6 Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços - UN

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6 Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços - UN
6
Gestão dos recursos hídricos
transfronteiriços
«Uma guerra pela água seria a
última das obscenidades»
Rainha Noor da Jordânia
«Bebemos whisky mas lutamos
pela água»
Mark Twain
202
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CAPÍTULO
6
A gestão dos recursos
hídricos partilhados pode
constituir um pretexto para
a paz ou para a guerra,
mas cabe aos políticos
decidirem por que via optar
Gestão dos recursos hídricos
transfronteiriços
A água constitui o ponto fulcral da interdependência humana de qualquer país — um recurso partilhado que serve a agricultura, a indústria, os consumidores domésticos e o meio
ambiente. Uma boa gestão nacional dos recursos hídricos pode conduzir a um equilíbrio
entre estes consumidores concorrentes entre si. Mas a água também é um recurso bastante
fugidio. Os países bem podem legislar sobre a água como se ela fosse um bem nacional, mas
o facto é que este recurso atravessa fronteiras políticas sem precisar de passaporte, através de
rios, lagos e aquíferos. As águas transfronteiriças estendem a interdependência hidrológica
para além das fronteiras nacionais, ligando consumidores de diferentes países dentro de
um sistema partilhado. Gerir essa interdependência constitui um dos grandes desafios de
desenvolvimento humano que a comunidade internacional enfrenta.
da competição pela posse da água transfronteiriços através de uma maior colaboração, em vez
do conf lito. Na óptica desta corrente mais optimista, a competição crescente é vista como um
catalisador de uma cooperação mais aprofundada
no futuro.
Este relatório defende que a água pode alimentar conf litos generalizados, mas também poderá funcionar como ponte para futuras relações
de cooperação. Ao longo da História, os governos
têm sabido encontrar soluções inovadoras e cooperantes para resolver as tensões relacionadas
com a gestão das águas transfronteiriças, mesmo
nos climas políticos mais complicados. Do Rio
Indus ao Jordão ou ao Mekong, os estados atingidos por conf litos políticos e, até mesmo, militares encontraram formas de manter uma colaboração estreita no domínio dos recursos hídricos.
Quando os estados partem para a luta armada,
geralmente fazem-no por motivos bem menos
importantes do que a água. Mas a complacência
não é o antídoto mais indicado para combater o
pessimismo da luta pela água. Os cursos de água
transfronteiriços provocam quase sempre alguma
tensão entre as comunidades limítrofes. Estas
tensões não podem ser consideradas de forma
isolada. Elas estão ligadas a factores que ultrapassam as meras relações entre estados, incluindo
aspectos de segurança nacional, oportunidades
económicas, sustentabilidade ambiental e justeza
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Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
O desafio é, em parte, institucional. A competição pela posse da água no território de um determinado país pode originar pretensões geradoras
de conf litos, confrontando os governantes com
opções que terão repercussões ao nível da equidade, do desenvolvimento humano e da redução
da pobreza. As instituições e organismos legislativos nacionais aprovaram mecanismos destinados a abordar estas opções. Não existe nenhuma
estrutura institucional equivalente que regule os
caudais de água que atravessam fronteiras. E isto
tem as suas implicações. À medida que a água
for escasseando relativamente à procura, a competição transfronteiriça pela partilha dos rios e
de outros recursos hídricos também irá aumentar. Sem mecanismos institucionais capazes de
responder a estes problemas transfronteiriços,
esta competição poderá conduzir a conf litos
insanáveis.
O espectro de uma competição crescente pelo
direito à água deu origem a um debate público
por vezes extremado. Alguns sectores prevêem
um futuro dominado por «guerras de água» à
medida que os estados começarem a reclamar os
seus direitos sobre os recursos hídricos. Outros
sectores chamam a atenção para o facto de não
assistirmos a guerras de água desde um episódio
registado há 4.000 anos atrás, na região hoje correspondente ao Sul do Iraque — e nessa época, os
países terão resolvido normalmente o problema
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Dado que a água é um
recurso circulante e não
uma entidade estática, o seu
uso num determinado local
é afectado pelo uso que
dela fazem noutros lugares,
incluindo noutros países
de princípios. A gestão dos recursos hídricos partilhados pode constituir um pretexto para a paz
ou para a guerra, mas cabe aos políticos decidirem por que via optar.
Um dos problemas suscitados pela polarização do debate gerado pela retórica da guerra da
água foi o desviar das atenções gerais de problemas de segurança humana muito mais prementes
e relevantes. Se a gestão das águas transfronteiriças for tratada de uma forma mais cooperante,
isso poderá produzir ganhos reais em termos de
desenvolvimento humano. Poderá reforçar-se a
segurança do acesso à água por parte das pessoas
mais vulneráveis de ambos os lados da fronteira,
melhorando assim a qualidade, a quantidade e o
grau de previsibilidade dos f luxos que atravessam os diversos países. A partilha da água não
é um jogo em que uns ganham e outros perdem:
os ganhos de um país não são equivalentes aos
prejuízos do outro. Assim como a interdependência comercial pode proporcionar benefícios
económicos para toda a gente, o mesmo poderá
acontecer com uma interdependência da água
cooperante. Isto não é válido somente na esfera
económica, em que a comercialização de energia
hidroeléctrica e de serviços ambientais permite
a adopção de estratégias benéficas para todos
— mas também em termos de uma política mais
alargada de cariz público, social e ambiental.
O oposto também é verdadeiro. Quando a
cooperação não existe ou é interrompida, todos
os países ficam a perder — e os pobres são os que
mais perdem. O fracasso da cooperação pode
provocar catástrofes sociais e ambientais, como
aconteceu no Lago Chade e no Mar de Aral.
Também expõe os países mais pequenos e mais
vulneráveis à ameaça de acções unilaterais desencadeadas pelos seus vizinhos maiores e mais
poderosos. Acima de tudo, a ausência de cooperação impossibilita os países de gerirem os recursos hídricos partilhados de forma a optimizarem
condições para o progresso da humanidade.
Dois enormes desafios definem as estratégias
de gestão das águas transfronteiriças neste início
do século XXI. O primeiro consiste em ir além
das estratégias nacionais e das acções unilaterais
voltadas para os interesses internos de cada país,
possibilitando a adopção de estratégias partilhadas com vista a uma cooperação multilateral.
Em certa medida, isto já está a acontecer, mas a
resposta dos governos tem sido desconexa e desajustada. O segundo desafio é colocar o desenvolvimento humano no centro da cooperação e da
governação transfronteiriça.
Este capítulo começará por se debruçar sobre
o significado da interdependência hidrológica na
vida das nações e dos povos. Para seguidamente
analisar os custos ecológicos, económicos e humanos mais alargados do fracasso da cooperação
ao nível da gestão das águas transfronteiriças, e
concentrar-se no corolário destes custos: a defesa
da cooperação.
Interdependência hidrológica
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
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A água é diferente de outros recursos escassos em
aspectos importantes. Ela serve de alicerce a aspectos da sociedade humana que vão desde a ecologia
à agricultura e à indústria — e não tem substitutos
conhecidos. Tal como o ar que respiramos, ela é fundamental para a vida. Também é parte integrante
dos sistemas de produção geradores da riqueza e do
bem-estar. Dado que a água é um recurso circulante
e não uma entidade estática, o seu uso num determinado local é afectado pelo uso que dela fazem noutros lugares, incluindo noutros países. Ao contrário
do petróleo ou do carvão, a água não pode ser canalizada para um único propósito — ou no caso das
águas transfronteiriças, para um único país.
A forma como cada país utiliza a água produz
efeitos nos outros países, geralmente através de um
de três mecanismos:
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•
•
Competição por uma fonte de água finita.
Quando os países dependem da mesma fonte
de água para proteger o seu meio ambiente,
sustentar a subsistência das populações e
gerar crescimento económico, as águas transfronteiriças tornam-se elos de ligação entre os
respectivos cidadãos e meio ambiente. O consumo num local restringe as disponibilidades
noutro. Por exemplo, a retenção de caudais
de água para irrigação ou produção de energia num país a montante restringe os fluxos
disponíveis para os agricultores e o meio ambiente a jusante.
Impacto na qualidade da água. A forma como
um país a montante utiliza a água afecta o
meio ambiente e a qualidade da água que
chega a outro país situado a jusante. A cons-
trução descontrolada de barragens pode provocar uma maior deposição de sedimentos
nos reservatórios, impedindo esses sedimentos enriquecidos de chegarem às planícies das
zonas mais baixas. Da mesma forma, os rios
podem transportar a poluição industrial ou
humana para outros povos e países. Em Novembro de 2005, quando um acidente industrial provocou um derramamento químico
de 80 quilómetros de extensão no Rio Songhua, na China, isto constituiu uma ameaça
não só para os 3 milhões de habitantes de
Harbin, mas também para os residentes da
cidade russa de Khabarovsk, do outro lado
da fronteira.
• Periodicidade dos fluxos aquáticos. Quando
e em que quantidade a água é libertada pelos
consumidores situados a montante tem implicações cruciais a jusante. Por exemplo, os
consumidores agrícolas de um país situado a
jusante poderão precisar de água para irrigação ao mesmo tempo que um outro país situado a montante precisa dela para produzir
energia hidroeléctrica — um problema hoje
em dia comum na Ásia Central (ver mais
abaixo).
Tal como as tensões existentes nestas regiões
podem originar um clima de competição e de conflito dentro de um determinado país (ver capítulo
5), também a interdependência tem consequências
sobre os diferentes padrões de consumo de água
além fronteiras.
Partilhar os recursos
hídricos mundiais
Os rios, lagos, aquíferos
e zonas húmidas
internacionais mantêm
ligadas as pessoas que
estão separadas por
fronteiras internacionais
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Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
A água partilhada constitui uma vertente cada vez
mais importante da geografia humana e do panorama político. Os rios, lagos, aquíferos e zonas
húmidas internacionais mantêm ligadas entre si
as pessoas que estão separadas por fronteiras internacionais, nalguns casos instaladas ao longo dos
cursos de água. Esta água partilhada constitui a
base de sustentação da interdependência hidrológica de milhões de pessoas.
As bacias hidrográficas internacionais — represas ou reservas, incluindo lagos e lençóis de
água subterrânea pouco profundos, partilhados
por mais de um país — cobrem quase metade da
superfície terrestre da Terra. Duas em cada cinco
pessoas no mundo vivem actualmente nestas bacias hidrográficas, que também são responsáveis
por 60% do total de caudais fluviais. O número
de bacias hidrográficas partilhadas tem vindo a
crescer, em grande medida devido ao desmembramento da antiga União Soviética e da antiga Ju-
goslávia. Em 1978, havia 214 bacias hidrográficas
internacionais. Hoje, existem 263.
A profunda interdependência que estes números sugerem fica patente na quantidade de países situados em bacias hidrográficas partilhadas
— 145 ao todo, englobando mais de 90% da população mundial.1 Mais de 30 países estão integralmente situados dentro dos limites de bacias
transfronteiriças.
O grau de interdependência é ilustrado pelo
número de países que partilham as mesmas bacias
hidrográficas internacionais (quadro 6.1). Por
exemplo, 14 países partilham o Danúbio (outros
5 têm parcelas marginais), 11 o Nilo e o Níger, e 9
o Amazonas. Nenhuma outra região nos mostra a
realidade da interdependência hidrológica melhor
do que a África. Os mapas políticos traçados nas
conferências de Berlim, Lisboa, Londres e Paris, e
há mais de um século atrás deixaram mais de 90%
de toda a superfície aquática da região inserida em
bacias hidrográficas transfronteiriças, que por sua
vez abrigam mais de três quartos da população da
zona. 2 Um total de 61 bacias hidrográficas cobre
cerca de dois terços daquele território (mapa 6.1).
Os governos podem escolher entre cooperar
ou não cooperar na gestão das águas transfronteiriças. Seja qual for a decisão, os rios e outros
sistemas hídricos transfronteiriços ligam os países
através de acordos de partilha de recursos ambientais que determinam as oportunidades de sustento
das respectivas populações.
O consumo de água a montante determina
as opções a jusante em termos de gestão de água,
criando o cenário para a disputa ou para a cooperação. E em nenhum outro sector isto é tão visível
como na irrigação. Contando-se entre os países
detentores de sistemas de irrigação altamente desenvolvidos, o Egipto, o Iraque, a Síria, o Turquemenistão e o Usbequistão dependem de rios em
que dois terços ou mais do respectivo caudal correm nos países vizinhos. Quaisquer alterações nos
padrões de consumo de água dos países situados a
montante podem afectar seriamente os sistemas
agrícolas e a subsistência rural dos que se situam
a jusante. Para exemplificar, a Bacia Hidrográfica
do Tigre-Eufrates serve o Iraque, a Síria e a Turquia, abrangendo uma população conjunta de 103
milhões. O Projecto do Sudeste da Anatólia, na
Turquia, que compreende a criação de 21 barragens e 1,7 milhões de hectares de terra irrigada,
poderia reduzir os caudais na Síria em cerca de um
terço, fazendo com que uns ficassem a ganhar e
outros a perder na zona da bacia. 3
A distribuição de água entre os consumidores
constitui uma tarefa delicada em qualquer país. Se
a esse dilema juntarmos o problema das fronteiras
nacionais, a governação complica-se ainda mais,
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Quadro 6.1
As bacias hidrográficas internacionais unem vários países
Bacia
fluvial
Número de países
dependentes desta
bacia
Danúbio
19
Albânia, Alemanha, Áustria, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Croácia, Eslováquia, Eslovénia,
Hungria, Itália, Macedónia, Moldávia, Montenegro, Polónia, República Checa, Roménia, Sérvia,
Suíça, Ucrânia
Congo
13
Angola, Burundi, Camarões, Congo, Gabão, Malawi, República Centro-Africana, República
Democrática do Congo, Ruanda, Sudão, Tanzânia, Uganda, Zâmbia
Nilo
11
Burundi, Egipto, Eritreia, Etiópia, Quénia, República Centro-Africana, República Democrática
do Congo, Ruanda, Sudão, Tanzânia, Uganda
Níger
11
Argélia, Benim, Burquina Faso, Camarões, Chade, Costa do Marfim, Guiné, Mali, Níger,
Nigéria, Serra Leoa
Amazonas
9
Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname, Venezuela
Reno
9
Alemanha, Áustria, Bélgica, França, Itália, Listenstaine, Luxemburgo, Países Baixos, Suíça
Zambeze
9
Angola, Botsuana, Malawi, Moçambique, Namíbia, República Democrática do Congo, Tanzânia,
Zâmbia, Zimbabué
Lago Chade
8
Argélia, Camarões, Chade, Líbia, Níger, Nigéria, República Centro-Africana, Sudão
Mar de Aral
8
Afeganistão, China, Cazaquistão, Paquistão, Quirguizistão, Tajiquistão, Turquemenistão,
Usbequistão
Jordão
6
Egipto, Israel, Jordânia, Líbano, Síria, Territórios Ocupados da Palestina
Mekong
6
Camboja, China, Mianmar, República Democrática Popular do Laos, Tailândia, Vietname
Volta
6
Benim, Burquina Faso, Costa do Marfim, Gana, Mali, Togo
Ganges-BrahmaputraMeghna
6
Bangladeche, Butão, China, Índia, Mianmar, Nepal
Tigre-Eufrates
6
Arábia Saudita, Irão, Iraque, Jordânia, Síria, Turquia
Tarim
5 (+1)
Afeganistão, China, território chinês reclamado pela Índia, Paquistão, Quirguizistão, Tajiquistão
Indus
5
Afeganistão, China, Índia, Nepal, Paquistão
Neman
5
Bielorrússia, Letónia, Lituânia, Polónia, Rússia
Vístula
5
Bielorrússia, Eslováquia, Polónia, República Checa, Ucrânia
La Plata
5
Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai, Uruguai
Países dependentes
desta bacia
Fonte: Adaptado de Wolf e outros 1999.
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sobretudo quando a competição pela água está
a intensificar-se. Em teoria, a solução ideal seria
fazer uma gestão integrada da água em toda a bacia
hidrográfica, cabendo aos países comercializarem
entre si os recursos agrícolas, a energia hidroeléctrica e outros serviços, de acordo com as vantagens
comparativas do consumo de água de cada um. Se
quisermos um exemplo óbvio, a energia hidroeléctrica é mais rentável quando produzida nas regiões situadas no topo de encostas montanhosas, ao
passo que a irrigação produz melhores resultados
nos vales e planícies: trocar energia hidroeléctrica
por produtos agrícolas é uma forma de obter este
tipo de vantagens comparativas. Na prática, não
existem instituições que resolvam os diferendos e
coordenem a partilha de recursos na maioria das
bacias fluviais, e factores como a confiança ou as
preocupações estratégicas têm um peso considerável nas políticas governamentais.
A partilha de bacias hidrográficas, fornece-nos
apenas um retrato parcial da interdependência hidrológica. Os países não apresentam todos o mesmo
grau de interdependência dos sistemas partilhados.
Em alguns casos, os estados que representam uma
pequena parcela da bacia em termos geográficos, re-
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velam-se altamente dependentes dela em termos hidrológicos, enquanto o inverso também sucede. Por
exemplo, o Bangladeche consome apenas 6% dos recursos da Bacia Hidrográfica do Ganges-Brahmaputra-Meghna, e contudo, esta bacia ocupa três quartos
do território daquele país.4 E embora um quinto da
Bacia Hidrográfica do Mekong se situe na China,
esses recursos representam menos de 2% do consumo do território chinês. Mais a jusante, para cima
de quatro quintos do Laos e quase 90% do Camboja
estão situados no interior da bacia.
Ao longo das margens do rio
A maioria das pessoas não tem noção das consequências para a Humanidade da interdependência
hidrológica que condiciona os países. E no entanto,
isto faz parte de uma realidade que determina as
nossas vidas e oportunidades.
O Nilo é um exemplo desta realidade. Cerca
de 150 milhões de pessoas vivem na Bacia Hidrográfica do Nilo — um sistema hídrico que liga os
96% de egípcios que habitam no Vale e no Delta
do Nilo aos povos que residem nas terras monta-
Mapa 6.1
As bacias hidrográficas de rios e lagos da África atravessam muitas fronteiras
61
2
1
4
3
5
Mar
Vermelho
6
7. Senegal
27. Níger
59
58
28. Lago Chade
8
9
10
21
11
12
20
13
14
15
16
17
60. Nilo
24. Volta
25
29
18 19
22 23
Oceano
Atlântico
31
54
30
32
33
34
Área da bacia:
3,2 milhões
de quilómetros
quadrados
Grandes barragens: 7
Egipto
35
38. Congo
53
36
52
37
Mar
Vermelho
39
50. Zambesi
40
Eritreia
41. Okavango
49
47 48
46. Limpopo
Sudão
45
44
43
42. Orange
República
CentroAfricana
Etiópia
Ruanda
Burundi
República Unida
da Tanzânia
Quénia
1. Tafna
2. Oued Bon Naima
3. Guir
4. Daoura
5. Dra
6. Atui
7. Senegal
8. Gâmbia
9. Geba
10. Corubal
11. Great Scarcies
12. Little Scarcies
13. Moa
14. Mana-Morro
15. Loffa
16. Saint-Paul
17. Saint-John
18. Cestos
19. Cavally
20. Sassandra
21. Komoe
22. Bia
23. Tano
24. Volta
25. Mono
26. Oueme
27. Níger
28. Lago Chade
29. Cross
30. Akpa Yao
31. Sanaga
32. Benito-Ntem
33. Utamboni
34. Mbe
35. Ogooue
36. Nyanga
37. Chiloango
38. Congo
39. Cunene
40. Cuvelai
41. Okavango
42. Orange
43. Maputo
44. Umbeluzi
45. Incomati
46. Limpopo
47. Save
48. Buzi
49. Pungue
50. Zambezi
51. Rovuma
52. Umba
53. Lago Natron
54. Pântano Lotagipi
55. Lago Turkana
56. Juba-Shibeli
57. Awash
58. Gash
59. Baraka
60. Nilo
61. Medjerda
Nota: As fronteiras e os nomes indicados e as designações utilizadas neste mapa não implicam uma responsabilidade oficial nem a aceitação por parte das Nações Unidas.
Fonte: Wolf e outros 1999; Revenga e outros 1998; Rekacewicz 2006; Jägerskog e Phillips 2006.
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Uganda
Oceano
Índico
51
Chade
República
Democrática
do Congo
55
56. Juba-Shibeli
Bacia do Nilo
Jamahira
Árabe
Líbia
57
26
207
O rio Mekong liga os meios de subsistência além fronteiras
Mapa 6.2
China
China
Vietname
Hanói
Mianmar
Laos, RDP:
43% do potencial hidroeléctrico
do baixo Mekong
Laos, RDP
Vienciana
Tailândia:
50% de solo arável
Tailândia
Banguecoque
Lago Tonle
Sap
Camboja
Phnom Penh
Vietname
Camboja:
metade dos cambojanos
beneficiam do Lago
Tonle Sap
Florestas principalmente em zonas montanhosas
Mata ou prado
Áreas de cultivo de sequeiro ou irrigadas
Principalmente arrozais
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Delta do Mekong:
lar de 17 milhões de vietnamitas;
contabiliza metade da produção
de arroz do Vietname
Nota: As fronteiras e os nomes indicados e as designações utilizadas neste
mapa não implicam uma responsabilidade oficial nem a aceitação por parte das Nações Unidas.
Fonte: A Comissão do Rio Mekong
nhosas da Etiópia e do Norte do Uganda, entre
outros países.5 A água e os sedimentos, sobretudo
provenientes da Etiópia, tornaram habitável uma
longa faixa de deserto e têm sustentado o Delta do
Nilo. Da mesma forma, o Rio Jordão liga pessoas,
modos de vida e ecossistemas de Israel, Jordânia e
dos Territórios Ocupados da Palestina, através de
um recurso hídrico comum a todos eles.
A maneira mais fácil de compreendermos o
que significa a interdependência hidrológica em
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termos humanos talvez seja seguirmos o curso
de um rio. Tomemos o caso do Mekong, um dos
principais sistemas hídricos do mundo (mapa
6.2). Desde a sua origem, no Planalto do Tibete,
ele lança 5.000 metros de caudais que atravessam
seis países antes de atingir o seu delta. Mais de
um terço da população do Camboja, do Laos, da
Tailândia e do Vietname — qualquer coisa como
60 milhões de pessoas — residem na Bacia Inferior do Mekong, 6 utilizando o rio como fonte de
água potável, alimento, irrigação, energia hidroeléctrica e comércio.
Mais alguns milhões na China e no Mianmar,
e para além das fronteiras da bacia beneficiam
deste rio. Nas zonas de planície, a bacia do rio representa metade da terra arável da Tailândia. Mais
a jusante, no Camboja, o Lago Tonle Sap, um dos
maiores bancos de pesca de água doce do mundo,
é alimentado pelo Mekong. Perto de metade da
população do Camboja beneficia directa ou indirectamente dos recursos deste lago.7 À medida
que o rio se aproxima do mar, o Delta do Mekong
fornece mais de metade da produção de arroz do
Vietname e um terço do seu PIB. 8 Aproximadamente 17 milhões de pessoas vivem no Delta do
Mekong, situado no Vietname. Para além deste
contexto humano, o rio também ilustra de forma
categórica o campo de acção que se abre à partilha
de interesses — e à competição.
Os rios são apenas uma das teias da interdependência hídrica. Em muitos países, os lagos
partilhados são de crucial importância para a segurança da água — e para a subsistência humana.
Estima-se que 30 milhões de pessoas dependam
do Lago Vitória — um terço da população global
do Quénia, da Tanzânia e do Uganda.9 Outros 37
milhões habitam na Bacia do Lago Chade.10 Embora o Lago Vitória seja o banco de pesca de água
doce mais produtivo do mundo e o Lago Chade
forneça três quartos do peixe capturado em toda
a região, os índices de pobreza da população desta
zona são excepcionalmente elevados.11 A gestão
do lago tem implicações importantes para o esforço de redução da pobreza. O mesmo acontece
na Bacia do Lago Titicaca na América Latina.
Mais de 2 milhões de pessoas vivem na bacia, que
se estende pela Bolívia e o Peru. Estimam-se que
os níveis de pobreza aí sejam superiores a 70%.
Duas cidades bolivianas situadas na bacia hidrográfica —El Alto e Oruro, que somam um quarto
da população do país — dependem do lago para
satisfazer as suas necessidades de água.12
Os lagos colocam desafios específicos em termos de cooperação. Além de sofrerem pressões
resultantes da concorrência, também são menos
renováveis do que os rios. Enquanto ecossistemas
«fechados» mas interdependentes, são ainda mais
sensíveis à poluição e às captações de água do que
os rios, o que tem implicações na transmissão de
água de má qualidade. Têm ainda outras dificuldades resultantes das disputas associadas à sua
classificação. Os cinco estados que partilham o
Cáspio não conseguem chegar a acordo sobre se
se trata de um mar ou de um lago. Esta disputa
legal tem implicações na gestão deste recurso partilhado, graças às diferentes normas aplicáveis.
Ao contrário dos rios e dos lagos, os aquíferos
são invisíveis. Os aquíferos também são repositórios
de mais de 90% da água doce existente no planeta
— e à semelhança dos rios e dos lagos, também atravessam fronteiras.13 Só na Europa, existem mais de
100 aquíferos transfronteiriços. O aquífero Guarani, na América do Sul, é partilhado pela Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Países fortemente
pressionados pela escassez de água como o Chade, o
Egipto, a Líbia e o Sudão partilham entre si o aquífero Núbio de Sandstone. O Grande Rio Feito pelo
Homem, um sistema de dois grandes gasodutos enterrados por baixo das areias do Saara, transfere água
deste aquífero fóssil até à zona costeira da Líbia, a fim
de irrigar os campos à volta de Benghazi e de Tripoli. O Aquífero Montanha, que atravessa Israel e os
Territórios Ocupados da Palestina, é de importância
crucial para a segurança da água dos consumidores
de ambos os lados. Ele constitui a principal fonte de
água de irrigação da Margem Ocidental e é uma importante fonte de água para Israel.
A cooperação no domínio de água subterrânea confronta os governos com alguns desafios
óbvios. Os problemas de medição dificultam a
monitorização das taxas de captação nos aquíferos. Mesmo quando os governam cooperam
entre si, a água subterrânea pode ser explorada
por sistemas privados de bombagem, conforme
tem sido testemunhado pelo rápido esgotamento
dos lençóis freáticos na Ásia do Sul. As consequências ecológicas da extracção descontrolada
de água subterrânea têm implicações para os habitantes de ambos os lados das fronteiras nacionais. A extracção excessiva feita por consumidores individuais pode conduzir a uma «tragédia
dos bens comuns», ou seja, à sobre-exploração
de um recurso comum para além dos limites da
sustentabilidade.
No interior de cada país, o consumo excessivo de água subterrânea por parte de um conjunto de consumidores pode reduzir as reservas
básicas de toda a população. A extracção excessiva de água subterrânea no estado indiano de
Gujarat, por exemplo, representou uma dupla
ameaça para os produtores agrícolas ao reduzir
as disponibilidades de água e ao aumentar a salinidade dos solos (ver capítulo 4). Problemas
semelhantes poderão surgir além-fronteiras. À
medida que os aquíferos se vão esgotando devido à extracção excessiva de um lado da fronteira, a intrusão gradual de água do mar e de
arsénico, nitratos e sulfatos, se não for fiscalizada, poderá tornar a água subterrânea imprópria para consumo nos países vizinhos. Foi isto
que aconteceu em grande parte do aquífero da
Faixa de Gaza, onde a poluição agravou os já de
si graves problemas de escassez de água.
Muito daquilo que é
entendido como «água
nacional» é, na realidade,
água partilhada
Os custos da falta de cooperação
6
A transmissão de tensões
ao longo do curso dos rios
A dependência de caudais vindos do exterior constitui um dos vínculos óbvios entre os recursos hídricos
e o desenvolvimento humano. Os governos e a maioria das pessoas encaram a água que circula no interior
do seu país como um recurso nacional. Do ponto de
vista legal e constitucional, até podem ter razão. Mas
muito daquilo que é entendido como «água nacional» é, na realidade, água partilhada.
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
Por que será a gestão das águas transfronteiriças
uma assunto da esfera do desenvolvimento humano?
A resposta a esta pergunta é idêntica à resposta à
mesma pergunta formulada ao nível nacional. A
maneira como cada país se comporta perante os interesses antagónicos associados à gestão dos recursos
hídricos escassos tem profundas implicações nos
índices de pobreza, na distribuição de oportunidades de vida e no desenvolvimento humano dentro
das fronteiras desse país. Essas implicações não são
menos profundas além-fronteiras.
209
Quadro 6.2
Trinta e nove países recebem a maioria da sua água de fora das suas
fronteiras
Países que recebem entre 50% e 75%
da sua água de fontes externas
Região
Países Árabes
Iraque, Somália, Sudão, República Árabe Síria
Ásia Oriental
e Pacífico
Camboja, Vietname
América Latina
e Caraíbas
Argentina, Bolívia, Paraguai, Uruguai
Países que recebem mais de 75%
da sua água de fontes externas
Barém, Egipto, Koweit
Ásia do Sul
Bangladeche, Paquistão
África Subsariana
Benim, Chade, Congo, Eritreia, Gâmbia, Moçambique, Namíbia
Botsuana, Mauritânia, Níger
Europa Central e
Oriental e a CEI
Azerbeijão, Croácia, Eslováquia, Letónia, Ucrânia, Usbequistão
Hungria, Moldávia, Roménia, Sérvia e Montenegroa,
Turquemenistão
Países OCDE de rendimento elevado
Luxemburgo
Países Baixos
Outros
Israel
Fonte: FAO 2006.
a. Embora a Sérvia e o Montenegro se tenham tornado dois Estados independentes em Junho de 2006, à data de impressão deste Relatório ainda não estavam disponíveis os
dados individuais relativos aos recursos hídricos externos destes países.
Pelo menos metade dos recursos hídricos de 39 países abrangendo uma população de 800 milhões de pessoas tem origem no exterior das suas fronteiras (quadro
6.2). A maior parte da água consumida pelo Iraque e a
Síria depende dos rios Tigre e Eufrates, que provêm da
Turquia. Do total de água consumida pelo Bangladeche, 91% vem da Índia — para irrigar colheitas e repor as
reservas dos aquíferos. Os agricultores e trabalhadores
rurais deste país que habitam na Bacia Hidrográfica do
Ganges-Brahmaputra-Meghna são consumidores finais da água que atravessa milhares de quilómetros e as
fronteiras de cinco países. Da mesma forma, o Egipto
Quadro 6.3
Os países estão a extrair água a
uma velocidade maior do que a
sua capacidade de reposição
País
Koweit
2.200
100
Emirados Árabes Unidos
1.553
0
722
0
Jamahira Árabe
Líbia
711
0
Catar
547
4
Barém
259
97
Iémen
162
0
Omã
138
0
Israel
123
55
Arábia Saudita
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
6
210
Percentagem de
Percentagem de recursos hídricos
extracção de água
externos comcomparativamente parativamente
à totalidade dos
à totalidade dos
recursos hídricos recursos hídricos
renováveis (%)
renováveis (%)
Egipto
117
97
Usbequistão
116
68
Jordânia
115
23
Barbados
113
0
Malta
100
0
Turquemenistão
100
94
Fonte:: FAO 2006.
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
depende quase exclusivamente de fontes de água externas que chegam através do Nilo, mas são originárias da
Etiópia.
Em todos estes casos, até mesmo as alterações mais
modestas nos padrões de consumo de água a montante
podem afectar profundamente o desenvolvimento humano em todos os aspectos. As prioridades hídricas
podem ser encaradas de forma muito diversa em cada
um dos lados da fronteira. Um terço da terra irrigada da
Turquia situa-se nas oito províncias a sudeste, onde nascem os rios Tigre e Eufrates. Perante este pano de fundo,
não nos será difícil avaliar a importância do Projecto do
Sudeste da Anatólia para a Turquia. Mas um em cada
cinco Sírios habita na região à volta do Eufrates, e os dois
rios atravessam as duas cidades mais populosas do Iraque, Bagdade e Basra. Gerir as pretensões rivais de forma
a encontrar o equilíbrio entre os interesses nacionais e
as responsabilidades mais alargadas exige uma liderança
política de alto nível.
As pretensões cada vez maiores ao uso dos rios partilhados produzem claros efeitos colaterais. Quando os
Rios Ili e Irtysh, que percorrem a China até ao Cazaquistão, vão vendo o seu caudal reduzir-se devido aos desvios
canalizados para a agricultura e a indústria na China, o
Cazaquistão, situado a jusante, vê os seus interesses nacionais ameaçados. Esta ameaça foi em parte resolvida
através de um acordo sobre o Irtysh assinado entre os
dois países, em 2001. Contudo, o acordo é frágil e não
aborda o problema central relativo à gestão das flutuações anuais do caudal.
A competição não se restringe aos países em desenvolvimento. Como o caudal do Rio Colorado e do
Rio Grande diminuiu nas zonas mais baixas graças
aos desvios de água destinados à indústria, agricultura e cidades, o México quase não recebe água daquela fonte. Isto tem constituído uma fonte de tensões permanente nas negociações entre o México e os
Estados Unidos.
Mapa 6.3
O Lago Chade em vias de extinção
1963
Chade
Níger
1973
Antiga
margem
Chade
Níger
Nigéria
Nigéria
Camarões
Camarões
2006
1987
Chade
Chade
Níger
e
Níger
-Y
ob
dougou
Koma
Nigéria
Nigéria
Contracção de lagos,
rios que secam
A má gestão das bacias hidrográficas internacionais ameaça a segurança humana em aspectos
muito concretos. A contracção dos lagos e os rios
Nota: As fronteiras e os nomes indicados e as designações utilizadas neste mapa não
implicam uma responsabilidade oficial nem a aceitação por parte das Nações Unidas.
que secam vão afectar a subsistência da agricultura
e das pescas, deteriorando a qualidade da água, o
que acarreta graves consequências para a saúde, e
as perturbações imprevisíveis dos caudais de água
podem agravar os efeitos das secas e das cheias.
Algumas das maiores catástrofes ambientais
do mundo são testemunho dos custos para o desenvolvimento humano da falta de cooperação ao
nível da gestão dos recursos hídricos transfronteiriços. O Lago Chade é um exemplo disso mesmo
(mapa 6.3). Hoje, o lago tem um décimo da dimensão que tinha há 40 anos. A escassez de chuvas e a seca foram factores importantes — mas a
acção do homem também.14 Entre 1966 e 1975,
quando o lago encolheu em um terço, a culpa cabia
quase exclusivamente à ausência de precipitação.
Mas entre 1983 e 1994, a procura da irrigação quadruplicou, depauperando rapidamente um recurso
já de si diminuído, e abrindo assim caminho para
uma rápida quebra dos caudais.
A fraca cooperação entre os países da bacia
hidrográfica do Lago Chade explica em parte o
problema. A degradação ambiental e o desgaste
do potencial de subsistência e produtivo andaram
aqui de mãos dadas. Institucionalizou-se agora um
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
6
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
Em nenhuma outro o problema da gestão dos recursos hídricos transfronteiriços é tão evidente como
nos países que se debatem com problemas de escassez. Quinze países, na maioria do Médio Oriente,
consomem anualmente mais de 100% dos seus recursos hídricos renováveis. O esgotamento das águas
subterrâneas e dos lagos cobre o défice, colocando
frequentemente pressão sobre os recursos hídricos
transfronteiriços (quadro 6.3). Algumas das bacias
hidrográficas transfronteiriças mais densamente povoadas — no Sul da Ásia, em parte da Ásia Central
e no Médio Oriente — também se debatem com a
ameaça da falta de água. Nestes casos, um maior recurso aos recursos hídricos partilhados como forma
de cobrir os défices pode ter enormes repercussões no
desenvolvimento humano de outras zonas — e nas
relações políticas entre estados.
Camarões
one
Fonte: Rekacewicz e Diop 2003. Estes mapas baseiam-se em imagens de satélite
fornecidas pelos EUA. NASA Goddard Space Flight Center e pela Agência Espacial
Europeia.
ari
og
-L
Camarões
Ch
2 11
Algumas das maiores
catástrofes ambientais do
mundo são testemunho
dos custos para o
desenvolvimento humano
da falta de cooperação ao
nível da gestão dos recursos
hídricos transfronteiriços
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
6
212
esforço excessivo de pesca, sem o devido respeito
pelas normas que regulam as captações no Chade,
Camarões, Níger e Nigéria.15 Projectos de irrigação
mal concebidos também contribuíram para a crise
actual. As barragens do Rio Hadejia, na Nigéria,
ameaçaram as comunidades situadas a jusante, que
dependem da pesca, dos pastos e da agricultura em
leito de cheias, e os acordos destinados a garantir
os fluxos de água tardam em ser implementados.16
O sistema do Rio Komadougou-Yobe, partilhado
pelo Níger e pela Nigéria, costumava contribuir
com 7 quilómetros cúbicos de água para o caudal
do Lago Chade. Hoje em dia, com a água retida em
reservatórios, o sistema fornece menos de metade
de um quilómetro cúbico, o que afecta gravemente
a zona norte da bacia do lago.17 Noutras zonas,
os diques construídos em finais dos anos 70, no
Rio Logone, situado nos Camarões, afectaram os
meios de subsistência dos pequenos agricultores
das zonas húmidas a jusante: no espaço de duas décadas, as colheitas de algodão caíram em um terço
e as de arroz em três quartos.18
As consequências ambientais do consumo de
água insustentável poderão eventualmente repercutir-se numa quebra dos investimentos em
infra-estruturas. O Projecto de Irrigação do Sul
do Chade, um esquema ambicioso iniciado em
1974, mal logrou atingir a décima parte do seu
objectivo inicial de irrigar 67.000 hectares na
Nigéria. Com o passar do tempo, e à medida que
os caudais dos rios diminuem, os canais em vias
de secar ficam obstruídos com plantas da espécie
typha aiustralis, local de nidificação preferido da
codorniz, um pássaro que agora destrói vastas extensões de plantação de arroz e de outros grãos. À
medida que o lago foi encolhendo, intensificouse a competição entre os pastores nómadas e os
agricultores sedentários, entre os consumidores
de grande e os de pequena escala, e entre as comunidades a montante e a jusante. As comunidades
ribeirinhas transferiram-se para zonas mais próximas da água, atravessando áreas antes cobertas
pelo lago e onde não foram estabelecidas fronteiras nacionais, o que conduz a novas disputas
territoriais.
Outro exemplo de catástrofe ambiental provocada pelo homem ainda maior do que o Lago
Chade, é o Mar de Aral. Há meio século atrás,
a ingenuidade tecnológica, o excesso de zelo
ideológico e a ambição política levaram os projectistas da União Soviética a opinar que o Syr
Darya e o Amu Darya, os grandes rios da Ásia
Central, estavam a ser desperdiçados. Estes rios
transportavam as neves derretidas provenientes
das montanhas altas até à bacia fechada do Mar
de Aral, então o quarto maior lago do mundo.
O desvio das águas para o sector produtivo era
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
encarado como uma via para a criação de mais riqueza, sendo a perda do Mar de Aral um pequeno
preço a pagar pelo facto. Como diria um responsável contemporâneo: «Secar o Mar de Aral é
bem mais vantajoso do que tentar preservá-lo …
A plantação de algodão por si só bastará para
compensar o Mar de Aral [e] o desaparecimento
do Mar não afectará a paisagem da região.»19
O desvio de águas destinadas à plantação de
algodão através de um sistema de irrigação ineficaz acabou por estrangular o Mar de Aral. Nos
anos 90, ele recebia menos de um décimo do seu
caudal anterior — e por vezes, nem isso. No final
da década, o seu nível encontrava-se 15 metros
abaixo dos valores registados em 1960, e veio a
transformar-se em dois mares pequenos e altamente salinos, separados por uma ponte de areia.
A morte deste mar constituiu uma catástrofe social e ambiental (mapa 6.4). 20
A independência dos estados da Ásia Central
não logrou evitar esta crise. Com efeito, a ausência
de cooperação acabou por levar a uma deterioração gradual dos indicadores de subsistência, saúde
e bem-estar. A produção de algodão caiu em cerca
de um quinto, desde o início dos anos 90, mas o
consumo excessivo de água mantém-se. A perda
de quatro quintos de todas as espécies de peixes
arruinou uma indústria pesqueira outrora florescente nas províncias situadas a jusante.
As consequências para a saúde foram igualmente negativas. As populações de Oyzlorda no
Cazaquistão, de Dashhowuz no Turquemenistão
e de Karakalpakstan no Usbequistão recebem
água contaminada com fertilizantes e químicos
que é imprópria para consumo humano ou para
a agricultura. As taxas de mortalidade infantil
atingem, em algumas regiões, as 100 mortes por
cada 1.000 nascimentos — mais elevadas do que
a média no Sul da Ásia. Cerca de 70% dos 1,1 milhões de habitantes de Karakalpakstan sofrem de
enfermidades crónicas — doenças respiratórias,
febre tifóide, hepatite e cancro do esófago. O Mar
de Aral constitui um testemunho bem dramático
da forma como os ecossistemas podem vingar-se
da loucura dos homens — a criação de riqueza
funcionou como catalisador não de progresso humano mas antes de retrocesso para o desenvolvimento humano da zona.
Mas até mesmo neste caso podemos constatar
um lado bom em estado embrionário. Desde 2001
que o Cazaquistão, através de um projecto conjunto com o Banco Mundial, começou a construir
a Barragem de Kok-Aral e uma série de diques e
canais destinados a reabilitar os níveis de água
nas zonas norte (e, eventualmente, também sul)
do Mar de Aral. O projecto já começou a produzir
frutos: a zona norte do mar expandiu-se em mais
Mapa 6.4
A contracção do Mar de Aral: os custos ambientais das plantações de algodão
1960: Economia alimentar e pesqueira
2006: Monocultura do algodão
Aral
Aral
Pequeno
Aral
Cazaquistão
Mar de
Aral
Qyzlorda
Sy
rD
Grande
Aral
ar
Qyzlorda
Sy
rD
ya
ar
ya
Nukus
Nukus
Usbequistão
Usbequistão
Tachkent
Tachkent
a
ary
uD
Am
a
ary
uD
Am
Turquemenistão
Cazaquistão
Bukhara
Turquemenistão
Bukhara
Zona seca e áreas
inutilizadas (salinização)
Zona de pesca
Culturas alimentares, parcialmente irrigadas
Campos de algodão
totalmente irrigados
Barragem
Zona afectada por
tempestades de sal
e areia
Meio século de declínio
1957
1982
1993
July 2006
a partir de um mapa
a partir de imagens de satélite
a partir de um mapa
a partir de imagens de satélite
Em 1989-90 o Mar de Aral
dividiu-se em duas partes: o Grande
Aral e o Pequeno Aral
Entre Novembro de 2000 e Junho de
2001, a Ilha de Vozrojdeniya juntou-se
ao continente a Sul
Nota: As fronteiras e os nomes indicados e as designações utilizadas neste mapa não implicam uma responsabilidade oficial nem a aceitação por parte das Nações Unidas.
Fonte: Scientific Information Center of Interstate Coordination Water Commission; International Fund for Saving the Aral Sea; Banco Mundial; National Aeronautics
and Space Administration; United States Department of the Interior 2001; Agência Espacial Europeia; Rekacewicz 1993.
pelo homem, pondo em relevo o papel dos políticos na implementação de padrões de consumo de
água insustentáveis.
Tal como os lagos, os riscos também são uma
fonte de vida. Mas também podem exportar poluição para outros países. A descarga de ef luentes
provenientes de fábricas de metalomecânica e de
produtos químicos para os rios Ili e Irtysh tornou as águas praticamente impróprias para consumo humano em vastas zonas do Cazaquistão.
Da mesma forma, surgiram problemas na bacia
de Kura-Araks, no interior dos territórios da
Arménia, do Azerbaijão e da Geórgia. A bacia
hidrográfica sustenta 6,2 milhões de pessoas na
zona de maior concentração urbana e industrial
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
6
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
um terço, e os níveis de água subiram de 30 para
40 metros. 21 Se a situação continuar a melhorar,
há perspectivas promissoras de uma reabilitação
das comunidades piscatórias e da recuperação da
sustentabilidade. Se houver um envolvimento dos
restantes países desta bacia hidrográfica, as perspectivas de reabilitação de toda a bacia aumentarão de forma sensível.
O Lago Chade e o Mar de Aral ilustram
de maneira dramática o que sucede quando os
caudais de água sofrem alterações radicais. Em
ambos os casos, a escassez de água foi parte central do problema. Contudo, a escassez de água foi
construída — literalmente, no caso do Mar de
Aral — pela intervenção e os desvios promovidos
2 13
Caixa 6.1
Para além do rio — os custos da falta de cooperação na Ásia Central
Os países da Ásia Central estão presos numa teia de interdependências hidrológicas. As bacias hidrográficas do Syr Darya e do Amu
Darya ligam o Cazaquistão, o Quirguizistão¸ o Tajiquistão e o Usbequistão num vínculo energético vital para as perspectivas de desenvolvimento humano destes três países — perspectivas essas gravemente
prejudicadas pela fraca cooperação existente.
Este vínculo poderá ser melhor entendido se seguirmos o curso
destes rios. O caudal de água do Syr Darya nas suas zonas mais altas
corre velozmente pelas encostas íngremes abaixo. O enorme reservatório de Toktogul, no Quirguizistão, foi utilizado nos anos 70 para armazenar e nivelar os caudais da água para irrigação entre as estações
secas e de chuvas no Usbequistão e no Sul do Cazaquistão. Na era
Soviética, cerca de três quartos da água era libertada nos meses de
Verão e um quarto no Inverno. A electricidade produzida pelas descargas nos meses de Verão também servia para exportação, recebendo o
Quirguizistão em troca gás natural do Cazaquistão e do Usbequistão
para ajudar a satisfazer as suas necessidades energéticas durante o
Inverno.
A partir da independência, esta estrutura de cooperação quebrouse. Após a liberalização dos mercados, o intercâmbio energético passou a ser encarado numa base puramente comercial, o que obrigou os
responsáveis do Quirguizistão a pagarem o combustível importado a
preços do mercado mundial. Os responsáveis começaram a aumentar
as descargas de Inverno no Reservatório Toktogul, a fim de produzirem
electricidade, reduzindo assim o caudal disponível para irrigação no
Cazaquistão e no Usbequistão, durante os meses de Verão. Durante os
anos 90, as descargas de Verão diminuíram para metade, provocando
graves problemas de escassez de água para irrigação.
Em 1992, tiveram início negociações com vista à partilha da água
e da energia, mas poucos resultados tiveram. Embora os estados a
jusante e a montante tenham consciência de que o armazenamento
de água a montante deve ser uma medida económica comum e que é
preciso desenvolver permutas de água destinada à produção de electricidade e de combustíveis fósseis, tem sido difícil obter um acordo
relativamente a quantidades e a preços. Em 2003 e 2004, os governos
não conseguiram chegar a acordo sequer para a elaboração de uma
programação anual básica.
Quais os efeitos da falta de cooperação no âmbito das políticas nacionais? No Usbequistão, esta situação levou os políticos a aumentarem a auto-suficiência e a reduzirem a sua dependência do Reservatório Toktogul A estratégia incluiu a construção de reservatórios capazes
de armazenar 2,5 mil milhões de metros cúbicos de água. O Cazaquistão também está a estudar uma resposta nacional para este problema
regional e admite a hipótese de construção de um reservatório com
capacidade para 3 mil milhões de metros cúbicos em Koserai.
Dispondo de água em abundância, o Quirguizistão enveredou por
uma produção energética auto-suficiente. Os responsáveis estão a
estudar a construção de duas novas barragens e complexos hidroeléctricos capazes de produzirem electricidade suficiente para satisfazer
as necessidades nacionais, e ainda um excedente para exportação,
mas o orçamento necessário ao investimento, avaliado em 2,3 mil milhões de dólares, representa 1,2 vezes o RNB do país. Uma alternativa
seria a criação de um complexo de energia térmica, de custos mais
baixos, e que pudesse satisfazer as necessidades energéticas de Inverno. Sendo uma opção mais económica, ela vai contrariar o rumo da
política nacional, que pugna por uma completa auto-suficiência energética. Esta unidade iria aumentar o grau de dependência do Quirguizistão do abastecimento de gás natural proveniente do Usbequistão,
que tem sido periodicamente suspenso por decisão unilateral. A fraca
cooperação existente neste caso constitui um obstáculo ao reforço de
trocas comerciais eficazes.
A incapacidade para se chegar a acordo em torno de soluções
de cooperação criou um cenário de «todos ficam a perder». Isto forçou os países a adoptarem estratégias que não eram propriamente as
ideais, com o intuito de desenvolverem infra-estruturas alternativas, o
que por sua vez implicou grandes perdas económicas potenciais. O
Banco Mundial estima que o Usbequistão poderia ganhar 36 milhões
de dólares e o Cazaquistão 31 milhões de dólares caso o Reservatório
de Toktogul operasse para a irrigação em vez da produção de energia.
Os custos acrescidos suportados pelo Quirguizistão teriam atingido os
35 milhões de dólares. Para falarmos apenas numa relação custosbenefícios, a bacia hidrográfica como um todo teria ganho 32 milhões
de dólares com a cooperação, enquanto todos os países poderiam
ganhar também, se os estados a jusante compensassem devidamente
o Quirguizistão.
Noutras circunstâncias, o Tajiquistão teria potencial para se tornar
o terceiro maior produtor mundial de energia hidroeléctrica. Mas essa
possibilidade tem sido adiada porque a falta de cooperação entre os
países faz com que as instituições financeiras internacionais se mostrem relutantes em conceder empréstimos para projectos de energia
hidroeléctrica.
Sendo assim, se a via para a auto-suficiência está a infligir pesados custos económicos por toda a bacia, e se as vantagens económicas da cooperação são tão substanciais, o que é que está a deter os
países da Ásia Central? Numa palavra, os interesses políticos. Uma
gestão eficaz dos recursos hídricos transfronteiriços exige um diálogo construtivo e negociações que permitam identificar os cenários
ganhadores e desenvolver estratégias de financiamento e de maior
cooperação para os atingir. Esse diálogo tem estado manifestamente
ausente na região.
Fonte: Greenberg 2006; Micklin 1991, 1992, 2000; Peachey 2004; PNUD 2005a; Weinthal 2002, 2006.
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
6
214
da região do Cáucaso. Uma legislação subdesenvolvida a nível regional, uma monitorização
de água descoordenada e a falta de mecanismo
de cooperação regional — nenhum destes itens
pode ser resolvido independentemente — fizeram da poluição da água um problema grave para
os três países, e que nenhum deles poderá resolver
autonomamente. 22
As catástrofes podem funcionar como catalisadores de uma futura cooperação. A Ucrânia
ocupa mais de metade da Bacia do Dniepre, que
partilha com a Bielorrússia e a Rússia. Um processo de industrialização acelerado colocou o
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
terceiro maior rio da Europa sob enorme pressão: apenas menos de um quinto dos f luxos de
água que atravessam a Ucrânia chega hoje ao
Mar Negro. A poluição é endémica, para o que
contribuem o uso excessivo de fertilizantes, as
descargas descontroladas de resíduos das minas
de urânio e águas residuais. Só depois do desastre de Chernobyl, que originou depósitos de
césio radioactivo nos reservatórios e aumentou o
risco de exposição radioactiva numa área que se
estende até ao Mar Negro, é que os governos responderam ao desafio de melhorarem a qualidade
do rio. 23 Foram tomadas medidas nas Bacias de
Kura-Araks e do Dniepre com o objectivo de promover a cooperação, a começar pelo diagnóstico
ambiental e programas de acções concretas, mas a
reabilitação ainda vai demorar muito tempo.
A periodicidade dos fluxos hídricos constitui
outro aspecto transfronteiriço com implicações
no desenvolvimento humano. A garantia da subsistência das populações está dependente de um
fornecimento de água previsível. O consumo de
água num país pode afectar a periodicidade dos
f luxos que chegam aos consumidores a jusante,
mesmo quando o caudal de água permanece inalterável. Exemplo disso é a produção de energia hidroeléctrica a montante. Na Ásia Central, o Quirguizistão consegue controlar a periodicidade dos
seus caudais de água, enquanto o Usbequistão e o
Cazaquistão dependem das descargas alheias para
irrigarem os seus campos. O fracasso do caduco
sistema soviético de transferência de gás do Cazaquistão para o Usbequistão levou o Quirguizistão a procurar ser auto-suficiente na produção de
energia eléctrica durante o Inverno. Para produzir
energia hidroeléctrica, limita agora a saída de água
do Reservatório Toktogul nos meses de Verão, mas
provoca inundações a jusante no Inverno — uma
preocupação central que está a ser discutida nas
negociações sobre os recursos hídricos da região
(caixa 6.1).
A gestão da água transfronteiriça pode influenciar as disponibilidades hídricas de outras formas.
Israel, a Jordânia e os Territórios Ocupados da Palestina estão situados numa das zonas de maior escassez de água do mundo — e partilham uma grande
parte da sua água. A população palestiniana depende
quase exclusivamente das águas transfronteiriças, na
sua maior parte partilhadas com Israel (caixa 6.2).
Mas os recursos comuns não são partilhados em pé
de igualdade. A população palestiniana representa
cerca de metade da população israelita, mas consome
apenas 10-15% da água consumida por esta última.
Na Margem Ocidental, os colonos israelitas consomem anualmente uma média de 620 metros cúbicos por pessoa, e os Palestinianos menos de 100
metros cúbicos. As faltas de água sentidas nos Territórios Ocupados da Palestina e que representam
um enorme entrave ao desenvolvimento agrícola e à
subsistência daquelas populações, também são uma
notória fonte de injustiças, porque as actuais normas
regulamentares do consumo de água impõem-lhes
um acesso desigual aos aquíferos partilhados.
O ponto de partida para
que se possa avaliar o raio
de acção de uma futura
cooperação terá de passar
pelo reconhecimento de
que os países soberanos
têm obviamente o seu
próprio esquema racional
e legítimo para retirarem
o máximo de proveito
dos recursos hídricos
A defesa da cooperação
seu próprio esquema racional e legítimo para
retirarem o máximo de proveito dos recursos
hídricos.
As regras do jogo
No interior de cada país, o consumo de água é
regulado por instituições, leis e normas elaboradas por meio de processos políticos de diversos graus de transparência. As instituições, leis e
normas para regulação dos recursos hídricos que
atravessam as fronteiras já são menos definidas.
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
6
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
A água partilhada pode gerar sempre situações
de competição. A língua portuguesa ref lecte isso
mesmo: a palavra rival vem do Latim rivalis, que
significa uma pessoa a usar o mesmo rio que a
outra. Os países ribeirinhos são frequentemente
rivais em luta pela água que partilham. Tendo
em consideração a importância da água para o
desenvolvimento nacional, cada país tem o seu
próprio esquema nacional para a utilização de
um rio internacional. O ponto de partida para
que se possa avaliar o raio de acção de uma futura
cooperação terá de passar pelo reconhecimento
de que os países soberanos têm obviamente o
2 15
Caixa 6.2
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
6
216
Direitos de acesso à água nos Territórios Ocupados da Palestina
Em nenhuma outra região os problemas da gestão da água são
tão visíveis como nos Territórios Ocupados da Palestina. Os Palestinianos enfrentam um dos maiores níveis de escassez de
água do planeta. Para esta escassez contribuem quer as disponibilidades físicas quer a gestão política dos recursos hídricos
partilhados.
Em termos de consumo per capita, a população residente
nos Territórios Ocupados da Palestina tem acesso a 320 metros
cúbicos de água por ano, um dos mais baixos níveis de disponibilidade de água do mundo, e que se situa muito abaixo do limiar de
escassez absoluta. A distribuição desigual de água dos aquíferos
partilhados com Israel, reflexo do desequilíbrio das relações de
poder na gestão dos recursos hídricos, constitui parte do problema. Com o rápido crescimento populacional, a diminuição
das disponibilidades de água constitui um sério constrangimento
para a agricultura e o consumo humano.
A partilha desigual encontra-se reflectida nas grandes discrepâncias existentes nos padrões de consumo de água entre
Israelitas e Palestinianos. A população israelita não chega a ser
o dobro da população palestiniana, mas o seu consumo total de
água é sete vezes e meia superior (figura 1). Na Margem Ocidental, os colonos israelitas consomem muito mais água per capita
do que os Palestinianos, e os Israelitas em Israel (figura 2): aproximadamente nove vezes mais água por pessoa do que os Palestinianos. Seja qual for o critério de avaliação, estamos perante
enormes disparidades.
Qual o motivo destas disparidades? Os Palestinianos não
vêem reconhecidos os seus direitos à água do Rio Jordão — a
sua principal fonte de água à superfície. Isto significa que quase
todas as necessidades de água dos Territórios Ocupados da
Palestina são satisfeitas pelos aquíferos subterrâneos. As leis
que regulam as captações levadas a cabo nestes aquíferos têm
enorme influência no acesso à água.
A gestão dos aquíferos situados a ocidente e na zona costeira
constitui um bom exemplo. Fazendo parte da Bacia do Jordão, o
aquífero ocidental é a única importante fonte de água renovável
dos Territórios Ocupados da Palestina. Perto de três quartos do
aquífero são repostos na zona da Margem Ocidental, e correm
daqui em direcção à costa de Israel Grande parte desta água não
é utilizada pelos Palestinianos. Motivo: Os representantes israelitas no Comité Conjunto da Água regulam de forma restritiva a
quantidade e profundidade dos poços explorados pelos Palestinianos. Mas aos colonos israelitas são aplicadas normas muito
menos restritivas, permitindo-lhes extrair água dos poços até
maior profundidade. Apesar de disporem de apenas 13% do total
de poços da Margem Ocidental, os colonos são responsáveis por
cerca de 53% das captações de água subterrânea. A água não
utilizada nos Territórios Ocupados da Palestina acaba por correr
para o subsolo do território israelita e ser extraída através dos
poços instalados no lado de Israel (ver mapa).
Registam-se problemas semelhantes com as águas da Bacia
Costeira. Estas raramente chegam à Faixa de Gaza, devido às
elevadas taxas de captação no lado israelita. Resultado: as taxas
de captação dos aquíferos de superfície na Faixa de Gaza ultrapassam largamente as taxas de reposição, originando uma
crescente salinização dos recursos hídricos.
As restrições de acesso à água estão a atrasar o desenvolvimento da agricultura palestiniana. Embora o sector represente
uma fatia cada vez mais pequena da economia palestiniana —
mal terá atingido os 15% do rendimento e do emprego em 2002
—, ele é, não obstante, crucial para a subsistência de algumas
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
Figura 1 O consumo de água
entre Israel e os
Territórios Ocupados
da Palestina é
desigual
Consumo total, 2005
(milhões de metros cúbicos por ano)
2.400
2.200
Israel
2.000
1.800
1.600
1.400
1.200
1.000
800
600
400
Territórios
Ocupados da
Palestina
200
0
Fonte: Jägerskog e Phillips 2006.
Figura 2 A água é um bem mais
escasso para uns do
que para outros
Consumo per capita, 2005
(metros cúbicos por ano)
1.100
1.000
Colonatos israelitas (Gaza)
900
800
700
Colonatos israelitas
(Cisjordânia)
600
500
400
Israel
300
200
100
Territórios
Ocupados
da Palestina
0
Nota: População em movimento-média ponderada;
os colonatos israelitas na Faixa de Gaza foram
evacuados em Agosto e Setembro de 2005.
Fonte: Jägerskog e Phillips 2006.
Caixa 6.2
Direitos de acesso à água nos Territórios Ocupados da Palestina (continuação)
das pessoas mais pobres. A irrigação está
Gestão dos aquíferos — Palestinianos e Israelitas fazem uma partilha
presentemente subdesenvolvida, abrangendo
desigual das águas subterrâneas
menos de um terço da área que devia ocupar,
em consequência da falta de água.
Direcção do fluxo de água
O subdesenvolvimento dos recursos hídricos faz com que muitos Palestinianos dePoços israelitas
pendam do fornecimento de água por parte de
Bacia ocidental
empresas israelitas. Isto constitui uma fonte
Jenin
Bacia costeira
de vulnerabilidade e de incerteza, porque os
Al
Khuderah
Fronteiras
fornecimentos são frequentemente suspensos durante os períodos de maior tensão.
Linha verde
Tulkarem
A construção do controverso Muro de
Principal cidade
Al Tireh
Nablus
Separação ameaça agravar ainda mais a inQalqilya
segurança da água. A construção do muro
BACIA
COSTEIRA
teve como resultado a perda de alguns poços
Cisjordânia
palestinianos e a separação dos agricultores
Telavive
BACIA
dos seus terrenos agrícolas, sobretudo em
OCIDENTAL
Lod
zonas alimentadas pelas chuvas e altamente
produtivas, situadas à volta dos distritos de
Al Ramleh
Al Bireh
Ramallah
Belém, Jenin, Nablus, Oalqilya, Ramallah e
Tulkarem.
Ashdod
Jerusalém
Israel
As condições existentes nos Territórios
BACIA
Ocupados da Palestina contrastam com os
Belém
COSTEIRA
acordos mais cooperantes que se firmaram
noutras zonas do globo. Desde o acordo de
Mar
Morto
paz de 1994, Israel e a Jordânia têm colaboHebron
Gaza
rado na construção de instalações de armazeBACIA
nagem de água no Lago Tiberias, que vieram
OCIDENTAL
Gaza
melhorar a distribuição de água aos agricultoKhan Yunis
res jordanos. A estrutura institucional também
Rafah
ajudou na arbitragem de conflitos surgidos a
propósito das variações de caudal sazonais e
Bir Saba
anuais, ainda que este aspecto não tenha sido
originalmente abrangido pelo acordo. Noutra
zona, o Centro de Pesquisa de Dessalinização
BACIA
do Médio Oriente, sediado em Muscat, Omã,
OCIDENTAL
Egipto
há mais de uma década que tem vindo a promover com êxito investigações multilaterais
Nota: A designação utilizada e a apresentação de material neste mapa não implica
a expressão de qualquer opinião da parte do Secretariado das Nações Unidas
com vista à descoberta de técnicas de desrelativamente ao estatuto legal de qualquer país, território, cidade ou área
salinização eficazes. Da sua direcção fazem
da sua autoridade ou respeitante à delimitação das suas fronteiras.
parte representantes da Comissão Europeia,
Israel, Japão, Jordânia, República da Coreia,
Fonte: SUSMAQ 2004.
Países Baixos, Autoridade Palestiniana e Estados Unidos.
Talvez mais do que em qualquer outro cenário mundial, a segurança da água nas relações entre Israel e os Territórios Ocupados da
Palestina está ligada a problemas mais vastos, de conflito e de diferentes noções sobre a segurança nacional. Contudo, a água também
é um poderoso símbolo do amplo sistema de interdependência hidrológica que liga todas as partes. Gerir esta interdependência de forma
a aumentar a equidade poderá constituir um grande contributo para a segurança humana.
Uma das mais importantes facetas da gestão
dos recursos hídricos transfronteiriços é a soberania dos estados. Nas disputas relacionadas com
os rios que partilham com o México, os Estados
Unidos adoptaram, em 1895, a Doutrina Harmon. Sendo um modelo de soberania absolutista,
a Doutrina Harmon defende que, na ausência de
legislação contrária, os estados deverão ser livres
de usar os recursos hídricos sob a sua jurisdição
sem terem em conta os efeitos produzidos além
fronteiras. A legislação nacional de muitos países
ainda conserva variantes desta forma de encarar
a questão. A Lei Parlamentar de 2001 do Cazaquistão estipula que todos os recursos hídricos
que têm origem dentro do território deste país
lhe pertencem.
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
6
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
Fonte: Elmusa 1996; Feitelson 2002; Jägerskog e Phillips 2006; MEDRC 2005; Nicol, Ariyabandu e Mtisi 2006; Phillips e outros 2004; Rinat 2005; SUSMAQ
2004; SIWI, Tropp e Jägerskog 2006; Weinthal e outros 2005.
2 17
Uma fórmula de análise
da gestão das águas
transfronteiriças que se
revelou útil identifica quatro
patamares de vantagens
potenciais da cooperação:
benefícios para o rio,
benefícios a retirar do rio,
benefícios resultantes do rio
e benefícios para além do rio
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
6
218
O princípio, essencialmente concorrencial,
da integridade territorial absoluta sugere que as
nações ribeirinhas a jusante têm direito de acesso
aos caudais naturais dos rios provenientes das
zonas ribeirinhas a montante. Por vezes, com o
objectivo de contestarem esta visão de soberania
absoluta, os estados situados a jusante recorrem
ao princípio paralelo da propriedade primitiva,
ou seja, à ideia de que a utilização no passado
confere o direito à utilização futura do mesmo
volume de água. 24
Na prática, a maioria dos governos assume
que a visão absolutista dos direitos à água é uma
orientação inútil que serve desígnios políticos.
Após décadas de debates sobre a matéria, a Convenção das Nações Unidas para o Uso dos Cursos
de Água Partilhados Não-Navegáveis, reunida
em 1997, sistematizou princípios de partilha
da água baseados nas Normas de Helsínquia
de 1966. Os princípios fundamentais assentam
numa «utilização equitativa e razoável», «não
demasiado nociva» e «sujeita a notificação prévia». A ideia genérica é de que a gestão dos cursos de água internacionais deveria ser realizada
tendo em linha de conta os efeitos do consumo
noutros países, a existência de recursos hídricos
alternativos, a dimensão da população afectada,
as necessidades económicas e sociais dos estados
a que os cursos de água dizem respeito, e a conservação, protecção e evolução do curso de água
propriamente dito.
A aplicação destes princípios está repleta
de dificuldades, em parte devido ao argumento
óbvio de que eles não fornecem instrumentos de
resolução de reivindicações antagónicas. Os consumidores a montante podem argumentar com as
suas necessidades socio-económicas para defenderem, por exemplo, a construção de barragens
destinadas à produção de energia hidroeléctrica.
Os estados a jusante podem opor-se a estas medidas, argumentando com as suas próprias necessidades socio-económicas e com o consumo que
já faziam no passado. A dificuldade associada
aos princípios da concorrência e as preocupações
relacionadas com a soberania nacional ajudam
a explicar o motivo por que apenas 14 países
fazem parte da convenção da ONU. E também
por que não existe na prática um mecanismo de
coacção—em 55 anos, o Tribunal Internacional
de Justiça condenou apenas um caso relacionado
com rios internacionais.
E no entanto, apesar de todas as suas limitações, a convenção de 1997 estabeleceu princípios
cruciais para o desenvolvimento humano. Ela
fornece um quadro legal que coloca as pessoas
no centro da gestão das águas transfronteiriças. Igualmente importante é a Comissão Eco-
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
nómica das Nações Unidas para a Convenção
Europeia sobre Protecção e Uso dos Cursos de
Água Transfronteiriços e dos Lagos Internacionais (CEPUCT) de 1992. Esta convenção concentra-se, sobretudo, na qualidade da água, considerando explicitamente as bacias hidrográficas
como unidades ecológicas únicas. A convenção
de 1992 também enfatiza as responsabilidades
dos estados membros, com base nas necessidades
de água presentes e não no seu historial de consumo de água — um importante princípio de desenvolvimento humano. O CEPUCT já está em
vigor e poderá tornar-se universal se 23 países
que não são membros da Comissão Económica
para a Europa o subscreverem: quatro deles já o
fizeram. Depois de todos os apelos intuitivos lançados por ambas as convenções, o desafio político
que se coloca agora é o de pôr em execução estes
enquadramentos legais, ajustando-as aos problemas de gestão da água sentidos no mundo real.
No rio e para além do rio
A defesa da cooperação, e dos mecanismos que a
conformam, varia inevitavelmente conforme o sistema internacional de água partilhada em causa.
No seu modelo mais básico, a cooperação implica
actuar de forma a minimizar as consequências
adversas da procura concorrencial, enquanto se
maximizam os potenciais benefícios das soluções
partilhadas. Se partirmos do princípio de que
os estados procuram defender os seus interesses
racionais e legítimos, a cooperação só resultará
se os seus benefícios previsíveis ultrapassarem os
custos de uma não-cooperação. Se pudermos realçar os interesses que cada parte tem na matéria,
mais facilmente poderemos identificar e alargar
o leque de potenciais benefícios.
Uma fórmula de análise da gestão das águas
transfronteiriças que se revelou útil levou à identificação de quatro patamares de vantagens potenciais da cooperação: 25
• Benefícios para o rio.
• Benefícios a retirar do rio.
• Benefícios resultantes do rio.
• Benefícios para além do rio.
Benefícios para o rio
A conservação, protecção e melhoramento dos
rios podem gerar benefícios para todos os consumidores. Na Europa, o Plano de Acção do
Reno, implementado em 1987, marca a última
etapa de uma cooperação destinada a melhorar
a qualidade do rio no interesse de todos os seus
utilizadores. Este plano assinala o culminar de
Caixa 6.3
A experiência europeia na gestão das bacias fluviais: os rios Reno e Danúbio
sório politicamente vinculativo. As organizações não-governamentais gozam do estatuto de observadores, o que facilita a participação da opinião pública. Estas estruturas e instituições cooperativas
levam tempo a formar-se e funcionam melhor se dispuserem de
lideranças políticas de alto nível.
O Danúbio. Talvez mais do que nenhum outro rio, o Danúbio
reflecte a história turbulenta do século XX na Europa. Em vésperas da Primeira Guerra Mundial, o maior país servido pela bacia
hidrográfica era o Império Austro-Húngaro. No final da Segunda
Guerra Mundial, a maior parte dos países ribeirinhos do Danúbio
passou a fazer parte do bloco soviético. Com a desagregação
da Checoslováquia, da União Soviética e da Jugoslávia, o Danúbio passou a ser a bacia hidrográfica mais internacionalista
do mundo.
O fim da guerra fria e a posterior adesão de diversos países da
bacia à União Europeia fizeram com que toda a bacia hidrográfica
pudesse ser encarada numa base de cooperação internacional. Em
Fevereiro de 1991, todos os estados à volta da bacia concordaram
em criar a Convenção para a Protecção e Gestão do Rio. Em 1994,
foi assinada a Convenção do Danúbio e criada a Comissão Internacional para a Protecção do Rio Danúbio (CIPRD), que entraria em
vigor em Outubro de 1998. A Sérvia e Montenegro aderiu ao tratado
em 2002, e a Bósnia e Herzgovina em 2004.
A direcção institucional da CIPRD assenta numa conferência
de todos os países envolvidos, numa comissão plenária, em nove
grupos de peritos e de trabalho e num secretariado permanente sediado em Viena. Entre os 11 observadores da comissão incluem-se
diversos organismos profissionais, o Forum Ambiental do Danúbio,
o Fundo Mundial para a Natureza e a Associação Internacional de
Empresas de Abastecimento de Água na Zona de Captações do
Rio Danúbio.
Desde 2001, quando teve início a Parceria Estratégica para a
Redução de Nutrientes do Danúbio — Mar Negro, o investimento
do Projecto Ambiental Global, no valor de aproximadamente 100
milhões de dólares, rendeu quase 500 milhões de dólares em co-financiamentos, além de outros investimentos adicionais destinados
à redução dos nutrientes, por parte da União Europeia, do Banco
Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento e outros, num
total de 3,3 mil milhões de dólares. Os ecossistemas do Mar Negro
e do Rio Danúbio já mostram sinais de recuperação da séria eutrofização dos anos 70 e 80. A depauperação dos níveis de oxigénio já
quase não se fazia sentir em anos recentes. E a diversidade de espécies quase duplicou comparativamente com os valores de 1980.
O ecossistema do Mar Negro está prestes a atingir as condições
observadas nos anos 60.
O Danúbio é um exemplo da forma como a cooperação institucional consegue despoletar benefícios mútuos que vão reforçar
a posição de todas as partes além fronteiras. À medida que os
governos e a opinião pública dos países ribeirinhos foram vendo
emergir os benefícios da cooperação, a autoridade e a legitimidade
destas instituições também se viu reforçada. Mas o sucesso da
cooperação implicou enormes investimentos, quer em termos de
capital financeiro quer político.
Fonte: Barraqué e Mostert 2006.
mais de meio século de intercâmbios sucessivos
entre a França, a Alemanha, os Países Baixos e
a Suíça, com vista à elaboração gradual de uma
resposta proporcional à dimensão da ameaça com
que os seus interesses partilhados se confrontavam (caixa 6.3).
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
6
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
Os rios são elos de ligação entre as pessoas e os seus meios de
subsistência, para além das fronteiras nacionais. Os rios limpos são
um bem público — os rios poluídos são veículos de circulação de
males públicos transfronteiriços. A história europeia mostra-nos os
benefícios do investimento que encara os rios como bem públicos
à escala regional.
O Reno. O Rio Reno, um dos maiores sistemas fluviais da Europa, desce os Alpes Suíços e atravessa o leste da França até ao
Vale de Ruhr, na Alemanha, para chegar finalmente aos Países Baixos. No início do século XIX, ele já era sinónimo de poluição. Em
1828, uma visita à cidade de Colónia impeliu Samuel Coleridge a
escrever:
O rio Reno, todos sabemos
Lava esta vossa cidade de Colónia
Mas dizei-me vós, ó Ninfas, que poder divino
Poderá doravante lavar o rio Reno?
Nenhum poder, divino ou terrestre, lavou o rio. À medida que a
industrialização foi avançando, o Reno transformou-se num enorme
vazadouro poluído. Arrastava nas suas correntes os resíduos das
indústrias químicas da Suíça, da indústria de potassa da França e
das indústrias metalúrgicas e de carvão da Alemanha, transferindoos para os Países Baixos. Entre 1900 e 1977, as concentrações de
crómio, cobre, níquel e zinco subiram para níveis tóxicos. Na década de 50, o peixe quase desaparecera das zonas média e montante do Reno. Além de envenenar o rio, a poluição das indústrias
da Alemanha e da França ameaçava a água para consumo humano
e para a indústria de floricultura nos Países Baixos.
A operação de limpeza teve início após a Segunda Guerra Mundial. Em 1950, França, Alemanha, Luxemburgo, Países Baixos e
Suíça criaram a Comissão Internacional para a Protecção do Reno
(CIPR). O seu objectivo inicial era a pesquisa e recolha de dados,
mas em meados dos anos 70, foram concluídos dois acordos sobre
poluição química e cloretos. Estes últimos visavam reduzir a poluição em França e na Alemanha, embora a cooperação se tenha
mostrado difícil de início. A Alemanha, os Países Baixos e a Suíça
concordaram em contribuir com 70% dos custos de redução das
emissões de cloreto em França. Mas confrontado com uma séria
oposição interna, o governo francês recusou-se a submeter a convenção ao Parlamento, para ratificação.
Uma crise ambiental surgida em finais de 1986 — um incêndio
numa fábrica de produtos químicos suíça — serviria de estímulo a
uma nova ronda de conversações para a cooperação. Por volta de
Maio de 1987, nasceria o Plano de Acção do Reno. O seu objectivo
era uma redução drástica dos níveis de poluição. Quando ocorreram as cheias de 1993, o campo de acção da CIPR alargou-se,
passando a abranger a protecção contra cheias. No ano seguinte,
foi assinado um novo Tratado do Reno, e em 2001, foi adoptado o
Programa de Desenvolvimento Sustentável do Reno para 2020.
O CIPR é hoje em dia um organismo intergovernamental eficaz,
ao qual os estados membros têm de prestar contas das suas acções. Dispõe de uma assembleia plenária, um secretariado e um
departamento técnico — e uma considerável autoridade política,
exercida através de uma conferência de ministros com poder deci-
2 19
O aumento dos benefícios
retirados do rio e a
diminuição dos custos
resultantes do rio
poderão proporcionar
maiores possibilidades de
desenvolvimento humano, de
crescimento económico e de
cooperação a nível regional
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
6
220
Em regiões do mundo mais pobres, a manutenção da integridade dos sistemas f luviais
pode gerar enormes benefícios para a subsistência das pessoas. Um exemplo disto é a prevenção
ou a inversão de problemas como a degradação
das bacias hidrográficas a montante e a exploração de água subterrânea, que expõem os consumidores situados a jusante perante o risco de
inundações ou de faltas de água. As cheias de
2000 e 2001 dos rios Limpopo e Save tiveram
um impacto severo nas populações pobres que
residiam nas zonas mais vulneráveis dos leitos
de cheia, em Moçambique. A erosão dos solos, a
perda de árvores que cobriam as vertentes montanhosas e o consumo excessivo de água nas regiões a montante contribuíram para a gravidade
das inundações. A cooperação entre estados com
vista à resolução destes problemas é um ref lexo
da noção de partilha do risco e dos benefícios
mútuos que os sistemas f luviais podem proporcionar aos povos.
Benefícios a retirar do rio
O facto de a água ser um recurso limitado leva as
pessoas a pensarem que nada têm a ganhar com
a sua partilha. Esta ideia está errada em aspectos importantes. A gestão da água das bacias
f luviais pode ter por objectivo um aumento
dos benefícios gerais, através da optimização do
consumo de água com vista ao aumento da terra
irrigada, da produção de energia e de benefícios
ambientais.
A cooperação ao nível de uma bacia hidrográfica pode promover técnicas eficazes de armazenamento e de distribuição de água, por
forma a aumentar o número de acres irrigados.
O Tratado das Águas do Indus, de 1960, foi
precursor da expansão massiva dos sistemas de
irrigação na Índia, que por sua vez desempenharam um papel importante na revolução verde.
No Rio Senegal, o Mali, a Mauritânia e o Senegal estão a cooperar entre si na regulação dos
caudais do rio e na produção de energia hidroeléctrica através de infra--estruturas em regime
de co-propriedade. Na África Austral, o Lesoto
e a África do Sul estão a cooperar na construção
de infra-estruturas no Rio Orange e no Projecto
da Serra do Lesoto, que irá fornecer água a baixo
custo à África do Sul, e f luxos financeiros ao Lesoto, que lhe permitirão proceder à manutenção
das suas bacias hidrográficas. 26 Na Ásia do Sul,
a Índia financiou o complexo hidroeléctrico de
Tala, situado no Butão, ganhando com isso uma
fonte de energia enquanto o Butão conquistou
uma garantia de acesso ao mercado energético
indiano.
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O Brasil e o Paraguai constituem um exemplo dos benefícios potenciais a descobrir através
do intercâmbio e da cooperação. O Acordo de
Itaipu, datado de 1973, pôs fim a uma longa disputa fronteiriça que já durava há 100 anos, possibilitando a construção conjunta do gigantesco
complexo hidroeléctrico de Guairá-Itaipu. Em
grande parte financiada pelo investimento público brasileiro, a Barragem de Itaipu, na Bacia
Hidrográfica Paraná-La Plata, possui 18 geradores com uma capacidade de 700 megawatts
cada, o que faz dela uma das maiores unidades
de energia hidroeléctrica do mundo. Gerida
através da Itaipu Binacional, uma companhia
conjunta detida pelos dois governos, a unidade
consegue satisfazer quase todas as necessidades
do Paraguai, mantém uma indústria que é hoje
em dia a maior fonte de receitas de câmbios com
o estrangeiro, e ainda cobre um quarto do consumo de electricidade do Brasil. 27 Ambos os países ficaram a ganhar com esta cooperação. Um
contraste avassalador com a Ásia Central, onde
o fracasso da cooperação deu origem a enormes
prejuízos.
Benefícios resultantes do rio
Entre os ganhos com a cooperação, podemos
incluir os custos evitados através da redução
das tensões e disputas entre vizinhos. As relações tensas entre estados resultantes da gestão
dos recursos hídricos podem inibir as acções de
cooperação regional em várias frentes, incluindo
o comércio, os transportes, as telecomunicações
e o mercado de mão-de-obra. Como afirmariam
dois comentadores, «em algumas bacias f luviais
internacionais, pouca coisa circula entre os países ribeirinhos à excepção do próprio rio.»28 É
sempre difícil distinguir os efeitos da gestão da
água através da dinâmica mais vasta que regula
as relações entre os estados, mas em alguns
casos, os custos da não-cooperação podem ser
elevados, especialmente em ambientes marcados por preocupações simultâneas de escassez de
água e de segurança nacional. Entre os exemplos
óbvios do que acabamos de dizer incluem-se as
Bacias Hidrográficas do Eufrates, do Indus e do
Jordão. As vantagens da cooperação resultantes
do rio são, como não podia deixar de ser, difíceis
de quantificar, mas os custos humanos e financeiros da não-cooperação podem ser bem reais.
Benefícios para além do rio
O aumento dos benefícios retirados do rio e a
diminuição dos custos resultantes do rio poderão proporcionar maiores possibilidades de
O estado da cooperação
Se olharmos para a última
Em contraste gritante com a corrente habitual
que prevê um clima de hostilidades associado
aos recursos hídricos, os testemunhos da história
apresentam-nos uma outra versão. Os conf litos
relacionados com a água acontecem e dão origem
a tensões políticas, mas a maioria das disputas
acaba por se resolver por meios pacíficos. Porém,
a ausência de conf litos é, quando muito, apenas
um indício de uma boa cooperação.
É, como tal, difícil medirmos o grau de conf litualidade entre governos por causa dos recursos hídricos. Como já tivemos ocasião de sublinhar, a água raras vezes representa uma matéria
isolada de política externa. A Universidade do
Estado de Oregon tentou compilar um conjunto
de dados abrangendo todos os registos de interacções relacionadas com a água, até 50 anos atrás.
O que mais surpreende nesses dados é que houve
apenas 37 casos de registo de violência entre estados relacionados com a água (e apenas 7 não
foram no Médio Oriente). No mesmo período,
foram negociados mais de 200 tratados relativos
à água entre países. Ao todo, foram registados
1.228 casos de cooperação, comparativamente
com os 507 casos de conf lito, mais de dois terços
dos quais envolvendo apenas hostilidades verbais
de pouca gravidade. 29 A maioria dos casos de
Figura 6.1
descobrimos que o
resultado porventura mais
extraordinário da gestão
dos recursos hídricos
foi a percentagem de
resolução de conflitos — e a
durabilidade das instituições
de gestão da água
Os conflitos relacionados com a água
têm que ver com o volume dos caudais —
aqui, a cooperação pode ser muito mais
abrangente
Percentagem
100
90
metade do século passado,
Casos de
conflito
Eventos
cooperativos
Outras
Outras
Qualidade da água
Gestão
conjunta
80
Infra-estrutura
(barragens, canais)
70
Energia
hidroeléctrica
60
Qualidade da água
6
50
Infra-estrutura
(barragens, canais)
40
30
20
Quantidade
de água
Quantidade
de água
10
0
Fonte: Wolf 2006.
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
desenvolvimento humano, de crescimento económico e de cooperação a nível regional. Em
certa medida, é o que acontece com as iniciativas
associadas às bacias f luviais.
A abordagem dos sistemas f luviais numa
perspectiva de cooperação também poderá gerar
benefícios políticos tangíveis. A Iniciativa da
Bacia Hidrográfica do Nilo liga política e economicamente o Egipto a países pobres da África
Subsariana. Estes vímculos têm o poder de criar
benefícios ainda mais alargados. Por exemplo, o
estatuto político que o Egipto conquistou através da Iniciativa da Bacia Hidrográfica do Nilo
poderá reforçar o seu papel enquanto parceiro e
campeão dos interesses africanos no âmbito da
Organização Mundial de Comércio. Além dos
benefícios da cooperação em termos de economia e de segurança, o estatuto internacional dos
países também pode ser inf luenciado pela forma
equitativa e justa como, aos olhos dos outros, eles
gerem a água em sintonia com os seus vizinhos
mais vulneráveis.
Nenhum modelo institucional oferece, por
si só, a chave para se alcançarem benefícios da
cooperação transfronteiriça. Em termos básicos, a cooperação que visa trazer benefícios ao
rio pode optar entre a adopção de acções defensivas e acções mais pró-activas. Um incêndio catastrófico num armazém de produtos químicos
situado perto de Basileia, Suíça, preparou o cenário para uma cooperação mais aprofundada na
zona do Reno. Mas quando os países ribeirinhos
procuram passar das estratégias de cooperação
básicas para as mais ambiciosas, têm de recorrer
inevitavelmente a uma interacção política mais
dinâmica entre a gestão da água e a cooperação
política.
No âmbito da União Europeia, a integração
política e económica abriu caminho a novas e
mais ambiciosas abordagens de gestão das bacias
f luviais. A Directiva-Quadro Europeia relativa à
Água, datada de 2000, constitui um dos mais arrojados modelos de gestão de água partilhada. O
seu principal objectivo é alcançar um «bom estatuto» para todos os recursos hídricos da Europa
em 2015: respeitar os padrões de qualidade da
água, evitar a extracção excessiva de águas subterrâneas e preservar os ecossistemas aquáticos.
Consta, ainda, da referida directiva que os estados devem designar «zonas de bacia f luvial» a
contemplar com projectos de desenvolvimento e
gestão e com programas previstos para seis anos.
No caso das bacias internacionais, estipulou-se
inclusivamente que os membros da UE devem
coordenar-se com os não-membros da UE. E enquanto isto, deve ser garantida a participação activa de representantes da comunidade.
221
Figura 6.2 Para além da quantidade — os acordos
sobre água abrangem muitas áreas
Distribuição sectorial de 145 acordos em matéria de recursos
hídricos transfronteiriços
Poluição 6 (4%)
Pesca 1 (1%)
Navegação 6 (4%)
Distribuição
industrial 9
(6%)
Energia
hidroeléctrica 57
(39%)
Controlo
das cheias
13 (9%)
Consumo de
água 53 (37%)
Fonte: Daoudy 2005.
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
6
222
contestação relacionavam-se com alterações do
volume do caudal das águas e com a criação de
novas infra-estruturas, que por sua vez tentavam
antecipar o volume e a periodicidade dos futuros
f luxos (figura 6.1).
Se olharmos para a última metade do século
passado, descobrimos que o resultado porventura
mais extraordinário da gestão dos recursos hídricos foi a percentagem de resolução de conflitos
— e a durabilidade das instituições de gestão da
água. A Comissão Permanente de Água do Indus,
que fiscaliza um tratado de partilha dos recursos
hídricos e um mecanismo de resolução de conflitos, conseguiu sobreviver e continuou a funcionar
durante dois graves conflitos armados que opuseram a Índia e o Paquistão. O Comité Mekong,
um organismo conjunto que engloba o Camboja,
o Laos, a Tailândia e o Vietname, continuou a trocar dados e informações durante a Guerra do Vietname. Israel e a Jordânia iniciaram uma cooperação de base ao nível dos recursos hídricos sob os
auspícios da ONU, no início dos anos 50, quando
os dois países estavam formalmente em guerra.
Em 1994, criaram um Comité Conjunto da Água
destinado a coordenar, partilhar e debater a colonização do território — acordo que já sobreviveu
a algumas situações de tensão.
Destas experiências poderemos retirar uma
mensagem clara, é que até os inimigos mais hostis
conseguem cooperar quando está em jogo a água.
A maioria dos governos reconhece que a violência associada à água raras vezes será uma opção
estrategicamente exequível ou economicamente
viável. As instituições que criaram para evitar os
conflitos demonstraram até à data um extraordi-
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
nário poder de resistência. O tempo considerável
que levou a negociar a criação destas instituições
— 10 anos no caso do Tratado do Indus, 20 anos
para a Iniciativa da Bacia Hidrográfica do Nilo ou
40 para o acordo sobre o Jordão — é testemunho
da sensibilidade destas matérias.
Se o conflito constitui a excepção à regra, como
cooperam então os países? Uma análise exaustiva
de 145 tratados internacionais fornece-nos algumas pistas (figura 6.2). Porventura surpreendente
é o facto de apenas cerca de um terço dos casos
de cooperação abrangerem regras de distribuição
volumétrica. Aspectos como a energia hidroeléctrica, o controlo de inundações e poluição e a
navegabilidade são mais comuns. 30 Nos últimos
anos, colocou-se especial ênfase na partilha de benefícios, talvez porque as exigências da negociação
de regras de distribuição volumétrica representem
um maior desafio. E sob uma perspectiva de segurança futura da água, não abordar a volumetria
dos caudais pode acarretar problemas.
Um dos aspectos mais graves é que criam condições para o aparecimento de conflitos relacionados
com a compatibilização das diversas reivindicações
sobre os rios e outros recursos hídricos partilhados,
sempre que as disponibilidades diminuem devido a
factores sazonais ou a uma depauperação de longo
prazo. O acordo Israel-Jordânia de 1994 permite à
Jordânia armazenar descargas de Inverno no Lago
israelita Tiberias. O acordo também permite a Israel arrendar à Jordânia um determinado número
de poços para captação de água destinada aos terrenos agrícolas. Como parte integrante do acordo, foi
criado um Comité Conjunto da Água que gere os
recursos partilhados. Mas o acordo não pormenoriza o que aconteceria às regras de distribuição em
caso de seca. No início de 1999, a maior seca de que
há memória provocou um clima de tensão quando
o abastecimento de água à Jordânia começou a diminuir. Mas o acordo propriamente dito manteve-se
incólume — um balanço que demonstra o grau de
compromisso de ambas as partes na prossecução de
uma cooperação bem sucedida.
Embora os conflitos sejam raros e a cooperação
comum, a maioria dos acordos de cooperação são
deveras superficiais. Os governos tendem a negociar
acordos sobre projectos de partilha de benefícios
muito específicos, tais como a partilha de energia hidroeléctrica ou de informação. Em muitos casos, os
factores externos servem para incitar os governos a
adoptarem estratégias de cooperação minimalistas.
Uma interdição da comercialização de peixe proveniente do Lago Victória, promovida pela UE em
1999 e que teve sérias implicações nas trocas comerciais externas, levou os países da bacia hidrográfica a
adoptarem uma regulamentação da pesca comercial
através da Organização Piscatória do Lago Victória.
•
•
•
um obstáculo à cooperação relacionada com os
problemas ecológicos partilhados, tais como a
recuperação do Mar de Aral.
Liderança política fraca. Os líderes políticos
devem explicações aos respectivos eleitorados
nacionais, não às comunidades que partilham a
mesma bacia hidrográfica ou aos governos que
as representam. Nos países onde os problemas
da água figuram no topo da agenda política, os
factores internos podem constituir um desincentivo à partilha da água e aos benefícios a ela
associados: uma partilha de água mais equitativa
poderá ser positiva para o desenvolvimento humano no contexto de uma bacia hidrográfica,
mas poderá fazer perder votos em casa. Também
se levantam problemas de horizonte temporal:
os benefícios internos da partilha dificilmente
serão visíveis durante o mandato de qualquer
elenco governamental. Os incentivos à cooperação passam a ser mais fortes quando os líderes
conseguem vislumbrar ganhos políticos imediatos (por exemplo, as receitas adicionais para o
financiamento de projectos de irrigação no Paquistão) ou quando estão perante uma crise concreta (como o caso do derramamento químico
no Reno).
Assimetrias de poder. Os rios correm através de
países marcados por enormes disparidades em
termos de riqueza, poder e capacidade negocial.
Seria irrealista presumirmos que estas disparidades não influenciam a vontade de cooperar, negociar e partilhar benefícios. Também existem
assimetrias gritantes nas zonas de influência de
muitos recursos hídricos partilhados, existindo
nalguns casos um actor avassaladoramente dominante. O Egipto na Bacia do Nilo, a Índia na
zona de captação do Ganges, Israel no Jordão,
a África do Sul na Bacia do Incomati e a Turquia na bacia hidrográfica do Tigre-Eufrates são
exemplos disso mesmo. As relações de poder desiguais podem ter como efeito a perda do clima
de confiança.
Ausência de participação em iniciativas associadas à bacia. A percepção dos benefícios da participação em iniciativas multilaterais associadas à
bacia é influenciada pela qualidade dos parceiros
envolvidos. O facto de a China não participar
na Comissão do Rio Mekong é visto por alguns
parceiros como potencial factor de fragilidade
da própria comissão. Os países situados a jusante como o Camboja e o Vietname encaram
as barragens construídas pela China a montante
como uma ameaça ao «pulso de caudal» do rio
e aos meios de subsistência que dele dependem.
A Comissão do Mekong não é vista como um
fórum útil para o debate dos problemas devido à
ausência da China.
Uma partilha de água
mais equitativa poderá
ser positiva para o
desenvolvimento humano
no contexto de uma bacia
hidrográfica, mas poderá
fazer perder votos em casa
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
6
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
Mas esta reacção visava, sobretudo, a recuperação das
receitas comerciais, e não a resolução do enorme impacto que a poluição e o excessivo esforço de pesca
estavam a provocar nas condições de subsistência das
populações.
Até à data, tem havido pouca cooperação realmente empenhada em atingir as metas mais abrangentes do desenvolvimento humano definidas nas
Normas de Helsínquia ou na Convenção da ONU
sobre o Uso dos Cursos de Água Partilhados Nãonavegáveis, datada de 1997. E o âmbito geográfico
da cooperação também é limitado: de 263 bacias hidrográficas internacionais, 157 não dispõem de qualquer modelo de cooperação associado.31
E onde estes modelos existem, tendem a ser mais
bilaterais do que multilaterais. Das 106 bacias que
dispõem de instituições de regulação da água, cerca
de dois terços têm três ou mais estados ribeirinhos, e
contudo, apenas menos de um quinto possui acordos
multilaterais. Frequentemente, até as bacias multilaterais são geridas através de conjuntos de acordos
bilaterais. Por exemplo, na Bacia Hidrográfica do
Jordão, existem acordos entre a Síria e a Jordânia,
entre a Jordânia e Israel, e entre Israel e os Territórios Ocupados da Palestina.
Que obstáculos impedem uma cooperação mais
aprofundada? Podemos destacar quatro:
• Reivindicações antagónicas e imperativos de soberania nacional compreensíveis. Muitos países
continuam profundamente divididos na forma
como encaram a partilha da água. A Índia vê os
caudais dos Rios Brahmaputra e Ganges como
seus recursos nacionais. O Bangladeche vê a
mesma água como recurso cuja propriedade reclama com base em padrões anteriores de utilização e nas suas necessidades actuais. As diferenças
ultrapassam a simples doutrina: elas relacionamse directamente com reivindicações que ambos
os países entendem legítimas e necessárias às
respectivas estratégias de desenvolvimento nacional. Noutras zonas, a realidade da água partilhada tem fraco impacto nas estratégias nacionais. Os países da Ásia Central são fortemente
dependentes da água partilhada. Desde a independência que cada um dos países da região
elaborou planos de desenvolvimento nacional
económico que têm por base os mesmos recursos hídricos. Contudo, esses planos nacionais,
desenhados à margem de qualquer estratégia regional de partilha de recursos coerente, não têm
em atenção as reais disponibilidades de água. Se
os planos tivessem sido agrupados, a compatibilização das necessidades de irrigação e de produção de energia hidroeléctrica teriam mostrado
que defendem uma via de utilização de recursos
insustentável. Existe o perigo óbvio de os planos
nacionais rivais se tornarem fonte de tensões e
223
Os governos reconhecem
hoje em número cada vez
maior que a realidade da
Cooperação para o desenvolvimento humano
no contexto das bacias fluviais
independência hidrológica
requer modelos de gestão
multilateral mais abrangentes
para as bacias hidrográficas
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
6
224
Cada sistema fluvial, desde a sua nascente no interior das
florestas até à sua desembocadura numa linha de costa, é
uma entidade única e deveria ser tratado como tal.
—Theodore Roosevelt32
Atendendo às enormes sensibilidades políticas que
rodeiam a questão dos recursos hídricos, seria irrealista presumirmos que vai surgir uma nova cultura internacional capaz de transformar a gestão da
água nos próximos anos. A perspectiva do interesse
nacional continuará a ter enorme influência a esse
nível. Mas o interesse nacional pode ser perseguido
em termos mais — ou menos — esclarecidos. Como
os governos reconhecem hoje em número cada vez
maior, a realidade da independência hidrológica
requer modelos de gestão multilateral mais abrangentes para as bacias hidrográficas. Os esforços
desenvolvidos futuramente ao nível da gestão dos
recursos hídricos transfronteiriços deveriam conduzir-se pelo reconhecimento de dois princípios:
• A segurança humana na gestão das águas partilhadas é parte integrante da segurança nacional.
A água pode ser um factor de preocupação para
a segurança nacional, particularmente nos países
que dependem de recursos transfronteiriços para
a satisfação de uma percentagem significativa
das suas necessidades de água. Mas a segurança
humana constitui um argumento poderoso para
a adopção de novos modelos de gestão. A gestão
das águas partilhadas pode reduzir os riscos imprevisíveis e as vulnerabilidades resultantes da
dependência de recursos hídricos partilhados. A
cooperação oferece uma via para uma maior previsibilidade e redução de riscos e vulnerabilidades, com benefícios de grande alcance em termos
de subsistência dos povos, do meio ambiente e da
economia. Além disso, a gestão partilhada dos
recursos hídricos pode abrir caminho para um
vasto conjunto de benefícios visando a melhoria
da segurança humana através de maiores oportunidades de cooperação além fronteiras.
• As bacias hidrográficas são tão importantes como
as fronteiras. A maioria dos governos defende
hoje o princípio da gestão integrada dos recursos
hídricos e reconhece a necessidade de estratégias
de planeamento que abranjam todo os modelos
de utilização. Contudo, o planeamento integrado não pode terminar na linha de fronteira.
As bacias dos rios e dos lagos são ecossistemas
que se estendem para lá das fronteiras nacionais,
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
e a integridade de qualquer parcela desses sistemas depende da integridade do seu todo. Como
tal, a lógica reside em gerir a água ao nível de
toda a bacia hidrográfica, mesmo quando ela
atravessa as fronteiras para o outro lado.
Cooperação ao nível das
bacias hidrográficas
A cooperação ao nível das bacias hidrográficas no
seu conjunto já está a ser seguida em muitas regiões.
Os modelos de cooperação variam entre a coordenação (como a partilha de informação) até à colaboração (através da elaboração de planos nacionais
adaptáveis ao conjunto) ou as acções conjuntas (que
incluem parcerias de co-propriedade de infra-estruturas). Nalguns casos, a cooperação conduziu à criação de estruturas institucionais permanentes, através
das quais os governos podem interagir regularmente
(caixa 6.4).
Uma forma de encarar a cooperação consiste em
vê-la como um intercâmbio de pacotes de benefícios
que irão aumentar o grau de bem-estar de ambas as
partes. Esta perspectiva vai além do simples regateio
de quotas volumétricas, para identificar os múltiplos
benefícios previsíveis para ambos os lados. Um exemplo deste tipo de abordagem é o diálogo travado entre
a Índia e o Nepal acerca dos rios Bagmati, Gandak
e Kosi (todos afluentes do Ganges). Os tratados daí
resultantes incluíram cláusulas que contemplavam
uma série de projectos relacionados com os recursos
hídricos, incluindo a irrigação, a produção de energia hidroeléctrica, a navegação, a pesca e, até mesmo,
a florestação, cabendo à Índia o financiamento da
plantação de árvores no Nepal, a fim de conter a sedimentação a jusante. Apesar dos tratados terem sido
emendados por forma a atenderem aos receios nepaleses, as suas estruturas alargadas são bons exemplos
da importância que os pacotes de benefícios podem
assumir na concepção de soluções criativas.
Os modelos de gestão cooperativos demonstram
ter capacidade para atrair benefícios que ultrapassam
o âmbito do rio propriamente dito. Mais de 40% dos
tratados relativos às águas transfronteiriças incluem
cláusulas que vão além da mera gestão das águas partilhadas.33 Seguem-se alguns exemplos:
• Fluxos de recursos financeiros. Vários acordos
incluem cláusulas relativas aos investimentos,
como é o caso do financiamento de um projecto
Caixa 6.4
A cooperação ao nível das bacias fluviais pode assumir muitas formas
Existem instituições de cooperação em inúmeras bacias fluviais,
embora o seu impacto seja bastante diversificado. Os exemplos
aqui apresentados demonstram que os governos podem unir-se
em contextos muito diferentes, com o objectivo de gerirem os
recursos hídricos partilhados. O desafio consiste em reforçar e
aprofundar a noção de interesses partilhados que fundamenta a
cooperação e conceber instituições eficazes, transparentes e responsáveis que respondam aos desafios do futuro.
A Comissão do Rio Mekong. A Comissão do Rio Mekong foi
fundada em 1995 com o estatuto de agência inter-governamental para os quatro países da bacia inferior do Mekong: Camboja,
Laos, Tailândia e Vietname. A comissão substituiu o Comité do
Mekong (1957-1976) e o Comité Interino do Mekong (1978-1992),
estabelecendo assim um novo patamar de cooperação na Bacia
do Mekong. Esta comissão é constituída por três departamentos
permanentes: o secretariado, o comité técnico conjunto e o conselho ministerial. Foram instituídos comités nacionais do Mekong
em cada estado-membro, para coordenar os ministérios nacionais
e departamentos afins, e para estabelecer a ligação daqueles com
o Secretariado. Desde 2002 que representantes seleccionados da
sociedade civil também têm sido convidados a participar nas reuniões dos comités e do conselho.
Iniciativa da Bacia do Nilo. A Iniciativa da Bacia do Nilo possui
uma estrutura semelhante: um conselho de ministros, um comité de
aconselhamento técnico e um secretariado. No entanto, a iniciativa
é muito mais recente e possui pouca experiência em programas
de parceria. Até há pouco tempo, as questões relacionadas com
os recursos hídricos estavam circunscritas às quotas volumétricas
acordadas entre o Egipto e o Sudão. Mas hoje em dia, a iniciativa
centra-se num conjunto de benefícios que podem estender-se a
toda a bacia, desde a energia hidroeléctrica até ao controlo das
cheias ou à sustentabilidade ambiental, estando também em preparação um Programa de Acção Estratégica destinado a identificar
novos projectos de cooperação. Alguns doadores estão a tentar
promover a participação de grupos da sociedade civil, através do
Secretariado do Gabinete Internacional do Nilo.
Organização de Desenvolvimento do Rio Senegal. A Bacia do
Rio Senegal tem registado sólidos progressos ao nível da gestão
integrada de recursos hídricos entre o Mali, a Mauritânia e o Senegal. A Guiné associou-se a esta organização recentemente. A
cooperação teve início pouco depois de os estados ribeirinhos se
terem tornado independentes, quando em 1964 o rio foi declarado
um curso de água internacional. Em 1972, a Organização de Desenvolvimento do Rio Senegal foi lançada com uma conferência de
chefes de estado, um conselho de ministros, um alto-comissário,
três departamentos de aconselhamento e os respectivos gabinetes
nacionais. Uma forte liderança política garantiu a angariação de
fundos a tempo de financiar a construção de duas barragens em
regime de co-propriedade, geridas por empresas independentes.
Paralelamente ao desenvolvimento institucional e de infra-estruturas, foram elaborados planos contemplando esquemas de
gestão integrada dos recursos hídricos de bacias hidrográficas.
Uma Comissão Permanente para a Água reúne-se três vezes por
ano, a fim de determinar o padrão de consumo mais indicado para
a água proveniente das duas barragens. As barragens fornecem
electricidade aos três países e água para irrigação aos agricultores
de zonas de precipitação mais instável. Também foram desenvolvidos esforços no sentido de controlar as cheias nas regiões do vale
situado a montante e no delta. Foram implementados programas
destinados a minimizar os impactos ambientais negativos, tais
como a propagação do jacinto aquático e o aumento da salinidade
do solo.
O Projecto de Recursos Hídricos da Zona Montanhosa do Lesoto na Bacia Hidrográfica do Rio Orange. O acordo de 1986 contempla a transferência de águas do Rio Senqu, situado no território
rico em recursos hídricos do Lesoto, até ao rio Vaal, na África do
Sul. Em troca, o Lesotho recebe direitos aduaneiros. Na mesma
linha dos princípios de gestão de recursos hídricos integrados, o
projecto hídrico também está ligado à Comissão da Bacia do Orange-Senqu, fundada em 2000.
Comissão da Bacia do Rio Limpopo. O primeiro acordo multilateral entre o Botsuana, Moçambique, a África do Sul e o Zimbabué
deu origem, em 1986, à Comissão Técnica Permanente da Bacia
do Limpopo, criada com o objectivo de prestar aconselhamento
para a melhoria da água em termos quantitativos e qualitativos. No
entanto, as tensões políticas impediram uma cooperação entre as
partes. Após o fim do apartheid, foram reatadas as negociações, a
começar pela comissão permanente de 1997, que visava a cooperação entre o Botsuana e a África do Sul. Em 2003, foi acordada
a criação de uma Comissão do Curso de Água do Limpopo, com
o objectivo de implementar o protocolo de água da Comunidade
para o Desenvolvimento da África Austral. Nesse mesmo ano, foi
criada a Comissão da Bacia do Rio Limpopo, com o objectivo de
gerir a bacia como um todo.
Fonte: Amaaral e Sommerhalder 2004; Lindemann 2005.
•
•
ção por parte da Índia de energia hidroeléctrica
proveniente da barragem de Tala, pertencente ao
Butão.
Partilha de dados. A troca de informação é um
aspecto crucial na gestão integrada dos recursos hídricos, em termos de bacias hidrográficas. O primeiro plano quinquenal do Comité
do Mekong consistia, quase exclusivamente,
em projectos de recolha de dados que visavam a
criação de condições para uma gestão mais eficaz
da bacia hidrográfica.
As ligações políticas como parte das conversações
gerais de paz. Os acordos relativos aos recursos
hídricos podem contribuir para negociações po-
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6
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
•
hidroeléctrico no Laos por parte da Tailândia,
o auxílio da Índia ao Paquistão na construção
de infra-estruturas de irrigação ao abrigo do
Tratado de Águas do Indus, e o papel da África
do Sul na melhoria dos recursos hídricos das
zonas montanhosas do Lesoto.
Comércio de recursos energéticos. A criação de
mercados de comercialização de energia hidroeléctrica pode gerar benefícios quer para os importadores quer para os exportadores. Entre os
exemplos destas trocas contam-se a aquisição por
parte do Brasil de electricidade proveniente da
barragem de Itaipu, situada na bacia do Paraná-La Plata, pertencente ao Paraguai, e a aquisi-
225
Quadro 6.4
Benefícios potenciais na
sub-bacia do Kagera
Alcance geográfico
do benefício
Benefício
Região
• Estabilidade e «dividendos de paz»
• Integração económica (Comunidade
da África Oriental, Burundi, Ruanda e
República Democrática do Congo)
• Unidades infra-estruturais regionais
Países ribeirinhos
•
•
•
•
•
•
•
•
Controlo de sedimentos
Gestão da bacia hidrográfica
Fornecimento de energia e electrificação rural
Irrigação e comércio agrícola
Regulação fluvial
Conservação da biodiversidade
Desenvolvimento comercial
Desenvolvimento do sector privado
Regiões ribeirinhas a
jusante
•
•
•
•
•
Controlo de qualidade da água
Controlo do jacinto aquático
Redução dos sedimentos
Estabilidade regional
Mercados em crescimento
Fonte: Jägerskog e Phillips 2006; Banco Mundial 2005f.
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
6
226
líticas mais alargadas. O acordo hídrico entre
Israel e a Jordânia fez parte do acordo de paz firmado entre os dois países, em 1994. Um eventual acordo politico definitivo entre Israel e os
Territórios Ocupados da Palestina teria de incluir, também, um acordo relativo aos recursos
hídricos partilhados por ambas as partes.
Algumas iniciativas associadas às bacias fluviais
poderiam vir a gerar benefícios significativos para o
desenvolvimento humano, no âmbito de um vasto
grupo de países. Vejamos o caso da Iniciativa da
Bacia do Nilo. Cinco dos 11 países que partilham
o Nilo incluem-se entre os mais pobres do mundo.
Qualquer dos 11 considera os recursos do Nilo como
essenciais para a sua sobrevivência. Numa situação
em que não houvesse cooperação, isto poderia constituir uma fonte de conflito e de insegurança. Mas a
gestão cooperativa contribui para a partilha de benefícios por toda a bacia hidrográfica e ajuda a prevenir
situações de risco. A cooperação pode identificar formas de reduzir as perdas decorrentes das inundações,
de explorar o potencial de energia hidroeléctrica e de
irrigação e de conservar um ecossistema que se estende do Lago Vitória até ao Mediterrâneo.
Se olharmos mais longe do que as fronteiras nacionais, poderemos constatar que a sub-bacia nos oferece uma perspectiva mais alargada das possíveis opções de cooperação. A sub-bacia do Kagera, integrada
no sistema fluvial do Nilo e partilhada pelo Burundi,
Ruanda, Tanzânia e Uganda, é a principal fonte de
água que alimenta o Lago Vitória e o Nilo Branco.34
Os depósitos de aluvião, os pântanos, as florestas e a
fauna da bacia constituem um ecossistema que tem
sido submetido a grande pressão devido à crescente
densidade dos povoados humanos. As tentativas de
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cooperação institucional levadas a cabo nas décadas
de 70 e 80 sofreram constrangimentos financeiros e
de capacitação. Nos primeiros cinco anos de funcionamento, a Organização da Bacia do Kagera registou um aumento orçamental de apenas um décimo.35
Na década de 90, as guerras civis no Burundi e no
Ruanda praticamente mataram o processo de cooperação. Só recentemente têm sido lançados, sob a
égide da Iniciativa da Bacia do Nilo e do Programa
de Acção Subsidiário dos Lagos do Nilo Equatorial,
um conjunto de projectos mais sustentáveis. Caso
seja bem sucedido, o Kagera poderá tornar-se num
modelo para mais projectos de cooperação integrada
na bacia do Nilo (quadro 6.4).
A África Austral constitui mais um exemplo
marcante de cooperação regional. Os recursos hídricos são uma importante área de cooperação e
integração no contexto da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral. Durante a era do
apartheid, poucos países na região estavam dispostos
a cooperar com a África do Sul. Desde o fim do apartheid que a gestão partilhada da água tem sido parte
integrante da cooperação regional, cabendo aos líderes políticos um papel importante na definição
de novas regras e na criação de novas instituições. O
elevado nível de cooperação existente reflecte o facto
de todos os países na região terem consciência de que
quando um perde perdem todos, e quando um ganha
também ganham todos (caixa 6.5). Seguindo o exemplo desta iniciativa, a União Africana adoptou, em
Fevereiro de 2005, a Declaração Sirte que incentiva
os estados-membros a estabelecerem protocolos regionais que possam promover a gestão integrada da
água e um desenvolvimento sustentado da agricultura em África.
A perspectiva da cooperação à luz de pacotes de
benefícios representa mais do que um mero enquadramento analítico. Pode ajudar certos países a verem
para lá dos objectivos limitados de autonomia e oferece aos líderes políticos opções «vendáveis» junto
dos respectivos eleitorados. Esta perspectiva permite
aos países mais pequenos negociarem numa posição
reforçada, através da oferta de cedências, em troca de
um leque de benefícios. Também pode gerar fluxos
financeiros, alargar o âmbito da cooperação e abrir
a possibilidade de novas parcerias para além dos recursos hídricos. Contudo, para atingir estes fins, são
necessárias instituições fortes.
Estruturas institucionais fracas de
gestão de recursos hídricos
As instituições internacionais de recursos hídricos servem diversos objectivos. Podem servir como
fóruns de discussão neutrais, levar a cabo iniciativas
de recolha de dados e de investigação por conta dos
Caixa 6.5
África Austral — integração regional através da cooperação em rios internacionais
A África Austral tem 15 grandes rios internacionais. Na década
subsequente ao fim do apartheid, a África do Sul usou os recursos
hídricos como forma de sustentar a sua integração regional. As
relações políticas melhoradas constituem um factor de: tentativas anteriores de cooperação no Rio Zambeze fracassadas sem
o envolvimento da África do Sul. Tal é a dimensão da economia
da África do Sul, que encabeça os incentivos económicos para
a cooperação na região. O processo de criação de parcerias nas
bacias hidrográficas foi desencadeado por uma exigência operacional de aumento do fornecimento de água ao centro económico
da África do Sul. No entanto, desde então que a cooperação na
bacia hidrográfica tem sido consolidada através da melhoria dos
relacionamentos políticos entre os estados adjacentes à bacia.
Inovação legislativa. O protocolo da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (CDAA), assinado em Agosto de
1995, baseou-se nas Normas de Helsínquia, que davam forte ênfase à soberania dos estados. Quando Moçambique e a África do
Sul assinaram, em 1997, a Convenção da ONU para o Uso dos
Cursos de Água Partilhados Não-navegáveis, Moçambique insistiu para que fossem feitas revisões posteriores. Um protocolo revisto, assinado em 2000, conferiu uma maior predominância aos
estados a jusante e às necessidades ambientais. Também estabeleceu procedimentos formais para a notificação, negociação e
resolução de conflitos. Este protocolo reforçado também tinha por
base a legislação nacional. O Acto Sul-Africano da Água, datado
de 1998, estipula como um dos seus objectivos o respeito pelas
obrigações internacionais no capítulo da gestão da água ao nível
regional. Como resultado disto, a credibilidade da África do Sul no
processo aumentou.
Reforçar o enquadramento institucional. A finalidade do protocolo revisto era promover a agenda CDAA para a integração
regional e o alívio da pobreza. Os estados-membros adoptaram
acordos e instituições relativos aos cursos de água, encorajando
a coordenação e a harmonização da legislação e das políticas, e
promovendo a investigação e a troca de informação. Foram iniciados vários programas visando estes objectivos, como a formação
profissional para a gestão integrada de recursos hídricos, trabalhos
conjuntos para a recolha de dados, e mudanças implementadas
desde 2001 com vista à concentração da gestão.
Plano de acção estratégico regional. Está em preparação um
plano de acção estratégico para a gestão da água no período entre
2005 e 2010. Este plano centra-se no desenvolvimento dos recursos hídricos através da monitorização e da recolha de dados, no
desenvolvimento de infra-estruturas (para aumentar a segurança
no acesso à energia e à alimentação, bem como na criação de
sistemas de fornecimento de água às pequenas cidades e aldeias
fronteiriças), na construção de instalações (para fortalecer as organizações da bacia fluvial) e na gestão dos recursos hídricos. Cada
área conta com os seus próprios projectos, envolvendo a participação de comités nacionais da CDAA, uma comissão técnica, as
organizações das bacias fluviais e os departamentos executivos.
Mas ainda subsistem vários desafios. Não existe uma política
regional de longo prazo para os recursos hídricos, pelo que os
projectos vão sendo implementados bacia a bacia. As variações
sazonais continuam a impor uma pressão concorrencial sobre as
disponibilidades de água. Também existem atrasos na implementação das leis nacionais reformistas e incertezas quanto aos procedimentos a adoptar na resolução de conflitos.
Fonte: Lamoree e Nilsson 2000; Leestemaker 2001; Nakayama 1998; SADC 2000, 2005a,b; UNEP 2001; van der Zaag e Savenije 1999; Conley e van Niekerk
2000.
•
a recolha de dados ou a monitorização de fluxos
hídricos para lá das fronteiras. Isto limita a sua
capacidade de enfrentarem os desafios socio-económicos e ambientais que se colocam na bacia
hidrográfica — ou de desenvolverem sistemas
mais alargados de partilha de benefícios para
promover o desenvolvimento humano.
Autonomia restrita. A maior parte da cooperação no âmbito das bacias fluviais é realizada através de uma autonomia institucional altamente
limitada. Isto constitui uma fragilidade, porque
uma certa dose de autonomia pode contribuir
para aumentar quer a objectividade quer a legitimação das instituições. A Autoridade Autónoma Binacional do Lago Titicaca, criada pela
Bolívia e pelo Peru em 1996, demonstra como a
autonomia plena sobre as decisões técnicas, administrativas e financeiras pode tornar as instituições mais eficazes. Esta autoridade preparou
uma estratégia a 20 anos para gerir as disponibilidades de água e monitorizar a sua qualidade.
Apesar de não ser independente do governo, a
visão desta instituição vai além da mera luta por
interesses nacionais e é vista pelas duas partes
como uma fonte de aconselhamento credível em
assuntos relacionados com a gestão do lago. Em
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
6
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
estados-membros, monitorizar o cumprimento das
directivas dos tratados e aplicar sanções aos estados
transgressores. Atendendo à fragilidade dos tratados enquanto documentos isolados, o investimento
de energias na criação de instituições sustentáveis
seria altamente benéfico. A sustentabilidade é uma
necessidade básica, porque as bacias hidrográficas
são constantemente sujeitas a pressões, sejam elas
biofísicas, geopolíticas ou socio-económicas. As instituições são, como tal, os amortecedores que aumentam a capacidade de resistência das bacias perante
mudanças súbitas.
Não existe falta de iniciativas ou de instituições
nas bacias fluviais. A maioria possui duas características em comum. O seu funcionamento quotidiano é dominado por técnicos especializados que
realizam um trabalho fundamental e que não têm
envolvimentos políticos de alto nível. O lado positivo reside na existência de uma estrutura institucional para a cooperação nas bacias fluviais que se
centra em projectos comedidos, em vez de ganhos
em larga escala no rio e para além dele. Destacamos
alguns sinais:
• Mandatos limitados. Na maioria dos casos, espera-se que as organizações nas bacias fluviais
trabalhem em áreas técnicas circunscritas, como
227
Atendendo aos diferentes
contextos estratégicos,
políticos e económicos
existentes nas bacias
hidrográficas internacionais,
é de admitir a promoção
e apoio a qualquer tipo
•
de cooperação, por mais
insignificante que ela seja
•
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
6
228
•
contrapartida, a Comissão Hídrica de Coordenação Inter-Estadual na Bacia do Mar de Aral e
o Fundo Internacional para o Mar de Aral, que
gozam de uma capacidade e autonomia limitadas, têm sido palco de rivalidades inter-estaduais, que por sua vez se reflectem em disputas
associadas à contratação do seu pessoal e à representatividade dos países.
Fraca capacidade institucional. As organizações
ligadas às bacias fluviais têm, frequentemente,
falta de técnicos qualificados, pessoal pouco preparado e responsáveis sem linhas de orientação
definidas ao nível da programação de objectivos
e da concepção de projectos. A Autoridade da
Bacia do Níger, criada em 1980, manteve-se ineficaz mau grado às diversas reestruturações por
que passou. Devido à falta de apoio financeiro
ou político, foi-lhe impossível desenvolver estratégias para um desenvolvimento socioeconómico e uma conservação ambiental integrados,
conforme previsto nos seus pressupostos. Só
desde há pouco tempo atrás os países das bacias
hidrográficas começaram a assumir a sua interdependência da bacia e a darem o seu contributo
financeiro para a autoridade.
Financiamento insuficiente. O processo de negociação para a criação de instituições ligadas às
bacias fluviais pode ser tão importante como os
resultados obtidos. As negociações equilibradas
são dispendiosas, porque se prolongam, muitas
vezes, por longos períodos de tempo, e também
devido à necessidade de dados técnicos e de
formação jurídica. Sobretudo as iniciativas na
África Subsariana têm sido afectadas pela falta
de financiamento adequado, o que tem inviabilizado a cooperação institucional. Nos últimos 15
anos, a Comissão da Bacia do Lago Chade tem
vindo a debater o desvio de águas do Rio Ubangi
para o Rio Chari, que desagua no lago. Trata-se
de uma prioridade urgente face à contracção acelerada do lago. No entanto, até à data, os cinco
países membros apenas conseguiram angariar 6
milhões de dólares para custear um estudo de
viabilidade. De acordo com as tendências actuais, o projecto em si deverá levar mais 10 a 20
anos a atingir, o que já poderá revelar-se tarde demais.36 Da mesma forma, o Fundo Internacional
para o Mar de Aral, destinado a funcionar como
mecanismo de financiamento para projectos no
Mar de Aral, não conseguiu reunir as contribuições dos cinco estados da Ásia Central.
Falta de mecanismos coercivos. A capacidade das
instituições para obrigarem ao cumprimento
dos acordos é um facto importante, principalmente porque a ausência de obrigatoriedade enfraquece a credibilidade e desincentiva o cumprimento dos acordos negociados. Uma fraco
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
poder de coacção pode abalar até os tratados
mais imaginativos. Em 1996 e 1997, após anos
de disputa, foram assinados dois tratados destinados a encontrar soluções equitativas de partilha dos recursos hídricos no Syr Darya e a explorar os recursos energéticos. A sua implementação
foi afectada pelo não-cumprimento e pela falta
de mecanismos coercivos. Pelo contrário, a experiência de Israel e da Jordânia durante a seca
de 1999 demonstra como as instituições conseguem solucionar conflitos que, de outro modo,
poderiam vir a ter repercussões políticas significativas. Diferença: os acordos entre Israel e a
Jordânia contemplavam mecanismos coercivos.
Criação de condições
para a cooperação
Existe um vasto leque de casos que recorreram à
cooperação. A cooperação não tem de ser sempre
aprofundada — no sentido de concordar com a partilha de todos os recursos e envolver-se em todo o
tipos de iniciativas cooperativas — para que os estados retirem benefícios dos rios e lagos. Na verdade,
atendendo aos diferentes contextos estratégicos,
políticos e económicos existentes nas bacias hidrográficas internacionais, é de admitir a promoção e
apoio a qualquer tipo de cooperação, por mais insignificante que ela seja. Existem, no entanto, alguns
procedimentos muito claros que os estados, os organismos da sociedade civil e as organizações internacionais podem adoptar, no sentido de criarem as
condições para uma cooperação inicial e a implementação de sistemas de partilha de benefícios mais
alargados. Destacamos alguns requisitos:
• Avaliação das necessidades e metas do desenvolvimento humano.
• Criação de um clima de confiança e reforço da
legitimação.
• Aumento da capacidade institucional.
• Financiamento da gestão dos recursos hídricos
transfronteiriços.
Avaliação das necessidades e metas do desenvolvimento humano. A gestão das águas transfronteiriças
não pode ser separada de metas de desenvolvimento
internacional mais alargadas, como é o caso dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. A maioria
das iniciativas associadas às bacias fluviais centra-se
em acordos de partilha dos rios negociados por técnicos altamente qualificados. Esse processo cria os alicerces para uma relação de cooperação. No entanto,
os líderes políticos poderiam contribuir para a criação destes alicerces, se identificassem, no âmbito da
bacia hidrográfica, os objectivos partilhados para o
desenvolvimento humano — em termos de redução
da pobreza, de criação de emprego e da gestão do
Caixa 6.6
Projecto Ambiental Global — aquisição de conhecimentos e capacidades e criação de instituições.
Criado em 1991 e contando com fortes apoios aprovados na
Cimeira da Terra de 1992, o Projecto Ambiental Global (PAG)
tornou-se a maior fonte de ajuda multilateral para as questões
ambientais universais. O PAG foi instituído como parceiro do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, cujo
poder de intervenção assenta na execução de projectos de criação de capacidades; do Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente, cujo poder de intervenção assenta na identificação de prioridades regionais e na implementação de planos de
acção; e no Banco Mundial, cujo poder de intervenção assenta
no financiamento.
No que respeita às águas internacionais, uma das seis áreas
nucleares, o PAG assume-se a si próprio como facilitador para
programas de acção baseados em ecossistemas a implementar
pelos departamentos de gestão de águas transfronteiriças. A sua
crescente importância poderá ser avaliada através dos diferentes papéis que desempenham na promoção da cooperação.
• Definição de prioridades e criação de parcerias. Em cada
uma das bacias internacionais, a PAG apoia processos de
recolha de factos em múltiplos países, a fim de preparar
a análise dos diagnósticos transfronteiriços que servirão
de base aos programas de acção estratégica adoptados a
alto nível, e que irão ser implementados ao longo de vários
anos. O processo apresenta várias vantagens: a produção
de conhecimentos científicos, a criação de um cima de confiança, a análise das causas de origem, a harmonização de
políticas, a transformação das preocupações relacionadas
com as situações de ruptura dos recursos hídricos e ambientais em problemas solucionáveis, e a promoção da gestão
dos recursos hídricos ao nível regional. Também contribui
para sublinhar a ligação existente entre as preocupações
sociais, económicas e ambientais. Por exemplo, no Lago
•
•
•
Victória, conseguiu identificar ligações entre as espécies
invasivas, a desflorestação, a biodiversidade, a navegabilidade, a produção de energia hidroeléctrica, as migrações e
o aparecimento de doenças.
Promoção da gestão de água ao nível regional. Cerca de dois
terços dos projectos do PAG contribuem para a criação ou o
fortalecimento de tratados, legislações e instituições. Desde
2000, foram adoptados ou estão em adiantada fase de preparação, nada mais nada menos que 10 novos tratados regionais.
Os exemplos mais bem sucedidos talvez sejam a Comissão
Internacional para a Protecção do Rio Danúbio e a Comissão
do Mar Negro. Em 2000, o Centro de Alerta Internacional para
o Danúbio recebeu uma notificação de um derramamento de
cianeto a tempo de poder evitar uma catástrofe ambiental de
efeitos potencialmente dramáticos.
Criação de capacidades ao nível nacional. Um ponto-chave
para garantir programas sustentáveis consiste na criação de
capacidades que possam responder às exigências e preocupações a nível local. Embora existam numerosos workshops
de treino, os constrangimentos financeiros impõem limites à
participação de apoiantes locais. Na Bacia do Mekong, as organizações não-governamentais estão activas na Tailândia,
mas não no Camboja, no Laos ou no Vietname. No Lago Victória, a pobreza e a iliteracia são obstáculos a um efectivo alargamento da educação ambiental.
Catalizar investimentos. Nos últimos 15 anos, o PAG atribuiu
mais de 900 milhões de dólares em subsídios, a que se juntaram 3,1 mil milhões de dólares em co-financiamentos destinados a programas de gestão de águas transfronteiriças desenvolvidos por mais de 35 organismos, englobando 134 países.
Cerca de três quartos dos seus fundos são directamente canalizados para projectos (em vez de países) a nível regional.
Fonte: Gerlak 2004; Skalerew e Duda 2002; Uitto 2004; Uitto e Duda 2002.
bacias hidrográficas transfronteiriças, tendo atingido bons resultados a vários níveis no Mar de Aral,
no Lago Victória, no Lago Tanganica, no Danúbio
(incluindo o Mar Negro) e no Mekong. Para além
do PAG, o Programa Mundial para as Águas Internacionais identificou 66 sub-regiões com vista à avaliação das causas e efeitos dos problemas ambientais
nas unidades hídricas transfronteiriças.
Mas também é importante que os estudos de recolha de dados possam ir além dos aspectos técnicos.
As recolhas de dados baseados na comunidade e nos
inquéritos de opinião são um veículo de identificação
dos problemas do desenvolvimento humano. As comunidades das bacias fluviais retiram benefícios directos dos recursos hídricos partilhados e pertencem
simultaneamente à faixa da população mais vulnerável aos riscos. Elas constituem, pois, uma importante
fonte de informação sobre os episódios ambientais e
os seus impactos nas condições de vida dos habitantes.
Também aqui a ajuda pode contribuir para a criação
de capacidades institucionais. As comunidades da
Bacia do Rio Bermejo, partilhada pela Argentina e
pela Bolívia, apresentam elevados índices de pobreza.
Uma excessiva desflorestação provocou graves problemas ambientais, induzindo os governos dos dois países
R E L AT Ó R I O D O D E S E N V O LV I M E N T O H U M A N O 2 0 0 6
6
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
risco — e fizessem destes objectivos uma parte integrante do planeamento das bacias hidrográficas.
O primeiro passo para uma cooperação eficaz
em termos de desenvolvimento humano consiste na
criação de um banco de informações comum. A informação é necessária para que os países ribeirinhos
reconheçam as insuficiências dos programas unilaterais, que não levam em consideração as interdependências. Este banco de informação também poderá
ajudar a identificar os interesses partilhados. Muitos
focos de conflito surgem mais pela desconfiança e
falta de informação relativamente ao uso e abuso de
recursos hídricos do que por diferenças substanciais.
A investigação conjunta e as trocas de informação
podem contemplar a notificação prévia da criação de
infra-estruturas, a identificação dos interesses partilhados e do potencial de desenvolvimento, maiores
hipóteses de chegar a acordo e, principalmente, as
bases para uma relação de confiança a longo prazo.
Esta é uma área em que o apoio internacional
pode marcar a diferença. O Projecto Ambiental Global (PAG) tem vindo a liderar o apoio às reformas
legais e institucionais no âmbito da gestão dos recursos hídricos (caixa 6.6). Desde 1991 que o PAG tem
apoiado missões de recolha de dados em mais de 30
229
À medida que a cooperação
nas bacias hidrográficas
for evoluindo, os líderes
políticos terão de subir a
fasquia para um nível de
ambição mais exigente
Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
6
230
a desenvolverem uma estratégia bilateral de gestão da
bacia. A estratégia incluiu a consulta a mais de 1.300
participantes da sociedade civil, no âmbito de um
projecto do PAG destinado a identificar problemas e
soluções em áreas como a erosão de solos, a disputa
de terras e o controlo de sedimentação. As vozes da
comunidade conduziram à reavaliação do projecto de
construção de diversas barragens e exigiram a adopção
de práticas ambientais sustentáveis.
À medida que a cooperação nas bacias hidrográficas for evoluindo, os líderes políticos terão de subir
a fasquia para um nível de ambição mais exigente. As
Normas de Helsínquia e a convenção da ONU para
o Uso dos Cursos de Água Não-navegáveis, de 1997,
identificaram as necessidades sociais e económicas
como prioridades. Contudo, as actuais abordagens
têm partido de negociações que visam antes as trocas
económicas, a partilha de informação e a resolução
de conflitos. Todos estes aspectos são cruciais — e
constituem a base de qualquer acção bem sucedida.
Mas os organismos ligados às bacias fluviais também
oferecem uma oportunidade aos líderes políticos para
que se preocupem com o desenvolvimento humano
para lá das suas próprias fronteiras. Até certo ponto,
isto já começa a acontecer na Iniciativa da Bacia do
Nilo e na África Austral. Mas muito mais poderá ser
feito, incluindo a avaliação das necessidades de desenvolvimento humano de cada bacia fluvial.
Criação de um clima de confiança e reforço da
legitimação. A informação deficiente ou a sua falta
constituem um obstáculo a uma cooperação mais
aprofundada em muitas bacias fluviais. A cooperação
transfronteiriça ao nível da água depende da vontade
dos estados ribeirinhos em partilharem a sua gestão.
Também aqui é necessário que o apoio internacional
ajude a criar formas de cooperação ambiental bem
sucedidas.
Como acontece em qualquer processo de mediação, as partes que tiverem uma postura imparcial poderão ajudar a criar um clima de confiança e de legitimação. O Banco Mundial apoiou processos de gestão
de bacias hidrográficas durante um longo período,
a partir das negociações do Tratado do Indus, nos
anos 50, até à aprovação da actual Iniciativa da Bacia
do Nilo. O Banco Mundial também tem um peso
político e uma capacidade que lhe permitem formular objectivos e criar instituições. O Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)
contribuiu para a criação de capacidades no Acordo
do Modelo Cooperativo da Bacia do Rio Nilo. Para
poder desempenhar este papel, terceiros devem gozar
de uma imagem de facilitadores neutrais, alheios a
quaisquer ambições geopolíticas relacionadas com a
gestão dos recursos hídricos.
Um dos requisitos para o sucesso da cooperação
a longo prazo é a existência de envolvimento político
a longo prazo. As negociações sobre as águas parti-
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lhadas são invariavelmente demoradas, exigindo o
apoio dos doadores ao longo do processo. Em 1993,
o Banco Mundial e outros doadores aprovaram o
Programa da Bacia do Mar de Aral com o objectivo
de estabilizarem o meio ambiente, reabilitarem esta
zona de catástrofe e melhorarem a capacidade de
gestão local. Decorrido um ano, a Assistência Técnica da União Europeia para os Países Independentes da Commonwealth iniciou o projecto de Gestão
de Recursos Hídricos e de Produção Agrícola, para
apoiar a Comissão Internacional do Mar de Aral. O
PNUD lançou, desde então, o projecto de Desenvolvimento de Capacitação da Bacia do Mar de Aral. A
Agência norte-americana para o Desenvolvimento
Internacional foi de importância crucial no estabelecimento da ligação entre as preocupações hídrica
e o sector energético, no âmbito dos acordos do Syr
Darya. Mau grado persistirem problemas na Bacia
do Mar de Aral, a intervenção das organizações internacionais desde o início dos anos 90 tem evitado
uma possível agudização de conflitos relacionados
com os recursos hídricos.
Fortalecer a capacidade institucional. Organizações das bacias fluviais fortes deverão servir de
modelo para o futuro. Embora a concepção das instituições difira de acordo com as regiões e as circunstâncias, muitas delas enfermam do mesmo problema
de falta de capacidade técnica adequada. A cooperação nesta área poderá ser intensificada através da
transferência de conhecimento institucional. Por
exemplo, a União Europeia, com a sua imensa experiência na gestão de águas transfronteiriças, poderia
fazer muito mais para apoiar o desenvolvimento institucional em países pobres, através de um trabalho
com agências como o Banco Mundial e o PNUD, a
fim de desenvolverem programas de treino e de formação de capacidades.
Também existe raio de acção para um trabalho ao
nível da legislação regional. A falta de políticas hídricas harmoniosas ou estruturadas nos países ribeirinhos pode neutralizar os esforços de gestão integrada
de recursos hídricos transfronteiriços. Contudo, a
harmonização da legislação sobre a água representa
um desafio técnico e uma dificuldade politica. Dada
a sua experiência neste sector, o Programa Ambiental
dos Estados Unidos poderia assumir a liderança na
avaliação dos enquadramentos legislativos nacionais
e na identificação de lacunas. Isto poderia servir de
base à criação de políticas hídricas regionais, à semelhança do que aconteceu com a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral.
Financiamento da gestão dos recursos hídricos
transfronteiriços. A gestão dos recursos hídricos
transfronteiriços gera importantes vantagens públicas internacionais. Residindo mais de 40% da população mundial em zonas de bacias transfronteiriças,
a gestão destas bacias tem implicações na paz e se-
gurança regionais, bem como na redução da pobreza
e na sustentabilidade ambiental. Entre os aspectos
negativos que advêm de uma má gestão incluem-se os
refugiados ambientais, a poluição e a pobreza, todas
elas passíveis de atravessarem fronteiras — tal como a
própria água. Este contexto fornece-nos um forte argumento de apoio ao financiamento através de programas de assistência ao desenvolvimento.
A gestão transfronteiriça atraiu muito pouca
ajuda financeira internacional de um total de 3,5
mil milhões de dólares de ajuda ao desenvolvimento
dispendidos com a água e o saneamento, somente
menos de 350 milhões de dólares foram atribuídos
aos recursos hídricos transfronteiriços. Os doadores
deveriam pensar em aumentar substancialmente a
ajuda às águas transfronteiriças. Os custos operacionais das instituições de gestão hídrica são bastante
modestos. Os fundos de auxílio deveriam garantir
uma fonte de financiamento previsível e apoiar a participação dos estados-membros pobres; eles também
constituem uma fonte útil de capitalização de fundos para a implementação de projectos. A experiência mostra que este tipo de apoio financeiro poderia
revelar-se particularmente útil na África Subsariana
e na Ásia Central. Em comparação com o número
de países que partilham as bacias hídricas internacionais e com os elevados custos ambientais e perdas
de desenvolvimento, o apoio financeiro destinado ao
aumento de eficácia das instituições ligadas às bacias
fluviais poderá ser considerado um investimento rentável. Mas a criação de um clima favorável à cooperação e a manutenção do diálogo durante muitos anos
também poderão tornar-se dispendiosas — um bom
campo de acção para fontes de financiamento internacional inovadoras.
No interesse dos próprios, os países ribeirinhos terão de suportar uma fatia substancial da
carga financeira necessária à gestão das instituições
e abordagens transfronteiriças. A ajuda financeira
corre o risco de criar um clima propenso à definição
de prioridades com base nos apoios recebidos, em
que as prioridades dos próprios doadores passem a
definir a agenda. Uma área onde a ajuda é fundamental, é o financiamento dos custos de arranque,
treino e desenvolvimento de capacidades. A ajuda
financeira levará a melhores resultados se for prestada através de subsídios em vez de empréstimos,
porque os custos da coordenação entre países são
elevados e dificultam a responsabilização dos parceiros pelo pagamento da dívida. O PAG continua
a ser um dos principais instrumentos financeiros
de canalização de ajudas para os recursos hídricos
transfronteiriços. Nos últimos 15 anos, consignou 900 milhões de dólares para financiamento
de subsídios, tendo as verbas de co-financiamento
atingido três vezes aquele montante. Os mercados
financeiros poderiam utilizar modelos de financiamento semelhantes com o objectivo de subsidiarem,
por exemplo, grandes projectos de infra-estruturas.
Os financiamentos de risco e os acordos contratuais que mantêm as organizações das bacias fluviais
manietadas poderiam atrair o capital privado, ao
mesmo que ofereciam maior estabilidade à cooperação transfronteiriça.
*
*
Os doadores deveriam
pensar em aumentar
substancialmente a ajuda às
águas transfronteiriças, mas
no interesse dos próprios,
os países ribeirinhos
terão de suportar uma
fatia substancial da carga
financeira necessária à
gestão das instituições e
abordagens transfronteiriças
*
Pondo de parte a retórica da ameaça das guerras da
água, duas coisas são certas. Primeira, é que para um
grande número de países, a gestão dos recursos hídricos transfronteiriços continuará a ser um assunto de
importância crescente no contexto do diálogo bilateral e regional. Segunda, é que a competição crescente
pela água terá consequências marcantes no desenvolvimento humano, que irão atravessar fronteiras.
Para além destas duas certezas, nada mais está
garantido. Estará a água destinada a ser uma fonte
crescente de tensões entre vizinhos? Isso vai depender, em parte, das questões mais abrangentes relacionadas com a paz e com a segurança, que nada têm
que ver com a água, e por outro lado, de os governos optarem por resolver as suas diferenças através
da cooperação. O que parece claro é que as pessoas
residentes em zonas atingidas pela pressão da falta de
água e que têm por isso preocupações de segurança
humana, vão continuar interessadas na adopção
de abordagens de gestão de água mais ambiciosas e
menos desordenadas.
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Gestão dos recursos hídricos transfronteiriços
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