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O Projeto de Justiça Criminal do Novo Governo Brasileiro Texto especialmente preparado para a Revista Sistemas Judiciales. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho * Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR); Mestre em Direito Público (UFPR); Doutor em Direito Processual Penal (Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Coordenador eleito do Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (Mestrado e Doutorado), em Curitiba, Paraná, Brasil. falta mail El nuevo gobierno brasilero, comandado por Luiz Inázio Lula da Silva, vino acompañado de una gran esperanza del pueblo. Por cierto, era el primer gobierno con aspecto de izquierda y un discurso compatible con los anhelos populares. Esto se reflejaba en el proyecto de justicia criminal. El discurso y el modo de proceder, con todo, están matando las esperanzas. Todo lleva a creer que no se cambió la mentalidad; que se va a insistir con el discurso de tolerancia cero, en la estructura de un sistema inquisitorio de proceso penal; y las reformas no alcanzan siquiera a la terminología. Contra la furia de la legislación de terror, lo único que surgió es el Movimiento Antiterror. 1. INTRODUÇÃO O governo de Luiz Inácio Lula da Silva representou, para uma larga parcela da população brasileira, a esperança de ver não só a “esquerda”1 chegar ao poder central no Brasil mas, de fato, implementar o discurso que sempre fez o Partido dos Trabalhadores. Democracia, sabe-se bem, é, entre outras coisas, fruto de um processo lento e difícil, que cobra um alto grau de civilidade. Não é por outro motivo que imperaram na vitória as forças de “direita” nas eleições que levaram ao poder Fernando Collor de Mello e, por duas vezes seguidas, Fernando Henrique Cardoso, aquele um perverso por definição, logo metido em questões de corrupção que colocou em risco seus próprios patrocinadores, os mesmos que lhe impuseram a renúncia; e este, F.H.C., um conhecido professor e sociólogo de “esquerda” seduzido, literalmente, pelo poder, famosíssimo por desde o início ter deixado, em frase curta e sincera, a razão pela qual tinha vindo: “esqueçam o que eu escrevi!”. Estava morta a esperança de um Brasil onde as mudanças pudessem ter o viço do novo. Ademais, foi um tempo onde se viveu a implantação das regras do Consenso de Washington, a cartilha neoliberal para os países subdesenvolvidos. Em diversas oportunidades chegou a ser difícil acreditar que se podia implementar inovações tão desastradas para o povo -e sem maiores conseqüências negativas-, tudo sob as bênçãos dos senhores do poder. A única força de resistência séria e coerente seguia sendo Lula e seus companheiros do PT, às vezes com discursos que sequer conseguiam o espaço necessário nos 1 Em que pese o desgaste do termo, é ainda válido, em se tratando de experiência única, não fosse o fato de que não há outro menos ruim para se colocar no lugar. 118 Sistemas Judiciales meios de comunicação. As derrotas eleitorais, assim, eram inevitáveis. O exercício de poder, contudo, é a mais regular das gestações, mormente quando movido a imbrogli verbais. Por isso ganhou Lula, como teria ganho qualquer outro que se mostrasse como diverso, como alternativa possível. Dal dire al fare c’è in mezzo il mare, porém; e as concessões discutível se eram necessárias, a começar por aquela de ceder a Vice-presidência ao Partido Liberalhaviam sido tantas que, em sã consciência, qualquer um haveria de desconfiar das reais intenções que moviam o bloco de oposição. Com a vitória esmagadora nas eleições, retornou a esperança mas, passado um semestre de exercício do poder, o governo Lula dá sinais de debilidade em muitos campos e, em particular, nesse da Justiça Criminal a situação parece ser calamitosa. 2. CÂMBIO DE MENTALIDADE Mudou o governo, mas era preciso mudar também a mentalidade, tributária de um discurso passado que apontava em tal direção. O imaginário produz a esperança, mas a destrói quando o discurso não encontra eco no real: eis o risco que se está a correr no Brasil. Até agora, a sensação – desconfortável- é de não ter havido qualquer mudança, quiçá no melhor estilo de Lampedusa: mudar para que tudo fique como está! Salvo aos desavisados por completo, depois de tanta pregação restou claro que se havia promovido, pelo pensamento neoliberal, umcâmbio epistemológico; que passara a imperar a chamada ação eficiente, embora os efeitos se tivessem feito sentir no campo da ética. O Estado foi, paulatinamente, tornando-se mínimo; o Direito, forte empecilho à implantação do modelo foi, em grande velocidade, sendo desregulamentado; e o cidadãocooptado para estar alienado (em face dos seus interesses, egoisticamente, serem colocados em primeiro lugar) quanto aos problemas criados pela dita implantação ou, por outro lado, marchar ao lado dos exércitos do deus mercado, a ordem natural espontânea por excelência e modelo a ser seguido. Com isso, acirrou-se a competição e se está prestes a ver sucumbir a solidariedade, marca registrada de um Brasil construído, em grande escala, por imigrantes, muitos dos quais miseráveis e que nele encontraram a forma de fazer ver que inteligência não se confunde com escassez de recursos; e que nos momentos mais difíceis, neste espaço panacionalista, sempre houve lugar para o fraternu. Nunca houve, portanto, tanta representação narcísica; nunca se deslizou tanto no mero imaginário. Sem a marca do registro do simbólico, sabese bem, não há como construir um futuro melhor, porque se não deseja o suficiente (justo pela falta de limites) para produzir câmbios de vulto. A vida, assim, segue estagnada, em um marasmo preocupante. O problema -a história já demonstroué que o homem, clivado por natureza, não resiste situação do gênero por muito tempo e acaba por promover a revolta do real contra o imaginário: a fome é um bom exemplo disso! A maneira de armar algo diferente remete à consolidação democrática; e ela não se faz sem um respeito incondicional ao princípio da dignidade da pessoa humana. Para tanto, faz-se imprescindível um câmbio de mentalidade, com a superação de uma base epistêmica promotora de exclusão social. Isso, até agora, no governo Lula, não se viu. Ao contrário, alguns indicativos apontam na direção oposta, dentre os quais o mais relevante parece ser a manutenção, na área econômica, do controle, a qualquer custo, dos índices inflacionários, mesmo que em detrimento do crescimento social. Emir Sader, de seu lugar de um dos maiores intelectuais do país, deixa poucas dúvidas ao tratar do cotejo público versus mercantil: “A construção de uma democracia social (uma outra forma de falar da superação do neoliberalismo) no Brasil requer uma reforma profunda do Estado brasileiro, refundando-o em torno da esfera pública. Mas, antes de tudo, requer a reposição do conjunto dos debates políticos e teóricos em torno da polarização público/mercantil. As primeiras orientações do governo Lula não parecem tampouco inovar nesse plano, desqualificando o servidor público, não privilegiando o fortalecimento da educação e da saúde públicas, perdendo a chance de fazer uma reforma tributária socialmente justa, desconhecendo a centralidade da esfera pública e o tema estratégico da reforma democrática do Estado, de que o orçamento participativo, em modalidades inovadas, é elemento essencial. A saída do modelo neoliberal não depende só de novas políticas econômicas, mas de se assumir Sistemas Judiciales 119 O Projeto de Justiça Criminal do Novo Governo Brasileiro - J. Nelson de Miranda Coutinho a centralidade do público e a luta contra a mercantilização – chave da democracia social, da prioridade do social com que se comprometeu o novo governo. Mudança implica mudança econômica, política, social, cultural, mas também mudança de campo teórico de análise e de referência.”2 O novo, como se sabe, tem como inimigo mortal as velhas práticas, isto é, as verdades consolidas. Daí impor uma batalha diuturna, registrada na História em inúmeras passagens. Em todos os casos, porém, é objeto de tenaz resistência. Escravizam-se as mentes ao passado para estabelecer obstáculos intransponíveis ao presente e à construção de um futuro diferente e melhor. Por isso, sem ruptura o futuro se inscreve como sombrio. O Direito, não pela tradição mas pelo apego a um imaginário de segurança jurídica -que sempre foi falso-, é uma das matrizes da resistência. Os ditos operadores jurídicos não têm conseguido domar a dogmática jurídica para, a partir dela e pela crítica, produzir um saber interdisciplinar e transdisciplinar. Deste modo, tem-se operado, no Brasil, com um saber fixado pelo descompasso entre o novo e o velho, com prevalência deste. Em suma, tem-se, por mais absurdo que possa parecer, adaptado o direito novo àquele velho, o que ganha foros eloqüentes quando se trata da Constituição da República, em vigor há 15 anos (desde 05.10.1988) e sem conseguir se efetivar. É a “velhificação” do direito; não fosse, antes, a supressão sistemática de direitos e garantias constitucionais; de conquistas que se não admite mais voltar atrás. Um projeto de Justiça Criminal veramente democrática dependeria, sem dúvida, de uma nova mentalidade3 , mormente do Governo. Não é, porém, o que se tem visto. Réus injustiçados em processos criminais durante o regime militar, muitos dos ocupantes dos principais cargos do atual governo parecem afetados por amnésia aguda. Quando o assunto é Justiça Criminal, esquecem-se do sucedido e respondem, de modo tosco, já no primeiro reclamo do ufanismo midiático, com o endurecimento da repressão penal, algo para ruborescer alguns dos mais sanguinários do regime castrense. Pobre país que ainda não fez a sua revolução francesa e, pior, sequer leu Beccaria. Os réus, porém, agora, na extragrande maioria das vezes, são os excluídos, para os quais não se tem tido bons olhos. O panem et circenses de Juvenal, travestido no pós-moderno Tittytainment , de Zbigniew Brzezinski, faz a sua parte. Ao não-consumidor insatisfeito com as migalhas e a diversão resta pouco a fazer, ou seja, anestesiá-lo pela submissão a uma Justiça Criminal dura, sheriff implacável das forças da Ordem contra o mal, à qual não interessa, de um modo geral, indagar sobre as causas do crime. Deste modo, o âmbito de validez de Ferrajoli não encontra espaço; antes, é uma ameaça. 3. RESISTE O SISTEMA INQUISITÓRIO Para um projeto de Justiça Criminal dura e insensível, nada melhor que a manutenção do sistema inquisitório. No Brasil, como em todos os países do mundo, depois de superados os sistemas puros (inquisitório e acusatório), restou um sistema dito misto. Não se trata, como se sabe, de um vero e próprio sistema, mas do resultado da inclusão, em um dos dois clássicos, de elementos trazidos do outro. E isso por uma questão primária: desde Kant e sua arquitetônica da razão pura que sistema é a “unidade de conhecimentos diversos sob uma idéia”.4 Ora, os temas se colocam em conjunto por conta de um princípio unificador (inquisitivo ou dispositivo, respectivamente), o qual, sendo “uma idéia” e, portanto, único, não admite divisão. Outra coisa, ademais, não oferece o conceito de princípio: “A par de se poder pensar em princípio (do latim, principium) como sendo início, origem, causa, gênese, aqui é conveniente pensá-lo(s) como motivo conceitual sobre o(s) qual(ais) funda-se a teoria geral do processo penal, podendo estar positivado (na lei) ou não. Por evidente, falar de motivo conceitual, na aparência, é não dizer nada, dada a ausência de um referencial semântico perceptível aos sentidos. Mas quem disse que se necessita, sempre, pelos significantes, dar conta dos significados? Ora, nessa impossibilidade é que se 2 Sader, Emir. Público versus mercantil. Folha de São Paulo. 19.06.03, p. A3. 3 Binder, Alberto M. Los oficios del jurista: la fragmentación de la profesión jurídica y la uniformidad de la carrera judicial. In Sistema judiciales. Publicación semestral del Centro de Estudios de Justicia de las Américas – CEJA, Buenos Aires : Inecip, 2001, Año 1, nº 1, p. 69-70: “Por lo tanto, el problema y la solución es básicamente un problema de personas. Si ellas no cambiam su ‘mentalidad’, entonces no habrá reforma judicial.(...) Lo que debe cambiar son los modos de interacción entre los sujetos y las reglas que regulam o influyen de muchas maneras en esa interacción.(...) Por ello la dimensión de los recursos humanos es incapaz por sí sola de producir algún combio ya que resulta altamente dependiente de patrones culturales y organizacionales muy rígidos, que moldean la ‘mentalidad’ en el proceso de adaptación.” 4 Kant, Immanuel. Crítica da razão pura. 4ª ed. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa : Gulbenkian, 1997, p. 657. 120 Sistemas Judiciales aninha a nossa humanidade, não raro despedaçada pela arrogância, sempre imaginária, de ser o homem o senhor absoluto do circundante; e sua razão o summum do seu ser. Ledo engano!; embora não seja, definitivamente, o caso de se desistir de seguir lutando para tentar dar conta, o que, se não servisse para nada, serviria para justificar o motivo de seguir vivendo, o que não é pouco, diga-se en passant. De qualquer sorte, não se deve desconhecer que dizer motivo conceitual, aqui, é dizer mito 5 , ou seja, no mínimo abrir um campo de discussão que não pode ser olvidado mas que, agora, não há como desvendar, na estreiteza desta singela investigação. Não obstante, sempre se teve presente que há algo que as palavras não expressam; não conseguem dizer, isto é, há sempre um antes do primeiro momento; um lugar que é, mas do qual nada se sabe, a não ser depois, quando a linguagem começa a fazer sentido . Nesta parca dimensão, o mito pode ser tomado como a palavra que é dita, para dar sentido, no lugar daquilo que, em sendo, não pode ser dito. Daí obig-bang6 à física moderna; Deus à teologia; o pai primevo a Freud e à psicanálise; a Grundnorm a Kelsen e um mundo de juristas, só para ter-se alguns exemplos.”7 O sistema brasileiro segue sendo tendencialmente (eis aí o adjetivo misto) inquisitório porque seu núcleo (o princípio) aponta para uma gestão da prova comandada pelo juiz. “È falso che método inquisitório equivalga a processo senza attore: nell’ordonnance criminelle 1670, monumento dell’ingegno inquisitoriale, il monopólio dell’azione spetta agli hommes du roi”.8 O mais complicado, é sintomático, segue sendo fazer ver aos operadores jurídicos que os elementos secundários (existência de partes; acusação autônoma por órgão diverso do juiz; contraditório, prisão cautelar como regra, etc), embora relevantes, não têm o condão de fornecer o núcleo do sistema e, com isso, não se consegue marchar para uma reforma que aponte, efetivamente, para uma democracia processual. Desde este viés, a Justiça Criminal não encontrou -e nunca vai encontrar- um espaço para efetivar a Constituição da República, a começar pelo due process of law. Haver-se-ia, assim, de ouvir a Alberto Binder9 e Julio Maier10 que, na articulação de tantos anteprojetos de códigos de processo penal para os países da América Latina, nunca se outorgaram a mínima possibilidade de confundir as coisas. Uma certa razão brasileira, caudatária de um pensamento eurocentrista, não tem olhos para os vizinhos mas insiste em ver o Rio de Janeiro como se New York fosse. Não é de estranhar que os corifeus do neoliberalismo da Justiça Criminal venham pensando tanto em Tolerância Zero 11 ; e queiram fazer políticos inescrupulosos tentar aplicá-la mesmo com um Estado Mínimo. Faz-se pilhéria, por evidente, da inteligência nacional; ou se expõe, como sintoma, uma imensa ignorância. 4. FALTA SINCRONIA TERMINOLÓGICA O entrave às reformas, por outro lado, vai além; e diz respeito um problema crônico vivido pelo Direito Processual Penal brasileiro: a falta de sincronia terminológica quanto aos conceitos fundamentais, supondo-se que há um domínio. Tal suposição, sem embargo, tem-se mostrado falsa. Afinal, há falta de sincronia quantos aos conceitos mas, mais grave, quanto aos referenciais semânticos isso também acontece em grande escala. E aí começa um dos maiores suplícios da via-sacra do Direito Processual Penal brasileiro. Ora, a confusão quanto aos conceitos foi determinada, em grande parte, pela influência – maléfica- dos sistemas processuais europeus e, máxime, do italiano, centrado no Codice Rocco, de 1930 (uma adaptação, como se sabe, do modelo oferecido pelo Código de Napoleão de 1808) e construído pelas mãos fascistas e hábeis de Vincenzo Manzini. Com uma investigação preliminar 5 Não se desconhece a importância fundamental, quanto à noção de mito, de Claude Lévi-Strauss, mormente à Antropologia; de Carlo Ginzburg, mormente à História; de Sigmund Freud e Jacques Lacan, mormente à psicanálise, assim como tantos outros nomes vitais ao conhecimento humano. Sem embargo, para o Direito, quiçá o nome imprescindível, nesta matéria, seja o de Pierre Legendre, principalmente nas Lecciones IV : el inestimable objeto de la transmisión - estudio sobre el principio genealógico en Occidente. Trad. de Isabel Vericat Núñez, México : Siglo Veintiuno, 1996, em especial p. 100 e ss. 6 Delineado magistralmente por Agostinho Ramalho Marques Neto no Curso de Extensão Universitária realizado na Faculdade de Direito da UFPR, em Curitiba, entre 21 e 25 de setembro de 1998, sob o título “Ética e lei: uma leitura da Antígona de Sófocles”. 7 Coutinho, Jacinto Nelson de. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. In Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Curitiba : UFPR, 1998, p. 163-4. 8 Cordero, Franco. Guida alla procedura penale. Torino : Utet, 1986, p. 47: “les procès seront porsuivis à la diligence et sous lê nom de nos procureurs.” (Tit. III, art. 8º). 9 Binder, Alberto M. Introdución al derecho procesal penal. 2ª ed. Buenos Aires : Ad-Hoc, 2002, p. 97 e ss. 10 Maier. Julio B. J. Derecho procesal penal. 2ª ed. Buenos Aires : Editores del Puerto, 1999, p. 259 e ss.; Maier, Julio B. J., Ambos, Kai, Woischnik, Jan. Las reformas procesales en América Latina. Buenos Aires : Ah-Hoc, Konrad Adenauer Stiftung, Instituto Max Planck, 2000. 11 Não é outro o pensamento ingênuo de Catherine Coles, em entrevista sob o título “É preciso combater pequenos delitos para reduzir a violência”, querendo fazer crer que seu “Fixing Broken Windows” (escrito com o marido George Kelling) possa ser uma receita para o Brasil. (Folha de São Paulo. 23.06.03. p. A12). Nesta hora é preciso pensar que o orçamento do Departamento de Polícia de Nova Iorque foi, em 1999, 2,6 bilhões de dólares (Wacquant, Loïc. As prisões da miséria. Trad. de André Telles. Rio de Janeiro : Zahar, 2001, p.28), fato que, por si só, olhando-se para as estruturas brasileiras, torna qualquer comparação ou tentativa de aplicação imediata vergonhosamente ridícula. Sistemas Judiciales 121 O Projeto de Justiça Criminal do Novo Governo Brasileiro - J. Nelson de Miranda Coutinho comandada pelo Ministério Público ou pelo Juiz, da notitia criminis desencadeava-se o processo (como se entendeu mais tarde), mas se eliminava a ação vera e própria, com a intelecção que se tinha desde a polêmica Windscheid versus Muther. Era sintomático, assim, a permanência do modelo praxista, marcado por uma ritualística ideologicamente bem definida desde o sistema inquisitório puro: um processo penal praticado como mecanismo de punição, algo de todo incompatível com o espírito da modernidade onde o cidadão conta alguma coisa. Confunde-se, assim, ação e processo; processo e procedimento; processo e autos; ação e pretensão; poder e dever; dever e obrigação; condições para acionar e condições para proceder; pressupostos processuais de existência e pressupostos processuais de validade; despacho e decisão interlocutória; despacho e sentença; decisão interlocutória e sentença; e assim por diante, numa cadeia que só faz assustar. O problema é que quando não há uma mínima paz doutrinária, é do lugar do poder que acabam vindo, em ultima ratio, as normas, como expressão das regras contidas na lei. A jurisdição, da sua parte, faz o seu papel e, naturalmente, em face do vazio criado acaba por construir um saber fragmentado e, não raro, em descompasso com a Justiça. Seria de estranhar, porém, se assim não fosse. Os homens são construídos pela história mas a constroem também, refletindo o seu tempo. São homens, afinal; não máquinas. E como tal decidem -por mais que se queira evitar- casuisticamente. O resultado de tudo isso é palpável (re non verbis): as prisões seguem lotadas de pobres e vazias de ricos quando, em verdade, deveriam albergar os culpados; e só eles, qualquer que fossem. Além do mais, com uma base teórica extremamente carente, por razões históricas -entre outras- importou-se do Direito Processual Civil muitos elementos que não têm qualquer serventia no Direito Processual Penal, a não ser a de ajudar a confundir ainda mais e manter o status quo, como que fornecendo uma camisa-de-força da qual não se consegue desvencilhar o modelo. 12 Problema do gênero afeta a todos, mas não há que duvidar serem os cultores do Direito Processual Penal os maiores responsáveis pela situação. A superação dela não é simples, mas parece inarredável a construção de um saber crítico, marcado pela interdisciplinaridade e pela transdisciplinaridade. Afinal, não há o que temer, mesmo porque o tempo do positivismo legalista já se foi, por conta de um espaço democrático com o qual é inconciliável. 5. MOVIMENTO ANTITERROR A crise ética que assola a sociedade brasileira, com a face que tem hoje, é conseqüência direta embora não seja a única- da implementação, no país, do pensamento economicista neoliberal. Nunca houve tanto desemprego; nunca houve tanta carestia. São Paulo contava, há poucos meses, com cerca de 2,6 milhões de desempregados e um tempo médio de reinserção, no mercado de trabalho, de 40 a 50 meses. Não se trata -é preciso perceber- de marginais, mas de trabalhadores, embora se esteja fazendo vistas grossas para tanto. Desde tal patamar, é difícil imaginar como se encontra freios inibitórios internos capazes de sustentar os valores sociais. De qualquer modo, fala-se muito do aumento da criminalidade -e os noticiários se multiplicam-, mas não há qualquer base séria na afirmação, pelo menos (diante do quadro) assegurar que ela não é decorrente de fatores que apontariam à normalidade: aumento populacional, dificuldades econômicas e financeiras, desagregação familiar, e tantos outros. Em situações similares, provocadoras de intranqüilidade social -agora agravada pela imensa produção do medo levada a efeito pelos meios de comunicação- o país respondeu com violência e endurecimento dos mecanismos de repressão penal, como se isso fosse panacéia. O maior exemplo deuse durante o Segundo Império, quando se conviveu com uma série de revoltas populares. A desrazão, como sói acontecer, atribuiu à frouxidão do Código de Processo Criminal de Primeira Instância, de 1832, a culpa pelo que se estava passando, sob o fundamento de se incentivar a impunidade. O argumento, à toda evidência, era falacioso. O dito Código era um 12 Coutinho, Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do processo penal e golpe de cena: um problema às reformas processuais. In Escritos de direito e processo penal em homenagem ao professor Paulo Cláudio Tovo. Alexandre Wunderlich (org.). Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002, p. 139 e ss. 122 Sistemas Judiciales modelo exemplar, dentro do possível à época, mesmo porque se estava a seguir a legislação francesa pré-napoleônica centrada no Decreto de 16-29 de setembro de 1791 (ainda do período da Assembléia), infinitamente melhor que o Código francês de 1808, fruto de artimanhas legislativas para eternizar o ancién regime, tudo patrocinado por Jean-Jacques-Régis de Cambacérès, mais tarde arquichanceler do Império. Da histeria quase coletiva (patrocinada pela oligarquia fundiária), nasce a Reforma de 1841, com a famosa Lei nº 261, de 03 de dezembro. Ela foi, por si só, um exemplo primoroso de “terror legal”, abrindo as portas para arbitrariedades sem limites. Em quase trinta anos de vigência – é sempre bom não esquecer – nada mudou quanto à criminalidade. Foi a Guerra do Paraguai (1864-1870) que apontou o país para outra direção, colocando-o refém dos ingleses. A guerra, não obstante, é fator imperioso de união e tão-só ao seu final que se conseguiu a sonhada mudança, resultado de uma solução de compromisso entre os Liberais (que sempre nela insistiram) e os Conservadores, tudo movido por uma exigência do próprio Imperador Dom Pedro II. Agora, na atual quadra da história, a situação é análoga. As forças conservadoras (parte da elite seduzida pelas benesses do capitalismo selvagem neoliberal e grande parte das massas populares cooptadas pelo Tittytainment e a falsa esperança que está a vender), dão glamour ao crime, criando um fetiche em torno de bandidos de segunda categoria e, para tanto, habilmente são usados os meios de comunicação (em primeiro lugar a televisão), uma droga consumida todos os dias. Forja-se, às escâncaras, uma realidade que não existe pois, como é primário, o país não é composto só dos grandes centros urbanos onde, como em todas as partes do mundo, a situação é -e sempre foi- mais grave. Transmuda-se, desta forma, para os mais inóspitos rincões, a atmosfera da violência, produzindo-se medo e, de conseqüência, reação no sentido do endurecimento da repressão penal. Conscientes da debilidade desse mundo de gente, políticos cínicos vêem no momento a ribalta propícia para ações politiqueiras. O melhor caminho para alcançar tal escopo são as leis; leis de terror; leis de pânico. O Brasil vive, hoje, um duplo medo: medo dos criminosos comuns (nada comparado, quanto à nocividade, àqueles da corrupção, que não produzem o mesmo efeito e, muitas vezes, são até louvados) e medo das leis. Essas, no mais das vezes, pensadas, processadas e promulgadas com ofensa direta à Constituição da República, com supressão de direitos e garantias constitucionais. Contra tal estado de coisas constituiu-se o Movimento Antiterror, a partir da idéia primeira de René Ariel Dotti e desde o primeiro instante compartilhada por Paulo Rangel, Promotor de Justiça no Rio de Janeiro, durante Congresso de Direito Penal, no dia 12.04.03, em Salvador, Bahia. O Movimento pretende estabelecer uma “reação intelectual de trabalhadores e estudiosos das aludidas ciências (criminais) contra determinados projetos em tramitação urgente no Congresso Nacional e que mutilam princípios e regras do sistema criminal vigente em favor de uma legislação de pânico”. 13 O presidente escolhido foi o advogado Luís Guilherme Vieira, do Rio de Janeiro. Foi a campo, como não poderia deixar de ser, para defender o Movimento e seu objetivo: “Ao assumirmos este compromisso, fomos acusados ora de não termos propostas, ora de sermos defensores dos direitos humanos dos bandidos, ora seus defensores, além da irônica pecha de sermos poetas do Direito Penal. Em relação à pecha, vinda do ex-governador que comandava, sem poesia, o estado paulista quando houve o massacre do Carandiru, nossa indiferença. Aos demais, um alerta: temos propostas, sim, a primeira delas é a de que não precisamos mais de lei. Já as temos em profusão. O decantado regime disciplinar diferenciado já está na Lei de Execução Penal. Basta cumpri-la e pôr cobro à corrupção no sistema carcerário. Ou será que os apologistas do regime de exceção pretendem confinar o preso, por até 720 (!?) dias e manter a mesma estrutura falida e carcomida? Enfim, temos um compromisso maior: o compromisso com a Constituição da República Federativa do Brasil.”14 Não há muita esperança para o Brasil em tempos tão sombrios. A Justiça Criminal do novo Governo não parece poder ser diferente do que sempre foi. Um povo tão sofrido, por certo, merece algo melhor. a 13 Dotti, René Ariel. Carta para Maria Thereza. In O Estado do Paraná. Caderno Direito e Justiça. Domingo, 04.05.03, p. 8. 14 Vieira, Luís Guilherme. Esperança sem terror. Carta Capital. Ano IX, nº 243, 04.06.03, p. 71. Sistemas Judiciales 123