homem e mulher sub specie aeternitatis" (Trible: 1976,966). TERTULIANO CABRAL PINHEIRO em www.dhnet.org.br/direitos/ militantes/tertuliano/apostila01.html afirma que: Em todos os modelos de sociedade antiga, a mulher para efeito político igualava-se aos escravos. Digna do maior respeito, a mulher devia obediência a seu pai se solteira, ao marido se casada e ao filho mais velho se viúva. No dizer de André Bonnard (Civilização GregaLisboa – 1966) era “uma sociedade rigorosamente masculina”. AMILCAR DEL CHIARO FILHO, www.espirito.org.br/portal/cursos/amilcar/cap10.html, confirma: em Na antigüidade, especialmente nos tempos bíblicos, a mulher era uma mercadoria, propriedade do homem, e por isso o adultério era visto como um roubo. O marido, proprietário da mulher, era lesado pelo adultério e por isso podia exigir reparação. O adultério só acontecia nos casos de mulheres casadas ou noivas, já que este era um compromisso muito sério. A mulher solteira, viúva ou livre, não cometia adultério, no caso de manter relações sexuais com algum homem. No caso de moça solteira, se houvesse flagrante do ato sexual, o homem era obrigado a pagar uma multa (50 ciclos de prata) ao pai da moça, seu proprietário, e casar-se com ela, não importando quantas esposas tivesse, pois, poderia ter quantas pudesse manter. (Deuteronômio 22: 28 – 29) simplesmente comprava mais um propriedade, ao pai, antigo dono da donzela. 56 3 - O DIREITO O Direito judaico era, na época, um dos mais adiantados em determinados aspectos, como esclarece LEIB SOIBELMAN quanto ao Direto do Trabalho daquele povo: O direito do trabalho é uma das criações mais originais dos hebreus, principalmente quando se sabe que na antigüidade oriental trabalhador era sinônimo de escravo. Em nenhuma legislação da antiguidade existiu a preocupação que se nota na Bíblia pela proteção do trabalhador e das condições de trabalho. A legislação hebraica foi a primeira legislação social do mundo. Estabelecia o repouso semanal, o pagamento do salário em dinheiro e ao fim de cada jornada de trabalho, a obrigação de todos terem uma ocupação, repouso nos feriados religiosos, o direito de penhora por salários devidos, a santificação do trabalho. O Talmud, interpretando uma tradição oral que já vinha de séculos, obrigava o patrão a indenizar os acidentes do trabalho e cinco eram as indenizações: Nezek, pelo dano em virtude de lesão permanente; Ripui, dever de pagar assistência médica e medicamentos; Shevet, pagamento pelos danos causados pela incapacidade temporária para trabalhar; Boschet, pelo dano moral provocado pelo acidente; Tzaar, pelos sofrimentos e dores causados pelo acidente. A primeira lei brasileira de acidentes do trabalho é de 1919. Ainda neste ano o Tratado de Versalhes recomendava aos países contratantes a adoção do descanso semanal, a jornada de oito horas e a proibição do trabalho de menores. A primeira lei limitando o trabalho do menor a doze horas diárias foi de 1802 na Inglaterra. É de 1841 a primeira lei na França proibindo o trabalho dos menores de oito anos. B. - Mateo Goldstein, Derecho hebreo. Atalaya ed. Buenos Aires, 1947. ÉMILE MORIN (1981:103-104) fala sobre o Direito e a Justiça judaicos: O direito contém as leis seguidas pelos homens de uma determinada sociedade. O poder judiciário controla sua aplicação. Roma tentava controlar as suscetibilidades judaicas, especialmente em matéria religiosa, através dos governadores, delegados do imperador, teoricamente dependentes do legado da Síria para questões mais importantes, mas que, de fato, dispunham de uma considerável autonomia. Mas a lei judaica não era outra que a Lei de Moisés. Considerada como recebida de Javé, no Sinai, para todos os israelitas. Os fariseus acrescentavam à Lei a Tradição oral de seus escribas. As questões internas do judaísmo eram, portanto, tratadas sob a autoridade bastante direta do Sinédrio de Jerusalém. O Sinédrio não remonta a Moisés, como o pretendiam os rabinos. Ele tem sua origem nos conselhos de anciãos de que o sumo sacerdote se cercou, desde os tempos da dominação persa. Parece que há provas de sua existência desde o ano 200. 57 Sob a rainha Alexandra (76-67 aC), escribas leigos e fariseus entraram, maciçamente, no Sinédrio. Herodes, o Grande, exterminou quase todos os sinedritas, no tempo de seu poder. Este grande conselho retomou suas atividades, seguramente, pelo menos no ano 6 dC. quando da chegada do primeiro governador. Esta corte de 71 membros se compunha dos chefes dos sacerdotes, dos "anciãos" ou representantes da aristocracia leiga, dos escribas ou representantes da aristocracia intelectual. O sumo sacerdote presidia a assembléia. Ignora-se a duração do mandato dos membros do Sinédrio, recrutados, sem dúvida, por cooptação, tendose em vista os critérios de origem, já enunciados, e também as intervenções dos chefes políticos A competência do Sinédrio, diminuída sob Herodes, o Grande, foi mais ampla sob os governadores. Roma admitia, tacitamente, a competência desta assembléia, para todos os judeus do mundo. Na Judéia, ocupava-se, principalmente, das relações com o poder romano: ver, por exemplo, o processo de Jesus e de Paulo. Ocupavase, também, da entrada em Jerusalém do imposto do templo e dos dízimos. O imposto do templo provinha de toda bacia mediterrânea. Cuidava da interpretação da Lei e zelava sobretudo pela guarda de seu depósito. Enfim, o Sinédrio funcionava como corte de justiça. Dispondo da polícia do templo, podia prender e encarcerar os delinqüentes, aplicar multas e castigos corporais e excluir os criminosos da comunidade israelita. Para uma condenação à morte era preciso reunir um tribunal de 23 membros. E, no tempo dos governadores, a sentença de morte só se tornava executória depois de ratificada pelo representante de Roma. Mas esta questão é controvertida. Parece que a administração romana, às vezes, fechava os olhos. Nas aldeias da Judéia e da Galiléia e nos agrupamentos, judaicos da diáspora. havia tribunais locais, igualmente chamados de sinédrios. Os problemas aí eram julgados conforme a jurisprudência fixada pelo grande Sinédrio de Jerusalém. Para questões menores, muitas vezes aparece, nos textos, tribunais de três membros. É preciso assinalar o papel de rabinos ordenados para a jurisprudência como juizes dos tribunais. Neste Capítulo seguimos a estrutura de R. DE VAUX, conforme seu livro Instituições de Israel no Antigo Testamento. 3.1 - AS COLETÂNEAS DE LEIS LEIB SOIBELMAN fala sobre o Talmud: Vastíssimo comentário às leis de Moisés, completado em diversas épocas: o Talmud de Jerusalém no ano de 350 d.C. e o da Babilônia no ano de 500. É considerado uma autêntica enciclopédia jurídica, que tem acompanhado toda a história do povo judeu. V. leis de 58 Moisés. B. - Lino de Morais Leme. Direito civil comparado. São Paulo, 1962. Ed. Rev. dos Tribunais. Moisés só codificou no Pentateuco a parte mais importante da lei oral recebida de Deus, a qual continuou a ser transmitida por Josué e pelos profetas. Sempre existiu ao lado da lei escrita (micra), uma torá oral, cuja interpretação se chama "mischná" (V.) ou repetição. Depois da tomada de Jerusalém por Tito no ano de 70, continuaram, existindo escolas rabínicas na Palestina e na Babilônia. No século II essa mischná foi compilada por Rabi Iehuda. Aconteceu com a mischná o mesmo que com a torá (V.): ela por sua vez foi objeto de interpretação das escolas rabínicas, interpretação chamada de "guemara", palavra aramaica que significa ensino. A mischná juntamente com a guemara constitui o Talmud. Foram feitos dois talmudes: o de Jerusalém nos fins do século IV e o da Babilônia, chamado Talmud Babli, nos séculos VI ou VII. A guemara que acompanha ambos é que difere um pouco, pois a mischná é a mesma. O Talmud é apenas uma parte da literatura rabínica post-exílica, pois continuavam existindo os comentários ao Talmud, sendo o mais importante deles o de Raschi no, século XI e o de Elias de Vilna já nos fins do século XVIII. A primeira edição completa de ambos os talmudes só se fez no século XVI, por David Blomberg, em Veneza. Durante muito tempo o Talmud ficou completamente desconhecido para os cristãos, a ponto de um papa pensar que era o nome de um rabino. Foi queimado muitas vezes na Idade Média pelas ondas de reação aos judeus. Foi o Talmud que salvou o judeu da ignorância através dos séculos e desenvolveu sua capacidade dialética, pois o Talmud absorveu os conhecimentos leigos, transformando-se numa vastíssima enciclopédia de todos os conhecimentos humanos: religião, legislação, botânica, medicina, filosofia, etc. Há dois tipos de ensinamento no Talmud: a "halaká" e o "hagadá". A primeira é a parte legal da vida do judeu e da comunidade. A segunda é a parte folclórica, composta de historietas e parábolas criadas nos momentos em que se descansava dos áridos estudos ou para amenizar um pouco estes estudos difíceis. O Evangelho é um filho direto da hagadá. Justiniano proibiu o estudo do Talmud, por ele chamado de "segunda lei" nas suas Novelas. O Talmud sobrepujou entre os judeus a própria Bíblia, pela sua vastidão, que leva os estudiosos a falar do mar ou do oceano do Talmud, e alguns autores como Maimônides e Caro fizeram índices para encontrar as matérias referentes a um mesmo assunto. 3.2 - AS PENAS JAYME DE ALTAVILA (2000:30) diz sobre as penalidades: É preciso que se penetre no sentido legal da antiguidade, para se compreender bem a aplicação das penas. Nem sempre os textos exprimem com exatidão o intencionalismo da lei primitiva. O talião foi tauxiado em todas as legislações daquele passado remotíssimo, em que a humanidade ainda retinha certos impulsos herdados da caverna. Moisés precisava reprimir os instintos primitivos de sua gente, na preservação de seu estado, cercado que estava de inimigos externos. Mas, como tivemos ensejo de explicar, o talião não se aplicava a todos os casos delituosos. A legítima defesa e o 59 homicídio involuntário eram reconhecidos no seu direito, onde a pena não passava da pessoa do criminoso. Daí a necessidade de lermos com a devida compreensão estes incisos: - "O teu olho não poupará: vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé". (19, v. 21) - "Quando houver contenda entre alguém e vierem ao Juízo, para que os julguem, ao justo justificarão e ao injusto, condenarão." (25, v. l) - “E será que se o injusto merecer açoites, o juiz o fará deitar e o fará deitar e o fará açoitar diante de si, quando bastar pela sua injustiça, por certa conta". - “Os pais não morrerão pelos filhos, nem os filhos pelos pais: cada qual morrerá pelo seu pecado”. (24, v. 16) 4 - O "JULGAMENTO" DA MULHER ADÚLTERA SEGUNDO OS FILÓSOFOS Como dissemos na Introdução, o incidente relatado pelo evangelista João não foi um julgamento, mas sim uma cilada armada por escribas e fariseus que pretendiam que Jesus dissesse qualquer coisa comprometedora para o acusarem perante o Sinédrio. Quando Ele disse aos presentes que atirasse a primeira pedra quem fosse impoluto, estava dizendo em linguagem figurada, pois a pena de morte somente podia ser decretada após um processo cheio de formalidades, onde inclusive se previa a defesa do acusado. No incidente em apreço choca sobretudo o tratamento desigual dos parceiros do adultério, pois somente a mulher foi presa, enquanto que o homem não o foi, sendo que a Lei determinava que ambos deveriam ser condenados à morte por apedrejamento. Pode-se, com certa razão, entender que era muito mais comum elas serem condenadas, ficando esquecidos os adúlteros do sexo masculino. A situação desigual das mulheres sensibiliza filósofos dos tempos recentes: 4.1 - GIBRAN KHALIL GIBRAN GIBRAN KHALIL compungidamente: GIBRAN (1973:128-129) relata e comenta E um dia eu O segui à praça do mercado de Jerusalém, como os outros O seguiam. E Ele nos contou a parábola do filho pródigo, e a 60 parábola do negociante que vendeu todos os seus bens para comprar uma pérola. Mas enquanto falava, os fariseus trouxeram para o meio da multidão uma mulher a quem chamavam de prostituta. E enfrentaram Jesus e Lhe disseram: "Ela traiu seu voto de casamento, e foi apanhada no ato." E Ele a fitou; e colocou a mão sobre a testa da mulher e olhou profundamente em seus olhos. Depois, voltou-se para os homens que a tinham trazido, e olhou longamente para eles; e curvou-se e começou a escrever na terra com o dedo. Escreveu o nome de cada homem, e ao lado do nome escreveu o pecado que cada homem tinha cometido. E, à medida que escrevia, eles iam fugindo, envergonhados, pelas ruas. E antes que tivesse acabado de escrever, somente aquela mulher e nós permanecíamos diante Dele. E novamente Ele olhou nos olhos dela, e disse: "Amas-te demais. Os que te trouxeram aqui amaram pouco. Mas trouxeram-te como uma armadilha para me pegar. "E agora vai em paz. "Nenhum deles está aqui para te julgar. E se for de teu desejo ser ajuizada tanto quanto és amorosa, então procura-me; porque o Filho do Homem não te julgará. E conjeturei então se Ele dizia isso porque Ele próprio não estava sem pecado. Mas desde aquele dia tenho meditado longamente, e sei agora que somente o puro de coração perdoa a sede que leva a águas estagnadas. E sòmonte quem tem o pé seguro dá a mão ao que tropeça. 4.2 - HUBERTO ROHDEN HUBERTO ROHDEN (1997:17-20) relata sensibilizado: Estavam terminadas as ruidosas festividades dos Tabernáculos. Murcha pendia a ramaria dos ranchos, que cobria as praças da capital e as campinas dos arredores; por toda a parte, a folhagem seca a juncar os pavimentos — folhas de outono, significativo símbolo do povo de Israel, estranho presságio daquela cena que logo se ia desenrolar no átrio do templo. 61 Naqueles tempos, como muitas vezes em nossos dias, as festas religiosas populares, a par de edificantes testemunhas de fé e piedade, eram também dias de lamentáveis desordens, e, não raro, o diabo mais do que Deus colhia farta messe. Jesus conservava-se ainda em Jerusalém, ensinando diariamente no templo. Por mais numerosos que fossem os seus inimigos, ninguém lhe podia fazer mal antes de chegar a "sua hora"; e essa hora estava nas mãos do Cristo. Ao anoitecer porém, saía invariavelmente da cidade, retirando-se para o Monte das Oliveiras, a fim de fruir algumas horas de repouso, talvez em casa de seus amigos de Betania. Jerusalém era um campo de batalha semeado de espiões; e Jesus, apesar de sua confiança na Providência Divina, nunca deixava de parte os ditames da prudência humana. De manhã, bem cedo, reaparecia no templo e tornava a falar ao povo sobre o reino de Deus. Em um dia desses, quando Jesus se achava no chamado átrio do povo, acessível a todos os israelitas, homens e mulheres — eis que de súbito um grupo de, fariseus abre caminho através da multidão, arrastando aos pés de Jesus uma jovem mulher apanhada em adultério. Era noiva, a infeliz. Em um dos tumultuosos divertimentos dos últimos dias da festa, caíra vítima da sedução de um homem que não era seu noivo. A lei de Moisés decretava a morte para a mulher casada que violasse a fidelidade conjugal, e a morte cruel de apedrejamento público para a noiva que se esquecesse da palavra empenhada. Para os israelitas, o noivado equivalia a um verdadeiro matrimônio, com a diferença de os cônjuges não viverem ainda debaixo do mesmo teto, nem usarem dos seus direitos recíprocos. Os fariseus tinham olhos de lince, para os pecados do próximo... A jovem, apreendida por eles, devia, pois, ser apedrejada. Disto nem duvidaram os acusadores; pois era lei, e os zeladores da lei eram eles. Mas queriam aproveitar o incidente para armar uma cilada ao profeta de Nazaré. A ocasião não podia ser mais propícia. Não faltavam testemunhas, para presenciarem a "derrota do Nazareno". A trama estava muito bem urdida; o plano tinha requintes de astúcia e não podia falhar. — Mestre — dizem os fariseus, com fingida seriedade —esta mulher acaba de ser apanhada em adultério. Ora, na lei, mandou-nos Moisés que apedrejássemos semelhantes mulheres. E tu, que dizes? Momentos de silêncio... Todos os olhares convergiam sobre a desditosa criatura; todos a condenavam; ninguém perguntava: onde está o cúmplice? Quem é o sedutor? Quem é o mais culpado?. . . Não, ela, a parte mais fraca, teve a desgraça de ser apanhada, ao passo que o outro, mais forte e 62 mais astuto, conseguiu evadir-se sem ser reconhecido. Por isso, a perversidade do sedutor passa em silêncio, e a fragilidade da seduzida é assoalhada na praça da mais larga publicidade. A lei era só contra a mulher. E o rabi de Nazaré? Estaria ele pelos autos? Renunciaria à sua proverbial bondade e indulgência? Poderia ver o sangue da jovem vítima a tingir o solo? Ou se atreveria a absolver a adúltera? A usar de misericórdia em um caso de tamanha gravidade? Teria a audácia de contradizer a lei de Moisés? Ele, que proclamava a cada passo que não viera para abolir a lei, mas, sim, para levá-la à perfeição?... Jesus parecia indeciso por alguns momentos. Inclinou-se, e traçou na areia do pavimento caracteres misteriosos. Que escrevera ele? O nome do cúmplice? Algum dentre os fariseus ou doutores da lei? Os adultérios secretos deles? Não sabemos — eles leram... Expectativa geral... Jesus, depois de escrever na areia, ergue-se, corre um olhar prescrutador pelos acusadores e diz tranqüilamente: — Aquele dentre vós que não tem pecado, atire-lhe a primeira pedra! Como um raio em céu sereno caiu esta palavra na consciência dos fariseus... Estremeceram... Por essa não esperavam eles... O Nazareno concorda em que a criminosa seja apedrejada, conforme a lei — mas por mãos impolutas. E onde estavam essas mãos bastante puras para lançarem a primeira pedra àquela mulher impura? Os zeladores da lei entreolharam-se, mudos, perplexos; cada um esperava que o vizinho se abaixasse para levantar a primeira pedra. Mas ninguém se atrevia, ninguém queria ser o primeiro; todos tinham a sensação de que aqueles dois olhos devassavam os mistérios da consciência deles como tantas vezes dera a entender o Nazareno.... Jesus, no meio daquela indecisão geral, tornou a traçar na areia sinais enigmáticos. Talvez os nomes dos pecadores. Os fariseus aproveitaram a oportunidade para se esgueirarem sorrateiramente, um após outro, a começar pelos mais velhos, provavelmente os que tinham na consciência mais pesada carga de pecados... Ficaram no meio do átrio só a mulher e Jesus — a miséria e a misericórdia... Se a adúltera tinha de esperar castigo, só o podia esperar da parte deste homem, porque só ele era sem pecado; estava aí quem tinha as mãos impolutas e lhe podia atirar a primeira pedra — primeira e a última. Mas a suprema pureza não podia deixar de ser o supremo amor. 63 Ergueu-se, pois, a divina misericórdia e perguntou à humana miséria: — Mulher, onde estão aqueles que te acusavam? Ninguém te condenou? — Ninguém, Senhor — respondeu ela levantando pela primeira vez o olhar perturbado. E, então, em vez do sibilar mortífero das pedras a derribarem por terra a pecadora, soa aos ouvidos da penitente a palavra do perdão e da vida: — Nem eu te condenarei; vai-te, e não tornes a pecar. 4.3 - JOSÉ BORTOLINI JOSÉ BORTOLINI (1990:40-48) narra e analisa dominado por ira santa: O tema do julgamento é muito importante em toda a literatura joanina, e aqui também. Uma coisa é certa: Jesus não julga ninguém, ou seja, não veio para condenar, mas para salvar (veja 3,16-18). Ele simplesmente provoca todas as pessoas a tomar partido: quem está com ele não se perde; quem está contra ele se autocondena, pois se colocou contra a vida. A pessoa de Jesus suscita o discernimento, ou seja, faz-nos perceber se estamos a favor da luz (vida) ou contra a luz (morte). Vindo para que todos tenham vida (10,10), pôs a nu nossas raízes e nossas escolhas. Um episódio do Evangelho de João é clássico nesse sentido (19,1315). Pilatos faz Jesus sentar-se na cadeira de juiz-presidente do tribunal. De réu, Jesus se torna juiz supremo. Mas ele não diz nada, não profere sentença alguma, não condena. São os chefes dos sacerdotes que se desnudam diante de Jesus juiz, revelando de que lado estão. De fato, eles dizem que o rei deles é César. O contato desse tema com o episódio da adúltera é evidente. Esse episódio recorda sem dúvida o capítulo 13 de Daniel, a história de Susana. As personagens praticamente se identificam: os juizes que, não conseguindo possuir Susana, a condenam, fazem pensar nos acusadores da adúltera; o jovem Daniel remete a Jesus. Há, contudo, nítida distinção entre Susana, que não pecou, e a adúltera. Jesus deve ter passado a noite no monte das Oliveiras (8,1), ou seja, no jardim. Parece que ele gostava daquele lugar, pois recolhia-se aí muitas vezes, a ponto de Judas, mais tarde, saber disso e chegar com a gangue que o irá prender (veja 18,3). O jardim recorda Éden, paraíso terrestre, moradia de Adão, o homem (Gênesis 2,8). Jesus passa a noite no jardim, a mulher passa a noite na cama com um 64 homem que não é o dela, os doutores da Lei e fariseus passam a noite planejando pegar essa mulher e matá-la, mas antes incriminar também Jesus. A noite pode ser reveladora. Arriscaríamos parafrasear: "Diga-me o que você faz de noite e eu direi quem você é". De manhã cedo, talvez ainda escuro, como novo sol, Jesus está no Templo e ensina sentado. O Evangelho não mostra as palavras de Jesus, mas um episódio capaz de resumir seu ensinamento. E isso no Templo, lugar por excelência de encontro com Deus e com o ensinamento dos doutores da Lei e fariseus. Todos temos telhado de vidro. Talvez tê-lo não seja tão grave quanto ignorá-lo ou, o que é pior, jogar pedras no do outro para desviar a atenção do nosso. Essa mulher tinha telhado de vidro, era adúltera. E não há coisa pior na vida do que quando pessoas — sobretudo se são inimigas — descobrem nosso ponto fraco. Por essa brecha entra todo o veneno da humanidade. Pobre de quem deixar essa brecha aberta. Mesmo que Deus perdoe, deverá contar com a resistência das pessoas em perdoar a fraqueza, pois é pressionando sobre essa ferida que elas se tomam fortes. Fortalecem-se apontando as fraquezas dos outros. Com essa mulher aconteceu mais ou menos assim. Foi descoberta e pega no seu ponto fraco pelos puritanos doutores da Lei e fariseus, e agora é posta no centro da roda. Para ela são apontados todos os dedos acusadores e já se aprontam as pedras para a execução, pois a sentença parece algo já certo. A situação dela deve ter sido tão dramática a ponto de parecer, também para o narrador, uma miragem. De fato, quando todos vão embora e ela fica sozinha com Jesus, o texto afirma que ela continuava lá, no meio. No meio do quê, se não há mais ninguém, exceto Jesus com ela? Nem o narrador parece acreditar no que relata. É como se os inquisidores continuassem aí feitos estátuas de pedra milenares... Jesus está ensinando no Templo quando os doutores da Lei e fariseus trazem a ele uma adúltera pega em flagrante. Certamente planejaram bem a coisa, examinaram os hábitos dessa mulher, suas fugas ou as brechas que deixava para o adultério. Sem dúvida alguma não foi ocasião furtiva, nem pra ela nem pra eles. Ela deve ter insistido no pecado e eles no desejo de pegá-la. Os doutores da Lei eram os peritos em legislação, em Bíblia e normalmente eram pessoas ligadas aos tribunais. Os fariseus —já conhecidos nos episódios anteriores — também são homens da Lei, da pureza. Eram os "impecáveis". Para eles não resta dúvida e a sentença já está traçada: a mulher deve ser apedrejada. Simplesmente perguntam o parecer de Jesus que ensina, para pô-lo à prova. Por Jesus à prova é, em todos os Evangelhos, uma das características dos fariseus. Mas é também uma característica do Diabo ou Satanás quando tenta Jesus (Mateus 4,1; Marcos 1,13; Lucas 4,2). Visto que no Evangelho de João não temos a narrativa das tentações de Jesus, podemos dizer que os doutores da Lei e fariseus são o próprio Tentador, o Diabo, o Satanás. Tanto nas 65 tentações narradas por Mateus e Lucas, quanto aqui, o Tentador conhece e usa a Bíblia. No caso da adúltera, um uso parcial e para a morte. Eles conhecem muito bem a Lei, e nós podemos conhecer também como a violavam e torciam a seu gosto e capricho, conservando seus privilégios. De fato, há dois textos do Antigo Testamento que prescrevem a lapidação da adúltera, respectivamente Levítico 20,10 e Deuteronômio 22,22: "O homem que comete adultério com a mulher do seu próximo se tornará réu de morte, tanto ele como a sua cúmplice"; "Se um homem for pego em flagrante tendo relações sexuais com uma mulher casada, ambos serão mortos, tanto o homem como a mulher. Desse modo você eliminará o mal de Israel". Note-se um detalhe. Nas duas citações, o responsável primeiro é o homem: "O homem que comete..., "Se um homem...".Podemos, então, perguntar: Cadê o homem desse adultério? Por que não foi preso, se os doutores da Lei e fariseus deram um flagrante nos dois? Por que pegaram apenas a mulher e querem já matá-la? Citam a Bíblia, mas se esquecem do homem adúltero. Aí revela-se toda a parcialidade desses dois grupos satânicos que põem a mulher no centro da roda, apontam-lhe o dedo acusador e já têm pedras por perto. Condenando a mulher pretendem inocentar-se, como veremos. A armadilha está montada. Vamos ver se Jesus se orienta pela "lei do mais forte". Interrogado, Jesus não responde. Rabisca no chão. O que teria rabiscado? Impossível saber. Uns sugerem que escrevia isso, outros aquilo; outros afirmam que se trata apenas de rabiscos, não de texto. Talvez estivesse dando um tempo para esses hipócritas pensar no próprio telhado de vidro. Mas visto que insistem, aí vai a resposta que põe a nu o telhado de vidro de todos, sem exceção, aliás, um telhado de vidro que aumenta à medida que os anos crescem: "Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra". O desmascaramento foi total, e a reação, patética: foram todos embora, começando pêlos mais velhos. Trágica constatação: quanto mais avançamos na idade, mais pecadores nos tornamos. Isso se cada um tomar consciência de seu telhado de vidro. A retirada dos adversários da mulher faz pensar e, sem dúvida, podemos recordar os dois juízes que tentaram matar Susana na história de Daniel 13. O fato de saírem um após o outro "começando pêlos mais velhos", além de constatar que quanto mais velhos, mais pecados carregamos, é extremamente irônica. De fato, há séculos Israel associava velhice e sabedoria, cabelos brancos e sensatez, terceira idade e equilíbrio. De acordo com os livros sapienciais, quanto mais velho alguém se torna, mais próximo estaria de uma vida santa, sábia e equilibrada. Nada disso acontecia com os acusadores da adúltera. E deve-se ainda notar que, tanto em Daniel 13 quanto em João 8, os acusadores são homens ligados à justiça. Isso nos leva, então, a outra constatação: quantas arbitrariedades se cometem ao julgar as pessoas e, sobretudo, quando esse julgamento é acobertado pelo poder, fama e status dos que detêm a função de julgar. O povo olha pra eles como para pessoas impecáveis e semidivinas, e considera justas suas sentenças, 66 indiscutíveis. Por quê? Porque camuflam suas decisões com a pompa de seu cargo ou do seu poder. No tempo de Susana/ quem seria capaz de ligar o desconfiômetro contra esses dois velhos corruptos, violentos e imorais? E no tempo de Jesus, quem seria capaz de imaginar que os acusadores da adúltera tinham no cartório uma conta tão vergonhosa — ou mais — que a da adúltera? Jesus disse "Quem de vocês não tiver pecado". Será que se referia ao pecado de adultério? Será possível que todos fossem adúlteros? É provável. Aqui entendemos a fina ironia nascida da resposta de Jesus. De fato, não era preciso trazer o homem adúltero. Seus legítimos representantes estavam todos aí, hipocritamente apontando o dedo e preparando as pedras... Um adúltero a mais ou a menos não fazia diferença. A representação era bem consistente. Estavam todos aí, em peso. Alguém pode pensar que estejamos exagerando. Mas trata-se de uma possibilidade forte quando estamos diante de pessoas extremamente moralistas e legalistas, cujo bordão é sempre o pecado. Desconfiar não faz mal. É possível, portanto, que a montagem do flagrante fosse movida pela busca mórbida de adultério. E, quem sabe, inconscientemente tivessem deixado o homem escapar, pois era isso que desejavam para si. Além disso, é bom recordar o que Jesus disse no Evangelho de Mateus (5,27-28): "Vocês ouviram o que foi dito: 'Não cometa adultério'. Eu, porém, lhes digo: todo aquele que olha para uma mulher e deseja possuí-la, já cometeu adultério com ela no coração". A essas alturas, devemos agradecer a Jesus e à mulher por terem revelado todas as nossas fraquezas, por nos terem recordado que, de uma forma ou de outra, somos todos adúlteros e todos precisamos, igualmente, de perdão. Essa mulher, sem querer, levou todos os adúlteros a Jesus. Cabe a eles reconhecer e pedir perdão. Triste constatação: para cada adúltera há numerosos adúlteros; para cada prostituta há prostitutos sem conta. A frase de Jesus "Quem de vocês não tiver pecado" pode, contudo, ter um foco mais aberto. Pode ser que não se trate de pecado em sentido de adultério. Isso, contudo, não alivia a situação, pelo contrário. No Evangelho de João, pecado (no singular) é a raiz principal que sustenta a vida dos fariseus, a ponto de Jesus lhes dizer: "Se vocês fossem cegos, não teriam nenhum pecado. Mas como vocês dizem: 'Nós vemos', o pecado de vocês permanece" (9,41). A frase é o encerramento do episódio em que Jesus curou o cego de nascença. Quem era cego fisicamente passa a enxergar e testemunhar; quem garantia "ver" acaba sendo declarado cego por Jesus, uma cegueira tal que conserva um pecado permanente. O próprio Jesus nada pode fazer para esse tipo de pessoas com essa cegueira. E não podemos desculpar-nos diante disso, pois se pecado é negação da Vida que se manifesta em Jesus, todos de alguma forma temos rabo preso com essa negação. Também quando apontamos o dedo. Se deixássemos de apontar, como os fariseus e doutores da Lei, o dedo acusador, largássemos as pedras e nos 67 dispuséssemos a escutar o que Jesus tem a dizer à adúltera e aos adúlteros, certamente não sairíamos daí envergonhados, mas reconciliados e na paz. Também nisso a adúltera tem a nos ensinar. Ela, de fato, é mestra. É bom recordar um detalhe típico daquele tempo. Os professores normalmente ensinavam de pé, tendo os alunos ao redor, sentados. A cena da adúltera lembra um pouco isso. Posta no centro da roda como mestra da infidelidade torna-se mestra da graça e do perdão. Pena que os "impecáveis" fariseus não ficaram aí para ouvir a conclusão do episódio, o ensinamento de Jesus. Jesus era o único que podia condenar, mas não o fez. Assim desautorizou toda condenação, pois todos temos uma dívida grande, um telhado de vidro. Perdoou e ensinou a adúltera a reencontrar o caminho. De alguma forma ela se tornou missionária e continuadora do ensinamento prático de Jesus. Este transformou a lei que mandava apedrejar numa recomendação de vida: “Eu também não a condeno. Pode ir, e não peque mais”. 2ª PARTE - A ATUALIDADE FEMININA 1 - AS MULHERES NA ATUALIDADE Apesar da Declaração Universal dos Direitos do Homem[10] falar na igualdade entre homens e mulheres, o mesmo fazendo a legislação dos países civilizados, a realidade é a posição de inferioridade das mulheres. A própria utilização da expressão homem para designar o gênero humano denota esse tratamento diferenciado. Na França, país onde as mulheres já ocupam muitas posições de relevo, ainda se utilizam substantivos masculinos para designar determinados profissionais, por exemplo, juge, professeur, auditeur de justice etc., independente do sexo desses profissionais, com muitas queixas das mulheres. A mão-de-obra feminina normalmente é recrutada para funções subordinadas, portanto de baixa remuneração. Se se consultam as mulheres sobre as poucas benesses que as leis lhes outorgam, a esmagadora maioria se diz insatisfeita com o atual estado de coisas e pretendem a igualdade irrestrita em relação aos homens. Dois países se destacam mundialmente pelo prestígio das mulheres na vida pública: a Suécia e a Finlândia. O ALMANAQUE ABRIL MUNDO informa que: 68 Em fevereiro de 2000, as eleições presidenciais são vencidas por Tarja Halonen (SDP), primeira mulher a ocupar o cargo no país (Finlândia). Trocas no ministério (Suécia), em setembro de 1999, fazem com que o país passe a ter pela primeira vez maioria feminina no governo: 11 dos 20 ministros são mulheres. A Embaixada da Finlândia no Brasil orgulha-se de informar, através de http://www.finlandia.org.br/portext/mulher.htm: AS MULHERES FINLANDESAS, ADIANTE NA IGUALDADE ENTRE OS SEXOS A mulher finlandesa foi a primeira no mundo a obter em 1906 a elegibilidade nas eleições parlamentares. Com a mesma reforma eleitoral ela também virou a primeira na Europa a obter o sufrágio universal. Naquela altura, só a Nova Zelândia aplicava sufrágio universal para mulheres, mesmo sem elegibilidade. Já nas primeiras eleições foram eleitas 19 mulheres, que constituíram quase 10% dos 200 deputados. O avanço não perde a importância pelo fato de que a legislatura foi a de um país autônomo, cujo Poder Executivo era subordinado ao Imperador russo. Os princípios da reforma eleitoral de 1906, onde foi suprimida a antiga Assembléia das quatro classes, continuam sendo válidos para a execução de eleições até hoje. As finlandesas já estão acostumadas a votar para mulheres e a percentagem de mulheres eleitas nas legislaturas mais recentes tem sido aproximadamente 35-40%, um número que de vez em quando tem sido suficiente para a liderança mundial, de vez em quando perdendo um pouco para algum outro país nórdico. As mulheres finlandesas obtiveram os plenos poderes políticos numa sociedade ainda com muitos laços patriarcais. Todavia, já em 1864, tinha sido promulgada a primeira das leis destinadas a eliminar a tutela da mulher. Uma mulher com 25 anos completados foi autorizada a tratar das suas coisas livre da tutela. A mulher casada tornou-se livre da tutela do seu marido em 1929. Na sociedade agrária daquela época, nas rigorosas condições de natureza da Finlândia, os trabalhos da agricultura tinham que ser feitos quando o tempo permitiu. Na altura própria, a família toda saiu para o campo. A idéia de uma mulher que não trabalha não tinha na Finlândia uma base favorável. Já em 1910 quase um terço dos trabalhadores da indústria e do ofício eram mulheres. Depois da Segunda Guerra Mundial, a parte das mulheres, particularmente também a das casadas, tem aumentado consideravelmente nos mercados de trabalho. Na Finlândia de hoje, o número das mulheres que não participam na vida laboral é minúsculo. As mulheres trabalham principalmente a tempo inteiro, e não largam o seu trabalho quando se casam e têm filhos. De acordo com a atual lei, cada mulher com emprego tem direito a uma licença de nove meses durante a período de maternidade. Durante a licença recebe parte do seu salário mais um subsídio 69 diário pago pela Caixa de Previdência. Parte da licença pode ser transferida ao pai. A lei obriga as prefeituras a arranjarem para as crianças na idade pré-escolar um lugar de assistência diurna. A mãe de uma criança com menos de três anos pode também, se quiser, deixar o trabalho com um subsídio para assistência da criança em casa. O patrão é obrigado a conceder a ela esta assistência maternal. As moças de hoje entram no mercado de trabalho com a vantagem de ser melhor formadas do que seus concorrentes masculinos. No ano 1992, 59% dos graduados pelas instituições vocacionais foram mulheres, e dos graduados pelas universidades as mulheres constituíram 55%. Este fato junto com a alta participação no mercado de trabalho ainda não resultou numa igualdade nem para a ocupação dos cargos de gerência ou administração superior, nem para o nível dos salários em geral. Para melhorar a participação das mulheres na execução de poder uma nova lei obriga todos os órgãos públicos a nomear um mínimo de 40% de ambos os sexos para todos os conselhos e grupos de trabalho da administração pública. Nos anos 90 ficou óbvio que as mulheres ja vêm penetrando também nas faixas superiores da sociedade: foram nomeadas mulheres para ocupar cargos como Diretora do Banco Central, Ministra das Relações Exteriores e Presidente do Congresso. Sem colegas no mundo inteiro a Ministra das Forças Armadas, Sra. Anneli Taina, já é a sucessora de outra mulher: Sra. Elisabeth Rehn, que durante a sua ocupação do mesmo cargo em 1994 quase chegou a conquistar o cargo de Presidente da República perdendo no segundo turno só com 47% contra 53% para seu concorrente masculino. 1995 foi um ano importante para a causa feminina, pois naquele ano ocorreu a IV Conferência Mundial sobre a Mulher: Ninguém fica indiferente ao deparar-se com a palavra China. Esse país de cultura milenar, com mais de 9 milhões e meio de quilômetros quadrados, detona em nossos cérebros e corações imagens e alegorias abundantes. Surgem dragões, mandarins, lanternas vermelhas, enguias, papiros, arrozais, surgem livros em que lemos que os chineses inventaram a pólvora e o macarrão. Surgem imagens de Mao, da Praça da Paz Celestial sangrando, da enorme muralha e de milhões de bicicletas. Pois foi na capital da China, Pequim, que teve lugar a IV Conferência Mundial sobre a Mulher. O ano era 1995, o mês era setembro, os dias foram de 4 a 15. No evento, compareceram delegadas e delegados governamentais de 184 países e cerca de 5 mil organizações não governamentais (ONGs). Paralelamente à Conferência – e como parte do mesmo processo – aconteceu o Fórum Mundial de ONGs em Huairou, a 60 km de Pequim. Participaram do Fórum em torno de 30 mil mulheres de todas as etnias, nacionalidades e representações sociais. Não pensem que as participantes estavam inventando a roda, o que ocorreu em Pequim e Huairou foi a culminação de um longo caminho de lutas e intensa preparação nos níveis nacional, regional e 70 mundial. Os destaques desse processo foram as Conferências Regionais dos Governos e os Fóruns Regionais de ONGs, realizados em cada continente. O objetivo de reunir tantos governos e mulheres dos quatro cantos do mundo foi elaborar um programa mundial de eqüidade, orientado para proteger os direitos humanos das mulheres. Como resultado da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, dois acordos foram firmados pelos 184 países presentes: a Declaração de Pequim e a Plataforma de Ação. Declaração de Pequim – Em síntese, a Declaração manifesta o reconhecimento dos governos – independentemente de seus matizes ideológicos, culturais e religiosos – de que a situação das mulheres experimentou avanços importantes, mas que persistem as desigualdades de oportunidades e direitos entre homens e mulheres, o que constitui um grande obstáculo para o bem-estar dos povos. Os governos comprometeram-se a combater as discriminações e desigualdades, aceitando que os direitos das mulheres são direitos humanos consagrados internacionalmente. Plataforma de Ação - O documento final da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, assinado por todos os países participantes, contém um conjunto de medidas que buscam eliminar os obstáculos que impedem a plena cidadania das mulheres e, por extensão, sua ativa participação nas vidas pública e privada. A Plataforma identificou doze áreas críticas impedidoras do avanço e empoderamento das mulheres. Essas áreas são as seguintes: A. Pobreza - que afeta de forma desigual mulheres e homens. B. Educação e Capacitação discriminar meninas e mulheres. que devem ser exercidas sem C. Saúde - que deve garantir o direito das mulheres ao controle reprodutivo e sexual, sem discriminação nem violência. D. Violência - que deve ser duramente combatida e condenada pelo Estado e pela sociedade. E. Conflitos armados - mulheres e meninas devem ser fortemente protegidas, uma vez que são as mais afetadas pelas guerras e pelo terrorismo. F. Economia - deve haver remuneração igual por trabalho igual entre homens e mulheres e criação de ações afirmativas que permitam o real acesso das mulheres à renda. G. Exercício do Poder - devem ser criados mecanismos que favoreçam a igualdade de participação das mulheres nas decisões políticas, diminuindo, assim, o atual desequilíbrio nas relações de poder. 71 H. Mecanismos Institucionais para a Eqüidade - que entre as várias medidas possíveis esteja a da integração de perspectivas de gênero nas políticas públicas. I. Direitos humanos - que os direitos humanos de mulheres e meninas sejam parte integrante dos direitos humanos universais e, portanto, em todos os principais instrumentos internacionais de direitos humanos fica vetada a discriminação de gênero por parte dos Estados. J. Meios de comunicação - que seja monitorada a imagem da mulher na mídia e desencorajada a inserção da mulher como objeto sexual e de consumo. K. Meio ambiente - que se criem mecanismos para a maior participação da mulher nas decisões relativas a questões de meio ambiente e desenvolvimento sustentável. L. A menina - Que sejam combatidas e condenadas quaisquer formas de abuso contra meninas e jovens mulheres, com ênfase em uma educação não discriminatória. A Plataforma de Ação Mundial também estabeleceu a necessidade da Assembléia Geral da ONU medir os progressos alcançados no tocante à sua realização e, portanto, ficaram acordadas avaliações para os anos de 1996, 1998 e 2000. No encerramento da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, ficou muito claro que para a aplicação da Plataforma de Ação são necessários o comprometimento efetivo dos governos, das Nações Unidas e das ONGs. E que todas essas formas de organização precisam incorporar a perspectiva de gênero em seus programas e políticas. E cabe a nós, organizadas ou não, fazer com que a Plataforma de Ação Mundial seja de fato, e não de ficção, um Instrumento de Ação, isto é, que seja um verdadeiro negócio da China para mulheres e meninas do mundo todo. (Fonte: Plataforma Pequim 95: Um Instrumento de Ação para as Mulheres, produção da Isis internacional www.undp.org.br/unifem/mariamaria/ ano2_n2/Pequim/ 1995umnegociodachina.rtf) 1.1 - FEMINISMO A Enciclopédia Brasileira fala no feminismo http://geocities.yahoo.com.br/vinicrashbr/historia/geral/feminismo.htm: Movimento sociopolítico que luta pela defesa e ampliação dos direitos da mulher. Surge na primeira metade do século XIX, na Inglaterra e nos EUA, com o objetivo principal de conquistar direitos 72 civis, como o voto e o acesso ao ensino superior. Ressurge na década de 60, nos EUA, com reivindicações mais amplas, como o direito à sexualidade e à igualdade com os homens no mercado de trabalho. Para o feminismo, as diferenças entre os sexos não se podem traduzir em relações de subordinação na vida social, profissional ou familiar. O movimento procura reforçar a identidade sexual feminina negando a relação de hierarquia entre o homem e a mulher. Defende, ainda, que as qualidades ditas femininas ou masculinas sejam vistas como atributos do indivíduo e não de um ou outro sexo. Ocupa-se de questões como sexualidade, controle da natalidade e violência contra mulheres. Embora tenha alcance internacional, o movimento feminista não é unificado nem possui uma organização central. Caracteriza-se pela auto-organização das mulheres em múltiplas frentes. Seus métodos de atuação variam: desde grupos de pressão política até grandes manifestações públicas. Conferência de Pequim – De 4 a 15 de setembro de 1995, representantes de 180 países reúnem-se na China num encontro promovido pela ONU para tratar das questões femininas. Aprovado por consenso, o documento final da conferência afirma que as mulheres são as principais vítimas da pobreza e denuncia que estupros sistemáticos estão sendo usados como tática de guerra. Entre os abusos contra as mulheres, também são denunciados no documento o casamento forçado, a exploração sexual, a circuncisão feminina, a seleção pré-natal por sexo e a violência doméstica. O texto sugere aos governos a revisão das leis que prevêem punições às mulheres que fazem abortos ilegais e inclui, entre os direitos femininos, o de decidir sobre temas ligados à sua sexualidade. Feminismo no Brasil – No Brasil, a luta das mulheres pelo voto dura 22 anos. Começa em 1910, com a fundação do Partido Republicano Feminino, no Rio de Janeiro, e termina em 1932, quando o presidente Getúlio Vargas promulga por decreto-lei o direito das mulheres de votar e ser votadas. Nos anos 60 e 70, o feminismo acompanha a luta pela volta da democracia ao país. São criados o Movimento Feminino pela Anistia e o Centro da Mulher Brasileira, e aparecem jornais como Brasil-Mulher e Nós Mulheres. A partir da década de 80, grupos feministas espalham-se pelo país. Ligado ao Ministério da Justiça, em 1985 é fundado o Conselho Nacional da Condição Feminina. LEIB SOIBELMAN informa a respeito do feminismo: Movimento originário do século XVIII que reivindica para as mulheres os mesmos direitos sociais e políticos que tem os homens. Teria surgido primeiro na França, por ocasião da Grande Revolução (1789), ou nos Estados Unidos com a publicação da obra "Vindicação dos direitos das mulheres" de Mary Wollstonecraft, em 1792. Houve época em que o movimento reivindicava principalmente o direito de voto para as mulheres (sufragistas) e depois passou a ser confundido com a própria revolução sexual. Modernamente não se limita mais a obter a igualdade jurídica entre homens e mulheres, pretende também a igualdade econômica e a eliminação da 73 supremacia masculina na família e fora dela, e a igualdade sexual. Stuart Mill escreveu sobre a "Sujeição da Mulher" em 1869, defendendo a igualdade jurídica dos seres humanos, e Ruskin em 1864 proferiu uma conferência depois publicada em 1865 sob o título de "Jardim das Rainhas", em que assume uma posição moderada, ou conservadora. Grande foi a contribuição de Engels, com a sua famosa obra "Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado" (1884), onde desmonta a tese da eternidade da família patriarcal, mostrando que a sujeição da mulher é um efeito da luta de classes através da história e que a família deixará de ser a unidade econômica da sociedade no dia em que os meios de produção passarem a ser de todos. B. - Kate Millet, La politique du mâle. Stock ed. Paris, 1971. DANIELA AUAD (2003:14) esclarece: ... o objetivo maior do feminismo é liberar tanto as mulheres quanto os homens para uma vida autêntica e consciente. [...] o feminismo busca que mulheres e homens compartilhem o poder na sociedade, e não que o poder seja apenas das nulheres. LEIB SOIBELMAN fala da revolução sexual: Nome que se dá ao movimento destinado a eliminar os tabus sexuais em matéria de homossexualismo, relações extraconjugais, prostituição, vida sexual do adolescente. Tem por objetivo estabelecer um princípio de tolerância e de liberdade total em matéria sexual, bem como destruir o patriarcalismo da família tradicional, libertando a mulher da submissão ao homem. Acreditam seus partidários que dando à mulher uma situação econômica de plena independência, eliminam também a submissão sexual e a moral dupla que hipocritamente seria mantida até hoje pela sociedade burguesa, admitindo para a conduta masculina o que não se permite para a conduta feminina, situação contraditória que não mais pode continuar do momento em que haja uma igualdade sexual. Há partidários dessa revolução sexual que pretendem até que as mulheres é que decidirão das futuras revoluções, aliando a sua sorte com a dos estudantes, negros, e pobres de todo o mundo, de modo a que elas farão a maior revolução social da história, libertando assim toda a humanidade das formas de opressão. Muito já se escreveu sobre o assunto, e não há uma uniformidade de vistas sobre os objetivos a serem atingidos pelo movimento. B. - Kate Millet, La politique du mâle. Stock ed. Paris, 1971. Tendo permanecido até há pouco tempo limitadas coercitivamente a um ambiente restrito, com a liberdade coarctada, não é de se estranhar que, surgindo um espaço maior de atuação, as mulheres queiram avançar até onde consigam. Eventuais exageros na área da sexualidade podem, ao invés de contribuir para valorizar as mulheres, reeditar, com outros contornos, o incidente do "julgamento" a que se refere o evangelista João, sem nenhum benefício real para a causa feminina. 74 1.2 - IGUALDADE Se, por um lado, o fato dos homens ocuparem as posições de comando ser quase regra geral, o oposto, ou seja, inverter-se essa situação em favor das mulheres também seria prejudicial. O ideal é a igualdade absoluta entre homens e mulheres tanto nas posições de comando como nas demais. Alcançar essa meta daqui a menos tempo depende de investir-se mais esforço nessa luta, merecendo aproveitar-se a oportunidade da 49ª Sessão da Comissão Sobre a Situação das Mulheres, que ocorrerá de 28 de fevereiro a 11 de março de 2005, em Beijing, como se noticia abaixo: (http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=14682) Plataforma da ONU que trata sobre direitos das mulheres será avaliada Adital - Após 10 anos de existência a Plataforma de Ação, proposta pela Onu, assinada em Beijing, em 1995, que trata, basicamente dos avanços dos direitos das mulheres, será colocada em avaliação por organizações e entidades de vários países. A 49ª Sessão da Comissão Sobre a Situação das Mulheres irá se reunir de 28 de fevereiro a 11 de março do próximo ano, em Beijing, China, e as entidades interessadas nas discussões já podem encaminhar suas inscrições. Organizações não governamentais que estejam credenciadas e em situação regular com o conselho econômico e social da Organização das Nações Unidas podem designar representantes para a sessão. As organizações não governamentais que não têm status consultivo, mas foram credenciadas para Beijing e Beijing +5 também podem assistir à 49ª Sessão em caráter excepcional. As ONGs mencionadas devem apresentar à divisão para o Avanço das Mulheres (Advancement of Women) o formulário com a lista de representantes impreterivelmente até 31 de dezembro de 2004. Os registros podem www.um.org/womenwatch/daw ser feitos no site As ONGs que estejam interessadas em enviar uma declaração podem fazê-lo até 15 de janeiro de 2005. Deve ser levado em conta que as declarações estarão sendo processadas em grande quantidade e que isso precisa ser feito antes do inicio da Sessão para que sejam elaboradas como documentos oficiais das Nações Unidas. As declarações devem ser enviadas diretamente à Vivian PlinerJosephs na Secretaria (Room S-295OE, Nações Unidas, Nova York, Nova York 10017). 75 Num conceito muito amplo, o objetivo da Plataforma é consagrar o compromisso da comunidade internacional em prol do avanço dos direitos das mulheres, propiciando mudanças de valores ou atitudes e práticas profundamente arraigadas que perpetuam a desigualdade e discriminação contra a mulher, tanto na esfera pública quanto na privada. A decisão de avaliar os parâmetros dessa plataforma foi tomada na 23º sessão da assembléia geral das Nações Unidas, em 2000, pelos países membros. Tal avaliação aconteceria, então, em 2005 e contaria os progressos ou não da iniciativa internacional. A Comissão vai considerar dois temas para discussão. Além da avaliação, o outro ponto será os desafios atuais e estratégias para o avanço do empoderamento das mulheres e jovens. Duas autoras a mais merecem ser lembradas, para finalisar nosso estudo: ÁUREA TOMATIS PETERSEN (2001:20-21) fala sobre as relações de gênero nos anos recentes: Nas últimas décadas, a situação social da mulher brasileira parece ter se alterado, consideravelmente. Hoje, é elevado o percentual de mulheres que estão no mercado de trabalho (em torno de 40%) e também é significativo o número das que fazem sucesso em carreiras que, até bem pouco tempo, eram quase que exclusivamente masculinas, como, por exemplo, medicina, engenharia, direito, economia, administração, informática, jornalismo. Já não é tão raro uma mulher ascender a um posto de grande prestígio na sociedade. Vejam-se as reitoras, recentemente empossadas em várias universidades do Rio Grande do Sul (na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Wrana Panizzi, na Universidade Federal de Pelotas, Inguelore Scheunemann e na Universidade de Cruz Alta, Lúcia Maria Baiocchi do Amaral), e a escolha da primeira mulher Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias. Também cresce a população feminina com formação universitária, superando os dados registrados entre os homens - 52,3% contra 47,7% . Nos próximos anos, estima-se que esse percentual aumentará, significativamente, visto que, hoje, 64% da população universitária é composta de mulheres. Saliente-se que as mudanças que vêm ocorrendo, na sociedade civil brasileira, determinaram que a Constituição de 1988 introduzisse alterações importantes quanto à relação entre homens e mulheres. No que se refere a esse tema, a Constituição preocupou-se, fundamentalmente, com a questão da isonomia, a qual introduziu a igualdade como princípio geral. Todos foram considerados iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Os direitos decorrentes da sociedade conjugal passaram a ser igualmente reconhecidos para homens e mulheres, sendo definido que a chefia 76 familiar deve ser compartilhada entre ambos os cônjuges. Também foram proibidas diferenças de salários, de exercício de profissão e de critérios de admissão ao trabalho por motivo de sexo. Ainda devem ser destacados alguns avanços decorrentes de compromissos assumidos na IV Conferência Internacional da Mulher, promovida pela ONU e realizada em Beijing. Nessa Conferência, esteve muito presente a preocupação em romper, radicalmente, com a herança cultural de desigualdade entre homens e mulheres, historicamente construída. Após a Conferência de Beijing, mulheres parlamentares brasileiras, respaldadas em acordos assinados nessa oportunidade, conseguiram aprovar emenda à legislação eleitoral que assegurou a obrigatoriedade da cota mínima de 20% de mulheres candidatas para os cargos legislativos nas eleições municipais de 1996. Isso permitiu que mais de 100 mil mulheres disputassem a eleição e que inúmeras fossem eleitas. E, nas páginas 22-26, aborda os limites dos avanços: Não podemos superestimar, entretanto, a profundidade dos avanços ocorridos, nem tampouco acreditar que a igualdade entre homens e mulheres, finalmente, foi alcançada. Sem dúvida, houve um significativo avanço para o gênero feminino, o que pode ser constatado no crescimento das oportunidades de educação, na ampliação de espaços no mercado de trabalho, em modificações no âmbito constitucional e jurídico, assim como na ampliação do espaço político das mulheres. Porém, essas mudanças ainda não foram suficientes para superar a desigualdade e a opressão das mulheres construídas ao longo da história. No mercado de trabalho, apesar do crescimento havido, o gênero feminino ainda está sub-representado, pois as mulheres (51% da população brasileira) possuem somente 40% dos empregos, enquanto os homens (49%) detêm 60% dos lugares. Além disso, as ocupações destinadas ao sexo feminino não são as de maior prestígio, nem as de melhor remuneração. As mulheres foram incorporadas profissionalmente a funções definidas como femininas, caracterizadas pela prestação de serviços a outrem e, conseqüentemente, menos remuneradas. De acordo com o Censo de 1980, as principais profissões femininas eram: empregadas domésticas (20%), secretárias (15%), professoras (8%), comerciarias (4,5%) e enfermeiras (2,5%). Essas profissões dispõem de baixo prestígio e são precariamente remuneradas. Veja-se o exemplo do magistério primário, onde 90% dos 1,5 milhão de profissionais são do sexo feminino. Essa profissão gozou de certo prestígio e foi relativamente bem remunerada, no século passado, quando era exercida, predominantemente, por homens. Hoje, quando predominam as mulheres, o magistério primário deixou de ser uma profissão prestigiada, e o salário pago aos profissionais tornou-se extremamente reduzido. 77 Essa constatação permite entender a afirmação de Margaret Mead, que segue: o homem pode cozinhar, tecer, vestir bonecas ou caçar colibris, mas se tais atividades são apropriadas ao homem, então toda a sociedade, tanto homens como mulheres, as considera importantes. Por outro lado, quando exercidas pelas mulheres, são consideradas menos importantes (MEAD apud ROSALDO, 1979, p. 15). Comparando-se os salários pagos a homens e mulheres, percebe-se que, embora a Constituição de 1988 tenha estabelecido a igualdade como princípio e vedado distinções de qualquer natureza, do que decorre que homens e mulheres devem ganhar o mesmo salário quando ocupam cargos iguais, ainda, os postos de maior remuneração permanecem concentrados em mãos masculinas. A trabalhadora ganha atualmente, em média, um salário equivalente a 76% do salário dos homens. O fato de as mulheres ganharem menos explica por que hoje, quando o País vive uma profunda crise econômica, estão abrindo-se espaços no mercado de trabalho para as mulheres, especialmente para as que têm formação universitária. Convém admitir mulheres com essa formação porque, enquanto 28% dos homens com curso superior completo ganham mais de vinte salários mínimos, apenas 7% das mulheres, na mesma situação, chegam a esse patamar salarial. José Roberto de Toledo, em artigo na Folha de São Paulo, faz afirmações que complementam o que foi dito: As mulheres com nível superior passaram a ser o objeto do desejo do mercado de trabalho. Nos primeiros cinco; meses do ano, as admissões/oram 86% maiores do que as demissões de trabalhadoras com esse perfil, em todo o país. No mesmo período, as contratações de homens que completaram a faculdade foi apenas 37% maior do que as demissões. Quem concluir que isso significa diminuição do machismo nas empresas estará enganado. Não se trata de diminuição de desigualdades, mas o contrário: as empresas têm preferido contratar trabalhadoras qualificadas porque elas ganham dois terços do que recebem os homens. Em São Paulo, o salário médio de admissão das mulheres com nível superior é 66% do de um homem com a mesma escolaridade (TOLEDO, FSP, 26/10/96, cad. 2, p. l). É evidente que a situação até aqui descrita não se limita ao Brasil. Dados estatísticos contidos no Relatório de 1995 do Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas (PDNU) corroboram a clara distinção entre trabalhadores do sexo feminino e masculino. Segundo esse relatório, as mulheres são hoje responsáveis por 70% das horas trabalhadas em todo o mundo (evidentemente aí está incluído o trabalho assalariado e o não pago, como é o caso das chamadas lides domésticas), mas, em contrapartida, detêm tãosomente 10% da renda mundial. Ainda, o referido relatório indica que 70% de 1,3 bilhão de pessoas que vivem abaixo da pobreza absoluta e dois terços dos analfabetos do mundo são mulheres. Também é dito que, se as mulheres recebessem pelo trabalho 78 doméstico não-pago, circulariam no mundo mais de 13 trilhões de dólares. Em resumo, as mulheres trabalham muito mais e ganham muito menos. De acordo com a advogada Leila Unhares Barsted, diretora da ONG Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (CEPIA), se fossem somadas e pagas todas as profissionais contidas numa dona-decasa, o custo seria muito alto. Por outro lado, é mais barato para o Estado e empresários que a mulher trabalhe em casa, pois assim não é preciso fazer creches, hospitais e serviços de atendimento aos idosos. Para Barsted, na verdade, as mulheres são a grande previdência social privada e gratuita (Cadernos Terceiro Mundo, n° 194, p.7). Os dados do Relatório das Nações Unidas, referentes ao Brasil, reforçam a idéia de que, embora tendo havido avanços, a desigualdade permanece, pois o País situa-se no 53° lugar no índice mundial de igualdade entre gêneros. Comparado com os demais países da América do Sul, o Brasil está em 6° lugar (antes estão o Uruguai, a Argentina, a Venezuela, o Chile e a Colômbia). Outra variável que comprova a desigualdade de gênero refere-se ao acesso aos cargos de mando no local de trabalho. Cabe salientar que, apesar de ter sido ampliado o espaço feminino no mundo do trabalho, isso não teve grande ressonância na esfera dos cargos de chefia das empresas brasileiras. De acordo com Andréa Puppim (1994), verifica-se uma notável sub-representação de mulheres nos quadros de comando: conforme dados de 1991, nos 300 maiores grupos privados nacionais, somente 3,47% de mulheres ocupam cargos executivos de topo. O percentual cai para 0,94%, se consideradas as 40 maiores estatais brasileiras, e reduz-se para 0,48% entre as 40 maiores corporações estrangeiras (p.13). Com respeito a esse ponto, é interessante fazer aqui referência ao livro de Yara Fontana, intitulado Como fritar as Josefinas, recentemente lançado. A autora, que é neta do fundador do Grupo Sadia - Attílio Fontana -, trabalhou durante 11 anos na empresa e, em seu livro, faz duras críticas ao que ela denominou de caráter machista da administração da Sadia. Segundo ela: A lei das sociedades anônimas estabelece que quem possui 10% das ações tem direito a assento no Conselho de administração. Mas a lei das empresas familiares é outra: quem tem 10% das ações tem direito a assento no conselho desde que não seja mulher; e homem senta até com 0,5% (Folha de São Paulo, 13/05/96, cad. 2, p. 6). Se esse tipo de discriminação verifica-se entre mulheres acionistas de empresas, não se pode esperar que mulheres, em geral, sejam por elas tratadas de maneira diferente. Um outro exemplo ilustra a utilização de critérios discriminatórios no ato de seleção, nas empresas privadas. Carmem Barroso, em depoimento à revista Veja, conta que, há vinte anos, formada em pedagogia, fez um curso de computação na IBM. Eram cinqüenta homens e apenas ela de mulher. Como foi uma das melhores alunas 79 da turma, achou que, facilmente, iria empregar-se na emergente área de informática. Foi à empresa Systems, em São Paulo, candidatar-se a uma vaga. Ouviu do diretor a seguinte frase: Olha, na minha/irmã não trabalha mulher. Trabalha só essa secretária que é velha e não cria casos (Veja, ago/set, 1994, p.36/7). Andréia Puppim, anteriormente citada, tomando como base os dados do Relatório Anual de Informações Sociais de 1988 (RAIS), refere-se a uma importante exceção, na questão do mercado de trabalho masculino/feminino que, em última análise, comprova a discriminação da mulher. Diz ela que há uma elevada concentração de mulheres em altos cargos do funcionalismo público (federal, estadual, municipal). A autora explica essa exceção, chamando a atenção para o fato de que a via de ingresso predominante nesse setor é o concurso público, o que limita as potencialidades de ação de critérios discriminatórios de gênero no ato de seleção de pessoal (p. l4). No campo político, a situação da mulher não é diferente, especialmente porque a cultura política brasileira enfatiza que política é coisa de homem, desestimulando a participação feminina. Não resta dúvida de que houve avanços, também, nesse setor nos últimos anos. Entretanto, as desigualdades ainda são muito marcantes. Dados estatísticos evidenciam que, embora as mulheres sejam mais de 50% do eleitorado, estão sub-representadas no Congresso Nacional, pois, das 81 cadeiras no Senado, apenas seis são ocupadas por mulheres e das 513 da Câmara Federal, somente 34 pertencem às mulheres. A representação feminina no Legislativo Federal, portanto, é de 6%, o que significa que os outros 50% da população - os homens - detêm 94% da representação política. E, encerrando seu texto, traz suas considerações finais (p. 27): Se, no limiar do século XXI, ainda é essa a situação da mulher, cabe a interrogação: Mas, afinal, por que isso ocorre? O que terá motivado a situação acima descrita? Elizabete Souza Lobo, uma das autoras do livro O sexo do trabalho (1986), pergunta: O trabalho tem sexo? Essa é uma pergunta absurda? É discussão do sexo dos anjos? A própria autora responde: Todos (as) sabemos que não é a mesma coisa ser mulher ou homem dentro de uma fábrica, num sindicato, ou simplesmente dentro de nossas casas. Vive-se no masculino ou no feminino [...] mecanismos quase invisíveis tecem as relações entre mulheres e homens na vida quotidiana [...] Estes fios sutis e às vezes imperceptíveis fazem com que tarefas, salários, qualificações e práticas sindicais sejam ao mesmo tempo articuladas e diferentes [...] Trabalho masculino é diferente de trabalho feminino, salário masculino é diferente de salário feminino. Trabalhador não é igual a trabalhadora. O trabalho também tem sexo. Se assim é, cabe refazer a pergunta de Simone Beauvoir: Afinal, como tudo isso começou? Na verdade, tudo começou há muito 80 tempo e é constantemente reforçado, estando muito presente na cabeça dos homens e também das mulheres. Sem a menor dúvida, ser mulher e ser homem são categorias socialmente construídas e resultam de uma intrincada rede de significações. Conforme disse Simone de Beauvoir: Não se nasce mulher, torna-se... MARILENE SILVEIRA GUIMARÃES (2001:29-37) trata da igualdade jurídica da mulher: A igualdade é um desejo universal, um valor jurídico e uma conquista individual. A lei de Manu estabelecia: "A mulher, durante a sua infância, depende de seu pai, durante a mocidade, de seu marido, em morrendo o marido, de seus filhos, se não tem filhos, dos parentes próximos de seu marido, porque a mulher nunca deve governar-se à sua vontade". Desde Aristóteles, são apregoados os direitos à igualdade entre todos os seres humanos. Com a Revolução Francesa, foi estabelecida a igualdade formal, ou seja, um direito à igualdade hipotético, genérico, mas de difícil efetividade, que, constando da Declaração dos Direitos do Homem, estabeleceu a igualdade como um princípio. A Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela ONU em 1948, e todas as declarações, tratados e convenções internacionais ocorridas após aquele documento até a Conferência de Pequim em 1995 passaram a alterar princípios e conceitos declarando sempre a imposição ético-ideológica de garantia da igualdade entre todos, tentando mudar a herança cultural da submissão da mulher ao homem e conseqüente efetivação da igualdade jurídica. Entre nós, foi a primeira Constituição do Império que inaugurou a garantia formal de igualdade. A Constituição de 1824 estabelecia que "a lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue,...." . A igualdade formal foi mantida nas demais Cartas Magnas, tendo o direito ao voto da mulher sido concedido apenas em 1932. A nova Constituição Federal de 1988 por duas vezes garante, expressamente, o princípio da isonomia: primeiramente nos Direitos Fundamentais do Homem, ao estabelecer que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", e adiante, especificando para não restar qualquer dúvida, reafirma que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição" e, no capítulo da família, reforça "os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. A Constituição Federal ainda proíbe diferenças de salário, de exercício de função e de critérios de admissão ao trabalho por motivo de sexo , garantindo também, ao homem e à mulher, ao cônjuge ou ao companheiro, o direito à pensão previdenciária. 81 Para garantia de todos esses direitos, a Magna Carta estabelece que "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Os textos constitucionais apregoavam a igualdade formal, perante a lei, porém a igualdade material, a igualdade na lei, somente passou a existir de forma efetiva, obrigatória, a partir do texto constitucional de 1988 que, além de traçar o princípio genérico, ainda inovou, explicitando a abrangência do papel da isonomia e, excepcionando, textualmente, alguns tratamentos desigualitários em respeito às diferenças naturais entre o homem e a mulher como o direito à licença maternidade com duração de dias; proteção da mulher no mercado de trabalho; aposentadoria para os homens e mulheres com tempo diferenciado. A discriminação entre homem e mulher acompanhou a história da civilização. Apesar da igualdade formal garantida há séculos, quase nenhuma igualdade material de efetiva aplicação, observou-se. Com certeza, a causa desse discrime é inconsciente. A compreensão do problema passa por uma análise interdisciplinar, através dos conhecimentos fornecidos pela história, sociologia, economia, psicologia, antropologia. Essa ciência informa como se deu a fixação da mulher no espaço privado do lar e a saída do homem para o espaço público: desde que as tribos deixaram de ser nômades, com o aumento da população e conseqüente escassez de alimentos, o homem passou a caçar grandes animais e a participar de guerras na defesa do território, enquanto as mulheres cuidavam dos filhos, semeavam e colhiam cereais. Também começou a haver sobra de alimentos, surgindo o comércio e o acúmulo de patrimônio. Possivelmente, o desejo de transmitir esse patrimônio a herdeiros legítimos fez com que o homem desejasse apropriar-se da mulher para ter certeza de sua sucessão. A família patriarcal, a partir do interesse econômico, desvalorizou a mulher, confinando-a no espaço privado do lar, quase como uma propriedade do marido, levando à construção de uma identidade psicológica de submissão, atavicamente transmitida de geração em geração. A Revolução Industrial, o movimento feminista, a liberação sexual através da pílula, o ingresso da mulher da classe média no mercado de trabalho levaram a mulher deste século a adquirir uma nova identidade. Embora existam registros de que, em 1836, na cidade de São Paulo, a maioria das famílias era monoparental e mantida pelas mulheres, como eram pobres e despolitizadas, não tiveram uma atuação importante social e juridicamente. Em 1916, o Código Civil Brasileiro considerou a mulher casada relativamente incapaz, determinando a obrigatoriedade de autorização do marido para trabalhar ou para gerir seus bens. Na segunda metade do século, as relações sociais mudaram profundamente, sendo editado, em 1962, O Estatuto da Mulher Casada, a partir do qual a mulher não mais foi considerada incapaz e dependente do marido após o casamento. O movimento de mulheres atuou diretamente no Congresso promovendo lobby durante a elaboração da Constituição Federal. 82 Importante estudo constante da tese de mestrado de Denise Bruno, que se reportou aos anais do Congresso durante a Constituinte, informa que os direitos femininos estão muito mais ligados aos direitos de proteção à célula familiar do que aos direitos das mulheres cidadãs, denunciando que "o reconhecimento de direitos femininos tenha se dado a partir de concessões e não de reconhecimento de direitos", numa confusão inconsciente entre cidadania de direitos e cidadania concedida, com o objetivo da manutenção da célula familiar, muito mais do que para efetivar os direitos da mulher. De qualquer forma, o fato é que hoje existe a garantia constitucional da isonomia material. Considerando o argumento constitucional da supremacia da lei maior, uma vez promulgada a nova Carta, os preceitos por ela declarados são de imediata aplicação, pois não há necessidade de regulamentação para a efetivação de direitos fundamentais. As lacunas do sistema codificado devem ser preenchidas através da analogia, utilizadas as normas que o sistema jurídico oferece para situações semelhantes. Os preceitos anteriormente codificados que contrariem a lei maior, diz-se que por ela não foram recepcionados, portanto, são revogados total ou parcialmente, não podendo ser aplicados, exceto no que concerne aos discrimes estabelecidos pela própria Constituição (9,10,11). Embora a Constituição Federal seja de 1988 e já estejamos em 1997, nenhuma alteração foi promovida nos códigos, cabendo aos advogados reivindicar ao Judiciário a aplicação da lei consoante a Constituição. A Constituição Federal está no vértice do sistema jurídico de uma nação e, como lei maior, deve ser imediatamente aplicada pelo juiz que, agindo de forma contrária, está proferindo decisões inconstitucionais. A partir do princípio da isonomia, é possível afirmar que não mais existe a figura do cabeça do casal, expressão atribuída ao homem e que o autorizava a gerir sozinho o patrimônio familiar, sem ouvir a mulher. A Constituição, hoje, garante a cogestão desse patrimônio tanto para os casais casados como para os que vivem em união estável. Quanto à guarda dos filhos, também inexiste discrime, e o Estatuto da Criança e do Adolescente garante o exercício do pátrio poder por ambos os pais. Na mesma esteira, está revogado o dispositivo que autoriza a mulher a ter bens reservados, adquiridos com o fruto de seu trabalho, uma das mais importantes conquistas do Estatuto da Mulher Casada, de 1962 . Em nome da igualdade jurídica, esse dispositivo está revogado, pois estendê-lo aos homens geraria enorme injustiça, uma vez que, na grande maioria dos casais brasileiros, o homem ainda é o único a ter renda ou sua renda é maior. Assim, também a exigência de que a mulher de 50 anos ou o homem de 60 anos casem pelo regime de separação legal de bens mostra-se discriminatória. Por certo, as mulheres que completaram 50 anos não são incapacitadas mentais ao ponto de se deixarem envolver por um sedutor que esteja querendo aplicar o golpe do baú. 83 Quando a mulher vivia em união estável, a partir de 1964, passou a receber direito à partilha de bens, de forma proporcional ao esforço comprovado. Não herdava nada do companheiro e não tinha direito a receber alimentos, por mais necessitada que estivesse. Na defesa dos interesses dessas mulheres, os advogados passaram a peticionar, e os magistrados a conceder indenização por serviços prestados, ferindo a dignidade de quem havia vivido como se fosse esposa. Hoje, a companheira tem reconhecidos praticamente os mesmos direitos da mulher casada. No casamento, o uso do sobrenome do marido também é facultativo e, pelo princípio da isonomia, pode-se afirmar que seja facultativo tanto para o homem como para a mulher, pois desde 1977, com a lei do divórcio, adotar o sobrenome do marido é mera faculdade. Mesmo passados 20 anos, a mulher ainda muda a sua identidade civil, agregando os apelidos do marido, repetindo a herança cultural. Todos os preceitos que tratarem desigualmente o homem e a mulher estão revogados pela nova Constituição, seja matéria civil, penal, trabalhista, ou processual. Nos processos judiciais, é comum encontrar referências à mulher com expressões como: "honestidade, conduta desregrada, perversidade, comportamento extravagante, vida dissoluta, situação moralmente irregular", impregnadas de ideologia preconceituosa. O abandono do lar pela mulher é considerado grave desrespeito à família, passível de penalização e que, se não forem tomadas providências legais acautelatórias, pode ser usado, em represália, como argumento para liberar o varão do pagamento de pensão alimentícia, por mais necessitada que se mostre a mulher. Impregnado de ranço discriminatório é o dispositivo da lei do divórcio que libera o homem da obrigação alimentar quando a mulher for considerada culpada pela separação. Quem, de sã consciência, pode garantir que o comportamento aparente desse ou daquele cônjuge autorize a julgá-lo culpado, sem conhecer o que estaria por trás da atitude considerada culposa? Quando a mulher já recebe alimentos e vem a construir uma nova relação fixa e duradoura através de casamento ou de união estável, o alimentante logo é exonerado da obrigação alimentar. Quando mantém apenas uma relação eventual, ou mesmo um namoro, os homens tentam se liberar da pensão e na maioria das vezes conseguem. Para manter o direito a alimentos ou a guarda dos filhos é exigido que a mulher tenha um comportamento casto. Inúmeras são as decisões punitivas ao exercício da sexualidade feminina, embora já se observe alguma mudança de valores nas decisões do Superior Tribunal de Justiça. 84 Para as mulheres jovens e com alguma habilitação profissional, também não são mais concedidos alimentos. Quando a mulher, apesar dessas características, desde que casou, abandonou a profissão para criar e educar os filhos, ou para acompanhar o marido, incentivando-o e auxiliando-o no seu desenvolvimento profissional, têm sido reivindicadas e começam a surgir decisões favoráveis à concessão de alimentos transitórios, ou seja, concedidos por algum tempo, até que a mulher possa integrar-se no mercado de trabalho. Também a sujeição econômica da mulher a faz ser psicologicamente dominada. Mas é curioso observar que mesmo as mulheres independentes economicamente entregam aos maridos a incumbência de gerir os seus ganhos pessoais. Na esfera pública, observam-se mulheres atuando em muitas atividades importantes, mas, no momento de competir aos cargos de poder, elas se autoexcluem. Portanto, não basta que a igualdade jurídica da mulher seja constitucionalmente assegurada. Para que a igualdade se torne efetiva, necessário se faz repensar o mito da submissão feminina a partir da compreensão dos mecanismos de discriminação: institucionais, sociais, educacionais e principalmente internos, emergentes da identidade psicológica. É possível afirmar que a igualdade se garante quando ela existe a partir de um sentimento pessoal, de identidade construída internamente. Somente a partir daí se aprende a conquistar a igualdade no espaço público. Estudos realizados recentemente nos EUA alertam que, no ritmo em que se encontram as conquistas femininas, levará cerca de 450 anos para que seja adquirida a plena igualdade econômica e de decisões. Contudo, a face mais cruel da desigualdade é a violência praticada contra a mulher. Estatísticas da ONU informam que, no mundo, a cada seis minutos uma mulher é vítima da violência no lar. Assim como a mulher não deve ser estimulada a se sentir uma eterna "vítima", é importante, também, não permitir a banalização da violência. Imperioso, também, que a mulher deixe de ser a "rainha do lar" para ser a co-partícipe da aventura da parceria do casal. No espaço público, importante que possa galgar cada vez mais cargos com poder de decisão, para construir uma identidade de independência, a partir dos valores femininos. Somente assim poder-se-á dizer que a mulher se constrói cidadã, que se respeita e que se faz respeitar. A busca de uma sociedade justa, mais cooperativa, conduz a uma nova era em que a ordem não é reivindicar os direitos em relação ao homem, mas sim exercê-los com o homem para ingressar no terceiro milênio com uma cultura nova onde haja maior valorização dos indivíduos, o que redundará na efetivação da, igualdade dos direitos entre o homem e a mulher. Igualdade não se decreta, constrói-se. CONCLUSÃO 85 1) O "julgamento" da mulher adúltera (que, na verdade, não foi um julgamento) significou uma demonstração inequívoca de discriminação absurda contra o sexo feminino. 2) Essa discriminação ainda existe, como resultado da pequena distância moral que nos separa dos nossos antepassados daquela época. 3) Determinados benefícios previdenciários concedidos às mulheres (por exemplo, aposentadoria com menos idade e menor tempo de contribuição) não solucionam o grave problema da inferioridade que se impõe às mulheres, pois geralmente trabalham em postos cuja remuneração é menor. 4) De início, temos de reconhecer a irracionalidade desse tratamento inferiorizante das mulheres e, depois, partirmos para implantar a igualdade sem restrições. 5) Tomemos a Suécia e a Finlândia como modelos de mais ampla participação feminina na vida pública. 6) A única solução compatível com a gravidade e urgência da situação é a adoção, por força de lei, do sistema de cotas. 7) Nossa sugestão é de que nos cargos públicos dos três Poderes se reserve 50% das vagas para as mulheres, e, no que for aplicável, nos demais setores de trabalho. 8) Sem a aplicação de medidas enérgicas estaremos simplesmente adiando a concretização da igualdade entre homens e mulheres. NOTAS [1] A. VAN DER BORN (2004) esclarece sobre o adultério: (I) No AT o matrimônio não era considerado como uma instituição religiosa, nem como instituição de direito público. Os costumes, porém, e a lei escrita protegiam-no, e o adultério era punido pelo direito público. O homem tinha nestas coisas mais liberdade do que a mulher. O homem só e acusado de adultério com uma mulher casada ou com uma noiva (Ex 20,17; Dt 5,21; Lev 20,10; Dt 22,22; mulher casada; Dt 22,23-27: noiva), não por relações com uma mulher não casada ou com uma escrava (Dt 22,28). Portanto, também no AT valia o princípio, que se encontra mais tarde no direito romano: a mulher só comete adultério contra o seu próprio matrimônio, o homem só contra o de outro homem. Além disso, o homem, suspeito de adultério, nunca podia ser submetido a um exame humilhante, a mulher sim (Num 5,llss). Os culpados de adultério deviam ser apedrejados, tanto o homem como a mulher casada (Dt 22,22; cf. Ez 16,40; Jo 8,5), e ainda qualquer mulher que se deixara violar dentro dos muros da cidade (Dt 22,23s), não a mulher que foi violada "no campo" (Dt 22,25-28); a lei supõe, portanto, que dentro da cidade a mulher teria sido ouvida se, 86 resistindo, tivesse gritado por socorro. O homem que seduziu uma moça tinha a obrigação de pagar uma indenização ao pai e de se casar com a moça (poligamia!); além disso perdia o direito de se separar dela posteriormente (Êx 22,15s; Dt 22,28s). Outros castigos para o adultério foram a mutilação (Ez 23,25) e a queimação (Gên 38,24; Lev 21,9). Apesar de tudo isso o adultério era um mal freqüente; os livros sapienciais falam repetidas vezes sobre o perigo da mulher adúltera (Prov 2,16-19; cf. Mal 2,14; Prov 5,15-23; 6,2435; 7,5-27; 23,27s; 30,20); Eclo 23,22-27 refere-se ao pecado da mulher adúltera. Os, Jer e Ez apresentam a relação entre Javé e o seu povo sob a imagem de um matrimônio (—> aliança) e estigmatizam muitas vezes a infidelidade de Israel e o culto a outros deuses como um adultério (Os 2,4s; Jer 2,2; 3,8s; 5,7; 9,1; 13,22.26s; Ez 16.23 passim). (II) O NT cita o sexto mandamento do decálogo (Mt 5,27; 19,18; Mc 10,19; Lc 18,20; Rom 13,9; Tg 2,11). O decálogo já proibia cobiçar a mulher do próximo (Êx 20,17; Dt 5,21), Jesus equipara o desejo ao ato (Mt 5,28). Contudo, a sua condenação tão severa do adultério (cf. Mc 10,lls) não exclui uma atitude misericordiosa para com a mulher adúltera (Jo 8,2-11); "vai e não tornes a pecar", é o julgamento de Jesus. Para S. Paulo o adultério não é apenas um assunto jurídico (Rom 7,3), mas também uma transgressão da vontade de Deus (Rom 13,9; ITess 4,3s; l Cor 6,18). Os adúlteros não entrarão no Reino de Deus (l Cor 6,9); a mesma coisa em Hbr 13,5; et. 2Pdr 2,14. Em sentido figurado, como em Os, Jer e Ez, o termo é usado em Mt 12,39; 16,4; Mc 8,38 (os contemporâneos incrédulos de Jesus), Tg 4,4 (os mundanos) e Apc 2,22 (os falsos profetas). JAYME DE ALTAVILA (2000:32) comenta a respeito do adultério: A lei mosaica não admitiu remissão para os adúlteros. E, em todas as legislações antigas, que cotejamos, se encontram penalidades extremas. Assim instituiu o Deuteronômio: - "Quando um homem for achado deitado com mulher casada com marido, então ambos morrerão, o homem que se deitou com a mulher e a mulher: assim tirarás o mal de Israel". (22.v.22) Compêndio das leis que ele legou ao povo tirado da escravidão para a liberdade do estado teológico, erigido sobre uma moral diferente de todas as civilizações antigas. [2] A. VAN DER BORN (2004) diz sobre Moisés: (I) No AT. No conjunto de Êx 2,10-Jos 24,5, Moisés é mencionado mais de 700 vezes (nos demais livros históricos, 51 vezes, nos livros proféticos apenas 4 vezes; depois, 8 vezes nos Salmos e 2 vezes em Dan). No entanto, temos poucas informações certas sobre a sua pessoa. Ninguém mais nega a sua existência histórica, mas um estudo crítico terá de distinguir entre aquilo que ele foi realmente, e aquilo que dele fizeram certas tradições, e, mais tarde, "a" tradição dos israelitas. O nome é egípcio (a etimologia popular de Êx 1,10 deriva-o do hebr.), mas a aparição em que lhe é revelado o nome de 87 Javé se dá fora do Egito. Ele tem uma mulher madianita (Êx 2,11-21) e/ou etíope (Num 12,1); em Jz 1,16 e 4,11 ele tem um —> sogro ceneu; seu neto é sacerdote da tribo de Dan (Jz 18,30). Seu túmulo é desconhecido. Nas tradições relatadas no conjunto Êx-Jos, Moisés é aquele que, nascido no Egito de pais israelitas, liberta os israelitas do Egito, promulga e escreve num livro as leis e prescrições de Javé, conduz os israelitas, através do deserto, para Canaã, sem ele mesmo entrar. E' essa também a base em que o judaísmo posterior construiu as suas idéias sobre Moisés (parcialmente refletidas no NT —> II). Por isso os textos fora do conjunto Êx-Jos chamam-no servo de Deus (2Rs 21,8; SI 105,26; Mal 3,22), dileto de Deus (SI 106,23), sacerdote (SI 99,6), legislador (Bar 2,28), profeta (Os 12,13; Sab 11,1), homem de Deus (Icrôn 23,14; SI 90,1). Os profetas mencionam-no raramente (Ez nenhuma vez); dirigem os seus olhares para o tempo de Moisés, mas não a ele mesmo. Também não é mencionado como fundador de uma religião: não é nele que os profetas se apóiam para converter seu povo, mas exclusivamente em Javé. A tradição de Êx-Jos não os parece ter tocado, ou pelo menos não influenciou decisivamente as suas idéias sobre Moisés. De fato, fazendo-se abstração de alguns textos, como Êx 2s; 34,29s, é fora do AT hebraico, no cântico de louvor de Eclo 45,1-6, que se encontram os primeiros indícios de uma glorificação de Moisés e de uma formação de lendas a seu respeito. Fora da "Lei de Moisés" (termo esse, cujo conteúdo varia), são-lhe atribuídos, no AT, um cântico (Dt 32,1-43; cf. W. L. Moran, Bb 43,1962, 317-327), uma bênção (Dt 33,1-29) e um salmo (90). —> Monoteísmo; Bênção de Moisés. (II) Para o judaísmo posterior Moisés é a figura principal da história da salvação no AT; um grande número de lendas é tecido em tomo de sua pessoa. No judaísmo helenístico do século I aC surgiu um romance sobre Moisés, no qual ele é o mestre da humanidade, o homem genial ou o piedoso ideal, e no qual a sua morte se torna uma apoteose (morreu em glória ou foi elevado ao céu). Por esse romance, que polemiza evidentemente com uma lenda egípcia antisemítica sobre Moisés, nasceu uma imagem de Moisés notavelmente diferente da imagem bíblica. Também no judaísmo palestinense Moisés é glorificado, não porém na qualidade de herói, como entre os helenistas, mas na de —mediador da revelação, o mestre de Israel por excelência. Aqui, portanto, a figura de Moisés está mais perto dos dados bíblicos. No entanto, são-lhe aplicadas diversas noções soteriológicas. Isso, porém, não tanto em escritos apócrifos, como nas expectativas do povo. Ele entra na escatologia, toma-se provavelmente uma figura do Messias (cf. Dt 18,15-18), o Messias é concebido como um segundo Moisés, a libertação do Egito como prefiguração da redenção messiânica (cf. p. ex. At 21,38). Também esse segundo Moisés terá, de sofrer. O judaísmo posterior atribuiulhe o livro dos Jubileus e a Assumptio Mosis. (III) No NT Moisés é em primeiro lugar o mensageiro e servo de Deus, o legislador de Israel, ou, melhor, o mediador da Lei que recebeu no Sinai das mãos de anjos. Por isso diz-se muitas vezes "Moisés" em vez de "Lei de Moisés". E' também profeta, a saber, profeta que anuncia Cristo. Um aspecto novo encontra-se em At 7,1744 (Moisés como testemunha de fé, não compreendida) e Hbr 11,2329 (Moisés como exemplo de fé). O NT, porém, é influenciado 88 também pelas idéias sobre Moisés no judaísmo posterior palestinense (não helenista) (At 7.22S.30.38; Gal 3,19; 2Tim 3,8; Jud 9). Inteiramente nova, e inédita no judaísmo, é a crítica de Jesus sobre Moisés Existe, afinal, uma tipologia evidente. Moisés prefigura C.: em Hbr o antítipo supera muito o tipo; em Jo é relevada antes a oposição entre tipo e antítipo. J. Jeremias (ThW 4,878) observa com razão que Moisés e Cristo, como fundadores do AT e do NT, são figuras paralelas enquanto ambos experimentaram contradição e humilhação, mas que há antes oposição entre as religiões que pregaram, a saber, a Lei e o Evangelho. (IV) Foram atribuídos a Moisés os seguintes escritos apócrifos e pseudepigráficos: (1) O Apocalipse de Moisés, escrito judaico, redigido no século I dC em hebraico ou aramaico, mas conhecido apenas em traduções grega e armênia. Trata de Adão, Eva, Set e Caim e apresenta notável semelhança com o livro Igualmente apócrifo "Vida de Adão e Eva". O nome "Apc de Moisés" portanto não é feliz. Ver Eissfeldt, Einleitung § 103. Tradução alemã em Kautzsch, Apokryphen 2,506-528. (2) A Assumptio Mosis, escrito judaico, redigido no século I dC em hebraico ou aramaico, mas apenas conhecido, parcialmente, em tradução latina (faltam o princípio e o final; sobre a luta em tomo do cadáver de Moisés: Jud 9). O conteúdo é uma visão do futuro de Israel (até a morte dos filhos do rei Herodes Magno) que Moisés, antes de sua "ascensão ao céu", esboça para Josué; termina com um discurso de consolação de Moisés e contém reminiscências dos escritos de Qumran. Ver Eissteldt, Einleitung § 98. Tradução alemã em Kautzsch, Apokryphen 2,311-331. [3] A. VAN DER BORN (2004) diz sobre o Decálogo: Decálogo, assim são chamadas as "dez palavras" que Moisés por ordem de Javé (Êx 34,28), ou que o próprio Javé (Dt 4,13; 10,4) escreveu nas duas tábuas de pedra, e que continham as obrigações fundamentais da —* aliança. O nome d. encontra-se pela primeira vez em Ireneu (Adv. Haer. 4,15; MG 7,1012) e em Ptolemeu (ep. ad Floram 3,2; MG 7,1285). A respeito do d. podem-se pôr as seguintes questões de ordem literária e histórica. (I) Questões de ordem literária. Possuímos o d. em duas formulações, que nos foram transmitidas em Êx 20,1-17 e Dt 5,6-21. Na maior parte essas duas fórmulas concordam, p. ex., quanto ao estilo do "direito apodíctico" (A-AIt): prescrições breves, compactas, consistindo num verbo na segunda pessoa, com uma proibição (em oposição ao "direito casuístico", que prevê determinações para casos concretos, condicionados). De outro lado, porém, há algumas diferenças notáveis em relação à composição literária de cada uma destas fórmulas. Dt 5,21, em oposição a Êx 20,17, isola a esposa do próximo dos seus demais haveres, fazendo de "cobiçá-la" o objeto de uma proibição especial: "Não cobiçarás a esposa de teu próximo". Isso é evidentemente um indicio do espírito humanitário de Dt. O mesmo espírito manifesta-se 89 na motivação do descanso do sábado (Dt 5,14: "para que o teu escravo e a tua escrava descansem, como tu mesmo"); em Ex 20,11 esse descanso é prescrito como imitação do descanso de Javé no sétimo dia da criação. — Do ponto de vista literário o número de dez é interessante. A constância da tradição neste particular causou uma diferença de numeração, que hoje ainda persiste. Dt distinguia entre a mulher e o resto das posses; isso fez surgir a opinião de que Dt 5,21 se refere propriamente a duas transgressões, de um lado o desejo do adultério, do outro lado o desejo do roubo (como também o adultério e o roubo são proibidos por duas determinações distintas). Essa opinião foi ainda confirmada pelo fato de que os LXX adotaram em Êx 20,17 a versão deuteronomística (colocando a cobiça da esposa do próximo antes da cobiça dos seus haveres); não é, pois, de admirar que essa opinião já se encontra em Clemente de Alexandria (Strom. 6,16; MG 9,361); foi defendida também por Agostinho (Quaest. in Ex 71; ML 34,620) e por muitos outros Santos Padres; ela é comum na Igreja latina e entre os luteranos. O Talmude, porém, bem como Filo (De Decálogo 65-106), Fl. Jos. (Ant. 3,5,5) e a maioria dos Santos Padres antes de Agostinho (Gregório de Nazianzo, Jerônimo, etc.), consideram toda a proibição de cobiça (de esposa e de bens) como um só mandamento; e esse modo de ver ainda é aceito hoje na igreja grega, e entre os calvinistas. Por causa do número tradicional de dez, os fautores da divisão da "proibição da cobiça" eram obrigados a ligar a proibição das imagens, em Ex 20,4-6 ou Dt 5,8-10, com a proibição da idolatria (Éx 20,3; Dt 5,7). Ora, é evidente que na prática, e no decurso da história de Israel a veneração de imagens coincidiu, de fato, com a idolatria e a veneração de deuses estrangeiros (e é isso, sem dúvida, o que visam Ex 20,5 e Dt 5,9). Será difícil, portanto, dirimir a questão, qual das duas opiniões corresponde, no fundo, melhor à intenção das duas versões do d. (a que une idolatria e veneração de imagens, e distingue duas espécies de cobiça, ou a que distingue entre idolatria e veneração de imagens, unindo todas as formas de cobiça); seria argumento bem fraco dizer que a metade dos mandamentos (uma das duas tábuas) deve-se referir ao próximo, devendo portanto conter cinco (e não seis) mandamentos. Pois a primeira metade (que diz respeito a Deus, e aos pais que deram a vida) é formulada muito mais largamente, e deve portanto ter ocupado muito mais lugar nas tábuas de pedra. — Resumindo, podemos dizer que Ex 20,1-17 e Dt 5,6-21 constituem duas variantes de um mesmo texto original; as pequenas diferenças provam que a formulação do d. deve ter tido raízes multo profundas na tradição (muito mais profundas, p. ex., do que o chamado d."cúltico", que os exegetas tentam reconstruir com textos de Êx (34.14.17.19a.20b.21.23.25a.25b.26a.26b). Trata-se, de fato, de termos fixos, bem determinados, que exprimem as exigências fundamentais da vida religiosa e moral de Israel. (II) Questões históricas. Essas dizem respeito, sobretudo, à origem e ao ambiente histórico. (A) Quanto ao tempo de origem, sem dúvida, o decálogo é anterior à data em que recebeu a sua forma literária em Êx e Dt. Mowinckel (Bibl.) coloca a origem do decálogo no tempo dos profetas, de cuja pregação, conforme ele, o decálogo é um reflexo adequado; contra essa tese (opugnada também por protestantes, como Volz e Kittel) 90 pode-se alegar o seguinte: Tem-se a impressão de que a pregação profética supõe o decálogo, e não o criou; a reação de certos profetas é tão firme e tão enérgica, que eles aparecem evidentemente como mantenedores de uma tradição conhecida e inelutável (2Sam 12,1-11: Natan contra Davi; IRs 17,18: Elias contra os devotos de Baal; Am 5,26; contra a idolatria; Os 8,4.11.14). Mais de uma vez os profetas se referem a catálogos de pecados bem conhecidos (Os 4,2; Jer 7,9), e a prescrições invioláveis (Am 2,4: "lei de Javé"; Os 4,6: "a lei de vosso Deus". Os 8,12: "por mais numerosas leis que eu vos prescreva"; Jer 6,19: "a minha lei". Além disso é ainda viva a lembrança de uma legislação "no deserto" (Am 5,25; Ez 20,10) "em duas tábuas de pedra" (Êx 24,12; 31,18; 32,15; Dt 9,1; 10,1-4). Não há motivo para discordar da tradição que põe o decálogo em relação com a atividade legislativa de Moisés (Êx 24,18.12); a proibição das imagens não pode valer como prova de uma data mais recente do decálogo (tal proibição, assim argumentam, indica uma mentalidade muito espiritualista, que não é provável no tempo de Moisés), pois a tradição é unânime em julgar rejeitável qualquer representação do Deus de Israel (cf. as reações veementes dos profetas: Os 8,5; 10,5; Am 5,5). Outros quiseram negar a origem mosaica do decálogo, alegando que a proibição de "pecados internos", de maus desejos, seria inverossímil no ambiente primitivo de Moisés, ou que não podia ter faltado alguma alusão à instituição jurídica da vingança de sangue; mas também esses argumentos não provam nada: se não quisermos pôr em dúvida o próprio teor dos textos, é preciso aceitar o seu testemunho inequívoco. B) Pois é de suma importância não perdermos de vista o fundo histórico do decálogo e da sua promulgação por Moisés. Uma comparação do decálogo com os chamados catálogos de pecados no "Livro dos mortos" egípcio (§ 125; séc. XVI-XVII aC) ou nos textos mágicos da Assíria (AOT 9-12 e 324s) mostra que a maior parte dos mandamentos do decálogo de Israel já eram conhecidos antes de Moisés, como sejam: a proibição do roubo, do assassínio, da mentira, da falsificação de mercadorias, do desprezo dos pais, da ofensa dos deuses, etc. Tudo isso era considerado moralmente errado; trata-se, portanto, de violações da lei da natureza. E' digno de reparo, porém, como, em comparação com as prescrições bastante ritualistas dos egípcios e babilônicos, povos bastante civilizados, o decálogo dos hebreus possui profundeza e radicalismo extraordinários. O próprio Javé, pessoalmente, apresenta a seu povo uma exigência moral, que apela para o que há de mais profundo na consciência do homem; tal intervenção sobrenatural de Deus na vida privada e social de cada indivíduo é desconhecida no Egito. Quanto aos textos assírios, é evidente que eles são incomparavelmente inferiores ao alto valor moral e religioso do decálogo, pois estão completamente imbuídos do princípio da magia (que pretende exercer pressão sobre Deus, em vez de o servir). Não há, portanto, nenhum motivo para negar a originalidade do decálogo israelítico, pelo menos neste sentido de que o espírito dessas "dez palavras" transforma as obrigações mais antigas do homem, fazendo delas os sinais de uma "aliança" particular, concluída por Deus com Israel. E' também possível, p. ex., que a celebração do sábado remonte a uma festa lunar pré-mosaica (cf. Ex 20,8; inúmeras vezes o sábado é mencionado em relação com a "lua nova": 2Rs 4,23; Is 1,13; 65,23; Os 2,13; Am 8,5; Ez 45,17; 91 46,2; ICrôn 23,31; 2Crôn 2,3; 8,13; 31,7), mas é claro e evidente que o sentido do sábado foi completamente transformado pelo fato de que "Javé o abençoou e o declarou santo" (Êx 20,11). Outra questão histórica diz respeito à credibilidade da tradição que atribui a Moisés um papel muito importante como mediador do decálogo Conforme o testemunho de Êx 2 Moisés foi educado nos círculos egípcios cultos, os quais tinham sido seriamente abalados pela crise de Amenófis IV (Acnaton): durante a juventude de Moisés, portanto, foi posto, sem dúvida, o problema do fundamento religioso da moralidade. E' bem possível que a Providência se tenha servido desta circunstância para inculcar a base monoteísta das obrigações éticas. Visto que houve uma espécie de aliança entre Javé e seu povo (tem-se insistido muito, ultimamente, numa semelhança formal com as chamadas "alianças de soberania" hetéias, em que algum grande rei faz contratos com uma série de vassalos; Mendenhall [Bibl.]), não é de admirar que a carta magna dessa aliança fosse gravada em duas tábuas de pedra; esse dado da tradição (Êx 24,12; 31,18; 32,15; Dt 9,1; 10,1-4) projeta muita luz sobre a mediação de Moisés. Conforme Êx 24,12 o próprio Javé escreveu "a lei e os mandamentos, com seus próprios dedos" (Êx 31,18); conforme Êx 34,28, Moisés escreveu as determinações da Aliança, os dez mandamentos, nas tábuas. Em ambos os casos, a intenção do autor sagrado é bem clara: as tábuas são obra de Deus, e a escrita, gravada nas tábuas, é a escrita do próprio Deus (Êx 32,15; Dt 4,13; 5,22; 9,10). Assim como, segundo a literatura egípcia, as leis foram feitas "pelo dedo de Toth", assim também o decálogo é, em última análise, e de uma maneira muito real, a obra de Deus por intermédio de seu servo Moisés (Dt 4,14). O dom da lei de Deus, porém, e particularmente o do decálogo não era destinado apenas para o Israel segundo a carne, mas também para o "novo Israel", que é a Igreja de Cristo. Por isso o decálogo é várias vezes citado no NT por Jesus e pelos apóstolos, embora nem sempre na ordem tradicional dos mandamentos (Mt 19,18s par.; Rom 13,9; Tg 2,11); de outro lado os dois mandamentos principais: o do amor de Deus e o do amor do próximo são recomendados como compêndio de toda a Lei (Mt 22,40; Lc 10,26s). [4] Antigo Testamento: conjunto formado pelos seguintes livros: 1) Pentateuco (Gênesis - Êxodo - Levítico - Números - Deuteronômio; 2) Livros Históricos (Josué - Juízes - Rute - I Samuel - II Samuel - I Reis - II Reis - I Crônicas - II Crônicas - Esdras - Neemias - Ester); 3) Livros Poéticos e Sapienciais (Jó - Salmos - Provérbios - Eclesiastes - Cânticos dos Cânticos) e 4) Livros Proféticos (Isaías - Jeremias - Lamentações Ezequiel - Daniel - Oséias - Joel - Amós - Obadias - Jonas - Miquéias Naum - Habacuque (ou Habacuc) - Sofonias - Ageu - Zacarias - Malaquias). [5] Novo Testamento: conjunto formado pelos seguintes livros: Evangelhos Sinópticos e Cartas Paulinas (Mateus - Marcos - Lucas - João - Atos dos Apóstolos - Romanos - I Corintíos - II Corintíos - Gálatas - Efésios - Filipenses Colossenses - I Tessalonicenses - II Tessalonicenses - I Timóteo - II Timóteo Tito - Filemon - Hebreus - Tiago - I Pedro - II Pedro - I João - II João - III João Judas - Apocalipse). http://pt.wikipedia.org/wiki/Antigo_testamento#Antigo_Testament o traz informações sobre a Bíblia: 92 A Bíblia é um conjunto de escritos muito antigo. Foi composta ao longo de um período de cerca de 1500 anos por uns 40 homens das mais diversas profissões, origens culturais e classes sociais, segundo a tradição. No entanto, exegetas cristãos divergem cada vez mais sobre a autoria e a datação das obras. É quase um consenso de que a maioria delas foi escrita ou por pessoas que elegeram patronos, ou coletivamente e ao longo dos séculos. Uma das mais antigas traduções da Bíblia remonta ao ano de 405 d.C. e se chama Vulgata, que foi traduzida para o Latim por São Jerónimo. Se considerarmos apenas o antigo testamento, a primeira tradução da Bíblia para o língua grega foi a septuaginta. Os cristãos acreditam que estes homens escreveram a Bíblia inspirados por Deus e por isso consideram que a Bíblia é uma escritura sagrada. No entanto, nem todos os cristãos acreditam que a Bíblia deve ser interpretada de forma literal, e muitos consideram que muitos dos textos da Bíblia são textos metafóricos ou que são textos datados que faziam sentido no tempo em que foram escritos mas foram perdendo actualidade. Alguns cristãos acreditam que a Bíblia é a Palavra do Deus, portanto ela é mais do que apenas um livro, é a vontade de Deus escrita para a humanidade. Para esses cristãos nela, e apenas nela, se concentra a salvação da humanidade, só na Bíblia se encontram as respostas para todos os problemas humanos. Os ateus vêem a Bíblia como um livro comum, com importância histórica e que reflecte a cultura do povo que os escreveu. Os ateus recusam qualquer origem divina para a Bíblia e consideram que a Bíblia deve ter pouca ou nenhuma importância na vida moderna, ainda que na generalidade se reconheça a sua importância na formação da civilização ocidental (apesar de a Bíblia ter origem no oriente). [6] HILEL. Consigna LE PETIT LAROUSSE ILLUSTRÉ: Doutor judeu (n. em Babilônia por volta de 70 a. C. - m. Jesrusalém por volta de 10 d. C.), chefe de uma escola rabínica que interpretava a Lei de uma maneira liberal. O prestígio da sua doutrina atravessou fronteiras e acabou fazendo-se respeitar em Roma, conforme se vê em http://www.tryte.com.br/judaismo/colecao/br/livro9/l9cap2.htm quando se noticia que o Imperador romano Alexandre Severo, enamorado desta frase, mandou gravá-la em muitas das construções que edificou. [7] A. VAN DER BORN (2004) diz sobre as mulheres judias: Em http://www.eifo.com.br vê-se como viviam as mulheres judias: A sociedade nos tempos bíblicos era patriarcal. Nessa época, a mulher judia desempenhava um papel subordinado ao homem. Pensava-se que a função da mulher era servir ao homem. Quando 93 ela casava, se tornava propriedade do marido. A Bíblia coloca claramente que a mulher foi criada para ajudar o homem. Durante o primeiro milênio antes da era comum, as mulheres não participavam de rituais nos templos, não cantavam no coro e não podiam chegar até a parte interior do templo quando traziam um sacrifício. Por conseguinte, a mulher judia estava muito longe de se igualar ao homem judeu. Embora considerada inferior, a mulher era respeitada e não era abusada. O status da mulher judia permaneceu o mesmo durante séculos, até que os rabinos resolveram mudar as leis a respeito da mulher perante o homem. Assim, a monogamia foi instituída e o divórcio só poderia acontecer se houvesse um acordo entre os dois (tanto o homem quanto a mulher). Alguns anos depois, as feministas judias, em maioria ortodoxas, se tornaram protagonistas de um movimento para que houvesse mudanças nas lei judaicas de modo a permitir que as mulheres dividissem com os homens, todos os privilégios e as obrigações da vida. O ápice dessa conquista se deu quando a primeira mulher foi ordenada rabina. Na religião judaica, a mulher tradicionalmente não é igual ao homem. Essa situação vem desde o início dos tempos bíblicos, que diz que a mulher foi feita da costela do homem; assim nunca poderia se igualar a ele. A educação judaica que a mulher recebe é bem diferente da que o homem recebe. A partir do momento em que a mulher vive para cuidar dos filhos e da casa, ela não necessita de uma educação formal. As mulheres judias tinham como objetivo de vida a maternidade. A respeito esclarece A. VAN DER BORN (2004): Mãe. Na Bíblia a palavra mãe é usada não apenas em sentido estrito, mas também em sentido mais largo e figurado. p. ex., são chamadas mãe também a sogra (Gen. 37.10; cf. 5, 16s), a avó (1Rs 15,10), a ancestral (Gên 3,20; Ez 16,3), a coletividade de um povo em relação com os seus membros, p. ex. Siao (Is 50,1; 66,7), Samaria (Os 2,4), Babel (Jer 50,12), aJerusalém espiritual em relação com os cristãos (Gál 4,26), Débora, por causa dos seus cuidados maternais para com o povo (Jz 5,7),a cidade-mãe em relação com os lugares menores que dela dependiam, "as filhas" (2Sam 20,19). Nestes últimos exemplos já se nota umsentido figurado. Depois, a sabedoria é chamada mãe de todas as virtudes (Sab 7,12; Eclo 24,18; cf. 15,2), Babel é a mãe dos fornicadores e das abominações da terra (Apc 17,5), uma encruzilhada é uma mãe de caminhos (Ez 21,26), a sepultura é a mãe de todos os que ela recebe no seu seio (Eclo 40,1; cf. Jó 17,14). Aqueles que fazem a vontade de seu Pai celeste, Jesus os chama sua mãe, seus irmãos e irmãs (Mt12,50). (II) A maternidade é para a mulher hebréia a maior felicidade (Gên 24,60; 30,1; ISam 1,8; SI 113,9), pela maternidade a mulher cristã alcança a sua salvação eterna (ITim 2,15). Numa família polígama os filhos se distinguem pelo nome da respectiva mãe; por isso os 94 autores sagrados mencionam o nome da mãe de reis e pessoas ilustres (IRs 11,26 etc.; 2Rs 8,26 etc.). Irmãos germanos chamam-se um ao outro "filho de minha mãe" (Gên 20,12; Dt 13,7; Jz 8,10). Os defeitos e faltas dos filhos são motivo de crítica à mãe que os deu à luz e criou (Prov 10,1; 29,15; ISam 20,30). (III) O amor maternal é proverbial no AT (Is 49,15). E' usado como imagem do amor de Javé a Jerusalém (Is 66,13). Jesus quis acolher os filhos de Jerusalém, como a galinha acolhe os pintinhos debaixo das asas (Mt 23,37). Exemplos de verdadeiro amor materno são: Hagar (Gên 21,14-16), Jocabed, a mãe de Moisés (Ex 2,2-10), Ana, a mãe de Samuel (ISam 1,22-28), Resfa (2Sam 21,8-10), a mãe dos irmãos macabeus (2Mac 7). Sobre os direitos e deveres da mãe, e sobre o seu lugar na família, —» Família; Filho; Matrimônio; Pais. A. VAN DER BORN (2004) diz sobre a mulher: O princípio da situação da mulher perante o —> homem é definido em Gên 2,18 ("uma auxiliar que lhe seja adequada", i. é, que lhe seja essencialmente igual); a situação, porém, como era de fato, é caracterizada em Gen 3,16 (teu marido te dominará). Essa submissão constata-se em inúmeros lugares do AT onde a mulher exerce atividades servis, onde são limitados os seus direitos e sua parte no culto aparece muito modesta. A mesma situação ainda é suposta nas exortações de S. Paulo (ICor 11,3-15; 14,34-36; Ef 5,2233; ITim 2,9-15; Ti 2,4s) e de S. Pedro (IPdr 3,1-6). Sobre a posição da menina como filha —> criança; da mulher como esposa —» matrimônio; como mãe —» mãe. A literatura sapiencial fala muito sobre a mulher: a mulher virtuosa é elogiada (Prov 11,16; 12,4; 11,22; 19,14; 31,10-31; Eclo 7,19; 26,1-4.13-28; 40, 19-23; et. Ecle 2,8); a mulher perversa é condenada (Prov 19,13; 21,9 = 25,24; 21,19; 22,14; 27,15; 30,20; Ecle 7,26-28; Eclo 25,13-26; 26,6-12; 42,6-13); cf. também textos como Prov 11,22; 31,3; Eclo 19,2; 36,21-27. Sobre o vestido das mulheres —» Vestes; Jóia. Cf. ainda — > Esponsais; Diaconisa; Virgindade; Syneisaktol; Viúva. [8] A. VAN DER BORN (2004) fala sobre o matrimônio: (I) no AT. (A) Essência. E' digno de menção que o hebraico não tem uma palavra que corresponda a matrimônio; também o nosso conceito de matrimônio falta no AT; a palavra .............. (aliança; Mal 2,14) é a que lhe chega mais perto. Embora Javé tenha conduzido a primeira mulher ao primeiro homem (Gên 1,28; 2,18-25; Tob 8,8) e o laço matrimonial seja qualificado como uma aliança de Javé (Mal 2,16), da qual Javé é testemunha e protetor, o matrimônio em Israel, como em toda parte do Oriente Antigo, não era de direito religioso nem civil, mas era um assunto puramente particular entre duas famílias, q. d., entre o pai da noiva e o pai do noivo como representante deste último (Gên 24,2ss; 38,6; Dt 7,3; cf. Jz 14,2s) ou o próprio noivo (Êx 22,15). O pai escolhia uma mulher para seu filho (Gen 24,2-4; 38,6; Dt 7,3; cf. Jz I4,2s) e procurava obter o consentimento do pai da moça para o matrimônio (Êx 22,16), pagando o "preço da noiva". Que tudo se arranjava sem ouvir a moça, não precisava torná-la infeliz; o 95 amor vinha post factum (Gên 24,67). Em tempo de guerra deve ter acontecido que um homem roubasse para si uma mulher (Jz 21,1924) ou que lhe coubesse como parte da presa (Jz 5,30). Mas às vezes o próprio filho escolhia, até contra a vontade dos pais (Gên 26,34s); as vezes os pais pediam o consentimento da futura esposa (Gên 24,58). Matrimônios por amor também existiam (Gên 29,11.20; ISam 18,20s), sobretudo entre camponeses e pastores, onde os jovens se conheciam pelo trabalho em conjunto, de cada dia (Ru 2,7ss; Gên 24,11-20; 29,10; Êx 2,16s; ISam 9,11). A noiva recebia de seu noivo presentes que se tornavam sua propriedade (Gên 24,53; 34,12) e de seu pai (por exceção?) um dote que podia consistir em escravas ou num pedaço de terra (Gên 16,1; 24,61; Jos 15,18s; IRs 9,16), tornando-se igualmente sua propriedade exclusiva. E' duvidoso se tudo isso tinha que ser documentado num contrato escrito, como na Babilônia; de um contrato documentado só ouvimos falar em Tob 7,14. ANET 222s dá o texto de um contrato matrimonial arameu de Elefantina (1° e 3° matrimônio!). A mulher era escolhida, de preferência, do mesmo clã ou da mesma tribo (Gên 24,4ss; 29,12.19; Jz 14,3). Assim garantia-se que a propriedade familiar, sobretudo em terras, ficasse dentro do clã ou da tribo. Filhas herdeiras nunca podiam casar-se fora de sua tribo (Num 36,5-12); —> Levirato. No judaísmo posterior a idade núbil era, para meninas 12 anos, para meninos 13 anos; geralmente só se casavam com 18 anos. Sobre os tempos anteriores faltam a este respeito os dados históricos; em todo caso, aconselha-se casar cedo (Eclo 7,23; —> Impedimentos matrimoniais). Depois de o homem pagar o "preço da noiva", sua mulher era sua propriedade; ele era o ba'al (dono); ela uma .............. ba'al (Dt 22,22), q. d., ela "tinha dono". O casamento consistia em conduzi-la para a casa do noivo (—> núpcias), pelo que ela se constituía sob a sua autoridade marital. O marido, então, tinha a obrigação de cuidar do seu sustento e de defendê-la. A passagem da mulher para debaixo da autoridade do marido exprimia-se talvez, simbolicamente, pelo gesto de ele estender sobre ela o seu manto (Ru 3,9; Ez 16,18). Embora o matrimônio israelítico tivesse exteriormente a forma de uma compra, não tem cabimento dizer que era um contrato comercial. Pois o marido não podia dispor de sua mulher do mesmo modo como dispunha de um objeto comprado que se tornou sua propriedade; o "preço da noiva" compara-se melhor como uma espécie de "preço de sangue" ou "preço de reconciliação". O matrimônio desfazia-se pela morte de um dos cônjuges ou pelo —> divórcio. (B) A finalidade do matrimônio era gerar filhos (Gen I,28; 9,1), sobretudo filhos homens (SI 127,4s; Tob 6,22). Uma prole numerosa era uma bênção de Javé (SI 127,3) e a maior felicidade (Gen 24,60); a esterilidade era para a mulher uma grande desgraça (Gên 30,1; ISam 1,2-18), sendo considerada um castigo de Deus (Jer 18,21; Is 47,9). À luz desta mentalidade devemos explicar também a poligamia, o matrimônio de levirato e mais outros costumes. Este fim prático não excluía o amor conjugal e o mútuo auxílio (Gên 2,20; 3,12; Tob 6,22; Prov 5,18-20; Eclo 40,23). (C) O matrimônio era poligamo (Gên 4,19-25 etc.). Dt 21,15 supõe como normal que o homem possuísse duas mulheres. Quantas mulheres o homem tinha de fato, dependia da sua posição 96 econômica; os ricos, p. ex., os reis, possuíam numerosas mulheres (2Sam 5,13; Irs II,1-8; cf. porém, Dt 17,17). De outro lado, nos tempos posteriores não faltam indícios de que a monogamia era considerada mais perfeita. O próprio AT (Tob 8,7-10) interpreta Gên 2,24 como uma recomendação do matrimônio monógamo. Quando os profetas apresentam o matrimônio como imagem da relação existente entre Javé e Israel (Os 2,18-22; Jer 2,2; 3,7; Ez 16,8; Is 50,1; 54,5; 62,5), então tal imagem supõe a monogamia. O sumo sacerdote não podia ter mais de uma mulher. SI 127,20; Prov 5,15; 12,4; 18,22; 19,14; 31,10-31 não são compreensíveis senão num ambiente monógamo. No tempo de Jesus a poligamia já havia desaparecido quase por completo (StB 3,647). (D) Que um israelita se tivesse abstido do matrimônio é uma idéia estranha ao AT (ver sob B); a mesma coisa vale para a moça Israelita (Jz 11,37; a filha de Jefté chora por ter de morrer inupta). Só nos tempos posteriores uma viúva é elogiada por não contrair segundo matrimônio (Jdt 15,11). A rejeição do matrimônio (p. ex,,pelos Essênios, dos quais só uma pequena minoria julgava o matrimônio lícito e o favorecia: B. J. 2,8,13) não provinha tanto de uma tendência para maior pureza ritual, mas explica-se antes por certa aversão do matrimônio, como se pode constatar mais vezes e também em outros tempos entre pessoas de idéias escatológicas e apocalípticas. E' um fenômeno daquele tempo, que se verificou no ascetismo de diversas associações religiosas (inclusive a de qumrãn, talvez), também e sobretudo fora de Israel. (II) No NT. (A) Que Jesus, como também o Batista, não eram casados, sem dúvida não foi apenas por causa do ascetismo acima mencionado de alguma seita do judaísmo (vide infra). Jesus não era hostil ao matrimônio e falou sobre ele em sentido positivo, como prova o resumo das suas palavras em Mt 19,3-12. Em primeiro lugar esse texto afirma a unidade e indissolubilidade originais do matrimônio Conta com a possibilidade de uma separação, mas nenhuma lei divorcista poderá prejudicar a união fundamental dos cônjuges. Foi apenas a ..... (dureza de coração) dos homens que levou à jurisprudência mosaica acerca do divórcio (Mt 19, 3-9). A moral matrimonial é aprofundada neste sentido de que não apenas as relações com a mulher do próximo são condenadas, mas também o mau desejo (Mt 5,27s). Tanto no citado trecho de Mt como em outros textos, são indicadas as circunstâncias em que concluir um matrimônio seria uma leviandade, como, p.ex., nos dias do dilúvio, e "no dia do Filho do Homem", q. d., no novo —> mundo (Lc 17,27; Mc 12,25 par.), as circunstâncias, também, em que o matrimônio seria para o homem um mal, a saber se o impedisse atender ao convite do Reino de Deus (Lc 14,20). Haverá também homens que por causa do Reino de Deus se absterão do matrimônio voluntariamente (Mt 19,16-29 par.), aos quais pertencem Jesus e João Batista. Sobre o problema: monogamia ou poligamia Jesus não se pronunciou, o que é muito natural, visto que no tempo do NT a monogamia era considerada normal; no judaísmo posterior a poligamia já se tornara cada vez mais rara. Em seguida exigiu-se que autoridades 97 eclesiásticas e diáconos, depois da morte da sua esposa, se abstivessem de um segundo matrimônio (ITim 3,2.12). (B) Também S. Paulo (ICor 7,10-16) condena o divórcio por motivos de princípio, e alegando uma palavra do Senhor. Mesmo o matrimônio com um não-cristão só pode ser dissolvido quando para isso a parte não-crente toma a iniciativa (ICor 7,15; Cf. IPdr 3,ls). No entanto, S. Paulo não encara o matrimônio com tanta naturalidade como Jesus, embora não seja justo atribuir-lhe, como às vezes se faz, idéias "pessimistas" sobre o matrimônio ("Ehepessimismus"). ICor 7,16 prova que ele mesmo nunca foi casado. Ao passo que Jesus, que nunca condenou o matrimônio, esteve presente num casamento, como hóspede de honra, e gostava de lidar com crianças, temos de S. Paulo um texto (ICor 7,29) que parece considerar o matrimônio um mal necessário, que serve para evitar os pecados de luxúria. Por Isso os períodos de continência também não devem demorar demais (7,5). No entanto, essa atitude do apóstolo foi sem dúvida determinada pela sua polêmica contra a imoralidade na igreja de Corinto, e pelas suas esperanças acerca da proximidade da volta de Jesus; de fato, ele toma as palavras de Jesus sobre o matrimônio e o Reino de Deus como ponto de partida de sua argumentação (cf. ICor 7,26.29-34). Para S. Paulo, ser casado e ser celibatário são dois carismas diferentes (ICor 7,7), e ele aprofunda a moral matrimonial, baseando-a no amor mcristão (...), não o ... profano) (Col 3,18s; Ef 5,25-33; menos positivo é IPdr 3,1-7), e comparando a união entre homem e mulher no matrimônio com a união mística entre" Cristo e a sua Igreja. Essa é a norma da relação entre homem e mulher no matrimônio cristão (Et 5,22s): o — > mistério do texto de Gên sobre a união sexual entre homem e mulher é grande, e S. Paulo o relaciona com a união entre Cristo e a Igreja. Disso ele deduz a submissão da mulher ao homem e o amor incondicional do homem para com sua mulher. — Na epístola aos hebreus só se encontra uma exortação para viver santamente o matrimônio, que é inviolável (Hbr 13,4); as cartas pastorais polemizam contra uma espécie de "fuga" do matrimônio (Itim 4,3) e procuram resolver problemas práticos (ITim 3,2; 4,3; 5,9-16; Ti 1,6). Apc 14,4 não significa necessariamente que o autor desprezava o matrimônio —* Syneisaktoi; Impedimentos matrimoniais. Em http://www.morasha.com.br se vê a doutrina judaica sobre o casamento: Segundo o Zohar, o casamento é a união de duas metades de almas que foram colocadas em corpos separados quando a alma desceu à terra. Nos planos Divinos essas "almas gêmeas" vão ser reunidas através do casamento. Mas não podemos esquecer do livre arbítrio. Por isso, apesar de Deus estar envolvido na predestinação de cada par, a decisão final cabe ao indivíduo, já que cada um de nós pode interferir em seu próprio destino. O próprio Todo-Poderoso, ao criar o homem, percebeu a necessidade deste ter um companheiro fiel que o acompanhasse ao longo da vida. "E disse o Eterno : "Não é bom que o homem esteja só" ( Gênese 2:18). E Deus criou Eva a partir da costela de Adão, assim 98 ordenando: "E é por isso que o homem deixará seu pai e sua mãe, e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne" (Gênese 2:24). Nossos sábios ensinam que Adão estava só porque não havia alguém a quem ele pudesse se "dar". Com a criação de Eva, as coisas mudaram. Alguém precisava dele e de seu amor, assim como ele precisava do dela. A palavra hebraica para amor - ahavá - vem da raiz hav, que significa dar, o que já indica quão importante é saber "doar-se" ao "bechirat libó", o eleito de seu coração. O casamento não é uma instituição criada pelos homens, mas sim um mandamento divino. O homem e a mulher foram criados como uma entidade única, por isso seu estado natural é a união e, ao se unirem, realizam plenamente "a imagem de Deus". A Torá afirma: "Deus criou o homem à sua imagem. Na imagem de Deus, Ele os criou, homem e mulher. Ele os criou e os abençoou e lhes disse: "Sejam fecundos, multipliquem-se" (Gênese 1:27). Em uma primeira análise, o Shir Hashirim, Cântico dos Cânticos, um dos mais belos livros da Bíblia, de autoria do rei Salomão, parece ser uma canção de amor entre um homem e uma mulher. Nossos sábios ensinam que, ao ser analisada mais cuidadosamente, a obra pode ser considerada uma alegoria do amor entre Deus e o povo de Israel. O fato de o rei Salomão ter utilizado o amor entre homem e mulher como alegoria mostra o quão poderoso e sagrado deve ser o amor – pois sagrada e indissolúvel é a união entre Deus e Israel. A união e o amor entre os cônjuges são descritos com insistência nas biografias dos patriarcas (Abrahão e Sara, Isaac e Rebeca, Jacó e Lea e, mais tarde, Jacó e Raquel. Estes dois últimos vivem uma das mais bonitas histórias de amor em toda a literatura, uma relação repleta de devoção e ternura. Com Isaac e Rebeca o texto bíblico relata o primeiro casamento conhecido na história da humanidade. Descreve Rebeca entrando na tenda de Sara, a falecida mãe de seu futuro marido. O Midrash indica que os milagres que se realizavam através de Sara e que haviam cessado com a sua morte, reaparecem através de Rebeca. O matrimônio O matrimônio recebe o nome hebraico de kidushin (consagração, santificação ou dedicação), pois o casamento é uma ocasião sagrada no judaísmo. É um mandamento divino, a criação de um laço sagrado. O casamento entre dois judeus é visto como o início de uma nova vida para ambos. O casal passa a ter uma relação exclusiva, e isto implica em uma dedicação total entre o noivo e a noiva para que possam tornar-se o que a Cabalá descreve como "uma única alma em dois corpos diferentes". O Talmud, ao ser redigido, codificou os hábitos que haviam sido estabelecidos ao longo das gerações. A lei talmúdica estabelece que quando um homem e uma mulher decidem casar-se, ele precisa dizer-lhe que ela passa a ser sua esposa. Ela, por sua vez, deve aceitar de livre e espontânea vontade. Tal ato deve ser realizado 99 diante de duas testemunhas válidas, mediante uma das formas aceitas pelo judaísmo para se contrair matrimônio, entre as quais, a entrega simbólica de uma soma em dinheiro, uma garantia escrita ou através do Kidushei Biá, ou Matrimônio por Cohabitação. Neste último caso, a cerimônia terminava com a mulher entrando na tenda do marido, ato que marcava o início de uma vida em comum. As duas últimas formas de contratar casamento não são mais usadas. Na época talmúdica o casamento era feito em duas etapas. A primeira era a promessa ou "noivado" - em hebraico, erussin ou kidushin. Era de fato um compromisso moral, que podia ser revogado por uma das partes. Possuía praticamente a validade do matrimônio, mas não concedia direitos aos envolvidos. Era também chamado de kidushin (consagração ou dedicação) pois era, de fato, quando a noiva era "prometida" ao noivo. No ato do noivado, o homem entregava à futura esposa um presente cujo valor devia ser maior do que uma moeda. A partir do século VII o presente foi substituído por um anel sem pedras preciosas. Este era colocado pelo noivo no dedo indicador direito da noiva, depois da prece recitada por um oficiante, dizendo: "Harei at mekudeshet li, betabaat zu kedat Moshe ve-Israel" (Eis que me és consagrada por esse anel, segundo a lei de Moisés e Israel). Ao colocar o anel no dedo da noiva, o rapaz efetivava seu vínculo com ela. Algum tempo após o noivado, a cerimônia de casamento, propriamente dita, em hebraico nissuin, era oficiada sob a chupá, na presença de duas testemunhas competentes com a recitação das sete bênçãos tradicionais - Sheva Brachot. A cerimônia era realizada sob a chupá, o pálio nupcial, simbolizando o lar do novo casal e "cobrindo" ou protegendo-o nesta fase abençoada e sagrada de sua vida. Este "lar" simbólico, a chupá, é o que permite que a cerimônia seja realizada em qualquer lugar. Desde o século XVI, as duas etapas do matrimônio – erussin / kidushin e o nissuin - são realizadas sucessivamente, durante a celebração do casamento, como conhecemos hoje, apesar de continuarem sendo dois atos distintos. A ketubá, o contrato de casamento, é mencionado ou lido entre as duas etapas da cerimônia. A cerimônia A primeira parte do casamento judaico - o kidushin - inicia-se com uma bênção sobre um copo de vinho. É uma bênção de agradecimento e louvor ao Criador, que proporcionou a santidade do matrimônio. E ao pronunciá-la, atrai-se as bençãos Divinas sobre essa união. Tanto o noivo como a noiva bebem deste vinho. Todas as bênçãos durante o casamento são feitas sobre o vinho, pois este simboliza a vida. A entrega da aliança pelo noivo e a sua aceitação pela noiva constitui o ato central do kidushin, efetivando o vínculo entre os dois. O noivo recita a frase que legitima o casamento - "Com este anel te consagro a mim, conforme a lei de Moisés e de Israel", que vimos acima, em hebraico. Em seguida, diante de duas testemunhas, 100 coloca uma simples aliança de ouro no dedo indicador direito da noiva. Depois é feita a leitura ou menção da ketubá, conforme os hábitos de cada comunidade. O próximo passo da cerimônia é Nissuin, quando são novamente recitadas as sete bênçãos sobre um cálice de vinho, enaltecendo e agradecendo a Deus por Suas obras: a criação do ser humano e por ter criado o homem como uma criatura composta de duas partes homem e mulher. Abençoa-se o casal para que juntos possam ter alegrias, assim como o tiveram Adão e Eva no Jardim do Éden. As berachot santificam os noivos para que o amor entre eles seja tão permanente e indestrutível quanto o amor de Deus para com Israel. Após as bênçãos, o noivo e, em seguida, a noiva, bebem outro cálice de vinho. Na conclusão da cerimônia é costume o noivo quebrar um copo envolto em um pano. Este gesto serve para recordar a destruição do Templo de Israel. Em algumas comunidades é também interpretado como um sinal de bom augúrio. É o momento em que a solenidade e santidade do ato parecem aliviadas, com as manifestações dos presentes, alegremente fazendo votos de mazaltov, e que descontrai a natural tensão dos noivos, ao chegar o tão ansiado momento de consolidarem o seu amor, "consagrando-se um ao outro" diante de Deus e de sua comunidade. Ketubá A ketubá é um contrato matrimonial que confirma legalmente o casamento e especifica as responsabilidades do marido pela esposa. Foi idealizada há mais de 2500 anos por nossos sábios para, através de uma legislação específica, proteger a mulher e seus direitos em uma época na qual ela era considerada, entre outros povos, "propriedade do marido", ou "um ser sem direitos". Na ketubá podem ser encontradas dez prescrições da Halachá. Três estão escritas na Torá: o marido deve alimentar sua mulher, vesti-la e unir-se a ela conjugalmente. As outras dizem que ele tem o dever de tratar sua mulher quando ela estiver doente, comprá-la de seus seqüestradores se mantida em cativeiro, enterrá-la se vier a morrer, dar-lhe uma moradia decente, assegurar sua subsistência, assim como de suas filhas, e se o marido vier a morrer, ter previsto uma reserva para seu futuro. São citadas algumas obrigações específicas entre os esposos e seus pais, assim como a soma que ele deve dar à sua mulher em caso de divórcio. A mulher deve guardar este documento por toda a vida. Antigamente existia uma verdadeira arte em torno da confecção de uma ketubá e famílias mais abastadas usavam documentos belíssimos, com lindas ilustrações e bênçãos. Foram assim conservadas ketubot magníficas, de grande valor artístico, que hoje são peças de museus. " Eu te consagro a Mim para sempre. Eu te consagro a Mim em misericórdia e em julgamento, e em amor, e em retidão. Eu te 101 consagro a Mim em fidelidade, e tu conhecerás Deus" (Oséias 2:2122) Sete expressões de noivado entre Deus - o noivo e Israel - a noiva (Ela) "Noite após noite, busquei aquele que minha alma adora!..." "O seu falar é cheio de meiguice e tudo nele me deslumbra e encanta! Exatamente assim é meu amado e meu amigo..." "Eu pertenço ao meu amado e meu amado é meu!"... (Ele) "Ó, como és bela, amiga minha, e como és mimosa!... És toda bela, amiga minha, e em ti mancha nenhuma existe... Esposa minha e minha irmã, roubaste, sim, meu coração, apenas com um de teus olhares..." "Quem é esta que surge como a aurora, tão bela como a lua e tão brilhante como o sol ?..." "Ó, como és bela, como és graciosa, minha amada, delícia de minha alma!..." (Do Cântico dos Cânticos, Shir Hashirim, do Rei Salomão) R. DE VAUX (2003:46-61) esclarece sobre o casamento: POLIGAMIA E MONOGAMIA O relato da criação do primeiro casal humano, Gn 2.21-24, apresenta o casamento monogâmico como de acordo com a vontade de Deus. Os patriarcas da linhagem de Sete são apresentados como monógamos, por exemplo, Noé, Gn 7.7, enquanto a poligamia aparece na linhagem reprovada de Caim: Lameque tomou duas mulheres, Gn 4.19. Essa é a idéia que se tinha das origens. Na época patriarcal, Abraão tinha, a princípio, uma só mulher. Sara, mas como esta era estéril, Abraão tomou sua escrava Hagar, como lhe havia proposto a própria Sara, Gn 16.1,2. Abraão tomou também a Quetura como esposa, Gn 25.1, mas isto é contado depois da morte de Sara, Gn 23.1,2, e Quetura poderia ter sido a esposa titular. Contudo, Gn 25.6 fala no plural das concubinas de Abraão e parece designar assim a Hagar e a Quetura. Naor, que teve filhos de sua mulher Milca, tem também uma concubina, Reumá, Gn 22.20-24. Do mesmo modo Elifaz, filho de Esaú, tem uma mulher e uma concubina, Gn 36.11,12. Em tudo isto, os patriarcas seguem os costumes de seu ambiente. Segundo o Código de Hamurabi, por volta de 1700 antes de nossa era, o marido não pode tomar uma segunda esposa a não ser em caso de esterilidade da primeira. E mesmo desse direito se vê privado se sua própria esposa lhe fornece uma concubina escrava. Não obstante, o marido pode, mesmo sua mulher tendo filhos, tomar ele mesmo uma concubina, mas uma só - a menos que esta seja estéril -, e a concubina nunca tem os mesmos direitos que a esposa. 102 Na região de Kerkuk, século XV a.C., os costumes são mais ou menos os mesmos. Parece, todavia, que a mulher estéril é obrigada a procurar uma concubina para seu marido. Em todos esses casos observa-se uma monogamia relativa: nunca há mais que uma esposa titular. Mas há outros exemplos que ultrapassam esse limite. Jacó toma como esposas as duas irmãs Lia e Raquel, e cada uma delas lhe dá sua escrava, Gn 29.15-30; 30.1-9. Esaú tem três mulheres, as três consideradas do mesmo nível, Gn 26.34; 28.9; 36.1-5. Assim, os costumes do período patriarcal mostram-se menos severos que os da Mesopotâmia, na mesma época. Estes, aliás, não tardam em fazer-se mais brandos. Na compilação de direito assírio, que data de fins do segundo milênio, há um lugar, entre a esposa e a concubina escrava, para a esirtu, a "dama do harém"; um homem pode ter várias esirtu, e uma esirtu pode ser elevada à dignidade de esposa. Em Israel, sob os juizes e sob a monarquia, desaparecem as antigas restrições. Gideão tinha "muitas mulheres" e, pelo menos, uma concubina, Jz 8.30,31. A bigamia é reconhecida como um ato legal por Dt 21.15-17, e os reis tinham um harém, às vezes numeroso. Parece então que não havia limites. Muito mais tarde, e de forma completamente teórica, o Talmude estabelecerá o número de quatro esposas para um homem comum, e de dezoito para um rei. Na realidade, somente os príncipes podiam se permitir o luxo de um harém numeroso. As pessoas comuns deveriam contentar-se com uma ou duas mulheres. O pai de Samuel tinha duas esposas, uma das quais era estéril, l Sm 1.2. Conforme 2 Cr 24.3, o sacerdote Joiada escolheu duas mulheres para o rei Joás. Não é fácil dizer se tal bigamia, a que se refere também Dt 21.15-17, era muito freqüente. A situação era, sem dúvida, a mesma que a dos beduínos e felás da Palestina moderna, os quais, não obstante as facilidades que lhes dá a lei muçulmana, raramente são polígamos. Às vezes, o interesse é o que leva à procura de uma segunda mulher, pois assim obtém-se uma criada; contudo, com mais freqüência há o desejo de ter numerosos filhos, principalmente quando a primeira mulher é estéril ou teve somente filhas. A isto acrescenta-se que a mulher oriental, que se casa muito jovem, perde logo seu vigor. Os mesmos motivos intervieram na antiguidade israelita. A presença de várias esposas não contribuía para a paz no lar. A mulher estéril era menosprezada por sua companheira; assim, por exemplo, Ana por Penina, l Sm 1.6, mesmo sendo esta uma escrava; e Sara por Hagar, Gn 16.4,5. Por outro lado, a mulher estéril tinha ciúmes da esposa fecunda, como no caso de Raquel e Lia, Gn 30.1. A esses motivos de inimizade acrescentavam-se as preferências do marido por uma delas, Gn 29.30,31; l Sm 1.5; a lei de Dt 21.15-17 teve de intervir para que os filhos da mulher menos amada não fossem desapossados em favor dos filhos da esposa preferida. Esse traço dos costumes se reflete na língua, que chama "rivais" as mulheres de um mesmo homem, l Sm 1.6; cf. Eclo 37.11. Parece, entretanto, que a monogamia era o estado mais freqüente na família israelita. É surpreendente que os livros de Samuel e dos 103 Reis, que compreendem todo o período da monarquia, não mostrem entre o povo comum mais casos de bigamia que o do pai de Samuel, bem no início. Da mesma forma os livros sapienciais, que apresentam um quadro da sociedade de sua época, não falam de poligamia. Salvo o texto de Eclo 37.11, que acabamos de citar e que, aliás, se poderia interpretar em sentido menos estrito, as numerosas passagens que concernem à mulher em família compreendem-se melhor no contexto de uma família estritamente monógama. Assim, por exemplo, Pv 5.15-19; Ecl 9.9; Eclo 26.1-4, e o elogio da mulher perfeita, que fecha o livro dos Provérbios, 31.10-31. O livro de Tobias, que é uma história familiar, só põe em cena famílias monógamas, a do velho Tobit, a de Ragüel e a que o jovem Tobias funda com Sara. E com a imagem de um casamento monógamo que os profetas representam a Israel como a esposa única escolhida pelo Deus único, Os 2.4s; Jr 2.2; Is 50.1; 54.6,7; 62.4,5, e Ezequiel desenvolve a metáfora em uma alegoria, Ez 16. Se o mesmo profeta compara as relações de Iahvé com Samaria e Jerusalém a um casamento com duas irmãs, Ez 23, cf. Também Jr 3.6-11, é para adaptar às condições da história posterior ao cisma político a alegoria que havia proposto no capítulo 16. O TIPO DO CASAMENTO ISRAELITA Assim como a filha não casada está na dependência do pai, assim também a mulher casada está na dependência de seu marido. O Decálogo, Ex 20.17, enumera a mulher entre as demais posses, junto com o escravo e a escrava, o boi e o asno. O marido é chamado o ba 'al de uma mulher, seu "dono", da mesma maneira que é o ba 'al de uma casa ou de um campo, Ex 21.3,22; 2 Sm 11.26; Pv 12.4 etc. Uma mulher casada é "posse" de um ba'al, Gn 20.3; Dt 22.22. "Tomar esposa" se expressa pelo verbo da mesma raiz que ba'al e significa, portanto, "tornar-se dono", Dt 21.13; 24.1. Esses usos da língua indicam que a mulher era de fato considerada como a propriedade de seu marido, que havia sido comprada por ele? A Etnografia mostra em alguns povos tais casamentos por compra, e com freqüência se disse que o mesmo havia sucedido em Israel. À parte o vocabulário, propõe-se como argumento a história de Raquel e de Lia, que dizem que seu pai lhes havia "vendido", Gn 31.15; mas não se deve dar sentido formal e jurídico a essa palavra proferida por mulheres encolerizadas. Invoca-se, sobretudo, e com razão, o uso do mohar. O mohar é uma quantidade de dinheiro que o noivo era obrigado a pagar ao pai da moça. A palavra aparece na Bíblia somente três vezes, Gn 34.12; Ex 22.16; l Sm 18.25. O montante podia variar segundo as exigências do pai, Gn 34.12, ou segundo a situação social da família, l Sm 18.23. No caso de um casamento imposto depois do estupro de uma virgem, a lei prescreve o pagamento de 50 sidos de prata, Dt 22.29. Mas trata-se de uma penalidade e o mohar ordinário devia ser inferior a essa quantia. Essa representa mais ou menos o que o faraó Amenófis III pagava às mulheres de Gezer destinadas a seu harém. Segundo Ex 21.32, 30 sidos indenizavam pela morte de uma escrava, mas também isso era uma penalidade. 104 Para o cumprimento de um voto, 30 sidos representavam o valor de uma mulher, mas uma moça de menos de vinte anos era estimada somente em 10 sidos, Lv 27.4,5. O pagamento do mohar podia ser substituído por uma prestação de serviço, como no caso dos dois casamentos de Jacó, Gn 29.15-30, ou por um serviço notável, como no casamento de Davi com Mical, l Sm 18.25-27, ou no de Otniel com a filha de Calebe, Js 15.16 = Jz 1.12. Essa obrigação de entregar uma quantia em dinheiro, ou seu equivalente, à família da noiva, dá evidentemente ao casamento israelita a aparência de uma compra. Mas o mohar se apresenta, mais que como o preço pago pela mulher, como uma compensação dada à família e, apesar da semelhança exterior, isto é algo moralmente diferente: o futuro marido adquire assim um direito sobre a mulher, mas nem por isso a mulher é uma mercadoria. A diferença salta aos olhos se o casamento com mohar é comparado com outro tipo de união que é verdadeiramente uma compra: uma moça podia ser vendida por seu pai a outro homem que a destinava a ser sua concubina ou a concubina de seu filho, era escrava e podia ser revendida, menos a estrangeiros, Ex 21.7-11. Além disso, é provável que o pai não tivesse senão o usufruto do mohar e que esse voltasse às mãos de sua filha como herança ou se a morte de seu marido a reduzisse à indigência. Dessa maneira poderia explicar-se a queixa de Raquel e de Lia contra seu pai que havia "consumido seu dinheiro" depois de tê-las "vendido", Gn 31.15. Entre os árabes da Palestina moderna observa-se um costume parecido, inclusive no nome, o mahr, que o noivo entrega aos pais da moça. A quantia varia segundo as localidades e a riqueza da família, se a moça contrai matrimônio dentro da parentela ou fora de seu clã, se ela é da mesma localidade ou de outra. Os interessados não consideram esse pagamento como verdadeira compra, e uma parte da quantia é empregada no enxoval da noiva. Um costume análogo, mas não idêntico, existia no antigo direito babilônico: a tirhatu, que aliás não era condição necessária para o casamento, entregava-se geralmente ao pai da noiva, e às vezes à noiva em pessoa. A quantia variava muito de l a 50 sidos de prata. Essa soma era administrada pelo pai, que tinha o usufruto, mas não podia dispor dela, e voltava às mãos da mulher se ficava viúva, ou a seus filhos depois da morte da mãe. No direito assírio, a tirhatu era entregue à própria noiva. Não era um preço de compra, era apenas, segundo duas explicações prováveis, uma compensação feita à jovem pela perda de sua virgindade ou um dote destinado a ajudar a mulher se perdesse o marido. A mesma situação se manifesta nos contratos de casamento procedentes da colônia judaica de Elefantina, nos quais o mohar se conta entre os bens da mulher, mesmo que tenha sido entregue ao seu pai. Diferentes do mohar são os presentes que o jovem oferecia por ocasião do casamento: as duas coisas se distinguem muito bem em Gn 34.12. Esses presentes oferecidos à moça e sua família eram uma recompensa por terem aceitado a petição de mão. Uma vez concluído o casamento de Rebeca, o servo de Abraão apresenta jóias 105 e vestidos para a jovem e ricos presentes para seu irmão e para sua mãe, Gn 24.53. O mesmo costume se acha também na Mesopotâmia. Segundo o Código de Hamurabi, o noivo distribuía presentes aos pais da moça e, se estes rompiam os esponsais, deviam restituir o dobro do que haviam recebido. Segundo a lei assíria, na qual a tirhatu é já um presente em dinheiro dado à moça, o noivo lhe oferecia ao mesmo tempo adereços e dava um presente a seu pai. A moça também contribuía por ocasião do casamento, ou seja, existia o dote? Isso é difícil de conciliar com o desembolso do mohar por parte do noivo. De fato, o mohar não existe em casos em que aparece algo que se assemelha ao dote: o faraó dá Gezer como presente de casamento à sua filha, quando Salomão a toma por esposa, l Rs 9.16; quando do casamento de Tobias com Sara, o pai desta entrega a Tobias a metade de sua fortuna, Tb 8.21. Mas o casamento de Salomão se faz à maneira egípcia e sai das condições comuns, e a história de Tobias se situa em um ambiente estrangeiro. Além disso, como Sara é filha única, essa entrega parece um adiantamento da herança. Em Israel, os pais podiam dar presentes à sua filha pelo casamento, dar-lhe uma escrava, Gn 24.59; 29.24,29, ou mesmo terras, Js 15.18,19, onde, aliás, o dom é consecutivo ao casamento; mas o costume de dotar a filha nunca enraizou em terra judaica. Eclo 25.22 parece até repugnar esse costume: "É motivo de ira, censura e grande vergonha que uma mulher sustente o seu marido”. Contudo, segundo as leis babilônicas, a jovem esposa recebia de seu pai alguns bens, que lhe pertenciam como propriedade particular e dos quais seu marido tinha somente o usufruto. Restituíam-se à mulher se vinha a ficar viúva ou se fosse repudiada sem que houvesse culpa de sua parte. As leis assírias parecem conter disposições semelhantes. A mulher, ao casar-se, deixa seus pais e vai morar com seu marido, ela seliga ao clã deste, ao qual pertencerão os filhos que ela der à luz. Rebeca deixa seu irmão e sua mãe, Gn 24.58-59, e Abraão não quer que seu filho Isaque vá à Mesopotâmia se a mulher que escolheu não aceita vir para Canaã, Gn 24.5-8. Entretanto, alguns casamentos mencionados na Bíblia parecem escapar a essa regra geral. Jacó, casado com Lia e com Raquel, segue vivendo com seu sogro Labão; quando foge, Labão lhe reprova por ter levado suas filhas e protesta que são "suas" filhas e que os filhos delas são "seus" filhos, Gn 31.26,43. Gideão tem uma concubina que continua vivendo com sua família em Siquém, Jz 8.31, e o filho deste, Abimeleque, afirma o parentesco que o une ao clã de sua mãe, Jz 9.1-2. Quando Sansão toma por esposa uma filistéia de Timna, o casamento se celebra na casa da mulher, que segue vivendo com seus pais, onde Sansão vai visitá-la, Jz 14.8s; 15.1-2. Pensou-se reconhecer nesses casamentos um tipo de união em que a mulher não deixa a casa paterna, onde o marido vai morar com ela desligando-se assim de seu próprio clã. É um tipo que os etnógrafos chamam de casamento beena, por ter esse nome no Ceilão (Sri 106 Lanka), onde foi mais estudado. Mas a comparação é inexata. Os catorze anos de serviço de Jacó são o equivalente do mohar. Se permanece outros seis anos na casa de seu sogro, Gn 31.41, é porque teme ainda a vingança de Esaú.Gn27.42-45, e além disso, porque tem um contrato com Labão, Gn 30.25-31. De fato, Labão não põe à partida de Jacó com suas mulheres nenhuma consideração de direito matrimonial, Gn 30.25s, mas unicamente lhe reprova fazê-lo em segredo, Gn 31.26-28. Ele falaria de outra maneira se o casamento de Jacó o tivesse integrado ao clã de seu sogro. No caso de Gideão, o texto salienta que se trata de uma concubina. A história do casamento de Sansão é mais interessante, mas devemos notar que Sansão não vive com sua mulher em Timna, mas simplesmente a visita e não é incorporado a seu clã. Não se trata, pois, de um casamento beena. O caso de Gideão deve antes ser comparado à união sadiqa dos antigos árabes. Não é tanto um verdadeiro casamento quanto uma união aceita pelo costume: sadiqa significa "amante, companheira". Com relação ao casamento de Sansão, ele se parece muito com uma forma encontrada entre os árabes da Palestina: é um verdadeiro casamento, mas sem coabitação permanente; a esposa é chefe em sua casa e o marido, chamado djôz musarrib, "esposo visitante", aparece como hóspede e leva presentes. As antigas leis assírias prevêem também o caso em que uma mulher casada continue vivendo com seu pai, mas não se demonstrou que esse gênero de casamento, chamado erebu, constitua um tipo especial de casamento. A ESCOLHA DA ESPOSA A Bíblia não dá nenhuma informação acerca da idade em que as moças se casavam. A prática de casar primeiro a filha mais velha não era universal, Gn 29.26. Parece certo que se casavam as filhas muito jovens, como se fez durante muito tempo e se faz ainda freqüentemente no Oriente, e o mesmo devia suceder com os moços. Segundo as indicações dos livros dos Reis, que ordinariamente dão a idade de cada rei de Judá no momento de sua chegada ao trono, assim como a duração de seu reinado e a idade do filho que lhe sucede, que é normalmente o primogênito, pode-se calcular que Joaquim se casou aos 16 anos, Amom e Josias já aos 14; mas esses cálculos se baseiam em números que não são de todo seguros. Mais tarde, os rabinos determinaram a idade mínima do casamento para as moças aos 12 anos, e aos 13 para os moços. Em tais condições compreende-se que a intervenção dos pais seja decisiva para a conclusão do casamento. Não se consulta a jovem nem, freqüentemente, o jovem. Para escolher uma mulher para Isaque, Abraão envia seu criado, que trata do assunto com Labão, irmão de Rebeca, Gn 24.33-53. Somente depois pede-se o consentimento a Rebeca,vv. 57-58, que, segundo o paralelo de certos textos da Mesopotâmia, só é necessário porque Rebeca havia perdido seu pai e está sob a autoridade de seu irmão. Hagar, expulsa por Abraão, escolhe uma esposa para Ismael, Gn 21.21, Judá casa seu primogênito, Gn 38.6. Ocorre também que o pai oriente a escolha de seu filho: Isaque envia Jacó para casar-se com 107 uma de suas primas, Gn 28.1-2. É Hamor que pede a mão de Diná para seu filho Siquém, Gn 34.4,6. Sansão pede a seus pais a filistéia por quem está apaixonado, Jz 14.2-3. Esaú, por independente que seja, leva em conta a vontade de seu pai, Gn 28.8-9. Calebe, Js 15.16, e Saul, l Sm 18.17, 19,21,27; 25.44, decidem sobre o casamento de suas filhas. No final do Antigo Testamento, o velho Tobit aconselha seu filho sobre a escolha de uma esposa, Tb 4.1213, e o casamento de Tobias conclui-se com o pai de Sara, na ausência da jovem, Tb 7.9-12. Como o pedido de casamento é feito aos pais da moça, com eles é que se discutem as condições, especialmente a quantia do mohar, Gn 29.15s; 34.12. Em resumo, como hoje, as filhas casadeiras proporcionavam a seus pais inquietações preocupações, Eclo 42.9. Não obstante, essa autoridade dos pais não era tal que não deixasse lugar em absoluto aos sentimentos dos jovens. Havia em Israel casamentos por afeto. O jovem podia manifestar suas preferências, Gn 34.4; Jz 14.2. Ele podia decidir por si mesmo sem consultar seus pais e até contra a vontade deles, Gn 26.34-35. Mais raro é que a jovem tome a iniciativa, como a filha de Saul, Mical, que se apaixona por Davi, l Sm 18.20. De fato, esses sentimentos tinham muitas ocasiões de nascer e de exteriorizar-se, pois as jovens eram muito livres. É verdade que 2 Mc 3.19 fala das jovens de Jerusalém confinadas em suas casas, mas essa informação refere-se à época grega e a uma circunstância extraordinária. O véu com que se cobriam as mulheres é uma prática ainda mais tardia. Em épocas antigas as jovens não ficavam enclausuradas e saíam sem véu. Elas apascentavam os rebanhos, Gn 29.6, iam buscar água, Gn 24.13; l Sm 9.11, também apanhavam as espigas deixadas pelos segadores, Rt 2.2s, faziam visitas, Gn 34.1. Podiam sem dificuldade falar com os homens, Gn24.15.21; 29.1112; l Sm 9.11-13. Essa liberdade expunha, às vezes, as moças às violências dos rapazes, Gn 34.1-2, mas o sedutor era obrigado a casar-se com a vítima pagando um elevado mohar e não tinha direito de repudiá-la depois, Ex 22.15; Dt 22.28,29. Era costume casar-se com uma parente: isso era uma herança da vida tribal. Abraão envia seu servo para buscar uma esposa para Isaque da sua família na Mesopotâmia, Gn 24.4; Isaque, por sua vez, também envia para lá Jacó para que se case, Gn 28.2. Labão declara que prefere dar sua filha a Jacó que a um estrangeiro, Gn 29.19. O pai de Sansão lamenta que este não tome por mulher uma moça de seu clã, Jz 14.3. Tobit aconselha seu filho que escolha uma mulher de sua tribo, Tb 4.12. Os casamentos entre primos irmãos eram freqüentes, como por exemplo o casamento de Isaque com Rebeca, o de Jacó com Lia e Raquel. Atualmente, ainda é assim entre os árabes da Palestina, onde o jovem tem direito garantido à mão de sua prima. Segundo Tb 6.12-13; 7.10, Sara não pode ser recusada a Tobias porque esse é seu parente mais próximo; nos é dito ser esta uma "lei de Moisés", 108 Tb 6.13; 7.11-12. Não obstante, no Pentateuco não há nenhuma prescrição legislativa desse tipo; o texto se refere aos relatos de Gênesis sobre os casamentos de Isaque e Jacó, cf. especialmente Gn 24.50-51, ou talvez à lei que obriga as filhas herdeiras a casarem-se no clã de seu pai para evitar que se transfiram bens da família, Nm 36.5-9. Sara é, efetivamente, filha única de Ragüel, Tb 6.12. A mesma consideração do patrimônio e dos vínculos de sangue funda a obrigação do levir para com a cunhada que ficou viúva. Havia, contudo, casamentos fora da parentela, e inclusive casamentos com mulheres estrangeiras. Esaú tem duas mulheres hititas, Gn 26.34; José, uma egípcia, Gn 41.45; Moisés, uma midianita, Ex 2.21; as duas noras de Noemi são moabitas, Rt l .4; Davi tem entre suas mulheres uma calebita e uma araméia, 2 Sm 3.3; o harém de Salomão compreende "além da filha do faraó, moabitas, amonitas, edomitas, sidônias e hititas", l Rs 11.1; cf. 14.21. Acabe toma por esposa a sidônia Jezabel, l Rs 16.31. E por outro lado, moças de Israel se casavam com estrangeiros: BateSeba com um hitita, 2 Sm 11.3, a mãe do bronzista Hirão, com um homem de Tiro, l Rs 7.13,14. Esses casamentos mistos que a política aconselhava aos reis tornaram-se freqüentes entre o povo comum desde a instalação em Canaã, Jz 3.6. Não só eram um atentado à pureza de sangue, mas também punham em perigo a fé religiosa, l Rs 11.4, e eram proibidos pela lei, Ex 34.15-16; Dt 7.3-4. As cativas de guerra abriase uma exceção: podiam ser desposadas após uma cerimônia que simbolizava o abandono de seu lugar de origem, Dt 21.10-14. Essas proibições não foram muito respeitadas: a comunidade que voltou do Exílio, continuou realizando casamentos mistos. Ml 2.11-12; Esdras e Neemias tiveram que tomar medidas severas, que não parecem ter sido muito eficazes, Ed 9.10; Ne 10.31; 13.23-27. Entretanto, no interior da família estão proibidos os casamentos com parentes imediatos pelo sangue ou por aliança, pois o indivíduo não deve se unir a "sua própria carne", Lv 18.6, a afinidade era considerada como um laço igual ao da consangüinidade, cf. 18.17. Essas proibições se referem, pois, à proibição do incesto. Algumas são primitivas, outras foram acrescentadas mais tarde; estão reunidas sobretudo em Lv 18. Há impedimentos de consangüinidade em linha direta entre pai e filha, mãe e filho, Lv 18.7, entre pai e neta, Lv 18.10, em linha colateral entre irmão e irmã, Lv 18.9; Dt 27.22. O casamento com uma meia-irmã, aceito na época patriarcal, Gn 20.12, e ainda sob Davi, 2 Sm 13.13, é proibido pelas leis de Lv 18.11; 20.17; o casamento entre sobrinho e tia, como o casamento do qual nasceu Moisés, Ex 6.20, Nm 26.59, é proibido por Lv 18.1213; 20.19. Há impedimento de afinidade entre um filho e sua madrasta, Lv 18.8, entre sogro e nora, Lv 18.15; 20.12; cf. Gn 38.26, entre sogra e genro, Lv 20.14; Dt 27.23, entre um homem e a filha ou a neta de uma mulher com quem ele tenha se casado, Lv 18.17, entre um homem e a mulher de seu tio, Lv 18.14; 20.20, entre cunhado e cunhada, Lv 18.16; 20.21. O casamento com duas irmãs, que poderia ser autorizado pelo exemplo de Jacó, é proibido por Lv 18.18. 109 Os membros da linhagem sacerdotal estavam sujeitos a restrições especiais. Segundo Lv 21.7, não podiam tomar por esposa uma mulher que tivesse se prostituído ou que tivesse sido repudiada por seu marido. Ez 44.22 acrescenta ainda as viúvas, a não ser que elas fossem viúvas de um sacerdote. Para o sumo sacerdote havia regras ainda mais estritas: só podia tomar como esposa uma virgem de Israel. OS ESPONSAIS Os esponsais são a promessa de casamento feita algum tempo antes da celebração das núpcias. Era um costume que existia em Israel e a língua hebraica tem um verbo especial para expressá-lo: é o verbo 'arás, empregado onze vezes na Bíblia. Os livros históricos dão poucas informações sobre isto. O caso de Isaque e de Jacó são particulares: sem dúvida Rebeca foi prometida a Isaque na Mesopotâmia, mas o casamento foi celebrado quando ela chegou em Canaã, Gn 24.67; Jacó espera sete anos antes de casar-se, mas tem um compromisso especial com Labão, Gn 29.1521. O caso de Davi e das duas filhas de Saul é mais claro: Merabe lhe havia sido prometida, mas "quando chegou o momento" foi dada a outro, l Sm 18.17-19; Mical foi prometida a Davi em troca de cem prepúcios de filisteus, que ele apresentou "antes de vencido o prazo", l Sm 18.26-27. Em compensação, Tobias desposou Sara logo depois que o casamento foi acertado, Tb 7.9-16. Mas os textos legislativos provam que os esponsais eram um costume reconhecido e que tinham efeitos jurídicos. Segundo Dt 20.7, um homem que se comprometeu com uma moça, mas que ainda não tenha se casado com ela, está dispensado de ir à guerra. A lei de Dt 22.23-27 regulamenta o caso de uma virgem que está prometida e sofre violência por parte de um homem que não é o seu noivo. Se o estupro aconteceu na cidade, a noiva é apedrejada juntamente com seu sedutor, pois deveria ter pedido socorro; se foi assediada no campo, somente o homem deve ser morto, pois a moça pode ter gritado e não ter sido ouvida. A glosa de l Sm 18.21 conserva provavelmente a fórmula que o pai da moça pronunciava e que garantia a validez do noivado: "Hoje tu serás meu genro." O preço do mohar era discutido com os pais no momento do noivado e sem dúvida era entregue imediatamente se, como era o costume, fosse pago em dinheiro. Os esponsais existiam igualmente na Mesopotâmia. Concluíam-se com o desembolso da tirhatu, equivalente do mohar, e acarretavam conseqüências jurídicas. Entre o noivado e o casamento havia um intervalo mais ou menos longo, durante o qual cada uma das partes podia voltar atrás, mas recebia uma penalidade. As leis hititas contêm disposições análogas. AS CERIMONIAS DE CASAMENTO 110 É interessante observar que em Israel, como na Mesopotâmia, o casamento é um assunto puramente civil e não é sancionado por nenhum ato religioso. É certo que Malaquias chama a esposa "a mulher de tua aliança", berît, Ml 2.14, e que com freqüência berît se refere a um pacto religioso, mas aqui este pacto não é senão o contrato de casamento. Em Pv 2.17, o casamento é chamado "a aliança de Deus" e, na alegoria de Ez 16.8, a aliança do Sinai tornase o contrato de casamento entre lahvé e Israel. Fora estas prováveis alusões, o Antigo Testamento não menciona contrato escrito de casamento a não ser na história de Tobias, Tb 7.13. Possuímos muitos contratos de casamento procedentes da colônia judaica de Elefantina, que datam do século V antes de nossa era, e na época greco-romana o costume estava bem estabelecido entre os judeus. É difícil dizer até onde ele remonta. Existia desde muito tempo na Mesopotâmia, e o Código de Hamurabi declara inválido um casamento concluído sem que um contrato tenha sido estabelecido. Em Israel redigiam-se documentos de divórcio desde, antes do Exílio, Dt 24.1,3; Jr 3.8: seria, pois, estranho se naquele tempo não houvesse contratos de casamento, e o silêncio dos textos é, talvez, acidental. A fórmula determinante do casamento é dada nos contratos de Elefantina, que são redigidos em nome do marido: "Ela é minha esposa e eu seu marido a partir de hoje, para sempre"; a mulher não faz nenhuma declaração. Pode-se encontrar um equivalente em Tb 7.11, onde o pai de Sara diz a Tobias: "Desde agora és seu irmão e ela é tua irmã”. Em um contrato do século II d.C., descoberto no deserto de Judá, a fórmula é: "Tu serás minha mulher." O casamento era ocasião de alegria. A cerimônia principal era a entrada da noiva na casa do esposo. O noivo, com a cabeça adornada com um diadema, Ct 3.11; Is 61.10, acompanhado por seus amigos com tamborins e músicas, l Mc 9.39, dirigia-se à casa da noiva. Esta estava ricamente vestida e adornada com jóias, SI 45.14-15; Is 61.10, mas, coberta com um véu, Ct4.1,3; 6.7, e só se descobria no aposento nupcial. Por isso Rebeca se cobriu com um véu ao avistar seu noivo Isaque, Gn 24.65, e esse costume permitiu a Labão substituir Raquel por Lia no primeiro casamento de Jacó, Gn 29.23-25. A moça, acompanhada de suas amigas, SI 45.15, é conduzida à casa do esposo, SI 45.16; cf. Gn 24.67. Cantam-se cantos de amor, Jr 16.9, nos quais se celebram as qualidades do casal, dos quais temos exemplos no SI 45 e no Cântico dos Cânticos, seja qual for a interpretação que lhes seja dada, alegórica ou literal. Os árabes da Palestina e da Síria conservaram costumes análogos: o cortejo, os cantos nupciais, o véu da noiva. Às vezes, durante o trajeto, uma espada é levada pela noiva ou diante dela, e às vezes ela executa, avançando e retrocedendo, a dança do sabre. Relacionou-se a isso a dança da sulamita em Ct 7.1. Em algumas tribos a noiva tenta, por brincadeira, escapar de seu noivo que deve simular conquistá-la à força. Foi proposto ver nessas brincadeiras uma sobrevivência do casamento por rapto, do qual haveria igualmente um vestígio no Antigo Testamento: o rapto pelos benjamitas das moças que dançavam nas vinhas de Siló, Jz 21.19- 111 23. Essas comparações não parecem ter fundamento. O gesto de brandir a espada tem valor profilático: corta a má sorte e afugenta os demônios. Nada indica que a dança da sulamita seja uma dança do sabre, e o episódio de Siló se explica pelas circunstâncias extraordinárias mencionadas no relato. Em seguida, celebrava-se o grande banquete, Gn 29.22; Jz 14.10; Tb 7.14. Nesses três casos a ceia acontece na casa dos pais da noiva, mas em condições particulares. Pela regra geral dava-se, certamente, na casa do noivo, cf. Mt 22.2. A festa durava normalmente sete dias, Gn 29.27; Jz 14.12, e podia se prolongar por até duas semanas, Tb 8.20; 10.7. Contudo, o casamento se consumava já na primeira noite, Gn 29.23; Tb 8.1. Dessa noite nupcial se conservava o tecido manchado de sangue que provava a virgindade da noiva e que servia de prova em caso de calúnia do marido, Dt 22.13-21. O mesmo costume ingênuo existe ainda na Palestina e em outros países muçulmanos. O REPÚDIO E O DIVÓRCIO O marido pode repudiar sua mulher. O motivo aceito por Dt 24.1 é "ter ele achado coisa indecente nela". A expressão é muito genérica e, na época rabínica, discutia-se vigorosamente sobre a abrangência desse texto. A escola rigorista de Shammai só admitia como causa de repúdio o adultério e a má conduta, mas a escola de Hillel, cuja interpretação era mais abrangente, contentava-se com qualquer motivo, inclusive fútil, como a mulher ter cozinhado mal um prato ou, simplesmente, que outra mulher agradasse mais o marido. Já Eclo 25.26 dizia ao marido: "Se tua esposa não obedece ao dedo e ao olho separa-te dela." A formalidade do repúdio era simples: o marido fazia uma declaração contrária à que tinha estabelecido o casamento: "Ela já não é minha esposa e eu já não sou seu marido". Os 2.4. Na colônia de Elefantina, ele dizia diante de testemunhas: "Eu me divorcio de minha mulher", literalmente: "Odeio minha mulher. "Na Assíria, ele dizia: "Eu a repudio", ou seja: "Você não é mais minha mulher. "Mas, em Israel, como na Mesopotâmia e em Elefantina, o marido devia redigir um documento de repúdio, Dt 24.1,3; Is 50.1; Jr 3.8, (que permitia à mulher voltar a casar-se, Dt 24.2. Nas cavernas de Murabba'at descobriu-se um documento de repúdio, de princípios do século II d.C. A lei estabelecia poucas restrições ao direito do marido: um homem que tivesse acusado falsamente sua mulher de não ser virgem ao casar-se com ele, não podia repudiá-la nunca mais, Dt 22.13-19; da mesma maneira, um homem que tivesse tido que se casar com uma moça que ele tinha violado, Dt 22.28-29. Se uma mulher repudiada volta a casar-se, e fica livre por ter morrido seu segundo marido ou por que este a repudiou, o primeiro marido não pode retomá-la, Dt 24.3-4; cf. Jr 3. l. O duplo casamento de Oséias, Os 2.3, se é que se trata, como parece, da mesma mulher repudiada e tomada novamente, não está sob essa lei, pois a mulher não tinha voltado a casar-se neste ínterim, mas se prostituído. A lei também não se aplicava no caso de Mical, casada com Davi, dada depois em 112 casamento a outro e, finalmente, retomada por Davi, l Sm 18.20-27; 25.44; 2 Sm 3.13-16, posto que Davi não a tinha repudiado. Não sabemos se os maridos israelitas faziam freqüentemente uso desse direito, que parece ter sido bastante difundido. Os escritos sapienciais fazem o elogio da fidelidade conjugal, Pv 5.15-19; Ec 9.9, e Malaquias ensina que o casamento faz dos cônjuges um só ser, e que o marido deve sustentar o juramento feito à sua companheira: "Odeio o repúdio, diz Iahvé. Deus de Israel". Ml 2.1416. Mas será preciso aguardar o Novo Testamento para que Jesus proclame a indissolubilidade do casamento, Mt 5.31-32; 19.1-9 e paralelos, com o mesmo argumento que empregava Malaquias: "O que Deus uniu, o homem não deve separar”. As mulheres, ao contrário, não podiam pedir o divórcio. Mesmo no princípio de nossa era, quando Salomé, a irmã de Herodes, enviou uma carta de repúdio a seu esposo Kostabar, sua ação foi considerada contrária à lei judaica. Se o Evangelho apresenta a hipótese de uma mulher que repudia seu marido, Mc 10.12 (que falta nos paralelos), é seguramente pensando nas práticas dos gentios. Mas a colônia de Elefantina, que havia sofrido influências estrangeiras, admitia que o divórcio fosse pronunciado pela mulher. E até na Palestina é atestado esse uso no século II de nossa era por um documento do deserto de Judá. Na Mesopotâmia, segundo o Código de Hamurabi, o marido pode repudiar sua mulher pronunciando a fórmula de divórcio, mas deve dar-lhe uma compensação que varia segundo cada caso. A mulher não pode divorciar-se a não ser depois que uma decisão do juiz reconheça a culpa do marido. Segundo as leis assírias, o marido pode repudiar sua mulher sem compensação, mas a mulher não pode obter o divórcio. Os contratos apresentam uma situação mais complexa e com freqüência prevêem condições mais onerosas para o marido: no momento da conclusão do casamento, os pais da noiva a protegiam com cláusulas específicas. Mesmo que o Antigo Testamento se cale sobre essa questão, é provável que também em Israel algumas condições pecuniárias estivessem ligadas ao repúdio. Segundo os contratos matrimoniais de Elefantina, o marido que repudiava sua mulher não podia reclamar o mohar, pagava o "preço do divórcio" e a mulher conservava tudo o que havia levado ao casamento; a mulher que se separava de seu marido pagava o mesmo "preço do divórcio" e conservava seus bens pessoais, inclusive, pelo que parece, o mohar. O ADULTÉRIO E A FORNICAÇÃO O Decálogo condena o adultério, Ex 20.14; Dt 5.18, junto com o homicídio e o furto como atos que prejudicam ao próximo. Em Lv 18.20, o adultério inclui-se entre os interditos matrimoniais, é algo que torna "impuro". Como em todo o Oriente antigo, o adultério é, pois, um delito privado, mas o texto de Lv 18.20 lhe acrescenta uma consideração religiosa e os relatos de Gn 20.1-13; 26.7-11, apresentam o adultério como uma falta castigada por Deus. 113 O adultério de um homem com uma mulher casada é severamente punido: os dois cúmplices são condenados à morte, Lv 20; 10; Dt 22.22; nesse caso, a noiva é comparada à esposa, Dt 22;23s: efetivamente a noiva pertence a seu noivo como a mulher a seu marido. A pena se executa mediante apedrejamento, segundo Dt 22.23s; Ez 16;40; cf. Jo 8.5; entretanto, é possível que, antigamente, se aplicasse a pena do fogo: Judá condenou sua nora Tamar a ser queimada viva, Gn 38.24, porque suspeitou que ela havia se entregado a um homem sendo viúva de seu filho Er, estando prometida, pela lei do levirato, a outro filho seu. Sela. A coleção mais recente dos Provérbios, Pv 1.9, põe repetidas vezes em alerta os jovens contra as seduções de uma mulher infiel a seu marido. A mulher é chamada "estrangeira", isto é, simplesmente, a mulher de outro, Pv 2.16-19; 5.2-14; 6.23-7.27. Tal amor conduz à morte, 2.18; 5.5; 7.26,27, mas essa "morte" é geralmente sinônimo de perdição moral; uma vez aparece como a vingança do marido ofendido, 6.34, mas jamais como castigo legal de adultério. As partes antigas de Provérbios fazem poucas alusões ao adultério. Pv 30.18-20, e comparam-no à prostituição, 23.27. O homem que freqüenta as prostitutas dissipa seus bens e perde seu vigor, Pv 29.3; 31.3, mas não comete um delito punível pela lei. Nenhuma censura recai sobre Judá por ter agido com Tamar como uma prostituta, Gn 38.15-19; sua única falta consiste em não ter observado, a respeito de sua nora, a lei do levirato, Gn 38.26. A fidelidade conjugal é recomendada ao marido em Pv 5.15-19, mas sua infidelidade não é castigada, a não ser no caso em que prejudique o direito alheio e tenha por cúmplice uma mulher casada. Em contraste com essa indulgência de que usufrui o marido, a imoralidade da mulher casada está sujeita a duros castigos; o marido pode, sem dúvida, perdoar sua mulher, mas pode também repudiá-la e ela sofre uma pena difamatória, Os 2.5,11-12; Ez 16.37-38; 23.29. É a "grande falta" de que falam alguns textos do Egito e Ugarit, a "grande falta" que ia cometer o rei de Gerar com Sara, Gn20.9; cf., metaforicamente, aplicado à idolatria Ex 32.21,3031. Nos faltam informações sobre as mulheres não casadas; só se sabe que se a filha de um sacerdote se prostituísse, devia ser queimada viva, Lv 21.9. O LEVIRATO Segundo uma lei de Dt 25.5-10, se irmãos vivem juntos e um deles morre sem deixar descendência, um dos irmãos sobreviventes toma por mulher a viúva, e o primogênito desse novo casamento é considerado legalmente como filho do falecido. Entretanto, o cunhado pode esquivar-se dessa obrigação mediante uma declaração feita ante os Anciãos da cidade, mas ele é desonrado: a viúva rejeitada o descalça e lhe cospe na cara porque "não edifica a casa de seu irmão". 114 Essa instituição é chamada levirato, do latim levir, que traduz o hebraico yabam, "cunhado". No Antigo Testamento ela é ilustrada por dois exemplos, que são difíceis de interpretar e que só imperfeitamente correspondem à lei do Deuteronômio: a história de Tamar e a de Rute. O primogênito de Judá, Er, morre sem deixar descendência de sua mulher Tamar, Gn 38.6-7. Seu irmão Onã tinha o dever de casar-se com a viúva, mas ele não quer ter um filho que não seja legalmente seu, ele faz estéril sua união com Tamar e, por esse pecado, lahvé o mata, 38.8-10. Judá deveria então dar para Tamar seu último filho, Selá, mas esquiva-se do dever, 38.11. Então Tamar se une por astúcia a seu sogro, 38.15-19. Nesse antigo relato, a lei do levirato aparece mais estrita que no Deuteronômio: o cunhado não pode escapar dela e o dever incumbe sucessivamente a todos os irmãos sobreviventes, cf. Mt 22.24-27. A união de Tamar com Judá poderia ser uma reminiscência de um tempo em que o dever do levirato afetava o sogro se não tivesse outro filho, que é o que se praticou em outros povos; contudo, aqui é mais o ato desesperado de uma mulher que quer ter filhos do mesmo sangue que seu marido. A história de Rute combina o costume do levirato com o dever do resgate que incumbia ao go'el. A lei de Dt 25 não se aplica porque Rute não tem mais cunhado, Rt 1.11-12. O fato de que um parente próximo deva tomá-la por esposa, e isso seguindo certa ordem, Rt 2.20; 3.12, indica seguramente uma época ou um ambiente em que a lei do levirato era um assunto de clã mais do que de família no sentido estrito. De qualquer forma, as intenções e os efeitos desse casamento são os de um casamento levirático: trata-se de "perpetuar o nome do falecido", Rt 4.5,10; cf. 2.20, do qual a criança que há de nascer será considerada filha, Rt 4.6; cf. 4.17. Esse costume tinha paralelos em outros povos, e especialmente entre os vizinhos de Israel. O Código de Hamurabi não fala dele, mas as leis assírias consagram-lhe vários artigos. Nelas não se expressa a condição de que a viúva não tenha filho, mas isso pode ser devido a uma lacuna do texto. Em compensação, essas leis assimilam, com respeito a isso, os esponsais a um casamento consumado: se um noivo morre, sua noiva deve casar-se com o irmão do falecido. Algumas leis hititas falam também do levirato, mas com menos detalhe. O costume existia entre os hurritas de Nuzu e talvez em Elam. Também é atestada em Ugarit. Muito discutiu-se sobre o significado do levirato. Alguns explicaramno como meio de assegurar a continuidade do culto aos antepassados, enquanto outros descobriram nele um indício de sociedade fratriarcal. Independentemente de como era entre outros povos, o Antigo Testamento dá uma explicação que lhe é própria e que parece suficiente. A razão essencial é a de perpetuar a descendência masculina, o "nome", a "casa", e é por isso que a criança (provavelmente só a primeira) de um casamento levirático é considerada filha do falecido. Não é somente um motivo sentimental, é a expressão da importância dada aos laços de sangue. Uma razão concomitante é a de evitar a transferência dos bens da família. Essa consideração aparece em Dt 25.5, que põe 115 como condição do levirato que os irmãos vivam juntos, e, na história de Rute, ela explica que o direito de resgate da terra esteja ligado com a obrigação de casar-se com a viúva. A mesma preocupação se encontra na legislação do jubileu, Lv 25, e na lei sobre as filhas herdeiras, Nm 36.2-9. A. VAN DER BORN (2004) esclarece sobre os esponsais: Entre estar desposado e estar casado não há no AT uma diferença essencial: tão logo que o contrato de casamento era concluído entre o rapaz e os representantes da moça, ele tinha todos os direitos e deveres matrimoniais, e a moça ficava obrigada à fidelidade matrimonial. Não havia portanto um noivado no nosso sentido, com promessa apenas de um futuro casamento, a não ser, talvez, no caso de Booz, interpretando seu gesto em Ru 3,9 neste sentido de que exprime a vontade de Booz de cuidar doravante de Rute. Muitas vezes, no entanto, decorria algum tempo antes de a esposa dar entrada na casa do marido e de se consumar o matrimônio; enquanto ficava na casa dos pais, ela podia ser considerada como desposada. Durante esse tempo os desposados estavam obrigados à fidelidade mútua; infidelidade era punida judicialmente (Dt 22,2329); até a suspeição de infidelidade é motivo de investigação (22,15-19). Sobre os esponsais no judaísmo posterior veja StB 2,393ss. No NT prevalecem as mesmas concepções (Mt l,18s; Lc 1,27; 2,5; ICor 7,36-38; 2Cor 11,12). Ver também -> Maria II.B; Syneisaktos. A. VAN DER BORN (2004) fala sobre as noivas: (hebr. kallãh, gr. ...). —> Núpcias. A noiva é imagem da nova Sião (Is 62,4); ela faz a felicidade de Javé (62,5), que a cinge (49,18), e para quem ela se enfeita com suas jóias (61,10; cf. Jer 2,32). A comparação de uma cidade com uma mulher ou moça já era tradicional no AT, mas a imagem da cidade como noiva depende também do fato de que, a partir de Oséias, a aliança entre Javé e Israel repetidas vezes é simbolizada como uma aliança conjugal, um matrimônio (Os 2,16; Ez 16,8; Jer 2,2 fala em "o tempo da noiva"); uma interpretação alegórica do Cânt tornou esse simbolismo muito popular no judaísmo posterior. No Apc a nova Jerusalém é "como a noiva que se enfeitou para o noivo". Em Jer "os tons de festa e alegria, de noivo e noiva" é uma expressão estereotípica, indicando uma felicidade perfeita (7,34; 16,9; 25,10; 33,11; cf. Bar 2,23; Apc 18,23). No NT S. João Batista chama Jesus de —> Noivo (Jo 3,29), a comunidade cristã de noiva (cf. 2Cor 11,2) e a si mesmo de amigo do noivo. Em Apc 21,9 a noiva é a esposa do Cordeiro; em 22,17 o Espírito e a noiva (esposa) são mencionados juntamente. A. VAN DER BORN (2004) fala sobre o preço da noiva: (hebr. mõhar: Gên 34,12; Ex 22,15s; ISam 18,25), a quantia que o pai do noivo ou o próprio rapaz tinha que pagar ao pai da noiva ou a quem o substituía. E' discutido se se trata de uma compra; —> matrimônio. A quantidade do preço dependia de muitas circunstâncias (lugar, tempo, posição social, etc.), mas a média era de uns cinco siclos de prata. O p. podia ser pago também com 116 serviços (Gên 29), com animais de muito valor (30,25-41), ou com serviço militar (Jos 15,16; Jz 1,12; ISam 17,25; 18,25; 2Sam 3,14); nesse último caso a noiva era a recompensa pela vitória. A. VAN DER BORN (2004) fala sobre a virgindade: A palavra virgindade pode ser empregada em dois sentidos: como virgindade de fato, independentemente da intenção da pessoa que a possui, e como virgindade intencional, como estado de vida ou modo de vida livremente escolhido, i. é, como celibato voluntário. (I) No AT a virgindade como estado de vida, em que a abstenção é praticada por motivos superiores, era desconhecida. O israelita considerava o —> matrimônio como honroso para todo o mundo e desejava uma prole numerosa, sinal da bênção do Senhor (Gên 22,17). Esse respeito pelo matrimônio não significa que a virgindade não fosse estimada: o sumo sacerdote só podia casar-se com uma virgem (Lev 21,13-15); a Lei protegia a virgindade das jovens com determinações especiais (Êx 22,15s); os pais velavam com multo cuidado que a noiva chegasse intacta ao casamento (Dt 22,13-29); o estado inupto da viúva era honrado em Israel (IRs 17,9; Jdt 15,10s; 2Mac 7). Só nos últimos tempos do AT (no judaísmo) houve homens e mulheres que por motivos ascéticos se abstinham do matrimônio, como se admite geralmente a respeito dos —> essênios. (II) Só no cristianismo, no NT, a virgindade ganhou o seu devido lugar como estado de vida. Aí nenhuma rejeição ou condenação do matrimônio ou da vida sexual em si. Em palavras um tanto obscuras Jesus recomenda o estado virginal ou inupto, por motivos superiores, a saber, "por causa do reino dos céus" (Mt 19,lls). Igualmente S. Paulo. Em lugar nenhum esse propõe a virgindade como um preceito. Embora vivendo ele mesmo nesse estado (ICor 7,7), não o aconselha a todos, porque nos desígnios de Deus não é a regra mas antes uma exceção. Para aqueles que possuem o dom de Deus que possibilita tal vida, a virgindade é boa, louvável, aconselhável (ICor 7,1-25). Esse estado é melhor do que o matrimônio, porque desimpede a pessoa para servir melhor a Deus e faz a alma tender mais livremente à união com Deus (ICor 7,25-40). Pois a conseqüência da virgindade é que a alma fica mais livre para se dar inteiramente a Deus. No NT não se exige que os candidatos para os ofícios de supervisor (epíscopo), presbítero e diácono sejam inuptos, mas sim que não se tenham casado mais de uma vez (ITim 3,2.12; Ti 1,6). A. VAN DER BORN (2004) fala sobre as viúvas: Depois da morte de seu marido, a mulher que ficou sozinha vestiase com o vestido das viúvas (Gên 38,14; Jdt 8,5), do qual não conhecemos os pormenores, e (quando não tinha filhos e não havia para ela um matrimônio de levirato), voltava para a casa dos pais. Se tinha filhos, esses deviam sustentá-la. Um segundo matrimônio muitas vezes era necessário por motivos econômicos, mas geralmente impossível e em alguns casos proibido (Lev 21,24: com um sumo sacerdote; Ez 44,22: com um sacerdote). Por isso a situação das viúvas era de pouca segurança e pertenciam elas, como os órfãos e os estrangeiros, àquela categoria de pessoas que 117 sempre necessitavam da proteção dos profetas (p. ex.. Is 1,17; Jer 7,6; Miq 2,9) e da defesa da Lei (Êx 22,21ss; Dt 16,11.14; 24,19-21; 26,12). Louvava-se a viúva que voluntariamente continuava inupta (Jdt 8,4s; Lc 2,36s; ICor 7,39s). O último refúgio das viúvas é Deus (Êx 22,22s; Dt 10,18; SI 68,6; 146,9; Mal 3,5; ITun 5,5). Nas primitivas comunidades cristãs, as viúvas eram sustentadas (At 6,lss); visitar as viúvas na sua necessidade é louvado em Tg 1,27 (cf. At 9,36ss) como um ato de verdadeira religiosidade. Possivelmente as viúvas tenham às vezes vivido juntas na casa de um cristão abastado, sob a supervisão de uma mulher (diaconisa?) (ITim 5,16). Existiu também na Igreja primitiva um ofício de viúvas; no contexto de uma exortação geral às viúvas, ITim 5,9s descreve as condições (idade de 60 anos; casadas uma só vez; piedade) e a tarefa (provavelmente o cuidado de mulheres pobres e doentes). Enquanto no oriente aparecem as diaconisas, ouve-se no ocidente falar mais em viúvas. As duas funções, no entanto, devem talvez ser identificadas. [9] O sistema de cotas para mulheres foi instituído no Brasil limitadamente através de uma lei eleitoral, a de nº 9.100/95, destinada a imcrementar a presença feminina nas Câmaras de Vereadores, idéia que aproveitamos neste estudo como inspiradora para a proposta de cotas amplas para as mulheres no patamar de 50% das vagas para todos os setores de cargos (eletivos e por concurso público) e postos de trabalho em geral. Transcrevemos abaixo o valioso artigo que nos dá grande alento para vermos que não estamos sozinho: Do voto feminino à Lei das Cotas: a difícil inserção das mulheres nas democracias representativas (MARY FERREIRA[1]) O impacto proporcionado pela ação política do movimento feminista é responsável pela gradativa mudança de mentalidade que vem se processando na sociedade, juntamente com a implementação de políticas públicas que têm contribuído para a transformação da condição social das mulheres nas últimas décadas. Embora este fato seja observado por diversos autores[2], existem setores que continuam como “santuários que fogem às mulheres”: o religioso, o militar e o político, como três ordens da Idade Média, constituem segundo Perrot (1998) espaços que continuam quase inacessíveis às mulheres, haja vista a resistência histórica de integrar mulheres neste “redutos”, no qual os homens dominavam e ainda dominam plenamente. Ao analisar a presença das mulheres no legislativo em diferentes países da América Latina, do Caribe, dos Estados Unidos e da África pudemos perceber que a representação feminina ainda é bastante desigual. Mesmo em países que passaram por processos revolucionários recentes como foi o caso de Moçambique a representação das mulheres reflete uma iniqüidade de gênero. O Quadro I[3] reflete os dados que reforçam a desigualdade. Quadro I Representação Feminina no Legislativo em diferentes países 118 PAÍS DEPUTADAS SENADORAS No Brasil, a história da Colômbia 12 % 13 % participação da Chile 11 % 4% mulher no Uruguai 10 % 10 % parlamento, Brasil 8,2 % 12 % tem como Estados 14 % 13 % marco inicial à Unidos conquista do Canadá 21 % 35 % direito ao voto Moçambique 27 % que se deu em 1932. Essa conquista é resultado da luta contínua do movimento sufragista, que emergiu, no Brasil em 1919, culminou com a conquista do direito ao voto pelas mulheres, mas, não foi suficiente para que estes contingentes humanos superassem o processo de exclusão. Argentina México 27 % 16 % 3% 16 % Até a década de 1970 esse quadro de exclusão não sofreu muitas modificações. A partir do final da década de 1980, a situação se modifica, em virtude do crescimento industrial, que contribuiu para um aumento significativo da participação feminina no mercado de trabalho, e, na crescente inserção das mesmas, nos cursos superiores. A isto se aliou o processo de redemocratização do País que se instaurou nesse período. Esses fatos contribuem, para ampliar a participação da mulher nas esferas de poder, encorajandoas, também, a organizarem-se politicamente, o que revela a importância dos movimentos de mulheres nesse processo. O momento da elaboração da nova constituição brasileira foi fundamental, para que as mulheres, a partir de sua atuação conquistassem direitos legais e obtivesse legitimidade para suas reivindicações, inclusive na esfera da política institucional. Nesse período foram criados os Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais da Condição Feminina, as delegacias da mulher, os coletivos de mulheres nos partidos e sindicatos, a implementação da Lei das Porém, essas instâncias de representação e Cotas[4]. reconhecimento político não determinaram um equilíbrio entre homens e mulheres em termos de representação no legislativo. Um breve balanço sobre resultados eleitorais de 2002 Atualmente, as mulheres constituem 8,2% dos/as representantes responsáveis pela elaboração das leis nesse País. São 42 deputadas num universo de 515 deputados que compõem a Câmara Federal. Se considerarmos o pleito anterior de 1998, tínhamos 29 deputadas eleitas que representavam cerca de 5,6% do total de representantes na Câmara Federal, indicando um incremento na atual legislatura de 45 % quando comparada à eleição passada. Nas eleições de 1994 foram eleitas 26 deputadas, cujo índice situava-se no patamar de 5%. Percebe-se que a cada eleição o número de mulheres cresce, e se compararmos com as eleições de 1986 quando foram eleitas 16 deputadas para elaborar a carta constitucional em vigor, pode-se então considerar que tem diminuído o fosso existente entre os gêneros no que se refere a participação no legislativo. A 119 desigualdade, entretanto, ainda permanece, quando se compara quantitativamente. No que se refere ao Senado, por exemplo, estabeleceu-se a mesma relação desigual, das 81 cadeiras, apenas 10, são ocupadas por mulheres o que representa 12,3%. Para ilustrar melhor esses dados apresentamos nos quadro abaixo os quantitativos numéricos da representação feminina por Estado e partido. Nas análises sobre a representação feminina no Senado Federal (Quadro II) não se pode deixar de evidenciar o fato de que 60 % da bancada feminina eleita pertence ao Partido dos Trabalhadores, e 60 % das senadoras pertencem as regiões norte e nordeste do Brasil caracterizado por cientistas políticos como grandes redutos masculinos marcado pelo patriarcado - pelo caciquismo e pelas oligarquias dos partidos considerados conservadores. Por outro lado, percebe-se que em relação aos Estados de maior densidade populacional e economicamente mais desenvolvidos: SP, RJ, RS, MG, PR, não existe nenhuma representação feminina nessa instância de poder. A maioria das senadoras eleitas representa partidos considerados de esquerda[5] trazendo assim, elementos para novas análises de pesquisadores dessa área. Na representação partidária, a bancada que mais elegeu mulheres na Câmara Federal a exemplo do que já ocorreu no Senado foi o PT. Das 42 deputadas eleitas, 14 pertencem aos quadros do Partido dos Trabalhadores. As outras 28 estão divididas entre o PFL e PSDB (cada um elegeu 6 deputadas), o PMDB e PC do B também elegeram 4 deputadas cada um), o PSB e o PTB (elegeram 2 deputadas, cada) e o PDT, PSD, PST e PPB cada um desses partidos elegeu 1 deputada. Vale ressaltar o fraco desempenho do PPB que de 49 deputados eleitos nenhuma do sexo feminino.(Quadro III) Os índices para as Assembléias Legislativas são um pouco mais elevados, porém, não é uma alteração substancial em relação à Câmara Federal. Das eleições de 1998 às de 2002 houve um aumento na ordem de 25, 5 % de deputadas estaduais. Hoje são 133 deputadas representando 12,5 % quando em 1998 eram 106 deputadas, que representava 10% dos integrantes. Dos Estados que elegeram a maior bancada feminina no legislativo destacam-se o Estado do Rio de Janeiro e São Paulo que elegeram 10 parlamentares, Maranhão, Ceará, Pará e Pernambuco elegeram 8 deputadas. No legislativo estadual os dados apontados pelo CFEMEA (2002) também indicam que estão filiados ao PT os maiores números de deputadas eleitas na atual legislatura. Nas Câmaras Municipais o percentual é mais elevado, a presença feminina corresponde a 11,6 % do total de vereadores das eleitos em 2000. São nas câmaras municipais local onde se registram um maior incremento da participação das mulheres em espaços de poder. Em 1982 - pontua-se essa data, pois coincide com o início da “abertura política” do país, - o percentual de vereadoras correspondia a 3,5% do total. Em 1992, o índice situava-se na faixa dos 8%. Nas eleições de 1996, este percentual passa a corresponder a 11% do total de representantes nas câmaras municipais. Os números evidenciam um incremento na ordem de 300 % nos últimos 120 vinte anos. Entretanto quando comparamos os dados, fica evidente a desigualdade já que são 7.001 vereadoras e 53.266 vereadores. Um exemplo dessa desigualdade é a Câmara Municipal de São Luís, Capital do Maranhão que elegeu apenas uma mulher vereadora. Na Câmara Municipal de Araraquara por exemplo são 5 vereadoras num universo de 21 vereadores, quadro esse que se modificou substancialmente nas últimas eleições , uma vez que, as legislaturas de 92 e 96 apenas 2 vereadoras foram eleitas. Nos cargos da administração direta nesse municipio as mulheres estão a frente de 4 secretarias: Saúde, Educação, Assistência Social e Secretaria de Governo que me parece um número razoável, proporção semelhante ao número de mulheres representadas no ministério de Lula. Temos 5 (cinco) ministras que, se compararmos com governos anteriores representa um aumento significativo, entretanto quando analisamos por outros campos percebe-se que as distâncias e desigualdades na distribuição do poder no País é uma realidade que precisa ser superada. A lei das cotas e a representação das mulheres no poder O processo de implementação da política de cotas no Brasil é muito recente. Contudo, esta política vem dando, no mínimo, mais visibilidade à exclusão da mulher nos espaços políticos e às disparidades existentes no âmbito político, entre homens e mulheres. Por esta razão, elas vêm sendo tratadas como um tema central das discussões de gênero e política, sendo consideradas pelo movimento feminista como expressão e reconhecimento público alcançado pelas demandas femininas. Existem muitos equívocos a respeito das cotas que precisam ser elucidados enfatiza Delgado (1996), por exemplo, a de que 30% de participação das mulheres não resolvem a desigualdade: a luta deve ser por 50%. Embora o movimento lute pela paridade, um percentual de 30% representa um ganho político se considerarmos a estrutura da sociedade e a relações patriarcais que perpassam toda a estrutura da mesma. Um outro grande equívoco é o de que a Lei das Cotas não garante que a mulher tenha real acesso ao poder. As Cotas não irão mudar as relações de poder à curto prazo, uma vez que ela representa um elemento que modifica a composição dos órgãos diretivos, traz novas idéias para o debate e propicia uma nova forma de aprendizagem do exercício do poder. Além disso, as cotas aguçam a participação feminina e tende a criar condições mais favoráveis a ampliação do número de mulheres nas direções de sindicatos, partidos, assembléias, câmaras etc., que por sua vez irão tornar mais visível seu cotidiano e os obstáculos à sua integração à vida política. O que é preciso fazer para mudar essa realidade? A história a cada dia desvenda a importância da participação das mulheres e de sua ação política nos processos revolucionários. Da Revolução Francesa e Americana à Revolução Industrial, da abolição da escravatura à ampliação dos direitos dos/as cidadãos/cidadãs, as mulheres foram força e presença em todos os processos 121 revolucionários que mudaram as relações entre os homens e entre os gêneros. No Brasil, a presença das mulheres nas lutas libertárias está sendo desvendada à medida que as pesquisas com enfoque de gênero trazem à tona novos sujeitos, antes invisíveis por uma ciência que não lhes reconhecia como tal. São reconhecidas e notórias as presenças de precursoras como Nísia Floresta, Isabel Dilan, Bertha Lutz, Gilka Machado, Leolinda Daltro, que foram lutadoras intransigentes dos direitos femininos, dentre os quais o direito ao voto. A conquista do voto em 1932 não significou para as mulheres uma mudança substancial nos valores sociais então vigentes, uma vez que estas continuaram submetidas a uma estrutura patriarcal conservadora e a um modelo de cidadania que privilegiava a imagem pública como espaço masculino. As mulheres, pela trajetória como se inseriram na política, precisavam de um tempo maior para se adaptar à nova realidade. A insegurança, o desconhecimento das regras do mundo público, os condicionamentos culturais e psicológicos, as práticas partidárias excludentes, continuavam atuando sobre as mulheres, mantendo-as afastadas da estrutura formal do poder político.(FERREIRA, 2003). As ações afirmativas (mais precisamente a lei de cotas) são formas positivas de reverter formalmente o quadro de desigualdade entre os gêneros e entre seres historicamente excluídos. A Lei 9.100/95 vem responder as reivindicações dos movimentos de mulheres, entretanto, sabe-se que, somente com uma ação conjunta das diversas organizações de mulheres, com os partidos políticos, e a partir de um projeto de educação política que tenha o gênero como recorte metodológico, será possível diminuir estas disparidades. É certo que a Lei das Cotas não irá mudar esse quadro nas próximas eleições, entretanto, a legalidade permitirá uma maior ousadia das mulheres de adentrar num mundo antes interditado. O ato de permitir, o que antes foi negado de forma autoritária e irracional, pode ser também estimulante. A presença cada vez maior de mulheres nas Câmaras Municipais significa sua preocupação com os destinos da Cidade da qual elas estão mais próximas, mais receptivas e com maior poder de articulação para intervir dadas as suas relações familiares. Sua inserção em um espaço geográfico mais favorável, o deslocamento para exercer a vida pública é mais facilitado. Diferente das Assembléias Legislativas e Câmara Federal, que significa muitas vezes dificuldade de conciliar a vida pública com a vida privada, dada as cobranças que em geral são feitas às mulheres, ao contrário dos homens que são mais estimulados, uma vez que o poder lhe é visto como algo natural, intrínseco a sua condição de homem. Assim, nas minhas análises, aponto que a Lei das Cotas que por se só já demonstra um fato político que não foi dado de “mão beijada”, foi uma conquista, fruto de uma história, na qual as mulheres foram sujeito. As mudanças que elas irão proporcionar no cenário político já são previsíveis pelo menos num ponto: maior visibilidade para as 122 questões daquelas que são a “metade encabulada da humanidade” (parafraseando a Profa. Lucila Scavone), que durante séculos foram impedidas de exercer o poder e dirigir seus destinos, quiçá os destinos das Nações. ........................................................................................................... [1] Professora da Universidade Federal do Maranhão, Mestre em Políticas Públicas, doutoranda em Sociologia pela UNESP/Fclar. [2] Apenas para citar alguns que reconhecem a importância desse movimento social e de sua ação política, embora existam outros, Robsbawn (1995) Bourdieu (1999), Mouffe (1996), Castell (1999). [3] Elaborado a partir do texto de UTRERAS, Rosário. Gênero e poder local, o qual a autora faz uma análise sobre a participação das mulheres na política e a dificuldade das mesmas de acesso ao poder. [4]A Lei 9.100/95 foi aprovada em 1995, tendo em vista apenas as eleições para as Câmaras Municipais de 1996, mas já no final de 1997, foi votada a lei nº 9.504, ampliando a cota de vagas de 20% para 30% (ficando definido um mínimo de 25% de vagas, transitoriamente, em 1998). O significado relevante da aprovação dessa Lei para o movimento de mulheres traduz o reconhecimento da luta política dos grupos envolvidos. Além disso, ela possibilita uma maior conscientização e uma conseqüente demanda da sociedade a respeito da igualdade de direitos bem como amplia as discussões em torno da mulher e participação política. [5] Embora hoje esteja sendo rediscutido o sentido de direita e esquerda, a literatura política considera partidos de esquerda aqueles cuja origem representam os anseios de segmentos excluídos que se contrapõem a interesses de grupos hegemônicos marcado pelas relações capitalista. Característica na qual o Partido dos Trabalhadores se enquadra e que até a bem pouco tempo se constituía uma quase unanimidade. (www.espacoacademico.com.br/037/37cferreira.htm) [10] Reza a Declaração Universal dos Direitos do Homem, da qual extraímos os trechos relacionados com as mulheres: Aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10.12.1948. PREÂMBULO. [...] Considerando que é essencial encorajar o desenvolvimento de relações de amizade entre as nações; Considerando que na Carta das Nações Unidas os povos reafirmaram a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade dos direitos dos homens e das mulheres, e se declararam resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida em um grau maior de liberdade; [...] 123 A ASSEMBLÉIA GERAL PROCLAMA a presente declaração universal dos direitos do homem, como o ideal comum a atingir por todos os povos e nações, a fim de que todos os indivíduos, e todos os órgãos da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforcem, através do ensino e da educação, por desenvolver o respeito a esses direitos e liberdades e por assegurarlhes, através de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, o reconhecimento e a aplicação universais e efetivos, seja entre as populações dos Estados Membros, seja entre as populações dos territórios sob sua jurisdição. [...] ARTIGO 2º - Qualquer cidadão poderá valer-se de todos os direitos e liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção nenhuma, notadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou qualquer outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de outra qualquer situação. Além disso, nenhuma distinção será feita na base do estatuto político, jurídico ou internacional do país, ou território, do qual alguém se tenha retirado, seja de país ou território independente, sob tutela, não autônomo, ou submetido a qualquer limitação de soberania. [...] ARTIGO 16º - (1) A partir da idade núbil, o homem e a mulher, sem nenhuma restrição quanto à raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de casar e de fundar família. Possuem direitos iguais em face do casamento, durante o casamento e quando de sua dissolução. (2) O casamento não pode ser contraído senão com o livre e pleno consentimento dos futuros esposos. (3) A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado. BIBLIOGRAFIA . ALMANAQUE ABRIL MUNDO. São Paulo-SP: Editora Abril, 2002. . ALTAVILA, Jayme de. Origem do Direito dos Povos. São Paulo-SP: Ícone Editora, 2000. . AUAD, Daniela. Feminismo - que história é essa? Rio de Janeiro-RJ: DP&A Editora, 2003. . BORTOLINI, José. Meditando com Pecadores e Pecadoras do Evangelho. São Paulo-SP: Paulus, 2001. . DE VAUX, R. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo-SP: Paulus, 2003. . EMMERSON, Grace I. Mulheres no Israel Antigo. in O Mundo do Antigo Israel (Org.) R. E. CLEMENTS. São Paulo-SP: Paulus, 1995. . FIORENZA, Elisabeth S. As Origens Cristãs a partir da Mulher - uma nova hermenêutica. São Paulo-SP: Edições Paulinas, 1992. . GIBRAN, Gibran Khalil. Jesus - o filho do homem. Rio de Janeiro-RJ: Associação Cultural Internacional Gibran, 1973. 124 . JEREMIAS, Joachim. 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