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Celso Leopoldo Pagnan
Doutor em literaturas de língua portuguesa
Resenhas dos livros de
leitura obrigatória da
UEM/2012/2013
Londrina, 2012
1a edição
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Direção-Geral do Sistema Maxi de Ensino e da Maxiprint
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P156r
Pagnan, Celso Leopoldo.
Resenhas dos livros de leitura obrigatória da UEM
2013/2014. Organização Celso Leopoldo Pagnan. —
Londrina : Maxiprint, 2012. – 144p.
1. Resenhas – Literatura – vestibular. 2. UEM – vestibular
2012/2013. I. Título.
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ATENÇÃO!
Este volume da coleção Resenhas destina-se especificamente aos candidatos aos cursos de graduação da UEM – Universidade
Estadual de Maringá (PR) nos vestibulares de 2012-2013.
Estas resenhas, porém, não têm a intenção nem a pretensão de substituir o texto integral das referidas obras, cuja leitura
consideramos indispensável não apenas para o vestibular, mas para a formação básica em Literatura para os que pretendem exercer
qualquer profissão em nível superior, pois os textos aqui abordados constituem o cerne da literatura luso-brasileira e por isso são
representantes exemplares de épocas e ideologias que marcam nosso atual modo de ser e o explicam.
Ocorre que detalhes como ambientação da obra, o estilo do autor, a plena caracterização dos personagens, o ritmo da narrativa e
a própria “mensagem” da obra, entre outros aspectos importantes, ficarão incompletos para o leitor de uma resenha por mais fiel que
esta tente ser, daí nossa recomendação para que estas linhas sirvam de preparação ou de complementação à leitura do texto integral
das respectivas obras, pois a intenção do presente volume é abrir caminhos a quem vai lê-las ou preencher eventuais lacunas a quem
as leu.
Esteja o vestibulando consciente de que nada suprirá a necessidade de leitura integral dos textos. E, como já dissemos, que este
livro sirva como introdução ou como complemento a essa enriquecedora atividade que é a leitura integral de uma obra de arte.
Prof. José Milanez
Coordenador do Centro Pedagógico do Sistema Maxi de Ensino
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ÍNDICE
III III IV VVI VII VIII IX X-
Poemas escolhidos de Cláudio Manuel da Costa: o nascer do Arcadismo no Brasil ............. 5
Iracema, de José de Alencar: o instinto da nacionalidade .................................................... 12
Dom Casmurro, de Machado de Assis: a crise do ponto de vista ......................................... 17
Melhores poemas de Manuel Bandeira - O prosaico e o sublime ........................................ 22
O calor das coisas: identidade e transformação segundo o olhar de Nélia Piñon ................ 29
Contos novos, de Mário de Andrade: um olhar sobre a modernidade .................................. 36
A falecida, de Nelson Rodrigues .......................................................................................... 42
Dois irmãos, de Milton Hatoum ............................................................................................ 46
Sermões de Padre Antônio Vieira ......................................................................................... 50
Poesias Completas, de Cruz e Sousa .................................................................................... 56
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CAPÍTULO I - Poemas escolhidos de Cláudio Manuel da Costa: o nascer do Arcadismo no Brasil
Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) nasceu na região
da atual cidade de Mariana, em Minas Gerais. À época, era
conhecida como Vila do Ribeirão do Carmo. Estudou no
colégio dos jesuítas, no Rio de Janeiro. Em seguida, foi para
Coimbra e lá prosseguiu os estudos, tendo pensado em ordenarse padre. No entanto, retornou ao Brasil, para Vila Rica (atual
Ouro Preto), onde foi nomeado Procurador da Fazenda.
Em 1759, passou a participar da Academia Brasílica dos
Renascidos, cujos conceitos literários ainda eram movidos pelo
Barroco, pelo Gongorismo. No entanto, em 1768 lançou seu
livro de poemas intitulado Obras, dando início assim à escola
árcade na Colônia. Também colaborou para a fundação de
outra academia literária, agora sob a visão árcade, a Colônia
Ultramarina, um braço colonial da Arcádia Romana.
Cláudio Manuel escreveu esses poemas quando era estudante
em Coimbra. Fez severas críticas ao estilo barroco no prólogo
escrito para a primeira edição do livro e exaltou o estilo simples e
fluente de Camões e do poeta latino Virgílio.
Arcadismo é uma referência à Arcádia, local lendário situado
na Grécia e que teria como habitantes pastores. Isso denotaria
um aspecto rústico, além de expressar a vida simples e bucólica,
temas explorados pela poesia do século XVIII, particularmente
por Cláudio Manuel. Por conta disso, os poetas passaram a
utilizar pseudônimos inspirados em nomes de pastores. Tratase de mera convenção. Por exemplo, Cláudio Manuel da Costa
assinava seus poemas como Glauceste Satúrnio; Silva Alvarenga,
como Alcindo Palmireno; Basílio da Gama era o Termindo Sipílio;
e Tomás Antonio Gonzaga, como Dirceu. Eventualmente,
adotavam outros pseudônimos.
Basicamente, da Costa publicou Obras e deixou inacabado
um poema épico intitulado Vila Rica. Há, no primeiro livro, os
seguintes gêneros poéticos, e sua respectiva quantidade:
a) Soneto (100): trata-se de um tipo de poema lírico, gênero
criado pelo italiano Lentino (século III), mas tornado conhecido
por Petrarca (século XIV), composto normalmente por doze
versos, divididos em dois quartetos e dois tercetos.
b) Epicédio (3): elogio fúnebre.
c) Fábula (1): poema que veicula uma lição de moral.
d) Écloga (20): composição poética de caráter pastoril.
e) Epístola (6): poema em forma de carta, endereçada
normalmente a um protetor intelectual, um amigo.
f) Romance (5): poema narrativo, de versos. Aqui não se trata
do romance em prosa.
g) Cançoneta (6): poema em que se tem um assunto simples
ou mordaz.
h) Cantata (8): pequeno poema dialogado. Como o nome
indica, seria para cantar, com acompanhamento musical.
i) Ode (1): poema de exaltação, hino.
Como se observa, são mais de 150 poemas, o que torna
impossível uma análise pormenorizada de cada um dos textos.
Vamos, de qualquer modo, estabelecer pontos de contato
e destacar as invariantes, aquilo que se repete e que pode ser
considerado um padrão poético.
No soneto de abertura, Cláudio conclama os montes, a
natureza, a acompanhá-lo na empreitada de cantar, de poetar.
Reconhece não ter o talento divino, que caracteriza a capacidade
lírica de Anfião, cuja lira recebeu de Apolo, nem a de Orfeu,
filho de Apolo. Trata-se de uma estratégia para revelar a
devida humildade de um escritor que vive na Colônia, o que
o impediria, teoricamente, de concorrer com o escritor da
Metrópole ou os da tradição europeia.
Para cantar de amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento;
Ouvi, pois, o meu fúnebre lamento;
Se é que de compaixão sois animados:
Já vós vistes que aos ecos magoados
Do trácio Orfeu parava o mesmo vento;
Da lira de Anfião ao doce acento
Se viram os rochedos abalados.
Bem sei que de outros gênios o Destino,
Para cingir de Apolo a verde rama,
Lhes influiu na lira estro divino:
O canto, pois, que a minha voz derrama,
Porque ao menos o entoa um peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama.
Trata-se de uma temática recorrente, isto é, que vai ser
retomada em outros sonetos e poemas de Cláudio. Seu objetivo
é revelar o contraste entre a vida cultural na Europa e a que se
podia ter na Colônia. É o que acontece nos sonetos II, LXII e
LXXXIII, por exemplo. Também de certa forma o tema aparece
na “Fábula do Ribeirão do Carmo”. O título é uma referência
ao nome original com que era conhecida a posterior cidade de
Mariana, em Minas Gerais. O tema nesse poema é na verdade
a desilusão amorosa. No entanto, aquele contraste é referido em
diversos momentos. Eis uma estrofe:
Aonde levantado Gigante, a quem tocara,
Por decreto fatal de Jove irado,
A parte extrema, e rara
Desta inculta região, vive Itamonte,
Parto da terra, transformado em monte.
Ao escrever esses poemas (na década de 50 e 60 do século
XVIII), é provável que o autor não tenha articulado um discurso
patriótico, nacionalista. É bem verdade que depois foi incluído
pela devassa (processo judicial) como integrante do movimento
Inconfidente, que, entre outras coisas, tinha a intenção de
tornar o país independente. De qualquer modo, relido à luz
da Independência nacional, no século XIX e seguintes o poeta
passou a ser visto como um pré-nacionalista, mesmo que não
tenha se expressado com tal intuito. É o caso do soneto LXII:
Torno a ver-nos, ó montes; o destino
Aqui me torna a pôr nestes outeiros,
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros
Pelo traje da Corte rico e fino.
Aqui estou entre Almendro, entre Corino,
Os meus fiéis, meus doces companheiros,
Vendo correr os míseros vaqueiros
Atrás de seu cansado desatino.
Se o bem desta choupana pode tanto.
Que chega a ter mais preço, e mais valia,
Que da Cidade o lisonjeiro encanto;
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Aqui descanse a louca fantasia;
E o que até agora se tornava em pranto.
Se converta em afetos de alegria.
Nesse soneto, o eu lírico fala claramente que permanecerá
fiel ao amor que verte pela pastora, a despeito de ela fazer
pouco caso, pouco se importar com isso. Observem-se também
as referências aos elementos bucólicos, tipicamente árcades
(cabana, montes, vale, prado). O último verso ilustra também
uma característica estética de Cláudio Manuel, que é sua
origem barroca. Voltaremos a tratar do assunto, mas apenas
para adiantar: na poesia barroca era comum o uso de gradação,
especialmente nos versos conclusivos. Apenas para lembrar,
citemos o seguinte verso de Gregório de Matos: “Em terra, em
cinzas, em pó, em sombra, em nada”. É o que ocorre no último
verso do soneto IX, onde há uma gradação de monte a prado.
Há diversos outros sonetos com essa mesma visão, isto é,
a do eu lírico decepcionado com sua pastora, enganado ou
desprezado por ela. Destaque para alguns: III, XVI, XVII, XXIII,
XXV, XXVI, XXVIII, XXIX, XXXII, XXXIV, XL, XLI, XLIV,
LXIX, LXXI etc.
Exemplos:
No poema, o eu lírico contrapõe os valores da natureza aos
da vida urbana; uma contraposição à cultura urbana, ao local da
política e das relações sociais. É verdade que se trata da busca
de um ideal, isto é, o autor, urbano, não pretende se mudar
para o campo; o que expressa é uma visão idealizada do campo,
como locus amoenus (lugar agradável), suave e ameno, aprazível
e perfeito para se viver. Isso também significa a contraposição
entre a vida na Metrópole (mundo urbano) e a vida na Colônia
(natureza). A mesma oposição está presente no soneto XIV.
Em outros dois sonetos, no VIII e no XXII, há de novo
uma relação entre a natureza local e a natureza clássica, ou seja,
referência àquilo que possibilitaria elevar o poema do árcade
mineiro segundo os preceitos do Arcadismo central, focado na
cultura europeia. Por esse motivo, ao lado do ribeirão do Carmo
há o Tejo ou o Mondego, rios portugueses; em meio à natureza
mineira, com seus montes, grupiaras e tudo mais, aparecem o
álamo, uma árvore mais comum em zonas temperadas, as ninfas
e outras entidades mitológicas greco-romanas.
Outro ponto tipicamente árcade e que está diretamente
relacionado a essa dicotomia entre cultura local e europeia é o
da adoção da perspectiva de um pastor. O nome adotado por
Cláudio Manuel da Costa é o de Glauceste Satúrnio. Ao longo
dos diversos poemas, há referência a pelo menos dez nomes
de pastoras. Os dois nomes mais comuns são Nise e Lise, mas
também há Daliana, Eulina, Antandra, Almena, Anarda,
Francelisa, Brites e Elisa. O que une todas essas pastoras é a
temática recorrente. No caso, trata-se basicamente de como o eu
lírico teria sido enganado pelo falso amor da amada. São pelo
menos trinta sonetos (além da fábula e das cantatas) em que
a pastora é descrita de maneira indigna do amor vertido a ela
pelo eu lírico. Ao contrário, pois, de Marília de Dirceu, em que
Tomás Antonio Gonzaga louva o amor perfeito entre o casal
(ao menos em sua primeira parte, antes da prisão e do degredo),
Cláudio prefere retomar as desilusões amorosas tipicamente
camonianas em que, para tão grande amor, se apresentava tão
curta vida. Ou, por outra, ao amor perdido, o eu lírico expressa
o desejo de ainda vivê-lo.
[...]
Mas que modo, que acento, que harmonia
Bastante pode ser, gentil pastora,
Para explicar afetos de alegria!
Que hei de dizer, se esta alma, que te adora,
Só costumada às vozes da agonia,
A frase do prazer ainda ignora!
(soneto XVII)
Tu sonora corrente, fonte pura,
Testemunha fiel da minha pena,
Sabe, que a sempre dura, e ingrata Almena
Contra o meu rendimento se conjura:
[...]
(soneto XXIII)
Nesse soneto, como em outros tantos, o eu lírico segue
um procedimento que era bastante comum nas cantigas de
amigo do período trovadoresco: o eu lírico tem na natureza
uma confidente. No entanto, aqui, o eu lírico é masculino,
ao contrário daquelas cantigas, que apresentavam eu lírico
feminino. Também é preciso reafirmar que essa relação entre
a voz do poema e a natureza é uma característica árcade, uma
expressão da vida bucólica, exaltada como o mundo ideal.
Também era uma prática comum em Petrarca, poeta medieval
que difundiu o soneto no Renascimento italiano.
Nos quatro romances, a temática é retomada. Cada um deles
tem como título o nome de uma pastora: Lise, Antandra, Alteia
e Anarda. Nenhuma amante se salva, isto é, todas desprezam,
enganam e humilham os pastores que ousam amar a elas.
Vejamos estrofes significativas:
IX
Pouco importa, formosa Daliana,
Que fugindo de ouvir-me, o fuso tomes;
Se quanto mais me afliges, e consomes,
Tanto te adoro mais, bela serrana.
Ou já fujas do abrigo da cabana,
Ou sobre os altos montes mais te assomes,
Faremos imortais os nossos nomes,
Eu por ser firme, tu por ser tirana.
[...]
E na frondosa ribeira
Deste rio, triste a alma
Girará sempre avisando,
Quem lhe soube ser tão falsa.
(Lise)
Um obséquio, que foi de amor rendido,
Bem pode ser, pastora, desprezado;
Mas nunca se verá desvanecido:
Sim, que para lisonja do cuidado,
Testemunhas serão de meu gemido
Este monte, este vale, aquele prado.
[...]
Tenras ovelhas,
Fugi de Antandra;
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Que é flor fingida,
Que áspides cria, que venenos guarda.
(Antandra)
Eu guiarei o gado se tu cantas:
Que prosseguindo tu, de meu tormento
O excesso ao menos, e o rigor quebrantas.
Não me negues, se podes, esse alento
[...]
Segundo o volto, que neste
Rústico penedo ostenta,
Cuido, que o fizeram louco
Desprezos da bela Alteia.
(Alteia)
Na “Epístola II” , Fileno escreve a Algano para revelar-lhe
a falta que faz. O objetivo maior, porém, é descrever o cenário
bucólico onde se desenvolvia a amizade entre eles, além da
presença de outros pastores. Não se trata da visão romântica de
natureza, mas sim de mostrar uma integração entre a natureza e
o pastor. Na falta de um, há o esmorecimento do outro:
[...]
Não somente o efeito
De tão ingrato mal em nós sentimos;
Mas, se bem advertimos,
Tudo ao grande pesar ficou sujeito:
Que fez a ausência tua
A saudade em nós razão comua.
[...]
Ah! Quem sabe, triste gado,
Onde a maior homicida
Dos corações, e das almas,
Convosco agora caminha!
[...]
(Anarda)
O rio, que algum dia
Líquida habitação das ninfas era,
A cor, que a primavera
Nestes frondosos álamos vestia,
Tudo perde o seu brio:
Não tem o álamo cor, ninfas o rio.
[...]
No prefácio a Obras, Cláudio Manuel explica que se
formara como escritor ainda sob a estética barroca, e isso
poderia ser verificado em alguns de seus poemas, fosse no uso
excessivo de metáforas, fosse nos jogos de palavras, como as
inversões sintáticas, a presença de antíteses ou paradoxos. Com
efeito, o poeta que introduziu o Arcadismo no Brasil colonial
não consegue se desvencilhar totalmente de alguns preceitos
estéticos barrocos. Tal característica pode ser verificada em
diversos poemas. Como exemplos, citemos os sonetos XI e
LXXVII. Do segundo, destacamos a presença do hipérbato, que
é a inversão sintática. Verifica-se, neste poema também, o tema
do desengano do mundo, comum nos textos de Camões, que
também apresentam certos aspectos próprios do Barroco. Eis o
segundo quarteto:
Como se pode perceber, nos quatro exemplos a pastora é
vista como “assassina” de corações. Outro ponto que se pode
notar é a referência aos aspectos bucólicos (ovelhas, rústico,
penedo, gado).
Essa melancolia pode ser vista também como prenúncio do
Romantismo, ainda sem os rompantes sentimentais deste, mas já
exprimindo a ideia de como o choque entre o querer e o poder
leva à desilusão.
Na “Écloga V” , dois pastores, Frondoso e Alcino, conversam
sobre a morte de um terceiro, Arúncio. Em forma de diálogo,
revelam a tristeza da perda do amigo. O ponto a ser destacado
são as referências culturais alternadas entre a natureza colonial
e a metropolitana. No caso, representado mais uma vez pelo
ribeirão do Carmo e pelos rios Tejo e Mondego:
Triste, e funesto caso! As ninfas belas
Do pátrio Ribeirão tanto choraram,
Que inda alívio não há, nem gosto entre elas.
[...]
As ninfas do Mondego estou já vendo
Descerem para nós com triste pranto.
Ou eu me engano, ou elas vêm dizendo:
[...]
De outro lado igualmente se provoca
O Tejo (onde ele viu a luz primeira):
E as ninfas do centro úmido convoca.
Veste o engano o aspecto da verdade;
Porque melhor o vício se avalia:
Porém do tempo a mísera porfia,
Duro fiscal, lhe mostra a falsidade. [...]
Em outros termos, a morte de Arúncio causou tristeza em
todos os lugares, tanto na Metrópole quanto na Colônia. O
caso sendo verdadeiro ou não (a morte de um ente querido)
não importa, o que importa é o motivo para poetar, para
desenvolver o texto e expressar-se com desenvoltura e elegância.
Outro aspecto é a referência bucólica, típica das éclogas, seja na
descrição da paisagem mítica (ainda que com a presença da vida
real), seja na nomeação dos pastores e na presença de entidades
mitológicas, como as ninfas.
Em outra écloga, a XV, Corebo e Palermo conversam sobre
as glórias do passado e repassam, cada um, seus momentos de
pastores, isto é, de amantes de pastoras e de guiadores do pasto.
Mas agora lamentam pela perda. Por isso, identificados pelo
mesmo destino, consolam-se e oferecem-se como apoio mútuo:
Em ordem direta seria algo como: “O aspecto da verdade
veste o engano para avaliar o melhor vício. Porém, a mísera
porfia do tempo, duro fiscal, lhe mostra a falsidade”. Em
outros termos, a falsidade é desmascarada com o tempo, ela não
consegue permanecer para sempre oculta.
Quanto ao soneto XI, destaque para a antítese também do
segundo quarteto:
Formosa é Daliana; o seu cabelo,
A testa, a sobrancelha é peregrina;
Mas nada tem, que ver coa bela Eulina,
Que é todo o meu amor, o meu desvelo:
Parece escura a nove em paralelo
Da sua branca face; onde a bonina
As cores misturou na cor mais fina,
[...]
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Que faz sobressair seu rosto belo.
[...]
poética à mitologia greco-romana (ninfas, Zéfiro, Apolo,
etc.) como meio de compor o cenário bucólico. Além disso,
há a presença dos pastores, do campo, etc. Por esse motivo,
estabelecer um ponto de contato com Jesus Cristo não é difícil.
Em especial, pelo fato de Cristo se apresentar como o pastor das
ovelhas, aquele que as guia. Esse é o tema de uma das cantatas,
a número I, que apresenta como vozes as entidades inanimadas
Fé e Esperança. Ambas exaltam Cristo como luz, como o que
ilumina a tudo e a todos, por isso pode ser o Guia:
Nele, aproximam-se o branco e o escuro, para criar o
contraste desejado. Nos sonetos VII e VIII, o poeta trata
das coisas fugidias, da efemeridade da vida, tema tão caro aos
escritores barrocos. A mudança do mundo, a passagem do tempo
são indicativos dessa efemeridade. A única solução para isso é a
memória, é a manutenção do tempo que se esvai pela lembrança
e pela escrita:
Fé.
Mas ah! Que de prazer, e de alegria
Respirar posso apenas. Todo o campo
Florescente se vê. Estão cobertos
Os claros horizontes
De nova luz, de novo sol os montes.
VII
Onde estou? Este sítio desconheço:
Quem fez tão diferente aquele prado?
Tudo outra natureza tem tomado;
E em contemplá-lo tímido esmoreço.
[...]
Esp.
Melhor luz não espere
ver o mundo jamais.
Concorram todos
A este luminoso
Assento; aonde habita
Aquele sol, que a vida ressuscita.
VIII
[...]
Tudo me está a memória retratando;
Que da mesma saudade o infame ruído
Vem as mortas espécies despertando.
As demais cantatas ficam na temática típica árcade, com
pastores, ovelhas, campo, etc.
Quanto à ode, poema que lembra a cantata pelo que tem de
relação com a música, há uma dedicada a John Milton (1608
- 1674), escritor, político, dramaturgo e estudioso de religião.
Milton é autor do conhecido Paraíso Perdido, importante poema
épico de temática religiosa escrito na prisão para onde fora
mandado por sua participação no episódio que tentou fazer da
Inglaterra uma república sob a liderança de Olivier Cromwell.
Na ode, Cláudio exalta a figura de Milton tanto por seu
trabalho como político como pelo talento literário, por ter escrito
um dos mais belos poemas que falam sobre a queda do homem
do Paraíso. O poema foi escrito bem antes da participação de
Cláudio Manuel no movimento inconfidente, mas, demonstra
ideias que iriam se fundamentar melhor ao longo de sua vida
acerca da esfera política, acerca das questões de Estado:
[...]
Ah não: oiça-se o brado
Da Épica Trombeta: o rapto admiro,
E já no dúbio giro
Longe de me aterrar o Dragão fera,
Arrancadas montanhas ver espero
Do Trono de Sião, vingada a injúria,
Confunde-te, oh soberbo, e rende a fúria. [...]
Nas cançonetas, Cláudio consegue criar um interessante
contraste entre cada um dos nove conjuntos de quadras que
compõem os poemas. O poema “À lira desprezo” se contrapõe
todo em “À lira palinódia”. Trata-se de um artifício poético e
um meio de mostrar criatividade no manejo dos versos. Isso
porque o termo palinódia significa retratação do que se afirmara
em outro poema. Como exemplo, citemos o primeiro conjunto
de quadra de cada um dos poemas:
Que busco, infausta lira,
Que busco no teu canto,
Se ao mal, que cresce tanto,
Alívio me não dás?
A alma, que suspira,
Já foge de escutar-te:
Que tu também és parte
De meu saudoso mal.
[...]
Vem, adorada Lira,
Inspira-me o teu canto:
Só tu a impulso tanto
Todo o prazer me dás.
Na mesma linha temática de exaltação de personalidades
mortas, há que se destacarem os três epicédios, poemas em
que se verifica um elogio fúnebre. O primeiro é dedicado a
António Gomes Freire de Andrade, o conde de Bobadela, e não
o governador de Minas, que tinha o mesmo nome. Andrade
governou o Rio de Janeiro entre 1733 e 1763. Apoiava os
artistas e é um dos heróis de O Uraguai, poemeto épico escrito
pelo árcade Basílio da Gama. O segundo epicédio é dedicado
a um dos pastores companheiros de Cláudio chamado Salício.
O poeta dedica ainda uma écloga a ele, a de número XI, mais
esse epicédio. Trata-se de um poema revelador de certo exagero,
ao comparar Salício a Orfeu e outros escritores, uma vez que
só o conhecemos hoje pelo poema. Trata-se, ainda assim, de
uma homenagem em um clima de defesa dos iguais, dos pares.
Já a alma não suspira;
Pois chega a escutar-te:
De todo, ou já em parte
Vai-se ausentando o mal.
[...]
Como se pode perceber, se no primeiro caso a poesia pouco
alívio daria ao eu lírico, no segundo é ela a responsável pelo
alento, pelo remédio para curar o sofrimento. Todo o restante
dos dois poemas se assenta sobre as diferenças entre um e outro.
Por esse motivo, é que afirmamos ser mais um meio de revelar
engenhosidade que expressão de um sentimento real.
Um dos aspectos mais comuns do Arcadismo é a recorrência
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Exercícios
Importante lembrar que a vida cultural era basicamente restrita
às Academias, onde os poetas encontravam respaldo mútuo de
seu trabalho. Fora desse círculo, a receptividade era bem baixa
na Colônia, dominada pelo analfabetismo e por necessidades
que, supostamente, vêm antes da fruição da arte, ainda que a
inspirem, como as necessidades de subsistência, de dignidade,
de liberdade, etc. Por isso, a exaltação de um artista pouco
conhecido hoje, mas importante para o momento:
1. (ENEM)
Torno a ver-vos, ó montes; o destino
Aqui me torna a pôr nestes outeiros,
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros
Pelo traje da Corte, rico e fino.
Aqui estou entre Almendro, entre Corino,
Os meus fiéis, meus doces companheiros,
Vendo correr os míseros vaqueiros
Atrás de seu cansado desatino.
[...]
Vive entre nós ainda na memória,
A que ele nos deixou, eterna glória;
Dispêndios preciosos de um engenho,
Ou já da natureza desempenho,
Ou para a nossa dor só concedido.
Salício, o pastor nosso, tão querido,
Prodígio foi no raro do talento,
Sobre todo o mortal merecimento;
E prodígio também com ele agora
Se faz a mágoa, que o lastima e chora.
Se o bem desta choupana pode tanto,
Que chega a ter mais preço, e mais valia
Que, da Cidade, o lisonjeiro encanto,
Aqui descanse a louca fantasia,
E o que até agora se tornava em pranto
Se converta em afetos de alegria.
Cláudio Manoel da Costa. In: Domício Proença Filho.
A poesia dos inconfidentes. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2002, p. 78-9.
Apesar de Cláudio ser rico, estar bem posicionado
profissionalmente, como juiz, abraçou, anos mais tarde, na
década de 80 (1789), a causa da Inconfidência Mineira,
movimento de insurreição contra a coroa portuguesa, o que o
levou à morte no mesmo ano. Antes disso, iniciou a composição
do poema épico Vila Rica, pronto em 1773, porém publicado
somente em 1839. O poema também foi dedicado ao Conde de
Bobadela, António Gomes Freire de Andrade.
O texto trata sobre como Minas Gerais foi fundada a partir
da saga dos bandeirantes paulistas no desbravamento dos sertões,
as lutas contra os emboabas indígenas, até a fundação da cidade
de Vila Rica, hoje Ouro Preto. Trata-se de uma obra malograda,
cuja realização ficou aquém do projeto inicial.
Escrito em dez cantos, utilizou-se dos expedientes estéticos
árcades de que dispunha, seguindo a lição de Camões, ainda que
com diferenças estruturais.
Considerando o soneto de Cláudio Manoel da Costa e os
elementos constitutivos do Arcadismo brasileiro, assinale a
opção correta acerca da relação entre o poema e o momento
histórico de sua produção.
(A) Os “montes” e “outeiros”, mencionados na primeira estrofe,
são imagens relacionadas à Metrópole, ou seja, ao lugar onde
o poeta se vestiu com traje “rico e fino”.
(B) A oposição entre a Colônia e a Metrópole, como núcleo
do poema, revela uma contradição vivenciada pelo
poeta, dividido entre a civilidade do mundo urbano da
Metrópole e a rusticidade da terra da Colônia.
(C) O bucolismo presente nas imagens do poema é elemento
estético do Arcadismo que evidencia a preocupação do
poeta árcade em realizar uma representação literária
realista da vida nacional.
(D) A relação de vantagem da “choupana” sobre a “Cidade”,
na terceira estrofe, é formulação literária que reproduz a
condição histórica paradoxalmente vantajosa da Colônia
sobre a Metrópole.
(E) A realidade de atraso social, político e econômico do Brasil
Colônia está representada esteticamente no poema pela
referência, na última estrofe, à transformação do pranto
em alegria.
CANTO I
Cantemos, Musa, a fundação primeira
Da Capital das Minas, onde inteira
Se guarda ainda, e vive inda a memória
Que enche de aplauso de Albuquerque a história.
Tu, pátrio Ribeirão, que em outra idade
Deste assunto a meu verso, na igualdade
De um épico transporte, hoje me inspira
Mais digno influxo, porque entoe a Lira,
Por que leve o meu Canto ao clima estranho
O claro Herói, que sigo e que acompanho:
Faze vizinho ao Tejo, enfim, que eu veja
Cheias as Ninfas de amorosa inveja. [...]
2. (Fatec-SP) Sobre o Arcadismo brasileiro só não se pode
afirmar que:
(A) tem suas fontes nos antigos grandes autores gregos e latinos,
dos quais imita os motivos e formas.
(B) teve em Cláudio Manuel da Costa o representante que, de
forma original, recusou a motivação bucólica e os modelos
camonianos da lírica amorosa.
(C) nos legou os poemas de feição épica Caramuru (de Frei
José de Santa Rita Durão) e O Uraguai (de Basílio da
Gama), no qual se reconhece qualidade literária destacada
em relação ao primeiro.
(D) norteou, em termos dos valores estéticos básicos, a produção
dos versos de Marília de Dirceu, obra que celebrizou
Tomás Antônio Gonzaga e que destaca a originalidade de
estilo e de tratamento local dos temas pelo autor.
A trajetória poética de Cláudio Manuel da Costa vem
do Barroco, revela-se no Arcadismo e é, de certa forma,
anunciadora do Romantismo, no que diz respeito aos ideais
libertários da Inconfidência, amparados na tríade liberdadeigualdade-fraternidade. Trata-se de um poesia ruim em alguns
momentos, confusa em outros, mas que se salva na maior parte,
sobretudo nos poemas em que soube conciliar a estética árcade à
tematização da paisagem mineira.
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(E) apresentou uma corrente de conotação ideológica,
envolvida com as questões sociais do seu tempo, com a
crítica aos abusos de poder da Coroa Portuguesa.
5. (Vunesp) Um dos elementos que diferenciam Cláudio
Manuel da Costa de outros poetas do Arcadismo brasileiro
é o fato de ainda conservar algumas características do estilo
barroco. No poema transcrito, a presença barroca se dá no
rebuscamento sintático causado pelas inversões, atenuadas
por exigência do ritmo e da rima. Sabendo que as inversões
de ordem sintática acontecem em todas as estrofes,
a) reescreva a segunda estrofe de modo a preservar a colocação
normal pedida pela sintaxe.
Instrução. As questões de números 3 a 5 têm como base este
poema de Cláudio Manuel da Costa:
Onde estou? Este sítio desconheço:
Quem fez diferente aquele prado?
Tudo outra natureza tem tomado;
E em contemplá-lo tímido esmoreço.
6. (PUC-PR) É só a partir do Arcadismo que começa a surgir
Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço
De estar a ela um dia reclinado.
Ali em vale um monte está mudado:
Quanto pode dos anos o progresso!
Árvores aqui vi tão florescentes,
Que faziam perpétua a primavera:
Nem troncos vejo agora decadentes.
Eu me engano: a região esta não era:
Mas que venho a estranhar, se estão presentes
Meus males, com que tudo degenera!
(Cláudio Manuel da Costa: Sonetos (VII). In:
RAMOS, Péricles Eugênio da Silva (Intr., sel. e
notas): Poesia do Outro - Antologia. São Paulo:
Melhoramentos, 1964, p. 47.)
no país uma relação sistemática entre autor, obra e público,
que caracterizam um sistema literário. Aponte a alternativa
que melhor descreve esse período.
(A) Busca da simplicidade, racionalismo, imitação da
natureza, caráter pastoril, imitação dos clássicos, ausência
de subjetividade.
(B) Individualismo e subjetivismo, culto à Natureza,
evasão, liberdade artística, culto à mulher amada,
sentimentalismo, indianismo, nacionalismo.
(C) Subjetivismo, efeito de sugestão, musicalidade,
irracionalismo, mistério.
(D) Liberdade, de expressão, incorporação do cotidiano,
linguagem coloquial, inovação técnica, ambiguidade,
paródia.
(E) Racionalismo, incorporação do cotidiano, culto à mulher
amada, imitação dos clássicos, efeito de sugestão.
3. (Vunesp) O estilo neoclássico, fundamento do Arcadismo 7. (UFMT) Leia o poema do poeta árcade Cláudio Manoel da
brasileiro, de que fez parte Cláudio Manuel da Costa,
caracteriza-se pela utilização das formas clássicas
convencionais, pelo enquadramento temático em paisagem
bucólica pintada como lugar aprazível, pela delegação
da fala poética a um pastor culto e artista, pelo gosto
das circunstâncias comuns, pelo vocabulário de fácil
entendimento e por vários outros elementos que buscam
adequar a sensibilidade, a razão, a natureza e a beleza. Dadas
estas informações,
a) indique qual a forma convencional clássica em que se
enquadra o poema.
b)
transcreva a estrofe do poema em que a expressão da
natureza aprazível, situada no passado, domina sobre a
expressão do sentimento da personagem poemática.
4. (Vunesp) A crítica literária brasileira tem ressaltado que
o terceiro verso do poema é aquele que concentra o tema
central. Essa mesma crítica, por outro lado, anotou com
propriedade a importância do décimo segundo verso: este
verso exprime uma mudança de atitude, que se corrige nos
versos finais graças à descoberta, feita pelo eu poemático, da
verdadeira causa do fenômeno descrito em todo o poema.
Responda:
a) Qual o tema que o terceiro verso concentra? Transcreva
outros dois versos que o repercutem.
b)
A que causas o eu poemático atribui o fenômeno observado
na natureza?
Costa e responda à questão a seguir:.
VIII
Este é o rio, a montanha é esta,
Estes os troncos, estes os rochedos;
São estes inda os mesmos arvoredos;
Esta é a mesma rústica floresta.
Tudo cheio de horror se manifesta,
Rio, montanha, troncos, e penedos;
Que de amor nos suavíssimos enredos
Foi cena alegre, e urna é já funesta.
Oh quão lembrado estou de haver subido
Aquele monte, e as vezes, que baixando
Deixei do pranto o vale umedecido!
Tudo me está a memória retratando;
Que da mesma saudade o infame ruído
Vem as mortas espécies despertando.
(MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através de
textos. São Paulo: Cultrix, 1986.)
A respeito do texto, assinale a afirmativa verdadeira:
(A) A natureza é cenário tranquilo, descrita sem levar em
conta o estado de espírito de quem a descreve, como ocorre
no Romantismo.
(B) O poema faz elogio ao pastoralismo, criticando os males
que o meio urbano traz ao homem.
(C) Exemplo típico do Arcadismo, o poema apresenta a
primazia da razão sobre a emoção, revelando a influência
da lógica iluminista.
(D) A antítese “Foi cena alegre, e urna é já funesta” resume o
poema, indicando a passagem do tempo e a lembrança do
amor perdido.
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(E) Faz referência à constância da vida, à previsibilidade do
destino, recomendando que se aproveite o dia.
10. (UFSM-RS) Assinale a alternativa INCORRETA a respeito
de Cláudio Manuel da Costa.
a) Além da produção lírica, escreveu um poema de caráter épico
que se intitula “Vila Rica”.
b) Sob o pseudônimo árcade de Glauceste Satúrnio, compôs
uma poesia em que é marcante a imagem da pedra.
c) Compôs poemas marcados pela condição do pastor que
procura a natureza como refúgio.
d) Cultiva a forma do soneto em que explora temas como a
infelicidade amorosa.
e) Sua produção poética costuma ser dividida pela crítica em
lírica, satírica e religiosa.
8. (Mackenzie-SP) Assinale a alternativa que apresenta
comentário crítico adequado à obra de Cláudio Manuel da
Costa, poeta do Arcadismo brasileiro.
(A) ... sua poesia prolonga uma atmosfera lírica e moral que
descortinamos na poesia camoniana, evidente no emprego
constante da antítese, do paradoxo e do racionalismo ...
(B) ... a essência doutrinária revela um homem primitivo,
apegado ainda à idade Média: os poemas respiram uma fé
inabalável, intocada pelos ventos críticos da Renascença.
(C) ... o sentimento amoroso se espraia livremente; nota-se
que o poeta infringe os princípios clássicos da contenção e
manifesta a emoção dum modo tal que seus versos acabam
adquirindo foros de crônica amorosa.
(D) ...é preciso ver na força desse poeta o ponto exato em que o
mito do bom selvagem, constante desde os árcades, acabou
por fazer-se verdade artística.
(E) ... os seus versos agradaram, e creio que ainda possam
agradar aos que pedem pouco à literatura: uma expressão
fácil, uma sintaxe linear, uma linguagem coloquial e
brejeira...
9. (Fafipa-PR) Leia o texto:
Os Inconfidentes
Na tranquila varanda de Gonzaga,
Sob os livros de Cláudio Manuel,
Solenes se reúnem, proclamando
A revolta do sonho e do papel.
11. (Unimontes-MG) Leia os textos a seguir:
Texto 1 - Soneto VI
Brandas ribeiras, quanto estou contente
De ver-nos outra vez, se isto é verdade!
Quanto me alegra ouvir a suavidade,
Com que Fílis entoa a voz cadente!
Os rebanhos, o gado, o campo, a gente,
Tudo me está causando novidade:
Oh como é certo, que a cruel saudade
Faz tudo, do que foi, mui diferente!
Recebei (eu vos peço) um desgraçado,
Que andou té agora por incerto giro
Correndo sempre atrás do seu cuidado:
Este pranto, estes ais, com que respiro,
Podendo comover o vosso agrado,
Façam digno de vós o meu suspiro.
Texto 2 – “Fábula do Ribeirão do Carmo”
Aonde levantado
Gigante, a quem tocara,
Por decreto fatal de Jove irado,
A parte extrema, e rara
Desta inculta região, vive Itamonte,
Parto da terra, transformado em monte;
Entre o gamão e o chá fazem as leis
Da perfeita república. No sono
Dos sobrados mineiros, verbalmente,
Resgatam pátrias, justiciam tronos.
Guardam as armas sob o travesseiro.
Vestem capas do roxo mais poético.
Convertem curas, mascates, sapateiros.
São generosos, líricos, patéticos.
Com base na leitura e interpretação dos textos “Soneto VI”
e “Fábula do Ribeirão do Carmo”, de Cláudio Manuel da
Costa, assinale a alternativa que está INCORRETA.
José Paulo Paes, “Os inconfidentes”
Assinale o que for errado quanto aos poetas retratados no
texto acima:
(A) Gonzaga é o Tomás Antônio Gonzaga, apaixonado pela
jovem Maria Joaquina Doroteia de Seixas, autor dos
poemas líricos de “Marília de Dirceu”.
(B) Cláudio Manuel da Costa é o introdutor do Arcadismo no
Brasil, com “Obras Poéticas”.
(C) Os dois poetas retratados são representantes do Barroco no
Brasil.
(D) Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa são
poetas que se destacaram no Arcadismo brasileiro.
(E) Ambos se envolveram no processo da Inconfidência
Mineira. Gonzaga foi condenado ao degredo em
Moçambique e Cláudio Manuel foi preso e encontrado
morto (enforcado) na cadeia, em 4 de julho de 1789.
A) No texto 2, o poeta utiliza a imagem da penha e de
personagens da mitologia greco-latina para celebrar a sua
terra natal.
B) O texto 1 é um poema lírico, cujo poeta expressa tristeza
diante da mudança da paisagem que encontra quando
retorna à sua terra natal.
C) Nos textos 1 e 2, o poeta incorpora o elemento local para
elaborar uma poesia épica, que narra a fundação de Vila
Rica.
D) O texto 1 é uma lírica que cultiva o gênero bucólico e a
imagem do poeta peregrino.
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CAPÍTULO II - Iracema, de José de Alencar: o instinto da nacionalidade.
O século XIX ficou marcado por diversos acontecimentos
que ajudaram a construir o Brasil como nação. Primeiro, a vinda
da família real, a corte de D. João VI, ao Rio de Janeiro em
1808, fugindo das guerras napoleônicas, depois a Independência
em 1822 e, mais tarde, a proclamação da República em 1889.
Naquele século, foram esses os fatos mais agudos da nossa
história, outros tantos colaboraram para moldar a cultura
nacional. Entre eles, a escola romântica iniciada, oficialmente,
em 1836 com a publicação de Suspiros poéticos e saudades, de
Gonçalves de Magalhães.
Anos depois, um dos grandes escritores românticos iniciou
sua carreira literária. Trata-se de José de Alencar, cearense de
nascimento, mas que esteve boa parte de sua vida na capital do
Império. Nasceu em 1829. Entre idas e vindas, formou-se em
Direito em 1850, tendo exercido a profissão de advogado, bem
como o cargo de ministro da Justiça. Mas, foi como escritor que
veio a se tornar efetivamente conhecido e notabilizou-se.
Em 1854, passou a escrever crônicas sob o título geral de Ao
Correr da Pena no Correio Mercantil. Dois anos depois, publicou
seu primeiro romance, Cinco minutos, e, no ano seguinte, um
dos seus principais livros, O guarani. Este livro segue uma
das tendências românticas de buscar o elemento nacional,
representado simbolicamente no índio, por ser o povo original
dessas terras. Evidente que Alencar e outros escritores do período
não queriam viver como índios, nem achavam que o Brasil
deveria adotar a cultura indígena como a adequada para o país.
O objetivo era, antes, encontrar os traços da nacionalidade para
incutir no povo o amor à terra, os valores locais, para diferenciar
o Brasil de outras nações. Em resumo, buscava-se edificar o
sentimento de nacionalidade.
Tal assunto vai dominar todo o século XIX, ora sob base
idealizada, como fizeram os românticos, ora sob vertente mais
crítica, como empreenderam os naturalistas. Em 1873, por
exemplo, o jovem Machado de Assis escreve um ensaio, Instinto
de nacionalidade, para determinar o que seria a nacionalidade na
literatura.
Alencar, seguindo esse espírito nacional, quis dar uma visão
de conjunto da nacionalidade, ao escrever romances de temática
e foco nas diversas regiões e assuntos brasileiros. Ele mesmo, em
prefácio a Sonhos d’ouro, um de seus romances, divide a própria
obra em quatro linhas temáticas, depois extrapoladas para os
demais romancistas.
a) Romance urbano, como Lucíola e Senhora.
b) Romance regionalista, como O Gaúcho e O Sertanejo.
c) Romance indianista, como Iracema e Ubirajara.
d) Romance histórico, como O Guarani e As Minas de Prata.
Nesse prefácio, afirma Alencar:
[...] a literatura nacional que outra coisa é senão a alma
da pátria, que transmigrou para este solo virgem com uma
raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana desta terra
que lhe serviu de regaço; e a cada dia se enriquece ao contato
de outros povos e ao influxo da civilização? [...] Sobretudo
compreendam os críticos a missão dos poetas, escritores e
artistas, nesse período especial e ambíguo da formação de uma
nacionalidade. São estes os operários incumbidos de polir o talhe
e as feições da individualidade que se vai esboçando no viver do
povo.
Observe a clareza do projeto, “... a literatura nacional que
outra coisa é senão a alma da pátria,”. Era preciso, pois, por
meio de romances, de poemas, de ensaios, crônicas, fazer valer
essa máxima e incutir nos brasileiros a alma patriótica. Um dos
caminhos foi a tematização indígena.
José de Alencar escreveu três romances nessa linha: O
Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874). Também
iniciou um poema épico de temática indígena, Os filhos de Tupã,
mas percebeu que não tinha talento para a poesia e abandonou o
projeto com quatro dos dez cantos previstos.
Iracema recebe o subtítulo de A lenda do Ceará, isso porque
Alencar colheu alguns elementos históricos sobre a origem da
então província, mesclou-os a elementos da sua imaginação
e criou um dos mais belos romances da literatura brasileira,
chamado por muito como poema em prosa.
Talvez para o leitor atual haja uma dificuldade de apreensão
da história por conta da linguagem romântica de então.
Superada essa dificuldade, poderá perceber quão belo é o
enredo. Da sucessão de acontecimentos que constituem o livro,
o essencial é a paixão proibida entre uma jovem índia e um
guerreiro português. Da união, nascerá uma criança, chamada
Moacir, e tida como o primeiro cearense, segundo dizeres do
próprio romance.
O primeiro livro de Alencar a tratar do índio, sem ser
especificamente indianista, é O guarani. Publicado no ano
seguinte à polêmica em torno de A confederação dos tamoios,
de Gonçalves de Magalhães, o romance marca a tônica do
indianismo alencariano, de Iracema, Os filhos de Tupã e
Ubirajara.
Alencar escrevera antes algumas resenhas críticas sobre
o poema de Magalhães. Na verdade, foram cartas públicas
assinadas sob o pseudônimo de Ig. Nelas, afirma a necessidade
de se abandonar “as ideias de homem civilizado” a fim de
compor um poema nacional, um texto literário que tivesse como
tema a natureza brasileira e seus habitantes primeiros, os índios.
Consequentemente, deveria o escritor aproximar-se o mais
possível do jeito de ser e de falar do selvagem.
A mesma censura fará o romancista a Gonçalves Dias, na
Carta ao Dr. Jaguaribe, pós-escrita à Iracema. Embora reconheça
no poeta primazias na construção da literatura nacional, vê
com ressalvas o modo de falar do índio gonçalvino, tendo em
vista que “os selvagens [...] falam uma linguagem clássica; [...]
eles exprimem ideias próprias do homem civilizado, e que não
é verossímil tivessem no estado da natureza” (1960, vol. III, p.
306).
A solução preconizada por Alencar é que “a língua civilizada
se molde quanto possa à singeleza primitiva da língua bárbara”
(1960, vol. III, p. 306).
Entre as cartas encontram-se O guarani e Iracema. No
primeiro caso, não se pode dizer que Alencar teria cumprido
o intento anunciado. Encontraremos uma realização mais
próxima do que idealizara no segundo romance e em Ubirajara
. De qualquer modo, o autor não frustrou totalmente o leitor,
afinal, percebem-se na fala de Peri, como o uso de símiles, do
período simples e/ou orações coordenadas, uma singeleza e uma
simplicidade, que exprimem conceitos através de elementos
concretos da natureza. Ou seja, o símile é recurso largamente
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usado na medida em que, pela comparação com a natureza, o
índio expressa sua visão de mundo, seus conceitos, conforme
poderemos ver adiante em um dos trechos de Iracema.
Alencar sabe que, com O guarani e com Iracema, estava
criando um índio não propriamente real, e sim ideal; ao mesmo
tempo projetava uma literatura ideal, que se tem de ir à Europa
buscar uma tradição primeira, pode e deve aos poucos abandonar
o modelo europeu para constituir-se independente. Um dos
caminhos seria o indianismo, mas não o único, conforme
se depreende da vasta produção do escritor. Na prática, a
questão passa por uma tematização de assuntos locais com uma
linguagem própria:
“O conhecimento da língua indígena [...] nos dá não só o
verdadeiro estilo, como as imagens poéticas do selvagem, os
modos de seu pensamento, as tendências de seu espírito”.
Não por acaso, em Ubirajara, o português (ou qualquer
europeu) é excluído da narrativa (apenas se pressagia sua
chegada ao final da narrativa). É como se, na década de 1870,
Alencar percebesse na literatura brasileira uma capacidade
de desenvolver-se por si mesma, sem mais a necessidade de
submissão a um modelo qualquer, em especial o europeu. Claro,
não se trata de um fato, mas da visão de um escritor. É como
se o índio, ou antes, o brasileiro, pudesse começar a viver por si
mesmo, sem ter de “sacrificar-se” ao branco europeu, passando a
fornecer-lhe uma tradição cultural.
As mesmas considerações são feitas por Machado, com visão
menos apaixonada e mais crítica, sobre a ideia de que a literatura
nacional deveria, antes de continuar procurando o típico, o
local, estar aberta a todos os temas, a todos os assuntos. Dessa
maneira, poderia aspirar a uma posição de destaque em relação à
literatura europeia.
Em Iracema, o discurso de Martim e também o do narrador
pouco se diferem do dos indígenas. Com isso, ocorre aquilo
que o poeta e crítico literário Haroldo de Campos chamou
de “tupinizar o português”. Sob outra óptica, o processo de
apropriação da linguagem pode ser analisado como ardil,
como estratégia de dominação cultural. Fala-se mais ou menos
conforme o outro para conquistar-lhe a simpatia, mas mantém
o distanciamento suficiente para demarcar a separação cultural,
como o caso do pe. José de Anchieta, no período colonial.
Segundo as considerações articuladas por Alencar em diversos
textos, como no pós-escrito a Iracema ou A questão filológica ou
ainda no pós-escrito a Diva, pode-se concluir que o ficcionista
via no português elemento decisivo para a miscigenação, que
possibilitaria o nascimento da raça e da nação brasileiras; em
matéria de idioma esse mesmo português, por outro lado, não
poderia impedir as mudanças que o tempo iria operando no
uso da língua portuguesa sob outro solo, na aproximação com
outras línguas, indígenas ou mesmo africanas. É o que afirma
categoricamente na Questão filológica:
As línguas, como todo o instrumento da atividade humana,
obedecem à lei providencial do progresso; não podem parar
definitivamente.
(1960, vol. IV, p. 980)
Em Iracema, José de Alencar construiu uma alegoria do
processo de colonização do Brasil. Conforme estudos diversos, o
nome da heroína, Iracema, é um anagrama da palavra América.
E Martim é uma referência ao deus greco-romano Marte,
o deus da guerra e da destruição. Percebe-se, pois, nos nomes
dos personagens principais essa mistura, esse amálgama entre
a cultura local e a necessidade de manter-se preso à cultura
europeia, posto que também colaborou decisivamente para a
construção da nacionalidade.
Iracema, conhecida como a virgem dos lábios de mel, é uma
índia tabajara, e Martim, um guerreiro português amigo dos
potiguaras, que lutavam exatamente contra os tabajaras, aliados
dos franceses, pela posse da terra. Encontram-se logo na primeira
cena do romance. Iracema tomava banho em uma cachoeira e
Martim, que andava perdido pelo campo dos tabajaras, fica
observando-a. Segundo o preceito do livro (a mescla cultural),
Iracema se apresenta como uma Diana, caçadora, e atira, para
se defender, uma seta contra o guerreiro estranho. Arrependida,
passa a cuidar dele e o leva até sua tribo, onde, embora inimigo,
é recebido como hóspede.
Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro
estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta.
Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos
o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos
cobrem-lhe o corpo.
Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha
embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face
do desconhecido. (p. 239)
A índia era a responsável pela manipulação da jurema, uma
bebida alucinógena, que possuía, conforme a crença indígena,
importantes propriedades espiritualistas. É o cauim, feito à base
de mandioca, e descrito no livro como o “vinho de Tupã”. Por
esse motivo, tinha de permanecer virgem, para poder preparar
o cauim e servir apenas aos seus. No entanto, mutuamente
apaixonados, Martim pede-lhe para que lhe dê um pouco da
bebida. Quer participar mais dos segredos de Iracema.
Quando a virgem tornou, trazia numa folha gotas de verde
e estranho licor vazadas da igaçaba, que ela tirara do seio da
terra. Apresentou ao guerreiro a taça agreste:
— Bebe!
Irapuã era um pretendente de Iracema. Ao perceber o que
se passava entre a índia e o português, decide matar Martim,
mesmo sob as ordens expressas de Araquém que determinara que
o hóspede nada deveria sofrer.
— Filha de Araquém, não assanha o jaguar. O nome de
Irapuã voa mais longe que o goaná do lago, quando sente a
chuva além das serras. Que o guerreiro branco venha, e o seio de
Iracema se abra para o vencedor.
— O guerreiro branco é hóspede de Araquém. A paz o
trouxe aos campos de Ipu, a paz o guarda. Quem ofender o
estrangeiro, ofende o Pajé.
Preocupada, Iracema encontra Poti, que ajuda Martim
a fugir. Irapuã, porém, vai atrás de Martim. Iracema tem
de intervir. E todos retornam à tribo dos tabajaras, diante de
Araquém, pai de Iracema e pajé. Irapuã conta o que descobrira e
quer a morte de Martim. Mas Araquém, seguindo a lei indígena,
diz:
— Se a virgem abandonou ao guerreiro branco a flor de seu
corpo, ela morrerá; mas o hóspede de Tupã é sagrado; ninguém o
ofenderá; Araquém o protege.
Este é o momento crucial da narrativa. Mesmo diante das
ordens do pajé, Irapuã está decidido a matar a Martim. Poti,
dos potiguaras, aliado do português, e também Caubi, irmão de
Iracema, armam um plano de fuga para Martim. Iracema detém
os guerreiros de Irapuã, servindo-lhes o cauim. Como seria a
despedida do casal, Martim pede à índia que lhe sirva de novo o
cauim para que, em delírio, pudesse amar Iracema. No entanto,
o delírio se realiza de fato. Enquanto Martim imagina estar se
relacionando com Iracema apenas em sonho, ela se aproxima
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dele e têm o primeiro relacionamento sexual. O narrador, de
modo bastante sintético, diz:
Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras.
Martim, porém, fica sabendo o que se passara apenas quando
já se encontra em terras potiguaras. Iracema revela então ao
amante que tiveram relações de fato e não apenas na imaginação.
Por essa razão, ela agora é sua esposa. Ante a surpresa, Martim
sabe que não pode deixar Iracema, pois seria morta pelos
próprios tabajaras como vingança à traição. Assim, leva-a para
morar na praia.
Nos primeiros meses, vivem bem. Iracema engravida.
Mas Martim tem alma de guerreio e acaba por “saturar-se
de felicidade”. Por isso, o português passa a se ausentar com
frequência em caçadas e batalhas. Durante boa parte da gestação,
Iracema fica sozinha e fraca com a gravidez. Mesmo com tanto
sofrimento, a índia dá ao filho o nome de Moacir, que significa
“filho da dor”.
Iracema, sentindo que se lhe rompia o seio, buscou a margem
do rio, onde crescia o coqueiro.
Estreitou-se com a haste da palmeira. A dor lacerou suas
entranhas; porém logo o choro infantil inundou sua alma de
júbilo.
A jovem mãe, orgulhosa de tanta ventura, tomou o tenro
filho nos braços e com ele arrojou-se às águas límpidas do rio.
Depois suspendeu-o à teta mimosa; seus olhos então o envolviam
de tristeza e amor.
— Tu és Moacir, o nascido de meu sofrimento.
Avisado por Caubi, que fora visitar a irmã, Martim retorna a
sua morada onde encontra a amante moribunda com o filho nos
braços, o qual sobrevive graças ao pouco leite que ainda vertia de
seus seios. Ao vê-lo, sorri pela última vez e morre. Martim toma
Iracema e, com a ajuda de Poti, enterra-a ao pé de um coqueiro,
à beira do rio. Diz Poti:
– Quando o vento do mar soprar nas folhas, Iracema
pensará que é tua voz que fala entre seus cabelos.
Depois disso, Martim parte com o filho para longe da terra.
Interessante que o narrador faz um comentário profético:
O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da
pátria.
Havia aí a predestinação de uma raça?
Ainda sobre a relação dos dois, todo o ato é bastante
simbólico. Martim quer ter Iracema, mas sabe que isso
provocaria a destruição dela. José de Alencar, ao narrar que o
intento se realiza de modo inconsciente, exclui a culpa de
Martim, descrito como honrado. A colonização portuguesa
somente poderia se realizar desse mesmo modo. A posse da terra
levaria à destruição da cultura indígena. O mesmo princípio
está em “O canto do piaga”, de Gonçalves Dias. Enquanto,
porém, no poema os portugueses são enfocados como vilões,
em Alencar há uma tentativa de compreensão do processo.
O Brasil, o brasileiro, somente poderia se constituir por meio
de um processo que levaria à perda de elementos culturais. A
razão dessa diferença reside no fato de Dias estar mais perto
da Independência, quando houve um acirramento entre os
portugueses e os brasileiros, e Alencar, conforme já se afirmou,
percebeu que a nacionalidade não seria fruto de uma única raça.
O elemento português foi determinante para a criação do Brasil,
e isso não poderia ser simplesmente desprezado.
Essa integração, ainda que com prejuízo maior para os
indígenas, está representada, sobretudo, em dois momentos da
narrativa. Martim, já na taba dos potiguaras, decide batizar-se
segundo a tradição indígena e adota outro nome, Coatiabo, que
significa “guerreiro pintado”.
O estrangeiro tendo adotado a pátria da esposa e do amigo,
devia passar por aquela cerimônia, para tornar-se um guerreiro
vermelho, filho de Tupã.
No final da narrativa, quando Martim retorna de uma
viagem a Portugal, com o objetivo de colonizar de vez a região,
o índio Poti é batizado como cristão e adota o nome de Antônio
Felipe Camarão.
Poti foi o primeiro que se ajoelhou aos pés do sagrado lenho;
não sofria ele que nada mais o separasse de seu irmão branco.
Deviam ter ambos um só deus, como tinham um só coração. Ele
recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do
rei, a quem ia servir, e sobre os dois o seu, na língua dos novos
irmãos. Sua fama cresceu e ainda hoje é o orgulho da terra, onde
ele primeiro viu a luz.
Embora cercado de elementos lendários, ficcionais, próprios
da imaginação do autor, Iracema apresenta diversos aspectos
históricos, entre os quais a presença de Martim, cujo nome
completo era Martim Soares Moreno , e de Poti, que, com
efeito, converteu-se ao cristianismo e adotou o sobrenome
nome de Camarão, mesmo porque, em tupi, potiguar significa
“comedor de camarão”.
Importante lembrar que o indianismo, apesar de temática
nativista, surgiu para a literatura bem antes e em textos de autores
estrangeiros. Houve um indianismo óbvio e sem preocupação
nacionalista nos escritos dos cronistas da colonização, depois em
Montaigne, que abordou questões relativas às leis e à organização
social indígena, mas é com Jean-Jacques Rousseau, no século
XVIII, que se tem o princípio básico do indianismo europeu
e brasileiro, o conceito do “bom selvagem”. Rousseau não se
referia especificamente ao índio, mas ao fato de uma pessoa
ter a índole boa, sobretudo a que vivera anterior ao processo
civilizatório e a que vivia afastada da corrupção social.
Nesse sentido, o índio representaria bem o princípio.
Literariamente, no Brasil, à época de Rousseau, Basílio da
Gama, com O Uraguai, e Santa Rita Durão, com O caramuru,
ocuparam da temática indígena, ainda que não totalmente presos
ao conceito do “bom selvagem”.
Na França de Rousseau, François Chateaubriand publicou
Atala e Les Natchez, e nos EUA, James Cooper explorou
a ideia do índio nobre, dotado de virtudes elevadas em O
último dos moicanos. Em Alencar, bem como em outros
escritores brasileiros, o tema do índio não se prende simples
ou exclusivamente à lógica do “bom selvagem”. Ainda que
possa servir como sustentação narrativa, o mais importante é
tratar do índio como tema nacional. Da união das duas raças
nobres, íntegras (indígena e portuguesa), nasceria uma terceira.
Devido à escravização do negro no século XIX, a importância
dessa outra raça para a formação étnico-cultural só seria mais
largamente explorada pelos modernistas, em que pese alguns
textos anteriores de caráter laudatório ou de denúncia, como os
de Castro Alves.
O índio de Alencar não é propriamente real, mas também
não é irreal. Em Ubirajara, por exemplo, há uma série de notas
explicativas do próprio autor para dar sustentação ao narrado.
Essas notas foram extraídas dos cronistas da colônia, bem como
de estudiosos da cultura indígena da época. Tais notas aparecem
também em O Guarani e em Iracema. Elas formam quase um
texto à parte. Sem elas, é possível, obviamente, compreender
a narrativa, mas com elas, o leitor percebe melhor as razões de
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algumas ações. Há 128 notas em Iracema e 67 no Ubirajara.
Ora, para além do caráter explicativo das notas, há um nítido
objetivo de conferir verossimilhança à narrativa. Trata-se de uma
estratégia narrativa, verificável, de outro modo, nas narrativas
urbanas. Em Senhora, por exemplo, Alencar diz ter ouvido a
história de fonte fidedigna.
Em Iracema, tem-se um narrador que igualmente teria
ouvido a história de fontes específicas (é “uma história que
me contaram nas lindas vargens onde nasci”.). Narra-a em 3a
pessoa, mas sem a objetividade distanciada e neutra que marcaria
os romances naturalistas. Assim, o narrador a todo instante
tece comentários judicativos sobre os personagens e mostrase simpático ao sofrimento de Iracema. Esteticamente, temos
um romance, porém chamado de poema em prosa, haja vista o
cuidado na construção das imagens, bem como a musicalidade
da linguagem empregada.
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no
horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel,
que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais
longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce
como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu
hálito perfumado. Mais rápida que a ema selvagem, a morena
virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua
guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal
roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as
primeiras águas.
Observe as imagens usadas para descrever Iracema. São
diversas comparações com elementos da natureza (asa da
graúna, talhe da palmeira, favo da jati – uma espécie de abelha
– baunilha, ema selvagem, verde pelúcia) com nítida vantagem
para a índia. A comparação, ou metáfora, é um recurso
amplamente usado pela poesia, para a criação de imagens.
Embora não haja rimas, todo o parágrafo poderia se disposto em
forma de versos, obedecendo a cada uma das comparações feitas.
Em conclusão, o livro de Alencar, para o bem ou para o
mal, deixou um legado na construção da imagem indígena, que
colaborou para a construção de uma imagem de nós mesmos.
O brasileiro acolhe o outro, acultura-se, perde sua identidade
original, para permitir a construção de uma nova. Por esse
motivo, o brasileiro é um povo que está sempre em busca de si
mesmo, é um herói ainda sem caráter definido de que falaria,
mais tarde, Mário de Andrade em seu Macunaíma.
(D) Embora tendo sido escrito no período romântico, Iracema
apresenta traços da ficção naturalista tanto na criação das
personagens quanto na tematização dos problemas do país.
(E) O contraponto poético da prosa indianista de Alencar é
constituído pela lírica de Gonçalves Dias. Indiscutivelmente, em
“O canto do guerreiro” e em “O canto do piaga”, dentre outros
poemas, o índio é apresentado de maneira idealizada, numa
perpetuação da imagem heroica e sublime adequada aos ideais
românticos.
2. (UFU-MG) Sobre Iracema, de José de Alencar, podemos
dizer que:
o
1 as cenas de amor carnal entre Iracema e Martim são de tal
forma construídas que o leitor as percebe com vivacidade,
porque tudo é narrado de forma explícita.
2o em Iracema temos o nascimento lendário do Ceará, a história
de amor entre Iracema e Martim e as manifestações de ódio
das tribos tabajara e potiguara.
3o Moacir é o filho nascido da união de Iracema e Martim. De
maneira simbólica, ele representa o homem brasileiro, fruto
do índio e do branco.
4o a linguagem do romance Iracema é altamente poética,
embora o texto esteja em prosa. Alencar consegue belos
efeitos linguísticos ao abusar de imagens sobre imagens,
comparações sobre comparações.
Assinale:
(A)
(B)
(C)
(D)
3. (PUC-SP) A próxima questão refere-se ao texto abaixo.
Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a
jandaia nas frondes da carnaúba; Verdes mares que brilhais
como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as
alvas praias ensombradas de coqueiros; Serenai, verdes mares, e
alisai docemente a vaga impetuosa para que o barco aventureiro
manso resvale à flor das águas.
Esse trecho é o início do romance Iracema, de José de
Alencar. Dele, como um todo, é possível afirmar que:
(A) Iracema é uma lenda criada por Alencar para explicar
poeticamente as origens das raças indígenas da América.
(B) o romance, elaborado com recursos de linguagem figurada, é
considerado o exemplar mais perfeito da prosa poética na ficção
romântica brasileira.
(C) as personagens Iracema, Martim e Moacir participam da luta
fratricida entre os tabajaras e os potiguaras.
(D) o nome da personagem-título é anagrama de América e essa
relação caracteriza a obra como um romance histórico.
(E) a palavra Iracema é o resultado da aglutinação de duas outras
da língua guarani e significa “lábios de fel”.
Exercícios
1. (UEL-PR) Examine as proposições a seguir e assinale a
alternativa incorreta.
(A) A relevância da obra de José de Alencar no contexto romântico
decorre, em grande parte, da idealização dos elementos
considerados como genuinamente brasileiros, notadamente a
natureza e o índio. Essa atitude impulsionou o nacionalismo
nascente, por ser uma forma de reação política, social e literária
contra Portugal.
(B) Ao lado de O guarani e Ubirajara, Iracema representa um mito
de fundação do Brasil. Nessas obras, a descrição da natureza
brasileira possui inúmeras funções, com destaque para a “cor
local”, isto é, o elemento particular que o escritor imprimia à
literatura, acreditando contribuir para a sua nacionalização.
(C) A leitura de Iracema revela a importância do índio na literatura
romântica. Entretanto, sabe-se que a presença do índio não se
restringiu a esse contexto literário, tendo desembocado inclusive
no Modernismo, por intermédio de escritores como Mário de
Andrade e Oswald de Andrade.
se apenas 2 e 4 estiverem corretas.
se apenas 2 e 3 estiverem corretas.
se 2, 3 e 4 estiverem corretas.
se 1, 3 e 4 estiverem corretas.
4. (Unicamp-SP) O trecho abaixo foi extraído de Iracema. Ele
reproduz a reação e as últimas palavras de Batuiretê antes de
morrer:
O velho soabriu as pesadas pálpebras, e passou do neto ao
estrangeiro um olhar baço. Depois o peito arquejou e os lábios
murmuraram:
– Tupã quis que estes olhos vissem antes de se apagarem, o
gavião branco junto da narceja.
O abaeté derrubou a fronte aos peitos, e não falou mais,
nem mais se moveu.
(José de Alencar, Iracema: lenda do Ceará. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1965,
p. 171-172.)
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As questões de 6 a 9 pertencem ao vestibular da Escola de
Enfermagem de Wenceslau Braz (SP):
a) Quem é Batuiretê?
6. Assinale a alternativa que corresponda ao movimento
literário da Literatura Brasileira ao qual José de Alencar
pertenceu.
(A)
(B)
(C)
(D)
b) Identifique os personagens a quem ele se dirige e indique
os papéis que desempenham no romance.
Romantismo
Realismo
Arcadismo
Naturalismo
7. Indique a alternativa que corresponda, respectivamente,
aos romances indianistas, regionalistas e urbanos:
(A)
(B)
(C)
(D)
c) Explique o sentido da metáfora empregada por Batuiretê
em sua fala.
Lucíola, Ubirajara, O Sertanejo.
Iracema, Senhora, O Guarani.
O Guarani, O Gaúcho, Lucíola.
O Sertanejo, O Gaúcho, Iracema.
8. Assinale a opção que contém somente obras de José de
Alencar:
(A) O Tronco do Ipê, Cinco Minutos. A Viuvinha, Memórias Póstumas
de Brás Cubas.
(B) Quincas Borba, Iracema, O Guarani, O Tronco do Ipê.
(C) A Pata da Gazela, Cinco Minutos, As Minas da Prata.
(D) Memórias Póstumas de Brás Cubas, Lucíola, O Guarani.
5. (PUC-PR) Considere os dois fragmentos extraídos de
Iracema, de José de Alencar.
I - “Onde vai a afouta jangada, que deixa rápida a costa
cearense,
aberta ao fresco terral a grande vela? Onde vai como branca
alcíone buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano?
Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando
veloce, mar em fora. Um jovem guerreiro cuja tez branca
não cora o sangue americano; uma criança e um rafeiro que
viram a luz no berço das florestas, e brincam irmãos, filhos
ambos da mesma terra selvagem.”
II - “O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim
partiu das praias do Ceará, levando no frágil barco o filho e
o cão fiel. A jandaia não quis deixar a terra onde repousava
sua amiga e senhora. O primeiro cearense, ainda no berço,
emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma
raça?”
Ambos apresentam índices do que poderia ter acontecido
no enredo do romance, já que constituem o começo e o fim da
narrativa de Alencar. Desse modo, é possível presumir que o
enredo apresenta
9. “A Virgem dos Lábios de Mel apaixona-se por Martim,
guerreiro português. Os dois amantes fogem em companhia
de Poti e vivem um belíssimo amor na floresta...”.
A partir desse fato, o que acontece de importante na vida do
jovem casal que, segundo os românticos, simboliza a união do
branco e do índio?
10. (FAIBI) Assinale a alternativa que não se aplica ao romance
(A) o relacionamento amoroso de Iracema e Martim, a índia e o
branco, de cuja união nasceu Moacir, e que alegoriza o processo
de conquista e colonização do Brasil.
(B) as guerras entre as tribos tabajara e pitiguara pela conquista e
preservação do território brasileiro contra o invasor estrangeiro.
(C) o rapto de Iracema pelo branco português Martim como forma
de enfraquecer os adversários e levar a um pacto entre o branco
colonizador e o selvagem dono da terra.
(D) a vingança de Martim, desbaratando o povo de Iracema, por ter
sido flechado pela índia dos lábios de mel em plena floresta e terse tornado prisioneiro de sua tribo.
(E) a morte de Iracema, após o nascimento de Moacir, e seu
sepultamento junto a uma carnaúba, na fronde da qual canta
ainda a jandaia.
Iracema, de José de Alencar:
(A) Iracema, virgem tabajara, apaixona-se por Martim, jovem
cavaleiro português;
(B) Do amor da índia com Martim nasce Moacir, o primeiro
cearense;
(C) A jovem é defendida por Irapuã, um índio goitacá;
(D) Iracema morre, segundo os preceitos anunciados pelas
divindades indígenas.
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CAPÍTULO III - Dom Casmurro, de Machado de Assis: a crise do ponto de vista
Logo de início, relembremos o enredo básico de Dom
Casmurro. O livro tem como narrador o seu protagonista, o
Dr. Bento Santiago, ou simplesmente Bentinho. Pessoa da alta
sociedade fluminense, que, ainda criança, conheceu Capitolina,
ou Capitu. Desde então, tornaram-se amigos; na adolescência,
descobriram o amor mútuo e, após algumas atribulações com
a mãe de Bentinho, que o queria ver padre por força de uma
promessa, casaram-se.
No seminário, conhecera Escobar, importante personagem
para o enredo. Livres ambos da obrigação de ser padre, passado
algum tempo voltam a se encontrar. Bentinho já estava casado
com Capitu. Escobar casa-se com Sancha, amiga de infância
daquela.
Numa certa manhã, Escobar morre afogado no mar, onde
frequentemente nadava. Na hora da “encomendação e partida”
do corpo, Bentinho relata que Capitu fitara fixamente o defunto,
como se fora ela a viúva. Acaba por concluir depois que seu filho
Ezequiel era, na verdade, por possuir traços fisionômicos de
Escobar, filho deste e de Capitu.
Em Dom Casmurro, a desconfiança, que parte do marido, é o
elemento complicador da relação conjugal. Bentinho acreditava
ter sido traído pela mulher com seu melhor amigo de seminário,
Escobar.
No início, Bentinho procura repelir a ideia, mas com
o crescimento de Ezequiel cresce também a dúvida sobre a
paternidade. Tal dúvida leva-o a se separar de Capitu, que vai
para a Europa, onde morre pobre e abandonada. Quanto a
Ezequiel, que ainda mantinha relações com Bento, viaja alguns
meses depois para a Grécia, Egito e Palestina, a fim de estudar, e
morre onze meses após.
O romance é narrado a posteriori: Bento já tem 55 anos
quando procura “atar as duas pontas da vida, e restaurar na
velhice a adolescência”. E o faz como meio de honrar sua pessoa
de uma possível traição. É como se ele abdicasse de si toda e
qualquer culpa no malogro do seu casamento, construindo uma
narrativa onde se verificam elementos verossimilhantes, isto é,
que podem ser verdadeiros.
Para tanto, procura levantar uma série de características da
personalidade de Capitu, dona de “olhos de cigana, oblíqua e
dissimulada”, segundo o agregado José Dias, ao observar que tais
olhos, quando apertados, revelavam o pendor à reflexão “que
não era coisa rara nela”. Assim, o narrador faz-nos crer que desde
sempre Capitu, que não era rica, viu nele o meio de atingir a
riqueza material, e que, feito isso, ela o trairia para procurar a
satisfação amorosa, pois a “... Capitu da praia da Glória já estava
dentro da de Matacavalos (...) se te lembras bem da Capitu, hás
de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta
dentro da casca”. Ou seja, a Capitu criança já urdia o que faria
como adulta.
Com isso, é claro, Bento nada podia fazer quanto a uma
personalidade como essa. O que é importante reter do livro não
é tanto a traição (se é que houve), mas justamente a estrutura de
poder e dominação revelada pela narrativa.
Ora, conhecemos a história sob perspectiva única, e que tem
a preocupação de se passar como verdadeira. Porém, tal realidade
mostra-se ambígua, porque o próprio Bentinho nunca teve a
certeza de suas suspeitas. Na verdade, o que parece não suportar
é a traição feita por alguém de uma classe social inferior à sua e
que ascendeu graças à união com um homem rico. Evidente que
ele não diz isso explicitamente, mas percebe-se nas entrelinhas.
Pois bem. Discutamos essa questão em particular.
Para a crítica contemporânea de Machado, e até meados do
século XX, a questão da possível traição de Capitu, muito menos
o enfoque nela, não eram colocados. Alfredo Pujol, por exemplo,
em seu ensaio sobre Machado de Assis, publicado em 1917,
diz que Capitu “traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de
sedução e de graça”, assim o sendo, caberia ao leitor julgar a
adúltera e absolver Bento Santiago por ter renegado o filho, que,
certamente, nem seria dele.
No entanto, a inglesa Helen Caldwell, em famoso estudo
sobre Dom Casmurro, intitulado O Otelo brasileiro de Machado de
Assis, publicado em 1960, deu novo direcionamento à leitura do
livro. Sua tese era que Bento Santiago construíra uma narrativa
para se isentar da culpa de ter sido traído (isso para um homem
da elite no século XIX era pior que ser roubado, posto que
perderia a honra e o respeito perante a sociedade), mostrando
como Capitu teria urdido um plano contra ele e executado
quando houve a oportunidade. Porém, o narrador deixa
transparecer aqui e ali vários momentos que sua narrativa não
é totalmente confiável. Quis revelar a verdade, mas seu discurso
mostra-se falho nessa concepção, o que leva o leitor a desconfiar
de que realmente Capitu o teria traído. A exemplo do que ocorre
com Otelo, que deu ouvidos a Iago contra Desdêmona, Bento
teria se deixado levar pela desconfiança despropositada e pela
imaginação fértil:
A imaginação foi a companheira de toda a minha existência,
viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar,
as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas,
correndo. (p. 68)
Essa linha de leitura do romance passou então a ser a
preponderante, a mais aceita pela crítica. Considerando isso, é
importante destacar trechos do livro que levem à confirmação
dessa tese.
Em resumo, temos um narrador na meia idade que relembra
os principais fatos em torno do romance com Capitolina
Pádua, sua vizinha, até o casamento, passando pelo período
no seminário, depois o casamento, a amizade com Escobar e
Sancha, o nascimento do filho, a desconfiança e a expulsão de
esposa e filho de casa, e o fim solitário, quando ganhou a alcunha
de Casmurro.
O problema é que essa narração, a despeito do objetivo de
revelar a verdade, é falha. O narrador mesmo alerta o leitor
para isso: “É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor
amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também
preencher as minhas”. (p. 96) E quais são essas lacunas? Ora, na
composição da narrativa, Bento procura traçar o próprio perfil
e o de Capitu. Em uma leitura desatenta, percebe-se que ele é
bom, tímido e verdadeiro em seus sentimentos; ao passo que
Capitu seria dissimulada, alguém capaz de enganar para atingir
seus objetivos.
Antes de Bentinho ir ao seminário, o casal de namorados
faz um pacto, não revelariam a ninguém (apesar de o agregado
José Dias saber e a prima Justina também) que tinham plano
de se casar. O temor de Capitu é que, sabendo disso, a mãe
de Bentinho, D. Glória, proibiria que os dois se vissem ou se
falassem. Em um dos passeios de fim de semana à casa de sua
mãe, Bentinho está conversando com os familiares na sala.
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Capitu também se encontra. A conversa gira em torno de
Bentinho vir ou não se tornar um bom padre, ao que Capitu
prontamente responde: “Acho que sim, senhora, respondeu
Capitu, cheia de convicção”. Bento diz não ter gostado de tanta
convicção e, em particular, a repreende, uma vez que imaginava
que estaria tão saudosa quanto ele. Capitu então demonstra que
teria de agir assim para evitar desconfianças da família. Ao fim,
Bento concorda: “Era isso mesmo; devíamos dissimular para
matar qualquer suspeita” (grifo nosso, p. 106).
Em vários outros momentos, o narrador Bento insiste e
reafirma a capacidade de enganar de Capitu, além de mostrar
que, nas situações mais embaraçosas, ela sempre se sai com
desenvoltura e demonstra ter ideias bem atrevidas para uma
adolescente de 14 ou 15 anos.
Ocorre que, repita-se, o narrador também dá mostras de que
não é totalmente confiável, ou seja, ao mesmo tempo em que
faz determinadas afirmações acerca da personalidade de Capitu,
revela ter duas características que sempre o acompanharam:
a imaginação e a memória fraca. Ora, ao se propor narrar a
trajetória de sua vida dos últimos quarenta anos, em particular
sua vida amorosa e os consequentes percalços, seria de suma
importância ter boa memória para evitar que a imaginação
completasse as lacunas. Claro, poder-se-ia dizer que, em uma
narração esquecer-se de algum pormenor, de algum detalhe,
é algo bastante possível. No entanto, deve-se ler o fato como
uma estratégia narrativa do autor. Machado de Assis, ao criar o
narrador Bento Santiago, pretendeu discutir a crise do discurso
dominante, avant la lettre. Isto é, no período realista-naturalista
buscava-se incorporar a objetividade científica no âmbito da
literatura. O movimento narrativo de Machado, apesar de o
autor ser considerado realista, instaura a dúvida como princípio
de composição, pois procura mostrar quão relativa é qualquer
perspectiva universalizante, porque exclui de si toda e qualquer
outra, podendo, portanto, cometer erros como o de acusar, sem
provas incontestes, alguém de traição.
No Capítulo LXXXIII, anterior às desconfianças de
Bentinho por conta da semelhança física entre Ezequiel, filho
do casal Santiago, e Escobar, Bento, ainda seminarista, encontra
Capitu na casa de Sancha. Capitu fora visitar a amiga que estava
bastante doente. Bento, em um momento em que fica sozinho
na sala com o Sr. Gurgel, pai de Sancha, tem uma conversa
reveladora com ele. Gurgel mostra a Bentinho o retrato de uma
moça e pergunta-lhe se ela não seria parecida com Capitu.
Antes de examinar se efetivamente Capitu era parecida
com o retrato, fui respondendo que sim. Então ele disse que era
o retrato da mulher dele (...) – Na vida há dessas semelhanças
assim esquisitas. (p. 129)
Quem faz a última afirmação é Gurgel. O caso poderia não
ter importância nenhuma se anos depois o próprio Bentinho
não ficasse comparando as feições de Escobar às de um retrato
de Ezequiel. Em outros termos, trata-se de mais um indício
plantado na narrativa para mostrar que as certezas de Bento
poderiam virar pó quando confrontadas com outra maneira de
pensar, com outra visão de mundo.
Porém, não é interessante a Bentinho simplesmente
aceitar isso. Ele tem de defender-se, defender o que
considera um ultraje à sua moral, à moral de um homem
rico no século XIX. Adiante, no capítulo XCIX, após seguir
sugestão de Escobar, para quem poderia fazer cumprir-se
a promessa de D. Glória pagando a outro para ordenar-se
padre, Bentinho, já com 22 anos e formado em Direito, retorna
a sua casa e sua mãe diz que ele está bem parecido com o pai.
Aproximando os dois capítulos, vemos como o sentido pode ser
manipulado de acordo com o interesse do enunciador.
À descrição da semelhança entre a mãe de Sancha jovem e
Capitu, segue-se a narração da morte do Manduca, um jovem
leproso de quem era vizinho; tornaram-se amigos, por assim
dizer, quando Bentinho e Manduca iniciam uma contenda sobre
a Guerra da Crimeia (1853-1856), envolvendo o império Russo
e a Turquia. Para o primeiro, a Rússia sairia vencedora, pois
tinha a razão em seus planos expansionistas; para o segundo, ao
contrário, a justiça estaria com os aliados (Turquia, Inglaterra
e França). A todo instante, Manduca repete que “os russos não
hão de entrar em Constantinopla”. A contenda serve para o já
velho Bento Santiago refletir sobre o desaparecimento de Estados
e, em última instância, o fim daquilo que parece eterno. “Tudo
acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que
nem tudo o que dura dura muito tempo” (p. 176), diz adiante.
A reflexão ganha significado apenas quando, quase no final da
narrativa, revela que julgava ter sido traído. O casamento, que
imaginava eterno, também pode acabar.
À segunda comparação, segue-se a entrada de Bento Santiago
à vida adulta. Bentinho passa a ser o Dr. Bento Santiago,
advogado e herdeiro de toda a fortuna da família. O menino
tímido, cheio de medos e imaginação fértil e pouco prática, tem
de morrer para ocupar o lugar do pai, o lugar de chefe patriarcal.
A mãe enviuvara aos 30 anos e permanecera fiel à memória do
marido, vestindo o luto. Esse é o modelo de conduta que Bento
pretende seguir e espera que Capitu também siga. No entanto,
a incerteza, a dúvida, a imaginação para preencher essas lacunas
concorrem para abalar tal modelo. E para isso, o futuro chefe
patriarcal não estava preparado. Essa é a razão de todo o lirismo
com que é narrada a maior parte das memórias e que cede espaço
ao cinismo de modo mais categórico utilizado nos capítulos
finais, em especial a partir do capítulo CXVIII. Claro, há muitos
momentos de cinismo ao longo de todo o livro, porém torna-se
franco e explícito nas últimas páginas.
Outro aspecto que tem a função de corroborar a própria
tese de Bentinho, segundo a qual ele, se não fosse tão tímido e
inocente, poderia ter tido uma vida mais feliz, sem traição, é o
relato do ciúme. Isso tanto pode indicar uma falsa percepção da
realidade, como confirmar que a “Capitu da praia da Glória já
estava dentro da de Matacavalos” p. 210). Ou seja, conforme
afirma o narrador, teria havido muitos indícios de que Capitu
não seria totalmente confiável e de que ele, por sua vez, seria
um inocente. No capítulo LXII, maquiavelicamente intitulado
de Uma ponta de Iago, Bento pergunta a José Dias como está
Capitu, ao que ele responde:
— Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha.
Aquilo, enquanto não pegar algum peralta da vizinhança,
que case com ela... (p. 100)
Iago é quem, na peça Otello, o mouro de Veneza, de
Shakespeare, planta na cabeça do mouro a dúvida sobre a moral
de sua esposa, Desdêmona. Iago é, pois, o advogado do diabo.
É o papel que, consciente ou inconscientemente, cumpre o
agregado. Estar alegre para Bentinho é um atentado contra o
sofrimento pelo qual vem passando no seminário. Ainda que
isso não precise ser necessariamente verdadeiro, ganha ares de
verdade na boca de José Dias e na mente do seminarista.
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No capítulo CXXXV, quando já revelara explicitamente o
motivo principal da redação do livro – a desconfiança/certeza
de ter sido traído – Bento vai ao teatro para tentar distrairse. Contudo, a peça que se encenava era exatamente Otelo.
A encenação poderia tê-lo feito perceber que nem sempre
aquilo que parece verdade é, com efeito. Podemos nos enganar
ou sermos enganados por força das circunstâncias ou pela
maledicência alheia. Não é essa leitura que faz. Ao contrário.
Embora saia convicto de que Desdêmona pagara por um erro
não cometido, imagina o que deveria ser feito de Capitu uma
vez que, em sua mente, não restava dúvida da culpabilidade da
esposa.
E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; que faria o
público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu?
(grifo nosso, p. 195)
Bentinho, importante assinalar, está convencido da culpa da
mulher, porém há diversos indícios ao longo da narrativa que
parecem contradizer essa certeza. E outros tantos que confirmam
a desconfiança. É por esse motivo que o romance gerou
interpretações diversas. Inclusive a de que Bentinho e Escobar
teriam tido um relacionamento mais íntimo. Mas não vamos por
essa linha.
Retomemos o capítulo II do livro, em que descreve a
casa onde mora atualmente, no Engenho Novo. Chama a
atenção para quadros de quatro personalidades históricas:
César, Augusto, Nero e Massinissa. Não entra em detalhes
sobre nenhum. O leitor mais atento, porém, sabe que todos
foram vítimas de traição, não exatamente vítimas de adultério.
Massinissa da Numídia, por exemplo, era aliado dos romanos,
e casado com Sofonisba, cartaginesa irmã do famoso Aníbal, o
qual lutou contra Roma na segunda guerra púnica (século III
a.C.). Há duas versões para a história da traição de Massinissa.
Uma diz que teria dado veneno à esposa para ser poupada da
vergonha pública em Roma, quando feita prisioneira. Outra que
afirma ter dado veneno a ela ao imaginar que fosse adúltera. A
referência a esse personagem, portanto, serve como síntese das
duas possibilidades de leitura que o livro proporciona.
Interessante que no final do livro, quando Ezequiel regressa
da Europa para visitar Bento, na sala, enquanto o aguardava,
o já adulto Ezequiel fica olhando fixamente para o quadro de
Massinissa. Não faz qualquer comentário, nem o narrador. E,
no auge da desconfiança, quando Bento pensava em tomar ele
próprio veneno misturado ao café, em um momento de desatino
total, pensa em dar o café ao filho.
Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo
que quase a entornei, mas disposto a fazê-la cair pela goela
abaixo, caso o sabor lhe repugnasse (...) Mas não sei que senti
que me fez recuar. (p. 197)
A sequência é dramática. O menino chama Bento de pai e ele
diz categoricamente que não era seu pai. Capitu ouve e aí tudo se
revela às claras a ela e também ao leitor. Seria o momento de ela
defender-se, mas o advogado Bento Santiago praticamente não
lhe dá voz, razão pela qual o ponto de vista absoluto do narrador
deve ser relativizado pelo leitor. Basicamente, o máximo que lhe
permite dizer em sua defesa encontra-se no capítulo CXXXVIII.
Mesmo assim é pouco. O pouco, porém, é suficiente para
reforçar a causa principal de sua desconfiança: a semelhança
entre Ezequiel e Escobar. Diz Capitu: “Sei a razão disto; é a
casualidade da semelhança...”
Dias é um agregado, tipo especial na sociedade escravagista
brasileira do século XIX. Além dele, que não é da família, moram
na casa de D. Glória, o irmão viúvo, Cosme, e Justina, prima de
Bento. Ela também é viúva. Os dois, embora parentes, não têm
dinheiro e vivem de favor.
A gama das relações de dependência paternalista no romance
é variada e escolhida. Além do proprietário e do agregado, as
figuras incluem escravos, vizinhos com obrigações, comensais,
parentes pobre em graus diversos (...). (SCHWARZ, p. 23)
Essa relação, amplamente estuda pelo crítico Roberto Schwarz
em vários ensaios sobre a obra de Machado de Assis, indica um
modus vivendi contrário às aspirações brasileiras de participar
do liberalismo econômico. Em outras palavras, a mentalidade
burguesa brasileira, a qual, pretensamente, deveria possibilitar a
todos a possibilidade do trabalho e da vida diga e independente,
manteve em sua estrutura o trabalho escravo. Em consequência,
aos homens livres, pobres, e, muitas vezes, sem estudo, restava
viver sob a cooptação, sob o favor de uma pessoa rica. Esse é o
papel de D. Glória, que, quando enviuvou, vendeu a fazenda e
mais o que pôde, comprou a casa na rua Matacavalos, e outras
que alugava, além de alguns escravos, também alugados. É a
vida econômica baseada não no trabalho, e sim na renda pura
e simples. Dessa maneira, cria-se uma rede de dependência
econômica cujo movimento o romance procura apreender. É a
política do favor, presente também nas Memórias de um sargento
de milícias. José Dias, por exemplo, paga sua moradia, comida,
com conselhos. Chegou à casa dos Santiago como médico e lá
permaneceu como conselheiro de assuntos gerais. No entanto,
seus conselhos são dados com muito cuidado, para não suscitar
radicalismos que o levariam a ter de sair da casa. Ao mesmo tempo
em que aconselha D. Glória para ficar de olho nas então crianças
Bentinho e Capitolina, o que desviaria o menino do seminário,
procura ajudar Bentinho a suportar a ida ao seminário com a
promessa de que faria tudo para demover D. Glória de seu intento
de fazer padre o filho único.
No entanto, é de Escobar a sugestão para que D. Glória
fizesse padre outro jovem que a promessa estaria cumprida do
mesmo jeito. Para Dias, a solução seria viajar a Europa até que
D. Glória se esquecesse da promessa.
Embora soe patético, José Dias diz a Bentinho não ser favor
de ninguém que venha a alcançar a felicidade. Leia-se casar
com Capitu. Quando poderia contrariar a senhora matriarcal,
Dias via como negativo o namorico de Bentinho, e, além de
chamar o Pádua de tartaruga, caracterizou os olhos de Capitu
como oblíquos e dissimulados, mas ao perceber que o casamento
poderia agradar a D. Glória, uma vez que Capitu aproximara-se
muito dela e passara a cumprir o papel que antes era de Justina,
Dias também muda o modo de olhar para a filha do Pádua:
Cuidei o contrário outrora; confundi os modos de criança
com expressões de caráter, e não vi que essa menina travessa e
já de olhos pensativos era a flor caprichosa de um fruto sadio e
doce... (grifo nosso, p. 152)
Os olhos oblíquos e dissimulados mudam para pensativos, e
a menina que desviaria Bentinho de seu caminho, deve, agora,
ser incorporada à família. Com a morte de D. Glória, Dias vive
seus últimos dias como agregado exatamente de Bento Santiago.
Bento manda gravar na lápide do jazigo da mãe simplesmente
a palavra Santa. Embora tenha tido necessidade de pedir
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permissão ao padre, o fato é revelador de dois conceitos inerentes
à narrativa: o papel da mulher na sociedade oitocentista. D.
Glória, viúva jovem, mesmo tendo exigido do filho o que ele não
poderia ser, ter agido como senhora matriarcal, manteve-se presa
à família e à memória do marido, o que, no contexto do livro fez
dela uma santa, segundo o olhar de Bento Santiago. Ao passo
que sua esposa, mãe do seu possível filho, à qual jurou amor
eterno, pagou com uma expulsão de casa e uma morte solitária,
sem gravações em lápides.
Com isso o que poderia significar sua tentativa, seu desejo de
querer atar as duas pontas da vida? Retomar o tempo do idílio,
da descoberta do amor e o sucesso, por conta da promessa, e
relacioná-lo ao tempo do desencanto? Ao leitor, parece significar
apenas uma espécie tentativa de abdicação de qualquer culpa em
seu casamento. Ele amou a esposa, julgava-se amado e, segundo
sua óptica, foi duplamente traído pela mulher e pelo amigo.
No capítulo CXVIII, Bento narra um acontecimento que
seria, em outro contexto, esquecido no porão da memória.
No entanto, adquire significado singular quando confrontado
com a traição sofrida. Em uma noite, ele, Capitu, José Dias e
Prima Justina estiveram jantando na casa de Escobar e Sancha.
Em dado momento, Bentinho conversava com Escobar, que
lhe falava de planos, mas sem explicitar quais. Sancha então se
aproximou do advogado e contou-lhe que a ideia era passearem
juntos, os dois casais, na Europa dali a dois anos. Na sequência,
Sancha afastou-se, mas continuou a olhar para Bentinho.
Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expansões
fraternais, pareciam quentes e intimidativos, diziam outra
cousa, e não tardou que se afastassem da janela, onde eu fiquei
olhando para o mar, pensativo. (...) Quando saímos, tornei a
falar com os olhos à dona da casa. A mão dela apertou muito a
minha, e demorou-se mais que de costume. (p. 177-178)
Exercícios
1. (Fuvest-GV-SP) O meu fim evidente era atar as duas pontas
da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor,
não consegui recompor o que foi nem o que fui.
É o que diz o narrador no segundo capítulo do romance
Dom Casmurro. Afinal, por que não teria ele alcançado o seu
intento?
(A) Pelas dificuldades inerentes à estrutura do romance, na
recuperação de outros tempos.
(B) Pelo receio de confessar suas fraquezas e a traição sofrida.
(C) Porque era impossível recuperar o sentido daquele período,
pois ele já não era a mesma pessoa.
(D) Pela falta de bom senso e de clareza na apreensão das
lembranças.
(E) Porque o tempo, impiedoso, apaga todos os acontecimentos
e transforma as pessoas.
2. (UFLa-MG) Todas as alternativas apresentam informações
sobre Dom Casmurro, de Machado de Assis, exceto:
(A) A questão do adultério, tratada de forma ambígua pelo
autor, permanece em aberto no fim da narrativa.
(B) O narrador, através do exercício da memória, busca ligar
o presente ao passado, a velhice à adolescência.
(C) O narrador protagonista, ao assumir a primeira pessoa,
apresenta uma visão tendenciosa dos acontecimentos.
(D) O autor, introduzindo-se na narrativa, fornece ao leitor
informações que contradizem as opiniões do narrador.
(E) A narrativa, marcada pela ironia, mantém uma relação
intertextual com a tragédia Otelo, de Shakespeare.
3. (PUC-Camp-SP) O trecho abaixo é parte do último capítulo
de Dom Casmurro, de Machado de Assis:
O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava
dentro da de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada naquela por
efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse
dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers.
I: “Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta
a enganar-te com a malícia que aprender de ti”. Mas eu creio
que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu
menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra,
como a fruta dentro da casca.
Trata-se, pois, de uma traição virtual entre os dois, a qual
não se concretiza, eis a razão da lembrança, por imaginar que se
sentiria mal em trair o amigo. É como se quisesse dizer: eu não o
traí, embora devesse, posto que fui traído antes.
O retrato de Escobar pareceu falar-me; vi-lhe a atitude
franca e simples, sacudi a cabeça e fui deitar-me. (p. 179)
Bentinho finaliza suas memórias buscando um alento.
Embora tenha tentado esquecer Capitu com outras mulheres,
em geral prostitutas, não conseguiu. Alude então, por meio de
um aforismo, que a culpa talvez tenha sido dele próprio, mas
conclui que, no fim das contas, o caráter de sua ex-esposa a teria
levado a agir como agiu, e conclama o leitor a pensar igual:
Invocando aqui a memória e o testemunho do leitor de sua
história, o narrador arremata a narrativa:
(A) lembrando que os ciúmes de Bentinho por Capitu
poderiam perfeitamente ser injustificáveis.
(B) concluindo que a única explicação para a traição de
Capitu é a força caprichosa de circunstâncias acidentais.
(C) citando uma passagem da Bíblia, à luz da qual acaba
admitindo a possibilidade da inocência de Capitu.
(D) pretendendo que a personalidade de Capitu tenha se
desenvolvido de modo a cumprir uma natural inclinação.
(E) se mostra reticente quanto à convicção de que fora traído,
sugerindo que continuará ponderando os fatos.
Se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que
uma estava dentro da outra (adulta), como a fruta dentro da
casa. (p. 210)
Do mesmo modo que Bentinho conclama explicitamente
o leitor a concordar com ele, fica subentendido que cabe a esse
mesmo leitor buscar no não dito, nos desvios da narrativa, nas
entrelinhas a compreensão de que o ponto de vista absoluto de
Bentinho é sua própria negação.
4. (PUC-PR) Com base na leitura de Dom Casmurro e
considerando a importância de Machado de Assis para
a literatura brasileira, identifique as alternativas como
verdadeiras ou falsas:
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(
(
(
(
) Escrito quando o Realismo era a estética dominante,
Dom Casmurro é antes um “romance filosófico” que um
“romance social”.
) Ao contrário de diversas heroínas românticas, punidas com
a morte por comportamentos inadequados para os padrões
de sua época, a principal personagem feminina de Dom
Casmurro não morre no final da narrativa.
) Ainda que acreditasse não ser pai de Ezequiel, Bento
Santiago não deixou que isso interferisse na relação paifilho, e sempre quis ter o rapaz muito perto de si.
) Assim como em Esaú e Jacó, a presença do Imperador e
as referências à vida política brasileira são constantes em
Dom Casmurro e interferem nos acontecimentos narrados.
disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão.
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria;
fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular
que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes
anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que
me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo
aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor
e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo
prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as
mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto
e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores
miúdas e grandes pássaros que as tomam nos bicos, de espaço
a espaço. Nos quatro cantos do teto as figuras das estações, e
ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e
Massinissa, com os nomes por baixo... Não alcanço a razão de
tais personagens. Quando fomos para a casa de Mata-cavalos,
já ela estava assim decorada; vinha do decênio anterior.
Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras
antigas em pinturas americanas. O mais é também análogo e
parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina,
um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim,
agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida
interior, que é pacata, com exterior, que é ruidosa.”
A sequência correta é:
(A) V, F, F, F
(B) F, F, F, V
(C) F, V, F, V
(D) V, V, V, F
(E) F, V, F, F
5. (UFPR) A propósito de Dom Casmurro, de Machado de
Assis, é correto afirmar:
(A) A narrativa de Bento Santiago é comparável a uma
acusação: aproveitando sua formação jurídica, o narrador
pretende configurar a culpa de Capitu.
(B) O artifício narrativo usado é a forma de diário, de modo
que o leitor receba as informações do narrador à medida
que elas acontecem, mantendo-se assim a tensão.
(C) Elegendo a temática do adultério, o autor resgata o
romantismo de seus primeiros romances, com personagens
idealizadas entregues à paixão amorosa.
(D) O espaço geográfico e social representado é situado em
uma província do Império, buscando demonstrar que as
mazelas sociais não são prerrogativas da Corte.
(E) Bentinho desejava a morte de Escobar (até tentou
envenená-lo uma vez), a ponto de se sentir culpado
quando o ex-amigo morreu afogado.
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro:
Aguilar Editora, 1971. p. 809 e 810.
a)
b)
6. (UFPR) Assinale a alternativa correta.
(A) A ironia subjacente às respectivas narrativas permite
ao leitor a crítica e a dúvida em relação às ações e aos
personagens tanto em “Memórias de um sargento de
milícias” como em “Dom Casmurro”.
(B) Existe uma identidade entre “Seminário dos ratos” e
“Leão-de-chácara” que se constrói no fato de ambos serem
coletâneas de contos cujas temáticas tratam da oposição
entre sociedade urbana e interiorana brasileiras.
(C) Em “O pagador de promessas” e “O santo e a porca”,
reconhecemos, além do viés dramático, características de
um aspecto cultural bastante importante para a sociedade
brasileira: a religiosidade de tradição africana.
(D) Em “Como e por que sou romancista”, de José de Alencar,
o dado autobiográfico é disfarçado no simulacro de uma
narrativa ficcional com personagens e datas modificadas.
(E) Em “Terras do sem fim” e “O santo e a porca”, o conflito
principal nasce da disputa pela terra.
Nesse início de capítulo, o narrador usa, como estratégia
discursiva, a função metalinguística. Explique como essa
função se realiza, relacionando o primeiro ao segundo
parágrafo e apontando implicações que essa estratégia
narrativa provoca no conjunto da obra.
O tema da traição, central em romances fundamentais do
Realismo francês e do português, como é o caso de Madame
Bovary, de Gustave Flaubert (1857) e de O Primo
Basílio, de Eça de Queirós (1878), torna-se impreciso na
linguagem bastante conotativa, portanto, ambígua, criada
por Machado de Assis (1899). Explique como esse tema
é sugerido por meio da ironia construída no discurso e
manifestada mais enfaticamente na frase: “não alcanço a
razão de tais personagens”.
8. (UFMT) Em relação às opiniões da personagem machadiana
7. (FGV) Para responder às questões abaixo, leia, do romance
José Dias em Dom Casmurro, marque V para as afirmativas
verdadeiras e F para as falsas.
( ) Namoro com Bentinho representa oportunidade de
ascensão social para a gente do Pádua.
( ) Descuido do Tartaruga na vigilância da filha era
intencional, puro cálculo.
( ) Projeto de fazer Bentinho padre pode ser dificultado por
eventual namoro com Capitu.
( ) Dona Glória acreditava na capacidade do Pádua fazer
cálculos, planejar um futuro melhor para Capitu.
Assinale a sequência correta.
(A)
(B)
(C)
(D)
(E)
V, V, F, V
V, F, V, F
F, V, F, V
F, V, V, F
V, V, V, F
de Machado de Assis, o início do segundo capítulo
denominado “Do livro”:
“Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes
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CAPÍTULO IV - Melhores poemas de Manuel Bandeira
O prosaico e o sublime
Manuel Bandeira (1886-1968) é um desses poetas que leva
o leitor a pensar que escrever poesia é um processo simples,
mas percebe, quando se põe a ler os textos poéticos, que a
simplicidade é apenas aparente: há nela uma profundidade que
se revela aos poucos. Poeta menor em sua autodenominação,
Bandeira, sob essa aparente humildade, é antes um poeta maior,
dono de uma obra de grande amplitude simbólica e reflexiva.
Acompanhar a trajetória de sua poesia é acompanhar os
caminhos da poética moderna e as possibilidades da linguagem
literária. Paradoxalmente, à queda da poesia numa sociedade
cada vez mais técnica, mais materialista, surgiram poetas que
procuraram dizer que a poesia está aí apesar de tudo. Sem
dúvida, entre eles figura o nome de Manuel Bandeira, capaz de
ver nas coisas e lugares menos prováveis uma carga simbólica que
apenas a linguagem poética é capaz de apreender.
Acompanhemos, pois, um pouco dessa trajetória, dos temas
por ele explorados e do trabalho com a linguagem ao longo das
páginas a seguir.
Bandeira tem uma proximidade com a poesia da portuguesa
Florbela Espanca, no que diz respeito a usar da arte poética para
expressar a dor de viver, as dificuldades inerentes da vida. Cada
qual com suas desilusões e dissabores, ambos buscaram levar ao
leitor, por meio de sua produção, um sentimento individual, que
poderia representar o sentimento do mundo. Em outros termos,
uma visão pessoal que revela uma visão coletiva. Em rigor, essa
é umas das funções da literatura: dar a conhecer o mundo pela
linguagem. A realidade é um fato, mas apreendemos essa realidade
mediante a linguagem. O poeta, pelo seu trabalho, seria, pois, o
mediador entre o mundo, a realidade e o indivíduo.
No caso específico do poeta pernambucano, seu dissabor
inicial foi o de ter adoecido dos pulmões na juventude. Aos 18
anos, soube-se tuberculoso. Estudante de Engenharia, talvez pela
iminência da morte, talvez pela ânsia de querer viver o máximo
possível, abandona os estudos e se entrega à sua verdadeira
paixão: escrever.
Autor de antologias da poesia brasileira, Bandeira se dedicou
ao estudo da poesia romântica, cuja estética, se não está presente
em sua obra, tem muito a explicar, sobretudo pensando-se na
chamada fase ultrarromântica, quando, desiludido com a vida,
com os amores frustrados, com a vida que poderia ter sido, o
poeta se entregava ao desejo da morte, à tematização desse
desejo. Bandeira, ao contrário, aceita a iminência da morte,
que o torna, paradoxalmente, mais vivo. Esse paradoxo é
traduzido em poemas que ora resvalam para a tragédia, como em
“Desencanto”, de 1912:
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Ora para a resignação, como em “Momento num café”, em
busca de um sentido geral para a morte, vista não como um mal,
e sim como uma libertação das obrigações morais, e ora com
ironia, posto que diante da presença absoluta da morte, o que
resta é ironizar a própria vida.
Trata-se de uma temática constante em sua obra. Porém,
se a morte se constitui num escapismo para o poeta romântico,
para Bandeira o escapismo é desejar a vida e tudo o que ela tem
de fugaz, de transitório, de efêmero. É como se tentasse buscar
sentido nessa efemeridade.
Dentro dessa linha, há diversos poemas, notadamente
dois que já se tornaram clássicos para o leitor bandeiriano:
“Pneumotórax” e “Vou-me embora pra Pasárgada”. No primeiro
caso, tem-se um poema escrito à maneira de diagnóstico.
– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o
pulmão direito infiltrado.
Esse senhor do poema pode ser visto como o próprio
Bandeira, mas, poeticamente, todos que têm uma doença ou
algo que dificulta viver plenamente. Ao ouvir o diagnóstico, o eu
lírico pergunta:
– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
O pneumotórax era um tratamento para a tuberculose
defendido pelo médico Aloysio Veiga de Paula, por sinal grande
amigo do próprio Bandeira e de outros artistas. A resposta, em
tom irônico, indica o escapismo para a vida.
– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Em outros termos, ante a inevitabilidade da morte, deve-se
viver o máximo que se puder. E o tango, estilo musical e dança
bastante sensual, indica a busca pelo momento, a busca do prazer
momentâneo, capaz de devolver a vida que a doença tirou.
No caso do segundo poema, Pasárgada, uma cidade da antiga
Pérsia, atualmente um sítio arqueológico no Irã, é expressa
no poema como um local idílico, um local em que todos os
problemas, todas as dificuldades da vida ficam para trás, o amor
é possível, a realização dos desejos também, a vida simples se
manifesta, ocorrem as coisas mais disparatadas. Por isso, o eu
lírico repete o refrão:
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora para Pasárgada
Esses versos também indicam outro ponto da poética
romântica que colabora para, por oposição, compreender a
poética de Bandeira. Enquanto que para os românticos, o amor
verdadeiro, eterno, ideal, só pode ser realizado em sonho ou
com a morte, na poesia de Bandeira, o que importa é vivenciar
o que a vida oferece. E o amor que se encontra muitas vezes é o
das prostitutas, o das mulheres da vida, que, se não oferecem o
amor ideal, dão um amor possível para se sentir vivo. Há vários
poemas nessa linha, entre os quais: “A arte de amar”, “Chama e
fumo” ou “Vulgívaga”, no qual se lê:
Não posso crer que se conceba
Do amor senão o gozo físico!
O meu amante morreu bêbado,
E meu marido morreu tísico!
Amor e morte são constantes em sua poética. Mas,
conforme, queremos explicar, em sentido diferente da poesia
ultrarromântica de Álvares de Azevedo, por exemplo. Seja pela
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Nem uma nuvem de amargura
Vem a alma desassossegar.
E sinto-a bela... e sinto-a pura...
proximidade simbólica, seja por revelarem o contraste entre o
eterno e o efêmero. Em “Maçã”, por exemplo, essa oposição se
revela num momento de grande lirismo:
Por um lado te vejo como um seio murcho
Por outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o
cordão placentário
És vermelha como o amor divino
Dentro de ti em pequenas pevides
palpita a vida prodigiosa
Infinitamente
E quedas tão simples
Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel.
Numa primeira leitura, percebe-se claramente que o eu
lírico está falando da fruta, da maçã, conforme indica o título.
No entanto, até pelo aspecto simbólico que tem a maçã na
cultura ocidental, como referência ao fruto proibido, que leva
o homem à perda do Paraíso, amparada, especialmente, na
primeira estrofe, há uma clara conotação sexual. Comparada,
pela aparência e pela função de criar vida, ao amor divino, o que
lhe confere um aspecto eterno, revela-se frágil a ponto de perder
a vida de modo tão prosaico “num quarto pobre de hotel”. Tratase, pois, de um contraste cuja função é o de revelar os paradoxos
da vida, que tendem a se resolver de modo prosaico, banal. É
como um mundo decaído. Do amor divino à morte banalizada,
sem brilho. Mas é exatamente esse aspecto humilde da maçã que
desperta a atenção do eu lírico e o faz se identificar com ela.
Em alguns casos, verifica-se na poética bandeiriana, sem
ser exatamente uma regra, o contrário. Isto é, descobre-se quão
eterno pode ser um sentimento em contraste com os desejos
fugazes, externados de modo lascivo e sem qualquer vergonha.
Assim, no poema “Sonho de uma terça-feira gorda”, o eu lírico
revela o sonho que tivera com a amada, em que ambos se sentem
completos um pelo outro e desprezam o burburinho que fazem
as pessoas na terça de Carnaval:
A turba, ávida da promiscuidade,
Acotovelava-se com algazarra,
Aclamava-as com alarido.
(...)
Nós caminhávamos de mãos dadas, com solenidade,
(...)
A alegria estava em nós.
Era dentro de nós que estava a alegria,
– A profunda, a silenciosa alegria...
É bem verdade que essa eternidade tem um caráter
irônico, posto que, em rigor, o eu lírico sabe-se transitório.
Por esse motivo, em “O descante de arlequim”, o palhaço,
personagem comum dos carnavais, também é conhecido
por ser um amante, um farsante, e que, por esta razão, tende
apenas a vivenciar os desejos, sem qualquer compromisso. A
eternidade, para ele, seria apenas o sentimento do momento.
No poema, o seu descante, o seu canto, serve para lembrar a
ouvinte de que está pronto para amá-la com intensidade, porém
de modo fugaz:
E eu, vagabundo sem idade,
Contra a moral e contra os códigos,
Dar-te-ei entre os meus braços pródigos
Um momento de eternidade...
A visão irônica do amor está claramente presente ainda em
“Poemeto irônico” e reafirmada em “Arte de amar”. Em ambos,
o amor é algo meramente carnal. A ideia romântica de que o
amor se realiza na alma, naquilo que não é visível, é descartado
pelo eu lírico. O amor só pode ocorrer no plano físico, corpóreo.
Qualquer outra forma de amar seria uma mera fantasia, não
corresponderia à realidade:
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
(...)
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Ainda considerando a aproximação entre a poética de
Bandeira e a romântica, podemos pensar na tematização da
Lua. Bandeira escreveu diversos poemas para tratar da Lua. Em
um deles, “O inútil luar”, o eu lírico, ao passear por um largo
durante a noite, observa algumas pessoas e suas ações: um velho
que faz supor estar pensando na infância ou analisando um
papel, dois moços, “um de compleição raquítica” (por alusão ao
romantismo), que falavam de política, e, por fim, duas mulheres
que falam sobre a mãe que talvez viesse. Mas o que chama a
atenção mesmo do eu lírico é a indiferença das pessoas ante a
Lua, que segue sua órbita impassível:
E embalde a Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...
Embora seja a revelação de um sonho, momentâneo pela
própria natureza, o poema se mostra epifânico, pelo teor de
alumbramento, de plena satisfação e alegria. O mesmo ocorre
com outro poema publicado em “Carnaval”, “Alumbramento”,
em que ver a mulher desejada nua, “sem tristes pejos e sem véus!”,
equivale a descortinar imagens variadas, que permanecem na
memória para sempre, como a neve, o mar, a estrela, a lua e até
mesmo um licorne alvinitente, isto é, um unicórnio branco.
Trata-se da imagem suprema da pureza, da virgindade. Em
outros termos, vê-la nua não significaria a revelação simples do
desejo passageiro, mas antes o próprio despertar de uma possível
vida eterna:
Nesse poema, a Lua é uma testemunha das ações humanas
e o eu lírico tenta captá-las sob as sombras da noite. O mesmo
conceito sobre a Lua está em “Paisagem noturna”. A paisagem
é a do vale, e não mais a do largo, da cidade. Talvez por isso, a
Lua surge para romper com as trevas e trazer vida. Não se lhe
é indiferente. Ouve-se o coaxar dos sapos e toda sorte de sons,
indicando o despertar da paisagem:
E o luar úmido... fino...
Amávico... tutelar...
Anima e transfigura a solidão cheia de vozes...
Como contraste, quando não há Lua na noite, a tristeza se
instala, como ocorre em “Cantilena” e “Noite morta”. Neste
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último, o eu lírico toma a noite como referência aos dissabores
da vida, como alusão aos que faleceram. A noite seria, pois,
metaforicamente uma sombra para a vida. Uma variante
temática para enfocar a eminência da morte, “a vida que poderia
ter sido e não foi”.
Bandeira voltou ao tema por diversas vezes. Outros dois
poemas chamam a atenção. “Lua nova”, publicado em 1953,
e “Satélite” funcionam como uma espécie de revisão temática.
No primeiro caso, o eu lírico diz querer a Lua Nova ao invés
de uma Lua Cheia. Como se sabe, a Lua Nova é o momento
da fase lunar em que não fica visível. Por isso, ao desejar a Lua
Nova é como se quisesse chegar, efetivamente, ao fim, apagar-se
da vida. Claro que não se aborda uma obra literária, nem sempre
se chega a uma interpretação correta, estabelecendo uma relação
direta entre autor e texto, mesmo porque a literatura é o espaço
da mentira declarada, da verossimilhança, da vida possível e não
da vida real. Afirmar que o autor escreve “Lua Nova” porque
desejava a morte é, talvez, errar na nota. Mas, sem dúvida, que,
conforme vimos demonstrando na análise de outros poemas, a
tematização da morte é uma constante. Voltaremos a tratar da
questão adiante. Por ora, expliquemos a escolha do outro poema
“Satélite”. O título indica uma clara mudança no tratamento
e no ângulo de visão. O termo “lua” é substituído pela palavra
técnica, que indica o corpo que gravita em torno do planeta.
Esse ângulo é confirmado pelos versos:
Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos e dos enamorados.
Mas tão-somente
Satélite.
A Lua perde toda sua simbologia literária, construída pelos
poetas românticos (“O astro dos loucos e dos enamorados”),
pelos simbolistas, parnasianos (“Despojada do velho segredo de
melancolia” é uma referência a um poema de Raimundo Correia)
e pelo próprio Manuel Bandeira. É apenas um satélite, despojado
de conotações. Apesar da linguagem denotativa, ainda assim o
eu-lírico vê poesia no satélite. E talvez seja exatamente a perda da
significação, como se a lua poética não mais existisse em favor de
uma lua real.
A questão da poética romântica é retomada de modo mais
explícito em “Canção para a minha morte”. Trata-se de um
poema que alude a um trecho de um famoso poema de Gonçalves
Dias, um dos principais poetas românticos brasileiros. Em “I-jucapirama”, Dias narra a história de um índio tupi que é capturado
por uma tribo inimiga e, antes de ser morto, apresenta-se aos seus
algozes. Em dado momento, diz:
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi!
O eu-lírico do poema de Bandeira, ao contrário, afirma:
Bem que filho do Norte,
Não sou bravo nem forte.
Mas, como a vida amei
Quero te amar, ó morte,
Enquanto o poema romântico é escrito em redondilha menor
(versos de cinco sílabas), o segundo apresenta verso de seis sílabas.
Mas a diferença capital é outra vez no ângulo com que se canta a
iminência da morte. No primeiro, o guerreiro sabe que, embora
jovem, será morto pela tribo que o aprisionou e pede para que o
libertem, pois tem de cuidar do pai velho e cego; e, no outro, o
eu lírico, já idoso, aceita a chegada de seu algoz, sabe que não há
mais como fugir dela, e nem quer mais isso. A tematização dessa
preparação para a morte está presente também em um de seus
mais belos poemas, “Consoada”. O título soa um pouco irônico,
pois consoada é a ceia de Natal, que celebra a vida, o nascimento
de Cristo. No poema, ao contrário, é a chegada da morte, que,
segundo o eu-lírico, o encontrará pronto, “com cada coisa em seu
lugar”, pois sabe que não se pode fugir dela, sabe que a morte
é “iniludível”. Ela é a Indesejada das gentes, porém o eu lírico,
se não a deseja, também reconhece sua iminência. E será pela
morte que obterá a eternidade, não a eternidade dos céus, divina,
e sim porque põe fim a transitoriedade da vida.
São poemas escritos em meados do século XX, quando
Bandeira já passava dos 70 anos (faleceria aos 82 anos), e a morte
não é, pois, algo de que se deva afastar-se, mas sim para a qual
devemos estar preparados. Não é por acaso que publicou ainda
“Preparação para a morte”, no qual se lê: “Bendita a morte, que é
o fim de todos os milagres”, “Vontade de morrer”, título bem ao
gosto ultrarromântico como “Lembrança de morrer”, de Álvares
de Azevedo, e ainda “Programa para depois de minha morte”.
Os poemas ganham mais significados quando confrontados
com o princípio básico que norteia a produção poética de
Bandeira: a humildade. A poética bandeiriana é, pois, marcada
pela humildade, pela tematização dos desvalidos e esquecidos. O
objetivo final é descobrir no mundo decaído algo de sublime,
como no poema “Maçã”, em que uma maçã carrega toda uma
simbologia de caráter ético e mesmo divino, mas está em um
ambiente simples e degradado. O eu lírico se identifica com a
maçã por perceber nela aspectos da condição humana, posta
entre a divinização e o prosaísmo de uma vida sem perspectiva.
Há outro poema de Bandeira, que não consta da Antologia
de que estamos nos servindo, intitulado “Poema do beco”,
publicado no livro “Estrela da Manhã”, de 1936:
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do
horizonte?
— O que eu vejo é o beco.
Trata-se de um dístico, isto é, um poema de dois versos. No
primeiro, temos uma visão ampla da paisagem, provavelmente
o eu lírico se refira à Baía da Guanabara, ao bairro da Glória,
próximo à Lapa, onde morou um bom tempo o poeta. Tudo
isso, incluindo a linha do horizonte, o que se enxerga para além,
é rejeitado pela perspectiva do eu lírico, que consegue ver apenas
o beco. O beco, como se sabe, é um local estreito, às vezes sem
saída, o que contrasta, portanto, com a linha do horizonte.
Interessante que anos depois, Bandeira voltou a falar do
beco em três outros poemas: “Primeira canção do beco”,
“Segunda canção do beco” e “Última canção do beco”. Os
títulos prontamente remetem o leitor de poesia a três títulos de
livros de Gonçalves Dias: “Primeiros cantos”, “Segundos cantos”
e “Últimos cantos”. Dias participou do primeiro momento da
poesia romântica, a qual tinha como uma de suas características
essenciais a construção do sentimento patriótico, cujo poema
“Canção do exílio” pode ser visto como paradigmático desse
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projeto. Se nem todos os poemas dos três livros expressam esse
conceito, subsiste a ideia de alargar os horizontes brasileiros,
de ampliar a perspectiva em direção a um projeto de âmbito
nacional. Os poemas de Bandeira, ao contrário, não apresentam
essa perspectiva, posto que limitada pela visão do beco. O que se
tem em tais poemas é o mesmo conceito presente em “Maçã” e
diversos outros poemas do autor: descobrir no humilde, na vida
rebaixada o que ela tem de sublime. “Última canção do beco”
refere-se a um acontecimento real da vida do poeta, que teve de
se mudar devido à expansão da cidade. O local seria demolido.
O que permanecerá será a lembrança dos amores efêmeros
oferecidos por prostitutas e a lembrança dos amores impossíveis,
irrealizáveis, tema específico dos outros dois poemas:
Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades
(mas também dos meus amores,
Dos meus beijos, dos meus sonhos),
Adeus para nunca mais!
Em rigor, Bandeira, do ponto de vista formal, já iniciara uma
renovação da poesia nacional ainda sob o período do decadente
parnasiano, no início da década de 10 do século XX. Para ser
mais preciso, já nos poemas publicados em “A cinza das horas”,
de 1917, e escritos a partir de 1912, percebe-se o uso do verso
livre e de certo coloquialismo, mais explorado no livro seguinte
“Carnaval”, de 1919, e elevado a programa modernista em
“Ritmo dissoluto” (1924) e “Libertinagem” (1930).
Paradigmático desse ideário é o poema “Os sapos”,
publicado em 1919 no livro Carnaval e declamado
por Ronald de Carvalho na Semana de Arte Moderna.
O poema faz uma analogia metafórica entre o sapo-tanoeiro
(poeta parnasiano) e o sapo cururu (poeta moderno). Enquanto
o primeiro defende sua arte como “rara joia”, o segundo aparece
timidamente, tentando se fazer ouvir:
Lá fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo cururu
Da beira do rio...
Segundo Rogério Silva Pereira e Aline Câmara Zampieri:
A poesia de Bandeira se apresenta como espécie de linguagem
simples a esconder um enigma que, aos poucos, se revelará ao leitor
como forma complexa. Apresenta-se, por outro lado, como expressão
de um instante de sua vida, confissão intimista, que ganha, em
seguida, alcance geral. Numa outra fórmula: em sua poesia, a
experiência mais cotidiana se revela, aos poucos, plena de sentido
transcendental.
Uma constante na obra de Bandeira, dentro dessa linha de
olhar para o degradado, o humilde, é a temática da prostituta.
Tal temática está também diretamente ligada à questão do amor
fugaz, dos desejos. Há vários exemplos nessa linha, como em “A
estrela e o anjo” e, particularmente, no poema “Estrela da manhã”.
Trata-se de uma mulher desejada pelo eu lírico, ao mesmo tempo
inatingível e pronta para atender a todos:
De qualquer modo, “Os sapos” ainda não é um poema
propriamente modernista, antes anuncia o que viria a ser. É
um grito contra as regras canônicas da poesia parnasiana que
se faziam presentes nas primeiras décadas do século XX. Um
grito mais alto e mais claro contra esse hieratismo é publicado
em “Libertinagem”: trata-se de “Poética”, que põe em xeque
todo lirismo comportado, baseado em regras de composição.
Como anunciara em Itinerário de Pasárgada, ao se referir ao
processo de construção de sua poesia, a arte deveria ser livre,
sem pejos e regras:
– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
A metalinguagem está presente explicitamente nesses poemas
e, de modo velado, em outros tantos, como em “O cacto”, de
1925. Trata-se de um poema que faz alusão, temática, ao famoso
“O albatroz”, de Charles Baudelaire. É uma metáfora da poesia
moderna que teve de abandonar a temática pura e simples do
sublime, dos sentimentos elevados, para tratar da vida prosaica,
cotidiana. Lê-se na estrofe final do texto de Baudelaire:
Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
(...)
Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.
Prostituta ou não, a mulher, conforme o ideário romântico,
ora contrariado, ora seguido pela poética bandeiriana, é muitas
vezes inatingível. O amor, ou mais propriamente o desejo,
só se realiza no sonho ou se apresenta como caminho para
a frustração. É o caso de “A estrela” (Por que da sua distância/
Para a minha companhia/ Não baixava aquela estrela/ Por que tão
alto luzia?), “A filha do rei” (Como seria o seu corpo?.../ Jamais o
conhecerei!), “Marinheiro triste”, “Boca de Forno” (No fundo do
céu/ Há tanto suspiro!/ No meu coração/ Tanto desespero!)
A lição deste último poema, e de outros tantos, como
“Poema do beco”, é a de uma simplicidade, que corresponde
inteiramente ao programa da poética modernista. O modernismo
propôs uma radical mudança tanto nos aspectos formais bem
como na expressão de temas nacionais, abordando-se assuntos
considerados pouco condizentes com a expressão poética.
O poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
A asa de gigante impedem-no de andar.
Se nas alturas, o albatroz é gracioso, elegante, nobre, por
assim dizer, no chão é feio, disforme, comum. Em “O cacto”,
Bandeira escreve um poema de 12 versos (que lembra um soneto,
portanto), dividido em três estrofes. Na primeira, o cacto lembra
a tradição da alta cultura, da erudição de livros como “Ilíada” e
“A Divina Comédia”: do primeiro, há a referência a Laocoonte
(sacerdote de Apolo, castigado por alertar os troianos sobre o
presente que os gregos lhes dariam), e do segundo, a Ugolino.
A segunda estrofe é marcadamente narrativa e diz que o cacto
foi arrancado pela raiz e causou uma série de transtornos na cidade:
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O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças
É a mesma metáfora do poema de Baudelaire. Quando nas
alturas, ou quando no seu habitat, o cacto, entenda-se o poeta,
está preso à tradição, à cultura erudita, mas na modernidade, ele
é lançado à cidade, ao prosaísmo e precisa aprender a lidar com
isso. Em outros termos, a poesia moderna não pode ficar presa
em sua torre de marfim, deve participar da vida nacional. Essa
visão está bem explícita em poemas como “Mangue”, “Belém
do Pará”, “Boca de forno”, ao qual incorpora vocabulário de
origem africana, como forma de se abordar o folclore e a cultura
nacional mais ampla, não exclusivamente a erudita.
Ah tôtô meu santo
Eh Abaluaê
Inhansã boneca
De maracatu!
Também incorpora “a língua errada do povo”, ou seja,
os poetas modernos, levados a tratar da vida hodierna, não
poderiam fazê-lo em uma linguagem dissociada do cotidiano, do
falar simples. Como diria o poeta russo Vladimir Maiakovski,
“uma arte revolucionária exige uma forma revolucionária”.
Por esse motivo, seguindo o conceito presente em “Poética”,
Bandeira usou, quando necessário, de uma linguagem popular,
sem preocupações gramaticais, porém pertinentes ao conteúdo
do poema:
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
Isto é, imitar a estrutura sintática do português de Portugal,
desprezando-se as variantes regionais.
Dentro dessa perspectiva de se abordar a cultura negra,
Bandeira, criado em Recife, terra de engenhos, onde era comum
a presença de negros cujos ascendentes haviam sido escravizados
e, mesmo libertos, permaneceram trabalhando com os antigos
patrões, os senhores de engenho, apresenta algumas marcas
que podem, hoje, ser vistas como racistas, mas que, para ele,
serviram para sua formação intelecto-afetiva. Um poema sempre
lembrado é “Irene no céu”, por seu conteúdo:
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
– Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
– Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
Com efeito, numa primeira leitura, podemos ver
racismo por parte do eu-lírico (porque Irene é preta,
submissa); no entanto, é preciso considerar que o autor
inserido num contexto em que ver a mulher negra
algum
boa e
estaria
como
bonachona, alegre, contadora de histórias, amiga das crianças
(a despeito do aspecto senhorial que a imagem sugira) era algo
natural. Não é por acaso que, em diversos outros poemas, a
lembrança dos tempos de criança, negros e caboclos aparecem
como empregados, subalternos, respeitosos, que é o caso de
“Mangue” (O preto – Eu sou aquele preto principá do centro do
cafange do fundo do rebolo. Quem sois tu?) e “Profundamente”,
em que se refere a Tomásia, “a preta Tomásia, velha cozinheira
da casa de meu avô”, nas palavras do próprio Bandeira. Assim, o
termo “preta”, embora hoje possa aludir a um conceito racista,
fazia parte naturalmente do vocabulário do autor, sem pensar
obrigatoriamente em preconceito ou racismo (é claro que por
trás das aparências sempre há algo mais profundo de que nem se
suspeita).
Em relação ao poema “Profundamente”, bem como
“Evocação do Recife”, há uma explícita referência à sua
infância, ao momento de sua formação na primeira infância
até á adolescência. Figuras marcantes povoam sua imaginação
e ajudam a marcar sua poesia no âmbito do escapismo, do
memorialismo (à maneira, em certo sentido, de “Meus oito
anos”, do poeta romântico Casimiro de Abreu). Tal temática já
estava presente em “Cartas de meu avô”, publicado em “A cinza
das horas”:
E enquanto anoitece, vou
Lendo sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.
Mas é em “Evocação do Recife”, que expressa
definitivamente quem foi o menino Bandeira, que lembranças
ainda permanecem:
Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois –
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
Os seis primeiros versos indicam o modo pelo qual Recife é
ou foi conhecida. No sétimo verso, introduzido pela adversativa
mas, o eu lírico, sem negar a importância da história coletiva,
afirma que irá tratar da vida pessoal, da expressão subjetiva, das
lembranças. Claro que por se tratar de poesia, de literatura, o
caráter particular, individual acaba por dar lugar a um a aspecto
mais amplo, simbólico, que se presta a uma compreensão mais
ampla do fenômeno literário. Ora, literatura é sobrevivência,
é permanência. Ao contrário da linguagem jornalística que
relata o aqui e o agora (hic et nunc), e que vira letra morta no
dia seguinte, ou fonte para o estudo da história, a linguagem
literária é sempre atualizada, pela sua carga simbólica. Assim,
ao falar de si, o eu lírico se refere a um sentimento humano e
atribui valor ético aos seus escritos. Em “Profundamente”, o eu
lírico se pergunta onde estão todos (minha avó/ meu avô/ Totônio
Rodrigues, Tomásia, Rosa):
Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo profundamente.
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(C) A alegria do carnaval é meio de evasão para eu-lírico, que
procura alienar-se de seu sofrimento.
(D) O último verso transcrito associa-se ao título do poema,
pois o eu-lírico não participa, de fato, do baile de carnaval.
(E) O eu-lírico revela, em tom bem-humorado e
descompromissado, ser uma pessoa exageradamente
sensível.
O próprio Bandeira já “dorme” profundamente, mas não
sua obra, que continua viva, a despertar sensações, a estimular
a leitura para que em assuntos banais, o leitor possa encontrar o
que têm de sublime, de poético. Essa é sua grande lição.
Exercícios
1. (Fuvest-SP) Considere as seguintes afirmações sobre 4. (Fuvest-SP) Sobre Libertinagem, de Manuel Bandeira, podese afirmar que:
(A) os poemas revelam o estilo despojado, de tom combativo e
revolucionário que caracterizou a produção poética de 22.
(B) o tema da infância é comumente apresentado por meio
da perspectiva do adulto que reconhece o passado como
um tempo pleno de alegria, proteção e experiências
surpreendentes.
(C) ainda que a obra seja a mais modernista de Bandeira,
podem-se observar traços passadistas, como o uso de
redondilha, nos famosos versos de “Vou-me embora pra
Pasárgada”.
(D) o poeta revela influências das ideias presentes no
“Manifesto Pau-Brasil” e “Manifesto da Antropofagia”,
na medida em que incorpora temas relacionados à
brasilidade e envereda por experiências futuristas, com
insistentes traços de surrealismo.
(E) as constantes referências à cidade natal, com sua geografia
e particularidades culturais, mescladas às lembranças
íntimas do universo familiar revelam a melancolia de um
poeta atormentado que não encontra apaziguamento na
realidade presente.
Libertinagem, de Manuel Bandeira:
I - O livro oscila entre um fortíssimo anseio de liberdade vital
e estética e a interiorização cada vez mais profunda dos
vultos familiares e das imagens brasileiras.
II - Por ser uma obra do início da carreira do autor, nela ainda
são raras e quase imperceptíveis as contribuições técnicas e
estéticas do Modernismo.
III - Em vários de seus poemas, a exploração de assuntos
particulares e pessoais, aparentemente limitados, resulta
em concepções muito amplas, de interesse geral, que
ultrapassam a esfera pessoal do poeta.
Está correto apenas o que se afirma em:
(A) I
(B) II
(C) I e II
(D) I e III
(E) II e III
2. (PUC-SP) Libertinagem, uma das obras mais expressivas
de Manuel Bandeira, apresenta temática variada. Indique a
alternativa em que não há correspondência entre o tema e o
poema:
(A) cotidiano — Poema tirado de uma notícia de jornal
(B) recordações da infância — Profundamente
(C) teor metalinguístico — Poética
(D) evasão e exílio — Vou-me embora pra Pasárgada
(E) amor erótico — Irene no céu
5. (Fuvest-SP) Em Libertinagem, Manuel Bandeira manifesta
profunda simpatia pelos marginalizados, que, por razões
históricas ou condição econômica, representam os
desvalidos.
Assinale a alternativa em que o poema indicado não
serve de exemplo para essa afirmação:
(A) “ Irene no céu”.
(B) “Camelôs”.
(C) “ Mangue”.
(D) “Profundamente”.
(E) “Poema retirado de uma notícia de Jornal”.
3. (Fuvest-SP) Leia o poema de Manuel Bandeira para
responder ao teste:
Não sei dançar
Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...
Abaixo Amiel!
E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.
6. (PUC-SP)
Evocação do Recife
“Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de
meu avô.”
Irene no céu
“Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.”
Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.
Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda.
(...)
(Libertinagem, Manuel Bandeira)
Sobre os versos transcritos, assinale a alternativa incorreta:
(A) A melancolia do eu-lírico é apenas aparente: interiormente
ele se identifica com a atmosfera festiva do carnaval, como
se percebe no tom exclamativo de “Eu tomo alegria!”
(B) A perda dos familiares e da saúde são aspectos
autobiográficos do autor presentes no texto.
Considerando os dois fragmentos acima, pode-se afirmar que:
(A) a disposição horizontal do primeiro é mais poética que a
vertical do segundo.
(B) o procedimento anafórico, como recurso poético, apenas
existe no primeiro.
(C) o ritmo poético existe, mas está presente só em “Irene no
céu”.
(D) a presença de recursos estilístico-poéticos marca igualmente
ambos os textos.
(E) o primeiro é prosaico e o segundo é poético.
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(UFVJM-MG) As questões 7 e 8 referem-se à obra Melhores
Poemas de Manuel Bandeira, uma seleção feita por Francisco
de Assis Barbosa.
A Itália falando grosso,
A Europa se avacalhando...
9. (PUC-MG) Leia o texto atentamente:
7. Toda leitura é intertextual, pois, ao ler, pode-se associar
o texto do momento com outros textos já lidos, o que
confirma que há textos que se inter-relacionam. A alternativa
que não apresenta versos que exploram procedimentos de
intertextualidade é:
(A) Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
(B) — Muito contas, cotovia!
E que outras terras distantes
Visitaste? Dize ao triste.
— Líbia ardente, Cítia fria,
Europa, França, Bahia...
— E esqueceste Pernambuco,
Distraída?
— Voei ao Recife, no Cais
Pousei da Rua da Aurora.
Pousei na rua da Aurora.
— Aurora da minha vida,
Que os anos não trazem mais!
(C) Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos “clowns” de Shakespeare
(D) Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do
horizonte?
— O que eu vejo é o beco
Na feira-livre do arrebaldezinho
um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor:
— “O melhor divertimento para as crianças!”
Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres...
Não é característica presente na estrofe acima:
a) Valorização de fatos e elementos do cotidiano.
b) Utilização do verso livre.
c) Linguagem despreocupada, sem palavras raras.
d) Preocupação social.
e) Metalinguagem.
10. Sobre a poesia de Manuel Bandeira, assinale as alternativas
8. Nos versos de Manuel Bandeira, comparecem duas
grandes fisionomias artísticas: a do poeta tradicional e a do
moderno. Assinale a alternativa em que esse autor, embora
tenha escrito poemas dentro de uma linha tradicional, não
se expressa, criticamente, em relação à poética tradicional.
(A) Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
(B) Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
é macaquear
A sintaxe lusíada.
(C) O sapo tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos
(D) Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Alfonso Reys partindo,
E tanta gente ficando...
Os cavalinhos correndo.
E nós, cavalões, comendo...
verdadeiras (V) ou falsas (F).
I – O poeta participou ativamente da Semana de Arte
Moderna, tendo, inclusive, recitado um de seus poemas
numa das sessões.
II – Embora um de seus poemas tenha sido lido durante
a Semana de Arte Moderna, o poeta não se envolveu
pessoalmente no evento.
III – Do ponto de vista formal, sabe-se que Bandeira cultivou
diferentes formas da poesia lírica e foi um mestre tanto no
verso livre quando no verso tradicional.
IV – A poesia de Bandeira cultivou, entre outros temas, a
morte, a reflexão sobre a poesia e o lirismo reflexivo, de
cunho social.
A alternativa correta é:
a) F V V F
b) F V V V
c) V V F F
d) V V F V
e) F V F V
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CAPÍTULO V - O calor das coisas: identidade e transformação segundo o olhar de Nélia Piñon
Nélida Piñon é jornalista de profissão e autora de diversos
livros, entre romances e contos. Carioca, com ascendência
galega, nasceu em 1937 e tornou-se membro da Academia
Brasileira de Letras em 1990 e a primeira mulher eleita para
ocupar a presidência daquela casa.
Iniciou sua carreira literária com “Guia-mapa de Gabriel
Arcanjo”, um romance publicado em 1961. A este, sucederamse vários outros romances, como “Fundador” (1969), um dos
seus principais livros, “Tebas do meu coração” (1974), “A força
do destino” (1977), “A república dos sonhos” (1984), “Vozes do
deserto” (2004), entre outros. Quanto aos contos, o primeiro
livro foi “Tempo das frutas” (1966), depois vieram “Sala de
armas” (1973) e “O pão de cada dia: fragmentos” (1994).
“O calor das coisas” foi publicado originalmente em
1980. São treze contos em que se percebe uma autora
de grande sensibilidade e capacidade de refletir sobre
a realidade a partir de novos olhares. A autora analisa
a importância da palavra e a manipulação política da
linguagem, como se pode notar, especialmente, em
“O jardim das oliveiras”. A ironia surge aqui e ali nas histórias,
cuja construção se revela complexa numa tentativa de desvendar
a alma das personagens, espelhos do ser humano. Nem sempre
é fácil separar o enredo, a história, do próprio discurso, um
constrói o outro. Há em seus textos uma visão crítica da vida,
um erotismo ora velado, ora explícito, mas nunca gratuito, como
meio também de compreender as atitudes humanas.
Isso tudo pode ser verificado já no conto de abertura, “O
Jardim das Oliveiras”. É um conto que faz uma espécie de
arrazoado sobre as torturas sofridas por presos políticos à época
da ditadura militar. Narrado em primeira pessoa, é escrito à
maneira de um depoimento a um interlocutor chamado Zé
(pela popularidade do nome, pode indicar o brasileiro em
geral). É levado por policiais a fim de que conte o paradeiro de
um conhecido, Antônio, indexado pela polícia como terrorista,
assassino de mulheres e de crianças. No entanto, o único
Antônio que o narrador conhecia já estava morto.
Todos sabíamos que Antônio estava morto. Quem sabe ele
próprio o teria assassinado, fora o último de um longo cortejo de
torturadores. (...) Ou será que se referiam a um outro Antônio,
o das Mortes, o do Glauber? (p. 9)
A alusão a Antônio das Mortes, personagem do filme “Deus e
o Diabo na Terra do Sol”, dirigido por Glauber Rocha em 1964,
é uma clara ironia aos processos da ditadura, cujos defensores
batiam primeiro e perguntavam depois.
Alusão central, porém, encontra-se no próprio título, afinal,
o Jardim das Oliveiras foi o local onde, segundo os relatos
presentes na Bíblia, Jesus foi entregue por um beijo de Judas
Iscariotes aos soldados romanos. O narrador, por sua vez, não
entrega Antônio, mesmo porque não o conhece. Mantém-se fiel
a sua memória. Porém, diante da tortura constante, teve que
criar um Antônio, teve que usar da palavra para dar vida de novo
a Antônio:
Uma vez entregue Antônio, ao menos aquele desejado pelos
policiais, o narrador se põe a analisar a própria vida, as atitudes
tomadas. Diante do dilema que a vida lhe impusera, precisa
reconstruir-se, precisa reconstituir-se como ser. Mas para isso,
tal e qual Pedro, que negou sua identidade ao negar Cristo
três vezes, após a prisão do Mestre no Jardim das Oliveiras, o
protagonista tem de, primeiro, negar-se a si mesmo, negar quem
era, para ser de novo.
Subsiste em boa parte dos contos do livro em questão uma
reflexão sobre a identidade, sobre aspectos que nos identificam
primeiro como seres humanos, depois como seres pertencentes a
uma cultura.
Em “O jardim das oliveiras”, a tortura tende a eliminar os
traços identificadores das pessoas, tanto os traços físicos (pela
mutilação da pessoa), quanto, e principalmente, os traços
psicológicos (incluindo o caráter do indivíduo, sua formação
cultural, discursiva, enfim, sua cidadania).
Há muito me haviam sonegado a língua, a terra, o
patrimônio comum, e eu resvalava na lama, que era o meu
travesseiro. Um pária que não contava com a herança do pai.
(p. 11)
Essa reflexão em torno da perda ou da construção da
identidade está presente também em “Finisterre”, em que
uma jovem retorna às suas origens ao reencontrar o padrinho
em uma ilha na Galícia. No conto, Nélida Piñon recupera suas
raízes ibéricas, particularmente a Galícia, como se sabe origem
da língua e da cultura portuguesa, que viria a construir o Brasil.
Finisterre é uma ilha que fica na Galícia (ou Galiza), região
noroeste da Espanha, onde se localiza também Santiago de
Compostela, local conhecido pelas peregrinações desde a Idade
Média. Finisterre também, até à Idade Média, era conhecida
como o fim da Terra (em latim, finis significa final), porque
se acreditava que adiante haveria a beira do mundo. Quem
navegasse para além daquele local lá cairia no espaço, cairia no
vazio.
No conto, a narradora vai até Finisterre reencontrar seu
padrinho, já idoso, e é recebida por pescadores e recepcionada
com um banquete, uma orgia gastronômica como meio de
tomar parte cultural daquele local que também lhe pertence,
mas ao qual, por viver no Brasil, do outro lado do mundo, para
além do Atlântico, não tinha mais acesso. Trata-se, pois, de uma
cidade de pescadores acostumada a receber turistas em viagem a
Santiago de Compostela.
Simbolicamente, em Finisterre ia-se ao confronto do Fim,
isto é, com a Morte, representada pelo pôr-do-sol. Por outro
lado, também significava um renascimento, então representado
pelo nascer do sol. Dessa feita, o local representava o fim e o
início de jornadas. É o que se observa no conto. A narradora é
levada a ter nova vida naquele ambiente. Representada pelo
banquete, associado a um ato sexual, renovador e criador:
As perguntas e respostas iam compondo um novo Antônio
nascido da aspereza dos nossos dedos mergulhados na argila.
Quanto mais falávamos, depressa Antônio recuperava diante de
nós o ardor familiar a eles e a mim. (p. 12)
Com o grafo, ele mergulhou diversas vezes nas entranhas
do crustáceo, e trouxe-me como um caçador de esponjas o coral
ambicionado. Mastiguei a delicada porção de olhos fechados,
fazendo amor com um coral nascido de recantos primevos, de
uma carapaça mais antiga e sólida que a minha pele. (p. 81)
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Esse ato devolve-lhe suas origens, e fica dividida entre dois
mundos: o antigo, o galego, e o novo, o das Américas, o do
Brasil. É dessa simbiose antropofágica que se irá construir uma
nova identidade. (“Salve a terra, padrinho. A que terra queres
homenagear, afilhada?”)
O próprio nascimento da Galícia representa tal simbiose de
povos diferentes, que formaram ao longo dos séculos o povo
galego:
se como ser para além de simples suporte do marido. Tais visões
estão representadas pelo tempo: o passado, que indica, na mente
da mulher, sua individualidade, o presente, em que existe como
entidade que complementa o homem, e o futuro que devolveria
a identidade para a mulher.
O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o
jornal caído no chão, pedia-me, o que significa este repúdio a
um ninho de amor, segurança, tranquilidade, enfim a nossa
maravilhosa paz conjugal? E acha você, marido, que a paz
conjugal se deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só
porque mencionei esta palavra que te entristece, tanto que você
começa a chorar discreto, porque o teu orgulho não lhe permite
o pranto convulso, este sim, reservado à minha condição de
mulher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar,
sacrifico-me outra vez para não vê-lo sofrer. Será que apagando
o futuro agora ainda há tempo de salvar-te? (p. 54)
Abraçou-me e passou a falar dos celtas, dos ibéricos, dos
visigodos, que se uniram de tal modo que seria hoje difícil
isolá-los, pois um só rosto galleto muito tem de cada um, e eles
próprios neste rosto jamais poderiam reconhecer-se ou indicar
que parte dele originou-se da força dos seus sangues. (p. 90)
Com efeito, galeto deriva do topônimo Gallaecia, cujo termo
procede dos celtas, que chegaram ao local por volta de 2300
a.C. Mais tarde vieram os iberos, dominados pelos romanos,
destruídos, por sua vez, pelos visigodos, conhecidos também
como bárbaros. A região ainda foi conquistada no século VIII
d.C. pelos muçulmanos.
Outro ponto que ajuda a compreender a simbologia do conto
diz respeito à origem do termo galiza, cuja raiz indo-europeia
(kala) significava refúgio, abrigo. Em seguida, passou a ser grafada
gall, e a significar mãe, terra. O conceito expresso no conto, de
um encontrar-se com as origens (a mãe terra), encontra respaldo
também quando a narradora conhece uma senhora moribunda,
cujo nome é Amparo. Esse contato corrobora o nascimento de
uma nova mulher, assim como o rejuvenescer da moribunda:
Ela melhorou com meu ato de heroísmo. (...) Comecei a
usufruir-lhe da velha como se tivesse ela vinte anos. (...) Eu me
entregava àquela orgia disposta a mudar a minha vida. Mas,
que vida, afinal. A vida que herdei, a vida que fabriquei, a
vida que me impuseram, a vida que não terei, ou a vida
proibida, que não está na casca da pele, mas na pele íntima do
sangue? (p. 89-90)
Trata-se, pois, de um conto que, como os demais, busca
compreender o próprio ser, construído a partir da aproximação
de fontes culturais diversas.
“I love my husband”, narrado da perspectiva feminina,
traça um quadro da família tradicional brasileira, em que cabe à
mulher a lida doméstica e ao homem o sustento. O conto discute
essa divisão social, sobretudo pela opressão a que é submetida
a mulher, que não tem domínio sobre o próprio corpo, cuja
função é servir sexualmente o marido. Trata-se de uma revolução
silenciosa, que se faz primeiro no espírito, em seu processo de
percepção da realidade, para depois começar a realizar-se nas
palavras, por fim constituir-se como novo mundo.
Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça,
fazendo compras, e por cima reclamo da vida. Enquanto ele
constrói o seu mundo com pequenos tijolos, e ainda que alguns
destes muros venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo
esforço de criar olarias de barro, todas sólidas e visíveis. (p. 51)
Há no conto duas vozes que, paradoxalmente, se
complementam e se distanciam. Complementam-se pela visão
do marido, que acredita ser dotado da tarefa de fazer o país
progredir e necessitar do suporte doméstico fornecido pela
esposa; distanciam-se pela visão da mulher que quer completar-
Com efeito, após essa conversa, a mulher volta a servir seu
marido, dando o suporte necessário: comida, roupa, conforto,
carinho, sexo. Era o que aprendera, era assim na casa de seus
pais. Cabia a ela, manter a tradição, manter a estrutura familiar
intacta. Anular-se para ser:
Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu
casamento. E porque viverás a vida do teu marido, nós te
garantimos, através deste ato, que serás jovem para sempre.
(...) Ele é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a
viva com uma semana de atraso. (p. 56)
Publicado num momento em que a ditadura militar perdia
força (era já o governo Figueiredo, o último presidente militar),
o medo e o silêncio ainda eram ardis para coibir manifestações
mais acentuadas. É o que subsiste nos contos do livro,
particularmente em “I love my husband”, em que a mulher
percebe sua subserviência, reclama por mais liberdade, no sentido
de poder fazer sua voz ser ouvida, mas percebe que o melhor é
manter a vida dentro do padrão que aprendeu. Somente assim
poderia ser uma mulher. Chega mesmo a penitenciar-se:
Estes meus atos de pássaro são bem indignos, feririam
a honra do meu marido. Contrita, peço-lhe desculpas em
pensamento, prometo-lhe esquivar-me de tais tentações. Ele
parece perdoar-me à distância, aplaude minha submissão ao
cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada ano. (p. 57)
Claro que a questão expressa no conto não diz respeito
unicamente à ditadura militar (ainda que seja uma chave de
leitura), mas sim a que trata da subserviência feminina, que
começava a ser questionada dentro dos lares. Como referência,
podemos citar a série da Rede Globo, “Malu Mulher”, em que no
início dos anos 80, Regina Duarte, no papel de Malu, encarnava
a imagem da mulher independente. Separada, tem de trabalhar
para sustentar a filha, namora e abordava questões bastante
polêmicas para a época como aborto, pílula anticoncepcional
e virgindade. O seriado representou a conquista social
empreendida pela mulher. O conto contextualiza a mesma
situação.
O título do conto, em inglês, é retomado em pelo menos
quatro momentos do conto. “Eu amo meu marido”, “Sou a
sombra do homem que todos dizem eu amar”, “Não é verdade que
te amo, marido?”, “Sou grata pelo esforço que faz em amar-me”. A
primeira frase é categórica. É a tradução do título. Mas é a partir
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dela que passa a questionar se seria amor ou apenas obrigação do
casamento. A segunda frase indica a visão de fora. Certamente
aos olhos alheios, o casamento dela é perfeito. E, se é perfeito, o
amor certamente existe. A terceira é questionadora, pois procura
entender a perspectiva do marido, para quem ser amado é ser
respeitado em sua autoridade e ter os serviços domésticos feitos
conforme deseja. Ora, se tudo é feito como imagina, então
deve ser amado... Por fim, a perspectiva é invertida. A mulher,
ironicamente, percebe que, embora não amada de verdade
(chega mesmo a imaginar que o amor poderia acontecer para ela
com outro homem), ao fazer tudo o que marido quer, pensa que
o sentimento do marido poderia, ilusoriamente, ser comparado
ao verdadeiro amor.
O conto é finalizado com a mesma frase com que é iniciado.
É, porém, introduzida por uma interjeição afirmativa que parece
indicar uma constante e necessária obrigação de lembrar-se
do seu amor: “Ah, sim, eu amo meu marido”. Evidente que a
questão toda não deve ser vista apenas como amar e ser amada, e
sim como perda e reconstrução da identidade, que caracteriza os
demais contos presentes no livro.
É o caso de “O ilustre Menezes”, em que se tem
explicitamente a visão masculina, mas para cuja compreensão há
que se ouvir a voz feminina.
Escrito originalmente para uma coletânea intitulada “Missa
do galo”: variações sobre o mesmo tema, o conto obedece à
ideia, proposta pelo escritor Osman Lins, em 1977. Autores
convidados deveriam escrever narrativas diversas tendo como
mote o conto “Missa do galo”, escrito por Machado de Assis
e publicado no livro “Páginas recolhidas”, de 1899. No conto
original, o narrador é Nogueira, um jovem de dezessete anos de
idade que estava no Rio de Janeiro para estudar. Hospeda-se na
casa do escrivão Menezes, viúvo de uma de suas primas e casado
em segundas núpcias com Conceição, uma mulher de trinta anos
de idade que parece se resignar com uma relação extraconjugal
do marido. Vivem na casa, ainda, D. Inácia, mãe de Conceição,
e duas escravas.
Na noite do dia 24 de dezembro, Nogueira fica na sala,
lendo, à espera de um amigo com quem iria à Missa do Galo.
Conceição resolve fazer-lhe companhia e mantém com o rapaz
uma conversação ambígua, em que a sensualidade está presente,
mas não se manifesta de modo explícito.
O conto de Nélida, não por acaso dedicado a Osman Lins e
antecedido por uma epígrafe de Machado de Assis, é narrado da
perspectiva do escrivão. Nélida não subverte o enredo do texto
original, ou seja, Menezes é casado com Conceição, vive com a
sogra também, e, igualmente, mantém um caso extraconjugal, a
despeito da vigilância de D. Inácia e do silêncio incriminador da
esposa.
Conceição poupou-me de maiores explicações. Havia
aprendido que entre casais baniam-se exatamente as palavras
que poderiam exaurir o delicado tema. Desde a primeira noite
decidiu pela obediência. Se a surpreendi alguma vez discreto
pranto, garantiu-me devê-lo às aflições tão próprias da natureza
feminina. (p. 64-65)
O leitor tem, assim, acesso à perspectiva e à explicação do
Menezes para suas atitudes pouco dignas em relação à esposa.
Homem sério perante a sociedade, não se excedia nos gastos e
era respeitado por todos, por isso era ilustre. Mesmo D. Inácia,
que vez ou outra, parecia querer falar-lhe algo, mantinha-se em
posição de defesa, até para garantir o próprio sustento e o da
filha.
Não darei a Conceição outros motivos de queixa além do
que já tem. Os direitos que lhe assegurei, devem tranquilizá-la.
Pode D. Inácia testemunhar a meu favor. (p. 69)
Desse modo, o dinheiro, a necessidade do sustento, tornase uma garantia de que nada fariam para ir contra sua maneira
de viver. Em outros termos, sabendo que, fora do casamento, à
mulher pouco restava como meio de sobrevivência, manipulava
esposa, sogra e também amante, a quem também dava sustento.
Sua amante era uma mulher abandonada pelo marido.
Deu-lhe o singelo nome de Pastora, o que remete o leitor
ao arcadismo, período marcado pela tematização de idílios
amorosos entre pastores, como no caso de “Marília de Dirceu”,
do poeta Tomás Antonio Gonzaga.
Uma das desculpas que Menezes costumava dar em casa era
que saía à noite para ir ao teatro. Certa vez, diz ter visto uma peça
da autoria de Machado de Assis, O protocolo, sobre a qual tece
um comentário bastante corrente sobre o teatro do autor: “uma
comédia muito mais para ser lida e não representada”, motivo pelo
qual o teatro machadiano é pouco ensaiado hoje, em que pese o
alto valor de sua obra como um todo.
Menezes diz gostar de Conceição, com quem vive bem, com
quem pode manter a seriedade que sua função na sociedade exige;
ela lhe é devotada, cuida de sua roupa e da casa. O problema
talvez seja o recato em que se mantém, e também por nunca ter
lhe dito que o amava. O fato serve-lhe como justificativa para
que mantenha a amante, com a qual se sente livre e sem pejo
para realizar fantasias. Pastora parece ser o oposto de Conceição,
o que proporciona ao escrivão novas “experiências”. Ela é mais
bonita e tem atitudes mais intempestivas, “implacável a qualquer
atraso”, ao contrário das atitudes submissas da esposa.
A narrativa caminha assim até a chegada do Nogueira,
primo de sua primeira esposa, Amélia, que lhe pede o favor de
dar pousada por uns tempos, uma vez que era de Mangaratiba e
estava no Rio de Janeiro para estudar.
O conto termina exatamente onde se inicia o conto de
Machado de Assis, com Menezes, após cear com a família,
despedindo-se para ir ao teatro, e Nogueira dizendo que ficaria
na sala lendo à espera do amigo:
Já com o volume nas mãos, tratava Nogueira de acomodar-se
à mesa da sala de jantar, trazendo a si o candeeiro de querosene.
– Se não há mal em perguntar-lhe, primo, que é que vai ler
até a sua Missa do Galo.
O primo levanta-se, acompanha-me à porta. Dá-me o
beneplácito, sem esquecer de acrescentar:
– Leio Os Mosqueteiros.
Ah, belo rapaz esse Nogueira! (p. 77)
No conto original de Machado, Conceição também
representa o papel da mulher submissa, mas ao ficar sozinha,
à noite, ao lado de um rapaz, indica um desejo escondido, que
Menezes não consegue perceber, ao vê-la apenas como “santa”.
Desse modo, o leitor que confronta os dois textos percebe a
ironia da situação. E por esse motivo, antes de sair de casa, diz
que Nogueira é um belo rapaz, isto é, alguém que não irá fazer
nada para atentar contra a ordem estabelecida em sua casa. Na
ótica do escrivão, a leitura de um livro de aventuras era indício
de que era um jovem sonhador, pouco afeito à prática.
A imagem que Menezes faz de sua esposa também pode ser
contrastada na aproximação dos dois contos. Enquanto no de
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Machado, Conceição diz a Nogueira gostar de romances, tendo
como um de seus preferidos “A moreninha”, de Joaquim Manuel
de Macedo, no de Nélida, ela, diante do conselho do marido
para que lesse romances, diz não ter tempo para isso, que havia
muitos afazeres domésticos.
Menezes aceita a explicação e gosta dela, porque “há leituras
que nos suprem com sonhos que a realidade mesmo não comporta.
E se lá fosse Conceição ao seu encalço, teria que abater-lhe as asas”.
Nélida não quis, com isso, contrariar o que fora revelado no
conto de Machado; antes, a passagem serve para ilustrar como
Menezes, que imagina ter total domínio sobre sua esposa, não a
conhece por inteiro.
Assim, enquanto Menezes mantém uma máscara que não
esconde quem é, Conceição, dentro do papel que lhe cabe de
mulher recatada, esconde-se para poder construir sua real
identidade.
Pelo menos três contos de “O calor das coisas” lembram “As
cartas portuguesas”, escritas por sóror Mariana Alcoforado (16401723), de um convento localizado na cidade de Beja, região do
Alentejo, em Portugal, dirigidas a um oficial francês, chamado
DeChamilly, que lhe prometera amor eterno e que a iria tirar
do convento para se casarem. No entanto, a promessa não se
cumpre.
Foram cinco curtas cartas de amor, em que se percebe um
amor incondicional e exacerbado. O tom das cartas vai do
sentimento de esperança à desilusão, por não receber notícias e
correspondência equivalente. A título de exemplo, eis um trecho
da terceira carta:
Que será de mim?....e que queres tu que eu faça?...
Vejo-me bem longe de tudo o que tinha imaginado!
Esperava que me escrevesses de todos os lugares por
onde passasses; que as tuas cartas seriam mui extensas; que
alimentarias a minha Paixão com as esperanças de ainda ver-te;
que uma inteira confiança na tua fidelidade me daria alguma
espécie de repouso; e que ficaria assim em um estado suportável,
sem estrema dor.
Os contos que mantêm uma semelhança, seja pelo tom
confessional, pelo sentir-se abandonado, seja pelo desespero, são
“O revólver da paixão”, “Disse um campônio à sua amada” e “A
sombra da caça”. Em certo sentido, “O sorvete é um palácio”
também lembra “As cartas portuguesas”.
O que os três primeiros têm em comum é o fato de serem
escritos, não necessariamente no gênero carta, da perspectiva
de que foi abandonado, de quem não tem mais perto a pessoa
amada.
No caso de “A sombra da caça”, há, com efeito, uma carta.
Uma mãe escreve ao filho distante física e emocionalmente.
Embora o discurso seja ambíguo, em alguns momentos, pela
sugestão de possível incesto,
Sei que você me quer, sempre diz querida mãe, e
acho que me comovo. Mas, me pergunto, por que não
voltas ao menos uma vez a casa, para chorarmos juntos.
(p. 163)
Mas depois, esse discurso ambíguo se dissolve, e o leitor é levado
a ver o caso como o de uma família destruída pela separação dos
pais e pelo consequente exílio que se autoimpôs o filho. Isso se deu,
segundo a visão expressa pela mulher, porque o pai se dedicava mais
à vida, mais ao trabalho e menos a ela, que se sentia preterida, pouco
desejada. Desse modo, a identidade do casamento foi, aos poucos,
ruindo, nem mesmo o nascimento do filho para que ora se voltava
no depoimento resgatou o amor entre o casal; na verdade, parece ter
contribuído ainda mais para o distanciamento que se formou entre
eles.
Eu precisava desfazer os nós do arame farpado sob o impulso
do dilaceramento, filho, porque nunca amei tanto o pai como
no momento em que o perdi. (p. 167)
Confessa pormenores ao filho do relacionamento que tivera
com o pai, entrando mesmo em detalhes de caráter sexual, o que
a deixa receosa.
No final da carta, reafirma o amor que tem pelo filho e pelo
desejo de saber notícias do marido. Em seguida, ao contrário
do oficial francês em “As cartas portuguesas”, o filho responde,
dizendo que o pai estava morto, mas que antes de morrer,
confessou que a havia amado de fato. No entanto, a falta de
identidade comum os separou:
Um bilhete rápido, mãe. O pai também te amou. (...) Disse
apenas, há muito soltamos os animais no pasto, não resta um
único sonho que colher como magnólia. (p. 170)
“O revólver da paixão” estabelece uma proximidade maior
com “As cartas portuguesas”. Uma mulher, em desespero por ter
sido abandonada pelo amado, escreve-lhe, pedindo para que volte.
Diz ter se excedido no amor, com ataques e inseguranças, mas
que precisa dele para completar a vida, construir uma identidade
comum.
Volte, porque te espero. E se voltares, que fiques sempre
comigo. Não prometo comportar-me a ponto de que vivas
o amor com suavidade. Não sou amena, mas estou viva (...).
Amanhã te escreverei, de novo capítulo ante o meu amor. (p.
110)
“Disse um campônio à sua amada” não se assemelha a
uma carta, embora seja dito que cartas e bilhetes foram escritos
(“Quando me ameaçaste deixar, eu te escrevi.”; “Então te arremeto
bilhete pelo correio,...”). Ainda assim, o tom é em forma de
depoimento. Agora, conforme o título indica, é o homem que
se dirige à mulher. O título também sugere um idílio à maneira
árcade (como no caso de “O ilustre Menezes”), tendo em vista
que campônio é sinônimo de camponês, e, por alusão, a pastor.
Por outro lado, campônio significa igualmente lorpa, uma pessoa
grosseira, boçal, idiota. Os dois sentidos parecem presentes, seja
pela referência às coisas da terra, seja pelas atitudes: “Ana acusanos de sermos criaturas da caverna simulando elegância”.
O eu que narra não tem certeza se irá surtir efeito, mas ainda
assim não teme em revelar sentimentos à mulher.
Este acaba sendo o ponto essencial desses três contos:
sentimentos são revelados sem pudor, sem pejo, sem
preocupação com que outros possam dizer. No último conto, há,
como se pode perceber, referências a uma terceira pessoa, Ana,
que seria uma espécie de interlocutora entre o casal separado.
“O sorvete é um palácio”, por sua vez, também construído
sob a forma de depoimento uma mulher, rica, narra as
vicissitudes em torno de um caso que mantém com um homem
pobre, sorveteiro, casado e pai de três filhos.
A mulher narradora também não é nova (“Esquecida do
espelho a proclamar que a carne não é mais um sortilégio para as
32
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mulheres de minha idade”), e encontra o amor onde menos
esperava, na figura de um homem simples, sem beleza física,
casado e, além de tudo, pertencente a outra classe social. Por
estranho que pareça, esse homem diferente é que lhe devolve
alegria, que contribui para a construção de si mesma, de sua
identidade por inteiro.
Ao seu lado, não sinto medo. A própria vida fortaleceu-me
desde que o vi pela primeira vez nesta manhã. (p. 120)
Começaram a conversar e ele lhe pediu para que fossem
sócios em seu negócio de vender sorvetes na praia. O estranho
do pedido é o que garante a percepção de que um poderia
completar o outro, de se formar um todo. A narradora revela
não ter vida própria, assistia a novelas como meio de projetar
na vida alheia aquilo que não era. Assim, ao ver-se diante de
uma situação estranha, com um homem com vida alheia a sua,
distante física, social e culturalmente, isso poderia completá-la,
a despeito de ele ser casado. (“Viver será transferir para o outro o
que é nosso por direito.”)
Deus sabe que não quero falsas aflições, mas um homem
capaz de interpretar meus sentimentos, serei acaso a última flor
do Lácio? (p. 124)
A “última flor do Lácio” é uma referência a um poema de
Olavo Bilac, intitulado “Língua portuguesa”, em que fala ser o
português o último idioma surgido do latim, falado na região do
Lácio, que deu origem ao Império Romano. Não parece haver
uma relação imediata. Em rigor, o que a narradora quis expressar
é que ela poderia ser a última mulher a encontrar o homem
perfeito e ideal para ela. Poderia ter dito também que era seria “a
última dos moicanos”, por alusão ao famoso romance de James
Fenimore Cooper.
Um momento significativo é que ele vai até a casa dela e se
senta na poltrona que pertencera ao pai e ela na poltrona em
que ficava a mãe. Por analogia, é como se cada qual estivesse
ocupando os papéis, sonhados, de marido e mulher.
A questão a que sempre retorna é o da identidade (“Serei
eu mesma o tempo todo?”). Como construir algo para o qual é
preciso primeiro destruir? Destruir a antiga identidade dele, seu
casamento, abandonar sua vida no outro lado da cidade?
É comum na Europa as cidades divididas em duas, uma
margem pobre, uma outra próspera. (p. 126)
Essa ideia de construção/destruição está metaforizada no fato
de o homem ser sorveteiro, de fabricar para vender um produto
que se perdia com facilidade, que, diante do calor, desaparecia.
Eu respeitava aquele arquiteto a erguer um mundo frágil
pela força da sua vontade. A lidar com formas que o calor
desfazia. (p. 128)
Por esse motivo, o sorveteiro tem sempre de retornar à sua
casa, à sua fábrica, entre idas e vindas e, com isso, o amor entre
ele e a narradora não se totaliza nunca.
O conto que dá título ao livro, “O calor das coisas”, é um
dos únicos narrados em terceira pessoa (os outros são “Coração
de ouro” e, em certa medida, “As quatro penas brancas”). É
uma história de reconstrução (ou até mesmo de construção)
de identidade. Oscar tem um “defeito” físico: é muito gordo.
Evidente que isso não seria problema, mas, sob o olhar dos outros,
o “defeito” o impedia de ser. Seu nome, meio de individualização,
início da identidade pessoal, foi substituído por apelido: era o
Pastel. A própria mãe, ao invés de manter o nome do filho, de
colaborar para sua edificação, adotava a perspectiva dos outros.
Ao Pastel, ainda acrescentava o adjetivo amado, criando o epíteto:
“meu pastel amado”. Desse modo, anula-se totalmente para tentar
ser:
Insurgia-se constantemente contra um destino que lhe
impusera um corpo em flagrante contraste com a alma delicada
e magra. (p. 157)
O seu corpo amanhecia sempre diferente. (p. 158)
Sentia-se um no corpo de outro. Não podia admitir
quem via no espelho. Sentia-se menor, apesar do tamanho.
Um contraste que se realizava todos os dias. Porém, aos trinta
anos (idade em que Cristo iniciou sua pregação, dando novo
rumo à própria vida, para além da revolução social e religiosa
empreendida), dá um grito de independência ao dar início a uma
revolução pessoal, silenciosa no começo, mas que se faz ouvir por
todos. Seu discurso muda, bem como suas atitudes. Descobre-se
gordo, descobre-se um ser completo, único. É a construção de sua
verdadeira identidade, do verdadeiro “eu”.
Oscar surpreendia-se com os encantos da fala. Nunca
o viram discursar com tanto arrebato sobre os objetos que
justamente lhe faltavam à vista. Recém-descobrindo ao seu
alcance o poder de coincidir a sua fome com uma voracidade
verbal que estivera sempre em seu sangue, mas a que não dera
importância, entretido em defender-se contra os que queriam
atirar à frigideira. (p. 161)
A mãe foi contra, os amigos também. Não queriam ouvilo, não queriam deixá-lo construir-se. Manteve-se firme até
completar a revolução.
O conto finaliza com ele na cozinha e a mãe sentando-se ao
lado dele, e o processo se inverte. Ao invés de a mãe conduzi-lo,
guiá-lo, ele é quem passa a vigiá-lo. O texto confirma a temática
norteadora dos demais contos, a busca pela identidade pessoal,
por aquilo que individualiza o ser, mas também o coloca sob um
estigma social.
“As quatro penas brancas” trata do relacionamento entre
quatro homens. Narrado predominantemente em terceira
pessoa, com alternâncias em narrações em primeira pessoa ora
feita por um personagem, ora por outro. Inicia-se com uma frase
de impacto: “Eu faço amor só de porre.” É o que afirma Pedro a
Rubem. Este era casado, vive uma separação tumultuada com a
esposa, que sempre cobra a pensão atrasada e o amor perdido
por ela própria e pelos filhos.
Moradores do Rio de Janeiro, pegam a balsa na Baía da
Guanabara. Rubem, após pedir dinheiro emprestado ao pai
para pagar a pensão, está na balsa, voltando para casa, quando
conhece um vendedor de amendoim, com quem começa a
conversar. Conta-lhe sua história, de que fora rico, tivera boa
vida, e agora sofria as agruras de uma vida difícil, com separação
e tudo o mais.
Em seguida, o vendedor de amendoim, chamado Colombo,
começa a contar sua história de amores e como também sofreu as
agruras financeiras.
Para surpresa do leitor e de Rubem, Colombo diz ter sido
um homem chamado Bulhões:
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Diariamente Bulhões vinha alimentar-lhe o sonho.
Afirmava, a vida está no vinho e na amizade. E queria
Colombo a provar-lhes o gosto. (p. 35)
Após um período de separação, Colombo percebe que
Bulhões fazia muita falta. Age do mesmo modo que os
personagens de outros contos do livro. Envia-lhe cartas, bilhetes,
argumentando para que possam retomar a amizade:
metáfora é retomada em imagens marítimas, como naufrágios
ou arrastar-se para o fundo do mar. Indica tanto a queda de um
mundo, como o arrastar-se para uma vida nova, de descoberta.
Na cena final do conto, os quatro amigos estão num bar
bebendo chope, e Rubem não consegue esquecer-se de que tem
de encontrar sua ex-esposa, para saldar a pensão. No entanto,
gasta todo o dinheiro:
O garçom apresentou a nota. A soma total arrastava para o
fundo do mar o último dinheiro de Rubem. (p. 50)
Bulhões resistiu ainda sete dias. Me queria sofrendo sua
morte, pronto a prestar-lhe honras fúnebres. (p. 36)
De novo vieram a separação e o sofrimento de Colombo, que
imaginou ter descoberto sua América, sua felicidade, ou, para
dizer nos termos do livro, sua identidade.
Após ouvir a história de Colombo, Rubem volta a narrar
sua história com Alice, sua ex-mulher. Aos poucos, percebeu
que Alice representava, mais do que amor, relacionamento de
um casal, apenas a aventura, os passeios. Não se via completo
efetivamente por ela:
Foi um amor sem ciúmes, não fazia sofrer. Os outros podiam
desejá-la, aplaudi-la ao seu lado. Não queria um amor solitário,
ou que lhe faltassem amigos com quem dividi-la. (p. 41)
Reencontrara a felicidade ao descobrir Pedro, amigo de
bebedeiras, de altas conversas. No começo saíam com mulheres,
agiam como dois solteiros. Depois, porém, em um primeiro
abraço, sentiu-se novo, diferente, assim como Pedro. Ambos não
se reconheceram, mas perceberam que poderiam ser algo novo,
diferente. Reconstruir a identidade nos segredos da vida, sem
poder revelar aos outros.
Antes de se despedir de Colombo, quando a balsa atracou,
Rubem o abraçou com gosto e estabeleceram desse modo um
código, que os aproximaria a todos, apesar dos ciúmes que Pedro
sentiu no início. Chegou mesmo a imaginar que Colombo faria
o mesmo que as mulheres, sairia com ele, dilapidaria seus poucos
bens, os que ainda restavam, e depois o abandonaria.
Se Pedro (como no conto “O Jardim das Oliveiras”) diz trair
Rubem de vez em quando, faz isso para chamar-lhe a atenção,
para ver que devem estar juntos sempre:
Rubem é o imbecil que arrasto nas costas, o homem do
bacalhau que promovia o elixir no bonde da minha infância:
veja o ilustre passageiro o belo tipo faceiro que o senhor tem ao
seu lado... (p. 45)
Bulhões, de sua parte, após a separação de Colombo, teve
amores fugazes, com mulheres, viveu de trambiques que aplicava
por conta do sobrenome que evocava personalidades da política.
Vendo que Colombo se arranjara com outro, que parecia ter
dinheiro, voltou a encontrá-lo. Desse modo, o título do conto
se realiza.
A questão do conto gira em torno da liberdade, da
reconstrução da vida, das novas descobertas, metaforizada no
nome do vendedor de amendoim, Colombo, mas também nas
referências a Júlio Verne, romancista francês, autor de livros de
aventura e descobertas, como “Vinte mil léguas submarinas” ou
“Viagem ao centro da Terra”, e ao navegador Vasco da Gama, que
fez a famosa viagem de Portugal às Índias, passando pelo Cabo
das Tormentas, depois Cabo da Boa Esperança, no sul da África.
Sua história está narrada por Camões em “Os lusíadas”. Tal
Assim, a tão sonhada liberdade naufraga ante a necessidade
econômica.
Outro conto que tem como metáfora imagens marítimas é
“A sereia Ulisses”, sobretudo no título, e disseminadas ao longo
do texto. Sereias são mulheres-pássaros segundo a mitologia
grega, e mulheres-peixes segundo as fontes nórdicas, que se
constitui na imagem mais comum e simbolizam principalmente
os perigos do oceano. E Ulisses, uma referência ao rei de Ítaca
que, após participar da famosa guerra de Troia, retorna para
sua terra natal. Esse retorno é narrado na Odisseia. Enfrenta
diversos perigos, entre os quais o de ser seduzido por sereias, que
o levariam à morte na Ilha dos Amores. Alertado, porém, pela
feiticeira Circe, não cai prisioneiro de seus encantos, ao tapar os
ouvidos dos marinheiros e fazendo-se atar no mastro do navio.
Essa é a imagem mais comum das sereias, vistas como símbolo
mitológico das artes da sedução e da atração feminina.
Narrado em primeira pessoa pela mulher, o caso se inverte.
Mais do que seduzir, ela, a mulher, é seduzida e se deixa levar
pelo encanto do objeto do seu desejo. No início da narrativa, era
casada; em seguida, separa-se do marido e se encanta com outro
homem, Pedro de Alcântara Miggioro. A separação se dá porque
não queria, como em “I love my husband”, deixar-se subjugar
pelas vontades masculinas, as vontades do marido.
Ela assume as rédeas de seu destino, como fizera Ulisses. Em
outros termos, a mulher inverte a posição que lhe cabe, e passa
ela própria a se aventurar, e não apenas a esperar pelo amado.
Abandonada por Pedro, que viaja para encontrar-se, construir
sua identidade, a narradora, após viver amores fugazes e sem
importância, empreende viagem para buscá-lo. É como Ulisses
de saias em busca de sua Penélope. Vai a Nova York, depois a
Paris. Não o encontra e volta a ter novos amores.
Ao longo da narrativa, deixa clara sua posição de mulher
que assume o próprio destino:
Eu era uma fêmea com medalhas. (p. 143)
Eu sabia da arrogância masculina. Assim, desde menina,
deixei os homens à minha espera, para que perdessem o brilho
da vaidade. (p. 144)
Não era mulher de bordar numa colcha iniciais eternas que
me seguissem do casamento à mortalha, sem antes danificar a
costura. (p. 145)
Essa última citação é outra alusão à história de Ulisses, cuja
esposa, Penélope, o fica esperando até que ele retorne da guerra
de Troia. Como se passaram anos, Penélope teria de se casar
novamente. Acreditando que Ulisses estaria vivo, prometeu que
se casaria de novo quando terminasse de bordar o novo enxoval.
No entanto, bordava-o durante o dia, e desmanchava-o à noite,
para nunca finalizá-lo. No caso da narradora do conto, a recusa
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é exatamente para não ter de esperar, e sim poder construir o
próprio destino.
Considerando, pois, os contos analisados, podemos dizer
que Nélida Piñon é uma autora pós-moderna, no sentido de
tematizar questões hodiernas, como o feminismo, o respeito às
diferenças, a construção de novas identidades, a reconstrução de
identidades perdidas.
Exercícios
1. Assinale a alternativa incorreta quanto à temática dos contos
em O calor das coisas, de Nélida Piñon:
(A) Em “I love my husband” uma mulher, embora declare
amor pelo marido, demonstra querer ser mais livre.
(B) Em “A sereia Ulisses” a narradora se revela livre para
buscar o próprio caminho.
(C) Em “O ilustre Menezes” temos a ocorrência de
intertextualidade com o conto “A missa do galo”, de
Machado de Assis.
(D) “As quatro penas brancas” trata de um homem torturado
durante a ditadura militar.
(E) “Disse um campônio à sua amada” é escrito à maneira de
uma carta.
2. Uma das constantes na obra de Nélida Piñon é a busca
pela identidade. Assinale a alternativa em que o conto não
apresenta como conteúdo central essa temática:
(A) Finisterre
(B) O ilustre Menezes
(C) O calor das coisas
(D) O jardim das Oliveiras
(E) O sorvete é um Palácio
3. (UEM-PR) Leia os fragmentos a seguir.
“E não é feia, a minha Conceição. Ocorre apenas que os
mesmos encantos que em outra mulher reluzem firmemente,
nela, por mistério que não explico, simplesmente empalidecem.
Com esta verdade, já estou bem conformado. Se ao menos
Conceição soubesse rir!”
“Tanto assim, que mal eu a tocava, Conceição retraía-se
toda, a tremer de frio, depressa recolhendo para dentro do corpo
qualquer gesto que pudesse eu interpretar como generoso.”
“Como prêmio, para certos infortúnios, tenho de Conceição
a sua fidelidade e completa devoção ao lar. Assim, inimigo
mesmo é o tempo a esgotar-se sem cerimônia.”
“Nogueira tem o gosto da leitura. (...) Certa manhã
sugeri-lhe a deixar o livro para trás, seguindo-me até onde,
encontravam-se certos prazeres viris. Pareceu não entender-me.”
01) O conto “O ilustre Menezes”, de Nélida Piñon, pode ser
lido sem se considerar o texto “Missa do galo”, de Machado
de Assis. No entanto, conhecer previamente a narrativa
machadiana implica o alargamento das possibilidades
interpretativas do conto da escritora.
02) Lido a partir da intertextualidade estabelecida com
o conto “Missa do galo”, conforme as informações
anteriormente fornecidas, o desconhecimento de
Menezes, em “O ilustre Menezes”, sobre certos detalhes
relacionados ao comportamento de sua mulher confere
ao texto um tom de ironia e de comicidade. A ideologia
patriarcal, condescendente com o adultério masculino, é
ridicularizada.
04) No que se refere à construção da personagem Conceição,
o conto de Nélida Piñon prima pela ambiguidade e pelo
poder de sugestão. Efetivamente, nada acontece em sua
trajetória capaz de desabonar sua reputação de dona de
casa exemplar e esposa fiel, mas o marido adúltero insiste
em vislumbrar também nela o fantasma da traição.
08) O conto “O ilustre Menezes” é narrado em primeira pessoa
pelo próprio Menezes. Esse afirma que Conceição seria, de
fato, capaz de cometer adultério se lhe fosse apresentada
uma situação favorável. Afirma também que o adolescente
Nogueira pretendia ficar acordado até tarde com o único
propósito de se deparar, a sós, com Conceição.
16) Os textos de Nélida Piñon guardam estreitas relações com
os textos de Machado de Assis, no que se refere ao estilo
denso e intimista, não raro irônico, bem como no que diz
respeito à habilidade de promover o desnudamento dos
melindres da alma humana, suas grandezas e, sobretudo,
suas misérias
Soma:______________
(Nélida Piñon, “O ilustre Menezes”. In: O calor das coisas)
O conto “O ilustre Menezes”, de Nélida Piñon, consiste
em uma reescrita do conto “Missa do galo”, de Machado
de Assis. Trata-se de uma reinvenção da história
machadiana, construída a partir da transferência do
ponto de vista narrativo. A história original é narrada pelo
adolescente Nogueira, agregado da casa, e gira em torno da
“conversação” que ele manteve com Conceição na noite de
Natal, enquanto a casa dormia e ele esperava a hora da missa
do galo. Nessa oportunidade, Conceição se transfigura,
aos olhos de Nogueira, em uma mulher “lindíssima” e
muito sensual que em nada lembra a mulher simplesmente
“simpática” que todos conhecem no dia a dia familiar.
Tendo em vista essas considerações, bem como os
fragmentos acima, o conto ao qual eles pertencem e a ficção
de Nélida Piñon, assinale o que for correto.
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CAPÍTULO VI - Contos novos, de Mário de Andrade: um olhar sobre a modernidade
O livro Contos Novos, de Mário de Andrade, foi publicado
postumamente, em 1947. A morte prematura impediu ao autor
que finalizasse o projeto do livro, que compreenderia doze
contos. No entanto, apenas nove foram efetivamente escritos.
Segundo indicações do próprio Mário, ele iniciou a redação
ainda na década de 1920, tendo-a revisado em diversas ocasiões,
como é o caso, por exemplo, de “Atrás da Catedral de Ruão”,
iniciado em 1927, que passou por, ao menos, cinco revisões até a
finalização, em julho de 1944.
Mário de Andrade iniciou sua carreira no auge da
implantação do Modernismo no Brasil. Ao lado de Oswald de
Andrade e outros diversos artistas, colaborou decisivamente
para a revolução modernista e para a realização da Semana de
Arte Moderna, em 1922. E, como tal, fez diversas experiências
estilísticas, tanto na prosa quanto na poesia, com destaque para
Macunaíma e Amar, verbo intransitivo.
No caso de Contos novos, Mário abandona o experimentalismo
mais radical, em prol de uma narrativa modernista segura e
madura, por assim dizer. As histórias, que se passam em São
Paulo, tanto na capital quanto no interior, têm como objetivo
retratar o processo de urbanização e industrialização, o duelo entre
patriarcalismo e progressismo, denúncia de injustiças sociais e
análise psicológica dos personagens.
Dos nove contos, quatro são narrados em 1ª pessoa pelo
personagem Juca. São eles, na ordem em que aparecem: “Vestida
de Preto”, “Peru de Natal”, “Frederico Paciência” e “Tempo
da Camisolinha”. São narrativas de períodos distintos da vida
do narrador, desde a infância, passando pela adolescência, até
a fase adulta. Nesse sentido, a ordem dos contos é exatamente
ao contrário, isto é, “Tempo da camisolinha” seria o primeiro,
“Frederico Paciência” o segundo; “Peru de Natal” o terceiro; e,
finalmente, “Vestida de Preto”, o conto que compreende os três
grandes momentos da vida do narrador.
O objetivo de todos parece ser a de tentar entender quem
foi, que aspectos da vida levaram o narrador a ser o que é, bem
como, já na quase velhice, tentar compreender as atitudes que
tomou nos momentos específicos de sua vida. Também, pode-se
dizer, são contos em que o peso do lirismo é mais acentuado,
em que recompor uma imagem perdida é mais importante
que a análise social.
Em “Vestida de Preto”, logo de início, o narrador expõe
duas questões importantes, uma de ordem literária, tendo em
vista a preocupação em determinar o gênero literário do que irá
escrever:
Todos andam agora preocupados em definir o conto que não
sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade.
(p. 23)
Há, na dúvida, uma clara manifestação de defender o que
narra, tomando-o como expressão da verdade. Trata-se de uma
técnica literária, para conferir verossimilhança ao que se diz.
A segunda questão é de ordem psicanalítica. As teorias de
Freud foram largamente utilizadas, em especial pelos primeiros
modernistas, como meio de compreensão do ser, cingindo entre
o que se é de fato e o que se tem de ser para uma aceitação social.
Essas duas questões, do ser e do que se tem de ser, ou do não ser,
coadunam-se com o todo do conto, uma vez que Juca narra a
amizade que tinha por uma amiga de infância, Maria, bem como
o amor que poderia ter se realizado de modo mais pleno entre
eles. Embora afirme que Maria tenha sido seu primeiro amor, a
realização de fato não ocorre. Fica apenas a ideia do que poderia
ter sido. O primeiro contato mais íntimo aconteceu quando
tinham cinco anos: brincavam quando foram surpreendidos por
uma tia, que os admoestou para que não ficassem sozinhos. A
partir desse momento, perceberam que faziam algo que poderia
ser visto como proibido, mesmo sem entender o porquê. Em
outros termos, a tia Velha mostrou, indiretamente, que não
poderia fazer algo apenas porque queriam, mas precisariam ver
que nem tudo seria aceito socialmente. Se Juca permanece “fiel”
a esse momento, não se pode dizer o mesmo de Maria, que,
apesar de um primeiro beijo aos 10 anos, escolheu outra vida,
escolheu afastar-se de Juca. O que poderia ser o início de um
relacionamento a despontar na adolescência tornou-se apenas
um beijo e nada mais. Maria se distanciou de Juca e passou a
ignorá-lo, sem razão aparente:
O estranhíssimo é que principiou, nesse acordar à força
provocado por tia Velha, uma indiferença inexplicável de Maria
por mim. Mais que indiferença, frieza viva, quase antipatia. (p.
26)
A explicação talvez se dê pelas diferenças socioeconômicas
entre eles. Enquanto ela pertencia a uma família de certas posses,
que lhe permitiam fazer viagens à Europa, por exemplo, ele tinha
que se contentar com uma possível riqueza conquistada com um
hipotético prêmio da loteria. Além disso, há o problema que
Juca passa a ser visto como o esquisito que quis beijar a prima, o
que não se apega às regras; ao passo que Maria é a certinha. Para
manter tal imagem, ela começa a evitá-lo.
O conto acaba por se revelar uma análise de caráter
psicológico, visando à compreensão do porquê das escolhas de
cada um. O leitor é levado a crer que Maria também deveria
amá-lo, mas nunca quis aceitar tal sentimento; seria dar razão
à tia Velha, que os surpreendera em atitude suspeita. Seria
também rebaixar-se às atitudes “condenáveis” de Juca.
A vida de ambos se distancia mais e mais. Enquanto Juca
permanece “fiel” a esse amor da infância, ironicamente, para
escândalo geral, ela passa a namorar todos que aparecem, fica
noiva com um jovem, rompe e vem a se casar com um diplomata
e vai morar na Europa, onde fica cinco anos sem nenhum
retorno ao Brasil.
Antes do casamento, encontram-se poucas vezes, mas o
contato, seja por alusão, seja lembrança, faz-se constante da
parte dele, a ponto de a mãe dela declarar que seria bom se os
dois tivessem se casado, pois assim ela ficaria mais próxima da
família. A declaração causa grande estranheza a Juca, por conta
mesmo do que descobrira, ainda na infância, sobre as diferenças
econômicas entre eles.
O último grande momento de sua vida com Maria ocorreu
quando vai procurá-la ao saber que estava separada e de
volta a São Paulo. Imaginava que poderia retomar o contato
infantil, o beijo inocente, ao mesmo tempo em que sabia que
certamente seria o último encontro. E é o que de fato acontece.
O reencontro é repleto de elementos simbólicos, como ter de
esperá-la em uma “saletinha da esquerda”, pois a família estava
num banquete. Maria está com vestidinho preto (por isso o
título do conto), que desperta sua fantasia, leva-o a imaginar-se
com ela. Mas, em nome do passado, de um amor mais puro, ou
de seu orgulho, despede-se apenas com um frio boa-noite:
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[...] meu desejo era fugir, era ficar e ela ficar, mas, sim, sem
que nos tocássemos sequer. Eu sei, eu juro que sei que ela estava
se entregando a mim, me prometendo tudo, me cedendo tudo
quanto eu queria. [...] Balbuciei afinal um boa-noite muito
indiferente... (p. 31)
Juca, apesar de outros dois relacionamentos, sabia-se perfeito
e completo apenas com Maria. Aqui podemos estabelecer
analogia entre o relacionamento e o ato criador. O objetivo da
criação literária é atingir a perfeição estética, capaz de levar o
leitor a sensações singulares e a uma experiência sensorial única.
Também Juca sabia que apenas Maria o levaria a essa perfeição,
a essa sensação, que se esvai ante o prosaísmo da vida. Por isso,
preferiu preservar a imagem da perfeição e não a da mulher
pervertida. Podemos também dizer que era melhor, naquele
momento, preservar a honra machista a se “manchar” com uma
mulher de “moral duvidosa”.
Sensação estranha é a que desperta nele a amizade com
Frederico Paciência (do conto homônimo), rapaz que estudava
com ele no seminário. A descrição inicial sugere mais do que
uma simples amizade; na verdade, um amor velado, que não
poderia eclodir, tornar-se explícito aos olhos de todos:
Senti logo uma simpatia deslumbrada por Frederico
Paciência, me aproximei franco dele, imaginando que era
apenas por simpatia. [...] Quis ser ele, ser dele, me confundir
naquele esplendor, e ficamos amigos. (p. 96)
Se Frederico é uma espécie de sol, Juca seria seu oposto. Tido
como garoto problema na família, desde o episódio com Maria,
Juca vivia criando problemas na escola. Frederico se apresenta
a ele como uma espécie de salvação. Por isso, aproxima-se mais
ainda dele. No entanto, o conto se constrói em direção a um
clímax sem desfecho esperado. Em outros termos, o conto
apenas sugere o princípio de um relacionamento homossexual.
Estabelecendo uma analogia com “Vestida de preto”, aqui
também os interditos individuais e sociais impedem a realização
plena da “amizade” entre ambos.
E a vida de Frederico Paciência se mudou para dentro da
minha. [...] Os domingos dele me pertenceram. (p. 98)
com constrangimento. A amizade se restabeleceu, embora com
alguns arranhões. Causava também desconfiança entre os demais
colegas, a ponto de ambos terem de brigar contra os outros,
defender a “pureza” da amizade. Não havia ambiguidade nisso,
apenas certeza. Juca tem mesmo de criar um discurso para
expressar a verdade entre eles, defender a verdade de ambos,
de que eram apenas “bons amigos”. Interessante que o faz
revelando-se um artista, o que cria e recria a realidade. Por isso, o
que era para sedimentar a amizade, acaba por iniciar o processo
de separação:
Mas de tudo isso, do livro, da invencionice dos colegas,
da nossa revolta exagerada, nascera entre nós uma primeira
estranha frieza. (p. 105)
A frieza aumenta à medida que se aproxima a época da
formatura, quando cada um pensa em seguir uma profissão.
Frederico tem planos de ir ao Rio de Janeiro. É o momento
também em que Juca conhece uma de suas duas namoradas,
Rose, distanciando-os ainda mais. De íntimos, passaram a ser
colegas, amigos apenas. Era o processo se repetindo, o mesmo
que levara Juca a ficar distante de Maria, ainda que por razões
diversas. Se Maria o completaria mesmo no momento da
separação definitiva, a figura de Frederico foi deixando de exercer
esse papel na vida do narrador, que, em dado momento, afirma
não querer mais ser Frederico Paciência. Em outros termos, já
não precisava da projeção do outro para ser, para constituir-se
completo. O que era perfeito tornou-se paradigma de erro.
A morte do pai de Frederico, porém, devolve, por breve
instante, a mesma sedução de outrora, a mesma relação de
completude que poderia ter se estabelecido entre eles, ainda
mais quando Juca expulsa um homem que queria se aproveitar
da morte para fazer negócios. Ao ficarem sozinhos, enquanto
conversam sobre o futuro, os gestos de ambos denotam algum
desejo de sedução, falam por subentendidos, de maneira
ambígua, olham-se. A figura do morto, no entanto, se interpõe
e, de novo, distanciam-se:
Talvez nós não pudéssemos naquele instante vencer a
fatalidade em que já estávamos, o morto é que venceu. (p. 111)
Um episódio marcante e sugestivo ocorre quando Frederico
vê Juca lendo um livro sobre a história da prostituição. Leitura
proibida para jovens, ainda mais em uma escola de padres, onde
estudavam. Frederico lhe pede para ler o livro, o que cria um
sentimento confuso em Juca, pois não queria se “entregar” tanto
assim, permitir-lhe saber de “segredos” no campo da sexualidade,
ao mesmo tempo em que compartilharia dos “segredos” do
amigo. Algo que retiraria a “pureza” da amizade. Apesar disso, o
caso os tornava mais “íntimos”, uma amizade mais carregada de
segredos mútuos, e num campo perigoso, a sexualidade:
Em outros termos, mesmo morto, o papel do pai, do homem
castrador, da sociedade repressora dos instintos proibidos, faz-se
presente na mente de ambos. Anos depois, quando Frederico já
estava no Rio de Janeiro, conforme seus planos, a mãe vem a
falecer. É bastante significativa a fala do narrador ao comentar
essa outra morte:
Passei noite de beira-rio. Nessa noite é que todas essas ideias
de exceção, instintos espaventados, desejos curiosos, perigos
desumanos me picavam com uma clareza tão dura que varriam
qualquer gosto. Então eu quis morrer. Se Frederico Paciência
largasse de mim... Se se aproximasse mais... Eu quis morrer. Foi
bom entregar o livro, fui sincero, pelo menos assim ele fica me
conhecendo mais. Fiz mal, posso fazer mal a ele. (p. 101)
Sua narração é depois bastante ambígua; ao mesmo tempo
em que sabe ser meio de reatar a “amizade”, aproximar-se de
vez de Frederico, fica feliz que não pode fazê-lo. Envia-lhe um
telegrama para dar-lhe os pêsames, mas nunca recebe a resposta,
o que indica o fim definitivo do relacionamento entre eles. Ao
final, porém, sugere, a partir do sobrenome de Frederico, a causa
de não terem tido nada, é que talvez ele fosse muito paciente,
muito vagaroso.
Em “Peru de Natal”, Juca, ciente de sua condição de
“louco” da família, resolve romper com a mesmice dos outros
O resultado foi um mal-estar entre eles, a ponto de Frederico
declarar que a leitura não fora bom para ele; devolvia o livro
Desta vez o cadáver não seria empecilho, seria ajuda, o que
nos salvou foi a distância. Não havia jeito de eu ir ao Rio. Era
filho-família, não tinha dinheiro. (p. 113)
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natais da família. Com a morte do pai, ocorrida cinco meses
antes, Juca quer dar novo rumo à própria história e levar os
demais membros da família (mãe, irmã e tia, a quem Juca chama
de as “três mães”) a sentir um pouco de prazer, sem pejo, sem o
olhar castrador do pai, homem correto, mas que não se permitia,
nem à família, momentos de pequenos prazeres. Porém, pelo
pouco tempo decorrido, a figura do pai se fazia presente naquela
família, bem como o olhar social, que poderia reprovar a atitude
da família de comemorar sem sobriedade o Natal, que se
realizava ainda sob o peso do luto.
Dessa forma, Juca é a expressão da loucura, da fuga das
normas, em direção à realização de um prazer fugaz. Apoiadas
nessa ideia, a de seguir um doido, um desvirtuado, como meio
de não perturbá-lo mais, aderem ao desejo e se deixam levar por
ele:
logo no início do conto, referência idêntica à descrição feita do
personagem nos outros contos.
O título é uma alusão à infância do narrador, que fora
marcada porque o pai queria que ele tivesse o cabelo “de
homem” e não aqueles cacheados que poderiam afeminá-lo.
O caso se presta a outras recordações, sobretudo a um resgate
de um momento que colaborou para sua formação como ser,
como indivíduo. A perda dos cachos indicava o fim da primeira
infância (sete ou oito anos), em direção à pré-adolescência.
Talvez por isso tenha ficado tão bravo, choroso, como se quisesse
manter-se naquele estado anterior.
O segundo momento do conto se inicia com uma viagem
de férias, por dois meses, a Santos, férias de gente sem grandes
recursos, como o narrador procura enfatizar, que tinha de alugar
uma casa distante da praia:
Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam
felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que
eu estourara. (p. 91)
Interessante que, nesse caso, Juca se entrega à satisfação do
desejo sem pejo, sem qualquer medo, sem qualquer interdito, ao
contrário do caso de Maria e Frederico Paciência. É bem verdade
que o ato de comer um peru no Natal pode não ter a mesma
dimensão “pecaminosa” de um relacionamento íntimo, como
os que se anunciaram para ele. Mesmo assim, o efeito simbólico
é o mesmo, em particular no que diz respeito à projeção da
felicidade. O ato de comer o peru é meio de escapar da vida
imediata, da vida cotidiana e atingir uma espécie de céu. É sair
da vida prosaica, banal, para atingir o sublime:
A casa que papai alugara não ficava na praia exatamente,
mas numa das ruas que a ela davam e onde uns operários
trabalhavam diariamente no alimento de um dos canais que
carreavam o enxurro da cidade para o mar do golfo. (p. 133)
Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que
a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe,
paixão de filhos. [...] Naquela casa de burgueses bem modestos,
estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus.
(p. 92)
Para completar a inversão, a mudança, é o próprio Juca
quem serve às suas “mães”, que começam a se deliciar, de modo
a lembrar um ritual dionisíaco, de busca do prazer, de uma
satisfação quase pecaminosa. O clímax ocorre quando Juca se
lembra do pai, cuja imagem fica mais forte quando sua mãe o
menciona e diz que só estava faltando ele. No entanto, caso não
faltasse essa figura castradora, certamente não estariam tendo
aquele prazer. Por isso, Juca faz aos poucos desaparecer a figura,
deglute-a, por assim dizer e, mais do que isso, transforma-a. O
pai estaria feliz com aquela festa, com aquela transformação.
Desse modo, o pai perde o ranço castrador. “Papai virara
santo, uma contemplação agradável, uma inestortável estrelinha
do céu”. O conto, escrito entre 1938 e 1942, remete o leitor à
antropofagia de Macunaíma, cujos fundamentos eram o da
deglutição de determinados valores que passariam por um
processo de transformação em novo ambiente. Assim também
acontece com a família de Juca, a qual se deixa levar por esse
momento libertador. É como se o louco narrador usasse de sua
arte, de suas ideias inusitadas para provocar a catarse nos demais
personagens e, por extensão, no leitor.
No fim, o pai desaparece e resta apenas o peru e a
consequente satisfação de tê-lo devorado.
“Tempo da Camisolinha”, por sua vez, apresenta como
narrador outra pessoa, Carlos, mas, pelas indicações ao longo
do conto, parece ser a mesma pessoa dos outros três contos.
Ainda mais se consideramos a descrição dos cabelos cacheados
Isto é, estavam próximos do canal de esgoto. O objetivo
principal da viagem era para restabelecer a mãe de Carlos, que
tivera um último parto difícil e precisava descansar.
O narrador diz que o ponto positivo era ver o pai mais
próximo, mais receptivo, o que normalmente não era,
fosse para manter a autoridade, fosse para não se envolver
sentimentalmente com a família.
Carlos diz não ter gostado do mar: tinha medo de entrar na
água. Mas gostava de brincar na areia, de estar na praia, onde
um dia um pescador lhe deu três estrelas-do-mar, dizendo que
quem as possuísse teria muito sorte. Carlos estabelece então uma
relação fetichista com as estrelas, imaginando que elas lhe dariam
tudo, possibilitariam o sucesso que desejasse. Tudo girava em
torno das estrelas, que, passaram a ser seu guia, sua fonte de
alegria:
Que goiabada nem Mané goiabada! Eu estava era pensando
nas minhas estrelas, doido para enxergá-las. E nem bem o
almoço se acabou, até disfarcei bem, e fui correndo ver as
estrelas-do-mar. (p. 137)
Mas algo veio para alterar essa relação. Um dos operários da
obra ao lado, um português, resmungou que vivia um período
de má sorte, pois sua esposa era paralítica e os filhos, todos
pequenos, enfrentava dificuldades financeiras. Carlos pensou
logo em suas estrelas e em como elas o tornavam feliz. Em
seguida, pensou que poderia fazer algo pelo operário: bastaria
entregar-lhe uma de suas estrelas que ele seria feliz. Foi um
momento doloroso ter de se desfazer de uma de suas estrelas-domar, ainda mais sendo a maior
A relação que se pode estabelecer entre esse momento e o
início do conto reside exatamente na passagem de uma fase da
vida para outra. Na primeira, era uma criança para quem todos
voltavam seus cuidados; perder os cabelos cacheados indicava
outro momento, representado no caso pelas descobertas,
simbolizadas naquelas feitas durante a viagem a Santos e, mais
ainda, no momento de socialização da criança, que se debate
entre “ajudar” ou não alguém necessitado. Embora opte pela
ajuda, por uma atitude altruísta, sofre muito pela segunda perda,
no caso uma das estrelas:
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Eu corri. Eu corri pra chorar à larga, chorar na cama,
abafando os soluços no travesseiro sozinho. Mas por dentro era
impossível saber o que havia em mim, era uma luz, uma Nossa
Senhora, um gosto maltratado, cheio de desilusões claríssimas,
em que eu sofria arrependido, vendo inutilizar-se no infinito dos
sofrimentos humanos a minha estrela-do-mar. (p. 141)
Esse sentimento é causado porque, claro, o operário não
entendeu como uma estrela-do-mar poderia ajudá-lo a resolver
seus problemas. Se para Carlos ela era tudo, tinha uma utilidade,
era um fetiche, para o outro não significava nada.
Além disso, no conto a idealização se confronta com a
realidade. Se, nos demais contos, a felicidade está no outro
(Maria ou Frederico) ou num ato (comer o peru), aqui a
felicidade está primeiro em algo que lhe pertence (os cabelos)
e depois em um objeto ganho (as estrelas). Mas acaba
perdendo tanto um quanto outro, o que gera um processo de
amadurecimento.
Cinco são os contos narrados em 3a pessoa (“O Ladrão”,
“Primeiro de Maio”, “O Poço”, “Atrás da Catedral de Ruão” e
“Nélson”). Os três primeiros apresentam um componente social,
de inspiração neorrealista, ao passo que os dois últimos têm
como ponto central questões de ordem existencial.
Tratemos um pouco sobre cada um desses contos.
“O Ladrão” é um conto desenvolvido a partir de uma
crônica. O título é um pouco enganador, uma vez que,
apesar de a primeira frase ser “Pega!”, em nenhum momento
fica efetivamente claro que havia um ladrão na história. O
objetivo era propriamente esse, causar um pequeno tumulto na
madrugada de um bairro em São Paulo, em perseguição a um
suposto ladrão.
O grito de “Pega!” faz toda a vizinhança acordar e se espantar.
À medida que um guarda e o autor do grito inicial começam a
perseguição, os moradores vão reagindo de modo diverso, desde
o medo e o pânico até atingir a histeria. Apesar disso, forma-se
uma união em torno do objetivo de capturar o ladrão. Assim,
mais e mais pessoas se juntam aos dois, e cada um expressa o que
teria visto ou imaginado. Um dizia que ele estaria no telhado,
outro que já havia fugido do local. No entanto, ninguém de fato
vê o tal bandido.
Ainda assim, todos se mantêm atentos a alguma novidade.
Em paralelo a isso, os personagens vão se conhecendo, falando
um pouco de si para os demais, as mulheres oferecem café, os
homens conversam sobre futebol e outros assuntos. No fim,
pode-se dizer que toda essa movimentação serviu para quebrar
a rotina em uma cidade que se industrializava, que crescia na
década de 1930, transformando a sociabilidade, o modo de as
pessoas se relacionarem. Com o episódio, puderam ver o rosto
de seus vizinhos, conhecer eventuais problemas, conversar,
enfim, conhecer-se:
Os perseguidores tinham bebido o café, já agora
perfeitamente repostos em suas consciências... Lhes coçava um
pouco de vergonha na pele, tinham perseguido quem?... Mas
ninguém sabia, uns tinham ido atrás dos outros levados pelos
outros, seria ladrão?... (p. 42)
No conto “Primeiro de Maio”, há, como o título indica,
uma tematização da questão trabalhista e democrática. O conto
foi escrito em 1934 e revisto em 1942, auge do Estado Novo,
época marcada pela repressão do governo Getúlio Vargas. O
personagem principal é identificado apenas por um número, o
35, que remete o leitor a dois aspectos: a Intentona Comunista
abafada pelo governo em 1935 e também uma referência à ideia
de que o trabalhador seria visto como um número, excluindo-se
dele sua humanidade. Pois bem! Esse 35 perambula pelas ruas do
centro de São Paulo em comemoração ao dia do Trabalhador,
ao mesmo tempo em que faz reflexões sobre repressões que os
trabalhadores sofriam em outras cidades, como em Santiago,
Madri, Paris, etc. Seu grande sonho é que o trabalhador possa
ter um dia o que comemorar, ser respeitado em seus direitos,
bem como viver em um país com ampla liberdade, democrático.
Desse modo, sua classe poderia comemorar a data sem nenhum
tipo de repressão:
Esses movimentos coletivos de recusa acordaram a covardia
de 35. Não era medo, que ele se sentia fortíssimo, era pânico.
Era um puxar unânime, uma fraternidade, era carícia dolorosa
por todos aqueles companheiros fortes tão fracos que estavam ali
também pra... pra celebrar? pra... O 35 não sabia mais pra quê.
(p. 50)
“O Poço”, por sua vez, conta a história em que se opõem
um rico fazendeiro, Joaquim Prestes, homem já de idade,
responsável por trazer novidades à região de Mogi, como o
cultivo de mel e o automóvel. Ele também mandara construir
um pesqueiro no terreno e contratara trabalhadores para
cavar o poço do tal pesqueiro. O conto faz claramente uma
crítica social, uma vez que demonstra a posição impassível do
fazendeiro para atingir seus projetos, em claro detrimento do
bem-estar dos empregados, que precisam trabalhar além do que
poderiam aguentar para dar conta do prazo estabelecido. E ainda
precisavam suportar o frio durante as madrugadas:
O frio estava por demais. O café queimando, servido pela
mulher do vigia, não reconfortava nada, a umidade corroia os
ossos. O ar sombrio fechava os corações. (p. 77)
O clímax do conto ocorre quando Joaquim Prestes vistoria
a obra para decidir se aceita interromper a obra por uns dias, até
o frio e a umidade passarem, e deixa cair sua caneta preferida,
uma caneta-tinteiro. Exige então, de modo tirano, que os
empregados peguem a caneta no poço escuro, sob perigo de
desmoronamento. Albino, um empregado raquítico e doente,
por ter o corpo mais franzino desce para tentar encontrar a
caneta no poço. Trabalharam o dia todo, em busca da caneta,
sem sucesso. Albino, todo enlameado, saiu do poço para
descansar:
O rapaz estava que era um monstro de lama. Pulou na terra
firme e tropeçou três passos, meio tonto. (p. 81)
Apesar disso, o fazendeiro não queria corpo mole, queria
que continuassem a descer. Em um acesso de raiva, porém, José,
irmão de Albino, revoltou-se e disse que ninguém mais desceria.
Instala-se o impasse. Tal episódio ilustra bem o clima de disputa
entre patrões e empregados em um contexto de pouca liberdade
e de poucos direitos à parte mais fraca.
José impediu que Albino descesse novamente e disse que
iriam embora daquele trabalho. Joaquim concordou e dispensou
a ambos, não sem antes dizer a José que ele não poderia agir
assim diante de um patrão, senhor de seus empregados...
Dois dias depois, os empregados conseguiram tirar a caneta
do poço e devolvê-la a Joaquim, que, sozinho, ao tentar usá-la,
viu que estava estragada. Então:
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Jogou tudo no lixo. Tirou da gaveta de baixo uma caixinha
que abriu. Havia nela várias lapiseiras e três canetas tinteiro.
Uma era de ouro. (p. 88)
Esse final diz tudo. Por um capricho, arriscara a vida de seus
empregados, que, alienados, tiveram de cumprir uma ordem sem
poder efetivamente contestá-la. Quem o fez, teve de deixar o
emprego.
O caso de “Atrás da Catedral de Ruão” é mais de ordem
sexual. Trata-se da história de uma professora de Francês,
solteira, com quarenta anos, que faz de tudo para reprimir seus
impulsos sexuais. Na primeira parte do conto, ela está dando
aulas de Francês para duas irmãs adolescentes, ricas e que já
haviam ido à França. Ela fora uma vez, com muito custo e à base
de economia.
O pai das meninas era muito ausente, sempre viajando.
Conforme fica sugerido, teria amantes, até que vem a abandonar
a família.
A conversa e a aula entre elas são repletas de subentendidos,
de reticências e também de reprimendas. Enquanto estimula o
desenvolvimento das meninas, ela própria procura se reprimir:
E Mademoiselle, sempre na sua blusa alvíssima de rendinhas
crespas, caíra naquele mundo mágico de anseios que era o das
duas adolescentes, como conversaram! Como viajaram e viveram
experiências desejadas, aqueles primeiros dias! Mademoissele
soltava petits cris excitadíssima, pedindo mais detalhes...
(p. 57-58)
O ápice de narrativa se dá quando as meninas contam sobre
um estupro ocorrido atrás da catedral de Rouen, na França,
praticado por um homem barbudo. Conforme o narrador,
não se sabe se a história seria real ou inventada pelas meninas.
O fato é que isso estimulara a imaginação da professora, que se
mostrava preocupada e, digamos, meio esperançosa de que isso
lhe pudesse ocorrer também:
A catedral contava tudo. E era deliciosamente punidor o
tudo que contava a catedral. (p. 60)
Quando voltava para casa de bonde, desce no ponto errado,
o que a obriga andar um pouco e a passar atrás de uma igreja.
Em seu inconsciente, ela estaria sendo perseguida por dois
homens e imagina-se atacada por eles. Na verdade, eram dois
homens que apenas passavam por ela, sem nenhuma intenção de
agredi-la sexualmente.
Ela fica toda preocupada e aperta o passo; entretanto, os
sujeitos conversavam despreocupadamente, sem se importar com
ela. Tudo não passava de delírio. Delírio que já começara antes
mesmo desse episódio, quando imagina o que poderia se passar
atrás de uma catedral, atrás de uma igreja. Um misto de coisa
proibida e desejada:
Não vê igreja solta, que não lhe brote a fatalidade de passar
por detrás. (p. 66)
Na ocasião em que desce no ponto errado, começa a
imaginar o que poderia lhe acontecer, tenta disfarçar e afastar-se
de qualquer homem, sobretudo os com barba, ao mesmo tempo
em que fica procurando. O misto de proibição e liberação se
acentua em sua mente, a ponto de imaginar-se sendo pega por
trás, pelo pescoço.
Ao final do conto, já diante da pensão onde morava, quando
os homens que supostamente a perseguiam passam por ela,
Mademoiselle, a professora, dirige-lhes a palavra, agradecendo
pela “companhia”... Os tais homens, obviamente, não
entenderam nada, e ela “subiu as escadas correndo, foi chorar”.
O choro, no caso, representa tanto a decepção por ter sido
apenas uma fantasia quanto a vergonha de seus desejos, refreados
pela sua consciência puritana, por força das circunstâncias.
Como o conto é sobre uma professora de Francês, há
uma série de expressões em francês, mas que não chegam
efetivamente a atrapalhar a compreensão do texto porque, em
seguida, tais termos são traduzidos pelo contexto, o que facilita o
entendimento da leitura.
O último conto presente no livro é “Nélson”, em que se
narra a história de um possível mistério. No caso, alguns rapazes
tentam decifrar o mistério de um homem que bebe sozinho em
um bar. Cada um expõe sua visão acerca dele, que percebe ser
alvo dos comentários diversos. A técnica narrativa, que podemos
classificar de cubista, consiste em construir um enredo a partir
de perspectivas variadas. Em outros termos, uma visão única,
totalitária, é substituída por visões fragmentadas.
Das diversas visões, o leitor fica sabendo que ele fora
apaixonado por uma paraguaia. Após saber mais sobre a Guerra
do Paraguai, ocorrida entre 1864 e 1870, ela o abandona sob a
alegação de que o Brasil teria massacrado seu país nessa ocasião.
Outro diz que o tal homem teria participado da Coluna Prestes,
movimento armado ocorrido entre 1925 e 1927 que queria
reformar o país, minando as estruturas da chamada república
Velha (1894-1930). O problema é que não se tem certeza se ele
teria lutado contra ou a favor da Coluna, quando teria também
machucado o braço, atacado por piranhas, quando se escondia
de um ataque inimigo:
– Eu não sei bem... tudo no detalhe. Como o Alfredo, eu
não sei... Foi na Coluna Prestes... nem tenho certeza se ele estava
com o exército ou com os revolucionários. Devia ser com estes
porque ele era rapaz, se vê que não tem trinta anos. (p. 119)
Importante lembrar que o conto foi escrito em 1943,
portanto o episódio narrado deve ter se dado na década de 30,
por volta de 1935. Por isso, a suposição de idade feita pelos
rapazes.
A partir dessas suposições, cada qual procura determinar a
explicação mais plausível, mais verossímil, isto é, mais digna de
verdade:
– Pois ele gostava tanto da paraguaia que acabou cedendo,
imaginando que aquilo havia de passar... (p. 124)
E adiante:
– Foi por causa da Guerra do Paraguai... O homem ficou
feito doido... (p. 125)
Nelson, o tal homem alvo dos comentários, já havia
percebido que falavam dele. Esperou um pouco mais, até que
resolveu ir embora. Sua partida não é isenta de mistério:
E foi saindo muito rápido, escorraçado, sem olhar ninguém,
sem esperar resposta nem troco. Era incontestável que fugia. (p.
127)
Do lado de fora, o mistério continua, e ele se sente
perseguido. Faz de tudo para despistar a todos, até que consegue.
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O conto finaliza como começou, isto é, sem uma explicação
reveladora do que de fato se passara com Nelson, qual das
histórias seria a verdadeira. E talvez não seja mesmo o objetivo, o
que permite ao leitor também contribuir para determinar o que
seria a verdade do conto. Talvez o objetivo fosse mesmo apontar
para a situação existencial humana no novo e moderno tempo
nacional: todos nos tornamos desconhecidos, um mistério antes
para nós mesmos. O final é metafórico em relação a isso:
defesa do presente e no desprezo pelo passado.
(E) contraria um traço expressivo da obra poética do autor, ao
repudiar a oralidade valorizada nos poemas da primeira
geração modernista.
3. Leia o fragmento da obra Contos novos, de Mário de
Andrade, e assinale a alternativa CORRETA.
“Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai.
Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro,
eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos
têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei
o peru a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente
obstruidora.
– Só falta seu pai...” (p.74).
a) O trecho acima refere-se ao conto Vestida de Preto
b) A luta entre o peru e o vulto do pai do narrador acontece
num almoço de Páscoa.
c) O narrador não se liberta da figura do pai.
d) O peru representa a figura do pai somente na Páscoa.
e) Durante a refeição os comensais não se libertam da presença
opressora do patriarca.
Num momento, se dirigiu quase num pulo para a porta,
abriu-a, deslizou pela abertura, fechou a porta atrás de si,
dando três voltas à chave. (p. 129)
Esse conto era um dos que Mário de Andrade ainda
pretendia rever. Apesar de não ter podido fazê-lo, a ideia está
pronta e é sugestivo que o leitor também é convidado a tomar
parte no mistério, não apenas desse conto em particular, mas
igualmente dos outros. Cabe ao leitor, pois, completar as lacunas
e determinar significados possíveis.
Exercícios
4. (Unemat-MT) Sobre Contos Novos, de Mário de Andrade,
1. (Cefet-PR) Sobre Contos Novos é Correto afirmar:
(A) O humor, tema caro ao Mário de Andrade da primeira
fase modernista, está colocado em segundo plano nesse
livro, e aparece, agora, em pouquíssimas passagens dos
contos, confirmando a maturidade estética do autor.
(B) Os contos são introspectivos, ou seja, o narrador muitas
vezes procura apreender o que se passa no inconsciente dos
personagens, o que faz com que esse livro se inscreva numa
tradição de narrativa que remonta ao fim do século XIX,
especialmente com Machado de Assis.
(C) O conto “O Ladrão” procura refletir sobre o cotidiano
violento de moradores de um bairro da alta classe média
paulista, assustados estes que estão pela constante ameaça
ao seu patrimônio material.
(D) A linguagem utilizada nas narrativas desse livro
é profundamente hermética, dificultando o seu
entendimento, principalmente por causa da falta flagrante
de marcas da oralidade, tão comuns no Mário de Andrade
dos livros anteriores.
(C) A pontuação utilizada pelo autor é bastante tradicional,
mesmo quando ele reproduz diálogos entre personagens
que vivem momentos de descontração do cotidiano,
expediente formal que comprova o retorno de Mário de
Andrade aos moldes clássicos de narrativa utilizados desde
o Romantismo no Brasil.
assinale a alternativa incorreta.
a) São narrativas de linguagem complexa, primando pela
norma culta da língua: sintaxe e estrutura formal rígidas.
b) Os procedimentos narrativos concentram a experimentação
linguística, bem ao gosto dos modernistas.
c) Os contos de 1a pessoa estão centrados na personagem Juca e
exploram atemática social e familiar.
d) As personagens das nove narrativas expressam a relação
conflituosa entre o homem e o seu mundo.
e) A denúncia das crises sociais alia-se à análise da problemática
existencial das personagens.
5. (UFG) Nos contos “Vestida de preto”, “O peru de natal”,
“Frederico Paciência” e “Tempo da camisolinha”, do livro
Contos novos, de Mário de Andrade, o aspecto nuclear que
os aproxima é
(A) o recurso à introspecção.
(B) a temática da religiosidade.
(C) o tempo da vida escolar.
(D) a ação de ritmo linear.
(E) o apelo à evasão.
2. (UEL-PR) Sobre Contos novos, de Mário de Andrade, é
correto afirmar que esse livro:
(A) representa obra da fase madura do autor, desligando-se
dos ideais estéticos modernistas de 22 e retomando atitudes
românticas.
(B) representa uma evolução da prosa de ficção realista e
crítica, assemelhando-se ao regionalismo do romance de
30, inclusive no âmbito temático.
(C) reúne intimismo e crítica social, firmando-se como uma
obra de caráter reflexivo do modernismo e discutindo
diversos preconceitos, como o homossexualismo e o tabu da
morte no âmbito familiar.
(D) recorre, em diversos textos, à personagem Juca, que, ora
como narrador, ora como personagem, se constitui na
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CAPÍTULO VII - A falecida de Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues (1912-1980) iniciou sua vida profissional
como jornalista policial, isso aos treze anos de idade. A
experiência proporcionou-lhe conhecer os meandros do
chamado “mundo cão” que o acompanharia em boa parte de sua
produção artística.
Escreveu romances, muitos sob o pseudônimo de Suzana
Flag, contos, crônicas, roteiro de filmes, mas notabilizou-se por
suas peças teatrais. Seja pelas inovações técnicas, utilizadas desde
Vestido de noiva (1943), seja pela temática reveladora dos desejos
ocultos, da vida privada, com suas taras, desvios de conduta e
comportamentos pouco condizentes com o status social da classe
média, em especial.
A falecida foi sua oitava peça teatral e teve sua encenação
de estreia realizada em 1953, no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro. Trata-se de uma tragicomédia, ou seja, uma peça que
mistura comédia, tragédia, farsa e melodrama. Rodrigues a
classificou como “tragédia carioca” ou mais especificamente
“farsa trágica”.
Para Rodrigues, o teatro deveria ser sempre provocador, e
não um mero espetáculo para que os espectadores assistam à peça
passivamente, como quem quer apenas relaxar. Por isso mesmo,
encontrou muita resistência da censura, institucionalizada ou
não.
No caso de A falecida, temos um tema recorrente em sua
obra, que é o da mulher adúltera. Embora hoje o tema possa
chocar menos pela presença constante em novelas, filmes e peças
teatrais (evidente que traição é sempre um assunto polêmico, por
envolver sentimentos), à época (décadas de 40, 50 e 60 do século
XX), o adultério feminino era visto de modo velado, por esse
motivo, tal peça teatral foi considerada imoral, como de resto
outras peças do autor.
Não que seja exatamente relevante para compreensão da
obra, mas apenas a título de curiosidade, Rodrigues apaixonouse por Sônia Oiticica, a atriz que interpretava Zulmira, a
adúltera de A falecida. No entanto, a vida não imitou a arte e
Sônia preferiu ser fiel ao marido...
Uma novidade para a época é a multiplicidade de cenários:
banheiro, quarto, Igreja, casa dos pais, funerária, consultório,
táxi, mansão do empresário Pimentel e também Maracanã.
Como solução cênica para tantos cenários, o espaço permanece
vazio, tendo como único objeto fixo as cortinas.
O Modernismo já havia retirado a pecha da literatura,
incluindo o teatro, de belas letras, isto é, de uma arte que
poderia apenas expressar o que era elevado, erudito, nobre, por
assim dizer. Em outros termos, a literatura poderia e deveria
tratar de pessoas de todas as esferas sociais, bem como explorar
os mais diferentes temas, do prosaico ao sublime. Assim, talvez
não tenha causado tanta estranheza ao espectador da década
de 50, a peça ter como cena inicial a casa de uma vidente, cujo
filho fica com o dedo enfiado no nariz... O ambiente é bastante
degradado, conforme as indicações no início da peça.
Numa porta, (imaginária ou não), surge Madame Crisálida
com um prato e o respectivo pano de enxugar. De chinelos,
desgrenhada, um aspecto inconfundível de miséria e desleixo.
Atrás, de pé no chão, está seu filho de 10 anos (...). Durante
toda a cena, a criança permanece, bravamente, com o dedo no
nariz.
O papel de Madame Crisálida é coadjuvante, mas servirá
para Zulmira, a protagonista em dois dos três atos da peça, fazer
algumas escolhas e preparar o ambiente para sua morte certa,
uma vez que está com tuberculose. No caso específico, ouve da
vidente que ela deve ter cuidado com uma loira.
O que à primeira vista pode ser visto como uma possível
amante do marido, será mais bem explicado apenas no último
ato.
A cena seguinte continua com o prosaísmo. Quatro homens,
incluindo Tuninho (corruptela de Antonio) jogam sinuca e
discutem futebol. Como a história se passa no Rio, falam sobre
o clássico entre Vasco e Fluminense do domingo seguinte.
Tuninho está desempregado e preenche o dia ora no bar ora em
rodas de amigos.
É no quarto, à noite, que Zulmira conta a Tuninho que fora
procurar a cartomante e que ela lhe falara sobre a tal loira. O
diálogo serve para indicar três pontos do enredo: primeiro que
Zulmira tem uma fixação pela morte, segundo que está distante
do marido, sob a desculpa de que a religião a que se convertera,
a teofilista, proíbe beijos apaixonantes, mesmo no marido, e
expor-se publicamente, como usar maiô na praia.
ZULMIRA – Não aprovo praia, não aprovo maiô.
Por fim, segundo indicação de Tuninho, a loira seria
certamente a prima de Zulmira, a Glorinha. No entanto, o que
fica sugerido é que a prima poderia ser amante de Tuninho.
(Zulmira está desesperada)
ZULMIRA – Só pode ser ela, é ela no duro!
TUNINHO – Apaga a luz e vamos dormir!
ZULMIRA – Uma Fulana, além do mais, minha parenta,
longe, mas é. Nunca lhes fiz nada, sempre a tratei, assim, na
palma da mão. E, de repente, deixa de me cumprimentar. Por
quê? Ainda hoje, eu passei. Estava na janela, limando as unhas.
Torceu-me o nariz, aquela gata. Cinicamente!
TUNINHO – Vem dormir!
(Zulmira não ouve o marido, encerrada na sua obsessão.)
Outra cena bastante importante para a construção do
enredo é a que trata da morte da filha única de um bicheiro, e
os funcionários pensam em armar um meio de fazer o bicheiro
gastar um bom dinheiro no enterro da filha, algo em torno de 25
mil cruzeiros.
FUNCIONÁRIO – Toma o endereço. E sabes qual é o
golpe? Segura o Anacleto e diz: “A filha merece um caixão de 25
contos!”. Aposto os tubos como ele topa! Apanha um táxi!
Isso porque Zulmira irá procurar a mesma funcionária,
sabendo sobre esse enterro e quer algo igual para ela. Prevê que
irá morrer logo.
Enquanto isso, seu marido reclama à família de Zulmira
sobre as atitudes dela, sobre o fato de não querer mais beijá-lo,
mais abraçá-lo, mesmo porque acha nojento.
MÃE – Mas oh minha filha! oh!
PAI – O marido tem seus direitos!
MÃE – Onde se viu negar amor ao marido?
PAI – Você se casou porque quis!
(Zulmira desespera-se, em cima da cadeira.)
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consultório! Um médico que cobra trezentas pratas a consulta
– eu vou, de carona, ao Dr. Borborema, um médico de D. João
Charuto, completamente gagá! Ainda por cima, fiquei, sem o
mínimo exagero, umas 37 horas, na sala, esperando, e com esse
calor! (p. 37)
Obviamente que o caso começa a causar estranheza em
todos, mesmo porque não deveria ter essa mudança apenas
por uma religião nova que ela começara a frequentar. Zulmira
sugere então a Tuninho que procure outra mulher; no caso
poderia ser a Glorinha, a mesma que ela considerava como falsa,
como alguém pouco confiável.
ZULMIRA (vem vindo para ele) – Mas olha! (doce e
persuasiva) Ela não é fria, não, seu bobo... Sou mulher e
conheço as outras mulheres... Já fui unha e carne com Glorinha,
posso te garantir... Não tem nada de fria e, até, pelo contrário...
Te lembras do nosso namoro?... ela te olhava muito naquele
tempo...
Mais um episódio para causar estranheza, afinal primeiro
ela acusa o marido, avisada pela cartomante, de que a Glorinha
poderia ser a mulher com quem Tuninho estaria saindo; depois,
ela própria sugere a ele que a procure, como forma de nutrir a
falta de amor. Porém, Tuninho descobre que Glorinha teve de
tirar um seio por conta do câncer, desse modo não se interessa
por ela, o que também faz cair por terra a ideia de Zulmira sobre
os dois serem amantes. A peça vai se desenrolando de modo
que o leitor fica em suspenso, sem saber direito ainda qual a
finalidade de toda essa mudança por parte de Zulmira. Ainda
que possa desconfiar. Ao saber do câncer, Zulmira comemora,
como quem se sente aliviada com um “castigo” alheio, contra
alguém que lhe parecia pouco amiga.
ZULMIRA – Não me cumprimenta: torce o nariz pra mim,
que nunca lhe fiz nada! – Castigo! Castigo!
O segundo ato se inicia com Zulmira na funerária. Nesse
momento, começa a haver uma amarração com a primeira
conversa dos funcionários da funerária sobre a morte da filha do
bicheiro, bem como uma compreensão sobre as últimas atitudes
de Zulmira.
Ela vai até à funerária e insiste em falar com Timbira, um
dos funcionários. Mulherengo por natureza, imagina que possa
tirar proveito dela. Zulmira diz estar procurando um enterro
com toda a pompa para uma amiga que está à beira da morte e
quer que seja o mais rico possível, com muitas flores, detalhes,
coroas. Depois de muita conta e aproveitando-se para ganhar
um extra sobre o desejo da mulher, diz:
TIMBIRA – Armação por conta da casa – mil e quinhentos
cruzeiros. Altar e crucifixo, outros mil e quinhentos cruzeiros.
Mas outras despesinhas, tal e coisa, deve andar tudo aí por uns
36 mil cruzeiros.
Tuninho reclama que Zulmira anda tossindo muito, que não
quer procurar o médico. Ela já sabia, porém, que morreria em
breve, que tinha tuberculose, e que não adiantaria médico. A
passividade de Zulmira irrita os demais personagens, e também
o espectador da peça, que não atina com essa passividade e
resignação. Mesmo contra a vontade, vai a um médico. O
diagnóstico é que não teria nada. Zulmira insiste que está doente
e ainda reclama do médico, cujo tratamento teria sido bem
diferente do médico de Glorinha, sua obsessão, seu parâmetro
para esses episódios todos.
ZULMIRA – Eu sou uma podre-diaba! Enquanto a
Glorinha vai a um médico bacana, que até piano tem no
Em outra cena com o marido, enquanto Tuninho reclama
que Ademir, o melhor jogador do Fluminense, talvez desfalque
o time no clássico, Zulmira começa a tossir. Ele dá pouca
importância, prefere pensar no futebol, até que ela acaba
cuspindo sangue.
ZULMIRA – Tuninho! Tuninho!
(Tuninho salta na cama.)
TUNINHO – Eu!
ZULMIRA – Olha! Espia!
(Tuninho esbugalha os olhos.)
TUNINHO – Que é isso?
ZULMIRA – Sangue!
(Tuninho apavora-se.) (p. 31)
O episódio serve para Zulmira confirmar que está morrendo,
mesmo sob o olhar descrente de Tuninho. Então, ela conta o
plano que vinha arquitetando, para ter um enterro de grande
destaque, até como meio, aparente, de mostrar à Glorinha que
ela poderia ter o melhor e mais bonito enterro da cidade. Ela
conta a ele então que seu enterro ficará em Cr$ 36 mil cruzeiros
e que deverá buscar a quantia com um homem chamado João
Guimarães Pimentel.
ZULMIRA – Você também apanha, na minha bolsa
branca, outro papel, com o endereço dele, da casa, do escritório,
os telefones. Assim que eu morrer pega um táxi, vai à casa dele,
ao escritório, seja lá onde for, e diz o seguinte: que eu morri.
Mas antes que, antes de morrer, pedi que ele me pagasse um
enterro de quarenta mil cruzeiros... ele te dará o dinheiro... E
não diz que é meu marido... Diz que é primo...
(Tuninho ergue-se, atônito. Esbraveja.) (p. 33)
Apesar da surpresa de Tuninho, ela nada mais diz. Apenas
pede que cumpra o que estava falando. Dias depois, ela morreria.
É o fim do segundo ato. No 3° ato, com Zulmira morta, o
protagonista é substituído, passando agora a ser exatamente seu
marido, Tuninho. Ao ir atrás de Pimentel para obter o dinheiro
do enterro, descobre a traição de sua mulher.
Tuninho vai de táxi até a mansão do Pimentel, não conhecia
bem o lugar e vai até lá receoso. Ainda não atinara com o real
propósito de sua esposa ter feito tal pedido, nem sabia como faria
de fato o pedido. Conversa então com o motorista do táxi a ver
se ele conhecia, se tinha alguma informação sobre o Pimentel.
Já na mansão, com muito custo, consegue que o empresário o
receba. E depois, no início da conversa, segue as determinações
da esposa:
PIMENTEL – Que é que há?
TUNINHO – (tímido e gaguejante) – Vim aqui da parte
de Zulmira... Aliás, eu sou primo dela e...
PIMENTEL (com maus modos) – Zulmira?
(Tuninho está desconcertado.) (p. 38)
A conversa vai fluindo de modo que Pimentel conta como
conheceu Zulmira, que foi há um ano e que ele nem teve
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trabalho de conquistá-la, que foi algo rápido e ela já se entregou
prontamente a ele.
tal Zulmira.
1o. FUNCIONÁRIO – Exatamente. Imagina só de quem
era o tal enterro? Imagina quem eu ajudei a pôr no caixão de
quatrocentos cruzeiros?
TIMBIRA – Quem?
1o. FUNCIONÁRIO (exultante) – A tua pequena!
TIMBIRA – Qual delas?
1o. FUNCIONÁRIO (numa mesura) – ZULMIRA! (p. 48)
PIMENTEL – Sim, porque, geralmente, antes do principal,
sempre há uma conversinha, um namoro, um romance... E, com
a Zulmira, não houve nada disso... Ah, eu me lembro como
se fosse hoje. Direitinho. Foi mais ou menos há um ano. Sabe
aquela sorveteria na Cinelândia, que fica perto do “Odeon”?
Em seguida, passa a narrar outros encontros, o que faziam.
Tuninho ouvia calado, fazendo um comentário ou outro, para
estimular Pimentel a contar tudo. E então descobre o motivo
da traição. Zulmira dizia ao Pimentel que Tuninho teria nojo
dela, sempre lavava as mãos após o ato sexual. O que poderia
ser apenas uma atitude de higiene, para Zulmira era algo que a
humilhava, que a fazia se sentir mal.
ZULMIRA – Achas pouco? Lavava as mãos, como se
estivesse nojo de mim! Durante todo a lua-de-mel, não fez outra
coisa... Então, eu senti que mais cedo ou mais tarde havia de
traí-lo! Não pude mais suportá-lo... Aquele homem lavando as
mãos... Ele virava-se para mim e me chamava de fria.
(Zulmira altiva, empinando o queixo, como se desafiasse a
plateia.) (p. 42)
Esse desafiar a plateia significa que certamente seria
reprovada pelo público em geral, e essa reprovação manifestada
pelo público da peça é a mesma que depois se revela dentro
da própria e que também explica a razão da rixa que Zulmira
passou a ter com sua prima, Glorinha. É que em certa ocasião,
quando passeava de mãos dadas com Pimentel, Glorinha viu a
cena. Desde então, Zulmira procurou afastar-se dela, como meio
de defesa e de antecipação contra qualquer coisa que ela viesse a
dizer ao Tuninho ou a outra pessoa de seu convívio.
ZULMIRA – Agora é que eu sou fria, de verdade. Glorinha
não me deixa amar.
E adiante:
ZULMIRA – Tenho nojo de beijo. De tudo! (p. 44)
Depois desse episódio, abandou Pimentel e nunca mais o
procurou. Para encerrar a conversa, Tuninho pede o dinheiro
para o enterro. Pimentel, porém, se assusta com o valor pedido.
Nesse momento, Tuninho revela quem de fato é e exige o
pagamento completo.
(Pimentel, arrasado, põe-se de cócoras diante do imaginário
cofre. Tuninho, em pé, com as duas mãos enfiadas nos bolsos,
assobiando, olha para os lados, para o alto, como se estivesse
fazendo uma avaliação do ambiente. Vem Pimentel entregar o
dinheiro.) (p. 45)
É a vingança de Tuninho. Pega o dinheiro, vai até à funerária
já contratada pela esposa e compra o caixão mais barato, Cr$
400,00 cruzeiros apenas. E assim faz o enterro mais simplório
possível e embolsa o restante.
Pateticamente, Timbira, um dos funcionários, que imagina
que Zulmira poderia ficar com ele, sem saber que ela seria a
enterrada, porque imaginara que ela fora até para preparar o
enterro de uma amiga, fica imaginando como e quando seria o
encontro com ela. Somente quando o enterro acontece, que um
funcionário conta a ele que a moça enterrada fora exatamente a
Enquanto se prepara o enterro da mulher, Tuninho está
no Maracanã, onde vê seu time do coração, o Vasco vencer ao
Fluminense. Porém, ao mesmo tempo em que comemora a
vitória, chora pela dor da traição.
TUNINHO – Casaca! Casaca! A turma é boa! É mesmo da
fuzarca! Vassssssco!
(Tuninho cai de joelhos. Mergulha o rosto nas duas mãos.
Soluça como o mais solitário dos homens.) (p. 50)
O final denota uma total falta de perspectiva de uma vida
sem sentido, sem propósito, tipicamente do pequeno burguês.
Tuninho tem sua vingança, mas sequer pode mostrá-la à
mulher e nem pode saber o que ela teria sentido. A própria
vingança contra o amante, fazê-lo pagar uma quantia vultosa
por um enterro simples também não o satisfaz. Por isso mesmo,
o sentimento contraditório entre a satisfação do que fizera e a
frustração pelo golpe sofrido.
Pode-se dizer, pois, que vitória maior foi a de Zulmira,
uma vez que o plano arquitetado por ela, vingar-se do marido
por uma vida sem paixão, sem perspectivas, ao fazê-lo descobrir
a traição, e vingar do ex-amante, fazendo-o pagar pelo enterro,
acabou ocorrendo como certamente ela previu.
Em rigor, o que ela acaba fazendo de fato é também se
vingando dela própria, pela exposição a que se submeteu. Como
mulher casada, deveria se manter fiel ao marido, como típica
mulher de família, dos anos 50, não deveria experimentar do
prazer carnal, algo reservado às mulheres vulgares. Assim, o que
leva Zulmira à morte é antes a culpa pela erotização do corpo. Se
isso ficasse apenas reservado à sua consciência não haveria tanto
problema. Como acabou sendo descoberta a traição, por acaso,
pela prima beata, sentiu-se culpada pelo olhar do outro. Era
preciso, pois, castigar-se por se deixar envolver por desejos tão
baixos. Por isso mesmo, inventa a conversão a uma igreja, afastase do marido (não o beija mais) e do amante.
Não se ouve a voz da prima, da Glorinha. Conhecemo-la
pelo olhar de Zulmira, não sabemos o que de fato ela pensa.
Ainda assim, ela representa para Zulmira a voz da consciência, a
voz de um juiz que analisa, julga e condena as atitudes da esposa
de Tuninho.
Embora liberada no plano privado, sabe que no plano
público seria condenada por todos. Por esse motivo, sente-se
vingada quando sabe do câncer da prima, embora ela própria
saiba que o modo de vida que escolheu naquele momento acaba
por se constituir em um câncer para a sociedade, posto que
buscava o prazer fora do casamento, fora do que seria instituído.
Assim, o único modo que tem para resolver o dilema é a morte,
mas uma morte que pune tanto a ela, quanto aos que estavam a
sua volta mais diretamente, o marido, o amante e a prima.
Em conclusão, pode-se dizer que ninguém sai impune
dessa história. Todos têm sua parcela de culpa pela atitude de
Zulmira. Especialmente a organização social, que, à época do
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enredo, inibia as manifestações de desejo da mulher, reservadas
apenas ao homem.
Desse modo, a peça cumpre o programa dramático de
Nelson Rodrigues, que queria revelar o que estava camuflado
pela vida privada, pela vida doméstica, mas que se manifestava
aqui e ali. Queria, enfim, revelar a vida como ela é.
Leia o trecho abaixo da peça A falecida, de Nelson
Rodrigues.
TUNINHO - Olha!
ZULMIRA (mística) - Fala!
TUNINHO - Eu não tenho nada com isso. Você é o maior,
vacinada, pode ter a religião que quiser e pronto. Mas vamos à
praia, ora bolas! O que é que tem a praia com as calças?
ZULMIRA - Tu me achas com cara de ir à praia? Agora
que me converti?
TUNINHO - Será que em tudo, agora, você me contraria?
Põe o maiô, anda!
ZULMIRA - Não tenho maiô.
TUNINHO - E o teu?
ZULMIRA - Joguei no lixo!
TUNINHO - Mentira!
ZULMIRA - Te juro!
TUNINHO - Que bicho te mordeu?
ZULMIRA - Não sei. Mudei muito. Sou outra.
TUNINHO - Essa é a maior!
Exercícios
1. Sobre A falecida, pode-se afirmar que:
a)
b)
c)
d)
e)
a peça trata da morte da mulher amada, segundo o modelo
romântico.
a peça aborda os últimos momentos de uma mulher
adúltera.
a peça enfoca uma questão importante para a liberação
feminina, a luta por melhores condições de trabalho.
a peça enfoca a história de um casamento feliz,
interrompido pela morte da mulher.
a peça enfoca o drama em torno da tuberculose, seguindo o
modelo romântico, da segunda geração de poetas.
4. Do trecho, em conjunto com a peça, depreende-se que:
2. Considere o trecho a seguir:
(A) Zulmira realmente tomara tais atitudes por causa da
religião a que se convertera.
(B) Tuninho já desconfiava que Zulmira tinha um amante.
(C) Zulmira na verdade tomara tais atitudes como meio de
expiar os próprios erros, afasta-se, pois, do marido, pois
não o ama mais.
(D) Zulmira demonstra com tais atitudes que é uma mulher
virtuosa, incapaz de cometer erros contra a moral.
(E) Zulmira faz isso para entregar-se totalmente ao marido,
Tuninho.
ZULMIRA (vem vindo para ele) – Mas olha! (doce e
persuasiva) Ela não é fria, não, seu bobo... Sou mulher e
conheço as outras mulheres... Já fui unha e carne com Glorinha,
posso te garantir... Não tem nada de fria e, até, pelo contrário...
Te lembras do nosso namoro?... Ela te olhava muito naquele
tempo...
I.
Zulmira fala isso a Tuninho, seu marido, como meio de
persuadi-lo a procurar Glorinha.
II. Zulmira se dirige ao amante, Pimentel, no inicio do seu
relacionamento.
III. Zulmira quer que o marido procure outra mulher, a fim
de livrá-la da obrigação sexual.
5. Considere as afirmações:
Está correto o que se afirma em:
a) I
b) II
c) III
d) I e II
e) I e III
I. Zulmira sabe que vai morrer e se converte a uma nova
religião como meio de ajudar os outros a se regenerarem.
II. Zulmira, apesar do amante, ainda ama o marido e por
isso quer preservar seu corpo para entregar-se apenas a
Tuninho.
III. Zulmira passa a ter tais atitudes após ser flagrada com o
amante por sua prima, Glorinha.
Está correto o que se afirma em:
3. Assinale a alternativa incorreta sobre A falecida, de Nelson
Rodrigues.
a) Há na peça uma ironia quando Tuninho recebe o
dinheiro de Pimentel para fazer o velório de Zulmira, mas
gasta bem menos do que recebera.
b) Apesar de sentir vingado, Tuninho percebe que sua vida
perde o sentido com a descoberta da traição.
c) Zulmira quer se vingar de Glorinha, por ela ter descoberto
seu caso com Pimentel.
d) Zulmira realmente se converte a uma nova religião, como
meio de expiar seus pecados.
e) Zulmira, antes de falecer, procura se vingar da sociedade
machista, ao fazer Pimentel e Tuninho se conhecerem.
a)
b)
c)
d)
e)
Apenas I
Apenas II
Apenas I e II
Apenas I e III
Apenas III
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CAPÍTULO VIII - Dois irmãos de Milton Hatoum
Dois Irmãos, de Milton Hatoum, é um romance que se
assenta sobre a dualidade, a começar pelo título. Essa dualidade
se revela na oposição entre Yagub e Omar, os dois irmãos do
título; na cultura, ainda que não seja exatamente uma oposição,
representada pelo Brasil, particularmente Manaus onde se passa
boa parte da história, e o Líbano, origem dos protagonistas; no
tempo, uma vez que o romance mescla, ao longo da narrativa,
passado e presente, numa alternância que serve para explicar as
razões dos acontecimentos, mas também para criar o suspense,
por fim há a dualidade econômica, da passagem de uma cidade
próspera, a Manaus da primeira metade do século XX, que
enriqueceu com a exploração da borracha, para uma cidade em
decadência, tentando reencontrar seu caminho, tendo à frente
comerciantes estrangeiros, no caso específico, libaneses.
Essa dualidade acaba por revelar uma característica literária
do romance moderno, que é o jogo, a não certeza, a visão
fragmentada, que vai se revelando aos poucos, não está tudo
pronto, como no romance do século XIX, em que o narrador
tinha uma visão do todo e revelava isso ao leitor de modo até
didático. O narrador do romance moderno é tão humano
quanto qualquer personagem, com falhas, imperfeições,
incoerências e, principalmente, sua visão fragmentada que
o impede de revelar o todo. Por isso mesmo, os capítulos não
são dispostos linearmente, em sequência. O capítulo seguinte
não é necessariamente continuação do anterior; nem mesmo
o capítulo inteiro possui uma visão completa e acabada; antes,
oferece elementos para que o leitor colabore na construção do
narrado, do significado daquilo que se narra.
A trama gira em torno da tumultuada relação entre os dois
irmãos gêmeos. Se não é exatamente uma novidade, cuja origem
é bíblica com Caim e Abel, Esaú e Jacó, com fontes literárias,
destaque para Pedro e Paulo, do livro Esaú e Jacó, de Machado
de Assis. No caso de Dois Irmãos, Omar representa a vida
desregrada, amoral, egoísta, ao passo que Yaqub representa a
vida moralmente correta, com objetivos profissionais e pessoais
claros. Já por isso, haveria uma disputa entre os irmãos. Mas o
que se destaca é a briga por conta do amor dos pais. Se Omar
tem o apoio incondicional de Zana e mesmo da irmã, Rânia,
Yaqub tinha a preferência do pai, Halim. Essa separação é
determinante para o desenrolar dos acontecimentos. Há mesmo
uma sugestão incestuosa entre Omar, a mãe e a irmã. Embora
não pareça ter ocorrido nada de fato, mas fica a sugestão desse
amor para além do sentimento maternal ou fraternal.
A narrativa tem início por seu momento derradeiro. O
leitor logo nas primeiras páginas fica sabendo que Zana tendo
de deixar a casa onde morava, despedindo-se com olhar triste de
tudo, do narrador, Nael, para ir morrer em uma clínica, onde
falou pela última vez sobre os filhos: “Meus filhos já fizeram as
pazes?” Em seguida, vamos saber quem é Zana, por que os filhos
teriam brigado para terem de fazer as pazes, etc.
Em seguida, sabemos que o jovem Yaqub voltava de uma
viagem forçada ao Líbano, em fins da II Guerra Mundial, isso
porque o porto do Rio de Janeiro estava “apinhado de parentes
de pracinhas e oficiais que regressavam da Itália” (p. 13) O
reencontro entre pai e filho demonstra já como as relações entre
eles estavam bastante abaladas. Mesmo porque, já na Cinelândia,
Yaqub pouco se importa com o público, com o pai e urina em
uma parede. Demonstra também outras atitudes pouco dignas,
exatamente para agredir moralmente o pai. Depois, porém, com
o tempo, esse relacionamento é restabelecido, se não totalmente
saudável, ao menos com respeito e dignidade.
Ficamos sabendo depois a razão da viagem. Omar roubara
uma namorada que deveria ser de Yaqub, apenas mais um entre
outros tanto motivos para os dois brigarem. Resolveu-se então
que seria melhor separá-los por um tempo e, em 1938, foi
mandado para morar com parentes no Líbano, onde permaneceu
até 1945. Em outro dia, quando assistiam a um filme na casa
de vizinhos, houve uma pane no equipamento, fincando tudo às
escuras. Quando se restabeleceram as luzes, Lívia parecia beijar
o rosto de Yaqub, que armara essa situação. Omar, então, tem
uma briga corporal com o irmão e o corta com uma garrafa. A
cicatriz feita no rosto de Yaqub, em forma de meia-lua, se torna
um símbolo do ódio entre eles.
Interessante que o narrador não é a única testemunha
da história dos gêmeos. Empresta muitas vezes o olhar de
Domingas, sua mãe, empregada da casa de Halim, bem como
o olhar dos demais personagens, já que nem sempre estava ou
esteve presente em todos os episódios. Assim, se o narrador não
é propriamente alguém em quem não se pode confiar, é preciso
ponderar sobre a verdade plena do narrado. Outro motivo é que
o narrador é parte interessada. Ele próprio cria uma atmosfera
de mistério para saber qual dos dois seria seu pai; sabia apenas
que Domingas tivera um relacionamento, forçado ou não,
com Omar ou com Yaqub. Assim, parte da história é saber a
história do narrador. “A minha história também depende dela,
Domingas” (p. 25) E adiante:
Isso Domingas me contou. Mas muita coisa do que aconteceu
eu mesmo vi, porque enxerguei de fora aquele pequeno mundo.
Sim, de fora e às vezes distante. Mas fui o observador desse jogo e
presenciei muitas cartadas, até o lance final. (p. 29)
Ou em outro momento:
A intimidade com os filhos, isso o Halim nunca teve. Uma
parte de sua história, a valentia de uma vida, nada disso ele
contou aos gêmeos. Ele me fazia revelações em dias esparsos, aos
pedaços, “como retalhos de um tecido”. (p. 51)
Outro episódio significativo ocorre na escola. Enquanto
Yaqub se mostra interessado e de grande capacidade com
os números, com a Matemática, o que o levaria a estudar
engenharia em São Paulo (“Surpreendia os professores: a chave
da mais complexa equação se armava na cabeça de Yaqub,
para quem o giz e o quadro-negro eram inúteis” p. 32), Omar
é expulso do melhor colégio de Manaus e vai estudar no Liceu
Rui Barbosa, mais conhecido como Galinheiro dos Vândalos,
exatamente por ser um local pouco propício ao estudo e mais
à vadiagem, à vida libertina. O que poderia ser algo vergonhoso
a outro, para Omar era a glória e contava e repetia a história
de como fora expulso do colégio dos padres por ter batido no
professor de Matemática, Bolislau. Também para Zana, que
sempre defendia o filho amado, o caçula, por assim dizer, Omar
não fizera nada demais, apenas expressara o que pensava sobre
um professor em particular...
“Esse Bolislau errou”, murmurava. “Meu filho só quis
provar que é homem... que mal há nisso?” (p. 37)
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Tal atitude só dava mais margem a Omar para suas investidas
amorais, e sua derrocada, aumentando o fosso entre ele e o
irmão.
Gandaiava como nunca, e certa noite entrou em casa com
uma caloura, uma moça do cortiço da rua dos fundos, irmã do
Calisto. (p. 91)
Os religiosos sabiam que o ex-aluno tinha futuro; naquela
época, Yaqub e o Brasil inteiro pareciam ter um futuro
promissor. Quem não brilhou foi o outro, o Caçula, este sim, um
ser opaco para padres e leigos... (p. 41)
Porém, essa atitude não é bem aceita pelo pai, que pega o
casal nu na sala. Manda a moça embora e acorrenta Omar por
uns dias como castigo.
Pouco resolve a atitude do pai, pois Omar se envolve com
outras mulheres, particularmente Dália. Dessa vez, é Zana quem
a expulsa, por ciúmes. Dália era uma dançarina exótica, isto é,
dançava em casas noturnas para o prazer masculino. Como ele
insiste em procurar a dançarina, toma uma decisão mais drástica,
manda-o para São Paulo, onde deveria procurar o irmão e
encontrar um rumo para a própria vida.
Yaqub não se sente à vontade com a ideia. Embora não
queira abrigá-lo em sua casa, ajuda-o a arrumar um quarto em
um pensão e o matricula num colégio para terminar os estudos.
O Brasil ter um futuro promissor tinha a ver com a década
de 50, segundo governo de Getúlio Vargas e, principalmente,
o governo Juscelino Kubitschek, que promoveu uma série de
reformas no Estado brasileiro, na economia, na estrutura do país.
Yaqub parte para São Paulo, mas antes teve um último
encontro amoroso com Lívia, a moça que era alvo da disputa
entre os dois irmãos na adolescência.
Omar, mordido de ciúme, não tocou no nome do irmão. E a
mãe, pura ânsia, dizia que filho que parte pela segunda vez não
volta mais para a casa. O pai concordava, sem ânsia. (p. 45)
O segundo capítulo retoma o passado, 1914, para falar
sobre a história de Halim, sobre como prosperara em Manaus,
o comércio, as dificuldades da vida. Mas especialmente trata do
relacionamento entre Halim e Zana, como ele a conquistou com
um poema emprestado. O importante a destacar é que Halim
não queria filhos, era totalmente dedicado à mulher que escolheu
para se casar; sabia que filhos a roubariam dele aos poucos, que
seria o fim daquele amor tão intenso, de parceria e intimidade.
Os filhos haviam se intrometido na vida de Halim, e
ele nunca se conformou com isso. No entanto, eram filhos, e
conviveu com eles,... (p. 71)
Yaqub, longe do olhar do irmão, consegue se estabelecer bem
em São Paulo. Forma-se em engenharia, prospera e se casa. Em
contrapartida, envia poucas cartas à mãe, e quando envia, pouco
diz. O que faz Zana sofrer.
Outro dado recuperado pela memória do narrador, Nael,
com a ajuda de Domingas, é a origem da sua mãe, o porquê fora
morar na casa de Halim. No caso, ficara órfã e fora viver com
freiras, ajudando no serviço local, até ser adotada por Zana, que
precisava de uma ajudante. E assim passou a residir com Zana e
Halim. O grande ponto, porém, é a história de quem seria o pai
de Nael. Ela nunca quis falar sobre o assunto, e se instaura um
suspense, cujo desfecho aponta ou para Omar ou para Yaqub.
Foi só depois do episódio da Mulher Prateada que Halim
decidiu mandar Omar para São Paulo. Yaqub já estava casado,
e, mais uma vez, não aceitara um vintém dos pais; talvez
recusasse até uma dádiva da mão de Deus. Não revelou o nome
da mulher e apenas um telegrama anunciou o casório. (p. 93)
Os opostos impedem uma aproximação real, de integração
familiar. Servem também para revelar como os modos de vida
dos gêmeos, pretensamente parecidos, são divergentes.
Halim e Zana pensavam que o filho doutor ia corrigi-lo,
que cedo ou tarde a vida dura em São Paulo podia domá-lo.
(p. 108)
De qualquer modo, a princípio, Omar não decepciona. Vive
em São Paulo com alguma dignidade, estuda e se concentra em
melhorar. Porém, não demora muito para revelar sua verdadeira
natureza e simplesmente desaparecer, sem deixar notícias a
ninguém, especialmente ao irmão, que parecia acreditar em sua
possível recuperação como cidadão cumpridor de obrigações.
O que acontecera, na verdade, é que Yaqub não dissera
a ninguém com quem se casara. E também proibia Omar de
visitar sua casa. No entanto, acabou descobrindo que a mulher
misteriosa era Lívia, pivô de várias brigas entre os irmãos. Então,
antes de fugir, Omar fez desenhos obscenos nas fotos do irmão
e roubou 820 dólares do irmão e o passaporte, e viajou para os
Estados Unidos.
Yaqub passou da acusação à cobrança. Não ia sossegar
enquanto o irmão não lhe devolvesse os oitocentos e vinte dólares
roubados. Uma fortuna! (p. 124)
Pensei: por pouco ela não teve força ou coragem para dizer
alguma coisa sobre meu pai. Esquivou-se do assunto e se esqueceu
das perguntas que me fizera na noite daquele domingo. (p. 79)
De sua parte, Omar ia se tornando boêmio, entregando-se
a festas e a bebedeiras. Se Yaqub prosperava, Omar queria saber
apenas de festa, de farra com mulheres. Largara os estudos de
vez, o que causava tristeza à mãe, não tanto pela atitude de parar
de estudar, e sim por se envolver com mulheres pouco dignas.
Em rigor, toda mulher com quem Omar viesse se envolver seria
vista negativamente por Zana, isso porque havia um amor dela
para com ele que extrapolava o sentimento materno, sugerindo
algo próximo a um incesto.
O bom para Nael, o narrador, é que cada vez que um filho
deixava a casa, recebia objetos que não lhe serviriam mais, como
roupas, livros.
Paralelo à história familiar, tem-se nuances das
mudanças na sociedade brasileira, na economia, representadas
pelas mudanças que Rânia, a irmã dos gêmeos, quis implementar
na loja de Halim. Embora ele não tenha gostado das mudanças,
aceita-as como necessárias.
Ela acreditava na moda, e reverenciou a moda do momento.
(p. 130)
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Isso começou a aproximar Rânia de Nael. O narrador
revela sua paixão por Rânia, que não demonstrava interesse por
nenhum homem. Nael, apesar disso, consegue dela uma noite de
amor. Única, mas intensa.
Esse desprezo pelos homens em geral se explica pelas
atitudes de Rânia para com Omar, que voltara dos EUA. Era
uma aproximação perigosa, próxima do incesto, como já ficara
sugerido com Zana.
Rânia só faltava devorar esse novo irmão. Agora ela
convivia mais com ele, conversavam durante o café da manhã,
quando ela e a mãe o cercavam e davam palpites sobre a roupa,
o perfume, a cor da gravata e do sapato. [...]
“Dessa vez o Omar vai ser fisgado por um monte de
noivas...”, disse Zahia, beijando-lhe o rosto.
“Ele não precisa disso”, disse Rânia. (p. 135)
Omar, em Manaus, dizia que estava trabalhando em um
banco britânico, no entanto Zana descobre ser mentira. Na
verdade, envolvera-se com contrabando e com uma mulata
conhecida como Pau-Mulato. Pressionado, foge novamente
por meses. A família passa a procurá-lo em diversos pontos
de Manaus. Mas somente consegue algo positivo quando um
peixeiro chamado Perna-de-Sapo é contratado para procurar na
floresta, onde encontra Omar. Avisada pelo peixeiro, Zana traz o
filho, mesmo forçado, de volta para casa.
Careca e barbudo. Bronzeado, quase preto de tanto sol. Mais
magro, mais esbelto, no peito um colar de sementes de guaraná.
Descalço, usava uma bermuda suja, cheia de furos. Não parecia
o Peludinho cheiroso de Zana. (p. 172)
Em casa, quebra tudo, ameaça a todos, principalmente o pai,
a quem acusa de favorecer Yaqub na vida. Ao contrário de Caim
e Abel, é o caçula o preterido pelo pai, o que quer matar o irmão
mais velho (forma de dizer, pois significa apenas que Yaqub
nasceu alguns minutos antes de Omar). A disputa também
remete o leitor à história dos gêmeos Esaú e Jacó – cuja vida é
narrada no livro bíblico Gênesis, em que aquele nascera antes
e teria a primazia de ser o primogênito, importante na cultura
hebraica; no entanto, com a ajuda e conivência da mãe, Rebeca –
que preferia o mais novo –, Isac, cego, imagina estar passando o
comando do clã a Esaú, mas o fizera a Jacó. O episódio gera uma
briga entre os irmãos.
Episódio importante é a morte de um professor e poeta,
Antenor Laval. Escrevia poemas simbolistas e repassava aos
alunos, sem ficar com nenhum exemplar. Tinha ideias libertárias
e por isso, com o Golpe Militar de 1964 começou a ser
perseguido. Não demorou muito a ser preso, apanhar e morrer.
O episódio se torna significativo porque é meio de o leitor
acompanhar a história dos gêmeos em paralelo com a história do
país, como já explicado aqui; o segundo motivo é porque Omar
se afasta por um tempo da vida boêmia, da vida desregrada que
sempre o marcara.
No chão do coreto, manchas de sangue. Omar escreveu
com tinta vermelha um verso de Laval, e por muito tempo
as palavras permaneceram ali, legíveis e firmes, oferecidas à
memória de um, talvez de muitos. (p. 191)
As escolas e os cinemas tinham sido fechados, lanchas da
Marinha patrulhavam a baía do Negro, e as estações da rádio
transmitiam comunicados do Comando Militar da Amazônia.
(p. 198)
Yaqub viera para Manaus novamente. O clima hostil
entre os irmãos apenas se acentuara. Nada poderia acontecer
para instaurar a paz fraterna. Nael o admirava e desejava que
ele pudesse ser seu pai, ao passo que via Omar com desprezo
crescente. Pensava mesmo que poderia até ter uma luta corporal
com Omar, pelo que fazia aos pais, especialmente a Halim.
Halim, que se tornara mais confidente de Nael, o que o
ajuda a compor o relato, estava cada dia mais triste com a
situação familiar. Voltava-se ao passado com Zana, em que pôde
experimentar a felicidade. Agora, porém, era apenas lamento.
Interessante que em 1968, ano de grande agitação política, que
iria levar à instituição do AI-5, instaurador do Estado de exceção
no Brasil, Halim vem a falecer. Antes parecia ter desaparecido,
o que causara certo desespero na família. No dia seguinte, Zana
o encontrou sentado, morto, no sofá nos fundos da casa, onde
gostava de se recolher para ficar sozinho.
Omar aproveita para se livrar de todos os sentimentos
negativos e começa a ofender o pai morto, a acusá-lo pela
preferência por Yaqub, bem como lembrou-se do dia em que foi
acorrentado por ele e de outros castigos.
Começou a gritar, criança incendiada de ódio ou de algum
sentimento parecido com o ódio. (p. 217)
E, pela primeira vez, Zana trata Omar com dureza. Era
demais até mesmo para sua protetora principal.
Depois disso, Omar se envolve com um indiano chamado
Rochiram. A intenção era construir um hotel em Manaus. De
verdade, Rochiram era mais um dos que tentavam se aproveitar
das fragilidades de Omar para conseguir algum benefício.
Zana, por sua vez, imaginou que Yaqub, como engenheiro,
poderia ajudar no projeto. Conta ao primogênito, que vem de
São Paulo e se hospeda em um hotel. O problema é que Omar
descobre as intenções da mãe e também de Yaqub. O que seria
uma tentativa de juntar os irmãos em um mesmo projeto revelase mais um meio de separá-los, pois Omar se sente traído.
Carregado de todo o ódio de uma vida de brigas, aproveita o
episódio para se vingar do irmão. Somente não o mata, porque
Nael consegue impedi-lo.
Yaqub se contorcia na rede, não conseguia levantar. O rosto
dele inchou, a boca não parava de sangrar, os lábios cheios de
estrias e caroços. Ele gemia, apalpando com a mão direita a
testa, as costas e os ombros. (p. 234)
Além do fracasso de unir os gêmeos, restou uma dívida com
Rochiram, que dizia ter investido recursos no projeto e agora
queria ser ressarcido, uma vez que não teria culpa pela briga de
Omar e Yaqub. Como meio de saldar a dívida, Yaqub sugere que
a mãe ceda a casa a Rochiram. Aí se explica o início do romance,
quando ela está deixando sua residência de anos para ir morar
em um bangalô cedido por Rânia e, em seguida, morreria numa
clínica sem realizar seu sonho de ver os filhos se perdoarem
mutuamente. Os fundos da casa são doados a Nael.
“Tua herança”, murmurou Rânia. [...] Soube depois
que Yaqub quis assim; quis facilitar minha vida, como quis
arruinar a do irmão. (p. 256)
O Golpe transformava a cidade.
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Antes disso, Domingas morreu doente. Revelou então o
segredo a Nael. Para a tristeza do narrador, era filho de Omar.
Mas não foi em um ato de amor, mas sim em um ato de
violência, pois, no passado, fora estuprada por Omar.
2. (UFAM) A respeito do personagem Adamor, o Perna-deSapo, do romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum, fazem-se
as seguintes afirmativas:
I. Em 1943 descobriu os restos de um avião Catalina que
desaparecera nas florestas do Purus e salvou da morte o
aviador Binford.
II. Descobriu, a pedido de Zana, o paradeiro de Omar, que
fugira de casa com uma mulher chamada Pau-Mulato e
se escondera num barquinho atrás do Mercado Adolpho
Lisboa.
III. Antes de se tornar coveiro, era um peixeiro que vendia
de porta em porta e sofria com as implicâncias da índia
Domingas.
IV. Ao sair de Lábrea com uma das pernas paralisada,
veio para Manaus, onde passou a morar em condições
humilhantes numa palafita.
Pedi a Rânia para que minha mãe fosse enterrada no jazigo
da família, ao lado de Halim. Ela concordou, pagou tudo sem
reclamar, e eu nunca soube quanta cumplicidade havia num
ato tão generoso. (p. 245)
Por conta da briga, Yaqub denuncia Omar por agressão.
Tem então de fugir da polícia. Mas em uma vez que fora visitar
Rânia, saber da morte da mãe, é preso e condenado a dois anos e
sete meses de reclusão.
Nesse período, Yaqub também morre, sem que Nael diga
muito sobre o caso. Apenas lembra que não teve filho e que
poderia ter sido filho dele.
Estão corretas:
A) Apenas II e IV
B) I, II e IV
C) Apenas I e III
D) II, III e IV
E) Todas as afirmativas
Alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos
pertencem a nós mesmos. (p. 264)
Omar sai da cadeia pouco antes de cumprir sua pena. Rânia
conseguira juntar dinheiro para pagar a fiança.
Interessante que no último lance, chove bastante, o que
sugere uma limpeza do passado, um renascimento. Nesse
momento, Omar encontra por acaso Nael. Olham-se, de modo
que parece que caminham para uma reconciliação, um perdão
mútuo, entre o que seria um pai e um filho de fato, ainda que
por vias tortas. Omar, porém, recua e parte lentamente.
3. (UFAM) Ainda sobre o romance Dois Irmãos, é correto
afirmar, a propósito do enredo:
A) Para ajudar Halim a conquistar Zana, Abbas escreveu
um gazal com quinze dísticos, que o pretendente fingiu
esquecer na mesa do restaurante Biblos, de propriedade do
viúvo Galib, pai da moça.
B) Tal como em Esaú e Jacó, de Machado de Assis,
observamos o tema dos gêmeos, que foi, porém, tratado
de forma diferente, de vez que os dois irmãos não são
inimigos.
C) Domingas, a mãe de Nael, após ter ficado órfã, veio do
Alto Rio Negro trazida por Halim, que nessa época
trabalhava como regatão.
D) A antiga casa de Halim e Zana foi vendida para uma
multinacional, após a instalação da Zona Franca, e
Nael e Rânia, sua tia, mudaram-se para um conjunto
habitacional moderno.
E) Uma das pretendentes a casar com Yaqub se chamava
Dália, a Mulher Prateada, que, no entanto, não foi capaz
de enfrentar o ciúme possessivo que Zana sentia em relação
ao filho.
Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou
por um tempo, o olhar cortando a chuva e a janela, para além
de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à deriva.
Depois recuou lentamente, deu as costas e foi embora. (p. 266)
Desse modo, as dualidades não se resolvem, não se fecham,
distanciando-se ainda mais.
Exercícios
1. (UEPG) Sobre Yaqub, personagem de Dois Irmãos, assinale
o que for correto.
01) Foi perseguido e preso por causa da briga com o irmão.
Não teve direito à liberdade condicional. Depois que
sai da prisão, graças a economias da irmã, evita a sua
presença e a dos vizinhos.
02) Era “Um tímido que podia passar por conquistador.
Sorria e dava uma risada gostosa no momento certo: o
momento em que as meninas das praças, dos bailes e dos
arraiais suspiravam.”
04) “Nesse gêmeo lacônico, carente de prosa, crescia um
matemático. O que lhe faltava no manejo do idioma
sobrava-lhe no poder de abstrair, calcular, operar com
números.”
08) “... gazeava lições de latim, subornava porteiros sisudos do
colégio dos padres e saía para a noite, fardado, transgressor
dos pés ao gogó, rondando os salões da Maloca dos Barés,
do Acapulco, do Cheik Clube, do Shangri-Lá. De
madrugada, na hora do último sereno, voltava para casa.”
16) Sofria chacotas na escola por causa da cicatriz causada
pelo irmão.
Soma:______________
4. (Unimontes) A respeito do livro Dois irmãos, de Milton
Hatoum, está incorreta a alternativa:
a) A trama dá-se por uma busca de identidade que vai desde
a busca do nome do seu verdadeiro pai, por parte de Nael,
até a tentativa de reconhecimento por parte de todos os
membros da família.
b) A história desenvolve-se na cidade de Manaus, no interior
de uma família decadente, porém unida por laços de
empatia e amor.
c) O romance desenvolve-se em meio a uma série de
paradoxos e tensões das relações familiares que mal
camuflam as disputas, as rivalidades e as suspeitas de
incestos.
d) O ponto de vista do narrador Nael deixa entrever, pela via
da memória, lacunas, desencontros e ambiguidades.
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CAPÍTULO IX - Sermões de Padre Antônio Vieira
Há livros de leitura obrigatória no vestibular que
proporcionam dificuldades extras a um analista e também ao
próprio vestibulando, isso porque não é especificado nenhum
texto em particular, mas pede-se praticamente a obra completa
de um determinado autor, o que exige um grau de especialidade
incompatível com uma prova vestibular. É o caso de Os Sermões
do Pe. Antônio Vieira (1608-1697). Ele escreveu cerca de 200
sermões, todos com sua importância, beleza e significado. Mas
ler todos e analisá-los se torna algo quase impossível, no mínimo
dificultoso, tendo em vista a necessidade de ler outros livros,
bem como estudar conteúdos diversos. Por esse motivo, vamos
nos ater à análise do volume Sermões escolhidos, publicado pela
editora Martin Claret.
Essa edição traz seis sermões dos 200, mas são suficientes para
conhecer o estilo, as ideias e as principais características desse
padre jesuíta que viveu em uma época cujo estilo dominante era
o Barroco.
Português de nascimento, ordenou-se em 1635 e durante seis
anos pregou em Salvador. Depois esteve um tempo em sua terra
natal. De volta ao Brasil em 1653, esteve no Maranhão, onde
desempenhou ampla defesa contra a escravidão indígena, tendo
proferido alguns sermões, dos quais vamos analisar dois.
Pe. Vieira entrou em choque, devido a suas ideias, com a
Corte portuguesa e com a própria Igreja Católica. Era contra o
tratamento então dado aos cristãos-novos (judeus convertidos)
e aos indígenas, quase sempre escravizados ou perseguidos; era
também contra a forma de atuar da Inquisição. Por isso, foi
afastado de suas funções e perseguido. Em 1679, a pedido de
seus superiores da Ordem dos Jesuítas, passou a organizar seus
sermões e publicou-os. Para além do valor filosófico, teológico
ou político, os sermões se constituem em peças de grande valor
literário, pelo uso que faz dos recursos estéticos, como figuras
de linguagem. O objetivo último é persuadir, pelos recursos
retóricos, seus ouvintes, para tanto, lança mão de diversos
recursos linguísticos, fundamenta-os com uma argumentação
sólida, baseada na interpretação da Bíblia e citações diversas do
livro sagrado. Os sermões, portanto, constituíram-se em prosa de
alta qualidade literária, cuja leitura pode ser feita ainda hoje com
grande interesse.
Antes de tratarmos em particular dos sermões, vamos
contextualizar a época. No século XVII, a vida intelectual e
cultural na Colônia era, obviamente, pouco desenvolvida. Por
isso mesmo, o que se fazia no Brasil era um reflexo da vida
cultural portuguesa, com algumas especificidades locais. Ora, o
Brasil não poderia fugir à presença cultural da metrópole, e o
que se fazia lá, no caso a arte barroca, se refletia aqui.
E o que é o Barroco? Trata-se de uma escola artística
(incluindo literatura, música, arte sacra, teatro, arquitetura)
que se encontra entre o Classicismo e o Arcadismo. Essas duas
escolas privilegiavam a razão, a objetividade e a clareza na
composição artística. Artistas como Luís de Camões, Tomás
Antônio Gonzaga representam, respectivamente, o melhor dessa
literatura. No Barroco, ao contrário, predominam os paradoxos,
as figuras de linguagem, a linguagem obscura. A explicação é
que o Barroco reflete as tensões do período, de um mundo em
transformação, que estava entre o Absolutismo monárquico, os
resquícios do medievalismo teocêntrico e uma visão mais aberta,
filosófica e politicamente, como o que viria se constituir na
idade da Razão, ou o século das Luzes, isso no século XVIII. É
bem verdade que uma liberdade mais ampla só viria a ocorrer
no século XIX; de qualquer modo, começou a se constituir no
século XVII.
Nesse embate discursivo, Deus está sempre presente na arte
barroca, seja como temática central, seja como ideia para falar
de outros temas, de outros assuntos, inclusive do amor entre um
casal. Do ponto de vista artístico, a arte barroca caracteriza-se
pelo jogo verbal entre claro e obscuro, e pelo uso até exagerado
de metáforas e hipérbole.
Duas concepções artísticas se constituíram no barroco: a
cultista, em que se verifica um trabalho mais apurado com a
linguagem, visando mais do que a clareza do que se diz, ao desejo
de mostrar talento e engenhosidade na busca de metáforas,
comparações e outros recursos estéticos; e a conceptista, em
que se verifica uma busca pela verdade por meio da exposição
de ideias, argumentos e logicidade. Vieira adota nos sermões a
última, embora não despreze totalmente a primeira.
No “Sermão da Sexagésima” ou “do Evangelho”, por
exemplo, pregado em 1655 na Capela Real, Vieira tem como
público preferencial seus pares. Seu objetivo é exatamente
discutir os dois estilos, o cultista e o conceptista, para demonstrar
que não é bom um padre pregar segundo o modelo cultista,
pela afetação, o uso exagerado de metáforas, uma vez que, desse
modo, não se estaria cumprindo com o dever de pregar, de
levar a palavra de Deus adiante. Ao contrário, quando se prega
assim, importa mais revelar a engenhosidade do pregador, que
propriamente a expressão da palavra divina. A seguir um longo
trecho desse sermão, significativo para se entender tal concepção:
Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode
proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou
da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se
converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos:
há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; háde concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de
concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se
ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz.
Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se
tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de
luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos.
Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem
dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários
olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre
com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é
a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento.
Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação
depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte,
por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte,
ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?
Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode
faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino,
e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o
semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se
perderam estas três? A primeira perdeu-se, porque a afogaram
os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira,
porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que
diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma
daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A
causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela
desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou
sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não
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introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se
perdesse por causa do sol ou da chuva? Porque o sol e a chuva são
as afluências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da
palavra de Deus, nunca é por falta do Céu, sempre é por culpa
nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos
espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos
caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é
nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol
para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar
e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem:
Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super
justos et injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e
aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará?
Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em
mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? - disse o
mesmo Deus por Isaías.
Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de
frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do
pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores
deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte
dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto,
mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte
dos ouvintes. Provo.
Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz
neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não
faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que
caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae
spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu
também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na
terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et
natum fecit fructum centuplum. De maneira que o trigo que
caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má
terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é
tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos
maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos,
não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras,
não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes
que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E por
quê? - Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de
entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os
piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus
ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias,
a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não
pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos,
antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais
que o sermão vos picou e vós, e não é assim; vós sois os que
picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos
agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores,
porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e
vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades
endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana
mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais
facilmente se despontam na pedra. (p. 88-90)
representadas por Maquiavel e Erasmo de Roterdã. No sermão,
mostra que o grande culpado é o pregador, posto que sua palavra
é pouco condizente com a palavra de Deus. É antes meio de
revelar toda sua agudeza, sua capacidade oratória e retórica.
Também é possível perceber a presença de citações bíblicas
em latim. Se hoje pouco conhecemos a língua de Roma, à época
era quase uma necessidade ter boas noções de latim, fosse porque
a missa era rezada em latim, fosse porque muitos documentos
eram redigidos originalmente em latim. Assim, mesmo os
colonos analfabetos ou semianalfabetos conheciam rudimentos
da língua. Nos Sermões, as citações em latim se prestam a duas
funções básicas: recurso de memorização e enriquecimento
discursivo. Desse modo, busca ser mais persuasivo e atingir seus
objetivos.
Conforme se lê em um livro voltado para estudantes de
Letras, “os sermões do Pe. Antonio Vieira marcaram a sociedade
do seu tempo, tanto do ponto de vista religioso quanto político.
Um dos pontos que chamam atenção em seus sermões e escritos
é a defesa de que, assim como Israel teria sido a pátria escolhida
por Deus, para o nascimento de Cristo, Portugal seria o Estado
moderno com a tarefa de expandir a cristandade. Por isso, nos
sermões, há um papel privilegiado ao rei, que desempenharia
no novo Estado português e, por extensão, no Estado Cristão.
Haveria, segundo Vieira, uma analogia entre o papel de Cristo
e a função do rei português. Assim, Vieira re-sacraliza o Estado,
após as Reformas ocorridas no princípio da idade Moderna. No
entanto, não se trata de uma simples medievalização do mundo
moderno, e sim uma compreensão do papel da Igreja e do Estado
num mundo que caminhava para laicização. Considerando isso,
a monarquia é vista como o melhor sistema de governo e a única
apta a cuidar do bem comum”.
Há dois sermões em que Vieira trata de tema espinhoso
para a época, a escravização dos índios. Se para os colonos isso
era um caminho natural, para a Igreja os indígenas tinham de
ser redimidos de sua ignorância pela fé e pelo conhecimento da
palavra de Deus. Em sendo escravos, não se poderia realizar tal
intento.
Por isso, sob pressão eclesiástica, particularmente dos
jesuítas, o então rei de Portugal, D. João IV, proibiu a
escravização dos índios (então começou-se a trazer escravos da
África), e Vieira pregou no Maranhão, no primeiro domingo da
Quaresma de 1653, um sermão (“Sermão da Primeira Dominga
da Quaresma” ou “das Tentações”) para persuadir os colonos de
que a proibição seria o caminho mais acertado, mais justo. Em
seu estilo conceptista, Vieira procura mostrar que aprisionar,
escravizar não pode ser a vontade de Deus, e que tais atitudes
só poderiam levar os que praticam a escravização dos indígenas
ao inferno. Também compara a atitude ao que fizera o Faraó
contra os hebreus no tempo de Moisés. E como Deus castigou
duramente o Faraó com diversas pragas, até a morte por
afogamento na transposição do mar Vermelho.
Como se pode perceber, Vieira demonstra ser um profundo
conhecedor da Bíblia, pois mescla passagens do Livro Sagrado
com situações contemporâneas, de acordo com o estilo
conceptista. Vieira realiza, pois, um dos conceitos que explicam
o Barroco: um programa de afetar e conduzir as vontades
pela teatralização de princípios teológicos que fundamentam
o pensamento católico contra as vertentes protestantes,
representadas por Lutero, Calvino e pelas vertentes políticas,
Sabeis, cristãos, sabeis, nobreza e povo do Maranhão, qual
é o jejum que quer Deus de vós nesta Quaresma? Que solteis
as ataduras da injustiça e que deixeis ir livres os que tendes
cativos e oprimidos. Estes são os pecados do Maranhão: estes são
os que Deus me manda que vos anuncie. [...] Desceram os filhos
de Israel ao Egito, e depois da morte de José, cativou-os el-rei
Faraó, e servia-se deles como escravos. Quis Deus dar liberdade
a este miserável povo, mandou lá Moisés e não lhe deu mais
escolta que uma vara. Achou Deus que para pôr em liberdade
cativos, bastava uma vara, ainda que fosse libertá-los de um rei
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tão tirano como Faraó e de uma gente tão bárbara como a do
Egito. Não quis Faraó dar liberdade aos cativos, começaram
a chover as pragas sobre ele. [...] Se vós tivéreis verdadeira fé,
se vós crereis verdadeiramente na imortalidade da alma, se vós
crereis que há inferno para toda a eternidade; bem me rio eu
que quisésseis ir lá pelo cativeiro de um tapuia. (p. 38-39)
Consta que Vieira conseguiu mexer com os sentimentos dos
colonos. No entanto, entre o medo do inferno e o desejo de
enriquecer prevaleceu a segunda opção. Por isso, a luta pelo fim
da escravização indígena, a despeito da ordem régia, não chegara
ao fim. No ano seguinte, Vieira teve de pregar novamente no
Maranhão sobre o mesmo tema. Faz isso no sermão intitulado
“Sermão de Santo Antônio” ou “dos Peixes”.
Conforme o título indica, agora usa a metáfora dos peixes,
isto é, procura mostrar que, assim como ocorre no mar, na terra
os peixes maiores comem os menores, com a diferença clara de
que na vida marítima, os peixes fazem isso por instinto, como
meio de sobreviver, na terra, os peixes buscam expressar sua
maldade, sua ganância, sem se importarem com as almas dos
outros peixes. Também se aproveita da parábola do sal da terra
(o que remete o ouvinte, por analogia semântica, ainda à mesma
metáfora, mar, terra, peixe) para afirmar que todos devemos ser
o sal da terra, todos devemos praticar o bem, espalhar a palavra
de Deus (o sal) para que a vida seja um bem comum.
Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois
o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam
na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção;
mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa,
havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual
pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou
porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga,
e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque
a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a
doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal
não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou
porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes
imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o
sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou
porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir
a Cristo, servem a seus apetites. (p. 49)
as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são
e preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas
propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo
Antônio, como também as devem ter as de todos os pregadores.
Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para
o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis
que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem
seu lugar. (p. 51)
E um pouco mais adiante, faz referência a que os índios até
poderiam praticar a antropofagia, mas quem a pratica de fato são
os brancos, pelo que tornam os índios cativos e impedem, pela
corrupção, que sejam salvos pela Palavra Divina.
Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso
o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão?
Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais
que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior
açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. (p. 64)
Vieira teve diversos problemas por atacar diversas
posições que eram tidas como costumeiras pela população ou
institucionalizadas. Por isso mesmo, enfrentou perseguições
dentro da Igreja e fora dela também. Um de seus sermões mais
fortes, que mais atacam os poderosos é “O Sermão do Bom
Ladrão”, proferido em 1655 na Igreja da Misericórdia de Lisboa,
onde se encontravam D. João IV e demais membros do Império,
como juízes, ministros e conselheiros.
Como o próprio título indica, vai tratar sobre ladroagem,
sobre roubo. Mas não qualquer roubo, e sim a corrupção no alto
escalão do governo (coisa nem nova, nem démodée). Denuncia,
pois, escândalos no governo, em que gestões fraudulentas
ocorrem com frequência, sobretudo nas colônias, especialmente
a brasileira. Em contrapartida, a punição, quando ocorre, é
branda e desproporcional, conforme o cargo que se ocupa.
Seu objetivo é, pois, o de revelar como a corrupção, passiva e
ativa, se instalara na nobreza e em pessoas ligadas ao alto escalão
do governo. O título, obviamente irônico, aponta para uma
discussão de ordem retórica, quando um ladrão é bom, como se
isso fosse de fato possível.
Não mede palavras, joga com elas, para conseguir o efeito
desejado:
E para que um discurso tão importante e tão grave vá
assentado sobre fundamentos sólidos e irrefragáveis, suponho
primeiramente que sem restituição do alheio não pode haver
salvação. (p. 119)
Essa discussão em torno da culpa sobre o porquê a palavra
de Deus não faz efeito, se por culpa do terreno (os ouvintes),
se por culpa dos que jogam o sal (pregadores) é desenvolvida
também no “Sermão da sexagésima”, embora neste ele use da
parábola bíblica do semeador. No caso do sermão em questão,
seu objetivo é discutir de quem seria a culpa de ainda se praticar
a escravização indígena, a que aqui chama de corrupção, por ora.
Adiante explica o porquê da referência aos peixes:
Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior
auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de
ouvintes: ouvem e não falam. Uma só coisa pudera desconsolar
ao pregador, que é serem gente os peixes que se não hão de
converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume
quase se não sente. Por esta causa não falarei hoje em Céu nem
Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus
parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança
destes dois fins. Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos
peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades,
E adiante:
Suposta esta primeira verdade, certa e infalível, a segunda
coisa que suponho com a mesma certeza é que a restituição
do alheio sob pena da salvação não só obriga aos súditos e
particulares, senão também ao cetros e às coroas. Cuidam, ou
devem cuidar alguns príncipes, que assim como são superiores a
todos, assim são senhores de tudo, e é engano. (p. 122)
E para não deixar dúvida a quem se dirige em seu sermão,
Vieira isenta o ladrão de galinha para atacar o ladrão de alto
escalão, posto que prejudica toda a coletividade, e não apenas
um indivíduo.
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O ladrão que furta para comer não vai nem leva ao inferno:
os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são os ladrões de
maior calibre e de mais alta esfera. (p. 125)
A Fé, o Império, e as terras viciosas (Canto I, estrofe II)
Diz Vieira em referência ao que ele próprio sofrera:
Quem havia de crer que, em uma colônia chamada de
portugueses se visse a Igreja sem obediência, as censuras sem
temor, o sacerdócio sem respeito e as pessoas e lugares sagrados
sem imunidade? Quem havia de crer que houvessem de arrancar
violentamente de seus claustros aos religiosos e levá-los presos
entre beleguins e espadas nuas pelas ruas públicas, e tê-los
aferrolhados, e com guardas, até os desterrarem? (p. 155)
No final do sermão, retoma o conceito do bom ladrão na
sua origem, a bíblica, em que Cristo perdoa um dos ladrões que
com ele estava sendo crucificado, e, percebendo que haveria nele
algo de bom, de positivo, perdoa seus pecados e o chama para
participar da vida eterna no Paraíso. No caso de Vieira, o título,
conforme referido, contém um aspecto irônico, persuasivo, posto
que bom ladrão não existiria com efeito. Mas antes de finalizar o
sermão, conclama o próprio Jesus Cristo e diz:
Para que os ladrões e os Reis se salvem, ensinai com
vosso exemplo, e inspirai com vossa graça a todos os Reis, que
não elegendo, nem dissimulando, nem consentindo, nem
aumentando os ladrões, de tal maneira impidam os furtos
futuros, e façam restituir os passados, que em lugar de os ladrões
os levarem consigo, como levam, ao Inferno, levem eles consigo os
ladrões ao Paraíso, como vós fizestes hoje: Hodie mecum eris in
Paradiso. (p. 143)
Observa-se no parágrafo um jogo de palavras de grande
impacto e persuasivo, como de resto em todos os textos do autor.
No “Sermão da Epifania ou do Evangelho”, Vieira retoma a
discussão sobre a escravização indígena, agora sob outro viés. É
que, com a morte de D. João IV (em 1656), os jesuítas perderam
força na colônia e acabaram expulsos, especialmente da capitania
do Maranhão, onde Vieira pregara já diversos sermões, dos quais
destacamos dois nesta obra. O padre prega este novo sermão
na Capela Real, em Lisboa, no ano de 1662. Nele, reclama da
perseguição que sofrera e da necessidade de se defenderem as
causas justas, de se apoiar a evangelização dos colonos e dos
nativos.
Epifania é uma festa ou tempo litúrgico da Igreja Católica.
Nela comemora-se a revelação (sentido etimológico da palavra
‘epifania’) do menino Deus aos homens, por meio dos três reis
magos. Desse modo, tem início o princípio da universalidade
da cristandade, posto que cada rei representa uma parte do
mundo. A partir desse momento, pois, todos são chamados a
fazer parte da cristandade, incluindo os gentios, os indígenas,
continuamente perseguidos, o que acaba gerando uma aversão ao
homem branco, incluindo suas crenças. Desse modo, dificulta-se
a evangelização. Daí a necessidade de parar com a escravização
indígena.
Outro argumento utilizado é que cada rei mago representaria
uma parte do mundo então conhecido (Ásia, África e Europa),
mas agora, com outra parte conhecida, a América, caberia aos
novos reis a promoção da fé cristã, a defesa dessa fé em benefício
dos povos locais, e não sua exploração.
Há de ter rei que receba e se enriqueça com os seus tributos,
e não há de ter rei que com eles ou sem eles a leve aos pés de
Cristo? (p. 149)
Adiante, Vieira reclama exatamente do fato de que essa
Igreja, Igreja de Cristo, ser pouco respeitada pelos portugueses,
que conquistam as novas terras sob a bandeira da religião, sob a
ótica religiosa, como bem destacara Camões em seu Os Lusíadas:
Aos poucos, vai amarrando as partes do sermão em torno dos
aspectos levantados: reis magos e início da cristandade, respeito
à Igreja, papel de Portugal na construção do novo mundo, povos
chamados à conversão, desvio do caminho do bem e a lembrança
de que não se deve escravizar os povos indígenas, igualmente
chamados à conversão:
Acabe de entender Portugal que não pode haver Cristandade
nas conquistas sem os ministros do Evangelho terem abertos
e livres estes dois caminhos que hoje lhes mostrou Cristo. Um
caminho para trazerem os Magos à adoração e outro para os
livrarem da perseguição; um caminho para trazerem os gentios
à fé, outro para os livrarem da tirania; um caminho para
salvarem as almas, outro para lhes libertarem os corpos. (p. 170)
Depois desse sermão, Vieira passou a ser mais perseguido
ainda, acusado de defesa dos judeus e de assumir posições
políticas contrárias ao governo e aos interesses da Coroa.
Condenado, ficou dois anos preso.
O último sermão publicado no livro que estamos utilizando
é, cronologicamente, o primeiro. Intitulado “Pelo bom sucesso
das armas de Portugal contra as de Holanda”, foi proferido
em 1640 na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, na Bahia.
Como indica o título, Vieira quer conclamar os colonos contra
a ameaça holandesa. Não se trata apenas de uma ameaça de
ordem político-econômica, mas também religiosa, posto que os
holandeses tinham uma visão mais liberal da religião, incluindo
uma maior liberdade ao judeus, o que contrariava a visão católica
luso-espanhola.
Os holandeses tentaram invadir a colônia portuguesa diversas
vezes entre 1599 e 1654, obtendo especial sucesso na invasão
de 1625 à cidade de Salvador. O maior sucesso foi a invasão à
Capitania de Pernambuco, onde permaneceram entre 1630 e
1654, quando foram expulsos.
Retomando o sermão, nele Vieira se dirige a Deus e clama
a Ele que ajude, que inspire o povo local a defender a colônia,
a defender a Igreja, posto que ela seria a expressão da verdadeira
vontade divina, e não a holandesa. Revelando toda sua
capacidade persuasiva, Vieira se utiliza do episódio bíblico da
época de Moisés, quando os judeus fugidos da escravidão egípcia
em dado momento criam um bezerro de ouro para adorálo. Vieira afirma que Deus quis castigar o povo, mas Moisés
interveio em favor do povo, que, se cometera um erro, ainda
assim não perdera a fé verdadeira em Deus.
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
Desta maneira arrazoou Moisés em favor do povo; e ficou
tão convencido Deus da força deste argumento que no mesmo
ponto revogou a sentença, e, conforme o texto hebreu, não só se
arrependeu da execução, senão ainda do pensamento. (p. 211)
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Considerando essa “jurisprudência divina”, por assim
dizer, em que, mesmo tendo errado, o povo hebreu foi perdoado
por Deus, o padre pede a Ele que intervenha em favor dos
portugueses, posto que, mesmo com alguns pecados, seguiriam
a verdadeira fé, não levantariam bezerros de ouro ou coisas
parecidas contra Deus. Desse modo, deveriam eles sair vitoriosos
dessa batalha. O argumento de Vieira lembra o mesmo do poeta
barroco Gregório de Matos, que em um soneto, se apresenta
como pecador, mas vê em Deus a possibilidade do perdão, posto
que Deus não iria querer perder um fiel para o pecado, para o
mal:
Vieira, pois, quer animar o povo a lutar contras o hereges
holandeses, mas não o faz diretamente. Dirige-se ao próprio
Deus, mas querendo mexer com os brios dos colonos, católicos e
detentores da verdadeira fé.
Embora aqui seja uma pequena mostra da vasta obra do Pe.
Antonio Vieira, é possível perceber os aspectos que serão comuns
de sua sermonística.
Exercícios
1. (PUC-RJ):
Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo
Mar Eritreu a conquistar a Índia, e como fosse trazido à sua
presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores,
repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício;
porém, ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim.
— Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou
ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?
Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o
roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os
Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades
e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o
mesmo nome: Eodem loco pone latronem et piratam, quo regem
animum latronis et piratae habentem. Se o Rei de Macedônia,
ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, o ladrão,
o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo
nome. [Fragmento do “Sermão do bom ladrão”, de Pe. Antônio
Vieira]
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinquido,
Vós tendes a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida, e já cobrada
Gloria tal, e prazer tão repentino
vos deu, como afirmais na Sacra História:
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada
Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória
Uma das mais importantes características da obra do Padre
Antônio Vieira refere-se à presença constante em seus
sermões das dimensões social e política, somadas à religiosa.
Comente essa afirmativa em função do texto acima.
Observe como o padre utiliza um argumento, um artifício
retórico parecido:
Pois é possível, Senhor, que hão de ser vossas permissões
argumentos contra vossa Fé? É possível que se hão de ocasionar
de nossos castigos blasfêmias contra vosso nome?! Que diga o
herege (o que treme de o pronunciar a língua), que diga o herege,
que Deus está holandês?! Oh não permitais tal, Deus meu, não
permitais tal, por quem sois! Não o digo por nós, que pouco ia
em que nos castigásseis; não o digo pelo Brasil, que pouco ia em
que o destruísseis; por vós o digo e pela honra de vosso Santíssimo
Nome, que tão imprudentemente se vê blasfemado: Propter
nomen tuum. (p. 212)
Assim, Vieira argumenta com Deus e O repreende, a fim de
que Ele conceda aos portugueses a vitória que engrandecerá a
glória divina. Mesmo porque, como no poema de Gregório de
Matos, certamente Deus não iria querer perder sua Glória, por
conta de um pecador:
2. (UFOP) Sobre o Sermão da Sexagésima, de Antônio Vieira, é
incorreto dizer que:
a) obedece rigorosamente às regras mais fundamentais da
retórica para o púlpito, não descuidando de qualquer
detalhe.
b) pode ser definido como “uma profissão de fé oratória”,
uma vez que aí ele expõe claramente os princípios de sua
arte de pregar.
c) jamais se rende ao cultismo predominante na época, uma
vez que o critica de forma precisa e clara.
d) combina de modo bastante feliz as regras clássicas de um
discurso pagão aos princípios religiosos da doutrina cristã.
e) utiliza uma parábola do Evangelho de São Mateus como
uma metáfora que se desdobra em inúmeras variações.
3. (UFOP) Considerando o texto do Sermão da Sexagésima, de
“Pequei, que mais Vos posso fazer?” E que fizestes vós, Job, a
Deus em pecar? Não Lhe fiz pouco; porque Lhe dei ocasião a me
perdoar, e perdoando-me, ganhar muita glória. Eu dever-Lhe-ei
a Ele, como a causa, a graça que me fizer; e Ele dever-me-á a
mim, como a ocasião, a glória que alcançar. [...]. Em castigar,
vencei-nos a nós, que somos criaturas fracas; mas em perdoar,
vencei-Vos a Vós mesmo, que sois todo-poderoso e infinito. Só
esta vitória é digna de Vós, porque só vossa justiça pode pelejar
com armas iguais contra vossa misericórdia; e sendo infinito o
vencido, infinita fica a glória do vencedor. (p. 224-225).
Antônio Vieira, é incorreto afirmar que:
a) é um discurso oratório no qual se percebem com nitidez o
exórdio, o desenvolvimento e a peroração.
b) em seu exórdio, o orador é bastante simples, indo
diretamente ao tema do sermão sem maiores circunlóquios.
c) em seu desenvolvimento, o sermão apresenta um perfeito
equilíbrio entre narração e argumentação.
d) sua argumentação não dispensa procedimentos conceptistas
tais como o silogismo, o paradoxo e o exemplo.
e) Vieira se exime de induzir os seus ouvintes, fazendo que o
sermão perca muito de sua eficácia.
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(UEMS) Considere o texto (fragmento) “Sermão de Santo
Antônio aos peixes”, para responder às questões 4 e 5.
A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é
que comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a
circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos
outros senão que os grandes comem os pequenos. Se fora ao
contrário era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes,
bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes
comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para
um só grande. (...) Os homens com suas más e perversas cobiças,
vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros.
(Vieira, Antônio. Sermões: a arte da retórica. São Paulo:
Russel, 2006.)
d)
e)
7. (Fuvest) A respeito de Padre Antônio Vieira, pode-se
afirmar:
a) embora vivesse no Brasil, por sua formação lusitana não se
ocupou de problemas locais.
b) procurava adequar os textos bíblicos às realidades de que
tratava.
c) dada sua espiritualidade, demonstrava desinteresse por
assuntos mundanos.
d) em função de seu zelo para com Deus, utilizava-o para
justificar todos os acontecimentos políticos e sociais.
e) mostrou-se tímido diante dos interesses dos poderosos.
4. Considerando o texto “Sermão de Santo Antônio aos peixes”
e o estilo utilizado, Vieira
I. desenvolve seus temas por meio de raciocínios tortuosos e
encadeamento lógico.
II. estabelece analogias e comparações entre situações de sua
época e passagens bíblicas.
III. faz uso de rebuscada linguagem barroca, o que torna sua
temática ultrapassada.
IV. revela em seus textos um hábil manejo da linguagem.
Vieira baseia-se em parábolas bíblicas, e sua linguagem se
vale de estruturas retóricas clássicas.
pela sua capacidade de argumentação, Vieira consegue,
nesse sermão, convencer os indígenas a se converterem.
8. (Febasp) “Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma
barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada,
sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar
muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas,
o roubar com muito, os Alexandres... O ladrão que furta
para comer não vai nem leva ao inferno: os que não só vão,
mas que levam, de que eu trato, são os outros — ladrões de
maior calibre e de mais alta esfera... os outros ladrões roubam
um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam
debaixo de seu risco, estes, sem temor nem perigo; os outros
se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam”.
É verdadeiro o que se afirma apenas em
A) I e II
B) I, II e IV
C) II e III
D) III e IV
E) I, II e III
Padre Vieira. Sermão do Bom Ladrão
Em relação ao estilo empregado por Vieira neste trecho
pode-se afirmar:
a) o autor recorre ao cultismo da linguagem com o intuito de
convencer o ouvinte e por isto cria um jogo de imagens.
b) Vieira recorre ao preciosismo da linguagem, isto é, através
de fatos corriqueiros, cotidianos, procura converter o
ouvinte.
c) Padre Vieira emprega, principalmente, o conceptismo, ou
seja, o predomínio das ideias, da lógica, do raciocínio.
d) o pregador procura ensinar preceitos religiosos ao ouvinte,
o que era prática comum entre os escritores gongóricos.
5. O texto “Sermão de Santo Antônio aos peixes” implica uma
atitude ético-racional do ser humano diante das relações de
poder na sociedade. Portanto, em análise a esse texto, podese dizer que
A) assim como os peixes, sem distinção de tamanho, deveriam
estar em condições de se devorar uns aos outros, também
os humanos deveriam competir livremente entre si,
possibilitando assim uma distribuição mais equânime
das consequências e responsabilidades de uma sociedade
competitiva.
B) a eliminação dos mais fortes, com a consequente hegemonia
dos fracos, é o caminho mais seguro para a paz social.
C) o comportamento entendido como humano deve, cada vez
mais, distinguir-se do comportamento regido pelas leis da
natureza, tipicamente marcada pela relação entre fortes e
fracos, predadores e presas.
D) a natureza nos ensina que “a lei do mais forte” é, em si,
promotora de desenvolvimento.
E) a aptidão ao poder deve ser desenvolvida em cada um,
para que não haja devorados, mas apenas devoradores.
9. (UHRS) Considerem-se as seguintes afirmações sobre o
6. (UM-SP) Aponte a alternativa incorreta sobre o “Sermão da
Sexagésima”:
a) o autor desenvolve dialeticamente a seguinte tese: “A
semente é a palavra de Deus”.
b) o estilo é barroco e privilegia a corrente conceptista de
composição.
c) o orador discute no sermão cinco causas possíveis que não
permitiram a entrada da palavra de Deus no coração dos
homens.
Barroco brasileiro:
I – A arte barroca caracteriza-se por apresentar dualidades,
conflitos, paradoxos e contrastes, que convivem tensamente
na unidade da obra.
II – O conceptismo e o cultismo, expressões da poesia barroca,
apresentam um imaginário bucólico, sempre povoado de
pastoras e ninfas.
III – A oposição entre Reforma e Contrarreforma expressa, no
plano religioso, os mesmos dilemas de que o Barroco se
ocupa.
Quais estão corretas?
a) apenas I.
b) apenas II.
c) apenas III
d) apenas I e III.
e) I, II e III.
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CAPÍTULO X - Poesias Completas, de Cruz e Sousa
O poeta João da Cruz e Sousa (1861-1898) nasceu em
Desterro, hoje Florianópolis. Filho de escravos alforriados, sofreu
preconceitos exatamente por causa de sua origem e de sua raça.
Mesmo tendo recebido uma educação refinada, provinda de seu
ex-patrão, o Marechal Guilherme Xavier de Sousa, aprendido
outros idiomas e aprimorado sua habilidade literária, Cruz e
Souza morreu sem reconhecimento por seu valor como artista.
O fato se deu por dois motivos principais: hermetismo de sua
poesia e origem humilde, o que provoca um preconceito. Outros
escritores também passaram pela mesma situação, como Lima
Barreto, que também era negro. Caso singular é o de Machado
de Assis, cuja origem é semelhante ao dos outros dois artistas,
mas obteve reconhecimento artístico ainda em vida.
Cruz e Sousa é autor de diversos livros de poemas em
verso (mais comum) e também em prosa. Começou como
autor naturalista, ao publicar, em 1885, Tropos e Fantasias
(em colaboração com Virgílio Várzea). Mas é com Broquéis e
Missal, ambos publicados em1893, que inscreve seu nome entre
os grandes autores da literatura brasileira. Inspirado em Charles
Baudelaire e outros poetas franceses, inicia também, com os dois
livros, a escola literária simbolista no país, cujas características
veremos adiante.
Foram publicados ainda postumamente Evocações (1898);
Faróis (1900); Últimos sonetos (1905); e Poemas inéditos - Outras
evocações, O livro derradeiro e Dispersos (1961).
Juntando toda sua vasta produção, temos quase seiscentos
poemas (em prosa ou em verso), o que dificulta uma análise
detalhada de cada poema. Por esse motivo, traçaremos um
perfil poético do autor, com destaque para os poemas mais
significativos.
Segundo Alfredo Bosi (História Concisa da Literatura
brasileira p.295), “o Parnaso legou aos simbolistas a paixão
do efeito estético. Mas os novos poetas buscavam algo mais:
transcender os seus mestres para reconquistar o sentimento de
totalidade que parecia perdido desde a crise do Romantismo”.
Ou seja, para além da frieza da forma do poema (versos, rimas,
ritmo), que seria a expressão da objetividade, um voltar-se para o
objeto, o poeta simbolista deveria buscar uma integração entre o
modo de dizer e o que dizer, isso para ver no objeto significados
capazes de explicar de maneira holística todo o universo.
Claro que se trata antes de um projeto que propriamente uma
realização eficaz. Modernamente, diríamos, trata-se de um
compartilhamento entre tudo, entre mídias, de modo a construir
redes de relacionamento e significado.
Por exemplo, em “Oração ao Sol”, poema em prosa
publicado em Missal, Cruz e Sousa critica essa preocupação
meramente formalista dos parnasianos e conclama o Sol, para
que ilumine a vida como um todo, não apenas uma parte dela:
A natureza é um templo em que vivas pilastras
deixam sair às vezes obscuras palavras;
[...]
os perfumes, as cores e os sons se correspondem.
Encontrar tal correspondência seria decifrar a natureza,
seria entender a vida em sua plenitude, pois em tudo há uma
simbolização, em tudo há um significado, capaz de explicar o
todo pela parte. Trata-se de uma visão espiritual, que transcende
qualquer religião, ainda que nela resida o maior conjunto de
símbolos.
Essa correspondência dos sentidos (olfato, visão, audição),
expressa no poema de Baudelaire, se dá pela sinestesia, um meio
integrador dos sentidos (por oposição à anestesia, a ausência de
sentido). Cabe, pois ao poeta, pela linguagem compreender todo
esse universo sinestésico e expor ao leitor.
O problema é que a expressão simbolista não se revela de
modo claro a qualquer leitor; é antes algo hermético, de teor
místico, muitas vezes restrito apenas aos iniciados.
Armam batalhas pelo mundo adiante
Os que vagam nos mundos visionários,
Abrindo as áureas portas de sacrários
Do Mistério soturno e palpitante.
O coração flameja a cada instante
Com brilho estranho, com fervores vários,
Sente a febre dos bons missionários
Da ardente catequese fecundante.
Os visionários vão buscar frescura
De água celeste na cisterna pura
Da Esperança, por horas nebulosas...
Buscam frescura, um outro novo encanto...
E livres, belos através do pranto,
Falam baixo com as almas misteriosas!
(“Visionário”, Últimos sonetos)
Sua poesia apresenta algumas constantes, mas antes de
tratarmos a respeito, vamos analisar o poema de abertura de
Broquéis, pelo que tem de profissão de fé, isto é, pelo que expõe
de aspectos próprios do que seria a poesia simbolista em geral e a
poesia de Cruz e Sousa em particular. Eis o poema:
[...]
Ó radiante orientalista do firmamento! Supremo artista
grego das formas indeléveis e prefulgentes da Luz! pelo exotismo
asiático desses deslumbramentos, pelos majestosos cerimoniais
da basílica celeste a que tu presides, que esta Oração vá, suba
e penetre os etéreos passos esplendorosos e lá para sempre viver,
se eternize através das forças firmes, num álacre, cantante, de
clarim proclamador e guerreiro.
É também a lição provinda do poeta francês Charles
Baudelaire, para quem:
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!...
Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...
Formas do Amor, constelarmente puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas...
Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...
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Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...
com toque de sensualidade, como em “Siderações”, “Em
sonhos”. “Monja”, “Lua”, “Primeira comunhão”, “Velhas
tristezas”, “Vesperal”, “Cristais”, “Sinfonias do ocaso”, “Música
misteriosa”, “Ângelus”, “Sonata”, “Incensos”, “Luz dolorosa”.
2) Metalinguagem: o processo de criação literária, com
destaque para a ideia do poeta maldito, como em “Sonhador”,
“Foederis arca”, “Post mortem”, “Supremo desejo”, “Tortura
eterna”.
3) Sensualidade: poemas com agressividade erótica e
marginal, como em “Lésbia”, “Múmia”, “Lubricidade”,
“Braços”, “Encarnação”, “Tulipa real”, “Dança do ventre”,
“Dilacerações”, “Sentimentos carnais”, “Serpente de cabelos”.
4) Erotismo espiritual: visão abstrata, pura e luminosa do
amor e sexo, como em “Canção da formosura”, “Beleza morta”,
“Deusa serena”, “Flor do mar”.
5) Extravagâncias: revelação de estados psíquicos anormais,
como em “Satã”, “Afra”, “Judia”, “Tuberculosa”, “Regenerada”.
6) Misticismo: visão religiosa e mística, ainda que com toque
sensual, como em “Cristo de bronze”, “Regina coeli”, “Noiva da
agonia”, “Visão da morte”, “Aparição”.
7) Pessimismo: mundo como local do sofrimento, como em
“A dor” e “Acrobata da dor”.
Em rigor, tais temas se repetem nos demais livros, ainda que
com diferenças de tom ou de perspectiva.
Há na poesia simbolista um marcante subjetivismo, expresso
de maneira vaga, mística, misteriosa e esotérica. O tema
recorrente em Cruz Souza é uma mescla entre desejo sexual e
sentimento místico, que pode ser representado, por exemplo,
pelos astros. É o que ocorre em ao menos quatro poemas:
“Supremo desejo”, “Monja”, “Em sonhos” e “Siderações”.
Em tais poemas, o eu lirico procura elevar o desejo sexual até
os astros, como num movimento de ascese, como um meio
de elevar tais sentimentos “baixos”, por assim dizer e conferir-lhes algo de nobre. Há pois, uma sacralização do corpo, uma
sacralização do sexo, contrariando o simples desejo carnal.
Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.
Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.
Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.
Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passe
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...
Cristais diluídos de clarões alacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos,
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...
Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...
Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...
(“Antífona” – Broquéis)
[...]
E as ânsias e os desejos infinitos
Vão com os arcanjos formulando ritos
Da Eternidade que nos Astros canta...
(“Siderações”)
Importante saber primeiro que antífona é um versículo
cantado antes e depois de um salmo, isto é, de uma canção
inteira. No caso, como é o primeiro poema do livro que inaugura
o Simbolismo no Brasil, é fácil entender a razão do título. A
ideia é mostrar que as formas da poesia parnasiana devem ser
diluídas na neblina, no mistério da vida, cujo significado deve
ser buscado nas correspondências dos sentidos. Observe que
o eu lírico expõe isso como se fosse uma oração, e as quatro
estrofes iniciais se constituem em um longo vocativo, resumido
no conceito de Formas vagas, alvas, para que elas fecundem o
mistério dos versos, para que torne mais rico, mais amplo de
significado o poema em si, e que do poema não reste apenas
uma sequência de vocábulos com o intuito de estabelecer rimas
belas e bem construídas, mas que vá além disso. Veja como fica
claro tal conceito a partir da sexta estrofe. É o mesmo princípio
presente no poema “Oração ao sol”, já referido.
Retomando o que é constante neste poeta, Ivan Teixeira, em
Introdução a Cruz Souza, divide os poemas de Broquéis em sete
temas básicos:
1) Esboços de atmosfera vaga: o poeta estabelece uma relação
com o cosmo, louvando a luz dos astros e a musicalidade,
Em consonância com essa visão, “Lésbia”, “Lubricidade”,
“Braços”, entre outros, tratam do desejo mais carnal, visto como
irresistível, ao mesmo tempo como um caminho para a morte.
A simbologia no caso é dúbia. Morte porque rebaixa o ser a
puro desejo, a puro êxtase; e também porque a relação sexual
é, simbolicamente, considerada um rito que evoca a morte, o
desfalecimento temporário do corpo, a perda de energia. Nos
três poemas, como em “Serpente de cabelos”, há uma remissão
ao papel sedutor da cobra, por alusão bíblica, e também pela
hipnose que o réptil costuma exercer, tanto pelo olhar como
pelo veneno que injeta em suas vítimas.
Quisera ser a serpe venenosa
Que dá-te medo e dá-te pesadelos
Para envolverem, ó Flor maravilhosa,
Nos flavos turbilhões dos teus cabelos.
Quisera ser a serpe veludosa
Para, enroscada em múltiplos novelos,
Saltar-te aos seios de fluidez cheirosa
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E babujá-los e depois mordê-los...
Ânsias mortais, angústias que palpitam,
Vãs dilacerações de um sonho esquivo,
Perdido, errante, pelos céus, que fitam
Do alto, nas almas, o tormento vivo.
Talvez que o sangue impuro e flamejante
Do teu lânguido corpo de bacante,
Da langue ondulação de águas do Reno
Vãs dilacerações de um Sonho estranho,
Errante, como ovelhas de um rebanho,
Na noite de hóstias de astros constelada...
Estranhamente se purificasse...
Pois que um veneno de áspide vorace
Deve ser morto com igual veneno...
(“Lubricidade”)
Observe como na última estrofe, o eu lírico, travestido de
cobra procura se enroscar no corpo feminino, e assim purificar
o desejo carnal em direção à expressão de um sentimento mais
elevado.
Esse jogo se verifica também em “Braços”.
[...]
Braços nervosos, tentadoras serpes
Que prendem, tetanizam como os herpes,
Dos delírios na trêmula coorte...
Pompa de carnes tépidas e flóreas,
Braços de estranhas correções marmóreas,
Abertos para o Amor e para a Morte!
Há, pois, uma luta entre o que se quer e o que se pode;
entre o desejo carnal e a expressão do amor, como algo elevado,
espiritual, distante da compulsão carnal. Tal embate pode ser
verificado em vários poemas do autor. Em “Carnal e místico”
ou “Cristo de bronze”, por exemplo, é facilmente percebido esse
jogo entre espiritualidade e sensualidade:
Errante, errante, ao turbilhão dos ventos,
Sentimentos carnais, vãos sentimentos
De chama pelos tempos apagada...
(“Sentimentos carnais”)
O caminho para a salvação é a própria poesia, o discurso
poético, que retira o ser do prosaísmo da vida e o eleva a um
estado superior, em busca da essência. Tal essência estaria na
forma do poema, no simbolismo da palavra. Eis a missão do
poeta. A busca do imaculado, em meio à degradação da carne,
motivada pelos desejos, pelas paixões. Mas também, revela outro
ponto da poética de Cruz e Sousa, qual seja, a expressão da dor,
motivada pelo ser poeta, pela condição inferiorizada, pela busca
da melhor expressão, pelo sentimento de perda de humanidade.
Ora, o poeta é descendente de escravos, em uma sociedade
escravocrata, escreve uma poesia hermética, para iniciados, que
não atinge ao grande público, como a poesia romântica ou
parnasiana. É, pois, um deslocado no mundo.
Assim, a solução estaria na poesia, meio de ascese, meio de
sair da realidade imediata. Vejamos dois poemas a título de
exemplo. Primeiro “Acrobata da dor”:
Gargalha, ri, num riso de tormenta,
Como um palhaço, que desengonçado,
Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
De uma ironia e de uma dor violenta.
[...]
Cristos de pedra, de madeira e barro...
Ó Cristo humano, estético, bizarro,
Amortalhado nas fatais injúrias...
Na rija cruz aspérrima pregado
Canta o Cristo de bronze do Pecado,
Ri o Cristo de bronze das luxúrias!...
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
Agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta clown, varado
Pelo estertor dessa agonia lenta...
Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
Nessas macabras piruetas d’aço...
Em certa oposição, há “Sonho branco”, em que o lírico
reconhece na pureza o caminho correto do amor, mas esse
caminho é pouco cativante, não há a paixão, não se mexe com
os desejos, com a libido. E o que fazer diante de tal conflito?
Aprisionar o desejo? Deixá-lo dormente? Pensar que não existe?
No entanto, Ó Sonho branco de quermesse!
Nessa alegria em que tu vais, parece
Que vais infantilmente amortalhado!
Em “Encarnação”, “Sentimentos carnais”, “Dilacerações”,
“Visão da morte”, o eu lírico não consegue fugir ao desejo,
entrega-se, ao mesmo tempo em que quer fugir, que quer algo
mais duradouro, eterno, que não apenas o prazer momentâneo,
posto que leva à morte, física e moral.
Sentimentos carnais, esses que agitam
Todo o teu ser e o tornam convulsivo...
Sentimentos indômitos que gritam
Na febre intensa de um desejo altivo.
E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente
Ri! Coração, tristíssimo palhaço.
O palhaço no caso é o poeta, que precisa chamar a atenção da
sociedade de algum modo. Cumpre esse papel de divertimento
da sociedade, que ao mesmo tempo em que pede bis, o despreza.
O palhaço-escritor se desdobra então para agradar, sabendo
que isso não será fácil, que pode lhe custar a vida, a autoestima.
Interessante que o eu lírico trata o palhaço como outro (tu),
reconhece-se nele. Olha à distância o que ele próprio sente.
No livro Últimos sonetos, há outro poema bem significativo,
que segue a mesma linha.
Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto dos prazeres,
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O mundo para ti foi negro e duro.
Filtros sutis de melodias, de ondas
De cantos volutuosos como rondas
De silfos leves, sensuais, lascivos...
Atravessaste num silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de altos saberes
Tornando-te mais simples e mais puro.
Como que anseios invisíveis, mudos,
Da brancura das sedas e veludos,
Das virgindades, dos pudores vivos.
Ninguém Te viu o sentimento inquieto,
Magoado, oculto e aterrador, secreto,
Que o coração te apunhalou no mundo.
Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!
(“Vida obscura”)
Aqui também é o olhar de fora, mas que revela o íntimo do
ser, sugerindo, pois, tratar-se da mesma pessoa, o ser que fala e o
ser sobre quem se fala. Enquanto o mundo, a sociedade, seguiu
seu curso, seguiu a vida de desejos, de paixões, para ele, foi
“negro e duro”, posto que sofria em silêncio e pouco podia fazer
para sua situação inferiorizada.
Retomando o livro Broquéis, no ultimo poema, “Tortura
eterna”, revela o conceito da incapacidade de a palavra poética
dar conta de todas as questões terrenas; ainda assim, cabe ao
poeta essa busca, uma vez que apenas pela poesia seria possível
sair de sua condição de acrobata da dor, do ser humilde em
direção a algo mais elevado. Mas isso, porém, pela força da
negativa.
Impotência cruel, ó vã tortura!
Ó Força inútil, ansiedade humana!
Ó círculos dantescos da loucura!
Ó luta, Ó luta secular, insana!
[...]
Ó Sons intraduzíveis, Formas, Cores!...
Ah! que eu não possa eternizar as cores
Nos bronzes e nos mármores eternos!
Esse poema pode ser utilizado como explicação para o uso
da sinestesia pelos simbolistas. Os poetas dessa escola queriam
explorar todos os sentidos como meio de atingir a plenitude. A
exploração das sensações era determinante para a compreensão
mais ampla do universo; e a linguagem poética, o veículo para se
realizar tal propósito.
No caso, observe como há uma mescla entre sonoridade (voz,
sonata), olfato (perfume), visão (pratas), tato (sedas, veludos),
para explorar a sensualidade do corpo feminino. E como essa
mescla também se realiza no próprio título: cristais, bonitos de
se verem, agradáveis ao toque e que têm um som característico.
Outro ponto significativo do poema é o uso das aliterações
(repetição de consoantes) e de assonâncias (repetição de
vogais) para criar o efeito sonoro e significativo do poema.
Particularmente o uso de consoantes sibilantes, como nos dois
tercetos, em que verifica o movimento sensual da cobra (já
aludido e referido em outros poemas), representado por De silfos
leves, sensuais, lascivos, criando uma atmosfera sensual, porém
não vulgar.
Dos livros póstumos, destaque para Faróis, no qual Cruz
e Souza demonstra ter abandonado o princípio da criação
parnasiana, isto é, a preferência pela forma perfeita, seja em
sonetos, seja em outras formas poéticas, o que sugere aquilo
que seria mais bem desenvolvido pelo Modernismo, no que diz
respeito à liberdade da criação poética. Claro, que o tom dos
poemas desse livro ainda é simbolista, como em “Violões que
choram”, em que a sinestesia, a aliteração são características bem
presentes:
[...]
E sons soturnos, suspiradas magoas,
Mágoas amargas e melancolias,
No sussurro monótono das águas,
Noturnamente, entre ramagens frias.
Ao contrário de “Antífona”, o eu lírico não pede a ajuda de
entidades formais, e sim espera não ser bem sucedido; desde o
início, “impotência cruel”, até a última estrofe “que eu não
possa eternizar...”. É como se não quisesse realizar aquilo a
que se propõe. Mas é antes uma negativa estratégica, retórica,
no sentido de que fala-se não, quando se quer dizer sim. Como
meio de despistar a vontade real. Quer atingir o mundo perfeito
das formas poéticas, quer atingir o mundo elevado, ao mesmo
tempo em que sabe ser isso quase impossível. Assim, nega para
ser, nega para afirmar.
Para encerrar a análise mais geral de Broquéis, destaquemos o
soneto “Cristais”.
Mais claro e fino do que as finas pratas
O som da tua voz deliciava...
Na dolência velada das sonatas
Como um perfume a tudo perfumava.
Era um som feito luz, eram volatas
Em lânguida espiral que iluminava,
Brancas sonoridades de cascatas...
Tanta harmonia melancolizava.
Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
Tudo nas cordas dos violões ecoa
E vibra e se contorce no ar, convulso...
Tudo na noite, tudo clama e voa
Sob a febril agitação de um pulso.
[...]
Já em Últimos Sonetos, Cruz e Sousa realizou o ideal
simbolista de exploração do poder da palavra. Como ficou dito
aqui, Cruz e Souza não foi um poeta popular, nem exatamente
benquisto pela crítica. Desse modo, procurou buscar essa glória
impossível pelos dois motivos aludidos: uma poesia com pouco
apelo popular e por sua origem, há uma ansiedade motivada
pelo descaso para com sua produção poética. No livro, procura
abordar exatamente a ânsia por esse reconhecimento artístico,
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mas a morte o encontra antes. Morre com apenas 36 anos,
vítima de tuberculose. Importante dizer que o ideal de um artista
nessas condições no século XIX era conseguir a subsistência,
preferencialmente no serviço público e poder exercer sua
arte (caso de Machado de Assis, que só obteve sucesso efetivo
após os 40 anos). Assim, é possível perceber que Cruz e Sousa
sabe que ele próprio e sua arte estavam fadadas ao fracasso.
O reconhecimento só veio mais tarde, com a revalorização
ocorrida no Modernismo. Leiamos dois poemas desse livro, que
expressam tal conflito entre o que se quer e o que se pode ter.
Ondulações e brumas do Mistério.
[...]
Apareces por sonhos neblinantes
Com requintes de graça e nervosismos,
fulgores flavos de festins flamantes,
como a Estrela Polar dos Simbolismos.
CRUZ e SOUSA, João da. Broquéis. Obra completa. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 90.
1. Marque V ou F, conforme sejam as afirmativas verdadeiras
ou falsas. Os versos de Cruz e Sousa traduzem a estética
simbolista, pois apresentam:
( ) descrição sintética do mundo imediato.
( ) uso de recursos estilísticos criando imagens sensoriais.
( ) enfoque de uma realidade transfigurada pelo
transcendente.
( ) apreensão de um dado da realidade sugestivamente
ambígua.
( ) imagens poéticas que tematizam o amor em sua dimensão
física.
Este caminho é cor de rosa e é de ouro,
Estranhos roseirais nele florescem,
Folhas augustas, nobres reverdecem
De acanto, mirto e sempiterno louro.
Neste caminho encontra-se o tesouro
Pelo qual tantas almas estremecem;
É por aqui que tantas almas descem
Ao divino e fremente sorvedouro.
É por aqui que passam meditando,
Que cruzam, descem, trêmulos, sonhando,
Neste celeste, límpido caminho.
A alternativa que contém a sequência correta, de cima para
baixo, é a
a) F V V V F
b) V F F V F
c) V F V V F
d) V F V F F
e) V F V F V
Os seres virginais que vêm da Terra,
Ensanguentados da tremenda guerra,
Embebedados do sinistro vinho.
(“Caminho da Glória”)
As questões de número 2 a 4 tomam por base o soneto
“Acrobata da dor”, do poeta simbolista brasileiro Cruz e
Sousa (1861-1898):
Muito embora as estrelas do Infinito
Lá de cima me acenem carinhosas
E desça das esferas luminosas
A doce graça de um clarão bendito;
Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.
Embora o mar, como um revel proscrito,
Chame por mim nas vagas ondulosas
E o vento venha em cóleras medrosas
O meu destino proclamar num grito,
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta...
Neste mundo tão trágico, tamanho,
Como eu me sinto fundamente estranho
E o amor e tudo para mim avaro...
Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa,
nessas macabras piruetas d’aço...
Ah! como eu sinto compungidamente,
Por entre tanto horror indiferente,
Um frio sepulcral de desamparo!
(“Só”)
E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.
(João da Cruz e Sousa. Obra completa. Rio de Janeiro:
Editora Aguilar, 1961.)
Exercícios
Ah! lilásis de Ângelus harmoniosos,
Neblinas vesperais, crepusculares,
Guslas gementes, bandolins saudosos,
Plangências magoadíssimas dos ares...
Serenidades etereais d‘incensos,
De salmos evangélicos, sagrados,
Saltérios, harpas dos Azuis imensos,
Névoas de céus espiritualizados.
[...]
É nas horas dos Ângelus, nas horas
Do claro-escuro emocional aéreo,
Que surges, Flor do Sol, entre as sonoras
2. O soneto revela, entre outras, uma das características notáveis
do estilo poético de Cruz e Sousa, que é a grande presença
de adjetivos, colocados antes ou após os substantivos a que se
referem. Observe estes cinco exemplos retirados do texto:
I. Riso absurdo.
II. Gargalhada atroz.
III. Agonia lenta.
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IV. Macabras piruetas.
V. Tristíssimo palhaço.
a)
b)
c)
d)
e)
Aponte os dois exemplos em que o adjetivo precede o
substantivo:
a) I e II.
b) II e III.
c) I e III.
d) II e IV.
e) IV e V.
6. (Cefet-RN) A questão seguinte refere-se ao soneto de Cruz e
Sousa:
Tortura eterna
3. No poema, os conceitos relacionados com a alegria e o riso,
característicos da imagem dos palhaços, são aproximados
de conceitos como dor, tristeza, agonia, sangue. Aponte
a alternativa que melhor justifica essa aproximação de
conceitos contraditórios:
a) As imagens de “palhaço” e “coração” apontam a um
mesmo significado, o próprio homem, apresentado como
um ser cuja imagem de alegria apenas disfarça tristezas,
dores, sofrimentos.
b) O “palhaço” é comparado com o “acrobata” que caiu,
donde a ocorrência de imagens relacionadas com sangue e
dor.
c) O poema de Cruz e Sousa constitui uma alegoria da vida
circense em todos os seus aspectos.
d) É tradicional na literatura explorar o tema do palhaço sob
os vieses da superação e da frustração.
e) Os poetas simbolistas tinham uma tendência doentia a
utilizar temas relacionados com dor, sangue e sofrimento.
Impotência cruel, ó vã tortura!
Ó Força inútil, ansiedade humana!
Ó círculos dantescos da loucura!
Ó luta, ó luta secular, insana!
Que tu não possas, Alma soberana,
Perpetuamente refulgir na Altura,
Na Aleluia da Luz, na clara Hosana
Do Sol, cantar, imortalmente pura.
Que tu não possas, Sentimento ardente,
Viver, vibrar nos brilhos do ar fremente,
Por entre as chamas, os clarões supernos.
Ó Sons intraduzíveis, Formas, Cores!...
Ah! que eu não possa eternizar as dores
Nos bronzes e nos mármores eternos!
4. O Simbolismo caracterizou-se, entre outros aspectos, pela
Nesse poema, torna-se evidente a visão de mundo de Cruz e
Sousa, para quem
a) o desejo de libertar-se das amarras da prisão material, só é
alcançado através do apelo sensual e pelo espírito.
b) a morte e a vida material constituem a saída para a
liberdade humana, simbolizada pelas almas presas nos
silêncios solitários do cosmo.
c) a morte é uma forma de libertação, apesar do
reconhecimento da impossibilidade de transcendência e de
superação do espírito.
d) a imagem da morte representa a saída para uma vida
espiritual para as almas presas, mudas e fechadas,
conforme a visão romântica.
exploração dos sons da língua para estabelecer nos poemas
uma musicalidade característica, por meio de diferentes
processos de repetição de sons ao longo dos versos e em
estrofes inteiras. Na primeira estrofe do soneto de Cruz e
Sousa, nota-se esse procedimento de repetição, especialmente
no
I- primeiro verso.
II- segundo verso.
III- terceiro verso.
IV- quarto verso.
a)
b)
c)
d)
e)
Sinestesia, aliteração, sugestão.
Clareza, perfeição formal, objetividade.
Aliteração, objetividade, ritmo constante.
Perfeição formal, clareza, sinestesia.
Perfeição formal, objetividade, sinestesia.
I e II.
I e III.
I e IV.
I, II e IV.
II, III e IV.
7. (UEL) Leia a estrofe inicial, transcrita abaixo, do soneto
“Braços”, do poeta simbolista Cruz e Sousa, e assinale a
alternativa correta:
5. (ITA) Leia os seguintes versos:
Braços nervosos, brancas opulências,
Brumais brancuras, fúlgidas brancuras,
Alvuras castas, virginais alvuras,
Lactescências das raras lactescências.
Mais claro e fino do que as finas pratas
O som da tua voz deliciava...
Na dolência velada das sonatas
Como um perfume a tudo perfumava.
a)
Era um som feito luz, eram volatas
Em lânguida espiral que iluminava,
Brancas sonoridades de cascatas...
Tanta harmonia melancolizava.
(SOUZA, Cruz e. “Cristais”, in Obras completas. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 86.)
Assinale a alternativa que reúne as características simbolistas
presentes no texto:
b)
O elemento descrito, os braços, torna-se fluido, na medida
em que a sua descrição ocorre através de um processo de
justaposição de imagens e de reiteração de adjetivos, que
tenta fundir o concreto e o abstrato.
Cruz e Sousa, neste poema, ainda não conseguiu se afastar
das influências do Romantismo, estética literária que
antecede o Simbolismo, haja vista a descrição minuciosa e
objetiva que faz dos braços femininos.
61
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c)
d)
e)
A predominância do branco na descrição dos braços deixa
entrever a valorização do homem branco e o preconceito
contra o negro, traço marcante da poesia de Cruz e Sousa.
Há uma gratuidade musical e imagística nesta estrofe
do poema, pois a repetição de palavras sinônimas como
“brancas”, “brancuras”, “alvuras” e “lactescências”
e de sons como os das letras “b” e “s” não apresenta
propriamente um sentido, mas se transforma em mero jogo
linguístico.
Há a tentativa de descrição precisa e clara dos braços,
o que pode ser observado na enumeração sucessiva de
adjetivos usados para caracterizá-los.
Gabaritos:
I - Poemas escolhidos de Cláudio da Costa: o nascer do
Arcadismo no Brasil
1.B 2.B
3.a)Enquadra-se no soneto (dois quartetos,
dois tercetos) b) Árvores aqui vi tão florescentes, Que faziam
perpétua a primavera: Nem troncos vejo agora decadentes.
4.a) O tema da mudança. “Ali em vale um monte está mudado:
Quanto pode dos anos o progresso!” b) Ao progresso, à passagem
do tempo.
5.a) Houve aqui uma fonte; eu não me
esqueço de estar a ela reclinado um dia. Um monte está mudado
em vale ali. Quanto pode o progresso dos anos!
6.A
7.D
8.A
9.C
10.E
11.D
II - Iracema de José de Alencar: o instinto da
nacionalidade
1. D 2. C 3. B 4. a) Batuiretê é avô de Poti e Jacaúna.
Foi guerreiro valente e chefe dos potiguaras; depois de velho
passou o poder da tribo para seu filho Jatobá, pai de Poti. Viveu
sua velhice retirado e solitário nas matas. b) Batuiretê dirigese ao neto Poti, nobre guerreiro potiguara, companheiro e
amigo de Martim, que mais tarde foi batizado católico com o
nome de Antônio Felipe Camarão. O primeiro nome se refere
a Santo Antônio, pois ganhou o nome cristão no dia do santo.
O segundo nome significa o poder real (domínio espanhol), e o
último, a tradução de Poti para o português. Dirige-se também
ao estrangeiro Martim Soares Moreno, guerreiro e colonizador
português aliado dos potiguaras e objeto da paixão de Iracema,
com quem teve um filho, Moacir, símbolo da união das raças.
c) Batuiretê chama Martim de gavião branco e Poti de narceja
(uma pequena ave), profetizando nesse passo a destruição total
ou parcial da raça nativa pelos brancos. 5. A 6. A 7. C 8. C
9. O nascimento de Moacir. 10.C
III - Dom Casmurro, de Machado de Assis: a crise do
ponto de vista
1. C 2. D
3. D
4. A
5. A
6. A
7. a) A
utilização da função metalinguística da linguagem se evidencia
logo de início ao se referir o narrador ao próprio discurso que
está desenvolvendo. Refere-se ao capítulo anterior dizendo
“agora que expliquei o título, passo a escrever o livro”, como
se o capítulo primeiro não fizesse parte da obra. O narrador se
vale da função metalinguística como marcante característica
da modernidade, em que as obras literárias passam a voltarse para seu processo de construção. Vale também, e isso é
fundamental, como estratégia narrativa de cunho irônico em
relação ao romance tradicional que se desenvolveu sobretudo
no romantismo. Nesses romances, a efabulação, a história
contada era o foco dos cuidados do autor. b) No romance Dom
Casmurro, a temática da traição é sugerida em todas as formas
de manifestação da linguagem. A própria possível traição das
personagens (incluindo Capitu) é apresentada de maneira
conotativa, isto é, passa pelo crivo da ambiguidade da linguagem
literária. Na passagem em questão, em que se narra a construção
da “casa do Engenho Novo” como metáfora da própria narrativa
Dom Casmurro, as imagens da sala principal, todas elas revelam
questões concernentes à traição. 8. E
IV - Melhores poemas de Manuel Bandeira: O prosaico e
o sublime
1. D 2. E 3. A
4. D
5. D
6. D
7. A
8. D
9. E
10.B
V - O calor das coisas: identidade e transformação
segundo o olhar de Nélida Piñon
1. D 2. B 3. 19 (01+02+16)
VI - Contos novos, de Mário de Andrade: um olhar sobre
a modernidade
1. B
2. C 3. E
4. A
5. A
VII - A falecida, de Nelson Rodrigues
1.B
2. E 3. D
4. C
5. E
VIII - Dois irmãos, de Milton Hatoum
1. 22 (02+04+16)
2. E
3. A
4. B
IX - Sermões de Padre Antônio Vieira
1. O fragmento acima é um bom exemplo da preocupação
do Padre Antônio Vieira com temas de caráter social e de
dimensão política. A aproximação e a comparação da figura de
Alexandre Magno, grande conquistador do mundo antigo, com
a do pirata saqueador evidenciam a crítica aos valores morais e a
visão ideológica do autor.
2. C 3. E
4. B
5. C
6. E
7. B
8. C
9. D
X - Poesias Completas, de Cruz e Sousa
1. A 2. E
3. A
4. B
5. A
6. C
7. A
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