PDF - Comunicação e Cultura

Transcrição

PDF - Comunicação e Cultura
Editorial | 1
&
Comunicação
Cultura
n.º 9 | primavera-verão 10
2 | Isabel Capeloa Gil | Carla Ganito
COMUNICAÇÃO & CULTURA
Directora
Isabel Capeloa Gil
Editor
José Alfaro
Conselho Consultivo
Arjun Appadurai (New York University), Gabriele Brandstetter (Freie Universität Berlin), Elisabeth
Bronfen (Universität Zürich), Andreas Huyssen (Columbia University), Marcial Murciano (Universitat
Autònoma de Barcelona), Ansgar Nünning (Justus-Liebig-Universität Giessen), Christiane Schönfeld
(Huston School of Film, National University of Ireland), Michael Schudson (Journalism School,
Columbia University), Michel Walrave (Universiteit Antwerpen), Barbie Zelizer (Annenberg School for
Communication, University of Pennsylvania)
Conselho Editorial
Ana Maria Costa Lopes, Ana Gabriela Macedo, Aníbal Alves, Carlos Capucho, Estrela Serrano,
Fernando Ilharco, Isabel Ferin, Jorge Fazenda Lourenço, José Augusto Mourão, José Miguel Sardica,
José Paquete de Oliveira, Manuel Pinto, Maria Augusta Babo, Maria Luísa Leal de Faria, Mário Jorge
Torres, Mário Mesquita, Rita Figueiras, Roberto Carneiro, Rogério Santos
Conselho de Redacção
Carla Ganito, Catarina Duff Burnay, Fátima Patrícia Dias, Maria Alexandra Lopes, Nelson Ribeiro,
Verónica Policarpo
Arbitragem
Aníbal Alves, Carlos Capucho, Fernando Ilharco, Isabel Ferin, Jorge Fazenda Lourenço, José Augusto
Mourão, José Paquete de Oliveira, José Miguel Sardica, Manuel Pinto, Maria Augusta Babo, Maria Luísa
Leal de Faria, Mário Jorge Torres, Rita Figueiras, Roberto Carneiro, Rogério Santos
Coordenação deste número
Isabel Capeloa Gil e Carla Ganito
Revisão
Cláudia Maia, João Berhan, Marta Olias, Raul Henriques, coord. de Conceição Candeias (português);
Kevin Rose (inglês)
Edição
Com uma periodicidade semestral, Comunicação & Cultura é uma revista do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura (Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa), editada
por BonD – Books on Demand. O CECC é apoiado pela FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia.
Artigos e recensões
A revista Comunicação & Cultura aceita propostas de artigos para publicação que se enquadrem na
área das Ciências da Comunicação e da Cultura. Todos os elementos relativos a essas colaborações
– normas de apresentação de artigos, temas dos próximos números, princípios gerais de candidaturas,
contactos e datas – devem ser consultados no final desta publicação.
Assinatura anual
Custo para Portugal e Espanha: 20 euros. Para outros países, contactar a editora. Os pedidos de assinatura
devem ser dirigidos a: [email protected] | www.comunicacaoecultura.com.pt
Impressão: Rolo & Filhos II, SA | Depósito legal: 258549/07 | ISSN: 1646-4877
Solicita-se permuta. Exchange wanted. On prie l’échange.
Editorial | 3
&
Comunicação
Cultura
n.º 9 | primavera-verão 10
pós-género
Bon D
BOOKS
on DEMAND
| 5
Índice
Editorial
Paródia, pastiche, perversão e política: a teoria no reino do pós-género................ 11
ISABEL CAPELOA GIL & CARLA GANITO
dossier................................................................................................................................... 25
Pós-feminismo e cultura popular.............................................................................. 27
ANGELA MCROBBIE
O artigo propõe enquadramentos conceptuais para o pós-feminismo –
entendido este como um retrocesso nas conquistas do feminismo. Discute
ainda os efeitos duais da cultura popular, que simultaneamente parece
contribuir para o desconstruir do feminismo e para lhe dar resposta, apresentando vários pontos onde este desconstruir se torna visível. O pós-feminismo relega o feminismo para um segundo plano e considera-o antiquado e
desenquadrado nos novos estilos de vida das mulheres, gerando um «duplo
enredamento» em que o feminismo é visto como um dado adquirido e repudiado. Para ultrapassar este novo regime de género, o feminismo académico
tem de se desmantelar para se reinventar.
Palavras-chave: Pós-feminismo, Cultura popular, Desconstrução do feminismo
6 |
“An affair of great importance”
– Queen Christina of Sweden (1626-1689) ...............................................................43
ELIZABETH NIVRE
A rainha Christina da Suécia (1626-1689) foi uma das mulheres europeias
mais proeminentes do seu tempo e também uma personalidade controversa. O interesse dos seus contemporâneos relativamente ao que era feito e
dito por ela foi imenso. Simultaneamente, o meio impresso desenvolveu-se
rapidamente, abrindo caminho para novos géneros e canais de distribuição.
O nome da rainha sueca surge nos primeiros jornais e almanaques modernos, em relatos historiográficos e textos biográficos e panagíricos, bem como
em panfletos.Rumores e intrigas viajavam entre países e reinos, e a rainha
era considerada frívola, imoral e andrógina. A tensão entre o desejo de determinar o sexo da rainha sueca e um interesse na funcionalidade do género
presente na figura de Christina moldou a narrativa da sua vida. O objectivo
deste artigo é o de discutir se uma rainha pré-moderna se enquadra na fluidez do debate sobre o pós-género.
Palavras-chave: Rainha Cristina, celebridade, pós-género
Sujeito pós-moderno: de andrógino a pós-humano................................................59
SÓNIA SEBASTIÃO
No presente artigo, enquadramos a temática do género e da sua evolução para
o estudo do pós-género – associado às transformações do corpo pelo recurso
a instrumentos tecnológicos e a experiências científicas – nos estudos culturais contemporâneos. Desta forma, relacionamos o debate sobre os ciborgues
com o corpo sem género, associado ao arquétipo do andrógino.
Para demonstrar o papel do pós-humano nas trocas simbólicas e no imaginário global, ilustramos os nossos argumentos recorrendo a conhecidos conteú­
dos audiovisuais e literários.
Palavras-chave: Estudos culturais, Eu pós-moderno, Pós-género, Pós-humano, Es­­tu­­
dos f ílmicos
Women on the move: the mobile phone as a gender technology....................... 77
CARLA GANITO
As nossas vidas são crescentemente vividas num contexto móvel. A tendência
actual na Europa e nos EUA é a da paridade entre homens e mulheres no uso
do telemóvel. No entanto paridade no uso não significa igualdade. Tal como
acontece com outros artefactos tecnológicos, despreza-se muitas vezes o
facto de as mulheres terem uma apropriação muito distinta do telemóvel.
No âmbito dos estudos feministas dos media procurar-se-á perspectivar o
telemóvel como uma «tecnologia de género» e demonstrar o seu contributo
para a construção e transformação de género.
| 7
O artigo começa por analisar o estado da arte dos estudos feministas dos
media e prossegue com a discussão do telemóvel como um media e com
o seu posicionamento dicotómico no que diz respeito ao género. O artigo
termina com a proposta do telemóvel como uma «tecnologia de género», um
local de transgressão e de possível transformação.
Palavras-chave: Telemóvel, Tecnologia de Género, Estudos feministas dos media
As desigualdades do amor........................................................................................... 89
CLÁUDIA ÁLVARES & DANIEL CARDOSO
Este artigo pretende indagar das inclusões e exclusões patentes nos discursos sobre relacionamentos veiculados pelas revistas femininas portuguesas
Cosmo, Activa e Máxima. Estes discursos, habitualmente centrando-se nos
temas de amor e sexo, dirigem-se à «mulher» como se de uma «identidade»
definida e concreta se tratasse. Partindo de uma análise de conteúdo comparativa, e recorrendo ao complemento da Análise Crítica do Discurso,
procurar-se-á esclarecer quais os temas explicitados, por um lado, e quais
os silenciados, por outro lado, no tocante ao processo de naturalização de
determinados comportamentos e ideologias relativos aos relacionamentos.
Procuraremos aqui também entender qual a influência do Feminismo Liberal e do Pós-Feminismo em publicações que pretendem dar voz às mulheres,
inquirindo até que ponto a perspectiva heterocêntrica e patriarcal está ainda
infundida nestes discursos. Por fim, os resultados serão contextualizados ao
nível das transformações macro-sociais analisadas por Anthony Giddens,
Ulrich Beck, Michel Foucault, Judith Butler, entre outros.
Este artigo enquadra-se no âmbito do projecto de investigação «A Representação Discursiva da Mulher em Revistas Femininas e Masculinas Portuguesas» (PTDC/CCI/71865/2006).
Palavras-chave: Revistas femininas, Relacionamentos, Feminilidade, Masculinidade,
Feminismo liberal, Pós-feminismo
outros artigos.................................................................................................................... 109
Whitman’s urban kaleidoscope....................................................................................111
LARA DUARTE
Walt Whitman viveu em Nova Iorque e passou grande parte da sua vida em
ambientes urbanos. Não será, portanto, de estranhar que logo no início de
Leaves of Grass tenha declarado ser sua intenção cantar a vida urbana, constituindo-se, assim, como o primeiro poeta americano a celebrar a cidade. O que
talvez muitos desconheçam é que, por detrás da pretensa atitude de orientação e de celebração da vida urbana, está uma compreensão do lado mais
8 |
obscuro do ambiente citadino. Tal como um caleidoscópio, a poesia de Whitman apresenta um modelo de espelho-duplo que produz um fluxo constante
de perspectivas, ou imagens em movimento, conforme prometido no Prefácio de 1855: «I will have nothing hang in the way, not the richest curtains [...]
You shall stand by my side and look in the mirror with me.»
Palavras-chave: Cidade, Visão, Caleidoscópio, Democracia
As duas repúblicas: Portugal (1910-1926) e Espanha (1931-1936)
Ensaio de interpretação sociológica comparada.....................................................123
FERNANDO AMPUDIA DE HARO
O objectivo do artigo é realizar uma aproximação comparada aos períodos
republicanos português e espanhol, a partir de uma perspectiva ligada à teoria
sociológica figuracional proposta por Norbert Elias. Como tal, o advento da
República em Espanha e em Portugal trouxe consigo um novo equilíbrio de
poder que mereceu diferentes valorizações em função do grupo social considerado. Algumas destas valorizações fizeram do medo, como emoção colectiva, o seu eixo central; o medo ficou também ligado a determinadas definições da situação, em termos de desordem ou de ameaças de ruptura social,
assim como ao apelo à autoridade como solução para os níveis de incerteza e
de imprevisibilidade manifestados por certos sectores sociais.
Palavras-chave: República, Espanha, Portugal, Norbert Elias, Equilíbrio de poder,
Medo social
Caminhos e atalhos do cinema e do audiovisual em Portugal............................145
LAURO ANTÓNIO
entrevistas.......................................................................................................................... 153
Entrevista a Gilles Lipovetsky.................................................................................... 155
CARLA GANITO E ANA FABÍOLA MAURÍCIO
Entrevista a Gaye Tuchman....................................................................................... 165
GONÇALO PEREIRA ROSA
| 9
recensões............................................................................................................................ 173
Tamara Chaplin, Turning on the Mind: French Philosophers on Television
(Rita Figueiras)
Thomas M. Malaby, Making Virtual Worlds: Linden Lab and Second Life
(Cátia Ferreira)
Gilles Lipovetsky & Jean Serroy, O Ecrã Global
(Carlos Capucho)
montra de livros................................................................................................................ 185
agenda................................................................................................................................ 191
abstracts............................................................................................................................. 197
próximos números........................................................................................................... 203
normas para o envio de artigos e recensões............................................................. 208
EDITORIAL
Paródia, pastiche, perversão e política:
a teoria no reino do pós-género
ISABEL CAPELOA GIL*
CARLA GANITO **
1. O mundo de Gaga
«Como poderá uma figura tão calculista e artificial, tão clínica e estranhamente artificial, tão despida de erotismo genuíno, ter-se tornado o ícone da sua
geração?» A pergunta formulada na edição de 12 de Setembro de 2010 do The Sunday Times Magazine pela feminista americana Camille Paglia, encimava a diatribe
retórica contra a diva do déjà-vu, a celebridade líder da geração Y, apresentada
como desatenta à vitalidade e ao talento vocal, imune ao afecto e à emotividade
gestual, porque comunica de forma muda através de uma corrente inesgotável de
mensagens telegráficas atomizadas. Em consequência, argumenta que a geração
Twitter, que a idolatra, está presa na tecnocracia das NTI, subvertendo as fronteiras entre o público e o privado, imunizando-se relativamente ao contacto humano
e glorificando o kitsch mercantilizado, o pastiche, que supera todas as distinções
e as resolve de forma indistinta, em particular o género. O objecto da crítica, o
«andróide plastificado» de que fala Paglia, foi considerado pela revista Time uma
das pessoas mais influentes de 2009 e constitui a entrada mais alta para a lista
Forbes 2010, situando-se em quarto lugar com ganhos anuais de 62 milhões de
dólares. Falamos de Stefani Joanne Angelina Germanotta, aliás, Lady Gaga.
_______________
* Directora e professora associada da Faculdade de Ciências Humanas da Univ. Católica Portuguesa.
** Assistente da Faculdade de Ciências Humanas e investigadora do CECC – Centro de Estudos de
Comunicação e Cultura da Universidade Católica Portuguesa.
12 | Isabel Capeloa Gil | Carla Ganito
Que os ícones da cultura popular constituem barómetros da sociedade mais
eficazes do que complexas reflexões de autocrítica, já Siegfried Kracauer afirmara
em 1927, no estudo seminal «O Ornamento da Massa». O que as Tiller Girls representavam para Kracauer, enquanto exemplos da organização social capitalista,
tem o seu contraponto na figuração da «Gaga», para pensar a problemática do pós-género. Afinal, na sua ambivalência entre apropriação, imitação, paródia e subversão das categorias sociais, estéticas, políticas e de género, a artista que a revista
Vanity Fair considera responsável por uma «revolução cultural» (VF, Setembro
2010: 134-135) representa simultaneamente a crise e a plurissignificação do(s)
feminismo(s) contemporâneo(s), situada numa encruzilhada de designação multiforme, desde feminismo de terceira vaga, até feminismo pós-género, feminismo
pró-sexo, pós-feminismo, ciberfeminismo e contrafeminismo. Gaga usa a cultura
popular como parte integrante da disseminação, mas também da afirmação e subversão da teoria contemporânea sobre a reflexão em torno do papel da mulher na
sociedade. Antes de criticar o feminismo popular por este minar as possibilidades
de empoderamento das mulheres, reduzindo-as a episódios paródicos, interessa
entender a matriz plural dos feminismos, que, mais do que conceitos, exploram
vivências, necessariamente variadas, opostas, inconciliáveis até. Estas designações, de forma alguma inter-referenciais, conceptualizam a «tremenda e infiel
heteroglossia» que, segundo Donna Haraway, marca a diversidade das manifestações feministas (Haraway, 2002: 250), os seus anseios e frustrações, constituindo
sobretudo figurações das diferenciadas culturas do feminino, como assinalou Ann
Brooks (1997).
Lady Gaga surge assim como sinal da krisis que marca o projecto feminista
no século xxi. A sua estética da ambiguidade e da contradição é produtiva para
entender três aspectos centrais e inter-relacionados da discussão contemporânea
em torno da problemática do pós-género – referimo-nos às dimensões sociopolítica, estético-performativa e de epistemologia do género.
Reconhecida a igualdade jurídica nas sociedades ocidentais, garantido o
acesso ao trabalho, mas também à protecção social, tolerada a visibilidade cultural e artística, o projecto do feminismo de segunda vaga, fortemente ligado à
concessão de direitos sociais, uma vez conquistados – pelo menos na lei – os direitos à representação política, parece terminado, como argumentava a conservadora
Christina Hoff Sommers (Sommers, 1994). Opondo o discurso de um novo power
feminism, ancorado no reconhecimento das conquistas sociais, ao modelo do
victim feminism da luta política das «mães» feministas, Sommers considera que
se iniciou o período de um pós-feminismo, que recusa a continuidade obsoleta
de um discurso de emancipação, garantido já pela primeira vaga1, e que propõe
Editorial | 13
um novo individualismo, ancorado na conciliação com os valores do patriarcado.
A posição de Sommers, que se autodeclara como feminista antifeminista, surge no
contexto das lutas culturais dos anos 90 nos EUA, e da discussão das políticas de
discriminação positiva, sintoma efectivo do backlash contrafeminista, que Susan
Faludi assinala (1992), em sintonia com a complexidade contraditória que marca
o ambiente cultural e político no final do século xx e no princípio do xxi. A constatação de que os padrões de comportamento, as expectativas sociais e a percepção da mulher na sociedade se modificaram profundamente numa época em que
aparentemente tudo lhe é permitido colide afinal com a incapacidade de encontrar
nas novas formas sociais enquadramento que legitime a ambivalência profunda no
seu papel. Do mesmo modo, o empenho na luta pela emancipação parece, depois
da movimentação radical dos anos 60 e 70, ter remetido o activismo em prol das
mulheres para segundo plano, relativamente a outros movimentos que reclamam
direitos sociais, nomeadamente a nível étnico e de orientação sexual.
Ao mesmo tempo que maternidade e/ou carreira parecem ao alcance de
todas, os mecanismos de regulação sociocultural teimam em limitar o acesso
e a escolha. Angela McRobbie, no ensaio que abre este volume, designa assim o
duplo enredamento (double-entanglement) do pós-feminismo, comprimido entre
a livre escolha de um destino e de uma identidade próprios e os constrangimentos institucionais que os regulam. A ansiedade provocada por este enredamento
transforma o anjo da casa, da matriz vitoriana, na «malvada do lar» (Hanauer,
2002: xiii) do século xxi, que não quer perder os direitos duramente conquistados,
nem a realização doméstica, mas se sente encolerizada e ansiosa ao ser duramente
confrontada pelas limitações institucionais que constrangem a escolha. Afinal, a
questão central com que o pós-feminismo, ou as feministas de terceira vaga, se
debate é o facto de as estruturas liberais de oportunidade social, jurídica e política
não deixarem de ser geridas por mecanismos de regulação que continuam a subverter a possibilidade efectiva de escolha livre (cf. Heywood & Drake, 1997: 11).
Radical, provocadora e agente de uma extravagante estética kitsch, Lady Gaga
constitui simultaneamente um produto e um sintoma desta crise de identificação.
Oriunda da classe média nova-iorquina e educada em escolas de elite, a artista usa
o modelo social sob a forma de apropriação inversa, isto é, usa o modelo da cultura
dominante de fundo capitalista contra si própria. Invertendo os termos do duplo
enredamento, não se trata apenas de figurar a contradição do projecto feminista,
mas, sim, de usar as estruturas da culturalite – a construção da celebridade, os
mecanismos de marketização, as novas tecnologias visuais – para mostrar a instabilidade que a suporta, por um lado, e para recusar a interpelação, por outro, tal
como na canção «Telephone» (2010), onde joga com uma identidade queer e usa
14 | Isabel Capeloa Gil | Carla Ganito
o telefone como instrumento de cisão e não de comunicação. «Stop calling, stop
calling, I don’t wanna hear anymore» apresenta a recusa simbólica da interpelação, que culmina na ruptura tecnológica e social a um tempo: «I have no service,
I can’t hear you. You’re not going to reach my telephone». Esta dissidência faz-se
contudo usando as estruturas dominantes que critica. Desde a escolha do nome
artístico – inspirado na canção «Radio Ga Ga» dos Queen – à exagerada selecção de vestuário, sempre assinada em exclusivo por grandes estilistas, de Chanel a Hermès ou Versace, Lady Gaga assume-se como a figuração primordial do
pastiche. Do mesmo modo, efectua uma apropriação artística de criadores como
Madonna, Marlene Dietrich, David Bowie e mesmo a bailarina finissecular Loïe
Fuller2, que Camille Paglia deslegitima como roubo e estética déjà-vu, mas que
Gaga assume dentro do espírito da paródia crítica pós-moderna e das suas estratégias de sampling, morphing e cloning 3. Numa radicalização kitsch, que esbate os
limites entre a identidade privada e a performance pública, Gaga usa a sua estética performativa como forma de tomar uma posição socialmente crítica, usando
os mecanismos da cultura da celebridade como forma de subversão desta mesma
cultura. Assim a estética de diva, que parecia adormecida perante os constrangimentos de uma cultura da celebridade baseada na curta duração, na construção,
disseminação, canibalização, regurgitação e apagamento acelerado de personas-produto, parece no século xxi reforçar-se e ganhar a nova efectividade, referida
por Elisabeth Bronfen (Bronfen, 2002: 117) no seu estudo sobre Madonna, com a
emergência de Lady Gaga.
Todavia, uma marca singular da reflexividade crítica da artista sobre a tradição da diva é precisamente o cultivo da ambiguidade sexual, não só explorando
claramente uma abordagem queer nos seus vídeos e aparições públicas, mas igualmente o gender bending sugerido por Marlene Dietrich ou por Madonna. Por
outro lado, o questionamento das categorias sexuais ocorre igualmente através
do exagero e da acentuação excessiva da forma feminina, que convertem a figura
assim criada numa paródia da feminilidade. O escândalo causado pelo vestido de
carne que usa na cerimónia de entrega dos Video Music Awards (VMA) de 2010,
provocando a ira de associações de defesa dos animais e causando um enorme desconforto junto dos outros participantes no evento, além de constituir um remake
da performance de vanguarda e da sua intenção de épater le bourgeois, enuncia a
frontal refutação da ontologia da essencialidade dos sexos, associada à crítica do
sistema de celebridade de Hollywood que torna as actrizes e cantoras objectos-carne que a indústria canibaliza. Simultaneamente, toma posição relativamente
à ambiguidade sexual que a produziu e que se transformou em estratégia de
marketing do produto Gaga. Ou seja, não só usa a indústria para a criticar, como
Editorial | 15
encena modelos críticos que produzem Gaga enquanto celebridade, renegando
depois as estratégias utilizadas pela sua entourage para esta construção. A transgressão transforma-se em espiral que subverte a própria subversão, tocando perigosamente uma nova potencial afirmação4.
O projecto Gaga apresenta assim as valências e as contradições da problemática pós-género: a conciliação crítica entre o sistema dominante e o activismo
feminista; o uso da estética enquanto manifesto, ainda que contraditório, da
acção política; a transgressão das categorias de género, quer através do cultivo
da ambiguidade da diferença sexual, quer através da radicalização transgressiva,
que evidenciam as dissonâncias através de uma teoria verdadeiramente encarnada
(theory in the flesh), segundo a designação de Gloria Anzaldúa e Cherríe Moraga
(Anzaldúa & Moraga, 1983: 25).
2. Pós-género, pós-moderno, media, cultura e sociedade
Liz Lemon: I’m a businesswoman.
Jack Donaghy: Oh, I don’t think that’s a word.
30 Rock (NBC, 2009)
Tal como a boutade de Jack Donaghy na série 30 Rock, o problema da designação pós-género começa por se colocar ao nível da linguagem. E que a linguagem
tem força performativa é uma tese consensual de J. L. Austin e John Searle a Judith
Butler. Urge por isso começar por distinguir pós-género daquilo que não é, para
se chegar a uma designação produtiva enquadrante dos ensaios coligidos neste
número da revista Comunicação & Cultura. As formulações mais recorrentes do
termo são inconciliáveis entre si. Distinguimos aqui quatro: uma associada ao
feminismo liberal; a segunda conotada com o feminismo radical; a terceira, com o
ciberfeminismo; e a última, que concilia pós-género com pós-modernismo.
Em primeiro lugar, e decorrente da fixação no prefixo «pós», como aquilo que
vem depois, o termo foi associado a algum feminismo liberal que questiona a tónica
activista da geração anterior e que, considerando a causa feminista ultrapassada,
postula uma nova era de conciliação com as estruturas sociais do patriarcado.
Esta tendência concilia parceiras tão fora de comum como a já referida Christina
Hoff Sommers, que defende o regresso aos valores da domesticidade, ou a própria
Camille Paglia, que em Sexual Personae (1990) alega que a criatividade estética é
apanágio exclusivo do masculino, uma vez que a mulher, pela sua biologia reprodutora, se pode afirmar apenas, ainda que como objecto na esfera artística, como
figura sexual.
16 | Isabel Capeloa Gil | Carla Ganito
A designação está sobretudo profundamente conotada com as teses construtivistas de Judith Butler, geralmente considerada uma feminista pós-género por
contraposição ao feminismo europeu da diferença5. Segundo Butler, a categoria
de género torna-se efectiva através da repetição de actos performativos. O conceito de performatividade é aqui alargado do âmbito da pragmática austiniana
(Austin: 1975) para se referir a todas as formas de acção social através das quais
se institui sentido. A cena de constituição performativa do género é semelhante
à cena teatral (Butler, 1988), mas desenrola-se no palco da sociedade. Trata-se de
uma performance que age como ficção reguladora socialmente repetida, acabando
por subsumir a própria categoria de sexo, que apenas tem realidade na medida
em que é representada (performed). Assim, género apresenta-se como categoria
instável, perturbada (gender trouble), como se lê na obra fundamental desta revolução construtivista (Butler, 1990). As teses de Butler conduzem à impugnação da
diferença sexual enquanto binarismo culturalmente construído, e que, por isso
mesmo, pode ser contestado através de performances alternativas. Em Undoing
Gender (2004) defende que a nova tarefa do feminismo se situa não no acto de
mostrar as cenas de constrangimento que constituem género, mas, pelo contrário, em mostrar o modo como este pode ser «desfeito» (become undone) (Butler,
2004: 1). Esta tarefa, associada aos movimentos de New Gender Politics, para além
do binarismo da diferença social, repudia o novo humanismo, propondo, inversamente, a articulação com a tecnologia, e um repensar do humano a partir do
conceito de fusão híbrida na figura do ciborgue. As teses do feminismo radical
articulam-se assim com o tecnofeminismo ou com o ciberfeminismo na apresentação do pós-género como conceito difuso que se define a partir da desnaturalização do género e do seu binarismo, permitindo a configuração de novas categorias
de organização entre o humano e o social, como aquele que é apresentado pelos
organismos cibernéticos (ciborgues).
Foi efectivamente o «Manifesto Ciborgue» de Donna Haraway (Haraway,
1991, 2002) que apresentou o ciborgue como figura paradigmática do mundo pós-género, um híbrido de máquina e organismo, a conciliar a crítica à ontologia da
diferença sexual com a epistemologia irónica de uma criatura com realidade social
e ficcional a um tempo. Haraway recupera de certa forma o conceito romântico de
ironia para resolver na figura contraditória deste híbrido as aporias da sociedade
ocidental, em particular a exploração da natureza, o capitalismo e o patriarcado, e
para propor nesta figuração uma nova narrativa do mundo: um mundo sem género,
sem génese e, hipoteticamente, sem fim. O mundo pós-género apresenta-se assim
como um espaço de conciliação e contradição, de libertação dos constrangimentos institucionais e das narrativas que dominam os corpos reais das mulheres:
Editorial | 17
[...] um mundo ciborgue poderia ter a ver com realidades sociais e corporais realmente
vividas, um mundo onde as pessoas não têm medo da sua afinidade e ligação com os
animais e as máquinas, da sua identidade permanentemente parcial, nem das posições
contraditórias. (Haraway, 2002: 231)
O já clássico ensaio de Haraway, inspirado nas utopias pós-género da ficção
científica, dá assim início a uma nova corrente de expressão feminista, fundada
num uso renovado da tecnologia, em particular das novas tecnologias e da Internet, como plataformas de empoderamento das mulheres. Denominado «ciber» ou
«tecnofeminismo», dele decorre a assunção de que, através da tecnologia, a mulher
pode escapar aos constrangimentos biológicos do corpo, propondo justamente
o uso da tecnologia como suporte prostético para uma nova política feminista.
À mudança de uma percepção fóbica da relação entre o feminino e a tecnologia
para uma apreensão eufórica não é certamente estranha a radical disseminação
do computador que conduziu a uma personalização quase fusional da máquina
com a utilizadora, num segundo Eu, como defende Sherry Turkle (Turkle, 2008).
Acresce que a metáfora do ciborgue, associada à portabilidade e leveza das TIC, de
PC a telefones móveis, permite além do mais a superação das tradicionais distinções entre grupos feministas – raça, classe, geografia –, propondo em particular
a apropriação da Internet como plataforma de acção global de um novo espaço
público onde as mulheres são players privilegiadas. Usando a retórica combativa
da segunda vaga, Sadie Plant, teórica de culto do cyberpunk, apresenta o ciberespaço como o espaço de liberdade social, estética e biológica por excelência, onde
a cena do constrangimento do género é definitivamente superada através do jogo
pleno da identidade:
Cyberfeminism is information technology as a fluid attack, an onslaught on human
agency and the solidity of identity. Its flows breach the boundaries between man
and machine [...]. Cyberfeminism is simply the acknowledgement that patriarchy is
doomed. (Plant, 1993: 12)
Todavia, a generalização do uso da tecnologia produziu no ciberfeminismo
igualmente uma variante de pendor mais liberal, que usa as presenças internáuticas como forma de contestar directamente os preconceitos estereotipados sobre o
relacionamento secundário das mulheres com a tecnologia, usando precisamente
representações de uma feminilidade tradicional, em sites de cor rosa ou com marcas de um gosto feminino tradicional, precisamente para demonstrar a capacidade
de usar e manipular a contradição. Cybergrrrl, Geekgrrrl ou Netchick são nics
de ciberfeministas que, ao mesmo tempo que se dissociam da retórica crítica da
18 | Isabel Capeloa Gil | Carla Ganito
segunda vaga, usam o espaço virtual como plataforma de domínio e afirmação
social e política. Na verdade, a multiperspectivação dos utilizadores decorre da
própria natureza fluida desta nova tecnologia, que assim se define como plataforma paritária e emancipatória para grupos subfigurados.
Pós-género tem ainda vindo a ser conceptualizado por comparação com a
constelação do pós-modernismo, no que este tem quer de emancipatório, quer de
jogo e paródia. A tese apresentada inicialmente por Craig Owens (Owens, 1983)
e subscrita depois por Susan Suleiman (Suleiman, 1991) ou Linda Nicholson
(Nicholson, 1991) fundamenta a articulação entre pós-feminismo e pós-modernismo ao nível da resistência aos discursos do poder, ou seja, da resistência à
sociedade patriarcal pelo pós-feminismo e da resistência aos modelos de representação dominante pelo pós-modernismo. Justamente neste entretecer se
concebe pós-género como termo que decorre do impulso crítico do pós-modernismo, mas que com ele dialoga no fomento de uma estética da contradição e
da complexificação. Como discutimos atrás, o conceito de pós-género é herdeiro
da desconstrução dos essencialismos, da crítica do pensamento binário, da crítica da linguagem do pós-estruturalismo, mas recebe do pós-modernismo três
elementos fundamentais: o primeiro, a tónica no jogo paródico com a cultura
dominante; o segundo, o gerir da contradição e da ambivalência; e, finalmente,
o uso da representação como plataforma de resistência através do jogo da ambiguidade. Lady Gaga, afinal, funde de forma singular o impulso crítico e paródico
do pós-modernismo com o cultivo da contradição e da complexidade que define
o feminismo pós-género.
A revista Comunicação & Cultura dedica este número à discussão corrente sobre pós-género nas ciências da comunicação e da cultura. Procura ilustrar a fluidez do projecto do feminismo pós-género através de cinco artigos que
abordam, também eles de forma multifacetada, as problemáticas centrais do
pós-género. No artigo de abertura, «Pós-feminismo e cultura popular», Angela
McRobbie apresenta-nos as tensões da articulação entre cultura popular e feminismo, onde este último resulta como projecto datado. A realidade portuguesa
que será tratada em dois dos artigos subsequentes não é alheia a este fenómeno
de recusa de identificação com o projecto feminista. Esta recusa estende-se igualmente ao não-reconhecimento da permanência de situações de discriminação de
género, sendo o projecto feminista percepcionado como antifeminino, antimulher, esvaziando-se de significado e de valor. McRobbie guia-nos por este desmantelar ou desfazer do feminismo e pelo papel que a cultura popular assume nesse
processo que conduz ao repúdio do projecto feminista, «sem a ocorrência de um
feminismo reinventado» (McRobbie: 38).
Editorial | 19
Se Lady Gaga é um dos ícones mais emblemáticos da cultura popular, a rainha
Cristina da Suécia é-nos apresentada como um proto-ícone do pós-género na sua
dimensão transgressiva. Em «“An affair of great importance” – Queen Christina
of Sweden (1626-1689)», Elizabeth Nivre ilustra a problemática estético-performativa do pós-género propondo a rainha Cristina como uma figuração de desafio ao
regime heterossexual e heteronormativo pela transgressão de normas e fronteiras
alicerçadas nas convenções binárias da diferença sexual. Convenções que ainda
hoje se afirmam como mecanismos de regulação sociocultural:
What is truly surprising is that so little has changed over the past 350 years [...], which
illustrates that it is not so much “Christina” that is the problem [...], but rather the search
for definitions that force us to look beyond the hierarchical bias of man – woman.
(Nivre: 54)
A ambiguidade expressa tanto por Lady Gaga como pela rainha Cristina
volta a ser explorada por Sónia Sebastião no seu artigo «Sujeito pós-moderno: de
andrógino a pós-humano», sobre o arquétipo do andrógino. A manipulação tecnológica dos corpos e a descorporização inerente às novas tecnologias introduzem
novas tensões no mundo do pós-género, e neste artigo a autora revela o conflito
resultante da desconstrução dos essencialismos e da intersecção do pós-género
com o pós-humano. Trata-se de uma intersecção que vive no equilíbrio difícil
entre a utopia da libertação feminina do constrangimento biológico do corpo e a
fobia da corrupção e da exploração tecnológica do mesmo corpo. Afinal, figura-se
um equilíbrio longe do sonho de Katherine Hayles, de criar «uma versão do pós-humano que abraçasse as possibilidades das tecnologias de informação sem ser
seduzido pelas fantasias de um poder ilimitado de uma imortalidade incorporal»
(Hayles, 1999: 5).
O papel da tecnologia na construção do género está também presente
no artigo de Carla Ganito, «Women on the move: the mobile phone as a gender
technology», em que a autora propõe o telemóvel como um local onde a conciliação e a contradição do mundo do pós-género se tornam visíveis. O telemóvel é
entendido no quadro da proposta de Teresa de Lauretis: do género como produto
de várias tecnologias sociais que abririam novas possibilidades de transformação. O telemóvel é-nos oferecido simultaneamente como um espaço de reforço
dos estereótipos e dos papéis tradicionais de género e de performance de novos
significados. Através da exploração da cor, das práticas de personalização e das
negociações de espaço, a autora defende que se torna clara a natureza fluida do
telemóvel como tecnologia de género e como ferramenta de representação e auto-representação multifacetadas.
20 | Isabel Capeloa Gil | Carla Ganito
Finalmente Claúdia Álvares e Daniel Cardoso abordam outra tecnologia de
género: as revistas femininas e masculinas. No artigo «As desigualdades do amor»,
os autores demonstram a resistência do binário e as dificuldades de conciliação
da ideologia patriarcal com as conquistas do sujeito feminino. Esta dificuldade é
também abordada nas entrevistas que fazem parte deste número da revista. Gaye
Tuchman refere a persistência dos estereótipos e do papel dos media neste processo, e Gilles Lipovetsky, o impacto da dinâmica individualista nas mulheres e
nos processos de conciliação crítica que resultam do desenvolvimento de novas
expectativas e aspirações. Mas se, como Lipovetsky afirma, «a hipermodernidade
é também o reconhecimento da diferença», já que «o feminismo de hoje em dia
não é o feminismo de outrora», então o que é hoje o projecto feminista? Será um
feminismo parodiado e reinventado em figurações como as de Lady Gaga? Figurará simplesmente a tensão irresolúvel entre o exercício das novas conquistas e a
manutenção dos modelos tradicionais?
Pós-moderno, cibernético, liberal ou radical, a discussão em torno do problemático conceito de pós-género configura afinal a pluralidade imensa da discussão
feminista contemporânea, as tensões não resolvidas dos seus variados modelos de
transferência de saber, entre o individual e o comunitário, o familiar e o profissional, o activismo e a aceitação, a paródia e a crítica. Pós-género assume as tensões
da reflexão feminista e ainda mais os limites da própria teoria, empenhada por
vezes em agendas que, potenciando a radicalidade do pensamento, descuram a
pluralidade das questões sociais, éticas e culturais com que as mulheres se debatem no complexo século xxi. Pós-género erige-se assim como conceito que, consciente dos limites teóricos da concepção de género e da sua variada apropriação,
figura uma política emergente de teorização feminista fundada na ambivalência,
na conciliação entre os opostos, mas também na força emancipatória das novas
tecnologias na resistência às metamórficas constelações do novo patriarcado.
Editorial | 21
NOTAS
Entende-se por feminismo de primeira vaga o processo referente à conquista de direitos políticos
para as mulheres e que está particularmente conotado com o feminismo liberal ou da igualdade.
Historicamente, a primeira vaga abarca desde os escritos panfletários de Mary Wollstonecraft
(A Vindication of the Rights of Women, 1792) e do movimento sufragista no início do século xx, até
1
ao discurso da igualdade formulado por Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo (1949). Influenciadas por Beauvoir, a partir dos anos 60, as feministas da segunda vaga têm preocupações de ordem
político-representacional, aliando a defesa da emancipação feminina e da garantia dos direitos
sociais com uma forte tónica na política do discurso e da representação e no seu impacto real na
vida das mulheres. Interessa-lhes sobretudo chamar a atenção para a estrutura patriarcal hegemónica e para as estratégias de ocultamento e naturalização que retiram autonomia e visibilidade às
mulheres, desde a estrutura da linguagem à política do corpo. Tanto a designação de feminismo de
primeira como a de segunda vaga são constatações retóricas de pendor abstracto que obscurecem
a diversidade do projecto de emancipação feminina e que por isso exigem que feminismo se grafe
necessariamente no plural, como feminismos. Uma das críticas correntes a estas duas vagas é o
facto de agirem sobre um pano de fundo ocidental e de esquecerem realidades culturais étnica,
religiosa e geograficamente diversas. Por feminismo de terceira vaga ou pós-feminismo designam-se
as tendências contraditórias do projecto de emancipação contemporâneo, marcado sobretudo pela
contradição entre posições liberais e radicais, por formas de conciliação ambivalentes e pela forte
crítica aos movimentos anteriores (vide Macedo & Amaral, 2005: 153-154, e Gamble, 1999: 298).
Vejam-se em particular as fotografias de Nick Knight para a Vanity Fair (Robinson, 2010: 134-135),
onde a artista invoca, através da dissolução da forma numa túnica de tom flamejante de Alexander
McQueen, as imagens da Dança do Fogo (1895) de Fuller.
3
Num artigo para a revista Movie Maker, o realizador Jim Jarmusch assume a predominância da cópia
como estratégia legítima da arte do século xxi, considerando, ao estilo de Godard, que, mais do que
a influência ou a origem, interessa indicar a finalidade da apropriação. Trata-se, afinal, de deslegitimar a origem, numa estratégia conceptualmente fundada pela desconstrução, a favor de uma nova
autenticidade, baseada na apropriação. «Authenticity is invaluable; originality is nonexistent. And
don’t bother concealing your thievery – celebrate it if you feel like it. In any case, always remember
what Jean-Luc Godard said: “It’s not where you take things from – it’s where you take them to”»
(Jarmusch, 2004).
4
Numa crítica às construtivistas radicais, Elisa Glick considera que o feminismo pós-género, segundo
Judith Butler, se auto-subverte através da excessiva tónica na transgressão e na passagem (queering)
como postulado conceptualmente legitimador. Trata-se na sua óptica de uma afirmação hegemónica contraditória (Glick, 2000: 19-45).
5
Sobre o feminismo da diferença, constituído sob o impulso da segunda vaga e do reconhecimento
da diferente acção da mulher na sociedade baseada na diferença sexual, veja-se Cixous & Clément,
1986, e Braidotti, 1994.
2
22 | Isabel Capeloa Gil | Carla Ganito
BIBLIOGRAFIA
Anzaldúa, Gloria; Moraga, Cherríe (coord.) (1983), This Bridge Called My Back:
Writings by Radical Women of Color, São Francisco: Aunt Lute Books.
Austin, J. L. (1975), How to Do Things with Words: The Wiliam James Lectures Delivered at
Harvard University 1955, Oxford: Oxford Paperbacks.
Braidotti, Rosi (1994), Nomadic Subjects, Nova Iorque: Columbia.
Bronfen, Elisabeth (2002), «Von der Diva zum Megastar – Cindy Sherman und Madonna»,
in Elisabeth Bronfen e Barbara Straumann (coord.), Diva. Eine Geschichte der Bewunderung, Munique: Schirmer/Mosel, pp. 195-217.
Brooks, Ann (1997), Postfeminisms: Feminism, Cultural Theory and Cultural Forms, Londres: Routledge.
Butler, Judith (1988), «Performative Acts and Gender Constitution: An Essay in Phenomenology and Gender Criticism», Theatre Journal, 40, 4, pp. 519-531.
———— (1990), Gender Trouble, Nova Iorque: Routledge.
———— (2004), Undoing Gender, Nova Iorque: Routledge.
Cixous, Hélène; Clément, Catherine (1986), The Newly Born Woman, Manchester: Manchester U. Press.
Faludi, Susan (1992), Backlash: The Undeclared War Against American Women, Nova Iorque: Doubleday.
Gamble, Sarah (coord.) (1999), Critical Dictionary of Feminism and Postfeminism,
Londres: Routledge.
Glick, Elisa (2000), «Sex Positive: Feminism, Queer Theory and the Politics of Transgression», Feminist Review, 64, pp. 19-45.
Hanauer, Cathi (coord.) (2002), The Bitch in the House, Nova Iorque: William Morrow.
Hayles, Katherine (1999), How We Became Posthuman, Chicago: University of Chicago
Press.
Haraway, Donna (1991), Simians, Cyborgs and Women. The Reinvention of Nature, Londres: Free Association Books.
———— (2002), «Manifesto Ciborgue: A ciência, a tecnologia e o feminismo socialista nos
finais do século xx», in Ana Gabriela Macedo (coord.), Género, Identidade e Desejo.
Antologia Crítica do Feminismo Contemporâneo, Lisboa: Cotovia, pp. 221-250.
Heywood, Leslie; Drake, Jennifer (coord.) (1997), Third Wave Agenda. Being Feminist,
Doing Feminism, Minneapolis: University of Minnesota Press.
Jarmusch, Jim (2004), «Jim Jarmusch’s Golden Rules», Movie Maker, 22-1-2004. (http://
www.moviemaker.com/directing/article/jim_jarmusch_2972 – consultado a 19-102010).
Editorial | 23
Kracauer, Siegfried (1977), Das Ornament der Masse, Frankfurt: Suhrkam.
Macedo, Ana Gabriela; Amaral, Ana Luísa (coord.) (2005), Dicionário da Crítica Feminista, Porto: Edições Afrontamento.
McRobbie, Angela (2010), «Pós-Feminismo e Cultura Popular», Comunicação & Cultura,
9, pp. 27-41.
Nicholson, Linda (1991), Feminism/Postmodernism, Nova Iorque: Routledge.
Owens, Craig (1983), «The Discourse of Others: Feminists and Postmodernism», in Hal
Foster (coord.), The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture, Seattle: Bay Press,
pp. 57-82.
Paglia, Camille (1990), Sexual Personae: Art and Decadence from Nefertiti to Emily
Dickinson, Nova Iorque: Vintage.
———— (2010), «Lady Gaga and the Death of Sex», The Sunday Times Magazine, 12
Setembro (http://www.thesundaytimes.co.uk/sto/public/magazine/article389697.ece
– consulta­­do a 13-10-2010).
Plant, Sadie (1993), «Beyond the Screens: Film, Cyberpunk and Cyberfeminism», Variant,
14, pp. 12-17.
Robinson, Lisa (2010), «Lady Gaga’s Cultural Revolution», Vanity Fair, 601, Setembro,
pp. 134-141; 183-185.
Sommers, Christina Hoff (1994), Who Stole Feminism: How Women Have Betrayed Women,
Nova Iorque, Simon and Schuster.
Suleiman, Susan (1991), «Feminism and Postmodernism: A Question of Politics», in Ingeborg Hoseterey (coord.), Zeitgeist in Babel: The Postmodernist Controversy, Bloomington: Indiana University Press, pp. 111-130.
Turkle, Sherry (2008), The Second Self: Computers and the Human Spirit, Cambridge,
Mass.: MIT Press (1988ı).