sexualidade e educação

Transcrição

sexualidade e educação
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SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO
JUDITE MARIA ZAMITH CRUZ
SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO
Ciência, História, Mito e Arte
2010
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SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO
FICHA TÉCNICA
Título
SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO
Ciência, História, Mito e Arte
Autora
Judite Maria Zamith Cruz
Autor da Imagem da Capa
Pedro Cortez Marques
Organização
Ana Paula Moreira Vilela
Edição
Cadernos Escola e Formação
do Centro de Formação de Associação de Escolas Braga/Sul
Execucação Gráfica
Minhografe – Artes Gráficas, Lda.
Braga
ISBN
978-989-96569-0-1
Depósito Legal
N.º 307773/10
Apoios
As opiniões expressas nesta publicação são da exclusiva responsabilidade da autora.
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SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO
For all things exist in the human imagination.
[… Para todas as coisas existe a imaginação humana.]
- William Blake, Jerusalém (1804-1820)
Though in many of its aspects
this visible world seems formed in love,
the invisible spheres were formed in fright.
[Embora em muitos dos seus aspectos
o mundo visível pareça formado em amor,
as esferas invisíveis formaram-se no sobressalto e no pavor.]
- Herman Merville, Moby Dick (1851)
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SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO
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SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO
Dedico este livro
Aos que abrem livros, portas para a fantasia criativa.
Aos que reconhecem no amor um turbilhão de fúria.
Aos que defendem que as emoções são um mistério inabordável.
Aos que pensam que a sexualidade é um enigma, perdendo o encanto ao ser nomeada.
Aos que vêem no amor um problema incontornável.
Aos que sugerem que falar de amor e de sexo conduz ao desencanto e nos mandam calar.
Aos que julgam poder continuar-se a etiquetar comportamentos, indiferentes a atitudes, valores
e ideologias que nos enformam.
Aos que pensam ensinar crianças, ainda que observem a sua ausência de compreensão.
Aos que educam para a sexualidade com base no estudo da vida animal.
Aos que ilustram com o desenho de órgãos sexuais e das funções implicadas com vista ao
domínio do conhecimento científico.
Aos que sustentam que os meninos e as meninas aprendem a ser adultos bastando-lhes olhar
para o que se passa na vida íntima dos adultos com quem compartilham as suas vidas
familiares.
Aos que pensam que a vida se encarregará de ensinar o caminho do amor, sendo invariavelmente cometidos erros como já aconteceu com os nossos avós.
Aos que assumem que grande parte das nossas vivências é de ordem imaginativa, envolvendose em utopias e quimeras.
Aos que ainda acreditam vir a descobrir a verdade do amor por esforço continuado.
Aos que escolheram quem amar.
Aos que alcançaram intimidade e não ficaram a amar sozinhos.
Aos apaixonados que ousaram subverter.
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SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO
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ÍNDICE
ÍNDICE
Dedico este livro . ............................................................................................................................................ 5
Nota de Abertura do Centro de Formação de Professores Braga-Sul.......................................................11
INTRODUÇÃO................................................................................................................................................. 17
CAPÍTULO I
Psicologia actual: perspectivismo nas abordagens construtivistas e narrativas
1. Difíceis mudanças na estrutura cognitiva da criança............................................................................ 27
2. Freud, Velázquez e Magritte: pensamentos maduros cruzados........................................................... 28
2.1. A imaginação é um processo psíquico assombroso ..................................................................... 30
2.2. O inconsciente no pensamento alemão......................................................................................... 31
2.2.1. Funções imagética e narrativa da mente ........................................................................... 31
3. Da psicanálise à psicologia narrativa ................................................................................................... 34
3.1. Visões do «eu» distintas: Freud e Watson.................................................................................. 36
3.1.1 O mundo de que não posso falar porque não o vivi:
a experiência mística oriental............................................................................................... 37
CAPÍTULO II
Educação Sexual na família, na escola e na sociedade: base evolutiva e desenvolvimental
1. Contextos de Educação Sexual formal e informal................................................................................ 45
2. O que é a sexualidade e quais são as zonas erógenas?..................................................................... 46
3. Educar para a sexualidade é simplesmente educar............................................................................. 46
3.1. Conceitos-chave: afecto, emoção, desejo, erotismo e pornografia............................................... 47
4. Valores e sexualidades......................................................................................................................... 48
4.1. Educação sexual, linguagens e atitudes....................................................................................... 49
4.2. Comunicação entre sexos e laços inter-geracionais..................................................................... 50
4.3. Amores incompreendidos e dificuldade de diálogo: Abelardo e Heloísa....................................... 50
4.4. Caminhos cruzados de fé e sexualidade....................................................................................... 51
4.5. As «fazedoras de anjos de Nagyrev»: mulheres que matam os seus maridos............................. 52
5. Sigmundo Freud tinha e não tinha razão na questão sexual................................................................ 53
6. Sexualidade e reprodução.................................................................................................................... 54
7. Desenvolvimento humano «normal».................................................................................................... 54
7.1. Primeiro amor incondicional: relação mãe-bebé............................................................................ 56
7.2. A plasticidade do cérebro da criança............................................................................................. 57
7.3. Brincadeiras na infância: feminilidade e masculinidade.................................................................. 58
7.4. Curiosidade de crianças de todo o mundo.................................................................................... 59
7.5. Educação inflexível e educação equilibrada do jovem.................................................................. 61
7.6. Adolescências «normal» e «tresmalhada».................................................................................... 63
7.7. Alice no País das Maravilhas: «- Mas quem sou eu?»................................................................... 65
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ÍNDICE
8. Amores adolescentes............................................................................................................................ 66
8.1. O casamento da «menor» japonesa Butterfly com um militar americano..................................... 66
8.2. Do amor casto de Adão e Eva ao casamento cristão.................................................................... 68
8.3. O amor «impróprio» na China maoísta – Verdita ......................................................................... 70
9. Amor adulto, função de aquisição de auto-conhecimento.................................................................... 70
10. Crenças e medos das doenças sexualmente transmissíveis ............................................................ 71
11. Os métodos contraceptivos e a gravidez desejada............................................................................. 72
CAPÍTULO III
O prodígio das histórias: verdade, ciência e nuances de amar
1. Palavra, imagem e significados............................................................................................................. 81
1.1. Primeira distinção entre mitos e grandes narrativas alegóricas.................................................... 82
1.2. O significado da imagem: metáfora e compreensão do mundo...................................................... 82
2. Os rituais humanos............................................................................................................................... 83
3. Verdade e amor platónico em «O Simpósio» - o valor da palavra........................................................ 84
4. Amores travessos.................................................................................................................................. 86
4.1. A descoberta do amor por Eros e Psyque – o valor da metáfora................................................... 86
4.1.1. O beijar é um acto pecaminoso?......................................................................................... 88
4.2. O amor em Mangaia, uma ilha do Pacífico..................................................................................... 89
4.3. O que é um acto sexual na tribo baruya da Nova Guiné?............................................................... 89
4.4. O enamoramento é limerence........................................................................................................ 90
4.5. Sobre Narciso: rejeição de Eco e vaidade castigada.................................................................... 91
4.5.1. «Efeito de Narciso» - as pessoas preferem pessoas mais parecidas consigo.................... 91
4.5.2. A «síndrome de De Clérambault» - certas pessoas preferem celebridades........................ 92
5. A química do amor entre Justin e Ursula ............................................................................................. 92
6. A «síndrome de Kluver-Bucy» - tentar fazer amor com pedras............................................................ 93
7. A observação do cérebro do macaco no acto sexual e o comportamento sexual humano.................. 93
8. Existe um cérebro gay?......................................................................................................................... 96
9. A bênção no amor................................................................................................................................. 96
10. A alquimia no amor cortês e no amor sexual........................................................................................ 96
10.1. O amor cortês medieval, segundo Guilherme da Aquitânia...................................................... 96
10.2. O amor sexual no Rosarium Philosophorum (1550): a alquimia . ............................................ 97
11. Tristão e Isolda: a realidade absoluta de um sonho de amor envenenado......................................... 98
12. Uma tragédia de ciúme: Otelo de Shakespeare................................................................................. 99
13. Três contos de fadas: O Capuchinho Vermelho, A Bela Adormecida e A Branca de Neve.............. 100
14. Lendas inesquecíveis: a busca do prazer no sabor de um morango silvestre................................. 101
CAPÍTULO IV
O fascínio pelas artes plásticas e pela escrita: história, arte e nudez
1. Nudez real, imaginária e simbólica..................................................................................................... 109
2. Avaliações subjectivas de beleza.........................................................................................................111
2.1. Critérios estéticos antigos e contemporâneos..............................................................................111
2.2. Características ocidentais do companheiro indesejável...............................................................113
3. Nudez e sonho na arte.........................................................................................................................113
4. A pornografia, o erotismo e a censura à escrita...................................................................................114
5. O tratamento da nudez na pintura renascentista.................................................................................115
5.1. O tema mitológico de Leda e o cisne trabalhado por Poussin, Melzo e Dalí...............................116
5.2. A mulher nua de costas de Jean Auguste Ingres..........................................................................118
6. A Era Vitoriana: crítica de costumes e eliminação da nudez por William Hunt....................................118
7. A nudez na publicidade do século XXI.................................................................................................119
8. A pintura crítica de velhos costumes: Paula Rego................................................................................ 120
9. Educar para a cultura.......................................................................................................................... 122
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ÍNDICE
CAPÍTULO V
Símbolos sexuais, culturas e sociedades
1. Diferença de significados: biologia animal, cultura e sociedade......................................................... 127
1.1. O belo e frágil pavão emplumado................................................................................................ 128
1.2. A simbologia da pomba branca.................................................................................................... 128
2. Sexualidade em símbolos: deuses, artefactos e rituais populares .................................................... 129
2.1. As representações gregas de Leto, Artemísia, Deméter e Dionísio com as Ménades................ 129
2.2. A mandorla e o vesica piscis: símbolos sexuais femininos.......................................................... 131
2.3.O Sheila-Na-Gig: sexualidade e protecção................................................................................... 132
2.4. A cornucópia: corno da abundância............................................................................................. 132
2.5. Exuberantes gigantes itifálicos.................................................................................................... 133
2.6. Outras representações fálicas exorbitantes: símbolos de poder, sexualidade e prazer . ........... 134
2.6.1. O Maypole: a elevação do pau gigante na Primavera....................................................... 135
2.7. A boneca de milho: fertilidade primaveril..................................................................................... 136
2.8. O bolo de noiva: união familiar e alimento................................................................................... 137
2.9. O ônfale do Templo de Delfos: pedra sagrada, umbigo ou clítoris.............................................. 137
2.9.1. A morte da Suma Sacerdotisa de Delfos às mãos de Apolo:
imposição do poder masculino........................................................................................... 138
2.9.2. O clítoris: etimologia da palavra, encobrimento e excisão................................................ 138
2.10. Significados sexuais em jóias, amuletos e feitiços de amor...................................................... 139
3. Simbólico sexual, forma de comunicação humana............................................................................. 140
CAPÍTULO VI
Sonhos sexuais e alegorias de criação do mundo
1. Sonhos: o medo, a criatividade e o simbólico....................................................................................... 147
2. Os sonhos milenares: presságio e origem de mitos........................................................................... 150
2.1. Sonhos recorrentes e adivinhação.............................................................................................. 150
2.2. O sonho eterno de voar no mito de Dédalo e Ícaro..................................................................... 151
3. A vida é sonho..................................................................................................................................... 152
3.1. Sonho parte integrante da vida .................................................................................................. 153
4. A vida é sonho lúcido?......................................................................................................................... 155
5. Interpretação de sonhos e sexualidade: primeiras tipologias de sonhos............................................ 156
5.1. Santo Agostinho e o pesadelo de visões terríficas: o pecado original......................................... 157
6. Contemporaneidade e interpretação dos sonhos............................................................................... 158
6.1. Interpretação freudiana.................................................................................................................... 158
6.2. Interpretação junguiana................................................................................................................... 160
6.2.1. Sonho de primeiro nível – não simbólico.................................................................................. 160
6.2.2. Sonho de segundo nível – confuso.......................................................................................... 161
6.2.3. Sonho de terceiro nível – simbólico ......................................................................................... 161
7. Que sentido podem fazer certos sonhos?.......................................................................................... 162
7.1. Antiga visão da exterioridade dos sonhos................................................................................... 163
8. Grandes narrativas espirituais expressas em sonhos: sentidos de vida............................................ 165
8.1. O ADN cultural da humanidade................................................................................................... 165
8.1.1. Exemplares de literatura alegórica........................................................................................... 165
8.1.2. As aventuras duma mulher primordial «casada» com uma árvore . ........................................ 166
9. A grande narrativa cristã...................................................................................................................... 167
9.1. O mito do pecado original............................................................................................................ 167
CAPÍTULOS VII
Ídolos efémeros, mitos ancestrais, amores e sexualidades intemporais
1. Juventude e insatisfação humana . .................................................................................................... 175
1.1.O mito da procura: o Julgamento de Páris................................................................................... 177
1.2. O mito de fealdade, rejeição e castigo: Galateia e o Polifemo.................................................... 180
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ÍNDICE
2.Mitos de amor filial e de amor romântico............................................................................................. 180
2.1 O mito grego de Édipo: relações humanas (in)flexíveis .............................................................. 180
2.1.1. A maléfica esfinge e o desejo de saber ............................................................................ 182
2.2.O mito de amor filial chinês: a ambivalente princesa Ma-Ku....................................................... 183
2.3.O mito indiano de amor erótico de Crixna e Radha..................................................................... 184
3. Mitos de fertilidade e prestação de cuidados ao novo ser: animais e divindades................................. 185
3.1. Um animal símbolo de fertilidade: a lebre.................................................................................... 186
3.2. Uma noção realista da fecundidade e do cuidado maternal: a porca.......................................... 186
3.3. Mitos com animais trabalhadores ou desprezíveis, símbolos da mãe-vida
ou da esposa devoradora............................................................................................................ 187
3.4. Deuses sedutores, metamorfoseados em Deusas e animais: Zeus, Hermes e Posídon............ 188
3.5. Um mito de nascimento realmente impossível: Vénus ............................................................... 189
CAPÍTULO VIII
A perspectiva arquetípica da mente
1. O inconsciente colectivo de Carl Gustav Jung..................................................................................... 195
2. Anima e animus................................................................................................................................... 196
3. Criaturas multifacetadas, personas e almas ...................................................................................... 198
3.1. As mulheres guerreiras: valquírias e amazonas.......................................................................... 198
3.2. Don Juan: uma persona em acto................................................................................................. 199
3.3. A «síndrome de Casanova»: uma persona ingrata...................................................................... 200
3.4. Os súcubos e os íncubos, sôfregos sugadores de energia alheia.............................................. 202
3.5. Casos de mulheres bíblicas assassinas: Salomé e Judite.......................................................... 202
3.6. Sereias dos mares, armadilhas de marinheiros........................................................................... 204
4. O arquétipo sombra presente no gigante Zammurrad e na dupla Mefistófeles-Doutor Fausto.......... 205
5. O arquétipo mãe e o psiquismo do próprio Jung ............................................................................... 207
CAPÍTULO IX
Diversidade humana: sexualidades e tantrismo
1. Dois conceitos do século XXI: alteridade e diversidade........................................................................ 215
2. O eu indiviso no hermafroditismo de humanos e de Deuses.............................................................. 215
2.1. A heróica Ayyappan, filha de dois pais Deuses........................................................................... 217
3. Dualidade oriental revisitada: o «eu» é co-dependente do outro........................................................ 219
4. Tantra, a energia erótica...................................................................................................................... 220
4.1. O tantrika.......................................................................................................................................... 220
4.2. Símbolos sexuais tântricos: Triângulo Duplo, Yoni Yantra e Yab-Yum........................................ 221
4.2.1. O Shri Yantra: a consciência e o Cosmos......................................................................... 222
4.3. Uma figura-chave do tantra: Cáli, «a Demoníaca»...................................................................... 223
4.3.1. Os mais tocantes símbolos sexuais tântricos: o yoni e o linga.......................................... 225
5. O poder (Shakti) de Xiva: a Sexualidade Cósmica............................................................................. 227
6. A relação subtil corpo-mente: o corpo etéreo e as chakras................................................................ 228
Posfácio........................................................................................................................................................ 237
Referências................................................................................................................................................... 239
Fontes das Ilustrações................................................................................................................................ 247
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NOTA DE ABERTURA
Nota de Abertura
“A criação de um milhar de florestas está numa bolota”
Ralph Waldo Emerson
A edição de mais um número da colecção do Centro de Formação Braga/Sul, Cadernos Escola e Formação, constitui o corolário de uma série de indagações, reflexões e apontamentos
que foram perpassando em acções de formação onde a temática da educação sexual foi reflectida
e aprofundada por professores dos ensinos básico e secundário afectos ao Centro de Formação de
Associação de Escolas Braga/Sul.
Nessas acções de formação, as estratégias de abordagem dos conteúdos adoptados foram assaz inovadoras. Recorreu-se à história dos mitos, a estórias ilustradas, à pintura, escultura, à ópera, etc..., numa miscelânea de recursos com vista ao aprofundamento dos conceitos da psicobiologia da sexualidade, associados a fenómenos culturais e simbólicos de tempos e lugares
antípodas no mundo, quer estes se evidenciassem no Ocidente ou no Oriente, eleitos para cumprir
os propósitos da formação.
Logo, a interdisciplinaridade e transversalidade das ciências e das disciplinas foi uma consstante na formação, tendo-se apelado à imaginação e criatividade dos formandos que, de imediato,
aderiram a estas propostas de trabalho, reconhecendo nelas uma forte viabilidade de implementação e exploração na sala de aula, pelas potencialidades que encerram as novas abordagens
psicopedagógicas. Referimo-nos, naturalmente, a abordagens construtivistas na aprendizagem,
através da utilização de narrativas eivadas de simbologia que aqui neste livro se patenteiam e valorizam, pretendendo-se impulsionar o uso de recursos pedagógicos menos usuais.
Este desígnio assume particular relevância com o recente edifício jurídico sobre a aplicação
da educação sexual em meio escolar, consagrado na Lei nº 60/2009, de 6 de Agosto, que regimenta
a respectiva aplicação. Apazigua-se, no novo normativo, a velha dissenção entre os que defendem
que a educação sexual se resume à educação para saúde, associada à dimensão da sexualidade
reprodutora e à prevenção de comportamentos de risco, e os que subscrevem que não existe educação sexual fora da educação para a sexualidade, ou educação da sexualidade no contexto dos
afectos, valores e atitudes.
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NOTA DE ABERTURA
Diz-nos a nossa parca experiência que, neste assunto, se tem privilegiado a abordagem da
dimensão biológica em detrimento de outras dimensões, igualmente importantes, como as de natureza afectiva, cultural, social, ética e jurídica. A nova lei apresenta a educação sexual como matéria
de “educação nacional”, entronada no sistema de ensino como conteúdo curricular, tranversal às
diferentes disciplinas, ancorado, tal como previa o Conselho Nacional de Educação, no “Projecto educativo das escolas, sendo estas obrigadas a integrá-la num projecto de intervenção, que
deve ser elaborado, realizado e avaliado com a participação da comunidade educativa” (parecer
nº2/2009, de 26 de Março).
Neste sentido, este livro pretende fazer a simbiose entre diversas dimensões passíveis de
abordagem na educação sexual, sempre com propósitos pedagógicos e que impliquem também a
abordagem de uma outra facetada educação sexual: a implícita/inconsciente, a que se agarra ao
modo de viver e que decorre do ambiente familiar, da conversa com os amigos, dos contactos sociais, propiciando-se os dois modos de desenvolvimento nas crianças e adolescentes – o cognitivo
e o simbólico. Entretanto, o primeiro pode sobrepor-se ao segundo e ficamos mais capazes de
raciocinar, sem sentir e sem pensar de forma a imaginarmos meras possibilidades. O quotidiano
torna-se-nos ordenado, simples, lógico e linear.
Por seu turno, os sistemas simbólicos servem para categorizar e para comunicar com a imagem concreta, a fantasia criativa e a linguagem fluente. Os mitos, as narrações e os dramas histórico-culturais, melhor ou pior traduzidos na forma de contos para a infância ou em dramatizações
para adolescentes, permitem aos mais pequenos e aos jovens compartilhar histórias acerca do
mundo longínquo e acerca da origem da nossa história. Vistos como cânones, permitem ainda a
exploração dos significados de moralidade e de negociação entre o bem e o mal, o passado e o
presente, o futuro e o «eu».
Por outro lado, a cultura visual que também se explora neste livro possibilita-nos ir mais longe
-dá-nos a recriação com o imaginário, o simbólico e a existência, condições do domínio cognitivo
inconsciente e estava tácito.
O Centro de Formação de Associação de Escolas Braga/Sul esteve atento a estas novas
possibilidades de intervenção na sala de aula e quis sublinhar, com esta publicação, o contributo
inovador que emana desta nova abordagem da sexualidade e da educação, tendo lançado o repto
à formadora de transformar em livro algumas das sugestões que vaguearam nas referidas acções
de formação.
Trata-se, portanto, de um livro que não obedece aos cânones tradicionais de outras publicações sobre educação e sexualidade. Não se elegeu aqui a via das regras e preceitos que explicam o nome dos órgãos sexuais, não se prescreveram orientações sexuais e jamais se pretendeu
que constituísse um compêndio de teses indiscutíveis ou um receituário de aplicação simples e
automática. Esta publicação é, tão-só e apenas, o produto da reflexão dos educadores sobre temas
que foram debatidos na formação e que são, alguns deles, passíveis de abordagem com os nossos
alunos ou com os nossos filhos, no dia-a-dia das nossas vivências profissionais e pessoais com as
crianças e, principalmente, com os adolescentes.
Como já tivemos oportunidade de esclarecer, o presente livro percorreu um caminho pouco
concorrido, equacionados indivíduos, tempos e lugares de eleição que melhor veiculassem o es-
13
NOTA DE ABERTURA
clarecimento das temáticas afloradas. Ambicionou-se então realizar este livro como uma colagem,
no sentido outorgado por Max Ernest, ou seja, um encontro de duas realidades não relacionadas: a
escola e a vida. Nesse sentido, à vida foi dado um cunho de arte pela fantasia criativa incorporada
em palavras e imagens, expondo-se, a par, aspectos da psicologia evolucionista para a sexualidade, indicações fornecidas pela investigação psicológica recente, critérios de valor ético e tomadas de posição sobre situações contextualizadas de amor.
Por esta razão, este livro não constitui uma obra fechada, mas sim uma espécie de dossier
em construção para se ir completando, actualizando e partilhando por professores, pais, encarregados de educação e alunos ou na interacção entre eles. Também, por esta razão, não obriga a
uma leitura sequencial (do princípio ao fim), deixando ao leitor a iniciativa de o ler por capítulos, por
estórias, por imagens, ao sabor da criatividade, da imaginação e, principalmente, da curiosidade.
Informar, desmistificar preconceitos, observar a discriminação entre sexualidades e práticas
diversas, quer sejam de índole cultural, religiosa ou política, ultrapassar holisticamente as fronteiras da educação sexual recorrendo à sociologia, à literatura, à antropologia, à etologia, à história
da arte, à biologia, à psicologia, à psicanálise, à cinematografia, à literatura... explorando idiossincrasias, estórias ilustradas, narrações várias com o propósito último de propiciar aos professores
o fortalecimento dos seus saberes e o reconhecimento da sua autonomia na abordagem criativa
dos conceitos e, principalmente, na gestão curricular que se deseja ver assumida e fortalecida sem
excessivas orientações.
Facilita-se ainda o conhecimento da informação disponível através de um CD ROM que
contém as imagens desta edição e que podem ser utilizadas de forma interactiva, narrando-se as
interpretações que se oferecem para as mesmas. Confia-se assim ao professor a selecção dos
materiais mais apropriados a si mesmo, aos alunos, à escola e ao contexto em que se encontra.
Com o conjunto de recursos didácticos que aqui se apresentam, propicia-se uma correcta
aquisição dos saberes fundamentais sobre a sexualidade, o desenvolvimento harmonioso dos alunos pela abertura que é dada aos valores universais, ao apreço pelos traços distintivos da identidade sexual de cada um, despertando-os para as dimensões ética e artística da vida e para a curiosidade e a aventura da descoberta sistemática - são estes, aliás, os pilares sobre que repousam
o sucesso de todo o processo educativo.
Por último, diremos que todos nós, educadores, precisamos de aprofundar os nossos conhecimentos e, principalmente, de reflectirmos sobre eles, se quisermos educar para a sexualidade
livre e responsável. E teremos também de ser nós, enquanto suportes emocionais e modelos consistentes dos nossos alunos e filhos, a munirmo-nos de um manancial diversificado de linguagens,
arrancadas à floresta do conhecimento, que oriente e elucide os nossos jovens nesta problemática
da educação sexual. Aqui, neste livro, todas essas possibilidades se encontram em aberto.
Ana Paula Vilela
Directora do Centro de Formação de Associação de Escolas Braga/Sul
14
NOTA DE ABERTURA
15
SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO
INTRODUÇÃO
16
“Thomas em um Círculo” (1987) - Robert Maplethorpe.
A personagem no círculo é centro de uma energia intensa e incontida.
SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO
17
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
Desde tempos imemoriais mulheres e homens expressaram ideais em símbolos recorrendo
às suas potencialidades criativas e, de vários modos, acreditaram e acreditam nos Deuses e no
Cosmos. Os desejos e ambições humanas relativas a missões, actividades e afazeres diários foram
delineados enquanto desejos da própria Natureza1. Deu-se assim corpo a fenómenos naturais
sem nome, sem «personalidade» ou sem complexidade dramática. Incorporaram, simplesmente,
características dos seres humanos bem estranhas.
Assim sendo, a imaginação e a criatividade terrenas constituíram fontes de crenças, valores
religiosos e ideologias políticas, mas as pessoas conferiram poderes mágicos, transmissíveis por
via de mensageiros divinos, a heróis, animais, plantas, estrelas e a outras divindades lunares.
Povos animistas, Assírios ou Mesopotâmios da Ásia Antiga, viram-se rodeados de energias
e potências benfazejas ou de demónios temidos, a apaziguar no quotidiano2. Portanto, outros
seres reais ou fantásticos, (epi)fenómenos e objectos seriam os mediadores, mas a avaliação dos
seus poderes revestiu um carácter antropomórfico, realizada a partir do pensamento e sentimento
humano. Noções como as de regeneração das espécies e de fertilidade ligaram a sexualidade
à magia e ao sobrenatural. Este livro é sobre a influência do amor e da sexualidade na vida humana e sobre a tradição,
no panorama secular. De inovador, conta com o humor colocado no reconto e com o conhecimento sexual recente. Não vivemos tempos de sonho e ilusão no amor. Uma mãe que costumava
desconfiar de graças, disse muitas vezes ao seu filho, George Lucas, hoje realizador de cinema:
«- Não te aproximes muito das pessoas, porque elas pegam-te os seus sonhos».
Como um sonho, o sexo uniu a mente ao reino animal, mas também a outros seres humanos
e a Deuses do Universo. O estado divino possuiria uma energia magnética e povos orientais continuam a assumir essa materialização de energia para o crente atingir a transcendência/nirvana,
unidos os opostos – o princípio masculino e o princípio feminino.
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INTRODUÇÃO
Para além da elucidação de fenómenos culturais, aspectos relacionados com a psico-biologia da sexualidade perpassam este texto, privilegiando acontecimentos reais e estórias com
ilustrações escolhidas.
Este livro foi dividido em nove capítulos.
No capítulo I é introduzida a nova psicologia, cem anos após o seu surgimento não intempestivo.
Os psicólogos actuais pensam que as narrações desempenham valiosos papéis na construção da personalidade e do pensamento. Mesmo que as pessoas se reconheçam como racionais,
existem aspectos emocionais e inconscientes implicados nas suas decisões. Acresce o facto de, ao contar histórias, se utilizar um foco de percepção fantástica para a
criação de um estado psíquico em que a mente não está concentrada em uma realidade concreta.
A nossa percepção consciente fica amalgamada, sempre, com emoções internas e analógicas,
memórias inconscientes e percepções sociais da cultura envolvente3, de modo que o simbólico
é uma forma subjectiva da sua organização4.
Um dos mais reconhecidos investigadores em neurociência, Joseph LeDoux5, pensa que
Sigmund Freud (1856-1939) estava certo quando considerava o consciente como a ponta do
icebergue. A amígdala cerebral recebe estimulação emocional através do rápido caminho da terra
- o atalho de LeDoux - e fornece resposta automática e instantânea: saltar para trás ou lançar-se
para a frente…. Um quarto de segundo mais tarde a informação chega ao córtex frontal. Como
a via para a amígdala é mais curta, as reacções emocionais inconscientes são mais rápidas do
que as conscientes.
Sabe-se hoje existirem mecanismos psico-fisiológicos accionados pelo êxtase sexual que
permitem essas ou outras predisposições do poder sexual (sem controlo), fracassando ou sendo
subjugadas áreas cognitivas superiores. A sexualidade chega a infiltrar-se nos lobos frontais,
zona cerebral de concepção de ideias abstractas e elaboradas, o que leva a enredar, talvez,
sexo e ideais éticos. Quando nos apaixonamos, o cérebro opera com base no funcionamento de duas substâncias recentemente analisadas: a feniletlamina (PEA) - a hormona do amor6 - que nos transmite
a sensação de andarmos nas nuvens, e a oxitocina7, que tem vindo a ser estudada a partir do
contacto de pais com recém-nascidos.
No capítulo II reaprecia-se a relação do bebé com os seus cuidadores. Sendo o primeiro capítulo destinado ao enquadramento psicológico, o segundo capítulo remete ainda para a educação sexual formal. Ensaia uma tomada de consciência para os valores éticos e
sociais.
A Escola não pode alhear-se do que se realiza em investigação científica nem do que ocorre
no mundo cultural ou político.
19
INTRODUÇÃO
Há vinte anos não podíamos imaginar o que hoje se sabe sobre o cérebro sexual, nomeadamente no que se refere ao papel fulcral dos neurotransmissores: a dopamina, a serotonina e
as endorfinas, estas últimas consideradas os opiáceos do cérebro. À química sexual será dado
valor no capítulo III, onde se alude a diferenças cerebrais auscultadas em homossexuais. Curiosamente, ocorre que indivíduos ditos pinga-amor têm baixos níveis de PEA, mesmo que efectuem
assédios amorosos continuados8.
Para além do conjunto de informações biológicas, um outro tipo de orientações e narrações
surge ao longo deste texto. É impossível não tocar nas tradições religiosas que sempre tiveram
um papel activo na educação e na legislação sobre sexualidade.
No capítulo III, distinguem-se de novo concepções teóricas, nomeadamente a verdade possível
para o conhecimento científico distinto de verdades relativas a imagens para cultos religiosos ou
a sentimentos como o amor. Contingências relacionadas com a leveza da vida e da sexualidade
serão igualmente relatadas.
O capítulo IV integra os poderes estabelecidos e as convenções adoptadas em matéria
de estética sexual. Abrange a Educação Sexual, mas partindo de épocas históricas diversas e
concepções artísticas dominadas pelo tempo e espaço cultural.
O Humanismo e o Renascimento são os períodos históricos a que daremos maior relevo.
No Ocidente, somente com o Renascimento dos séculos XV e XVI o cientista, o rei ou o papa
abandonaram a perspectiva de serem o macro-cosmos controlado por estrelas e planetas, ao
gosto medieval em que a alma estava atormentada por medos, sofredora na carne e esfomeada
de vida. O corpo ganhou então inteireza na pintura e na escultura. Tal não impediu que muitas
vozes perpetuassem a inflexibilidade psicológica para se oporem à aceitação de direitos humanos
de expressão e comunicação artísticas.
No Oriente, em que outras culturas e tradições religiosas imperaram, o ser humano continua
a ser esse macro-cosmos ligado a tudo por uma espiral cósmica, sinal de vida, desenhada sobre
o corpo. O espírito/mente deixa o corpo a dormir e torna-se errante no Universo Espiritual.
Ao longo do capítulo V será focado o simbolismo invulgar relacionado com a sexualidade,
ainda que uma palavra ou objecto não correspondam, invariavelmente, a essas representações.
Uma caixa, uma bolsa ou uma gruta sugerindo receptáculos não são formas de representar o
aparelho sexual feminino, invariavelmente.
As culturas distinguem-se em questões básicas de existência e de imaginário, mas também
se aproximam no que nos torna mais humanos. Uma expressão muito divulgada é, precisamente,
sermos animais simbólicos. A noção de Ernest Cassirer (1874-1945) disseminou-se e esqueceuse. Recria-se-á também a faceta complementar do imaginário no mito. Do ritual antigo às artes,
do sonho à teoria dos números, à Física Nuclear, criamos imagens, símbolos e metáforas que
fazem parte dos nossos organizadores implícitos de (auto-)conhecimento.
20
INTRODUÇÃO
Acontece interessarmo-nos primeiro pelo que nos é mais distante e somente depois nos
questionamos. Assim sendo, na origem do mundo encontramos a forma redonda, um símbolo
do mito da criação. Na Europa Neolítica, quando as pedras eram já polidas e arredondadas, as
espirais seriam sagradas, observados os monumentos megalíticos. Uma espiral ligar-se-ia ao
nascimento e à morte, por entrar e sair da terra. Os próprios desenhos de labirintos com espirais,
em templos medievais, mostraram decorações inspiradas em templos religiosos mais antigos.
Essas construções são documentadas, em particular, por Barbara Walker9 e por Jean Chevalier
e Alain Gheerbrant10 que nos elucidaram sobre símbolos sexuais.
No capítulo VI e no capítulo VII dá-se relevo ao sonho, ao imaginário e ao simbólico, sendo
fornecidos exemplos de diferenças de compreensão e valor conferido a ideias abstractas.
O sonho cumpre funções simbólicas. Primeiro, acreditou-se que os sonhos foram produzidos por demónios para trazerem tensão, esperança, maldição ou remédio.... A maior parte dos
sonhadores vêem os sonhos e a sua imagética simbólica combinar o que se sente e pensa com
o modo como se é - a personalidade -, de forma a serem compactadas recordações pessoais,
na forma emergente de sonhos.
O mito é herdeiro do imaginário, consumado em grandes narrativas espirituais. Tal como os
contos e as lendas, permitem-nos compartilhar histórias acerca da sexualidade no mundo, acerca
da sua origem (o ovo primordial) e acerca do futuro promissor.
Mas subjacente ao sonho e ao sonho acordado, encontra-se a esfuziante mente humana.
«Mente» é um conceito deveras complexo, com significado plural11: cérebro (sede de actividade
psíquica), fantasia, imaginação, razão, intelecto (faculdade intelectiva da alma), espírito (conjunto
de funções «superiores» da alma), inteligência, vontade e intenção.
Freud juntou nesse lugar - a mente humana -, o sexo e a emoção, ou seja, os elos da
corrente psicanalítica para a integração da relação corpo-mente. Através do sonho, por exemplo,
abriam-se as portas do inconsciente e acedia-se a algo inominável ou ao amor intangível.
O sexo é essa potência emocional poderosa. Foi vislumbrado em actos «estranhos» por
Freud e analisado nos seus pacientes12: o pequeno Hans/Joãozinho (que tinha uma fobia de
cavalos); o Homem dos Ratos; Dora; o Homem dos Lobos (que foi definido como um caso de
neurose obsessiva). O Caso de Anna O. (cujo verdadeiro nome era Bertha Pappernheim) constitui
o exemplo mais conhecido de «histeria».
Ao sexo também se continua a atribuir o poder de anular a ruptura entre o ser humano e
o Universo, por via da transcendência, luz do conhecimento ou magia.
O capítulo VIII destaca a mitologia pelo pensamento de um homem místico, Carl Gustav
Jung (1875-1961), um dos primeiros discípulos de Freud.
Por último, no capítulo IX, reata-se a visão do eu-no-mundo, sublinhando-se a relação humana e as práticas sexuais tântricas, bem distantes de nós.
21
INTRODUÇÃO
Mas como é que outros povos, como os hindus, se abeiram do mundo? Na arte indiana, as
imagens são bem diferentes das ocidentais.
Figura nº 1 - Desenho indiano de espiral cósmica em corpo feminino,
integrando os quatro elementos da Natureza – J. G. Gritchel (1898).
No hinduísmo, certas partes do corpo ligam-se a quatro elementos de que carecem para
se enquadrarem no Universo: o ar para a bexiga; a água para o fígado; o fogo para o coração;
e a terra para os pulmões.
Esses quatro componentes surgem na obra Mahanirvanatantra13, em Cáli, a Deusa Pré-Védica dos sons La (terra), Va (água), Ya (ar) e Ra (fogo), sendo o fogo (calor vital) e o ar (fôlego)
mais elaborados14. Aliás, foi o fígado (ligado à água) o assento das paixões para as civilizações
da Antiguidade, do Mediterrâneo e do Próximo Oriente, concepção essa que continua a ter peso
22
INTRODUÇÃO
para os tuaregues do rio Níger, em África15. Para os Astecas16, a dualidade primordial continua
a ser sustentada pelo fogo e pelo firmamento (ar), associados ao homem, e pela terra e pela
água, ligadas à mulher. Mas os quatro elementos ou átomos clássicos são negados pelo conhecimento actual, tal
como o éter que serviria à noção grega de corpos astrais, estelares17.
Ao olharmos as estrelas interrogamo-nos sobre o que está para além de nós, pensando,
por exemplo, no desenvolvimento humano. Existe uma imagem sugestiva para esse fenómeno
- uma nebulosa, cuja forma é espiralada. Uma nebulosa constitui também um enigma, embora
não seja um mistério incompreensível.
«- Como é que vivemos a vida amorosa?» Concebida como espiral, deixa de haver progressão
na medida em que ocorre distensão e encolhimento. Ligamo-nos ao mundo e constrangemo-nos
no nosso quarto, alternadamente.
Figura nº 2 - Nebulosa em espiral, que surge no espaço como massa luminosa.
O recolhimento é sugerido pela meditação. No hinduísmo, impõe-se a figura da mandala,
elemento de contemplação da vida discutido no capítulo IX e também relacionado com o tantrismo.
Em particular o amor, segundo concepções possíveis, admite outras formas de enleio e
embevecimento no mundo. Para a maioria, o desenvolvimento desse sentimento é uma subida
linear para o casamento; para outros, um círculo estonteante; para alguns, poucos, uma escalada amorosa e queda intermináveis... O desenvolvimento emocional também não termina na
adolescência, como o pensaram abordagens funcionalistas, com ênfase em processos internos
e estádios de desenvolvimento. Existem formas mais ou menos harmoniosas de viver. Esses são
aspectos que nos parecem importantes em educação, ensaio para a vida.
Certas pessoas pensam que é necessária concentração apurada para se chegar além do
pensamento centrado no quotidiano. É o que se observa nos praticantes de Ioga. A atenção
flutuante é outro método em que não se focaliza a atenção no que se pensa e no que se fala.
23
INTRODUÇÃO
Formulamos perguntas: «- Sou masculino?»; «- Como devemos agir?»; «- Quantas vezes já agi
inadequadamente?». «- O que é amor? E paixão feminina?».
Entretanto não nos iludamos. Existem questões de género a considerar porque em todas as
sociedades o homem detém o poder, mesmo que confira à mulher faculdades especiais.
Podemos dialogar sobre o que nos faz questionar. «Tudo é mesa para o pensamento»,
defendeu já o poeta açoriano Herberto Hélder.
Pelos motivos expostos, idealizaram-se múltiplas vias para um livro cuja importância não radica
tanto no que se escreve, mas nas associações evocadas no leitor. Mais uma vez, tal como em
sonhos, utiliza-se a associação de ideias, uma ideia levando a outra ideia, próxima ou remota, a um
facto há muito esquecido, a uma experiência transformadora do «eu», fontes de emoção intensa.
Figura nº 3 - Gravura intitulada Préparation au Cauchemar («Preparação para o Pesadelo») - 1878.
E mesmo que o amor não mova o mundo, torna-o o melhor lugar para viver.
Notas
Introdução
1. Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 16).
2. Norman MacKenzie (1965, trad. fr. 1966, p. 32).
3. Rita Carter (1998, trad. cast. 1998).
4. Norman MacKenzie (1965, trad. fr. 1966, p. 19).
5. Joseph LeDoux (1996; trad. port. 2000).
6. Michael Liebowitz, 1983 (cit. por J. Renaud, 1983). A estrutura química da PEA é semelhante à
das anfetaminas, o que implica aumento dos batimentos cardíacos, pensamento acelerado, perda
de apetite, perturbação do sono e pupilas dilatadas (Winston, 2003, p. 389).
24
INTRODUÇÃO
7. Kerstin Uvnas-Moberg (1995, 1996).
8. Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 247).
9. Barbara Walker (1988, trad. port. 2002, p. 20). Para escrever o seu Dicionário de Símbolos e
Objectos Sagrados da Mulher, Walker demorou mais de vinte anos, tendo concebido uma base
feminina para o seu pensamento, daí a alusão frequente à Deusa-Mãe e à Grande Mãe.
10.Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (sem data, trad. port. 1997).
11.Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (1972). Lisboa: Verbo, nº 13.
12.Os Estudos de Caso focados são apresentados por Sigmund Freud nas seguintes obras, respectivamente: Freud (1909, trad. fr. 1954, pp. 93-198); Freud (1907-1909, trad. fr. 1954, pp. 199-261);
Freud (1905, trad. fr. 1954, pp. 1-91) e; Freud (1918, trad. fr. 1954, pp. 325-420).
13.Mahanirvanatantra (1972).
14.Dizer que o fogo e o ar são mais elaborados do que outros elementos (terra e água) significa
que, posteriormente, foram considerados masculinos, enquanto os outros dois elementos, notados
femininos, passariam a ser conotados como obscuros e frios (Walker, 1988, trad. port. 2002, p.
19).
15.Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 58 e p.164).
16.AA.VV. (2004, p. 29).
17.Barbara Walker (1988, trad. port. 2002, p. 17). O éter não é um elemento químico, mas é um
composto orgânico de ácido sulfúrico e álcool.
25
PSICOLOGIA ACTUAL
CAPÍTULO I
Psicologia Actual
Perspectivismo nas abordagens
construtivas e narrativas
26
PSICOLOGIA ACTUAL
“Catax” (1929) - Francis Picabia.
A figura feminima é vista de várias perspectivas, sendo sobrepostas na composição a mão, a íris do olho e
outras partes do corpo. As rosas compõem a pintura, simbolizando o amor. Esta obra faz parte do conjunto
intitulado “transparências”.
27
PSICOLOGIA ACTUAL
CAPÍTULO I
Psicologia actual:
perspectivismo nas abordagens construtivistas e narrativas
1. Difíceis mudanças na estrutura cognitiva da criança
No quotidiano, acordado e exigente, a retórica ou a argumentação continuam a transmitir-nos
orientações sexuais «adequadas» (culturais) e indicações religiosas relacionadas com o saber
alegórico e com a metáfora cultural. Assim sendo, os exemplos de natureza animal, as fábulas, as
pequenas estórias, as imagens e as próprias comparações e metáforas educam de forma menos
tradicional. Conhecemos muitas narrativas que poderão servir essa intenção se adaptadas ao nível
de desenvolvimento dos alunos e a contextos diferenciados. Importa não afastar uma criança da sua
história local, mas também não se justifica desligá-la de outros terrenos como a arte e a literatura
mundiais, essas desconhecidas. As tradições, a serem criativas, incorporam elementos inovadores,
potenciadores da mudança social. Quando se conta uma história a crianças, convém incorporar o dissonante, o desconhecido
e o inesperado. Assim, elas exercitarão também competências de crítica e reflexão ao explorarem
temas reais e actuais, históricos e fantásticos1, sem manutenção de esforço. As crianças pensam em forma narrativa, até mesmo mais do que os adultos. Quando um professor lhes pergunta como passaram um fim-de-semana ou umas férias aprazíveis e movimentadas,
será provável que organizem os eventos em narrativas.
Nessa acepção narrativa, falar de Educação Sexual implica insistir na mudança de ideologias,
valores e crenças. Ainda que se continue a insistir em mudar o mundo e a psicologia2 contribua para
a mudança humana, os fenómenos de transformação ocorrem, invariavelmente, entre pessoas,
sistemas biológicos que sentem em estruturas como a família ou a escola. Digamos que possuímos
modos de nos relacionarmos e de arvorarmos «identidade» definidos por processos profundos de
ordenação, não linguísticos3 mas em imagens, que conduzem à realidade experienciada, à prática
de avaliação (bem/mal, certo/errado…), à distinção de atitudes sexuais e à partilha social.
Entendidos como constructos centrais das crenças do indivíduo e dispositivos que dirigem
a experiência, o estudo desses processos cognitivos sugere que, aos cinco anos, uma criança já
tem uma opinião sobre os assuntos4 e que a mudança passará por novas situações que desafiem
28
PSICOLOGIA ACTUAL
ideias derivadas de scripts (guiões, roteiros, enredos dramáticos da vida), estereótipos sociais (sem
individualização: os negros, os ciganos, as mulheres, os homossexuais…) e cenários culturais (a
casa, a escola, a igreja da minha terra…). Scripts emocionais são estruturas cognitivas básicas,
associadas ao que é regular e imutável, por oposição ao que é irregular (opcional): repetidas festas
de aniversário, idas ao supermercado…
Essas estruturas de pensamento, para sequências predeterminadas de acção, podem ser complexas - a ambivalência amorosa, a inveja profissional ou o altruísmo social5. A criança já observou
alguém amar e odiar ao mesmo tempo a mesma pessoa, alguém desejar possuir algo de outrem,
alguém efectuar uma bondosa acção… Na infância, assimilamos muitas histórias que operam em
simultâneo, com base em saberes quotidianos e televisivos. Na idade adulta, os scripts incorporados
podem rondar as centenas6. Desde pequenos que desenvolvemos «teorias»7 e agimos de acordo
com essas estruturas cognitivas. Nos relatos de adultos sobre as suas experiências criativas8, estes
enfatizam a transformação pela palavra. Ainda que se sugira não bastar verbalizar, mas também
sentir e pensar, impomo-nos agir em conformidade com a linguagem.
A forma escolhida de debater atitude e comportamento sexual, com suporte em símbolos, na
historiografia9 e no mito, passou pelo recurso metafórico, iniciando-se este texto por estabelecer as
fronteiras sem limites entre ciência psicológica e arte.
2. Freud, Velázquez e Magrite: pensamentos maduros cruzados
De ascendência portuguesa pelo lado paterno, Diego Rodriguéz de Silva y Velázquez (1599-1660) foi um pintor cortesão sevilhano que se iniciou no serviço da corte espanhola de Filipe IV
(que reinou entre 1621 e 1665), em 1623, com apenas 24 anos. Primeiro, impôs à pintura realismo
e grandeza. Com a força da idade, criou intimidade e, em simultâneo, distanciamento face ao que
pintava.
Figura nº 4 - Retrato de Diego Velázquez (1590-1660).
Figura nº 5 - Fotografia de Sigmund Freud, em 1921.
Sigmund Freud (1856-1939) foi o primeiro psicanalista a tentar explorar a faceta inconsciente
do fluxo de consciência. Acreditou que os sintomas neuróticos das pessoas se relacionavam com a
vivência consciente e inconsciente.
29
PSICOLOGIA ACTUAL
René Magritte (1898-1967) foi um pintor belga que impressionou pelo carácter de dissociação
(ausência de associação) dos objectos e figuras incorporadas nas suas obras artísticas.
Figura nº 6 - Fotografia de René Magritte com Georgette, em 1928, no Jardim das Plantas, Paris.
Para introduzir a psicologia do século XXI apresentamos duas imagens de pinturas de dois
mestres, Velásquez e Magritte, respectivamente nos pontos 2.2.1. e 3.1. A primeira - As meninas retrata as concepções do quanto mudamos e os reflexos dessa mudança no futuro10, construindo
projectos guiados por múltiplos pontos de vista. A segunda - Poison («Veneno») - induz a noção de
que vivemos não somente a partir de dentro, mas a partir de fora, do exterior físico e social. Somos
influenciados pelo que se passa na mente (cá dentro) e, simultaneamente, pelo contexto envolvente.
Essa é uma perspectiva não dualista da mente, apelidada de tendência monista, em que o
cérebro é visto como incorporado no corpo, este, por sua vez, incorporado no meio circundante e
assim nos situamos em pequenos nichos significativos11 repletos de pares afectivos com quem estabelecemos relacionamentos íntimos: amigos, familiares, colegas de trabalho, professores…
Com esse suporte emocional, o desafio cognitivo e a aprendizagem por descoberta revelarse-ão agradáveis. Nesse ambiente propício, sucede associarmos ideias de domínios diferentes,
procedendo mentalmente segundo ideias próximas ou remotas12. Estas últimas revelam-se mais
tentadoras e criativas do que aquelas, tidas por óbvias e culturais, próximas da frase feita e da
expressão coloquial.
Podemos começar por elucidá-lo, precisamente, com Velázquez e Freud distanciados pelo tempo
e cujos pensamentos são distintos (visual e linguístico), mas que nos farão chegar a apreensões
abstractas decorrentes do seu conhecimento explícito e implícito13. Não podemos nem precisamos
de explicar tudo.
Digamos que, aparentemente, nada une Velázquez e Freud, para além de serem ambos taciturnos e terem medo de viajar para longe de casa.
Sobre Velázquez, Ortega y Gasset chegou a afirmar que foi alguém que, exemplarmente, soube
não existir14. Viveu perto de 40 anos ao serviço do rei Filipe IV de Espanha (Filipe III de Portugal), tendo
pintado 34 retratos do monarca. O rei amigo chamava-lhe fleumático – instável e introvertido. Freud explicou a sexualidade por mitos e alcançou reconhecimento e notabilidade europeia.
As diferenças evidenciam-se quando se tenta aproximar Freud do pintor Magritte. Enquanto o
primeiro desejou encontrar em formas alongadas (charutos, armas de fogo, espadas, cobras, guardachuvas...) o simbolismo fálico, o segundo procurou sempre afastar a interpretação psicanalítica da
30
PSICOLOGIA ACTUAL
sua pintura. Magritte negou mesmo o traumatismo causado pelo suicídio da mãe e não quis, tal como
Velázquez, filiação na pintura «vanguardista».
Os três homens guiaram as suas vidas em sentidos únicos. Um tornou-se psicanalista e os
outros dois pintores. Tentar colocar esses domínios de actividade em comum passa por uma associação inusual e muita reflexão.
Freud nunca foi um artista e poderia ter-se tornado antes advogado ou general, caso não fosse
judeu15.
Ao contrário do realismo e naturalismo inicial de Velázquez, Magritte manteve estreito contacto
com o devaneio e o sonho, mas deu-lhe uma conotação lúcida16 criando o inviável e gerindo-o pela
sua mão.
2.1. A imaginação é um processo psíquico assombroso
A imagética (imagem e imaginação), o pensamento visual e o pensamento simbólico são processos psíquicos partilhados por pessoas, sejam professores, artesãos ou artistas. A todos esses
modos de pensamento acolhemos como graças fantasistas, mas tememos a diferença ou a conotação
psicopatológica. As pessoas aderem à «normalidade», adoptam comportamentos convencionais e
renunciam a desejos e a relações íntimas - «…as pessoas pegam-te os sonhos delas…», a mãe
previne o filho.
Verificamos que, por vezes, os indivíduos não seguem as normas familiares, as regras lógicas
dos manuais ou das proposições centrais às teorias do desenvolvimento de Jean Piaget (1896-1980)
ou Lawrence Kohlberg (1927-1987). O pensamento «racional» congrega emoção, face a objectos e
a pessoas, em situações quotidianas. Todavia, às vezes, parece que a nossa mente escapa à realidade objectiva, adoptando, nesse caso, uma visão infantil do mundo, o qual passamos a representar
como gostaríamos que fosse e não como é.
Em casos extremos, o indivíduo não distingue fantasia e realidade, revelando desejos que normalmente não manifestaria. Quando se ama alguém, o alheamento do contexto diário acontece com
regularidade e a pessoa parece cega aos defeitos de quem ama, vendo o futuro risonho e promissor
para o casal. A paixão é um sentimento intenso que eventualmente pode ser fugaz.
Esta aventura do cérebro é uma «loucura» induzida pela química cerebral guiada pelo sistema
límbico e capaz de transtornar a pessoa apaixonada. Quando ocorre a separação do ente amado, essa
pessoa procura, por vezes, recompensar-se em viver o dia-a-dia de forma fantasiosa, assumindo-se,
em casos extremos, como um Don Juan, uma milionária, um sádico, etc. Essas fugas à realidade
podem também surgir com a identificação a distantes ídolos do cinema ou da música. Tornam-se
objectos de desejo e imita-se uma divindade - Pandora, uma amazona grega ou uma valquíria
norueguesa... O ícone é um objecto manufacturado, associado ao espírito da divindade e, embora
pessoas ou instituições religiosas se possam opor à idolatria, continuamos a adorar ídolos e ícones.
No capítulo III será dado relevo a perturbações psíquicas como a erotomania ou a «síndrome
de Klüver-Bucy»17 síndromes decorrentes de lesões no lobo frontal esquerdo ou no lobo temporal
esquerdo, respectivamente.
No primeiro caso, a ilusão de amor correspondido leva a pessoa a comportar-se com manifesta paixão perante um ídolo estranho18. A essa perturbação psíquica chama-se «síndrome de De
Clérambault».
31
PSICOLOGIA ACTUAL
Por sua vez, na «síndrome de Klüver-Bucy», a pessoa tende a reagir a um objecto como se
fosse uma pessoa por quem estivesse apaixonado(a).
Esses são os substractos neurológicos de fenómenos sexuais antigamente sujeitos ao enigma
«inconsciente».
2.2. O inconsciente no pensamento alemão
O que não é plenamente conhecido ou consciente sempre foi rejeitado como «irracional». O
romancista alemão Johann Paul Richter, já na primeira metade do século XIX pensou existir uma
face obscura do nosso planeta mental – que hoje apelidamos de inconsciente. Entretanto, em Inglaterra, William Wordsworth utilizou o termo algo incómodo em 180019, enquanto membro da primeira
geração do romantismo britânico.
Todavia, as ideias do grupo inglês nunca se aproximariam do idealismo transcendental de Fichte
(1762-1814), mestre de Richter (1763-1825), Schelling (1775-1854) ou de Herder (1744-1803). Os
ingleses seriam sempre mais pragmáticos e práticos, ultrapassado o pensamento particular na concepção geral e abstracta20. Nessa significação britânica, a percepção e a fisiologia do ser humano
bem acordado (consciente) levariam per se à explicação do fenómeno psíquico. A perene função do espírito lúcido, impeditiva de pensamentos aparentemente perigosos ou
desagradáveis, acederia só mais tarde à consciência de Freud, nascido em 1856, na Morávia, situada
na Europa Central, hoje parte oriental da República Checa. Ele viria a denominar censura a uma
barreira colocada aos desejos inconscientes (e às formações reactivas deles derivadas), impedidos
de acederem ao sistema pré-consciente e consciente21.
2.2.1. Funções imagética e narrativa da mente
O termo «imagético» foi criado para aliar imagem, fantasia e recriação do real.
Em 1913, Sigmund Freud observou, em Totem e Tabu22, que as sublimações (reorientações)
pela arte, religião ou valor conferido à cultura constituem formas de afastar fantasias e motivações
sexuais ou motivações agressivas, mas também maneiras de evitar sentimentos de culpabilidade
pelo mal feito ou imaginado.
De modo algum é adequado pensar como Freud, dominado pela época em que viveu. Na
actualidade, abordam-se já muitas outras perspectivas psicológicas assentes no contexto e em
diversos pontos de vista explicativos dos fenómenos humanos, com base em integração no modelo
cognitivista dominante (racionalista) ou na metateoria construtivista emergente – cognitivo-narrativo
(emocional) ou social.
Assim, motivações básicas, sexuais e/ou agressivas, nem sempre sobrepostas, deram origem
a significados múltiplos para a vida diária enformada por formas míticas ou agarrada a novos ídolos
e imagens. Alcançamos prazer e estruturamo-nos pelo facto de sermos contadores de histórias natos23. O desenvolvimento de histórias de vida (quer vividas e contadas quer ouvidas) dá-nos o suporte
à identidade24 através das aventuras expostas nos episódios de amor, guerra, desporto, jogo... Basta
a participação directa da pessoa, antecipada a emoção da «vitória», ou o prazer vicariante decorrente da narração de aventura por parte de outrem, participante efectivo nesse enredo. Forja-se o
carácter participando, por pouco que seja, num thriller recente de um qualquer cinema de província.
32
PSICOLOGIA ACTUAL
Na Pós-Modernidade, somos mais abrangentes do que Freud não nos centrando exclusivamente
nos aspectos sexuais da vida. Também não nos sujeitamos nem a desempenhar sempre um papel
passivo, normalmente conotado com o objecto feminino, nem aspiramos a exercer papéis activos,
manipuladores, por exemplo de conquistadores e/ou arrivistas. Vencedores masculinos, aqueles
últimos poderão identificar-se como poderosos subjugadores de pessoas e de territórios de poder.
Em alternância cíclica de actividade passiva e activa recorremos a narrativas do «eu» quando
vivemos aventuras com interregnos e moratórias. Ao Don Quixote de Cervantes25, símbolo de acção, mudança e novidade, aliamos dentro de nós um Sancho Pança, exigindo repouso ao guerreiro.
Nós, seres humanos, somos também seres em projecto, sujeitos em movimento, dependentes de contingências várias. Esta concepção de base dinâmica na abordagem psicológica é conotada com uma narrativa com scripts, estereótipos sociais e cenários culturais, aprendidos desde a primeira infância26.
Mas antes da literatura ou da psicologia se ocuparem da narrativa, a vida efémera, religiosa e
quotidiana foram retratadas nas figuras bíblicas de Caravaggio (1573-1610) ou nos bufões/bobos de
Velázquez, mas sobretudo nas farsas de Gil Vicente (1465-1536?) e nas tragédias de Shakespeare
(1564-1616). Os dois dramaturgos criaram ricos enredos para personagens singulares ou estereotipadas, algumas delas presentes em todos os tempos.
Filósofos como Erasmo de Roterdão (1469-1536) e Michel de Montaigne (1553-1592) haviam já reflectido sobre as suas vivências. Caso curioso foi o de Montaigne que escreveu a maneira como viveu os seus achaques renais, apetites, desejos e inclinações, congregados em registos de
sabedoria27.
Todavia, foi na pintura que se descobriu primeiro o jogo das perspectivas, tese de Leon Battista
Alberti (1404-1472), ao ver nela a janela aberta ao mundo. Alberti foi arquitecto, escultor, músico e
pintor e o seu insight (conhecimento emocional) foi aceite pela ciência contemporânea, assumindose que o cientista é auto-referenciado28. Efectivamente, podem-se observar realidades, explicá-las
e partilhá-las, mas nunca tornarmo-nos exteriores a elas. Todo o indivíduo é incapaz de ser neutral,
porque sujeito a pontos de vista e à sua partilha.
A propósito do perspectivismo e da intersubjectividade humana, a obra-prima As Meninas (1656)
evidencia o que se acaba de afirmar. Velázquez sintetizou na pintura intrigante o pensamento epistémico de segundo nível, isto é, uma teoria do conhecimento que enfatiza o jogo de perspectivas,
colocando uma cena dentro de outra cena. Reflexivo e criativo, ele era crítico do próprio pensamento
e da sua contribuição para o gosto do rei. Realizou um quadro sobre a própria pintura de retratos
que viria a ser copiado (sem ser reproduzido) por Francisco de Goya (1746-1828) e Pablo Picasso
(1881-1973). Édouard Manet (1832-1883) considerou-o o pintor dos pintores29.
A concepção complementar do ser em projecto assenta, por acréscimo de significado, na
biografia objectiva de Velázquez. O pintor do rei espanhol nunca, ou quase nunca, se ausentou da
corte. Ele via o mundo, como lhe era dado a olhar, a partir da sua casa e estúdio no palácio real. Um
belo dia foi a Itália (1629), teimando voltar a esse país uma segunda vez em 1649. Esteve frente ao
terrível vulcão Vesúvio, perto de Nápoles, com 1270m de altura, e pintou-o com mestria30.
33
PSICOLOGIA ACTUAL
Velázquez começara por pintar naturezas mortas e figuras populares. Muito jovem, tornou-se
o pintor da monarquia31. Em As Meninas (1656), ele encontrava-se já no final da sua vida. Nessa
obra-prima, Filipe IV de Espanha e Mariana de Áustria são colocados em ponto pequeno, eles que
foram a fonte dos primeiros retratos do artista.
Figura nº 7 - Velázquez: «As Meninas» (1656).
Na sala real do Álcazar, a Infanta Margarida, de 5 anos, está rodeada por um séquito de aias e
anões. Do anão e bobo Pertusato ou Nicolasito só se vê a perna sobre o mastim adormecido. A anã
mais querida na corte, Mari Bárbola, surge em corpo inteiro e apresenta-se carrancuda. Em contraste,
a Infanta está muito bonita. É o centro da obra-prima. Na sua grandeza vulnerável, ela encontra-se
rodeada por María Agustina Sarmiento e por uma aia, Isabel de Velasco.
O facto de os reis serem vistos em espelho e em ponto pequeno representa uma forma de
relativismo e de perspectivismo do que tem ou não grandeza – a realeza absoluta relativiza-se,
segundo a perspectiva do artista.
Mas Velázquez coloca o quadro de frente e vê-se, ao mesmo tempo, na parte de trás da tela.
Não lhe é possível estar a pintar a infanta de frente, colocado atrás dela. Será que a menina está
só ali para ver os pais? Será que os reis se encontram fora do quadro em que são enquadrados de
forma propositada? Pensa-se que sim.
Velázquez incorporou-se na tela localizando-se na parte esquerda do quadro a pintar o rei e
a rainha, somente vistos no reflexo do espelho por trás da cabeça da filha. Logo, os reis não estão
no plano principal do seu quadro. 34
PSICOLOGIA ACTUAL
Mas também aparece no quadro José Nieto Velázquez, ou seja, o observador distanciado do
que vê fazer-se (o processo de pintar) e do que está feito (o produto estético). No dia-a-dia, ele
desempenhava funções de funcionário, camarista da rainha e governador da casa da realeza. Teria
uma visão panorâmica da vida real e saberia quase tudo o que se passava.
Para além do controlo social de José Nieto, as figuras de uma freira e de um padre expõem a
conversação possível, mas também o poder da nação católica.
Velázquez era objecto, cumpridor de ordens régias e religiosas, e sujeito, pintor de profissão,
mas o eu projectado mostra um ser em projecto. Ele chega a ser pintado no quadro a usar a Ordem
de Sant’Iago, recebida três anos depois por ordem régia. A sua posição social é inquestionável. A
pintura é recriada pelo próprio aquando da condecoração e a sua imagem enaltecida com a insígnia
da Ordem.
A ilusão do espaço em profundidade obtém-na pelo efeito de claro-escuro, jogando, como vimos,
com espelhos, permitindo-lhe mostrar o lado artificial nas relações humanas32.
Por fim, em As Meninas, o distinto cortesão ao retratar a família monárquica e respec- tivos acompanhantes régios e populares incorpora as dimensões epistémicas da mente. Não se satisfez em registar pontos de vista sobre a vida externa e palaciana ou em relativizá-los. Criou uma
metalinguagem recorrendo ao não dito. Ele realçou um conhecimento «superior» do envolvimento,
ainda que sustentasse um estilo realista33. Não importa se foi ou não consciente do seu (e)feito.
Em termos de teoria do conhecimento (epistemologia), colocou-se a um segundo nível abstracto
e apreendeu o que se conhece ou julga conhecer da realidade objectiva, facetada e enraizada na
língua, na história e na cultura simbólica.
Naquele tempo, inverteu as expectativas pictóricas, liberalizou-as e formulou um comentário
sem ter de o redigir.
3. Da psicanálise à psicologia narrativa
Nem sempre é possível formular em palavras o que imagens e guiões dramáticos movimentados representam em extravagantes ideias. Exemplos concretos, presentes na pintura e na historiografia, continuam a servir o guião epistémico revolucionário para a ciência cognitiva, narrativa e
metafórica.
Barbara Hardy34 constatou a pertinência do modo narrativo, organizador do «eu», em processos
psíquicos comuns, explicitando-a nas seguintes palavras:
“Sonhamos em forma de narrativas, fantasiamos acordados em narrativa, recordamos, antecipamos, temos
esperança, ficamos desesperados, acreditamos, duvidamos, planeamos, revemos, criticamos, construímos,
aprendemos, odiamos, amamos em narrativa. Para vivermos, construímos histórias acerca de nós próprios
e dos outros, acerca do passado e do futuro, pessoal e social.” (Hardy, 1978, p. 13).
Sabe-se que o sonho não contém uma vertente narrativa, consistente e verbalizada. Ele é visual.
Ao acordar construímos uma história, uma narração, ainda que a falha de nexo entre os episódios
35
PSICOLOGIA ACTUAL
nos possa deixar confusos. Tal como no sonho, nem sempre conseguimos em estado de vigília criar
uma sequência lógica ou congruente dos factos e da nossa biografia, ao contrário do que se passa
no processo literário, segundo a apreensão de Susanne Langer35, com a qual poderemos captar a
cadência do balançar e do versejar:
“Geralmente, o processo de formularmos as nossas próprias situações e biografia (...) segue o mesmo
modelo (do drama) – ‘pomos isso em palavras’, contamo-lo a outras pessoas, compomo-lo em ‘cenas’, de
forma que as nossas mentes possam agir em todos os seus momentos significativos. A base desse trabalho
de imaginação é a arte poética, que aprendemos a partir do ritmo de embalar e que se desenvolve até ao
mais intenso ou sofisticado drama e ficção.” (Langer, 1953, p. 400).
A psicologia narrativa36 é uma abordagem psicológica que consuma a análise da forma (estrutura, estilo, coerência...) e do conteúdo da experiência (melodias com temas conflituais, tantas
vezes, entrançados), com implicações educacionais e psicoterapêuticas. A estrutura cognitiva não
tem só uma base lógica, na concepção induzida pelo pensamento convergente, mas está sujeita a
processos emocionais/analógicos centrais.
Na educação formal, observa-se um continuum que vai do pensamento convergente (exigindo-se
uma resposta «certa») ao pensamento divergente, eliminada uma única orientação pré-determinada
para uma conjectura colocada. Por sua vez, ao pensamento lógico chamou-se formal ou para- digmático, enquanto o pensamento narrativo foi aproximado da contemplação pelo filósofo e psicólogo
americano William James (1842-1910)37.
Os trabalhos iniciais em psicologia narrativa datam de 1984-1986, devendo-se a van Dijk e a
Jerome Bruner. Instigam à apreensão do princípio organizador narrativo para as acções humanas. A
narrativa estrutura a experiência humana, tantas vezes repleta de falhas nos encadeamentos entre
eventos e de hiatos entre ocorrências não cumpridas.
Esse modelo psicológico possibilita o prazer de trocar histórias, a busca de sentido para a existência humana e a adesão ao significado atribuído à identidade com vista à resolução de discrepâncias
na vida. Os temas vitais são como melodias sujeitas a ruídos, ou como engrenagens que emperram
porque um qualquer objecto se atravessa nas rodas dentadas.
Atendendo a essas incongruências, na consulta psicológica interpreta-se o vivido ou a ficção
na interacção clínica, negociando-se com o psicoterapeuta os significados da experiência imediata
que nos torna possuídos, irreflectidos e incapazes de distanciamento para pensarmos. Pressupõe
a construção de vínculos sociais ou de novas engrenagens entre episódios mais consistentes e
subsequente acção/interacção nas dinâmicas relacionais mais satisfatórias. A psicologia narrativa parte, portanto, da concepção metateórica construtivista e dos significados dados ao «eu» pelos interlocutores, estando a interpretação a dois determinada pelo conteúdo
narrativo e pela coesão estrutural duma história de vida38.
Importa referir que em toda a biografia perpassam histórias nem sempre associadas a conteúdos
sexuais. O argumento sexual deixa de ser observado como único para desvelar a verdade, segundo
a técnica psicanalítica de associação livre.
À noção de «verdade absoluta» sobrepõe-se o significado plural e a sua partilha negociada em
comunidades científicas poderosas. A linguagem ressente-se dessa imposição: os conceitos mudam,
por iniciativa desses grupos de pressão. 36
PSICOLOGIA ACTUAL
3.1. Visões do «eu» distintas: Freud e Watson
Nos séculos XIX e XX, de acordo com o modelo científico mecanicista, Freud considerou as
relações humanas e a mente activa (ou seja, psicodinâmica) a partir de um ponto de vista interno – intra-psíquico, o seu. A cura pela psicanálise foi observada como decorrente do ponto de vista pessoal
do paciente. O termo psicanálise surgiu, em 1896, no artigo de Freud A Hereditariedade e a Etiologia
das Neuroses.
Acérrimos discípulos e adeptos de Freud afastaram-se paulatinamente do mestre quando se
aperceberam da intransigência deste face a outros pontos de vista, o que levaria à dissensão no
Movimento. A co-construção do significado pelo grupo foi eliminada pelo líder carismático.
Em outro quadrante do mundo, em 1913, o psicólogo americano John Watson (1878-1958)
aproximava o conhecimento externo ao behaviorismo, adequado à aprendizagem - A Psicologia, tal
como o Comportamentalismo a Vê39.
Freud e Watson espelharam dois pontos de vista distintos sobre o ser humano. As suas concepções humanas eram opostas.
Todavia, podemos ligar as perspectivas interna e externa associadas ao conhecimento do «eu»
extremadas nas teorias de Freud e Watson, observando uma pintura de René Magritte que integra
o que se passa cá dentro e o que acontece lá fora.
De acordo com essa analogia remota, Magritte pintou objectos e pessoas em posições e contextos insólitos, paradoxais. Banalizou o estranho e deixou-nos desconcertados. Não pretendeu ter
um estilo ou pertencer a um Movimento do século XX, sendo o seu estilo a falta de estilo. É também
identificado pelo facto de os títulos não serem elucidativos das obras, as quais aliam narrativa e
enigma: «A relação entre o título e o quadro é meramente poética». Sugere nas suas telas os problemas da relação espaço-tempo, da proporção das coisas, da ilusão de perspectiva, do significado
duplo, em ausência de falha técnica ou fraqueza dos sentidos... A percepção social engana-nos e a
realidade não é plenamente objectiva. Existe um realismo concreto óbvio (uma cadeira, um qualquer
objecto retratado...) a par de uma dimensão da mente subjectiva e intersubjectiva.
Figura nº 8 - René Magritte: Poison («Veneno») - 1939.
37
PSICOLOGIA ACTUAL
Na figura nº 8, Poison (1939), foi colocada uma porta aberta, convidativa à entrada e à saída
de uma nuvem que sombreia a parede e se liga ao espaço e ao mar. Em vez de separar o espaço
exterior do espaço interior, em vez de se referir ao que está lá fora, a porta sugere também que «o
verdadeiro» não é o contrário do «falso» - outra ideia analógica, adequada aos nossos dias.
Poison representa a exteriorização mesclada com mentalização por meio de uma nuvem que
avança, deixada a porta entreaberta. Nesta pintura, traduzida por «Veneno», Magritte alude ao facto
do sistema nervoso estar em equilíbrio e um veneno interferir com ele e, consequentemente, com todo
o organismo40. Ao veneno pode associar-se a droga, o álcool, a música, a dança, a técnica respiratória
para o controlo e o êxtase sexual, enfim, tudo o que se considere modificar o estado psíquico.
A polaridade conceptual (dentro/fora, alto/baixo, externo/interno...) e outras categorias opostas
da linguagem em contexto foram repensadas pela ciência cognitiva e narrativa, de acordo com a
exposição supracitada.
Em contexto científico, também o investigador ou o professor não estão fora do que observam,
não são independentes do que escolhem estudar. Possuem intencionalidade, explicitada nos conteúdos de investigação, na exposição oral ou escrita. Acresce o facto de nem sempre terem consciência
das suas motivações e auto-enganarem-se.
Afinal, para ilustrar a interligação de opostos, poder-se-ão captar outras analogias para este
livro, presentes na relação corpo-mente. Nesse sentido, de agora em diante, daremos uma volta no
espaço e propomo-nos enfrentar novo desafio ao encararmos o pensamento hindu.
Imbuídos da cultura das sociedades ocidentais, estranhamos o imaginário indiano em que a
religiosidade intrínseca e a sexualidade explícita estão interligadas. Propomo-nos agora destrinçar
o mito e a prática de vida, a aglutinação de opostos e o paradoxo, o sexo unido à morte.
3.1.1 O mundo de que não posso falar porque não o vivi: a experiência mística oriental
Ludwig Wittgenstein (1889-1951) foi um filósofo ímpar que nos alertou para os limites da linguagem, agarrada às nossas próprias vivências, tendo ficado célebre a sua injunção final no Tractatus Logico-Philosophicus: «Aquilo de que não se pode falar, deve-se calar». Depois, seguiram-se
anos de silêncio em que nada escreveu41, manifestando desconhecimento sobre a linguagem do
pensamento.
Dar-se-ão exemplos de actos e rituais sexuais encarnados na tradição africana, antes da introdução do fenómeno da Índia, ultrapassando o entendimento ocidental.
Para quem não viveu em Sofala – África, entre os cafres42, será difícil compreender o antigo
poder da rainha quando indiciava a eminência de regicídio, a propósito da impotência do esposo. No
antigo Uganda, eram as irmãs do rei a dar-lhe autorização para ter várias esposas. E em Dahomey, o
funcionário real, durante as cerimónias, teria sempre uma mulher atrás de si que tratava por «mãe».
Curioso é o facto de as princesas terem liberdades extremas nas tribos africanas mossi, ashanti e
dahomey43, sendo-lhes permitido não casar.
Entre hindus, a experiência mística permite-lhes venerar uma figura divina, Chinnamasta, que
significa «Deusa da Grande Sabedoria».
38
PSICOLOGIA ACTUAL
Figura nº 9 – Indiano anónimo: Guache de Mahavidya Chinnamasta, «Deusa da Grande Sabedoria» (século XIX).
Na Índia, ainda no século XIX, a representação de Mahavidya Chinnamasta coloca-a sem cabeça, por si mesma cortada, a fim de alimentar os fiéis que a rodeiam, os quais recolhem o sangue
sagrado. Simultaneamente, pisa com os próprios pés Rati que está a copular na posição superior com
o esposo, Kama («o Senhor do Desejo»). Chinnamasta alimenta-se dessa mesma relação sexual
e, de acordo com a imagem, coloca-se sobre o triângulo yoni (vulva), ou seja, o princípio feminino
cósmico44 (ver figura n.º 88).
Na alegoria «absurda», a Deusa-Mãe transporta uma grinalda feita de crânios e segura com a
mão o seu cérebro e a sua face. No colar ou enfeite em grinalda estão as cinquenta letras do alfabeto
sânscrito, uma linguagem literária antiquíssima. O logos (pensamento) consubstancia o seu poder
mítico para criar o mundo através da palavra45.
As duas acompanhantes, yoginis (Deusas tântricas), têm também coroas de crânios ao pescoço.
No tantrismo, à morte alia-se o sexo, ainda que sejam opostos. Embora antitéticos, unem-se o
princípio feminino e o princípio masculino, a realidade quotidiana e a eterna, a escuridão e a luz. As
39
PSICOLOGIA ACTUAL
práticas tântricas visam ampliar o conhecimento da realidade indizível e transcendental, quotidiana
(samsara) e imutável (nirvana). O corpo humano é esse Cosmos, visto de ângulos diferentes.
No capítulo final, será dada ênfase ao tantrismo considerado mais estranho do que os cultos
sexuais primitivos ou as religiões actuais.
Na Índia, o culto feminino é também o mais forte do mundo46, sendo Mahadevi «a Grande
Deusa» apresentada com mil rostos e nomes: Devi, consorte de Xiva, a vingativa Cáli ou Durga, a
«boa» Parvati ou até Uma.
Mahadevi assume «eus» múltiplos e funções variadas junto dos hindus. Entre ocidentais, acredita-se que é possível flexibilizar o «eu», mimando imagens sociais. Essa plasticidade da individualidade
desejada conveniente para a sua aceitação por outros colide (ou não) com a personalidade de base.
Quando se compara a aparência visual e a linguagem verbal que acompanham estas imagens,
outras ilações são possíveis de sintetizar. A imagem, a metáfora e a alegoria mostram o inenarrável,
o lado ambíguo da realidade corporal ou a faceta inebriante da imaginação, podendo ou não ser explicável. Por oposição, a linguagem é desejada clara e pragmática quando se explica o pensamento
paradigmático congruente, mesmo paradoxal, ainda que nem sempre a vida possa ser clarificada
por recurso lógico e formal.
A acreditar no salto de sentido propiciado pela linguagem humana, é ainda possível fazer com
a palavra o que, sem ela, seria impossível de exprimir em produções artísticas, expressões faciais,
gestos simbólicos e sílabas sem sentido para não iniciados.
Como se disse na Introdução, da divindade Pré-Védica Cáli, criadora dos sons - La (terra) Va
(água), Ya (ar) ou Ra (fogo), nunca se esperou a confirmação verbal do significado da existência
humana.
Notas
Capítulo I - Psicologia actual: perspectivismo nas abordagens construtivistas e narrativas
1. Os americanos Sally Reis e Joseph Renzulli (1997, p. 52) defenderam, em Portugal, que a educação
deva ser orientada para situações do quotidiano actual e problematizadas. Essa posição foi tomada
no primeiro congresso de discussão da sobredotação. Renzulli continua a ser um investigador internacional, com amplo reconhecimento nessa área educativa.
2. Em psicologia, Howard Gardner (e.g., Gardner, 1994, pp. 69-84) tem protagonizado a exigência de
mudança na educação a partir da concepção de múltiplas inteligências – possuímos, não uma, mas
oito inteligências: lógico-linguística, matemática, espacial, musical, psicomotora, interpessoal, intrapessoal e naturalista. 3. Michael Mahoney (1991, trad. bras. 1998, p. 32).
4. Howard Gardner (1995, trad. bras. 1996, p. 27).
5. Gardner, ibid, p. 30.
6. Gardner, ibid, p. 43.
7. Howard Gardner (1991, pp. 84-112).
8. Os estudos sobre a criatividade humana, depois do seu pico nos anos setenta, foram retomados no
final do século XX (e.g., Csikszentmihalyi, 1996, 1997; Gardner, 1993, 1994, 1995).
9. A historiografia é diversa do que «realmente» aconteceu, ainda que se refira a factos históricos.
40
PSICOLOGIA ACTUAL
10. A vida só pode ser compreendida para trás; mas deve ser vivida para diante. (Sören Kierkegaard, 1813-1855).
11.A noção de nicho ecológico deu lugar à aproximação familiar, constituída por pessoas íntimas e
importantes na nossa vida – pais, irmãos, avós...
12.De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de
Lisboa (2001), na metáfora «existe alteração do sentido habitual das palavras, que estabelecem uma
relação de analogia entre dois referentes ou realidades». Ao contrário da comparação, na metáfora
não está presente a conjunção como. Em termos linguísticos, usamos metáforas fossilizadas (catacrese) para associações verbais correntes estabelecidas no quotidiano, tema discutido por George
Lakoff e Mark Jonhson, em Metaphors we Live by (1980; trad. esp. 1986, p. 12), por contraste com
metáforas vivas, criativas e pouco frequentes. Assim, a catacrese é uma figura de retórica comum,
capaz de alargar o significado duma palavra, por analogia com o seu sentido inicial: «embarcar num
avião»; «as pernas da mesa»...
13.Ao conhecimento implícito associa-se o domínio tácito, intuitivo, emocional, não directamente explicitado e metafórico.
14.No vídeo intitulado Velázquez (CBS Fox – EFE TV Museu do Prado, 1990), o texto é retirado de As
Obras Completas de Ortega y Gasset (sem outra referência). 15.O psicólogo americano Howard Gardner (1993, trad. esp. 1995, pp. 68-70) retrata Freud como um
génio na área de inteligência intra-pessoal, à partida impedido de alcançar celebridade por ser de
ascendência judia.
16.Um sonho lúcido é associado à pintura de Magritte, na medida em que nesse tipo de sonho o sonhador está consciente de que está a sonhar e pode, no momento, controlar a acção, o que exige
prática e competência (Cross, 2002, p. 10). No quotidiano, afinal, a lucidez pode ser facilmente
quebrada.
17.Susan Greenfield (1996) foi Professora de Farmacologia na Universidade de Oxford, de Medicina no
Lincoln College em Oxford e de Física no Gresham College em Londres. Deve-se-lhe a descrição
da situação psicopatológica em que parece amar-se um objecto – «síndrome de Klüver-Bucy».
18.Louis R. Franzini e John Grossberg (1995) estudaram essa situação de amor perante alguém que
é um estranho – erotomania ou «síndrome de De Clérambault».
19.Norman MacKenzie (1965, trad. fr. 1966, p. 90) situou a utilização do conceito de inconsciente
explorado por Freud.
20.A comparação entre o pensamento inglês e o pensamento alemão foi estabelecida também por
Norman MacKenzie (1965, trad. fr. 1966, p. 90), um americano dedicado ao estudo dos sonhos.
21.J. Laplanche e J.-B. Pontalis (1967, trad. port. 1970, p. 99). Quando se referem formações reactivas, alude-se a atitudes ou hábitos de sentidos opostos aos desejos recalcados e constituídas em
reacção contra esses desejos (Laplanche & Pontalis, 1967, trad. port. 1970, pp. 258-261).
22.O livro Totem e Tabu (1913) somente foi editado em francês em 1947.
23.Theodore Sarbin (1986, pp. 3-21).
24.Karl E. Scheibe (1986, pp. 129-151) debateu a concepção de que se forja o carácter ouvindo histórias
ou agindo, como «os melhores» desportistas, entre outros indivíduos de acção. 25.Miguel de Cervantes (1547-1616) escreveu a sua peça satírica Don Quixote de la Mancha em duas
partes. Descreve as aventuras picarescas/burlescas de um senhor simples que tinha como interlocutores o seu empregado Sancho Pança e o cavalo Rosinante, podendo lutar contra moinhos de
vento, tomados por gigantes. 26.Howard Gardner (1995, trad. esp. 1996) explica a liderança de indivíduos visionários ou outros que
souberam contar «boas» histórias a públicos adultos distintos, em atenção a desenvolvimentos
41
PSICOLOGIA ACTUAL
sócio-cognitivos diversos. São histórias que integram cenários, estereótipos e scripts facilmente
reconhecíveis pelos que os escutam.
27.Michel de Montaigne (1993, pp. 11-32).
28.Humberto Maturana assumiu essa posição ao longo da sua obra, debatendo a inserção do indivíduo
na realidade que analisa.
29.Robert Cumming (1995, trad. port. 1995, pp. 7, 56-57).
30.Cumming, ibid, pp. 47 e 57. Nessa obra, Cumming refere-se à amizade de Velázquez com o carismático e influente Rubens e à deslocação de Velázquez a Itália.
31.Continua-se a seguir o texto de Obras Completas de Ortega y Gasset patente no filme intitulado
Velázquez (CBS Fox – EFE TV Museu do Prado, 1990). Outra fonte de informação sobre o quadro
As meninas de Velázquez foi buscada em História da Arte (1996), no Volume 7 – O Barroco e o
Rococó (AA.VV., 1996).
32.Robert Cumming (1995, trad. port. 1995, p. 57) dá valor a esses aspectos pictórico e psicológico
para a compreensão da obra-prima.
33.Dictionary of Art (1995, p. 243).
34.Barbara Hardy (1978, p. 13).
35.Susanne Langer (1953, p. 400).
36.A Psicologia Narrativa e a Folk Psychology («Psicologia Popular») foram explicadas por Jerome
Bruner (1986) e por Theodore Sarbin (1986) em alternativa ao pensamento paradigmático (up-down)
dirigido pela teoria e justificado pela descoberta de situações empíricas confirmatórias.
37.William James (sem data; cit. por J. Bruner, 1986, pp. 23-53).
38.Judite Zamith-Cruz (2002, pp. 469-482).
39.O behaviorismo foi a metateoria psicológica sustentada pelo associacionismo e pelo empirismo,
iniciados por John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1776).
40.A. M. Hammacher (1973, ed. amer.1985, p. 104).
41.Christiane Chauviré (1989, trad. bras. 1991, p. 13).
42.Boris de Rachewiltz (1993, p. 71).
43.AA.VV. (2004, p. 22).
44.Richard Waterstone (1995, trad. port. 1996, p. 78).
45.Barbara Walker (1988, trad. port. 2002, p. 545).
46.Neil Philip (1999, trad. port. 1999, p. 9).
42
PSICOLOGIA ACTUAL
43
EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
CAPÍTULO II
Educação Sexual na Família, na Escola e na Sociedade
Base Evolutiva e Desenvolvimental
44
EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
“Excelsior” (1934) – Pavel Tchelitchew.
Os rapazes olham extasiados, supostamente para algo mais elevado. O primeiro miúdo tem a visão nublada
por uma borboleta, um sinal de que algo vem lá. O sublime amor?
45
EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
CAPÍTULO II
Educação Sexual na família, na escola e na sociedade:
base evolutiva e desenvolvimental
1. Contextos de Educação Sexual formal e informal
A família constitui o contexto primário da educação. Passo a passo, a escola possibilita o segundo
ensaio de vida social. Aqui e ali lida-se com tarefas com que nos confrontamos quotidianamente e
através das quais fazemos amizades. Nesses nichos aconchegados, observam-se tendências amorosas e sexuais e, mesmo que não se legisle e imponha a Educação Sexual na forma de disciplina
formal, a escola pode ser decisiva ao facultar uma lição de vida e, quantas vezes, ao situar o amor
cristalizado dos 15 anos.
No século XII, o professor Pedro Abelardo e a jovem Heloísa viveram um drama amoroso
prolongado, rondando o enamoramento. Adolescente, ela ficara grávida. No século XX, Verdita e o
namorado foram condenados pela China de Mao Tsé Tung (1896-1981). Ambas as histórias-caso
serão narradas adiante1. A primeira tem um carácter religioso e a segunda é de natureza política,
permitindo uma reflexão sobre a questão sexual e a sua aproximação à instituição escolar, religiosa
e política. Na escola, o desejo, o amor e o sexo são temas interdependentes da biologia, história,
psicologia, artes, língua portuguesa ou filosofia. A cultura, a organização político-social e a educação
constituem elementos a não descurar no quotidiano do jovem, tal como importa conhecer a neurobiologia do sexo. Serão estas as temáticas que norteiam este capítulo.
Pretendeu-se colocar o seguinte argumento de peso: a Educação Sexual é desejável, se se
atender sobretudo à propagação de doenças sexualmente transmissíveis. Para além desse risco,
Portugal tornou-se o país com maior número de gravidezes na adolescência e, nessa fase de vida,
a placenta da jovem ainda não permite uma alimentação satisfatória do embrião.
Todavia, Freud assumiu outro motivo justificativo da exigência de educar para a sexualidade:
«não devemos enganar as crianças». Far-se-á eco nesta obra do seu pensamento revolucionário
na época.
Identificaram-se também formas de expressão de motivações intrínsecas em crianças e jovens para compreenderem e interpretarem relações íntimas, inclusive condutas desajustadas e/
ou inadequadas - o poder de um qualquer Basilisco – peste, sífilis, síndrome de imunodeficiência
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
adquirida (SIDA)... Mas a SIDA, ou outra qualquer doença de transmissão sexual, não ocorre devido
a uma qualquer força misteriosa. Actualmente, mais de 330 milhões de pessoas em todo o mundo contraem esse tipo de doenças2. Com a SIDA, prevê-se3 que a sexualidade ritual, a prostituição
sagrada (entre sacerdotes) e o rito de iniciação sexual venham a desaparecer em África devido à
devastação causada pela doença.
2. O que é a sexualidade e quais são as zonas erógenas?
A sexualidade é uma dimensão da vivência humana que sofre grandes alterações ao longo dos
anos. É fonte de comunicação, troca de afecto e de prazer (do inglês petting, amimar, dar carinho)
e forma de expressão da afectividade; é modo de hetero-descoberta e auto-descoberta; é relação
sexual completa (coito), coito reservatus (retardado, para evitar o orgasmo) e actividade reprodutiva…
O prazer sexual é obtido em zonas erógenas do corpo4 que não se limitam a três zonas genitais: pénis, clitóris (ou clítoris) e vagina. Por exemplo, as orelhas e o dedo grande do pé possuem
valor erógeno.
As zonas corporais que dão mais prazer no sexo feminino são os seguintes: clitóris, grandes
e pequenos lábios da vulva, vagina, períneo (ou perineu, região compreendida entre o ânus e as
áreas vaginais), monte de vénus, músculos glúteos (nadegueiros), mamilos, ancas, músculo central
da nuca e pescoço (atrás e por baixo das orelhas), costas (entre a coluna vertebral e as omoplatas).
No sexo masculino, podem ser outras as zonas erógenas: pénis (sobretudo a parte inferior e a glande), testículos, períneo, ânus, próstata (que só se pode estimular através do ânus), língua, umbigo,
músculos da metade inferior das costas, mamilos e músculo central da nuca.
Para Freud, essas áreas libidinais ligam-se à formação de sistemas neuróticos e perversões.
Entre outras nomeou a boca, o clítoris e o ânus.
A sexualidade é assim uma área de conhecimento e constitui uma componente positiva de
realização pessoal, considerações insuficientes para fazer avançar a Educação Sexual na escola.
A sexualidade liga-se ao «eu», mas também nos aproxima do próximo em relações íntimas.
A Educação Sexual contribui para uma vivência mais informada, mais gratificante da sexualidade,
mais autónoma e, portanto, mais responsável e livre.
3. Educar para a sexualidade é simplesmente educar
Um dos maiores desafios cognitivos a todos os que se preocupam com a educação actual talvez
seja a união entre o aprender e o prazer de aprender.
Por sua vez, é de considerar se não será redundante defender a Educação Sexual na escola,
na medida em que toda a educação é sexual. Implicitamente, a questão sexual está colocada desde o nascimento. Educação Sexual é fazer educação, de forma deliberada ou não. «Pedir que se
faça Educação Sexual antes que as coisas aconteçam...» pode assumir-se como uma ideia de boa
vontade, já chamada de peregrina por Júlio Machado Vaz, mas necessária e não exclusivamente
circunscrita à prevenção da gravidez.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Uma educação global tem que incluir, portanto, uma vertente afectiva, sexual e não sexual. O
desenvolvimento humano sexual constitui uma dimensão básica da vida que extravasa a aprendizagem na escola.
3.1. Conceitos-chave: afecto, emoção, desejo, erotismo e pornografia
O afecto é uma palavra relacionada com prazer e desprazer. Quando se sente prazer, acentuase o bem-estar subjectivo ou, no caso do bebé, a satisfação das necessidades primitivas de contacto
físico, alimentação, higiene, segurança e conforto. Desprazer, por oposição, alude a ansiedade/angústia,
sofrimento e à ausência de satisfação daquelas necessidades mais básicas.
A emoção constitui um estimulante da actividade biológica, face a circunstâncias exteriores, que
exige eficácia e acção viável. Para o seu efeito adaptativo concorrem o hipotálamo e o que se designou
por sistema límbico. Essas estruturas cerebrais organizam o cérebro da emoção5.
Quando falamos em sentimentos, lembramo-nos de amor6 ou de ciúme7, algo que se torna explicitamente observado por outros. Curioso é considerar atentamente em qualquer jardim público o
modo como um casal apaixonado adopta posturas um do outro no final de um encontro, registandose mímicas e gestos de forma entrosada.
Já o desejo é anseio, vontade, cobiça, apetite ou aspiração: «- Tinha um desejo imenso de
o voltar a ver…». O desejo pode ser uma vontade irreprimível de satisfação de uma necessidade
básica, tal como comer ou beijar. Ainda que não enalteça as mulheres dos seus romances, para
Milan Kundera8 o propósito pode não levar à sua consumação: «Desejar uma mulher é fácil, o pior
é querer dormir com ela».
Eros, Deus da mitologia grega, inspirava o amor carnal ampliado pelo prazer erótico, quando
exercitada a imaginação.
Figura nº 10 - Escultura do templo de Khajuraho, na Índia, que data dos séculos X e XI d. C..
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Ao nível cultural, o erotismo é observável em pessoas sensuais, apaixonadas, instáveis e/
ou com energia criativa redobrada. No Oriente, a criatividade humana assume-se na sofisticação
sexual presente na união entre a Deusa e o Deus. Repara-se no erotismo presente nas esculturas
dos templos hindus (como o templo de Khajuraho) ou nas figuras dos pergaminhos japoneses para
serem colocados nos enxovais tradicionais das noivas, como acontecia até ao século XIX. Distinguir
o erotismo da pornografia pode constituir uma questão cultural, educativa e individual. Na pornografia, manifesta-se o «espírito da época» (zeigeist) quando se descrevem temas ou actos sexuais
destinados a provocar uma reacção erótica imediata. Por seu turno, o erotismo predispõe a uma
atitude activa e contemplativa, ou seja, mediata, indirecta e menos explícita.
No templo de Khajuraho, as esculturas mostram actos sexuais. Foram concebidas para agradar
a Indra, «o Deus dos Deuses Védicos», expondo a actividade sexual de Xiva e de Shakti. Logo, a
função devota está aliada à expressão sexual desculpabilizando o carácter pornográfico da obra,
mesmo para o mais desatento observador ocidental.
No capítulo IV, será dado relevo a essa divisória móvel, determinada pela época histórica – arte,
erotismo, sensualidade e pornografia.
4. Valores e sexualidades
Foi Jacques Lacan (1901-1981) quem afirmou que somente tem prazer o indivíduo «perverso»,
enquanto Freud (1856-1939) referia que o inconsciente é um lugar sem lei. Lacan assumiu valores
diferentes de Freud para a sexualidade.
Educação Sexual é educação para os valores ligados à sexualidade, quer eles sejam humanos, estéticos, sociais, éticos ou políticos. Nas suas atitudes, a pessoa formula juízos de valor. É
um valor humano dizer que a sexualidade é uma fonte de prazer a não desprezar, se bem que nem
todos pensem assim.
Entre certas pessoas mais idosas, as mudanças globais ocorridas nos comportamentos relacionais são fruto dos malefícios da época ou da influência da televisão. Embora difícil, é possível mudar
os valores dessas pessoas, incutidos desde as primeiras relações afectivas intensas (vinculações)
com os pais, outros familiares e/ou professores. Aqueles que mais amamos afectam-nos e ajudamnos a cimentar valores. A sociedade em que vivemos influencia-nos de tal modo que não chegamos
a imaginar as suas repercussões.
De acordo com Michael Mahoney9, para além dos valores, o que mais temos dificuldade em
mudar são as nossas concepções de identidade («- Quem sou eu?»), de realidade («- O que é o
meu envolvimento físico e social?») e de poder («- Que poder de (auto)controlo possuo?»). Temos
dificuldade em mudar a noção do «eu» e os valores que carregamos, mesmo na escola não tradicional.
A ser implantada na instituição a disciplina de Educação Sexual, favorece-se a sexualidade
comentada, discutida, aprofundada nos seus cambiantes físicos, psicológicos e sócio-culturais.
Observar-se-á, em paralelo, que a sexualidade será sempre um processo de construção individual, sujeito a dúvidas, hesitações e tomadas de decisão. A sexualidade é um processo criado de
experiências e de aprendizagens de vida significativas, umas positivas e outras negativas.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
A Educação Sexual implica e funde emoção e pensamento, memória emocional (consciente e
inconsciente), autonomia, tomada de decisão em contexto e respeito pelo próximo.
De acordo com neurocientistas como António Damásio10, digamos que pensamos, mas sentindo.
A divisão do cérebro em pensamento e sentimento parece «errada» na medida em que «não somos
máquinas de pensar, mas somos máquinas de sentir que pensam». Discute-se hoje, acaloradamente,
o programa genético emocional e o protótipo linguístico11 em que somos moldados, mesmo que não
nos sintamos conformados e confortáveis em sermos meras máquinas biológicas12.
Contudo, é possível perder-se o contacto com as próprias emoções ou a ligação emocional ao
passado ser esquecida por doença ou lesão cerebral. Assim, as decisões que tomamos (positivas
ou negativas) têm semelhanças com decisões já tomadas e a memória emocional é o auxiliar de
navegação para irmos numa ou noutra direcção na vida. Se não estamos «loucos», também não
estamos à mercê de factos lógicos ou de princípios éticos para tomarmos decisões sexuais sempre
acertadas.
A tomada de decisão em contexto pressupõe, portanto, assumir opções conscientes, emocionais
e responsáveis nos ambientes em que vivemos. Estamos a falar de autonomia - poder agir - em
conformidade com o pensar e o sentir. Todavia, a autonomia nem sempre é fácil de assumir devido
às nossas dependências emocionais que nem sempre são conscientes. Somos influenciados, manipulados ou até seduzidos por outras pessoas significativas, amadas ou respeitadas.
Por sua vez respeitar o outro manifesta-se pela aceitação (incondicional) daqueles com quem
se interage, quotidianamente, quer frequentem peep-shows ou clubes de strip-tease. É uma questão
de liberdade ir ou não a sexshops, comprar vídeos eróticos ou pornográficos. Mas nem todas as
pessoas aceitam que um filho use algemas ou dildos, ainda que sejam opções pessoais: «- O filho
é da família».
O respeito pelo direito à diferença está relacionado com as democracias ocidentais. Em Educação Sexual, trata-se de aceitar direitos de pessoas, caso não coajam outrem. Exige-se respeito
por atitudes e actos que não venham a constranger aqueles com quem se interage.
Em suma, todo o ensino é sexual na medida em que não seja truncado da personalidade.
Formamos pessoas completas e críticas, incorporada a mente criativa no corpo.
4.1. Educação sexual, linguagens e atitudes
Todos temos atitudes implícitas sobre sexualidade e sobre amor, sobre desejo e sobre dever.
O atributo «implícito» pressupõe a ausência de explicação para algo que se faz ou que se sugere
em palavras. O que é implícito não chega a ser verbalizado ou, se chega a sê-lo, o que é dito utiliza palavras subtis, nem sempre conscientes, a ponto de não chegarmos a reflectir sobre o que
dissemos. Em questões emocionais, o que se diz pode também ter outro(s) significado(s). Poderão
sempre dar-se exemplos de expressões verbais com sentido sexual implícito: «- Isto não! Pode
subverter as cabeças dos alunos!»; «- Não se deve fazer Educação Sexual na instituição escolar
porque eles já a sabem toda!»; «- A Educação Sexual faz-se em todo o lado. Para quê na escola?».
Um comportamento verbal pode consumar atitudes implícitas contra homossexuais: «- Um homem
não chora. Seu maricas!»...
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Uma atitude distingue-se de um comportamento verbal ou físico? A atitude é uma forma de organizar e tornar compreensível a experiência de vida para a própria pessoa e para os outros. Liga-se
à predisposição ou tendência para pensar algo e, espera-se, comportar-se na vida em conformidade
com o que se pensa.
Muitas vezes, temos dificuldade em argumentar porque somos a favor ou contra alguém ou
contra um grupo, como por exemplo uma minoria social ou étnica. Então, eu respondo a um «objecto»
(por exemplo, um determinado indivíduo de ascendência africana) como se fosse «uma classe de
objectos» (por exemplo, todos os indivíduos de ascendência africana). Assim sendo, pela atitude13,
a pessoa formula juízos de valor, sem ter que avaliar cada objecto per se.
Ao contrário de uma atitude, um comportamento implica que a pessoa coloque em acto uma
atitude. A pessoa age a partir da sua tendência para generalizar, tantas vezes incorrectamente, uma
característica individual a todo um grupo.
4.2. Comunicação entre sexos e laços inter-geracionais
Em Portugal, ouvem-se expressões como as seguintes: «- Tu assim nunca chegas a homem!»;
«- Vê lá se cresces!». Os pais e os filhos e os professores e os alunos devem comunicar mais e de
forma diversa das anteriores insinuações correntes. Importa comunicar, sejamos de um ou de outro
sexo, desde pequenos:
“A rapariga ama o rapaz. O rapaz dá pontapés na bola.
A rapariga não faz ideia se o rapaz gosta dela, se a ama ou se a detesta.
O rapaz volta a dar pontapés na bola.
A rapariga rivaliza com a bola pela atenção do rapaz.
O rapaz continua com os pontapés na bola.
O plano falha.
A rapariga desanima.”
O resultado no final do jogo é o esperado: futebol - 1; rapariga - 014. A tradução possível para
a situação avançada coloca novamente a questão da necessidade de auto-conhecimento: «- Quem
sou eu? Eu sou um rapaz!». Os rapazes têm necessidade de se afirmar como machos: os homens
jogam à bola.
Mas o que é ser macho? Ser macho relaciona-se com os órgãos sexuais e com a categorização
dos animais. Em termos globais15, o macho é um ser que produz células sexuais pequenas e móveis
(esperma) que nadam para o ovo. Fêmea, por seu lado, é um ser que produz células grandes, cheias
de nutrientes (alimentos), os ovos.
Ser masculino aprende-se na relação com as primeiras pessoas significativas de ambos os
sexos e na experiência subsequente de vida em contexto. 4.3. Amores incompreendidos e dificuldade de diálogo: Abelardo e Heloísa
Os grandes amores românticos, em narrações do Ocidente, passam sempre por Romeu e Julieta, Tristão e Isolda ou Lancelote e Guinevra. Diane Ackerman16 conta uma história natural
do amor em que essas e outras personagens são contempladas. 51
EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
O amor e uma gravidez não desejada sempre ocorreram ao longo dos tempos17, passando
muitas vezes por relações humanas em que se evitou ou não se soube falar, discutir, expor o que
aflige na interacção. Em casos de personalidades notáveis, como o inventor francês da teologia moderna, Pedro
Abelardo (1079-1142), o amor também constituiu um grande problema.
O ousado Abelardo foi condenado duas vezes por heresia18, em 1121 e no ano da sua morte, por
ser audacioso no argumento - defender que o Universo existe nas próprias coisas. Não acreditou que
o mundo fosse em si próprio uma realidade (realismo) nem que constituísse um nome, uma palavra
(nominalismo). Foi apelidado de filósofo conceptualista, crente na interrogação constante e assídua.
O seu túmulo em Paris, no cemitério de Pére-Lachaise, é de autenticidade duvidosa, mas diz-se
estar enterrado com Heloísa (1101-1164).
A partir do relato de Clifford Bishop19, confrontamo-nos com uma história de vida plena de
estudo livresco, amor e solidão, mesmo que possa ser contada de modo diverso, em particular por
Ackerman20.
Em qualquer versão dos factos, Abelardo apaixonou-se pela pessoa errada ou no momento
errado.
Heloísa fora aluna de Abelardo, mais nova do que ele vinte e três anos. No entanto, este apaixonar-se-ia por ela,
tendo-lhe sido retribuído o mesmo afecto. Estavam deveras enamorados e o sentimento cresceu.
O tio de Heloísa, cónego na Catedral de Notre-Dame em Paris, obrigou-os a casar. Mesmo que a ocorrência se
passasse no século XII, já existia uma orientação religiosa para a sexualidade, trazida até aos nossos dias.
Os cultos religiosos sempre legislaram sobre sexualidade. O que o cónego Fulbert não sabia era que Heloísa estava
grávida e, estranhamente, ela não queria casar-se. Fugiu antes para um convento, onde viria a tornar-se freira.
Heloísa pretendia evitar o escândalo de casar grávida, facto que nem o tio Fulbert entendeu. O cónego pensou que
Abelardo mandara a sua querida sobrinha para um convento para não estragar a sua própria reputação, ele que era um
mestre conceituado. Como represália, Fulbert contratou dois homens da sua confiança que castraram Abelardo.
Desfeito, Abelardo tornou-se um professor em eterna itinerância – Paris, Corbeil, Monte de Santa Genoveva... Pensou
ter merecido (pelo pecado) tamanho castigo.
4.4. Caminhos cruzados de fé e sexualidade
Porque é que as religiões praticaram actos de regulamentação da sexualidade? Por necessidade
de dominar riscos de destruição dos seres humanos? A comunidade de Oneida, fundada em 1830 em Vermont – EUA, denunciou a monogamia e
realizou o «casamento complexo».
Os Shakers americanos (em francês Trembleurs, por se considerarem temerosos) foram,
igualmente, uma seita cristã radical que se expandiu entre os séculos XIX e XX e em que se impôs
a propriedade comum, o celibato, a segregação de sexos e a desintegração social. Shakers consumou o nome do colectivo, aludindo às suas danças com mulheres e homens, frente a frente, para
realizarem rituais orgíacos até ao transe. A comunidade de Oneida e os Shakers desapareceram21.
Eles teriam um significado para a vida, alicerçado no êxtase e na festa.
Diferente foi o significado da morte de trinta e nove pessoas, corria o ano de 1997, acreditando
que se estavam a salvar. O relato autêntico e actual do Culto Heaven’s Gate («A Porta do Céu»)22
reconta-se para se proporcionarem exemplos de narrações elucidativas da influência de uma pessoa:
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Em 26 de Março de 1997, na Comarca do Rancho de Santa Fé (Novo México) nos EUA ocorreu um caso de suicídio
colectivo que deixou as pessoas horrorizadas, os media «impressionados» e os poderes policiais locais em situação crítica.
O sucedido foi comunicado por via telefónica e anónima à Comarca de San Diego, na Califórnia. A polícia alertada encontrou,
ao chegar ao rancho, as janelas da casa abertas e, no interior, trinta e nove corpos vestidos com os pés unidos e as mãos
abertas. As faces, observadas tranquilas, tinham sido cobertas com panos roxos. Uma cassete de vídeo deixada no local
expunha a ocorrência macabra.
Eram fiéis do Culto Heaven’s Gate que acreditavam provir de outra galáxia e ter aterrado na Terra. A sua última
missão seria sobreviverem à catástrofe profetizada da destruição da Terra pelo cometa Hale-Bopp, alcançando um nível
«super-humano», destituído de sentimentos, sexualidade ou género. Os homens tinham-se castrado. Com a promessa
de abandono de valores sócio-económicos, eles tinham perseguido valores espirituais supremos que os levaram à morte,
garantindo-lhes o «caminho da salvação» prometida por Marshall Applewhite, via internet. «- Para onde vamos?» constitui desde sempre a questão chave para grupos extintos ou recentes.
4.5. As «fazedoras de anjos de Nagyrev»: mulheres que matam os seus maridos
Os fiéis do Culto Heaven’s Gate foram influenciados por um homem psiquicamente pertur- bado.
Existem estórias da História que nos deixam cismáticos ou espantam. Outras impressio- nam-nos.
O que aconteceu em Nagyrev23 nunca mais foi esquecido naquela aldeia a cerca de cem
quilómetros a sudeste de Budapeste - Hungria, assumindo a forma de uma parábola: em ausência
de castigo ou vingança antecipados, as mulheres, podendo, dominam os homens. Esta é a observação do caso vislumbrada por Andreae24. Agindo, sem repressão ou coacção sexual, as mulheres
experimentaram em Nagyrev pela primeira vez a plena liberdade sexual, ainda que não assumissem
explicitamente que os maridos as aborreciam.
Figura nº 11 - Desenho de uma das mulheres homicidas de Nagyrev, Juliane Lipka.
O jornalista Simon Andreae25 relatou o pormenor histórico, colocando a questão da ausência de
limites à liberdade e existência de um poder discricionário, adaptado na passagem que se segue:
Em 1914, o Império Austro-Húngaro estava ameaçado por Russos. Maridos e noivos de Nagyrev iam sendo chamados
para a Primeira Guerra Mundial.
Nesses dias de mudança, os homens deixavam as mulheres sozinhas, começando estas a participar na vida da
aldeia. Entretanto, chegavam os primeiros prisioneiros de guerra e eram as mulheres a ter acesso à prisão, entre outros
motivos, para os poderem ver. Queriam fitá-los, olhos nos olhos. É possível que os inimigos, assim conotados por todos,
tenham despertado novas paixões naqueles corações livres. É certo que alguns homens da terra voltaram para retomar
vidas cortadas, mas foram recebidos, por vezes, com frieza ou com amuo.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Certo dia, foi participada a morte de um homem, Peter Hegedus. Simultaneamente, uma mulher, a senhora Ladislaus
Szabo, enganou-se na dosagem de veneno a ministrar ao seu marido e ele não faleceu. Como poderia ser que até então
morressem certos maridos e um escapasse da estranha doença tal como se supunha?
Fazekas, uma parteira local, foi responsável pela morte de mais de cem homens entre 1914 e 1929, com um cocktail
elaborado com cola retirada do verso dos cartazes de recrutamento militar.
Foi Ladislaus Szabo quem abriu a boca para acusar a vizinha, a enfermeira Fazekas. Esta foi chamada a explicar
a ocorrência, negando o crime. No entanto, foram encontrados papéis na loja da sua casa embebidos em veneno, tendo
sido por esse facto incriminada.
De acordo com as informações recolhidas por Andreae, dadas a conhecer em Anatomia do
Desejo26, vinte e seis mulheres foram acusadas, das quais oito foram condenadas à morte, sete a
prisão perpétua e as restantes acabaram recebendo castigos menores. Diziam, à boca fechada, que
os maridos eram «enfadonhos».
5. Sigmund Freud tinha e não tinha razão na questão sexual
Freud nasceu em 1856, tempo em que ocorriam acontecimentos estranhos cada vez mais discutidos na ciência médica: «histerias». Freud atribuiu esses males a factores psicológicos. Estava
convencido do relevo da sexualidade na vida das pessoas escutada em confidência. No entanto, o
Comité Nobel recusou a candidatura do psicanalista com a seguinte afirmação anotada: «- É sofrível
e tem uma mente tão doente como a dos seus doentes»27. Freud tinha abordado a questão sexual,
que era proibida há 100 anos, num contexto específico: Viena de Áustria conservadora.
Ainda nos finais do século XVIII, nos E.U.A., William Goodell28, no Hospital da Faculdade de
Medicina da Pensilvânia, recomendaria aos seus alunos que ao analisarem mulheres com doenças
vaginais fixassem os olhos no tecto. Depreende-se o quanto os valores morais na ciência mudaram.
No que se refere ao desenvolvimento sexual masculino e feminino, Freud falhou nas suas conjecturas, por razões culturais. À mulher atribuiu um estatuto inferior, até sexualmente29. Auscultou-lhe
na adolescência uma regressão30, imaginando-a castrada, sem pénis e com inveja do outro sexo
por não o possuir31.
Contudo, Freud sempre reconheceu a bissexualidade potencial de ambos os sexos, para o que
pode ter contribuído a sua própria relação com Wilherm Fliess ou com Carl Gustav Jung. Freud pensou que as práticas sociais levam a mulher a papéis passivos32. Mas ele não era um pansexualista,
não via em tudo sexo e perversão33. Aliás, se tudo fosse sexual, não haveria conflito intra-psíquico34.
A pessoa não manifestaria choque e perturbação.
Freud não foi convencional para a época ao reconhecer que o prazer (melhor obtido pelas
referidas zonas erógenas do corpo) e a procriação não coincidem inevitavelmente, ou ao defender
que «sexual» e «genital» são conceitos diferentes35. Pela primeira vez tentou-se demonstrar que a
sexualidade inclui desejos não relacionados com a actividade reprodutiva. Freud concebeu ocorrências humanas a que chamou pulsões, impulsos componentes da sexualidade, ligados ao tacto ou
à boca36. Ele acreditou, isso sim, que a sexualidade permeia toda a nossa vida; não disse ter tudo
uma conotação sexual.
A sua posição decorre da aceitação de existirem motivações inconscientes de natureza sexual.
Pense-se que o nascimento duma mera amizade pode ter essas motivações inconscientes sexuais.
Nesse caso, existirá uma base sexual da qual nem chegamos a ter consciência de acordo com a
afirmação ingénua: «- É amizade, pura e simples!».
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Na seguinte passagem da obra de Freud37, ainda em 1907, observa-se a agudeza do seu
pensamento genial, observado por Júlio Machado Vaz38:
«Não creio que exista uma única boa razão para recusar às crianças as explicações exigidas pela sua sede
de saber, a não ser que a intenção do educador seja apagar, o mais cedo possível, toda a tentativa da
criança em pensar com independência, para dar vantagem a uma ‘honestidade’, que pode ser muito querida
e, então, para conseguir isso, nada ajudará mais o educador do que enganar a criança no plano sexual e
intimidá-la no plano religioso.» (Freud, 1907; ed. francesa, 1969, p. 11).
Freud entendeu, entretanto, que a reprodução biológica se deveria sobrepor à sexualidade. Ao
longo da sua vida, cumpriu longos períodos de abstinência sexual por não desejar mais filhos e se
opor ao coito interrompido. Entretanto, sublimou o desejo sexual com a sua avidez intelectual. Ele
era um brilhante escritor e comunicador. A sua impressionante inteligência intra-pessoal, dirigida
ao desenvolvimento do auto-conhecimento, foi debatida e relatada por Howard Gardner39 numa
biografia exemplar.
6. Sexualidade e reprodução
As pessoas têm relações sexuais porque buscam prazer e/ou porque desejam ter filhos. A
grande maioria das relações sexuais ocorre por prazer, o que chegou a ser validado na Suécia pela
investigação de B. Linner, em 1978, em cerca de 98% dos casos.
O próprio conceito de sexualidade é mais amplo do que reprodução, embora no tempo em que
Freud viveu assim pudesse não parecer. A pílula só surgiria nos anos sessenta.
Entretanto, conhecem-se cada vez melhor os trajectos cerebrais ligados à sexualidade que
vão em duas direcções: ascendente e descendente. O caminho ascendente vai da amígdala ao
hipotálamo e ao córtex cerebral. O caminho descendente integra o cérebro consciente que envia a
informação sexual a zonas límbicas do cérebro. Nessa dinâmica, reconhece-se já a possibilidade
dos seres humanos estarem disponíveis para amar, sem as restrições das outras espécies40. Assim
sendo, no amor romântico, está altamente envolvida a cognição de alto nível, emoção intensa e
acção corporal, para além de factores de reconhecimento físico e visual do companheiro. Parece,
afinal, que a sexualidade implica quase todo o cérebro humano.
As sociedades ocidentais permitem-nos viver ambos os aspectos da vida, com satisfação:
reprodução e sexualidade. Essa capacidade de escolhermos o que queremos em termos sexuais
e quando o queremos, somente será possível se formos livres e responsáveis para escolhermos
e dispusermos dos meios para separarmos sexualidade e reprodução, quando o desejarmos. Os
métodos contraceptivos consumaram essa revolução no pensamento e nas práticas de vida.
7. Desenvolvimento humano «normal»
Júlio Machado Vaz41 considera que a sexualidade é uma trajectória muito longa que se realiza
devagar (pacientemente?) e em que os corpos precisam aprender o amor, em qualquer idade.
55
EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Questiona-se muito o que é normal e o que é psicopatológico em crianças, em adolescentes e
em adultos. «- Mas o que é ser ‘normal’?».
Em adultos, por exemplo, não é normal o eonismo, ou seja, o prazer experimentado por homens
em se vestirem como se fossem mulheres e o inverso. Em ocasiões festivas, de natureza ritual, como
por exemplo no Carnaval, aceitam-se travestis.
O conceito de «eonismo» foi criado por Havelock Ellis, em 1928, em texto intitulado Estudos
sobre a Psicologia do Sexo, Eonismo e outros Estudos. Ele pensava que muitos casais nunca se
tinham visto nus e os médicos chegavam a afirmar que a maior parte das mulheres não tinha prazer
sexual.
Os episódios mínimos em seguida relatados foram recolhidos numa revista de divulgação
cultural42. Os eventos referem-se ao eonismo43, na acepção de que certos eonistas podem viver
longo tempo como mulheres, ou como homens, tendo por nascimento um determinado sexo, mas
comportamentos do outro sexo. O curioso é que ninguém se apercebe da «inversão», como pode
ser a seguir observado44:
Uma mulher inglesa, falecida em 1865, terá passado por ser do outro sexo, estudando Medicina em Edimburgo –
Inglaterra. Adoptou o nome masculino de James Miranda Barry.
Nessa época, às mulheres estavam vedados os estudos avançados, em particular, em Medicina.
Também foi cirurgião, durante a batalha de Waterloo (Bélgica), em 1815, quando Napoleão I foi derrotado por Ingleses
e Prussianos. Depois, passou a viver na África do Sul.
Como se soube ser mulher? Depois da sua autópsia.
Mesmo o facto de ter tido um filho não levou ao conhecimento do seu sexo.
A qualificação de prática de eonismo45 adequa-se à vida dupla de James Miranda Barry, mas
também se lhe associa Isabelle Eberhardt ou Martha Jane Burke/Calamity Jane46. Isabelle Eberhardt
apresentar-se-ia como homem no deserto do Norte de África, tendo aí vivido como nómada. Por
último, Martha Jane Burke, que ficou conhecida por Calamity Jane, era uma americana que somente
foi reconhecida como mulher numa campanha militar contra os índios sioux. Era engenhosa no uso
de armas, cavalgava e mascava tabaco.
Eonismo47 deriva do nome do Cavaleiro de Eon, Charles Eon de Beaumont (1728-1810), um
agente político que morreu fingindo ser mulher durante cerca de trinta anos. Fisicamente, sendo um
homem «normal», viveu com uma amiga, Marie Cole, que nem suspeitou que ela era na verdade
um homem. Também se vestiu de mulher para se deslocar à corte da czarina Isabel e ser «leitora».
Depois, voltou à Embaixada Francesa na Rússia, já como homem, «irmão da senhora leitora». Enfim,
ele foi Capitão dos Dragões na Guerra dos Cem Dias e escreveu o livro Ócios do Cavaleiro de Éon.
De acordo com o relato de Ruth Rendell, em 1810, a amiga Marie Cole ficou estupefacta quando
o Cavaleiro de Eon morreu, facto testemunhado pelo notário: «Só ao fim de muitas horas é que ela
recuperou do estado de choque em que caíra».
O efeito dos genes, das hormonas sexuais e da organização cerebral delimitam a sexualidade,
aspecto aprofundado no capítulo final em que é discutido o transexualismo, a homossexualidade e
o hermafroditismo por relação com o Oriente.
Neste capítulo, enquadram-se concepções latas de «normalidade» e conformação a normas
sócio-culturais. Assim, debater o desenvolvimento psicológico é falar de mudança, de fluxo, de pro-
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
cesso. Mas dar a conhecer o desenvolvimento também é falar de estabilidade, de consistência e de
harmonia - «normalidade». O que é «normal» passou a depender de taxas de correcção, enunciadas pelo professor universitário José Dias Cordeiro48: (1) a época histórica; (2) a sociedade em que
vivemos; e (3) a fase de desenvolvimento de uma pessoa.
Nos nossos dias, tem-se vindo a exigir tolerância/aceitação face a atitudes e comportamentos
diferentes dos nossos. A livre circulação e fixação de pessoas em países distantes pressionam a
abertura à diferença. Entretanto, quando nos achamos «normais» e pensamos que os outros são
«anormais», sem atenção àquelas taxas de correcção, não estamos a ser repressores? Em termos sócio-culturais, consideramos que a democracia existe, precisamente, para defender
«os marginais», os diferentes e as minorias (por exemplo, os homossexuais). Assim, a democracia
deixa de ser encarada como a defesa das maiorias para passar a incidir nas minorias sexuais (ou
outras minorias) e nos indefesos: pessoas cujas atitudes e/ou comportamentos se afastem do padrão
normal para a época. Sabe-se hoje que é possível encontrar bases neuro-biológicas distintivas nas
pessoas e que, por exemplo, certos homossexuais apresentam características diferentes no cérebro,
relativamente a heterossexuais.
Assim, as investigações levadas a cabo sobre a identidade sexual49 e o cérebro de homos- sexuais50 mostram o quanto é inadequado esquecer as diferenças genéticas e biológicas que
possuímos. Estudos relativos a homens homossexuais demonstram existirem estruturas cerebrais
diferentes de heterossexuais, observado o hipotálamo e as comissuras anteriores do corpo caloso,
para além de um gene encontrado que pode ser responsável pela orientação sexual, sendo transmitido por linha materna. Esses factos serão retomados no capítulo III, a propósito da hipótese de
existir um cérebro «gay»51.
7.1. Primeiro amor incondicional: relação mãe-bebé
«Neotenia» relaciona-se com a existência de características imaturas na idade adulta. Todos
nós nascemos, ao contrário dos animais, com uma formidável longevidade pueril52, entendida como
flexibilidade e resistência/resiliência infantis. Nesse sentido, as mudanças genéticas representam
pouco, quando comparadas com as possibilidades proporcionadas pela transmissão de habilidades/
competências e crenças, fruto da evolução humana.
De acordo com a condição biológica de imaturidade, o termo «aceitação incondicional positiva»
justifica a ligação ao bebé, sem lhe exigir nada em troca. É uma expressão antiga e foi explorada
por clínicos humanistas: Carl Rogers53, Rollo May54 e Abraham Maslow55.
Nesse sentido, também James e Joyce Robertson56, entre outros psicólogos, defendem que a
ligação afectiva constitui um processo inato e universal de sobrevivência. Trata-se de atrair o amor
incondicional. Possuímos um arsenal ao nascer, reconhecido em códigos não configurados, para
sermos preparados para estabelecer relacionamentos íntimos e para adquirirmos e desenvolvermos
linguagem. Quando nascemos, esses códigos são maleáveis57. A plasticidade neural/neuronal é hoje
inquestionável58.
A investigação relativa ao modo como somos capazes de nos afeiçoarmos (ou não) a cuidadores
primários (pessoas significativas) relaciona-se, nos nossos dias, com Cindy Hazan e Phillip Shaver59,
depois de muitos outros cientistas terem estudado a díade mãe-criança60.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Em 2009, não se estranha mais existir um mecanismo de afectividade básico (o referido código)
que ajuda a sobreviver em condições adversas, como por exemplo quando se está doente. Não se
justifica o isolamento de todas as crianças enfermas. Todavia, em hospitais portugueses, nem sempre
foram concebidos lugares nas enfermarias de pediatria para os pais permanecerem junto dos filhos.
Antigamente, argumentava-se que os bebés «não deveriam ser incomodados».
Também se conhecem melhor os efeitos da hormona chamada oxitocina61 que se liberta do
hipotálamo em situações de amor sexual ou de relação pais-filhos intensa. Evidencia-se que os recém-nascidos ficam agitados e choram quando experienciam a falta de carinho. Primeiro, protestam;
depois, gritam. O pior é quando vêm a desinteressar-se dos seres humanos e caem no desespero
passivo, nomeadamente observado durante a Segunda Guerra Mundial em hospitais franceses e
ingleses - o hospitalismo62.
Assim sendo, o equipamento de base do bebé leva-o a olhar para quem se ocupe dele (pais ou
outros), a estender os braços, a mimar as expressões e a estabelecer diálogos sem palavras. Reconhece
a mãe pelo olfacto arreigado e ela torna-se, em geral, a sua primeira paixão. Espera-se que os cuidados
da mãe sejam de «qualidade» e, cerca dos sete meses, o bebé alerta-se ou chora em presença de
novas pessoas. Esse é o desenvolvimento «ideal» aguardado em cerca de 60% das crianças «bem
adaptadas» e competentes na manutenção de laços afectivos estáveis e intensos63.
Em circunstâncias adversas, entre os seis e os sete meses, certas crianças não começam a
brincar com os objectos porque foram maltratadas ou sofreram o descuido dos cuidadores. Chegam
a manter as mãos juntas no peito ou na barriga, não as utilizando para jogar, e são referidas a partir
da sua posição - a postura da mantis oradora.
As perturbações na afectividade surgem, com correlatos cognitivo-sociais, quando a atenção
mútua de pais e filhos decorre de modo menos harmonioso. Existem pais imprevisíveis, ambivalentes,
deixando a criança confusa e emocionalmente dependente. Esse foi o padrão/modelo ansioso/ambivalente descrito por Mary Ainsworth e colaboradores64. Pior ainda é o caso dos pais a abandonarem,
o que implica um comportamento-modelo chamado padrão evitante. Mais recentemente, pensa-se
existirem condições em que a criança se manifesta desorganizada, ora agarrando ora evitando o
contacto humano. Nessa situação, ocorre possível ausência de previsibilidade dos cuidadores dominantes (mãe, pai, avó, ama…), pessoas afectadas por perturbações psíquicas, nomeadamente,
maus-tratos e depressão. 7.2. A plasticidade do cérebro da criança
John H. Holland65 e Gerald Edelman66 foram os pioneiros na definição da matriz biológica e das
raízes com que contamos ao nascer – o referido código.
Absorvemos o mundo em experiências repetidas. No recém-nascido67, os receptores sensoriais
afinados estabelecem ligações diversas entre células que ainda estão a mudar as suas formas e a
aprimorar as suas funções. Essas células irão efectuar migrações para outras zonas do cérebro e
entrelaçar-se em redes neurais. É como se ficassem no cérebro gravações invisíveis e indeléveis
dessas cadeias, registadas por memórias inconscientes de experiências precoces, decorrentes de
interacções com os nossos pais ou outras pessoas salientes.
Até aos dezoito meses, esse processo é muito intenso e, aparentemente, caótico.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Nesse tempo inicial enraíza-se a sexualidade humana e a competência afectivo-social. Depois
dos oito anos, essa actividade intensíssima tende a diminuir, ainda que seja possível a confluência
de novas experiências e de novas associações sinápticas, mas em menor número. Aos treze ou
catorze anos, a estrutura cerebral está quase construída uma vez que o cérebro atingiu o seu desenvolvimento, guardando o programa de vida: semblantes, gestos, sorrisos, experiências, talentos
e destreza dominantes68. É nesse programa codificado que se incorporam scripts (guiões, roteiros
diários), cenários e estereótipos sociais enraizados.
Contudo, o limite cerebral não impede que nos desenvolvamos toda a vida, brincando, aprendendo e trabalhando.
7.3. Brincadeiras na infância: feminilidade e masculinidade
O jogo é uma actividade mental para além de física. Brincando, os bebés exercitam capacidades
motoras e cognitivas com alegria, relaxamento, despreocupação, desfrute do momento que passa,
numa atitude desinteressada. Alheiam-se e não se auto-observam.
A exploração do próprio corpo e a masturbação apercebem-se desde os quinze/dezasseis meses
de idade. Já mais crescidinhos, descobrem actividades sexuais e realizam jogos mentais de faz-deconta, simultaneamente, ainda que se possa crer estarem somente a reinar. Sem ter consciência,
ao brincar às mães digamos que se apercebe, lentamente, do modo como funciona o corpo: «- Que
ocorrerá quando for maior?»; «- Vou ter filhos, como tenho agora as minhas bonecas?».
No Jardim-de-Infância, ainda pequerruchos, os meninos brincam com carrinhos na Área da Garagem e as meninas divertem-se na Área da Cozinha. Essa é uma concepção prévia para espaços
físicos de uma sala de actividades. A distinção de género é justificada pelas brincadeiras diferentes
das crianças assim orientadas por tanques e carrinhos ou bonecas e panelas. Dos dois aos quatro anos, tanto no quarto de brinquedos como na escola, mantém-se a opção
selectiva na brincadeira. Todavia, antes do nascimento, se as meninas foram sujeitas a dosagens de
testosterona pré-natal, em níveis elevados, elas irão preferir os carrinhos às bonecas69. Surge um
desequilíbrio hormonal, predisponente à homossexualidade feminina ou lesbianismo.
Em outro caso de investigação70, quando se pede a crianças para lançarem uma bola e para
contarem uma história, é possível discernir padrões de comportamento masculino e feminino. Partindo
da constituição física, existe, por exemplo, uma forma masculina de atirar uma bola: procedendo mais
do ombro do que do pulso. Os meninos que não se comportaram de acordo com o esperado, foram
chamados de «meninas». Quando cresceram, cerca de 80% sentiram-se sexualmente atraídos por
homens. Por seu lado, as meninas manifestam superior competência linguística.
Pensa-se que próximo dos oito anos de idade a identidade de género estará formada71. Em
casos extremos de «perversões sexuais»/parafilias - violação, bestialidade72 e necrofilia73 -, os
contextos sexuais primários baniram a conversação sobre sexo74. Portanto, para além do substrato
biológico, outro factor a considerar no desenvolvimento da criança é a sua experiência na família ou
num ambiente de substituição (lar de adopção, internato…).
Pode contar-se uma situação real, a propósito do diálogo a seguir transcrito, sobre a normal
exploração do corpo por crianças. Certo dia, um casal americano discutia se deviam deixar os filhos,
Eric e Erin, ver um programa televisivo em que uma violação ocorreria75. Mas a situação precipitou-se
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
no pequeno écran, sem haver tempo para tomar uma decisão. Foi quando Eric, o menino, perguntou
aos pais:
- Mamã, o que é que aquele homem está a fazer àquela mulher?
- Está a introduzir o pénis dentro dela - respondeu a mãe - mas não está a fazer bem! Só devia fazer aquilo se
fosse a vontade dos dois e, primeiro, devia ter a certeza de que se amam.
Oh! Eu tentei, várias vezes, meter o meu pénis dentro da Erin, mas ele é demasiado pequeno e está sempre a sair.
Chocados, os pais telefonaram a uma terapeuta sexual de San Diego, na Califórnia, a trabalhar
na televisão76, que lhes respondeu poderem dizer às crianças ser melhor deixarem o coito efectivo
para quando crescessem e encontrassem outras pessoas que amassem e, então, o pénis de Eric
teria mais probabilidade de encaixar. Outro aspecto elucidativo do desenvolvimento infantil parte da investigação a seguir relatada. Thore
Langfeldt77 observou, na Noruega, o modo como crianças de quatro e cinco anos se abraçam numa
forma aproximada do acto sexual, mas desde que não se sintam observadas. O desenvolvimento
«normal» passa, como ficou dito, pela exploração do próprio corpo e do corpo do companheiro(a).
Nesse sentido, os aborígenes adultos de Arnheim, do Norte da Austrália, aceitam, sem repressão,
os jogos sexuais das crianças, denotando o que certos antropólogos já apelidaram de «saúde sexual».
As culturas são diferentes. Num único país existem contrastes nas sub-culturas enformados em
distintos valores sociais e religiosos, mas igualmente diferenciáveis em termos de valores culturais
diversificados. No Ocidente, aos dez anos, um rapaz já terá vivido qualquer tipo de exploração sexual mas,
ao longo do ensino básico, as raparigas continuam a não se cruzar com os rapazes. Elas fogem e
eles correm atrás da bola. Nem olham para elas: «- As raparigas são um nojo!». Esse é o tipo de
discurso agressivo de um rapaz que pode traduzir timidez. Os rapazes só esfolam os joelhos. Não
brincam com meninas. Ser rapaz é jogar à bola.
Mais tarde, um jovem face a uma rapariga, de acordo com uma engraçada comparação de Júlio
Machado Vaz, até treme como varas verdes. A tradução possível, a partir de linguagem psicológica
explícita para o seu comportamento desajustado, expressa-se da seguinte forma: «- Quem sou eu?».
A sua identidade está em construção.
7.4. Curiosidade de crianças de todo o mundo
Curiosidade, jogo e criatividade constituem características próprias de primatas superiores, ainda
que a curiosidade animal se transformasse em jogo ao longo da lenta evolução das espécies. Entre
um milhão ou mais de espécies, as aves e os mamíferos são dos poucos animais com condições
para evitar o aborrecimento e a rotina, brincando. Por exemplo, um roedor gira uma roda e isso pode
ser um indicador de «jogo». A curiosidade para brincar tem correlatos neurológicos.
Sabemos que as células cerebrais segregam diversos neurotransmissores nos seus agregados
celulares existindo já mais de 60 neurotransmissores identificados, entre os quais a dopamina. Os
neurotransmissores podem circular por todo o cérebro, mas actuam, somente, em certas partes da
massa nervosa contida no crânio humano.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
A curiosidade foi associada precisamente à dopamina, uma dessas substâncias químicas do
cérebro. Nos últimos anos, um psiquiatra e escritor, o americano Robert Cloninger78, defendeu que a
personalidade se define, essencialmente, partindo do funcionamento de quatro neurotransmissores
básicos: a dopamina (para a busca do novo), a adrenalina/norepinefrina (para o desejo de evitar o
perigo e o dano), a acetilcolina (para a dependência de recompensa) e a serotonina (a funcionar
como o marcador de constância). Acresce que a busca do novo e original constituiu o centro para
um estudo de investigação79 em que americanos e israelitas localizaram, em conjunto, um gene no
cromossoma 11 com o poder de codificar informação para os receptores dopaminérgicos – a Dopamina D4, estimulante interno do cérebro para a curiosidade face ao nunca visto.
Figura nº 12 - Fotografias de rapazes espreitadores.
Transval – África do Sul (rapazes) e Indochina (crianças pequenas)
Ambas as posições são reducionistas se considerarmos a curiosidade em termos de outros
factores psíquicos e sócio-culturais.
Figura nº 13 - Curiosidade sexual: Fotografia de rapaz a ver avô (?) a ordenhar vacas - Suíça.
Mesmo estando outros genes e factores contextuais implicados, pensa-se que as pessoas
predispostas a procurar mais a inovação se tornam extrovertidas, impulsivas e exploradoras. Podem,
portanto, ser mais curiosas em geral e sexualmente mais activas.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
7.5. Educação inflexível e educação equilibrada do jovem
Tivemos, muitos de nós, em Portugal, pais rígidos e pouco conversadores. Existiram e existem
ainda hoje temas considerados tabus em que a curiosidade é refreada. Em outros países, aconteceu
também fechamento, mesmo não tendo sido sujeitos a regimes políticos totalitários.
O quadro abaixo representado possui uma estória que elucida as ilações proporcionadas pela
obra de um pintor80 - Grant Wood.
Figura nº 14 - Grant Wood: «Gótico Americano» (1930), associada a pais austeros.
Em Iowa do Sul – EUA, num certo dia luminoso, o pintor Grant Wood ficou fascinado quando encontrou uma casa em
Estilo Neo-Gótico. Os seus telhados seriam soberbos... Também pode ter sentido vontade de criticar aquele meio fechado
em que vivia rotineiramente.
Pôs mãos à obra e foi buscar a irmã e o dentista para seus modelos dos papéis de pai e de mãe, colocando-os frente
à casa familiar retratada com rigor. Alguns criticariam a feia expressão no «casal». Grant desculpou-se como foi capaz:
a irmã era assim horrenda. Depois disse ter representado uma homenagem àquela população, cuja dignidade puritana
admirava. Não acreditaram nele.
Considere-se outra alternativa: ele amava a sua terra. Wood estudara na Europa e viria a ser um acérrimo defensor
da autonomia da pintura americana frente ao Velho Continente. Ele era um Regionalista na América do Norte, um defensor
do Realismo, durante os anos trinta. Apelava a um estilo de linhas rígidas, firmemente delineadas e modeladas, inspirado
no Gótico e nos mestres do Renascimento Setentrional (Albrecht Durer, Albrecht Altdorf...) que estudou na Europa, durante
os anos vinte. Wood observara diferenças entre a América e a Europa e o seu passado influenciara-o.
Muitos dos problemas sexuais com que nos deparamos provém de gerações muito fechadas,
intransigentes e sem adaptabilidade e estão relacionados com dificuldades inerentes às suas práticas de vida.
Neste século XXI há quem frequente sexshops, o que constitui já uma opção pessoal em liberdade. Actualmente, ser bissexual ou frequentar praias naturistas passou a consumir tempos de
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
destaque nos media. Também na imprensa portuguesa, sobretudo depois de 2001, afluíram denúncias de crimes de pedofilia. Essa é uma questão em que um indivíduo lesa outro, na sua liberdade
e dignidade.
Chama-se «catamito» a um rapaz ligado à actividade sexual homossexual, enquanto parceiro
passivo na sodomia – relação sexual anal. Ele não tem escolha. Os comportamentos adultos anteriormente referidos são diferentes – liberdade em frequentar
um local ou em utilizar outrem para práticas sexuais coercivas. No primeiro caso, as pessoas não
incorrem na condição de poder sobre uma criança ou adolescente para serem conotadas como
perversas.
Perversão sexual significa a satisfação de pulsões sexuais por práticas consideradas como
desviantes do comportamento habitual – parafilia, na linguagem actual.
Defende-se que os comportamentos sexuais somente dizem respeito aos próprios e incidem
na categoria «sexual» os actos que não constituam sexualidade coerciva. A pedofilia, uma parafilia,
é coerciva. A violação, por exemplo, tem ligações fortes ao poder81 e é coerciva.
Por sua vez, uma educação flexível pressupõe que o adulto consiga assumir-se como um suporte emocional para o jovem e que responda às suas perguntas sobre amor e sexualidade. Esse
é um adulto que cria desafios à reflexão.
Que outro significado se adianta para a pintura de Picasso apresentada na figura 15?
Através do olhar do pintor, vê-se uma criança e um adulto atento que ensina a jovem a ser
equilibrista, pelo desafio físico e artístico, formulado com exigência de aperfeiçoamento.
Figura nº 15 - Pablo Picasso: «Equilibrista na Bola» (1905).
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
O equilíbrio e o desequilíbrio constituem condições de acesso a uma aquisição de conhecimento/
aprendizagem «superior». Ao dizermos «superior», acentuamos o carácter formativo da aprendizagem. Pensamos na educação passível de proporcionar maior maleabilidade e menor recurso ao
pensamento convergente.
Quando passamos de uma animada conversação com um adulto ao diálogo com uma criança,
temos que alterar a complexidade do discurso. Essa é uma posição adequada e flexível também.
Afinal, na perspectiva estrutural do desenvolvimento, podemos subir e descer, em patamares
desenvolvimentais, que não são «estados estacionários» seguidos de progressão linear. Quando
falamos com alguém, colocamo-nos no seu nível de entendimento para o que lhe dizemos ser compreensível e fazer sentido. 7.6. Adolescências «normal» e «tresmalhada»
Perguntar «como se faz amor» a amigos adolescentes pode levar a respostas muito estranhas
e erradas... Nessa fase de vida, dão-se igualmente pressões para se iniciarem as primeiras relações
sexuais: «- O quê? Tu nunca o fizeste?», «- As outras raparigas não são assim tão inacessíveis!».
Uma rapariga afirma: «- A partir de agora, que me zanguei com os meus pais, não me deixo controlar
por ninguém!».
Existem falsas crenças que tornam a vida difícil, do género das seguintes frases coloquiais
escutadas por Júlio Machado Vaz: «- Não me pode acontecer nada... raramente faço amor!», ou
« - Uma rapariga que toma a pílula é uma maria-vai-com-todos!». Uma jovem pode pensar a propósito de relações sexuais: «- Se falo com o meu namorado, vou deitar tudo a perder». Essas são
expressões verbais comuns e convicções de adolescentes relativas à sexualidade e à relação familiar.
Manifestam dificuldade de comunicação.
Em 1998, em Portugal, nasceram 7400 crianças de mães com menos de 20 anos, o que correspondeu ao segundo lugar no número de gravidezes adolescentes na Comunidade Europeia, depois
do Reino Unido. Esse é o mais relevante argumento para que seja realizada Educação Sexual nas
instituições educativas. O que separa a infância da adolescência são alterações físicas, cerebrais, hormonais e psicosociais. Se pretendermos separar esses níveis etários, coloque-se uma imagem explícita: um gato
está para a idade da inocência e meiguice como uma menina «atrevida» está para a idade indefinida
na figura nº 16 - adolescência. Atendendo à ilustração, o gato representa a infância, mas a rapariga
é já «perversão»?
Atribuem-se a Balthus, pintor sem formação académica, nascido em 1912, pinturas de raparigas
em posições «pornográficas». Passou a entrar na categoria dos artistas mais criticados.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Figura nº 16 - Balthazar Klossowski de Rola (Balthus): «Rapariga com Gato» (1937).
Em 1937, Balthus82 colocou uma jovem como modelo de pré-adolescência num cenário austero,
severo e bem escuro, no qual a única luz incidia nas suas coxas. A sua exposição perturba-nos pela
forma como a rapariga se colocou. Normalmente, surgem na adolescência desejos sexuais intensos.
Em outros quadros, Balthus colocou outras jovens em interiores sombrios, onde dormem, sonham
acordadas ou se expõem fisicamente.
No entanto, a exibição Rapariga com Gato (1937) de Balthus contrasta com outro modo de
observar a adolescência contemplativa, partindo da fotografia de Cindy Sherman83.
Figura nº 17 - Cindy Sherman: Fotografia «Sem Título, n.º 96» (1954).
Apresenta-se na figura nº 17 uma fotografia em que a própria Cindy é a autora e a imagem.
Imagina-se uma rapariga que acaba de ler uma carta, na secção do correio do coração de uma
revista, na Velha Inglaterra dos anos cinquenta. O ideal de arte vitoriana, muito influente e puritano
desde o reinado de Alexandrina Vitória I (1819-1901) de Inglaterra, é quebrado por Cindy ao não se
enquadrar num cenário ao gosto conservador. Ela rejeitou esse embelezamento supérfluo. A moral
pública britânica, púdica e austera, salientava a exigência de disciplina intolerante. Assim pensado,
ela realçou a atitude de meditação da autora/modelo. Será que o seu pai não admitia que usasse
certos vestidos mais curtos?
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
A disciplina rígida e o puritanismo exigiram vestidos compridos em mulheres a quem não era
«adequado» o uso de calças. Com o Pós-Guerra, na segunda metade do século XX, tudo parecia
mudar.
7.7. Alice no País das Maravilhas: «- Mas quem sou eu?»
As crianças vivem mais experiências de imaginação ou modos de dissociação (alheamento) do
quotidiano do que os adultos, em particular na época que precede a entrada no ensino básico. Com a
escolaridade impõem-se convenções. Mudam os amigos, os gostos e os interesses.
A questão da identidade coloca-se na adolescência84. Em psicanálise, Erik Erikson (1902-1994)
convencionou ser a infância sujeita a várias identificações. Por puro mimetismo, a menina de sete
anos identifica-se com pessoas queridas e ídolos. Ainda na perspectiva do psicanalista a construção
da identidade far-se-ia no período da juventude. Assim, uma jovem de doze anos alcançaria um «eu»
consistente e não se deixaria levar. No século XXI, sobrevivem os ídolos e as identificações para adolescências sujeitas a contextos diversos. Identificações fugazes vão ao ponto de querermos ser (como) uma qualquer actriz americana. As narrativas exemplares de outros eus que nos habitam, formam ou corroem, constituem modos potenciadores para a discussão científica de uma concepção de identidade difusa
e em perpétuo sobressalto. A autenticidade do «eu» chegou ao fim? O verdadeiro eu esboroou-se.
Nessa acepção, representamos demasiados papéis sociais e, talvez, nem tenhamos experimentado
todos. Os contextos de vida ampliam-se e as adolescências são tantas quanto as divisórias sócioculturais.
Em Alice no País das Maravilhas85, a menina Alice reflecte essa sua dificuldade em saber quem
é, comparando o seu corpo com o das amigas, nos seguintes termos:
«...Ontem as coisas corriam como de costume. Serei eu que mudei durante a noite? Deixa-me ver: era eu a
mesma pessoa, quando me levantei esta manhã? Parece que me lembro de me ter sentido um poucochinho diferente.
Mas se não sou a mesma, então quem sou eu? Ah! Esse é o grande problema!».
E começou a passar mentalmente em revista todas as crianças da sua idade que conhecia, para ver se poderia
ter sido trocada por qualquer delas. ‘Tenho a certeza de não ser a Ada’, disse ela, ‘porque o cabelo dela cai todo aos
caracóis e o meu não tem caracóis alguns; também estou certa de não ser a Mabel. Eu sei muitas coisas e, ela, oh,
ela não sabe nada! Além disso, ela é ela, e eu sou eu mas, meu Deus, que confusão que tudo isto é!’» (Carroll, 1865;
trad. port. 1971, pp. 19-20).
Figura nº 18 - John Tennier: Ilustração de «Alice no País das Maravilhas» (Carroll, 1865).
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Alice é uma personagem de um conto fantástico que representa múltiplos papéis.
Figura nº 19 - John Tennier: Ilustração de «Alice no País das Maravilhas» (Carroll, 1865). Mudança física.
O conceito de «papéis sociais» é ambíguo e, geralmente, quem o nomeia nem imagina outras
funções para além daquelas identificadas por si. «Papel» é comportamento social, status e expectativa de manifestação de comportamento desejado adequado. «Papel» é representação em teatro
e, nessa condição lúdica, eu julgo ou finjo sentir o que chamo ao outro – a personagem.
Mas Alice era também uma menina real, Alice Liddell, que o Reverendo de Oxford, Charles
Lutwidge Dodson (1832-1898), conheceu e cativou. Charles Dodson foi matemático, fotógrafo e desenhador, para além de escritor e um grande sedutor. Ele escreveu e desenhou Alice, Mary Millais,
Irene MacDonald e dezenas de outras meninas; inventou-lhes jogos e acrósticos86 personalizados.
Dodson poderia ser hoje considerado um «pedófilo». Igualmente, Balthazar Klossowski de Rola
(Balthus), outro artista notável, poderia ser nos nossos dias condenado por esse crime.
8. Amores adolescentes
Nem sempre a relação sexual com menores constituiu um crime. Sempre existiram dramas
passionais, melodramas e tragédias japonesas em resultado da paixão por uma jovem menor de 16
anos. Ainda no século XX, se viveu uma atracção pelo exotismo oriental que levou muitos ocidentais
a casar com adolescentes durante o tempo de permanência em terras longínquas do lar.
8.1. O casamento da «menor» japonesa Butterfly com um militar americano
Giacomo Puccini (1858-1924), autor da ópera Madame Butterfly, pode ter pretendido representar
ser preciso sofrer para aprender? Aprender e viver não se conjugam mais com sofrimento, culpa,
castigo, privação ou reparação do erro. Desejavelmente, reflecte alegria.
Nos finais do século XIX, o que aconteceu a Cio-Cio-San, a heroína dessa ópera intimista? Se
não foi castigo, foi recordado como uma japonesice. Mas não é bem assim. Ela não era uma Bohème
à japonesa, mas era uma «bonequinha».
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Madame Butterfly87 é uma tragédia em 3 Actos. A crítica foi-lhe hostil e logo se tornou um fiasco
no Scala de Milão. Corria o ano de 1904.
Puccini nem quis acreditar no que ouviu dizer no dia seguinte, ele que afirmou, a pés juntos,
o seguinte: « (…) a minha Butterfly continua a ser (...) a ópera mais sentida e mais expressiva que
jamais compus».
O mesmo sentimento se colocou ao escritor inglês Charles Dickens (1812-1870) depois de ler
«O Capuchinho Vermelho»: se a personagem existisse, casar-se-ia com ela.
O que afligiria Puccini em Cio-Cio-San era ser ela a cometer o crime de se apaixonar por um
tenente da marinha americano, Pinkerton, não tendo encontrado outra solução senão suicidar-se.
A história daquela miúda de olhos em bico é bem simples de contar:
Cio-Cio-San e Pinkerton tinham-se conhecido em Nagasaki (Japão), num quadro colonial, em que se ouvem sinos e
gongos. Pinkerton comprou-a com 15 anos feitos. Talvez o militar tenha achado graça ao seu nome exótico - Cio-Cio-San
- Butterfly. Ele era um homem cínico88.
Nessa época, não haveria legislação que o impedisse de ter como esposa uma jovem menor de 18 anos.
É certo que se casaram felizes, se bem que o tio a recriminasse por abandono dos deuses locais. Aos olhos do tio,
ela procedeu mal. A família perseguiu-a ao querer retirá-la daquela vida. Tinham-na vendido e chegavam a recriminar-se.
Entretanto, escuta-se em cena «A canção das cerejeiras em flor» - sakura, sinal de momentos de paixão.
Terminada a missão militar, Pinkerton partiria, de qualquer forma, sem ela, como um amante que não ama – ávido
de prazer89. Já era de esperar, embora ela estivesse grávida.
Passados três anos, com a maioridade legal actualmente reconhecida, Butterfly tinha o seu bebé desejado (?), fruto
daquele amor impossível. O menino pequenino era parecido com o pai. Foi depois colocado ao cuidado de uma empregada,
Suzuki.
Sem que se soubesse a razão, o Senhor Cônsul Americano no Japão, chamado Sharpless, entrou na história de
Butterfly para a aconselhar a desposar um outro homem, um príncipe japonês chamado Yamadori. Nem se chegaria a
conhecer o passado de Yamadori, nem a sua intenção em relação ao casamento combinado. Também é possível que o
príncipe não soubesse ou não se importasse de ficar com a criança, filha de Pinkerton.
No entanto, Pinkerton estaria já prestes a voltar a Nagasaki num navio americano. Butterfly foi informada da sua
vinda e, agarrando-se à criança, nem hesitou em ir esperá-lo para o receber com alegria ingénua e com o filho nos braços.
Não podia ter feito pior. Ele já vinha acompanhado por Kate, uma jovem moderna.
Pinkerton compreenderia a sua má acção somente ao vê-la? Que fazer? Encurralado, Pinkerton deixaria as duas
mulheres. Kate ficou, como seria de esperar, surpreendida.
Nesse momento a jovem Butterfly precipitou-se. Traçou o seu fim, como uma borboleta pregada em alfinetes. Entregou
o menino a Kate que o recebeu nos braços sem compreender o que se passava. Depois, Butterfly matou-se no palco com
o sabre do pai. Pereceria mesmo pregada ao chão.
O libreto italiano acentuou que Cio-Cio-San estaria arrasada. De criança-mulher passou a
heroína/mártir. Na narração, ler-se-iam outras interpretações tais como o impacto do imperialismo
americano face a problemas locais do povo tradicionalista. Outra perspectiva incorre em afiançar que
Puccini se terá sentido condoído e sensível face à personagem arquetípica90 de menina inocente,
agarrada pelo vilão. Segundo Jeanne Suhamy91 a questão de fundo é Butterfly confrontar-se com o
mundo que opõe amor e sexo.
O problema sexual coloca-se: o que desejou Butterfly? O compromisso. Quando o desejou?
Antes de alcançar maturidade fisiológica e maior capacidade de tomada de decisão.
Puccini adoptou o ponto de vista supostamente interno da heroína e criou outro arquétipo da
menina enamorada, nas suas palavras «mulherzinha que só sabe amar e sofrer».
Por conseguinte, um arquétipo92 consuma a tendência para formar representações não reconhecidas (inconscientes), adequadas a uma época e aos valores dominantes em uma ou outra cultura.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Figura nº 20 - Cio-Cio-San, em «Madame Butterfly» (1904), ópera de Ciacomo Puccini (1858-1924).
É evidente que Cio-Cio-San não conseguiria comunicar sentimentos com elasticidade e sujeitos a
nuances, pois a cultura e língua materna alteravam o sentido do que fosse dito em contexto emocional.
Pinkerton era um homem branco e de situação militar e social elevada. Um invasor.
8.2. Do amor casto de Adão e Eva ao casamento cristão
Lutamos para nos entendermos a nós próprios. Esse foi o intento confessional de Agostinho
(354-430), raro na época.
Foi Santo Agostinho quem associou a sexualidade e a culpabilidade (pecado) com o pecado
original da desobediência e a incapacidade do espírito controlar a carne. Também teve sonhos terríveis93. Pesou-lhe o «erro», o filho inoportuno, chamado Adeodato, e o Demónio.
Desde então, Adão e Eva ficariam ligados a uma lenda ou alegoria94.
Em outra visão, a propósito daquele símbolo de amor e paixão, a escritora Agustina Bessa Luís
pronunciou-se em entrevista95 sobre o amor:
«O grande amor – e eu diferencio entre amor e paixão – é sempre um recurso, um pressentimento de privação.
A saída de Adão e Eva do Paraíso é uma lenda maravilhosa, que representa a introdução do amor na terra, a
privação do estado ideal, onde havia a liberdade total, a harmonia dentro da liberdade. Eles saem munidos do amor,
para suportarem a realidade da vida.» (Bessa Luís, A., sem data).
Nessa acepção, o amor será um bem menor ou um prémio de consolação96, orientado pela
definição de amor-dádiva ou dom de Bessa Luís97: «o amor é uma memória que nos foi transmitida,
uma lição recitada, o amor é só uma forma de piedade por nós próprios».
Mesmo observado o amor nessa triste forma concebido, o Éden, no Génesis, é como o Lugar
das Delícias, o Paraíso Terrestre. Não terá sido o lugar onde Adão e Eva se uniram sexualmente?
Onde então? Na realidade agreste e terrestre.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
As imagens sexuais repetem-se na Bíblia. Moisés fizera também magia com uma vara que
se transformara em serpente, um símbolo fálico comum. No Próximo Oriente, essa serpente fálica
ensinava a ter relações sexuais e, de acordo com a Bíblia, tentou Eva.
Na análise dessa alegoria por Clifford Bishop98, somente depois de se encontrarem no Éden é
que ocorreu a união de facto entre Adão e Eva, isto é, fora do Paraíso. Para intérpretes judeus nos
quais se apoia Bishop, a serpente não os tentou, logo, a queda do Paraíso passa a ser uma consequência de mera desobediência ao dever. Como se observa, uma alegoria integra vários significados:
culpa/pecado e prazer, amor e dever, castigo e reparação do «mal» feito.
A questão da reprodução encontra-se igualmente presente na alegoria. Nas palavras bíblicas, a
expressão de Deus é «crescei e multiplicai-vos», o que leva certos judeus e muçulmanos a oporemse ao celibato. Inclusive, é comum entre judeus amarem-se na noite anterior a sábado (Sabat), dia
de repouso, na medida em que o sexo serve a criação e consuma um dever sagrado pelo Antigo
Testamento.
O que se observa ao ler o Génesis é que Deus demoraria seis dias a criar o mundo. O primeiro ser humano seria concomitantemente macho e fêmea ou igual a Deus, um ser assexuado.
Mas a versão dominante do Génesis não é essa. É outra a narrativa99 divulgada em que Deus criou a Terra e o Céu em um único dia e Adão foi feito da Terra, moldado com ela, tendo-lhe sido soprada a vida pelo nariz, enquanto Eva (a própria Vida) se estruturou da sua costela para ser sua «ajudante».
Para o ritual de casamento, na tradição judaica, a sexualidade foi progressivamente eliminada
por leis terríveis100. Certos escritos sagrados para judeus como a Tora, constituída pelos cinco primeiros livros das Escrituras judaicas, o Talmude e o Levítico contém todos os exemplos de proibições
e de leis contra as práticas sexuais.
A Tora101, esse «Livro das Leis», foi uma forma de sarar males se essa obra fosse transportada
da sinagoga até junto de doentes ou mulheres em trabalho de parto102. Chegou a prescrever-se que
o homem depois de beijar o rolo da Tora não poderia beijar a mulher ou o filho103. Fazem-se ainda
prescrições reconhecíveis. Por exemplo, a poligamia é aceite, embora não esteja escrito o número
de mulheres que um homem pode ter.
No Talmude, onde são expressas e comentadas as tradições judaicas, enuncia-se a possibilidade de quatro mulheres casarem com um homem e dormirem com o marido alternadamente, pelo
menos uma vez por mês.
Mas é no Levítico104 que se decreta a pena de morte para a homossexualidade. Essa obra é
igualmente terrível para quem não tenha na sexualidade a orientação básica de gerar filhos. Às noivas
não virgens está prescrito que poderiam ser apedrejadas até à morte, tal como os noivos adúlteros. O casamento e as práticas relacionadas com o asseio sexual e a menstruação encontram-se
registados nas Escrituras dos Judeus. Não é de esquecer a modéstia defendida para as mulheres
no modo de vestir.
Para além das religiões, os sistemas políticos criaram, como se verá a seguir, os seus regulamentos implícitos influentes.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
8.3. O amor «impróprio» na China maoísta – Verdita
A estória de Verdita é contada no livro Azálea Vermelha, uma autobiografia da escritora Anchee
Min
105
que foi Guarda Vermelha na China, chegando a ser actriz em filmes de propaganda do regime
comunista106. O sucedido, observado por Anchee, passou-se na costa oriental do Mar da China, na
Unidade Agrária chamada Fogo Vermelho. Corria o ano de 1974.
A República Popular da China constituía, na época, um exemplo venerado por muitos jovens
ocidentais. Naquela região longínqua, outros jovens apanhavam, durante duros dias, trigo, algodão
e sementes oleaginosas.
O que ocorreu a Verdita é inadmissível:
Verdita era muito bonita e, embora pequena, chamava a atenção dos seus camaradas do acampamento. Não era
propriamente destituída de sensibilidade, embora se sentisse bem no grupo.
Em outra Unidade de Trabalho, ela conheceu um rapaz de óculos, tal como ela belo e apaixonado.
Em segredo, passaram a encontrar-se.
Certo dia, foram descobertos e serviram de exemplo: ele foi morto e ela obrigada a escrever num papel ter sido
violada por ele.
Como seria de esperar de um tão raro amor, Verdita foi morrendo aos poucos. Definhou, sendo encontrada morta no rio.
O amor foi destruído devido à ideologia dominante, segundo a qual iria corromper os ideais
políticos, incentivados em jovens chineses. Associou-se a esta estória a luxúria (o pecado oposto à
castidade), mas o que se aconteceu a Verdita foi paixão partilhada.
9. Amor adulto, função de aquisição de auto-conhecimento
No amor adulto, ao conhecimento da outra pessoa alia-se o auto-conhecimento.
Por vezes, o amor-paixão transforma-se em solidão, ou lutamos toda a vida para nos percebermos: «- Quem sou eu? Sou feminina?»; «- Sou amada?»... Tantas perguntas por fazer e outras
que nem se formulam, por reserva ou esperada incompreensão.
O amor talvez seja a área psíquica de maior dificuldade de explicação, ainda que os seus correlatos neurais sejam em parte conhecidos. Ultrapassando a auto-compreensão, um reparo relativo
ao final do filme Damage pode ilustrá-lo107. Perguntar-se-ia o actor (John Malkovich): «- Quem sou?»;
«- Do que sou capaz?»; «- Quanto posso ter mudado?»... Existem no argumento vários estragos
imprevistos: o casamento, o adultério, o suicídio do filho, o abandono da mulher amada, etc. Na obra
cinematográfica, presencia-se a perplexidade daquele protagonista que ama a nora:
«Leva pouquíssimo tempo a alhearmo-nos do mundo.
Viajei até alcançar uma vida minha.
Aquilo de que somos feitos ultrapassa o nosso entendimento. Cedemos ao amor porque ele nos dá uma certa
sensação de entendimento.
Nada mais interessa, pelo menos no fim.»
O personagem a afirmá-lo renunciou a viver a sua paixão, acabando por se tornar um eremita,
doente, algures em África.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
10. Crenças e medos das doenças sexualmente transmissíveis
No Ocidente, a influência religiosa nos costumes sexuais diminuiu actualmente mais do que em
qualquer outra época histórica108. Nos EUA, impôs-se a Revolução Sexual desde os anos sessenta.
As sociedades comunistas somente nos anos noventa alcançariam liberdades fundamentais.
Ainda que certas ocasiões históricas constituam formas de libertação, propiciando a diminuição
de doenças venéreas mortais e de gravidezes não desejadas, o século XX ficou ensombrado com
o aparecimento da trágica Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA).
A tradição judaico-cristã per se não é culpada pela expansão das doenças sexualmente transmitidas, até porque condenou a sexualidade desde o início do século I d. C., com Paulo de Tarso
- Turquia109 (5-67), São Jerónimo (342-420) e Santo Agostinho (354-430). A capacidade de nos
redimimos e o perdão caracterizam dois dos princípios basilares dessa fé. Actualmente, em confronto com opiniões díspares, afirma-se que a Igreja Católica ao condenar o uso de contraceptivos
é responsável pela expansão da SIDA.
Com a SIDA, múltiplas vozes, para além das cristãs, juntaram-se na condenação de comportamentos sexuais. Nos séculos XX e XXI morre-se mais de SIDA do que de outras doenças da
civilização. Ainda em 1983, no jornal americano New York Post110, um político conservador, Patrick
J. Buchanan, defendia que a SIDA era uma condenação da Natureza para os homossexuais. Em
Londres, anos depois, na Câmara dos Lordes, Lady Salton111 veria a ira de Deus como causa desse
mal. Expressões como «conduta depravada» e «prática sexual abnóxia» (não inócua ou inofensiva)
já não serão utilizados depois de se saber o que a ciência nos vêm explicando: a SIDA não escolhe
os doentes nem a sua orientação sexual.
No ano de 2000, o Primeiro-Ministro inglês Tony Blair, face ao aumento de casos de gravidez
na adolescência, afirmou à comunicação social o seguinte: «Ninguém deve engravidar ou contrair
uma infecção transmitida sexualmente por causa da ignorância. Esse é um dado concreto». Temos
pois que passar a transmitir o conhecimento exigido. Blair avançou mais do que se esperaria.
Para colmatar o desconhecimento inevitável de um(a) jovem sobre sexualidade, deve começar-se
por explorar com ele(a) o que já sabe ou julga saber de sexo e de amor. O que sabemos prende-se
com a cultura que possuímos e com os contextos em que vivemos. Em primeiro lugar, convivemos
com a família em casa e com os colegas na escola.
Sugerida uma estória imbricada para a alusão a um Basilisco, não se duvida que certas crianças
portuguesas ou japonesas já conhecem a besta, uma criatura híbrida e fantástica. O Basilisco surgiu
em livro e em filme da «colecção» Harry Potter. Na obra de Joanne Kathleen Rowling112, é ele que
guarda a Câmara dos Segredos onde se morre e cuja porta não se pode abrir em Hogwarts - Escola
de Magia e Feitiçaria. O Basilisco é um símbolo de destruição e morte.
O que nem todos sabem é que a vitalidade do bicho surge da imaginação do mundo clássico.
O letal rei das cobras pequenas113 foi inventado como um ser vivo real pelo naturalista romano Plínio,
«o Antigo» (de seu nome Caio Plínio Segundo), quando realizou uma viagem à Etiópia114.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Figura nº 21 - Um Basilisco.
Os bestiários medievais - como o Physiologos115 - referem que o Basilisco existiu... O Basilisco
representa também uma peste. Depois de 1500, com a propagação da Sífilis, simbolizou o medo da
morte. Naquela época, a Sífilis tinha uma forma virulenta, capaz de matar vinte pessoas num espaço
localizado e de infectar uma em outras dez pessoas116. Naturalmente que as pessoas sexualmente
mais activas eram as vítimas.
Com os limitados saberes da época, os sintomas do Cancro Mole (venéreo) e da Gonorreia
confundiam-se com Sífilis. Observava-se amiúde que as pessoas internadas mexiam, com frequência, nos órgãos sexuais. Era um vício solitário. Elas masturbavam-se e a essa auto-estimulação ou
ao coito interrompido chamou-se «onanismo»117.
Foi André Tissot que escreveu, em 1776, o primeiro Tratado das Doenças Provocadas por
Onanismo118 e, somente em 1861, Louis Pasteur desfez a noção de que «exaltações nocivas» ou
«excessos sexuais» poderiam implicar a contracção da doença. O mal passaria a ligar-se à transmissão de micróbios ou fluidos. Em 1905, finalmente, a Gonorreia, o Cancro Mole e a Sífilis eram
identificados119. A descoberta da penicilina concorreu para o tratamento.
11. Os métodos contraceptivos e a gravidez desejada
A exigência educativa colocou-se em Portugal quando a legislação sobre Educação Sexual
seguiu a constatação do excessivo número de gravidezes na adolescência e a SIDA alastrou no
país. O preservativo passou a ser o método eleito como defesa contra o vírus. Curiosamente, os preservativos foram feitos pela primeira vez no Egipto e assim se usaram até
meados do século XIX. Existiam receitas120 para a sua fabricação caseira:
«Retira-se o cego (primeira parte do intestino grosso, que se segue ao intestino delgado) dos carneiros;
embebe-se, primeiro, em água e vira-se de ambos os lados; depois, repete-se a operação num soluto suave de soda, que deve ser mudado de quatro em quatro ou de cinco em cinco horas, cinco ou seis vezes
consecutivas.» (Andreae, 1998, trad. port. 2003, pp. 158-159).
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Em seguida, o preservativo ainda tinha que ser limpo, cortado, moldado e costurado por quem
sabia da arte121. Muito poucos homens tinham acesso a este recurso anticonceptivo, apresentado
na figura nº 22.
Figura nº 22 - Desenho de preservativos de meados do século XIX, apresentando cenas eróticas.
Em 1840, a borracha vulcanizada tornar-se-ia o recurso para a contracepção feminina, seguida
da utilização da borracha-crepe e do látex líquido para homens, passando o contraceptivo masculino
a ser vendido, desde 1930, em lavabos masculinos, tabacarias e postos de gasolina nos EUA122.
A pílula data de 1960 (8 de Maio) e consumou o abandono de todas as limitações à sexualidade
responsável. O acesso ao «sexo seguro» e à «liberdade feminina» estão a dar os seus frutos com
a diminuição da natalidade, voluntariamente assumida.
Os xamãs da selva amazónica também administram métodos anticonceptivos naturais, de
forma a espaçar as gravidezes123. Notas
Capítulo II - Educação Sexual na família, na escola e na sociedade: base evolutiva e desenvolvimental
1. Relembrando Freud (Vaz, 1991, p. 143): «Se querem saber algo acerca do amor interroguem os
apaixonados e os poetas».
2. Super Interessante (2003). «Viva o Corpo!», livro suplemento, revista nº 65, Set. 2003, p. 42.
3. AA.VV. (2004, p. 26).
4. Uma zona erógena é uma parte da pele rica em receptores sensíveis – corpúsculos de Krauser-Finger,
que se concentram no clitóris e na glande do pénis. A sensibilidade da pele, com cerca de 80.000
nervos ultra-sensíveis e cerca de outros 650.000 nervos, que se encontram nas camadas internas
do corpo, concentra-se também em zonas erógenas. Sendo assim, não é aleatória a distribuição
desses nervos.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
5. O cérebro emocional é discutido por Joseph LeDoux (1996, trad. port. 2000), colocando limitações
à concepção fixada de existir uma região visceral (com atributos do Id inconsciente) ou um sistema
límbico, constituído pelo córtex límbico e as regiões subcorticais (pp. 103-109). O que LeDoux propõe
é que o hipotálamo (parte daquele sistema) está ligado a todos os níveis do sistema nervoso (p. 106)
e que existem vários sistemas emocionais no cérebro (p. 109).
6. O amor será feito de pequenos nadas erotizados – tiques e toques, despentear cabelos, rodear
ombros… (Vaz, 1991, p. 11). Nesse sentido fácil descrito por Alberoni, o amor não é monogâmico
por oposição à paixão monogâmica (Vaz, ibid, p. 174).
7. O ciúme pode ser inveja, acompanhada de pena e de ira/raiva, sem esquecer a nostalgia pelo medo
de perda do outro (Vaz, 1991, p. 170). Adiante será aludido através de Otelo de Shakespeare.
8. A citação de Milan Kundera desejar uma mulher é fácil, o pior é querer dormir com ela é apresentada
por Júlio Machado Vaz (1991, p. 12), em O Sexo dos Anjos. Nessa expressão, o homem separa a
intimidade do seu desejo, o que não será apanágio da mulher, culturalmente constrangida a nem
assumir o seu desejo.
9. Michael Mahoney escreveu Processos Humanos de Mudança, em 1991, sendo referida a noção
de existirem questões difíceis de mudar, nomeadamente a identidade e os valores de uma pessoa
(Mahoney, 1991, trad. bras. 1998, p. 32).
10.António Damásio (1994) expressou-o no livro O Erro de Descartes: Emoção, Razão e Cérebro Humano.
11.A estrutura de categorias linguísticas desempenha um papel no pensamento e, em muitos casos,
denominam-se scripts (guiões, roteiros), «estereótipos» e «cenários» aos pontos de referência cognitivos de vários tipos que formam as bases de ilações e inferências (Lakoff, 1987, p. 45).
12.Alan M. Turing escreveu um texto, em 1947, intitulado Uma Máquina Pode Pensar, inaugurando o
paradigma da Inteligência Artificial – a metáfora do computador. Em 1960, Hilary Putman ainda insistia,
no livro Mentes e Máquinas, que a máquina poderia estabelecer um nexo, dando a solução à questão
complexa relativa à interacção ou separação mente e corpo. Desde então, a Neurofisiologia (e a
fortiori a Física) pode ter aspirado a reduzir a Psicologia a pouco, reconhecidas regiões do cérebro
para funções psicológicas. Estamos felizmente longe de tomar o reducionismo como «solução». 13.Jeffrey H. Goldstein (1980, trad. bras. 1983, p. 74).
14.Victoria McCarthy (1996; trad. port. 2000).
15.Simon Andreae (1998; trad. port. 2003, p. 24).
16.Diane Ackerman (1994, trad. cast. 2000).
17.Foi no Concílio de Trento (século XVI) que ficou definido não ser aceite o casamento de jovens sem
o consentimento dos pais (a partir dos 13 anos no rapaz e dos 11 anos e meio na rapariga), ainda
que pudessem sempre incorrer em pecado casando sem a aceitação parental (Vaz, 1991, p. 73).
18.Dictionary of Literature (1995, p. 7).
19.Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 86) contou a história de Abelardo e Heloísa.
20.Diane Ackerman (1994, trad. cast. 2000, p. 92-98).
21.Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 97).
22.Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, pp. 127-128).
23.A fonte dessa ocorrência funesta é encontrada em O. Thompson (1931).
24.O relato recente do sucedido encontra-se em Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 51).
25.Andreae, ibid, pp. 51-53.
26.Simon Andreae, 1998.
27.Super-Interessante (2003). «Ciência Divertida», livro suplemento, revista nº 58, Fevereiro de 2003,
p. 7.
28.Super-Interessante, ibid, p. 6.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
29.Sigmund Freud (1910, 1931, 1932).
30.Freud (1905; trad. port. sem data, p. 139).
31.Richard Appignanesi (1979; trad. port. 1982, pp. 88-90).
32.Appignanesi, ibid, pp. 91-92.
33.Actualmente, a noção pejorativa de «perversão» aproxima-se de devassidão, corrupção e depravação.
34.O conflito «interno» é dito intra-psíquico por ser pessoal. O conflito entre pessoas é o termo geralmente usado para conflito. Nessa perspectiva, houve conflito («externo») entre Freud e Jung, porque
para este último a sexualidade não seria só uma repressão da pulsão sexual, mas também um poder
criador, favorecendo o sentimento de identidade e de unidade.
35.Sigmund Freud (1905, trad. port. sem data, p. 96).
36.Richard Appignanesi (1979, trad. port. 1982, p. 72).
37.Sigmund Freud (1907; trad. fr. 1969, p. 11).
38.Júlio Machado Vaz (1991, pp. 111-112).
39.Howard Gardner (1993).
40.Rita Carter (1998, trad. cast. 1998, p. 74).
41.Júlio Machado Vaz (1991, pp. 66 e 163).
42.Super-Interessante (2003). «Ciência Divertida», livro suplemento, revista nº 58, Fevereiro de 2003.
43.Lello Universal: Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro (1976). Volume 1.
44.Texto criado a partir de Suplemento «Ciência Divertida», distribuído com a Revista Super-Interessante,
nº 58, Fevereiro de 2003 (p. 6) e de um livro policial de Ruth Rendell (1978, trad. port. 1987, p. 217).
45.Os pormenores desse comportamento encontram-se em Rendell (1978, trad. port. 1987, p. 215):
uma mulher fez-se passar por um homem para cometer um crime.
46.A história de vida de Martha Jane Burke, conhecida por Calamity Jane, foi representada pela actriz
Maria do Céu Guerra.
47.Lello Universal: Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro (1976). Volume 1. Diga-se que Rendell
(1978, trad. port. 1987, p. 217) identifica outros factos sobre o Cavaleiro de Eon.
48.Em aulas de licenciatura, no primeiro Curso de Psicologia da Universidade Clássica de Lisboa,
iniciado em 1976.
49.D. F. Swaab, J. N. Zhou, M. Fodor e M. A. Hofman (1996) realizaram uma investigação sobre transsexuais (de homens para mulheres), observando que existe uma diferença na identidade sexual
que os aproxima das mulheres, decorrente do hipotálamo ser mais pequeno. Dick Swaab é um dos
cientistas mais destacados do Institute of Brain Research, em Amesterdão, na Holanda. A revista
Science publicou esses dados, em 1991.
50.Laura S. Allen e Roger A. Gorski (1990, 1992) analisaram o papel das comissuras anteriores do
corpo caloso (tecido conjuntivo que liga os hemisférios cerebral direito e esquerdo) na homossexualidade masculina. A comissura anterior é uma conexão mais primitiva entre os hemisférios, que liga
somente as áreas inconscientes dos dois hemisférios (Le Vay, 1994, p. 102). Essas zonas cerebrais
pareceram a Laura Allen e colaboradores maiores e semelhantes às observadas em mulheres,
consideradas mais conscientes das suas emoções (Carter, 1998, trad. esp. 1998, p. 71). Os resultados obtidos por Allen e Gorski foram semelhantes aos de Simon Le Vay (1993), que observou o
cérebro estruturalmente diferente em homossexuais mortos por SIDA. Le Vay era então Professor
Associado do Salk Institute for Biological Studies e Professor Adjunto na Universidade da Califórnia.
Também D. Hamer e P. Copeland (1993) defenderam que um gene determinado - transmitido por
linha materna – poderia influenciar a orientação sexual de homens. Na época, Dean Hamer era um
biólogo molecular do Washington National Health Institute.
51.Usa-se neste lugar e em outros momentos do texto esse termo inglês – gay, na medida em que
existe uma «cultura gay», para além da orientação homossexual ou bissexual.
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52.Michael Mahoney (1991; trad. bras. 1998, p. 28).
53.Carl Rogers (1965). Nos anos sessenta, nos EUA, acolheram-se a dinâmica de grupo e as psicoterapias existencialistas. 54.Rollo May (1958).
55.Abraham Maslow (1962).
56.Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, pp. 183 e 187).
57.Andreae, ibid, p. 88.
58.Ann Barnet e Richard Barnet (1998).
59.Cindy Hazan e Phillip Shaver (1994, pp. 68-79).
60.John Bowlby (1969, 1973, 1979, 1980, 1988); Mary Ainsworth (1982, 1985); M. Ainsworth, M. Blehar,
E. Waters e S. Wall (1978). Esses são os primeiros investigadores a estudar as relações iniciais entre
o bebé e os cuidadores básicos – mãe, pai, outros.
61.De acordo com a informação científica do filme The Science of Sex: the Aim of the Game (1997).
62.René A. Spitz (1945, 1968) registou o que denominou hospitalismo e apresentou o quadro de depressão anaclítica (Spitz & Wolf, 1946). O hospitalismo refere-se ao internamento prolongado de
uma criança em hospital e aos seus efeitos negativos durante o primeiro ano de vida. Num orfanato
e numa penitenciária para meninas delinquentes (algumas grávidas), observou-se que as crianças
apresentavam problemas por ausência de contacto humano. A depressão anaclítica infantil implicava
uma «boa relação» inicial da criança com a mãe. Na ausência desta última, o bebé tornava-se choroso
(1º mês de separação), depois gemia e perdia peso (2º mês de separação) e, finalmente, durante o
3º mês de isolamento, recusava o contacto. Thesi Bergmann e Anna Freud (1965) retomaram, mais
tarde, as implicações da hospitalização de crianças, vítimas da Segunda Guerra Mundial.
63.Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 184).
64.Mary Ainsworth e colaboradores (1978).
65.John Hollard (1992, 1995). Holland, o criador de algoritmos genéticos e um dos pioneiros nas ciências
da complexidade, é citado por Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 189).
66.Gerard Edelman (1992, trad. port. 1995).
67.Ann Barnet e Richard Barnet (1998, pp 21-38).
68.Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 189).
69.M. Hines, L. Chiu, L. A. McAdams, P. M. Bentler e J. Lipcamon (1992). A psicóloga Melissa Hines e
colaboradores realizaram esse estudo de investigação, ainda que partissem do reconhecimento da
implicação do corpo caloso na cognição.
70.Richard Green (1985).
71.Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 194).
72.A bestialidade consiste em manter relação sexual com um animal.
73.A necrofilia implica a ocorrência de relação sexual com um morto.
74.Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 195).
75.Andreae, ibid, p. 192.
76.Therese Crenshaw (1996). A esse propósito o filme The Science of Sex: the Aim of the Game (1997)
é elucidativo e a autora explica a sua posição sobre a sexualidade. 77.Thore Langfeldt (1981).
78.Robert Cloninger (1998).
79.Nature Genetics (Jan., 1996; cit. por N. Angier, 1996).
80.The Art Book (1994, trad. port. 1997, p. 496).
81.Neil Malamuth (1996).
82.The Art Book (1994, trad. port. 1997, p. 26).
83.The Art Book, ibid, p. 427.
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
84.Erik H. Erikson (1968, trad. bras.1976, 2ª ed.).
85.Lewis Carroll (1865).
86.Um acróstico é um poema em que as letras iniciais (e por vezes as médias e finais) de cada verso
formam palavras, nomes ou expressões, quando lidas verticalmente – CRIAR, USA (Dicionário da
Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, 2001).
87.Jeanne Suhamy (1992, trad. bras. 1995, pp. 176-179). Não é por mero acaso que a palavra grega
psyque se aproxima do termo «borboleta» (em inglês Butterfly). Psyque vem da palavra grega yuch
(“sopro de vida”), representada por uma borboleta.
88.Suhamy, ibid, p. 176.
89.Suhamy, ibid, p. 176.
90.Um arquétipo é uma estrutura mental que decorre do conceito de inconsciente colectivo, elaborado
por Carl Jung (1875-1961), “presente em mitos, lendas e tradições” (…) e “em todas as produções
imaginárias do indivíduo” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, 2001, p. 201). O capítulo VIII é dedicado a esse autor e ao seu pensamento sobre
o simbólico.
91.Jeanne Suhamy (1992, trad. bras. 1995, p. 178).
92.Carl Gustav Jung (1964, trad. bras. 1996, pp. 67-69).
93.Na questão da interpretação dos sonhos e dos símbolos, alude-se a Santo Agostinho no capítulo VI.
94.Não sem propósito, Richard Dawkins (1995, trad. port. 2002, p. 10), em O Rio que Saia do Éden,
estabeleceu uma comparação inusitada com o reino animal: existir mais poesia na Eva Mitocôndrica
do que na sua homónima mitológica. Nos nossos dias, é possível que o conhecimento científico
evolucionista se tenha vindo a revelar fascinante.
95.Comentado por Júlio Machado Vaz (1991, p. 17).
96.Vaz, ibid, p. 17.
97.Vaz, ibid, p. 17.
98.Clifford Bishop (1996; trad. port. 1997, p. 73).
99.Bishop, ibid, p. 33.
100. Bishop, ibid, p. 73.
101. Tora (2003).
102. Barbara Walker (1988, trad. port. 2002, p. 113).
103. Joshua Trachtenberg (1984, p. 105).
104. Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 73).
105. Anchee Min (1993).
106. Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 221).
107. A apresentação comentada do filme surgiu no programa televisivo Sexualidades da autoria de Júlio
Machado Vaz.
108. Simon Andreae (1998, trad. Port. 2003, p. 160.
109. Paulo de Tarso nasceu na costa do Sul da actual Turquia e habitava o deserto. Trocou esse meio
inóspito por Roma, onde chegou no final da vida, depois de pregar em terras não cristianizadas.
110. Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 165).
111. Andreae, ibid, p. 165.
112. Joanne Kathleen Rowling (1998, trad. port. 2000).
113. Joseph Nigg (2002, trad. port. 2002, p. 40).
114. Se repararmos nas aventuras da vida de Plínio, também elas dão que contar. «O Velho», como
ficou conhecido, tinha nascido no ano 23 da nossa era e morreu quando foi ver o vulcão Vesúvio,
em franca erupção. O vulcão pareceu-lhe um dragão em chamas? Não o disse, porque faleceu
nas lavas. Plínio morria, tendo relatado ao mundo a aparência confabulada do Basilisco, por re-
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EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
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lação a animais conhecidos na sua História Natural, constituída por 37 volumes (Lello Universal:
Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro, Volume 2, 1976, p. 568). Depois, a história do bicho feroz
foi recontada por um geógrafo latino do século III, Solino, na Polyhistoria - «Colecção de Factos
Notáveis» (Nigg, 2002, trad. port. 2002, p. 124).
Nigg, ibid, p. 124.
Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 153).
O termo «onanismo» provém da prática sexual de Onam, castigado de morte por Deus. Filho de
Judá, ele fora obrigado a casar com a cunhada viúva e masturbava-se, mas depois violou a lei,
fecundando-a. Júlio Machado Vaz (1991, p. 19) considerava que há mais de quinze anos a masturbação era comummente observada como uma acção psicologicamente desajustada.
Simon Andreae (1998, trad. Port. 2003, p. 152).
Andreae, ibid, p. 158.
Andreae, ibid, pp. 158-159.
Andreae, ibid, p. 159.
Andreae, ibid, p. 159.
AA.VV. (2004, p. 157).
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
CAPÍTULO III
O Prodígio das Histórias:
Verdade, Ciência e Nuances de Amar
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
“Um Conto de Decameron” (1916) – John William Waterhouse.
Um trovador e o seu amigo contam histórias a cinco raparigas, como em uma cena de “Decameron”, escrito por Boccaccio, no século XIV, a propósito da fuga de jovens para uma zona isolada da peste, que assolava Itália.
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
CAPÍTULO III
O prodígio das histórias: verdade, ciência e nuances de amar
1. Palavra, imagem e significados
É infindável o moinho da palavra1. Como será adiante elucidado, existem muitos modos de
ficar apaixonado, passando pela antiga «declaração de amor» ao coup de foudre («acontecimento
imprevisto») ou à amizade que se transforma em «enamoramento» - limerence2. Os sentimentos
são difíceis de entender e explicar: chegamos, por vezes, ao ponto de nos habituarmos tanto a uma
pessoa que, a certa altura, descobrimos amá-la... Existem pessoas intrinsecamente «conjugais» e
outras não. Observam-se formas de se ser fiel, ciumento ou possessivo, características presas à
estrutura da personalidade, à linguagem da época, ao contexto espacial e à cultura envolvente. É
relevante termos palavras que permitam discriminar nuances de emoções e sentimentos. Ampliam
as possibilidades de os viver e de narrar afectos registados em fábulas educativas e em contos para
adultos.
Michel Foucault3 defendeu que, ao longo dos últimos trezentos anos, diversas formas de sexualidade originaram uma autêntica explosão discursiva4. Afirmou-o quando as histórias de amor
disparavam com a revolução dos costumes.
Todavia, as histórias deixaram de fazer sentido para o racionalismo científico, ainda que sejam
convincentes para os seres humanos5. Uma história, nesse sentido psicológico actual6, é uma noção bem ampla do termo brasileiro estória. Integra narrativas da esfera literária, rituais simbólicos,
explicações para a ciência, exemplos clarificadores e mímicas corporais. Esses são relatos abertos
– tiram-se ilações, inferências e significados possíveis para as ocorrências descritas.
Pense-se que um líder ou qualquer indivíduo socialmente competente é observado por Howard
Gardner como um contador de histórias, desde que construa a grande narrativa de um povo ou grupo
sócio-político. Essa alegoria7, directamente comunicada pelo líder em discursos orais inflamados,
alerta para visões da existência corporificadas nas suas acções e na sua vida. Ele é o modelo
biográfico a seguir. Portanto, o que faz o líder é transmitir em linguagem corporal e em linguagem
verbal uma clara versão do mundo8.
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Assim sendo, com palavras encantatórias e pensamento figurado, o contador de histórias
esgrime os mitos e os exemplos concretos em que as audiências se revêem. Em Portugal, figuras
destacadas dos Descobrimentos fazem-nos sentir parte de «um povo de aventureiros», enquanto
na América os seus políticos apelam à invencibilidade de uma nação.
1.1. Primeira distinção entre mitos e grandes narrativas alegóricas
Pelo mito se celebra a ambiguidade e a contradição9, ou seja, o equívoco ou a incerteza da
realidade e a incoerência ou a antinomia/antagonismo humano.
Derivado do termo grego mythos, mito significa «palavra» ou «história». No grego, tem significado semelhante a logos (pensamento). Foram Platão (429-347 a. C.) e Aristóteles (384-322 a. C.) os
primeiros pensadores a considerar o pensamento mítico inferior ao pensamento lógico. Desde então,
logos passou a compreender o pensamento ou cálculo lógico e racional. Com posterior conotação
negativa, mythos associou-se a história fictícia ou lenda infantil, envolvendo seres sobrenaturais e
fantásticos. Ainda é comum definir como «mito» uma crença imaginária/falsa, utópica e quimérica.
Chega-se igualmente a acreditar prescindir a ciência de metáforas e imagens.
No presente capítulo III, serão narrados mitos de amor - Cupido e Psyque, Narciso e Eco, Tristão
e Isolda - e a história de amor de Justin e Ursula, um caso real.
Como foi referido, uma alegoria é uma grande narrativa/metáfora, atendendo ao seu carácter
mítico grandioso. É a ela que se ligam mitos como o pecado original, a que será dado relevo no
capítulo VI. No capítulo VII, contemplar-se-á a força de outros mitos, intrinsecamente ligados à
sexualidade humana.
1.2. O significado da imagem: metáfora e compreensão do mundo
«Verdade» é uma palavra com sentido polissémico que indica a realidade, a sua evidência, a
boa-fé, a exactidão, a crença, a máxima ou a sentença. No princípio está o «verbo», no sentido de linguagem e comunicação da verdade revelada por Deus.
Essa expressão lê-se no texto bíblico, como uma verdade revelada: «No princípio era o Verbo (Filho),
e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus»10. Essa foi a doutrina do logos (pensamento) dos
teólogos cristãos11. Os judeus tinham prometido que o Filho do Homem viria a esclarecer o sentido
oculto das palavras das Escrituras, bem como o espaço em branco que existe entre as letras.
No entanto, a metáfora visual revela-se mais imediata e emocional nos seus propósitos de
compreensão do que a metáfora pela palavra, conceptual e erudita contida nas Escrituras. Àquela
se recorre para concretizar algo e mais facilmente se tirarem implicações de ideias e conceitos
abstractos.
Existe um outro texto relativo à busca da «verdade» pela imagem, ainda explicada por Deus.
Foi descoberto em Nag, no Egipto, e encontra-se presente no Evangelho Segundo São Filipe12: «A
verdade não vem nua ao mundo, mas apresenta-se em imagens e em formas. Ninguém receberá a
verdade por outra via... O noivo deve entrar através da imagem na verdade.».
Símbolos abstractos como «verbo» (palavra) ou «verdade» (evidência) são até hoje representados em outras palavras, ilustrações religiosas e em focos de meditação, na medida em que tradições
religiosas e filosóficas apelam ao auto-conhecimento e à luz da sabedoria.
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Em suma, os mitos permitem compreender o mundo pela metáfora13, pela imagem e, ainda,
pela imaginação neles colocada por pessoas. Em rituais ancestrais reacende-se essa procura de
sentido de vida.
2. Os rituais humanos
Um «ritual» ou «rito» (do latim ritus e ritualis) é uma actividade sujeita a prescrição (norma),
integrada em outras acções com significado (espiritual, religioso, lúdico...). Existem em todo o mundo rituais públicos e privados que servem necessidades, exigências e desejos humanos. O próprio
teatro é um ritual de ilusões. Assim sendo, as actuações corporalizadas ressentem-se na experiência
psíquica do público e no desenvolvimento do «eu» dos actores.
As funções dos preceitos e as convocações dos rituais são tão variadas quanto estes últimos:
a eterna busca do sentido de vida, o poder sobre outrem, o alívio na doença, a confissão do pecado/
culpa, o perdão pelo mal feito, o sacrifício pela humanidade, a conciliação amorosa, a celebração
do passado, o encorajamento à acção e o alimento para o espírito14. Segundo Murry Hope15, classificam-se os rituais de modo diverso: rituais de lembrança ancestral, de transição social – iniciação,
despedida, boas-vindas, de purificação, de gratidão e de protecção.
Como exemplo, em África ou na Austrália, certos povos autóctones ou aborígenes crêem que
as mulheres devem apanhar chuva para serem férteis16 e realizam cerimónias no sentido de busca
de protecção – rituais de fertilidade. Por seu lado, no campo das práticas religiosas, o corpo continua
a ser penetrado em rituais pelo símbolo do espírito. Na Nova Guiné, uma ilha da Oceânia, ocorre
um ritual em que é comum um homem vestir-se de ave-do-paraíso emplumada e outros homens
rirem-se da jovem e bela bailarina17. Fazem o ritual de namoro à ave com volúpia e sensualidade.
É como se esse pássaro/homem encarnasse o espírito da mulher e os gracejos dos companheiros
encorajassem todo o grupo na caçada a realizar logo depois. A essas acções organizadas Carl Gustav Jung (1875-1961) associara o inconsciente colectivo18,
como quando se invocam os Deuses e a Mãe Natureza para aplacarem catástrofes e desastres
naturais. Na actualidade, a visão mítica ou a crença mágica têm impacto menor, mas o pressuposto
organizador de Jung revigora-se na concepção de que a mente incorpora algo mais do que o que
pode ser dado por experiência, ou seja, algo que circula como inconsciente transpessoal.
Não se duvida também que os ritos de crentes e religiosos unem as comunidades, mantém-nas
ligadas e íntegras, preparando o indivíduo para o papel que se espera dele. Enquanto o baptismo
e o casamento são sustentados por grandes grupos sociais, outros rituais se perderam por influência de fenómenos de aculturação: a acção de graças pelo parto (a partir do Levítico19, com exigida
quarentena da mulher sem poder entrar em igrejas), a candelária irlandesa20 (ritual de fertilidade),
o ritual de exorcismo romano, o hieros gamos grego ou «casamento sagrado» entre sacerdotes de
sexos opostos21.
No ritual de confidência/confissão, por exemplo, o cristianismo consuma um sistema de confissão
privado22, cabendo ao clero perdoar a partir da revelação da verdade.
O conhecimento da Cabala23 também aproximou sempre os judeus de rituais. Mas o judaísmo
desligou-se, progressivamente, de cultos sexuais e de religiões sexuais24. No século VII a. C., ainda
84
O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
era queimado incenso no culto em honra de uma serpente de bronze, alusiva à vara construída por
Moisés. No passado, certos cultos simbólicos exigiram a utilização de facas de pedra em cerimónias
que se reportam a Moisés ou a Josué25 na conquista de Canaã - a terra prometida da Palestina.
Actualmente, o único elemento fálico do judaísmo é a circuncisão26, forma de aliança entre Deus e
o ser humano.
Em culturas actuais também os curandeiros («os Curadores do Espírito») adoptaram a prática
de não interrogar pessoas mas espíritos, pelo que têm que ficar possessos – possuídos27. Nessa ou
em outras orientações de ritual acrítico, perde-se distância reflexiva. Em situações ingratas, portanto,
cabe ao mágico influenciar e ser responsável pelo grupo, sendo ele a comunicar com o sagrado.
Deve ser dito que também foi essa a missão básica do cabalista que teria que viver com simplicidade, concentrado e absorvido no estudo da Cabala para poder comunicar com o outro mundo.
3. Verdade e amor platónico em «O Simpósio» - o valor da palavra
O outro mundo foi uma descoberta platónica. A noção de amor com o significado de verdade
pode ser encontrada também em Platão (429-347 a. C.). Pela primeira vez, o conhecimento teve um
alcance erótico. O espírito faria parte da Natureza que se digladiaria entre ordem e caos.
A verdade platónica partilhou do mundo de formas imutáveis e perfeitas, localizado acima do
carácter transitório da vida e da imperfeição visível – o mundo de aparências. As formas perfeitas
estariam antes do mundo visível dos sentidos. A aquisição de conhecimento far-se-ia para trás (dirigido ao passado), face ao mundo real, imperfeito. Para tanto, a mente teria que ser una e aliada
das imagens de perfeição.
Em A República, Platão propôs-se agarrar a essência das coisas, precisamente pedindo ajuda
à mente, «semelhante à realidade que se aproxima dela e se une com ela». No original, unir significa
syneimi, ou seja, «relação sexual»28.
Em O Simpósio ou O Banquete29 integrado em A República e outros Textos, ainda Platão se
refere ao modo como a mente também se abstrai do corpo mortal, por recurso à ideia de Eros («amor
sexual»). Mas, nessa comparação, Eros é entendido como «amor não físico», em que dois amantes
se contemplam e se reflectem, projectando-se nas suas imagens, uma e outra vez… Nessa recorrente situação não sexual, a mente pode projectar a verdade do amor, por conflito e/ou por enigma,
ampliando-se a «sublimação»30 e a «resistência»31 freudianas.
Freud ainda reparou que a noção de sermos basicamente bissexuais decorre de textos hindus
anteriores ao Simpósio em que os Deuses são hermafroditas e, provavelmente, Platão não terá
sentido a «certeza» da sua identidade sexual32.
Foi na referida obra de Platão que também se apoiou a prática de pederastia33, ou seja, a
prática de relação sexual entre um homem e um rapaz. Mais globalmente, O Simpósio retrata o
entendimento do amor avalizado pelo mestre de Platão, Sócrates, entretanto falecido34. O cenário é
a casa de Agatão, um poeta dramático e anfitrião do célebre festim/simpósio em que os convivas,
todos homens, ficaram a conversar até altas horas da noite.
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
As personagens do «ensaio filosófico» sobre a origem, natureza e significado/verdade do amor
são destacadas figuras do meio ateniense: Sócrates, Aristófanes, o reconhecido comediógrafo de
As Nuvens35 e Alcibíades36, um autêntico aristocrata e bonito general.
Vingou a posição de Aristófanes para os tempos vindouros: ambicionamos ser-com-outro(s), o
que nem sempre se realiza. O velho Sócrates ainda poderia ter argumentado a pertinência de uma
concepção de amor etéreo, duradouro, quase perfeito e, na realidade quotidiana, improvável. Aristófanes colocava, em alternativa, a origem do amor em termos alegóricos, mas autênticos - verdadeiros. Nessa alegoria, o amor é colocado no tempo remoto em que os seres eram moldados com
quatro braços, quatro pernas, duas caras e um corpo. Essa é a alegoria verosímil se pensarmos que
queremos ser unos e a comprová-lo passa-se a expor a estória:
Os primeiros entes humanos eram fruto da obra de Deuses jovens e eternamente belos. Foram, assim mesmo,
construídos de forma diversa dos seus criadores: redondos, completos e integrais. Mas tinham duas caras... Foi quanto
bastou, aliás, para que as divindades temessem ser passados para «segunda classe», a partir do poder de controlo próprio
e, por tal facto mesquinho, os Deuses cortaram os primeiros seres ao meio. Cada ser humano passou a possuir uma só
cara e pares de membros robustos.
A revolta não se fez esperar mas, como seria de prever, fracassou. O prognóstico estava correcto. Era preciso mais
do que duas metades idênticas, mesmo multiplicadas, para se haverem com os Deuses. Ainda assim, os novos seres
«humanos» andavam melhor, corriam e saltavam a dois pés. Insurgirem-se por serem unos levá-los-ia, por fim, ao júbilo pelo sorriso decorrente da nova vida alcançada, levada com
alegria e ligeireza; mas a inquietude mais profunda assustou-os: comuns mortais, eram caras e metades incompletas.
Assim remodelados, alguns esforçar-se-iam (ou não) e encontrariam a sua cara-metade; outros, infelizes, errariam
no mundo sem eira nem beira. Quem sabe se os primeiros teriam a seu favor a sorte...
Aristófanes viria a concluir existirem pessoas feitas umas para as outras, mas também que esse
seria um anseio profundo de comunhão com o próximo, por dever cósmico37. E o mestre da comédia
esclareceu, em palavras insuspeitas, traduzidas da seguinte maneira38:
«Ninguém pode acreditar que é o mero prazer físico (Eros) que leva uma pessoa a sentir um prazer
tão intenso na companhia de outra. É claro que a alma de cada uma delas tem outro anseio que não é capaz
de exprimir, mas que apenas pode imaginar e a que só é capaz de referir-se de uma forma vaga. Imaginemos que Hefesto, com as suas ferramentas, as visitava quando se encontravam deitadas lado a lado e,
erguendo-se acima delas, lhes perguntava: o que esperais vós, mortais, lucrar um com o outro? Imaginemos
ainda que, se eles não conseguissem responder, ele repetiria a pergunta nestes termos: o objecto do vosso
desejo é estarem sempre o mais possível perto um do outro e não se separarem nunca nem de dia nem de
noite? Se é isso que quereis, estou disposto a fundir-vos e a soldar-vos para que em vez de dois passeis a
ser um só corpo; enquanto viverdes tereis uma vida comum e quando morrerdes tereis uma morte comum e
continuareis a ser um só, e não dois, no outro mundo. Contentar-vos-ia tal destino e satisfaria ele os vossos
anseios? Sabemos qual seria a resposta; ninguém recusaria a proposta; ficaria claro que é isso que toda
a gente deseja, e todos considerariam essa a expressão exacta do desejo que há muito sentiam, mas que
não tinham sido capazes de exprimir: poderem fundir-se com o seu amado e serem, depois, um único ser
e não dois.» (Platão, trad. ingl. de W. Hamilton, 1951).
Importa dizer que o grego Hefesto era o venerado «Deus do Fogo e da Forja», constando-se
que ele podia fazer quase tudo.
Em suma, e a atender à versão do amor platónico, esta coaduna-se com o nosso viver: o amor
não é infindável, ainda que queiramos ter uma alma gémea. O amor não é perfeito por iniciativa dos
Deuses.
86
O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
4. Amores travessos
Ainda que lentamente enriquecido com os sentimentos, existirão amores mais endiabrados e
atrevidos? O que é o «amor ocidental»? Para os gregos clássicos, o amor foi por vezes tragédia39.
No Ocidente, ainda é comum pensar-se que amar é um bem comum. Mas foi a partir do século XI
que se expandiram novas formas de amar40, umas mais idílicas outras mais carnais (traduzidas nas
cantigas de amor e de amigo), em que o amor passava pelo «jogo social».
Na actualidade, pensa-se que a paixão surge quando nos apaixonamos não pelo outro, uma
pessoa real, mas pelo modo como o/a vemos. Existe uma paixão solitária, podendo ser dado, a
este propósito, o exemplo de Narciso que somente via Eco espelhada no lago. Idealizamos o ser
humano amado e chegamos a idolatrá-lo. Essa pessoa da nossa paixão é sujeita a mimetismo, ou
seja, inconscientemente e com a convivência podemos passar a adoptar o seu comportamento,
linguagem e juízo.
Há quem acredite que essa concepção de amor existe somente entre nós41, ocidentais. Segundo Clifford Bishop, foram os trovadores «românticos» a darem esse cunho ao sentimento amoroso.
Também, de acordo com essa fonte, é possível que na Indonésia os weyewas nos considerem algo
«desumanos», a atender a esse facto bruto - amar. Por sua vez, no Amazonas, o enamoramento
entre os mehinakus é ainda tido como um íman que atrai os espíritos malignos. O resultado é nefasto
nessa sociedade, talvez porque não saibam explorar nuances emocionais, diferentes gradações de
emoções: enamoramento, amor-paixão, amor casto, amizade electiva...
Afinal, nas ilhotas Ifaluk, nos desertos africanos, no Egipto Antigo, na China do século XX,
no Alasca do povo inuit ou em Portugal todos conhecemos esses sentimentos de amor romântico
mesmo que sejam mal vistos, utópicos ou inconvenientes42.
4.1. A descoberta do amor por Eros e Psyque – o valor da metáfora
Neste capítulo, dar-se-á relevo ao mito histórico de Eros e Psyque, com o intuito de observar
a transmutação de sentimentos. Assumido o amor, transfigura-se em ódio e castigo.
A estória perpétua sente-se a partir de uma escultura muito bela e da qual se conta uma narrativa
mitológica representada por António Canova (1787-1793) - Cupido e Psyque - figura nº 23. Cupido
foi assumido como o Deus grego Eros, símbolo do desejo sexual.
Inicia-se assim um possível enredo desse amor:
De asas ainda entreabertas, Eros desceu à terra, em certo dia de vento forte, para trazer de volta à vida, com um terno
abraço, a sua agonizante amante, muito amada, Psyque...
O termo psyque significa «alma» no mito romano de paixão juvenil e é conotado com pureza e
inocência. No seu amor por Eros, a menina Psyque preserva a ideia de uma relação amorosa casta,
com ausência de relação sexual.
Escrito pelo latino Apuleio, no século II, que pensava que os demónios transformavam os seres
humanos em animais43, esse amor foi registado em Metamorfoses e ficou conhecido por O Asno
de Ouro - um príncipe transforma-se em burro. O mito reporta-se, portanto, a uma metamorfose, ou
seja, a uma forma de iniciação, causa dessa transformação.
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
No mito, Cupido é um Deus semelhante aos animais-noivos dos contos de fadas para crianças
e ficou invisível para Psyque. Na versão indo-europeia, trata-se do mito da busca do marido perdido,
ou do animal-noivo44. Na tradição oral italiana, duas das cerca de sessenta versões do mito são, por
exemplo, A Bela e o Monstro e O Touro Negro de Norroway45.
A crença de que o amor busca o espírito (Psyque) e não o corpo, pode ser ainda observada
para essa alegoria46. Em certo passo da narrativa, Psique é desviada pelas irmãs, podendo pensarse, aliás, que o sexo «é uma enorme serpente, mil vezes enroscada».
No relato seguinte, retrata-se a luta contra o sexo interdito por irmãs borralheiras:
A história de Psyque começou há muito, muito tempo, quando um rei e uma rainha tiveram três filhas. Não ficaram
escritos os nomes dos reis. É uma história muito antiga.
Uma das filhas, Psyque, possuía uma extraordinária beleza, pelo que a grega Afrodite (Vénus, Deusa romana do
amor) ficou ciumenta, mandando o filho – o próprio Eros - castigar Psyque, fazendo-a apaixonar-se por um homem abominável. Podia ser Hulk – o homem verde ou o homem das cavernas. Poderia ser indiferente quem ele fosse, se somente
nos cingíssemos a um tema essencial: ciúme e «magia maligna».
Perante tamanha desgraça, os pais de Psyque consultaram o Oráculo de Apolo, em Mileto – Ásia Menor, perto do
mar Egeu.
O oráculo «disse» que Psyque teria de ser colocada, vestida de noiva, no cimo de uma colina, para ali ser a presa
de um monstro parecido com uma serpente – um seu admirador.
Uma serpente é sinal da terra e do submundo (inconsciente), mas a esse lugar não é feita referência no mito. Freud
também viu nela outro sinal: fálico.
Na comunidade local, ficou decidido atirar a rapariga para um monte. O destino estava traçado. Perante uma sina
tão atroz, ela foi conduzida numa procissão fúnebre, pronta para ser enterrada viva. Mas um vento suave, vindo de Oeste
- o Deus Zéfiro, transportou-a quando menos se esperava pela colina abaixo, depositando-a num palácio vazio (de Eros)
onde todos os seus desejos seriam satisfeitos. Podia pedir o que quisesse que logo ali se realizaria a sua vontade. Podia
pedir tudo, menos para fugir.
O monstro (Eros) somente lhe apareceria de noite, ao deitar.
Ele avisou-a de que não tentasse vê-lo à luz do dia. Porquê? Porque, nessa circunstância, um futuro filho de ambos
perderia a imortalidade divina do pai.
Mas ela estava grávida! No palácio abandonada, Eros conservou Psyque fechada como sua amada. Estava, para todos os efeitos, presa,
encurralada.
Lamentando a situação em que ela se encontrava, há já longo tempo em isolamento total, Eros permitiu que as irmãs
a visitassem. Uma infeliz ideia, convenhamos.
As irmãs alcoviteiras disseram a Psyque que ele era uma «enorme serpente, mil vezes enroscada». Elas convencemna, inclusive, a cortar a cabeça a Eros com uma faca mas, quando o ia matar, Psyque viu-o transformar-se, naquele lugar
de traição, em um lindo príncipe.
Entretanto, ele acordava com um pingo de cera que lhe caiu da lamparina por ela transportada, diligente. Furibundo e
arrasado, Eros foi embora. Abandonou-a, pura e simplesmente. Nem quis saber que Psyque só tinha iluminado a sua cara
com um pequeno espelho (para ver se era um monstro) e que transportava uma minúscula lamparina.
Mas a lamparina era para o ver melhor? Não. Era para o matar, com luz suficiente, vendo-o, olhos nos olhos. O que
aconteceu foi, mais exactamente, que um pingo de cera caiu no ombro do belo jovem sem lhe desfazer a cara. Perante
tamanho desaforo, Psyque ainda tentou suicidar-se, mas foi novamente salva – o Deus Pã proibiu-a de se matar.
Pã era filho de um bode, transfiguração do Deus Hermes para seduzir a sua mãe, uma ninfa desconhecida (Dríope).
Psyque, tão bonita, não se devia matar. Ele também era filho do «Deus dos Rebanhos» (Hermes) e não se queixava da sua
sorte – ele próprio era a personificação da Natureza. Tinha sofrido, mas a sua estrela bafejara-o de bem-aventurança no
final da tormenta. Tocava sempre a sua flauta pastoril que inventara para alegrar as festas em que acompanhava o grande
Deus Baco (romano). Ela estava impedida de se suicidar.
É nessa fase da trama que se inicia a busca do marido perdido. Desde então, Psyque passaria a procurar Eros. Ao longo dessa busca inglória, ela viveu muitas provações, habitando «o mundo dos criminosos». Na sua primeira
tarefa, bem árdua, teve que separar cereais misturados. Contudo, obteve a ajuda preciosa de formiguinhas que iam a passar,
diligentes. Elas foram, como seria de esperar, muito trabalhadoras. Por último, Psyque teve que pedir o estojo de beleza
à Deusa dos Infernos. A sua última tarefa - mais uma tarefa (im)possível – conduziu-a a um sono profundo, semelhante
ao sono da morte. Porquê? Porque abriu o estojo de beleza, tendo sido desaconselhada a fazê-lo por uma Torre Mágica.
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Eros estaria saturado por tanta insistência? Ele acabava, somente então, por pedir ao Rei dos Deuses do Olimpo,
Júpiter (Zeus grego), que Psique fosse imortalizada?
Não resta dúvida que casaram com grande pompa, no Olimpo, e tiveram uma filha imortal - Volúpia - a quem se dá
o nome de «prazer».
Todos sabemos que, na iconografia ocidental, as setas de Eros suscitam desejos sexuais.
Mas como foi educada Psyque em relação à sexualidade? Quais foram os sentimentos dominantes ao longo da narrativa extensa? Como se orientaram as personagens centrais em termos
relacionais? No aqui-e-agora, o que fazem? O que podem pensar e dizer um ao outro?
Esses são modos viáveis de discutir sentidos para a estória.
Em termos mais gerais: «- Quais são as nossas características pessoais?»; «- Como devemos
agir?»; «- O que é correcto e o que é uma má acção?».
4.1.1. O beijar é um acto pecaminoso?
Originariamente, o termo sânscrito para beijo foi cusati («ele chupa»), sem qualquer conotação
negativa. O conceito de pecado está igualmente ausente nas tradições orientais.
O escultor António Canova representou o beijo de Eros e Psyche, expresso adiante na figura
nº 23.
Figura nº 23 - António Canova: «Eros e Psyque» (1787-1793).
Na sociedade amazónica equatoriana, os sequóias47 temem beijar-se e acham que beijar demonstra «loucura».
O acto de beijar pode ter-se tornado um hábito no Sudeste da Ásia quando as mães mastigavam alimentos que davam a filhos pequenos. Assim observado, o beijo não tem uma base sexual,
mas alimentar.
O Tau chinês48 terá tomado a saliva feminina como remédio e, para o tantrismo hindu49, a vitalidade masculina exige fluidos femininos (secreções vaginais) para o seu sustento.
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Na sua investigação, Barbara Walker50 defende que foram os primeiros cristãos, homens, a
efectuar o beijo da paz.
Em costumes actuais, persiste esse convite à fraternidade por uma comunidade.
4.2. O amor em Mangaia, uma ilha do Pacífico
Em Mangaia, uma das Ilhas Cook51, no Pacífico, amo-te significava «quero fazer amor contigo».
Ao longo de cerca de 25 anos, gerações de antropólogos pensaram não existir amor romântico em Mangaia. O ambiente pareceu-lhes de extrema licenciosidade, a partir do testemunho dos
homens nos seus locais de reunião onde costumavam «gabar-se» dos seus poderes amorosos aos
estrangeiros curiosos.
Quando uma antropóloga americana, Helen Harris52, foi para aquele local com a finalidade
de realizar um doutoramento, apresentou o povo estranho segundo a tese contrária: «O povo de
Mangaia ama, apaixonadamente». O contributo científico de Helen foi exposto na Universidade da
Califórnia - Santa Bárbara: Human Nature and the Nature of Romantic Love.
De acordo com as perguntas formuladas acerca dos mores (hábitos arreigados, impostos
como leis), também em Mangaia o acto sexual se tornara clandestino (tomo vaine), à força dos pais
quererem casar os filhos para lhes aumentarem o poder material em terras e em prestígio. O amor
inaceitável constituía, portanto, outra calamidade para as famílias.
4.3. O que é um acto sexual na tribo baruya da Nova Guiné?
Os baruya53 são um povo de um vale elevado das montanhas da Papua da Nova Guiné - Oceânia. Em 1951 foram descobertas 2.000 pessoas e, em 1975, o grupo tornou-se independente, depois
do domínio da Austrália.
Nessa tribo, o acto sexual reveste-se de características muito particulares: somente depois de
várias semanas após o casamento as relações sexuais heterossexuais são permitidas. Primeiro, a
linhagem masculina deve construir a habitação para o futuro casal. Entretanto, a fuligem da chaminé
deve enegrecer as paredes da casa, feitas de argila e de pedras lisas.
Esse é um espaço de passagem entretanto proibido à mulher. Caso arrisque percorrê-lo, será
açoitada sem piedade. Pensa-se que o seu sexo será aberto pelo fogo, o que contraria a função do
fogo: cozer os alimentos do futuro marido.
Terminada a obra, o casal ainda não poderá dormir no aposento da lareira. Na primeira noite, o
homem passa a noite nessa sala com os rapazes e, na segunda noite, será a vez da mulher aí pernoitar
com as raparigas. Quando ficam juntos, está-lhes vedado o coito. O marido acarinha a esposa e dálhe a beber o seu esperma, por se julgar que este se transformará em leite que, por sua vez, servirá
de alimento aos filhos a nascer. O acto real da mulher tocar com a boca no sexo do homem (fellatio)
alcança uma função imaginária, atendendo a que é o homem a manifestar o seu poder de dar vida:
o seu esperma tornar-se-á leite. Está expressamente proibido o cunnilingus – o acto recíproco de
fellatio. Essa ideia faz o homem escandalizar-se e chegar a gritar e a vomitar.
Finalmente, quando o casal descobre que a fuligem da lareira enegreceu as paredes, iniciase o coito com a mulher por baixo do homem, deitada no chão da parte feminina da casa, junto à
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
porta. Noutra dependência, o homem pode dormir só ou com hóspedes masculinos. Caso a esposa
se coloque por cima do marido, durante o acto sexual, teme-se que os fluxos do sexo (secreções
vaginais) possam deslizar sobre o ventre dele, arruinando o seu poder.
Está proibida qualquer relação sexual nas regiões pantanosas e nos elevados locais habitados
por maus espíritos. Os campos de cultivo estão igualmente vedados à actividade sexual. As relações
adúlteras tornam-se perigosas se se verificarem com frequência nos bosques. Assim o esperma
e os fluxos do sexo poderão ser arrastados para a terra por vermes e serpentes que os doarão a
divindades ctónias (da terra) e hostis.
4.4. O enamoramento é limerence
O termo limerence54 não é recente e foi traduzido por «enamoramento». Uma psicóloga, Dorothy
Tennov, criou-o nos anos setenta para ajudar os seus alunos nas relações amorosas.
Hoje, a psicóloga Dorothy tem o cabelo cortado como uma menina do coro e já não é nada
jovem. Vive isolada, desde há anos, sem abandonar a sua casa. Dedicou-se a leccionar psicologia
a idosos, a escrever e a tocar piano55. Anteriormente, teve uma carreira promissora na Universidade
americana de Bridgeport, onde leccionou psicologia experimental e escreveu um livro de sucesso
assegurado: Love and Limerence: the Experience of Being in Love56.
O acontecimento académico gerador do livro coloca-se da seguinte forma: razões para ter
insucesso escolar?
Um dia, uma aluna de Dorothy não fez o trabalho de casa. Quando foi falar com a professora
começou a chorar e contou ter-se separado do namorado Mark, pelo que não conseguiria pensar
senão nele.
A professora resolveu então passar um questionário aos estudantes e a outras pessoas que
desejassem colaborar consigo. Feitas as contas, 98% dos inquiridos tinham experimentado um processo psíquico constante e previsível, ainda mais específico do que o amor, traduzido nas seguintes
palavras: «cair de cabeça», «estar louco de amor»...
O livro traça o que possibilitou saber-se desse processo mental a partir do método de autorelato, colocada a questão: «Define o que é o enamoramento».
Dorothy chegou à conclusão de que no amor existe a possibilidade de se estabelecer uma estrutura e uma função do enamoramento. Definiu e clarificou os seus elementos básicos. Na estrutura
observa-se um sentimento impetuoso, impossível de ser ignorado, enquadrado no contexto. Quando
ocorre um encontro a dois, se revê um amigo ou se troca um olhar, pode uma das pessoas não conseguir esquecer a outra nem o cenário contingente. Em termos de função, o ser humano é sujeito à
provação de desejar. Pode até ambicionar ser amado por várias pessoas ao mesmo tempo, antes
que uma reciprocidade se estabeleça. O enamoramento tem a finalidade de desencadear um desejo.
A esse processo amoroso, Simone de Beauvoir (1908-1986) deu o nome de união extáctica57 e
Stendhal (1788-1842) denominara-o cristalização58. Nessa última condição – a primeira cristalização,
Stendhal deu o exemplo das minas de sal, perto de Salzburgo - Áustria, onde um bocado de madeira
podia agregar cristais de sal depois de exposto algumas semanas em certas condições. É como se
o ser amado agregasse qualidades, ou como uma varinha de condão em que tudo se transforma
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
ao nosso desejo. Sente-se uma energia transbordante, a pessoa fica excitada e experimenta um
óptimo bem-estar. Pode dizer viver a felicidade e a liberdade extremas.
Segue-se um período de dúvida e o segundo estado de cristalização inclui a imaginação de
que cada acto é uma prova de amor.
No quotidiano, essa atribulada condição psíquica intromete-se a ponto do amado vir à mente,
involuntariamente, entre 30% a 100% do dia. Esse é um dado no grupo de estudo de Tennov59.
Constatou ainda nos indivíduos inquiridos uma nítida perturbação quase obsessiva.
4.5. Sobre Narciso: rejeição de Eco e vaidade castigada
A amizade íntima é quando sentimos «cumplicidade» com alguém? E se não existe ninguém
que nos corresponda nesse sentir ambíguo? Cúmplice em quê? Não é por certo cumplicidade o
que o sexólogo português Allen Gomes observa, quando afirma60: «o casal, por vezes, parece dois
círculos que só se encontram para fazer uma secante». Identifica assim casais constituídos que não
comunicam, ainda que coabitem.
Essa foi a provação de Narciso, aquele que não conseguiu comunicar com Eco. Ele era egoísta
e não criou a marca de cumplicidade com outra pessoa. Parece que Narciso ficara preso ao seu
reflexo na água.
No mito61, Narciso foi filho do rei Cefiro e de Liríope (uma ninfa), sendo contada uma estória
infeliz de rejeição e castigo:
Tudo começou, para tormento de Narciso, quando uma ninfa, Eco, se apaixonou por ele. Uma infelicidade para ambos.
Ele ainda não tinha esse nome - Narciso. Era um qualquer filho de um qualquer rei.
Eco, sim. Tinha já nome. Ela chamava-se Eco porque fora impedida de falar, excepto para repetir a última sílaba dita
por alguém. Fora amaldiçoada por Hera (Juno romana) porque era muito tagarela e «é feio estar sempre a falar». Constavase, igualmente, que teria ofendido um Deus com o nome de Pã, mas importa não esquecer que Hera era muito ciumenta
e invejosa. Pode tê-la difamado.
O jovem simplesmente ignorou Eco. Nem se deu a conhecer, nem se deu ao trabalho de a calar. Ela parecia-lhe um
autêntico «relógio de repetição» ou um papagaio «mal-educado». Não teria, segundo ele, «personalidade forte», carácter,
pensamento próprio e auto-estima.
Um dia, ela transformou-se em sombra. Ele, coitado, também foi visto como asno ao repudiar outras admiradoras
e, sem o imaginar, apaixonou-se por si mesmo, mirando-se e remirando-se em um simples lago do Monte Hélicon que lhe
devolvia a sua imagem.
Um belo dia, ele morreu e transformou-se na flor do seu nome – o narciso.
Esse é um mito de desejo e de paixão62, subjugado o herói por vaidade exacerbada. A vaidade
pode ser entendida como sinal de auto-estima «elevada»?
4.5.1. «Efeito de Narciso» - as pessoas preferem pessoas mais parecidas consigo
As investigações científicas de Donn Byrne63 e de Art Aron64 pretenderam demonstrar que
preferimos aqueles(as) mais parecidos(as) connosco, tanto em traços físicos como psicológicos.
Outras posições mais antigas acentuam que os opostos se atraem65, tendo sido conotadas com o
«efeito de Romeu e Julieta»66. Grupos de investigadores, da mesma linha de Byrne e Aron, ficaram
associados ao «efeito de Narciso»67. Existe também outro grupo de investigadores que nem advoga
um extremo nem o outro.
Os estudos efectuados pelo psicólogo Byrne68 com recurso a fotografias visualizadas no com-
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
putador, levaram-no a categorizar rostos: «comuns», «peculiares» e «idealizados». Com Byrne,
Perret defende que as pessoas classificam melhor os rostos comuns do que os rostos específicos, ou
pouco comuns (peculiares), mesmo que a classificação mais elevada seja dada a rostos idealizados.
Uma outra experiência decorrente consistiu em mudar a imagem no computador, passando o próprio avaliador a aparecer no écran com a face ligeiramente alterada para parecer do outro sexo.
Sem reconhecer que esse rosto teria semelhanças com o seu, o indivíduo elegia a face mudada69.
Comprovava-se, assim, o denominado «efeito de Narciso» para a escolha do rosto mais atraente.
4.5.2. A «síndrome de De Clérambault» - certas pessoas preferem celebridades
Existem pessoas erotomaníacas inofensivas e outras em que o comportamento sexual é explícito e impróprio.
As primeiras são chamadas de caçadores de arma branca70 e levam ao desespero quem recebe
as suas atenções. A ilusão no amor coloca-se nelas, por relação àqueles que demonstram um amor
unilateral – amam quem lhes é inacessível, mesmo que pensem ser amados e um dia... No Palácio
de Buckingham, em Londres - Inglaterra, ficou conhecido o caso de uma mulher que aguardava
todos os dias quem julgava amá-la: o rei Jorge V (1865-1936).
Tendo já sido muito observada e estudada a erotomania - «síndrome de De Clérambault»,
sabe-se que a pessoa vive uma obsessão delirante em que a componente sexual é notável. Chega
a enviar mensagens de adoração a um ídolo que julga estar por si enamorado71.
Esta síndrome de pessoas erotomaníacas adultas, e identificadas como activas, conjuga-se
com o amor impossível, a obscenidade sexual ou a desinibição excessiva, criando comportamentos
impróprios decorrentes de lesão no lobo frontal esquerdo.
No caso de adolescentes, em geral, em situações similares à erotomania, não se tratará de uma
perturbação neurológica, correspondendo antes a condição transitória à crise de desenvolvimento
psicológico.
5. A química do amor entre Justin e Ursula
O termo «química do amor» foi concebido por Michael Liebowitz, nos EUA, um psiquiatra que
criou um tratamento químico para a tristeza de amor.
Antes dele conceber o antídoto, em 1983, houve um casal que se suicidou por causa da força
do amor, relatando o irmão do homem em causa o sucedido72.
Há cerca de quarenta anos, um jovem rico chamado Justin, com apenas 16 anos, conheceu uma emigrante húngara
em tempo de férias. Ela tinha mais 10 anos do que ele e era casada.
Como o rapaz gostou logo dela, colocou um bilhetinho debaixo da porta de Ursula. No papel dizia-lhe quanto a amava.
No dia seguinte, constatou que ela se tinha ido embora.
Um ano depois, em 1965, quando Justin passeava no sul de França, voltou a encontrar Ursula num jardim quando
andava de baloiço.
Justin voltou a declarar-lhe o seu amor e Ursula decidiu separar-se do marido e nunca mais deixar Justin.
Em 1981, com 44 anos, ela matou-se com um revólver mas deixou um diário onde contava como lhe custaria envelhecer ao lado de Justin, para além de temer que o amor se desvanecesse.
Que fez Justin? Primeiro, percorreu os lugares onde viveram juntos. Nesse tempo de recordação, passou por uma
terra onde tinham sido felizes, em África.
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Foram encontrá-lo morto no quarto de hotel em Cartum - Sudão. Suicidara-se com um revólver. Deixava junto dele
as fotografias de Ursula. Foi enterrado junto dela, em Nyala. Anteriormente, tinha sido feito o pedido de serem sepultados
juntos e, nesse lugar, pode ler-se: Ursula e Justin – um só.
Na actualidade, crê-se que a paixão se relaciona com uma substância química que circula em
doses nem sempre adequadas no cérebro – a feniletlamina (PEA).
Diversos estudos73 têm comprovado que se observa uma sensação de euforia no enamoramento, fruto da acção da dopamina que se associa com a PEA, transbordando no sistema límbico74
do cérebro, para além da sua acção no córtex cerebral.
Já no impulso sexual, opera no hipotálamo a testosterona, hormona presente em ambos os
sexos, e os estrogéneos, hormonas sexuais femininas.
Quando se estabelecem laços fortes entre pais e filhos, mas também entre pessoas apaixonadas, esses vínculos têm vindo a ser associados ao efeito da oxitocina, outra hormona produzida no
hipotálamo. Pensa-se que a oxitocina chega a inundar o cérebro durante o orgasmo ou durante os
momentos finais do trabalho de parto75.
Na medida em que a oxitocina deriva da evolução de uma hormona, chamada vasopresina,
capaz de ajudar a fixar memórias de eventos recentes em função da aprendizagem, também é
possível que a oxitocina seja responsável pela capacidade de cimentar memórias inconscientes76.
Igualmente, quando conhecemos uma pessoa que nos impressiona, sabe-se que o cérebro liberta
oxitocina e, atendendo a que as endorfinas se ligam à oxitocina em particular durante os momentos
de separação, verifica-se uma típica agitação (produto de acção de endorfinas) antes da elevação
(interrompida) dos níveis de oxitocina, comum no amor sexual.
6. A «síndrome de Klüver-Bucy» - tentar fazer amor com pedras
A «síndrome de Klüver-Bucy»77 é uma enfermidade violenta que leva a pessoa a simular uma
relação sexual com um objecto, por exemplo, ao meter qualquer coisa na boca. Já foi preso um
homem por pretender manter uma relação sexual com o próprio chão.
Na medida em que o lobo temporal (junto ao lobo frontal e por baixo da amígdala cerebral) se
liga à função sexual, a sua lesão leva ao tal comportamento inoportuno, ao não enviar sinais inibidores ao núcleo ventromedial do hipotálamo.
Na síndrome descrita por Klüver e Bucy, as funções dos objectos não se distinguem.
7. A observação do cérebro do macaco no acto sexual e o comportamento sexual humano
O seguinte facto experimental discutido foi constatado por vários investigadores78:
«Um ser do sexo masculino estava ligado a um dispositivo semelhante a uma cadeira, com a cabeça imobilizada
com um método indolor. Nessa posição, era possível inserir-lhe um micro-eléctrodo fino no hipotálamo.
Um ser do sexo feminino estava atado a outra máquina semelhante, colocada a cerca de dois metros de distância.
O primeiro dispunha de um botão por meio do qual podia aceder à cadeira do segundo, próxima dele. Nessa
posição, podiam ter relações sexuais sem que o ser do sexo masculino tivesse que mover a cabeça. Portanto, era
possível registar a actividade cerebral a partir do momento em que o ser do sexo masculino via o ser do sexo feminino
até ao fim do acto sexual.
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
No ser do sexo masculino, a mais alta actividade (50 impulsos por segundo) foi registada por um neurónio na
área pré-óptica média do hipotálamo quando ele pressionou o botão para o aproximar do ser do sexo feminino. O
número de descargas diminuiu durante a actividade sexual e depois da ejaculação cessou quase completamente»
(Oomura, Aou, Koyama & Yoshimatsu, 1988).
Essa experiência foi realizada com macacos na Universidade de Kyushu/Quiuxo – Japão Meridional.
Por esse e outros meios, sabe-se hoje que existem diferenças estruturais nos cérebros masculino e feminino, tanto no hipotálamo como no corpo caloso, tendo a mulher o corpo caloso (área de
transferência de informação entre hemisférios cerebrais) e a comissura cerebral anterior (por baixo
do corpo caloso, liga estruturas limbicas inconscientes dos dois hemisférios cerebrais) maiores do
que o homem, o que pode estar na base da consciência das mulheres sobre as suas emoções e as
percepções das emoções alheias79. Acresce o facto do hemisfério direito estar ligado a competências
que requerem maior emocionalidade80 e daí serem as mulheres a utilizá-lo com maior frequência
do que os homens na sua vida profissional. Em tarefas complexas elas usam os dois hemisférios,
enquanto eles utilizam o hemisfério mais adequado à função desejada.
Conhecem-se poucos estudos da função sexual em níveis avançados. Sempre foi mais fácil
correlacionar sensações narradas com condutas, do que realizar experiências sobre a sexualidade
humana81. Na exposição que se segue, a orientação seguida foi a análise de informação proporcionada por Rita Carter82.
Figura nº 24 - Cérebro masculino e cérebro feminino
A partir do conhecimento clássico, sabe-se que o impulso sexual tem o seu centro no hipotálamo
(como foi observado na síndrome de Klüver-Bucy) mas, tal como acontece com outros fenómenos
cerebrais, esse impulso é irradiado para áreas límbicas e para o córtex cerebral. Ainda como outros
impulsos, divide-se o impulso sexual em componentes que se localizam no cérebro. Inclusive, os
neurotransmissores são relacionados com as hormonas cerebrais com implicações em comportamentos sexuais e em sensações corporais.
Assim sendo, existe um circuito de recompensa de impulsos83: ao impulso sexual (gerado por
neurotransmissores excitatórios) segue-se a recompensa orgásmica (com a acção de um neurotransmissor, a dopamina) e desenrola-se o relaxamento (com a participação da hormona oxitocina).
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Também é do conhecimento empírico que existem distintas áreas do cérebro, masculino ou
feminino, implicadas no acto sexual. Em termos hormonais ambos os cérebros se distinguem, mas
essa diferença pode ser alterada por influência do comportamento e do meio. Os genes e as diferenças físicas determinam, em grande parte, este esquema observável a partir da conduta mais
decidida ou mais agressiva no homem.
No comportamento sexual feminino, o núcleo ventromedial do hipotálamo está ligado (tal como ocorre na fome) a neurónios sensíveis aos estrogéneos (hormonas sexuais femininos)84, provocando lordose (curvatura com convexidade anterior das regiões cervicais e lombares) e exibição
genital em parte consciente.
Em ambos os sexos, os impulsos sexuais dependem tanto da adrenalina como da testosterona,
agentes químicos (hormonas) que actuam no cérebro.
No cérebro humano existem zonas sexo-olfativas consideradas sexo-procuradoras e sexoreactivas, por acção do sistema límbico.
O córtex frontal direito é a zona do cérebro mais ligada a sensações sexuais.
No caso do homem, a área pré-óptica média do hipotálamo é central na actividade sexual, a
partir da sua maior ou menor sensibilidade aos androgéneos (hormonas sexuais masculinas). Verificase que essa área é maior nos homens do que nas mulheres. É apreensível que fêmeas receptivas
levem à resposta cerebral nos machos, função dessa área do hipotálamo. Assim, nos macacos, o
cheiro das fêmeas é mais estimulante do que nos seres humanos.
A área pré-óptica média do hipotálamo também recebe sinais dos núcleos da amígdala – corticomedial e vasolateral, influenciando a agressividade ou o comportamento sexual decidido.
Quando o estímulo sexual chega ao hipotálamo do homem é conduzido ao córtex cerebral
que coloca o corpo em posição adequada para o contacto sexual. Entretanto, são mandados sinais
ao tronco cerebral, área que condiciona a erecção, entrando em movimento o corpo por acção do
córtex motor, capaz de provocar movimentos rítmicos. Finalmente, outro núcleo do hipotálamo – o
dorsomedial – implica a ejaculação. O orgasmo pode ocorrer sem ejaculação. É uma experiência
cerebral do encéfalo (conteúdo craniano).
Em crises epilépticas, verifica-se, em certos casos, uma ausência de sincronia cerebral, o que
leva à ejaculação sem excitação sexual. No sistema límbico, junto ao hipotálamo, se estimulado
o septo (núcleo do sistema límbico), pode igualmente ocorrer um orgasmo sem prazer – epilepsia
reflexa.
Chama-se priapismo85 à erecção permanente, por lesão do septo do cérebro. Esse nome
provém do facto do Deus Príapus, símbolo da fertilidade, ser representado com um sexo enorme.
O priapismo também se aproximou da satiríase86, ou seja, do desejo excessivo de actividade sexual - hiperssexualidade. Na mulher, utilizou-se o termo «ninfomaníaca» (de ninfa e de mania) para
a mesma disfunção sexual, uma exigência sexual permanentemente observada principalmente na
Psicose Maníaco-Depressiva e na Esquizofrenia.
A impotência, outra perturbação sexual, resulta da ausência de estimulação cerebral de uma ou
outra áreas dos núcleos sexuais do cérebro masculino. Paralelamente, na mulher, a frigidez supõe
a incapacidade de sentir prazer sexual.
Por último, a ausência de erecção do homem, entre outras causas, pode decorrer do facto de
sinais do hipotálamo não chegarem ao tronco cerebral.
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
8. Existe um cérebro gay?
Foi em 1991 que a revista Science87 relatou o facto do cérebro de homens homossexuais ser
diferente do cérebro de homens heterossexuais. Esses estudos de investigação realizaram-se em
pacientes falecidos em consequência de terem contraído a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida.
Verificou-se nesses casos que os indivíduos tinham um núcleo do hipotálamo menor ligado ao comportamento sexual, sendo essa zona cerebral responsável pelo comportamento sexual tipicamente
masculino, como já ficou supracitado.
O corpo caloso também é maior em certos homossexuais.
Foi referido no capítulo II que em 1994 Dean Hamer, outro professor universitário, descobrira
um gene determinado transmitido por linha materna que influenciava a orientação sexual dos filhos
do sexo masculino. Disse-se que a hormona oxitocina desencadeia o amor sexual e o amor filial,
estando o funcionamento relacionado com as endorfinas. Foi retomada a importância da oxitocina
no capítulo actual.
O amor é hoje melhor conhecido do que no passado, o que não impede que ideais e crenças
tenham sempre baralhado as pessoas apaixonadas. Em alternativa, serão adiante narrados factos
e ilusões que determinaram orientações sexuais marcadas pela abstinência sexual.
O amor pode significar uma bênção, um bálsamo, mas também, como veremos, um veneno.
9. A bênção no amor
No início da nossa era, o amor consumava-se pela bênção do casamento, após ter sido previamente combinado.
Na Bíblia, conta-se o caso de Tamires que pretendeu desposar a jovem Tecla. Apesar de rico,
Tamires, desafortunadamente não casou com ela uma vez que esta optou pela adesão à conversão
à nova religião, recusando o matrimónio. Dessa desgraça acusou o homem que arrastara a noiva
para o celibato: Paulo de Tarso (o Apóstolo Paulo), morto no ano de 67. Tamires usou os seguintes
termos para o acusar e agredir88: «Este homem iniciou uma nova doutrina, extravagante e não estabilizadora da espécie humana. Ele denegriu o casamento; sim, o casamento que pode considerar-se
o princípio, a raiz e a origem da nossa natureza.».
O amor pode significar, igualmente, uma ascensão alquímica89 como veremos em seguida.
10. A alquimia no amor cortês e no amor sexual
Na Idade Média ocidental, o amor cortês opôs-se ao amor sexual, explicitado pela alquimia
medieval. Todavia, muito antes dessa época expandir dois modos de amar (amor cortês e amor
sexual), a alquimia, essa ponte do saber esotérico (para iniciados) formulada no Egipto Antigo,
sustentou amores nos Gregos, Árabes, Chineses e Indianos, povos onde surgiu e se desenvolveu.
10.1. O amor cortês medieval, segundo Guilherme da Aquitânia
O amor cortês das cortes europeias expandiu-se muito no século XII por iniciativa de Guilherme da Aquitânia - França, um rei pouco exemplar. De acordo com Clifford Bishop90, ele foi adúltero.
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Entretanto, um pregador da época, Robert d’Abrissel, atrairia a atenção popular ao assumir que as
senhoras da corte poderiam morrer no Inferno caso fossem (como o rei) adúlteras.
Talvez para o combater, o rei Guilherme introduziu na Europa poemas de amor, segundo o
modelo árabe do século VI, exacerbando o amor cortês e inspirando a nova poesia91 com a inacessibilidade da mulher amada. O rei poderia assim camuflar intenções sexuais com um amor casto
que se tornaria símbolo de «pureza». Com a iniciativa do rei, o amor passou a constituir um mistério
divino, ao invés de um pecado.
Era o tempo dos sufis (iniciados na tradição mística islâmica) e um deles, Ahmad al-Ghazali,
colocara a possibilidade de se amar a beleza de Deus, colocando o amor pela mulher associado a
Deus.
Mais tarde, poetas árabes como Djalal al-Din Rumi idealizaram a mulher activa («...que vem
como um ladrão à noite») e Farid al-Din Attar achou mesmo que o seu «eu» iria eclipsar-se nela... A
sua identidade dissipava-se pela acção sedutora feminina. Terão sido os inúmeros poemas árabes92
a fazer com que o modelo de poesia ocidental se expandisse?
Foi assim que se desenvolveram os poemas de trovadores europeus que eram cantados às
suas damas sem intuito sexual.
Um moralista, Macabru93, afiançaria até que uma senhora para ser digna, na verdadeira acepção da palavra, devia ser nobre, bonita e virtuosa. Nasciam, a partir de então, trovadores no Norte
de França, Inglaterra ou Alemanha, defensores de que a mulher «merece» honra cavalheiresca.
10.2. O amor sexual no Rosarium Philosophorum (1550): a alquimia
Personagens reais chegam a espantar-nos quando representadas na alquimia medieval,
prolongando-se pela Idade Moderna94, sugerindo o amor sexual como forma de operação simbólica95.
Na xilogravura da figura nº 25, editada em 1550, do Rosarium Philosophorum, um rei (símbolo
solar) e uma rainha (símbolo lunar) representam aqueles princípios, masculino e feminino, em posição
sexual sobre o mar. Esta postura algo estranha possui conotação alquímica: o rei vermelho (sulfúrico
da «sabedoria») emerge da tumba da rainha branca (mercúrio ou «rosa branca»). Os monarcas
são unidos no fogo do amor a partir do qual nasce a perfeição, a pedra filosofal, a catálise capaz
de transformar metais básicos em ouro, e dá-se início à luz do conhecimento. Esse é, portanto, o
segundo estádio de transformação do sulfúrico e do mercúrio.
Figura nº 25 - Rosarium Philosophorum, xilogravura, editada em 1550 – reis sobre o mar.
Figura nº 26 - Rosarium Philosophorum, xilogravura, editada em 1550 – reis na fonte do amor.
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Pela alquimia, uma pseudo-ciência96, observa-se que o eu espiritual seria o produto do ouro
transformado, representando um novo alento ao simbolismo sexual que o amor cortês anulara. O
amor divino era reavivado entre nobres e cortesãos.
Desde o século XII, o «grande trabalho» para o alquimista correctamente motivado era trazer
«iluminação». Essa prática foi condenada pela religião católica medieval, considerando-a um desvio
do costume e ritual estabelecido. Todavia, as crenças alquímicas perpetuaram-se ao longo da Idade
Moderna. Tal como ocorrera nas sociedades clássicas ou distantes (Egipto, Grécia, China, América
do Sul…), também os reis desta época aliavam o poder espiritual ao poder terreno97.
Na mesma obra existe outra xilogravura com conotação sexual, em que um rei e uma rainha
estão nus e sentados na fonte do amor.
11. Tristão e Isolda: a realidade absoluta de um sonho de amor envenenado
O amor viático98 consuma outra visão paradigmática do encontro amoroso, retomado no século
XIX por Richard Wagner (1813-1883).
Este terá dedicado em 1865 a ópera mágica Tristão e Isolda à sua amada, Mathilde, mulher do
seu protector suíço Otto Wesendonck, após o seu endividamento.
Wagner escreveu o libreto em alemão a partir de uma lenda celta99 onde se contava que um
par de jovens teria bebido o elixir do amor pensando tratar-se de uma poção mortal. Neste caso100,
o amor constituiu uma provisão para a morte.
Pouco sabemos da época em que se situa a estória. Os Celtas povoaram o País de Gales, a
Irlanda e a Gália, ainda que não deixassem textos escritos anteriores a tornarem-se cristãos101. Na
tradição celta mais antiga, Tristão e Isolda mantiveram uma relação adúltera102, tendo, posteriormente,
a tradição romanesca dado à lenda um carácter de amor imaculado e isento.
A lenda medieval celta de Tristão103 reconta-se a partir da edição clássica «Tristão e Isol104
da» :
O tio de Tristão («tristeza»), o rei Marcos (em línguas celtas, Mark significa «cavalo»), dominou-o sempre. Viviam na
Cornualha – Inglaterra.
Um belo dia, aos pés do rei, caiu um cabelinho louro trazido por uma andorinha. Foi o bastante para ele desejar
casar com a menina que teria tão lindos cabelos. Para esse efeito, o sobrinho Tristão teve que se deslocar expressamente
à Irlanda. Não sabemos como foi detectada a origem do cabelo, mas talvez as andorinhas tivessem já a sua rota traçada
e descoberta no horizonte.
Primeiro, consta que Tristão teve que matar um dragão105 antes de pedir a mão de Isolda, a feliz eleita para princesa. Na perspectiva wagneriana106, ele teve também de matar o noivo da moça, Morold, facto não desconhecido de Isolda,
denunciando-o apenas à sua aia fiel, Brangaine. Isolda disse a Brangaine ter passado a odiar Tristão pelo acto baixo e vil.
É mentira! Apaixonara-se por ele ao tratá-lo dos ferimentos graves.
Depois, Tristão e Isolda tiveram que encetar um longo percurso de barco («o barco do amor louco») até à Cornualha
e aí o amor aconteceu. Presume-se não ter sido intencional. O que não estaria previsto é que iriam beber, inadvertidamente,
um elixir de amor a pedido de Isolda:
- Brangaine traga-me uma bebida mortal.
Ao invés, a aia despejou o elixir do amor numa taça a pedido da mãe de Isolda.
Pior situação foi o facto de Isolda casar com Mark e amar Tristão.
Certo dia, encontrar-se-iam no jardim quando o rei fora caçar. Mas o poderoso soberano chegou a tempo de vê-los
loucamente enamorados.
Furioso, mandou o cortesão Melot que o acompanhava desferir um golpe mortal no pobre Tristão. O rei desejou matar
o sobrinho, sangue do seu sangue?
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
As versões do final desta história proliferaram de forma diversificada.
Para Wagner, ainda no II Acto, Mark impediria a ocorrência trágica.
No abraço fatal, matou também Isolda? É outra hipótese a considerar.
Na ópera, Tristão seria banido da corte e enviado para outro castelo (Kareol) na Bretanha,
onde definhou por amor e ferimento grave, vindo a morrer nos braços de Isolda quando ela chegou
num barco real.
Com o choque ela desmaiou e foi enfraquecendo, acabando por morrer. As suas derradeiras
palavras foram as seguintes: «No esplendor de uma luz imortal, extasiada me perco e me regozijo!».
Em outra versão107, Tristão, isolado da corte, casou-se com outra menina chamada Isolda das
mãos brancas. Mas denunciou-se quando, ao morrer, chamou para junto de si Isolda do cabelo
dourado. Infelizmente, ela já viria a caminho para o ver pela última vez, mas o barco que a traria de
volta ao seu eterno amor arvorou velas negras. Ela morreu no caminho? Não! Pode ter-se concluído
que Isolda se recusou a vir curá-lo.
Ainda se coloca outra variante da narração em que ela chegou atrasada e morreu mais tarde
de desgosto acentuado.
12. Uma tragédia de ciúme: Otelo de Shakespeare
Adultos e crianças gostam de conhecer as suas lendas e mitos, bem como as histórias de
outros povos, ainda que longínquos.
Como é possível ensinar História de Portugal sem fazer alusão às facetas do amor e aos seus
intervenientes? Muitas vezes esses episódios mudaram o rumo da História.
Existe uma estória sobejamente conhecida na História de Portugal contada por Júlio Machado
Vaz da seguinte forma: «...Tivemos um rei que se apaixonou e mataram-lhe a amada. Ele mandou
tirar corações pelas costas e trincou-os...».
Fez-se já menção a esses acontecimentos passados no século XIV, em que o amor enfurecido
e o amargo ódio marcaram o reinado de Afonso IV. Referimo-nos ao amor de Pedro (1320-1367) e
Inês de Castro. Ela tinha vindo para Lisboa, no séquito da prometida noiva do futuro rei.
Outra narração histórico-literária inglesa em que o amor e o ódio são recorrentes, é Otelo de
Shakespeare108. O ciúme e a vingança alimentam a trama passional e sangrenta.
Situa-se o retomar dessa ficção em Milão, em 1887, quando voltava à cena Otelo, o Mouro de
Veneza, na ópera de Giuseppe Verdi (1813-1901).
Nessa versão da tragédia109, apresentamos em forma de resenha o acontecimento fabuloso
que marcou os tempos.
No final do século XV, a cena decorreu em uma cidade à beira-mar da Ilha de Chipre.
Um navio veneziano transportava o exército chefiado por Otelo, um general mouro/sarraceno.
A sua tropa ganhou uma batalha contra os Turcos e todos pareceriam contentes. Reinariam em Chipre por mais tempo.
A excepção à boa disposição dos homens foi, nessa fase de glória, marcada por Iago, o Oficial de Marinha de Otelo.
Iago tinha ciúme do Tenente Cássio pela sua aceitação junto de Otelo, por isso embriagou-o e levou-o a lutar com Rodrigo,
um nobre veneziano.
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Na refrega, Montano, predecessor de Otelo no governo de Chipre, seria ferido sem intenção.
Como não podia deixar de ser, Otelo ficou furioso. De imediato destituiu Cássio do seu posto. Iago poderia ter ficado
contente, mas não foi assim que tudo se passou. Ainda desenvolveu outros actos por ciúme.
Nessa noite escura, Desdémona, filha de um senador, Bragâncio, encontrou-se ainda com o marido, Otelo. Pareciam
amar-se.
Era a ocasião mais propícia a Iago. Nessa etapa de paixão, Iago persuadiu Cássio a pedir a Desdémona que o ajudasse a reabilitar-se aos olhos de Otelo.
Entretanto, Otelo seria alertado por Cássio de que a mulher o traíra.
Na medida em que Desdémona defendeu Cássio junto do seu senhor, o marido ardente suspeitava já do pior. Otelo
era «pessimista». Eis senão quando Iago tira o lenço a Desdémona para o colocar junto das coisas de Cássio. Aproveitava ainda, com
tempo à justa, para contar a Otelo um sonho de Cássio. Ele estaria apaixonado por Desdémona… Na conversa forjada,
Iago chegou ao ponto de dizer a Otelo que Cássio possuia o lenço dado por Otelo à sua esposa. Era mentira, mas Otelo
queria vingança. Desdémona já se deitara, estafada. Ainda rezava quando Otelo foi ao seu quarto e, sem dó nem piedade, estranguloua ali mesmo.
A esposa de Iago não foi conivente com as mentiras do marido. Ela chamava-se Emília. Sem esperar mais, Emília
foi encontrar-se com Otelo para lhe contar as maldades de Iago.
Iago fugiu e Otelo feriu-se de propósito com um punhal para morrer abraçado a Desdémona.
Otelo aborda sentimentos humanos. Caso contrário, sem se enunciarem naturais flutuações
afectivas, o que se ensina da natureza humana está truncado.
13. Três contos de fadas: O Capuchinho Vermelho, A Bela Adormecida e A Branca de Neve
Os contos para a infância, de forma subtil, preparam em particular as crianças para a vida adulta.
Existem adultos que se reconhecem nesses contos, entendidos como espaços de ilusão e de
criatividade. É o caso de Charles Dickens (1812-1870) que veio a afirmar o encantamento propiciado
por uma dessas narrações de Perrault: «A menina do capuchinho vermelho foi o meu primeiro amor.
Sentia que se pudesse ter-me casado com ela, teria conhecido a verdadeira felicidade».
A Bela Adormecida ou A Branca de Neve entendem-se como ficções sobre a menstruação110 e
sobre os perigos decorrentes do encontro com animais predadores, machos perigosos111.
Em A Branca de Neve, a história inicia-se com uma rainha que cose junto à janela de caixilho
em ébano/pau-ferro, enquanto neva lá fora... Ela pica-se, inadvertidamente. Chega a julgar que o
seu sangue é tão belo como a neve. Dessa ideia maluca, lembra-se de desejar ter uma menina que
seja «branca como a neve, vermelha como o sangue e negra como o ébano.»112.
E que pensar de O Capuchinho Vermelho? Apresenta-se, em seguida, uma gravura de 1869
de Os Contos de Perrault. O capuchinho está deitado com o lobo e conversam.
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Figura nº 27 - «O Capuchinho Vermelho», em Contos de Perrault - Gravura de 1869.
Passa-se a transcrever o diálogo inoportuno entre os protagonistas centrais duma interpretação
do conto, dirigido a crianças113:
Capuchinho vermelho: Avó, que grandes braços tu tens!
Lobo: É para te abraçar melhor.
Capuchinho Vermelho: Avó, que grandes pernas tu tens!
Lobo: É para correr melhor.
Se na primeira conversação a resposta do lobo é directa, dirigida ao afecto e ao estreitamento
no abraço, na segunda, a função sexual é camuflada por uma resposta evasiva. O lobo, dono da
situação, não desejaria de imediato fugir.
Nos contos infantis, invariavelmente, estão presentes mensagens para a vida. Algumas delas
são fáceis de explicitar.
14. Lendas inesquecíveis: a busca do prazer no sabor de um morango silvestre
O Tau chinês constituiu a via ou o caminho do absoluto e a razão de todas as coisas114.
No taoísmo [lido au – ís] chinês do século VI a. C., de acordo com os ensinamentos de Tao-to
King, pressupôs-se a realização de cerimónias (procissões) em que se misturaram magia e religião,
pedindo-se aos espíritos o acesso à natureza dos mortos.
Em uma lenda taoísta, conta-se um episódio115 descentrado, ou seja, um fenómeno que exige
distanciamento após o nosso envolvimento inicial. Tem o seu quê de absurdo, favorável à ocorrência.
Contava-se assim a versão inglesa de Alida Gersie e Nancy King116 adaptada:
Era uma vez uma jovem que se deitara por baixo de uma árvore e que acordou aflita com o rugir de um leão muito
feroz. Levantando-se de um salto, viu à distância o monstruoso leão a correr para ela. Sem ter onde se esconder, fugiu do
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
leão tão depressa quanto as suas pernas permitiam. O rugido do leão avisava-a de que tinha muito pouco tempo para se
salvar. Transida de medo, olhou em volta num último minuto e viu um penhasco. Mesmo antes de o reconhecer com nitidez,
estava a correr para ele para se sentir segura. Já muito perto do íngreme rochedo, notou ser este escorado por duas fortes
videiras que cresciam a partir da parte da frente. Nesse preciso momento o leão estaria prestes a agarrá-la com a pata,
quando ela subiu para o rochedo e arrebatou fortemente as videiras.
Logo que recuperou a respiração, a rapariga sentindo o coração bater, olhou o leão por baixo dela sossegado e
adormecido. Ao mesmo tempo, ouviu o rugido do leão. Confusa, certificou-se de que de facto o leão estava a dormir. Logo
depois apercebeu-se que estava outro leão a rugir.
Ela ficou pregada às vinhas enroladas e ouviu, só então, um som de roedor mesmo acima do seu ouvido direito.
Olhou para cima e viu um ratinho muito pequeno a roer a vinha.
Nesse instante, ela sentiu algo a roçar o seu ouvido esquerdo e, olhando novamente para cima, viu um rato preto,
minúsculo, a mordiscar a outra vinha.
Confiante no vigor das vinhas e pensando no tamanho pequeníssimo dos roedores que davam voltas estonteantes,
a menina anichou-se contra as vinhas e sentiu nelas um cheiro delicioso.
Mirando em volta, ela aspirava já a suculência de um delicioso morango encarnado, perto do tronco em que se encontrava. Fez-se prender mais fortemente, puxou-o para si e sentiu-se totalmente perdida nesse momento. Comia finalmente
o morango com prazer.
Poderiam ser tiradas ilações de viver até ao último momento agarrando um morango silvestre,
símbolo de prazer imediato, enquanto eventos nefastos nos impelem a perceber os nossos limites.
As aventuras e as desventuras das pessoas integram a via profusamente simbólica que se
liga ao irreal.
Notas
Capítulo III - O prodígio das histórias: verdade, ciência e nuances de amar
1. Michel Foucault foi quem utilizou essa expressão - …o moinho da palavra. Foucault (1961, 1976, 1984)
foi historiador, filósofo e psicólogo colocando a tónica na repressão sexual clara até aos anos setenta,
enquanto a discussão sobre a sexualidade se ampliava. Com a revolução sexual, debatia-se, por exemplo, como é possível manter a autonomia e respeitar a autonomia de quem se ama. Didier Eribon (1989,
trad. port. 1990) escreveu uma curiosa biografia de Michel Foucault.
2. Termo e concepção de enamoramento de Dorothy Tennov (1979), ao qual será feita menção.
3. Michel Foucault (1984).
4. Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 91).
5. Howard Gardner (1995, trad. bras. 1996).
6. Gardner, ibid, p. 39.
7. No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa (2001) é referido que nas alegorias se substitui uma realidade abstracta (por exemplo, a origem do mundo) por uma
«realidade concreta que a simboliza por analogia, encadeando de forma lógica metáforas, comparações
e outras figuras de estilo».
8. Howard Gardner (1995, trad. bras. 1996, p. 39).
9. Neil Philip (1999, trad. port. 1999, p. 6).
10. João, 1:1 (cit. por Barbara Walker, 1988, trad. port. 2002, p. 205).
11. Barbara Walker (1988, trad. port. 2002, p. 205).
12. David Fontana (1993). Essa expressão é colocada no início desse livro.
13. Neil Philip (1999, trad. port. 1999, p. 6).
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
14.
15.
16.
17.
18.
19.
Michael Mahoney (1991, trad. bras. 1998, p. 266).
Murry Hope (1988; citado por M. Mahoney, 1991; trad. bras. 1998, p. 266).
Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 16).
Bishop, ibid, p. 14.
Carl Gustav Jung (1964, trad. bras.1996).
O Levítico é o terceiro livro do Pentateuco de Moisés. É assim chamado porque contém as regras e as
observações que dizem respeito aos sacerdotes e aos levitas (entre os hebreus, os ministros no culto
da tribo de Levi).
Basicamente, a candelária é uma festa de apresentação do Senhor no Templo e de Purificação da Virgem,
onde as pessoas levam círios na procissão, realizada em 2 de Fevereiro.
O hieros gamos ocorria no momento alto do Mistério de Setembro, no templo dedicado a Deméter, em
Elêusis, Grécia Antiga, quando o hierofanta (sacerdote) casava com a sacerdotisa de Deméter (Bishop,
1996, trad. port. 1997, pp. 16-17 e 24).
Bishop, ibid, p. 90.
A Cabala é uma interpretação misteriosa da Bíblia transmitida desde Abraão.
Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 72).
Josué foi o sucessor de Moisés, junto de hebreus.
A circuncisão está presente em cerimónias judaicas e muçulmanas, consistindo na excisão do prepúcio.
Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 91).
Bishop, ibid, p. 103.
Platão (1951). O relato de The Symposium é dado por Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 103) e por
Diane Ackerman (1994, trad. cast. 2000, pp. 131-135). Freud pensou que essa narração é originalmente
indiana, de acordo com a faceta dos Deuses hindus poderem apresentar-se bissexuais (Ackerman, ibid,
p. 133). A sublimação entende-se ligada a actividade sem relação aparente com a sexualidade: científica ou
artística. O alvo sexual passa a ser canalizado para a “acção valorizada pela sociedade” (Laplanche &
Pontalis, 1967, trad. port 1970).
A resistência é o mecanismo de defesa em que, por actos e palavras, a pessoa se opõe a aceder ao
inconsciente.
A interpretação de que Platão sentiria dúvida quanto à sua identidade sexual é defendida pela jornalista
americana Ackerman (1994, trad. cast. 2000, p. 132). Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, pp. 46-47).
Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, pp. 233-235).
Aristófanes (1984, 2ª ed., 1991).
Alcibíades seria o exemplo de alguém com excepcionais defeitos e qualidades, a atender à sua ambição
desmedida.
Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 235).
Platão (1951).
Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 232).
O amor europeu surgiu no século XI, vindo a desenvolver-se até ao Romantismo, época em que se uniu
à sexualidade a mente - o espírito francês. O Romantismo teve início no 3º quartel do século XVII.
Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 113).
Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 232).
Norman MacKenzie (1965, trad. fr. 1966, p. 67).
Neil Philip (1999, trad. port. 1999, p. 34).
Philip, ibid, p. 34. Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 115).
20.
21.
22.
23.
24.
25.
26.
27.
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29.
30.
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32.
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44.
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47. AA.VV. (2004, p 152).
48. O Tau chinês significa «o caminho» ou «a última realidade», anterior à morada dos Deuses. Foi iniciado
com crenças populares chinesas, antes de Lao Tzu ter compilado o livro Tao-Te Ching, no século VI
antes da nossa era.
49. O tantrismo hindu é associado aos Tantras (século VI d. C.) e aos Vedas, as obras mais antigas dos
hindus.
50. Barbara Walker (1988, trad. port. 2002, p. 169).
51. Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, pp. 229-232).
52. Helen Harris (texto manuscrito, 1995; cit. por S. Andreae, 1998, trad. port. 2003, pp. 229-232).
53. AA.VV. (2004, pp. 214-215).
54. Dorothy Tennov (1979).
55. Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 223).
56. Dorothy Tennov (1979). 57. Simone de Beauvoir (1949; trad. port. 1976).
58. Stendhal (1822). Stendhal foi o pseudónimo do francês Marie Henri Beyle, considerado ter um espírito
romanesco. Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, dedica-lhe um capítulo e Diane Ackerman (1994,
trad. cast. 2000, pp. 135-141) relata a sua rejeição por Métilde Viscontini Dembowski.
59. Dorothy Tennov (1979; cit. por S. Andreae, 1998, trad. port. 2003, p. 225).
60. Essa afirmação foi elucidada por Júlio Machado Vaz em programa televisivo.
61. Neil Philip (1999, trad. port. 1999, p. 33).
62. Philip, ibid, p. 33.
63. D. Byrne e S. K. Mumen (1988).
64. Art Aron e colaboradores (1991; 1996; 1997).
65. E. Walster e G. W. Walster (1963, pp. 402-404).
66. Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 252).
67. Andreae, ibid, p. 252.
68. D. Perrett e P. Benson (1992).
69. Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 253).
70. Rita Carter (1998, trad. cast. 1998, p. 74).
71. L. R. Franzini e J. Grossberg (1995). 72. O acontecimento foi exposto por um irmão de Justin, no livro The Monument (Andreae, 1998, trad. port.
2003, pp. 250-252).
73. Rita Carter (1998, trad. cast. 1998, p. 76).
74. No capítulo II, fez-se referência a que o sistema límbico não existe – não é uma estrutura cerebral (LeDoux, 1996, trad. port. 2000, pp. 103-109).
75. Conforme as opiniões de cientistas presentes no filme The Science of Sex – The Aim of the Games
(1997).
76. Rita Carter (1998, trad. cast. 1998, p. 76).
77. Susan A. Greenfield (1996; cit. por R. Carter, 1998, trad. cast. 1998, p. 75). Essa síndrome, observada
inicialmente em macacos, decorreu da ablação de partes dos lobos temporais, incluído o hipotálamo.
Registou-se, entre outros sintomas, perda de medo e de reacção de raiva, bulimia e aumento da actividade sexual.
78. Y. Oomura, S. Aou, Y. Koyama e H. Yoshimatsu (1988).
79. Simon Le Vay (1994, p. 102).
80. Sally P. Springer e Georg Deutsch (1993).
81. Rita Carter (1998, trad. cast. 1998, p. 70).
82. Carter, ibid, pp. 70-74.
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Carter, ibid, p. 72.
Por exemplo, a foliculina e a luteína são estrogéneos.
Rita Carter (1998, trad. cast. 1998, p. 74).
A noção de satiríase ou priapismo provém da ideia de um homem compulsivo e insaciável poder ser
como um semi-deus rústico – o Sátiro. Esse último foi pejorativamente considerado cínico, devasso e
libidinoso. Tratando-se de uma situação rara, é uma perturbação psíquica, na maioria dos casos de
excitação sexual.
Science (1991; cit. por R. Carter, 1998, trad. cast. 1998, p. 73).
Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 133).
A alquimia pode observar-se como uma operação simbólica, para além da noção comum de que seria
uma arte de transmutar metais para se obter ouro. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (s/ data; trad. port.
1997, pp. 56-57).
Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 84).
Bishop, ibid, p. 77.
Bishop, ibid, pp. 76-77.
Bishop, ibid, p. 84.
O primeiro texto de alquimia data do século XII - O Livro da Composição da Alquimia. Nessa obra, os
quatro «elementos» tradicionais gregos – terra, ar, fogo e água – seriam mágicos para a ascensão iniciática de matérias-primas alquímicas. Assim, o nigredo (preto do preto) completaria o primeiro estado
de transformação do mercúrio (branco, feminino, lunar e de baixa energia) e do sulfúrico (vermelho,
masculino, solar e de elevada energia). Depois, num segundo estádio, o negro, muito negro, tornar-se-ia o revestimento, completado de cores do arco-íris (por vezes, como uma pérola ou pena de pavão),
cobertas de brancura (o albedo). Nesse ponto, os dois princípios da matéria-prima reaparecem na forma de um rei (sulfúrico) e de uma rainha (mercúrio) (Chevalier & Gheerbrant, s/ data, trad. port. 1997, pp. 56-57).
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (s/ data, trad. port. 1997, p. 56).
David Fontana (1993, pp. 149-151).
Fontana, ibid, p. 136.
Viático significa o amor entendido como uma preparação para uma viagem.
Neil Philip (1999, trad. port. 1999, pp. 82-83).
Jeanne Suhamy (1992, trad. bras. 1995, pp. 91-92).
Émilie Baussier (2000, trad. port. 2001, 2ª ed. 2002, p. 72).
Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 85).
A lenda de Tristão e Isolda surge nas versões de Jeanne Suhamy (1992, trad. bras. 1995, pp. 91-92),
Neil Philip (1999, trad. port. 1999, pp. 82-83) e Diane Ackerman (1994, trad. cast. 2000, pp. 142-145).
Tristan et Yseult (s/ data). Sem outras referências (trad. port. “Tristão e Isolda“, sem data, 2ª ed.). Existe
uma edição de Joseph Bédier, de 1945, intitulada The Romance of Tristan and Iseult, publicada em Nova
Iorque pela editora Pantheon, com tradução castelhana (“La Historia de Tristán e Iseo“. Barcelona :
Sirmio, 1995).
Neil Philip (1999, trad. port. 1999, p. 82).
Jeanne Suhamy (1992, trad. bras. 1995, p. 90).
Neil Philip (1999, trad. port. 1999, p. 82).
William Shakespeare (1604). Othello. Sem outras referências (trad. port. “Otelo”, s/ data).
Jeanne Suhamy (1992, trad. bras. 1995, pp. 131-133).
Em contextos africanos, a menstruação pode obrigar à construção de cabanas para mulheres, isoladas
durante as regras (AA.VV., 2004, pp. 26-27). Imagina-se também que o fluxo menstrual decorra do coito
com um espírito maligno. Esses tabus observam-se noutros continentes em que, nomeadamente, é proibida
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O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
a relação sexual durante o período menstrual. Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 125).
Bishop, ibid, p. 125.
Peter Holeinone (s/ data).
De acordo com Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (s/ data, trad. bras. 1997, pp. 630-631), o Tau chinês
pode ser aproximado do logos (pensamento) dos estóicos gregos – razão inteligente e operosa. Essa
concepção do Tau implica a ordem racional que surge a partir da desordem.
115. Alida Gersie e Nancy King (1990, p. 27).
116. Gersie e King, ibid, p. 27.
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