AsPeCtos do diálogo entRe design, ARte e modA A PARtiR de umA

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Resumo
A partir de uma breve análise da produção em design de calçados,
assim como do uso deste artefato em obras de arte no período
Moderno e na contemporaneidade, este artigo investiga possíveis
diálogos e interseções entre os campos do design, da arte e da
moda ao longo do século XX, apoiada nas ideias de GRANDI,
LIPOVETSKY, McDOWELL e O’KEEFFE.
Palavras-Chave: design de moda; arte; calçados
Design, Arte, Moda e Tecnologia.
São Paulo: Rosari, Universidade Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010
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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX
Introdução
Uma análise do artefato calçado, em determinado período da história do século XX e do
início do século XXI, é capaz de nos fazer visualizar contágios e cruzamento de fronteiras entre
linguagens e conceitos de arte, moda e design. Este diálogo é frequente a partir do surgimento
de movimentos artísticos de vanguarda, por meio de criações de moda de costureiros e
sapateiros no início do século, além de estilistas e designers no século XX.
Segundo GUMBRECHT (1998), as primeiras décadas do século XX — denominada
de “Alta Modernidade” — são períodos produtivos na história ocidental, incluindo as artes
com experimentos audaciosos tais como o cubismo, o surrealismo e o dadaísmo, com
manifestações artísticas que rompem com a representação.
Não existe uma definição que imponha limites à arte e seus conceitos são contraditórios
em alguns momentos. Para os modernistas, a arte seria produto de um esforço individual,
enquanto o design seria produto de empreendimento coletivo típico da sociedade industrial.
Em definições mais reducionistas, a arte é considerada “atividade específica que visa
produzir objeto — em geral, de caráter simultaneamente material e visual — capazes de
suscitar uma resposta estética em espectadores através de sua contemplação e fruição” —
podendo ser produzido através de processo artesanal, industrial ou outro qualquer (COELHO,
p.18, 2008).
Para MOURA (2008), a arte tem servido como fonte de pesquisa e referência para a
criação e o desenvolvimento de projetos e produtos na esfera da moda e do design. Vários
artistas na história da arte desenvolveram objetos de moda ou design e talvez utilizem os dois
campos como referência ou foram despertados pelo objeto utilitário para a criação de obras
artísticas.
A criação é livre em todas as direções, tanto na arte como na moda. As relações entre a
moda e design são estreitas, ligadas pelo mundo dos projetos, pelos desejos e estilos de vida
dos usuários. Ambos compartilham da novidade como motivação (MOURA in PIRES, 2008).
Na contemporaneidade, os artefatos e objetos são projetados por designers que os
atribuem diversos significados, que testemunham suas subjetividades e também vínculos
estéticos, culturais e sociais como afirma PRECIOSA (2007).
FIORINI (2008, p.71), descreve que “o design é em sua essência um processo criativo
e inovador, provedor de soluções para problemas de importância fundamental para as esferas
produtivas, tecnológicas, econômicas, sociais, ambientais e culturais”. Em seu termo, estão
vinculadas questões expressivas, simbólicas e estéticas e não somente questões produtivas
e técnicas.
Os conceitos de design podem ser baseados no objeto ou no processo. Porém,
não é apenas a união entre estas duas formas a maneira mais coerente de analisar suas
atividades, pois é importante considerar que os produtos desenvolvidos por um determinado
processo podem conter significados não percebidos de forma clara. O objeto pode adquirir
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além de questões funcionais e estruturais, diversos significados provenientes de necessidades
subjetivas, como os desejos, anseios e expectativas do consumidor. Portanto, estes objetos,
se “inserem no tempo e no espaço, vão perdendo sentidos e adquirindo novos” (FIORINI,
2008, p.34).
As influências da arte moderna na criação do calçado
Em determinados períodos da História da Arte, os calçados, assim como outros
componentes da indumentária, eram apenas retratados nas obras de arte. Era o início de um
flerte entre o objeto e a arte. Um exemplo é a pintura “Old Boots”, de 1886, do pintor holandês
Van Gogh (1853-1890). Antes do século XX, pintores se atentavam aos detalhes, mas desde
essa época os calçados eram considerados partes da personalidade humana (McDOWELL,
1989).
A arte se aproxima da moda e a moda da arte em diversos períodos do século XX,
especialmente naqueles momentos em que estão acentuados seus conceitos e criações,
questões do cotidiano e da subjetividade. LIPOVETSKY (1989, p.78), em passagem do livro
“O Império do Efêmero” afirma que não se pode ignorar a influência da arte moderna nas
transformações da moda no início do século XX. As estéticas modernistas, que recusavam o
decorativo e pregavam as linhas puras também influenciam a moda.
No design de calçados, as influências da arte na moda podem ser percebidas de
modo bastante claro. Um dos muitos exemplos são os calçados criados no final década de
1920 e início da década de 1930. São calçados de formas simples e recortes geométricos,
demonstrando inicialmente uma influência do movimento Art Decói. Costureiros e grandes
sapateiros admiravam e homenageavam frequentemente os artistas modernos. Os maiores
exemplos são o costureiro francês Paul Poiret (1879 -1944), a francesa Gabrielle (Coco) Chanel
(1883 -1971), a italiana Elsa Schiaparelli (1880-1973) e o estilista francês Yves Saint Laurent
(1996 - 2008) que, por meio de suas criações, dialogam com grandes artistas e movimentos
de arte, pois “a moda aproximou-se ao mesmo tempo da lógica da arte moderna, de sua
experimentação multidirecional, de sua ausência de regras estéticas comuns” (LIPOVETSKY,
1989, p.125).
Um designer pode confeccionar calçados recorrendo a variados e excêntricos materiais,
utilizando referências culturais e históricas. Duas importantes correntes de vanguarda do início
do século XX influenciaram e dialogaram em diversos momentos com o design e a moda
calçadista. São eles o cubismo e o surrealismo. O cubismo tinha como princípio enfatizar
os aspectos geométricos dos objetos, desviando de uma plástica “realista”. As estruturas
poderiam ser reduzidas a alguns componentes fundamentais, os sólidos geométricos. Alguns
artistas integrantes deste movimento, tais como o artista espanhol Pablo Picasso (1881-1973)
e o francês Georges Braque (1882-1963), argumentavam que seus trabalhos buscavam
múltiplos pontos de vista (AGRA, 2006).
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Um dos designers de calçados que mais se destacou em criações de calçados que
dialogam com o universo da arte foi o francês André Perugia, nascido em 1893 em Nice, na
França, filho de sapateiro. Aos dezesseis anos abriu sua primeira sapataria e em pouco tempo
inventava novas formas de saltos e cabedaisii com qualidades artísticas e características
ousadas. As senhoras da sociedade, frequentadoras da Riviera Francesa, logo se encantam
com seu trabalho elegante e seu sucesso se firma na parceria com o famoso costureiro Paul
Poiret. André Perugia foi considerado um gênio por suas criações excêntricas e referências
à arte como suas duas sandálias inspiradas (Figura 1 e 2 ) nas obras dos cubistas Picasso e
Braque.
Figura 1: Sapato “Peixe” em homenagem ao cubista Braque, André Perugia, 1931.
Fonte: O’KEEFFE, 1996.
Figura 2: Sandália cubista em homenagem a Picasso, André Perugia, 1950.
Fonte: O’KEEFFE, 1996.
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Figura 3: Sapato “sem salto”, André Perugia, 1937.
Fonte: O’KEEFFE, 1996.
O Surrealismo e a Moda
Um dos movimentos das chamadas “vanguardas históricas”, o Surrealismo, apresentou
traços da associação da arte com o comportamento, trazendo a grande novidade de libertação
do inconsciente e negação da própria razão. “Enquanto Salvador Dali explora o inconsciente a
todo custo, sem muita preocupação além de fazê-lo aflorar por imagens, René Magritte (Figura
4) o faz pelo caminho da discussão dos próprios estatutos simbólicos” (AGRA, 2006, p.124).
Figura 4: “O modelo vermelho”, René Magritte, 1937.
Fonte: McDOWELL, 1989.
Para McDOWELL (1989), o Surrealismo é um movimento de arte com senso de humor
particular. Desta forma, não surpreende que os artistas surrealistas da década de 1920 e 1930
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respondessem muito rapidamente aos absurdos da moda e os utilizassem para declarações
com atitudes modernas. As principais características da abordagem surrealista são o choque
e a surpresa causados pelas justaposições inesperadas dos objetos do cotidiano.
Além de Schiaparelli, o estilista Pierre Cardin (1922), a artista Regina Martino e o designer
espanhol de calçados femininos Manolo Blahnik (1942) dialogaram com o movimento. Cardin
criou um par de sapatos em formato de pés (Figura 5), Martino criou um sapato-árvore e
Manolo criou sapatos-fantasia, como os sapatos-luvas (Figura 6) e os sapatos siameses.
Figura 5: “Men’s Shoes” (1986) de Pierre Cardin.
Fonte: McDOWELL, 1989.
Figura 6: Esboço de “sapato-luva”, Manolo Blahnik, 1982.
Fonte: McDOWELL, 1989.
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Outro exemplo — talvez o mais conhecido de interseção entre a arte e a moda —
foi a parceria entre a costureira italiana Elza Schiaparelli e o artista do movimento surrealista
Salvador Dalí, que também desenvolveu peças de design como o “telefone lagosta”iii e
“sofá de lábios”iv. Dali desenvolveu e desenhou, além de roupas, acessórios como o famoso
“chapéu-sapato” (Figura 7) e a “bolsa-telefone” para a coleção de outono-inverno de Schiaparelli
de 1937/1938.
O inventor do solado “anabela” — um solado no estilo da plataforma, com salto alto
e sola, porém é uma peça única — e da alma de aço — suporte que se instala no interior da
palmilha para sustentar os saltos femininos — foi Salvatore Ferragamo. O italiano, um dos mais
importantes designers de calçados do século XX, também firmou parceria com Schiaparelli na
década de 1930: “Perugia dava asas a imaginação. O primeiro par do conhecido “sapatosstrech” surgiu assim. Para eliminar o uso de botões ou fechos que Schiaparelli odiava, ele
simplesmente construiu tiras de camurça lado a lado com tiras plásticas, tão engenhoso
quanto o famoso “chapéu-sapato” (CHAVES in BARROS, 1991, p.22). Schiaparelli também
desenvolveu parcerias com Perugia e Ferragamo, que confeccionou a famosa “monkey-boots”
(Figura 8), em 1938.
Figura 7: Ilustração de Marcel Vertes do “chapéu-sapato” de Elsa Schiaparelli, 1937.
Fonte: McDOWELL, 1989.
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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX
Figura 8: “monkey-boots”, Elsa Schiaparelli, 1938.
Fonte: http://plasticbox.wordpress.com/2009/05/13/mop-top/, acesso em 16/05/2010.
Um outro exemplo de diálogo é a obra “Original Sin” (Figura 9), pintado por Salvador
Dalí em 1941, apresenta-nos uma mensagem complexa. As botas (velhas e desgastadas, mas
bem cuidadas) foram retiradas às pressas e os pés estão envolvidos pela cobra. Dalí contrasta
o exótico e monótono, levando as botas e os pés descalços como paradigmas do cotidiano
de trabalho do homem, ligado à terra e
às mulheres livres e desembaraçadas, prontas para decolar em mundos exóticos e
românticos (McDOWELL, 1989).
Figura 9: Original Sin, Salvador Dali, 1941.
Fonte: McDOWELL, 1989.
O´KEEFFE (1996) destaca a importância dos calçados dizendo que estes sempre
refletiram o estatuto social e a situação econômica de quem os calça, porém não refletem só
a história social, mas também através do calçado encontramos um registro pessoal através
de memórias.
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Exemplos de diálogos entre o design, arte e moda na pósmodernidade
Além de artistas que adentraram nos campos do design e moda como Salvador
Dalí, designers como Beth Levine (1914-2006) enveredam pelo campo das artes, criando
sapatos únicos. Alguns sapateiros demonstravam estar dispostos a “fazer arte”, com modelos
excêntricos como os saltos vírgula e bola, extremamente criativos, concebidos pelo sapateiro
francês Roger Vivier, parceiro do costureiro Christian Dior.
A americana Beth Levine desejava, desde muito jovem, desenhar calçados. Casouse com Hebert Levine, um empresário e em 1948 fundaram sua empresa de calçados.
Frequentavam seu estúdio desde criadores de moda como Halston até famosos como Bette
Davis e Liza Minnelli. Levine não teve formação técnica, mas através da prática na indústria e
senso estético permitem-na lançar modelos ousados. Ela foi pioneira em cobrir sapatos com
pedras falsas e a criação da bota strech de vinil, no inicio da década de 1950, uma década
antes das botas se tornarem tendência pelo mundo todo. Utilizava materiais inusitados como
madeira de mobiliários e acrílicos para a confecção de saltos e materiais como o vinil e lurex
no cabedal.
Para criar o seu sapato “Topless”, uma das suas fantasias mais divertidas, cobriu
uma sola acolchoada com cetim vermelho e, nos pontos onde o calcanhar e
o meio do pé tocavam a palmilha, colocou pequenas esponjas embebidas da
cola usada nas barbas falsas. As esponjas colavam-se à sola do pé e o salto
parecia ser uma extensão do calcanhar. (O´KEEFFE, 1996, p.478 e 479)
O curador do The Metropolitan Museam of Art’s Costume Institute, Harold KODA (2010)
descreve que Beth explorava uma variedade de vertentes do modernismo, exotismo oriental e
pop arte, influenciada pelo estilo de vida americano.
Figura 10: Sapato “Topless”, 1959 de Beth Levine. Fonte: http://www.virtualshoemuseum.com/vsm/o.
php?id=1031&col=person&sub=185, acesso em 17/05/2010.
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Outro exemplo do diálogo entre as três áreas do design, arte e moda são algumas
obras do artista americano pop Andy Warhol (1928-1987), uma das figuras mais conhecidas
e publicizadas da atualidade. O artista, no início, ilustrador comercial, desenhava sapatos, um
fetiche cultuado e amado, desde 1949, para anúncios da indústria de calçados americana
I.Miller, um dos primeiros fabricantes de calçados dos Estados Unidos.
Segundo GRANDI (2008), a Pop Art abriu um diálogo com a linguagem do design e
a comunicação de massa, estabelecendo uma horizontalidade entre as artes e a produção
visual e gráfica dos fenômenos de consumo.
Na década de 1980, Warhol volta ao tema e cria uma obra impressa chamada “Shoes”,
onde mostravam imagens de calçados de saltos coloridos em fundo preto, que foi comentada
da seguinte maneira por SCHMIDT (2003):
Ele transformou os sapatos em objetos de desejo, assim como ele fez com
Marilyn Monroe e Jacqueline Kennedy. Também é intrigante que os sapatos
não são mostrados em pares, como se de propósito Warhol destaca-se em
cada sapato propriedades únicas, dando a cada um uma identidade.
Esta impressão particular realmente mostra o passado de Warhol como ilustrador
comercial, pois os calçados não mostram sinais de desgaste e poderiam ser usados facilmente
em uma propaganda comercial.
O papel de Warhol no mundo da arte e da moda é reconhecido por tratar como
mercadorias mesmo as criações que são ou foram consideradas artísticas, e também propor
um encontro feliz e menos superficial de quanto é afirmado pelo próprio artista, entre arte e
moda, entre notoriedade e imaginação (DORFLES, 1988).
Figura 11 e 12: “Shoes, Shoes, Shoes”, 1955 e “Diamond Dust Shoe”, 1980-81, Andy Warhol.
Fonte: http://www.artesdoispontos.com/cvs.php?tb=cvs&id=6, acessado em 23/05/2010.
Para BARNARD (1996), este é o momento quando paradigmas são questionados. A
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identidade e a cultura são as idéias centrais. É a era da produção dos significados, que se
refletem por meio das três áreas analisadas. Questões urgentes relacionadas ao cotidiano
são intensificadas nos conceitos artísticos a partir da década de 1960, época de reviravoltas
ligadas à política e à cultura, mudando intensamente os paradigmas vigentes.
Desde os movimentos de vanguarda, grupos de arte procuram aproximar a arte da
vida. Artistas e designers — inclusive designers de moda — presenciam uma mudança
significativa de ordem material e sensível, como afirmam PRECIOSA e BELLUZZO (2008).
Para estas autoras, as esferas, situadas entre estética e o consumo, como a moda e o design,
costumam absorver das artes seus conceitos, atitudes e padrões, que posteriormente se
tornam linguagens acessíveis a um grande público.
Neste momento, a realidade não será apenas representada, surgem movimentos
valorizando “o comum”, o cotidiano e principalmente o individualismo. Segundo LYPOVETSKY
(1989, p.12) “A moda está nos comandos de nossas sociedades; a sedução e o efêmero
tornam-se, em menos de meio século, os princípios organizadores da vida coletiva moderna;
vivemos em sociedades de dominante frívola, último elo da plurissecular aventura capitalistademocrática-individualista”.
As áreas da arte e a da indústria influenciam o design com seus valores característicos,
o que demonstra que as criações de moda de calçados, assim como no vestuário, possuem
influência dos dois campos na construção de seus discursos e significados. No final da
década de 1980 e na de 1990, diversos artistas criaram sapatos como obras de arte. Alguns
exemplos destas criações são os da artista Yone Levine, nascida em Israel, que concebeu
com minúsculas contas de vidros antigas, presos à estrutura de arame, um sapato e a artista
Gaza Bowen, que confeccionou uma série de sapatos com materiais do cotidiano, como
esfregões, esponjas e escovinhas, elaborando uma crítica feminista ao questionado papel
tradicional feminino (O’KEEFFE, 1996).
Neste contexto, um olhar que explore tais diálogos poderá perceber que também no
campo do design de moda essas relações se complexificam. Podemos visualizar tais relações
a partir de criações de calçados contemporâneos de estilistas como Alexander McQueen e de
grifes como Dolce & Gabanna e Prada trilham novos caminhos para a linguagem artística e de
significados na dos trajes urbanos. Para MARINHO (2006, p.5):
Seria possível afirmar que criar constitui, por si, só um fenômeno apropriativo,
seja para o designer ou para o artista. Essa apropriação, contudo, como jogo
de linguagem, explicita-se quando o artista, e também o designer, deslocando
elementos do seu contexto, deixa nas formas finais, do projeto ou da obra, os
rastros que revelam o modo como foram apreendidas as informações e sua
origem.
Para GRANDI (2008, p.91) o estilista é considerado um “gênio criativo”, e em determinados
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momentos, pode “... concorrer com o artista no setor da pesquisa e da experimentação visual,
que por seu maior poder comunicativo e de imagem, quer por seu inegável poder econômico,
que, ao contrário, falta ao produtor de arte”.
Figuras 13, 14 e 15: Alexander McQueen primavera-verão 2010, Marc Jacobs primavera-verão 2008 e Prada
primavera-verão 2008. Fonte: www.style.com, acesso em 02/06/2010.
Segundo GRANDI (2008) moda e arte devem ser analisadas como repositórios culturais
que participam das mudanças dos modos de vida, de pensamento, de sintonia com o próprio
tempo, pois juntas, assim como o design, atravessam um período de intenso intercâmbio,
como em diversas áreas da produção material e ideacional, envolvidos nas mudanças sócioeconômicas e tecnológicas que contribuíram para mudar o nosso panorama de referência
global.
Considerações Finais
Desde a década de 1990, tornam-se cada vez menos evidentes as fronteiras entre a
arte e a moda pois, para GRANDI (2008), estas duas áreas, assim como outras relacionadas
à cultura, estética e criatividade, mesclaram suas modalidades expressivas e comunicativas,
perdendo em alguns momentos, sua especificidade de linguagem, facilitando o fenômeno de
sobreposição de uma área sobre a outra, dificultando a percepção do que pertence a uma
área ou a outra. O vocabulário da moda passa a utilizar com frequência termos da arte como
“instalação”v e “concept”vi.
Um exemplo que contribui para a visualização dessas conexões é o trabalho da artista
performática italiana Vanessa Beecroft (1969), que participou da 25°Bienal Internacional de
São Paulo. Suas obras de arte desconstroem a delimitação da arte e da moda, demonstrando
a existência de um contágio entre estas áreas em suas performances nas quais se utilizam
modelos nuas com características bastante parecidas, calçadas com sapatos de grifes famosas
como Gucci, Prada e Helmut Lang. Beecroft é aficionada por calçados de grife e diz apreciar
a combinação entre a consciência feminista e o clichê da mulher- objeto (ALZUGARAI, 2005).
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Figura 16: Performance “VB 45”: as modelos vestem apenas botas de Helmut Lang.
Fonte: http://www.terra.com.br/istoegente/138/reportagens/vanessa_beecroft.htm, acesso em: 03/06/2010
Desta forma, podemos então refletir que a arte, os artistas contemporâneos, estilistas
e designers possuem diversos pontos de contato enriquecedores em suas atividades,
apropriando-se da moda e seus meios de difusão, com suas estratégias comunicativas e
promocionais e seu aparato glamoroso para atingir uma visibilidade, como argumenta GRANDI
(2008). Desta forma, os conceitos de áreas como a da arte, design e moda estão em constante
diálogo, propiciando a interdisciplinaridade, através de relações complexas e criativas.
Este diálogo se desenvolve também por meio de criações de calçados, com suas
formas, volumes, proporções, detalhes, cores e significados, assim como na concepção de
uma obra de arte, representando uma época, pois notamos o crescente desejo de autonomia
entre os consumidores, que abrem espaço para o desejo de peças autênticas e inovadoras
em conexão com a cultura e a sensibilidade.
Notas
i A Art Decó foi um movimento internacional de design decorativo dos períodos da década de 1920
a 1930.
ii O cabedal é termo calçadista que significa parte superior do calçado.
iii O “telefone lagosta”, criado em 1938 foi realizado com as técnicas de metal pintado, gesso, borracha
e papel.
iv O “sofá de lábios” de Mae West foi construído com armação de madeira e coberta por cetim rosa,
realizado nos anos de 1936-37.
v Na arte contemporânea, obra tridimensional concebida e montada para ocupar uma área num
determinado recinto, e cujos diversos elementos ou dispositivos agem sobre o imaginário do expectador.
Sua exposição é temporária e a obra desmontada, subsiste através de registros fotográficos.
vi Arte Conceitual.
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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX
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