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O Projeto de Justiça Criminal
do Novo Governo Brasileiro
Texto especialmente preparado para a Revista Sistemas Judiciales.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho
*
Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR); Mestre em
Direito Público (UFPR); Doutor em Direito Processual Penal (Università degli
Studi di Roma “La Sapienza”). Coordenador eleito do Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (Mestrado e
Doutorado), em Curitiba, Paraná, Brasil.
falta mail
El nuevo gobierno brasilero, comandado por Luiz Inázio Lula da Silva, vino acompañado de una gran
esperanza del pueblo. Por cierto, era el primer gobierno con aspecto de izquierda y un discurso compatible con los
anhelos populares. Esto se reflejaba en el proyecto de justicia criminal. El discurso y el modo de proceder, con todo,
están matando las esperanzas. Todo lleva a creer que no se cambió la mentalidad; que se va a insistir con el discurso
de tolerancia cero, en la estructura de un sistema inquisitorio de proceso penal; y las reformas no alcanzan siquiera
a la terminología. Contra la furia de la legislación de terror, lo único que surgió es el Movimiento Antiterror.
1. INTRODUÇÃO
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva
representou, para uma larga parcela da população
brasileira, a esperança de ver não só a “esquerda”1
chegar ao poder central no Brasil mas, de fato,
implementar o discurso que sempre fez o Partido
dos Trabalhadores.
Democracia, sabe-se bem, é, entre outras
coisas, fruto de um processo lento e difícil, que
cobra um alto grau de civilidade. Não é por outro
motivo que imperaram na vitória as forças de
“direita” nas eleições que levaram ao poder
Fernando Collor de Mello e, por duas vezes
seguidas, Fernando Henrique Cardoso, aquele um
perverso por definição, logo metido em questões
de corrupção que colocou em risco seus próprios
patrocinadores, os mesmos que lhe impuseram a
renúncia; e este, F.H.C., um conhecido professor e
sociólogo de “esquerda” seduzido, literalmente,
pelo poder, famosíssimo por desde o início ter
deixado, em frase curta e sincera, a razão pela qual
tinha vindo: “esqueçam o que eu escrevi!”. Estava
morta a esperança de um Brasil onde as mudanças
pudessem ter o viço do novo.
Ademais, foi um tempo onde se viveu a
implantação das regras do Consenso de
Washington, a cartilha neoliberal para os países
subdesenvolvidos. Em diversas oportunidades
chegou a ser difícil acreditar que se podia
implementar inovações tão desastradas para o povo
-e sem maiores conseqüências negativas-, tudo sob
as bênçãos dos senhores do poder. A única força
de resistência séria e coerente seguia sendo Lula e
seus companheiros do PT, às vezes com discursos
que sequer conseguiam o espaço necessário nos
1 Em que pese o desgaste do termo, é ainda válido, em se tratando de experiência única, não fosse o fato de que não há outro menos ruim para se colocar no lugar.
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meios de comunicação. As derrotas eleitorais, assim,
eram inevitáveis. O exercício de poder, contudo, é
a mais regular das gestações, mormente quando
movido a imbrogli verbais. Por isso ganhou Lula,
como teria ganho qualquer outro que se mostrasse
como diverso, como alternativa possível. Dal dire
al fare c’è in mezzo il mare, porém; e as concessões discutível se eram necessárias, a começar por aquela
de ceder a Vice-presidência ao Partido Liberalhaviam sido tantas que, em sã consciência, qualquer
um haveria de desconfiar das reais intenções que
moviam o bloco de oposição. Com a vitória
esmagadora nas eleições, retornou a esperança mas,
passado um semestre de exercício do poder, o
governo Lula dá sinais de debilidade em muitos
campos e, em particular, nesse da Justiça Criminal
a situação parece ser calamitosa.
2. CÂMBIO DE MENTALIDADE
Mudou o governo, mas era preciso mudar
também a mentalidade, tributária de um discurso
passado que apontava em tal direção. O imaginário
produz a esperança, mas a destrói quando o
discurso não encontra eco no real: eis o risco que se
está a correr no Brasil. Até agora, a sensação –
desconfortável- é de não ter havido qualquer
mudança, quiçá no melhor estilo de Lampedusa:
mudar para que tudo fique como está!
Salvo aos desavisados por completo, depois
de tanta pregação restou claro que se havia
promovido, pelo pensamento neoliberal, umcâmbio
epistemológico; que passara a imperar a chamada ação
eficiente, embora os efeitos se tivessem feito sentir
no campo da ética. O Estado foi, paulatinamente,
tornando-se mínimo; o Direito, forte empecilho à
implantação do modelo foi, em grande velocidade,
sendo desregulamentado; e o cidadãocooptado para estar
alienado (em face dos seus interesses, egoisticamente,
serem colocados em primeiro lugar) quanto aos
problemas criados pela dita implantação ou, por
outro lado, marchar ao lado dos exércitos do deus
mercado, a ordem natural espontânea por excelência e
modelo a ser seguido. Com isso, acirrou-se a
competição e se está prestes a ver sucumbir a solidariedade,
marca registrada de um Brasil construído, em grande
escala, por imigrantes, muitos dos quais miseráveis
e que nele encontraram a forma de fazer ver que
inteligência não se confunde com escassez de
recursos; e que nos momentos mais difíceis, neste
espaço panacionalista, sempre houve lugar para o
fraternu. Nunca houve, portanto, tanta representação
narcísica; nunca se deslizou tanto no mero
imaginário. Sem a marca do registro do simbólico, sabese bem, não há como construir um futuro melhor,
porque se não deseja o suficiente (justo pela falta de
limites) para produzir câmbios de vulto. A vida,
assim, segue estagnada, em um marasmo
preocupante. O problema -a história já demonstroué que o homem, clivado por natureza, não resiste
situação do gênero por muito tempo e acaba por
promover a revolta do real contra o imaginário: a
fome é um bom exemplo disso!
A maneira de armar algo diferente remete à
consolidação democrática; e ela não se faz sem um
respeito incondicional ao princípio da dignidade da pessoa
humana. Para tanto, faz-se imprescindível um câmbio
de mentalidade, com a superação de uma base epistêmica
promotora de exclusão social. Isso, até agora, no
governo Lula, não se viu. Ao contrário, alguns
indicativos apontam na direção oposta, dentre os
quais o mais relevante parece ser a manutenção, na
área econômica, do controle, a qualquer custo, dos
índices inflacionários, mesmo que em detrimento
do crescimento social. Emir Sader, de seu lugar de
um dos maiores intelectuais do país, deixa poucas
dúvidas ao tratar do cotejo público versus mercantil: “A
construção de uma democracia social (uma outra
forma de falar da superação do neoliberalismo) no
Brasil requer uma reforma profunda do Estado
brasileiro, refundando-o em torno da esfera pública.
Mas, antes de tudo, requer a reposição do conjunto
dos debates políticos e teóricos em torno da
polarização público/mercantil. As primeiras
orientações do governo Lula não parecem tampouco
inovar nesse plano, desqualificando o servidor público,
não privilegiando o fortalecimento da educação e da
saúde públicas, perdendo a chance de fazer uma
reforma tributária socialmente justa, desconhecendo
a centralidade da esfera pública e o tema estratégico da
reforma democrática do Estado, de que o orçamento
participativo, em modalidades inovadas, é elemento
essencial. A saída do modelo neoliberal não depende
só de novas políticas econômicas, mas de se assumir
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O Projeto de Justiça Criminal do Novo Governo Brasileiro - J. Nelson de Miranda Coutinho
a centralidade do público e a luta contra a
mercantilização – chave da democracia social, da
prioridade do social com que se comprometeu o novo
governo. Mudança implica mudança econômica,
política, social, cultural, mas também mudança de
campo teórico de análise e de referência.”2
O novo, como se sabe, tem como inimigo
mortal as velhas práticas, isto é, as verdades consolidas.
Daí impor uma batalha diuturna, registrada na
História em inúmeras passagens. Em todos os casos,
porém, é objeto de tenaz resistência. Escravizam-se as
mentes ao passado para estabelecer obstáculos
intransponíveis ao presente e à construção de um
futuro diferente e melhor. Por isso, sem ruptura o
futuro se inscreve como sombrio.
O Direito, não pela tradição mas pelo apego
a um imaginário de segurança jurídica -que sempre
foi falso-, é uma das matrizes da resistência. Os
ditos operadores jurídicos não têm conseguido domar
a dogmática jurídica para, a partir dela e pela crítica,
produzir um saber interdisciplinar e transdisciplinar.
Deste modo, tem-se operado, no Brasil, com um
saber fixado pelo descompasso entre o novo e o
velho, com prevalência deste. Em suma, tem-se,
por mais absurdo que possa parecer, adaptado o
direito novo àquele velho, o que ganha foros
eloqüentes quando se trata da Constituição da
República, em vigor há 15 anos (desde 05.10.1988)
e sem conseguir se efetivar. É a “velhificação” do
direito; não fosse, antes, a supressão sistemática
de direitos e garantias constitucionais; de
conquistas que se não admite mais voltar atrás.
Um projeto de Justiça Criminal veramente
democrática dependeria, sem dúvida, de uma nova
mentalidade3 , mormente do Governo. Não é,
porém, o que se tem visto. Réus injustiçados em
processos criminais durante o regime militar,
muitos dos ocupantes dos principais cargos do atual
governo parecem afetados por amnésia aguda.
Quando o assunto é Justiça Criminal, esquecem-se
do sucedido e respondem, de modo tosco, já no
primeiro reclamo do ufanismo midiático, com o
endurecimento da repressão penal, algo para
ruborescer alguns dos mais sanguinários do regime
castrense. Pobre país que ainda não fez a sua
revolução francesa e, pior, sequer leu Beccaria. Os
réus, porém, agora, na extragrande maioria das vezes,
são os excluídos, para os quais não se tem tido bons
olhos. O panem et circenses de Juvenal, travestido no
pós-moderno Tittytainment , de Zbigniew
Brzezinski, faz a sua parte. Ao não-consumidor
insatisfeito com as migalhas e a diversão resta pouco
a fazer, ou seja, anestesiá-lo pela submissão a uma
Justiça Criminal dura, sheriff implacável das forças
da Ordem contra o mal, à qual não interessa, de um
modo geral, indagar sobre as causas do crime. Deste
modo, o âmbito de validez de Ferrajoli não encontra
espaço; antes, é uma ameaça.
3. RESISTE O SISTEMA
INQUISITÓRIO
Para um projeto de Justiça Criminal dura e
insensível, nada melhor que a manutenção do sistema
inquisitório.
No Brasil, como em todos os países do
mundo, depois de superados os sistemas puros
(inquisitório e acusatório), restou um sistema dito
misto. Não se trata, como se sabe, de um vero e
próprio sistema, mas do resultado da inclusão,
em um dos dois clássicos, de elementos trazidos
do outro. E isso por uma questão primária: desde
Kant e sua arquitetônica da razão pura que sistema
é a “unidade de conhecimentos diversos sob uma
idéia”.4 Ora, os temas se colocam em conjunto
por conta de um princípio unificador (inquisitivo ou
dispositivo, respectivamente), o qual, sendo “uma
idéia” e, portanto, único, não admite divisão.
Outra coisa, ademais, não oferece o conceito
de princípio: “A par de se poder pensar em princípio
(do latim, principium) como sendo início, origem, causa,
gênese, aqui é conveniente pensá-lo(s) como motivo
conceitual sobre o(s) qual(ais) funda-se a teoria geral do processo
penal, podendo estar positivado (na lei) ou não. Por
evidente, falar de motivo conceitual, na aparência, é não
dizer nada, dada a ausência de um referencial semântico
perceptível aos sentidos. Mas quem disse que se
necessita, sempre, pelos significantes, dar conta dos
significados? Ora, nessa impossibilidade é que se
2 Sader, Emir. Público versus mercantil. Folha de São Paulo. 19.06.03, p. A3.
3 Binder, Alberto M. Los oficios del jurista: la fragmentación de la profesión jurídica y la uniformidad de la carrera judicial. In Sistema judiciales. Publicación
semestral del Centro de Estudios de Justicia de las Américas – CEJA, Buenos Aires : Inecip, 2001, Año 1, nº 1, p. 69-70: “Por lo tanto, el problema y la solución
es básicamente un problema de personas. Si ellas no cambiam su ‘mentalidad’, entonces no habrá reforma judicial.(...) Lo que debe cambiar son los modos
de interacción entre los sujetos y las reglas que regulam o influyen de muchas maneras en esa interacción.(...) Por ello la dimensión de los recursos humanos
es incapaz por sí sola de producir algún combio ya que resulta altamente dependiente de patrones culturales y organizacionales muy rígidos, que moldean
la ‘mentalidad’ en el proceso de adaptación.”
4 Kant, Immanuel. Crítica da razão pura. 4ª ed. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa : Gulbenkian, 1997, p. 657.
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Sistemas Judiciales
aninha a nossa humanidade, não raro despedaçada
pela arrogância, sempre imaginária, de ser o homem o
senhor absoluto do circundante; e sua razão o summum
do seu ser. Ledo engano!; embora não seja,
definitivamente, o caso de se desistir de seguir lutando
para tentar dar conta, o que, se não servisse para nada,
serviria para justificar o motivo de seguir vivendo, o
que não é pouco, diga-se en passant. De qualquer sorte,
não se deve desconhecer que dizer motivo conceitual,
aqui, é dizer mito 5 , ou seja, no mínimo abrir um campo
de discussão que não pode ser olvidado mas que,
agora, não há como desvendar, na estreiteza desta
singela investigação. Não obstante, sempre se teve
presente que há algo que as palavras não expressam;
não conseguem dizer, isto é, há sempre um antes do
primeiro momento; um lugar que é, mas do qual nada se sabe,
a não ser depois, quando a linguagem começa a fazer sentido .
Nesta parca dimensão, o mito pode ser tomado como
a palavra que é dita, para dar sentido, no lugar daquilo que, em
sendo, não pode ser dito. Daí obig-bang6 à física moderna;
Deus à teologia; o pai primevo a Freud e à psicanálise; a
Grundnorm a Kelsen e um mundo de juristas, só para
ter-se alguns exemplos.”7
O sistema brasileiro segue sendo
tendencialmente (eis aí o adjetivo misto) inquisitório
porque seu núcleo (o princípio) aponta para uma
gestão da prova comandada pelo juiz. “È falso che
método inquisitório equivalga a processo senza
attore: nell’ordonnance criminelle 1670, monumento
dell’ingegno inquisitoriale, il monopólio dell’azione
spetta agli hommes du roi”.8
O mais complicado, é sintomático, segue
sendo fazer ver aos operadores jurídicos que os
elementos secundários (existência de partes; acusação
autônoma por órgão diverso do juiz; contraditório,
prisão cautelar como regra, etc), embora relevantes,
não têm o condão de fornecer o núcleo do sistema
e, com isso, não se consegue marchar para uma
reforma que aponte, efetivamente, para uma
democracia processual.
Desde este viés, a Justiça Criminal não
encontrou -e nunca vai encontrar- um espaço para
efetivar a Constituição da República, a começar pelo
due process of law. Haver-se-ia, assim, de ouvir a
Alberto Binder9 e Julio Maier10 que, na articulação
de tantos anteprojetos de códigos de processo
penal para os países da América Latina, nunca se
outorgaram a mínima possibilidade de confundir
as coisas. Uma certa razão brasileira, caudatária de
um pensamento eurocentrista, não tem olhos para
os vizinhos mas insiste em ver o Rio de Janeiro
como se New York fosse. Não é de estranhar que
os corifeus do neoliberalismo da Justiça Criminal
venham pensando tanto em Tolerância Zero 11 ; e
queiram fazer políticos inescrupulosos tentar
aplicá-la mesmo com um Estado Mínimo. Faz-se
pilhéria, por evidente, da inteligência nacional; ou
se expõe, como sintoma, uma imensa ignorância.
4. FALTA SINCRONIA
TERMINOLÓGICA
O entrave às reformas, por outro lado, vai
além; e diz respeito um problema crônico vivido
pelo Direito Processual Penal brasileiro: a falta de
sincronia terminológica quanto aos conceitos
fundamentais, supondo-se que há um domínio.
Tal suposição, sem embargo, tem-se mostrado
falsa. Afinal, há falta de sincronia quantos aos
conceitos mas, mais grave, quanto aos referenciais
semânticos isso também acontece em grande escala.
E aí começa um dos maiores suplícios da via-sacra
do Direito Processual Penal brasileiro.
Ora, a confusão quanto aos conceitos foi
determinada, em grande parte, pela influência –
maléfica- dos sistemas processuais europeus e,
máxime, do italiano, centrado no Codice Rocco, de
1930 (uma adaptação, como se sabe, do modelo
oferecido pelo Código de Napoleão de 1808) e
construído pelas mãos fascistas e hábeis de
Vincenzo Manzini. Com uma investigação preliminar
5 Não se desconhece a importância fundamental, quanto à noção de mito, de Claude Lévi-Strauss, mormente à Antropologia; de Carlo Ginzburg, mormente
à História; de Sigmund Freud e Jacques Lacan, mormente à psicanálise, assim como tantos outros nomes vitais ao conhecimento humano. Sem embargo, para
o Direito, quiçá o nome imprescindível, nesta matéria, seja o de Pierre Legendre, principalmente nas Lecciones IV : el inestimable objeto de la transmisión
- estudio sobre el principio genealógico en Occidente. Trad. de Isabel Vericat Núñez, México : Siglo Veintiuno, 1996, em especial p. 100 e ss.
6 Delineado magistralmente por Agostinho Ramalho Marques Neto no Curso de Extensão Universitária realizado na Faculdade de Direito da UFPR, em
Curitiba, entre 21 e 25 de setembro de 1998, sob o título “Ética e lei: uma leitura da Antígona de Sófocles”.
7 Coutinho, Jacinto Nelson de. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. In Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Curitiba : UFPR,
1998, p. 163-4.
8 Cordero, Franco. Guida alla procedura penale. Torino : Utet, 1986, p. 47: “les procès seront porsuivis à la diligence et sous lê nom de nos procureurs.”
(Tit. III, art. 8º).
9 Binder, Alberto M. Introdución al derecho procesal penal. 2ª ed. Buenos Aires : Ad-Hoc, 2002, p. 97 e ss.
10 Maier. Julio B. J. Derecho procesal penal. 2ª ed. Buenos Aires : Editores del Puerto, 1999, p. 259 e ss.; Maier, Julio B. J., Ambos, Kai, Woischnik, Jan. Las
reformas procesales en América Latina. Buenos Aires : Ah-Hoc, Konrad Adenauer Stiftung, Instituto Max Planck, 2000.
11 Não é outro o pensamento ingênuo de Catherine Coles, em entrevista sob o título “É preciso combater pequenos delitos para reduzir a violência”,
querendo fazer crer que seu “Fixing Broken Windows” (escrito com o marido George Kelling) possa ser uma receita para o Brasil. (Folha de São Paulo.
23.06.03. p. A12). Nesta hora é preciso pensar que o orçamento do Departamento de Polícia de Nova Iorque foi, em 1999, 2,6 bilhões de dólares (Wacquant,
Loïc. As prisões da miséria. Trad. de André Telles. Rio de Janeiro : Zahar, 2001, p.28), fato que, por si só, olhando-se para as estruturas brasileiras, torna
qualquer comparação ou tentativa de aplicação imediata vergonhosamente ridícula.
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O Projeto de Justiça Criminal do Novo Governo Brasileiro - J. Nelson de Miranda Coutinho
comandada pelo Ministério Público ou pelo Juiz,
da notitia criminis desencadeava-se o processo
(como se entendeu mais tarde), mas se eliminava a
ação vera e própria, com a intelecção que se tinha
desde a polêmica Windscheid versus Muther.
Era sintomático, assim, a permanência do
modelo praxista, marcado por uma ritualística
ideologicamente bem definida desde o sistema
inquisitório puro: um processo penal praticado como
mecanismo de punição, algo de todo incompatível
com o espírito da modernidade onde o cidadão
conta alguma coisa.
Confunde-se, assim, ação e processo; processo
e procedimento; processo e autos; ação e pretensão; poder
e dever; dever e obrigação; condições para acionar e
condições para proceder; pressupostos processuais de
existência e pressupostos processuais de validade; despacho
e decisão interlocutória; despacho e sentença; decisão
interlocutória e sentença; e assim por diante, numa
cadeia que só faz assustar.
O problema é que quando não há uma
mínima paz doutrinária, é do lugar do poder que
acabam vindo, em ultima ratio, as normas, como
expressão das regras contidas na lei. A jurisdição, da
sua parte, faz o seu papel e, naturalmente, em face
do vazio criado acaba por construir um saber
fragmentado e, não raro, em descompasso com a
Justiça. Seria de estranhar, porém, se assim não fosse.
Os homens são construídos pela história mas a
constroem também, refletindo o seu tempo. São
homens, afinal; não máquinas. E como tal decidem
-por mais que se queira evitar- casuisticamente. O
resultado de tudo isso é palpável (re non verbis): as
prisões seguem lotadas de pobres e vazias de ricos
quando, em verdade, deveriam albergar os culpados;
e só eles, qualquer que fossem.
Além do mais, com uma base teórica
extremamente carente, por razões históricas -entre
outras- importou-se do Direito Processual Civil
muitos elementos que não têm qualquer serventia
no Direito Processual Penal, a não ser a de ajudar a
confundir ainda mais e manter o status quo, como
que fornecendo uma camisa-de-força da qual não
se consegue desvencilhar o modelo. 12
Problema do gênero afeta a todos, mas não
há que duvidar serem os cultores do Direito
Processual Penal os maiores responsáveis pela
situação. A superação dela não é simples, mas parece
inarredável a construção de um saber crítico, marcado
pela interdisciplinaridade e pela transdisciplinaridade.
Afinal, não há o que temer, mesmo porque o tempo
do positivismo legalista já se foi, por conta de um
espaço democrático com o qual é inconciliável.
5. MOVIMENTO ANTITERROR
A crise ética que assola a sociedade brasileira,
com a face que tem hoje, é conseqüência direta embora não seja a única- da implementação, no
país, do pensamento economicista neoliberal.
Nunca houve tanto desemprego; nunca houve
tanta carestia. São Paulo contava, há poucos meses,
com cerca de 2,6 milhões de desempregados e um
tempo médio de reinserção, no mercado de
trabalho, de 40 a 50 meses. Não se trata -é preciso
perceber- de marginais, mas de trabalhadores,
embora se esteja fazendo vistas grossas para tanto.
Desde tal patamar, é difícil imaginar como
se encontra freios inibitórios internos capazes de
sustentar os valores sociais. De qualquer modo,
fala-se muito do aumento da criminalidade -e os
noticiários se multiplicam-, mas não há qualquer
base séria na afirmação, pelo menos (diante do
quadro) assegurar que ela não é decorrente de
fatores que apontariam à normalidade: aumento
populacional, dificuldades econômicas e financeiras,
desagregação familiar, e tantos outros.
Em situações similares, provocadoras de
intranqüilidade social -agora agravada pela imensa
produção do medo levada a efeito pelos meios de
comunicação- o país respondeu com violência e
endurecimento dos mecanismos de repressão penal,
como se isso fosse panacéia. O maior exemplo deuse durante o Segundo Império, quando se conviveu
com uma série de revoltas populares.
A desrazão, como sói acontecer, atribuiu à
frouxidão do Código de Processo Criminal de
Primeira Instância, de 1832, a culpa pelo que se
estava passando, sob o fundamento de se
incentivar a impunidade. O argumento, à toda
evidência, era falacioso. O dito Código era um
12 Coutinho, Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do processo penal e golpe de cena: um problema às reformas processuais. In Escritos de direito e
processo penal em homenagem ao professor Paulo Cláudio Tovo. Alexandre Wunderlich (org.). Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002, p. 139 e ss.
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modelo exemplar, dentro do possível à época,
mesmo porque se estava a seguir a legislação francesa
pré-napoleônica centrada no Decreto de 16-29 de
setembro de 1791 (ainda do período da
Assembléia), infinitamente melhor que o Código
francês de 1808, fruto de artimanhas legislativas
para eternizar o ancién regime, tudo patrocinado por
Jean-Jacques-Régis de Cambacérès, mais tarde
arquichanceler do Império. Da histeria quase coletiva
(patrocinada pela oligarquia fundiária), nasce a
Reforma de 1841, com a famosa Lei nº 261, de 03
de dezembro. Ela foi, por si só, um exemplo
primoroso de “terror legal”, abrindo as portas para
arbitrariedades sem limites. Em quase trinta anos
de vigência – é sempre bom não esquecer – nada
mudou quanto à criminalidade. Foi a Guerra do
Paraguai (1864-1870) que apontou o país para outra
direção, colocando-o refém dos ingleses. A guerra,
não obstante, é fator imperioso de união e tão-só
ao seu final que se conseguiu a sonhada mudança,
resultado de uma solução de compromisso entre
os Liberais (que sempre nela insistiram) e os
Conservadores, tudo movido por uma exigência
do próprio Imperador Dom Pedro II.
Agora, na atual quadra da história, a situação
é análoga. As forças conservadoras (parte da elite
seduzida pelas benesses do capitalismo selvagem
neoliberal e grande parte das massas populares
cooptadas pelo Tittytainment e a falsa esperança que
está a vender), dão glamour ao crime, criando um
fetiche em torno de bandidos de segunda categoria
e, para tanto, habilmente são usados os meios de
comunicação (em primeiro lugar a televisão), uma
droga consumida todos os dias. Forja-se, às
escâncaras, uma realidade que não existe pois, como
é primário, o país não é composto só dos grandes
centros urbanos onde, como em todas as partes
do mundo, a situação é -e sempre foi- mais grave.
Transmuda-se, desta forma, para os mais inóspitos
rincões, a atmosfera da violência, produzindo-se
medo e, de conseqüência, reação no sentido do
endurecimento da repressão penal.
Conscientes da debilidade desse mundo de
gente, políticos cínicos vêem no momento a ribalta
propícia para ações politiqueiras. O melhor caminho
para alcançar tal escopo são as leis; leis de terror; leis
de pânico. O Brasil vive, hoje, um duplo medo:
medo dos criminosos comuns (nada comparado,
quanto à nocividade, àqueles da corrupção, que não
produzem o mesmo efeito e, muitas vezes, são até
louvados) e medo das leis. Essas, no mais das vezes,
pensadas, processadas e promulgadas com ofensa
direta à Constituição da República, com supressão
de direitos e garantias constitucionais.
Contra tal estado de coisas constituiu-se o
Movimento Antiterror, a partir da idéia primeira
de René Ariel Dotti e desde o primeiro instante
compartilhada por Paulo Rangel, Promotor de
Justiça no Rio de Janeiro, durante Congresso de
Direito Penal, no dia 12.04.03, em Salvador, Bahia.
O Movimento pretende estabelecer uma “reação
intelectual de trabalhadores e estudiosos das
aludidas ciências (criminais) contra determinados
projetos em tramitação urgente no Congresso
Nacional e que mutilam princípios e regras do
sistema criminal vigente em favor de uma legislação
de pânico”. 13 O presidente escolhido foi o advogado
Luís Guilherme Vieira, do Rio de Janeiro. Foi a
campo, como não poderia deixar de ser, para
defender o Movimento e seu objetivo: “Ao
assumirmos este compromisso, fomos acusados
ora de não termos propostas, ora de sermos
defensores dos direitos humanos dos bandidos,
ora seus defensores, além da irônica pecha de
sermos poetas do Direito Penal. Em relação à pecha,
vinda do ex-governador que comandava, sem
poesia, o estado paulista quando houve o massacre
do Carandiru, nossa indiferença. Aos demais, um
alerta: temos propostas, sim, a primeira delas é a
de que não precisamos mais de lei. Já as temos em
profusão. O decantado regime disciplinar
diferenciado já está na Lei de Execução Penal. Basta
cumpri-la e pôr cobro à corrupção no sistema
carcerário. Ou será que os apologistas do regime de
exceção pretendem confinar o preso, por até 720
(!?) dias e manter a mesma estrutura falida e
carcomida? Enfim, temos um compromisso
maior: o compromisso com a Constituição da
República Federativa do Brasil.”14
Não há muita esperança para o Brasil em
tempos tão sombrios. A Justiça Criminal do novo
Governo não parece poder ser diferente do que
sempre foi. Um povo tão sofrido, por certo, merece
algo melhor. a
13 Dotti, René Ariel. Carta para Maria Thereza. In O Estado do Paraná. Caderno Direito e Justiça. Domingo, 04.05.03, p. 8.
14 Vieira, Luís Guilherme. Esperança sem terror. Carta Capital. Ano IX, nº 243, 04.06.03, p. 71.
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