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Revista Liberdades
Edição Especial - Dezembro
de 2011
ISSN 2175-5280
EXPEDIENTE
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
DIRETORIA DA GESTÃO 2011/2012
Presidente: Marta Saad
1º Vice-Presidente: Carlos Vico Mañas
2ª Vice-Presidente: Ivan Martins Motta
1ª Secretária: Mariângela Gama de Magalhães Gomes
2º Secretário: Helena Regina Lobo da Costa
1º Tesoureiro: Cristiano Avila Maronna
2º Tesoureiro: Paulo Sérgio de Oliveira
CONSELHO CONSULTIVO:
Alberto Silva Franco, Marco Antonio Rodrigues Nahum, Maria Thereza Rocha de
Assis Moura, Sérgio Mazina Martins e Sérgio Salomão Shecaira
Publicação do Departamento de Internet do IBCCRIM
DEPARTAMENTO DE INTERNET
Coordenador-chefe:
João Paulo Orsini Martinelli
Coordenadores-adjuntos:
Camila Garcia da Silva
Luiz Gustavo Fernandes
Yasmin Oliveira Mercadante Pestana
Conselho Editorial da Revista Liberdades
Alaor Leite
Cleunice A. Valentim Bastos Pitombo
Daniel Pacheco Pontes
Giovani Saavedra
João Paulo Orsini Martinelli
José Danilo Tavares Lobato
Luciano Anderson de Souza
Revista Liberdades - nº 8 - setembro-dezembro de 2011
2
RESENHA DO FILME
Tiros em Columbine (Bowling for Columbine)
Vencedor do Oscar de Melhor Documentário de
2003 – Direção de Michael Moore
Janaina Soares Gallo1
Vanessa Faullame Andrade2
Sumário:
1. Resenha – 2. A falta de educação: 2.1. Direito à educação como direito
fundamental – 3. A covarde indústria do medo: Mídia – 4. O Direito Penal simbólico
– 5. A questão das armas de fogo – 6. Referências bibliográficas
1. Resenha
“(...) Como é fácil adquirir armas nos Estados Unidos! Basta tornar-se um cliente preferencial,
com a abertura de uma conta bancária que se adquire um rifle de brinde. Afinal, a qualquer
momento um terrorista árabe ou um negro de cara ameaçadora pode invadir sua casa (...).”3
O documentário Tiros em Columbine (2003), do cineasta Michael Moore, retrata
como foco central o incidente ocorrido na Escola de Columbine, na cidade de
Littleton, no Estado do Colorado, EUA, onde dois jovens estudantes entraram na
citada escola com algumas armas e muita munição e saíram disparando contra
todos, matando 12 alunos e uma professora.
Tiros em Columbine traz a lume assuntos variados, dentre eles, o fácil acesso
às armas de fogo,4 os homicídios realizados por jovens nos Estados Unidos em
1
Advogada especialista em Direito Público.
2
Advogada especialista em Direito Penal Económico e Europeu pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM.
3
Fala de Michael Moore no início do documentário.
4
No documentário, fica bem esclarecido que os norte-americanos primam pelo “direito ao exercício de defesa
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uma instituição de ensino médio, a intolerância da sociedade norte-americana,
e, ainda, o desrespeito, a reação vingativa das pessoas, com intuito de chamar
a atenção.
Moore indaga, por diversas vezes, ao expectador sobre os motivos que
ocasionam a agressividade entre os jovens. Chega, inclusive, a levantar a
questão frente aos jogos de videogame e às músicas de rock.
Mas qual seria o real motivo? O historiador Jorge Nóvoa, em artigo publicado
na Revista Eletrônica de Cinema e Audiovisual,5 faz a seguinte colocação:
“as respostas são múltiplas e na verdade cada ato individual é a síntese de múltiplos fatores
histórico-sociais e psicológicos. Alguns atiradores se suicidam após a sessão de crimes em série.
Matam crianças e jovens. Muitas vezes são eles mesmos jovens. Jovens sem futuro ou com um
futuro traçado pelas guerras a vir. Educados em escolas, mas também pelos vídeo-games [sic]
de guerras. Mas matar crianças e jovens é matar a esperança da vida, é matar a mais longa
vida que se pode esperar! Curiosamente, como mostra o filme, os responsabilizados não são
os produtores de armas ou o Estado ou os governantes. No filme a mídia comum associa aos
crimes em série, tantos personagens como um cantor de uma banda de rock chamado Marilyn
Manson. Este é entrevistado por Moore e diz que parece ser mais fácil acreditar que ele seja
capaz de produzir mortes em série do que o Presidente Bush, quando ele tem muito menos
poder que o Presidente.”
Moore,
sem justificar os motivos de tamanha agressividade dos jovens, traça um paralelo
entre a indústria de armas estadunidense e a possibilidade de compra de uma
metralhadora semiautomática por um cidadão comum, ao conduzir a história de
uma das maiores fábricas de armamento de destruição em massa do mundo, a
Lockheed Martin.
Em certo ponto do documentário, são mostradas algumas “intervenções”
norte-americanas em países pobres no decorrer de décadas (ao som de What
a Wonderful World, de Louis Armstrong). São algumas destas “intervenções”: a)
o fornecimento de armas e de treinamentos da CIA para os chamados “contras”
da Nicarágua, que derrubaram o governo de Augusto Sandino; b) o fornecimento
de armas e treinamento dos “mujaheedins”, no Afeganistão, para combater a
brutal presença soviética no país durante os anos da Guerra Fria; c) a invasão do
Panamá para prender Noriega, outrora um grande cliente dos EUA na questão
das drogas e das armas; entre outros diversos exemplos de “intervenções”.
Com as demonstrações destas e de outras “intervenções” é reforçada, pelo
documentário, a questão das armas com o contexto histórico mundial.
Moore faz uma abordagem sobre o ocorrido em 11 de setembro de 2001,
trazendo uma animação, com um conteúdo que consideramos como “original” e,
patrimonial e pessoal”, o que justificaria a necessidade do emprego das armas nas relações interpessoais.
Nóvoa, Jorge. Tiros em Columbine ou a decadência do império americano. Disponível em <http://
www.kinodigital.ufba.br/edicao1/pdf/tirosemcolumbine.pdf> Acesso em: 23 ago. 2011.
5
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digamos, didático, de titulação “uma introdução à história dos Estados Unidos”,
quando é contada a origem do uso das armas de fogo no país, bem como a
trajetória do preconceito dos brancos com relação aos negros, trazendo a
“normalidade” de se possuir uma arma para defender a família e a si mesmo de
um possível inimigo externo, características de um Direito Penal do Inimigo.6
O uso da arma de fogo é trazido como uma forma de autodefesa, como algo
inerente à cultura americana, sendo que, em certo ponto da história, citou-se o
ocorrido com um aluno da elementary school, que foi advertido e suspenso da
escola porque teria “ameaçado” um professor com um nugget de frango, como
uma espécie de arma.
Outro ponto explorado em Tiros em Columbine que merece grande relevo,
garantindo um destaque no documentário, é a busca do sensacionalismo e do
espetacular, do furo jornalístico, definidor dos altos índices de audiência. Ou
seja, a importância da participação da mídia em uma sociedade violenta como a
americana.
Em uma conversa com um jornalista que fazia uma reportagem – e que ainda
não sabia os reais fatos ocorridos –, Moore indaga sobre qual seria sua escolha
de cobertura de reportagem entre matérias que envolvessem o uso de arma
de fogo ou outra que tratasse de um afogamento ou da poluição que atinge as
cidades, prejudicando vidas.7 A resposta foi clara e objetiva: daria “preferência” à
cobertura da notícia com o envolvimento de arma de fogo.8
Michael Moore, autor do livro “Stupid White Men”,9 aborda, de forma exímia,
em seu documentário a explicitação da tal “cultura do medo” que toma conta dos
EUA.
Explosões temperamentais, agressividade exagerada, baixo grau de tolerância
a frustrações são algumas das conclusões que se apreende do documentário
para tentar “explicar” o fato ocorrido na Escola de Columbine. O “gerenciamento
da raiva”, segundo depoimentos no documentário, talvez seja um bom começo
para a contenção dos sentimentos dos jovens.
Um diretor provocativo que deu ao gênero documentário uma dimensão
6
O Direito Penal do Inimigo
tem como base políticas públicas voltadas ao combate da criminalidade por meio da criação de leis mais repressivas e
severas, além da relativização ou supressão de certas garantias processuais na busca do “controle social”.
Michael Moore exemplifica que uma notícia que traz dados sobre armas é muito mais “importante”
7
jornalisticamente do que a informação do grau de poluição que atinge as cidades, prejudicando vidas.
Diante da fala do repórter, podemos concluir que o mais importante para a mídia americana é a audiência
trazida por uma reportagem que gera a expectativa do medo, do pavor.
8
9
Tradução do título do livro: Estúpidos Homens Brancos (2005).
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extraordinária na terra de Hollywood.10 Moore trouxe a tona assuntos escassamente
tratados, talvez por falta de interesse, mas, de uma maneira geral, colocando-nos
de frente com discussões de como a sociedade está sendo conduzida, como o
individualismo consumista11 se sobrepõe a ideias humanistas de solidariedade,12
como a paranoia permanente com a existência de um potencial inimigo, pode
formar indivíduos egoístas, intolerantes, amedrontados e paradoxalmente de
prontidão para defender-se de perigo eminente, pretendeu denunciar a obsessão
por ganhar dinheiro com a venda de armas – e, portanto, com a morte de seres
humanos, e a relação que existe entre a produção permanente do medo e a
necessidade de autoproteção por meio das armas.
Assim, Tiros em Columbine desperta um senso crítico frente aos problemas
que a sociedade, nos EUA e, em certos aspectos, também em outros países,
inclusive no Brasil, atualmente vive. Esta sociedade trata os assuntos abordados
no filme dentro da “normalidade”, como algo mais ou menos corriqueiro e que
acontece quase todo ano em alguma parte do mundo.
Pode parecer difícil compreender como um documentário politicamente
agressivo e tão “anormal” para os padrões da indústria cinematográfica americana
foi ganhador do Oscar em 2003.
A falta de senso crítico,13 leva a absorção de tudo que é passado - sobre
quem são os inimigos, o que é bom ou ruim, o que se sente – tudo é dado da
maneira a se enquadrar num padrão comum, sem que haja qualquer respeito à
10
Nóvoa, Jorge. Op. cit.
Outra consequência dessa nova faceta do processo de acumulação do capital é o enfraquecimento
do poder do Estado como regulador social. Assiste-se, cada vez mais, a um crescente processo de
desresponsabilização do Estado para com o provimento das condições estruturais de garantia dos direitos
sociais do homem, mediante processos de desregulamentação e de flexibilização. Tais efeitos têm relegado
a maioria da população à condição de um contingente dos sem-direitos, comprometendo, desta forma, a
justiça social e a paz (Dias, Adelaide Alves. Da educação como direito humano aos direitos humanos como
princípio educativo. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/br/fundamentos/26_cap_3_
artigo_04.pdf. Acesso em 27 jul. 2011).
11
Lei 10.826/2003.
12
Vide Maria Victoria Benevides. Entrevista: Maria Victoria Benevides. Teoria e Debate nº 39, out.dez. 1998, publicada em 09.05.2006. Disponível em: www.fpa.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/
edicoes-anteriores/entrevista-maria-victoria-benevides. Acesso em 27 jul 2011.
13
“(...) A população americana é, em termos proporcionais, ao mesmo tempo, a mais desinformada e a mais
manipulada, das sociedades industrialmente avançadas, em total contradição com o elevado grau de desenvolvimento
tecnológico e científico alcançado pelo país. Em Tiros em Colombine Michael Moore procura despertar o povo
americano para algo que se encontra inevitavelmente cada vez mais no centro da propulsão do capitalismo mundial: a
indústria de armamentos. É verdade que Moore não vai até as últimas conseqüências na sua explicação-demonstração.
Para isto ele teria de ser capaz de mostrar de que modo a indústria de armamentos está ancorada na estrutura mesma
do capitalismo contemporâneo. Mas o ponto de partida de seu filme não é menos significativo quando retrata com
documentos imagéticos diversos uma espécie de patologia que vem se desenvolvendo em centros urbanos diversos e
que envolve, não apenas pessoas jovens e desempregadas, mas homens e mulheres de idades, raças e classes sociais
distintas. Atirar em crianças e adolescentes nas escolas e colégios dos Estados Unidos virou uma espécie de síndrome.
Mas a questão inicial é simplesmente a seguinte: por quê? (...)” (Nóvoa, Jorge. Op. cit.).
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individualidade de cada um. Acreditamos que, na medida em que nos é negado o
direito à educação14 e formação, nos é subtraído o direito de pensar, de termos a
liberdade de escolha, a liberdade15 na maneira mais ampla que se pode entender.
2. A falta de educação
Casos, como o da escola de Columbine e o recente “massacre” do Realengo,
no Rio de Janeiro, revelam possíveis falhas no sistema educacional formal e o
modo como a sociedade moderna pensa e trata os jovens.
Neste ano, em uma oportunidade única, durante um Seminário,16 muitos
puderam ouvir a professora Olgária Matos. Mencionando a intolerância que se
anunciava nos jornais da semana, a respeito do nobre Deputado Jair Bolsanaro,17
a professora, de uma maneira simples e um tanto educada, disse que, diante
daqueles fatos, a única coisa que se tinha a dizer sobre aquele nobre cidadão é
que ele era uma pessoa “mal-educada”.
A fórmula para a solução do problema da falta de educação parece
simples, mas, a cada dia que passa, o que se percebe é que este problema só
aumenta.18 Atualmente, vivemos em uma sociedade cheia de incompreensão,
“(...) O tema da educação como direito social e humano ganha visibilidade no século XX. Machado
Oliveira (2001) reconhecem esse século como sendo o que assistiu à ampliação do reconhecimento
dos direitos que devem ser garantidos a cada ser humano e, apoiados em Marshall (1967) defendem a
educação enquanto ‘um direito social proeminente, como um pressuposto para o exercício adequado dos
demais direitos sociais, políticos e civis’” (Machado e Oliveira, 2001, p. 56, apud Dias, Adelaide Alves.
Op. cit.).
14
e
15
“A liberdade, como valor, que permite ao homem, que permite ao homem os meios para efetivamente
alcançar aquela liberdade que lhe propicie viver sem qualquer intervenção do Estado, deve visar à igualdade de
oportunidades o que só será possível com a educação básica para todos, valendo esta como instrumento da liberdade,
integrante do núcleo essencial de direitos que conduzem a cidadania” (Lima, Maria Cristina de Brito. A educação como
direito fundamental. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 4, n. 13, p. 231, 2001).
16
Revoluções e direitos humanos: educação, revoluções e seus direitos. Palestra: Direitos e Desejos, Sesc
Pinheiros, São Paulo, ocorrida em 06.04.2011.
O Deputado Jair Bolsonaro chama muita atenção por seu discurso abertamente contrário às
iniciativas como a união civil homossexual, inclusão, no currículo escolar de ensino, de aulas que digam
sobre o respeito à diversidade sexual e outras questões de direitos civis. Além de manifestar-se favorável
à Ditadura Militar no Brasil. Em entrevista ao programa CQC, em 28 de março de 2011, o deputado
ofendeu a cantora Preta Gil, que ingressou com uma ação de reparação por danos morais. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/pais/mat/2011/03/29/preta-gil-vai-processar-jair-bolsonaro-por-declaracoes-emprograma-de-tv-924115474.asp. Acesso em 26 ago. 2011.
17
“Parece claro que a efetividade do direito à educação é um dos instrumentos necessários à
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional; à erradicação
da pobreza e da marginalização, com a redução das desigualdades sociais e regionais; e à promoção do bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”
(Viali Filho, Fernando Alves. A eficácia dos direitos fundamentais à educação como prevenção dos
18
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violência desordenada e uma completa “falta de educação”, no sentido literal da
expressão.19
As palavras da professora podem soar um tanto ingênuas, num primeiro
momento, mas cremos que essa seja a melhor descrição que se possa dar ao que
estamos vivendo: as pessoas estão cada vez mais mal educadas, na medida em
que se vê a intolerância e o desrespeito nas mais diversas relações. A valorização
da educação conduz o indivíduo social à sua dignidade e consequente cidadania,
servindo-lhe de possível instrumento de prevenção dos conflitos sociais.
O ataque que ocorreu em uma escola do bairro de Realengo, no Rio de Janeiro,
em abril desse ano, fez com que muitos o associassem à tragédia da Escola de
Columbine.20 Ambos os episódios guardam semelhança com o fato dos atiradores
serem jovens com perturbações mentais (desenvolvidas) e que cresceram em
uma sociedade que, de certa forma, provoca a separação étnica e social entre
pessoas de diferentes culturas, credos, religiões e classes econômicas. Estes
fatores levam à intolerância, ao desrespeito, à reação vingativa das pessoas,
resultando em ódio e conflitos sociais, pois os jovens são frutos da cultura e da
sociedade em que vivem.
Em “tempos de violência”, aparentemente causada pela intolerância e
pelo desrespeito ao próximo, vem à tona uma preocupação excessiva com o
fenômeno conhecido como bullying. As tragédias citadas trouxeram indícios de
que os agressores teriam sido vítimas de bullying. Teria o fenômeno do bullying
favorecido reações vingativas? Sim, pode ter favorecido, mas não como fator
determinante.
Em Criminologia, como em outras ciências, tem-se tentado eliminar o conceito
de “causa”, substituindo-o pela ideia de “fator”. Isso implica no reconhecimento
de não apenas uma causa, mas, sobretudo, de fatores que possam desencadear
o efeito criminoso (fatores psíquicos, sociais...).
Indivíduos com comportamentos tidos como antissociais são capazes de
fazer uso de armas para causar danos físicos aos seus oponentes, e seus atos
conflitos sociais. Cidadania e Justiça, ano 07, n. 14, jul./dez. 2004, Universidade do Estado de Minas
Gerais, Fundação Educacional de Ituiutaba, p. 101).
19
Não se trata apenas de falta de conhecimentos de história, matemática ou português, de acordo com o
Dicionário Aurélio, o termo educação origina-se do latim educatione: “(...) 2. Processo de desenvolvimento da
capacidade física, intelectual e moral da criança e do ser humano em geral, visando à sua melhor integração individual
e social. (...) 7. Conhecimento e prática dos usos de sociedade; civilidade, delicadeza, polidez, cortesia” (Ferreira,
Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3. ed. Curitiba: Positivo, 2004. p. 714).
20
Uma representação da versão dos adolescentes foi representada pelo filme “The Elephant” (EUA, 2003,
HBO Filmes). A narrativa parte da perspectiva de alguns alunos, envolvidos, de alguma forma, na tragédia ocorrida na
Columbine High School.
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caracterizam-se por violações21dos direitos básicos dos outros e das normas
ou regras sociais. Habitualmente, perturbam, provocam, ameaçam, intimidam
e incomodam os outros, são violentos, agressivos e priorizam o prazer pessoal.
A depressão, a frustração, a baixa autoestima e um interesse mórbido pela atual
cultura da violência podem ser o resultado de uma família disfuncional, que pode
propiciar o aparecimento desses comportamentos, bem como a prevalência de
relacionamentos turbulentos entre pais e filhos, sem esquecer uma complacência
toda especial com a manifestação de comportamentos bizarros e agressivos e
permissividade em relação a armas de fogo.22 Sem compreender esses fatores,
muitos pais e educadores entram em desespero e acreditam que tudo é bullying,
confundindo-o mesmo com as situações de conflitos interpessoais, fundamentais
para o desenvolvimento psicológico da criança e do adolescente.
A doutora em psicologia escolar e desenvolvimento humano, Vanessa
Fagionatto Vicentin,23 afirma que é importante atentar-se a real situação do caso,
pois, muitas vezes, o que chamamos de bullying se trata de conflitos necessários
à formação das pessoas:
“(...) Conflitos interpessoais são situações naturais de desacordo entre as pessoas e
necessários ao desenvolvimento de crianças e adolescentes. É por meio dos conflitos que eles
têm a chance de aprender a se colocar no lugar do outro e a falar o que pensam e sentem de
forma respeitosa. Na visão construtivista, as crianças não nascem sabendo dialogar e trocar
pontos de vista de forma harmônica. É natural que agridam ou permitam ser agredidas até que
cheguem à conclusão de que existem formas mais evoluídas de resolver desentendimentos
interpessoais. (...)”
E, ainda, salienta:
“(...) A preocupação deve ser maior: como formar pessoas que respeitam e se fazem respeitar,
seja em situações de bullying, de conflitos ou de indisciplina e incivilidades. A preocupação,
portanto, é necessária, mas não restrita ao bullying, e sim à formação moral dos alunos. (...)”
Assim, o respeito, o culto à paz, a consciência política e social, o respeito ao
próximo, a cidadania, devem ser pilares erguidos na sociedade pela escola, pela
educação na formação de um ser social, e colocam-se como deveres do Estado
e da família.
“O ingresso no mundo adulto requer a apropriação de conhecimentos socialmente produzidos.
Sua interiorização se processa, primeiro pela socialização primária, que corresponde ao processo
de interiorização dos conteúdos e experiências vividas no interior da família e do grupo em que
este indivíduo se insere, e, depois, pela socialização secundária, aquela que se processa em
21
Alprim, Alex; Schroeder, Gilberto. Transtorno de conduta. Revista Psicanálise, nº 04, jul. 2011, Editora
Mythos, São Paulo, p. 45.
Dantas, George Felipe de Lima; Silva Junior, Álvaro Pereira da. Virginia Tech: uma fúria secreta que não
22
se pode controlar. Disponível em: www.ibccrim.org.br. Publicado em 17.04.2007. Acesso em 28 ago.2011.
23
Vicentin, Vanessa Fagionatto. O carimbo do bullying. Disponível em: www.cartacapital.com.br/carta-
na-escola/o-carimbo-do-bullying. Acesso em 16 ago.2011.
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instituições como a escola.” 24
Nos dizeres de Maria Victoria Benevides,25 é preciso desenvolver a cidadania
ativa, sendo necessário mais do que a orientação intelectual. É preciso educar
os indivíduos, permitindo o desenvolvimento dos seres humanos, como pessoas
tolerantes e conscientes. Ao falar do tema, a professora conduz a ideia de
solidariedade ativa, e que por meio dela se pode chegar a uma consciência
política, o que resultaria num processo de respeito e tolerância, na medida em
que se consegue entender o papel de cada um na sociedade em que se vive.
É preciso formar pessoas que respeitem e que se façam respeitar. Esse é o
grande foco da questão.
Hoje, o sistema educacional falha em ensinar as crianças e os adolescentes
princípios básicos desta cidadania ativa, como o respeito e a tolerância à
diversidade. A escola é uma extensão afetiva do ambiente familiar e, tal qual ele
próprio, quando não ensina os valores da tolerância, torna-se alvo de eventuais
reações agressivas e impulsivas de seus frequentadores, os alunos.26
2.1. Direito à educação como direito fundamental
O art. 6.º da Constituição Federal é expresso ao afirmar que são direitos
sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, dentre outros. Classificados como direitos fundamentais de
segunda geração, fortalecem o princípio da igualdade, consagrando a igualdade
material, por meio dos direitos culturais, coletivos e sociais.
Como direito fundamental, o direito à educação, assim como os demais tidos
como sociais, têm sua aplicação imediata.
“A fundamentalidade recebida do texto constitucional e de inúmeras convenções internacionais
se associa ao fato de o direito à educação estar diretamente relacionado aos princípios
fundamentais da República Federativa do Brasil, em especial com o da dignidade da pessoa
humana”.27
24
Baruffi, Helder. A educação como direito fundamental: um princípio a ser realizado. In: Fachin,
Zulmar (coord.). Direitos fundamentais e cidadania. São Paulo: Método, 2008. p. 83-96, apud Berger,
Peter L.; Luckman, Thomas. A construção social da realidade. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.
25
Entrevista: Maria Victoria Benevides. Teoria e Debate nº 39, out.-dez. 1998, publicado em
09.05.2006. Disponível em: www.fpa.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/
entrevista-maria-victoria-benevides. Acesso em 27 jul. 2011.
26
Dantas, George Felipe de Lima; Silva Junior, Álvaro Pereira da. Op. cit.
27
Viali Filho, Fernando Alves. Op. cit.
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Os direitos fundamentais expressos nos diferentes diplomas registram a
garantia da liberdade, da consciência, da participação e da autonomia. Entretanto,
participar e fruir destes direitos requer a consciência dos mesmos.
Dessa maneira, ainda, ressalta Fernando Alves Viali Filho,
(...) Como se poderia falar na liberdade de um ser acéfalo e incapaz de direcionar seus
próprios movimentos em uma sociedade de massas, cujas relações intersubjetivas, a cada dia
mais complexas, exigem um constante e interrupto aperfeiçoamento.”
Isto significa que a educação não apenas se caracteriza como um direito da
pessoa, mas, fundamentalmente, como seu elemento constitutivo. A educação,
como direito de todos e dever do Estado e da família, deve ser promovida e
incentivada com a colaboração de toda a sociedade, constitui um direito inalienável
de todos os seres humanos, devendo ser ofertado e garantido a todos, cabendo
ao Estado prover os meios necessários à sua concretização e pela adoção da
concepção de uma educação cujo princípio de igualdade contemple o necessário
respeito e tolerância à diversidade.
A efetividade do direito à educação é imprescindível à garantia do direito à livre
determinação. Com a efetivação do direito fundamental à educação, entendida
como mais que uma formação meramente formal, mas sim como um processo
de conscientização, por meio da eficácia dos direitos sociais garantidos pelo
Estado, poderá chegar-se a uma sociedade com indivíduos dignos, conscientes
e, o mais importante, educados, prevenindo-se, dessa maneira, a grande maioria
dos conflitos sociais.
3. A covarde indústria do medo: mídia
O medo é um potencial inimigo da liberdade28 e um eficiente instrumento de
manipulação. Se você está diante de uma ameaça à sua vida – mesmo que não
seja real – sua liberdade de escolher, opinar, expressar e pensar fica bastante
reduzida.
É essa “cultura do medo”, que a mídia tanto propaga na televisão, nas rádios
e no cinema, que leva o cidadão a querer comprar armas de fogo para defender
a vida e o “sagrado direito à propriedade”.
A mídia tem utilizado mecanismos – “atrativos” – para fomentar o medo. Ou
melhor, explora os fatos ocorridos no cotidiano em prol do aterrorizamento da
28
Principalmente quando tratamos da liberdade individual. Podemos atualmente exemplificar com grande
amparo no medo causado pela violência, mas principalmente pela mídia, nas reportagens que nos últimos dias tratam
do temor dos moradores do bairro do Morumbi, São Paulo. Notícia a respeito disponível em <http://g1.globo.com/
sao-paulo/noticia/2011/08/medo-da-violencia-afasta-moradores-do-morumbi.html> Acesso em: 19 ago.2011.
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sociedade com comentários, muitas das vezes inescrupulosos, com o objetivo
de “manipular a informação” com vistas a fomentar a aplicação do Direito Penal
do Medo.
Tiros em Columbine explicita como a mídia dos Estados Unidos é responsável
pela criação de uma “cultura do medo”,29 que distancia a realidade fática do
resultado das notícias.
O medo é o principal resultado do uso de estereótipos relacionados à
criminalidade tradicional, o que tem gerado o recrudescimento punitivo em
relação a ela, transformando o Direito Penal em um “instrumento de controle e
disciplina social” das classes populares.
“A ênfase dada aos riscos/perigos da criminalidade na contemporaneidade gera um
alarmismo não justificado em matéria de segurança, que redunda no reclamo popular por uma
maior presença e eficácia das instâncias de controle social (...). Nesse contexto, o Direito Penal é
eleito como instrumento privilegiado para responder eficazmente aos anseios por segurança.”30
O documentário Tiros em Columbine deixou claro que a busca do sensacional
e do espetacular, do furo jornalístico, é o início da seleção daquilo que pode e
que se deseja ser mostrado, o que será definido pelos altos índices de audiência.
Como afirma André Luis Callegari,31 o papel do medo no Direito Penal
contemporâneo, por meio da sua instrumentalização, chega à elaboração
de normas penais de caráter meramente simbólico, as quais são justificadas
por meio de um discurso eficientista que transforma o Direito Penal em uma
importante arma a serviço de fins político-eleitorais de curto prazo.
A sociedade de risco, em que atualmente vivemos, tem propiciado uma sensação
de insegurança e imprevisibilidade nas relações sociais. Imprevisibilidade não
apenas dos fatos naturais, mas dos fatos causados pelo homem, decorrentes da
raiva, da vitimização, ocasionada, até mesmo, pelo bullying.
“Medos” são criados para amedrontar a sociedade, espalhando alarmes
sociais em torno de problemas fantasiados que vão desde o relato do perigo de
encontrar gilete dentro de maçãs distribuídas no Halloween até o risco no uso de
escadas rolantes.32
A busca incessante pela segurança das pessoas, dos povos, dos Estados, por meio do uso de
armas – de fogo ou nucleares – tem causado uma maior “credibilidade” no revide do que na reestruturação
e no desarmamento das sociedades modernas, em contraposto à tecnologia de ponta conseguida por alguns
países.
29
30
Callegari, André Luis; Wermuth, Maiquel Ângelo Dezordi. O papel do medo no e do Direito Penal. Revista
dos Tribunais, v. 888, p. 440, out. 2009.
31
Idem, ibidem.
Esta prática midiática é a maneira como pretendem que a massa popular reflita sobre a criação
32
destes “problemas sociais”, que nada mais são do que frutos de uma lógica mercadológica que busca, a todo
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Ainda, de acordo com André L. Callegari,33 é assim que o medo é inserido
no Direito Penal, ou seja, no sentido de dar a uma população cada vez mais
atemorizada, diante do medo generalizado da violência e das inseguranças da
sociedade líquida pós-moderna, uma sensação de tranquilidade, restabelecendo
a confiança no papel das instituições e na capacidade do Estado em combater
tais perigos por meio do Direito Penal, ainda que permeado por um caráter
meramente simbólico. Não se buscam, portanto, medidas eficientes no controle
da violência ou da criminalidade, mas, tão somente, medidas que pareçam
eficientes e que, por isso, tranquilizam a sociedade como um todo.
Assim, os meios de comunicação de massa “vendem” o crime como um produto
de grande rentabilidade, causando o aumento dos medos e, conseqüentemente,
o nascimento do clamor popular pelo recrudescimento da intervenção punitiva.
4. O Direito Penal simbólico
Atualmente, dá-se muita ênfase aos perigos ou riscos gerados pelo alarme
sobre a criminalidade. É neste contexto que o Direito Penal ganha maior relevo,
para a sociedade, como o instrumento capaz de se revelar eficaz na busca pela
dita “segurança”.
O fundamento da pena configura-se como um conjunto escalonado de decisões
político-criminais, e que pretendem ser legitimadas por motivos utilitários. O
objetivo imediato é evitar danos, riscos ou perigos graves aos bens jurídicos
fundamentais para a convivência, e legitima-se pela necessidade de manter a
ordem social básica.34
Segundo José Luiz Díez Ripollés,35 o Direito Penal simbólico constitui um
uso patológico dos efeitos expressivo-integradores da sanção penal. Resulta,
portanto, insustentável a desqualificação estendida ou a desconsideração dos
componentes expressivos e integradores da pena na atual reflexão políticocriminal. Em primeiro lugar, porque uma boa parte deles se ajusta estritamente ao
objetivo de proteção de bens jurídicos através da prevenção de comportamentos,
assim como para o resto de decisões político-criminais que fundamentam o uso
custo, a audiência.
33
Callegari, André Luis; Wermuth, Maiquel Ângelo Dezordi. Op. cit.
Díez Ripollés, José Luis. O direito penal simbólico e os efeitos da pena. Ciências Penais, v. 0, p.
24, jan. 2004.
34
35
Idem, ibidem.
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da pena. Em segundo lugar, porque renunciar a todos aqueles que vão além
da intimidação do delinquente real ou potencial significa privar-se de alguns
dos meios mais eficazes, na atual sociedade de massas, para alcançar, de
uma maneira legítima, o objetivo de manter a ordem social primária. Na atual
sociedade comunicativa, com a proliferação de mecanismos de transmissão das
mensagens normativas e sua influência sobre os comportamentos, parece pouco
realista sustentar que o controle social penal deve limitar-se ao uso daqueles
efeitos que chamamos materiais, somente reforçados por um efeito expressivointegrador – o intimidatório.
Neste contexto, surge a utilização do Direito Penal simbólico quando o
legislador é visto pela sociedade com “bons olhos”, quando toma decisões de
política criminal irracional para atender a demanda social: a dita “segurança”.
É assim que o medo é inserido no Direito Penal. Proporcionar que a população
se torne cada vez mais atemorizada diante do medo generalizado pela violência,
causando uma sensação de intranquilidade. Para restabelecer-se a confiança no
papel das diversas instituições e na capacidade do Estado em combater o medo
por meio do Direito Penal, traz-se o caráter meramente simbólico deste.
Não se buscam controle da violência ou da criminalidade por meio deste Direito
Penal, mas, tão somente, realizam medidas que “pareçam” eficientes e que, por
isso, tranquilizariam a sociedade como um todo; ou seja, a aplicação de meios
repressivos mais severos seriam considerados meios eficazes de combate aos
problemas sociais pelo Direito Penal.
Muitos clamam pela efetivação de políticas públicas que enfrentem a realidade
social. Não será por meio da “incrementação” do Direito Penal – com o uso do
Direito Penal do Medo – que se obterá a tão almejada segurança.
Se assim aceitássemos, denunciaríamos o perigo de um direito totalitário
que considera a violência como a única forma de combater a própria violência.
Deixemos apenas mais uma lembrança: nada justifica, na busca pela segurança,
o barateamento dos direitos, das instituições, em um Estado Democrático de
Direito.36
No decorrer desta resenha, não trouxemos apenas o relato do documentário
feito por Michael Moore. Explanamos, rapidamente, sobre a influência do Direito
Penal simbólico e do medo causado pela mídia.
E como bem disse o, então Ministro, Márcio Thomaz Bastos, em discurso de
“Em nome do combate à criminalidade (...), pedem-se leis penais mais duras. (...) todavia, esquecese de querer a relativização da legalidade é o primeiro passo de um processo que converte vingança em
fator de intolerância” (A escalada da violência. Editorial. Boletim IBCCRIM, ano 14, n. 166, set. 2006, p.
01).
36
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abertura do 10º Seminário Internacional do IBCCRIM:
“(...) é fundamental que possamos voltar boa parte de nossas energias para pensarmos em
reformas institucionais e não apenas em alterações na legislação penal, visando a construção
de um Brasil seguro, baseado em princípios republicanos e respeito aos Direitos Humanos. (...)”
5. A questão das armas de fogo
Vale lembrar, aqui, que a posse de armas de fogo pelo cidadão comum não
é garantia de mais segurança.37 A crença em uma ideia pura de autodefesa
armada é ingenuidade. A autodefesa pregada pelo discurso das armas não é
real nem eficaz.
Tiros em Columbine38 mostra como, para a cultura americana, o “ter” (possuir,
dispor) de uma arma de fogo é um direito inerente ao cidadão americano, visando
a sua proteção e a proteção de seus familiares.
Para a advogada e coordenadora de Justiça e Segurança do Instituto Sou da
Paz, Maria Eduarda Hasselmann de Lyrio,39 a circulação e o emprego de fato de
armas de fogo carregam, anualmente, o peso de 40.000 mortos no País. Afirma,
inclusive, que, nos grandes conglomerados brasileiros, o cruzamento entre o
acesso às armas e a predisposição a usá-las, corriqueiramente na vida urbana,
é refletido nos altos índices de violência.
Diferente do que ocorre nos EUA, no Brasil, o uso, o porte e a comercialização
de armas e munições são permitidas, mas com restrições orientadas pelo
Estatuto do Desarmamento.
Em contrapartida, no Brasil, para muitos, o desarmamento da população
é positivo, e, para outros parece ineficaz, diante da grande produção e da
37
Apesar de a população dos EUA acreditar que o uso de armas de fogo é sinônimo de segurança, principalmente
com base no direito à “legítima defesa” do considerado “cidadão de bem” (ou não criminoso). Informação extraída do
documentário Tiros em Columbine.
“No documentário, Charlton Heston, o Presidente da NRA (algo como Associação Nacional de
Rifles), aparece várias vezes fazendo discursos e campanha contra a proibição do uso de armas, tendo
inclusive Moore ido à sua casa para entrevistá-lo. E este faz isto com muita habilidade desmoralizando o
velho canastrão racista e de extrema direita que diz em alto e bom som que ‘é um direito dos americanos
armarem-se para defender os valores que herdaram dos pioneiros brancos que criaram a grandeza da
América’. São 11 mil mortes anuais por armas de fogo nos Estados Unidos. A maioria das vítimas é de
negras e negros pobres. Mas ao lado, no Canadá, o índice de mortes por armas de fogo é baixíssimo.
Moore vai ao Canadá e através de entrevistas a personagens de diversos setores sociais chega à conclusão
que a explicação só pode estar na mentalidade [do povo]. (...)” (Nóvoa, Jorge. Op. cit.).
38
39
Lyrio, Maria Eduarda Hasselmann de. O desarmamento em questão. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 11,
n.132, p. 12-14, nov. 2003.
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comercialização das armas.40
O legislador, ao introduzir o Estatuto do Desarmamento em nosso ordenamento,
restringiu e dificultou o porte de armas. Contudo, em razão da não proibição de
comercialização de armas de fogo e munição em todo o País,41 a indústria bélica
brasileira teve aumento em suas exportações.
O tipo de tragédia, mostrada no documentário, ocasionada talvez pelo
relativamente fácil acesso às armas, provoca indignação e demonstrações de
revolta.
Mas, a questão dos motivos que possam ser as razões destes ataques, que
é secundária, e que foi tema central dos debates em torno do referendo do
Estatuto do Desarmamento, é a antiga e permanente discussão sobre a livre
comercialização de armas de fogo e munição. Volta e meia, nos debates sobre
segurança pública, o assunto desarmamento acaba por tornar-se o assunto
central, no entanto, nunca se chega a uma conclusão, ou melhor, chegou-se à
conclusão de que a posse e o porte de armas de fogo devem ser restringidos,
mas fato é que a comercialização é livre em todo território.42
De acordo com os dados disponíveis no site do Instituto Sou da Paz, a
primeira edição da Campanha Nacional de Entrega voluntária de armas, criada
para incentivar a devolução de armas no Brasil, foi lançada no dia 15 de julho de
2004.43 Programada inicialmente para durar seis meses, foi prorrogada por mais
duas vezes até outubro de 2005. Atualmente, a Campanha encontra-se em sua
terceira edição.44
Seria o Estatuto do Desarmamento uma “arma” como meio da prestação do
serviço político eleitoral? Seria uma norma simbólica utilizada para reforçar o
estereótipo do porte ou da posse de arma de fogo e munição, relacionado à
criminalidade tradicional, proporcionando um recrudescimento punitivo galopante?
Estas são questões cujas respostas não devem mais ser procrastinadas.
Assim, concluímos que a violência é um ato incrivelmente complexo e para
Justificado em nome das liberdades individuais, da capacidade de discernimento de cada homem
e da possibilidade de maximização de suas “escolhas racionais”, o livre porte de armas tornou-se matéria
de “direitos” nos Estados Unidos. No Brasil, a proposta de controle rigoroso de fabricação e comércio de
armas foi derrotada no referendo do Estatuto do Desarmamento.
40
41
Resultado do Referendo ocorrido em outubro de 2005.
42
Estatuto do Desarmamento: Lei 10.826/2003, arts. 6.º, 12, 14 e 35.
Disponível em <http://www.soudapaz.org/Home/tabid/546/EntryID/164/language/pt-BR/
Default.aspx> Acesso em: 23 ago. 2011.
43
Disponível em: http://blog.planalto.gov.br/campanha-nacional-do-desarmamento-2011-tire-umaarma-do-futuro-do-brasil/> Acesso em: 23.ago.2011.
44
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combatê-la são necessárias diversas ações, que cuidem, também, do comércio,
do porte e da posse das armas de fogo e munições. Dentre estas ações,
acreditamos que sejam pertinentes olhares mais atentos à desigualdade social,
à eficiência e à credibilidade dos sistemas de justiça e segurança pública, à
geração de renda e sua melhor distribuição, sem nos olvidarmos da efetiva
educação dos povos.
Acreditamos que as mudanças legislativas já ocorridas no Brasil, sob a forma
de tipificação criminal do porte ou da posse de arma de fogo ou de munição, e
o aumento do rigor das sanções penais foram condições necessárias para a
“solução” parcial do problema, apesar de, aparentemente, ter sido o início para
desarmar apenas os civis – por meio da restrição do acesso às armas ditas legais.
Mas as medidas tomadas foram parciais, pois ainda podem ser encontradas
armas do Exército brasileiro ou, até mesmo, armas do “mercado ilegal” nas mãos
da sociedade atemorizada, investida pelo sentimento de intolerância.45
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roubadas-dez-armas-de-guerra-nos-comandos-213726213. Acessos em 28 ago.2011.
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