A Representação Iconográfica de Santa Teresa: mística e plástica

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A Representação Iconográfica de Santa Teresa: mística e plástica
A Representação Iconográfica de
Santa Teresa: mística e plástica na
Península Ibérica na época barroca
Dra. Célia Maia Borges
Universidade Federal de Juíz de Fora
Introdução
Os séculos XVII e XVIII conheceram várias representações plásticas e literárias de
Teresa de Ávila (1515-1582), retratada através de meios distintos: desenhos, pinturas,
esculturas, dentre outros. Os conventos, nomeadamente dos (as) Carmelitas Descalços (as), bem como as igrejas das Ordens Terceiras do Carmo, contaram com iconografias da santa de Castela. Até livros ilustrados se produziram a narrar as suas experiências místicas. A fama de santidade de Teresa circulou e ajudou a fixar esta imagem em
diversas partes do mundo católico: Espanha, Portugal, França, Itália e também em vários lugares da América Latina. Contribuiu para esse processo a difusão dos escritos da
fundadora das Carmelitas Descalças e o fato da sua santidade ser reconhecida pelos
religiosos do final do XVI e séculos seguintes, que espalharam o nome desta, por meio
de sermões e imagens, nos suportes os mais diversificados.
Pode-se entender esta rápida divulgação em razão do interesse suscitado à
época pela vida dos santos e a atração exercida pela espiritualidade mística, para
uma ampla parcela das sociedades ibéricas e mesmo nas colônias. Como mostrou
Professora adjunta do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora
[UFJF] e integrante dos programas de Pós-Graduação em História e em Ciência das Religiões desta mesma Universidade. A comunicação ora apresentada é resultado da pesquisa de
pós-doutoramento desenvolvido na Universidade Nova de Lisboa [Portugal] para o projeto:
Espiritualidade Mística e Solidão: o imaginário religioso das Carmelitas Descalças na Península Ibérica no séc. XVII.
Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada nasceu em Ávila no dial 28 de março de 1515.
Tomou o hábito carmelita em 1536 e em 1562 fundou o primeiro convento das carmelitas
descalças, em Ávila.
Teresa de Ávila foi beatificada em 1614 e canonizada em 1622.
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Silva Dias, uma grande quantidade de livros de alta espiritualidade circulou na
Península Ibérica durante esse período.
O clima religioso gerado à época da Contra-Reforma acentuou as busca pelas
experiências místicas. Desde a Baixa Idade Média que se vinham consolidando as
correntes de renovação religiosa baseadas numa busca mais intimista com Cristo. Uma
boa parte delas, herdeira do movimento espiritual conhecido como Devotio Moderna,
interagiu com correntes provenientes de outras partes da Europa, sobretudo da Itália.
O século XVI afirmou-se como o grande século dos místicos espanhóis: Francisco de Osuna, Bernardo Laredo, o beato Juan de Ávila, São Pedro de Alcântara,
Teresa de Ávila e outros mais, que deram origem a uma ampla literatura mística.
A busca pelos altos vôos espirituais andava a par com o interesse pela santidade.
As várias peças literárias, em especial as religiosas, que relatam como heróis aqueles que abandonavam tudo e abraçavam uma vida de privações, atestam a força
deste movimento. O surgimento de eremitérios, edificados em locais de difícil
acesso, onde se praticavam mortificações e a ascese como caminho da contemplação, faz parte de um mesmo fenômeno.
SILVA DIAS, José Sebastião da. Correntes de Sentimento Religioso em Portugal. (séculos
XVI a XVIII). Coimbra, Editora da Universidade, 1960.
De uma maneira geral, pode-se dizer que o fenômeno místico se caracteriza por uma atitude do espírito humamo em procurar aceder às realidades ocultas, como Deus, o divino,
a alma do mundo. Pode-se encontrar em numerosas religiões, sob as formas mais variadas,
desde o chamanismo até as religiões monoteístas. As diferentes formas da mística estão em
função dos indivíduos, de sua inserção social, cultural e religiosa. A passividade caracteriza
o mais freqüentemente a experiência mística. O crente se sente conduzido, pressente o
sinal, a presença de Deus. Alguns sintomas acompanham o fenômeno, tais como o êxtase,
as visões, os estigmas e a levitação. Cf. GERHARDS, Àgnès. Dictionannaire Historique des
Ordres Religieux. Paris, Fayard, 1998
Desde o início da história da Igreja católica, e mesmo antes dela, encontram-se vestígios da
vida contemplativa. Após os primeiros Padres da Igreja, São Clemente de Alexandria(m.217),
Santo Agostinho(354-430), que divulgaram o termo ao experimentarem a via unitiva, será
somente a partir da primeira metade do século XII, que ocorrerá uma sistematização da doutrina mística, com São Bernardo de Claraval (1091-1153), considerado o pai da mística ocidental cristocêntrica. O misticismo desenvolveu-se no período medieval em duas correntes básicas: uma especulativa, principalmente com os dominicanos, baseadas nas obras do
Psedo Dionísio, o Areopagita e Santo Alberto Magno (m.1280), procurando unir o intelecto
a uma atitude de fé, e a mística afectiva, que buscará o caminho do sensitivo, para a união
entre Deus e a alma . Mestre Eckhart (m.1366) seria responsável por criar uma corrente de
herdeiros de suas doutrinas, sistematizadas por Juan Tauler (1300-1361). Cf. RODRÍQUEZNÓBREGA, Janeth. La mística y el arte barroco. In: www.crítica.cl . 27/ 09/2006.
Ver a respeito TAVARES, Pedro Vilas Boas. «Caminhos e invenções de santidade feminina
em Portugal nos séculos XVII e XVIII. (Alguns dados, problemas e sugestões)». In: Via Spiritus, 3 (1996) 163-215.
A este respeito, ver FLOR, Fernando R. De la. El Jardín de Yavhé: La Ideología Del Nuevo
Espacio Eremítico En La Contrarreforma Española. In: De las Batuecas a las Hurdes. Fragmentos para una historia mítica de Extremadura. Badajoz: 1999.
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A Igreja católica, a partir da Contra-Reforma, via as experiências místicas com alguma cautela. Acompanhou atentamente os diversos casos, averiguou cada um desses
fenômenos e procurou separar os verdadeiros dos falsos místicos. Daí os vários processos contra embusteiras, pseudo-místicos e outras pessoas, comuns nos séculos XVI a
XVIII. Quem alcançasse o estatuto de santo ou santa gozava de prestígio no seu meio
social e tornava-se credor de ser consultado pelos mais diferentes motivos.
Teresa de Ávila e a espiritualidade mística
Teresa de Ávila viveu o clima de espiritualidade do seu tempo, impregnada
pelo imaginário da época. A espiritualidade teresiana é uma mescla de influências
antigas e recentes. Ela teve contatos com Frei Pedro de Alcântara (1499-1562), por
quem guardava uma grande admiração; leu vários livros de autores quinhentistas,
tais como O Terceiro Abecedário Espiritual, de Francisco de Osuna10, obra que
constituiu um marco na sua trajetória espiritual; Subida ao Monte Sión, de Bernardo Laredo e Arte de Servir a Deus, de Alonso de Madrid11, entre outros. Fundamental em sua formação foi Confissões12 de Santo Agostinho, que marcaria não só sua
espiritualidade como também sua escrita.
O caminho da alta espiritualidade não a afastou do objetivo de promover a reforma da ordem carmelita, o que gerou, não sem conflitos, a criação das Carmelitas Descalças com o propósito de resgatar a primitiva regra. Com o apoio de São João da Cruz,
que investiu na reforma do Carmelo masculino, e de outros religiosos, cujo papel foi
fundamental nesse processo, entre os quais Jerónimo Gracián, o movimento propagouse e, após cem anos sobre a ereção do primeiro convento dos Descalços Carmelitas, a
Espanha passou a ter cerca de uma centena de estabelecimentos de estrita observância.
A renovação no interior do Carmelo ia de encontro ao clima religioso da época que
resultou no aparecimento de novas ordens e congregações.
Teresa de Jesus, nome por que ficou conhecida no mundo religioso, redigiu a
sua auto-biografia, as Constituições que guiaram as casas conventuais, registrou o
seu percurso místico, as fundações de vários mosteiros do(a)s Carmelitas Descalço(a)s
e deixou ainda uma vasta correspondência epistolar que serviu de referência a
outros religiosos13. Sua escrita na Península Ibérica e nas colônias dos séculos XVII
Cf. Teresa de Jesus, «Livro da Vida», 30, 2. Obras Completas. São Paulo: Edições Loyola, 1995.
Em seu «Livro da Vida», 4, 7, conta que recebera o livro do tio, o qual ensinava a oração
de recolhimento. 11
«Livro da Vida», 12, 2, in Obras Completas.
12
«Livro da Vida», 9, 8.
13
Sobre Santa Teresa ver WEBER, Alison. «Teresa de Ávila. La mística feminina». In: MORAT, Isabel (dir.) & ORTEGA, Margarita, LAVRIN, Asunción, CANTO, P. Pérez (Coords.)
Historia de las Mujeres en España y América Latina. El Mundo Moderno. Madrid, Cátedra,
2006. Também do mesmo autor, Teresa of Ávila and the Rhetoric of Femininity. Princenton,
Princeton University Press, 1990.
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e XVIII atraiu acima de tudo mulheres – religiosas e beatas – no caminho da alta
espiritualidade. A força da sua imagem, de resto, impôs-se de tal forma aos grupos
católicos e ao imaginário religioso que não tardou a conquistar um lugar no panteão dos doutores da Igreja, embora para isso tivesse contado decisivamente a ação
de membros da ordem dos Carmelitas Descalços no século XVII que se empenharam em difundir a imagem da santa14.
A divulgação da sua imagem em várias partes da Europa católica, incluindo as
colônias, ajudou a consolidar o seu ideal de santidade entre os fiéis. Esta tarefa foi
facilitada pela linguagem do barroco, que forneceu os instrumentos necessários à
propagação da mensagem religiosa ao representar uma boa parte das suas experiências místicas. Santiago Sebastián afirmou que a arte do século XVII era uma arte
repleta de «febre interior», uma «paixão e um desejo de Deus até ao aniquilamento»15. São numerosos os quadros de várias personagens religiosas, pertencentes à
galeria das mais antigas da história da Igreja até ao período barroco, que aparecem
retratadas em suas experiências místicas: São Jerônimo, São Francisco de Assis,
Santo Ignácio de Loyola, São João da Cruz, entre outros.
Santa Teresa na iconografia barroca
O quadro de Teresa d´Avila executado em 1576 pelo carmelita descalço Juan de
la Miseria (Giovanni Narcucci) forneceu o modelo a inúmeras representações, por
se tratar do único retrato realizado ainda em vida da Santa de Castela. Uma pomba
inserida, depois do quadro estar finalizado, remete para as visões da reformadora do
Carmelo16. A edição de Los Libros de la Madre Teresa de Jesús, de 1588, revelou o
primeiro retrato gravado com base no mesmo modelo17. A circulação de retratos com
a cópia da estampa de Salamanca favoreceu o trabalho de fixação da sua imagem,
pelo menos dentro dos mosteiros carmelitas. O padre Gracián, primeiro provincial
da ordem, em maio de 1597 enviou vários retratos de Roma para Lisboa18, que se
Ainda que a sua imagem como doutora mística tenha sido veiculada no decorrer do século
XVII, foi somente em 1970, declarada Doutora da Igreja, tornando-se a primeira mulher a
receber tal honra, em decorrência das reformas geradas pelo Concílio Vaticano II. Cf. WEBER,
Alison. Teresa de Ávila. La mística femenina. MORANT, Isabel. (dir.); ORTEGA, M.; LAVRIN,
A.; CANTÓ, P.(Coords.).. In: Historia de las Muyeres en España y América Latina. El Mundo
Moderno. II. Madrid, Cátedra, 2006.
15
Contrarreforma y Barroco. Lecturas iconográficas e iconológicas. Madrid: Alianza Editorial, 1981, p. 61.
16
SOBRAL, Luís de Moura. Do Sentido das Imagens. Lisboa: Editorial Estampa. 1996, p. 26.
17
Idem, p. 25.
18
Padre Gracián em uma carta endereçada a uma carmelita dá ordens para que se «envie
metade das imagens às Irmãs de Lisboa, em Portugal» [Carta citada em Jean de la Croix,
L´Iconographie de Thérèse de Jésus, Docteur de l´Église, Ephemerides Carmiliticae, XXI,
1970, 1-2, pp. 219-260] Cf. Luís de Moura Sobral, op. cit, p. 26, após Almeida, História da
Igreja em Portugal, vol.. II, p. 184.
14
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converteriam em referências para as demais reproduções. Jerônimo Vierix compôs a
gravura de Santa Teresa, recriando o ambiente de uma sala, com uma mesa ao fundo,
um livro aberto, um tinteiro e à esquerda, recuada, uma roca e um fuso, além de
inscrições latinas e castelhanas19. A pomba também figura na cena e a ela a santa
dirige uma prece que o artista representou por caracteres em latim. Além disso, contornando a gravura, inseriu alguns dados da santa espanhola.
Um conjunto de vinte e cinco gravuras circulou no mundo católico. Foram
produzidas por Adriaen Collaert (1560-1618) e Corneille Galle (1576-1650) para a
obra Vita B. Virginis Teresiae a Iesu Ordinis Carmelitarum, publicada em Amberes,
em 1613, por ocasião da beatificação de Santa Teresa. Contém ilustrações e legendas em latim com referências a aspectos da vida da santa e suas visões20. Estas
imagens tornaram-se o grande modelo para as composições que vieram a seguir
tanto na Europa Católica como nas antigas colônias ibéricas.
Em Portugal, uma artista do século XVII, Josefa de Óbidos, destacou-se por
pintar várias obras com o tema de Santa Teresa21. É provável que esta artista, segundo Luís de Moura Sobral, se tenha inspirado nas gravuras de Adriaen Collaert
(1560-1618) e Corneille Galle (1576-1650) para produzir as séries que se encontram hoje na Igreja Paroquial de N.ª S.ª da Assunção, em Cascais[arredores de
Lisboa]22. A gravura intitulada Doutora Mística, Inspirada pelo Espírito Santo, de
autoria daqueles artistas, mostra Santa Teresa sentada a escrever, pelo sopro do
Espírito Santo, representado como de costume por uma pomba. [fig. 1] Para compor o ambiente os artistas inseriram uma janela, um banco e livros sobre a mesa23.
A cena de Josefa de Óbidos é mais fechada, pois retrata Teresa de meio corpo,
sentada a escrever, com a pomba ao alto, personificação do Espírito Santo, rodeado
de quatro anjinhos. Compõem a cena alguns objetos, tais como um terço, livros e
papéis dispostos sobre a mesa. Josefa acrescentou a roca atrás da santa, peça que a
reformadora carmelita menciona nas Constituições, ao referir-se ao modo como
haviam de viver as monjas. [fig. 2]
Em outras representações esta peça aparece tal como na gravura de Jerônimo
Vierix. Josefa pinta Teresa d’Ávila com um rosto jovial, contrastando com a imagem de Vierix e mesmo com a primeira imagem do carmelita Juan de la Miséria,
que a retratara numa idade mais madura. José de Ribera compôs a cena, em 1630,
também com Teresa de rosto ainda jovem, próxima a uma escrivaninha, com papéis e livros colocados sobre a mesa, caneta no tinteiro, olhar ao alto como que a
SOBRAL, op. cit., p. 25
MUELA, Juan Carmona. Iconografia de los Santos. Madrid: Istmo, 2003, p. 436.
21
Josefa de Ayala e Cabrera, filha de pai português, nasceu em Sevilha em 1630. Viveu em
Coimbra e depois em Óbidos. Faleceu em 1684. Assumiu destaque na pintura portuguesa
seiscentista. Sobre Josefa de Óbidos consultar o livro coordenado por Vitor Serrão. Josefa de
Òbidos e o Tempo Barroco. Lisboa: TLP, 1993.
22
SOBRAL, Luís de Moura. Do Sentido das Imagens. Lisboa: Editorial Estampa 1996. p. 31
23
Ídem.
19
20
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receber inspiração divina, rodeada por os anjos24. Zurbarán também representou a
cena que consagrou a santa de Castela como Doutora Mística no quadro que se
encontra na sacristia da catedral de Sevilha e, como modelo, utilizou o retrato pintado por frei Juan de la Miseria. O tema explora a inspiração divina nas obras de
Teresa d’Avila e orienta a composição de grande parte das imagens escultóricas
que circularam na Península Ibérica e na América. Ou seja, Teresa a segurar um
livro com a mão esquerda e uma pena de caneta na direita, de pé com o olhar dirigido para o alto e uma pomba sobre o ombro direito, enquanto elementos representativos da sua inspiração divina25.
As vinte e cinco gravuras produzidas por Collaert e Galle trazem a marca dos
fenômenos místicos presenciados pela Santa. Talvez elas tenham sido orientadas
pela Madre Ana de Jesus, carmelita descalça, pois foi a responsável pela publicação dos trabalhos26. Uma cena famosa que imortalizou a figura da filha ilustre de
Ávila no imaginário religioso é o quadro A Transverberação de Santa Teresa, representado por vários artistas, dentre eles os já mencionados Collaert e Galle, em
1613, e também por António Vierix, provavelmente na segunda década de Seiscentos. Bernini seria responsável, através da composição de sua escultura, por conferir
um tom erótico ao fenômeno presenciado pela santa27. Josefa de Óbidos compôs
um belo quadro sobre o tema, contudo abandonou a gravura de Collaert e Galle28
[fig. 3]. Isso suponho pelo fato de estes artistas terem invertido a posição do anjo
que desfere o golpe, o que contrariava a descrição da santa sobre a visão:
Quis o Senhor que eu tivesse algumas vezes esta visão: eu via um anjo perto
de mim, do lado esquerdo, em forma corporal [...]. O Senhor quis que eu o
visse assim: não era grande, mas pequeno, e muito formoso, com um rosto tão
resplandecente que parecia um dos anjos muito elevados que se abrasam.
Deve ser dos que chamam querubins, já que não me dizem os nomes [...]. Vi
que trazia nas mãos um comprido dardo de ouro, em cuja ponta de ferro
julquei que havia um pouco de fogo [...]29. (grifo meu)
O tema da transverberacão é um dos mais importantes da iconografia teresiana,
eleito para o estandarte dedicado à santa nas festas celebradas em Roma na época da
sua canonização decretada por Gregório XV, em 162230. Para representar os dois vérMuseu de Belas Artes, Sevilha, Inv. n. 90., óleo sobre tela 131 x 106cm, 1630.
A Espanha produziu belas imagens, onde destacam-se as de Alonso Cano; de José de Mora
e de Gregorio Fernández.
26
SOBRAL, op. cit., p. 31.
27
BERNINI, Jean Lorenzo, Êxtase de Santa Teresa, 1647-1652. Roma, Santa Maria de la
Victoria.
28
SOBRAL, op.cit., p. 34.
29
Teresa de Jesús, «Livro da Vida», cap. 29, 13, Obras Completas. São Paulo: Edições Loyola, 1995, p. 194.
30
CUADRO, Fernando Moreno. «San Juan y Santa Terea transverberados en el Carmelo».
In: Iconografía Y Arte Carmelitanos, Granada: Junta de Andaluzia; Madrid, Edición Turner
24
25
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tices do Carmelo, o primitivo e o dos Descalços, Gregório Fosman compôs uma gravura dividida em dois níveis31. A parte inferior ilustrou com cenas da vida de Elias,
apoiando-se na narrativa bíblica do I.º Livro dos Reis, 17, 18 que, segundo a tradição
carmelitana, seria o responsável pela ereção da ordem. Na superior inseriu os dois
reformadores, Teresa de Ávila e São João da Cruz, cada qual em um lado da cena,
atingidos pelos dardos dos anjos.
Um outro quadro, de autoria de Josefa de Óbidos, tem como tema uma visão
de Santa Teresa quando esta é possuída pela sensação de ser vestida com uma
roupa branca e receber um colar da Virgem e de S. José32 [fig. 4]. Parece que a artista se inspirou também na gravura de Collaert e Galle para elaborar o seu quadro,
ainda que tenha mantido as características de seus trabalhos restantes, nos quais
foca a cena principal, sem nenhuma ambientação, somente com os anjos a circunscreverem o motivo central. Poder-se-ia supor que a artista tenha visto um outro
quadro, com este mesmo motivo, de autor desconhecido, pintado para a Capela do
Convento das Albertas. Neste último, como no de Josefa, José tem uma aparência
bem mais jovem do que a dos artistas dos Países Baixos.
Outro tema relativo ao fenômeno místico é o de Santa Teresa diante da Trindade, concebido por Collaert e Galle, em 1613, a partir de outra visão da santa de
Castela. Josefa de Óbidos iria refazer esta cena mundando a composição de Collaert e Galle, obedecendo ao critério adotado em seus outros quadros sobre Teresa
de Ávila. Em outras palavras, além de centralizar a cena nos elementos principais,
ela altera o lugar das personagens, com Jesus à esquerda, ao contrário da montagem estabelecida pelos artistas flamengos.
Importante também são as ilustrações, em livros, das suas vivências espirituais,
no caminho da contemplação. A mística barroca, na segunda metade do século
XVII, como afirmou Santiago Sebastián, expressar-se-á por meio de emblemas e
alegorías33. Neste sentido o livro de Frei Juan de Roxas y Auxa, publicado em Madrid no ano de 1677, é um exemplo. Com as representações alegóricas do castelo,
distribuídas em sete faixas, ele retrata suas experiências descritas nas Moradas, com
Santa Teresa à porta explicando o conteúdo do livro que tem nas mãos34. Cada
faixa encerra inscrições elucidativas sobre o caminho da alma, simbolizada numa
pomba, nos vários graus de oração.
Outras tantas publicações saíram acompanhadas de imagens remetendo para
o caminho espiritual da santa de Castela. Os seus livros foram muitas vezes ilustrados com a cena que a imortalizou como Doutora mística. Veja por exemplo a
Libros, s/d, p. 56.
31
Ìdem, p. 56.
32
Teresa de Jesús, «Livro da Vida», 33, 14.
33
Contrarreforma y barroco, op. cit., p. 77.
34
ROXAS Y AUXA, Frei Juan. Representaciones de la verdad vestida, místicas, morales y
alegóricas sobre las Siete Moradas de Santa Teresa, Madrid, 1677 (apud SEBASTIÁN, S.
Contrarreforma Y barroco, op. cit. p. 78).
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edição de 1616, de Los Libros de la B. Madre Santa Teresa de Jesus, Lisboa, 1616,
realizada por iniciativa de Antonio Alvarez35. Vale ressaltar que a influência de Teresa de Ávila em Portugal foi de tal envergadura que sua imagem foi projetada também
em poemas, obras religiosas, biografias, todas a exaltar a escritora mística36.
Conclusão
As representações plásticas dos santos e eremitas iam de encontro a um imaginário coletivo. A Igreja Católica procurou controlar as produções no sentido de
que somente os santos reconhecidos pela alta hierarquia eclesial fossem representados e merecedores de cultos37. Os demais eram banidos dos templos e demais
locais de devoção. Em decorrência do grande número de santos e santas surgidos
à época, o papa Urbano III (1623-1644) decretou que quem fosse objeto de culto
não poderia ser canonizado. A Igreja procurava, desta maneira, exercer controle
sobre o processo de reconhecimento da santidade e assegurar esse privilégio através da canonização, preferencialmente a religiosos e doutores, após ser confirmada
a ortodoxia de suas doutrinas.
Depois da canonização, a Igreja procedia a divulgação da vida do santo junto
do mundo cristão, com textos e representações visuais a fim de alcançar o maior
número de fiéis. Neste sentido, as artes assumiram um papel fundamental de fortalecimento da fé e demonstrou a capacidade dos santos enquanto intercessores
entre os homens e o divino. As representações plásticas enfatizavam, sobretudo, as
cenas dos milagres, os dons sobrenaturais, as experiências visionárias. Emile Male,
em uma obra clássica da primeira metade do século XX, chamara a atenção para a
figuração das experiências visionárias como uma novidade da época38.
As representações plásticas, voltadas para as temáticas místicas, alcançaram o
seu ápice no século XVII. Parte dessas representações foi encomendada pela alta hierarquia da Igreja, ou por membros das ordens religiosas, ou por leigos associados a
ordens terceiras, e ainda por irmandades, com o objetivo de divulgar as imagens dos
santos e incentivar a sua devoção. As representações dos novos santos no momento do
GOMES, Pinharanda. Caminhos Portugueses de Teresa de Ávila. Braga, Ed. Pax, 1983, p. 37.
Ídem. 37
A obra publicada de São Carlos Borromeo, «Instructiones fabricae et supellectilis ecclesiasticae» (1577) é a este respeito um exemplo. Este livro aborda aspectos fundamentais para
a concepção das imagens, o espaço sagrado, o uso de alfaias litúrgicas e paramentos. O
capítulo XVII dá orientações aos bispos fornecendo prescrições rigorosas sobre o trato a ser
dado às imagens e pinturas sacras. Ainda informa que caso os artistas contrariassem as regras estabelecidas seriam punidos bem como os religiosos responsáveis pela exposição nas
igrejas. Ferreira-Alves, Natália. «Iconografia e Simbólica cristãs. Pedagogia da Mensagem».
Theologica, Braga, 2.a série, 30,1, 1995, pp. 59 .
38
MÂLE, Emile. El Arte Religioso de los siglos XII al XVIII, México, Fondo de Cultura Económica, 1966, p. 192.
35
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êxtase conferiam legitimidade à Igreja e reforçavam o seu poder sobre os fiéis, exatamente quando o embate com os reformadores protestantes se tornou crucial.
No processo de construção da imagem religiosa, os escritos dos místicos revelaram-se fundamentais. Santa de Ávila é, nesse sentido, um caso exemplar. Ao
traduzir formalmente as suas experiências, ela forneceu as chaves interpretativas de
que os artistas precisavam para idear as suas representações plásticas. Ao descrever
as visões e retratar imagens de santos, Teresa de Ávila exprimia o que havia de mais
subjacente no imaginário coletivo e projetava assim, através destas construções
imaginárias, os fatos sobrenaturais vivenciados. Desta forma, ela forneceu um conteúdo simbólico que os artistas traduziam, reafirmando um imaginário coletivo
presente naquela sociedade.
Imagens39
Fig. 1: Adriaen Collaert e Corneille Galle, Santa Teresa, Doutora
Mística Inspirada pelo Espírito Santo, gravura a buril, 1613.
Em concordância com as regras estabelecidas para a publicação do trabalho, foram inseridas somente quatro imagens.
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Fig. 2: Josefa de Óbidos, Santa Teresa Doutora Mística, Inspirada pelo
Espírito Santo, óleo sobre tela, 1,105 m x 1,465 m, 1672, Igreja Paroquial
de N.ª S.ª da Assunção, Cascais, Portugal.
Fig. 3: Josefa de Óbidos, A Transverberação de Santa Teresa, óleo sobre
tela, 1,585 m x 1,1130 m, 1672, Igreja Paroquial de N.ª S.ª da Assunção,
Cascais, Portugal.
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Fig. 4- Josefa de Óbidos, Santa Teresa recebendo o colar, óleo sobre tela, 1,66 m x 1,435
m, 1672, Igreja Paroquial de N.ª S.ª da Assunção, Cascais, Portugal.